Meditação Da Palavra de Deus Na Lectio Divina

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MEDITAÇÃO DA PALAVRA DE DEUS

NA «LECTIO DIVINA» *

ARMINDO DOS SANTOS VAZ

Na Carta aos Bispos da Igreja católica acerca de alguns aspectos


da meditação cristã, a ‘Congregação para a doutrina da fé’ afirma em
1989: “O interesse que algumas formas de meditação conexas com certas
religiões orientais e com os seus modos peculiares de oração têm suscitado
nestes anos, também entre os cristãos, constitui um sinal notável desta
necessidade de recolhimento espiritual e de um profundo contacto com
o mistério divino. Perante este fenómeno, adverte-se, todavia..., a
necessidade de dispor de critérios seguros, de carácter doutrinal e pastoral,
que permitam educar para a oração nas suas variadas manifestações,
permanecendo sempre na luz da verdade revelada em Jesus, segundo a
genuína tradição da Igreja”.1 Ora, itinerário de uma experiência orante
comprovada por séculos e pessoas é o proposto pela conhecida lectio
divina, “leitura divina”.2

*
Esta reflexão resulta da comunicação feita pelo autor no dia 5.12.1998, no âmbito do ciclo de
conferências de espiritualidade e oração, organizado pela “Ajuda à Igreja que sofre” no ano
pastoral de 1998-99 em Lisboa. Ela publicará as conferências. Agradecemos a gentileza da
licença para a publicarmos desde já.
1
No nº 1 (Secretariado Geral do Episcopado; Rei dos livros; Lisboa 1990) 5.
2
O vocabulário que a caracteriza nas várias fases é referido em latim, porque os que originari-
amente a praticaram e dela falaram escreviam em latim.

Meditação da Palavra de Deus na «Lectio Divina», Revista de Espiritualidade. N.º 28. vol. 7. 1999, página 1
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1. O itinerário da lectio divina


1.1. Definição e contornos
A lectio divina, praticada pela teologia monástica da alta Idade
Média, em continuação com a tradição patrística, é um método de leitura
acurada, individual ou comunitária, duma passagem da Sagrada Escritura
acolhida como Palavra de Deus, à escuta e sob a moção do Espírito em
várias fases entrecruzadas e sobrepostas. As mais conhecidas, nem sempre
as mesmas em todos os escritores medievais, eram: lectio, meditatio,
oratio, contemplatio, discretio, collatio, operatio. A lectio divina consistia
em escutar com o coração recolhido e saborear com a consciência de ser
amado a mensagem de Deus cristalizada na Bíblia; unindo vida e doutrina,
concentrava-se sobretudo no ‘mistério’ salvífico de Jesus Cristo. É sentar-se,
como Maria de Betânia, aos pés de Jesus, à escuta das suas palavras. É uma
leitura desinteressada, gratuita, da Palavra de Deus: como costumamos
dizer que lemos um autor, a lectio divina consiste em ler a Deus por estar
com Ele e trazê-lo para a vida.
Lectio divina, experiência da fascinante peregrinação ao encontro
com Deus por meio da sua Palavra na Bíblia e outrossim experiência da
gozosa verdade de Deus no seu Espírito, não se deveria entender simples-
mente como “leitura espiritual” (a que quer alimentar o espírito por meio
duma leitura religiosa qualquer). É mais do que isso: o adjectivo divina
sugere que se trata duma leitura dialógica da Palavra de Deus, mediante o
Espírito divino. Quando a leitura divina não é mera leitura espiritual nem
está sujeita a preocupações intelectuais mas atenta ao Deus-mistério que
se revela, brota irresistivelmente a oração; quando a Palavra de Deus
bíblica invade o espaço interior do leitor, a meditação alarga-o dando-lhe
maior ressonância e Deus torna-se presente na sua Palavra. Então o
espírito meditativo toma outra Palavra de Deus para responder-lhe em
forma de oração. Ou seja, a lectio, tornada meditatio, desagua na oratio 3 e

3
A oratio, embora implicando obviamente a oração, em latim continha em primeira acepção a
conotação da declamação de um “discurso, sermão”; de facto, no processo da lectio divina, o
da oratio era o momento de exprimir o ‘concebido’ (o ‘conceito’), que tinha vindo a crescer
até ao ponto de não poder permanecer mais tempo escondido no silêncio, traduzindo-se com
a pronúncia de um discurso diante de Deus e dirigido a Ele. As formas que assumia a oratio
eram variadas, desde a proclamação da verdade descoberta no texto lido, graças à purificação
do olhar e como fruto da lectio, até à oração em complementares expressões: petição,
explosão do louvor e da acção de graças, etc.

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na contemplatio, sem que às vezes o meditativo tenha disso acto reflexo.4


O mastigar e saborear da Palavra de Deus na meditatio tendia espontanea-
mente para a resposta cordial a essa Palavra salvífica na oratio. A lectio
que procura Deus na sua Palavra ouve-o e encontra-o na meditatio, respon-
de-lhe na oratio, saboreia-o na contemplatio e ama-o na actio, conforme a
sentença da 1Jo 3,18 e 4,21: “não amemos de palavra nem de boca mas
com obras e segundo a verdade”.
Já estamos a referir as várias etapas da lectio; elas estão
imbricadas e fundidas umas nas outras, distinguindo-se só para
aprofundamento do conjunto. Lectio, meditatio e oratio estavam tão
intimamente relacionadas entre si que amiúde eram convertíveis e
sinónimas.5 Guigo II, prior da Grande Cartuxa, em 1145 acrescenta a
esta tríade a contemplatio como quarto escalão da sua “escada da vida
claustral”; ao comentar a imagem da escada em quatro degraus e ao
atribuir-lhe as respectivas funções, diz: “procurai lendo e encontrareis
meditando...; a lectio traz o sólido manjar à boca, a meditatio mastiga e
rumina, a oratio toma-lhe o gosto, a contemplatio é o próprio sabor que
alegra e restaura”.6 Um cisterciense anónimo do séc. XII testemunhou o
seu itinerário da lectio divina: “lendo oro, orando contemplo”.7 Hugo
de S. Victor († 1141), o mais ilustre dos representantes da abadia de
Saint-Victor e o que, pela sua obra e influência exercida, melhor
incarna o espírito desta, diz que a vida dos justos se eleva como por
meio de cinco degraus até à perfeição futura: “a leitura ou o estudo, a
meditação, a oração, a acção; o quinto que daí emana é a contemplação, na
qual, como se fosse fruto dos quatro primeiros, se tem o antegozo, já

4
A contemplação, tal como era significada na língua grega utilizada pelos Padres com o termo
theoria (“visão em profundidade” do texto lido), evoluiu semanticamente para o sentido que veio
a assumir no vocábulo latino contemplatio, enquanto virtude pela qual o coração e a vontade se
elevam para Deus. Tal evolução já se encontra, por exemplo, em Gregório Magno no séc. VI/VII:
In librum primum Regum: PL 79, coluna 216C. O cisterciense ARNOLFO de BOHÉRIES
concede que o monge “...não precisa de ir sempre para o oratório mas poderá contemplar e orar na
própria leitura”: Speculum monachorum: PL 184, col. 1175A-C. Cf. I. GARGANO, “La
metodologia esegetica dei Padri”, Metodologia dell’Antico Testamento (a cura di H. SIMIAN-
YOFRE) (Studi biblici; EDB; Bologna 1994) 197-222. “Con-templar” etimologicamente já
significa posicionar-se e olhar do ponto do templo que pode ser visto de qualquer sítio e donde se
pode ver todo ele conjuntamente.
5
Para além do monacato antigo e medieval, também os protestantes praticaram a meditatio das
Escrituras. O próprio Lutero a aconselhava. Para Pierre Jurien, pastor em Paris no séc. XVII, a
devoção também implicava três exercícios principais: lectio, meditatio, oratio.
6
GUIGO II, Scala claustralium, sive tractatus de modo orandi: PL 184, col. 476C; cf. 476B.
7
“Legendo oro, orando contemplor”: citado por G.M. COLOMBÁS, m.b., La lectura de Dios.
Aproximación a la lectio divina (Monte Casino; Zamora 19863) 56.

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desde esta vida, daquilo que será o salário da boa acção... A leitura dá a
inteligência, a meditação fornece o juízo, a oração pede, a acção
procura, a contemplação encontra... O que percorre este caminho procura
a vida... A contemplação encontra o que a oração procura... Os que
sobem estes degraus encontram a perfeição”.8
O hábito desta metodologia de nutrimento espiritual resultou na
celebrada e gostosa espiritualidade monástica, que, portanto, nasceu
do encontro com a Palavra de Deus.

1.2. Seu lugar e papel na história da Igreja


A designação lectio divina encontra-se na patrística e especialmente
na literatura monástica medieval. Mas é preciso afinar as atribuições. A
Idade Média monástica em geral tem de ser entendida a partir dos
precedentes, isto é, da tradição patrística, cuja tarefa principal foi a
dedicação a transmitir e explicar a Bíblia. Esta explicação sofreu
evolução e compaginou vários métodos de leitura. No séc. XII coexistiam
dois, em parte coincidentes, mas substancialmente distintos: a lectio
scholastica e a lectio divina. O pressuposto comum a todos os monásticos
que praticavam a exegese bíblica era que – visto a Bíblia ser um livro –
tem de se aprender e saber lê-lo, com uma boa introdução. Mas o procedi-
mento na leitura monástica da Bíblia era diferente do praticado nos
meios não monásticos, isto é, na schola, nas “escolas” episcopais
(donde o nome de Escolástica). Originariamente, para os Padres da
Igreja, lectio divina e sacra pagina eram expressões equivalentes. Para
S. Jerónimo como para S. Bento, a lectio divina era o próprio texto
lido, era uma passagem, uma ‘lição’ tirada da Sagrada Escritura. No
decorrer da Idade Média tal expressão será reservada cada vez mais
para designar a acção de ler, ‘a leitura da Escritura santa’. Na Escola
falava-se preferentemente de pagina em si, do texto tomado objectiva-
mente, enquanto matéria de estudo: estudava-se a Escritura por si
própria, lectio scholastica. No claustro monacal a atenção era concen-
trada no leitor e no bem que ele retirava da Sagrada Escritura. Em
ambos os casos tratava-se de uma actividade fortemente religiosa (sa-
cra, divina). Mas o acento era posto em aspectos diferentes de cada uma.
A lectio scholastica era a leitura técnica da Escritura, implicada pela

