PARTE1 IntroduçãoAoPensamentoDeMarx

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Capítulo 1

Uma vida a serviço da classe operária

Nos dias de hoje Marx é retratado na maior parte dos livros, artigos e documentá-
rios como um intelectual que, externamente a classe trabalhadora, procurava lhe
dar lições. Lições essas alcançadas unicamente em função de sua mente brilhante.
Alguns aspectos de seu pensamento são estudados nos cursos universitários
e seu nome esta sempre presente na literatura que trata de temas específicos
de ciências humanas: história, economia, sociologia e assim por diante. Agora,
completados 200 anos de seu nascimento, nos meios políticos tradicionais, nas
universidades, nos veículos de comunicação de grande circulação muitos se
levantam para saldar, ou criticar, o seu nome.
Se por algum motivo um indivíduo bem informado de pouco mais de cem
anos atrás fizesse uma viagem no tempo até os nossos dias ficaria, certamente,
espantado com o tamanho da audiência dada à Marx nesses meios. No começo
do século XX, muitos anos após sua morte, seu pensamento não era estudado
nos ambientes universitários, fora poucas vezes abordado pelos economistas
e filósofos de então. Quase toda audiência de Marx se encontrava no interior
das organizações operárias e socialistas europeias, principalmente na Social-
Democracia Alemã e nos demais partidos da Internacional Socialista. Seu nome já
era bastante conhecido, no entanto, era sempre associado ao movimento operário,
socialista e radical. Sua obra era pouco estudada fora desses meios.
Dois foram os momentos que fizeram de Marx um nome reconhecido e
famoso. Curiosamente, não se trata da publicação de O Capital nem de qualquer
6 Capítulo 1. Uma vida a serviço da classe operária

outra de suas elaborações, mas duas revoluções. A Comuna de Paris em 1871


e a Revolução Russa de 1917. Entre esses dois eventos, encontra-se, ainda, a
fundação e crescimento da Social-Democracia Alemã. Organização que surgira e
se desenvolvera sob orientação do pensamento e intervenção de Marx (e também
Lassale).
Até a Comuna de Paris apenas pequenos círculos de ativistas de organizações
operárias e socialistas europeias sabiam da existência de Marx. Com a Comuna
esse quadro se alterou de modo significativo. Ainda que, nesse momento, Marx
estivesse na Inglaterra e com graves problemas de saúde foi ao seu nome que
boa parte do mundo associou o levante francês. Essa associação não foi acidental.
De fato, a Associação Internacional dos Trabalhadores, que cumpriu importante
papel na Comuna, fora, desde o início, organizada e fomentada por Marx. Foi a
ele que a AIT encomendou uma declaração sobre a Comuna, publicada com o
título de A Guerra Civil na França. Esse foi o primeiro texto de Marx com grande
repercussão, vendendo mais de 18 mil cópias em três meses e sendo traduzido
para a maior parte das línguas europeias.
Mesmo com a Comuna, se consultarmos os manuais de economia, história ou
qualquer outra disciplina da área de humanidades até 1917 não encontraremos
referência alguma a Marx. As únicas exceções são autores alemães, russos e
austríacos. Isto em função da influência e peso social da Social-democracia
alemã, austríaca e russa. Fora desses países, Marx continuava ignorado. O
segundo momento que elevou o nome de Marx no cenário internacional foi a
Revolução Russa. Somente então seu nome passou a figurar em todos os meios.
Esse percurso não foi uma fatalidade, como veremos a seguir.
Nascido em uma família de classe média e filho de um advogado empregado
pela burocracia estatal do que hoje é a Alemanha, Marx ingressou no sistema
universitário alemão e chegou a estudar em sua principal universidade: a Univer-
sidade de Berlim. Universidade onde anos antes lecionara Hegel, um dos mais
brilhantes filósofos de sua época. Defendeu uma tese de doutorado sobre os
filósofos materialistas gregos e aspirou uma carreira acadêmica, o que se mostrou
impossível com a reação que se abateu em seu país a partir do ano de 1842. Marx
jamais lamentou ter perdido a oportunidade de ingressar no então renomado
sistema universitário de seu país. Pouco tempo depois declarava: “Quem desejaria
para si a eterna obrigação de conversar com detestáveis intelectuais, indivíduos
que estudam com o único propósito de encontrar novos ‘becos sem saída’ em
cada recanto do mundo?”1 . Desde então, ele ingressou no que veio a ser sua
atividade profissional no curso de toda vida: o jornalismo. Essa atividade mudou

1
MARX apud (WHEEN, 2007, p. 17)
1.1. Uma obra orientada para a classe operária 7

para sempre seu destino.


A partir de então, por meio da atividade jornalística, Marx entra em contato
com a insurreição dos tecelões da Silésia, com o movimento operário francês,
bem como com o movimento comunista alemão e parisiense. Baseado nessas
experiências, Marx rompe com sua concepção anterior, democrática de esquerda,
passando a defender a vinculação entre o movimento comunista e a classe
operária. Em sua concepção, o socialismo não viria de fora, produto de uma
elaboração feita de antemão por um reformador ou teórico genial, mas, ao
contrário, só poderia ser realizado se vinculado com o produto mais genuíno da
sociedade capitalista em desenvolvimento: o proletariado. Como dirá na época:
“a teoria se torna força material quando se apodera das massas”2 .
Desde então, toda atividade de Marx esteve orientada para a organização
da classe operária. Não apenas sua atividade intelectual, mas também suas
relações pessoais e sua atividade prática e organizativa. Como ele próprio dirá
no escrito Senhor Vogt datado de 1860: “representamos sempre gratuitamente e
com sacrifício dos nossos interesses privados, os interesses da classe operária”3 .

1.1 Uma obra orientada para a classe operária


Com essa nova orientação, toda obra de Marx que se seguiu, sobretudo os textos
voltados para publicação, entre livros e artigos, tinham como interlocutores privi-
legiados a classe operária e suas lideranças. Podemos citar inúmeros exemplos
nesse sentido. Um de seus primeiros textos sobre o funcionamento da sociedade
capitalista, Trabalho Assalariado e Capital, foi uma série de conferências apresen-
tadas na Associação dos Operários Alemães de Bruxelas reproduzida depois na
Associação dos Trabalhadores de Colônia. Outro título publicado na mesma época,
a Miséria da Filosofia, era uma crítica ao mais influente teórico do movimento
comunista e operário francês: Proudhon. O Manifesto Comunista não era nada
mais que o programa organização que Marx acabara de ingressar: a Liga dos
Comunistas. Sobre esse escrito clássico, Marx dirá também no Senhor Vogt que,
“no Manifesto, destinado diretamente aos operários, lancei borda fora todos os
sistemas, substituindo-os pela ‘inteligência crítica das condições do caminho e
dos resultados gerais do verdadeiro movimento social’ ” 4 .
Pouco tempo depois do Manifesto, Marx irá consumir boa parte de seu
patrimônio financiando o jornal Nova Gazeta Renana durante as jornadas

2
(MARX, 2010a, p. 151)
3
(MARX, 1976b, p. 71)
4
(MARX, 1976b, p. 101)
8 Capítulo 1. Uma vida a serviço da classe operária

revolucionárias de 1848-49. Esse jornal chegou a ser um dos de maior circulação


durante o período revolucionário, até sua proibição e a subsequente expulsão de
Marx da cidade alemã de Colônia. A sede do jornal era uma espécie de quartel
armado. “Nossa redação”, dirá Engels mais tarde, “dispunha de oito fuzis com
baioneta e 250 cartuchos”, sendo “considerada pelos oficiais como uma fortaleza
que não poderiam conquistar com um simples golpe de mão”. Tal jornal chegou a
ter 6.000 assinaturas, enquanto o principal jornal de Colônia, a Gazeta de Colônia,
não chegava as 9.000 assinaturas. Ainda segundo o juízo de Engels, “jamais um
jornal alemão, antes ou depois, teve a força e a influência da Nova Gazeta Renana,
nem soube, como esta, galvanizar as massas proletárias”5 . Em um dos artigos
de despedida, após a sua censura, podemos ler: “Os redatores da Nova Gazeta
Renana vos agradecem, na despedida, pela simpatia que lhes foi demonstrado.
Sua última palavra será sempre e em todos os lugares: Emancipação da classe
trabalhadora!”6 .
Esse periódico, por décadas, serviu de modelo e referência para o movimento
operário em toda a Europa. Seu esquecimento é a prova mais contundente da
tentativa de domesticar a obra de Marx no interior de aparatos institucionais.
Tanto é assim que, comumente, a Nova Gazeta Renana é confundida com
a Gazeta Renana, jornal que Marx editou seis anos antes, quando ainda era
uma espécie de democrata de esquerda. Para se ter uma ideia da repercussão
desse jornal sobre o movimento operário, Trotsky, se referindo ao sucesso do
periódico Natchalo que editara na Rússia, diz que: “Tenho para mim que nenhum
outro jornal do último meio século, se aproximou tanto como o nosso de seu
modelo clássico, a Neue Rheinische Zeitung (Nova Gazeta Renana) de Marx
(1848)”7 . Mencionamos ainda que foi baseado na leitura da Nova Gazeta Renana
e nas análises de Marx da Revolução Alemã presentes nesse jornal, que Trotsky
desenvolvera sua teoria da Revolução Permanente e Lênin sua teoria da Ditadura
Democrática do Proletariado e do Campesinato. Como explicar que uma peça de
tamanha relevância durante a vida de Marx e tão influente nas décadas seguintes
encontre-se, hoje, completamente esquecida?

1.2 Uma vida para e entre a classe operária


Decidido a intervir de fato nos rumos do movimento operário, a atuação de Marx
nesse meio esteve longe de ser tão somente literária. Entre os colaboradores de

5
(ENGELS, 1976, p. )
6
(MARX, 2010b, p. 581)
7
(TROTSKY, 1978, p. 159)
1.2. Uma vida para e entre a classe operária 9

Marx, tanto nas organizações quanto nos jornais, encontramos vários operários
cujos laços ele cultivou no curso de toda sua vida. Alguns exemplos são o
relojoeiro Joseph Moll, o tipógrafo Karl Schapper, o sapateiro Heinrich Bauer, o
alfaiate Jonh Eccarius dentre muitos outros. Longe de uma relação distante e
passiva, esses ativistas serão colaboradores políticos e amigos pessoais de Marx
por décadas.
Mais ainda. Não serão em absoluto tratados como meros receptores passivos
das ideais de Marx, ao contrário, elevados ao papel de agentes e sujeitos ativos
dos respectivos processos que se sucederam. São destes operários citados vários
dos artigos escritos na Nova Gazeta Renana, bem como documentos e manifestos
publicados nos anos que se seguiram. Será entre eles que Marx irá compartilhar
sua vida. Para mencionar apenas um episódio, em fins de 1850, Marx irá empenhar
o último casaco de sua esposa Jenny, o único ainda não empenhado em toda
sua casa naqueles dias, para pagar o tratamento de uma doença de Eccarius,
operário membro da Associação Internacional dos Trabalhadores e, também, da
Liga dos Comunistas.
Dentre os intelectuais e profissionais liberais que colaboraram continuamente
com Marx, todos eles voltaram suas atividades e dedicaram a maior parte de
suas respectivas vidas ao trabalho no interior das associações operárias e ao
vínculo com seus movimentos e lutas que a cada dia desenrolavam. Não eram
considerados simplesmente em função de seus dotes intelectuais ou pedantismo
professoral. Em sua maioria, eles foram provados nos processos revolucionários
europeus de 1848. Um caso exemplar é Wilhelm Wolff, filho de agricultores e
professor particular de matemática. Foi Wolff quem divulgou em todos estados
alemães a repressão e significado da insurreição dos tecelões da Silésia, primeiro
levante operário que Marx entrara diretamente em contato. Liderou milicias
na revolução europeia de 1848 e se ligou, posteriormente, a inúmeros ativistas
da classe operária inglesa. Não sem razão, em O Capital, que Marx dedicara
toda sua vida a escrever, se inicia com as seguintes palavras: “Dedicado ao
meu inesquecível amigo, o corajoso, leal e nobre vanguardeiro do proletariado:
Wilhelm Wolff”.
Não foi, portanto, por casualidade que ao mesmo tempo que o nome de
Marx desaparecia nos círculos intelectuais europeus, aflorava, cada vez mais, nos
círculos e organizações operárias. Essa opção, evidentemente, teve seu preço.
Marx perdeu sua cidadania e foi expulso junto com sua família de um país para
o outro: Bélgica, Colônia, por dua vezes da França até que, por fim, passou a
metade final de sua vida na Inglaterra como um apátrida. Sobreviveu, quase
sempre, em situação de absoluta miséria, sendo socorrido várias vezes pelo amigo
Friedrich Engels. Em um episódio particularmente marcante, com todos casacos
10 Capítulo 1. Uma vida a serviço da classe operária

empenhados, Marx e família organizavam ‘festivais’ de dança doméstica para


aliviar o frio.
No entanto, Marx teve uma atividade jornalística contínua, fonte de seus
parcos recursos. Foi por 10 anos colaborador fixo do jornal norte americano New
York Daily Tribune, periódico que chegou a ter 200 mil assinaturas. Para esse
periódico chegou a escrever quase 500 artigos. Mesmo no caso de colaborações
como essa, cujo objetivo central era a sobrevivência, Marx jamais abriu mão
de suas concepções. Em carta enviada ao próprio Marx pelo editor chefe desse
jornal, esse relata: “Devo acrescentar que em todos os seus artigos, chegados
às minhas mãos, havia sempre o mais vivo interesse pelo bem do povo e o
progresso da classe operária, e que com tal objetivo escreveu você muitíssimo”8 .
Não faltaram tentativas de cooptação. Seu gênio era conhecido nos altos
círculos alemães desde sua juventude. Chegou a ser sondado em uma possível
colaboração com o governo ditatorial de Bismarck na recém unificada Alemanha.
Bismarck queria “pôr seus extraordinários talentos a serviço do povo alemão”.
Marx não apenas negou todas investidas como as denunciou publicamente.9
É tendo em vista a organização e luta da classe operária contra o modo
de produção capitalista que toda sua obra foi escrita e suas metas imediatas
realizadas ou derrotadas. Não sem razão, frustrada com a recepção inicial de O
Capital, sua esposa e colaboradora militante Jenny escreveu: “Se os operários
tivessem noção do sacrifício que foi necessário para completar esta obra, escrita
apenas para eles e em seu interesse, eles talvez mostrassem um pouco mais de
atenção”10 . Anos depois o próprio Marx declarava que a “acolhida que O capital
rapidamente obteve em amplos círculos da classe trabalhadora alemã é a melhor
recompensa de meu trabalho”11 .
Como se vê, Marx não apenas desenvolveu toda sua obra para e no interesse
histórico da classe operária, como se vinculou organicamente a ela. Não foi
por acaso que seu nome se tornou universalmente conhecido a partir dos
desdobramentos da luta de classes e, com maior repercussão, a partir da Comuna
de Paris e da Revolução Russa.
Ainda que, nos dias de hoje, muitos queiram domesticar o seu nome e sua
obra no interior de aparatos institucionais oficiais – políticos e acadêmicos –
ele estará sempre internamente ligado a luta revolucionária do proletariado pela
sua libertação. Nas palavra do próprio Marx em um dos últimos combates no
interior da Social democracia alemã: “a libertação da classe operária tem de ser
8
(MARX, 1976c, p. 212)
9
(MCLELLAN, 1990, p. )
10
(MCLELLAN, 1990, p. 376)
11
(MARX, 2013, p. 84)
1.2. Uma vida para e entre a classe operária 11

obra da própria classe operária. Não podemos, portanto, marchar juntos com
pessoas que abertamente afirmam que os operários são demasiado incultos para
se libertarem a si próprios e que só a partir de cima têm de ser libertados, por
grandes e pequenos burgueses benfeitores”12 .
Cabe aqui, contudo, uma pergunta: o que haveria de tão novo no pensamento
de Marx que merecesse tamanha audiência no futuro? Porque as transformações
sociais pelas quais ele lutava exigia atuação no interior da classe trabalhadora,
não sendo passível de se efetuar de fora: por heróis, intelectuais, parlamentares,
isto é, “grandes e pequenos burgueses benfeitores”? É o que veremos a seguir.

