Jesuitas Grao Azevedo

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O.

S JES·UITAS NO GRÃO-PARA

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OS .JJ!S.UITAS

GRÃO-PARÁ
SUAS MJSSÕES E A COLONIZAÇ~Ã.0

BOSQUEJO BISTORICO

COM V:l\:RiàS'
,,. a; DOCUMENTOS
. •· ,, · lNF.DITOS

LISBOA
!!;l_y!tARtA EDITORA
'l'AVARES CARDOSO· 8i lHM1\0
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s. p~rg? d~ camõl'l~i. 6
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'Porto-Jmp. 'Portugrte{a-'Rua Formosa, I I:J

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AO LEITOR PARAENSE

Quize1·a eu, no lz'miar destas paginas, que em sua i'nsi-


gniflcancia rep1·esentam não poucas horas de labor, consa-
grai-as em termos de levantada gratz"dlio á te1•ra que- me.foi
segunda patria, que é a patn'a de meus :filhos, e onde me
decon-eram largos annos de existencz"a se1·ena e feliz. !11as
afigurou-se-me o intento prêsumpçoso, a offerenda 1nesqui·-
nha, e ambos descabi"dos, por não corresponder á grandeza
· do objecto a z"t;idi'gencia dos meiºos.
Perdôe-se-me portanto a omúsão e o proposito. Traba-
lhando com amor _em revi'ver o passado dessa terra gran-
diosa, onde nossos communs avós juntamente lidaram e
padeceram,. no meio de suas fa ltas preparando o futui:o, sa-
ti'ifaço, conforme me é dado, um iºmpulso do coração. Rele-
ve-me o Pará a audacia do emprehendiºmento; relevem-me
os que me lêrem, -·os_ que sabem, investigam e produz.em,
· -os erros, os deifalledmentos, as lacunas da execução .

Eston"l, noV'embro de I900.


INTRODUCÇÃO

principiar o seculo XVI chegara ao apogeu a


gloria lusitana, que, por obra de seu extraor-
dinario, posto qüe _ephemero resplendor,- ia
deixar de si lembrança indelevel nas paginas

·-·
~;~. da ' historia. Quando o poder mahometano,
creando assento em Cons.tantinopla, parecia ter vibrado o der-
radeiro golpe á civilização christã; quando o islamismo pene-
trava na Europa, pelo Bosphoró, como seculos antes fizera
pelo estreito de Gades; a mais pequena das nações occiden-
taes _lançava-se através do oceano, indo arrebatar áquelle o
mais ~opioso manancial da sua grandeza. Por esse facto o
opulento commercio do levante achou-se transfc:_rido a outras
mãos; de Veneza o valioso trafico das especiarias passou ás
margens do Tejo; e o troar das bombardas portuguezas no
mar das Indias annunciou a ruina do novo imperio, que to-
mara para capital a destroçada Bysancio.
-Todavia, por importante que tenh3: sido "para a civilização
esse facto, mais o foi ainda a descoberta da America, que
inopinadamente abrira as portas de um mundo novo á cubi-
çosa actividade das nações :européas. Realizado por u~ geno-
vez ao serviço de Espanha, este commettimento deve-se tam-
bem, posto que ·por indirectos canaes, aos portuguezes. - No
alto do promontorio de Sagres, os olhos fixos na vastidão do
Mar Tenebroso, o Infante Dom Henrique -o Navegaáor-
tinha como que uma visão das terras longinquas. D'ali saíam,
para as expedições aventurosas, as frotas lusitanas; ali vinham
8 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

offerecer serviços e ganhar luzes os pilotos de outras nações. ·


Morreu ·o Infante, deixando implantado no caracter nacional o
gosto das aventuras maritimas. Seu pensamento sobreviveu-
lhe, irradiando exuberante entre os espíritos da geração vin-
doura. Nessa escola o genio de Colombo se formou e desen-
volveu.
Casado em uma familia de navegadores, no seio della
poude o futuro almirante colher informações, que lhe inspira-
ram o glorioso desígnio. As opiniões de Toscanelli, theorica-
mente exactas, erroneas na pratica, como se verificou depois,
confirmaram-lhe as previsões. Apresentou seus projectos aos
geographos de Dom João II, que, julgando-o homem falador e
gl1J1ioso de suas habilidades t, lhe demonstraram a impossi-
bilidade da empresa. Erravam os mestres com a verdade e a
razão, negando a possibilidade do feito; acertou Colombo,
persistindo no erro com a tenacidade e fé inquebrantaveis,
que são como que a materia prima do genio.
Morreu o illustre genovez, certo de haver descoberto as
Indias, - e o logar do Paraíso-, quando já as quinas lusita-
nas varriam os mares do extremo Oriente; mas era ainda um
portuguez quem tinha de guiar a Espanha ao legitimo Ca-
thayo, pelo caminho ideal de Toscanelli e de Colombo. Já
então principiara outra era, e o mundo velho ia tomar conta
do mundo novo.
Chegaram então á maior intensidade os desejos cupidos
ateados pelas narrações de Marco Polo. A fascinação tornou-
se universal e irresistível. Declarou-se a nova cruzada, á qual
se_rvia tambem de pretexto a religião. Espanha · e Portugal
iam levar a palavra divina ás populações selvagens do novo
continente, agora descoberto.
Q enthusiasmo foi grande em todas as classes sociaes.
Propagou.se fóra dos dois reinos, e com os aventureiros da
Península concorreram muitos extranhos a alistar-se nas hos-
tes invasoras. Monges fanaticos, fidalgos pobres, soldados de
fortuna, negociantes Õusados, bachareis - classe mais que
muito numerosa na douta Espanha-, e até sentenciados, que

1 BARROS, Decadas, r Liv. m, Cap. ; 1.


INTRODUCÇÃO 9

iam ser entre os selvagens quaes sentinellas _perdidas da civi-


lização; todos esses partiam ·com a cruz em uma das mãos,
na outra a espada, a conquistar não já o santo sepulcro,
mas o cubiçado _vellocino da fabula.
Esta explo_ração do novo continente pelos povos hispanos
era um legitimo desforço do passado, com que se estabelecia
uma especie de compensação historica. Da mesma forma que
os filões metalicos da Peninsula tinhám, em outras eras, cha-
mado os p~enicios, e as amenidades do clima as tribus arabi-
cas, assim estas populações, empobrecidas por sete seculos de
luctas continuas, se arremessaram em vertiginoso ímpeto á
conquista _d as terras feracissimas, onde deviam encontrar inau-
ditas riquezas.
As perseverantes tentativas, por ·meio das quaes a Idade
Média procurara debalde a producção do ouro, viam-se pre-
miadas. A alchimia era alfim uma realidade, mas de outra.
ordem; ou, melho_r, a extraordinaria sciencia hermetica perdia
a razão de ser. Bastava atravessar o oceano e penetrar no
interior 'das terras: lá se cavava ouro á saciedade. Os indige- •
nas atto~lito~ f!-briam sem diffiçuldade mão desse metal, bri-
.~
lhante porém vulgar, quasi inutil; e, quanto mais dadivos9s se
mostravam, tanto mais viam crescer a extranha avidez dos
invasores. Em breve Pizarro e Cortez assombraram, com a
atrocidade do seu proceder, as crudelíssimas populações ame-
rican<).s, deixando na historia a recordação da mais sanguina-
ria ·rereza..
De França e Inglaterra saíam tambem as expedições aven-
turosas; e tão . forte era· a .preoccupaçãQ dqminant~ que muitos
navegadores contaram de viagens que nunca tinham feito, de
paizes que só pela imaginação haviam descoberto.
Entretanto ia-se arraigando 'nas imaginações a crença em
uma região phantastica, cujo seio abrigava incalculaveis the-
souros; occultos por obstaculos quasi insuperaveis. No mais '
recondito do continente americano. devia ter assento o myste-
ri~so paiz do E/-Dorado. Para elle corriam os ambiciosos e,
quer entrassem pelas gargantas do Orenoco, q~1er subissem a
correnteza do rio da Prata, sempre a mesma interrogação fa-
ziam aos indigenas surpresos, que tambem sempre ao sabôr
das perguntas respondiam. Esta lenda subsistiu por mais de
2
· 10 OS JESUlTAS NO GRÃO-PARÁ

dois seculos, e foi causa de arrojadas expedições, notaveis por


. seus resultados praticas. :pesde Orellana, descendo o Amazo-
nas da foz do Napo ao Atlantico, até Nicolau Hortsman, pas-
sando, em meados do seculo XVIII, de Surinam· ao rio Negro,
numerosa foi a · pleiade de exploradores, saído.s á descoberta
da aurea Manôa. Tão certo é provirem do ideal, isto é, da
enganosa imaginação, os mais aproveitaveis commettimentos
humanos!

II

Já vimos que a população ecclesiastica, ~ã? numerosa


naquella época, não ficava extranha ao movimento geral.
Pelo_contrario, assumindo a posição que a sua influencia lhes
impunha, as conimunidades religiosas sempre caminharam na
vanguarda, tornando-se viveiros perennes de apostolos. No
agitado período da Idade Média, tinhamas o espectaculo dos
prelados e sacerdotes guerreiros que, reservando para as cere-

•• monias do templo as roupagens talares, vestiam no campo as


pesadas armaduras dos guerreiros; agora veremos os padres
exploradores e geographos, atravessando terras, discorrendo
pelos rios, perscrutando as florestas, e sendo em toda a parte,
no mui:ido novo, as avançadas sentinellas da civilização.
A parte assumida pelo elemento ecclesiastico, na obra da
colonização, foi tão extensa como. s~lutar. O illustre Ranke
descreve-a numa conceituosa phrase: « A conquista, diz elle,
transformou-se em missão, a missão em civilização» t. Todas
as ordens religiosas cooperaram nesta empresa capital da· so-
ciedade moderna; a nenhuma, porém, foi dado exceder, nem
mesmo egualar, a Companhia de Jesus.
Ao tempo que as nações do occidente da Europa viam
abrir-se ante seus olhos um largo horizonte de dominio e ri-
quezas, o pontificado romano, tendo chegado ao apice da gran-
deza, ia entrar no periodo da declinação. Na Allemanha um
frade, até ahi obscuro, vibrara golpes profundos ao edificio

1 RAN1rn, Dle roemiscben Paepste, Liv. vn.


INTRODUCÇÃO

existente·da Igreja christã. Como projecteis em peleja renhida,


cruzavam-se no ar os anathemas e as_injurias; as chammas do
Santo Officio lambiam já os postes onde se atavam os hereti-
cos; os corypheus das novàs seitas lançavam tambem mão da
fogueira; como argumento ultimo; os monarchas dividiam-se
entre a idéa recente e a autoridade antiga; os povos aperce-
biam-se para a lucta, que durante mais de um seculo havia de
ensanguentar ~ Europa central. Mas emquanto as consciencias
protestantes se repartiam em grupos, que reciprocamente .se
anathematisavam, ao lado do Pontífice romano formava-se a
milícia religiosa, que por duzentos annos havia de dominar em
quasi todo o mundo civilizado, e encher com seus feitos as
paginas da historia. Essa porçãÔ da Igreja milita11te tomára
por invocação o nome de Jesus. Gerara-se do ascetismó espa-
nhol e ia crescendo .e alastra.n do por. toda a Europa. Apode-
rara-se das consciencias pelo confessionado e das intelligencias
pelo ensino. Dominava nas·universidades catholicas,' e regia os
destinos dos povos pela direcção espiritual dos monarchas . .
A prodigiosa fo~ça desta instituição foi a solida muralha
que se oppoz á marcha ovante do protestantismo. Num mo-
mento cerrou-lhe ella as portas da Peninsula Iberica, batalhou ••
com exito em França, e poude emfim bloqueai-o na Allema-
nha, onde ao sul e ao oriente lhe impoz limites ao domínio.
Recrutando adeptos em todos os paizes, recebendo-os em
todas as classes. sociaes, a Companhia foi combater todos os
inimigos do pontificado romano no proprio terreno em que as
forças destes, com breve lucta, haviam ficado victoriosos. Den-
tro da Allemanha, no seio das populações adherente; á Re-
forma, tal notoriedade em pouco tempo seus membros adqui-
riram como professores, que até os_ filhos dos protestantes
corriam ás suas escolas. Bem depressa elles fizeram nascer a
reacção catholica.
E de onde vinham esses homens? eram espanhoes, italia-
nos, flamengos e de outras nações. «Por muito tempo, nem o
nome da sua ordem era sabido; chamavam-lhes os padres es-
panhoes » t.

..
1 RANKE, obra citada, liv. v, cap • .unice.
. :

12 OS ) ESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Á cultura das línguas antigas, em que então cortsistiam


principalmente os estudos, prestavam os novos mestres da
mocidade attenção particu_lar. Seus methodos de ensino eram
realmente superiores. «Tornou-se visível que os alumnos del-
lt::s mais aprendiam em seis mezes, que os 'de outros em dois
annos; até os protestantes iam muito longe retirar os filhos
dos gymnasios, para confiai-os aos jesuítas» 2• . Em muitas
partes foram elles contados entre os restauradores dos estudos,
principalmente de· humanidades. •
Não saciavam comtudo estas victorias o zelo infatigavel
dos discípulos de Loyola. A febre aventurosa e conquistadora
da epoca incendiou-os tamb.em. A Igreja de Christo devia
predominar em toda a terra, acompanhando a audacia das
nações occidentaes, que tinha dilatado os limites ·dó universo.
Realizando seu intento, os novos apostolos penetravam na
India e na America; experimentavam os riscos das longas
travessias do oceano; arrostávam com os rigores de climas
inhospitos; percorriam a pé extensas solidões eni terras igno-
tas, descuidosos da ferocidade dos animaes ·bravios e da sa-
( (
nha das tribus selvagens; soffriam privações de tudo que mais
indispensavel se torna aos commodos do homem civilizado;
aprendiam comsigo ~esmos, e chegavam a possuir perfeita-
mente, linguagens barbaras, em que prégavam aos indígenas;
e pereciam ás mãos destes, contentes com a palma çlo marty-
rio, confessando sua fé.
Na America latina foi o principal assento destes homens
for,tes. Ahi foram missionarios, colonos, caçadores de escravos,
lavradores, artífices, mestres, historiadores, geographós, nego-
ciantes, estadistas, ·e generaes. Devassaram toda a extensão do
continente sul-americano, até ás solidões mais recotrditas . .Fi-
zeram-se navegadores no Amazonas, e cavalleiros nas margens
do Prata. Crearam as reducções e as fazendas. Dirigiam agora
os resgates, logo declaravam guerra sem treguas á escravidão
dos indios. Cultivavam o cacau no Pará e colhiam o mate no
Paraguay. Erguiam templos e edificavam povoações; abriam
officinas, teciam, pintavam, esculpiam. Liam humanidades nas

1 RANKE, ·obra citada, liv. v, cap. unico .



INTRODUCÇÃO 13

villas de europeus, e · explicavam doutrina, ensinavam as pri-


meiras letras e as artes mechanicas aos irtdios da.S aldeias. Bio-
graphavam os seus mais illustres, e redigiam as chronicas das
missões e do Estado. Exploravam as regiões desconhecidas;
estudavam os costumes do gentio, esçreviam diarios . e levan-
tavam mappas. A pretexto de provêrem ás despesas do culto
e á manutenção das aldeias, apoderavam-se dos productos,
que vendiam, augmentando assim o cabedal da Companhia.
Conseguiam o domínio incontestado do terri~orio do Para-
guay, onde estabeleciam um regímen social inteiramente novo
nos a!_lnaes ~a historia, sujeitando as populações convertidas ~
um brando despotismo, com que se julgavam venturosas. Fi-
nalmente sabiam armar, exercitar e capitanear os seus índios,
guiando-os ·ora a castigar as .aggressões de tribus mais rudes,
ora a repeflir os ataques dos arrojados bandeirantes, no sul
do Brazil.
Desta maneira, se ·as relações dos índios com a civilização
constituem o elemen~o essencial da historia desta · parte da
America, a intervenção dos jesuítas· foi de tal ordem, que
bem póde dizer-se ser a historia da Companhia, por si só,
uma historia completa da colonização. ••

III

Pelo que particularmente respéita ao Grão-Pará, a historia


desta parte da terra brazilica ·de modo nenhum se póde es-
crever sem a dos jesuítas. A Iucta entre elles e a população
leiga é o facto ·central, em torno de que todos os mais gravi-
tam. Quaesquer que sejam os acontecimentos de ordem polí-
tica ou economica que, por dignos de menção, tenhamos de
considerar: abusos dos governantes, insubordinações dos po-
vos, introducção de leis de fomento ou repressivas, desco-
bertas, conquistas, escravidões; tudo quanto o civilizado prati-
cou como colonizador no immenso territorio, que o rio mar e
seus innumeraveis braços sulcam; tudo se prende a feitos,
idéas e propositos da Sociedade de Jesus.
14 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Reciprocamente os successos com os índios do Arnazonas


foram parte importante nos destinos della; e, se a sua aboli-'
ção. em Portugal promoveu, ou pelo menos apressou, como
não é licito negar, a suppressão realizada mais tarde por Cle-
mente XIV, póde-se egualmente asseverar que este ultimo
evento deriva em grande parte das relações entre colonos e
missionarios paraenses, e. de uns e outros com os indigenas da
região.
O asserto não é novo, e já um sabio profundamente ver-
sado nas cousas do Brazil o propoz. «A historia da suppres-
são da Ordem dos jesuítas, diz Martius t, explica-se, no que
diz respeito a Portugal, pela posição adquirida "por elles no
Pará..))
Mesmo sem isso, todavia, os episodios da lucta secular en-
tre as duas raças pela posse do sólo, terminando · pela exclu-_
são da menos idonea, não perdem o interesse. Se bem que
repetido em todos os instantes da vida· das sociedades, o es-
pectaculo é desses que jamais fatigam a attençâo do obser-
vador.

•• Pela parte que os discípulos de Loyola tomaram na con-


tenda, poderemos referir as phases extremas da mesma a dois
nomes de jesuitas, que para nós a symbolizem; ambos egual-
mente, posto que por motivos differentes, afamados na histo-
ria. Começou a Companhia• a ser verdadeiramente poderosa.
na America portugtieza com o grande Antonio Vieira: neste
ponto culminante da disputa todas as probabilidades são em
favor dos indígenas. Desappareceu esse poderio quando as
cinzas do inditoso Mal~grida, suppliciado á ordem de Pombal,
iam ser ~ançadas ao vento: e desde logo a obra da catechese
e aproveitamento dos selvagens para a civilização foi mallo-
grada. Estes dois nomes assignalam o principio e o fim das
missões do Grão-Pará, o inicio e o abandono de um grandioso
tentamen. Arrancados os indios á tutela dos religiosos, e en-
treg ues definitivamente ao poder civil, condemnados á destrui-
ção foram por uma vez os esparsos resto~, ainda ~ub.sistentes,
da raça autochtone.

1 Artigo da Revista do Instituto Historico e Geograpbico do Rio de Ja-


neiro, Tomo 6:-Como se ha de escrever a historia do Brazil?
CAPITULO I

O DESCOBRIMENTO

·i. Viagem de Pinzon. João Cousin pretenso descobridor. As amazonas.


• -II. Orellana. O descobrimento da Canella. A deserção. -III. Orellana
nà Europa. Propostas de Quesada e João d~ Sande. Sáe a expedição.
-IV. Chegada ao rio do Pará. Naufragio. Diligencias infructuosas e
morte do adiantado. - V. Viagem de Pedro de Ursua. Crimes de Lopo
de Aguirre. - VI. Entradas diversas no Amazonas. Aventura de dois
leigos franciscanos.-:- VII. Expedição de Pedro Teixeira. Chegada a Quito.
R~ceios dos .esl?anhoes. Christovam de Acufia chronista da jornada.

••
I

OVO jardim dos Hesperides, maravilhoso e de-


feso, ainda depois da primeira descoberta o
Amazonas por muito tempo escondeu com ciu-
me os seus thesouros. A corrente in1petuosa,
uma onda imprevista e terrivel guardavam-lhe
o ádito: seu pavoroso rugir aterrava os nautas, assombrados
da extrànha novidade. A situação geographica era incerta: va-
riava desde a bôca por onde saíra Orell~na, até aos baixos
· onde sossobrou a armáda de Ayres da Cunha. Entre uma e
outra paragem, terceira desembocadura, innominada nas car-
tas, augmentava a confusão dos navegantes.
A primeira descoberta mysteriosa tambem : rodeada de
sombras, .invadida pela fabula. Pinzon, invejoso de Ço1ombo,
.atravessara o Atlantico, surgira num mar doce, e logo, te-
r6 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

mendo a paro1·óca, se ausentara para nunca mais voltar. Cor-


reu para noroeste e, até hoje, duas grandes nações discutem
qual fosse o rio onde entrou em seguida, e a que deixou seu •
nome. Entretanto apparece o mar dote designado pot Mara-
nhão. Quem tal lhe chamou? Outro navegante? Algum com-
panheiro de Pinzon? O capricho de um 'cartographo, menos
justificado que esse de onde Vespucio alcançou fama? Nin-
guem o ·sabe. O problema fica insoluvel, e o. appellido de Pin-
zon, que não teve Jogar 'no maior descobrimento, mal se fixará
nos pequen.os cursos de agua, em cuja escolha disputam os
geographos. · ·
As ironias do destino não param ahi. Esbulhado, não sa-
bemos por quaes circumstancias, da honra do nome, I'fnzon
teve tambem competidor na primazia do descobrimento. Pre:
tendem-na para si os francezes. Sustentam que o andalltz
aprendera ·a derrota do piloto João Cousin, e na precedente
viagem ensinara o caminho a Colombo. Desta arte, de um só
golpe, se aniquila a gloria do genovez, e a iniciativa do mari-
nheiro de Paios. Sómente as provas fallecem. Providencial in-
.( (
cendio destruiu os archivos de Dieppe, e a corrente da histo-
ria continúa inalteravel. João Cousin permanece definitivamente
nos domínios da fabula.
Não é verdade que Diogo de Ordas tenha, em I 530, subido
o Amazonas, como alguns sustentam. Mal informados compi-
ladores confundiram este rio com o Orenoco. Em I 535 a ex-
pedição de Ayres da Cunha, em cuja donataria devia caber o
rio descoberto por Pinzon, perde-se onde ficou sendo o nosso
Maranhão. Até I 540, á passagem dõ Orellana, 11enhum outro
europeu, de que haja noticia, cruzou as aguas do gigante e.stua•
rio. Então todas as lendas vagueantes nos espíritos asJqyir('m
· foros de real. O Renascimento presta á bruteza dos selvagens
a poesia da antiguidade. As amazonas. passam da Grecia
pagã para os recessos da Ame.rica meridional. Orellana as
viu, segundo diz, cÔril seus olhos; Raleigh considera a exis-
tencia dellas a mais lisongeira homenagem á rainha virgem; e,
em meados do seculo XVIII, na vespera da Encyclopedia, o
sabia La Condamine recolhia, nos proprios logares, infprma-
çç>es que o levavam a não contestar a boa fé do aventureiro
castelhano.
. · O DESCOBRIMENTO 17

Em toda esta demorada descoberta pullulam ·illusões e en-


ganos. Um destes, que subsistiu por . muito tempo, foi o de
se ·confm1dir o rio do Pará, na .sua foz, com o Amazonas pro-
prio. Por elle se explica a funesta aventura de Orellana,
quando em I 544 foi tomar conta da conquista da Nova An-
daluzia, premio da sua deserção e ~obarde abandono de Pi-
zarro. ·

II

Tétricas figuras são as destes heroes do Novo. Mundo,


quando nos apparecem espalhando o terror entre as popula-
Ções doceis e iner!lles; arrostando perigos, trabalhos e priva-
ç~es ineriveis, na busca de thesouros e domínios; descobrindo
em toda a sua hediondez a perversidade humana, quando para
contei-a falta a hypocrisia ~o respeito ás leis. Como alcateia
de feras,· assolando os bosques, nunca esses aventureiros se

••
viam fartos de sangue; e de ouro e poderio tinham sêde insa-
ciavel.' ·
Na escola' delles se educou · Orellana. Nascera em Trujillo,
mais. ou menos por I 5 I 1, da mesma estirpe dos Pizarros,
posto que em remoto grau. Partiu moço para a America. To-
. mando parte nas luctas contra Almagro, perdeu um olho na
campanha.
Nomeado governador de provinda, funda · Santiago de
Guyaquil. D'ahi sáe para acompanhar a Gonçalo Pizarro na
esperançosa jornada ás terras da Canella. Compunha-se a éx.
pedição de du~entos e vinte espanhoes e quatro mil índios;
cêrca de duzentos cavallos e camellos lhamas, os ultimos corno
bestas de carga; grande numero de porcos para sustento; e
matilhas de caça para aperrear os índios inimigos.
Não vem aqui repetir as por demais conhecidas miudezas
desta viagem: A historia tornou á · tradição todas as maravi-
lhas, para relembrar as tristezas da ~ventura. Casos de fomes
terriyeis, barbaridades inauditas, thesouros fabulosos exornarn
a narração. Primeiramente o frio rigoroso . nos montes faz pe-
recer muitos soldados. Depois de sacrificarem cêrca de mil
3

a·.i
18 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

cães e cem cavallos, pungidos pela fome, comiam os couros,


os cintos, as solas dos sapatos. Alguns, que se alimentavam
de raizes e folhas desconhecidas, ficavam loucos. No desespero
de ver m·ortas as suas . illusões, _Pizarro voltava-se contra os
indios, que não sabiam dar-lhe noticia da região imaginaria
que buscava: a uns mandava queimar vivos, outros lançava
aos cães, que os devoravam.
Num bergantim, co~ algumas canôas e sessenta homens,
saíu adiante Orellana, procurando o logar onde, no dizer dos
índios, a expedição poderia prover-se de mantimentos. No
barco, referem alguns, ia um thesouro de esmeraldas e moeda,
'pertencente a Pizarro. É mais um engano, que tem-os de jun-
tar aos muitos desta aventura. Com trabalhosa viagem, pás-
soü Orellana do rio Coca ao Napo, e deste rompeu no Ama-
zonas.
Quando se demorava em terra, apparelhando - materia~s
para a construcção de novo bergantim, ouviu pela primeira
•.
vez os naturaes falarem das índias guerreiras. Embuste do
narrador ou falsa interpretação da giria, mal entendida na bôca
do selvagem?.
•e Desvanecida a illusão do paiz fabuloso, pela qual viera, o
caudilho rejeitou a empresa ingloria de voltar a Quito, com os
lamentaveis restos de uma tropa, que de lá saíra inebriada
das mais ricas ·esperanças. Avante o impellia o amor das des-
cobertas que, como a an1bição, era sentimento innato nos ho-
mens da sua tempera. Os companheiros lisonjeavam-lhe o in-
tento. Deixou-se arrebatar pela correntezá das aguas, talhando
para si um reino nessas vastas regiões: Em Pizarro não pensou
mais, e, certo; grande surpresa foi a sua, quahdo o soube livre
do apertado lance em que ficara.
Alguns historiadores imputam a Orellana o nefando crime
de ter abandonado, sósinho e sem recursos, na solidão do
deserto, a Fernão Sanches de Vargas, que se oppl!lzera á fuga
como acto de traição. Mas dessa accusação devemos absolver
o caudilho. Não ha documento algum por onde..se pi·ove. Pi-
zarro, na carta de queixa, que dirige a el-rei, não menciona
similhante facto; nem a propria victima que, no dizer dos
narradores, logrou salvar-se, apparece a reclamar, como .era
natural, o castigo do offensor.
O DESCOBRIMENTO 19

No caminho, entre as populações mais ou menos hostis,


encontrou Orellana, ou julgou encontrar, as famosas amazo-
nas. A apparição desta fabula foi o ultimo golpe na fortuna
de Pinzon.

III

Passando de Cubaguá, onde finalmente aportara, á Espa-


nha, Orellana tomou terra· em . Lisboa. A noticia da viagem
produziu sobresalto. Fizeram-lhe propostas para ficar _em Por-
tugal:· não as attendeu e proseguiu na jornada.
Em Madrid- desculpou-se como poude da deserção, e tratou
logo de requ~rer o governo das novas terras que pertorrêra.
Não viu porém acolhida a façanha, como esperava. Receavam
na côrte que a descoberta ·caísse dentro da demarcação por-
tugueza, e J?rotassem d'ahi complicações com a nação rival.
· Ao cabo de não poucas diligencias conseguiu afinal o governo
que solicitara, com o titulo de adiantado e as vantagens inhe-
rentes ao cargo.
As obrigações, todavia, eram pesadas. Todos os gastos da ••
expedição, á sua custa. Devia levar pelo menos 300 homens,
sendo 100 de cavallo; oito religiosos para as missões; e o
necessario para fabricar duas caravellas, que voltassem logo
com as novas da povoação e descobrimento. Os navios·, pe-
trechos bellicos e maritimos, eram tambem por conta do
adiantado. -
Debalde pedia elle que Carlos V lhe mandasse dar artilharia
para as naus; licença para levar pilotos portuguezes, unicos
que na sua opinião, . conheciam as costas; e marinheiros da
mesma nação familiarizados com aquelles mares: tudo lhe re-
cusavam. '

Com difficuldade ia Orellana alcançando o cabedal preciso


para tão custosa expedição. Temos que pôr de parte a lenda
· do$ thesouros carregados no bergantim de Pizarro. D~ carta
deste consta sómente estarem na embarcação todas as armas
de fogo, e as ferragens dos cavallos. Ao mesmo tempo, Orel-
lana defendia-se dos que lhe imputavam a deserção premedi-
tada, allegando ter deixado no arraial, além dos escravos,

.. ;,,
20 os J ESUITAS NO GRÃO-PARÁ

toda a fazenda que possuía. Será isto verdade? Com que va-
lores acudia elle aos primeiros gastos? Certo é que foi armando
quatro embarcações: duas naus e duas caravellas; reunindo
manti~entos, e tratando gente para a viagem. Era então cos-
tume pagarem n;uitos destes aventureiros suas passagens;
outros levavam mercadorias a frete; aos poucos, e com estes
recursos do acaso se ·foi arranjando. Por ultimo falleceram
completamente os meios. O padrasto, para libertai-o .dessa .
augustia, vendeu uns padrões de juros, que possuía; o resto
se alcançou por emprestimó de certos ' mercadores genovezes,
. gente por índole e costume inclinada a taes aventuras. Em
tudo se apparelhou a expedição com grande penuria, fazendo
-já presentir o exito infeliz. O védor, fiscal da armada, infor-
mava assi~ para Madrid: «-Fez-se a empresa sem conc~ito,
sem ordem, com toda a cegueira, e pouco s~ber i>.
Entretanto preparava-se em Lisboa outra jornada ao Ma-
ranhão. Diogo Nunes de Quesada, espanhol, e o portuguez
João de Sande, faziam propostas a Dom João III para a colo-

f.
nização das terras banhadas pelo grande rio. O primeiro esti-
vera no Peru, e sabendo, pela viagem de Orellana, da com-
. . '
municação com o oceano, expunha ao monarcha as singulares
conveniencias do commettimento. =--«Esta terra, (dizia), . está
entre o rio da Prata e o Brazil pela terra a dentro, e por esta
terra vem o grande rio das Amazonas. Por este rio se ha de
prover esta terra, porque podem ~r navios por elle até onde
se poderá povoar uma villa, que seja porto e escala de toda
esta terra, porque sobe a maré 200 leguas rio acima; e deste
ponto onde se povoar a primeira villa subirão bergantins mais
.' de 300 leguas, porque o rio vai chão e muito bom. Haverá
300 leguas desta província até ao mar, e sáe este rio á costa
do Brazil» t.
A inesperada aventura do caudilho espanhol, pondo o go-
verno portuguez sobre aviso, favorecia a realização do proje-
cto. Começou-se a preparar a armada com desvelo. Eram qua-
tro navios, sendo dois de 300 toneladas; muita artilharia de
bronze, e munições á farta; quasi tudo_á custa·do rei.

1 Documento copiado por Varnhagen e impresso na Riruistn do Ins-


tituto. Tomo 2. ·
O DESCOBRIMENTO 21

Em publico se propagou a voz qu~ era o armamento para


o Brazil, mas particularmente sabia-se destinado ao rio das
Amazonas. ..Sómente faltavam pilotos, que ent~e os companhei-
ros da prece.dente viagem se deviam bu_scar.
Em Se~Üha tiveram noticia disso. O Conselho das Indias
foi ·prevenido; e succedeu' q·ue, vindo ali João de Sand~, ou
por causa de piloto, ou para espiar o andamento da expedição
castelhana, foi preso, -e lhe embargaram o gaieão em que vi-
nha. Só recuperou a liberdade depois que Orellana partiu.
Com. isto provavelmen~e se mallogrou· a empresa, de que se
não encontram mais vestigios.
· Á medida que se approximava a época da viagem, iam
apparecendo enthusiastas. Movia-se gente nos arredores de Se-
vilha para embarcar· a occultas de amigos e parentes; o con-
tagio· chegou ás mulheres: concorreram muitai, e a presença
dellas foi um dos inconvenientes, com que se preparou o de-
sastre final. Formosas andaluzas offereciam ao ~diantado a mão
de esposa. Contra vontade expressa do fiscàl, Orellana casou.
Não podia viver s~m mulher, allegava, e a ignotp.inia da man-
cebia ~ra contra· seu genio: desejava perpetuar-se . em filhos,
e poder servir a Deus e ao rei nas terras que havia desco- ••
berto. .,
Aos .11 . de maio de 1545 fez-se., de vela a armada; mal
supprida de tudo, conforme attéstam os documentos; com
cêrca de tresentos homens e ·poucos cavallos. Ambicioso bas-
tante para realizar ~m plano . arrojado, energico em face do
perigo, o commandante obedecia facilmente a suggestões de
terceiros·. Foi por certo devido, em parte, a ellas que dt:sertou
rio abaixo, abandonando Pizarro. Agora era a sua boa fé que
se deixava illudir pelos encarregados e fornecedores . «O a9ian-
tado é tão bom,-escrevia o védor-, que tudo quanto lhe
dizem acredita e vai fazendo; e" _succede que . tanta brandura
ás vezes bem poucó lhe .aproveita».
Saíndo de Sevilha, para se embarcar .em São Lucar, achou
Orellana que, por dividas, lhe havià.m penhorado as velas de
um dos. navios; resgatou-as vendendo parte dos mantimentos.
De noite saíam os tripulantes á terra, a roubar bois, carneiros
e gallinhas, maltratando os guardadores. A pouca distancia no
mar saltearam urria caravella. Faltavam muitas coisas impres-
22 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

cindiveis, mas a mulher do capitão, Anna de Ayala, ia rica de


joias, sedas e bordados. A pôpa do maior navio, onde se
· achava aquella, estava cheia de mulheres, não se concedendo
a nenhum passageiro chegar-se para lá. Tudo isto, e a indis-
ciplina reinante a bordo, eram prenuncios funestos de des-
graça. Em Sevilha o povo presagiava mal da expedição; .as
autoridades, scientes das faltas e abuso~, quizeram obstar á
partida; mas, quando as ordens chegaram a São Lucar, já a
frota se havia feito ao largo.
A viagem. foi longa, e copiosa de accidentes infelizes. Apor-
taram primeiramente a Tenerife, para fazer aguada; deixarám-
se ficar lá tres mezes, á espera ·de recursos da Europa, que
nunca vieram. D'ahi foram buscar cento e cincoenta vaccas a
uma das ilhas de Cabo Verde, onde perman~ceram mais dois.
Foi-lhes fatal a demora, porque ·adoeceram muitos de moles-
tias da terra, perecendo noventa e oito. No surgidouro se vi~
;am acossados de temporaes, com que perderam onze ancoras
e amarras, tendo de abandonar uma das embarcações, para
não ficarem as outras inteiramente desprovidas de ferros . Na

•• hora da partida· desertaram cincoenta homens, e entre elles al-


guns officiaes de postos superiores. Rematou esta primeira
serie· de infelicidades o fugir da conserva um navio, que tinha
a bordo setenta e sete pessoas, onze cãvallos, e um bergantim
destinado a navegar os brai;;os menores do Amazonas. Desta
embarcação nunca mais houve noticias. As outras duas prose-
guiram a viagem, com tempos contrarios e falta de aguada,
valendo aos navegantes as copiosas chuvas, sem as quaes te-
riam todos perecido.
Com todos estes incommodos chegaram á vista de terra,
recon.heceram o cabo de S. Roque e, seguindo a costa, pas-
saram perto e á ·vista' do Maranhão.
Esta circumstancia, mencionada por um dos companheiros
de Orellana, é mui importante por nos mostrar que a gente
da frota bem sabia não ser o rio dás Amazonas o Maranhão
- dos portuguezes, confusão vulgar naquella epoca 1. Conti-
nuando por mais umas cem leguas, na distancia de doze da
terra, encontraram agua doce. Era este signal que o capitão

1 Veja-se no Appendice a nota A.


O DESCOBRIMENTO 23

buscava, e com isso declarou ser ali o destino da viagem. No


dia seguinte, ,depois de terem estado a pique de se perder nos
baixos, surgiram no rio,- entre duas ilhas mui abundantes de
fructas e pescàdo. Era a festa de Nossa Senhora ~o Ó, 20 de
dezembro de I 545.
Em breve ia terminar a ·lamentavel Odysseia. Orellana,
cujo unico inqicio era o inar de agua docé, não atinava com
o caminho. Subindo o rio, perdia-se no labyrinto de ilh~s e ca-
naes, não reconhecendo nenhum dos logares por onde passara.
Mandou de~manchar uma das naus, para fazer um bergantim,
e lançou-se· neste em busca·dê> braço principal. Fez .duas 'ten-
tativas: na segunda encontrou a morte.
.•