8
HUGUES DE SAINT-VICTOR, L’art de lire. Didascalion (Sagesses chrétiennes; Cerf; Paris
1991) 204-205.

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preocupação de compreender o texto enquanto formado por palavras e


frases segundo regras de gramática; e tendia para a quaestio e para a
disputatio, levantando questões ao texto e travando um debate sobre
elas entre docentes e alunos. A lectio monástica tendia para a meditatio
e para a oratio. A Escolástica estava orientada para a ciência ou para o
saber teológico. A leitura monástica estava direccionada para a sapiência,
a sabedoria, o gosto (de sapere = gostar, saborear): visava a união do ser
humano com Deus.9 Ambas integravam um entusiasmo místico, em que
uma não tirava nada ao esforço por incarnar na vida a lição espiritual do
texto e a outra não tirava ao ideal de compreensão das coisas um toque de
racionalidade e de distinção ordenadora. E a prática medieval não as
separava nitidamente uma da outra: cada uma penetrava na esfera da
outra; o monje no seu mosteiro passava da cela e da igreja à biblioteca
e ao scriptorium e inversamente. Desta relação estreita resultava uma
espécie de reacção química entre o leitor e o texto sagrado: o texto
ficava esclarecido com a luz da exegese e o leitor ficava iluminado com
a luz que o texto reflectia nele.
Um dos pontos mais notórios desta evolução poderia fixar-se em
Gregório Magno. Na sua época (foi papa de 590 a 604) havia passado a
grande eflorescência doutrinal, não, porém, a eflorescência mística.
Após haver sustentado e nutrido a primeira, a “ruminação” da Escritura
continuava a auxiliar a segunda. Sendo Gregório monge, a sua exegese
era monástica. Se quiséssemos definir o seu talante, poderíamos dizer
que era um teólogo místico, comentarista da Bíblia num momento em
que a lectio divina era a totalidade da teologia. Procurava na Escritura o
sentido anagógico, deduzindo da sua leitura ideais de vida que projecta-
vam para o transcendente: “não mereceremos a obtenção da graça divina
se não procurarmos absolutamente deter-nos na claridade espiritual pela
meditação, pela leitura quotidiana e pela oração”.10 Para ele, a Bíblia em
geral deveria funcionar como espelho da actividade humana ou do homem
interior.11 Como pastor consciencioso que era, procurava a ‘alegoria

9
Cf. J. LECLERCQ (beneditino de Claraval), L’amour des lettres et le désir de Dieu. Initiation
aux auteurs monastiques du Moyen Age (Cerf; Paris 1956) 70-86; IDEM, La spiritualità del
Medioevo, vol. 4/A (Dehoniane; Bologna 1992); F. VANDENBRUCKS, La spiritualità
medievale, vol. 4/B (Dehoniane; Bologna 1994).
10
In librum primum Regum: PL 79, col. 55C.
11
Cf. Moralium libri sive Expositio in librum B. Job, lib. 2, c. 1: PL 75, col. 553D. ARNOLFO
de BOHÉRIES retoma a mesma ideia para o leitor da Sagrada Escritura: “na frequente leitura
e assídua meditação da página sagrada contemple como num espelho a face do homem
interior” (Speculum monachorum: PL 184, col. 1175A-C).

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espiritual’, que lhe permitiu estender “as asas da contemplação”.12 Não lhe
bastava o “conhecimento” (notitia); queria o voo (volatus). Por outras
palavras, procurava primeiro que a Escritura fundamentasse a sua fé
nos mistérios do Verbo incarnado e em seguida lhe permitisse elevar-se
acima de si próprio, onde a divindade do Verbo pode ser contemplada.
O que a Escritura lhe comunicava não é redutível a conhecimentos
distintos: depunha sementes no coração, alimentava a “vida
contemplativa”, na liberdade do espírito.13
Gregório Magno teve numerosos imitadores, que se foram abeberar
nas fontes da Escritura a fim de encontrar o “gosto da contemplação
interior”. Das ideias centrais que o mestre total da fé deixara como herança
à Igreja da Idade Média, sobressai o primado da Palavra de Deus
compendiada na lectio divina e na dedicação à meditação da mesma.14 A
leitura da Bíblia era para eles a “festa da contemplação pelo espírito”. Era
sempre uma leitura interiorizada e sapiencial de “unção”, “gosto”,
“sabor”, “delícias”.15 A Bíblia emprestava a linguagem para elevações
espirituais, brindava a moldura para a exposição de certos temas, sem a
pretensão de explorar a significação literal do texto.16 Por exemplo, os
comentadores ao Cântico dos cânticos não se propunham ensinar, mas
expandir o seu fervor sobre o amor de Deus e ocupar os seus momentos
de lazer em assuntos edificantes.17 A experiência que traduziam estava
unida a uma autêntica meditação da Bíblia. Só se pode admirar tão
grande familiaridade com o texto sagrado. O jogo espontâneo das

12
Cf. Homiliarum in Ezechielem Prophetam libri duo, lib. 1, hom. 3, nº 4: PL 76, col. 807C (cf.
nn. 1 e 2: col. 806A-C).
13
Cf. W.F. POLLARD, “Richard Rolle and the «Eye of the Heart»”, Mysticism and Spirituality
in Medieval England (eds. W.F. POLLARD – R. BOENIG) (D.S. Brewer; Rochester, NY
1997) 85-105.
14
Cf. D. de PABLO MAROTO, Espiritualidad de la alta Edad Media (siglos VI-XII) (Editorial
de Espiritualidad; Madrid 1998) 105-127.
15
Cf., e.g., GREGÓRIO MAGNO, Homiliarum in Ezechielem Prophetam libri duo, lib. 1, hom.
3, nº 19: PL 76, col. 814C; Moralium libri sive Expositio in librum B. Job, lib. 16, c. 19: PL
75, col. 1132D. Essa linguagem percorreu toda a tradição monástica. Ainda se aprecia em S.
TERESA DE ÁVILA: veja-se, por exemplo, Meditações sobre os Cantares: em Obras
completas (Carmelo; Aveiro 1978) 577-635.
16
S. BERNARDO confessa com franqueza na Excusatio após as homilias Super ‘Missus est’:
“Não tive tanto a intenção de expor o evangelho como de aproveitar a ocasião para, a partir
do evangelho, falar daquilo que me deleitava expor”: PL 183, col. 86D.
17
Ao comentar as palavras dos Cantares 1,2 (“beije-me com os beijos da sua boca...”) sem
entender o significado do texto (“recomendo-vos muito quando lerdes este livro... que aquilo
que boamente não puderdes entender, não... gasteis o pensamento em afiná-lo: não são para
mulheres, nem mesmo para homens muitas coisas”), S. TERESA DE ÁVILA serve-se dele
como de plataforma para descolar para altos voos do espírito na contemplação: em Obras
completas (Carmelo; Aveiro 1978) 577-635.

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associações mentais trazia constantemente ao espírito dos monges


imagens e palavras bíblicas. A sua imaginação fervorosa e a sua memória
comparativa eram inteiramente plasmadas e nutridas pela Bíblia. Se os
métodos hermenêuticos seguidos pelos Padres estão hoje parcialmente
ultrapassados, eles serviram para resguardar e mimar o tesouro da
Escritura e, em compensação, a sua fé tinha com a Escritura uma
conaturalidade e congenialidade raramente conseguida depois. Só isto
já lhes reserva lugar de honra na arca do perdurável e apreciável.
E ao longo da Idade Média continuou a ser comum o fervor
monástico pela leitura da Palavra de Deus. Basta lançar um relance pelas
regras monacais, com base nas quais se formavam os candidatos a monges.
Surpreende-nos que em grande medida sejam uma colecção de textos
bíblicos do Antigo e mais ainda do Novo Testamento, como se a Bíblia
(nas palavras, ideias, factos e figuras históricas) fosse a verdadeira
regra do monge. Ainda no séc. XIII, a Regra primitiva dos Irmãos da
Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo (Carmelitas) exorta
encarecidamente a “meditar dia e noite na lei do Senhor”, a fazer “habitar
abundantemente a Palavra de Deus na sua boca e nos seus corações e a que
fizessem todas as suas acções à luz da Palavra do Senhor”.18 Esta exegese
Espiritual praticada pela lectio divina contribuiu de forma nobre para a
edificação da Igreja num largo arco da sua história e manteve viva a chama
do Espírito que tinha inspirado tal Escritura.19
Para os místicos do séc. XII a Escritura ainda não era o ‘lugar
teológico’ onde ia o douto buscar as suas premissas, mas o ‘jardim
fechado’ onde a alma encontra o Esposo, a fim de ouvir o som da sua
voz e respirar o odor dos seus perfumes. E os escolásticos S. Alberto
Magno, S. Tomás de Aquino (1225-1274) e o seu contemporâneo S.
Boaventura (1221-1279) ainda conseguiram a síntese harmónica e nobre
da leitura monástica e da leitura escolástica da Bíblia. Sucesivamente,
porém, a leitura monástica viria a ser oficialmente vencida pela teologia
Escolástica, que, na recta intenção de aprofundar o conhecimento do
mistério de Deus, separou ciência teológica e experiência cristã, derivou
para um ‘tratado sobre Deus uno’ sem Jesus Cristo e para uma soma de

18
“Die ac nocte in lege Domini meditantes [cf. Ps 1,2; Ios 1,8] et in orationibus vigilantes”.
“Gladius... spiritus, quod est verbum Dei [cf. Eph 6,17], abundanter habitet [cf. Col 3,10] in ore
et in cordibus vestris [cf. Rom 10,8], et quaecumque vobis agenda sunt in verbo Domini fiant [cf.
Col 3,17; 1Cor 10,31]”: Regula ‘primitiva’ Ordinis Beatissimae Virginis Mariae de Monte
Carmelo, em Constitutiones Fratrum Discalceatorum Ordinis B. Mariae V. de Monte Carmelo
(Curia Generalis; Roma 1986) 18.20.
19
Cf. H. de LUBAC, A Escritura na tradição (Bíblica 8; Paulinas; S. Paulo 1970) 48-60.

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verdades e escolheu o caminho do conceito racional para pensar e


traduzir em linguagem humana a revelação de Deus, tendo adoptado
como epistemologia e métodos teológicos os da filosofia aristotélica,
baseada na ‘razão’ pura como faculdade isolada.20 Mas a lectio divina
não buscava verdades metafísicas; procurava as pegadas da Verdade
viva, pessoal e incarnada. Ela inscreve a “lei nova” do evangelho no
coração do seu leitor.

