PARTE1 IntroduçãoAoPensamentoDeMarx
PARTE1 IntroduçãoAoPensamentoDeMarx
PARTE1 IntroduçãoAoPensamentoDeMarx
Nos dias de hoje Marx é retratado na maior parte dos livros, artigos e documentá-
rios como um intelectual que, externamente a classe trabalhadora, procurava lhe
dar lições. Lições essas alcançadas unicamente em função de sua mente brilhante.
Alguns aspectos de seu pensamento são estudados nos cursos universitários
e seu nome esta sempre presente na literatura que trata de temas específicos
de ciências humanas: história, economia, sociologia e assim por diante. Agora,
completados 200 anos de seu nascimento, nos meios políticos tradicionais, nas
universidades, nos veículos de comunicação de grande circulação muitos se
levantam para saldar, ou criticar, o seu nome.
Se por algum motivo um indivíduo bem informado de pouco mais de cem
anos atrás fizesse uma viagem no tempo até os nossos dias ficaria, certamente,
espantado com o tamanho da audiência dada à Marx nesses meios. No começo
do século XX, muitos anos após sua morte, seu pensamento não era estudado
nos ambientes universitários, fora poucas vezes abordado pelos economistas
e filósofos de então. Quase toda audiência de Marx se encontrava no interior
das organizações operárias e socialistas europeias, principalmente na Social-
Democracia Alemã e nos demais partidos da Internacional Socialista. Seu nome já
era bastante conhecido, no entanto, era sempre associado ao movimento operário,
socialista e radical. Sua obra era pouco estudada fora desses meios.
Dois foram os momentos que fizeram de Marx um nome reconhecido e
famoso. Curiosamente, não se trata da publicação de O Capital nem de qualquer
6 Capítulo 1. Uma vida a serviço da classe operária
1
MARX apud (WHEEN, 2007, p. 17)
1.1. Uma obra orientada para a classe operária 7
2
(MARX, 2010a, p. 151)
3
(MARX, 1976b, p. 71)
4
(MARX, 1976b, p. 101)
8 Capítulo 1. Uma vida a serviço da classe operária
5
(ENGELS, 1976, p. )
6
(MARX, 2010b, p. 581)
7
(TROTSKY, 1978, p. 159)
1.2. Uma vida para e entre a classe operária 9
Marx, tanto nas organizações quanto nos jornais, encontramos vários operários
cujos laços ele cultivou no curso de toda sua vida. Alguns exemplos são o
relojoeiro Joseph Moll, o tipógrafo Karl Schapper, o sapateiro Heinrich Bauer, o
alfaiate Jonh Eccarius dentre muitos outros. Longe de uma relação distante e
passiva, esses ativistas serão colaboradores políticos e amigos pessoais de Marx
por décadas.
Mais ainda. Não serão em absoluto tratados como meros receptores passivos
das ideais de Marx, ao contrário, elevados ao papel de agentes e sujeitos ativos
dos respectivos processos que se sucederam. São destes operários citados vários
dos artigos escritos na Nova Gazeta Renana, bem como documentos e manifestos
publicados nos anos que se seguiram. Será entre eles que Marx irá compartilhar
sua vida. Para mencionar apenas um episódio, em fins de 1850, Marx irá empenhar
o último casaco de sua esposa Jenny, o único ainda não empenhado em toda
sua casa naqueles dias, para pagar o tratamento de uma doença de Eccarius,
operário membro da Associação Internacional dos Trabalhadores e, também, da
Liga dos Comunistas.