IV

Deu-se, conforme toda a probabilidade, este facto, quando


Orellana, conseguindo afinal saír dos estreitos, por onde o rio
do Pará communica com o braço occidental do grande estua- .
· rio, já se dirigia caminho do oceaq.o.
Tein-se invocado a circumstancia de pedir o adiantado pi-
lotos portuguezes, para asseverar que já então ~?ssos antepas-
•'
sados perlustravam· o Mar Doce de Pi!1zon, ou que tambem
Orellana participava no erro commum de confundir esse rio
com o actual Maranhão. Pelo contrario, a impressão, · que se
·colhe nos documentos relativos á viagem, é perfeitamente
- opposta a uma e outra · coisa. Com effeito, delles não consta,
por modo álgum, serem essas as idéas do descobridor. O Con-
selho da• India, apreciando a relação e r~uerimento de 0rel-
lana, declara que este - «a lo que dice ~vino a salir por un
rio grande que es en la costa dei Brazil, que está en la de-
marcacion dei sereníssimo Rey de Portugal ». E accrescenta:
- « aunque tenenzos por cierto que debió salir por el rio Mara-
non » i - mostrando âssim ser esta opinião adversa á de Orei-

1 Este documento e todos os que se allegam, relativos a Orellana,


foram extraídos dos archivos espanhoes pelo distincto escriptor Doin José
Toribio Medina, e vem impressos na erudita obra do mesmo senhor, intitu-
lada Desc11bl"imie11to del rio de las Amazonas, segtm la ·1·elacio11 de f1·. Gaspar de
Carvajal, Sevilha- 1894.
os JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

lana. Não menos concludente é o empenho de João de Sande


em grangear o concurso de_algum companheiro delle: porque,
se a expedição se diri.gisse para onde fôra a de Ayres da Cu-
nha, teria pilotos de casa: e, sendo ella destinada ao Mar
Doce, o mesmo succederia, se os portuguezes o conhecessem já.
O pretendente acceitou por necessidade a opinião do Con-
selho das lndias, de quem dependia para obter o governo das
terras, licença e soccorros para a armada; -mas, fiel ás suas
idéas, passou á vista do Maranhão, e foi buscar mais ao norte
a Nova Andaluzia. .
Francisco de Guzman, (é es.te o nome do informante que
nos guia), refere que a costa corre -de -leste para oeste, e o rio
na linha norte sul. Tomadas as alturas dos pontos, por onde
entraram e por onde saíram, a distancia é de 57 leguas.
Nada mais é preciso para nos certificarmos que a entrada foi
pelo rio do Pará; a saída pela ·bôca do Amazonas._
No dia seguinte ao em que penetraram no rio, deram fundo
entre du~ ilhas bastante povoadas: póde-se suppôr fosse na
bahia do Sol, perto das ilhas de Collares e do Mosqueiro. Na
vespera, quasi se perdem nos bafxos: deviam ser os de Bra-
( ( . gança. Tu.do isto a simples inspecção do mappa nos confirma.
Subiram o rio por espaço de cem leguas; mas a avaliação
das distancias é ~ontestavel: de certo a perturbavam os mean-
dros da costa, e a differença de marcha por effeito das marés.
Construido o · bergantim, a navegação que fizeram foi para o
sul e sueste; neste ultimo rumo proseguiam, quando, informa
o narrador, e ao cabo de termos andado nelle vinte leguas, o
grande crescer da maré nos fez rebentar um cabo que tínha-
mos, e dar á costa a nau, da qual só aproveitámos a pregaria
para fazer uma barca» . -Ora, entre a bôca do Pará e o ar-
chipelago a oeste da ilha de Marajó, o unico curso d'agua que
vem francamente de sueste é o Guamá. Seria pois nesse rio
que Orellana procurava o braço principal do Amazonas? Em-
barcações de pouco porte, quaes eram as suas, podiam facil-
mente subil-o, e então supporemos ter sido á pororóca a grande
maré que fez sossobrar a nau.
Desse logar o adiantado partiu, deixando alguns compa-
nheiros, em numero de trinta, occupados na obra do novo
bergantim. Regressou ao cabo de vinte e sete dias, tendo, ao
O DESCOBRIMENTO • . 25

que parece, encontrado a passagem, e como faltassem muitos


mais para rematar a construcção, abalou-se novamente em
busca de ouro e prata, com que tencionava voltar á Espanha,
abandonando a idéa da conquista. Após elle seguiram os com-
panheiros, quando ptizeram a nado a embarcação. Doceis in-
digenas os. guiaràm por complicados esteiros, até onde o Ama-
zonas proprio vai procurar o Atlantico. .Antes deste foram
dar numa terra firme, chamada dos indígenas Comao, talvez
Cumaú: devia ser a costa da Guyana, onde está hoje Macapá.
Um rio de pouco espaçoso leito cortava esta terra: póde-se
crêr fosse o Mutapy. Ahi lhes trouxeram os índios mantimen-
tos diversos, entre os quaes aves da Europa. Descendiam por
yentura das que algum-a expedição anterior tinha deixado:
Pinzon, Diogo de Lepe, ou o incognito Maraiion, de quem não
apparecem vestígios, mais que as não provadas asserções dos
historiadores.
Entretanto, novas do capitão não havia. Na mal segura
embarcação, arrostando a cada instante com a morte, entra-
.
ram finalmente. no oceano. Ventos e correnteza os levaram - á
ilha Margarita. i.á encontraram a viuva do adiantado, que lhes
contou a morte deste e a segunda deserção, mais criminosa, •'
se é possível, que a primeira. Enfermo e desanimado, não en-
contrando o caminho da região maravilhosa, cujas riquezas
annunciara a Carlos v, tinha resolvido o abandono dos seus,
quando lhe veio a morte.
bos que tinham saído com elle de Espanha, poucos resta-
vam. Esses tinham passado fomes, sedes, trabalhos e priva-
ções sem conto; tinham visto perecer muitos companheiros á
mingua, outros de molestia 1 dezesete ás mãos dos selvagens.
Da ilha Margarita os !>Obreviventes da expedição separaram-se,
indo proseguir em outros pontos do Novo Continente o 'sonho
de ambição, pelo qual tinham abandonado a serenidade da
existencia na patria. Anna de Ayala foi desse numero.
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Deixemos de parte a tentativa mallograda de Lui~ de Mello


e Silva, e a phantasiada viagem de João Affonso, piloto ao
serviço de Portugal, e em razão da sua nacionalidade cogno-
minado -o fi·ancez. A primeira terminou por um naufragio,
nos mesmos baixos do Maranhão, onde Ayres da Cunha se
perdera; a outra tornou-se cónhecida na historia geogra phica
por uma obra manuscripta, em que o pretenso descobridor dá
largas á sua imaginação fecunda.
A empresa seguinte, deJ:;ignada·nas chronicas como Vt"agem
de Ped1·0 de Ursua e Lopo de Agui1·re_, solicita desde já nossa
attenção. É a mais tragica e memoravel das aventuras· a que
a cubiça dos conquistadores deu logar nestas. terras. Em I 560
saíu do Peru uma expedição, pelo Huallaga, buscando o rio
das Amazonas, cujas solidões promettiam ainda os thesouros,
que a Pizarro não fôra dad_o encontrar. O logar denominado
Salto de Aguirre, e as quasi apagadas inscripções de um ro-
chedo, no primeiro rio, perpetuam a memoria dos extranhos
successos.
Uma horda de selvagens, fugindo do Brazil aos portugue-
zes, e perseguida em caminho por outras cabildas, atravessara
•de leste a oeste o continente. Esta migração durou dez annos,
e levou os barbaros até perto de Quito, onde logo se conta-
ram delles surprehendentes casos. Constava terem atraves-
sado a terra dos omaguas, na qual se encontravam grandes
cidades e, nestas, ruas inteiras de ourives. Os habitantes, ao
verem nas mãos dos forasteiros trastes de ferro, lh'as toma-
vam, ·dando em troca objectos tauxiados de ouro, e engasta-
dos de finas esmeraldas. Sabedores que o apreciado metal vi-
nha de outras gentes, que demoravam em remotas regiões,
para a banda do nascente, pediam aos seus novos amigos que
voltassem, assegurando que de boamente lhes dariam ouro por
quanto ferro lhes trouxessem.
Mais não era preciso para accender a cubiça dos espa-
nhoes. De onde teria saído o extranho conto não é possível
averiguar-se. Levantara-se uma voz, talvez referindo .caso bem
O DESCOBRIMENTO 27

diverso; e accrescentada, transposta a mesma; lançado nas


férvidas imaginações o . germen das mais audaciosas chimeras;
em pouco tempo se deu por assentada a conquista do reino
maravilhoso. ·
Pedro de Ursua foi o commandante escolhido pelo vice-rei
do Peru. Os soldados eram, no maior numero, aventureiros
dos peores, relíquias das passadas luctas, com que Pizarro e
Almagro haviam posto a fogo e sangue o territorio. Entre el-
les se distinguia, pela ferocidade e animo traiçoeiro, Lopo de
Ag~irre. Esse ia ser o cabeça da sanguinaria empresa, e autor
dos crimes e perfidias, que a deixaram notavel na tradição.
Com poucos dias de viagem, e por instigações suas, revol-
taram-se os soldados. Ursua caíu · sassinado;· e novo capitão,
eleito por elles, assumiu a dignidade reaI. No meio das selvas
amazonicas foi proclamado monarcha Fernão de Guzman. Di-
latado imperio, que se extendia por centenas de leguas, até
onde o soberbo rio métte no oceano suas aguas! Triste ·côrte,
cuja resiôencia eram pequenos barcos mal construidos, rema-
dos por índios, e todos os dias em reparos! Varias damas
acompanhavam a expedição, e vinham, com seus maridos e
amantes,. participar do luxo e riquezas do aureo reino que bus-
cavam. A presença dellas accendia desejos, provocava zelos,

fomentava intrigas, e era grande parte nos odios, que separa-
vam em campos inimigos tantas almas te_n ebrosas.
Entretanto, ·os que sonhavam opulencias definham á min-
gua. Meios de subsistencia só os podem grangear salteando
as povoações de índios nas margens indefensas, i:emeando por
toda a parte ruínas e terror. As ·machinações de Aguirre con-
tinuam, e a seus golpes succumbe, dentro em pouco, o rei im-
provizado. A imaginaria corôa passa ao assassino que, em
accessos de furia homicida, temeroso ~os seus mais íntimos,
cada qia procura a propria segurança em novo~ crinies. Nem
poupa sequer as desditosas, que as prometti<!as maravilhas da
expedição tinham levado áquelles desertos. A que fôra amante
de Ursua, e depois passou ao~ braços de um dos matadores,
é a primeira sacrificada. Suspeitas, desaffeições, denuncias,
provocam as sentenças do tyranno, que cadà dia vai assim
rareando o numero de seus sequazes.
Descendo as aguas do immenso rio voga a armada até ao
28 OS JESUlTAS NO GRÃO-PARÁ

Atlantico, e desta vez as amazonas de Orellana não cortam o


passo aos navegantes. Os ousados maranhões, (como taes se
appellidavam), ' desembarcam na ilha Margarita, oride põem
tudo a fogo e sangue. Passam em seguida á costa de Vene-
zuela, que saqueiam. Levantam-se para os repellir as popula-
ções em armas; a audacia tem de ceder ao numero; Aguirre
paga com a vida os crimes da sua curta realeza, irrisoria e
cruel.
· O heroe desta aventura é da mesma estatura moral de
Cortez, e Pizarro, e tantos outros, cujos feitos enchem de hor-
ror as paginas da historia da America. A Lopo de Aguirre
nenhum sobreleva em dotes• de soldado; todos lhe são eguaes
em ferocidade e alma pe .rsa. A differehça é que aquelles
assassinavam em nome da religião e do monarcha; este expõe
a descoberto a natural hediondez do seu caracter. NeII]. é 9e
extranhar o delírio das grandezas, que o tomou, impellindo-o
a proclamar-se rei. Tal idéa era a natui·al consequencia da ex-
citação, em que o desejo de poderio e riquezas lançava o es-
pírito do conquistador. Quasi um rei era cada soldado, · no
meio das infelizes populações, de cujo alvedrio e vidas dispu-
nha. D'ahi á quebra cios laços de obediencia e solidariedade,
que o prendiam á patria, a distancia era minima. Lopo de
Aguirre facilmente a transpoz.

VI

Correram· lustros. Pela banda do Peru os missionarios cas-


telhanos foram, pouco a pouco, alargando a descoberta. Menos
pavidos ou mais habeis marinheiros que· seus rivaes da penín-
sula hispanica_, os hollandezes demandaram a bôca occ:;idental
do rio ignóto, e foram com os indigenas muito acima, dentro
delle. Pela barra oriental entraram os francezes, vindos do Ma-
ranhã Ó e, logo após, Caldeira Castello Branco, para fundar o
Pará. Estabelecidos definitivamente os portuguezes, cuidaram
de expellir os invasores extranhos: a obra foi rapida e, pouco
espaço decorrido, não restava delles mais que a memoria. Che-
gamos assim ao anno de 1637 em que, pela viagem de Pedro
O DESCOBRIMENTO

Teixeira a Quito, Castella e Portugal deram as mãos. A des-


coberta foi alfim definitiva. Deu-lhe origem o enthusiasmo dos
missionarios, e a mesma crença nas regiões fabulosas, motivo
de anteriores explorações. ·
Cêrca de I 6 36 saíram de Quito uns religiosos franciscanos
em missão aos indios Encabellados, na confluencia dos rios
Napo e _.f\guarico. Os espanhoes. designavam assim esta nação,
pelo costume de homens e mulheres deixarem crescer os ca-
bellos de forma tal, que lhes caíam abaixo dos joelhos. De es-
colta aos missionarias foram poucos soldados, ao mando ~o
·capitão Juan de Palacios. Começaram na maior cordialidade
as relações com os selvagens; mas ao cabo de pouco tempo
rompeu, .segundo o costume, a d prdia. Severidades dos mis-
sionarios, ou, como allegam estes, violencias dos soldados, le-
vantaram os índios em armas. Saíu-lhes ao encontro Palacios,
de espàda e rodella, e foi morto por elles. V ~rridos por uma
descarga de arcabuzes, sumiram-se os matadores nos bosques.
Mas já os militares desanimavam da resistencia e os religiosos
da conversão; por isso decidiram ·refugia._r-se em logar mais se-
guro, emquanto aguardavam soccorros.
Da gente armada sáe então um aventuteiro portuguez, de ••
no.me FranciscQ Fernandes, com extranhas propostas. Estivera
no Grão-Pará, onde, a seu ver, se iria dar, baixando pelo
Napo. Lá colhera noticia de que, por aquelles "rios, se encon-
trava o El-Dorado, e a Càsa do Sol; descoberta que, realizada,
.satisfaria as ambições mais intensas:
- Não eram já naquelle tempo estes soldados os credulos
heroes, companheiros de )>izarro e Pedro de Ursua. Mediano
foi o entht!siasmo que o inesperado alvitre acordou. Entre elles
se levantaram duvidas, nasceram discussões. Afinal, lançaram-
se em uma canôa dois leigos da missão, com seis soldados, e
dois índios remeiros, confiando seu destino á correnteza. Caí-
ram no Amazonas, e renovaram, C<?m menos peripecias, .ª via-
gem do Orellana, salvo que foram colhidos no caminho pelos
colonos do Pará, sem o que •teriam d.a do como elle no oceano,
onde inevitavel seria a sua perda.
Já por essa época as explorações dos portuguezes se ha-
viam dilatado muito pelo rio acima: primeiramente para ex-
pulsar os est~·angeiros, depois escravizando indios, e na caça
30 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

ás riquezas naturaes. Antonio Vicente Cochado, piloto-mór de


Pernambuco, que guiara desde São Luiz a expedição de Cas-
tello Branco, havia subido mais de quatrocentos leguas a por-
tentosa corrente. Foi elle que por. uma vez destruiu um en-
gano fatal aos navega1ites: o mundo geographico soube afinal .
que o Grão:Pará, e o rio· por onde Orellana descera, faziam
um só. Cochado marginou o delta, e achou que 130 legúas
pela terra dentro a corrente se divide en:i dois braços. Por in-
dicações suas, o cosmographo Pedro Teix eira debuxou em
Portugal um mappa, onde com exacção e clareza pela pri-
meira vez se inscreveram estas costas. Infelizmente parece
ter-se perdido este precioso documento geographico i.
Grande foi a surpresa ~s portuguezes quando ao seu pri-
meiro posto, em Gurupá, viram chegar ps fugitivos. Famintos,
semi-nús, hypnotisados pelo terror dos selvagens, mal sabiam
dizer por onde vinham, que terras tinham atravessado. Perdi.'
dos na solidão immensa, assombrados do volume das aguas,
por vezes agitadas como as do oceano, receosos de algum en-
contro fun6Sto com tribus indomitãs, consideravam 'milagroso
o salvamento. Tinham caminhado, por seus calculos, duzentas
leguas entre as riba:> desertas, quándo se lhes deparou nova
região populosa, a provinda dos om aguas, onde os doceis sel-
vicolas lhes _fornece ram mantimentos. Desceram sempre as
aguas caudalosas: n~o viram o El-Dorado nem a casa do Sol,
mas na bôca do Tapajós lhes saíram ao encontro os índios
bravos, e os despojaram de tudo que traziam. Ainda combali-
dos do susto, receberam, como benção do céo, o ~gasalho dos
portuguezes. A aventura lhes parecia estupenda; e a viagem
superior ao limite das forças huma nas. Considerando os peri,.
gos e a novidade do acontecimento, uns e outros, salvadores
e soccorridos, attribuiram a milagre o impulso da empresa, e
o feliz desfecho della. .

1 Cf. Viaje dei Capitati Pedro T eixeira, por M. Jimenes de la Espada.


Madrid, i 889.
O DESCOBRIMENTO 31

VII

Conduzidos os viaja11tes a São Luiz, onde se achava o go-


vernador Jacome Raymundo ·de Noronha, viu-se este obrigado
a emprehender a cabal exploração do rio, que já da côrte,
por diversas vezes, fôra recommendada. Um dos leigos par-
tira para a Europa a dar parte do ·succedido ao governo; o
outro, . frei Domingos de Brieva, ficou para servir de guia
á projectada expedição. No marinheiro portuguez Francisco
Fernandes, principal motor da aventura, talvez pela humildade
da sua condição, ninguem mais raif. '
Preparou-s~ uma armada de quarenta e sete canôas, a
maior parte de grande porte; mil e duzentos indios de remo
e peleja, mais de sessenta soldados porfüguezes, as .guarne-
ciam; contando as . mulhe~es e creanças, ascendia o numero
total a duas mil e quinhentas almas. General da expedição
foi o capitão Pedro Teixeira, êujo nome fica indissoluvelmente
ligado ao definitivo descobrimento do Amazonas.
Era este illustre portuguez, que convem não c01:ifundir
••
com o cosmographo seu homonymo, natural de Cantanhede,
no Douro. Soldado de fortuna, tinha chegado ao Maranhão
com a armada de Jeronymo de Albuquerque, que expulsou os
francezes. Distinguiu-se na batalha de Guaxenduba; acompa-.
nhou Francisco Caldeira Castello Branco na expedição ao
Grão-Pará; e, combatendo os invasores, tomou parte, de 1616
a 29, em todos os successos re ferentes ao definitivo estabele-
cimento e segurança da colonia. · ·
Achava se então Pedro Teixeira nessa quadra da existen-
cia que, para os homens· de robustez physica e mora~, é a
mais bella e fecunda. A prudencia da edade madura juntava
a indomita coragem dos annos juvenis, com o vigor proprio
da sazão, em que o organism~ humano attinge o maximo de-
senvolvimento. Estes dotes lhe permittiràm levar a cabo, sem
embaraço, uma empresa difficil, em que outros, menos fortes
ou ditosos, tinham antes succumbido.
De Gurupá, onde se juntaram todas as unidades da expe-
dição, partiu esta a 17 de outubro de 1637. Correu a viagem
32 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

sem mais inconvenientes que os offerecidos pela impetuosa


corrente do rio. O leigo e outros fugitivos não eram, na ver-
dade, guias excellentes: o temor dos anthropophagos, que os
cegava na descida, e a extranheza do longo itinerario, ser-
viam-lhes de excusa ás falhas da memoria; mas a natural agu-
deza de Pedro Teixeira, e os esforçôs de seus auxiliares, , re-
miam com vantagem a incapacidade dos improvisados pik>tos.
Além da foz do Madeira, rio que assim denominaram
pela quantidade de troncos que suas aguas acarretavam, de-
ram na região dos omaguas. Estes indígenas eram os menos
barbaras do percurso, todavia, extranhos no aspecto, pelo ha-
bito de deformarem a cab~ça, comprimindo-a em talas,. desde·
a primeira infancia; usavam camisas de algodão de varias
côres; pareciam de caracter brando, e jubilosos acceitavam os
presentes dos forasteiros, trazendo-lhes em troca milho, bata-
tas dive-rsas e tartarugas. Mais adiante encontraram outr~s
índios com enfeites de ouro nas orelhas e narizes. Interroga-
dos, respondiam estes que o metal vinha de uma serra pro-
xima, de onde excavando com ·as lanças poderiam os portu-
f f guezes extraír quanto lhes aprouvesse. Enganósa noticia tjue
os barbaras, por desvincilharem-se, davam, ou invenção do
chronista, dominado pela sed'ucção das legendas ambientes?
Ácerca das amazonas o mesmo succede; a cada passo a tra-
dição dos índios, ou, o que é mais de suppôr, a imaginativa
dos viajantes nos fala dellas.
Á medida que se ia espaçando a jornada, minguava a fide-
lidade do gentio da expedição. O trabalho era duro, as priva- _
ções çonstantes, e a incer~eza -da aventura quebrantava os
animos, já de si pouco fortes. A bem dizer, só violentados
iam ali os indigenas ; não se tratando de assaltos e matanças,
em que a· sua naturàl fereza se .deleitava, era difficil gran-
gear-lhes as vontades. A muitos prostrava a doença e desses
bastantes succumbiam; dos que restavam validos eram quoti-
dianas as deserções. Em taes circumstancias, perigando a
empresa, Teixeira soccorreu-se de um estratagema feliz. Ti-
nham passado cinco mezes desde a partida. Aproveitando a
geral anciedade, o commandante fez correr voz na armada de
achar-se perto o termo da viagem, e expediu uma flotilha de
oito embarcações, que fosse adiante annunciar a boa vinda.
O DESCOBRIMENTO 33

Surtiu-lhe o alvitre, pondo termo ás fugas. No primeiro barco,


como chefe da força avançada, ia o mestre de campo Bento
Rodrigues de Oliveira. Natural do Brazil, onde vivera sempre,
eram-lhe fa~iliares os segredos do matto e os costumes dos
indigenas. Explorava o caminhq, dispunha as aldeias a rece-
berem o grosso da armada, e preparava os abastecimentos.
Cada dia o general encontrava no logar, ond~ tinha de repou-
sar, indicações precisas sobre os itinerarios e os meios de
occorrer ás necessidades da expedição.
A 15 de agosto de 1638 aportou Pedro Teixeira no Paya-
mino, affiuente do Napo. De lá caminhou em direcção a Quito,
onde frei Domingos de Brieva, que acompanhou a vanguarda,
o tinha precedido. Não foi menor o alvoroço na cidade com a
volta do religiosó, que todos julgavam morto, que o dos por-
tuguezes, quando viram chegar á suaterra, em tão fragil em-
barcação, os poucos fugit~vos espanhoes. Ao encontro de Pe-
. dro Teixeira saíram as mais gradas pessoas de Quito. Expe-

.
diu-se noticia para Lima ao vice-rei; e foi o proprio piloto da
armada, Bento da Costa, levar-lhe o roteiro da viagem, e a
planta do rio, que agora mais uma vez perde o nome. Passa
elle a chamar-se São Francisco dé Quz"to: porque a nova des- '
coberta se dev~ á ordem seraphica; e porque êla cidade cor-
rem as aguas (tal era a idéa dos navegantes) directamente
até ao mar.
Não foi porém o effeito da jornada qual se podia julgar do
merecimento della. O cauteloso chime, com que Espanha guar-
dava as suas colonias, entrou em sobresalto. Os homens do
governo reflectiram que pelo mesmo caminho podiam vir os
flibusteiros bretões ou da Hollanda surprehendel-os. Portugal
agitava-se já nos prodromos da futura rebellião. Convinha a ·
todo o custo inutilizai: a descoberta; e a primeira providencia
foi intimar aos portuguezes que voltassem no menor prazo
possível ás suas terras: assim o determinava o vice-rei.
Não devemos esquecer o intermedio comico da viagem: a
disputa entre franciscanos e jesuítas, pela honra e proveitos
da descoberta. Entrava nas instrucções do vice-rei o manda-
rem-se á côrte de Madrid pessoas de autoridade e lettras bas-
tantes que; acompanhando a expedição na baixada, servis-
sem de fiscaes. Offereciam-se para o encargo pessoas das mais
5
34 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

qualificadas do districto; ·com direitos adquiridos requériam


para si os franciscanos; mas pertenceu a palma aos jesuitas.
Com grande escandalo dos frades menores, a Real Academia
de Quito elegeu para a honrosa missão os padres André de
Artieda e Christovam de Acuna da Companhia. O ultimo foi
o autor da relação que, saindo a publico, tornou famosa esta
viagem.
Chegara dezembro de 1639, e a doze do mez entrou a frota
em Belem, decorridos mais de dois annos que partira de Gu-
rupá. Pode dizer-se que aqui termina o período da descoberta.
Todas as explorações, realizadas em seguida, não são mais que
inevitaveis corollarios desta feliz jornada. Não obstante, es-
cassa gloria adquiriu para si a principal personagem della. O
nome do jesuita sobrepoz-se ao de Pedro Teixeira na memo-
ria da posteridade; os leigos franciscanos desappareceram; do
soldado Francisco Fernandes, que teve a afortunada idéa de
imitar o desertor de Pizarro, ninguem sabe. O proprio rio per-
deu a denominação passageira, que recordava um facto, em
que tomara parte a gente seraphica. Christovam de Acuii.a
não desprezou a lenda das amazonas; avigorou-a, pelo contra-
' e rio, com testemunho novo. Tres ordens religiosas se punham
de accordo pãra impôr á credulidade universal a patranha de
Orellana, e succedeu emfim que só por ella a designação geo-
graphica se vincula á lembrança do primeiro descobridor.
~ OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

No extremo da pequena cidade, junto ao mato, no logar


Jª então denominado a Campina, - levantaram os amigos do
apostolo mesquinha palh~ça. Ali fizeram residencia e capella.
O Christo devia regosijar-se naquella humilde morada, tão
despida de atavios como o presépe de Belem, e onde almas
ainda mais singelas que as dos pastores. da Judéa vinham
adorai-o e escutar a lei nova.
Desta maneira tomou a Companhia assento no Pará. O
resto do Brazil já então lhe pertencia, e em Portugal estava o
seu dominio firmado havia muitos annos. Pobres, obscuros,
hl,lmildes, estes homens de coragem e fé haviam·se imposto á
nação, impellida á decadencia pelo excesso de uma transitoria
prospe_ridade. Á cubiça, ao desregramento, á mollicia, tinham
elles opposto a viva demonstração das mais austeras virtudes.
Os conquistadores do Oriente, brandos pelo abatimento do
caracter, acceitavam facilmente o jugo desses homens resolu-
tos e de sã consciencia; que para servirem um grande ideal
abdicavam a vontade propria, todos os interesses humanos, as
inclinações mais caras. O mesmo voto da obediencia absoluta

.' era para elles uma força; pois onde encontraremos alforria
mais completa das peias que nos sujeitam as acções? Receios
de consciencia, considerações por terceiros, incertezas do por-
vir, de tudo isso viam desannuviados os horisontes do espírito,
que livre se podia consagrar ás obrigações de uma nobre
causa.
Recommendados por Dom Pedro de Mascarenhas, enviado
de Portugal junto á Santa Sé, vieram á côrte de Dom João III
os dois primeiros jesuitas. Um delles, Francisco Xavier, partiu
logo para o Oriente, onde sua passagem foi comó um rasto de
brilhante meteóro. O outro, Simão Rodrigues de Azevedo, ficou
sendo em Lisboa o oraculo do governo. Mas, recusando as gra-
ças do soberano, elle e seus companheiros viviam em absoluta
pobreza. De dia mendigavam nas ruas, á noite pousavam ó.os
hospitaes; serviam os enfermos, visitavam as cadeias, préga-
vam na praça publica, exhortando os transeuntes á penitencia.
Similhantes praticas a muitos pareceram ridículas. A mesqui-
nhez da existencia, a compostura modesta, que os novos apos-
tolos adoptavam, não podiam dár-lhes prestigio entre um povo
costumado a ver no clero ostentações de opulencia e domínio .
.
ESTABELECIMENTO DAS MISSÕES 37

Começaram a ser designados no vulgo por z·diotas. O favor


que Dom João III lhes dispensava causou surpresa; a Univer-
sidade admirava-se que um rei prudente fizesse tanto caso de
gente idz.ota; e o conqe de Sortelha, para desculpar o monar-
cha, dizia que elle por idiotas os considerava, e só os mandára
vir ao reino para converterem os negros de Africa e os gen-
tios da India t.
Mas bem depressa foi outra a situação. Em Portugal, como
em toda a parte na Europa, as piégações attraíram á Socie-
dade grande numero de proselytos. A nobreza não tarqou a
trazer-lhe seus filhos, e um principe da casa de Bragança 't
abandonava os regalos da côrte pela roupeta da Corrtpanhia.
O rei, devoto por temperamento, mandava chamar ao paço os
noviços, comprazendo-se de ver-lhes a humildade 3 • O reino
estava portanto conquistado.
No Brazil, aonde t:om os primeirq,s niissionarios foi o ve-
neravel Anchieta, não buscavam melhor os confôrtos da exis.
tencia; tão pouco evitavam as tarefas mais rudes. Os proprios
padres foram os carpinteiro~ e pedreiros, na obra da edificação
de sua igreja, na Bahia. Nas missões, alguns faziam alpercatas,
outros obras ~e ferreiro e carpinteiro. Das commodidades que
tinham refere um escriptor da Companhia: «As camas eram
rêdes, conforme os índios costumam; os cobertores o fogo
para o qual os irmãos commummente, acabada a lição da
tarde, iam por lénha ao mato, e a traziam ás costas para
passarem a noite; o vestido era muito pouco, pobre e de
panno de algodão, sem calças nem sapatos» 4. Este espírito de
abnegação continuou sendo por muitos. annos attributo dos
missionarias. Quasi um seculo ...depois, ·dizia Antonio Vieira:
((Deus sustentará com a providencia que costuma aos que, por
se empregarem todos em seu serviço, não reparam em com-

l · Cf. P. BALTHAZAR TELLEs: Chronka, cap. 28.


2 Dom Theotonio, irmão do dúque Dom Theodosio e sobrinho de
Dom João III; .
3 cc E muito se edificava de os ver vestidos em pelotes, com mantéos
curtos, com uma canna por bordão, e com o alforge pendurado de um tira-
collo de ourêlo. • -P. BALTHAZAR TELLES, Chronica.
4 VASCONCELLOS, Chron. da Comp. de Jesus.
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

modidades proprias; um punhado de farinha e um caranguejo


nunca nos pode faltar no Brazil, e emquanto lá houver algo-
dão e tujucos não nos faltará de que fazer uma roupeta da
Companhia> t.
Não obstante o acolhimento que tinham de muitos, tão
manifesto desprezo dos bens terrenos escandalizava a soberbia
dos grandes, como affronta aos habitos faustosos dos vence-
dores da lndia. Após o ridiculo, surgiu contra esta gente in-
comprehensivel a malevolencia. Os companheiros do mestre
Ignacio,-assim lhes chamavam em principio,-passaram a
ser conhecidos pela designação suspeitosa de franchinotes e
extrangeiros. Ao mesmo tempo, seus immediatos triumphos
de catechistas apontavam-nos como perigosos rivaes aos outros
membros do clero e á Inquisição; as denuncias chegáram á
presença do Infante Dom Henrique, inquisidor-mór e depois
rei, que mandou devassar-lhes da doutrina, injuria suprema ir-
rogada a quem tinha por fim determinado guardar illibada a
pureza do romanismo,.
Se no reino isto succedêra, no Brazil tinham de entrar em
lucta aberta com os colonos, mettendo-se de permeio entre
• elles e os naturaes, na questão dos captiveiros. cNos primei-
ros tempos (refere um chronista) vivia-se do rapto dos indios,
e era todo o officio assaltai-os por valentia> !i. Não se encon-
trava nesta nova· conquista ouro, nem pedras finas, nem os
inexgotaveis thesouros do Oriente. Um pouco de pau brazil,
alguns macacos e papagaios, eram os productos extraídos da
colonia. Toda a riqueza dos povoadores consistia na posse de
escravos. As guerras dos selvagens entre si tornavam copiosa
a fonte dos captiveiros; por isso os invasores as favoreciam e
suscitavam. Em I 558 chegando Mem de Sá á Bahia, com um
bando pelo qual se prohibia aos indios alliados dos portugue-
zes fazerem guerra aos seus sem justa causa, oppuzeram-se
os moradores, allegando que dessas guerras lhes vinham os
braços para o trabalho. No Rio de Janeiro, após um combate
contra os tamoyos, foram pelos portuguezes induzidos os in-
dios, seus parciaes, a trucidar e comer um principal dos ini-

1 Carta ao Provincial do Brazil: Lisboa, 14 de novembro de 1652.


2 VASCONCELLOS, ibid.
ESTABELECIMENTO DAS MISSÕES 39

migos, para assim mais se a:ccende'r o odio reinante entre as


duas nações indigenas. Impedindo os missionarios tanto quanto
podiam estas praticas, não lhes foi demorado grangearem a
inimizade dos brancos : e o que vamos vêr no Pará não será
mais que a reproducção do que se passara nas capitanias do
sul, em annos anteriores.