2. A meditatio dentro do processo da lectio divina

Momento essencial da lectio divina era a meditatio, tema específico


em que nos concentraremos, conforme ao que nos foi solicitado na série de
comunicações dos vários conferencistas. Logo desde os inícios do
monacato, praticaram-na S. Antão e os eremitas, o anacoreta S. Pacómio
de Tebaida no séc. IV e os seus discípulos. Ainda no séc. IV Gregório de
Nissa comentou a Vida de Moisés quase exclusivamente do ponto de vista
da alma.21 Os mestres dos monges insistiram incansavelmente no seu
exercício. A meditatio era tão importante que amiúde identificava-se
com a própria lectio, já que esta nos antigos e medievais não costumava
ser silenciosa: ao ler pronunciavam em voz alta ou interiormente o que
liam, e, ao repetir certos textos para retê-los na memória, praticavam
de facto a meditatio.
Das várias fases da lectio divina, a meditação era o momento da
reflexão teológica e espiritual, que evitava o subjectivismo, desvios
deploráveis e conclusões fantasiosas na compreensão e nas lições a
tirar da sagrada Página. Neste momento o leitor colocava-se sob o juízo
do texto, cujo sentido ele pretendia até ali possuir; podia recorrer a
algum comentário exegético do texto bíblico e a considerações dos
Padres da Igreja, para captar a significação originária que ele queria
comunicar: só essa significação é Palavra de Deus inspirada pelo seu

20
Tensão análoga registou-se no séc. XII de Bernardo de Claraval e de Guilherme de Saint-
Thierry entre o monge filósofo aplicado à ciência divina e as escolas de filosofia profana:
aquele, perscrutando as Escrituras, procura iluminar a sua fé com a inteligência, viver a
mensagem bíblica interiorizando-a, possuir uma experiência do divino no mistério; estas
buscavam o saber pelo saber e o verdadeiro conhecimento das Escrituras fugia diante daquele
que as quisesse compreender desde fora, sem comprometer a sua existência. Cf. M.-M.
DAVY, Initiation médiévale. La philosophie au douzième siècle (Bibliothèque de
l’Hermétisme; Albin Michel; Paris 1980) 135-158.209-216.224-248.
21
La Vie de Moïse: Sources chrétiennes 1 (Cerf; Paris 1968).

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Espírito. Embora a lectio divina ultrapasse o estudo puramente científico,


teológico ou pastoral da Bíblia e ambas sejam duas tarefas em si
distintas, são complementares e sustêm-se mutuamente, como dois
caminhos da mesma procura de Deus. Os mestres da lectio divina até
advertem que o leitor da Sagrada Escritura não pode prescindir do seu
estudo, mesmo sem chegar à exegese consumada; a descoberta do seu
‘sentido literal’ ou mensagem pretendida pelo texto é um bom ponto de
partida para a sua meditação. Mas esta não pode contentar-se com a
interpretação do texto feita por comentadores da Bíblia: restaria fria e
impessoal. O meditativo empenha-se pessoal e afincadamente num
trabalho de procura de sentido para si no texto.
A meditação cristã derrama uma unção ‘espiritual’ na mente para
procurar sob a guia do Espírito a inteligência interior do texto, a
mensagem oculta debaixo da materialidade das palavras lidas. Não é fim
em si mesma: no dinamismo da exploração das riquezas teológicas da
Sagrada Escritura, ela é mais um degrau na subida para Deus. Segundo
Hugo de S. Victor “a meditação arranca da leitura... Ela compraz-se a
percorrer um espaço aberto, no qual crava com toda a liberdade um olhar
agudo para contemplar a verdade”. Para ele a realização do ensinamento
“reside na meditação, porque, tendo aprendido a gostar dela familiarmente
e tendo decidido consagrar-se-lhe com frequência, ela torna a vida
agradável... Com efeito, é sobretudo a meditação que isola a alma da
algazarra das actividades terrestres e que permite nesta vida o antegozo da
doçura do repouso eterno”.22 Colocada imediatamente antes da oração, a
meditação supõe a convicção de que é melhor para o encontro com Deus
pôr-se à escuta da sua voz antes de falar-lhe. Isto permite-nos entender a
meditação, não como uma fase preparatória, mas como parte integrante da
vida de oração, um dos momentos do diálogo com Deus.23
A meditação é assim o meio pelo qual o Espírito de Deus, a partir
da Escritura que Ele inspirou, fornece ao orante o que dizer a Deus na
oração, pois a melhor oração parte de Deus pelo seu Espírito para
acabar em Deus: “o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois
nós não sabemos o que pedir para orar como convém; mas o próprio
Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis e Aquele que perscruta

22
HUGUES DE SAINT-VICTOR, L’art de lire. Didascalion (Sagesses chrétiennes; Cerf; Paris
1991) 142; cf. pp. 140-143.
23
S. AGOSTINHO di-lo de forma lapidar: “quando lês é Deus que te fala; quando oras é a Deus que
tu falas: quando legis, Deus tibi loquitur, quando oras, Deo loqueris” (Enarrationes in Ps. 85,7:
PL 37, col. 1086). Obviamente, ele supõe uma leitura meditada.

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os corações conhece a intenção do Espírito, porque este intercede pelos


consagrados como Deus quer” (Rm 8,26-27). A Palavra de Deus desce
d’Ele até ao centro da pessoa meditativa e fá-la subir de novo até Deus
pela oração e contemplação. A escala da ascensão em diversos graus
até Deus exprime o movimento completo dos anelos do coração do
orante; na escuta meditada da Palavra e para que ela se faça vida, pão e
luz, verdade e liberdade, ela desce dos olhos e da cabeça ao coração, lá
onde a pessoa encontra a sua unidade; lá gera raízes para dar o seu fruto
de vida e produzir efeito: efectiva a comunhão com Deus, deixando
perceber a sua vontade salvífica em relação aos homens e conduzindo à
prática só do bem.
A meditação é, pois, uma maneira superior de saborear a leitura
da Bíblia, tirando partido dela para a vida e levando-a a entranhar-se
nos hábitos quotidianos; saborear e gostar é um jeito de compreender;
quando isso não acontece, a meditatio e toda a lectio divina estão mal
equacionadas. Objecto especial de meditação eram os textos bíblicos
em que se fundam as virtudes especiais da vida monástica: caridade,
comunhão com Deus, pureza de coração, sobriedade, oração contínua...
Não foram os monges da Idade Média nem os cristãos que
inventaram a meditatio. Era praticada nos mundos judaico e gentio.
Nalgumas escolas filosóficas aprendiam-se de cor sentenças tocantes e
praticava-se o exercício de repeti-las em voz alta. Os judeus praticavam a
meditação da Bíblia hebraica. E a de toda a Bíblia tornou-se prática
tradicional da Igreja desde as origens. O hábito monástico de meditar
inspira-se já na própria Bíblia: “O Senhor disse a Josué: «não se afaste
dos teus lábios o livro desta Lei; medita-o dia e noite; assim procurarás
agir em tudo conforme o que nele está escrito e terás felicidade e êxito
nas tuas empresas” (Js 1,8). E do livro do Dt são as palavras com que
começa a oração chamada Šemá, que continua a ser favorita na piedade
quotidiana judaica: “Escuta, Israel: o Senhor é o nosso Deus, só o
Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda
a tua alma e com todas as tuas forças. Permaneçam no teu coração estas
palavras que eu te dito hoje. Repeti-las-ás aos teus filhos, falar-lhes-ás
delas, quer estando em casa, quer indo de viagem, quer deitado, quer
levantado; atá-las-ás ao teu pulso como um sinal e serão como uma
insígnia entre os teus olhos; escrevê-las-ás nas ombreiras da tua casa e nas
tuas portas” (6,4-9). O mesmo Dt indica que o rei “lerá [esta Lei] todos os
dias da sua vida para aprender a temer o Senhor seu Deus, guardando todas
as palavras desta Lei e estes preceitos, para os praticar. Assim o seu

Meditação da Palavra de Deus na «Lectio Divina», Revista de Espiritualidade. N.º 28. vol. 7. 1999, página 10
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MEDITAÇÃO DA PALAVRA DE DEUS NA «LECTIO DIVINA» 303

coração não se afastará destes mandamentos nem à direita nem à


esquerda” (17,19-20). O Sl 1,2 felicita o meditativo: “ditoso o homem
que... se deleita na Lei do Senhor e sussurra a sua Lei dia e noite”. Esta
recitação meditativa em voz baixa é tradição corrente nos Salmos.24
A meditação da lectio divina, que bebe e se nutre da Sagrada
Escritura, tem profunda congenialidade com esta, que é, ela própria, fruto
maduro da meditação da Palavra de Deus por muitas pessoas colocadas
perante as mais variadas circunstâncias ao longo dos dezanove séculos de
história bíblica, consignada parcialmente por escrito; é o resultado duma
atitude meditativa face às coisas, às pessoas e aos factos, vendo-os em
Deus e vendo Deus neles. A Bíblia nunca pretendeu ser fonte de
conhecimentos históricos ou científicos mas só privilegiado ponto de
encontro com Deus, especialmente o Novo Testamento, que nos põe em
contacto com a suprema epifania de Deus em Jesus Cristo. A revelação
bíblica é uma interpretação religiosa da história humana, é teologia da
história e não uma colectânea de pensamentos ou feixes de lindas ideias. O
característico do texto sagrado é ser fundador de vida humana e ter
capacidade de a iluminar. Enquanto tal e pela sua carga profundamente
antropológica, a Bíblia está congenitamente vocacionada no seu dinamis-
mo para ser meditada e habituar o meditativo a polarizar os dissabores e
sucessos da vida à volta do mistério de Deus e do ponto de vista dele; quer
arrebatar o ser humano às suas limitações, ambiguidades e contradições,
para o encaminhar segundo as suas potencialidades numa vida segundo o
Espírito. Neste aspecto a tradição monástica da lectio divina foi uma
espécie de prolongamento da própria tradição bíblica.
A consequente atitude da comunidade que se quer deixar instruir
é a da ‘obediência’ (= ‘ouvir atenta e respeitosamente, dar ouvidos, dar
crédito’) à descoberta do amor de Deus, comprometido na sua Palavra para
com o ser humano. Essencial função da meditação é, pois, captar a vontade
de Deus a respeito do leitor e introduzi-lo na sua órbita. Como a Bíblia é
expressão literária de pedaços estruturantes da vida humana no que ela tem
de mais profundo, a meditação também faz da Bíblia o espelho que desvela
ao homem o que este não ousaria confessar a si próprio e a mais valia do
seu ser, especialmente a vocação ou atracção para a comunhão com o
divino: assim reconduz o crente a uma ‘norma’ superna e autorizada, a
Palavra do próprio Deus, para que ela ‘enforme’ a liberdade humana. Se

24
Cf. Sl 63,7; 77,13; 143,5, um mussitar que se contrapõe à oração clamorosa em momentos de
prova: cf. Sl 3,5; 5,3; etc.