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS

12
(MARX; ENGELS, 2010, p. 279)
Capítulo 2

A impossibilidade da sociedade
capitalista ser reformada

Em uma cena famosa da literatura espanhola, o nobre Dom Quixote, dominado


pela loucura, luta contra moinhos de vento acreditando que são guerreiros
gigantes. É um personagem que procura mudar o mundo, forçando-o a ser
da sua maneira e se envolve em uma trapalhada atrás da outra. Procura com
todas suas forças ser um herói, mas luta em vão contra o vento. Para Marx, os
reformistas são como Dom Quixote. Em um dos primeiros textos em que examina
o funcionamento interno da sociedade capitalista, conhecido como Grundrisse,
ele chama as ações reformistas de quixotadas. Para Marx, tentar reformar o
capitalismo é como dar murro em ponta de faca. Mas por que isto é assim? Que
mal há em querer reformar e consertar a sociedade? O que é reformismo afinal?

2.1 O que é reformismo


Uma visão largamente difundida entende por reformistas aquela concepção de
que é possível mudar a sociedade unicamente pela atuação parlamentar, eleitoral
e legal. A visão de Marx a respeito do tema é muito mais abrangente.
O que caracteriza o reformismo é a crença de que é possível consertar o
capitalismo. A crença de que o capitalismo não funciona porque uma ou outra
parte está desajustada. Bastaria acertar o que está errado e todo o sistema
14 Capítulo 2. A impossibilidade da sociedade capitalista ser reformada

funcionaria de forma racional, coerente e justo. Nesse sentido, os reformistas


não partem da sociedade tal como ela é, mas de como ela deveria ser. São
fabricadores de modelos econômicos. Marx se opôs as diversas visões reformistas
não porque estava contra toda e qualquer reforma. Nem mesmo porque preferia
movimentos violentos e abruptos no lugar de ações pacíficas e paulatinas. Muitos
movimentos reformistas, inclusive, eram clandestinos e faziam ações armadas.
A questão não é essa. A pergunta colocada por Marx é a seguinte: é possível
consertar o capitalismo? Humanizá-lo? Muitos respondiam afirmativamente a
essas questões.
Um exemplo muito interessante foi o influente socialista francês Joseph
Proudhon. Em 1848, a classe operária se colocou pela primeira vez em luta direta
contra a burguesia: a revolução de junho de 1848. Proudhon, grande nome do
pensamento socialista francês à época, manteve-se distante de todas as lutas e
desprezava todos os seus líderes. Para ele, o fundamental era implementar seu
projeto de reforma. Com seu projeto de sociedade ideal na cabeça, Proudhon
não gastou tempo com mobilizações, barricadas e lutas de rua na revolução que
acontecia. Se elegeu deputado e apresentou seu projeto no parlamento francês
em 1848. Este projeto foi rejeitado por 600 votos contra 2.
Seu projeto era, esquematicamente, o seguinte: substituir o dinheiro por uma
espécie de vale ou bônus que remuneraria a hora de trabalho. A principal medida
era transformar as empresas em cooperativas de trabalhadores. Tais cooperativas,
no entanto, continuariam a fazer mercadorias e despejá-las no mercado. O
trabalhador seria, agora, um patrão e trabalhador ao mesmo tempo. Proudhon
quer manter a mercadoria e acabar com o dinheiro. Manter o capital acumulado
nas empresas e acabar com o capitalista. Seria isto possível?
De início, a visão de Proudhon pode parecer ingênua. Mas o pano de
fundo é o mesmo dos reformistas contemporâneos. Uns, como Ciro Gomes
no Brasil, contrapõem o capital industrial ao capital bancário. O problema é
que os bancos sugam a riqueza do país. A solução é fazer políticas públicas
que reduzam os ganhos dos bancos e desenvolva o capital industrial. Outros,
chamados keynesianos, como o petista Guido Mantega, defendem a existência
de um descompasso crônico entre produção e consumo na sociedade capitalista.
Não existem pessoas aptas a consumirem tudo que se produz. Daí o Estado
produzir uma nova massa de consumidores com gastos públicos, harmonizando
produção e consumo, evitando uma superprodução. Daí a palavra de ordem
de Dilma Rousseff quando a crise econômica mundial explodiu no Brasil: não
poupem, consumam.
Existem até mesmo aquelas concepções mais exóticas que acreditam que o
Estado pode tapar todos os buracos emitindo moeda e aplicando esses recursos
2.2. O capitalismo enquanto totalidade articulada 15

criados do nada adequadamente. Por exemplo, para prover serviços públicos e


desenvolver a indústria do país. Ou os proudhons contemporâneos, os anarco-
capitalistas. Se Proudhon contrapunha a mercadoria ao dinheiro, os anarco-
capitalistas abraçam o mercado (capitalista) e rejeitam o Estado (capitalista). As
palavras de Marx direcionadas a Proudhon bem que poderiam ser aplicadas aos
chamados ancaps: “Eis o que o sr. Proudhon nunca compreenderá, porque julga
fazer uma grande coisa quando apela para a sociedade civil contra o Estado, isto
é, para a sociedade oficial contra o resumo oficial da sociedade”1 .
A lista é interminável. Todas essas concepções que acreditam ser possível
reformar e ajustar o capitalismo possuem algo em comum. Tão logo tenham a
oportunidade de colocar em prática suas respectivas ideias de como o capitalismo
deveria ser, fracassam. A culpa nunca é de seus modelos, mas da realidade. Marx
se recusa terminantemente a brigar com a realidade. A questão é entender como
ela é, como se articula e, somente então, traçar um caminho possível de sua
transformação. E Marx conclui que o capitalismo é irreformável. É uma doença
sem cura. Não nega que reformas possam acontecer. Mostra que elas não são
capazes de curar a doença.

2.2 O capitalismo enquanto totalidade articulada


A base central de toda teoria de Marx do capitalismo se baseia no fato de que
não é possível resolver os problemas do capitalismo por meio de meros ajustes
em uma de suas partes. Isto é assim porque cada parte do capitalismo está
relacionada a outra e exige a outra. Não há troca generalizada de mercadorias
sem o dinheiro. Não há capital industrial sem o bancário. Não há livre mercado
sem o Estado. Em verdade, não se trata de ‘partes’ do capitalismo, mas de
dimensões entrelaçadas uma na outra. Mais ainda. Tais dimensões do capitalismo
se articulam em uma forma que é por natureza irracional, contraditória, opressiva
e, por isso mesmo, incontrolável. Vejamos!
O centro desse sistema é a produção voltada para a acumulação de riquezas
pelas empresas individuais. Empresas que são uma propriedade privada. Não
importa se são cooperativas ou controladas por um capitalista ou mais de um
capitalista em sociedades abertas por ações. Dentro dessas empresas, enquanto
propriedade privada, existe um controle de ferro das atividades, funções, horários
com objetivo de produzir a maior quantidade possível de riqueza e obter lucro.
Em resumo, a divisão técnica do trabalho no interior de cada empresa é
racional, padronizada, pré-definida, regulada, controlada, a priori. Por outro lado,
1
(MARX, 1976a, p. 160)
16 Capítulo 2. A impossibilidade da sociedade capitalista ser reformada

a realização das mercadorias que foram fabricadas, isto é, sua venda, não é
racionalizada por ninguém, não segue nenhum padrão pré-definido: é imprevista
e incontrolável. Nunca sabemos se uma mercadoria será vendida ou não. É
necessário tudo submeter ao teste do mercado. A divisão social do trabalho, a
relação entre as empresas no mercado, é imprevista, incerta, não planejada, a
posteriori.
Cada empresa produz mercadorias para serem trocadas no mercado, consu-
midas por um comprador que, de início, ninguém sabe quem é. Como tudo é
trocado no mercado, surge a necessidade do dinheiro que permite comparar cada
mercadoria com a multidão de todas as outras. O casamento entre mercadoria e
dinheiro é incerto. A renda e o emprego dos trabalhadores variam. O que antes
era possível comprar, pode não ser no momento seguinte. Os desenvolvimentos
técnicos dentro de cada empresa seguem seu curso independentemente uma das
outras. O conhecimento não é compartilhado ou o é de forma muito limitada. O
avanço técnico de uma empresa pode não ser acompanhado pela concorrente.
O encontro entre mercadoria e dinheiro é incerto. Ontem tal mercadoria era
amada e querida pelo dinheiro, hoje não é mais. Daí o trecho em que Marx
parafraseia Shakespeare: A mercadoria ama o dinheiro, mas o curso do verdadeiro
amor nunca é suave.
Como podemos ver, se dentro da empresa tudo é padronizado, dividido
e regulado; fora dela reina a total insegurança: nada pode ser previsto com
exatidão. Os veículos produzidos por uma montadora serão vendidos? O minério
extraído das minas encontrarão compradores? Pode ser que sim, pode ser que
não. Ninguém sabe com certeza quando e onde.
Com isso queremos indicar que os capitalistas não controlam, de modo algum,
o capital. Eles não têm garantia de que suas mercadorias serão vendidas. Eles
não sabem de antemão quais setores serão mais lucrativos, nem sequer se terão
retorno de seus investimentos. Os capitalistas dominam, sem dúvida, tudo aquilo
que compram com seu capital, em particular, os trabalhadores que empregam.
Eles dominam e controlam a divisão técnica do trabalho. Mas são escravos e não
controlam a divisão social do trabalho. Em outras palavras, têm poder dentro da
empresa que é proprietário, mas na relação entre as empresas atua o salve-se
quem puder. Seu capital particular é apenas um elo na conexão universal entre
os capitais. E essa conexão entre os múltiplos capitais é feita por um mercado
impessoal. O capitalista, assim, é servo do capital, servo de um poder impessoal,
“é apenas capital personificado. Sua alma é a alma do capital”2 . Os capitalistas
dos mais diversos setores – bem como os representantes políticos: governadores,

2
(MARX, 2013, p. 307)
2.2. O capitalismo enquanto totalidade articulada 17

presidentes, deputados – são como padres, pastores, bispos e cardeais. Somente


reconhecem um único Deus: o capital. Poder impessoal a quem servem e seguem,
quer queiram, quer não.
Nessa imensidão de empresas, existirão aquelas dedicadas a produção de
mercadorias propriamente ditas: é o capital industrial. Aí entra as montadoras de
veículos, produtoras de calçados, alimentos e assim por diante. Mas é preciso
fazer as mercadorias chegarem às mãos dos consumidores individuais, em sua
maior parte trabalhadores. Por isso existe o capital comercial, responsável por
distribuir as mercadorias. No entanto, ao não existir controle de todas essas
inúmeras relações entre as empresas, desenvolver-se-á o sistema de crédito e
bancário de modo a estabelecer um comércio de dinheiro que garanta que o
capital acumulado flua entre as múltiplas empresas. Existem ainda os serviços
cujo trabalho é vendido diretamente como mercadoria, sem resultar em nenhum
produto que circule como mercadoria. Trabalhadores e capitalistas podem optar
por comprar o serviço oferecido, transferindo parte de sua renda para essas
empresas, que a acumulam novamente na forma de capital. O capital industrial
exige e necessita do comércio, dos bancos e do crédito. Não há como contrapor
um ao outro de modo a resolver os problemas do capitalismo.
Mas a principal instituição é o Estado. O Estado garante um padrão monetário
– como dólar e real – que seja aceito tanto pelos vendedores como pelos
compradores no interior de um país. Para regular a concorrência entre as
empresas, o Estado determina uma jornada de trabalho e os direitos mínimos
para cada trabalhador. Como a força de trabalho é uma mercadoria vendida
e comprada no mercado, uma luta entre trabalhadores e capitalistas define o
padrão mínimo de direitos. O Estado institui esse padrão para todas empresas.
Define, ainda, as condições de compra e venda das mercadorias entre empresas
de países diferentes e, portanto, negocia com outros Estados. Como podemos
perceber, o Estado não é capaz de controlar o mercado. Ele estabelece as
condições mínimas para ele atuar. Por isso mesmo, na tentativa de garantir que
a economia capitalista não saia dos trilhos, por meio do Estado, os capitalistas
podem concentrar suas forças para reprimir toda e qualquer ameaça a esse
sistema. Daí as forças armadas, o direito, os juízes e as leis. Daí as constantes
mudanças nas formas políticas do Estado de modo a se adequar as necessidades
de momento, tendo em vista garantir a manutenção do sistema e das classes
sociais que o parasitam.
Nesse sentido, Marx procura mostrar os vínculos necessários entre as diversas
partes que compõem o capital. É absurdo querer contrapor um de seus momentos
aos outros. Tratam-se de funções necessárias e mutuamente associadas. Determi-
nações recíprocas em que uma constitui a outra essencialmente. A mercadoria
18 Capítulo 2. A impossibilidade da sociedade capitalista ser reformada

ao dinheiro. O capital industrial ao bancário. O Estado a economia privada.