Dentre os intelectuais e profissionais liberais que colaboraram continuamente
com Marx, todos eles voltaram suas atividades e dedicaram a maior parte de
suas respectivas vidas ao trabalho no interior das associações operárias e ao
vínculo com seus movimentos e lutas que a cada dia desenrolavam. Não eram
considerados simplesmente em função de seus dotes intelectuais ou pedantismo
professoral. Em sua maioria, eles foram provados nos processos revolucionários
europeus de 1848. Um caso exemplar é Wilhelm Wolff, filho de agricultores e
professor particular de matemática. Foi Wolff quem divulgou em todos estados
alemães a repressão e significado da insurreição dos tecelões da Silésia, primeiro
levante operário que Marx entrara diretamente em contato. Liderou milicias
na revolução europeia de 1848 e se ligou, posteriormente, a inúmeros ativistas
da classe operária inglesa. Não sem razão, em O Capital, que Marx dedicara
toda sua vida a escrever, se inicia com as seguintes palavras: “Dedicado ao
meu inesquecível amigo, o corajoso, leal e nobre vanguardeiro do proletariado:
Wilhelm Wolff”.
Não foi, portanto, por casualidade que ao mesmo tempo que o nome de
Marx desaparecia nos círculos intelectuais europeus, aflorava, cada vez mais, nos
círculos e organizações operárias. Essa opção, evidentemente, teve seu preço.
Marx perdeu sua cidadania e foi expulso junto com sua família de um país para
o outro: Bélgica, Colônia, por dua vezes da França até que, por fim, passou a
metade final de sua vida na Inglaterra como um apátrida. Sobreviveu, quase
sempre, em situação de absoluta miséria, sendo socorrido várias vezes pelo amigo
Friedrich Engels. Em um episódio particularmente marcante, com todos casacos
10 Capítulo 1. Uma vida a serviço da classe operária
obra da própria classe operária. Não podemos, portanto, marchar juntos com
pessoas que abertamente afirmam que os operários são demasiado incultos para
se libertarem a si próprios e que só a partir de cima têm de ser libertados, por
grandes e pequenos burgueses benfeitores”12 .
Cabe aqui, contudo, uma pergunta: o que haveria de tão novo no pensamento
de Marx que merecesse tamanha audiência no futuro? Porque as transformações
sociais pelas quais ele lutava exigia atuação no interior da classe trabalhadora,
não sendo passível de se efetuar de fora: por heróis, intelectuais, parlamentares,
isto é, “grandes e pequenos burgueses benfeitores”? É o que veremos a seguir.
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
12
(MARX; ENGELS, 2010, p. 279)
Capítulo 2
A impossibilidade da sociedade
capitalista ser reformada
a realização das mercadorias que foram fabricadas, isto é, sua venda, não é
racionalizada por ninguém, não segue nenhum padrão pré-definido: é imprevista
e incontrolável. Nunca sabemos se uma mercadoria será vendida ou não. É
necessário tudo submeter ao teste do mercado. A divisão social do trabalho, a
relação entre as empresas no mercado, é imprevista, incerta, não planejada, a
posteriori.
Cada empresa produz mercadorias para serem trocadas no mercado, consu-
midas por um comprador que, de início, ninguém sabe quem é. Como tudo é
trocado no mercado, surge a necessidade do dinheiro que permite comparar cada
mercadoria com a multidão de todas as outras. O casamento entre mercadoria e
dinheiro é incerto. A renda e o emprego dos trabalhadores variam. O que antes
era possível comprar, pode não ser no momento seguinte. Os desenvolvimentos
técnicos dentro de cada empresa seguem seu curso independentemente uma das
outras. O conhecimento não é compartilhado ou o é de forma muito limitada. O
avanço técnico de uma empresa pode não ser acompanhado pela concorrente.
O encontro entre mercadoria e dinheiro é incerto. Ontem tal mercadoria era
amada e querida pelo dinheiro, hoje não é mais. Daí o trecho em que Marx
parafraseia Shakespeare: A mercadoria ama o dinheiro, mas o curso do verdadeiro
amor nunca é suave.
Como podemos ver, se dentro da empresa tudo é padronizado, dividido
e regulado; fora dela reina a total insegurança: nada pode ser previsto com
exatidão. Os veículos produzidos por uma montadora serão vendidos? O minério
extraído das minas encontrarão compradores? Pode ser que sim, pode ser que
não. Ninguém sabe com certeza quando e onde.