II

De par com a hostilidade dos colonos, participavam os re-


ligiosos muitas vezes da animadversão dos indios convertidos,
já naturalmente inclinados á desconfiança. As doenças que
accommettiam os neophitos, em razão da mudança de yida e
costumes, e pela communicação com os europeus, attribuiam-
nas a maleficios dos padres; outras vezes ao baptismo; damnos
de qu_e buscavam defender-se por tneio de conjurações ri-
tuaes t. Além disso, para tornar-lhes os missionarios suspei-
tos, bastava a . circumstancia de serem brancos; pois « a vida
pouco exemplar da gente· portugueza (que naquelles tempos
obrigada por justiça ia povoar o Brazil) sua cubiça, seus en-
ganos e sua devassidão nos costumes, faziam entre aquelles
gentios odioso o nome portuguez » 2.
O primeiro jesuita, que pisou terra brazilica, foi o padre
Manoel da Nobrega, ido em I 549 com o governador Thomé
de Sousa. De bordo da nàu saíu com uma grande cruz alçada,
guiando seis companheiros, entre os quaes Anchieta, para dar
principio á grande obra, niallograda mais tarde, da preserva-
ção dos índios. Ultimamente, estabelecida a residencia no Pará,
fôra realizada a aspiração de tantos annos, e desde e extremo
norte, no Amazonas, até da parte do sul aos ultimos .confins
do Brazil, o immenso territorio estava conquistado para a
Companhia. O Pará abria-lhe assim, nesta parte do mundo, o

«Em certos logares, quando sabiam que estavam para chegar os pa-
dres, ajuntava-se toda a communidade, e queimavam pimenta e sal, como
para retel-os e esconjurai-os não fossem para diante. » VASCONCELLOS, ibid.
2 V ASCONCELLOS, ibid.
40 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

mais vasto campo, onde o arrojo, a perseveran_ça e o genio


evangelizador de seus missionarios tinham de empregar-se.
Já antes elles tinham ido ao longo da costa, com os olhos
fitos na direcção do norte, onde lhes acenava a esperança de
numerosas conversões. Talvez já, no mais intimo de suas con-
sciencias, .desabrochasse a vaga aspiração de um imperio .reli-
gioso, onde no ductil material das almas simples ficasse para
todo o sempre gravado o cunho da humildade christã. Esse
imperio já então começava a ser uma realidade no Paraguay,
e pelo curso do Amazonas, que segundo os cartographos da
época levava por um lago interior ao ·Rio da Prata, facil se-
ria aos dois ramos distinctos da Companhia darem-se às mãos.
Haveria realmente no espirito dos missionarios algum ténue
alvorecer dessa esperança?
Perto de um anno, em 1607, durou a primeira viagem,
grande parte por terra, de Pernambuco á serra de Ibiapaba.
Ahi o padre Francisco Pinto foi martyr ás mãos dos selva-
gens. O outro missionarfo, Luiz Figueira, que o acompanhava,
salvou-se occulto no mato, reservando-se para egual destino
mais tarde.
Foi este ultimo o precursor dos seus no Pará. Chegara em
1636, no sequito do governador Francisco Coelho de .Carva-
lho. Tomado da febre, que nelle foi constante, do proselytismo,
subiu o Amazonas, e embrenhou-se nas matas, a evangelizar
as tribus do Xingú, ainda então mal conhecidas. De lá regres-
sou, caminho da Europa, onde foi por buscar mais companhei-
ros, e requerer soccorros materiaes ao governo de Madrid. Vol-
tou sómente em 1645, trazendo comsigo mais quatorze mis-
sionarios. A embarcação, em que ia com elles o governador
Pedro de Albuquerque, primeiro nomeado depois da Restau-
ração, sossobrou perdida nos baixos, que ficam ·á entrada da
bahia do Sol. Da tripulação e passageiros, com estes o gover-
nador, salvou-se parte nos botes. Os restantes naufragos, em
cujo numero Luiz Figueira e onze dos religiosos, passaram-se
a uma jangada, feita com os destroços da nau. A correnteza
e os ventos levaram-nos á margem opposta, na ilha de Joaa-
nes, onde pereceram victimas da ferocidane dos aruans.
Assim terminou, como em toda a parte, pelo sacrificio da
mais adiantada vanguarda, este primeiro episodio da conquista.
....
ESTABELECIMENTO DAS MISSÕES 41

III

· E~ s:in~e e nos destroços de craneos despedaçados se


aniquillara a primeira tentativa. Os selvagens vingavam
naquelles soldados de paz e doçura. os assalt_os dos conquista-
dores arrogantes e crueis, que por toda a parte lhes davam
caça, até finalmente os encerrarem nas espessuras da sua ilha.
Sem temor por si proprio devia Luiz Figueira contemplar o
ataque dos b arbaras. O tropel pavoroso e os gritos de guerra
eram ·os mesmos, que trinta annos antes ouvira, quando seu
companheiro e mestre perecera em Ibiapaba. Mas pungia-o a
angustia do martyrio, p~los outros, que com elle iam regar de
sangue innocente aquellas praias. Alguns, apenas adolescen-
tes,. que como estudantes tinham partido, haviam de empalli-
decer, no terror do momento supremo. Incitados pela fé, bus-
- cavam trabalho e sacrificios, não a morte immediata e sem
objecto. Ao amo divino, a quem serviam, queriam dar muitas
horas de dedicação. Desejavam tambem a gloria das conver-
sões, o suave prazer dos longos devaneios mysticos, o conforto
dos sacram~ntos, as doces satisfações de uma alma pura. E
todo esse bello edificio, construido na mente desde os primei-
ros annos da escola e do noviciado, ruia agora, no instante
·em que lhe descortiiiavam os appetecidos portaes. Um arras-
tar violento dos passos, tirados pela ·cord~; a vozearia infrene
da turba de ·gente núa e pintalgada; sarcasmos adivinhados
em bôcas disformes ; a visão hypnotica da clava baixando
como a sombra de um vôo; o subito golpe que prostra, .a ce-
gueira, a consciencia em fuga. . . seria isto a entrada no pa-
raisa?
De tres religiosos, escapas do naufragio, nenhum perma-
neceu no Pará. Um succumbiu á doença, outro foi chamado
ao Maranhão; o ultimo, ainda estudante, agora sem mestres,
voltou a Lisboa, para continuar nos preparatorios do aposto-
lado.
Na capitania vizinha outra tragedia ia acabar por algum
tempo com as missões. O intercurso dos jesuitas com os mo-
radores era então :amigavel. A occupação hollandeza e a
6
ESTABELECIMENTO DAS MISSÕES 43

do governo ao Provincial do Brazil, para serem enviados al-


guns religiosos áquelle destino t. Entretanto devia~ os colo-
nos julgar-se definitivamente livres dos incommodos rivaes,
que lhes disputavam o dominio dos indigenas. Mas as ambi-
ções políticas, exaltadas por um estado de constante anarchia;
contendas de interesses, pelas quaes se pretendiam os cargos,
despertaram as attenções e trouxeram novamente a Compa-
nhia. O bem estar dos indios foi o pretexto invocado; mas o
fim real era prejudicar a fortuna dos que os possuíam, como
escravos. Para is~o eram os missionarios o mais adequado ins-
trumento, e foi esse que os descontentes chamaram em seu
auxilio.
Do Pará passou á côrte o ·capitão-mór Ignacio do Rego
Barreto, suspenso de suas funcções, - injustamente ~o que di-
-. zia - , pelo governador Luiz de ~agalhães. Em São Luiz uma
arbitraria resolução do clero depuzera do cargo o vigario ge-
ral Matheus de $ousa Coelho que, não .encontrando justiça ou
apoio no góvernador, fôra tambem levar á metropole suas
. queixas. Os dois, entendendo-se em Lisboa, desdobraram con-
junctamente perant~ o rei um lamentavel painel da situação.
No estado por toda a parte a ruinar, os moradores miseraveis;
os indios escan~alosamente opprimidos; as autoridades preva-
ricando; as leis de Sua Majestade ao abandono, senão vir-
tualmente abolidas; tudo isso requerià remedio prompto e effi-
caz, que os queixosos humildemente impetravam.
Desde longos annos, editos protectores asseguravam os di-
reitos dos indios. Já no reinado de Dom Sebastião a lei de 20
de março de 1570, providenciara sobre o assumpto. No tempo
dos Philippes, as mesmas idéas generosas inspiravam a legis-
lação. A lei de 22 de agosto de 1587, .publicada na chancella-
ria-mór no anno seguinte 2, declarava que sómente os índios
colhidos em justa guerra podiam ser captivos, e recommen-
dava que os outros, empregados nas fazendas, não podessem
ficar nellas retidos por escravos, mas só como inteiramente
livres, é emquanto taJ fôr da vontade delles. Outras disposi-

t C. R. de 22 de outubro de 1649.
2· 15 de março de Ij88.
ESTABELEClMENTO DAS MlSSÕES 45

saía o voto predominante nos conselhos, e o alvitre para os


mais intrincados negocios publicas. Era crível .que de taes
culminancias baixasse ao sacrificado e obscuro viver de pré-
gador da fé nos sertões ?
A subita retirada da politiea, e a resolução cÍe ~oltar á
America, foram-lhe talvez impostas pelo geral. Era costume
na Companhia apear os padres quando chegavam á mais ele-
vada proeminencia politica, mas aqui é de crer tivessem parte
instancias do gabinete de Madrid. Nas contendas diplomati-
cas Vieira era um temido adversaria. Em Roma, o embaixa-
dor duque do Infantado, desesperando de vencei-o, mandara
attentar-lhe contra a vida: o jesuíta salvou-se pela fuga. Que
muito era agora que o rêtirassem das funcções políticas, e o
fizessem partir para um remoto exilio?
Sabedor dos negocios a que vinham Ignaçio do Rego Bar-
~eto e o vigario geral, Vieira, chamado ainda a conselho, fixou
• talvez nesse momento o seu destino. O Pará-Maranhão carecia
de u·~ homem preponderante pelo saber e prestigio nas cou-
sas do governo, e ao mesmo tempo de um apostolo: um e
outro seria elle. • ·
Para evitar a repetição de factos como os que tinham le-
vado Barreto á côrte, e dar autonomia á tão importante admi-
nistração do Pará, constituiu-se esta independente do Mara-
nhão. Luiz de Magalhães, . terminado o seu triennio, tinha de
voltar á côrte; o capita:o-mór suspenso. tornava à.o posto an-
tigo com autoridade mais ampla; o vigario geral seria reinte-
grado no cargo; e com isto passava á colonia a ·Órdem termi-
nante de se .declararem livres todos os índios, que até ahi es-
tivessem por ·escravos. Os jesuitas partiam juntamente para
reorganizarem as missões, e prestarem aos encarregados da
administração um valioso concurso na repressão dos captivei-
ros. Como se vê, a desforra dos reclamantes não podia ser -
mais cabal.
Vieira, que decerto collaborara em todas as decisões, devia
como superior acompanhar ~ missão. Mas á ultima hora arre- ~
feceu-lhe o e~thusiasmo. Era-lhe já penoso despedir-se das sa-
tisfações intimas do valimento, como das agruras do compli- 1
cado jogo da diplomacia. Dom João IV, de seu lado, não abria
voluntariamente mão de amizade tão extrema, e do soccorro
ESTABELECIMENTO DAS MISSÕES 47

Elle mesmo descreve esta profunda transformação nos ha-


bitas do corpo e dó espirita, em termos cuja singeleza mais
realça a pint ura.
- - «.Sabei, amigo,-es:revia do Mar.anpão,-que a mi?~ª
vida é esta: ando vestido de um panno grosseiro da terra, mais
pardo que preto; com.o farinha qe pau; durmo pouco; traba-
1)1.o de pela manhã até á noite; gasto parte della em me en-
commendar a Deus; não trato com .viva creatura; não saio
fóra senão a remedia de alguma alma; choro meus peccados;
faço que os outros chorem os seus; e o terppo que sobeja
· destas occupações levam-no o
livro da Madre Santa Thereza,
e oÚtros de similhante leitura-» 1 • Mas além do trabalho do '
pulpito, do confessionario e da catechese, occupava-se tam-
bem, quando preciso, em tarefas mais vis. Na estrei~eza de re-
cursos! em que vivia a communidade, forçoso lhe era attender
tambem aos serviços manuaes: ás vezes elle proprio cozinhava.
Tal era a existencia do homem que, pouco antes, meneando
os fios mais intrincados da politica européa, suscitára tão gra-
ves inquietações a alguns entre os mais poderosos da' terra.

Emquanto Vieira, evitando o embarque, se julgava liberto


da obrigação, que para elle era sacrificio, de deixar a Europa,
f
theatro até ahi de s_e~s tr.iumphos, os companheiros, por elle 1 .
abandonados, lá iam caminho do Maranhão. Na mesma frota )
se achavam os capitães-móres dos dois districtos em que f~ra
parti~a a provinda, levando, como já vimos, ordem para àa-
rem a liberdade aos indios, que encontrassem illegalmente ca-
ptivos. Equivalia isso a dizer: todos ou quasi todos; porque
só uma pratica abusiva permittia aos habitantes, a maior parte
das vezes, conservai-os em escravidão.
Até então as disposições vigentes no estado declaravam
captivos sómente aquelles indios, que já o fossem de outros,

,.:.

t BARROS. Vida do P. Antonio Vieim; livro v.


OS JESUITAS NO GRÃO-'PARÁ

e estivessem amarrados á corda, para serem comidos. Nesta•


qualidade eram conduzidos á capital e n;partidos pelos mora-
dores, mediante pagamento do preço fixado pelo governador
e seus adjunctos, que eram os officiaes da c'amara, e os prela-
dos das differentes religiões. O tempo de serviço era de dez
annos, e, findo o prazo, deviam os índios recolher ás aldeias,
onde viviam num ·estado de meia civilizaçãÕ, na vizinhança dos
brancos.
Este primeiro regulamento, satisfazendo ·a cubiça e as ne-
cessidades dos .colonos, que não possuíam meios de manter
· servos assalariados, correspondia apparentemente a um senti-
mento de humanidade, e era sem duvida alguma em fávor dos
míseros, fatalmente votados ao sacrificio. Mas os conquistado- ·
res, habituados a verem menosprezada a lei no Estado do
,Brazil, de onde na maior parte procediam, não tardaram a se-
guir os exemplos de lá. Em 1626, vencido o prazo dos dez
annos, relativos aos primeiros resgates, reuniram-se em junta,
e decretaram, com violação formal das ordens régias, o capti-
v;iro _perpetuo dos indígenas, cujo custo excedesse o valor de
cinco machados. Além desses, para quem se exgotava o tempo
legal da escravidão, havia os fôrros, como taes reconhecidos,
rrias injustamente forçados ao serviço. O governador e os ca-
pitães-mór~, interessados effi' manter uma situação irregular,
que lhes aproveitava, utilizando em lavouras e negocios de
vantagem propria o serviço dos barbaros conquistados, iam
cerrando os olhos ao abuso, que a côrte repetidamente con-
demnava. Prova da solicitude do governo de Lisboa, em favor
dos opprimidos, é a provisão de 29 de maio de 1649. Por ella
nenhum índio seria obrigado a servir sem salario; os que tra-
balhassem nos cannaviaes, tabacos e lavouras penosas, pode-
riam ausentar-se livremente; os brancos, que os violentas-
sem, ficavam sujeito"s á pena de degredo por quatro annos e
multa de 500 cruzados. Taes prescripções eram cópia fiel das
de Castella, theoricamente tambem favoraveis aos americanos;
mas aqui como lá não logravam pôr côbro ás violencias e ex-
cessos dos conquistadores.
Tomando posse da capitania, não se descuidou Ignacio do
Rego de pôr em execução os capítulos de seu regimento rela-
tivos ao assumpto. A intenção de seguil-os á risca não seria
ESTABELECIMENTO DAS MISSÕES 49

- talvez sincera; ~ntretanto, publicando as ordens regias, dá.va_


prova de influencia na côrte, e manejava uma arma poder~sa
contra os adversarios, ai~da insubmissos. É facil de conceber o
. alvoroço que ~imilhante acontecimento suscitou na cÓlonia.
Reuniu-se em tumulto a camara, cujas explosões anarchicas
periodicamente temperavam a despotismo da autoridade, e
exigiu a suspensão da lei; até posterior resolução da metro-
pole. Ignacio do Rego obedeceu sem esforço. É claro que o
bem dos indios, pelo qual reclamara na Europa: não passava
de um pretexto. Quem por. elles havia requerido em Lisboa
não fôra o sentimento da justiça, senão a vaidade em derrota
e a cubiça :erejudicada. Obtido, com a reposição no governo,
o almejado desforço, a resistencia do povd, longe de contrariar
a Ignacio. Barreto, favorecia-lhe os planos; por essa razão ' foi
acolhida com benevolencia.
, No Maranhão, todavia, quer o novo capitão-mór receasse
promover, logo á chegada, um levante popular; quer as or-
dens que tinha lhe impuzessem nada fazer sem o concurso do
superior das missões; quer finalmente, pelo secreto intente> de
lançar sobre este ultimo a responsabilidade de uma provide·n-.
eia tão odiosa dos colonos; certo é que, por muito tempo, até
á chegadá de Vieira, nada deixou transpirar das instrucções
referentes aos captiveiros.
Entretanto iam os jesuítas pondo as suas em pratica. Em-
quanto o· ·grosso da missão, composta por ora de nove sujei-
tos, entre padres, estudantes e coadjuctores, - estes ultimos
eram os servos da communidade - , se estabelecia em São Luiz,
partiam dois á conquista .do Grão-Par~. Foram esses os padres
João de Souto Maior e Gaspar Fragoso, que desembarcaram
5
em Belem a de d.e zembro. Desta data se deve contar o prin-
cipio das missões.
Os primeiros tempos foram duros para os religiosos, que
tinham de luctar com a malquerença geral. Os escriptores da
Companhia referem por miudo as manifestações da hostilidade
popular : pedras arremessadas á fragil cobertura da residencia;
bloqueio das ruas circumvisinhas, impedindo a passagem de
viveres; vozear de grosserias e ameaças; e!llfim todas as mal-
dades de um ·populacho insolente, .contra indivíduos inermes e,
por natureza ou proposito, inclinados a soffrer. Por ultimo a
7


50 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

paeiencia das victimas saíu trhimphante da mesquinha perse-


guição. Acalmaram·se os animos pela influencia de pessoas
importantes, e os padres puderam exercer em paz o' seu mi-
nisterio, começando pelo ensino, que era o primeiro passo
para tarefa mais larga. Aiites, obrigara-se o padre Souto Maior;
por termo escripto, a não bulir em negocios de i~dios; mas ·a
assignatura foi dada com reserva mental, e o jesuita, formu-
lando a promessa, affirmava no intimo de sua consciencia a
tenção inabalavel de a violar. Não importa! Afinal vencera: se_
a batalha, e os soldados da Companhia conquistavam o Pará
adverso.
Alguns dias passados, desencadeava-se a tor~enta no Ma-
ranhão. Vieira, que ·se ~emorara alguns dias em Cabo Verde,
tinha chegado a 17 de janeiro, e pouco depois o capitão-mór
publicava a lei das liberdades. Sabedores de como no Pará
Ignacio do Rego recuára, os prejudicados tinham-se disposto
á resistencia. Com a primeira noticia, juntou-se o povo em tu-
multo á porta da camara; o edit~l que continha a lei foi ar-
rancado; brados surgiram que · se lançassem fóra os jesuítas. -
.Ao mesmo tempo reuniam-se os próceres em comício, e redi-
giam uma representação ao governador, allegando· a ju~tiça
das captiveiros, e a impossibilidade de sustentar-se a colonia
sem elles. Assignavam o documento os moradores mais . quali~·
ficados,.que se diziam da nobreza, muitos do povo, e os prelac
dos das religiões. Lembrando alguem que os jesuitás deviam
assignar, que este era o seguro meio de desvendar-lhes as inten-
ções, da parte da camara se levou aos missionados o papel.
Não podia o genio bellicoso do superior soffrer a imposi-
ção. A resposta foi esta: « Que por nenhum interesse terreno
se deve perseverar em peccado mortal, ainda que do contrario
resulte a perda, não só de um estado ou reino, senão ainda
do mundo inteiro». D'ahi concluía em favor das liberdades.
Um dos vereadores, amigo da Companhia, foi portador
desta réplica. Ouvindo-a, os mais atiladós rejubilam. Tanto
melhor para os que temem a influencia dos jesuitas e já pre- .
sagiam as contendas futuras. A incompatibilidade da sua pre-
sença com os interesses da colonia patenteia-se desde já; o
remedio será pois a immed~ata expulsão. Assim peroram na
camara e gritam fóra.


I

ESTABELECIMENTO DAS MISSÕES SI

Entre os mais violentos distingue-se o procurador .do se-


nado Jorge de Sampaio, que c;lepois, já em avançada edade,
tem de morrer no patibulo, como fautor da revolta de 1684.
Orando ao povo, reclama que· se embarquem ·os religiosos
numa canôa rôta, para que busquem salvação nalgum mi-
lagre. De noite os exaltados aconimettem o coHegio; e, encon-
trando no caminho o . piloto e alguns marinheiros da caravela
em que viera Antonio Vieira, sobre elles vão de espada ergui-
da, punindo-os de haverem trazido os jesuitas. Para .socegar o
tumulto, teve de safr o capitão-mór com a guarda, dispersando
pela força o ajuntamento.
No dia seguinte os vereadores, caíndo em si, e receando
comprometter a sua causa perante o governo da metropole,
repudiaram o movimento, que a elles ·principalmente se devia,
e vieram ao collegio dar satisfações ao superior. Por sua vez
o missionario, ainda não aguerrido nestas luctas, buscava mefo
. de capitular honrosamente. Aproveitando a occasião de tratar
com o capitão-mór Balthasar de Sousa, conveio na suspensão
da lei, acceitando os moradores o exame dos captiveiros. Para
esse objecto se constituiu uma junta, da qual o proprio Vieira
fazia parte. Por ·deliberação della bastantes indios saíram fôr-
ros, sem mudança porém. da sorte ·antiga, livres por decreto da
junta, mas permanecendo em captiveiro, como até ahi, com a
promessa de salari<;>s jámais pagos.
Antonio Vieira, que por agora desejava a paz, fingia crer
na realidade do accordo. Do pulpito celebrou a concordia,
suggerindo os termos da representação que .se devia fazer ao
.governo. A harmonia era .c omtudo mais apparente que real.
Por fóra .soavam os mesmos boatos hostis. Corria que os pa-
dres ensinavam ·aos índios que por direito todos elles eram
fôrros, e a voz publica continuava a attribuir.lhes, talvez com
justiça, ·a inspiração da ultima lei. .,
Acalmada por esta fórma a agitação, as camaras de São Luiz
e de Belem elegeram os p~ocuradores, que tinham de apoiar
na côrte as reclamações da colonia. Martim Moreira, que já
exercera o cargo. cÍe ou.vidor, ia representar o Maranhão; Ma-
noel Guedes Aranha foi o enviado do Pará. Davam mais força
ao memorial as recommendações de Antonio Vieira, que jul-
gava ter afinal vencido a desconfiança aggressiva dos moradores.
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Expondo seus votos '!-º soberano, allegavam elles que de-


via a nova lei proceder de má informação de Sua Majestade.
A posse dos índios, da qual pretendiam esbulhal-os, era legi-
tima, achando-se autorizada Ê>?r uma junta (a tal de ,1626),
onde tivera assento o padre Luiz Figueira, com os prelados
das differentes religiões. Erro lastimavel seria comparar a si-
tuação destas capitanias á do Estado do Brazil, onde cada
mez entravam em quantidade negros africanos. Por cá o unico
soccorro era o dos índios; e os povoadores, vivendo espalha-
dos pelas ilhas e margens dos rios, a grandes distancias, não
podiam dispensar o serviço dessa gente, como remeiros, para
as viagens. Tão pouco para o trabalho das roças onde fabri-
cavam o assucar, o tabaco, e tanto outro·s generos que faziam
a riqueza da republica. E não eram os índios exclusivamente _
servos: como soldados ajudavam a defender o territorio col?-tra
os ataques das hordas selvagens e de invasores extranhos. A es-
tas razões· de utilidade accresciam as do direito e da religião
conjugadas: não existia nenhuma lei divina ou humana que
vedasse a posse de escravos, sendo feitos com justiça; e, por .
outro lado, beneficio era para estes, que tudo compensava, o
entrarem de qualquer forma no gremio da igreja christã. Não
seriam taes fundamentos de peso bastante para uma reconsi-
deração? i

1 Cf. o Noticiaria Marar1hlnse, ms. da Bibliotheca de Evora. É um fra-


gmento da America Abbreviada, por João de Sousa Ferreira, presbytero da
ordem de São Bento, Provedor da Fazenda ·dos Ausentes do Grão-Para. Este
codice saiu impresso no tom . .26 da Reiiista do Instituto do Rio de Janeiro,
como sendo o Papel politico sobre o Estado do ' Maranhiro de Manoel Guedes
Aranha. Com o titulo trocado e o texto incompleto, foi esse manuscripto
enc;orporado em uma collecçào de documentos relativos ao Brazil, existente
na Bibliotheca Nacional de Lisboa (cod. E 5, 33 a foi. 221). D'ahi o copiou
o dr. Antonio Henriques Leal, que o offereceu ao Instituto.
ESTABELECIMENTO DAS MISSÕ ES 53

VI

Em longa carta dirigida ao soberano i, Vieira, insistindo


' sobre os abusos dos colonos, indicava o sentido em que de-
viam ser attendidas as queixas destes. Quer por esforços dos
procuradores, quer em razão dessa carta, a solução desejada
não se fez esperar. O governo de Lisboa reconhecia as focon-
veniencias da ultima lei. Mandava examinar os captiveiros
existentes, e creava regras para os que tivessem logar depois.
Autorisava as entradas no .·sertão com religiosos, tendo por
fim a ·conversão dos gentios; mas o cabo da expedição, em
vez de ser, como até ahi, escolhido só pelo capitão-mór, seria
eleit? por uma junta, onde tomariam parte as autoridades eccle-
siasticas. Por ultimo, recommendava que os capitães-móres se
abstivessem de nomear administradores para as aldeias, as
quaes seriam governadas pelos fodios principaes 2. Todas es-
tas providencias eram aconselhadas .por Vieira, mais do que
nunca senhor da confiança régia. ·
Entretanto o missionario, buscando para a sua insoffrida
actividade occupação mais effectiva que os socegados labores
do pulpito e do confessionario, dava com vigor principio á
obra da catechese. Vendo mallograda no Maranhão, por fictí-
cias difflculdades que lhe oppoz o capitão·m?r, uma projectada
expedição ao interior, dirigiu-se ao Pará, . onde campo mais
· vasto e, nó seu parecer, não contestado, ·se lhe offerecia. A
viagem era longa e incommoda. Trinta dias em pequenas .em-
barcações, remadas por indios, .e sacudidas por mares impetuo-
sos e rijos ventos da costa. Trinta e d1Jas .bahias a vencer, em
muitas das quaes se devia entrar e safr a favor das marés, por
não ser possiv~l de outra forma romper o extraordinario peso
das aguas. Chegava-se· alfim á ponta de Separaré, sentinella ,
avançada das terras do Pará no oceano. Ahi principiava a
abrandar o furor das vagas; e, com o auxilio da corrente,

l « A el-rei sobre as necessidades espiritiJaes do Maranhão. » Tomo 1,


pag. 21 da edição de 1854.
2 Prov. de 17 de outubro de 1653.
54 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

quando enchia, em breve se descortinavam as ilhas verdejan-


tes e, por entre ellas depois, a casaria da cidade, que já então,
deixando o abrigo do forte, começava a extender-se para o
septentrião, sempre á beira-rio.
A 5 de outubro de 1653 chegou Vieira. Desembarcando
por entre a turba de ociosos, que de cada vez concorriam· á
praia a saber as noticias, e reconhecer os que chegavam, seu
pé ovante tomava posse desse sólo de eleição para os traba-
lhos da Companhia.
Não o surprehendeu de certo a miseria evidente da povoa-
ção, nem as ruas lamacentas ensopadas pelas chuvas quotidia-
nas; as casas cobertas de palha, entre as quaes as edificações
consagradas ao culto se distinguiam, por um <1:5pecto relativa-
mente grandioso, da mesquinhez geral. De um lado para o
outro vagÜeavam os indios quasi nús, os brancos e mestiços
vestidos de algodão grosseiro da terra, de um alvacento sujo,
ou então tinto da côr avermelhada do muruzy, ainda hoje es-
timada dos naturaes. Alto, robusto, espessa a barba onde já
branquejavam numerosos os fios de prata, o ar imperioso e.
decidido, aos que o rodeavam, curiosos de verem ao perto o ~
favorito do monarcha, logo se revelava na apparencia o lu-
ctador; e os cidadãos, habituados a viverem nos comidos
como a plebe antiga, preparavam-se desde já para as batalhas
futuras.
Repartia-se a cidade em dois bairros : um mais antigo, li-
mitado pelas actuaes praças da Sé, do. Carmo e de São João,
chamava-se, como ainda agora, a Cidade. O outro, habitado
depois, quando a população crescente foi carecendo de mai?r
espaço, acompanhava o curso do rio, tomando por nome - a
Campina. No ponto limitrophe de ambas as divisões, em lo-
gar denominado pelos primeiros habitadores - o Portão, pro-
vavelmente por achar-se ali o que dava ingresso, pela mura-
lha, ao povoado, ficava a nova residencia dos jesuítas; pobre
eonstrúcção que, não podendo supportar o peso das telhas de
barro, abateu de repente, e por espaço de muitos annos per-
maneceu com tectos de palha. Da vasta praça, onde se via
tambem a Matriz, a casa da camara e a do governador, par-
tiam quatro ruas no sentido longitudinal, em frente ao colle-
gio: as mesmas que presentemente se extendem até ás igrejas
ESTABELECIMENTO DAS MISSÕES 55

do Carmo e ·de São João. Quatro vias transversaes completavam


esta parte, que fôra a primitiva cidade. A fortaleza, construida
de taipa, dava para o largo, na mesma posição em que a ve-
mos hoje, porém com menor recinto; fóra encontrava-se a er-
mida do Santo Christo, e logo adiante, na· primeira rua, a do•
Rosarió. Isto para a banda do sul.
Do lado do norte, passando-se o Portão. para a Campina,
começava a povoação a dilatar-se pelo arrabalde, em duas
compridas ruas que são agora as da Industria e de Santo Anto-
nio. Ao cabo dellas ficava o convento dos Capuchos, e na pri-
meira, encostado á praia, o dos Mercenarios; na outra foi mais
tarde a casa da Misericordia.
·como se vê, não teem variado em mais de dois seculos as
.linhas principaes da antiga Belem. Mas então não passavam
essas ruas de estreitas veredas, parte invadidas pelo mato; as
casas de barro e cobertas de palha appareciam irregularmente
semeadas, ao capricho. dos moradores; e os qui_ntaes, á volta
de cada uma, faziam ainda maior o espaço vasio de edifica-
ções·. Que assim fosse a séde da capitania podemos julgai-o
·· por certos recantos das· povoações menos adiantadas do ser-
tão amazonico ; porém mais tosco devi.a s~r o aspecto de~ta
. cidade embryonaria, arraial de gentes sem ideal artistico, as-
sente em terra ainda barbara, oqde o clima suavissimo não re-
quer agasalhos, nem a pobreza geral tinha bens a resguardar
da alheia cubiça.
Longe do povoado, a poucas marés de distancia pelos rios,
ficavam .as . aldeias dos indios submissos, onde se iam buscar
os arcos para a guerra, e braços para o serviço dos colonos.
Eram nove ao todo, ~ as mais populosas deram origem ás
povoações que hoje se chamam Collares, Cintra, Bemfica,
Con"de, Oeiras e Portel. Os estabelecimentos agrícolas, com seus
engenhos, espalhavam-sê' em grandes lotes de terras, sempre
á bei_ra d'agúa, alongando os limites da posse effectiva do
solo, em beneficio do conquistador. No interior, duas povoa-
ções, importantes pela situação, fechavam a terra ás invasões
extranhas, e serviam de ponto de partida ás e:ip':!dições: Ca-
mutá no Tocantins, Gurupá, com o seu forte, sobranceiro ao
Amazonas. Neste ultimo logar, como portal do grande rio,
tencionava Antonio Vieira fundar casa para os seus, fazendo
·.

OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

d'ahi irradiar em todas as direcções a sua obra de conquista


espiritual.
Como porém Ignacio do Rego Barreto lhe propuzesse uma
entrada ao Tocantins, a noticia das populosas nações selva-
•gens, ali ;xistentes, bastou para lhe exaltar o enthusiasmo por
esta empresa. A benevolencia do convite ·occultava um ardil.
O capitão-mór pretendia mostrar ao missionario de quão pouco
valor eram, rias paragens remotas do sertão, os diplomas con-
feridos na côrte pelo monarcha. De par com Antonio Vieira
· que era o cabeça principal das missões, o ferreiro Gaspar Car-
doso ia como chefe militar e político. Da desegualdade de con-
dição de cada um, do antagonismo de poderes, haviam de
brotar necessariamente conflictos; mas o que fazia impossível
qualquer accordo era a idéa, que cada um tinha, do objecto
principal da expediçãô. Gaspar Cardoso, instruído pelo capi-
tão·mór, desprezava os protestos do missionario, proseguindo
desassombradamente em seu plano. O chefe temporal fazia
escravos, o religioso. buscav~ neophytos; áquelle convinha a
violencia, este sómente de brandura podia usar. Prejudican-
do-se mutuamente em seus intentos, o soldado com actos, o
padre com discursps, chegaram afinal ao rompimento inevita-
vel. Em certo ponto, Vieira mostrou os papeis, firmados pelo
soberano, que estabeleciam a·.sua .autoridade, e invocou as or-
dens, que Ignacio do Rego, á ultima hora, dera por disfarce ao
capitão. Ahi respondeu este que as ordens d'el-rei não podia,
que as do capitão-mór não queria guardar.
Com este desengano, o jesuíta abandonou a empresa e des-
ceu ao Pará. Pode conceber-se o contentamento de Ignácio do
Rego .pelo bom exito de sua traça, persuadido que, com este
golpe, ficavam de uma vez abatidas as p~·etençõds dos missio-

) narios. Mas Vieira não era homem que se deixasse tão facil-
mente prostrar. O instincto da lucta constituía o fundo do seu
caracter, e agora, vencido pela unanime hostilidade dos colo-
nos, dos governantes como dos simples cidadãos, deliberou
recorrer ao monarcha. Pretendia queixar-se dos capitães-móres,
e alcançar novas leis que, sendo em beneficio das liberdades,
ao mesmo tempo favorecesseqi a catechese. Com este intento
se dirigiu ao Mar:anhão.
Era opinião dos religiosos que o superior na primeira oppor-
ESTABELECIMENTO - DAS MISSÕES 57

tunidade saísse para a côrte, levando pessoalmente suas quei-


xas aos pés do soberano; mas elle, receoso do desamparo em
que ficavam as missões, ·e talvez fiando pouco da energia dos ,
companhei~os, quizera antes deter-se. As occorrencias eram
tão graves, e o desacato ás régias ordens tão formal, !JUe a re-
pressão tornar-se-ia certa, desde que os factos fossem conheci-
dos em Lisboa. Para isso bastava-Ih~ dar conta delles por es-
cripto, e foi isso que fez.

VII

Tivera boa acolhida no reino a representação das camaras


do Esta~o. A lei de 1653 fôra abolida: continuavam em vigor
os captiveiros. Ao . terem de tal noticia, os moradores jubila-
vam, certos de poderem repetir sem estôrvo as antigas vio-
lencias. Ao mesmo tempo, convencidos que o prompto despa-
cho de suas reclamações se devia: ao valimento dos procura-
·dores, ' excediam-se na arrogancia contra os padres, blasonando
de poderosas influencias na côrte.
Com isto Vieira mudou de proposito. Reduziu á forma de
representaç.ã o ao soberano um projecto, que tinha, sobre o go-
verno dos índios; cuidou de fazei-o assignar por alguns dos
principaes habitantes, affeiçoados seus; e, ap.r oveitando a pre·
sença dos navios no porto, preparou a partida.
Antes, porém, quiz lançar áquelles que odiava um ultimo
desafio. A festa de Santo Antonio offerecia-lhe ensejo de pré-
gar com solemnidade, que as habituaes praticas quotidianas
não tinham. Enchçu-se o templo de ·fieis e curiosos, uns e ou-
tros sempre avidos de escutarem a palavra eloquente do pré-
ga:dor da côrte. Esperávam ouvir o panegyrico do santo; mas
saíu a oração mui diversa do .que os mais prevenidos pode-
riam julgar. Deixando de parte a festa e o evang elho do dia,
Vieira abriu a valvula ao contido despeito de tantos a ggravos.
O assumpto do sermão foi o milagre do thaumaturgo orando
aos peixes, e, com isso, dando largas á opulenta phantasia, o;

traçou pungente satyra dos C()~!~.JEeS e ~i~!ºJ~--~2~-~S2l.?..~C?._s. ~.


Nunca, falando do_.,p ulpito, su~ linguag~m foi mais dura; {
8
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

nunca maior o seu arrojo. Simul'ando,- a exemplo de Santo


Antonio, dirigir-se aos peixes, e attribuindo-lhes, por uma apre-
ciação humorística dos habitos de sua natureza, os defeitos
dos homens, o orador chamava o escarneo publico sobre os
que lhe serviam de alvo. No limitado circulo da colonia todos
se conheciam. Cada um via retratado o. vizinho, e se contem·
plava a si proprio, nas expressões do prégador, que talvez pelo
olhar escolhesse no auditorio aquelles contra quem apontava
os dardos da sua palavra rutilante.
É de presutnir que a surpresa, primeiramente mesclada de
admiração, fizesse calar o natural agastamento dos ouvintes;
mas, dissipada ella, os offendidos deram soltas ás manifesta-
ções de uma coler;;t desculpavel. Não podiam com ellas attin-
gir.pessoalmente o missionario, já de partida para á Europa, e
cuja expulsão teria sido o unico desforço e a violencia maior.
Como porém houvessem ás mãos o papel, que andava em as-
signatura, sobre o governo dos índios, reuniu-se a camara
para tomar conhecimento delle. Com grande apparato de vo·
zes indignadas, foi julgada a representaçã~ejudicial aos in-
teresses da communidade, e como tal confiscada. Aos que lhe
tinham dado a assignatura pozeram labéo de tr~idotes; e o
tabellião, que tinha ido ao collegio legalizar alguns documen-
~os, com que o jesuíta justificava suas reclamações, foi mettido
em ·enxovia, carregado de ferros. Entretanto, na rua, o popu-
lacho vociferava contra ospadres.
Quasi furtivamente se embarcara Vieira, receando na ul-
tima hora algum desacato. A viagem foi longa e trabalhosa.
Escapando, e.orno por milagre, de i~minente naufragio, viu-se
salvo com os companheiros por um pirata· hollandez, que os
lançou, despojados de tudo, na ilha Graciosa. D'ahi passou a
outras do archipelago, e, ao cabo de uma derradeira, tempes-
tuosa· travessia, saltou finalmente em Lisboa no mez de no-
vembro de r654.
60 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

«Digo, Senhor, que menos mal será um ladrão que dois, e


que mais difficultosos serão de achar dois homens de bem qtte
um só» t . Esta formal declaração dissipou talvez as ultimas
duvidas existentes. A unificação dos governos foi proclamada,
e André Vidal de Negreiros acceitavà o cargo de capitão ge-
neral.
Desta vez a escolha recaía num perfeito homem de bem,
e, o que muito valia em pról dos indios, abertamente favora-
vel aos missionarios. A missão era difficil em extremo. De-
fender os interesses da corôa, ·cujas rendas se esvaíam por des-
conhecidos canaes; fazer, cumprir á risca as ~eis protectoras
dos indígenas; pôr termo a um estado de anarchia latente, ali-
mentado até então pela cumplicidade dos governantes; taes
eram as -obrigações confiadas á energia e integridade do he-
roe de Pernambuco. A experiencia mostrou achar-se elle á al-
tura dos encargos. Sua physiono;nia moral era o seguro ga-
rante de seus actos. «Muito christão, muito executivo, muito
amigo da justiça e da razão, muito zeloso do serviço de Sua
Majestade, e sobre tudo muito desinteressado » ~: assim nol-o
retrata Vieira. Infelizmentt; pouco tempo. havia de permanecer
no governo. Em breve, fatigado das resistencias, desgostoso
pela ingratidão que foram promptos em manifestar-lhe os je1
suitas, solicitou e obteve ver:se transferido deste posto penoso:
A 'occasião em que Antonio Vieira chegou ao reino não
podia ser mais propicia aos seus intentos. Correndo parajunto
do monarcha, que, instruído da sua vinda, o mandara tambem
chamar, o missionario exp~z-lhe os ultimos successos, e con-
firmou o que já poç carta.s pouco antes communicara. Ignacio
do Rego Barreto,. fal(lecido em abril, escapava á responsabili-
dade da expedição mallograda ao Tocantins ; ma5 depoís disso
outras offens·as, quiçá mais graves, tinham sido infligidas aos
missiona rios, e aos . interesses dos indios, que eram tambem
vassallos de Sua Majestade. Vingar umas e remediar as outras
era negoci; de urgente ponderagão . . Uma só providencia, po-
rém, bastaria, e qual ella fosse já Antonio Vieira o tinha dito
da séde das missões: «Que o cargo dos -indios se encommende

t Carta a el-rei: Maranhão, 4 de abril de 1654. ·


2. Idem : Pará, 6 de dezembro de 1655 .
, CONTENDAS E PRIMEIRO REVÉS

a uma só religião. . . e que esta seja de m1,1i qualificada e se-


gura virtude, de grande desinteressé, de grande zelo pela sal-
vação das almas, e lettras mui bem fundada~. . . i » Podia elle
designar de maneira mais clara a Companhia de Jesus?
Voltando convalescente á capital, o soberano trâzia a reso-
lução de ceder por completo aos desejos ·do antigo conselheiro,
que empregava a maxima actividade, para tudo se concluir
antes .da partida do novo governador. Este ultimo, dispondo
a viagem para a monção já proxima, trabalhava de sua parte
com . o desejo sincero de prestar serviço .á corôa, e ás tristes
populações, a quem um conquistador insaciavel esbulhava de -
suas terras, de seus bens e da~ acima de tudo, valiosa liber-
dade. Era A.ndré Vidal de raça indígena; mas não se poderá
dize~ que a solidariedade de origem ~om os opprimidos fosse
motivo de seu zelo : pelo contrario, os mestiços e indios do-
mesticos eram geralmente os mais descaroaveis tyrannos dos ·
seus; e neste não. influía o sentimento semi-egoístico da con-
sanguinidade, mas uma elevada concepção da justiça, junta
aos dictames de uma intelligencia .superior.
Para dar cumpri ento ao seu projecto, mandou Dom João IV
convocar uma. junta de theologos e jesuítas, presidida pelo ar-
.cebispo de Braga, e na qual tomaram parte os prelados das
ordens religiosas, que tinham ~stabelecimentos no Pará-Mara-
nhão. Como era natuq1.l, Antonio Vieira representava os je- ·
suitas. A esta junta se deve a lei dos captiveiros, cujos effeitos
vamos ver, _promulgada em abril de 1655.
Por outra parte se reuniram em conferencia o mesmo Vieira,
André Vidal de Negreiros, e os dois procuradores, que se
achavam ainda em Lisboa. Ahi se concertaram varias disposi-
ções relativas á maneira de proceder com os indios, assim li-
vres como captivos, cujas clausulas se inscreveram no Regi-
mento do governador. Ao mesmo tempo se organizou o Tribu~
nal ou Junta de Missões e Propagação da Fé, que, funccionando
a principio na casa professa de São Roque, pertencente aos
jes uit.as, foi em todo o tempo na ·mão destes um valioso ele-
mento, de força.
Apesar de todo o seu ardor na lucta, e da lisongeira per-

l Carta a el-rei: Maranhão, 6 de abril de 1654.