Todo desenvolvimento que Marx realiza em O Capital procura demonstrar que a
mercadoria necessita do dinheiro, o capital industrial do bancário, a economia
privada do Estado e assim sucessivamente.
É exatamente essa articulação entre as partes, em que elas de condicionam
e exigem uma a outra que Marx denomina forma social. Uma estrutura com
relações necessárias entre as partes. A saída que Marx indica, portanto, procura
reformular e reconstruir uma outra forma de organização social. A revolução
socialista pressupõem todo o conteúdo desenvolvido historicamente: os produtos,
os produtores, a técnica, a infraestrutura, a riqueza acumulada. Mas ela apenas
é possível se a forma social com que esse conteúdo é operado no capitalismo
for transformada em suas bases. As relações sociais estruturais e necessárias
devem ser reconfiguradas. Os produtos não serão mais mercadoria e dinheiro. Os
produtores não serão mais trabalhadores assalariados contrapostos aos capitalistas.
A riqueza não será mais capital.
Mas aqui devemos tomar todo cuidado. Não se trata de criar um modelo de
sociedade perfeita em oposição ao capitalismo, um modelo de sociedade que
se baseie em conceitos genéricos como justiça, igualdade, bem etc. Essa é a
abordagem dos socialistas utópicos em oposição aos reformistas. Os reformistas
querem ajustar o capitalismo e os socialistas utópicos querem mudar a realidade
em base a esquemas criados em sua cabeça. É necessário encontrar dentro do
capitalismo uma força capaz de reconfigurá-lo. É necessário fundar a transforma-
ção da sociedade existente na realidade e não em princípios e conceitos gerais
criados pela mente. Marx dirá:

As formas jurídicas, nas quais essas transações econômicas aparecem como atos
de vontade dos envolvidos, como exteriorizações de sua vontade comum e como
contratos cuja execução pode ser imposta às partes contratantes pelo Estado, não
podem determinar, como meras formas que são, esse conteúdo. Elas podem apenas
expressá-lo. Quando corresponde ao modo de produção, quando lhe é adequado,
esse conteúdo é justo; quando o contradiz, é injusto. A escravidão, sobre a base
do modo de produção capitalista, é injusta, assim como a fraude em relação à
qualidade da mercadoria.3

Como se vê, a crítica à sociedade burguesa exposta por Marx não se funda-
menta em uma condenação moral da mesma, tampouco em uma ética universal
do homem alicerçada em princípios eternos de justiça. Antes disso, os pressu-
postos para as relações de produção socialistas aparecem no seio da própria
sociedade burguesa. Se “não encontrássemos veladas na sociedade [burguesa], tal
como ela é, as condições materiais de produção e as correspondentes relações de
3
(MARX, 2017, p. 386-7)
2.2. O capitalismo enquanto totalidade articulada 19

intercâmbio para uma sociedade sem classes, todas as tentativas para explodi-la
seriam quixotadas”4 .
Na contramão das quixotadas características dos socialistas utópicos e refor-
mistas de então, ao pretenderem construir a sociedade do futuro por meio de
uma “reforma na bolsa” ou de um banco emissor de bônus horário, Marx assinala
o caráter radicalmente contraditório e potencialmente explosivo das relações soci-
ais capitalistas ao gestarem em seu interior as condições que possibilitam a sua
superação. A “concorrência gera concentração de capital, monopólios, sociedades
anônimas”, “a troca privada gera o comércio mundial, a independência privada
gera a total dependência do assim chamado mercado mundial”, “a divisão do
trabalho gera aglomeração, coordenação, cooperação” e, sobretudo, “a antítese
dos interesses privados gera interesses de classe”. Como se vê, o capital é uma
“massa de formas antitéticas da unidade social cujo caráter antitético [...] jamais
pode ser explodido por meio de metamorfoses silenciosas”5 .
O marxismo não está fundado, portanto, em uma premissa moral do tipo
Chapolin Colorado: a defesa dos fracos e oprimidos. Marx não aposta no
proletariado pela sua fraqueza, mas por sua força. A aposta na organização
do proletariado para destruição da sociedade capitalista, deve-se a potência e
a capacidade de reconfigurá-la, de revolucioná-la em função da posição que
ocupa no interior dessa forma de sociedade. Cabe aos marxistas desenvolve-la
e organizá-la no sentido da consecução da tarefa cuja capacidade já possuem.
Mas como veremos nos dois próximos capítulos, reservados a O Capital, a
intervenção organizada e consciente nesse processo é decisiva e fundamental. Se
o capitalismo contém, dentro de si, a possibilidade e a potência que permite sua
transformação em outra forma de organização social: o socialismo; ele também
contém inúmeros aspectos que possibilitam ao proletariado se iludir com as
possibilidades oferecidas pelo próprio capitalismo.
O modo de produção capitalista é o sistema em que tudo aparece sob uma
dupla face. Qual face iremos desenvolver? A possibilidade de gestão e manutenção
do sistema ou aquela que conduz a sua transformação revolucionária? É por esse
motivo que foi necessário desenvolver um trabalho tão árduo e difícil como O
Capital. A primeira vista, os reformistas parecem apontar para uma saída melhor
do que aquelas de correntes diretamente capitalista: liberais, conservadoras etc.
Afinal, falam da necessidade de acabar com o desemprego, melhorar as condições
de vida, eliminar a miséria e a dominação entre as nações, falam em promover
formas mais democráticas e participativas. No entanto, o fazem alimentando a

4
(MARX, 2011a, p. 107)
5
(MARX, 2011a, p. 107)
20 Capítulo 2. A impossibilidade da sociedade capitalista ser reformada

ilusão de que tais finalidades podem ser alcançadas ajustando o sistema que
produz de modo crônico e necessário esses mesmos problemas. Dão golpes e
socos na ponta da faca.

2.3 O reformismo não é um mal menor


Todo o sistema capitalista, como vimos, está orientado para garantir a origem e
fonte de toda a riqueza dentro das empresas. Isto é: que o dono da empresa se
aproprie de parte da riqueza produzida por seus respectivos trabalhadores e que
continue a fazer o mesmo ano após ano. A ilusão dos reformistas é acreditar
que algumas das partes desse sistema podem ser alteradas, fazendo o conjunto
funcionar de outra maneira.
Observem agora que, da mesma forma que Proudhon, nos dias de hoje,
inúmeras organizações acreditam ser possível humanizar o capitalismo. Ou seja,
resolver os problemas da classe trabalhadora sem destruir em seu conjunto o
sistema que produz esses mesmos problemas. Retomemos os exemplos já citados.
Alguns, como Ciro Gomes no Brasil, acreditam que o problema é unicamente
o capital bancário e financeiro. Seu programa defende o capital produtivo e
industrial contra o capital que comercializa dinheiro. Outros acreditam que,
por meio do Estado, é possível transformar a sociedade e transferir a riqueza
produzida para os mais pobres, fomentando políticas do consumo das famílias.
Existe ainda uma vertente nacionalista. Eles acreditam que a solução é unicamente
favorecer as empresas nacionais – privadas ou estatais – contra as empresas
estrangeiras. Como podemos ver, temos vários tipos de reformismos.
Todos esses programas reformistas podem até estar corretos em varias de suas
críticas a esse ou aquele problema particular. Podem estar corretos em várias
de suas pautas específicas. Alguém tem alguma dúvida de que devemos lutar
contra a miséria e elevar o consumo das famílias? De que os bancos que sugam
a riqueza nacional e parasitam o setor produtivo devam ser combatidos? De que
devemos lutar contra a dominação do Brasil por países estrangeiros? O problema
é que quando tentam alterar o sistema usando suas próprias engrenagens, são
engolidos por ele. Isto acontece porque todas essas partes: mercadoria, dinheiro,
trabalhadores e capitalistas, capital industrial, bancário e o próprio Estado estão
articulados entre si e integram um mesmo processo. Alimentam as mesmas
engrenagens.
Mas o principal problema, para Marx, não é unicamente o fato de que as
ideias reformistas estão erradas. Fosse esse o caso, poderíamos unicamente reter
o que está ‘certo’ e descartar o que está ‘errado’. O problema principal é que tais
2.3. O reformismo não é um mal menor 21

ideias são disputadas no interior das organizações dos trabalhadores. Quando


tais projetos de reforma são colocados em prática, são desmoralizados por se
mostrarem impotentes na consecução de seus fins. Tais fracassos conduzem
ao poder as alternativas mais reacionárias. É assim que a potente revolução de
1848, cujo centro foi a França, não levou nem sequer ao estabelecimento de
uma república francesa, mas ao regime autoritário de Luís Bonaparte. Daí a
necessidade de um programa claro que, partindo das questões mais elementares,
aponte no sentido da destruição do capitalismo e seu Estado e da impossibilidade
de reformá-lo. Por isso, o reformismo não era, para Marx, um mal menor. Tratava-
se de concepções a serem derrotadas e destruídas no interior das organizações
operárias.
Por isso, Marx lutou toda sua vida contra os reformistas de todos os tipos. Para
usar um jargão atual, ele passou a vida combatendo as organizações e pessoas
influentes ‘de esquerda’, justamente por possuírem larga influência sobre a classe
trabalhadora. Tais reformistas não revolucionários incompletos ou pela metade,
mas o principal obstáculo da revolução. Dedicou um livro e artigos contra o
reformista francês Proudhon. Na Associação Internacional dos Trabalhadores se
opôs aos nacionalistas liderados pelo italiano Mazzini, líder a unificação Italiana.
Em seguida, deu-se a batalha contra as Bakunin. No Partido Social-Democrata da
Alemanha dedicou-se a combater a influência da obra de Ferdinand Lassalle, bem
como de intelectuais que não pretendiam elevar os trabalhadores ao poder, mas
de cima, substituí-los e usá-los como mera massa de manobra. Lutou também
contra os reformistas sindicalistas que se limitavam as pautas salariais e por
emprego nos limites do capitalismo e das leis instituídas pelo Estado.
Se olharmos para toda a obra de Marx com cuidado, veremos que raras
vezes ele se dedicou a combater concepções burguesas pelo simples fato de
estarem erradas. Por exemplo, já nos anos de 1860, Marx estudou a obra do
positivista francês Auguste Comte. Seu juízo sobre a obra é duríssimo em todos
os sentidos. Mas Comte ainda não exercia grande influência sobre o movimento
operário e socialista francês, motivo pelo qual Marx jamais escreveu um artigo
que seja contra Comte. O mesmo serve para a Escola Histórica Alemã, de
base conservadora, hegemônica nas universidades alemãs, mas completamente
desconhecidas no movimento operário. Com influência puramente acadêmica.
Como se vê, toda obra dita econômica de Marx não foi escrita com um inte-
resse puramente teórico. Seu primeiro manuscrito sobre O Capital, os Grundrisse,
foi escrito justamente com a crise europeia iniciada em 1857 e a possibilidade
de uma revolução. Nesse sentido, Marx informa a Engels: “Eu estou trabalhando
como louco, noite adentro, para reunir meus estudos de economia para que possa
ao menos compreender os contornos claramente antes do dilúvio”. O dilúvio é a
22 Capítulo 2. A impossibilidade da sociedade capitalista ser reformada

revolução europeia que Marx esperava. Por que Marx quer concluir um estudo
de economia no momento em que se aproxima uma revolução? A resposta está
em outra carta enviada a seu amigo Joseph Weydemeyer quando anuncia o
primeiro plano para O Capital, onde diz o seguinte: nesse escrito “se destroça o
socialismo proudhoniano em seus fundamentos, atualmente em moda na França,
que pretende deixar subsistir a produção privada, mas organizar a troca de
produtos privados. Quer a mercadoria, mas não o dinheiro. O comunismo deve
desfazer-se antes de tudo desse irmão falso”6 .
A luta de Marx contra os reformistas, portanto, foi a luta contra os irmãos
falsos do comunismo. Os irmãos falsos do comunismo são, em certo sentido,
os principais inimigos a serem combatidos. Ao prometerem justiça social, de-
senvolvimento, o fim da miséria oferecem fórmulas mais eficazes para iludir a
classe trabalhara quanto a possibilidade de manutenção da sociedade capitalista.
Independente de suas intenções, não apresentam um programa revolucionário
incompleto ou pela metade, mas são os obstáculos principais da revolução. É
necessário um programa que tenha por objetivo destruir o capitalismo em suas
bases. Se não for assim, estaremos, como Dom Quixote, a lutar contra o vento.

6
(MARX; ENGELS, 1972, p. 108). Carta a Weydemeyer de 01/02/1859.
Capítulo 3

Capital é sangue

O Capital de Marx não é um livro de economia no sentido que vemos nos


noticiários de jornais. O Capital é um livro sobre a vida. Não a vida desse ou
daquele indivíduo, mas como se articula a vida de todas as pessoas dentro
da sociedade capitalista. O caminho seguido por Marx não é o da percepção
que cada indivíduo tem do mundo em que vive, mas das relações que eles
estabelecem uns com os outros na sociedade capitalista. Em particular aquelas
relações que uma pessoa não pode escolher.
Podemos escolher se com os 50 reais que temos no bolso iremos comprar
tomate ou cenoura. Podemos escolher, as vezes, entre duas propostas de emprego
que temos ou qual canal assistir em uma televisão. E incontáveis outras coisas.
Mas não podemos escolher a forma de sociedade em que vivemos: a forma em
que esses produtos serão produzidos e distribuídos, a forma em que os indivíduos
irão se relacionar de modo a dar continuidade a marcha dos homens no mundo.
Marx quer entender essas relações que não escolhemos, esta forma de sociedade
que nascemos dentro dela e, para sobreviver, temos que seguir independente da
nossa vontade. Dirá Marx em uma carta escrita em 1846: “Que é a sociedade,
qualquer que seja a sua forma? O produto da ação recíproca dos homens. São os
homens livres de escolher esta ou aquela forma social? De modo algum”1 .
Não escolhemos se todo produto humano será ou não distribuído como
mercadoria. Não escolhemos se esse trabalho será exercido na forma do trabalho
1
(MARX, 1976a, p. 160)
24 Capítulo 3. Capital é sangue

assalariado, servil, escravo ou associado. Simplesmente encontramos a sociedade


funcionando em uma dada forma. Podemos querer transformar essa forma de
sociedade por vários motivos: existe muita miséria, desemprego, autoritarismo.
Mas não conseguimos transformar a sociedade por mera escolha. Indivíduo
algum tem esse poder. Devemos entender, primeiro, quais possibilidades de
transformação a própria forma de sociedade no interior da qual nascemos
oferece. Devemos buscar no interior da sociedade mesma, uma força social capaz
de revolucioná-la.
Projetar uma sociedade do futuro, produto de nossa mente, sem a verificação
de sua possibilidade diante das condições que encontramos não é liberdade, mas
ilusão. Um arquiteto, por exemplo, pode projetar um edifício desprezando a força
da gravidade. Se dispor de recursos, pode até financiar sua construção. Nenhuma
lei natural o impedirá de fazê-lo. No entanto, ao final, a construção irá desabar.
Ser livre é, em primeiro lugar, ter consciência da necessidade, das condições sob
as quais iremos fazer nossas escolhas, da possibilidade de sua realização. É nesse
preciso sentido que Marx escreve no Dezoito Brumário de Napoleão Bonaparte
que os “homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e
espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as
quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram”2 .
O que Marx estuda nos três livros de O Capital não é o capitalismo do século
XIX ou o capitalismo na Inglaterra ou na França. Seu objetivo é muito mais
abrangente. Ele quer entender aquelas relações de que o capitalismo necessita em
toda e qualquer época, em todo e qualquer lugar. Aquelas relações necessárias
sem as quais o capitalismo implodiria. As relações estruturais do capitalismo. Tal
estudo é fundamental para que possamos entender, em cada época e em cada
lugar, as possibilidades que o capitalismo oferece em função das suas relações
necessárias. Para que nossas escolhas não resultem em ilusão, em um edifício
jamais concluído e sempre prestes a desabar.
Os resultados a que chega são bastante extremos. As possibilidades internas
que o capitalismo oferece são bastante limitadas. Não existe uma razão universal
que o rege: o capitalismo é irracional. Não existe pessoa alguma capaz de
controlá-lo: o capitalismo é impessoal. Nesse universo irracional e impessoal,
o domínio humano sobre a natureza converte-se no domínio dos homens uns
sobre os outros. A elevação da capacidade humana no geral converte-se na atrofia
física e psicológica da grande maioria dos homens. Por esse motivo, o resultado
da investigação de Marx sobre o capitalismo não é uma ciência econômica, mas
sua crítica.