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304 ARMINDO DOS SANTOS VAZ

autêntica e feita na pobreza, na pureza e abertura de coração ao sumamente


Outro, convence-nos de que os nossos sentidos e sentimentos não
constituem o todo do nosso ser nem o mais perfeito. A razão vital
iluminada pela fé enriquece-os e enobrece-os mais.
A meditação da Sagrada Escritura não leva a sair de si numa
espécie de êxtase, pela sensação duma ascensão espiritual, por um
envolvimento da alma ou por um arrebatamento sentimental, mas leva
a mergulhar na história humana, em que Deus se revela à fé, hoje como no
tempo bíblico. Meditar com uma página da Bíblia é tentar compreender-se
em Deus e à luz de Deus, compreendendo a relação com Deus em
termos de amizade. O texto funciona como caixa de ressonância ao
movimento de ímpeto para Deus: a ponderação da Palavra conduzida
pelo Espírito vai ressoando por dentro fazendo que o meditativo se
transcenda a si próprio.25 O que pratica a meditação antecipa-se aos
acontecimentos, ‘vê antes’ e não cai na cegueira daqueles que só ‘vêem
depois’. Ela é um mergulho na profundidade do texto à procura de
sentido transcendente para os acontecimentos humanos, a exemplo do
povo bíblico, à procura do “Deus por nós” e para nós (Rm 8,31). É
essencialmente um movimento da fé, que pela mediação do texto põe Deus
nas pessoas, nos factos e nas coisas, gerando o amor à vida, aos outros e a
Deus. É a tentativa de “permanecer na Palavra” de Jesus (Jo 8,31) e de
fazer que ela resida em nós com toda a sua riqueza (Col 3,16); é uma
forma nobre de “fortalecer em vós o homem interior” e para que “o
Ungido habite nos vossos corações pela fé” (Ef 3,16-17). Pela penetração
do Espírito, a meditação predispõe a guardar no coração e pôr na vida a
palavra de Deus (Dt 11,18; Sl 118,11). Quem quiser penetrar no âmago
da vida de Jesus terá de meditar a sua Palavra na Bíblia: ela é privilegiado
ponto de encontro para o seu conhecimento, primeiro eco, irrepetível,
da plenitude da revelação na pessoa de Jesus Cristo.
A meditação de textos bíblicos não é um fim absoluto: é uma
mediação para a contemplação de Deus e a comunhão com Ele.26 Para
optimizá-la, convenhamos na conveniência de adquirir a habituação de
ler a Bíblia recorrendo a todos os meios de interpretação disponíveis;
para colher a mensagem do texto para a vida, não se transcure a própria
cultura e os conhecimentos literários e históricos. Felizmente, porém,

25
Cf. L. ROCHA E MELO, Se tu soubesses o dom de Deus. Ensaio sobre a oração (Oração e
vida; Ajuda à Igreja que sofre – A. O.; Braga 1999) 63-71.115-131.
26
Cf. Pe. MARIE-EUGÈNE, Contemplation et apostolat (Notre Dame de Vie 1962) 25-115.

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MEDITAÇÃO DA PALAVRA DE DEUS NA «LECTIO DIVINA» 305

não se requer ser um intelectual ou exegeta profissional para meditar a


Bíblia. Até é possível que a leitura a vários níveis suscite ideias e
formas de amar a Deus que ultrapassem o sentido originário dos textos,
por vezes difíceis de interpretar para o comum dos crentes. O que é
proibitivo é projectar as próprias ideias no texto bíblico e pretender
que ele diga o que realmente não quis dizer, pois nesse caso a leitura
correria o risco de tornar-se subjectivista e forçada, pietista e
moralizante, perdida a dar voltas ao redor do leitor, com este a olhar
para si próprio. Em rigor, antes de perguntar o que o texto me diz a mim
aqui e agora, deveria perguntar o que ele quer dizer em si: o que medita
a Sagrada Escritura, “para descobrir o que Deus quis comunicar-nos nela,
deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram
significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das palavras deles”.27
Em vez de subrepticiamente submeter o texto ao meu gosto e de o fazer
entrar à força na minha perspectiva impondo-lhe as minhas ideias, devo
pôr-me à escuta do que ele quis dizer, para descobrir a vontade de Deus
para mim hoje.28 Convém cercar a Palavra de Deus do clima, da atenção e
de todos os elementos que lhe proporcionem o germinar com pujança no
próprio terreno do meditativo, para produzir frutos para ele.
Suposto isto, as leituras plurais que extraem diferentes conteúdos
do mesmo texto estão legitimadas pelo fenómeno hermenêutico da
plurivocidade do texto bíblico. Porque este é linguagem figurativa e
imagética e não linguagem essencialista e conceptual, especulativa e
racional, ele tem uma abertura a diversas meditações na sua recepção
por parte da comunidade, que, num autêntico círculo hermenêutico,
se compreende e se interpreta a si própria reinterpretando o texto.
Naturalmente essas ideias não são Palavra de Deus bíblica, inspirada,
em sentido técnico e estrito. Mas podem considerar-se palavra de Deus
ao leitor, germinada a propósito da lectio divina dum texto bíblico e a
partir dele. Nessa altura, evitaremos dizer que a leitura operada pela
meditação seja a ‘boa’ ou a ‘má’ leitura do texto bíblico: são
‘variações’ surgidas e sugeridas pela meditação da Palavra bíblica,
que efectivamente produzem frutos de vida nova, que é, afinal, o fito
do texto bíblico.

27
CONCÍLIO VATICANO II, Dei Verbum, 12, e COMISSÃO BÍBLICA PONTIFÍCIA, A
interpretação da Bíblia na Igreja, I, A, 2-4.
28
È a reter a lição dada por um rabino a um judeu estudante do Talmud. Este disse-lhe: “Rabbi,
já não sou tão ignorante: já entrei muitas vezes dentro do Talmud”. O rabino retorquiu: “Mas
quantas vezes deixaste entrar o Talmud dentro de ti?”

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306 ARMINDO DOS SANTOS VAZ

O texto bíblico, cortado dos seus laços originais e tradicionais com


uma comunidade viva, ficaria reduzido a um cadáver, entregue à autópsia
realizada por leitores desencarnados. A comunidade, ao lê-lo, relê-o e
reinventa-o, apropria-se dele para o reescrever em clave nova, para
iluminar as suas situações e circunstâncias da vida actual, sempre novas.
A leitura dum texto bíblico unicamente com o método da crítica literária e
histórica, embora essencial para descobrir a Palavra de Deus, seria como
pronunciar o elogio fúnebre de um vivo. A sua meditação tem em conta o
seu dinamismo interior e a sua capacidade de suscitar reacções
multifacetadas nas diversas comunidades de leitores, que fazem a
recepção do texto na comunidade. Assim, a trajectória do texto pela
meditação prolonga-se desde quem o pensou para o escrever até quem o
pensa para dele viver melhor. O próprio carácter anónimo de muitos livros
bíblicos poderia entender-se como se a obra estivesse incompleta até ser
‘recordada’ (= ‘recolocada no coração’, o mesmo que dizer ‘sabida de
cor’), remodelada e ‘realizada’ (= tornada real) pela comunidade que a
medita e a explora em seu favor, dando-lhe o próprio nome. Meditar a
Palavra de Deus significa voltar a trazê-la à mente e fazê-la entrar no
coração; aí, o Espírito, vivificando-a, fá-la ressoar de novo, actual e nova
para mim, hoje. O texto bíblico existe graças a uma comunidade (a de
Israel e a apostólica), para uso da comunidade e em vista de a ‘enformar’
ou lhe dar forma.29 E dá-lha mediante a sua meditação. A meditação da
Bíblia não só renova a nossa visão de Deus como também a compreensão
do mundo, um mundo real e não de sonhos, um mundo em gestação, em
marcha para um futuro mais humano.

3. A meditação da Palavra “no Espírito” que a inspirou

Como a Bíblia se condensou por escrito sob a influência do Espírito


de Deus e foi Ele que fez com que fosse Palavra de Deus, os Padres e os
monges leram-na “no Espírito”, na clave e no tom em que foi escrita, isto é,
‘Espiritualmente’. “Não podemos compreender as Escrituras sem a ajuda
do Espírito Santo”, disse S. Jerónimo. E Orígenes: “Quem lê as Escrituras
deve estar cheio do Espírito Santo, pois só assim as pode compreender”.
“Precisamos da revelação do Espírito para descobrir o verdadeiro

29
Cf. C.M. MARTINI, La parola di Dio alle origini della Chiesa (Università Gregoriana;
Roma 1980) 3-65.

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MEDITAÇÃO DA PALAVRA DE DEUS NA «LECTIO DIVINA» 307

significado das Escrituras e tirar proveito delas”, escreveu S. João


Crisóstomo. Com estas afirmações os Padres da Igreja não fazem mais do
que aplicar à lectio divina e especialmente à meditatio das Escrituras
(porque de ‘compreender’ se trata) as palavras com que Jesus prometeu
aos discípulos o seu Espírito, que lhes “ensinaria todas as coisas e lhes
recordaria tudo o que lhes tinha dito” (Jo 14,26).
Como, para a fé, a Palavra se fez carne pela acção do Espírito sobre
Maria, que fez “santo” e “Filho de Deus” o nascido dela, assim os feitos da
História da Salvação se transformaram em palavra literária consagrada
pela acção do Espírito (é a realidade da inspiração bíblica). Sendo a Bíblia
um livro inspirado pelo Espírito de Deus, a sua meditação faz-se à luz do
mesmo Espírito que a inspirou, que a qualifica intrinsecamente e
perfaz a sua essência. A Palavra nascida pela acção do Espírito volta a
soar como acção do Espírito no leitor meditabundo. Só é perfeitamente
lida quando também se vê a acção do Espírito nela e se descobre o
mistério de Deus que ela reflecte, porque o Espírito de Deus não só está
na sua origem como causa eficiente, mas também está no seu fim como
objecto de comunicação ao leitor: não está só a comunicar; está a
comunicar-se.
A captação dessa acção “Espiritual” e da revelação de Deus
contida na Bíblia só pode acontecer no âmbito do mesmo Espírito com
que foi escrita, pois uma palavra divina só faz sentido para o homem
quando acolhida por um ouvido à escuta do divino. Uma palavra escrita
no Espírito só no clima do Espírito pode ser plenamente entendida.30
Como não se pode conceber o ser cristão que não seja animado pelo
Espírito do “Cristo”, também a meditação cristã da Palavra inspirada
não pode acontecer verdadeiramente senão no ponto de conjunção que
se instaura entre o leitor cristão e o Espírito de Jesus ressuscitado. Se
todo o texto se deve ler no seu contexto, do contexto do texto bíblico
também faz parte o Espírito de Deus que o inspirou. Se “a letra mata e
o Espírito vivifica” (2Cor 3,6; Jo 6,63), isso vale sobretudo para a letra
bíblica. A letra suscitada pelo Espírito ao autor bíblico tem de ressurgir
agora por acção do mesmo Espírito no espírito do crente a meditá-la.
Se a Bíblia foi escrita para provocar a fé e aponta para a prática vital e
para o coração (e não só para a inteligência), há que escutar o que o
Espírito quer dizer através da letra bíblica.