OS JESU!TAS NO GRÃO-PARÁ

spectiva de regressar triumphante aos lagares de onde quasi


foragido viera, o missionaria sentiu outra vez a nostalgia do
poder. Vendo-se de novo acolhido e tão aipimado na côrte,
não é de extranhar se lhe reaccendesse a passageira ambição
de um destino mais brilhante que o de simples evangeliza-
dor, perdido entre selvagens, nos páramos do Novo Mundo.
Se para isso concorriam solicitações da familia real, é facto
que, não obstante a affirmação do seu biographo, fica ainda
por averiguar. Certo é que a viagem só foi decidida no ultimo
instante, como se vê da carta dirigida aos padres uma hora
- antes do embarque. Esta subita resolução descobre a molleza
do intento, e talvez o receio de fraquejar no momento de rea-
lizal·o; e ao mesmo passo, as razões expendidas na carta denun-
ciam escrupulos, que estudados argumentos buscavam ve~cer.
O navio que conduzia Antonio Vieira sarpou em abril de
1655, surgindo em São·Luiz com trinta e um dias de viagem,
cinco após a chegada do capitão·general. Recebido solemne-
mente pela Camara em corporação, e acclamado pelos mes-
mos que dei mezes antes vociferav~m contra elle ameaças de
morte, immediatamente foi empossado da administração das
aldeias, que pelo novo regulamento ficava a cargo exclusivo
dos jesuítas.

II

,,
A lei, que André Vidal de Negreiros levava ao Pará-Mara-
nhão, ainda que de alguma forma melhorava a condição dos
índios, não os libertava por completo da vjolencia dos colonos.
As. autoridades perdiam a faculdade de fazer guerra offensiva,
a qual, mesmo justificada, ficava dependente de approvação
régia, e com isso se estancava uma fonte copiosa de captivei-
ros; mas permanecia o direito ·á guerra defensiva, e não fal-
tariam sophismas para considerar tal a mais injusta aggressão
da parte dos portuguezes. Como na lei antecedente, o gover-
nador não podia pôr capitães nas aldeias, nem fazer a repar-
tição dos índios; e tambem lhe era vedado occupal-os em ser-
viço proprio, especializando-se, como singularmente penosa,
a lavoura do tabaco. Estas prohibições, que com maior razão
CONTENDAS E PRIMEIRO REVÉS

se extendiam ás autoridades subalternas, iam dar resultado


negativo; e os prejudicados desforrar-se com vantag~m, man-
dando ~º sertão e'°'pedições clandestinas, cujas prêsas vendiam
por altô- preço aos moradores.
Tal como a lei de 1635, a de agora decretava o captiveiro
perpetuo dos sel~agens tomados em justa guerra, quer feita
pelos portuguezes, quer pelos índios entre si; e dos que fos-
sem encontrados como se dizia, á corda, a~uardando o sacri-
ficio, que era a sorte commum dos vencidos: para ess~s não
havia restricção. Abria-se porém uma em favor dos que, não
destinados á morte, fossem escravos dos seus, em consequen-
cia de guerra injusta: esses ficavam livres ao cabo de cinco
annos, devendo os novos senhores reputar-se bastante pagos
do ,preço que haviam dado, com o tempo de serviço. Mas
vantag{!m illusoria era essa, porquanto, ainda mesmo sendo
possível averiguar a origem de tantas guerras, ~m que as tri-
bus andavam constantemente envolvidas, o difficil seria alcan-
çar uma decisão favoravel aos captivos, ná. occasião dos exames.
Bem depressa- os f~ctos se encarregaram de o comprovar.
Não é de presumir .que. o esclarecido espiirito de Vieira se
deixasse render de tão grosseiros sophismas. A liberdade abso-
luta e incondicional era o que elle buscava. Cumpria, porém,
attender ás necessidades da colonia, que por falta de braços
activos não podia prosperar, e aos habitos inveterados da po-
pulação, que em sua indolencia se escravizara ao trabalho for-
çado dos indígenas. Tambem, por mais inclinados que os
amigos do jesuíta, e acima delles o proprio rei, estivessem a
satisfazer-lhe os ideaes, não ousariam patrocinar a renovação
das ordens, que já tinham -occasionado um levante na colonia.
Por outra parte, era a legitimidade dos captiveiros doutrina
corrente, que o defensor dos indios, partidario da escravidão
dos africanos, não podia logicamente contrariar. Assim, pois,
acceitava dos males o que não podia evitar; e, appelando para
o tempo, esperava, com o concurso delle, ir encaminhando os
espíritos para a solução favoravel a seus intuitos.
Entretanto alcançara já uma grande vantagem, no tocante
aos resgates. Pelas novas disposições ficava a coberto de casos
similhantes aos que, em 1653, tinham -feito abortar as duas
tentativas de catechese, contrariadas successivamente pelos
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

capitães-móres do MaranhãÕ e do Pará. Agora tocava ao Su-


perior das Missões designar onde e quando tinham de se fazer
as entradas, e propôr o cabo da escolta, p:lra a tropa de res-
gates. O governador nãd podia recusar a força armadá, nem
alterar a época e o destino das expedições. Mas _a principal
victoria fôra na parte relativa aos indios livres. As aldeias, que
antes eram sujeitas a seus capitães, quasi sempre mam~lucos
nomeados pelo g~vernador, ou, conforme a lei abolida, aos
principaes, que os mesmos índios escolhiam entre si, passavam
á administração dos missionarios, por cuja autoridade neces-
sariamente se annullava qualquer influencia extranha sobre
esses magistrados indígenas. Desta maneira, e supposto o pa-
pel importante que os índios representavam no organismo da
colonia, o Superior das Missões podia imaginar que em suas
mãos se achavam realmente os destinos della. Com diminuto
numero de companheiros, pois ao todo não passavam de vinte,
sua autoridade dilatava-se por centenas de leguas, e abrangia
enorme população. Onze aldeias de índios mansos no Mara-
nhão e Gurupy; seis nas visinhanças do Pará, sete no Tocan-
tins, vinte e ,oito no Amazonas, constituíam por então o do-
minio effectivo dos jesuítas; mas cuidavam elies já de se apos-
sar da indomavel ilha de Joannes, e sonhavam imperar em
todo o ·immenso ·rio, ainda incognito, que, no seu_longo curso
e nas innumeras ramificações, era povoado de tantas 'e tão di-
versas gentes, materia prima escolhida da catechese. Entre-
tanto, nas duas capitaes do Estado, com a escola, o pulpito,
o confessionario, governavam não sómente o índio simples, -
senão tambem o europeu, muitas vezes insubordinado, mas
sempre devoto, e de cujo numero uma parte lhes ficaria, em
todas as circumstancias, fiel.
Não será, pois, temeridade imaginar que, desembarcando
com taes auspícios no Maranhão, o grande visionario descor-
tinasse, num futuro proximo, as· incontaveis gentilidades do
Amazonas totalmente sujeitas á sua Ordem ; e Jogo mais um
imperio m_ais vasto, religioso e temporal, talvez similhante ao
que seus companheiros fundaram no Paraguay. Não seria este
um solido alicerce para o Quinto Impe1·io do Mundo, já então
desenhado e vivaz na ebullição constante de seu cerebro?
CONTENDAS E PRIMEIRO REVÉS 65

III

A consternação dos colonos foi grande ante a victoria dos


jesuitas. O ciume dos outros religiosos, o despeito dos sec{i-
lares, o damno que todos padeciam, juntavam a população in-
teira num sentimento de commum irritai;;ão contra os odiosos
innovadores. A energia do go~ernador l!ão a deixava porém
manifestar-se. Era sobretudo no Pará, como mais interessado,
que os effeitos da reformá iam tornar-se sensíveis. Para lá par-
tiu André Vidal, passados só tres mezes de residencia eIIl;
São Luiz.
Tendo chegado, cuidou primeiro de mandar recolher as
tropas de resgate,. que illegalmente per.c orriam o sertão; em
seguida fez publicar um bando, pelo qual determinava que to-
dos os escravos das ultimas entradas, feitos segundo a lei de
53, fossem trazidos a exame. Não causará extranh.eza ·dizer-se
que as prescripções desta lei jámais se cumpriam. Desprezando
a formalidade imprescindível qa eleição dos cabos, em junta
composta do capitão-mór, officiaes da camara, vigario geral
e prelados das religiões, -formalidade suggerida por Vieira- 1 ,
os particulares alcança,vam a licença do primeiro, a tro.co de
uma parte que lhe cedi~m na empresa. Com egual desemba-
raço, dispensavam a presença do religioso que tinha de julgar
os captiveiros. Dos índios, que desciam, alguns eram realmente
escravos entre os seus, mas desses o menor numero; ou-
tros viam-se na occasião prisioneiros e vendidos por amigos e
parentes, qi1e assim procediam, já pelo engodo do preço, já
com receio de violencias; não poucos eram colhidos e trai-
çoeiramente arrebatados pelos portuguezes; emfim todas as
praticas da caça ao homem, como alim~nto da escravidão, se
executavam. Entre os que effectivamente eram captivos, como
havia de saber-se quaes tinham sido aprisionados em justa
guerra? Na confusão das gírias diversas os interpretes mal se
entendiam; e a miude voluntariamente alteravàm as respostas.
Muitos prisioneiros, aterrados com ameaças·, falsamente decla-

t Carta a .~1-rei: Maranhão, 20 de maio de 165 3.,


!)
66 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

ravam terem sido arrancados á corda e ao supplicio. Desta


maneira se annullava a protecção das leis. E essa_, em que
consistia? O governador, prevenido por Vieira, levava ao ex-
tremo o escrupulo,· e grande numero de-captivos recuperavam
a. liberdade. Ficavam com effeito livres? De nome unicamente.
Conduzidos ás aldeias, passavam á sujeição dos regulares, en-
trando na dura aprendizagem da vida civilizada. Trabalhavam
para sustento proprio, e manutenção das aldeias; para o mis-
sionario; para o Estado; e para os particulares, a quem se
repartiam: e assim se disfarçava a escravidão multiforme, com
o titÚlo fallaz de liberdade.
O exame dos captiveiros duro~ sessenta dias. · Interrogados -
os indios, a principio uns diziam -se simples prisioneiros de
guerra, outros ignoravam as causas de sua prisão. Com es-
tas respostas, grande numero foram declarados livres. Mas de-
pois todos que vinham eram de corda, e como taes se di-
ziam resgat.fldos. Os senhores, sabendo que este era o- mais
seguro meio de verem a escravidão confirmada, faziam-nos
decorar as respostas; e os pobres, insconscientes ou timidos,
servilmente repetiam a lição. Nos casos duvidosos, que eram
muitos, Antonio Vieira votava sempre pelas -liberdades. Os
prelados das outras ordens religiosas; e o vigario geral, uni-
formemente de modo contrario. André Vidal de Negreiros,
que presidia o tribunal, procurava encaminhar as decisões no
_sentido favoravel aos indígenas. Como resultado final, grande
numero destes passaram ao poder dos jesuitas; setecentos e
setenta, mais infelizes, ficaram legitimamente captivos._ Muitos
outros haviam sido transportados ao Maranhão. ~egressando
ali o governador, tiveram tambem logar os exames, com iden-
tico successo.
Por irritados que se achassem os colonos, feridos em seus
interesses, não ousavam dar mostras do descontentamento, que
em ou~ras_ occasiões se teria manifestado por dc::sordens. A co-
. nhecida firmeza de André Vidal, e a prompta severidade com
que logo á chegada punira os abusos do governo passado,
aquietavam os mais arrogantes.
Os queixosos de Belem e São Luiz soffrearam pois o re-
sentimento; mas os habitantes de Gurupá, que á sombra da
fortaleza formavam uma povoação, vivendo exclusivamente do
CONTENDAS E PRIMEIRO REVÉS 67

trafico, julgavam-se pela · distancia fóra- do alcance da justiça,


ou, ta~vez mal informados, não sabiam ainda que homem era
o governador. Publicada a lei invocaram o auxilio dos solda-
dos, seus compartes nos lucros; prenderam dois jesuitas, que
se achavam no logar; e embarcando-os numa· canô~ fôram
lançai-os á margem do rio Mojú, a pequena distancia do Pará,
com ameaça de procedimento mais duro se voltassem.
Chegou a noticia do successo ao Maranhão na propria hora
e_m que para · a outra cápitania estavain a partir dois navios.
Mandou logo André Vidal embarcar o ouvidor com boa es-
colta. Tirou-se devassa, e os criminosos foram mettidos em jul-
gamento: dois, os instigadores, saíram condemnados a ·degredo
para o Brazil; os soldados para a India; os demais ficaram sa-
bendo que era perigoso_desattender as leis de Sua Majestade,
e ·os padres da Companhia seus protegidos.
Já no mesmo Gurupá o capitão da fortaleza, convicto de
violencias contra os índios, e de sujeitai-os a captiveiros ille-
gaes, fôra preso e remettido para o reino; presos tinham sido .
fambem outros officiaes, que nas tropas de resgate haviam.·
commettido excessos condemnaveis; o capitão-mór do -Pará, .
apeado do cargo, respondia em Lisboa por culpas similhantes·,
havendo com sua autoridade patrocinado o~ abusos. Desta
sorte Vieira, tendo afinal de seu lado um governo energico,
mantinha em respeito os colon~s, e podia alimentar projectos
de ma_is ainpla liberdade a ·realizar no futuro.

· IV

I
Convinha, entretanto serenar os animos, e, por meio de
concessões dentro das leis, satisfazer o ' ~lamor gera( que in-
.cessantemente pedia escravos. O missionado via bem quant~s
hostilidades 0 rodeavam, e não desesperava de rendei-as; mas
a occasião não era opportuna. - «Temos contra nós (dizia) o
povo, as religiões,_ os donatarios d'a.s cap~tanias-móres, e egual- . _
mente todos que nesse reino e nes,t e Estado são interessados
no sangue e suor dos índios» t. - Essa era a verdade pura.

1 Carta a el-rei: Pará, 8 de dezembro de 165 5.


68 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Elle porém, como meio de defesa, pedia sómente que nos con-
selhos não se admittisse requerimento algum, cujo objecto
fosse alterar ou supprimir qualquer disposição da ultima lei.
Com isso se julgava habilitado a domar a revolta dos animos.
·o fallecimento de Dom João IV não diminuira o prestigio -
de Antonio Vieira na _côrte: pelo contrário, com mais auto~i­
dade usava agora do ascendente, que a qualidade sacerdotal
lhe dava no animo devoto da · rainha. Com arrojo de illumi-
nado, e dureza de propheta, apontava-lhe os effeitos, para ella
dolorosamente mànifestos, da divina colera: - « A el-rei Pha-
rnó,_ porque consentiu no seu reino o injusto captiveiro dos
hebreus, deu-lhe Deus grandes castigos, e um delles foi tirar-
lhe os primogenitos. No ano.o de 1654 i, poi: informação dos
procuradores deste Estado, se passou uma lei com tantas lar-
guezas, na materia do captiveiro dos índios, que ·depois, sendo
Sua Majestade melhor informado, se serviu mandai-a · revogar,
e advertiu-se que, neste mesmo anno, tirou Deus a Sua Majes-
tade o primógenito dos filhos e a primogenita das filhas » 2.
- Estas palavras cruéis, qué duplamente teriam o coraçà'.o dà
rainha, mãe e esposa, não êràm, como se poderia supp&r, um
artificio de rhétorica, para levar o pavor a umà alma feminil.
O ·espirifo do missionário desde muito abrigava em si essà
convicção, da qual, em carta reservada, dava conta em 1654 á
um dos superiores. , Esquecendo quanto devia ao mónátcha,

\
ainda então em vida, condemnava-o, 110 fôro de sua cótiscien-
- eia, a penas terríveis. - «Um dos ultimas castigos que Deus
deu a El-Re~ por captiveiros inju?tos foi tirar-lhe o primoge-
f nito; e porque ·não cessou, antes continuou, tirar-lhe-á por
r fim o reino mai's a vida! 3 » O pensamento, desvendado a um
dos se_us, que não ousara exprimir ao soberano, declarava-o
elle agora, inflexível ~ cruel, á regente, como quem recebera
do céo essa missão vingadora !
Para congraçar os moradores com o novo estado de coisas,
concordou Vieira com o ·governador que o melhor meio seriá

1 Aliás 1653; nesse anno se fez a lei e morreram os principes.


2 Carta ao rei Dom Affonso vr menor: Maranhão, 20 de abril de 1657.
3 Carta de Noticias ao Pruvincial do 'Braz.il, sem data. Ms. da Bibliotheca
de Evora.
CONTENDAS E PRIMEIRO REVÉS

mandar-se desde logo uma expedição a logar onde podessem


ser muitos os escravos. No Maranhão, assim como no Pará,
opinavam todos ·que se fizesse guerra aos aruans e nehengaí-
bas,; -guerra defensiva, que entrava na alçada do governador,
e se justificava pelas aggressões constantes praticadas por es-
ses indios. Habitando em Marajó, eram elles não. sómente in-
-,;enciveis na sua ilha inexpugnavel, como tambem, servindo-se
de canôas ligeiras, . atac1va~ as aldeias dos indigenas submet-
tidos, e vinham até junto da cidade salte~r os colonos: por
essa causa muitos engenhos jaziam abandonados. Attendendo
ao voto dos habitantes, André Vidal proseguia tambem um
fim político. Os selvagens da ilha de Joannes, escarmen~dos
dos porfoguezes, contra quem nutriam entranhado odio, esta-
vam nas melhores relações com os fl.ibusteiros da Hollanda,
que continuavam a penetrar no Amazonas pelo braço occiden-
tal. Menos ambiciosos que os donos da terra, sémpre em cata
de fabulosas riquezas, os aventureiros dos Paizes Baixos' faziam
em productos de modesto valor um opulento commercio. Os
tabacos comprados aos indios e as péscarias lhes bastavam; e
~ada anno mais de vinte navios carregavam péixe-boi, nas pa~
ragens do Cabo do Norte.
Para Vieira a conquista tinha tambem attractivos. Não
obstante rejeitar mais. tarde toda ? responsabilidade desta
empresa, e de outras seguintes, que se mallograram, não é
criyel que em similhan~e materià seu voto fosse desprezado;
pelo contrario, os desastres das tentativas anteriores, o mar-
tyrio de Lui~ Figueira e companheiros, eram poderoso incen-
tivo ao fervor de seu zel~. - «Eu vi de longe a ilha (escre-
vêra elle um anno antes), e confio em Nosso Senhor que cedo
se ha de ver nella o fructo, que de térra regada com tanto
sangue e tão santo se póde esperar-t. O zelo do catechista
patrocinava desta vez as necessidades da escravatura.
Cento e dez portuguezes e todos os índios disponiveis
cómpuzeram a expedição, na qual ia por missionario o dôce
apostolo João de Souto-Maior, desqc: seus primeiros annos
abrasado num intenso desejo de martyrio. Mais uma vez a
diligencia dos portuguezes foi improficua. A tactica dos bar-

1 Carta de Notiâas, cit.


OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

baros levou vantagem á superioridade das armas, e a expedi-


ção regressou ao .Pará com grandes perdas. Fome e privações
de toda a especie tornavam· ainda mais penosa a retirada-.
« Os portuguezes (refere Viefra) iam mais prevenidos de ca-
deias e grilhões para os escravos que de ataduras e ? neces-
sario para as feridas» i, João de Souto Maior acud_ia a todos,
com a inexgot.avel caridade, em que sua alma suavíssima abun-
dava: aos captivos, com brandas palavras, ·consolava dos
maus tratos; aos enfermos, á mingua de remedios, prodigali-
zava carinhos; e, desfazendo a . propria . camisa, fabricava liga-
duras e fios para os feridos.
Frustrada a expedição aos nehengaíbas, que promettia ri-
queza de escravos, a visão · do ouro, nunca abandonada pelos
colonos, chamou para outra parte as attenções. Tambem com
assentimento de Vieira, senão por indicação sua, como lhe
cumpria, preparou-se a viagem ao Pacajá, de onde havia
muito chegava a fama de thesouros: O governo de Lisboa,
interessando-se pela tentativa, mandara mineiros de profissão
e as ferramentas precisas. Ainda d'esta vez Souto Maior foi o
religioso escolhido. Em quanto indios e portuguezes revol-
viam debalde as entranhas da terra, ou, desenganados, appe-
lavam para a mina dos captivdros, sempre fructifera, o jesuíta
trabalhava nas conversões. Dezoito mezes andou pelas invias
florestas, até succumbir ás privações e fadigas, rodeado de
neophytos, que lhe bemdiziam o nome. As febres debanda-
ram os poucos portuguezes, que até ahi não tinham abando-
nado as pesquisas. Este foi o desastroso fim da tentativa, que
enganosas miragens de cubiça suggestivamente haviam no-
meado a Viagem do ou1'0.
- Terceira e~presa, preparada pot André Vidal de Negrei-
ros, com um fim ao mesmo tempo commercial e politico, foi a
viagem ao Camocim. Neste logar pretendia o governador le-
vantar uma fortaleza, dando ao mesmo tempo providencias
para a .colheita do aÍnbar, mui abundante. em toda a costa.
Mandou pois um navio, com os materiaes de construcção pre-
cisos, e uma força de quarenta soldados. · Na fórma -do cos-
tume, iam tambem doi~ religiosos jesuítas. Não podendo ven-

1 Respost~ aos Capítulos, xxv.


CONTENDAS E PRIMEIRO REVÉS 71

cer as correntezas e ventos contrarios, ao fim de cincoenta


dias, a embarcação volt-Ou ao porto. Com identico successo se
renovou algum tempo depois o commettimento. Desta vez
tomava parte nelle o proprio Vieira, que pretendia chegar á
Bahia, e trazer de lá mais sacerdotes para as missões. Pensava
talvez impôr a sua vontáde energica á tibieza de marinheiros
bisonhos, ou então dobrar os elementos ao poderio, já antes
provª'do, da sua estrella. O resultado mostrou a jactancia do
intento: os ventos impetuosos outra vez r~pell~ram os nave-
gantes para o Màranhão, e a viagem por mar c0nsiderou-se
impossível. ·
Com esta experiencia, André Vidal que fôra ul!imamente
nomeado para o governo de Per!lambuco, resolveu emprehen"
del-a por terra, quando d'ahi a pouco se despediu da· província,
antes de terminado o período regular do seu cargo. Em anno e
meio, que pern:ianecera ali, tinha feito o possível por cumprir as
leis, e suavizar a triste sorte dos indios; mas os factos provavam
a inutilidade de s~us esforços. Os actos de violencia_contra os
selvagens repetiam-se impunes, disfarçados uns em sophismas
juridicos, outros escapando pela distancia á repressão. o in-
successo das empresas, com q_ue pretendera dar satisfação
o
aos colonos, incitava estes a manifestarem descontentamento
até então encoberto. Nem resgates dé nehengaíbas, nem ouro
do Pacajá, nem ambar de Camocim: as murmurações eram
jus_tifi.cadas, e o iiesanimo de quem as causava natural. A mais
de tudo isto, via-se elle em discordia com os jesuítas, que no
começo tanto o louvavam. As exigencias eram taes, que tor-
. navam qualquer accordo impossível. O governador, na intei-
reza de seu caracter, sómente cumpria .a lei, fosse ella favora-
vel aos religiosos ou aos escravistas. Antoniõ Vieira, abri-
gando ·em sua alma planos mais vastos, trabalhava por exi-
mir os indios a toda autoridade civil. Incontentavel, começou
a exprobrar-lhé o desastre da ilha de Joannes; o mallogro da
jornada ao Pacajá, «pela ·cubiça do ouro»; e a de Camocim,
pela do ambar: nada disso teria acontecido se André Vidal
lhe attendera os conselhos i. ·
Este ultimo, reconhecendo-se alfim mais homem de guerra

Carta a el-rei: Maranhão, 20 de abril de 1657.


72 OS JESUITÃS. NO GRÃO-PARÁ

que politico, viu com satisfação deparar-se-lhe ensejo de fugir


com honra a uma situação embaraçosa. Pernambuco, amea-
çado pelos hollandezes, carecia de um homçm de talentos mi-
litares á testa do governo. Sendo-lhe este offerecido, André
Vidal sem hesitação acceitou. Cheio de· esperanças fôra ao
Pará-Maranhão com propositos de reformador; retirava-se sem
deix~ sympathias, nem mesmo a dos jesuítas, que o haviam
recebido com tamanho applauso. Conservar exacto o fiel da
balança entre os dois partidos, que se degladiavam, era tarefa
impossível, . ainda ·a politicos mais babeis que o cavalheiroso
parahybano.
Com taes contratempos não se interrompia a obra da cate-
chese. Os sertões ignotos franqueavam-se gradualmente á ex-
ploração dos colonos. Á voz do missionaria, as tribus abando-
navam os passageiros lares, que, em sua existencia quasi no-
made, haviam assentado á beira dos rios, ou no recondito das
matas, e vinham estabelecer-se em povoados, na vizinhança
dos christãos. Seduzidos com presentes ínfimos, rendiam-se á
vontade suggestiva dos padres, e seguiam-nos, com a inno-
cente cubiça do anim.al faminto a quem acenam com algum
saboroso bocado. Em caminho, convencidos por dadivas ou
promessas, recebiam o b~ptismo, aprendiam a imitar os si-
gnaes exteriores do christianismo, decoravam preces cujas pa-
lavras 'mal repetiam, formulas cuja i<léa symbolica jamais ·ha-
viam de comprehender. Quando acordavam do sonho de bem
estar,-quão mesquinho!-que lhes deslumbrava as imagina-
ções infantis, era tarde. O padre suggestionara-os, quebrando-
lhes as vontades, e fizera delles um immenso rebanho, escra-
vizado aos gestos do pastor .. Durante a jornada pereciam mui-
tos, principalmente creanças; mas, como já fossem baptisados,
os padres exultavam: eram outras tantas ~lmas ganhas para o
céo.
Desciam tambem os prisioneiros resgatados do supplicio,
os captivos, que já eram, dos indios, e os que se tomavam na
guerra; todos esses segundo as leis, escravos legitimos. E em
quanto os livres esperavam nas aldeias o acaso da repartição,
os ultimos entravam logo em poder de senhor.
Em 1655 tem logar a primeira missão aos Tupinambás,
então demorando. á margem do Tocantins : mais de mil selvi-
CONTENDAS E PRIMEIRO REVÉS 73,

colas são descidos nessa occasião.' Em l 6 57, missão ao rio N e-


gro; em 1659, outra vez ao Tocantins. No mesmo anno, Vieira
consegue reduzir as tribus c:Ie Marajó. O feito é extraordina-
río e quasi milagroso. O que não tinha alcançado a força das
armas, obtem·o a doçura do evangelizador, a fama repercutida
~e suas virtudes, a sublime confiança com que vai metter-se
entre os cannibaes: tal Anchieta entre os tamoyos. Era a con-
quista de summa importancia para a colonia; por ella as por-
tas do Amazonas ficam definitivamente cerradas ao hollandez.
Em l 660, Vieira vai por terra do Maranhão á serra de
Ibiapaba, em v_isita ao logar do martyrio de Francisco Pinto. 1
Pela praia, pelas inatas, trepando os fraguedos da montanha, i
lá vai cansado e faminto o conselheiro de principes, aquelle
que, nas côrtes da Europa, mimoso dos grandes era acolhido
em palacios. Onde se dirige? Vai falar a entes barbaros, em
lingtias incultas, pelo estudo das quaes desprezou as obras
primas, que fazem o orgulho da humanidade. Com que fim?
Levar-lhes os "beneficios da vida civilizada, trazel-os á fé reli-
giosa, sem a qual não ha s~lvação. Mas no fundo do peito
abriga uma ambição mais larga, e sobretudo mais digna· de
sua imaginação grandiosa: reunir sob a égide do Christo essas
tribus; arrancai-as ao captiveiro e á destruição; modelal-as na
obediencia segundo as formas da perfeição mundana., como elle
e os seus tinham sido modelados. na . perfeição devota; defen-
del-os dos vicios, da impiedade, da tyrannia da raça oppr:es-
sora; e suscitar na America um povo escolhido, vassallo do
mesmo rei, sujeito porém á regra sublime da Companhia, no
que ella póde adequar-se aos interesses humanos .

Em jm1ho de 1-658 entrou no' Maranhão o novo governa-


dor Dom Pedro de Mello. Mais ditoso que seu antecessor, e,
em contraste, dissimulado, ambicioso e perverso, logrou por
bastante tempo as boas graças de Vieira; depois, mais habil
ainda do que este, abandonou-o, em vez de ser, como de ra-
zão, repudiado por elle. Em começo, por frouxidão natural e
iO
74 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ '

temor das intrigas na côrte; mais tarde, pelo- interesse de ne-


gociações, a que os jesuítas fechavam os olhos, não lhes ~ega­
tea va condescendencias; e só o prospecto de maiores ganan-
cias o levou a mudar.
Chegaram os favores ao extremo de possuir Vieira em mão
papeis assignados em branco pelo governador, que lhe serviam
para reduzir á obediencia os indivíduos recalcitrantes. D'ahi
se collige o poder que o grande missionario então exerce na
colonia. Satisfeito agora, seu contentamento revela-se nos ter-
mos enthusiasticos em que exalta o devotado amigo. Re-
memorando os trabalhos de dois annos e meio, assegura que
tudo se deve á di'sposição e execuÇão de Dom Pedro, sem a
qual nenhuma cousa se poderia conseguir, e muito me~os
tantas, e tão dijficultosas e de tanta importancia 1•
Conhecidos os successos anteriores, o sentido apparente
destas palavras revela que a lucta entre colonos e jesuítas
proseguia, se bem que surdamente, pertencendo aos ultimos
a vittoria, graças á protecção do governador. Os outros não
se deixavam todavia abater. A~tavam-se nas capitanias, mo-
viam na metropole as influencias a seu alcance, e faziam cho-
ver as queixas contra o procedimento dos religiosos. O arruido
por esta forma suscitado foi tal, que Antonio Vieira julgou
necessario illibar-se por uma justificação, e neste sentido so-
licitou o governador. Deferiu-lhe este o pedido, e o resultado
foi, como era de esperar, favoravel aos padres, que saíram
limpos de toda a culpa, pélos depoimentos recolhidos.
O objecto das queixas e da justificação era o mesmo sem-
pre: os resgates, e a zelosa guarda que os jesuítas faziam nas
aldeias, negando aos colonos os servos que, sêgundo a lei, ti-
nham de repartir-lhes. Os missionarios allegavam impossibili~
dades, e provavam com testemunhas suas o éxacto cumpri- .
mento da lei. As camaras protestavam, entendendo que os re-
ligiosos - se deviam restringir á direcção espiritual dos índios,
deixando aos leigos a administração temporal.
O povo de Belem representa em 1659 nesta conformidade
á corôa. Não vindo solução satisfatoria, o descontentamento con-
tinua. No ,:inno seguinte, os vereadores propõem uma especie

1 Carta ao bispo do Japão: Maranhão, 4 de dezembro de 1660.


CONTENDAS E PRIMEIRO REVÉS 75

de alliança defensiva aos de São Luiz, incumbindo.os de leva-


rem suas reclamações á presença do governador. Ainda esta
diligencia saíu infructuosa; os do Maranhão, em vez de toma-
rem a si a causa, que támbem era sua propria, recommenda-
vam pruciencia, na esperança de tempos melhores. Com isto,
desattendidos em: toda a parte, os colonos do Pará não con-
tiveram mais o resentimento . por tanto tempo abafado. Dis-
põstos, sendo preciso, aos actos violentos, para que tinham
exemplo e desculpa no passado, cuidaram de resolver a con-
tenda directamente com o seu póderoso adversaria.
Regressando de Ibiapaba, fôra Antonio Vieira ao Pará
para organizar as missões do Alto Amazonas. Fez-lhe a ca-
mara uma representação, expondo a situação difficil da capi-
tania e requerendo que, na forma da lei de 5 5, se dispuzesse
uma entrada ao sertão, para os resgates. Respondeu elle com-
pridamente, rebatendo as allegações do senado. Desde 1655,
tinha havido entradas todos os annos, e em alguns mais do
que uma, descendo-se para cima de tres mil índios fôrros e
mil e oitocentos captivos, de cujos serviços gosava a commu-
nidade; as causas dos males que todas padeciam eram · mul~
tiplas, e aos vereadores competia· removel-as; a mortandade
dos indios enorme, e por esse motivo assim continuariam as
cojsas, em quanto se não introduzissem escravos de Angola,
- como se fazia no Brazil: entretanto daria satisfação aos votos
dos moradores, preparando em tempo opportuno a expedição
que desejavam t.
A promessa era vaga, e além disso não satisfazía os intui-
.tos dos representantes, que procuravam um rompimento for-
mal. Não se deu portanto a , vereação -por convencida, e voltou
com uma réplica, intimando.o a apresentar-lhe os poderes, que
tinha, r:elativos ao governo temporal das aldeias, para serem,
em obediencia á lei, registados. Alguns trechos do documento
assumem · forma quasi comminatoria : - « Vossa Paternidade
lembre-se da promessa que os missionarias fizeram a Sua Ma-
jestade de qi'.ie não haviam tirar lucro dos indios fôrros, nem
co1~ elles fabricar fazend.i:s, nem connaviaes ... » - . Em outro
logar, uma bem desfechada ironia a Vieira: - «Já que Deus .

1 BERREDO, Annaes historicos do Maranhão, § 1030.


OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

deu a Vossa Paternidade tão grande juizo e entendimento,


que nos faça mercê por serviço de Detis e de Sua Majestade,
e remedio d'este povo, dar-nos caminho para nos governar
bem, e passar a vida sem vaidade nem gastos excessivos ...
- t e sem ter esc1·avos que nos sirvam, accrescentavam, aggra-
vando a ironia, pois a questão dos servos era- e o proprio
Vieira advogando a introducção dos africanos implicitamente
o confessava-a pedra angular de todo o edificio social. Inti-
mada, para maior solemnidade, esta réplica pelo escrivão da
camara, declarou o superior que nada tinha a responder; prova
de sangue frio e desdenhosa indifferença, que levÓu a hesita-
ção ao aniino dos descontentes. Á ultima hora recearam lan-
çar-se numa aventura perigosa; a reflexão veio e, acceitando
o parecer dos prudentes, decidiram persistir no systema im-
proficuo das representações. Com seus requerimentos manda-
ram póis um enviado ao governador a São Luiz, despachando
a,o mesmo tempo outro para Lisboa.
Antonio Vieira, com o fim de annullar o effeito das recla-
n'iações, e já certo da victoria, partiu na mesma occasião ·para
a capital do Estado. Mas veio surprehendel-o em caminho a
noticia de que rebentara ali um movimento, e chegava-lhe ás
mãos carta de Dom Pedro de Mello, dando conta do succeclido.
Pessoas vindas da cidade confirmavam as informações: o povo
e
em revolta, os jesuítas presos, o governador coacto, forçado
a abandonar á vindicta publica os mesmos que, contra a von-
tade de todos, por tanto tempo defendera. A afflição em que
se via o chefe do Estado era tal, que publicamente revogara
as firmas em branco, antes, por submissão ou confiança ex-
cessiva, outorgadas ao superior das missões.
Para este ultimo a defecção do governador, em conjunctura
tão grave, era um golpe tão inesperado quanto terrível. Podia
então suppôr que só a transitoria fraqueza de um instante
subjugava o seu antigo instrumento á vontade popular; mas
estava,lhe reservado vêl-o d'ahi a pouco declaradamente ban-
deado com os seus emulas, e distinguir-se entre os mais ranco-
rosos. Os jesuítas, sempre promptos a infamarem seus con-
tendores, attribuiram o abandono á peita, e ao desejo de

1 BERREDo, Annaes historicos, S 1032.


CONTENDAS E PRIMEIRO REVÉS 77

subtrair negociatas illicitas á sua vigilancia escrupulosa. Antes


do rompimento (dizem elles) Deu~· Nosso Senhor lhe multipli-
cava os bens; sua fortuna pessoal crescia a olhos vistos, che-
gando a mandar para o reino. dois navios, com mui.tas 1-'ique-
zas t. Isto nos dá a razão das assignaturas em branco, e dos
e!evados dotes que Antonio Vieira descobria no capitão·gene-
ral. O pacto achava-se firmado, embora o não confessassem:
aos padres o dominio exclusivo dos indios, ao governador as
mercancias escandalosas, vedadas pelas leis. - -
. - Que causa desconhecida provocou a mudança? Novos con-
se~heiros asseguravam a Dom Pedro que havz·a de adquirir o
dobro no ultimo anno do seu governo. Esta é a versão dos je-
suitas; e, se a primeira parte é verdadeira, o que parece pro-
vavel, não pod_e haver reluctancia em se admittir a segunda.
Em todo o caso, a êarta dirigida a Vieira, e transcripta por
Berredo nos Annaes, denota tanta baixeza e má fé, que ne-·
nhuma suspeita, vindo depois, malsinará o caracter do seu
auctor.
Com o grosseiro estratagema das desculpas, só pouco tempo .
se illudiu o missiona.rio. Logo lhe foi evidente que o alliado,
até ahi tão seguro, se passara aos inimigos; delle portanto
nada lhe era licito ·esperar. O peor era que os factos iam re-
percutir no Pará, onde os moradores haviam de acolher com
alvoroço este inesperado apoio á sua causa. Tendo-..Se pronun-
ciado a povoação principal do Estado, com a sancção volun-
taria ou forçada do governador, todos os motivos de receio
desappareciam. Certo disso, o jesuita voltou apressadamente a
Belem, buscando antecipar-se aos emissarios, que .breve che-
gariam com a nova da sedição. De Gurupy despedira dois pa-
dres, encarregados de levarem .l côrte communicação do suc-
cedido; mas estes, descobertos em São Luiz, fôram presos e
mantidos em custodia com os outros missionarios.
A situação presentemente era grave para Vieira, sobre
quem pesavam, ante os seus, todas as responsabilidades. Até
ahi a desaffeição dqs colonos comprehendia todos os jesuitas
em geral, pelo incessante batalhar em favor das liberdades;
agora, porém, a origem dos tumultos fôra um acto pessoal do

1 · BETENDORFF. Chronica, Liv. 1v, Cap. 4. 0 , manuscripta·.


OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

superior, e as consequencias abrangiam toda a communidade,


arruinando talvez o futuro das missões.
Tempos antes dirigira Vieira ao seu amigo bispo do Japão
certas cartas, onde não faltavam as costumadas censuras e de-
lações, contra os desá.lfeiçoados aos meneios da Ordem ; e o
ultimo, com autoridade de pastor de almas e zelo de consocio, .
não se descuidara de transmittir á rainha as confidencias. É de
crêr fossem as accusações sinceras, e os factos arguidos reaes,
nem outra coisa se pode presumir do caracter do missionaria;
mas porventura attingiam pessoas que delle não esperavam
similhante proceder. Quasi á vista de Lisboa um corsario espa-
nhol apresou o navio, e, _na confusão, fôram _as cartas parar ~s
mãos d<: um religioso do Carmo, que ia de passagem. Apo·
derando-se dellas, seu primeiro cuidado foi tomar conheci-·
ment~ do conteúdo, persuadido que lhe "entregava a providen-
cia uma arma poderosa contra os detestados rivaes. Com esse
sentimento . as conservou em seu poder, e é facil de compre-
hender que, pelo mesmo, os superiores o absolvessem do crime
duplo, de furto . e violação de alheio sigillo.
Fallecéndo o bispo do Japão, pareceu a occasião opportuna
para se dar andamento á intriga. As cartas foram remettidas
\ ao Maranhão, onde, como se devia esperar, excitaram ~ colera
dos offendidos. Espalharam-se cópias; os originaes foram pu-
blicamente lidos ~m sessão da ca"mara; e a geral indignação au-
gmentou, quando principiaram a correr cartas, vindas do reino,
1 que denunciavam, como sempre, algum novo ardil dos jesuítas .
. Ao mesmo tempo, soube-se do Pará que certo principal
dos indios, mui conhec~do, fôr~ preso no forte de Gurupá, á
ordem de Vieira. A culpa, sendo de adulterio, pertencia á al-
çada do Ordinario, jurisdicçãÓ que o superior dos jesuítas exer-
cia nas aldeias onde seus subditos eram parochos. O indio vi-
via em boa harmonia com os colonos; muito provavelmente
era dos que occultamente com elles .negociavam, e lhes facili- ·
tavam as traças na questão dos captiveiros. Acaso lhe caíu
mais duramente em cima, por esse motivo, a justiça eccle- ·
siastica. Certo é que lhe surgiram protectores, condemnando o
o
e':_{cess~ de severidade; o castigo julgou-se attentado; e brado,
tantas vezes repetido, que se lançassem fóra os jesuitas, soou
mais uma vez em São Luiz.
CONTENDAS E PRIMEIRO REVÉS 79

· Não valeu a formalidade de virem os padres á camara dar


exi:>licações. Intimaram-lhes que largassem o governo das al-
deias. Elles; invocando a lei de· 5 5, recusaram; mas qualquer
que fosse a resposta não evitariam a expulsão, que era objecto
decidido. Tudo se levantava contra os ·jesuitas. Os religiosos
das outras ordens, expellidos da rendosa administração dos
indios, animavam á revolta;_ o clero secular, por ciume, favo-
recia-a tam1lem. Falou-se em atacar o collegio. Aos populi,lres
que hesitavàm, por ser peccado pôr mão em pessoa ecclesias-
tica, o vigario da Matriz dissipou b receio da excommunhão.
Dom Pedro de Mello tentou sair, para restabelece_r a or-
dem, com soldados ; mas estes, indisciplinados por falta de
paga, sumiram-se, protestando que nã-0 tomariam parte contra
os . moradores, a quem _deviam a subsistencia. Privado de apoio
militar, voltou-se o governador para os meio_s suasorios. Acom-
pa~hado sómente de quatro familiares, partiu em busca 'dos
amotinados. Pará livrar-se de alguma aggressão acenava-lhes
de longe com um ºemblema devoto t . •Mas o propoªito. foi bàl-
dado. Se bem que alguns, menos ardentes, acompanharam
Dom Pedro á camara, onde buscava attraíl-os, os restantes pe-
netraram á viva força no collegio, conduzindo os jesuitas a
prisão. Vencido, e reconhecendo agora que melhor vantagem
lhe traria o mudar de politica, o governador deu ouvido ás pro-
postas que provavelmente desde muito tempo o assediavam ·; e,
com o ardor proprio dos renegados, converteu-se, desde então,
em acerrimo perseguidor dos jesuitas.

VI

Regressando ao · Pará, consistiu o primeiro cuidado de


Vieira em promover a reconciliação· com a camara, antes que
rumores da revolta viessem difficultar-lhe esse passo. Elle
proprio deu conhecimento aos vereadores do que havia em

1 «Saí como desesperado com quatro creados, e tomei por rodela a


capinha de São José e com ella me cingi». (Carta de Dom Pedro de Mello,
BERREDO, Annaes, § 1041). Betendorff diz: • .• «agarrado a uma imagem
de São José ..• >>. Chron. ~a Companhia, cit.
80 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

São Luiz; em seguida, expondo-lhes o estado prospero das


missões e os serviços da sua ordem á colonia, exhortou-os ao
respeito ás leis, cuja fiel observancia esperava delles; rogou-
lhes que, para obstar ao sobresalto, a que daria causa entre o
povo a noticia dos tumultos, quando divulgada, se impedisse
toda a communicação com a vizinha capitania; - como se faz
com os togares empestados, accresç:entava t:
R.espondeu a camara em termos ambíguos, ..repetindo a
queixa da falta de escravos, e dª'ndo parte da reclamação,
havia pouco feita para a côrte, sobre a jurisdicção temporal.
Similhante resultado era pára desvanecer as esperanças do je-
suita. Ainda assim os próceres hesitavam. Dom Pedro escre-
vera entrementes aconselhando a paz, e promettendo aos habi-
tantes satisfação completa na contenda. Já no Maranhão se
tinham os padres demittido do governo das aldeias; no Pará
succederia o mesmo; e a regente com çerteza daria aos factos
consummados a confirmação legal. Isto todavia n~o bastava a ·
preencher os desejos da população. Faltava a mais ambicio-
nada das concessões, que era a fr~nca licença para os resgates,
lenitivo unico, segundo a geral opinião, aos males da commu-
nidade; mas tão longe não ousou o governador aventurar-se,
que seria isso aggravar a cumplicidade na rebellião com uma
formal desobediencia ás leis. Sobre este ponto recom!_llenda·
va-lhes, com a doblez que lhe era característica, se dirigissem
ao padre Antonio Vieira, de quem certamente seriam atten-
'didos. Tal alvitre ainda mais irritou os animos. Para alguns
.fazia o effeito de zombaria; outros viram nelle um incita-
mentó a desembaraçarem-se do obstaculo, que se interpunha
ao remedio de suas necessidades: estes ultimos arrastaram
comsigo a opinião geral.
A 17 de julho explodiu no Pará a latente agitação. Foi
após uma procissão religiosa. Os amotinados dirigiram-~e á
camara, exigindo-lhe a nomeação de um juiz do povo, cargo
novo na capitania, e que no Maranhão apparecera, pela pri-
meira vez, na occasião dos ultimos tumultos. Em seguida, per-
suadidos que a presença do magistrado_popular legalizava os

l Representação de Antonio Vieira á camara. BERREDO, Amzaes Hist.,


s 1044.
CONTENDAS E PRIMEIRO REVÉS 8I

actos da revolta, fizeram como lá: tomaram de assalto o col-


legio e prenderam os religiosos. .
Na rua, entre os insultos do populáchq, Antonio Vieira ou- '
via remoques como este: « Onde está agora, ó padre, a tua
- sabedoria, se não podes livrar-te do confücto? » Com boa es-
colta o conduziram á capital do Estado, onde lhe não foi per-
mittido desembarcar: conservaram-no preso no mar, em uma
caravela. Debalde pedia elle uma aucliencia á camaia: os ve- J
readores recusavam, pão querendo relações com · um homem
que, segundo diziam, falava com o diabo ! A Dom Pedro de
Mello enviou uma supplica: que o transferisse da caravela,_que
era '<<um barco sardinheiro de Setubal, muito pequenó e sem
agasalho; ·velho, rôto e mal apparelhado de tudo t », para a
nau, onde se achavam os outros religiosos seus subditos. Tar-
dou o despacho. Os adversarios levantavam contra o illustre
prisioneiro a accusação de infidelidade á corôa; tratavam-no
publicamente de traidor, imputando-lhe quizera entregar o Ma-
ranhão aos hollandezes; e o governador fazia-se echo das ca-
lumnias, se as não propoz elle proprio, seguramente para dar
arras de sua dedicação aos n:ovos alliados; no processo, se
fosse ávante, encontraria meio de abafar as recriminações na
bôca do abandonado protector:.
Antepoz-se-lhe a má vontade do ouvidor-geral, que não era
do conluio. O magistrado, inquirindo as t~stemunhas,· sómente
recolhia a certeza do aleive, sem nenhuma base, que séquer leve-
mente justificasse o processo. E como o governador insistisse,
a impaciencia popular decidiu a contenda transferindo o preso
para a nau, que immediatamente se fez de vela. A embarca-
ção, carregada pelo g~vernador, com o producto dos negocios
e rapinas, que as regalias ·d o posto lhe facilitavam, escapou
aos corsarios, que perto de Lisboa a acossaram, e levou a sal-
vamento os missionarios.
Antonio Vieira não tinha de voltar ás paragens, onde por
tanto tempo lidára; tão pouco lhe seria concedido ver adian-
tar a empresa, de que ti~ha sido Ó fundador e obreiro princi-
pal. Os sonhos gerados na embriaguez das passadas victorias

t P~tição ao governador Dom Pedro de Mello. Vrnuu, Obras Varias.


Tom . i. 0

H
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

esvafám-se em fumo. Após uma derradeira promessa da for-


tuna, o indefesso luctador ia ver .arruinadas todas as suas es-
peranças. Exilado da côrte, perseguido, encarcerado, cerceado
do livre uso da eloquencia, que era a sua faculdade mais viva,
conheceu a amargura dos que no ultimo quartel da vida não
teem o consolo de u~ filho, em que perpetuem a raça, de
·uma obra, em que continuem a existencia, e inuteis mer-
gulham no passado, oncle vivos já estão. Algumas vezes lhe
seria dado ainda erguer a voz em favor dos selvagens; verso-
licitados e attendidos os conselhos de sua longa experiencia.
Mas o que montava isso para quem na mente arrojada de-
senhara· creações tão soberbas? Esse pouco balsamo da vai-
dade o que era, ao pé do travôr indelevef das decepções?
CAPITULO IV

ULTIMOS ANNOS DE ANTONIO VIEIRA

. .1. Chegada a Lisboa. Os Capítulos de Jorge de Sampaio. Sermão da Epipha-


nia. Intrigas na côrte. O Santo Officio. - II. O sebastianismo. Desterro
e encarceramento de Vieira ; O processo. -III. Restituição á liberdade.
Desdenhosa indifferen.ça de Dom fedro.-IV. Partida para Roma. Intimas
dôres. Rlgrêsso a Portugal. O patriotismo e a illusão mystica.

GUALMENTE temida no Maranhão e na côr-


te, a presença de .Antonio Vieira em qualquer
das partes constituia serio obstaculo aos ma-
nejas da facção contraria, A deportação para o
ti,:::;;========:!! reino era para elle o seguro caminho da victo-
ria. Jorge de Sampaio, procurador enviádo pela camara, apon-
tava d.e Lisboa aos colonos a· inconveniencia do que haviam
praticado. Agora tinha elle pela frente o adversaria, a quem
julgara ferir .de costas, e comparava receoso a mediocridade
de suas forças ao talento e influencia do missionado.
As queixas do Maranhão achavam-se reunidas em extenso
memorial, de vinte e cinco capitulas. Destes;' uns diziam res-
peito ao regímen dos indios; outros aos missionarios em ge-
ral; alguns versavam sobre o proceder do proprio Vieira. A
feição importante d'este documento é que nelle pela f>rimeira
· vez apparece a arguição de cubiça, de que mais tarde se faria
OS JE~U!TAS NO GF.ÃÓ-PARÁ

o labéo constantemente lançado sobre as missões. O memo-


rial- de Jorge de Sampaio não é conhecido; sepultou-se na des-
ordem dos archivÓs, se mãos descuidosas 9u interessadas o não
sumiram. Mas .a primeira hypothese será mais provavel. Te-
mos porém a resposta de Vieira, em que o jesuíta, ponto por
ponto; rebate a argumentação do accusador. Foi redigida no
Porto, em setembro de 1662, quando o autor, já no 'desterro,
forçadamente se ·viu liberto.dos cuidados da política, em que
se abysmara apenas chegado. Então _a mudança . de governo
transformara· os prospectos da demanda1 e os artigos contra
os jesuítas eram acolhidos, diz Vieira, - «como verdades do
Evangelho; posto que nelles (accrescenta) não ha palavra, nem
syllaba, nem lettra, que não seja clara e. manifesta mentira»-i.
O papel é extenso, e delle se colhem todas as minuciosi-
dades da contenda existente, desde 1653, ~ntre colonos e je-••
suitas. A ameaça, insinuada pela .camara do Pará nas pala-
vras: «-Vossa Paternidade lembre-se da promessa que os
missionarios fizeram a Sua Majestade de que não haviam tirar
lucros dos z'ndt'os i - , fizera-se realidade. A ruína das missões
estava ali, e de todas ·as imputações lançadas á · Ordem esta
tinha de ser até .hoje indelevel. A increpação de amor pelos
bens terrenos que, mais tarde, como havemos de ver, era fun-
dada, não se justificava por então; e Vieira defendia-se della,
como da mais grave offensa, que se lhe podia irrogar. Mais
ainda: desviando o golpe, f~zia-o reflectir por inteiro sobre os
colonos e as autoridades, repetindo as accusações, que não dei-
xara de enunciar desd!'! a sua chegada, pela primeira vez, ao Ma-
ranhão. Adiante de tudo, como primeiro argumento, collocava
1
. a probidade de sua vida, o de~interesse de que, em todas as
circumstancias, dera provas. No decurso da sua carreira diplo-
matica, tivera á disposição avultadas so1mrias, podendo gas-
tai-as- « sem outro conselho inais que o do seu parecer, nem
. outra fé mais que a de sua palavra»-; e as contas, que dellas
havia prestado, sabiam-no todos. De mercês e favores regios
nenhuns quizera acceitar. Na Hollanda, ficando de posse da

1 «Resposta aos Capitules que deu contra os religiosos da Companhia


o procurador do Maranhão Jorge de Sampaio», impressa em MELLo Mo-
RAES. Chorographia Historica. Tom. IV.
ULTIM.OS ANNOS DE ANTONIO VIEIRA 8f

emb~ixada, na ausencia do proprietario Dom Francisco de Sou-


sa Couti~ho, dispensara os honorarios do cargo; em Paris rejei-
tara .a offerta do marquez de Niza, embaixador naquella côrte,
por quem Dom João rv .lhe mandava entregar vinte mil cruza-
dos, para seus livros; dos sermões jamais quizera haver paga,
- «nem a menor sombra de agradecimento por mais disfarça-
da que fosse» - ; e, dando-o~ em seguida á estampa, tâmbem
nenhum lucro tirava. Isto pelo q-qe lhe dizia respeito pessoal-
mente.
Para as missões, fóra do subsidio regio, recusava todas as
outras dadivas, quaesquer que essas fossem. A Manoel David
Soutçi Maior, grande amigo da Companhia, e irmão do padre
João de Souto Maior, devolveu uma letra de 500 cruzados,
com que intendia ·concorrer para as obras da casa ·do Mara-
µhão; da . mesma forma rejeitava os generos, offerecidos por
amigos caridosos, para sustento dos índios; á rainha regente
pedira não lhe mandasse soccorros, até que fosse terminada a
guerra com a Espanha: por isso, com o orgulho que lhe era
natural exclamava: - «E quem no Maranhão não acceitava
:- aos reis, como Õ tomaria aos .pobres » - ? ·~
Entretanto os recursos ·da missão eram escassos; mas à
modestia em que viviam os religiosos fazia chegar para muito
a mesquinhez do cabedal. O superior dava o exemplo no en-
thusiasmo de buscar as privações. O seu cubiculo - , com de-
liciosa propriedade escreve o biographo · André de Barros, -
era o palacio da pobreza 1 • Em certa occasião foi tal o aperto ·
que, á mingua de outros objectos, tiveram os padres de empe-
nhar a custódia, para acudir , ao sustento dos índios. Todos
estes factos eram notorios, e Vieira ·facilmente se justificava
das allegações do adversario.
Teria pois razão este ultimo de lamentar o acto impoli_tico
da expulsão do missionado, se factos inesperados não yiessem
no seguimento facilitar-lhe a empreza. O libello era apoiádo
por todos quantos tinham amigos e interesses ~o Maranhão,
além das pessoas systematicamente hostis á Companhia, e dos
inimigos pessoaes de Vieira, que não eram poucos. Intentaram
esses mover a Inquisição, já indisposta contra elle pelo favor

Vida, pag. 358.


86 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

que no reinado antecedente manifestara aos judeus. Alguem


denunciou ao Santo Officio o escripto intitulado -:-Esperanças
de Portugal no Quinto Imperio do Mundo - que enviara do
Amazonas ao bispo. do Japão. Acudiu a tempo um amigo po-
deroso, e interpoz-se a protecção da rainha; mas 'dera-se o
primeiro passo, e a . seu tempo havia de produzir resultados.
Desprezando as intrigas, o jesuita não só perante a regente
e nas secretarias de estado pleiteava a sua causa: queria. tam-
bem domar a opinião publica, talvez rebelde; para isso usou
do pulpito, logar costumado de seus triumphos.
O sermão da Epiphania, prégado na capella real, pouco
tempo após ~eu desembarque em Lisboa, é uma fogosa dia-
tribe contra o proceder dos colonos. Neste discurso, qu~ pela
violencia · ficou celebre, a colera do orador, não satisfeita de
verberar as pessoas, abrange os proprios logares, que foram
testemunhas da offensa, applicando-lhes palavras de indignação
e desprezo. O estado de onde viera expulso é- um rincão ou
arrabalde da America - ; Santa Maria de Belem-quatro chou-
panas, que com o nome de cidade poderam ser a pat1-ia do Anti·
Christo; e, comparada a Argel, Lisboa, que viu entrar por sua
barra os sacerdotes de Christo captivos e presos, sente que o mar
lhe estti. lançando em rosto o soffrimtnto de tamanho escandalo.
Empregando por uma parte,· para domar a opinião, os re-
cursos da sua brilhante oratoria, o jesuíta fiava muito do seu
valimento com a rainha para alcançar uma satisfação estron-
. dosa. Comtudo, por inclinada que estivesse a princeza a favo-
recer-lhe os desejos, forçoso lhe era ceder á opinião dos minis-
tros, que, temendo novos disturbios na colonia, recommenda-
vam prudencia. '
Os autores da Companhia dissimulam a derrota; com exal-
tar a grandeza de animo de Vieira. Invocando a memoria do
rei Dom João IV e do príncipe Dom Theodósio, como quem
de ambos a guardava tão querida, lançou,se o aggravado aos
pés da regente implorando o perdão dos culpados; ao _ que
Dona Luiza respondeu: Hoje resuscite o Maranhão por amor
de Antonio Vieira! 1 Tal foi, no dizer do chronista, a. scena
incrivel, por effeito da qual escaparam os amotinados ao im-

1 BARROS, ':ida, pag. 209.


ULTIMOS ANNOS DE ANTONIO VIEIRA 87

minente castigo. Mas o que sabemos do genio caprichoso e


violento do jesuíta afasta por jnteiro· esse conceito. A frouxi-
dão do poder civil na colonia e o temor de novos disturbios .
explicam a clemencia da rainha.
As mesmas razões de prudencia, que evitaram a repressão,
levaram provavelmente o governo a impedir o reembarque de
Vieira. Ficava porém na · côrte, copsu~tado e attendido em
todos os negocios políticos; o que, satisfazendo-lhe as ambições
do amor proprio, bastava para apagar a lembrança dos pas-
sados dissabores. Ali, é certo, alguns desconfiavam do seu ·pa-
triotismo, ·dizendo-o mais inclinado aos extrangeiros, que aos
naturaes; outros renovavam o aleive do Maranhão: que per-
tendera entregar a provinda aos hollandezes. Todas essas accu-
.- sações desprezou. Deixou tambem para · mais tarde a réplica
ás allegações do procurador Jorge de Sampaio: assumptos de
mais alta importancia lhe prendiam a attenção.
A côrte dividia-se em dois campos: de uma parte os que
tencionavam explorar as paixões ·e a demen~ia provada de
Dom Affonso VI; da outra os que no irmão, Dom Pedro, de-
positavam todas as esperanças. Destes ultimas, com quem ·es-
tava a razão, talvez mesmo o patriotismo, era instrumento a
rainha. Solicitado por ella, impellido por amigos e, acima de
tudo, arrastado pelo gosto in,vencivel dos enredos políticos,
lançou-se abertamente na re_frega. Foi elle o encarregado de
redigir a censura, lidà publicamente ao rei menor, no dia da
prisão dos Contis, que devia ser a preliminar da deposição.
Mas a facção opposta reagiu :. o conde de Castello-Melhor e
seus amigos fizeram que Affonso VI assumisse o governo; a
rainha recolheu-se ao convento de Xabregas, e os partidarios
do infante tiveram a sorte, em taes casos, niais suave: a ·perda
dos logares e o exilio da côrte foi o seu unico castigo.
Antonio Vieira estava por demais compromettido para es-
capar impune. O objecto da conspiração era real, como de
suas mesmas cartas se collige i .: isto facilitava a victoria aos

. 1 .« A Vossa Excellencia é mais presente que a todos a parte que eu


_tive em procurar que el-rei que Deus guarde (Dom Pedro) , fosse. preferido,
como era justo, a seu irmão».
Carta ao duque de Cadaval : Bahia, 2 de agosto de 1684.
88 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

enviados do Maranhão, seus contendores. Todos os inimigos


do jesuifa, que eram muitos, se alliavam agora com elles: uns,
que fizera n'ovos, na recente lucta; outros, cuja emulação já
antiga nunca lhe perdoara o valimento com o monarcha falle-
cido. Contra elle iritervinha tambem o Santo Officio, impaciente
de empolgar a presa ha tanto tempo cubiçada. Sempre des-
affecta aos je'suitas, a In,quisição não podia deixar incolume,
havendo meio, o mais illustre dentre elles, que ·tanto fizera em
pr61 da gente hebréa; esse, que á raça perseguida e vilipen-
diada quizera segurar direit9s na patria commum ; e que, no
concurso de entes tão abominavelmente despreziveis, intentara
fun<;lar a prosperidade da nação. •
As culpas de Vieira estavam em aberto no terrível tribu-
nal, desde a primeira proposta sobre as companhias de com-
mercio, nas quaes tinham entrada, horrenda coisa 1 os judeus
publicos. Uma dessas companhias, a Oriental, nunca chegou a
ter effeito; a outra, especialmente instituída para o Brazil, ex-
tinguia-se no meio da indifferença geral.
Gloriava-se Antonio Vieira desta creaçãb sua; por ella de-
via pois responder como de um attentado cont~a a fé. O rei,
que lhe escutara os dictames, não podera esquivar a jus tiça,
ainda que posthuma, dos inquisidores. Com grande ápparato,
foram elles levar. a Dom João I\~1. já cadaver, a derradeira absol- ·
vição: sem ella não podia o soberano, inviolavel nesta vida,
grangear ·na outra a salvação eterna: chegavâ a vez d~ conse-
lheiro, contra quem tantos odios se accumulavam agora. .

II

A delação versava sobre o escripto em que 3a falámos,


composto no Pará. Nesse papel as esperanças sebastianistas
qe Vieira se concretizavam na pessoa do monarcha defunto,
que devia resuscitar para vencer o turco, a esse tempo senhor
da Europa occidental, e fundar um imperio christão, com a
séde em Lisboa, e dominio do universo inteiro. Assim o "da-
vam a entender prophecias populares, como as do Bandarra,
sapateiro inspirado, que vivera em Trancoso, no reinado de
.,
ULTIMOS ANNOS DE ANTONIO VIEIRA

Dom João III; as do ce1ebre thaumaturgo São Frei Gil de


Santarem ;· e outras ainda; o que tudo era de accordo com a
lição dos próphetas do Antigo Testàmento, e padres da Igre-
ja Christã. O ~papel, que dava como certos para tempos pro-
ximos tão extraordinarios successos, correndo de mão em mão,
caíu nas de encarniçados inimigos, que nó arrojo das proposi-
ções soub.e ram descortinar heresias. Além de contrariar as opi-
niões dos theologos sobre a vinda do Anti-Christo t'. o fim do
mundo, Vieira offendia Roma, tirando-lhe-a primasia do impe-
rio futuro; e, o que mais grave era, o Santo Officio, já ado·
ptando os dizeres do Bandarra, condemnados por judaicos, já
pelas referencias indiscretas á raça proscripta.
Iam apparecer a~ dez tribus perdidas de Israel, e, em se-
guida, realizavam-se as palavras do trovador propheta:

Os judeus _serão christãos


Sem jámais haver error,
Servirão um só. senhor,
Jesus Christo, q·u e nomeio 1,

Destes elementos se formou o processo do jesuita.


O primeiro signal da tormenta contra elle desencadeada
foi a ordem de exilio para o Porto, onde pouco tempo depois
sua existencia correu risco, ameaçada por l}m dos valentes de
Affonso VI '.il. Não foi Vieira ô unico desterrado. Igual sorte
tiveram certos fidalgos, compromettidos como elle na conspi-
ração palaciana; entre esses ' º duque de Cadaval, seu grande
amigo e protector, exilado para Almeida. No Porto continua- ·
va a occupar-se de politica: não só do que se passava em Lis-
boa, como de quanto dizia resp~ito á guerra, então activa, com

1 A autoria destas trovas foi pelo marquez de Pombal, na 'Deducção


Chronologica, attribuida a Antonio Vieira. Esta opinião não tem outro funda-
mento mais do que a animosidade de quem a formulou, contra os jesuítas.
2 - «Por esta causa, entrando a governar o Senhor Rei Dom Affon-
so, o desterrou logo, sendo elle o primeiro dos desterrados: e no mesmo des-
terro o mandou matar por um dos seus valentes, Fulano Caminha, de que
o avisou João Nunes da Cunha, para que se retirasse. »-Memorial ao prin·
cipe regente Dom Pedro, Ob1·as ineditas•. Tom. III.
i2
90 OS JESUITAS _NO GRÃO-PARÁ

Castella. Estes assumptos faziam objécto de correspoiidencia


seguida com os outros desterrados. Alguma destas cartàs, cu-
jos dizeres foram conhecidos, deu causa a que se lhe agg'i:avas-
se a situação. Falou-se primeiro em transferir-lhe o exílio para
mais longe: uns diziam que para o Brazil, outros para Angola.
Metteu-se, de permeio o Santo Officio, que' já lidava com a de-
nuncia, e mandaram-no então para Coimbra, onde a severidade
do tribunal era c~nhecida. Advertiam-lhe entretanto, por ordem
da côrte, que cessasse a correspondencia com o duque de ~a­
daval.
A 12 de janeiro de 1663 chegou Vieira a Coimbra, mas
já o desterro lhe era quasi prisão, pois lhe vedaram safr do
collegio. Seguem-se longos annos de mortificação e silenc,io.
Passa o consolo de se cartear com os amigos, que, occupados
na pi-opria defesa, não escrevem tambem. O processo na In-
quisição começara, e vagarosamente, na forma costumada, ia
correndo seus tramites. Em maio chamam:no pela prime-ira
~ez ao tribunal.
Absorvido n.os cuidados da causa, cujo resultado não po-_
dia ainda com segurança prevêr; acabrunhado de molestias, e
acaso receioso de aggravar com palavras imprudentes a situa-
ção delicada em que se via, não dá novas suas até dezembro.
É então que, desanimado e triste, escreve a Dom :Ródrigo de
Menezes: - « Não pode a minha fraqueza com a intemperança
d~stes ares, e com os rigores deste carcere de Coimbra, onde
me mandaram não sei por que culpas» 1.
A primavera de 64 encontra-o mais conformado com seus
males. Abrandaram os rigores do Santo Officio, e amigos va-
liosos trabalham na côrte por amenizar-lhe o destino. Já então
o exilio lhe parece supportavel: - «Se não Jôra tão sujeito ás
inclemencias do tempo o tivera por paraíso na terra» - 2. 11:
ludindo a espionagem, passam as cartas clandestinamente. Qs
casos da política, de cujo theatro se vê mau ,grado seu apar-
tado, os destinos da patria, que desejara grandiosos, lhe são
objecto de constante preoccupação. A~ima-o a antiga chime-

1 Carta de 17 de dezembro de 1663.


2 Carta de 3 de março de 1664 a Dom Rodrigo de Mene~es.
ULTl.MOS ANNOS DE ANTONIO VIEIRA 91

ra, na qual,.·sempre embebido, encontra consolo ás - maguas


presentes, satisfação ás esperanças do porvir. Já então Affon-
so VI é o verdadet'ro Encoberto; . e assim o provará na grande
obra que tem em mãos, a .Ht'storia do futuro, pela qual o mo-
narcha algum qia reconhecerá nelle um menor Daniel.
Entre os j~suitas, a crença sebastianista, que tanto haviam
ajudado a propagar, permaneci~ ainda vivaz. Mudara porém
de Íqrma e, çleixando aos mortos o sõcego do tumulo, trans-
ferira para o~ vivos as ·suas aspirações. Nas aulas da Compa·
nhii:+, em Çç}imbra, fazia objecto de conferencia o thema se-
guinte: Se havia ou não de vir el-rei Dom Sebastião; e após
douta contenda resolvia-se que o verdadeiro Encoberto era o
soperano reinante t. ·
Este anno e o seguinte, de 65, passa-os Vieira occupado
d.SI- sua obra prophetica, dos successos da guerra, e de pro-
. gnosti_(:os de estrellas e eclipses. Dom Rodrigo de Menezes,
irmão do general marquez de Marialva,. que por esse tempo se
cql;>ria de gloria nos campos ·de batalha, é o confidente a qü~m
revela suas impressões'. P~r elle obtem os livros raros, folhet?s
populares e commentarios extravagantes das escripturas; c?~
que se afervorava a crença sebastianista. Em 1670, segundo ô
Bandarra, teria logar a conversãó total dos judeus e maho?~e­
tanos ao catholicismo. No anno de 66, data fatídica- «'por
entrarem· nella tres vezes seis, numero notável . e mui notado
no Apocalypse » 2,-se haviam de realizar extranhos successos;
dando principio á nova éra : já isso faziam conhecer -antecipa-
dos prodígios. Acreditando sem reserva tudo que lhe parecia
confirmar as suas illusões, assim refere o jesuíta a Dom Ro-
drigo de Menezes: - «De Melgaço vi carta de um notavel me-
teóro que, co~rendo da parte de Valença do Minho, e durando
por muito espaço, se desfez sobre Galliza em raios e çoriscos:
era oa figura de uma espada de côr verde e amarella, que saía
de duas pequenas nuvens, uma branca e outra vermelha ... '
No collegio dos thomaristas desta cidade se viu depois da
meia n"oite um globo de fogo, que nascia na parte do sueste e

1 VIEIRA, ctEsperanças de Portugal», Obras ineditas. Tom. I, pag. 125.


2 Carta de 3 de março de 1664, cit.
92 OS JESUJTAS NO GRÃO-PARÁ

subia por espaço de duas a tres horas até se dei>féizer . . . Em


Guimarães vomitou um homem enfermo um dragão com duas
asas, de comprimento quasi de um covado... De Roma se
escreve houve tres dias de nevoas tão espessas e escuras, que
se não viam os homens nem os edificios. . . Tudo isto (con·
clue) são signaes e prodígios que solemnizam as vesperas do
anno fatal» t.
Entretanto, protectores. mysteriosos continuam. à empe.
nhar-se em seu favor, e ha quem julgue certo ser-lhe attenuada
a pena do desterro, com a mudança para Santarem. Na quinta
de Villa Franca, onde vai convalescer, re~ebe o réo da Inqui-
sição occultas ~isitas de Dom Theodoro de Bragança, fidalgo
da mais levantada nobreza do reino. De bôca em bôca corre a
fama da obra extraordinaria a que consagra seus labores, pro·
movendo em muitos a reprovação, em alguns o enthusiasmo,
em todos a curiosidade.
Então Vieira julga se novamente aureolado pelo favor pu.
blico, que acompanhara seus primeiros triumphos. O amor
proprio, tão facil nelle de acordar, com esforço resiste ás ·soli-
citações dos que desejam cópias das suas obras, mesmo de
algumas já conhecidas. Isso lhe suggere a seguinte refléxão:
- « Os mysterios que encerra este appetite não- os entendo:
e não param só·noi;; sermões: por todos os modos me querem
lêr os que me não querem ouvir !! ». Mal pensava elle vinha
proximo o desenlace da tragica aventura, em que o seu desti-
no sossobrava; os inesperados admiradores eram talvez es-
piões, rebuscando provas de heresia e judaísmo. Subitamente
declarou.se _a procella. O processo corria no maior sigillo, no
qual mais que ninguem era interessado o jesuíta. Este, a des-
peito das exigencias dos inquisidores, ia dilatando a defesa,
fiado tal.vez em alguma intervenção protectora, ou espera11do
a realização das prophecias, com que saíria triumphante da
causa. Mas no mez de setembro os juízes intimam-lhe a apre-
sentação immediata da réplica, havia tanto promettida; e,
cumprida a ordem, não se julgou a apologia cabal._ Appare-

t Carta de 4 de maio de r665.


2 Carta de r6 de março de 1665, a Dom Rodrigo de Menezes.
ULTIMOS ANNOS DE ANTONIO VIEIRA 93

ciam ao mes~o tempo outras denuncias de proposições con-


.demnaveis; entre essas, algumas diziam respeito ao Santo Offi-
cio; varias dellas sobre os judeus. Tudo isso incitava os juizes
á sev_e ridade. Poucos dias depois ordenavam a detenção do réo,
que ficou recluso de outubro· de 65 a dezembro de 67.