2
(MARX, 2011b, p. 25)
25

Definitivamente, Marx não faz economia. Economia marxista é uma expressão


completamente equivocada. Ele faz a crítica da Economia Política, isto é, mostra
os limites a a impossibilidade de sucesso de toda teoria econômica que acredita
ser capaz de domar e consertar o capitalismo. A ciência de Marx, isto é, sua
crítica da economia política, procura mostrar não apenas a impossibilidade
de gerir o capitalismo de modo eficiente e duradouro, mas a possibilidade de
revolucioná-lo, de transformá-lo em suas bases, de reconfigurá-lo. Isto é possível
porque o próprio capitalismo produz em seu interior uma força social com essa
capacidade: a classe trabalhadora.
Mas não é assim tão simples. Da mesma forma que o capitalismo produz
uma classe social capaz de transformá-lo, produz também uma série de aspectos
que possibilitam manter a classe trabalhadora amarrada as correntes do capital.
Iludida de que o capitalismo tem jeito. Foi necessário gastar tanta tinta e tanto
papel para escrever O Capital porque no capitalismo as coisas não são apenas o
que parecem ser. Existe aspectos fundamentais dessa forma de sociedade que
escapam ao que percebemos em nosso dia-dia. Basta notarmos que em nosso
mundo capitalista, o processo social que liga os indivíduos uns aos outros está
completamente apagado de nossa percepção. Quando procuramos entender o
que ocorre na sociedade, vemos preços, inflação, ações, PIB e assim por diante.
Raras vezes entendemos a fundo o que esse números abstratos significam.
A ciência econômica não esclarece esses números abstratos, mas apenas
reforça a ilusão que produzem. Sobrepõem a esses conceitos e abstrações outros
conceitos e outras abstrações ainda mais confusas. Ela procura reduzir as
relações entre as pessoas a uma série de números e cálculos matemáticos. O
faz procurando um método e um caminho para racionalizar e administrar a
sociedade capitalista. O caminho feito por Marx é o oposto. Ele procura encontrar
que tipo de relações entre pessoas são essas de modo a tornar possível sua
expressão em números e coisas abstratas como preço, dinheiro, capital. Ao fazê-lo,
indica a dimensão fundamentalmente irracional e incontrolável do capitalismo.
A impossibilidade dele ser administrado de modo duradouro e estável. Motivo
pelo qual as teorias econômicas e sociológicas sobre o capitalismo, em períodos
cada vez mais curtos, falham copiosamente. Precisam sempre ser refeitas e
reelaboradas, para fracassar uma vez mais.
A partir de agora, não iremos mergulhar em um universo paralelo de números,
definições, abstrações e conceitos como é a maior parte das teorias. Ao contrário,
veremos o movimento social que significa cada um dos números e conceitos
que vivenciamos dentro do capitalismo. Por isso, a rigor, não existem definições
em O Capital. Quando elas existem são pouco importantes. Servem unicamente
para esclarecer em que sentido um termo é utilizado. Os conteúdos realmente
26 Capítulo 3. Capital é sangue

substantivos da obra serão sempre movimentos, relações e processos. Movimentos


sempre e uma vez mais repetidos e reafirmados no modo de produção capitalista.
Daí a grande dificuldade em compreendê-lo.
Mas o esforço traz seus frutos. Veremos que esse movimento social expresso
em números abstratos e dinheiro traduz também o suor e o sangue de milhões de
pessoas. Um movimento social que aponta para a cabeça dos produtores as armas
que eles mesmos produziram. Um processo que faz de toda conquista humana
um fardo a ser suportado. Relações que mergulham a existência dos trabalhadores
em um oceano de insegurança e ilusões. Mas esse processo macabro contêm
também elementos que possibilitam sua transformação. Não há maior liberdade
do que tomar consciência do que não escolhemos e, somente então, dedicar
parte de nossas vidas a transformação de uma forma de sociedade que a cada
dia nos sufoca e oprime.

3.1 O feitiço da mercadoria


É comum escutarmos as pessoas falarem: “não dependo de ninguém” ou então
“a vida é minha, eu faço o que eu quiser”. Essas frases resumem bem a noção
de liberdade na sociedade capitalista e uma de suas principais ideologias: o
liberalismo. Na concepção liberal, as demais pessoas são um limite, uma barreira.
Em uma sociedade em que cada um é obrigado a lutar contra todos para
sobreviver, o inferno são os outros. Trabalhadores lutam entre si pelo emprego ou
um novo cargo. Os capitalistas procuram destruir uns aos outros na eterna busca
pela maior fatia de lucro. Nessa guerra, ser livre é não depender de ninguém.
Tal ideia, tão forte nos dias de hoje, é bem antiga. O principal marco
literário do capitalismo foi o romance Robinson Crusoé. Seu autor foi empresário
fracassado: Daniel Defoe. Membro da classe média puritana inglesa, Defoe se
refugiou no jornalismo e na literatura após a falência de suas empresas no
comércio de meias e na fabricação de tijolos, chegando a ser preso por dívidas.
Nesse livro, o herói que dá título ao livro, Robison Crusoé, sobrevive por décadas
isolado em uma ilha tropical depois de um naufrágio. Com suas habilidades
e inventividade, Crusoé cria uma sociedade feita por ele mesmo. O romance
converte-se na bíblia da burguesia: indivíduos isolados, que não dependem
de ninguém, triunfando por seus próprios méritos. Ainda hoje, o nome dá
título a uma revista liberal brasileira recente. Ironicamente, ao mesmo tempo
Crusoé converteu-se no herói predileto da burguesia de todas as épocas, o livro
propriamente dito tornou-se um sucesso de literatura infantil.
Mas se pensarmos um pouco, veremos que a ideia de que eu não dependo
3.1. O feitiço da mercadoria 27

de ninguém, apenas deveria agradar as fantasias das crianças. A mesma pessoa


que diz não depender de ninguém, depende, a cada instante, a cada momento
da atividade de milhões de outras pessoas. Sem elas, não sobreviveria nem
por uma semana. Na água que bebemos, na energia elétrica que consumimos,
na casa que moramos, nas roupas que vestimos, nos meios de transporte que
utilizamos, no livro de Daniel Defoe que lemos; existe o trabalho e o suor de
milhões de trabalhadores em todo o mundo. Como é possível uma forma de
sociedade que, ao mesmo tempo que gozamos do fruto do trabalho de tanta
gente, espalhadas por todos os lugares do mundo, acreditamos não depender de
ninguém? É exatamente essa pergunta que Marx procura responder nos primeiros
capítulos de sua principal obra: O Capital.
Ao atuar de forma isolada na sociedade, como compradores e vendedores de
mercadorias, os indivíduos acreditam não depender de ninguém. Apesar disso,
essa é a forma de sociedade em que a dependência multilateral entre as pessoas
é a mais forte que um dia já existiu na história humana. Em que os vínculos
entre as atividades de milhões de pessoas espalhadas no mundo inteiro se fazem
presentes na vida de uma única pessoa em um único dia. Isto acontece porque no
capitalismo tudo se mostra as avessas. Todas as relações sociais estão encobertas.
Essa situação é tão real que, normalmente, acreditamos ter relações sociais
quando nos reunimos com os amigos ou a família, quando conversamos com
colegas em um bar ou, mesmo, em encontros religiosos ou políticos. Nada
mais falso. Uma relação social não é todo tipo de relação entre pessoas, mas
quando as pessoas se relacionam com a sociedade de modo a garantir que ela
continue a existir. Por isso, por estranho que possa parecer, nos relacionamos
socialmente quando fazemos compras em uma loja ou um supermercado, quando
pagamos uma passagem de ônibus ou, ainda, quando quitamos a parcela de um
automóvel ou uma casa. É pela compra e venda de mercadorias que as pessoas
se relacionam na sociedade capitalista, garantindo a produção e distribuição de
toda a riqueza produzida.
A situação é tão estranha que quando temos de fato relações sociais, não
percebemos. Quando temos relações privadas e individuais – com amigos, a
família e companheiros – acreditamos que estamos tendo relações sociais. É
esse fenômeno que Marx chamou de alienação ou estranhamento. Isto acontece
porque, no meio de todas relações sociais, existe sempre uma mercadoria.
Quando nos relacionamos socialmente não vemos pessoas, nem trabalho, nem
esforço, nem pesquisas, mas um produto acabado com seu preço. Esse preço
da mercadoria não reflete diretamente atividade social alguma. Trata-se de uma
mera medida que parece ser atribuída magicamente pelo dinheiro.
O dinheiro aparece, desse modo, como a mercadoria das mercadorias. Aquela
28 Capítulo 3. Capital é sangue

mercadoria capaz de comprar todas as outras, mas que não pode ser comprada
por mercadoria alguma. As mercadorias ordinárias são consumidas e desaparecem
para sempre. Necessitam ser produzidas novamente. Já o dinheiro circula de
mão em mão sem desaparecer jamais. Aparece, assim, como um valor eterno e
universal. O dinheiro aparece, ainda, como o único elemento ativo do processo de
troca de mercadorias, pois ele pode ser diretamente trocado por toda e qualquer
mercadoria e, cada uma delas, expressam seu valor graças ao dinheiro. Por isso,
o dinheiro é, também, poder. Diz Marx “o poder social, assim como seu vínculo
com a sociedade, [o indivíduo] traz consigo no bolso”3 . Sem dinheiro, estamos
excluídos de todas as relações sociais. Estamos condenados à morte.
Por isso Marx diz que o dinheiro se manifesta como a “mercadoria enquanto
tal”, “a mercadoria universal”, “a riqueza encarnada”, “a mercadoria onipresente,
não determinada pelo lugar”, “senhor e deus no mundo das mercadorias”, “o
tesouro que nem as traças nem a ferrugem devoram. Todas as mercadorias
são somente dinheiro perecível; o dinheiro é a mercadoria imperecível”. O
dinheiro aparece, ainda, como “a existência celeste das mercadorias, enquanto as
mercadorias representam sua existência mundana”.4 Parece que as mercadorias
têm valor por causa do dinheiro. Esses poderes mágicos com que as mercadorias
se revestem a partir de sua correlação permanente com a mercadoria-dinheiro,
Marx denomina fetiche da mercadoria.
Não sem razão, na sociedade capitalista, tudo se mede pelo dinheiro. Uma
pessoa é considerada bem sucedida se ganhou muito dinheiro. Não importa sua
índole, seus feitos e conquistas. Um pesquisador que descobriu importantes leis
da natureza ou da sociedade, um dirigente sindical que organizou importantes
greves e mobilizações, todos são fracassados se não ganharam dinheiro. As
pessoas ficam satisfeitas quando a poupança se eleva e tristes quando têm
que gastá-las. Tudo está a serviço da acumulação de dinheiro. Em um episódio
curioso, a mãe de Marx lhe escreve que, além de ter dedicado toda sua vida a
escrever O Capital, deveria ter se dedicado a ganhar o capital.
O tema do fetiche, portanto, não se refere a questões psicológicas relacionadas
a desejos humanos irresistíveis pelas mercadorias. É exatamente o contrário. O
fetiche se caracteriza por sufocar o interesse natural pelas mercadorias enquanto
coisas úteis, direcionando-o ao interesse pela mercadoria enquanto algo abstrato,
algo puramente quantitativo, enquanto dinheiro. Submete o que é qualitativo ao
quantitativo. O que é concreto ao abstrato. O que é particular ao universal. Suga,
como um vampiro, o que é vivo nos homens, o que é útil nas coisas, convertendo

3
(MARX, 2011a, p. 105)
4
(MARX, 2011a, p. 165-74)
3.1. O feitiço da mercadoria 29

tudo em mera expressão abstrata de uma relação econômica.