30
L. ALONSO SCHÖKEL, Comentarios a la Constitución “Dei Verbum” sobre la divina
revelación (BAC 284; Madrid 1969) 485.

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308 ARMINDO DOS SANTOS VAZ

Pensando bem, a meditação da Palavra na docilidade ao Espírito


coloca o meditativo na linha daquela “congenialidade” com o texto, que
também a hermenêutica contemporânea propõe como premissa necessária
para a compreensão autêntica da Palavra de Deus. O ideal da meditação
bíblica é a congenialidade entre o Espírito que gerou o texto original e o
Espírito que age na sua meditação. O asceta Cassiano sublinha energica-
mente que se não nos entregamos de alma e corpo à Palavra de Deus, esta
nunca se entregará plenamente a nós; só o espiritual pode saborear o
sentido espiritual.31 A corrente “pneumática”, que suscitou os livros sagra-
dos, alcança e atravessa o meditativo num processo de sintonização e de
compenetração crescente, em vista duma compreensão cada vez mais
profunda do texto bíblico. A dimensão objectiva da inspiração bíblica
conjuga-se com a dimensão subjectiva da sua meditação “no Espírito”.32 O
Espírito que está envolvido na origem da Escritura também está envolvido
na operação de relacionar o texto à vida humana presente. Assim como a
Escritura nasceu da colaboração vital entre a actividade humana e o
Espírito inspirador, assim na meditação ela volta a ‘falar’ por meio da
colaboração da assistência do Espírito com a meditação do leitor com fé.33
A meditação da Palavra de Deus é um meio pelo qual o Espírito de Jesus
Cristo – o próprio Jesus enquanto glorioso – conforma o leitor a Si próprio.

4. Forma prática de meditar

O espiritual não visa propriamente uma ética; usa uma técnica,


arte de bem viver e con-viver, com os outros e com Deus, que o põe
acima da ética. Também a meditatio usava técnicas. Em primeiro lugar,
acontecia instintivamente no silêncio exterior e interior, favorável a um
exercício com a mente e o coração sossegados, com serenidade e paz de
espírito.34 Na abóbada do pórtico Norte da catedral de Chartres, séc. XIII,
em que se representam as fases da lectio divina, a segunda estação é

31
Cf. G. CASSIANO, Institutions Cénobitiques, lib. 5, c. 34: Sources chrétiennes 109 (Cerf; Paris
1965) 244-245; Conlatio 14,10 e 11: Sources chrétiennes 54 (Cerf; Paris 1958) 195-198.
32
Cf. V. MANUCCI, Bibbia come parola di Dio (Strumenti 17; Queriniana; Brescia 1983) 326-327.
33
Cf. R. GÖGLER, citado por L. ALONSO SCHÖKEL, Il dinamismo della tradizione (Paideia
Ed.; Brescia 1970) 163.
34
Sobre métodos psico-físicos e corpóreos, posições e atitudes do corpo para a meditação,
particularmente valorizados no Oriente cristão, cf. a referida Carta aos Bispos..., nn. 26-28,
pp. 29-33 da ed. citada.

Meditação da Palavra de Deus na «Lectio Divina», Revista de Espiritualidade. N.º 28. vol. 7. 1999, página 16
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MEDITAÇÃO DA PALAVRA DE DEUS NA «LECTIO DIVINA» 309

ilustrada por uma mulher que delicada e respeitosamente abre a Bíblia


e só na terceira aparece propriamente a ler. Isso significa que a
meditatio implicava uma atitude: abrir o livro de Deus, desejado e
estimado, e mussitar, murmurar uma passagem.
Outra técnica da meditação era a memorização de textos ou expres-
sões, que se podia desdobrar em escrever alguma expressão ou intuição
resultante da meditação: era uma forma de a sublinhar e gravar mais
profundamente ou de proporcionar ulterior reflexão.35 Isso também se
conseguia com a repetição da Palavra de Deus, para fazer dela o alimento
da alma na ‘mesa da Palavra’. Se ‘meditação’ hoje é imediatamente
conotada com uma reflexão sobre verdades da fé, a palavra só adquiriu
este sentido ao cabo duma longa evolução semântica, conforme foi predo-
minando o elemento racional em matéria de oração e contemplação. Na
antiguidade cristã e sobretudo na Idade Média monástica, a palavra
latina meditatio revestia especialmente dois sentidos: primeiro, aprender
um texto de cor – frequentemente dos evangelhos e do Saltério – à base
de repeti-lo em voz alta (era a única maneira de os analfabetos lerem a
Bíblia, mas mesmo os que sabiam ler decoravam textos para ruminá-los
quando não liam); segundo, recitar de cor ou lendo um texto. Lia-se
pronunciando com os lábios, pelo menos em voz baixa. Mais do que
uma memória visual de palavras escritas, resultava uma memória auditiva
das palavras pronunciadas e ouvidas para dentro. Na organização da vida
monástica por S. Pacómio, um dos primeiros trabalhos do candidato era
aprender a ler, para que pudesse alimentar-se da Escritura, recitar os
Salmos, dedicar-se à lectio divina; e onde não existia tal obrigação,
exigia-se ao menos aprender textos bíblicos de cor. Mesmo durante o
trabalho, ao deambular pelo mosteiro, o monge continuava
obsessionado pela Palavra lida, que o perseguia como uma recordação

35
O monacato tornou-se o transmissor principal – e, desde o séc. VIII , único – da escritura e do
livro. A arte da escritura era considerada como exercício do espírito, dos olhos e das mãos,
favorecendo assim a concentração. Os monges copistas, escribas, passavam a maior parte da
sua existência a escrever; escrever, compor ou copiar um livro era um trabalho nobre e uma
forma de difundir a Palavra de Deus: cf. U. ECO, Il nome della rosa (Bompiani; Milano
19844) 289.442-446 e passim. Segundo Pedro o Venerável, o solitário substituía a charrua
com a pluma, tema antigo que será conhecido na Idade Média através de Isidoro de Sevilha
(Etymologia VI, 14,71): nos sulcos traçados no pergaminho ele lança o grão da palavra
divina. Dessa forma o monge, sem abrir a boca e permanecendo no remanso do claustro,
percorria terras e mares graças à escritura (PL 189, c. 98): cf. E.R. CURTIUS, Literatura
europea y Edad Media latina (Lengua y estudios literarios 1; Fondo de cultura económica;
México – Buenos Aires 1955) 437-448; e M.-M. DAVY, Initiation à la symbolique romane
(Champs 19; Flammarion; Paris 1977) 30-32.

Meditação da Palavra de Deus na «Lectio Divina», Revista de Espiritualidade. N.º 28. vol. 7. 1999, página 17
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310 ARMINDO DOS SANTOS VAZ

afectiva do Deus captado na fé.36 A meditatio consistia em aplicar-se


com atenção a este exercício de memória total. Assim o aconselhava
Hugo de S. Victor: “como o talento procura e encontra distinguindo, a
memória guarda ajuntando; convém, pois, que ajuntemos para confiar
à memória o que distinguimos no momento em que o aprendemos...; não te
alegres demasiado de ter lido muito, mas antes de ter compreendido muito
e, ainda mais, de ter podido reter antes que de ter compreendido”.37
Era, portanto, inseparável da lectio e era ela que inscrevia o texto
sagrado no corpo e no espírito humano. Esta mastigação repetida da
Palavra de Deus era às vezes evocada por meio do tema da nutrição
espiritual, com vocabulário pedido de empréstimo ao comer, à digestão e à
forma peculiar de digestão dos ruminantes.38 Depois de exortar à
memorização, o mesmo Hugo de S. Victor pede ao leitor, com a imagem
da ruminação: “é igualmente necessário percorrer frequentemente [o
que se leu] e devolvê-lo do ventre da memória ao palato, para não ser
apagado por uma longa interrupção”.39 Assim a leitura e a meditação
eram por vezes designadas com a palavra ruminatio.40 Por exemplo,
tecendo o elogio dum monge que orava incessantemente, Pedro o
Venerável, de Cluny, escreveu: “a sua boca ruminava sem descanso as
palavras sagradas”.41 Meditar era aferrar-se à frase que se recitava,

36
Cf. D. de PABLO MAROTO, Historia de la espiritualidad cristiana (Editorial de
Espiritualidad; Madrid 1990) 79-85.
37
HUGUES DE SAINT-VICTOR, L’art de lire. Didascalion (Sagesses chrétiennes; Cerf; Paris
1991) 143-144.
38
Cf. M. TASINATO, L’œil du silence. Éloge de la lecture (Verdier; Lagrasse 1989) 75-78; e E. von
SEVERUS – A. SAVIGNAC, Méditation (de l’Écriture aux auteurs médiévaux), DS, X (1980)
col. 908. F. RUPPERT, “Meditatio-Ruminatio. Une méthode traditionelle de méditation”, CC 39
(1977) 81-93. Um apotegma atribuído a S. Antão adverte que o monge não deve ser como o
cavalo que come muito, mas como o camelo que vai ruminando a comida até que lhe penetra os
ossos e a carne: Les sentences des Pères du Désert, troisième recueil (Solesmes 1976) 148-149.
Também CASSIANO ensinava a “aprender de cor as divinas Escrituras e a ruminá-las incessante-
mente na nossa mente”: Conlatio 14,10: Sources chrétiennes 54 (Cerf; Paris 1958) 196. Cf.
também G. de SAINT-THIERRY, Ep. ad fratres de Monte Dei, 122 (cf. 123-124): Sources
Chrétiennes 223, p. 241. Síntese em G.M. COLOMBÁS, m.b., La lectura de Dios. Aproximación
a la lectio divina (Monte Casino; Zamora 19863) 95-100.
39
Ibidem, p. 144.
40
Em S. BERNARDO, ambos os termos, meditatio e ruminatio, convergiam e apontavam para uma
prática de assimilação da Escritura que contém a revelação divina: Sermões sobre o Cântico dos
Cânticos, em Obras completas, V: (ed. bilingue dos MONJES CISTERCIENSES DE ESPAÑA)
(BAC 491; Madrid 1987): cf. Sermo 43,2,3 e Sermo 16,2; Sermo 53,9 (pp. 234-235.582-
585.684-687): “ruminemos como animais puros do Bom Pastor o que no sermão de hoje
engolimos com grande avidez” (pp. 686-687). Cf. UNE MONIALE CISTERCIENNE, La parole
ruminée (Cerf; Paris 1997).
41
“Os sine requie sacra verba ruminans”: De miraculis, lib. 1, c. 20: PL 189, col. 887A.