III

A revolução pal~ciana, que derribou do throno e levou á


prisão Affonso VI, abriu a Antonio Vieira as portas do carcere.
Condemnado pelo Santo Officio, não teve de padecer-lhe os
rigore5'9 por muito tempo: as penas temporaes foram-lhe dis-
pensadas; as espirituaes, em cujo numero entrava a prohibição
de prégar, levantadas pouco depois. Não obstante, forçado se
via a calar d'ahi para o futuro as proposições condemriadas e
que ·mal defendera no processo: umas por negação, em que a.
evidencia ' era contraria; outras com ·subterfugios, em que a
razão se lhe perdia no iabyrinto das chimeras. .
O processo. de Vieira foi tambem o do sebastianismo, illu·
são dos simples, no tempo em que a. patria, sujeita ao extran-
geiro, esperava de algum prodígio o allivio. de seus males.
Nesta hora, porém, 1,1ada mais a justifica~a, e os proprios je-
~uitas, principaes propugnadores desse engano, tinham de ren-
der-se á demonstração do absurdo. Emquanto reinaram os
Philippes, esperava,se a redempção do soberano encoberto,
do· alucinado que, consubstanciando no enthusiasmo cavallei-
- roso e no fanatismo ignorante a alma popular, se perdera, e
comsigo perdera a nação, nos areaes de Alcacer-Kibir. Em
seguida, a intelligencia primorosa de Vieira escurecia na ta-
refa de provar o cumprimento do pro"digio na pessoa de
Dom João IV, que havia· de resuscitar. Mas depois os crentes
caíram em si; e, modificando sem malícia as convicções, ante
o des~certo de aggravarem por um morto ' o monarcha rei-
nante, transportaram p~ra Dom Affonso VI o seu ideal. Estava
porém contra elles o destino. O presumptivo soberano do uni-
verso, maniaco impotente, via-se no paço prisioneiro da fami-
lia e dos creados. A rainha separava-se com estrondo, publi-
94 os· JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

cando os despeitos do cio insaciado, e poucb depois unia-se


com o amante, que tudo machinara, cubíçoso do throno e da
mulher. Neste desastre se subverteu a illusão patriotica. E
d'ahi por diante os poucos, que lhe restavam ainda fieis, occul-
tavam com ciume o seu credo á irrisão que os perseguia.
O principe Dom Pedro não perdoava .de certo a Vieira a
fraqueza de ter visto a realização de seus mysticos devaneios
no monarcha deposto. Tambem fiaria pouco da sua lealdade,
acceitando porventura a voz publica, ,q ue o, .versatil caracter
do jesuíta fazia provavel. Por outro lado, as opiniões deste
em favor dos hebreus não lhe eram sympathicas; e, de qual-
quer maneira, em vesperas de empolgar definitivamente a
corôa, não lhe convinha provocar a hostilidade de corpo tão
poderoso como o Santo Officio, com quem estava a Tnaiorià
da nação. Limitou-se pois a dar ao antigo privado a mesqui-.
nha protecção que, sem o labéo de ingrato, não podia negar-
lhe; e, com manifesta resolução, afastou-o de si. Não admira
portanto ficarem sem effeito as instancias para a fundaçãb da
companhia Oriental, mallograda no tempo de Dom João IV,
e que _o utra vez Antonio Vieira se propunha crear, como a
antecedente, mediante o auxilio dos christãos novos. Facil é
de conceber a impressão dolorosa que nelle faria o proceder
desagradecido, aliás não discordante do caracter do príncipe.
Namorado da política, cuidara receber, na continuação do vali·
mento, a paga do que por ella padecera; exaltado e rancoroso,
persuadia-se que ia tirat soberba desforra dos aggravos recebi-
dos : e o seu ídolo, de quem no exílio falava· sob a designação
mystica de Santelmo, fizera-lhe ruir num apice todas as esperan-
ças . . Antes· os portaes da Inquisição não lhe tiveram dado
saída! Antes, na gélida Coimbra, se lhe tivesse aberto a se-
pultura 1 Nem a lei, que lhe vedara o regresso ao Maranhão,
fôra ao menos revogada 1
ULTIMOS ANNOS DE ANTONIO VIEIRA 95

IV

Não encontrando na patria as compensaçõe_s, que julgara


merecer, o jesuita ausentou-se para Roma, onde teve o aco- •
lhimento de que mais poderia desvanecer-se. Missionario, theo-
logo, estadista, tinham-o, na sua ordem, por um dos brilhan-
tes ornamentos della. Longe da cidade vieram recebei-o os
superiores em comitiva, na qual entravam, além dos padres,
pessoas da nobreza. Esta homenagem era um doce balsamo ,
na ferida, por onde lhe sangrava o amor proprio, tão dura-
mente offendido. Não foi essa a unica vez : outros applausos e
honras tinha de receber ainda na capital, então a mais civili-
zada do universo. ·
O motivo publicado da viagem tinha sido o encargo, por
conta da Companhia, de solicitar em Roma a canonização 9os
martyres do_Brazil, filhos della. Na roda de se,us amigos asse-
verava-se que o pretexto occultava o proposito de alcançar do
Pontifice satisfação condigna da injuria, que lhe fizera o Santo
Officio. Os desaffectos propalavam qu_e fôra commissionado
pelos hebreus, para advogar-lhes os interesses perante a curia.
Provavelmente todas as tres vozes eram exactas, e elle dos
tres negocios se occupava ao mes~o tempo.
Sobre o que lhe . era proprio, pedira ao príncipe uma re-
commendação para o embaixador junto ao Papa. Mal ouvida
a supplica em Lisboa, repetiu-a de Roma, não porém com
melhor resultado. Dom Pedro recusava em absoluto _compro-
metter-se, ·favoneando as pretenções do jesuita . com menos-
prezo dà InquisiçãÓ. Se elle trabalhava, como está verificado,
a favor dos judeus, as sympathias do regente eram todas da
outra parte. Desta maneira, juntando-se a convicção ao inte-
resse, cada vez mais foi alongando a distancia, que o sepa-
rava do seu tão extremado partidario.
Vieira não pódia por muito espaço resignar-se ao áparta-
mento da côrte, e da influencia nos publicas negocios. Mais
· vivo se lhe accendia o gosto pela política em uma cidade,
que era realmente o centro della; onde em todo o tempo fer-
vilhavam as intrigas, e os negocios importantes da christan-
,.
ULTTMOS ANNOS DE ANTONIO VIEIRA 97

sos, e applicando a estes as regras do direito commum. Em-


penhava-se na questão a diplomacia portugueza, contra a in-
fluéncia ~ o poder monetario dos hebreus, amparados tambem
na recommendação das côrtes extrangeiras. Um instante po-
deram elles julgar-se. victoriosos. Em 1674 mandou o papa Cle-
mente X fechar as inquisições do reino; mas já em 1682 con-
tinuavam os antigos rigores. Em todas quantas diligencias se
faziam tinha parte Vieira, e não era isso para facilitar-lhe o
designio de volver á patria ·respeitado e com credito. Em Por-
tugal, a opinião exaltada preferia um rompimento com a Santa
Sé, a ver mudadas, como requeriam os christãos novos, as
praxes do ~ribunal. Emquanto os fanaticos bradavam nas ruas,
as côrtes, convocadas em Lisboa, expunham _a o regente os
votos da nação, contrarios ás pretenções da raça odiáda. Com
este motivo se levantara,m novamente os emulos de Vieira.
Quando em 1675 voltou afinal ao reino, protegido por uma
bulla de isenção do Santo Officio, surgiu contra elle outra vez
a oc}iosa accusação de infidelidade. Sobre ô ex ímio patriota
lançara o vulgacho jaça de vendido a Castella.
Na côrte o esperavam novos desenganos. O principe pou-
cas vezes o recebia, e nessas não lhe dava a cubiçada oppor-
tunidade de conversar em negocios do Estado. As diligencias
que fizera na Italia, sobre o futuro casamento da princeza,
ainda em menor idade, filha de ·Dom Pedro, foràm mal aco-
lhidas. As duvidas sobr~ a limpidez do seu P!ltriotismo ti-
nham afinal dominado o regente, que lhe imputava, como ver-
dadeira traição, o alvitre de se entregar Pernambuco aos hol-
landezes, na quadra mais ·affiictiva das guerras da indepen -
dencia. E defendendo-se o mentor de Dom João IV, com a
opinião d' este ultimo, e ·o voto do conselho de Estado, retor- ·
quia-lhe o principe : « O padre Antonio Vieira não poderá pro-
var tal 1» i.
O pleito dos judeus continuava· em Roma e, persuadidos
os do partido adverso que o jesuíta buscaya padrinhos na
côrte de Madrid, fizeram que ·as relações com o embaixador
de Castella lhe·fossem vedadas.
Seu ardente patriotismo, que ~al deixara·esvaecer o sonho ·

1 Carta ao conde da Ericeira. Obras Ineditas. Tom . 3.<>


i3
98 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

dos annos anteriores a 1670, assistia em transes ao derrocar do


imperio portuguez. Offerecia Vieira o arbitrio das compa·
nhias, como remedio; mas esse ia ficar desattendido, até que,
oitenta annos depois, Pombal lançasse mão delle, já tardia·
mente e sem efficacia. Via a barra de Lisboa deserta dos ga-
leões que outr'ora, em todas as zonas, mostravam o pavilhão
nacional. O domínio dos mares competia agora aos hollande-
zes, que o tinham ganho pelo genio mercantil, e aos inglezes;
esses arriei1-os dos mundo, como lhes chamava i, Contempiando
a foz do Tejo, demarcada a meio por uma linha de alvas
espumas, e ao longe o oceano azulado, caminho de tantas
glorias, exclamava melancolico: «Entram e saem muitos na-
vios, mas nenl?.m11 com as nossas bandeiras: vemos rebei:itar
os cachopos sem medo, porque já em logar das naus da India,
não temos mais que barcos de pescadores» 2 • Onde ficara o
quinto imperio do mundo ? Onde o ve1·dadei1·0 encoberto? Ap·
pellava já. para Pedro II, o incestuoso e usurpador. Acredi-' '
tava ainda na destruição do impedo ottomano por um rei
portuguez, e esse, na phrase do Bandarra - de quatro 1-eis o
segundo - , sómente podia ser o irmão de Affonso VI. Quão
baixo havia descido um ideal, que partira do nobre e cava-
lheiroso Dom Sebastião !
Afinal os negocios do Maranhão, já delle esquecidos, de-
ram-lhe ensejo a tomar parte nos conselhos de Estado. O re-
gente não podia recusar á sua· competencia e valiosos serviços
na colonia tal satisfai;;ão; e o jesuita recebeu-a com avidez.
Breve se lhe desvaneceu porém a illusão de que seria cha-
mado a maiores cargos. Os invernós da E uropa começaram a
ser-lhe penosos, e só o clima. do Brazil lhe daria remedio. O
desfavor do príncipe era o frio; que· lhe gelava nas veias o
sangue descórado.
Em 1681 partiu para a Bahia. Atrás delle seguiu o clamor
das injurias, vociferadas pelo fanatismo, contra o paladino dos ~
judeus: Houve uma atoarda que o odiado jesuita, réo de in. ·
confidencia, se ausentara para o Brazil fugindo ~o proce~so.
No animo do regente continuava a prevenção antiga, que os

1 Carta XXXVI. T om. 3·º


2' Carta urr. Tom. 3.º
ULTIMOS ANNOS DE ANTONIO VIEIRA 99

governantes confirmavam na <le.susada arrogancia -do trato.


Vibrou-lhe o ultimo golpe o 'con1e da Ericeira no Portugal
Restaurado, onde o amigo de Dom João IV se ·via, na sua pro-
pria phrase, louvado com descredito ou de-sacreditado com lot!-
vores. A tanto não poude resistir em silencio, e respondeu
com a celebre carta, em que faz a apologia da sua carreira_
politica. Depois, a tarefa de limar e imprimir as suas obras lit-
terarias, de que os contemporaneos desdenharam, foi o ultimo
esforço desta intelligencia luminosa, a debater-se na onda de
indifferença em que .se lhe afund.o u a velhice.
Tal foi o destino memoravel deste homem. Ao serviço da
-~eligião tinha consagrado a sua vida; ao da patria o c;uidar de
todos os instantes e os dotes preclaros de um ~ntcndimento
penetrante; mas a inveja, o preconceito, o interesse, o fizeram
condemnar por infiel aos ideaes, que foram o guia da sua
existencia.
Morreu agarrado á chimera que o seu desejo das grande-
·zas da patria lhe suggerira. Não fenecera ainda, na sua ima-
ginação, o qu.into im.peritJ sonhado. Quando, no segundo ma-
trimonio de Dom Pedro II, nasceu o primogenito, esse foi o
escolhido em sua alma para. venéer o mahometano e cingir a
corôa do mµndo. A morte, ao cabo de poucos dias, cortoJ.l
essa esperança. Então o visionar.io prometteu aos paes al).gus-
tiados outro varão: .a esse tocaria finalmente o imperio. Mal
sabia elle que ia nascer Dom João V, o monarcha de Odivel-
las, e do valido frei Gaspar da Encarnação!
Felizes, ainda assim, as almas, em cujo seio o mysticismo
faz desabrochar a flôr dos immarccssiveis ideaes 1

102 . OS JESUlTAS NO GRÃO-PARÁ

- '
de se reter o superior nâ Europa era já meio caminho andado
para a pacificação.· Isso não obstante, devia-se contar com a
resistencia, e, na impossibilidade · de appellar para os meios
coercivos, o delegado da côrte ia disposto a ·recorrer aos as-
tuciosos, dando por bem feito tudo quanto os ~uaceiros haviam · -
praticado. ·
Antes de chegar á bar~a de São Luiz perdeÚ-se ·uma das
naus, desastre que não só diminuía a força, como o prestigio da
expedição. O accidente deu animo aos culpados, mais pujantes
desde ·que no pequeno apparato de tropas reconheciam a fraque-
za do governo. Assim pois, no acto da posse, exigiu o povo que
Ruy Vaz declarasse por escripto não ser portador de ordem
contraria á expulsão dos jesuítas; ou que, bem que o fosse, a
não cumpriria. O governador acceitou a humilhante intimação.
Reservava-se para mais tarde dar execução ás ordens, que a
fallencia de recursos lhe impe.dia, po~ emquanto, de tornar effe-
ctivas. Desta maneira passaram dois mezes, até que successos
occorridos no Pará lhe facilitaram para isso ensejo.
Nesta capitania, o exito da revolta fôra menos completo.
Scientes, pelo exemplo de São Luiz, do que deviam esperar,
os jesuitas retiraram-se a tempo da cidade, refugiando-se entre
os índios. Deu isto á facção opposta motivo de allegar. que
haviam . desamparado o collegio, indo introduzir nas aldeias a
desordem. N~o lhes valeu . porém fugirem: um após outro fo-
ram colhidos, e levados aó Pará, ortde ficaram em custodia.
Pre~Ós os jesuítas, que se encontravam nas vizinhanças da
cidade, mandou a camara intimar os ultimos dois, ainda livres
no Amazonas, que baixassem a reunir-se aos companh.eiros.
O padre João F elippe_Betendorff, belga, que na sua chronica
man~1scripta deixou copiosa relação d'estes motins, era um
delles. Iniciava então a s~a carreira de missionario. Em Be-
lem Antonio Vieira, apontando no mappa o primitivo traçado,
todo conjectura!, do rio das Amazonas, mostrara-lhe os terri-
torios onde o domínio da Companhia havia de firmar-se como
um impedo, governando as almas singelas e doceis dos índios.
Er~ esta missão a primeira com assento fixo fóra do po-
voado. Em pequena canôa mal segura o altar portatil, alguns
poucos mantimentos, os presentes sem valor: anzoes, agulhas,
facas, missangas, com que se grangeava a complacencia dos

/
A ANARCHIA 103

selvagens-; eis no que consistia todo o supprimento da em-


presa. O districto da missão era vasto: começava em Gurupá,
indo até á aldeia do Ouro, nos limites de Castella, descoberta
na famosa viagem de Pedro Teixeira.
Saía Betendorff do rio Tapajós, quando soube da revolta,
e a pouco espaço encontrou os mensageiros da camara. Ou-
vida a intimação recusou obedecer. -Respondeu por escripto
invocando o castigo do céo sobre os ímpios, que se oppunham
á salvação das almas e á .gloria da igreja christã. Como o nu-
mero de neophytos, de que se acompanhava, fazia agourar re-
sistencia efficaz, os enviados retiraram-se . co~ ameaças. O"
padre recolheu-se _a os matos, ob edecendo a um aviso que o
superior do Pará conseguira passar-lhe; mas ao cabo de pouco
tempo~ falta de viveres forçou-o a buscar o povoado. Gurupá
era o mais proximo. Lá se alojou perto do forte, sob a pro-
tecção do commândante, filiado á Companhia, como outros se:
culares, com o titulo de irmão.
Pouco depois, outros religiosos lograram evadir-se da pri-
são e foram reunir-se a Betendorff. Th1ha-lhes preparado a
fuga outro irmão da companhia, l\lfanoel DaVid ·souto Maior,
que os acompanhava com sequito de escravos e gente ar-
-mada, disposto, sendo preciso, a violencias. ·
Prestigiava este núcleo de resistencia, organizado em Gu-
rupá, o ouvidor geral cio Estado que, desgostoso com a anar-
chia reinante se retirara de São Luiz. A vinda de novos emis-
sarios dos .revoltosos, desta vez com mais força, deu em re-
sultado um conflicto. O partido dos.jesuitas levou a melhor: dois
soldados da escolta ficaram prisioneiros e, encerrado~ na for-
taleza, foram por sentença do ouvidor ·condemnados a açoites.
bs padres jubilavam; o magistrado vingava desacatos que
· padecera no Maranhão; mas os da cidade, irritados, não tar-
daram- a mandar nova expedição, com respeitavel numero de
tropas e, á frente della, cabo de reconhecida: fa~a nas guer-
ras sertanejas. Esse conseguiu apoperar-se dos padres, colhi-
dos de surpresa, mas não ousou atacar o forte, e libertar os
amigos lá reclusos. Faltando ainda um jesuíta, ausente pelo
Amazonas acima, mandou em sua perseguição algumas canôas :
o restante da força voltou em triumpho. com os prisioneiros
ao Pará.
104 OS JESUITAS NO GRÃ.O-PARÁ

II

Estava disposta a viagem dos religiosos para o reino,


quando o novo capitão-mór Francisco de Seixas Pinto chegou,
para tomar posse do cargo. A exemplo de Ruy Vaz de Se-
queira, assegurava aos sediciosos respeito pelos factós consum-
mado~. Comtudo reuniu junta na casa da camara. Orou ao
povo, e lhe fez ver que a violencia contra pessoas ecclesiasti.
éas era passivei de penas espirituaes; mas o temor da excom-
munhão não acalmou os animos: em grita redarguiu a turba
que os padres se embarcassem.
Entretanto dividiam-se . na cidade as opiniões. A gente
mais qualificada era já na , maioria de parecer que a exp~lsão
se sustivesse. Os missionarios tinhaIIJ tam.bem seus adeptos,
alguns capazes de defendei-os pela força. Havia desordens em
que tomavam pàtte as mulheres, sempre exaltadas nas ques-
tões religiosas. De arma de fogo em punho, safa á rua a es-
posa de Manóel David Souto Maio~, tão enthusiasta como seu .
marido na defesa dos regulares, proclamando em favor delles.
Não obstante as declarações pacificas do capitão-mór, a gente
sensata temia-se das consequencias de tão declarada opposição
á vontade régia. Perdido o respeito ás leis, o populacho sem
freio proinettia novos excessos. Tin~am-se reti_rado o.s jesuítas
das aldeias, cuja administra.ção passara á camara: era isso
bâstante. Elles qlle se occupassem agora do espiritual sómente,
e nenhuma razão haveria de os expellir do corpo da sócie·
dade, como partes nocivas. O capitão-mór, · nos seus dis,tur-
sos favoneava estas idéas, ésperando a occasião propicia de
manifestar-se.
Afinal satisfizeram seu intento os exaltados. Os religiosos
saíram em duas embarcações, cuja partida os adversarios, em
magotes na p1:aia, ruidosamente festejavam . Viam-se emfim
livres da oppressão de tantos annos·; nenhuma barreira mais
se interpunha entre elles e a riqueza, que eram as tribus co-
piosas do sertão.
Mas ainda não entrado no oceano, rio abaixo, um ·dos
barcos, ao primeiro embate das ondas, começou a fazer agua.
A ANARCHIA 105

Davam todos ás bombas, tripulantes e passageiros, augmen-


tando o perigo a cada instànte. Arribaram. O povo da cidade
viu com pasmo surgir a nau, trazendo-lhe novamente os de-
portados. Não faltou quem reconhecesse em tal, claramente
expressa, a vontade de Deüs.
No Maranhão mudavam tambem as idéas: em uns porque,
caíndo em si, lhes vinha o temor do castigo; outros, por opi-
nião, que só por fraqueza calavam, iam-se rendendo aos dese-
jos do gove.rnador. Achando a occasião asada, este afinal de-
clarou-se. Convocou junta geral e propoz se restituissem á co-
lonia os expulsos. Privados do governo dos índios, cessavam
as desintelligencias com o povo.. ºNo dominio das c!'oisas ºespi-
rituaes, prestavam os missionarios valiosos serviços: no sertão
doutrinavam os selvagens, no povoado ensinavam a infancia.
Não foi difficil cederem a razões taes os próceres do Estado,
já antecipadamente convencidos pela reflexão, e temerosos dos
effeitos ·da anarchia. Para dissipar as ultimas hesitações, Ruy
Vaz offereceu perdão geral, em nome d'El-Rei, para todos os
actos da sedição.
Dom Pedro de Mello, que se achava ainda em São Luiz·;
porventura· esperando o termo da contenda, em que fôra parte
importante, debalde quiz impugnar a resolução. Levantaram-
- se contra elle os mesmos que antes o applaudiam, e só a pro-
tecção do successor conseguiu livrai-o de algum desacato.
Állegam os jesuitas que o governador se achava de accordo
com os sediciosos, e só deu cumprimento ás ordens régias
quando presumia estarem os miss_ionarios bem longe. Tal as-
serção não parece fundada. Certo é que immediatamente man-
dou· elle instrucções. ao capitão-mór do Pará, para que impe-
di~se o embarque. Estavam· então de volta os sete religiosos
do navio arribado, .os quaes se repartiram pelas duas capita-
nias, aguardando a chegada de mais companheiros. Apazigua-
dos assim os ~mimos, congratulavam-se os moradores por te-.
rem posto uma barreira á odiosa intervenção dos padres, nas
suas relações com os selvagens. A amnistia, solemnemente
promettida, socegara os receios. E o cont~ntamento foi geral
quando o governador deu ordem para haver tropas de resgate,
manifestando assim a sinceridade do seu proceder com os ha-
bitantes.
i4
106 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Entre as duas capitanias levantava-se comtudo um .v_ento


de discordia. A usual organização das tropas e a distribuição
das prtsas havia dado causa a certa rivalidade "já antiga.· Não
queriam ·os cidadãos do Pará ir na obediencia de cabos do Ma-
ranhão; tão pouco podiam ver com bons olhos passar á outra
capital a maior parte dos indios conquistados. Protestavam
pois contra os actos ·ao governador, achando-se esbulhado's da
honra e dos proveitos das expedições. O capitão-mór, preju-
dicado na sua parte, e numa prerogativa, qu~ lhe_favorecia os
negocios, animava estas queixas. Manhosamente, com praticas
adequadas ao seu fim, suscitou a idéa de se fazer a capitania
autonoma~ como já o fôra de 1653 a 1655. Insufflada por elle,
a camara, numa supplica, em que lançava sobre o Maranhão
toda a responsâbilidade do ultimo levante, mandou á côrte os
seus aggravos e desejos. .
Resultou isso em prejuizo do capitão-mór que, fundado no
uso antigo, se apropriara da administração das aldeias. Em
custodia e foragidos os missionarios, a camara tinha-a cha-
mado a si; mas elle, com o direito do mais forte, substituira-se
á vereação. Poucp tempo todavia se logrou da vantagem, por-
que Ruy Vaz de Sequeira, informado das suas machinações, e
com o pretexto de cohibir excessos condemnaveis, suspendeu-o
do cargo, e outorgou a cubiçada prebenda dos índios a Ma-
noel Guedes Aranha, que era um dos habitantes mais respei-
taveis e respeitados da colonia.

111

Entretanto o golpe de estado, pelo qual Affonso VI assu-


- mira o governo, vinha segurar os adversarios dos jesuítas na
. sua victoria. As disposições enviadas da côrte eram em favor
della. Confirmavam o perdão promettido pelo governador; ~n­
tregavam ao poder civil a direcção das aldeias; tiravam aos
religiosos o privilegio relativo. ás entradas; vedavam ao padre
Antonio Vieira,-« por não. convir ao serviço d'El-Rei»-, re-
gressar ao Maranhão.
Não logrou isso, ainda assim, satisfazer as aspirações dos in- ·
A ANARCHIA

teressados. Em fevereiro de 1664 ·voltou de Lisboa o procura-


dor Jorge de Sampaio, trazendo comsigo a nova lei t. Conhe-
cida ella, o descontentamento foi geral: do governador por lhe
tirarem a eleiç~o dos cabos, e o arbítrio das entradas ; dos fra-
des, qúe pensavam recolher; ao menos em parte, a herança
dos jesuítas; da camara e ,dos moradores, por comprehende-
rem que a presença de parochos nas aldeias, e o voto destes
na repartição dos índios, annulava a maior vantagem que gran-
geavam da retir.ada dos missionarios. Recorreu-se ao alvitre
· costumado da junta do povo e nobreza, com que se justificava
a desobediencia ás leis, e ficou decidido pospôr ·a execução
das novas providenci~ até que outras resoluções as confir-
massem.
No Pará foi a lei, pelo contrario, recebidâ com applauso.
Ao revés do que se passára em São Luiz, a camara accei-
tou-a sem reservas, e a junta geral sanccionou o voto do se-
nado. Para Ruy Vaz de Sequeira era esta obediencia um acto ·
de opposição pessoal. Partiu de São Luiz afim de subjugai-a,
intimidar a reacção, e impôr aos discordantes a sua vontade. -
A presença dó governador fez sopitar as resistencias. Teve a
camara de desdizer_.se, e a execução ·da lei foi protraída até
que apro!:lvesse a El-Rei ordenai-a de novo, ou substituil-a.
Emquanto a decisão da côrte se fa~ia esperar, accentuava-
se entre as d~as capitanias a rivalidade, de qJ.Je os ' habitantes
do Maranhão iam ter mais tarde a prova, na occasião da . re-
volta. Por ·espírito de antagonismo, a facção autonomista que-
ria em pratica as disposições que· á camara suserana repugna-.
vam; e afinal pronunciava-se impaciente, levantando de impro-
viso a . questão.

1 Provisão de 12 de setembro de 1663. As disposições principaes são


. as seguintes: Nem os religiosos da Companhia de Jesus, nem outros quaes-
quer, tenham jurisdicção sobre os índios. Nenhuma das·_ordens monasticas·
poderá ter a seu cargo aldeias de índios fqrros, que serão governadas pelos
principaes. A distribuição dos serviçaes far·secá por meio de um repartidor
eleito c:ada anno pela camara. O parqcho de cada aldeia indicará os i~dios
que hão de servir. As entradas ao sertão tenham logar quando requeridas pe-
las camaras, e estas nomearão os cabos. Repetem-se além disso os preceitos
das leis antecedentes, de não poderem os governadores, capitães-móres e
mais autoridades fazer resgates parà utilidade propria.
A ANARCHIA I09

não haverá repartição alguma pelo juiz, senão por quem eu


, . ordenar; aos governadores geraes do Estado fica sempre to-
cando a execução de todas as ordens, como tambem lhes toca
o proceder contra os índios, e geralmente valer-se de todos
elles, quando lhe parecer importante ao serviço de Sua Ma·
jestade. » E proclamando a superioridade de sua jurisdicÇão,
em todos os casos, concluía com esta ameaça, dirigindo-se ao
senado: « Vossas Mercês assim o ~umpram e guardem; por-
que de contrario se seguirá .grande prejuízo a todos» - t.
Desta maneira o governador, substituindo sua unica vontade á
lei, cujo guarda era, annullava a independencia das camaras, e
conservava em si o poder de dispôr dos indios, que era a
mais ambicionada de quantas vantagens do seu posto tiraria.
. O que podia ser _o governo de tal régulo deprehende-se
déstes primeiros actos; mas o exemplo do desprezo pela lei,
vindo de cima, fructificava, gerando a anarchia. As magistra-
turas inferiores insubordinavam-se. Surgiram discussões em
que as camaras-principalmente a do Pará, por mais distante
do braço arbitrario do governador-arrogavam a si direitos
exorbitantes. Emquanto, por uma parte, Antonio de Albuquer- ·
que usava sem rebuço da força, para coagir á servil obedien-
cia os colonos irrequietos, ·pretendiam estes que elle fosse
obrigado a comparecer na camara, quando intimado a respon-
der por seus actos. Durante este tempo iam-se ·fazendo os
resgates por ordem sua; mas, dando-lhe o titulo de descimen·
tos, nomeava elle os cabos, coarctando assim o privilegio do
senado, a quem a eleição dos mesmos pertencia.
A este governador succedeu, em 1671, Pe.d ro·Cesar de Me-
nezes, co;itinuando da parte dos moradores as queixas, e da
sua os excessos. Finalmente em 1673, dez annos depois ue
enviada, entro1! em pleno vigor no Maranhão ~ lei suspensa;
No Pará deu isso logar a novos conflictos indecorosos. Por in-
dicação do capitão-general, que ali se achava, o procurador da
camara embargou a execução da lei. . Obedecendo a suggestões .
de. interesse ou receio, os vereadores, repudiando agora o que
antes_ haviam suffragadó, acceitam o adiamento, até que ve-

1 BERREDO, .Annaes § 115 5.


110 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

nham as declarações supplementares, esperadas desde 1663;


em· breve porém, illudidos em suas esperanças, ou desvanecido
o temor, outra vez qiudam de opinião, e chamando junta, em
grande tumulto con~lamam se cumpra a provisão na integra,
consoante no districto vizinho se fazia. O effeito da resisten-
cia foi -nullo: Pedro Cesar, desprezando ~ resoluções da junta,
manteve a deliberação precedente. Dois vereadores, mais cons- -.. .
picuos na reacção, foram ?eportados ; e, o que parecerá mais
singular, de Lisboa veio forte reprimenda á camara, apontan-
do-lhe que nada devia fazer, mesmo em cumprimento da lei,
sem autorisação do governador.
Em 1678, novas representações, em que ·senado e capitão-
general conjuntamente requeriam. A lei de 1663, pela qual os
colonos paraenses tanto haviam pugnad~, já não satisfazia. O
povo pedia resgates, e que estes se fizessem por conta da co-
rôa. Vendidos os índios a trinta mil réis, havia um lucro de
quatrocçntos por cen'.to para a administração da fazenda real
na colonia. .
Essa,· pelas suas precarias condições, bastante carecia Cio
auxilio. No anilo anterior, para crear receita com que acudir
ás imprescindiveis necessidades, estabelecera-se o monopolio
do ferro, aço, velorio e facas: artigos de grande consumo que; . ,
preferidos pelos barbaras, serviam na permuta dos escravos.
Ajustara-se isto no Pará, em junta de nobreza, povo e clero ;
mas os do Maranhão, sempre oppostos ao que se decidia na
outra capital, e desta vez mais attehtos aos proprios interes-
ses, haviam protestado. Na presente occasião o Pará requeria
tambem a terminação do monopolio. Passando á corôa as
vantagens do trafico da escravatura, era justo que a população
fosse alliviada dos sacrificios que até ahi o oneravam. Os ma-
ranhenses associavam-se ao pedido. Prevalecia nelles o empe-
nho pela liberdade do commercio, não obstante o estimulo de
antecedentes cartas régias, que em termos de severidade lhes
apontavam o exemplo do Pará.
A ANARC_HIA III

l
Já então Antonio Vieira .tinha regressado de Roma, e,
mandado ouvir pelo regente, offerecia o seu voto, com as se-
guintes propostas: introducção de escravos de Angola por
conta da corôa; prohibição absoluta dos resgates; desenvolvi-
mento das missões, e entrega das aldeias aos religiosos da
· Companhia. Com estas providencias entendia satisfazer as ne-
cessidades dos colonos, salvaguardar o direito dos naturaes, e
promover o adiantamento da civilização dos selvagens, objecto
de maximo empenho do seu instituto. I
Parecerá talvez incrivel esta aberração de um espirito re-
1
1
cto, _distinguindo entre o direito do indio e o do africano, e
preparando a escravidão deste ulti~o. para assegurar áquelle
a liberdade. Mas porque razão o fazia? O enthusiasmo pela
obra, que tinha em mente, apagava.lhe na consciencia a noção
exacta da justiça. Ideára para os seus o imperio" dessas almas,
faceis de assimilar á fé. Cumpria para isso guardai-as da in- ·
fluencia corruptora do europeu; pôr um paradeiro ás mortes
provenientes das guerras,_ dos trabalhos, das molestias; que
f1

desde a apparição dos brancos no continente tinham dizimado
as populações. A raça nativa e~a fraca, e só pela segregação 11.·

poderia conservar-se, consoante a experiencia mostrou depois.


Por outra parte, o negro fôra escravo em todos os tempos. Já
o era entre os seus: tambem em Portugal. Africa formava um
continente enorme; produzia homens robustos; encerrava na-
ções' sem conto. Sacrifiquem-se pois estas, por quem nada se
tem feito, aos filhos que a Companhia de Jesus adoptou, a
quem deu o sangue de seus martyres, e o enthüsiasmo de
..
seus mais dedicados apostolos. Tal era, sem duvida, o pensa-
mento de Vieira. ·
Emquanto o grande jesuíta suggeria na côrte estes alvitres,
seus companheiros trabalhavam por elles indirectamente na
colonia. Quando se realizavam as entradas, tocava a cada uma
das ordens religiosas nomear por sua vez o missionario. Para
difficultar a empreza, os jesuítas re'c usavam sempre acompa-
nhar a expedição. Não tendo parte no governo dos indios,


112 OS JESÚITAS NO GRÃO-PARÁ

mostravam-se comtudo desvelados protectores dos que repu·


tava_m opprimidos, e não cessavam de reclamar para elles li-
berdade e justiça.
A chegada do primeiro bispo Dom Gregorio dos Anjos, em
1679, levou ao Maranhão novo elemento de discordia. Ambi-
cioso, turbulento, atrabiliario, viveu elle em constante lucta
com as autoridades, os jesuitas e os moradores. Occupava os
. indios em expedições de commercio, repartia-os entre os seus
familiares, prend,ia e excommungava os cidadãos. Quando os
decretos de 1680 restituíram aos missionarios o governo das
aldeias, protestou contra isso, sustentando que não podia
Sua Alteza privai-o de uma jurisdicção, que era sua delle·
Uma nov~ disposição vedava-lhe t'ambem, como aos ' deposita-
rios da autoridade real, os lucros do commercio. Foi isso ou-
tro golpe, q;e ainda m-ais lhe accendeu o animo em revolta.
Estas reformas deviam-se a Vieira, que pela ultima vez ·
tivera voto preponderant_e nas coisas da ·publica administração.
Tinham-se recebido em Lisboa cartas do governador, do bispo
e das camaras, pintando com tristes côres a situação da colo-
nia. A falta de braços activos servia, na forma costumacfa, de
fundamento ás queixas. Reuniu-se conselho dos fidalgos mais
babeis na governação do estado, e convocou-se para elle o
fundador das missões do Maranhão. O parecer deste ultimo
foi, como era de presumir, pela autoridade da pessoa, admit-
tido sem contrariedade. Votou-se a abolição dos captiveiros,
devendo repôr-se nas aldeias os indios que andassem dispérsos
ou em serviço. Todos elles, considerados livres, ficavam sujei-
tos á repartição, pelo modo antigo, e.m tres partes, ·das quaes
uma se conservava alternadamente nas aldeias, para cuidar
das lavouras; outra se dividia pelos moradores, e a terceira se
dava aos missionarios para ser empregada nos descimentos.
Commetteu-se á Companhia de Jesus, e. a ella, sómente, o en.
cargo de ir buscar e cÓnverter os gentios_. Devia além disso
entrar na posse das aldeias, que tivera antes, e das outras,
que na occasião estivessem sem parochos. Decidiu-se mais a
extincção do monopolio, pedida pelos habitantes, e a introdu-
cção de negros de Africa.
Estas providencias, assim como a prohibição do commer-
cio, que os governadores e mais autoridades continuavam
A ANARCHIA I 13

abusivamente a fazer, cpm damno dos particulares, encontram-


se em· diversas cartas regias do principio de 1680. Sem. du-
vida Antonio Vieira foi autor de todas ellas. Sua competencia
era o norte a que obedecia o conselho. Voltavam as aldeias
ao dot~inio dos regulares porque, ~todos por acclamação di-
ziam: ou anjos ou padres da companhia.,. i. Na parte da re-
partição, poi;ém, não quiz o jesuita que os seus tivessem voto:
continuaria:, como até ahi, a cargo de uma junta. o bispo, em
substituição do governador, um frade capucho, e um dos offi-
ciaes da_ camara, eram os membros della. ~
Assim tarde, mas definitivamente, o illustre .jesuíta cantava
victoria. Dezesete annos a Companhia se vira privada do do-
mínio dos índios. Vencera o obstaculo das distancias em re-
motos sertões, as incommodidades do clima, a opposição dos
moradóres, a reluctancia dos selvagens. Saíra expulsa, e tinha
voltado submissa, fingindo abandonar um empenho, por cuja
.realização secretamente anhelava. Seu p'rincipal apostolo a
custo escapara, no Pará-Maranhão ás violencias da plebe, no
reino aos azares de uma conspiração e á furia dos inquisido-
res; padecera os assaltos de continua doença, as tristezas do
carcere, as· maguas <lo desfavor e do exilio; por um instante
pareceu esquecer a sua obra, envolvido na lucta pertinaz em
· favor de outros opprimidos, - os judeus; mas não perdendo a
memoria nem a fé, no opportuno momento lograra restituir a
empresa ao seu estado antigo. Tinha agora á. perseverança o
seu premio? Não; os factos não justificaram a expectativa.
O triump~o dos missionarios era ephemero, e a força, de que
dispunham, impotente para conter a onda de amb_ições e inte-
resses, que submergia em sangue e oppressão a raça conquis-
tada.
Tão difficil era o problema, que a iniquidade da escravidão
dos índios se quiz remediar com a, rião menos odiosa, dos
africanos. Acceitando e propondo esse alvitre, os jesuítas con-
fessavam a impotencia de seus esforços, e davam causa a sus-
peitar-se que não seria absolutamente desinteressado o ideal

1 VIEIRA. Carta inedita de 2 de abril de r68o. Ms. da Bib. Nac. de


Lisboa.
i5
114 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

qqe apregoavam. Já reparámos que Vieira, na inconsciencia


de quem realiza um levantado designio, não . se apercebia .da
injustiça dos meios; mas, inquinado por ella, o seu plano tinha
fatalmente de abortar. E o resultado foi que duas raças, egual-
mente infelizes, se viram condemnadas a trabalhar, sob o lá-
tego da terceira, cubiçosa e cruel.