Com isso queremos indicar que os capitalistas não controlam, de modo algum,
o capital. Eles não têm garantia de que suas mercadorias serão vendidas. Eles
não sabem de antemão quais setores serão mais lucrativos, nem sequer se terão
retorno de seus investimentos. Os capitalistas dominam, sem dúvida, tudo aquilo
que compram com seu capital, em particular, os trabalhadores que empregam.
Eles dominam e controlam a divisão técnica do trabalho. Mas são escravos e não
controlam a divisão social do trabalho. Em outras palavras, têm poder dentro da
empresa que é proprietário, mas na relação entre as empresas atua o salve-se
quem puder. Seu capital particular é apenas um elo na conexão universal entre
os capitais. E essa conexão entre os múltiplos capitais é feita por um mercado
impessoal. O capitalista, assim, é servo do capital, servo de um poder impessoal,
“é apenas capital personificado. Sua alma é a alma do capital”2 . Os capitalistas
dos mais diversos setores – bem como os representantes políticos: governadores,
2
(MARX, 2013, p. 307)
2.2. O capitalismo enquanto totalidade articulada 17
As formas jurídicas, nas quais essas transações econômicas aparecem como atos
de vontade dos envolvidos, como exteriorizações de sua vontade comum e como
contratos cuja execução pode ser imposta às partes contratantes pelo Estado, não
podem determinar, como meras formas que são, esse conteúdo. Elas podem apenas
expressá-lo. Quando corresponde ao modo de produção, quando lhe é adequado,
esse conteúdo é justo; quando o contradiz, é injusto. A escravidão, sobre a base
do modo de produção capitalista, é injusta, assim como a fraude em relação à
qualidade da mercadoria.3
Como se vê, a crítica à sociedade burguesa exposta por Marx não se funda-
menta em uma condenação moral da mesma, tampouco em uma ética universal
do homem alicerçada em princípios eternos de justiça. Antes disso, os pressu-
postos para as relações de produção socialistas aparecem no seio da própria
sociedade burguesa. Se “não encontrássemos veladas na sociedade [burguesa], tal
como ela é, as condições materiais de produção e as correspondentes relações de
3
(MARX, 2017, p. 386-7)
2.2. O capitalismo enquanto totalidade articulada 19
intercâmbio para uma sociedade sem classes, todas as tentativas para explodi-la
seriam quixotadas”4 .
Na contramão das quixotadas características dos socialistas utópicos e refor-
mistas de então, ao pretenderem construir a sociedade do futuro por meio de
uma “reforma na bolsa” ou de um banco emissor de bônus horário, Marx assinala
o caráter radicalmente contraditório e potencialmente explosivo das relações soci-
ais capitalistas ao gestarem em seu interior as condições que possibilitam a sua
superação. A “concorrência gera concentração de capital, monopólios, sociedades
anônimas”, “a troca privada gera o comércio mundial, a independência privada
gera a total dependência do assim chamado mercado mundial”, “a divisão do
trabalho gera aglomeração, coordenação, cooperação” e, sobretudo, “a antítese
dos interesses privados gera interesses de classe”. Como se vê, o capital é uma
“massa de formas antitéticas da unidade social cujo caráter antitético [...] jamais
pode ser explodido por meio de metamorfoses silenciosas”5 .
O marxismo não está fundado, portanto, em uma premissa moral do tipo
Chapolin Colorado: a defesa dos fracos e oprimidos. Marx não aposta no
proletariado pela sua fraqueza, mas por sua força. A aposta na organização
do proletariado para destruição da sociedade capitalista, deve-se a potência e
a capacidade de reconfigurá-la, de revolucioná-la em função da posição que
ocupa no interior dessa forma de sociedade. Cabe aos marxistas desenvolve-la
e organizá-la no sentido da consecução da tarefa cuja capacidade já possuem.