Da mesma forma, o tema do fetiche não está relacionado ao fato de que os
indivíduos não se dão conta de que por trás de cada mercadoria existe trabalho
humano. Até porque, eles se dão conta disso perfeitamente. Todo mundo sabe
que as mercadorias são produto do trabalho. O que eles não sabem é porque
uma dada mercadoria custa 100 reais ou qualquer outro preço.
Mas se pensarmos bem, veremos que o dinheiro é ainda mais estranho.
Todas mercadorias tem seu valor expresso em dinheiro. Uma mercadoria vale
cem, duzentos ou mil reais. Mas quanto vale uma nota de 100 reais? Ora, cem
reais. A pergunta parece ridícula, porque o dinheiro, ao que parece, é a própria
encarnação do valor. Só que não. Ele apenas parecer ser o valor. É assim que,
em O Capital, Marx não visa prestar culto e realizar um ritual a esse dinheiro
divinizado. Antes, mostrar como essa sua aparência é enganosa. Se o dinheiro é
o valor que mede a tudo e a todos, o que aconteceria se recolhêssemos todo o
dinheiro de um dado país? Tudo seria gratuito e sem valor? Evidentemente não.
O dinheiro apenas aparece como sendo o valor. Na verdade, ele apenas expressa
o valor da imensidão de mercadorias que circulam.
A greve dos caminhoneiros que ocorreu no Brasil, bem como uma greve geral,
mostram que sem mercadorias para vender e comprar, o dinheiro não serve para
nada. Na realidade, dinheiro é produto da circulação de mercadorias. O valor
interno do dinheiro é completamente descartável nas relações sociais capitalistas.
Pouco importa se o dinheiro é ouro, papel moeda, títulos de dívidas ou um
número controlado por um computador ou uma instituição bancária. O dinheiro
apenas usa o seu corpo físico, ou virtual, para expressar o valor das demais
mercadorias que circulam.
A teoria do valor de Marx mostra que só é possível que todas as mercadorias
expressem seu valor no dinheiro, porque toda mercadoria já tem valor indepen-
dente do dinheiro. Isto acontece porque todas mercadorias são comparadas e
igualadas umas com as outras no mercado. O dinheiro apenas permite, por um
lado, essa fluidez das mercadorias, isto é, sua troca. Fornece, assim, um material
de expressão comum que permite compara-las universalmente, já que cada
mercadoria é material e tecnicamente diferente. É por meio dessa comparação
universal que o valor da mercadoria é reduzido a única substância social comum
a todas elas: o trabalho. Toda mercadoria – seja sapatos, carros ou iphones – é
um produto do trabalho igualado uns com as outros no mercado. Por ter essa
substância social comum – o trabalho no geral, indiferenciado ou abstrato – que o
dinheiro pode expressar o valor das mercadorias e expressá-las quantitativamente
em função do tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção.
Em cada ato de precificação, inclusive de uma mesma mercadoria, é o
30 Capítulo 3. Capital é sangue

mundo inteiro das demais mercadorias que comparece diante dela. Se o fogão é
precificado como 1.000 reais é porque o carro popular o é por 40.000 reais e a
barra de chocolate é precificada por 10 reais e assim infinitamente. Na medida
que a técnica para realizar uma dada mercadoria se altera e se generaliza em
toda sociedade, por exemplo, uma revolução tecnológica no setor automobilístico,
o que acontece? Essa melhoria no processo técnico de produção significa que
o setor ficou mais produtivo e o trabalho mais eficiente, isso irá se refletir em
custos menores e em um preço menor. A mercadoria individual se tornará mais
barata, pois é realizada agora com menos trabalho. Se não houve transformações
tecnológicas nos demais setores, o automóvel se tornará mais barato em relação
a essas demais mercadorias.
No entanto, a expressão de valor, o valor de troca, o preço torna pouco
transparente todo esse processo. Nem sempre que a expressão de valor da
mercadoria se altera, significa que os valores das mercadorias se alteraram. Pois,
como vimos, o dinheiro expressa externamente o valor. Assim, se todos os preços
da sociedade, incluindo os salários, dobram, não temos nenhuma alteração de
valor. Se o salário do trabalhador passou de 2.000 reais para 4.000 reais, mas o
fogão foi de 1.000 reais para 2.000 mil, o carro de 40.000 para 80.000 mil reais,
a barra de chocolate de 10 reais para 20 reais, o mesmo acontecendo com todas
demais mercadorias, o salário, na verdade, compra a mesma coisa que antes.
Alterou-se apenas a expressão de valor das mercadorias, seu preço, seu valor de
troca, em uma palavra, sua forma de valor. Os valores que cada uma dessas
mercadorias possui, no entanto, permanecem os mesmos, pois as mercadorias se
trocam na mesma proporção e o salário do trabalhador é capaz de comprar a
mesma coisa. O que se alterou, nesse caso, foi a quantidade ou a velocidade de
circulação do dinheiro. Uma quantidade maior da coisa dinheiro é utilizada para
expressar a mesma quantidade dos valores-mercadorias. Fica evidente, então, que
apesar de parecer ser o valor por excelência, o dinheiro apenas expressa o valor
interno as demais mercadorias.
Não é possível, portanto, transformar a sociedade imprimindo dinheiro, como
querem os adeptos da MMT (Teoria monetária moderna). A crítica que Marx
realiza mostra que o fundamento do dinheiro é a circulação de mercadorias.
Quando vemos a sociedade por essa ótica, que considera as mercadorias e o
dinheiro e sua conexão, a análise remete a produção de mercadorias e a classe
trabalhadora. Quando abstraímos as mercadorias e consideramos apenas sua
expressão de valor, a forma-dinheiro, vemos o capitalista que adianta o capital
ou, então, fórmulas fantasiosas que atribuem ao Estado – o emissor do dinheiro
– poderes mágicos.
Seguindo esse caminho indicado por Marx, que não toma apenas a aparência
3.1. O feitiço da mercadoria 31

do preço, mas explica o processo que produz essa aparência, tudo vira de pernas
para o ar. Vemos, em primeiro lugar, que todos dependem de todos. Que não
existem indivíduos isolados. Vemos que ser livre não é fazer o que lhe dar na
telha. Ser livre é ter consciência de todo esse processo de produção e distribuição
da riqueza e, assim, ser parte ativa dele.
Acontece que na sociedade capitalista isso é impossível. Todo trabalho contido
nas mercadorias, todo valor, toda produção é regulada e distribuída por um
mercado que funciona automaticamente e distribui a riqueza produzida por
tentativa e erro. O mercado irá dizer ao capitalista que deve reduzir ou elevar
a produção, quando a demanda se eleva ou se reduz. Mas ele apenas sabe
disso após levar as mercadorias ao mercado. Essa comparação universal entre
as mercadorias no mercado, por mediação do dinheiro, se vincula e é regulada
pelo trabalho contido em cada mercadoria de forma completamente mediada
e indireta. Se há demasiada oferta em relação a demanda, as empresas menos
produtivas serão eliminadas. Quando a situação é oposta. Muita demanda e uma
oferta insuficiente de mercadorias, novos investimentos tendem a migrar para
esse setor. Em todos os casos, o valor está a regular a relação. Mas só percebemos
esse vínculo, entre o trabalho e o valor, estudando o processo em seu conjunto.
Na aparência vemos apenas preços, compra e venda, oferta e demanda e a
relação social que está por trás de tudo isso fica apagada de nossa percepção
ordinária.
É assim que os trabalhadores que são, na verdade, os que produzem todo
valor e, assim, responsáveis pelo poder de compra do dinheiro, estão separados
de todo o processo de distribuição dos valores. Dentro de cada empresa, quem
manda é um patrão: o proprietário do dinheiro. No conjunto da sociedade,
quem regula é o mercado, por tentativa e erro, isto é, fechando e abrindo
novas empresas, demitindo e recontratando trabalhadores conforme é necessário
reduzir ou ampliar a produção. Em todo esse vai e vem, capitalistas crescem e
outros são engolidos. Os trabalhadores são sempre depenados. É por isso que
estão alienados. A alienação não tem nada que ver com ideias falsas e a rede
Globo. A alienação é o modo mesmo de funcionamento da sociedade capitalista.
Relacionamos diretamente com coisas – mercadorias e dinheiro – e, apenas
indiretamente, com outras pessoas. Não vemos as relações sociais que se ocultam
por trás de tudo.
A mercadoria-dinheiro confere ao seu possuidor o poder e o acesso direto
ao universo inteiro das mercadorias ao mesmo tempo que oculta e vela o seu real
conteúdo. O valor que o dinheiro expressa pertence inteira e integralmente as
demais mercadorias. Só que o poder sobre esse universo inteiro de mercadorias
reside no dinheiro. Temos uma cisão responsável pela ilusão que o mercado
32 Capítulo 3. Capital é sangue

produz nos trabalhadores. De um lado, temos o dinheiro que confere o poder,


a potência e a possibilidade de acesso a toda riqueza existente. Isso é visível e
perceptível por todos. Por outro lado, temos todo universo das demais mercadorias,
o conteúdo de toda riqueza existente. No entanto, esse conteúdo não é visível. É
camuflado pela forma do valor. Apesar do dinheiro não fazer nada mais do que
viabilizar a comparação impessoal e universal entre as mercadorias, vemos, no
preço, apenas um valor abstrato.
Como superar, então, esse abismo que separa todas as pessoas no interior
das relações sociais capitalistas? Essas relações sociais de exploração capazes
de ocultar a exploração mesma? Seria necessário fazer com que bilhões de
trabalhadores, espalhados por todo o mundo, leiam O Capital de Marx para
se darem conta da situação a que estão submetidos? Ora, se fosse esse o caso,
transformar a sociedade capitalista seria impossível. O Capital de Marx foi escrito
para a vanguarda dos trabalhadores que atuam de forma organizada no lugar
onde todo o valor se origina: o local de trabalho. Quando os trabalhadores atuam
não enquanto indivíduos no mercado, mas como classe social, toda realidade
dessa forma de sociedade absurda se revela. Os trabalhadores em uma fábrica
em greve se dão conta de que tudo que ali é produto de seu trabalho. Em
uma greve geral, fica claro que a sociedade inteira paralisa sem a atividade dos
trabalhadores. Fica claro, também, que os capitalistas são apenas parasitas que
vivem do trabalho alheio.
Por isso, O Capital de Marx foi escrito para indicar a essa vanguarda de
trabalhadores conscientes que, sem destruir a sociedade de capitalista, toda e
qualquer luta, toda e qualquer mobilização, será uma tempestade no como d’Água.
Lutar para destruir essa forma de sociedade é, por isso, a maior liberdade que
se pode ter no capitalismo. A única forma de ação em que temos consciência
das algemas que nos prendem e das possibilidades de libertação que a própria
própria sociedade oferece. Lutar pela destruição do capitalismo é o grau máximo
de liberdade possível dentro dessa forma de organização social. O resto é ilusão.

3.2 Mais-valia: exploração, embrutecimento e miséria


Quando olhamos os relatórios econômicos de uma empresa capitalista dois itens
se destacam: os custos de produção e o lucro. Qualquer empresa, seja uma
siderúrgica, uma montadora de automóveis, uma indústria têxtil ou qualquer
outra tem sua arrecadação dividida entre custos de produção e lucro. Assim, por
exemplo, uma dada empresa que arrecadou 10 milhões de reais no ano, pode
ter sua receita divida entre 8 milhões de custos de produção e 2 milhões de
3.2. Mais-valia: exploração, embrutecimento e miséria 33

lucro bruto. Ora, nos custos de produção temos o pagamento de absolutamente


tudo que a empresa consome. Por um lado, os meios de produção que são as
matérias-primas e a manutenção ou desgaste das máquinas. Em nosso exemplo,
suponhamos que 6 milhões de reais. Por outro lado, temos o pagamento dos
salários de todos os trabalhadores, os 2 milhões de reais que restaram.
No entanto, temos um grande enigma na forma como esses relatórios econô-
micos são apresentados. Os 2 milhões de lucro que citamos acima aparecem
como um valor adicionado aos custos de produção vindos literalmente do nada.
Se os custos de produção contêm tudo, tanto os meios de produção quanto o
salário dos trabalhadores, qual a origem do lucro do capitalista?
É procurando resolver esse problema que Marx irá descobrir a existência da
mais-valia, o segredo do lucro e da acumulação de capital. Até Marx, a maioria
dos economistas explicavam o lucro como se fosse um valor extra colocado
pelo próprio capitalista, de modo que seu negócio valesse a pena. Da mesma
forma que Deus teria criado o mundo do nada, pela força da palavra divina:
“Haja luz; e houve luz”; o capitalista diria “haja lucro” e os 8 milhões de reais se
transformariam em 10. A sociedade capitalista, assim entendida, seria justa. O
capitalista pagaria o preço justo pela matéria-prima e pelas máquinas, pagaria o
preço justo pela força de trabalho e, para não ficar no zero a zero, adicionaria
um valor extra que é seu lucro. A origem do lucro estaria, assim, na esperteza
do capitalista para os negócios.
Assim como Marx fez em sua análise do dinheiro e do valor, ele não oferece
uma explicação econômica para esse problema. A economia serve apenas para
transformar a realidade social em números e, desse modo, administrar a sociedade
capitalista. Ele faz exatamente o contrário. Mostra as relações sociais que esses
números escondem.
Em primeiro lugar, ele mostra que o lucro não pode ser uma criação do
capitalista. Como o valor das mercadorias se realizam na troca no mercado, se
todos os capitalistas elevam o preço de suas mercadorias o resultado disso será
igual a nada. Se eu troco um quilo de batata por um quilo de tomates, não fará
nenhuma diferença se o produtor de batatas eleva o preço de seu produto de
5 para 10 reais, se o produtor de tomates faz a mesma coisa. Visto por outro
ângulo, se todos os capitalistas elevam o preço dos produtos para ter lucro,
também irão se elevar o preço das matérias primas e máquinas consumidas no
processo de produção, também irão se elevar os produtos consumidos pela classe
trabalhadora e o resultado geral da equação é que esse aumento geral dos preços
irá engolir todo o lucro do capitalista. O lucro, portanto, não pode se originar do
aumento do preço de um dado produto pelo capitalista. Esse raciocínio, uma vez
mais, recai no fetichismo da mercadoria, atribuindo ao dinheiro um conteúdo
34 Capítulo 3. Capital é sangue

que ele não possui. Qual seria, então, o segredo do lucro?


Nesse ponto se encontra uma das principais descobertas de Marx: o que
o trabalhador vende não é o seu trabalho, mas sua capacidade para trabalhar
ou a força de trabalho. Não importa quantas mercadorias o trabalhador produz,
o capitalista não paga o trabalhador por um produto, mas para que fique a
disposição dele por um dado período de tempo. É a capacidade que uma dada
pessoa possui para, por exemplo, montar automóveis, operar um torno, oferecer
aulas de matemática ou projetar um avião que o capitalista compra. Acontece
que uma vez que o capitalista comprou a capacidade de trabalho do trabalhador,
ele pode usá-la como quiser e fazê-la trabalhar para além do necessário ao
pagamento da mercadoria que comprou.
Isto acontece porque a força de trabalho é uma mercadoria bem diferente.
Em todas as outras mercadorias, por exemplo uma maça, seu valor desaparece
quando a consumimos. Quando comemos uma maça não resta nada dela. A
maça, além do valor de uso que serve de alimento, é também um valor, um
produto do trabalho. Seu valor de uso é o suporte de seu valor. Quando é
consumida, seu valor desaparece junto com seu valor de uso. Após consumida,
não é mais possível se alimentar da maça, seu valor de uso desaparece. Também
não é possível vendê-la ou comprá-la. Sem valor de uso não há valor, pois o
primeiro é o suporte material do segundo. O mesmo acontece com uma máquina
usada no processo de produção. A diferença é que a máquina é consumida aos
poucos, durante toda sua vida útil.
Mas com a força de trabalho temos algo muito diferente. A força de trabalho
é a única mercadoria cujo consumo produz valor. O capitalista comprou a
capacidade que um dado indivíduo possui para operar um torno mecânico.
Quando ele consome a mercadoria, quando o torneiro trabalha, o valor não
é consumido mas produzido. Por exemplo, peças de automóveis são criadas
com seu respectivo valor. Desse modo, o capitalista faz o torneiro trabalhar não
apenas para compensar o pagamento de seu salário com que ele comprou a
força de trabalho, mas o faz trabalhar ainda mais, produzindo um valor extra.
Uma mais-valia ou, como alguns preferem chamar, mais-valor.
Eis a origem do lucro. No exemplo numérico que demos no começo, o
capitalista pagou 2 milhões de reais para ter um conjunto de trabalhadores a
sua disposição. Comprou a capacidade de trabalho desses trabalhadores por um
certo período. Quando esses trabalharam, ao longo do ano, produziram além
dos 2 milhões de reais equivalentes aos seus salário, outros 2 milhões de reais
extra. Com isso temos uma mais-valia. Os 6 milhões relativos as matérias primas,
máquinas e materiais suplementares foram produzidos por outras empresas,
nesse caso, seu valor foi apenas repassado ao produto final. Temos algo bastante
3.2. Mais-valia: exploração, embrutecimento e miséria 35

curioso, os 2 milhões de mais-valia é exatamente o mesmo valor do lucro bruto.