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MEDITAÇÃO DA PALAVRA DE DEUS NA «LECTIO DIVINA» 311

ponderando as palavras em vista de atingir a plenitude do seu sentido.


Ora, toda esta actividade era oração: a lectio divina era uma leitura
meditada e rezada, oração meditativa, como continuou a ser, por exemplo,
na escola carmelitana de contemplação, que fala habitualmente de “oração
mental”. Este género de meditação está grávido de consequências para a
psicologia religiosa. Compromete a pessoa inteira, implantando na pessoa
a Sagrada Escritura, que então pode produzir frutos.
Mais ainda, a meditação implica todo o ser da pessoa nesse acto,
inclusivamente o corpo, que também nos exprime. Se podemos meditar
em qualquer posição, a posição clássica é ‘sentados’, em descontracção e
respeito para com o objecto de meditação e sem fatigar. O outro gesto
clássico da meditação é o peripatético, o andar tranquilo e regular,
gratuito e restaurador, que até exprime a caminhada de fé que sempre é
uma meditação e aproximação de Deus; o passeio relaxado permite a
liberdade de parar no sentido duma palavra ou de um motivo, à guisa da
melodia gregoriana, que, para acentuar uma ideia favorita, poisa numa
palavra ornando-a de modulações.
Mas a assimilação do texto bíblico implica mais partes do corpo:
o afecto, a emoção e a imaginação (contanto que não se confundam
com as sugestões do Espírito Santo), o nosso sentido poético e de
associação de ideias, a nossa sensibilidade literária..., tudo entra em
jogo no processo de apropriação da mensagem espiritual e toma parte
na profundidade do mistério.
O contacto com a Palavra de Deus não pode ser passageiro,
esporádico, meteórico. Tendo-se-lhe tomado o gosto, torna-se assídua
e necessária. Segundo Plínio, o Antigo, o pintor Apeles tinha feito o
propósito de não passar um só dia sem traçar um risco: “nulla dies sine
linea”. Presta-se a tornar-se divisa para o cristão impregnar a sua vida do
Espírito da Escritura: nem um só dia sem ler uma linha! Os escritores
espirituais são intransigentes nesse ponto: não deixar passar “nenhum dia
sem meditação”, que é “tempo que a Deus pertence; por isso mesmo,
representaria um autêntico furto não lha consagrar”.42 Teresa de Ávila, ao

42
TEODÓSIO DA SAGRADA FAMÍLIA, Santa Teresa de Ávila, mestra de oração (Carmelo;
Aveiro 1970) 29; cf. pp. 33-39. Vejam-se em síntese as concepções dos autores da escola
carmelitana sobre a meditação, em GABRIEL DE S. MARIA MADALENA, Breve catecismo
da vida de oração (Porto 1966) 10-14.18.21-29; M. HERRÁIZ GARCÍA, A união com Deus.
Graça e projecto (Espiritualidade 5; Carmelo; Oeiras 1991) 106-122; IDEM, Oração, histó-
ria de amizade (Espiritualidade 1; Carmelo; Oeiras 1983) passim, especialmente 211-238;
D. de PABLO MAROTO, Dinámica de la oración. Acercamiento del hombre moderno a S.
Teresa de Jesús (Espiritualidad; Madrid 1973) 199-265.

Meditação da Palavra de Deus na «Lectio Divina», Revista de Espiritualidade. N.º 28. vol. 7. 1999, página 19
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312 ARMINDO DOS SANTOS VAZ

recomendar veementemente a oração mental ou meditação atenta a Deus,


propõe: “Que este bocadinho de tempo que nos determinamos a dar-lhe
[ao esposo divino]..., lho dêmos com o pensamento livre e desocupado de
outras coisas e com toda a determinação de nunca mais lho tornarmos a
tirar, por mais trabalhos que daí nos advenham, nem por contradições, nem
securas; que eu já tenha esse tempo por coisa não minha”.43
A meditação não só terá de ser uma leitura em recolhimento,
pausada e vagarosa, cheia de reticências, sem se degradar na languidez,
lassidão e tibieza, mas deverá ter compassos de espera ou silêncio,
porventura suscitados pela própria Palavra bíblica recebida, para permitir
que ela faça eco no vazio do coração meditativo ao mistério de Deus,
para repousar em Deus e tomar consciência da sua presença inefável.
Meditar é estabelecer relações, consiste em referenciar mediante a
“analogia da fé”: é pôr um aspecto do mistério de Jesus Cristo em
paralelo e harmonia com outro aspecto do mesmo mistério, é ligar a
Palavra de Deus à vida das pessoas e ver a vida à luz de Deus; é guardar a
Palavra na memória e no coração, onde se encontram, se cruzam e se unem
a inteligência, os afectos, as aspirações, a vontade de realizar e traduzir em
obra feita, para se fecundarem umas às outras na acção de iluminarem
um evento com outro; é olhar para trás, para os acontecimentos da
história salvífica paradigmática bíblica, em vista de, ao espelho deles,
assumir o presente como revelador e salvífico. Enquanto recordação, a
meditação assemelha-se à liturgia, memorial e actualização dos factos
salvíficos fundadores:44 o leitor, depois de a sua inteligência ter captado e
compreendido a mensagem do texto, acolhe no íntimo as palavras que
“são espírito e são vida”, deixando-as ser para si “palavras de vida
definitiva” (Jo 6,63.68).
A meditação é o momento de apreciar e saborear o banquete
espiritual e o assimilar ou “ruminar”, como se dizia na Idade Média;45 a

43
Caminho de perfeição, XXIII, 2: Obras completas (Carmelo; Aveiro 1978) 488.
44
Não é por acaso que se qualificou a época carolíngia como a “civilização da liturgia”, pela
importância que o culto tinha no seio do cristianismo ao longo da Alta Idade Média: cf. A.
VAUCHEZ, A espiritualidade da Idade Média ocidental: Séc. VIII-XIII (Nova história 26;
Estampa; Lisboa 1995) 16-23.
45
Cf. Frère PIERRE-YVES, “La Méditation de l’Écriture”, Frère FRANÇOIS – Frère PIERRE-
YVES, Métitation de l’Écriture. Prière des Psaumes (Vie monastique 5; Abbaye de
Bellefontaine; Bégrolles-en-Mauges 1975) 36-54. Todo o artigo nos inspirou. Veja-se ainda
A.-M. BESNARD, “Les grandes lois de la prière”, La Vie spirituelle (Oct. 1959) 242ss;
IDEM, “Il faut répondre”, La Vie spirituelle 129 (1975) 359-360; Mgr PAULOT, “La
pratique de l’oraison”, La Vie spirituelle (Oct 1959) 287ss.

Meditação da Palavra de Deus na «Lectio Divina», Revista de Espiritualidade. N.º 28. vol. 7. 1999, página 20
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MEDITAÇÃO DA PALAVRA DE DEUS NA «LECTIO DIVINA» 313

“leitura de Deus” é uma leitura gostosa e gostada, saborosa e


saboreada; é saborear a Deus no seu Espírito que vivifica a letra e
suscita uma resposta consequente e a harmonia com o sentido da
leitura. Ver tudo com a memória à luz da Palavra é como dar voltas a
um tesouro precioso, manuseá-lo e acariciá-lo.

5. Os frutos da meditatio

Se os mais ou menos sete graus do itinerário humano da lectio


divina até Deus parecem reclamar um certo método, o importante neles
é o objectivo a alcançar; a escala de passos graduais não é uma receita
imperiosa e imutável mas uma proposta à liberdade cristã de escolher o
caminho mais eficaz e directo para chegar a Deus, que se torna presente
à nossa fé. Teresa de Ávila distinguia as almas que podem discorrer das
que não podem discorrer. Só às que podem recomenda o exercício da
meditação ou oração discursiva, mas, mesmo assim, dando-lhes liberdade
de meditar no mais proveitoso para progredir na comunhão com Deus:
“Há muitas almas que noutras meditações acham mais proveito do que
na sagrada paixão, pois há muitos caminhos, como há muitas moradas
no céu”. 46
No itinerário gradual do contemplativo para Deus, o fruto imediato
da meditatio é a oratio e a contemplatio. Mas produz muitos mais frutos.
O que consideramos fundamental, porque manancial e explicação de
ulteriores frutos vitais, é o de a frequentação da leitura meditada da
Bíblia engendrar no leitor uma mentalidade bíblica, uma espécie de segun-
da natureza que vai crescendo com a constante meditação, impregnando-o
de um instinto congénito que leva a agir de acordo com o estilo que
emerge da Bíblia.47 Uma pessoa é muito aquilo que lê. Esta forma de
educação da fé pela Bíblia consiste em o leitor se deixar compenetrar das
atitudes de fé e do espírito de personagens bíblicas, forjando assim uma
personalidade própria a partir do que ressuma delas e que deve ser
incarnada nas circunstâncias do ‘hoje’ do meditativo, conforme às
exigências deste. Não se trata de imitar mimeticamente nem de praticar
à letra o que disseram e fizeram os autores bíblicos e suas personagens

46
Livro da vida, XIII, 13: Obras completas (Carmelo; Aveiro 1978) 95.
47
Cf. CASSIANO, Conlatio 14,10: Sources chrétiennes 54 (Cerf; Paris 1958) 195-197.