Mas como veremos nos dois próximos capítulos, reservados a O Capital, a
intervenção organizada e consciente nesse processo é decisiva e fundamental. Se
o capitalismo contém, dentro de si, a possibilidade e a potência que permite sua
transformação em outra forma de organização social: o socialismo; ele também
contém inúmeros aspectos que possibilitam ao proletariado se iludir com as
possibilidades oferecidas pelo próprio capitalismo.
O modo de produção capitalista é o sistema em que tudo aparece sob uma
dupla face. Qual face iremos desenvolver? A possibilidade de gestão e manutenção
do sistema ou aquela que conduz a sua transformação revolucionária? É por esse
motivo que foi necessário desenvolver um trabalho tão árduo e difícil como O
Capital. A primeira vista, os reformistas parecem apontar para uma saída melhor
do que aquelas de correntes diretamente capitalista: liberais, conservadoras etc.
Afinal, falam da necessidade de acabar com o desemprego, melhorar as condições
de vida, eliminar a miséria e a dominação entre as nações, falam em promover
formas mais democráticas e participativas. No entanto, o fazem alimentando a
4
(MARX, 2011a, p. 107)
5
(MARX, 2011a, p. 107)
20 Capítulo 2. A impossibilidade da sociedade capitalista ser reformada
ilusão de que tais finalidades podem ser alcançadas ajustando o sistema que
produz de modo crônico e necessário esses mesmos problemas. Dão golpes e
socos na ponta da faca.
revolução europeia que Marx esperava. Por que Marx quer concluir um estudo
de economia no momento em que se aproxima uma revolução? A resposta está
em outra carta enviada a seu amigo Joseph Weydemeyer quando anuncia o
primeiro plano para O Capital, onde diz o seguinte: nesse escrito “se destroça o
socialismo proudhoniano em seus fundamentos, atualmente em moda na França,
que pretende deixar subsistir a produção privada, mas organizar a troca de
produtos privados. Quer a mercadoria, mas não o dinheiro. O comunismo deve
desfazer-se antes de tudo desse irmão falso”6 .
A luta de Marx contra os reformistas, portanto, foi a luta contra os irmãos
falsos do comunismo. Os irmãos falsos do comunismo são, em certo sentido,
os principais inimigos a serem combatidos. Ao prometerem justiça social, de-
senvolvimento, o fim da miséria oferecem fórmulas mais eficazes para iludir a
classe trabalhara quanto a possibilidade de manutenção da sociedade capitalista.
Independente de suas intenções, não apresentam um programa revolucionário
incompleto ou pela metade, mas são os obstáculos principais da revolução. É
necessário um programa que tenha por objetivo destruir o capitalismo em suas
bases. Se não for assim, estaremos, como Dom Quixote, a lutar contra o vento.
6
(MARX; ENGELS, 1972, p. 108). Carta a Weydemeyer de 01/02/1859.
Capítulo 3
Capital é sangue
2
(MARX, 2011b, p. 25)
25
mercadoria capaz de comprar todas as outras, mas que não pode ser comprada
por mercadoria alguma. As mercadorias ordinárias são consumidas e desaparecem
para sempre. Necessitam ser produzidas novamente. Já o dinheiro circula de
mão em mão sem desaparecer jamais. Aparece, assim, como um valor eterno e
universal. O dinheiro aparece, ainda, como o único elemento ativo do processo de
troca de mercadorias, pois ele pode ser diretamente trocado por toda e qualquer
mercadoria e, cada uma delas, expressam seu valor graças ao dinheiro. Por isso,
o dinheiro é, também, poder. Diz Marx “o poder social, assim como seu vínculo
com a sociedade, [o indivíduo] traz consigo no bolso”3 . Sem dinheiro, estamos
excluídos de todas as relações sociais. Estamos condenados à morte.