Qual a diferença entre lucro e mais-valia?
Como podemos ver, a mais-valia e o lucro estão representados no mesmíssimo
2 milhões de reais. Economicamente e quantitativamente mais-valia e lucro são
a mesma coisa. A diferença, nesse caso, não é econômica, mas social. O lucro
é sempre colocado em relação ao total dos custos de produção e não somente
do que é pago aos trabalhadores. Por isso, ao lado de um lucro de 2 milhões
temos outros 8 milhões que correspondem as matérias-primas, ao gasto com as
máquinas e a força de trabalho. Não vemos a relação estreita que existe entre
lucro e trabalho. Por isso, o lucro parece ser criado pelo próprio capitalista.
Mas, na análise da relação social chamada mais-valia, os meios de produção
são deixados de lado. Isto acontece porque o valor das matérias-primas e da
maquinaria são apenas repassados para o que é produzido no final. Máquinas não
produzem valor. Sem o trabalho, as máquinas não servem para absolutamente
nada. Como diz Marx, uma “máquina que não serve no processo de trabalho
é inútil.[...] O ferro enferruja, a madeira apodrece. O fio que não é tecido é
desperdiçado”. Máquinas e matérias-primas, todos os meios de produção, são
apenas trabalho passado, trabalho morto, que apenas um novo trabalho pode
trazer a vida. “O trabalho vivo tem de apoderar-se dessas coisas e despertá-las do
mundo dos mortos, convertê-las de valores de uso apenas possíveis em valores
de uso reais e efetivos”5 .
É por isso que na análise quantitativa da mais-valia consideramos somente o
novo valor adicionado em um dado ciclo de produção. Dessa forma, vemos que,
em nosso exemplo, os trabalhadores adicionaram com o seu trabalho 4 milhões
de reais de valor, mas se apropriaram somente de 2 milhões na forma do salário.
Os 2 milhões restantes constituem o lucro do capitalista ou a mais-valia. Ora,
apesar de serem o mesmo número, como podemos ver, a mais-valia é muito
diferente do lucro. A análise da mais-valia mostra que todo o valor adicionado
ao produto tem sua origem não no capitalista, mas no trabalhador. Mostra, nas
palavras de Marx, que o “capital é trabalho morto que como o vampiro vive
somente sugando trabalho vivo e vive mais quanto mais trabalho sugar”6 . O
capital é, assim, a própria imagem do vampiro.
Vemos ainda que o trabalhador não fica com tudo o que produziu, deixando
um excedente para o patrão que é justamente a mais-valia. Por isso, o modo de
produção capitalista se baseia na exploração da força de trabalho, tal como era,
no passado, a escravidão e a servidão. No entanto, a forma como essa exploração

5
(MARX, 2013, p. 222)
6
(MARX, 2013, p. 392)
36 Capítulo 3. Capital é sangue

acontece é muito diferente.


Também aqui tudo aparece, a primeira vista, as avessas. No caso de um servo
na Idade Média que entregava metade de sua produção ao senhor, os chamados
meeiros, “cada servo sabe que o que ele despende a serviço de seu senhor é
uma quantidade determinada de sua força pessoal de trabalho”7 . Ele sabe que
ficou com metade do fruto de seu trabalho para si e a outra metade ele entregou
para o senhor, pois esse produto é entregue em espécie ao seu senhor. Não
há mediação do dinheiro. Já no capitalismo, o trabalhador não sabe quanto ele
produziu, menos ainda quanto ele entregou ao patrão. A mais-valia aparece como
lucro e o lucro não aparece como produto do trabalho, mas como uma criação
mágica dos capitalistas. Os trabalhadores acreditam, assim, que é possível um
salário justo. Um salário que corresponda ao seu trabalho. Mas isto é impossível
no capitalismo. Se seu salário corresponde ao seu trabalho, não há mais-valia e
o capitalista fecha o seu negócio.
Vemos portanto que, quanto ao conteúdo, não há diferenças entre o modo
de produção capitalista e outras formas sociais baseadas na exploração de
uma classe social sobre a outra. Em ambas, a classe dominante e proprietária
fica com o excedente do produto do trabalho do trabalhador, deixando a este
apenas o trabalho necessário a sua manutenção e sobrevivência. Mas mais-valia
não é apenas trabalho excedente. Mais-valia é a forma de extração do trabalho
excedente no modo de produção capitalista. Dirá Marx: “O que diferencia as várias
formações econômicas da sociedade, por exemplo, a sociedade da escravatura
daquela do trabalho assalariado, é apenas a forma pela qual esse mais-trabalho
é extraído do produtor imediato, do trabalhador”8 .
Esta forma social obscurece a fonte real de toda a riqueza, o trabalho. Esta
forma social não mostra diretamente aos trabalhadores o que ele realmente
produziu e a origem da riqueza apropriada pelo patrão, confunde portanto
trabalho excedente e trabalho necessário. Vimos, portanto, como se dá a relação
social em seu conjunto. Em primeiro lugar, o trabalho passado contido nas
matérias primas, máquinas e materiais suplementares chegam a fábrica pela
mediação do dinheiro do capitalista. Essa é a fatia do capital chamada de
capital constante. É constante porque máquinas e matérias primas são valores
já produzidos. Não são capazes de gerar novo valor, apenas se incorporando
aos novos produtos que servem de insumo. Em segundo lugar, o trabalhador
não vende o fruto de seu trabalho como no caso do servo medieval. Não vende
nem sequer o próprio trabalho, mas sua capacidade para trabalhar, sua força

7
(MARX, 2013, p. 392)
8
(MARX, 2013, p. 293)
3.2. Mais-valia: exploração, embrutecimento e miséria 37

de trabalho, também em dinheiro: a forma-salário. Em terceiro lugar, temos a


mais-valia, o valor excedente produzido pelo trabalhador para além do necessário
a pagar o seu trabalho. Esse valor e acumulado pelo capitalista que o reinveste.
Tem-se origem um processo de valorização infinita que é a própria alma do
capital. Um valor que se valoriza infinitamente.
Observem, portanto, que a mais-valia não é apenas o número econômico do
trabalho excedente. Se fosse esse o caso, não existiria diferença entre mais-valia e
lucro, pois esse número é o mesmo. Mais-valia é uma relação social que explica
esse número: sua origem e desenvolvimento. Visto do ponto de vista do lucro, e
seguindo o exemplo com que começamos, o capitalista recebe 2 milhões de reais
de lucro, tendo investido 8 milhões de reais. Dessa perspectiva, a perspectiva
de quem opera o capital, pouco importa se esses 8 milhões foram gastos com
trabalhadores ou com meios de produção. Ele investiu 8 milhões reais e recebeu
de volta 10 milhões. Sua taxa de lucro foi, portanto, 2 milhões a cada 8 milhões
investidos ou 25%.
Quando analisamos a relação social mais-valia, vemos que dos 8 milhões
investidos, 6 milhões são capital constante, gastos em meios de produção. Um
valor produzido por trabalhadores de outros setores e apenas repassado ao
produto final. O valor novo incorporado a esse produto final anual, portanto, não
foi de 10 milhões de reais, mas 4 milhões, ficando 2 milhões com os trabalhadores
e 2 milhões com o capitalista. A cada 2 milhões de reais que os trabalhadores
receberam, portanto, eles produziram 2 milhões para o capitalista. A taxa de
exploração, portanto, é de 100%.
Como se vê, embora o número expresso pela mais-valia seja precisamente o
mesmo expresso pelo lucro, ambos se referem a relações sociais completamente
diferentes. De tal modo, que em uma mesma empresa, a taxa de exploração
se mostrou quatro vezes maior que a taxa de lucro. Vemos ainda que, ao
dizermos que a mais-valia é uma relação social, é necessário mostrar que relação
social é essa, como se estabelece. No marxismo atual, infelizmente, grande
parte dos autores dizem que tudo é relação social, mas mostram-se incapazes de
apresentarem o movimento interno e articulação dessa relação social. A expressão
‘relação social’ converte-se em um adjetivo vazio aplicado a tudo. É exatamente
o contrário do procedimento de Marx.
Marx procura mostrar o conteúdo social dos números econômicos. A ciência
econômica, ao contrário, reduz essas relações sociais aos números. Para a ciência
econômica a taxa de exploração é inútil. É inútil porque ela não serve para
administrar o capitalismo. Ao capitalista interessa apenas o quanto ele tem de
retorno de seu capital total investido. Contando que a taxa de lucro seja a
maior possível, pouco importa o percentual do que ele investiu que é gasto com
38 Capítulo 3. Capital é sangue

trabalhadores ou com meios de produção. Um investidor que compra ações de


empresas na bolsa de valores, quer saber a taxa de lucro dessa empresa, o quanto
ela retorna do total investido. Ocorre que, do mesmo modo que a expressão de
valor das mercadorias – a forma dinheiro – oculta o seu conteúdo: o trabalho; a
forma de expressão dos resultados financeiros das empresas capitalistas – a taxa
de lucro – encobre o seu verdadeiro conteúdo: a exploração.
Não se trata, contudo, de um mero processo subjetivo e conspirativo da
classe capitalista para enganar os trabalhadores. É o próprio modo de produção
capitalista que produz essas formas enganosas. As mercadorias, materialmente e
tecnicamente distintas entre si, apenas podem expressar seu valor comum em
uma forma material que sirva inteiramente a esse propósito: a forma-dinheiro. As
empresas regulam a competição entre si pela taxa de lucro, pela taxa de retorno
do investimento.
A ciência econômica, nesse contexto, ao querer apenas gerir a sociedade
capitalista da melhor forma possível, pressupõem que ela seja a última forma da
existência humana. Como veremos nos itens seguintes, de modo ainda mais claro,
Marx não faz ciência econômica. Ao contrário, ele faz a crítica a essa ciência, ou
melhor, a crítica ao modo de produção real cuja ciência pretende racionalizar.
E o faz porque não há ciência possível do capitalismo, não há possibilidade de
administrá-lo de forma estável e duradoura. Suas contradições são explosivas e
indomáveis.
É, assim que, para obter lucro máximo, para acumular capital na forma da
mais-valia e manter-se vivo na competição entre capitalistas, faz-se necessário
sugar o sangue e do suor alheio na máxima medida possível. Quando uma
empresa investe em novas tecnologias, substituindo a antiga maquinaria, é
para permitir um número mais reduzido de trabalhadores produza a mesma
coisa ou mais do que antes. Para isso acontecer o que ele economiza pagando
trabalhadores deve ser maior do que o investimento extra em meios de produção.
Essa é a mais-valia relativa. Com esse processo, o capitalista age em função de
seus próprios interesses e da elevação de seu capital. Esse interesse, no entanto,
de modo algum coincide com o dos trabalhadores. Por um lado, massas de
trabalhadores são jogados para fora do desemprego, engrossando as fileiras do
desemprego. Para quem permanece trabalhando, “a facilitação do trabalho se
torna meio de tortura, pois a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas
seu trabalho de conteúdo”9 .
Evidentemente que esse progresso técnico enorme, poderia servir para a
melhoria da vida dos trabalhadores, reduzindo a jornada de trabalho e ampliando

9
(MARX, 2013, p. 494-495)
3.2. Mais-valia: exploração, embrutecimento e miséria 39

o acesso aos produtos do trabalho. Mas esse seria o caso em uma sociedade
guiada pelas necessidades de seus integrantes. O capitalismo move suas engre-
nagens a serviço da acumulação de capital. Os homens tornam-se escravos das
engrenagens ou das relações sociais que é produto de sua própria atividade.
Justamente ao contrário da possibilidade que acabamos de anunciar, quando
não é suficiente fazer crescer a mais-valia com novas tecnologias, os capitalistas
apostam na mais-valia absoluta. Ou seja, fazem crescer a mais-valia elevando
a jornada de trabalho, adotando o banco de horas, uma jornada de trabalho
intermitente dentre várias outras medidas possíveis.
É por esse motivo que, na sociedade capitalista, todos os avanços tecnológicos,
todas as conquistas da ciência e do gênero humano, se transformam em armas
para fazer crescer a exploração dos trabalhadores. Cada passo a frente significa
dois passos para trás. Cada avanço da capacidade humana de dominar os recursos
naturais, ao mesmo tempo, “suprime toda tranquilidade, solidez e segurança
na condição de vida do trabalhador” e lhe imprime “um ritual ininterrupto de
sacrifício da classe trabalhadora, o desperdício mais exorbitante de forças de
trabalho e as devastações da anarquia social”10 . Temos, assim, ao lado de tanto
desenvolvimento técnico, um oceano de desempregados ou subempregados e, ao
lado desses, um volume ainda maior de trabalhadores empregados que padecem
na depressão, nas lesões por esforço repetitivo dentre muitas outras doenças e
problemas associados ao trabalho.
Este quadro “transforma numa questão de vida ou morte a substituição dessa
realidade monstruosa [...]; a substituição do indivíduo parcial, mero portador
de uma função social de detalhe, pelo indivíduo plenamente desenvolvido”11 . A
substituição dessa forma de organização social e a tomada do poder pela classe
trabalhadora, por esse motivo, não é uma questão de escolha, mas de necessidade.
Ao assumir o controle e posse dos meios de produção, os produtores não abolem
o trabalho excedente. No entanto, o trabalho excedente deixa de atuar na forma
da mais-valia. É colocado, agora, a serviço dos interesses e necessidades dos
próprios produtores, que definem conscientemente as prioridades e destinos
dessa massa acumulada de trabalho social.
Observem que, no nível que expomos até aqui, ainda não está dada a possibi-
lidade de destruição do capitalismo. Vemos a necessidade de sua transformação
devido aos efeitos destrutivos que produz, ao desperdício de capacidades hu-
manas. Tais capacidades ou são impedidas de serem colocadas em prática ou,
quando o são, é de forma completamente parcial e unilateral. No entanto, como

10
(MARX, 2013, p. 557)
11
(MARX, 2013, p. 558)
40 Capítulo 3. Capital é sangue

levar essa necessidade a diante com as formas enganosas produzidas por esse
modo de produção em que sua natureza última não é tornada clara nem para os
capitalistas e pela sua pretensa ciência? Como destruir uma forma de sociedade
que se reproduz as costas de seus agentes como se fosse um mecanismo auto-
mático e independente? Começaremos a desenvolver essa possibilidade de modo
mais nítido no próximo item.