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314 ARMINDO DOS SANTOS VAZ

na sua situação histórica, mas de deixar-se impregnar dos seus sentimentos


de bondade que conduzirão ao exercício das virtudes que hoje se
impõem. É o final que deixa entrever a exortação de Paulo a Timóteo:
“Tu persevera no que aprendeste e no que acreditaste, tendo presente
de quem o aprendeste 48 e que desde criança conheces as Sagradas
Letras, que podem dar-te a sabedoria que conduz à salvação mediante a fé
no Ungido Jesus; toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar,
para arguir, para corrigir e para educar na rectidão; assim o homem de
Deus torna-se competente e perfeitamente equipado para toda a espécie
de boas obras” (2Tim 3,14-17). O que medita a Bíblia encontra nela a
panóplia mais completa para vencer o mal que constantemente está à
espreita do mau uso da liberdade.
À inteligência sublime das Escrituras, que visa tornar perfeito o
leitor, acede-se por [de]graus. Nelas se encontra o repouso da luz
interior e se experimenta o sabor da revelação plena de Deus ao homem
e do homem a si próprio. “Regnum coelorum..., notitia Scripturarum
[est], quae ducit ad vitam: o reino dos céus consiste no conhecimento
das Escrituras, que conduz à vida” – dizia hiperbolicamente S.
Jerónimo no seu ardor espiritual e exorbitando do sentido originário da
expressão.49 A inteligência espiritual das Escrituras retira-lhes o véu da
letra, o véu que é a letra, para fazer voar o espírito; depende de uma
iluminação que vem do alto, pedida e recebida mais do que conquistada.
Ela tende a uma mais qualificada edificação espiritual da Igreja inteira,
especialmente do leitor.
“Meditar” um texto bíblico é tirar dele conteúdos novos. Já a
nova meditação dos textos do Antigo Testamento pela comunidade
apostólica gerou uma comunidade nova, porque, ensinada por Jesus, de
textos antigos tirava ideias novas e novas formas de existir, que originaram
o Novo Testamento. Como a meditação de “toda a Escritura divinamente
inspirada” (2Tim 3,16) deu vida e configurou a Igreja à imagem de
Jesus Cristo, assim a sua meditação no ‘hoje’ de cada leitor deveria
renovar permanentemente a Igreja. A reinterpretação das Escrituras
sagradas numa meditação nova constitui mesmo um modelo
hermenêutico e que se poderia chamar “hermenêutica existencial ou

48
Da sua mãe Eunice e da sua avó Loida, judias (cf. 2Tim 1,5 e Act 16,1): este é o mais precioso
testemunho do Novo Testamento sobre os benefícios da educação da fé no seio duma família
crente por meio da leitura da Sagrada Escritura.
49
In evangelium Matthaei, lib. 2, c. 13: PL, 26, col. 93A.

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MEDITAÇÃO DA PALAVRA DE DEUS NA «LECTIO DIVINA» 315

vital”: a meditação está em função e ao serviço da vida; fora disso


reduzir-se-ia a um magicar estéril, a um mastigar em seco ou a um
exercício intelectual. A meditatio, como toda a lectio divina, nunca é
uma evasão da minha existência concreta para um futuro utópico ou
para um passado diferente do meu presente, mas antes a iluminação do
meu ‘hoje’ com o sentido da Palavra de Deus. Nesse sentido a Bíblia
fornece à meditação pábulo abundante, já que ela é espessa como a
vida, os seus textos são pedaços de vida, por vezes a sangrar, frequen-
temente a vibrar dramaticamente de dor, sofrimento, lamentação, mas
também a explodir de alegria e júbilo em louvor e agradecimento a
Deus, sempre expressão de sentimentos humanos diante de Deus. Mesmo
que a lectio divina não se deva exercitar na ânsia de resultados imediatos,
porque é um trabalho de longo prazo que só imperceptivelmente
aumenta a intimidade com Deus, a meditação da Palavra de Deus deve
terminar numa espiritualidade que se abra à vida. Não acudo à Bíblia só
para ver o que posso tirar dela, mas para ver o que ela pode tirar de
mim. A lectio divina das Escrituras bem vivida torna-se vivificante;
torna-se uma chave para a compreensão do presente: resolve o eventual
conflito entre a letra do que é tido por normativo e as exigências da
nova situação vital; procura conciliar o uso antigo de um texto com
uma razão nova que sugere superar o que ele propunha. Assim, problemas
novos recebem nova solução, sem alteração de prescrições ou
ensinamentos veneráveis.
Embora se sirva amplamente da inteligência e da razão, a meditação
terá de interiorizar e descer à vida e comandar a acção a bem dos outros; é
fundamentalmente um exercício do ‘homem interior’. Ela tem de atingir e
pôr em jogo a vontade, que apela à mudança, questiona o meu passado e
inquieta, desvela um hábito a reformar ou uma decisão a tomar e coloca em
Deus as minhas preocupações pela subsequente oração. A “Palavra viva de
Deus” sinceramente meditada possui a capacidade de julgar, torna-se o
“bisturi de dois gumes” que realiza uma operação transformadora nos
“sentimentos e pensamentos do coração”, pondo a nu o que exorbita do
querer de Deus e da plenitude humana e obrigando o leitor a tomar
posição e a evitar o ‘meio termo’ (cf. Hebr 4,12). A meditação, como
aos Profetas de Israel, torna-nos críticos, atentos em delicadeza e em
evitar ilusões ou desvios. Quando a Palavra bíblica nos atinge na
realidade íntima do nosso ser, tem a capacidade de nos desmacarar,
obrigando-nos a reconhecermo-nos tal como somos e a fazer opções
fundamentais. O ódio dos fariseus a Jesus nasceu precisamente da sua

Meditação da Palavra de Deus na «Lectio Divina», Revista de Espiritualidade. N.º 28. vol. 7. 1999, página 23
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316 ARMINDO DOS SANTOS VAZ

recusa a deixarem-se desmascarar: não podiam suportar que toda a sua


vida, toda a sua segurança moral e a sua teologia fossem expostas ao
debate.50
A meditatio pode ser passiva, na medida em que deixa ressoar no
leitor a voz de Deus e permite que a sua Palavra o transforme pela
comunicação das energias nela contidas.51 Mas, ler activamente a Palavra
bíblica vai ao encontro da exortação de Paulo: “tende em vós os
mesmos sentimentos que o Ungido [de Deus]” (Fil 2,5); era o que
sucedia a Paulo: “nós possuímos o modo de pensar [nou=n: mente,
sentido] do Ungido” (1Cor 2,16). ‘Sentir com Cristo’ é literalmente
tornar-se ‘cristão’, e da melhor qualidade; é adquirir uma “mentalidade”,
mediante a qual, o cristão, posto pelo Espírito do Cristo em consonância
com Deus, vê, pensa, julga e elege em conformidade com a própria
“mente” de Jesus. A lectio divina fornece e brinda ao Espírito de Deus
o meio para dar ao meditativo “o modo de pensar do Cristo”: ao
comunicar-se-lhe através da Palavra, a graça do Espírito configura de tal
modo o cristão com Cristo que reproduz nele a imagem deste.
Destarte, as sucessivas e complementares etapas da lectio divina
são uma consistente garantia para a purificação e renovação constante
dos fiéis e da Igreja. Assim o entendiam já os autores monásticos; e
demonstra-o apodicticamente a história monástica. Um discípulo dos
Padres do deserto, desejoso de corrigir os seus defeitos e tornar-se
perfeito, abeirou-se do seu mestre e manifestou-lhe o seu propósito.
“Muito louvável – respondeu o mestre; toma a Bíblia e lê-a; ao cabo de
uma semana vem dizer-me o que aconteceu”. Passada a semana, o
jovem voltou ao mestre: “não aconteceu nada; aliás, a leitura é fastidiosa”.
“É natural – disse o mestre; agora, além de leres a Bíblia, enche um
cesto de terra e cada dia deita-lhe água em abundância; depois vem
comunicar-me o resultado”. No termo de mais uma semana, o noviço
tornou ao mestre: “Não acontece nada digno de registo: ao deitar água,
a terra vai-se escapando pelas fendas do cesto”. “Continua a fazer o
mesmo por mais tempo” – serenou-o o mestre. Passado muito tempo, o
noviço voltou desanimado ao seu mestre: “Não me apercebi de nada
notável; o que posso dizer é que, com a repetição diária da mesma

50
Cf. S. De DIETRICH, Como ler a Bíblia hoje? A renovação bíblica hoje (Emaús 2; Perpétuo
Socorro; Porto 1972) 20-22.112: “do estudo à meditação”.
51
Cf. G.M. COLOMBÁS, m.b., La lectura de Dios. Aproximación a la lectio divina (Monte
Casino; Zamora 19863) 47-77.

Meditação da Palavra de Deus na «Lectio Divina», Revista de Espiritualidade. N.º 28. vol. 7. 1999, página 24
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MEDITAÇÃO DA PALAVRA DE DEUS NA «LECTIO DIVINA» 317

operação, a terra saiu toda com a água e o cesto ficou vazio”. “É isso! –
exclamou o mestre; é o que conseguirá em ti a leitura constante da Palavra
de Deus escrita: esta é a água límpida que purifica; o cesto cheio de terra és
tu; a terra são as tuas impurezas e imperfeições; deixa-te penetrar pela
água viva da Palavra de Deus, que ela irá expulsando de ti os maus hábitos
e te configurará à imagem do Filho de Deus”.
S. Bento, insigne no assíduo exercício da lectio divina, hauriu
das Escrituras força e luz para fazer transbordar a sua regra de palavras
de sabedoria e unção. Sente-se que o ruminar da Palavra pela meditação
transformou essa prática em substância do seu próprio ser.52 A imagem
da mastigação, do ruminar, digerir e assimilar interiormente exprime
bem o efeito da meditatio: fazer passar a Palavra de Deus, não à cabeça
intelectualizante, mas ao coração contemplativo e activo. É o que
ressuma da meditação dialogada dum intelectual com Jesus, ilustrada
com as Escrituras: “Um jurista perguntou-lhe para o pôr à prova:
«Mestre, que tenho de fazer para herdar a vida eterna?» [Jesus] disse-lhe:
«Que está escrito na Lei? Como lês?» O jurista respondeu: «amarás o
Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com
todas as tuas forças e com toda a tua mente, e ao teu próximo como a ti
mesmo». [Jesus] retorquiu: «Respondeste bem. Faz isso e viverás»”
(Lc 10,28). O meditativo crente, não estuda a Bíblia: “pensa a Bíblia”,
na medida em que os seus conteúdos dão muito que pensar. Mas a sua
leitura será menos um ‘amor da sabedoria’ do que a ‘sabedoria do
amor’; a meditação não consiste só em pensar muito, mas em abrir-se a
amar muito. A meditação da Palavra dá a ‘sabedoria do coração’, para
saborear o melhor da vida e uma vida com Deus.53
Hugo de S. Victor diz que “o fruto da leitura divina é duplo. Forma
o espírito pela ciência e orna-o pelos bons costumes que gera. Ensina o que
se gosta de saber e mais ainda de imitar”. Ou seja, dá luz, mas para agir:
“que a leitura não possua [o leitor] ao ponto de o impedir de efectuar uma
boa obra...; a leitura deve ser uma actividade encorajadora, não
absorvente; deve nutrir os bons desejos, não matá-los”.54 Não censura o
zelo dos que lêem; estimula os que lêem a praticar o que a leitura
sugere. A leitura pode ser um exercício, não um fim – remata ele.