Por isso Marx diz que o dinheiro se manifesta como a “mercadoria enquanto
tal”, “a mercadoria universal”, “a riqueza encarnada”, “a mercadoria onipresente,
não determinada pelo lugar”, “senhor e deus no mundo das mercadorias”, “o
tesouro que nem as traças nem a ferrugem devoram. Todas as mercadorias
são somente dinheiro perecível; o dinheiro é a mercadoria imperecível”. O
dinheiro aparece, ainda, como “a existência celeste das mercadorias, enquanto as
mercadorias representam sua existência mundana”.4 Parece que as mercadorias
têm valor por causa do dinheiro. Esses poderes mágicos com que as mercadorias
se revestem a partir de sua correlação permanente com a mercadoria-dinheiro,
Marx denomina fetiche da mercadoria.
Não sem razão, na sociedade capitalista, tudo se mede pelo dinheiro. Uma
pessoa é considerada bem sucedida se ganhou muito dinheiro. Não importa sua
índole, seus feitos e conquistas. Um pesquisador que descobriu importantes leis
da natureza ou da sociedade, um dirigente sindical que organizou importantes
greves e mobilizações, todos são fracassados se não ganharam dinheiro. As
pessoas ficam satisfeitas quando a poupança se eleva e tristes quando têm
que gastá-las. Tudo está a serviço da acumulação de dinheiro. Em um episódio
curioso, a mãe de Marx lhe escreve que, além de ter dedicado toda sua vida a
escrever O Capital, deveria ter se dedicado a ganhar o capital.
O tema do fetiche, portanto, não se refere a questões psicológicas relacionadas
a desejos humanos irresistíveis pelas mercadorias. É exatamente o contrário. O
fetiche se caracteriza por sufocar o interesse natural pelas mercadorias enquanto
coisas úteis, direcionando-o ao interesse pela mercadoria enquanto algo abstrato,
algo puramente quantitativo, enquanto dinheiro. Submete o que é qualitativo ao
quantitativo. O que é concreto ao abstrato. O que é particular ao universal. Suga,
como um vampiro, o que é vivo nos homens, o que é útil nas coisas, convertendo
3
(MARX, 2011a, p. 105)
4
(MARX, 2011a, p. 165-74)
3.1. O feitiço da mercadoria 29
mundo inteiro das demais mercadorias que comparece diante dela. Se o fogão é
precificado como 1.000 reais é porque o carro popular o é por 40.000 reais e a
barra de chocolate é precificada por 10 reais e assim infinitamente. Na medida
que a técnica para realizar uma dada mercadoria se altera e se generaliza em
toda sociedade, por exemplo, uma revolução tecnológica no setor automobilístico,
o que acontece? Essa melhoria no processo técnico de produção significa que
o setor ficou mais produtivo e o trabalho mais eficiente, isso irá se refletir em
custos menores e em um preço menor. A mercadoria individual se tornará mais
barata, pois é realizada agora com menos trabalho. Se não houve transformações
tecnológicas nos demais setores, o automóvel se tornará mais barato em relação
a essas demais mercadorias.
No entanto, a expressão de valor, o valor de troca, o preço torna pouco
transparente todo esse processo. Nem sempre que a expressão de valor da
mercadoria se altera, significa que os valores das mercadorias se alteraram. Pois,
como vimos, o dinheiro expressa externamente o valor. Assim, se todos os preços
da sociedade, incluindo os salários, dobram, não temos nenhuma alteração de
valor. Se o salário do trabalhador passou de 2.000 reais para 4.000 reais, mas o
fogão foi de 1.000 reais para 2.000 mil, o carro de 40.000 para 80.000 mil reais,
a barra de chocolate de 10 reais para 20 reais, o mesmo acontecendo com todas
demais mercadorias, o salário, na verdade, compra a mesma coisa que antes.