VI

Em maio de 1680 chegaram ao Maranhão as cartas, pelas


quaes os moradores tiveram particularmente noticia da lei
nova. Os papeis officiaes foram enviados ao Pará, onde já
então residia definitivamente o governo. A transferencia deste,
para a que até ahi fôra capitania subalterna, explica-se pelos
maiores interesses da corôa em territorio tão vasto, abundante'
de riquezas, e vizinhando com duas nações extranhas. Mas lá
era tambem o emporio dos in4ios, e dos produc:tos naturaes
recolhidos sem trabalho ; e era o bastante para attraír a presença
de autoridades, que na pratica do commercio, em~ora defeso,
tinham os maiores rendimentos do officio.
Emquanto não chegava a· São Luiz communicação do go-
vernador, e as disposições da lei não eram conhecidas por
miudo, crescia o' alvoroço dos colonos. Alarmados com a nova '
de que perderiam os índios, faziam juntas, discutindo sobre o
procedimento futuro. Muitos falavam em resistir, allegando,
com os exemplos anteriores, que não se atreveria El-Rei a cas-
tigar um povo inteiro. E quando tal fizesse, accrescentavam
alguns, em represalia se passariam ao flamengo. t
· O bispo, cioso dos jesuítas, era dos mais queixosos, e do
pulpito falou contra a novidade. Em seguida, depois de con-
ferir com os camaristas, dirigiu-se ao Pará, para fazer valer
suas reclamações ·ante o governador. Mas, chegando, mudou

1 Carta do padre Francisco Pedrosa: Pará 28 de março de 1681, Ms.


da Bib. de Evora.
A ANARCHIA 115


de proposito. A lei já ali fôra publicada, e o prelado, com me-
_ lhor conselho, declarou submetter-se em tudo que não encon-
trasse a sua propria jurisdicção.
Tamaram-se portanto as providencias; que a mudança de
situação exigia. Saíu bando a ordenar que, no prazo de um
mez, trouxessem os moradores os seus índios á casa do go-
vernador/para de lá serem entregues aos prlnclpaes, nas di-
·versas aldeias. Fizeram depois -os missionarias o arrolamento,
e procedeu.se á repartição, dividindo a.S tres turmas, na fórma
da lei. Ahi se manifestou sem freio o descontentamento geral:
do povo com os repartidores, dos camaristas com o bispo, de
todos com os jesuítas.
Aggravava-se tambem a indisposição d'estes ultimos com
o Ordinario, pela controversia sobre o direito, chamado de vi-
sita, disputa que havia de -perdurar e contribuir mais tarde
grafidemente para a ruina da sociedade. A questão não tem
interesse para o nosso estudo. Pretendia o bispo ser preroga-
tiva sua o provimento das parochias e igrejas de indios. Con-
testavam os jesuítas, allegando que, por se~em essas igrejas
do. padroado real, em todo o tempo se commettera a direcção
dellas aos superiores da companhia. Esta fôra a praxe cons-
tantemente seguida no Maranhão e no Brazil, e como tal fazia
lei. Antonio Vieira,- em pÓucas palavras, nos instrue da con-
tenda, com recommendações que dirige aos missionados: -
Vossas Reverendíssimas não devem resistir a que o bispo vi-
site as igrejas e os índios, .freguezes della; mas não os paro-
chos, quando Sua Senhoria nos não queira fazer a cortesia,
que sempre nos fizeram todos os bispos do Brazil, não havendo
algum que até hoje visitasse, nem intentasse visitar, aldeia
alguma nossa, havendo por bem descarregadas suas conscien-
cias pelas visitas, que nelles fazem os nossos superiores»- t.
Eram os· jesuítas vezeiros nestas disputas, e em toda a "parte ·
se arrogavam independencia da a~toridade diocesana. O facto,
mais tarde allegado por Cle mente XIV no breve da suppressão,
mqstra de que forma elles iam accumulando contra si os des-
peitos e coleras, que lhes haviam de ser fataes.

1 Carta ined. cit.


116 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Para representar contra as novas leis, que tão offensivas


se mostravam dos interesses, e do que já eta considerado di-
reito dos colonos, elegeu a camara de Belem seu procurador;
mas era tal a penuria que, por falta de recursos, não poude o
emissario embarcàr-se logo para o reino. A camara requereu
então ao bispo, encarregado da repartição, lhe concedesse ses-·
senta indios, que fo~sem ao cravo, sendo o producto applicado
á passagem e despesas do procurador. Se o prelado accedeu,
oppuzeram-se os jesuitas; e a consequencia foi mandar o irras-
civel pastor metter em ferros os principaes das aldeias que,
cingindo-se ás ordens dos missionarios, desprezavam as delle,
não entregando os indios da requisição.
O anno de 1682 trouxe ao Estado novo governador, Fran-
cisco de Sá de Menezes, e nova instituição que, com a appa-
rencia de remedio, ia produzir na colonia per.t urbações muito
mais graves do que nenhuma das antecedentes. Nas juntas de
1680, onde a influencia pessoal de Vieira arrastava as opiniões,
fôra adoptado, como se viu, o alvitre da introducção de afri-
canos. Satisfaziam-se com isso as queixas do povo, e ficavam
os indige~as no goso da liberdade. Infelizmente a pratica não
deu o resultado presupposto: nem os colonos se acharam con-
tentes, nem o negocio trouxe lucros á fazenda real.
Chegavam as peças da lndia, (euphemismo com que se de-
signava a odiosa mercancia), e se distribuiam pelos moradores,
que ficavam obrigados ao pagamento em tres annos. Conside-
rou-se porém a espera sacrificio excessivo para o erario; e a
incerteza da cobrança tornava·o ainda mais sensiyel. Dispensar
a corôa seus interesses, em beneficio dos vassallos, seria a in-
versão do systema. A real fazenda não devia supportar o des-
embolso, nem o risco, mórmente tratando-se de longinquas co-
lonias, uteis só pela renda que davam, como parte de opu-
lento' morgadio. Cumpria encontrar quem tomasse a si o en-
cargo, com indemnisação que alliviasse as perdas provaveis; e
o melhor recurso pareceu ser a creação de um estanco ou mo-
nopolio, pondo-se em uma só mão todo o negocio da terra. Esta-
va-se então em 1682. Deu-se o contrato pdt vinte annos a um
syndicato; com a obrigação de metter 10:000 negros na colo-
nia, ·no espaço de vinte annos. Cabia-lhe por outro lado forne-
cer todos os generos de consummo, aos preços marcados: .

.
A ANARCHIA 117

. 14$000 réis pelo quintal de ferro, 100$000 reis pot cada ne-
, gro, um cavado de gorgorão 1$600 réis; e assim por diante,
t.specificados todos os artigos desordenadamente na tabella; a
mercadoria humana, que eram os filhos de Africa, de envolta
com os generos sêcos e molhados. Prohibia-se, pelos mesmos
vinte annos, todo o commercio directo dos habitantes com os
outros vassallos do reino e conquistas; todas as transacções
seriam por intermedio da companhia. Taxava:se preço aos
productos do Estado. Impunha-se pená de confiscÕ a qualquer
embarcação que violasse o bloqueio. Taes eram as restricções
que vinham empecer a já de si lenta evolução da vida co-
lonial. ·
A promessa da escravatura não logrou vencer o desconten-
tamento, lpgo manifestado pelos maranhenses, inclinados á li-
berdade commercial, e cuja indignação mais excitavam as -con-
cessões seguintes: uma de poderem os contratadores fazer en-
tradas no sertão, a seu arbitrio, sem valer contra elle opposi-
ção de nenhuma autoridade; outra que punha á disposição dos
mesmos cem casaes de índios, em cada uma das capitaes, com
que fabricassem farinhas e mantimentos para os negros, quan-
do chegassem.
Entrou no Estado o syndicato com o novo governador
Francisco de Sá de Menezes, que ás primeiras manifestações do
publico desagrado respondeu com firmeza, perante a qual os
mais arrogantes se calaram. Estava disposto, dizia elle, a
~mbarcar para o reino os descontentes, no mesmo navio em
que viera, encarregando-os de levarem p·e ssoalmente suas
queixas ao rei. Temor, persuasão, e suborno, conforme as
pessoas, venceram as resistencias. Os mais influentes abrandou
o representante da companhia com presentes e occultas van-
tagens; os outros ce~eram ao habito de imitação e obedieqcia
passiva. Ficou a minoria dos que, vendo-se poucos, não ou-
savam affrontar as contingencias da reacção. Estabelecido ali
o estanco, Sá de Menezes, passou•se ao Pará, séde do go-
verno, onde eguaes reclamações terminaram por meios simi-
lhantes.
Breve se experimentaram os effeitos da permc1osa insti-
tuição. Os africanos proniettidos não chegavam; as fazendas
eram de má qualidade; os generos do paiz mal pagos pelos
118 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

agentes do monopolio; e," complicando tantos males, os jesui-


tas, em obstinação cada vez maior, recusavam dar indios das
aldeias para o serviço dos particulares. Afinal os murmurios,
em principio abafados, romperam com força. Como mais au-
dazes, e instigados pelo bispo, clerigos e frades incitavam e
dirigiam a opinião; começaram a correr pasquins contra o es~
tanco e os missionados. No púlpito os prégadores vocifera-
vam: eram os jornaes da época preparando os espiritos ·para
a revolução.
Em São Luiz, o povo representou á camara contra os
missionarios, por negarem os indios. Chamados a responder,
declararam não lhes incumbir a repartição, que estava por
lei encarregada ao ·bispo e seus coadjuvantes. Desta arte se
foram exaltando os animos e accrescentando os perigos da
situação. O descontentamento vinha principalmente do estanco,
mas a origem de todo o mal, na opinião commum, eram
os jesuítas, que para sonegarem os índios haviam suggerido a
idéa do monopolio, e para fazei-o acceitar introduziam o en-
godo dos negros. Contra elles pois se levantava a colera pô-
. pular.-

VII

Assim chegamos a fevereiro de 1684. A ausencia do go-


vernador, e a insufficiencia .da milicia facilitava os meneios
dos descontentes. Alguns, os mais insoffridos, appellam então
para a revolta, secretamente trabalham, conquistam adeptos.
Afinal rebenta a sedição. O capitão-mór e os missionarios são
presos; e Beckmann, o cabeça do movimento, falando ao povo
da janella da camara, promette-lhe o que? muitos escravos! A
affirmação é dos jesuitas, mas tudo que sabemos das aspira-
ções dos colonos . nol-a indica por exacta. Nenhum chamariz
tão poderoso lograria captai-os; e assim fica singularmente
reduzida a fama do tribuno, que uma penna erudita vestiu
com as roupagens de heróe romano.
Não teem, quanto a 11ós, importancia, que incite a miuda
informação, os successos deste levante. Já descripto por aba-
A ANARCHIA 119

lizado escriptor t, nem as pessoas, nem os actos dos que nelles


figuram mostram algo que solicite a attenção da historia. Foi
um motim de aldeia, em logar· onde a autoridade era frouxa,
e os meios de fazei-a respeitar s6 de longe podiam vir. A pe-
nuria em que todos viviam, levou-os, máu grado da indolencia
habitual, a rebellarem-se contra uma odiosa oppressão econo-
mica. Mas foi isso a occasião, não o motivo, da revolta. Con--
. sisti~ esse, em realidade, na posse dos indi~s, a ti-adicional
aspiração, causa de todos os excessos, objecto continuo dos
esforços dos colonos. Ao intuito contrapunham-se os jesuítas :
em revindictà a elles se fez o motim. Mas no fundo ·existiam
outras causas de caracter permanente, phenomenos de chimica
social que, revelando-se pela explosão, denunciam o movi-
mento, que vae no interior do cadinho; antagonismos de or-
dem economica, desmandos do regímen político, que em ou-
tra secção estudaremos.
Os missionarias foram pela segunda vez deportados. Partr
ratri em duas ~mbarcações pequenas, com destino a Pernam-
buco. A viagem foi como de costume, demorada e trabalhosa.
Uns delles fizeram parte do caminho por terra, c?mo Vieira ·
e os apostolas . dos tabajaras; e navegando em seguida desde
o Ceará foram dar ao Recife. Dos restantes, que chegaram
por mar áquelle primeiro porto, alguns ficaram; seis, conti-
nuando a viagem num barco pequeno, apresou-os um pirata
inglez ou- flamengo que, de_spojando-os do pouco que possuíam,
os desembarcou em uma ilha deshabitada, não longe do Mara-
nhão. D'ali conseguindo transpbrtar-se á cidade, acharam-se
novamente nas mãos dos ·seus inimigos. -
·No Pará não tivera echo o acontecimento. Por uina parte
a presença do governador e o maior numero da força armada,
por outra a hostilidade e êiume das duas capitanias entre si,
fizeram com que os do Maranhão se vissem sósinhos na aven-
tura. Com pouco, os se9iciosos perceberam as difficuldades da
posição, e os perigos de seu leviano proceder. Se até ahi a
côrte parecera, com a impunidade, sanccionar as violencias.
feitas aos padres, agora o caso era differente. Não se tinham

t JoÃo FRANCISCO LISBOA, Obras, Tom. 3.0


120 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

limitado a expulsar o jesuítas, senão que desacatavam a au-


toridade régia na pessoa do capitão-mór. Francisco de Sá de
Menezes não ousava combatei-os, mas conservava-se ausente
e hostil. Em Lisboa, os interessados ~o estanco juntavam
seus clamores aos da sociedade de Jesus, pedindo vingança.
Após as dilações caractetjsticas do governo das colonias,
foi Gomes Freire de Andrade, homem de alta linhagem e
grandes serviços na guerra, designado capitão-general, com
instrucções de suffocar a 'revolta, punir os cabeças, e restituir
os missionarios ás suas casas e igrejas. COm poucos soldados
desembarcou sem opposição em São Luiz, onde o povo aspi-
rava já a libertar-se da oppressão de um dos seus, mais peno-
sa por lhe faltar o prestigio da legalidade. A situação mate-
rial da capitania não melhorara nestes mezes de vida autono-
ma. Interrompidas as communicações com o reino, de onde
vinham recursos, os sertões do Pará, que a revolução devia
abrir, estavam por ella mais que nunca trancadas. Falhara o
soccorro annunciado de um pirata, fidalgo portuguez, que per-
to andava devastando os mares. Nunca o desgosto dos habi-
tantes fôra mais completo.
Viu-se portanto Gomes Freire acolhido como um liberta-
dor. Para castigar os revoltosos-abriu logo devassa. Não valeu
aos principaes o pueril artificio com que tinham pensado es-
conder seus nomes. O pacto de solidariedade, firmado por to-
dos que adheriram á revolta, achava-se lançado no meio do
papel. A roda, a fechai-o num circulo, corriam as assignatu-
ras; nenhuma preeminencia de logar descobria os chefes; mas
não faltavam para denunciai-os testemunh9s pessoaes, e actos
posteriores, consignados por escripto. Reckman, o principal
revolucionario, dictador da cofonia, vendido por um homem
que protegera como filho; Jorge de Sampaio, o encarniçado
inimigo dos jesuítas, que primeiramente fôra um dos peitados
para favorecer o estanco, e depois em odio aos missionarios
entrara na sedição; ambos esses ·padeceram pena ultima.
Em satisfação ás queixas populares aboliu-se o monopolio,
que nem aos proprios concessionarios deu r:esultado. As duas
capitanias estavam pobres, como d' antes; os moradores endi-
vidados; os assentistas sem meio de cobrarem os adiantamen-
tos que haviam feito.
A ANARCHiA l2I

Os padres que, apprehendidos pelo corsario, voltaram ao


Maranhão, tinha-os Beckman, clemente, mai:idado conduzir fóra
da cidade, de onde passaram ao Pará. Os outros seguiram de
'
Pernambuco para o reino, a pedir vingança de seus contrarias
e novas ·providencias para bem dos indios. Todos esses re-
gressavam com dobrada autoridade moral e ancia de dominio.
O bispo, seu principal adversaria, e um dos fautores moraes
da revolta, posto que ausente do .Maranhão no tempo della,
humilhara- se ante Gomes Freire. Eth~\ breve os missionarias
iam-se apossar do dominio absoluto dos indígenas, com o re-
gimento das missões, promulgado em r686.

Os colonos reconheciam afinal a inutilidade de seus esfor-
ços. Não abandonavam por isso a lucta; mas convenciam-se
de que a violetJ.cia não era o mais seguro caminho da victoria.

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Hl
'"
.
.•


124 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

era a derradeira e logica consequencia de uma situação econo-


mica e politica, manifestamente opposta ás leis da razão e da
justiça.
·Assentes os arraiaes da tropa que fôra ao descobrimento
·do Grão-Pará, · e levantadas as 'frageis muralhas da primitiva
fortaleza, tres objectos principaes attraíam .as attenções e cha- .
mavam a actividade dos colonos: subjugàr os indígenas, auxi-
liares indispensaveis para os serviços manuaes e de guerra; ex-
pellir os invasores extranhos, principalmente hollandezes, que
se haviam adiantado na descoberta; e, em seguida, lançarem-se
á cata dos thesouros pelo interior do sertão.
Esta ultima diligencia era a preoccupação suprema e o fim
essencial da conquista. Ouro era o que estes aventureiros, como
os que os haviam precedido, procuravam; ouro devia haver em
·abundancia, pelas margens desse rio, quasi oceano, immenso
e mysterioso: e esta imaginação havia de resistir, pelo tempo
adiante, a todos os desenganos, trazendo até fins do seculo
seguinte a nunca perdida crença na fabula do El-Dorado. Os
que, julgando invencíveis as difficuldades do caminho, ou exag-
geradas as maravilhas da lenda, não cogitavam de buscar esse ·
paiz encantado, esses embrenhavam-se nas florestas , e sonda-
vam o leito dos rios, onde deviam encontrar os metaes pre-
ciosos, as pedrarias, os aljofares, os crystaes de rocha. Esta
illusão é constante; verifica-se nos actos dos colonos; apparece .
em numerosos documentos da época.
Logo que os francezes, primeiros occupantes, saíram do
Maranhão, foi cuidado do general portuguez, Jeronymo de Al-
buquerque, mandar Bento Maciel, futuro donatario do Cabo
do Norte, á descoberta das minas, que .suppunham existir no
· rio Pindaré. Provavelmente com fim identico, o mesmo Bento
Maciel propoz-se, em 1625, para ir fazer á sua custa o desco-
brimento do rio das Amazonas, o que por cedula real de 8 de
agosto de 1626 lhe foi concedido. Simão Estado da Silveira,
publicando em 1624, - póde dizer-se que logo em seguida á
descoberta - , a sua Relação Summaria, diz a respeito do
Pará: - "Tem-se por cousa certa que ha minas de ouro e
prata e outros metaes nesta terra, e pedras de ~uito preço,
e serras de crystal >. -Ahi mesmo informa das imaginarias
minas de prata do Caeté, e das entradas dos hollandezes pelo
O ORGANl1SMO COLONIAL 125

Amazonas, «a que chamam Cu1-upap, ·e tiram ouro das mãos


dos gentios ».-Sabemos que em 1656 a expedição ao rio
Pacajá, onde morren o jesuita João de Souto Maior, se cha-
mou Vzºagem do ouro; tinham ido nella inineiros de profissão, ·
com todas as ferramentas precisas. Já antes, em 1637, na fa-
mosa jornáda de Quito, havia Pedro Teixeira descoberto o
Rio do Ou1·0, limite das possessões de Portugal com Castella.
É de. suppôr que o audacioso explorador levasse em mente
chegar ao Lago Dourado ou de Parzºmé que, segundo a geo·
graphia dos crentes; ficava «entre a cidade de Santa Fé e o
rio das Amazonas, em os dilatados plainos de São João, pas-
sando umas grandes serranias ». - t Nesse lagar, asseguram-
nos os documentos, - «são tão poderosos os gentios que lan-
çavam exercitos de quinhentos mil combatentes, com armas
offensivas e defensivas, todas de ouro e de prata, por não te-
rem outro metal ».-2 Em 1647 nova expedição parte do Pará
ao rio do Ouro, mas volta sem ter chegado ao destino. Em
1669 Gonçalp Paes e·Manoel Brandão percorrem as terras do
Tocantins, até á bôca do Amazonas, em busca de minas, e
·abandonam a empresa sem resultado. O padre Antonio Ra-
poso Tavares parte de Lisboa com egual fim em 1674. Leva
uma carta do .príncipe regente para certo aventureiro paulista,
que ·andava á caça de índios nas cabeceiras do Tocantins.
Contra este caudilho se estava preparando na colonia uma
expedição. Embarcou-se o padre, com sequito num~roso de
soldados e indios, mas baldadas lhe fôram as pesquisas, re-
gressando elle no anno seguinte, só com a noticia da morte do
sertanejo, a quem buscava.
As constantes desillusões não destróem comtudo a enrai-
zada convicção dos colonos. As tentativas mallogradas repe-
tem-se, favorecidas pelos governadores, e animadas por inspi-
rél:ções da çôrte. Da.-Opulencia da terra ainda em 1738 escrevia .
Paulo da Silva Nunes, procurador do Maranhão na côrte, no
demorado pleito contra os jesuitas: - « Ha perolas, aljofares,

«Representação que s~ fez a El-Rei Dorri João v, sobre a liberdade e


captiveiro dos índios do Pará e Maranhão». Ms. da Bib. Nac, de Lisboa, im-
presso na Çho1·ographia Histodca de Mello Moraes, Tom. rv.
· 2 Idem.
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

c~ystal de pedra finíssima, ambar, muitos mineraes de prata,


de ouro, e de outros metaes; tambem ha pedras preciosas e
cordiaes, além de outras muitas preciosidades, que se conside-
ram ainda incognitas - » t.
Tal era · a fascinante miragem, que attraía para distantes
expedições os primeiros descobridores. Voltavam elles com as
mãos vazias; mas a sua ·missãÔ historica fôra cumprida. A ctÍ-
biça abria á civilização os penetraes do Novo Continente.

II

·'
Á falta de ouro, prata e pedras preciosas, não eram para
desdenhar as riquezas vegetaes, que o solo feracissimo prodú-
zia sem Ci.Ultura. A baunilha, o cacau, a canella, · o cravo, as
raízes aromaticas abundavam no seio dâs matas. Recolher as
drogas do sertão era uma das occupações preferidas dos colo- .
nos. Em seguida á attracção do ouro, sem comtudo destnül·a,
veio esta outra tentar a avidez dos conquistadores, creando
novo incentivo á exploração do territorio.
Pouco 'e pouco, ia-se rasgando o véo mysterioso, que cfesde
a viage'm de Orellana tantas tentativas abortadas tinham dei-
xado pa!rar, sobre esta parte do novo Mundo: Tarde haviam
chegado os portuguezes, e já por outros precedidos no descobri-
mento; mas, impellidos por seu genio aventuroso, e sobretudo
pelo espírito mercantil, em pouco tempo levaram suas embar-
cações aos mais reconditos tributarias do rio-mar. A mesqui-
nha povoação, que tinham fundado, longe, mais do que cum-
pria, do oceano, não tinha importancia como cidade: era ape-
nas um cáes de desembarque e um ponto de partida; mas
tambem o centro de onde as ambições insaciaveis irradiavam,
procurando riquezas.
Aos dois motivos principaes, já apontados, da rapida ex-
pansão do~ colonos. pelo interior das terras, temos de accres-

1 ((Representação que se fez a El-Rei Dom João V », etc., cit.


O ORGANISMO COLONIAL 1_27

cenfar um terceiro, de todos o mais effectivo, se bem que, de


certo; men_os louvavel. Toda;s estas expedições, quer seu _o bje-
cto fosse puramente ·mercantil, como na colheita das drogas,
quer tivessem por fim -º descobrimento e posse de novos ter-
ritorio"s, exigiam, além
..- dos elementos
. materiaes de embarca-
ções, armamento e víveres·, numeroso pessoal de remeiros e
soldados. Da mesma fórrria, quando se tràtava de empresas
bellicas, fossem estas contra os europeus intrusos ou contra as
cabildas hostis. Era egualmente necessario cultivar a terra,
para haver a farinha, de que todos se alimentavam, e o algo-
dão, de <:J.Ue a mór parte se vestiam. Colhia-se tambem o ta-
baco, depois a canna de assucar, . e mais tarde começou o fa-
brico da aguardente, nos pequenos engenhos, chamados moli-
notes. Fazia-se além disso preciso acudir á edificação da cida-
de, á construcção de navios; e por ultimo havia o serviço do-
mestico dos moradores que, reputando desdouro todo o _traba-
lho manual, não podiam dispensar um sequito numeroso de
famulos e se.rviçaes· de varias sortes.
Para satisfazer esta ·imperiosa e constante necessidade de
braços activos, recorria-se á mina inexgotavel da gente indi-
gena. Os colonos seguiam o uso de seus maiores ; repetiam o
que se tinha feito na Africa, no Brazil. Apossando-se das ter-
ras, sujeitavam ao captiveiro os habitantes; e faziam-no sem
hesitaÇão nem escrupulos, como qúem exerce direito indiscu-
tível. O infante Dom Henrique, o tétrico scismador de Sagres,
inicianqo as descobertas, déra principio á nefanda pratica ; e
era a tradição medieval que, ainda agora, fazia applicar ás
tribus ·,da America a lei cruel da barbarie antiga.
Os serviços, prestados pi:'imeiro aos invasores pelos selva-
gens, em pagamento de mesquinhas dadivas, foram bem de-
pressa um· onus da escravidão. O que a principio o branco
solicitava com brandura, logo depois exigia com arrogancia.
Para vencer as resistencias, faltando o numero, tinha a su-
perioridade das armas, .e o soccorro dos índios alliados, que
preparavam o captiveiro de seus congéneres, inconscientes
daquelle em que viviam. Quando as velleidades de reacção
surgiam, era imgiediata e terrível a repressão. D'ahi provinham
sanguinolentas represalias, com·_que a ferocidade dos indige.,.
nas ainda mais acirrava a crueza dos conquistadores.
128 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

A severidade que os portuguezês punham nestes castigos


era proverbial. Quando, em 1638, parte das forÇas de Pedro
Teixeira ficaram á espera no paiz dos Encttbellados, em quan-
to o chefe da expedição chegava a Quito, ao cabo de pouco
tempo romperam as costumadas hostilidades com os índios do
logar. Acommetteram estes em grande numero o acampa·
mento, matando muitos do lado dos portuguezes e queiman;:
do-lhes as embarcações. Repellidos com perdas - « pagaram
com tresdobradas vidas dos seus as que tiraram aos ·nossos »,
-refere o padre Christovam de Acuiia, e continua: - « Cas-
tigo pequeno á vista dos rigores, que em casos taes ·costuma-
vam empregar os portuguezes - t ;
As atrocidades antes commettídas justificam bastantemente
a affirmação. Os primeiros tempos da conquista passam-se em
sanguinÓlentas correrias contra ç;os tupinambás, e os sertões
entre o Pará e Maranhão são desapíedadamente assolados. O
annalista Berredo, neste período, quasi só nos fala dessas em-
. presas, em que figuram como chefes Mathias de Albuquerque,
Bento Maciel Parente e Pedro Teixeira: Uma vez, e~ 1619,
os indíos, no auge do desespero, reunem~se em grande força e
põem cêrco á cidade. Era apertadíssima a situação, quando
Bento Maciel, vindo por terra com tropa armada á sua custa,
cáe so~re os sitiantes, e desde o logar chamado Ta.p uytapéra
até a<J Pará « extingue por aquella parte as ultimas relíquias
destes barbaros » 2• Simão Estado da Silveira, talvez testemu-
' .
nha presencial, calcula que passariam de quinhentas mil almas
os mortos e -captivos- 3. Mesmo dando enorme desconto ao
exaggero, pode-se imaginar quão grande seria a carnificina.
Estas matanças continuaram por muito tempo, ainda
quando já era incontestado o domínio dos conquisfadores.
Sem que _falemos das guerras feitas aos aruans, aos inheigua-
ras e outros, cujos estragos não foram provavelmente extra-
ordinarios, visto delles não fazerem os chronistas menção
especial, citaremos a expedição de 1664 contra os indígenas

1 Nuevo descubrimiento etc.


2 BERREDo; .Annaes bistoricos, S 477.
3 'l{elação sutmnaria das coisas do Maranhão. Lisboa , 1624.
130 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

III

O çuro, as drogas, a caça aos indios attraíarn a parte


válida e mais activa dos povoadores 'que, em cons~antes levas,
do reino e do vizinho estado do Bra-zil, iam chegando ao Ma-
ranhão. D'ahi passavam em breve tempo ao Pará, onde o
campo era mais vasto, e mais lucrativas se mostravam as
aventurosas empresas.
A seducção, a principio exercida sobre os . espiritos pelas
riquezas da nova conquista, foi extraordinaria. Simão Estacio
da Silveira, positivamente deslumbrado, 'dedica a sua obra t
-aos pobres do reino de Portug al-, dizendo-lhes que o Ma-
ranhão é a melhor ten·a do mundo, onde encontrarão _todo ?.
remedio de seus males. Com elle foram em 1618 cêrca de
tresentos colonos dos Açores. Aos recem-chegados se repar-
tiam terras e os escravos precisos para as cultivar. Mas tão
modestos proventos não · eram o que elles ambicionavam; e
assim, brevemente desilludidos, lançavam~se nas aventuras do
sertão.
Da metropole progredia de maneira tal a emigração para
os novos paizes da America, que as autoridades, receando ver
despovoar-se o reino, a todo o transe procuravam tolh~l-a.
Mas, não obstando as providencias adaptadas, o exodo da po·
pulação continuava. A tanto foi este que, nos primeiros an!los
do seculo xvm, já a provinda do Minho não tinha' gente bas-
tante para ós trabalhos agricolas 2. O gosto pela emigração
· tornou-se geral ; seduziu todas as classes; chegou aos ecclesias-
ticos, que abandonavam· seus beneficios e conventos, até que
foram reguladas por lei as condições em que podiam passar
ás capitanias do Brazil.
Antes, porém, da invasão dos que eram propriamente colo-
nos, o gros!IO da população paraense compunha-se da solda-
desca e degredados. Havia os soldados que primeiro tinham

t 'l(elaç_ão summaria das cousas do Maranbão, cit.


:i. L7i ~e 2 0 de m:;rço de 1713, cit. por J. F. LISBOA, Obras, tom. 3.
O ORGANISMO COLONIAL 131

ido á conquista, os que chegavam com os governadores, e ou-


tros-« rendidos pelos hollandezes na costa de Pernambuco,
os quaes rôtos e despidos lançavam pela costa abaixo, e se
vinham recolher ao Maranhão» f. Os degredàdos eram muitos,
mas não se comparem á ralé de criminosos, com q~e depois
se povoou a Australia. Pela barbara legislação vigente, deli-
ctos leves, futeis peccadilhos, simples trangressões de lei se
puniam com degredo. O juízo ecclesiastico avolumava o nu-
mero dos sentenciados. De tão pouca importancia eram as cul-
pas, que o regimento do governador André Vidal de Negrei-
ros 2 autoriza a: nÓmear para cargos de justiça o~ ·que não
tenham sido condemnados por furto, falsidade, ou outros c1·i-
mes de ruim exemplo. Não é ocioso insistir na intelligencia
disto, que póde expungir de má fama velhas genealogias, vin-
das do tempo da conquista.
No' principio se contavam tambem alguns extrangeiros,
sobreviventes das expedições anniquiladas .pelos portuguezes.
Foi um desses que, tendo conseguido voltar á Hollanda, sua
patria, foi em 1628 levantar _o forte de Tucujús, tomado no
anno seguinte por Pedro Teixeira. Dos prisioneiros feitos nessa
occasião, ainda em 1643 restavam alguns.•-« No Pará Grande
(escreve Maximiliano Schade, official da Companhia das Indias),
achei neerlandezes, inglezes e pessoas de differentes nações,
que ali se conservavam captivos » ª·
Antonio Vieira avaliava no Pará a população da cidade
em oitenta moradores. "· Este numero tem parecido diminuto
a alguns. Não se julgará assim entendendo por moradores a
gente grada, chefes de familia, que eram os povoadores do_
territorio. A peonagem, soldados e religiosos não entravam no
·computo.; e, incluindo os que viviarp. em suas terras, e os que
and~vam nas expedições pelo interior, não estaremo!? longe do
calculo de Manoel David Souto Maior que, em representação
dirigida ao Conselho Ultramarino, contava setecentos morado-
res portuguezes nas seis capitanias do Estado. Outro escripto,

1 ANTONIO VIEIRA, Resposta aos capitulas, cit.


2 Cit. por J. F. LISBOA, Obras, tom. 3.
3 Doe. hollandezes em e. MENDES, Mem. do Maranhão._
4 Resposta Q()S capitulas, cit. 25.
• I
132 OS JESUJTAS NO GRÃO-PARÁ

de 1685, i dá á cidade quinhentos moradores; mas evidente-


mente o termo aqui é empregado em sentido diverso daquelle
que, pouco mais de vinte annos antes, lhe prestava Vieira.
São Luiz contava nessa epocha mil e tantos vizinhos. Berredo,
escrevendo em 1722, attribue a Belem só quinhentos, o que
prova não ter a população augmentado, como fôra de esperar,
no intervallo. Mas de todos estes numeros se deve excluir a
escravatura, que não entrava no censo.
Mal se coaduna a conta com a despovoação constante do
reino, atrás apontada. Mas a emigração não se fazia só para
estas partes. Saíam colonos para a Africá, para a India, para
outro:; Jogares do Brazil : isto succedendo á continuação de
guerras, que sempre fôra a ~xi'stencia da nação. Tinha morrido
muita gente em Flandres e outros campos, pelejando pela
Espanha; assim tambem defendendo as conquistas, no Oriente
e na America. As luctas da independencia arrebataram gran-
de numero de homens válidos. Por ultimo, a inquisição e a
vida monastica rareavam ainda mais as alas dos trabalhado-
res. Os que chegavam ao Maranhão e Pará melhor grangea-
vam suas vidas no seílão, que permanecendo na ociosa mise-
ria da cidade; por isso não poucos a 'deixavam.

IV

Para todos a existencia era difficil, e raros logravam reali-


zar sua~ ambições de conforto e riqueza. Luxo não havia de
especie alguma, e os objectos mais comezinhos e de uso in-
dispensavel faltavam constantemente. Desta geral pobreza dão
testemunho os documentos coévos. Os primeiros povoadores
foram soldados que tinham ido á conquista do Maranhão, tão
miseravds que «raro chegou naquelles princípios a calçar meias
e sapatos » 'li. Os homens, ainda os de mais categoria,_vestiam-
se de panno de algodão, tinto de preto;' e os escravos, nas fa-

1 Noticim·io Maranbense, por João de Souza Ferreira. Ms. da Bib. de


Evora, cit.
2 · VIEIRA, Resp. aos cap., 25.
O ORGANISMO COLONIAL 133

zendas, e muitas vezes . tambem na cidade, andavam nús,


qualquer que fosse o · sexo. Representava a camara do Pará
em 1661 que, pelas festas do Natal,- «não vieram á cidade
as familias de alguns homens nobres, por causa de suas filhas
donzellas não terem que vestir para irem ouvir missal) i_. An·
tonio Vieira exprobrando á camara não haver na cidade açou-
gue, nem ribeira, ouvia em resposta ser impossivel o remedia,
«como impossivel era haver pagamento para dar pelo sus-
tento ordinario » • 2. Já os companheiros de Pedro Teixeira
lamentavam, na jornada de Quito, que os mais distinctos en-
tre os que tinham realizado a conquista do Grão-Pará se vis-
sem « anniquilados ou morrendo de fome, por não poderem
apparecer diante de quem os podera prem~ar » a; e identicas
lamentações continuam a ouvir-se, por mais de um seculo.
A alimentação trivial, de caça e · pescado, abundante nos
primeiros tempos, rarefez-s~ á proporção que o numero de
habitantes augmentava. O mesmo se vê hoje nos lagares que
o . seringueiro ousado explora: os animaes uteis, que povôam
bosques e aguas, desapparecem ante a sanha imprevidente do
homem. As terras, sem amanho, nem processos de intelligente
cultura, perdiam a primitiva fertilidade, e os moradores retira-
vam-se, passando para outras estandas suas casas e lavouras.
A extensão do territorio e a dispersão dos povoadores torna-
vam sobremaneira penosà a existencia, em razão do isola-
mento, distando as fazendas umas das outras muitas leguas.
O commercio interior era nenhum, de forma que, em todo o
Estado do Maranhão, não havia «açougue, nem ribeira, nem
horta, nem tendas onde se vendessem .as cousas . usuaes para
o comer ordinario » -'. A permuta de serviços, indispensavel
numa sociedade policiada, era cousa desconhecida; « e sendo
-que no Pará todos os caminho:> são por agua, não ha em to~a
a cidade um barco ou canôa de aluguel para nenhuma passa-
gem» s. Trasladado a um mundo novo, o europeu recuava a

BERREDO, .Annaes, § I028.