52
Cf. A. de VOGÜÉ, “Les deux fonctions de la méditation dans les Règles monastiques
anciennes”, Revue d’histoire de la spiritualité 51 (1975) 3-16.
53
Cf. H. BACHT, “«Meditatio» in den ältesten Mönchsquellen”, Geist und Leben 28 (1955) 360-373.
54
HUGUES DE SAINT-VICTOR, L’art de lire. Didascalion (Sagesses chrétiennes; Cerf; Paris
1991) 198.200 (cf. 198-207).

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318 ARMINDO DOS SANTOS VAZ

Os monges da Idade Média estudaram a Sagrada Escritura e esta


entregou-lhes em bandeja um saboroso e escondido sentido dos seus
textos, que fala a aposentos secretos da alma, os desperta do letargo
que porventura os envolva e dilata os seus horizontes de forma
surpreendedora. Com a leitura meditada da Bíblia, eles advertem sobre
a contínua tentação de o cristão converter a fé em rígidos dogmas, em
doentia moral ou em sociologia com complexos. Eles são guias peritos
na condução das pessoas do Deus morto da razão ao Deus vivo da fé,
irreconhecível pelos olhos da carne e só visível no escondido, como no
escondido deve ser procurado, encontrado e saboreado. A meditação da
Palavra bíblica confere à espiritualidade cristã fundamento consistente,
afastando de imaginações extravagantes e de sentimentalismo patológico
ou de piedade edulcorada.

Conclusão

Uma poderosa corrente de pensamento luta hoje obstinadamente


por libertar o ser humano do lastro de tradições religiosas, políticas e
sociais. A procura de identidade e felicidade do homem e da mulher
está mais orientada no desafogo individual da pessoa. Contestam-se
muitos dos valores que há cinquenta anos constituíam a base em que
assentava a sociedade política e religiosa: a família, o casamento, o
respeito pela pessoa mais velha, a criança, o direito à diferença, o
respeito pela vida humana. Esta brutal evolução de ideias deixa marcas,
provoca consequências nas pessoas que assistem à mudança e sofrem
“o choque do futuro”, levando-as a perder referências tradicionais de
vida: ao não saberem gerir a mudança e articular o que muda com o que
deve permanecer, sentem-se manipuladas, ficam num estado de
imponderabilidade e agarram-se desesperadamente a qualquer coisa, a
qualquer sistema ou ideologia, a diversas formas de religiosidade, a
doutrinas e cultos esotéricos, que lhes dêem segurança: segurança social,
económica ou religiosa. Neste estado generalizado de mudanças há muito
de positivo. O mais positivo é porventura o continuar a procurar a Deus (o
sucesso das seitas pode ser um sinal dessa procura), embora, em certos
casos, por caminhos tortuosos e erróneos. Se o homem expulsasse Deus do
seu mundo ficaria perdido: ao matar a Deus mais ninguém o poderia
perdoar e salvar. Portanto, o homem está ‘condenado’ a aprender a
conhecer e reconhecer a Deus e a conviver com Ele.

Meditação da Palavra de Deus na «Lectio Divina», Revista de Espiritualidade. N.º 28. vol. 7. 1999, página 26
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MEDITAÇÃO DA PALAVRA DE DEUS NA «LECTIO DIVINA» 319

Como e onde encontrá-lo? De muitas formas e em toda a parte,


mas certamente no centro de nós mesmos, no nosso “Castelo interior”
ou “palácio” (como diria S. Teresa de Jesus),55 Ele que é “mais interior
do que o meu íntimo” (como diria S. Agostinho).56 O santo bispo de
Hipona aconselhou: “Deixa sempre uma pequena margem para a reflexão
e para o silêncio. Entra dentro de ti próprio e deixa para trás a vida e a
confusão. Mergulha na tua intimidade e trata de encontrar esse doce
cantinho da alma onde se escuta a voz da verdade em silêncio para a
poderes entender”. Nas sucessivas fases da lectio divina, é propriamente a
meditatio que coloca a Palavra de Deus no cantinho da alma para aí lhe
fazer eco. A meditação da revelação bíblica, será incontornável na
procura do centro do homem e no conhecimento de Deus. Por ela o
homem encontra-se a si mesmo encontrando a Deus. Isto, porém, não
incita a fechar-se em si mesmo. O doutor da Igreja Agostinho recomenda
concentrar-se e entrar em si mesmo, mas também ultrapassar o ‘eu’,
que não é Deus: Deus é “superior ao mais alto de mim próprio”.57 Deus
está em nós e connosco, mas transcende-nos no seu mistério.
O vivo desejo de os monges restaurarem hoje a lectio divina nos
mosteiros não impede a sua prática no clero e nos religiosos em geral e nos
leigos.58 Na dinâmica orante da lectio divina convergem as experiências
cristãs da renovação bíblica, litúrgica e monástica, o retorno à oração
com a Bíblia e uma interiorização da leitura bíblica acompanhada pela
oração. 59 No dia 7 de Outubro de 1999, no Sínodo de Bispos sobre a

55
“Ofereceu-se-me... considerar a nossa alma como um castelo todo de um diamante ou mui claro
cristal, onde há muitos aposentos, assim como no céu há muitas moradas... Não é outra coisa a
alma do justo senão um paraíso onde Ele disse ter suas delícias... Consideremos que este castelo
tem... muitas moradas; umas no alto, outras em baixo, outras aos lados; e, no centro e meio de
todas estas, tem a mais principal, onde se passam as coisas mais secretas entre Deus e a alma”:
Moradas ou Castelo interior, I, 1.3: Obras completas (Carmelo; Aveiro 1978) 642.643. “Faça-
mos... de conta que dentro de nós há um palácio de enorme riqueza, todo feito de ouro e pedras
preciosas... e neste palácio está este grande Rei, que houve por bem ser vosso Pai, e está em trono
de grandíssimo preço, que é o vosso coração”: Caminho de perfeição, XXVIII, 9: ibidem, p. 508.
Faz estas afirmações ao declarar o que é a oração de recolhimento e o lucro que há em entendê-la
e ser conscientes das mercês que por ela recebemos de Deus.
56
“Tu eras interior intimo meo et superior summo meo”: Confessiones, 3,6,11: PL 32, col. 688
(cf. De vera religione 39,72: Pl 34, col. 154).
57
Ver acima. Sobre a leitura da Palavra de Deus feita por Agostinho, veja-se a reflexão de M.L.
COLISH, The Mirror of Language: A Study in the Medieval Theory of Knowledge (Yale
Historical Publications, Miscellany 88; Yale University Press; New Haven – London 1968)
8-81, sob o título “St. Augustine: the expression of the Word”. Cf. Carta aos Bispos... (acima
referida), nº 19.
58
O documento da Comissão Bíblica Pontifícia, A interpretação da Bíblia na Igreja, recomen-
da-a vivamente em IV, A, 2.
59
Como sugere o CONCÍLIO VATICANO II, Dei Verbum, 25.

Meditação da Palavra de Deus na «Lectio Divina», Revista de Espiritualidade. N.º 28. vol. 7. 1999, página 27
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320 ARMINDO DOS SANTOS VAZ

Europa, o cardeal C.M. Martini acordou os sinodais com vários sonhos.


“O primeiro é que a familiaridade cada vez maior dos homens e das
mulheres europeias com a Sagrada Escritura faça reviver aquela
experiência de fogo a arder no coração que os dois discípulos de Jesus
fizeram a caminho de Emaús. A Bíblia lida e rezada, especialmente
pelos jovens é o livro do futuro do continente europeu”.60 Este sonho,
que muitos poderiam considerar uma evidência gasta, é em realidade
um forte abanão à consciência adormecida dos cristãos. Se os textos
bíblicos não iluminarem a inteligência e não aquecerem o coração,
serão simplesmente monumentos literários, notáveis peças de um museu
desconhecido. Se, ao invés, realizarem a própria vocação de serem luz,
calor e força darão sentido ao quotidiano no mundo esquecido da sua
alma. Uma ‘cultura bíblica’ em diálogo com o difícil ‘hoje’ ajudará a
resolver o mais candente problema que se nos põe: pacificar o próprio
espírito para não declarar ‘guerra’ ao próximo. Viver imerso numa
atmosfera de oração e de escuta da Palavra de Deus é um equilíbrio
exigente no compromisso quotidiano com uma sociedade complexa;
mas é o equilíbrio da vida, segundo o evangelho. Não se trata de um
bem de consumo para assegurar o conforto espiritual, mas de imbuir a
acção social da dimensão íntima, de coração, de constante conversão.61
Assumimos em peso a súplica de Paulo a favor dos cristãos:
“Dobro os joelhos diante do Pai, pedindo-lhe que, mostrando o seu
riquíssimo esplendor, fortaleça o vosso interior pela acção do seu
Espírito, para que o Ungido habite pela fé nos vossos corações e fiqueis
arraigados e cimentados no amor; com isso sereis capazes de compreender
juntamente com todos os consagrados o que é largura e comprimento,
altura e profundidade, e de conhecer o que supera toda a espécie de
conhecimento, o amor do Ungido, para vos irdes enchendo de Deus até
à plenitude total” (Ef 3,14-19).

60
Texto referido por Vida nueva, nº 2.205 (1999) 16.
61
Cf. J.B. METZ, Teologia do mundo, da sociedade, da política, da paz (Teologia nova;
Moraes; Lisboa 1969) 9-48.

Meditação da Palavra de Deus na «Lectio Divina», Revista de Espiritualidade. N.º 28. vol. 7. 1999, página 28
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