Alterou-se apenas a expressão de valor das mercadorias, seu preço, seu valor de
troca, em uma palavra, sua forma de valor. Os valores que cada uma dessas
mercadorias possui, no entanto, permanecem os mesmos, pois as mercadorias se
trocam na mesma proporção e o salário do trabalhador é capaz de comprar a
mesma coisa. O que se alterou, nesse caso, foi a quantidade ou a velocidade de
circulação do dinheiro. Uma quantidade maior da coisa dinheiro é utilizada para
expressar a mesma quantidade dos valores-mercadorias. Fica evidente, então, que
apesar de parecer ser o valor por excelência, o dinheiro apenas expressa o valor
interno as demais mercadorias.
Não é possível, portanto, transformar a sociedade imprimindo dinheiro, como
querem os adeptos da MMT (Teoria monetária moderna). A crítica que Marx
realiza mostra que o fundamento do dinheiro é a circulação de mercadorias.
Quando vemos a sociedade por essa ótica, que considera as mercadorias e o
dinheiro e sua conexão, a análise remete a produção de mercadorias e a classe
trabalhadora. Quando abstraímos as mercadorias e consideramos apenas sua
expressão de valor, a forma-dinheiro, vemos o capitalista que adianta o capital
ou, então, fórmulas fantasiosas que atribuem ao Estado – o emissor do dinheiro
– poderes mágicos.
Seguindo esse caminho indicado por Marx, que não toma apenas a aparência
3.1. O feitiço da mercadoria 31
do preço, mas explica o processo que produz essa aparência, tudo vira de pernas
para o ar. Vemos, em primeiro lugar, que todos dependem de todos. Que não
existem indivíduos isolados. Vemos que ser livre não é fazer o que lhe dar na
telha. Ser livre é ter consciência de todo esse processo de produção e distribuição
da riqueza e, assim, ser parte ativa dele.
Acontece que na sociedade capitalista isso é impossível. Todo trabalho contido
nas mercadorias, todo valor, toda produção é regulada e distribuída por um
mercado que funciona automaticamente e distribui a riqueza produzida por
tentativa e erro. O mercado irá dizer ao capitalista que deve reduzir ou elevar
a produção, quando a demanda se eleva ou se reduz. Mas ele apenas sabe
disso após levar as mercadorias ao mercado. Essa comparação universal entre
as mercadorias no mercado, por mediação do dinheiro, se vincula e é regulada
pelo trabalho contido em cada mercadoria de forma completamente mediada
e indireta. Se há demasiada oferta em relação a demanda, as empresas menos
produtivas serão eliminadas. Quando a situação é oposta. Muita demanda e uma
oferta insuficiente de mercadorias, novos investimentos tendem a migrar para
esse setor. Em todos os casos, o valor está a regular a relação. Mas só percebemos
esse vínculo, entre o trabalho e o valor, estudando o processo em seu conjunto.
Na aparência vemos apenas preços, compra e venda, oferta e demanda e a
relação social que está por trás de tudo isso fica apagada de nossa percepção
ordinária.
É assim que os trabalhadores que são, na verdade, os que produzem todo
valor e, assim, responsáveis pelo poder de compra do dinheiro, estão separados
de todo o processo de distribuição dos valores. Dentro de cada empresa, quem
manda é um patrão: o proprietário do dinheiro. No conjunto da sociedade,
quem regula é o mercado, por tentativa e erro, isto é, fechando e abrindo
novas empresas, demitindo e recontratando trabalhadores conforme é necessário
reduzir ou ampliar a produção. Em todo esse vai e vem, capitalistas crescem e
outros são engolidos. Os trabalhadores são sempre depenados. É por isso que
estão alienados. A alienação não tem nada que ver com ideias falsas e a rede
Globo. A alienação é o modo mesmo de funcionamento da sociedade capitalista.
Relacionamos diretamente com coisas – mercadorias e dinheiro – e, apenas
indiretamente, com outras pessoas. Não vemos as relações sociais que se ocultam
por trás de tudo.