3.3 As ilusões da democracia burguesa


Em O Capital Marx não analisa unicamente a exploração dos trabalhadores e o
mercado. Marx não divide a realidade em uma série de disciplinas separadas,
como acontece na escola e na universidade. Temos nesses casos, uma divisão da
atividade humana em vários domínios separados. A sociologia estuda a atuação
do homem na sociedade. A história estuda os feitos humanos ao longo do tempo.
A geografia que estuda o espaço e a atuação dos homens nele. A economia estuda
as transações monetárias e financeiras. Separando uma coisa da outra, muitos
acreditam que o capitalismo tem um lado bom e um lado mau. O lado negativo é
o mercado e a economia. O lado positivo é a democracia, as leis, a liberdade de
expressão e o voto. No entanto, para Marx, a democracia não pode ser analisada
separadamente de uma dada forma de organização da sociedade. Mas como se
relacionam democracia e economia na forma de sociedade capitalista?
Marx jamais tentou explicar a democracia por meio da economia, como diz
os manuais. O que ele faz é mostrar como compra e venda de mercadorias com
o objetivo de produzir mais-valia se conectam a democracia típica da sociedade
capitalista. Por isso, para Marx, não existe democracia no geral, mas formas
distintas de democracia, ligadas a forma de sociedade. Em uma palavra, o que
temos hoje é uma democracia burguesa.
A democracia burguesa é muito diferente, por exemplo, da democracia que
surgiu na Grécia antiga, em particular em Atenas. Entre os atenienses, tínhamos
um grupo de cidadãos que, por direito, podiam possuir terras e mesmo escravos.
As decisões importantes ocorriam em uma assembleia onde os gregos votavam
diretamente os rumos da cidade. Mas não participavam das assembleias os
escravos, estrangeiros e mulheres. Por um lado tínhamos uma democracia direta,
por outro, apenas uma pequena parte da sociedade participava das assembleias.
Ora, a democracia grega seria melhor ou pior que a democracia burguesa? Muitos
poderiam responder. Ela era melhor porque era uma democracia direta em que
os cidadãos tomavam decisões diretamente com as mão levantadas, no lugar
de eleger representantes indiretos: deputadores, senadores, presidentes. Era pior
3.3. As ilusões da democracia burguesa 41

porque apenas uma fração da sociedade possuía direitos democráticos.


Para Marx, tal pergunta não faz sentido. Não existe um modelo ideal de
democracia que usamos como referência para comparar suas distintas formas.
A democracia grega corresponde a forma de sociedade grega: escravagista e
patriarcal. Cidadãos escravos ou mulheres seria uma contradição nos termos,
pois, nessa forma de sociedade, ser cidadão significa exatamente o direito de
ser proprietário de sua casa e de escravos. Mas em que sentido a democracia
burguesa estaria relacionada a forma de sociedade capitalista? Vejamos.
Marx escreve a esse respeito que na “esfera da circulação ou da troca de
mercadorias, em cujos limites se move a compra e venda da força de trabalho,
é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino
exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade”12 . Temos assim, os três
princípios supremos da sociedade capitalista, os chamados direitos humanos: a
liberdade, a igualdade e a propriedade. São esses princípios a base da democracia
burguesa. Mas qual a relação entre tais princípios e uma forma de sociedade
baseada na compra e venda de mercadorias?
Em primeiro lugar, é o reino da Liberdade, pois cada um é livre para comprar
e vender a sua mercadoria em conformidade com a sua vontade. Diferente da
escravidão, cada trabalhador não é obrigado a trabalhar para o mesmo capitalista.
Sua entrada em uma empresa se baseia na vontade de ambas as partes e
tem como resultado um contrato. Em segundo lugar, é o reino da Igualdade.
Afinal, cada um vende sua mercadoria pelo seu valor, trocando equivalente por
equivalente. Daí a revindicação de muitas trabalhadores pelo salário justo. Ele
quer vender sua mercadoria, a força de trabalho, pelo seu valor real. Em terceiro
lugar, é o reino da Propriedade, “pois cada um dispõe apenas do que é seu”13 .
Capitalistas e trabalhadores vendem a mercadoria de sua propriedade. Quem não
possui nenhuma propriedade externa, uma indústria ou um pedaço de terra, por
exemplo, vende a única mercadoria que possui: a capacidade para realizar um
dado trabalho.
Teríamos, assim, uma sociedade potencialmente justa, baseada nos direitos
comuns a todos os seres humanos, tanto capitalistas quanto trabalhadores. Todos
esses direitos humanos se fundam, como vimos, na troca de mercadorias. Todos
tem liberdade para vender sua mercadoria. Vendem as mercadorias pelo seu
valor. Além disso, cada um vende apenas a mercadoria de sua propriedade. Tudo
parece caminhar de forma absolutamente harmônica e pacífica, diferente da
época da escravidão em que a lei se fazia cumprir pelo chicote.

12
(MARX, 2013, p. 250)
13
(MARX, 2013, p. 250)
42 Capítulo 3. Capital é sangue

Mas quando vemos a ligação entre o conjunto dos elementos da socie-


dade capitalista, cada um desses princípios sagrados da democracia burguesa
transformam-se em seu contrário. Novamente, as coisas não são o que parecem
ser.
Ora, se cada um é livre para comprar e vender sua própria mercadoria, temos
que o trabalhador pode colocar o preço que quiser em sua mercadoria: a força
de trabalho. Da mesma forma, o capitalista pode pagar o quanto quiser. Temos
uma estranha situação de “direito contra direito”. Ocorre que, dirá Marx, em uma
situação de direito contra direito “quem decide é a força”14 .
Os paraíso dos direitos universais do homem começa a se transformar na luta
pelo salário considerado como justo, na luta pela duração jornada de trabalho
dentre muitas outras. Cada um dos lados se apoia no mesmo direito: a liberdade
de comprar e vender sua mercadoria pelo seu valor. No entanto, qual o valor da
mercadoria força de trabalho? Para regulamentar essa situação, o capitalismo será
obrigado a legalizar as greves, os sindicatos e os mecanismos de luta da classe
trabalhadora. O conflito está instaurado no seio da própria sociedade capitalista
e aponta para contradições muito mais violentas. Mas agora não estamos mais
falando de relações entre indivíduos que trocam sua mercadoria, mas entre
classes sociais. Quando considerado da perspectiva das classes sociais, todos os
sacrossantos princípios da sociedade burguesa viram as avessas.
Se é verdade que cada trabalhador não é propriedade de nenhum capitalista
em particular, para sobreviver, ele deve necessariamente vender sua força de
trabalho para algum patrão. Ele não é escravo desse ou daquele patrão particular,
mas é escravo do conjunto da classe patronal: a burguesia. A liberdade é uma
aparência produzida pelo fato do trabalhador individual ter a possibilidade de
trocar e escolher, até certo ponto, o patrão. Mas a classe trabalhadora em seu
conjunto permanece em uma relação de dependência e dominação necessária
para com a classe capitalista, como o escravo do senhor. Na escravidão tratava-se
de uma dominação direta de um indivíduo sobre o outro. Agora, trata-se da
dominação de uma classe sobre a outra, que não se mostra diretamente como
exploração de um indivíduo sobre outro. Assim, é desmascarado o princípio de
liberdade.
Observem algo sumamente importante. Não é que o trabalhador é enganado
por uma ideologia inventada em um gabinete a respeito da liberdade entre os
indivíduos no capitalismo. Tais ideologias de fato existem. Mas elas não teriam a
menor possibilidade de vingar caso não estivessem fincadas em, ao menos, alguns
aspectos da realidade. Apegam-se a um aspecto formal e unilateral da realidade:

14
(MARX, 2013, p. 309)
3.3. As ilusões da democracia burguesa 43

a sociedade vista exclusivamente do ponto de vista da relação molecular entre


indivíduos no mercado, apagando todos demais nexos e conexões. Tal como
fazem os ideólogos burgueses, nas relações sociais capitalistas mesmas, como
vimos, a conexão entre as partes encontra-se apagada. Vista unilateralmente
nessa perspectiva, de fato temos uma forma que é indivíduos livres por direito. De
antemão, não estão presos a um pedaço de terra como servos, nem a uma forma
de escravidão direta. Estão livres como os pássaros. Essa liberdade formal, no
entanto, é condição para que possam vender sua força de trabalho e, assim, atuar
como membro coletivo da escravidão assalariada. A classe dos trabalhadores é
livre até mesmo dos meios de subsistência necessários para sua manutenção e
de sua família. São aqueles que, não possuindo nada a não ser sua própria pele,
não possuem outra saída a não ser a liberdade de levá-la para ser curtida. Um
individuo isolado, ocasionalmente, pode até superar sua condição de trabalhador
assalariado. Mas a classe em seu conjunto não pode sem destruir e transformar
o conjunto dessas relações sociais.
E aqui já surge um elemento da maior importância. Diferentemente da
posição dos produtores em todas formas de dominação anteriores, o trabalhador
assalariado possui “um amplo espaço de escolha, de arbítrio e, em consequência,
de liberdade formal”15 . Isso significa que ele pode, dentre outras coisas, associar-
se e organizar-se para lutar por seus próprios interesses e necessidades. Incluindo
lutar pela transformação da própria forma de organização social.
Da mesma forma, a igualdade se transforma em seu contrário. Se na esfera
paradisíaca do mercado vemos apenas trocas onde cada lado tem algo igual a
oferecer: mercadoria por dinheiro e dinheiro por mercadoria; do ponto de vista
das classes sociais não existe igualdade alguma por uma razão muito simples:
nem sequer existe troca. É a classe trabalhadora que produz toda a riqueza da
sociedade, tanto aquela parcela que fica com ela na forma de salário, quanto
a parte que fica com o patrão na forma de mais-valia ou lucro. É a própria
classe trabalhadora que paga seu salário. A igualdade se converte no direito da
classe capitalista se apropriar de uma parcela do que o trabalhador produz sem
entregar nada em troca, sem qualquer contrapartida.
Da mesma forma, vemos que toda a propriedade do capitalista não foi produto
de seu trabalho, não foi produto de seu suor. Na verdade, sua propriedade é
produto do trabalho passado da classe trabalhadora, do processo de exploração
repetido dez, cem, mil vezes ao longo dos anos. Por isso, explica Marx que
“a propriedade aparece do lado do capitalista, como direito a apropriar-se de
trabalho alheio não pago ou de seu produto; do lado do trabalhador como

15
(MARX, 2011a, p. 381)
44 Capítulo 3. Capital é sangue

impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto”16 . Aqui, uma vez mais,


todo conteúdo se altera quando consideramos a questão do ponto de vista das
classes sociais.
Um trabalhador que acabou de ingressar em uma grande fábrica, pode se
sentir pequeno diante da imensidão das instalações, das máquinas e plataformas.
Quando ingressou na empresa, nada do que existia ali lhe pertencia, nem era
produto de seu trabalho. Tão logo em se dá conta de que faz parte de uma classe
social inteira que partilha a mesma sorte que ele, percebe que, ao contrário, tudo
que nessa empresa gigantesca se encontra foi produto do trabalho coletivo de
pessoas como ele. Percebe que o capital de seu patrão, ou dos acionistas da
empresa, nada mais é do que o trabalho de milhares ou dezenas de milhares de
trabalhadores acumulados no curso de décadas ou até séculos.
Como se vê, tudo muda quando consideramos a conexão entre as classes
sociais na sociedade capitalista e não apenas a relação entre esse e aquele
indivíduo. A liberdade entre indivíduos no capitalismo se converte em escravidão
de uma classe social sobre a outra. A igualdade entre indivíduos se converte em
exploração de uma classe sobre a outra. O direito à propriedade individual se
converte no direito de uma classe se apropriar do trabalhado alheio. Isto significa
que o sistema capitalista não cumpre suas próprias leis? Não cumpre os princípios
jurídicos e políticos que outrora foram colocados como desenvolvimento último
do gênero humano? Absolutamente não. O capitalismo, para continuar a existir,
depende exatamente que tais leis sejam cumpridas.
A esse respeito, Marx dirá: ainda“que o modo capitalista de apropriação
pareça violar as leis originais da produção de mercadorias, ele não se origina
em absoluto da violação, mas, ao contrário, da observância dessas leis”17 . Todos
esses aspectos comuns a todos indivíduos da sociedade capitalista: livres, iguais
e proprietários são necessários para que se produza e acumule capital baseado
na exploração, desigualdade e expropriação de uma classe sobre a outra. Forma
e conteúdo não coincidem. A forma de identidade entre os indivíduos oculta um
conteúdo que é contradição e diferença entre esses indivíduos. Indivíduos que já
se mostram como classes sociais distintas: classes sociais em luta.
Assim, as leis do capitalismo dizem respeito apenas aos direitos individuais
e ocultam seu verdadeiro conteúdo: a exploração e luta de classes. Isso ocorre
porque na sociedade não vemos diretamente relações entre classes sociais, mas
entre pessoas isoladas. Todas relações sociais estão ocultas pela mediação das
mercadorias e do dinheiro. Por isso, defender a radicalização da democracia é o

16
(MARX, 2013, p. 659)
17
(MARX, 2013, p. 659)
3.4. O segredo oculto da sociedade capitalista 45

mesmo que defender a radicalização do capitalismo. Capitalismo e democracia


burguesa andam de mãos dadas e são, no fim das contas, apenas dois lados da
mesma moeda.
A democracia burguesa pode até ser alterada nesse ou naquele detalhe, os
regimes políticos podem ser alterados. Mas as bases devem permanecer as
mesmas para que o capitalismo continue a existir. A democracia burguesa é
uma condição para a acumulação de capital, bem como a compra e venda
generalizada de mercadorias. Fica claro, então, “que revoluções não se fazem
por meio de leis”18 . Para alterar a atual situação da classe trabalhadora não é
suficiente mudar as leis e atuar no interior da democracia burguesa. É necessário
destruir a forma de sociedade capitalista e a democracia que lhe corresponde.
Isso não significa, evidentemente, que os trabalhadores não devam lutar pela
manutenção e ampliação de seus direitos e interesses. No entanto, no lugar de
restringir essa luta aos limites da legalidade burguesa, deve-se sempre e uma vez
mais procurar rompê-los. Assim, a luta pelo salário e o emprego deve ser o ponto
de partida e organização para a luta contra a forma social baseada no trabalho
assalariado. Da mesma forma, a luta pelo direito de associação, de expressão, de
participação na esfera pública deve se tornar no ponto de partida para implosão
da democracia burguesa.
Do que foi exposto até aqui, é suficiente notar que a tendência em fazer
crescer de modo ilimitado a mais-valia absoluta e relativa, faz com que os
trabalhadores atuem coletivamente para garantir o poder de compra de seus
salários, o emprego, o estabelecimento de uma jornada limite de trabalho, um
salário mínimo e assim sucessivamente. Essa união ainda meramente sindical
dos trabalhadores já permite que eles comecem a ver o conjunto da sociedade
de modo distinto de um indivíduo isolado. Não como um indivíduo comprador e
vendedor de mercadoria, mas como uma classe que compra e vende apenas sua
força de trabalho e deve se unir para garantir as condições desse processo de
compra e venda. Nesse nível, a classe ainda se move nos limites desse modo de
produção. Não tardará a aparecer a possibilidade de fazer explodir esses limites.