A mercadoria-dinheiro confere ao seu possuidor o poder e o acesso direto
ao universo inteiro das mercadorias ao mesmo tempo que oculta e vela o seu real
conteúdo. O valor que o dinheiro expressa pertence inteira e integralmente as
demais mercadorias. Só que o poder sobre esse universo inteiro de mercadorias
reside no dinheiro. Temos uma cisão responsável pela ilusão que o mercado
32 Capítulo 3. Capital é sangue
5
(MARX, 2013, p. 222)
6
(MARX, 2013, p. 392)
36 Capítulo 3. Capital é sangue
7
(MARX, 2013, p. 392)
8
(MARX, 2013, p. 293)
3.2. Mais-valia: exploração, embrutecimento e miséria 37
9
(MARX, 2013, p. 494-495)
3.2. Mais-valia: exploração, embrutecimento e miséria 39
o acesso aos produtos do trabalho. Mas esse seria o caso em uma sociedade
guiada pelas necessidades de seus integrantes. O capitalismo move suas engre-
nagens a serviço da acumulação de capital. Os homens tornam-se escravos das
engrenagens ou das relações sociais que é produto de sua própria atividade.
Justamente ao contrário da possibilidade que acabamos de anunciar, quando
não é suficiente fazer crescer a mais-valia com novas tecnologias, os capitalistas
apostam na mais-valia absoluta. Ou seja, fazem crescer a mais-valia elevando
a jornada de trabalho, adotando o banco de horas, uma jornada de trabalho
intermitente dentre várias outras medidas possíveis.
É por esse motivo que, na sociedade capitalista, todos os avanços tecnológicos,
todas as conquistas da ciência e do gênero humano, se transformam em armas
para fazer crescer a exploração dos trabalhadores. Cada passo a frente significa
dois passos para trás. Cada avanço da capacidade humana de dominar os recursos
naturais, ao mesmo tempo, “suprime toda tranquilidade, solidez e segurança
na condição de vida do trabalhador” e lhe imprime “um ritual ininterrupto de
sacrifício da classe trabalhadora, o desperdício mais exorbitante de forças de
trabalho e as devastações da anarquia social”10 . Temos, assim, ao lado de tanto
desenvolvimento técnico, um oceano de desempregados ou subempregados e, ao
lado desses, um volume ainda maior de trabalhadores empregados que padecem
na depressão, nas lesões por esforço repetitivo dentre muitas outras doenças e
problemas associados ao trabalho.
Este quadro “transforma numa questão de vida ou morte a substituição dessa
realidade monstruosa [...]; a substituição do indivíduo parcial, mero portador
de uma função social de detalhe, pelo indivíduo plenamente desenvolvido”11 . A
substituição dessa forma de organização social e a tomada do poder pela classe
trabalhadora, por esse motivo, não é uma questão de escolha, mas de necessidade.
Ao assumir o controle e posse dos meios de produção, os produtores não abolem
o trabalho excedente. No entanto, o trabalho excedente deixa de atuar na forma
da mais-valia. É colocado, agora, a serviço dos interesses e necessidades dos
próprios produtores, que definem conscientemente as prioridades e destinos
dessa massa acumulada de trabalho social.
Observem que, no nível que expomos até aqui, ainda não está dada a possibi-
lidade de destruição do capitalismo. Vemos a necessidade de sua transformação
devido aos efeitos destrutivos que produz, ao desperdício de capacidades hu-
manas. Tais capacidades ou são impedidas de serem colocadas em prática ou,
quando o são, é de forma completamente parcial e unilateral. No entanto, como
10
(MARX, 2013, p. 557)
11
(MARX, 2013, p. 558)
40 Capítulo 3. Capital é sangue
levar essa necessidade a diante com as formas enganosas produzidas por esse
modo de produção em que sua natureza última não é tornada clara nem para os
capitalistas e pela sua pretensa ciência? Como destruir uma forma de sociedade
que se reproduz as costas de seus agentes como se fosse um mecanismo auto-
mático e independente? Começaremos a desenvolver essa possibilidade de modo
mais nítido no próximo item.