3.4 O segredo oculto da sociedade capitalista


Uma das mais relevantes descobertas de Marx em O Capital é o segredo
oculto da sociedade capitalista, aquilo que tornou sua existência possível. Quase
todas análises sobre essa obra de Marx falam da exploração dos trabalhadores,
da mais-valia, da crise, do valor e muitas outras coisas. No entanto, essa
18
(MARX, 2013, p. 820)
46 Capítulo 3. Capital é sangue

análises normalmente se silenciam sobre o processo histórico que dividiu toda a


humanidade em duas classes sociais fundamentais: a burguesia e o proletariado.
De um lado, um grupo de indivíduos que é proprietário de todos os meios de
produção e subsistência. De outro lado, a enorme maioria da humanidade perdeu
a propriedade e a posse de tudo que é necessário para trabalhar. Como isso
aconteceu?
Quase todas as análises, já na época de Marx, diziam mais ou menos o
seguinte:

Numa época muito distante, havia, por um lado, uma elite trabalhadora, inteligente
e sobretudo, econômica, e, por outro, uma cambada de vadios a desperdiçar tudo
o que tinham e ainda mais. [...] Os primeiros acumularam riquezas e os últimos
acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado
original que surgiu a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo
trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma. Surgiu
também a riqueza dos poucos, que cresce cada vez mais, embora há muito tenham
deixado de trabalhar.19

Esse é o mito fundador do capitalismo, difundido até os dias de hoje. O


capitalista teria acumulado riquezas graças aos seus méritos individuais, sua
propensão a economizar, racionar seus recursos. Os trabalhadores, de outra
parte, estaria subordinado ao capitalista porque são consumidores desenfreados,
incapazes de poupar e, por isso, ignorantes, incompetentes e preguiçosos. Assim,
o capitalismo seria justo. A concentração de riqueza nas mãos de uns poucos
seria produto do trabalho de seus antepassados. Já os atuais trabalhadores, se
quisessem romper com sua situação, deveriam percorrer o mesmo caminho.
Afinal, Sílvio Santos não teria sido um camelô? Não existem tantos exemplos de
pessoas que conseguiram subir na vida?
A história real desse processo, no entanto, foi bem diferente. Apesar da
sociedade de classes existir há milênios, Marx mostra que as classes sociais eram
bem diferentes antes do capitalismo. Um camponês ou um servo, por exemplo,
possuíam a propriedade ou a posse de um pedaço de terra por toda a vida.
Mesmo que metade ou mais de sua produção fosse destinada a igreja ou a um
nobre, ele e sua descendência tinham garantidos, bem ou mal, sua sobrevivência.
Até um escravo tinha garantido a posse de seus meios de subsistência enquanto
propriedade de um senhor. Sem isso, o escravo não conseguiria sobreviver e seu
senhor perderia sua propriedade: o escravo. Não existem escravos desempregados.
O trabalhador assalariado, ao contrário, não tem a posse nem a propriedade
de nada. Não tem garantia alguma de sua sobrevivência. Por isso deve vender
sua força de trabalho no mercado. Mas como surgiu essa situação? Como o
19
(MARX, 2013, p. 785)
3.4. O segredo oculto da sociedade capitalista 47

trabalhador perdeu a posse dos meios para produzir, da terra e dos meios de
sobrevivência?
Marx explica, e mostra, que “na história real o papel principal foi desem-
penhado pela conquista, a repressão, o assassínio para roubar, em suma, a
violência”20 . Os produtores, quer sejam artesãos ou proprietários de terra, jamais
abririam mão dos meios que os permitiam sobreviver pelo seu consentimento
e vontade. Foi pela força que todos os meios de produção foram retirados dos
antigos produtores, transformando-os em trabalhadores assalariados.
Na Inglaterra, onde o capitalismo surgiu em sua forma clássica, os camponeses
foram expulsos de suas terras de diversas formas. Leis foram criadas de modo
a permitir que certos camponeses fossem expulsos das terras em que suas
famílias viviam há séculos. Camponeses ligados de modo vitalício a terra foram
transformados em arrendatários temporários. Foi proibido o acesso as terras
comuns em que se coletava lenha e outros produtos. A reforma protestante
expropriou as terras da Igreja, jogando no proletariado os moradores dos mosteiros.
De tal forma, que a grande parte da população se transformou em massas
destinadas ao mercado de trabalho ou a mendicância e o roubo.
Estamos tão acostumados com o trabalho assalariado que acreditamos que
sempre foi assim. Mas no início do capitalismo, as pessoas não aceitavam
trabalhar por um salário. Não fazia sentido ter que vender e revender todos
os dias sua força de trabalho sem ter qualquer garantia, qualquer segurança.
Trabalhar para enriquecer outros e, em troca, receber uma pequena fatia não era
tolerado. Não fazia sentido. A maior parte das pessoas seguiram o caminho do
roubo. Foram “impelidos para o estreito caminho que conduz ao mercado de
trabalho por meio da forca, do pelourinho, do chicote – onde, portanto, aparecem
os governos, por exemplo, de Henrique VII, VIII”21 .
Dirá Marx, “a história nada sabe das ilusões sentimentais segundo as quais
o capitalista e o trabalhador estabelecem uma associação” voluntária22 . Em
primeiro lugar, a “população rural teve sua terra violentamente expropriada,
sendo dela expulsa e entregue à vagabundagem”. Em seguida, foi “obrigada a
se submeter, por meio de leis grotescas e terroristas, e por força de açoites,
ferros em brasa e torturas, a uma disciplina necessária ao sistema de trabalho
assalariado”23 . Somente depois de décadas de trabalho assalariado surgiu uma
classe trabalhadora acostumada com esse sistema, que por educação, tradição e
hábito reconhece essa forma de trabalho como sendo normal.
20
(MARX, 2013, p. 786)
21
(MARX, 2011a, p. 417)
22
(MARX, 2011a, p. 417)
23
(MARX, 2013, p. 808)
48 Capítulo 3. Capital é sangue

Marx mostra, ainda, que não se tratou de um processo puramente europeu


e inglês. Para que um punhado de proprietários possuíssem riqueza suficiente
para empregar essa massa de despossuídos, muito mais sangue foi derramado
em outros continentes. Podemos citar como exemplo o extermínio da população
nativa da América espanhola e o trabalho compulsório imposto aos nativos nas
minas de ouro e prata do Peru e México; o massacre da população indígena no
Brasil seguida pela escravidão no Brasil com objetivo de fornecer matérias-primas
para a Europa; a transformação da Africa em uma reserva comercial de escravos;
a conquista e saque da Índia pela Inglaterra destruindo sua infraestrutura milenar
e condenando dezenas de milhares a morte por fome e doenças de todo tipo.
Além disso, para criar um mercado mundial, foi necessário um conjunto
de guerras para dividir o mundo entre as potências europeias. Era necessário
explorar as matérias-primas das Américas, da África e da Ásia, bem como
abrir seus mercados para as fábricas europeias que surgiam. Temos guerras
entre Holanda e Espanha e depois entre a Holanda e Inglaterra. A guerra do
ópio entre Inglaterra e China e muitas outras. Como se vê, “o capital nasce
escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”24 . Em todos
esses casos, os personagens e países envolvidos “lançaram mão do poder do
Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar
artificialmente o processo de transformação do modo de produção feudal em
capitalista e abreviar a transição de um para outro”25 .
Várias empresas privadas, nos primórdios do capitalismo, possuíam um
exército numeroso com o objetivo de conquistar as colônias e explorar seus
recursos. Esse é o caso da Companhia das Índias Orientais que dominou, com
aval do Estado inglês, toda a Índia, destruindo sua forma tradicional de sociedade.
Para se ter uma ideia, estimasse que a destruição de sua estrutura tradicional
levou a morte de 10 milhões de pessoas em apenas uma estação de chuvas. O
capital acumulado na Europa surge agora na forma de investimentos em outros
países cujas estruturas tradicionais foram completamente destruídas pela força
de modo a abrir caminho para a nova forma de organização social.
Observem que Marx, para driblar a censura, chamou este capítulo que agora
comentamos de A assim chamada acumulação primitiva. Comumente, usamos o
termo “a assim chamada” para referenciar categorias e noções de uso comum,
mas de que não compartilhamos. Em verdade, o fundamento da origem do
capitalismo não é uma acumulação primitiva. Antes, uma expropriação. Pode-se
acumular a quantidade de riqueza que se quiser, ela não pode atuar como

24
(MARX, 2013, p. 830)
25
(MARX, 2013, p. 821)
3.4. O segredo oculto da sociedade capitalista 49

capital se não encontrar trabalhadores despojados e expropriados de todos os


meios necessários para sua sobrevivência. Quando a Inglaterra venceu a guerra
do ópio com a China e abriu seus portos a suas mercadorias, o resultado da
empreitada foi um grande fracasso. Os camponeses chineses não compravam as
mercadorias baratas da Inglaterra pelo simples fato de que as produziam em sua
próprias terras, dividindo o trabalho entre toda família e com matérias primas
e instrumentos feitos em sua própria terra. Não há porque recorrer a um valor
de troca de baixo custo, se tais trabalhadores não necessitam de praticamente
nenhum valor de troca.
Quando apresenta pela primeira vez sua elaboração sobre o tema na Associa-
ção Internacional dos Trabalhadores, Marx escreve:

como é que surge este fenômeno estranho de encontrarmos no mercado um


conjunto de compradores – possuidores de terra, de maquinaria, de matéria-prima
e de meios de subsistência, coisas que, todas elas, salvo a terra no seu estado
bruto, são produtos do trabalho – e, por outro lado, um conjunto de vendedores,
que não têm nada para vender exceto a sua força de trabalho, os seus braços e
cérebros que trabalham? De que um conjunto compra continuamente em ordem a
ter lucro e a enriquecer-se, enquanto o outro conjunto continuamente vende em
ordem a ganhar a vida? A investigação sobre esta questão seria uma investigação
sobre aquilo a que os economistas chamam “Acumulação prévia ou originária”,
mas que deve ser chamada Expropriação Originária.26

Como se vê, o capitalismo não se funda em uma acumulação prévia, mas


em uma expropriação. Seu fundamento é a violência, o sangue, a guerra e a
destruição de todas as formas de sociedade em que os trabalhadores encontram-
se diretamente ligados, de uma forma ou de outra, aos meios objetivos que
permitem a sua sobrevivência.
Mas o processo não termina por aqui. A violência e o sangue não está presente
apenas no nascimento do capitalismo, mas no seu crescimento e desenvolvimento.
Aí entra o mecanismo da dívida pública que, segundo Marx, é a “única parte da
riqueza nacional que realmente integra a posse coletiva dos povos modernos”.
Afinal, a dívida é paga com os impostos extraídos de toda a classe trabalhadora.
Por meio da dívida pública, a exploração dos trabalhadores em uma parte do
mundo, se transforma em acumulação dos capitalista em outra. Explica Marx
que “grande parte dos capitais que atualmente ingressam nos Estados Unidos,
sem certidão de nascimento, é sangue de crianças que acabou e ser capitalizado
na Inglaterra”27 .
Além disso, na competição entre os capitais e empresas capitalistas, o peixe
grande engole o pequeno. “Cada capitalista mata muitos outros”. As grandes
26
(MARX, 2002, p. 60)
27
(MARX, 2013, p. 821)
50 Capítulo 3. Capital é sangue

empresas engolem e, assim, expropriam uma vez mais as empresas menores. O


monopólio surge como tendência interna do capitalismo, já que o principal mérito
na competição entre empresas capitalistas é o tamanho do capital. Pequenos
proprietários de terra, pequenos comerciantes e empreendedores e, depois, mesmo
as empresas maiores são arrasadas pelo grande capital.
Isto faz da vida dos trabalhadores um oceano de insegurança e medo, onde
não se tem garantia de nada. Emprego, salário, aposentadoria, direitos nada está
garantido em uma sociedade que se baseia na guerra de todos contra todos para
sobreviver. Se torcermos O Capital de Marx não irá escorrer números e fórmulas
econômicas, mas o sangue da classe trabalhadora. Sangue capitalizado na forma
de dinheiro.
Apesar desse cenário tenebroso, O Capital de Marx termina apontando para
outra possibilidade. Ao lado de todas mazelas produzidas pelo capitalismo cresce
a “revolta da classe trabalhadora que, cada vez mais numerosa, é instruída, unida
e organizada pelo próprio mecanismo de produção capitalista”. Como se vê,
a ditadura do proletariado e a tomada do poder pelo proletariado não é uma
violência sem sentido. Em todo o processo que vimos, “tratava-se da expropriação
da massa do povo por poucos usurpadores”. Agora, a tomada do poder pelo
proletariado é a “a expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo”.
“Soa a hora derradeira da propriedade privada capitalista, e os expropriadores
serão expropriados”28 .
O que foi narrado nesse artigo é como termina o primeiro Livro de O
Capital. O último capítulo do último livro, infelizmente, não foi terminado. Marx
escreveu apenas algumas páginas. Mas em carta a Engels ele anuncia como
pretendia encerrar sua obra principal: “as fontes de ingresso das três classes –
proprietários de terras, capitalistas e trabalhadores assalariados – temos, então,
como conclusão, a luta de classes, por meio da qual o movimento se dissolve e a
dissolução de toda essa merda”.
O Capital de Marx termina, portanto, anunciando a possibilidade da revolução
socialista e a tomada do poder pelo proletariado. Somente assim se pode por
fim nesse oceano de sangue, insegurança, medo e sofrimento que é a sociedade
capitalista. Somente assim o homem pode colocar a enorme capacidade produtiva
que o capitalismo produziu a serviço das necessidades e interesses do próprio
homem.

28
(MARX, 2013, p. 832)

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