12
(MARX, 2013, p. 250)
13
(MARX, 2013, p. 250)
42 Capítulo 3. Capital é sangue
14
(MARX, 2013, p. 309)
3.3. As ilusões da democracia burguesa 43
15
(MARX, 2011a, p. 381)
44 Capítulo 3. Capital é sangue
16
(MARX, 2013, p. 659)
17
(MARX, 2013, p. 659)
3.4. O segredo oculto da sociedade capitalista 45
Numa época muito distante, havia, por um lado, uma elite trabalhadora, inteligente
e sobretudo, econômica, e, por outro, uma cambada de vadios a desperdiçar tudo
o que tinham e ainda mais. [...] Os primeiros acumularam riquezas e os últimos
acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado
original que surgiu a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo
trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma. Surgiu
também a riqueza dos poucos, que cresce cada vez mais, embora há muito tenham
deixado de trabalhar.19
trabalhador perdeu a posse dos meios para produzir, da terra e dos meios de
sobrevivência?
Marx explica, e mostra, que “na história real o papel principal foi desem-
penhado pela conquista, a repressão, o assassínio para roubar, em suma, a
violência”20 . Os produtores, quer sejam artesãos ou proprietários de terra, jamais
abririam mão dos meios que os permitiam sobreviver pelo seu consentimento
e vontade. Foi pela força que todos os meios de produção foram retirados dos
antigos produtores, transformando-os em trabalhadores assalariados.
Na Inglaterra, onde o capitalismo surgiu em sua forma clássica, os camponeses
foram expulsos de suas terras de diversas formas. Leis foram criadas de modo
a permitir que certos camponeses fossem expulsos das terras em que suas
famílias viviam há séculos. Camponeses ligados de modo vitalício a terra foram
transformados em arrendatários temporários. Foi proibido o acesso as terras
comuns em que se coletava lenha e outros produtos. A reforma protestante
expropriou as terras da Igreja, jogando no proletariado os moradores dos mosteiros.
De tal forma, que a grande parte da população se transformou em massas
destinadas ao mercado de trabalho ou a mendicância e o roubo.
Estamos tão acostumados com o trabalho assalariado que acreditamos que
sempre foi assim. Mas no início do capitalismo, as pessoas não aceitavam
trabalhar por um salário. Não fazia sentido ter que vender e revender todos
os dias sua força de trabalho sem ter qualquer garantia, qualquer segurança.
Trabalhar para enriquecer outros e, em troca, receber uma pequena fatia não era
tolerado. Não fazia sentido. A maior parte das pessoas seguiram o caminho do
roubo. Foram “impelidos para o estreito caminho que conduz ao mercado de
trabalho por meio da forca, do pelourinho, do chicote – onde, portanto, aparecem
os governos, por exemplo, de Henrique VII, VIII”21 .
Dirá Marx, “a história nada sabe das ilusões sentimentais segundo as quais
o capitalista e o trabalhador estabelecem uma associação” voluntária22 . Em
primeiro lugar, a “população rural teve sua terra violentamente expropriada,
sendo dela expulsa e entregue à vagabundagem”. Em seguida, foi “obrigada a
se submeter, por meio de leis grotescas e terroristas, e por força de açoites,
ferros em brasa e torturas, a uma disciplina necessária ao sistema de trabalho
assalariado”23 . Somente depois de décadas de trabalho assalariado surgiu uma
classe trabalhadora acostumada com esse sistema, que por educação, tradição e
hábito reconhece essa forma de trabalho como sendo normal.
20
(MARX, 2013, p. 786)
21
(MARX, 2011a, p. 417)
22
(MARX, 2011a, p. 417)
23
(MARX, 2013, p. 808)
48 Capítulo 3. Capital é sangue
24
(MARX, 2013, p. 830)
25
(MARX, 2013, p. 821)
3.4. O segredo oculto da sociedade capitalista 49
28
(MARX, 2013, p. 832)