2 Idem, § w32. ,
3 Acu:NA, Nttevo descubrimiento.
4 VIEIRA , Resp. aos cap., 2 5.
5 Idem.
134 OS JESUITAS NO G RÃO-PARÁ

um estado de civilização anterior; vivia sobre si, produzindo o


que lhe era necessario, servindo-se com seus famulos e só com
elles, consumindo sósinho o fructo total de seus lavores. Gran-
de era pois o numero de servos em cada uma, e desta arte se
expliéa a necessidade nunca satisfeita ·de indios, e de africanos
mais tarde, q~ando, pela escassez daquelles, se foi buscar ao
continente negro o inexgotavel supprimento de braços. A tal
respeito dizia Vieira : «Para um homem ter o pão da terra (fa-
rinha de mandioca), ha de ter roça, e, para comer carne, ha de
ter caçador, e, para comer peixe, pescador, e, para vestir roupa
lavada, lavadeira, e, para ir á missa ou a qualquer parte, ca-
nôa e remeiros » t. Maior era ainda o pessoal das casas abas-
tadas, onde além desta indispensavel clientela se encontravam
as çostureiras, fiandeíras, e os tecelões, sapateiros, etc. C~lcu­
le-se, á vista disto, a triste sorte dos que não tinham servi-
çaes, e a inveja com que seriam olhados aquelles colonos, de
melhor fortuna, que os possuíam.
Não havendo troca de productos, ·neµi de serviços, não se
fazia sentir a necessidade de moeda. A pouca, de prata e
ouro, que vinha do reino em pagamentos, era fundida em ade-
reços e objectos do culto divino. Em 1684 foi a Companhia
do Maranhão obrigada a introduzir cada anno a quantia de
e
mil cruzados, en:i moeda de prata cobre; e, para evitar que
a primeira desapparecesse, não haveria em todo o Estado mais
do que doí-? ourives : um em São Luiz, o outro em Belem,
«que eram mui sufficientes para o concerto dos calices é alam-
padas » 2. Como, porém, foi curta a duração da companhia,
não houve tempo de se verificar a ·utilidade desta providencia. ·
O certo é que, em I 700, a unica moeda corrente eram rolos r
de panno e novellos de algodão, estes ultimos muitas vezes
falsificados, com pedaços de pau e trapos velhos mettidos no
amago. Com esta moeda que tinha, como os outros productos,
valor nominal taxado pela camara, se pagavam os impostos,
os escravos do sertão e de Angola, o salario dos índios fôr·
ros, e os poucos objectos offerecidos á venda. Na "mesma es-

l VIEIRA, Resp. aos cap., 2 5. •


2 e: R. de 2 de setembro de 1684.
~

O ORGANISMO COLONIAL 135

pecie as tropas ..recebiam o soldo, e os filhos da folha, -


appellido caracteristico dos empregados publicos, - os orde-
nados. Ainda assim, mais infelizes eram os moradores do Ma-
ranhão, de onde fugia para o Pará esta moeda, embora falsi-
ficada, pela attracção do negocio dos escravos, que era o unico
de vulto em tóda a provincí"a.
De vez !'!m quando, a longos intervallos, chegava do reino
algÚm navio, que ia buscar os prodüctos da terra, e trazer as
fazendas da Europa, constituindo o traço de união da colonia
com o mundo civilizado . . Este commercio- exteri~r era porém
tão diminutó que apenas dois navios por anno iam carregar
ao Maranhão. Ao ;pará menos . frequentes eram as viagens, e,
queixando-se a camara, orgão dos interesses populares, deste
desamparo,. respondia o Cons~lho Ultramarino não poder obri_-
gar os donos das embarcações a m~ndal-as onde não encon-
travam cargas, nem outras commodidades t. A prohibição de
irem ás colonias navios estrangeiros para negociarem, e a ob.ri-
gação de navegarem os nacionaes em frota, por temor dos .
corsarios, aggravavam mais a situação. Erafim, para dar o ul-
timo golpe neste mesquinho commercio com a metropole, e
diminuir o interesse que os particulares podiam tirar da nave-
gação, em 1667 a corôa chamou a· si, como vimos, o negocio
do ferro, aço,' velorios e facas, para com o producto acudir ás
despesas d.e administração local. Taes artigos, que serviatl_l de
objectos de permuta com os índios-, eram vendidos aos mora-
dores a preços taxados, e pagos com os productos da terra,
que se exportavam por conta da Fazenda Real. Egualmente em
drogas se remettiam para o reino os saldos das rendas do
·Estado, quando os havia. Os governadores, apesar das repe-
tidas prohibiçÕ.es, mercadejavam tambem, considerando os
.prÕventos desse commei·cio indispensaveis para se manterem
com o decoro devido 2. Da mesma forma os religiosos e niis-
sionarios, a quem e'r a concedido receberem do reino mercado-
rias, e embarcarem «as drogas que lhes fossem precisas para
do próducto dellas compôrem e ajudarem suas egrejas e resi-

t C. R. de 16 de novembro de 1697.
2 C. R. de 3 de 'dezembro de 1691.
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

dencias » i. O privilegio foi conservado ainda no tempo do


estanco. Desta sorte, ficando a mór parte dos generos em
mãos das· autoridades e corporações religiosas, e afastados
por seµiilhante concorrencia os negociantes da metropole, po-
demos calcula:r o que ficaria aos moradores. ·
Por isso, Mano~l David Souto Maior dizia consistir toda a
riqueza dos portuguezes «em terem mais ou menos escravos
indios »; Paulo da Silva Nunes representava a el-rei Dom João. V
que só no serviço delles tinham « o ouro e prata, o vestido, o
sustento e o unico . e total remedio para a sua subsistencia_> 2;
e assim confirmavam os dizeres· de Antonio Vieira que, refe-
rindo as miserias do Maranhão, accentuava que « captivar in-
dios e tirar de suas veias o oÚro vermelho foi sempre a mina
daquelle Estado» 3

Para obter e renovar este elemento indispensàvel á vida


economica da colonia, tres meios eram autorizados pelas leis:
os captiveiros, os resgates e os descimentos. Eram q1ptivos os
indígenas colhidos em justa guerra, isto é, defensiva ou para
castigo de maleficios praticaqos; resgatavam-se, a troco de
ferramentas, contas de vidros e <lixes ·varios, aquelles que, pri-
sioneiros e amarrados, esperavam a hora de servir de repasto
a seus inimigos; descidos se diziam finalmente os que, deixan-
do-se convencer pelos missionados, abandonavam o sertão e
se estabeleciam na vizinhança dos povoados, em agglomera-
ções com o nome de aldeias, onde os moradores iam buscai-os
para o serviço.
Os da ultima categoria, ·apesar da brandura recommenda-
da, não escapavam por isso á violencia, que era a forma na-
tural de taes empresas. A cubiça dos colonos era nesse ponto

t C. R. de 23 de março de 1688.
2 Repres. sobre a liberdade e captiveiro, etc.
3 Resp. aos cap., 25.
·O ORGANISMO COLONIAL 137

patrQcinada pelos missionarios, interessados em augmentarem


o numero e a p~pulação das aldeias, onde quasi exclusiva-
mente dominavam; e assim se creou uma distincçã~ capciosa,
na qual logo á primeira vista se descobre o dedo dos regula-
res. Os descimentos podiam ser de dois modos: o primeiro
· voluntariamente, indo os missionarios ao sertão captar os in-
dios e persuadil-os da conveniencia de viverem com gente ci-
vilizada; o segundo pela . coacção, obrigando-os «por força e
medo» .a acceitarevi esta conveniencia, que lhes repugnava.
Similhante proceder (diziam os theologos e lettrados) e se
não é rigoroso captiveiro em certo modo o parece, pelo que
offende a liberdade». Mas logo proseguiam : « Comtudo, se es-
tes indios são como os outros tapuyas bravos, que andam nús,
não reéonhecem rei nem governador, não vivem com modo e
forma de republica», justifica-se a violencia empregada contra
• elles, «ainda que livres e isentos da real juri~dição » 1 • Desta
maneira se harmonizava a ganancia dos colonos com os affe-
ctados escrupulos dos missionarios, e se fazia lei a pratica
abusiva de todos os tempos.
Os. indígenas, descidos por meio de simples persuasão, ou
melhor pelo engôdo de mesquinhas dadivas, era·m considera-
dos fôrros, e nessa qualidade tinham direito a salario; mas de
facto viviam tão escravizados como os demais. Distribuidos
pelos habitantes, a cujo serviço deviam ficar poucos mezes,
viam protrahir-se indefinidamente o dia·da liberdade. Esqueci-
dos, confundiam-se em o numero dos c~ptívos, e· não raro pas-
savam de paes a filhos no acervo da herança, eternam.ente es-
cravos com seus descendentes._' Os outros, que tinham a viveza
de por si reclamarem, ou protecção de missionario que os res-
tituísse ás aldeias, só uma differença conheciam: a de muda-
re~ frequentes vezes de senhor; não se achando por isso mais
.livres nem menos maltratados. ·
Nos primeiros tempos da conquista, o systema adoptado
era o das administrações particulares, ou e.ncommendas, como
se dizia em Castella. Em cada .aldeia exercia a autoridade
pesso~ abastada e de _boa estirpe, a cargo de quem ficava-

l Provisão de 9 de marçci de 1718.


i8
_j
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

cuidar dos descimentos, fazendo-se acompanhar delles de um


missionario. Os indios eram livres, e não· podiam ser com-
pellidos aÕ serviço pessoal dos administradores (encommende-
ros); mas a protecção, que destes recebiam, tinha de ser paga,
como os outros tributos, em fructos da terra ou em moeda,
segundo lhes fosse mais commÓdo. Entretanto podiam . ser
coagidos a trabalhar mediante salario, servindo porém ao amo
que elegessem, e pelo tempo que lhes ·aprouvesse. Ahi estava
a raiz de todos os abusos: não era difficil a faculdade tornar-
se violencia, nem mascarar uma escravidão permanente com a
simulação de contrato livre e transitorio. ·
A mesma lei t concedia o captiveiro dos indios que fossem
tomados em peleja; mas os apprehensores· tinham de dal-os
ao registo no praso de dois mezes, não lhes sendo licito ven-
dei-os, emquanto a guerra não f<;>sse approvada na metropole .
Em I 624 entra no Maranhão fr.ei Christovão de Lisboa, •
com dezoito religiosos capuchos. É a primeira vez que os mis-
sicinarios teem de intervir em negocios de indios . .A provisão de
I 5 de março desse anno mandara-lhes entregar as administra-
ções das aldeias. Assim se cumpriu no Maranhão, mas no Pará ·
os interessados recusaram, e o governador Francisco Coelho
de Carvalho não teve a força de levai-os á obediencia. Este
confücto iniciou a serie que se prolonga até meados do. ~eculo
seguinte.
Quando os jesuitas, em 1653, conseguiram firmar pé na
colonia, já o ·regímen então foi . outro. Os indios, agremiados
nas aldeias, sob a administração de seus principaes ou dos
missionarios, eram obrigados á trabalhar em cada um anno
seis . mezes, alternadamente de dois em dois; os outros seis
lhes ficavam livres, para cuidarem de suas roças. No principio
do anno se affixava á porta da camara a lista dQ.s que cabiam
, a cada morador; com a desig11ação dos mezes, em que haviam
de se~vir. Mas antes o repartidor ia saber do governador e
mais autoridades que numero devia reservar para o serviço
publico; e esses se apartavam primeiro, absorvendo frequen-
tes vezes o numero dos que havia disponiveis. Desta maneira .

1 Provisão de IO de setembro de 1611.


/

. O ORGANISMO COLONIAL 139

muitas esperanças ficavam por satisfazer, muitas· necessidades


sem remedia: e sendo, como já vimos, todo o trabalho effe-
ctivo da colonia producto do braço iridigena, não admira se
mostrasse geral o descontentamento, e se tornassem as priva-
ções cada vez mais insoffridas.
Em breve surgiram os abusos. Nem os índios eram pagos
de seus mesquinhos salarios, de duas varas de panno em cada
mez, que valiam ~ois tostões; nem se lhes dava o tempo de
liberdade a que tinham direito. Retidos, após o termo legal, em
poder de seus amos, passavam por escravos legítimos. O in-
teresse obliterava a•memoria da usurpação; e, morrendo o chefe
da familia, o indio fôrro era legado em testamento como es-
cravo legitimo. Innumeros são os proces5os que por este mo-
tivo se litigavam perante as juntas de missões.
Na infancia da colonia não careciam os moradores desse
artificio, nem do pretexto dos resgates. O estado de constante
guerra em que viviam, o sentimento exaltado da propria força,
~ a vingança das represalias a que se viam sujeitos, eram
causa e desculpa de todas as violencias. Chegaram. finalmente
os missionarias, e, não podendo contrastar o sentimento geral,
pactuaram com elle. Por uma dessas capitulações de conscien-
cia, em que os jesuítas são eximias, acharam meio de enten-
der . que « quánto mais larga fosse a porta dos ·c aptiveiros lici-
tas, tanto mais escravos entrariam na Igreja e se poriam a ca-
minho da salvação» t. Assim, concordando com a pratica da
escravidão, acompanhavam as tropas e, como arbitras, deci-
diam da justiça das prêsas. Nessa concessão estava a ruina da
sua obra e, o que mais foi, tambem de sua ·fama. Ninguem
Jamais os livrará da pecha· d~ haverem directamente concor-
rido para a destruição da raça infeliz, que pretendiam salvar.
Então principiou o trabalho, não já precipitado e occasio-
nal, mas lento e methodico da despovoação. Na expedição de
1657, pelo Amazonas acima até ao rio ,Negro, entraram pela
p ·o rta dos tz"cltos captz"vez"ros 6oo_ escravos ; em I 6 58, - outra
missão em que iam dois padres da Companhia,- mais de 700;
em 1659, expedição ao rio Tocantins, 300 escravos; em 166o,

t VIEIRA. Resp. aos cap., 25.


140 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

viagem ao rio Negro, 300, que foram para o Maranhão, com


grande dôr dos habitantes do Pará por se verem esbulhados.
Em 1655 e 56 tinham-se realizado varias jornadas, trazendo
1800 indios escravos, e cêrca de 3:000 fôrros, entrando os da
missão de Vieira á serra de Ibiapaba, que se julgou das mais
productivas. Dos escravos, uns eram captivados pelos brancos,
outros resgatados do supplicio ; mas é provavel fosse dos pri-
meiros o maior numero; nem é licito suppôr que as guerras
dos indios entre si, mesmo com o estimulo dos resgates, des-
sem tamanha copia de prisioneiros. ·
Por alvitre de Antonio Vieira se tinha ·assentado que a
metade de todos os escravos novos coubesse ao povo, repar-
tindo-se pelas povoações, consoante as necessidades: Da outra
parte se tirava o quinhão do governador; depois o dos cabos
da jornada, dos soldados, e finalmente dos índios que traba-
lhavam nella, pois tambem estes se associavam nos despojos.
As despesas eram rateadas pelo numero das peças ~que toca-
vam aos moradores, cobrando-se destes na distribuição. ~om
o tempo, porém, se foi abandonando esta pratica. Em vez do
custo real, que vinha a ser mais ou menos de 4$000 réis por
cabeça, exigiam depois quinze e vinte mil. Ás vezes o gover-
nador apossava-se do rebanho inteiro, e o dividia por seus
officiaes e familiares. Esses o' revendiam em seguida, a setenta
e oitenta mil réis.
Além das tropas de guerra, a que depois os missionarios
tiveram de fazer opposição, tornando-se por isso mais raras,
andavam as canôas de resgate em continuas correrias pelo
sertão. ·Era a permuta amigavel em vez do rapto, mas nem
por isso menos violenta. Para acudirem a este commercio, os
índios exterminavam-se mutuamente, e triumphantes offere-
ciain a prêsa da batalha ou da emboscada. Em começo os
gastos da jornada eram por conta da Fazenda Real. O govef..
nador decidia sobre as entradas e designava o chefe da expe-
dição. Depois passou essa attribuição ás camaras, que tam-
bem elegiam ó cabo e o repartidor dos indios. Por ultimo
eram os moradores que á propria custa faziam os resgates,
indo por commandante aquelle que adiantava maior somma
para as despesas. Os missionarias acompanhavam as expedi-
ções, ou, pelo menos, tinham ~ . cargo examinar a justiça dos
O ORGANISMO COLONIAL

captiveiros; mas . dessa peia libertavam-se a miude os interes-


- sados, ' partindo clandestinamente, e evitando assim a incom-
moda vigilancia dos religiosos.
Deste modo ia desapparecendo a caça humana, anniquilada
como a outra pela frequencia das-batidas. No tempo do go-
vernador Ruy Vaz de Sequeira (1662: 67), pela costa do Ma-
\
ranhão até Gurupá, no Amazonas, não havia mais índios; era
necessario. ir buscai-os muitas leguas pelo rio acima, e nos
affluentes. As empresas de resgate saíam tão mortiferas como
-as proprias guerras, por tal forma que, com as muitas baixas
_resultantes das longas e .penosas viagens, e descontando os
que fugiam, não se apuravam, nas duas cidades de Belem e
São Luiz, mais de 400 escravos por anno t·. Quando as expe-
dições eram bem succedidas, chegava ao Pará sómente a me-
tade: imagine-se o que seria nas outras! Uma vez cuidou-se
de erigir um hospital para que, á mingua de tratamento não
perecessem todos, tamanho era habitualmente o numero dos
enfer~os e inutilizados pela fadiga e privações 2. Os que resta-
vam sãos e robustos eram portanto em numero insufficiente
para compensar os mortos e estropeados, e contentar as ne- ·
cessidades da população em augmenl:o. ,
Repartidos os índios pelos moradores, continuava ainda a
•mortandade; .p elo que dizia Vieira á camara de Belem: «Por
mais que sejam os escravos que se fazem, mais são sempre
os que morrem> 3. Para . isso concorria o tr~balho das fazen-
das, sobretudo a cultura da canna de assucar e do tabaco, tarefa
em demasia pesada aos índios, mal habituados á continuidade
dos serviços penosos. Além das doenças, que estas raças in-
feriores sempre adquirem no contacto dos brancos, os maus
tratos que recebiam:, eram outras tantas causas de molestia e
morte, não obstando a isso' as leis repressivas repetidamente
promulgadas, Dos tormentos a que os sujeitavam, basta lem-
brar que era corrente marcarem-se os captivos com ferro em
brasa, para os destinguir dos . fôrros, e tambem para serem
reconhecidos pelos donos. Os mortos, as mais das vezes, « ou

1 VIEIRA. Resp. aos cap., 25.


2 C. R. de 20 011tubro de 1690.
3 BERREDO, Annaes, § 1030.
142 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

se lançavam nos rios, ou se enterravam mal cobertos nos


matos, onde eram pasto das feras » t.
Com os missionarios, seús declarados protectores, nem
sempre tinham estes mesquinhos melhor fortuna. Já vimos de
que fórma aque;Iles julgavam conveniente alargar as portas
dos lz"citos captivei'ros. Nas aldeias, onde viviam sob o domi.nio
dos religiosos, exercido umas vezes directamente, outras com
disfarce, por intermedio dos capitães e prini:z"paesJk sua mesma
raça, eram os indígenas egualmente forçados ao trabalho: ré-
mavam canôas, amanhavam a terra, colhiam productos do
sertão; eram o~· artífices que erigiam templos e casas, que
fabricavam os utensílios de lavôr; e os moveis de uso domes-
tico. De nada serve a indjgnação de. Antonio Vieira, lançando
l este desafio a seus detractore·s : «Pois os padres occupavam e
1 divertiam infinitos índios, diga tambem (o procurador do Ma-
ranhão) em que os divertiam, ou em que os occupavam. Ti-

\
nham engenhos? Tinham cannaviaes? Tinham lavouras de ta-
bacos? Faziam alguma lavoura ou beneficiavam alguma droga
das que ha naquelle Estado?» 2 Tinha razão no tempo delle:
mas depois respondem a estas interrogações as cartas régias,
permittindo aos .religiosos receberem do reino mercadorias, e
embarcarem generos do paiz, mesmo durante o tempo dos
monopolios; responde d'ahi a cem annos o arrolamento dos
bens; respondem em todo o tempo as reclamações dos habi-
tantes, e frequentes vezes as advertencias do geral da Çom-
panhia.
Por outro lado, n~o resta duvida que certos padres não

}
tinham com os neophytos a caridade devida: por leves culpas
os mandavam açoutar e metter em troncos; e nem sequer os
przºncipaes, que o prestigio de sua autoridade devera resguar-
dar, escapavam aos humilhantes castigos. Algumas vezes che-
garam os clamores á côrte, de onde saíu ordem para serem

\

os missionarios admoestados com mode1·ação pelo governa-
dor, 3 mas, sem embargo, os actos de ,severidade repetiam-se,

t VIEIRA, Resp. aos cap., 25.


2 Resp. aos cap., x4.
3 C. R. de 20 de novembro de x699, de II de janeiro de x701, e pro-
vavelmente outras.
O ORGANISMO COLONIAL 143

não raro dando logar á vingança, em que varios desses evan-


gelizadores perderam a vida'." .
·Entretanto ia-se consummando a ruina dos senhores que,
riquíssimos pela extensão de terras ·possuídas, se viam de um
instante para o outro reduzidos á extrema penuria. Isto suscitou
a idéa, patrocinada pelos jesuítas, de se promover a introdu-
cção_de escravos africanos, panacéa em todos os tempos appli-
cada no Brazil aos males dos colonos. Tal foi a origem das
duas companhias de commercio privilegiadas: a do Grão-Pará
de que no logar proprio nos occuparemos, e a do Maranhão
já· citada, que assignalou com um episodio tnigico a longa se- ·
rie, de contendas, em que se resume a historia polÍtica do Pará-
Maranhão neste seculo. Este trafico, umas vezes por conta da
corôa, outras concedido por contracto a particulares, era para
os que o exploravam boa fonte de receita; mas nenhum alli-
vio trouxe á sorte dos índios, que continuaram a viver escra-
vizados, ou dos moradores, cujas queixas não houve razão de
cessarem.

VI

. .
Para aggravar a pouca invejavel situação dos habitantes,
concorria tambem o defeituoso regímen politico da colonia.
Aos inconvenientes da exaggerada centralizaç.ão administrativa,
exercida pela metropole, accresciam outros de procedencia lo-
cal, egualmente nocivos. Taes eram os do poder absoluto que
arrogavam a si os governadores; a demasiada autonomia e a
tu~bulencia das camaras; os abusos de jurisdicção do bispo,
quando o houve, e das autoridades ecclesiasticas; os absurdos
privilegios dos capitães-móres; os conflictos dos magistrados
entre si; a complicação e incerteza das leis, constantemente re-
formadas; tudo isso produzindo o antagonismo dos funcciona- ,
rios, o embate dos poderes, a anarchia nos serviços p ublicos
e, como ultima· consequencia, o descont~ntamento geral.
Os negocios da administração . da colonia corriam em Lis-
boa pelo Conselho Ultramarino (primeiramente Conselho -da
India), competindo á Meza de Consciencia e Ordens os assum-

•·
144 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

ptos ecclesiasticos, e o que se denominava Provedoria dos de-


functos e ausentes. Cumpriam-se taínbem disposições· das dif-
ferentes secretarias de Estado;· as ordens do Desembargo do
Paço, relativ~s .á justiça; e as do Contador-mór dos Contós de
reis e Casa, que dizia~ ºr espeito á fazenda. · No Estado eram
magistrados principaes o governador, o ouvidor geral e o pro-
vedor da fazenda, com autoridade nas duas capitanias, do
Grão-Pará e do Maranhão, as quaes tinham cada uma -seu ca-
pitão-mór, um ouvidor e um provedor, subordinados aos pri-
meiros. Esta foi a hierarchia estabelecida desde 1624, quando
· o Maranhão se .desligou do Estado do Brazil; até meados do
seculo ·xvm, com excepção do curto espaço de tempo (1652-
55), em que as duas capitanias tiveram governo separado e
autonomo. O poder ecclesiastico era representado em Belem
pelo vigario geral, sujeito ao bispo do Maranhão, mas os pre-
lados das ordens religiosas entendiam, por direito immanente
de seu cargo, em todos os assumptos referentes aos indios. O
Santo Officio tinha ºseu representante, que no principio era al-
gum socio da Companhia· de Jesus. Não se nos depara porém
lembrança de qualquer acto da sanguinaria justiça deste tribu-
nal: só mais tarde, no seculo seguinte, apparecem, nos autos
da fé realizados em Lisboa, habitantes da colonia, condemna-
d?s po.r bruxaria e outros delict9s da alçada ecclesiastica. Os
homens de nação viviam ali tranquillamente, e, com sua petu-
lancia habitual, _logravam tomar assento nas cainaras, a par
das pessoas nobres e mais qualificadas, como provam as pro-
videncias repressivas formuladas por vezes 1.
Hombreau.do com os enviado.s da metropole e quasi sem-
pre em lucta aberta com elles; promovendo confüctos, repre-
sentações, arruaças; taxando ,OS "salarios e O preço d<?S gene·
ros; decretando impostos, prohibindo negocios, ordenando pri-
sões, as camaras constituiam verdadeiro estado no estado. As
desavenças da vereação do Pará com os capitães-móres· e ge-
neraes são constantes. O excesso chegou ao ponto de exigir

li que o governador, quando intimado, fosse á ·presença della;


e de requerer que qualquer das camaras do Estado podesse.

l Cf. J. F. LISBOA, Obras, tom. 3, pag. 378.


Ô ORGANISMO COLONiAL

citai-o a comparecer na côrte, com um dos vereadores, para


responder pelos actos de sua administração. Ainda assim, não
obstando os abusos e flagrante? usurpações, eram as vereações
uma solida barreira, opposta aos excessos das autoridades re1-
nicolas. Esta magistratura popular e local, deliberando, nos
casos importantes, com os votos da nobreza, milicia· e clero,
em assemblea denominada Yunta geral, :fj.gurava bem a auto-
nomia dos antigos concelhos, suffocada pela expansão do po-
der régio, mas cuja tradição nunca fôra de todo obliterada em
Portugal. -
Desde 1618, quando Caldeira Castello Branco, fundador da
colonia, foi deposto e preso no Pará, as desordens e levantes
populares são factos quasi continuas. Até 1628 succedem-se
as contendas pela posse do governo. Em 1625 tumultos, a
proposito da lei sobre as administrações de indios, que os
moradores não cumpriram. Novos motins em 1628, por serem
abolidos os resgates. Em 1634 sedição contra o capitão-mór
Luiz do Rego Barros que, apeadõ do cargo, vae procurar a
São Luiz refugio, e soccorro para restabelecer o principio da
autoridade. Em 1677 conjuração dos habitantes contra o go-
vernador Pedro Cesar; nella tomaram parte, com os sec"ulares,
alguns clerigos; mallogrou.:.se por denuncia dos religiosos da
Companhia de Jesus.
Logo que estes ultimas se estabelecem na capita1iia, prin-
cipiam contra elles os movimentos populares, em sympathia
com os que periodicamente se davam no Maranhão. Já em
1642, quando o padre Luiz Figuei!'a naufragou na costa da
ilha do Sol, os portuguezes se tinham levantado na cidade,
dispostos a impedir o desembarque dos missionarias. Das al-
terações a isto posterioref; já sabemos. Em 1655 a irritação,
até ahi latente, .rebenta em desordens na povoação de Gu-
rupá; os padres são presos e transportados em canôa com
boa escolta até perto do Pará. Em 1661, sublevação em
Belem; apprehensão e embarque do pessoal das missões.
No anno seguinte os tumultos, ainda motivados por ·nego-
cios dos j esuitas, são contra o ouvidor geral, que, fugindo
·para o Maranhão, assim se evade á furia popular. Todos_ estes
motins eram, como os da capitania vizinha, fomentados pela
camara, que entretanto não perdia tempo, requerendo sempre
19
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

e mandando constantemente a Lisboa representações contra


os padres. O perdão geral de 1663, e a provisão do mesmo
anno, que privava os regulare_s do governo temporal das al-
deias, marca o t~rmo destas violencias. A revolta do Maranhão
em 1684 não teve echo, provavelmente pelo ciume que dividia
as duas camaras rivaes; e· é de presumir que, mais tarde, ·o
exemplo da repressão sangrenta serenasse os animos exalta-
dos. O facto é que a hostilidade dos moradores continuou :
não porém traduzida em tumultos e no abuso da força mate-
rial contra os miSsionarios, chicanistas e parladores mas iner-
mes.
Este estado de insubordinaÇão e desrespeito ás leis, em
que, por muito tempo, viveram os colonos, não era mais que
·o reflexo do prÓceder dos governantes. Se os moradores não
acatavam as disposições régias sobre a liberdade dos indios, o .
mesmo faziam as autoridades, e destas baixava quasi' sempre
o exemplo. Umas vezes eram as camaras que arbitrariamente
suspendiam a execução das leis, outras os magistrados, a cujo
cargo estava fazei-as cumprir. Os capitães-móres, ufanos de
seus ·privilegios e categoria, faziam timbre na desobediencia t.
Algumas vezes sobrevinha a punição, mas, castigado um dos
régulos, proseguiam os outros em seus desmandos. Por ter,
contra as disposições leg<!es, enviado tropas de resgate ao
sertão, e consentido que outros as mandassem, foi o capitão-
mór do Pará Ayres de Souza Chichorro preso e rem~ttido
para a côrte. Igua~ sorte teve em seguida o capitão-mór de
Gurupá, como antes, em 1627, tívera o do Pará, Manoel de
Souza d'Eça. Nesta capitania distinguiu-se Ignacio do Rego
Barreto por sua avidez e pelas concussões que lhe grangearam
a animadversão publica. Foi por instrucções suas, como refe-
rimos, que um cabo de tropa de resgates ostentosamente de-
clarava a Vieira não guardar as ordens d'El-Rei porqué não
queria. Em 1640, outro capitão-mór do Pará, de nome Manoel
Madeira, chamado a São Luiz para responder por certos deli-
ctos, sendo absolvido desertou para as possessões de Castella,
com o destacamento que lhe servia de escolta.

l Veja-se a nota B no Appendice.


O ORGANISMO COLONIAL 147

Seguindo o exemplo destes funccionarios arrogantes, mos-


trava-se o clero turbulento e arbitrario. Deixando de parte;
por justas na m_a,ior dos casos, as discussões dos jesuitas com
os colonos, a proposito dos indios, vemos os outros membros
da familia ecclesiastica constantemente em.~olvidos em disputas
ou provocando conflictos. O primeiro bispo, Dom Gregorio
dos Anjos, não contente de, sob futeis pretextos, fulminar ex-
communhões contra os habitantes, mandava-os prender, quando
as penas espirituaes lhe pareciam insufficientes. O facto não
era exclusivo do Maranhão, como se vê da carta régia de 1 o
de março de 1746, que recommenda aos ouvidores do Rio de
Janeiro não consintam que os bispos prendam pessoas secula-
res. O mesmo bispo Dom Gregorio mandava expedições ao
cravo e aos resgates, desobedecendo assim ás leís vigentes;
na volta repartia os escravos por seus familiares e apanigua-
dos. O segundo bispo, Dom Frei Thimotheo do Sacramento,
tornou-se celebre pela desordenada lucta em que enti:ou com
as autoridades civis. Aos indivíduos culpados de concubinato
prendia na cadeia publica e impunha multas .exorbitantes.
Representações dos perseguidos e advertencias da metropole
nada impedem. Por ultimo, vendo seu proceder abertamente
reprovado pela côrte, abandonou a diocese. Exemplo curioso
da tyrannia ecclesiastica é o caso seguinte: -no tempo do go-
vernador Ignacio Coelho da Silva, (1678-1682) um capitão de
infantaria do Maranhão foi preso, por ordem do bispo, e re-
mettido para Lisboa afim de faz er vida com sua mui/te~. O
governo approvou o proceder do prelado, e a sua victima só
obte~e liçença de regressar á colonia, se comsigo levasse sua
esposa i. Do recurso das excommu'nhões foi o religioso fran-
ciscano frei Christovam de Lisboa quem primeiro fez uso no
Pará, para re~olver o conflicto sobre as administrações de ín-
dios. Em . I 68 5 vemos o ouvidor do Maranhão ·excommungado
pelo bispo, cujo "!xemplo o vigario-geral segue, em 1690,
excommungando os officiaes da camara de Belem. Estas
desavenças entre o poder ecclesiastico e o civil continuam,
provocando reclamações do ultimo. Em . 1 700 a camara ~e

t C. R. de 20 de março de 1680.
148 OS JESUITAS NO _GRÃO-PARÁ

São Luiz fazia chegar á presença régia suas queixas contra o


bispo e funccionarios ecclesiasticos que, na linguagem dos re-
querentes, vexavam os povos com censuras, ·excommunhões e
interdictos i. .
Das demasias de linguagem e invectivas do pulpito não
falemos. Grande parte dos sermões de Vieira são modelos de
elequencia aggressivá, que, em nossos dias, os mais vehemen-
tes parlamentares invejariam para a tribuna política. Os outros
de sua religião, não podendo imitai-o na facundia, copiavam-
lhe as violencias da palavra. E nisso não eram unicos os je- -
suitas: ll!ercenarios, ·capuchinhos e carmelitas seguiam a mesma
trilha, a ponto de se verem chamados á ordem pelo poder
central 2,
Não devemos esquecer, como elemento permanente de dis-
cordia, a tenacidade com que as confrarias monasticas se excu-
savam de pagar os dízimos á corôa, e as rivalidades de umas
com outras por interesses m1111danos, nomeadamente o governo
dos indios; e, como este era na colonia a principal fonte de
domínio e riqueza, em torno delle gravitavam as ambições e
as coleras.
O encargo da distribuição da justiça era dividido em alça-
das differentes, desde o governador até ao senado da cama-
ra. Naturalmente o ambito das jurisdicções alargava-se, ao ar-
bítrio de cada um, e con_forme a fraqueza ou cumplicidade do
tribunal superior. Factos já de nós conhecidos nos darão idéa
dessfL justiça. Em 1654 preparava-se Antonio Vieira para ir á
côrte levar a representação sobre o governo dos índios, quan-
do os do senado « houve~am a mão o papel e o condemnaram,
chamando traidor e outros nomes affrontosos aos que para.
elle tinham concorrido» 3 • O tabellião, por ter justificado uma
certidão relativa ao mesmo negocio, foi por ordem ,da camara
posto em custodia e a ferros. A justiça ecclesiastica nada fi.
cava devendo á secular. Ainda no tempo de Vieira, por crime
de injuria contra elle, dois homens foram condemnados a de- ·

1 C. R. de 20 de novembro de 1700.
2 e. R. de IO de dezembro de 1678 e o_u-tras.
3 VIEIRA. Resp. aos cap., z.

/
O ORGANISMO COLONIAL 149

gredo pelo vigario geral, devendo préviamente ouvir lêr a


sentença na matriz, despidos da cintura para cima e amorda-
çados 1. Já vimos atrás os excessos commettidos pelos bispos.
As violencias não ficavam com elles. O motim de· 1661, que
1
terminou pela expulsão dos jesuítas teve por fundamento
apparente a prisão de um pdnaipal de índios, ôrdenada por \
Vieira .; ó delicto era o de mancebia.
Os governadores decret avam prisões, impunham degredos,
remettiam para o reino ou expulsavam para outras capitanias
os seus desaffectos 2 ; alé1n disso não era caso virgem intro-
metterem-se na administração regular da justiça, sustando a
marcha dos processos e susp<:ndendo os magistrados. Tambem
os capitães-móres subalternos mandavam prender arbitraria-
mente, e impediam a justa applicação das leis. Isto faziam não
sóm~nte os das capitanias, que tinham maior autoridade, senão
os simples capitães donatarios, cujas attribuições eram apenas
de officiaes milicianos. Todos estes excessos constam das suc-
cessivas provisões régias, que os prohibiam e condemnavam.
Depois de expulsos, em 1644, os hollandezes do Maranhão, .
invocavam os habitantes os privilegios de cidadãos do Porto,
que haviam grangeado em remuneração de seus serviços na
guerra. O principal de taes privilegios, e o unico que prova-
velmente lhes interessava, era o de não serem postos em ferros
e prisões vis, excepto nos casos em que o mesmo tratamento
se impunha aos fidalgos. Mas similhantes prerogativas eram
desvaliosas perante o capricho dos governadores e mais auto-
ridades que, sem escrupulo,' usando de seu insoffreado poderio,
as violavam. As multas de que por tal motivo eram passiveis
não as pàgavam nunca, i!em essas lhes eram, sequer pela for-
ma, impostas; e os colonos da mais levantada prosapia debal-
de alardeavam a dignidade de infanções com que se julgavam
immunes. Acima dos privilegias estava o direito da força, e a
violencia, porventura necessaria, de um despotismo sem freio.

1 VIEIRA, Resp. aos cap., JO.


2 A carta régia de r de dezembro de 172 r, dirigida a Bernardo Pereira
de Berredo, prohibe definitivãmente que os governadores façam saír do Es-
tado pessoas não condemnadas a degredo. Outra carta régia da mesma data
prohibe se conserve alguem preso, sem culpa f~rmada.

I
150 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ
...

VII

Deste organismo sociál, condemnado a uma existencia mi-


- seravel, em face das opulencias da pujante natureza, a metro-
pole e seus agentes extrahiam a ultima seiva, por meio de va-
riados e onerosos tributos.
Eram os dízimos de todas as fazendas que entravam no
Estado ou delle safatn, com o reé:lizimo do capitão-mór; as
fintas da farinha, madeiras e outros productos; o quinto dos
captivos. feitos em justa guerra; os dízimos dos fructos da
terra, que em 1697 foram arrematados por dez mil e cincoenta
cruzados, e separadamente os do cravo e. cacau por vinte e
quatro mil; o imposto sobre os couros, os azeites, o algodão;
e, mais vexatorio que nenhum outro; o dos donativos que,
sob a falsa designação de voluntarios, por injusta coacção se
extorquiam aos povos. Tal contribuição, primeiramente obtida
como provisoria, tornava-se em seguida· perpetua, pela dili-
gencia dos governadores,. que disso faziam titulo de recom-
mendação á munificencia régia i.
Ainda assim !}ão bastavam estas r~ndas para se pagar aos
filhos da folha, e satisfazerem as necessidades do Estado; e,
devendo a corôa, em todo o caso, explorar a colonia como
fonte de lucros, acudia-se á insufficiencia da receita c:_om espe:
culações diversas; por conta da real fazenda. Deste numero
era o trabalho das salinas nas costas do mar, e o dos pesquei-:-
ros e salga na ilha de Joannes·, em que se empregavam os
indios: O governo commercia~a tambem ás vezes em negros
de Africa, mas, segundo parece, com mesquinho resultado,
«perdendo os consideraveis interesses que poderia lograr em -
outros generos, em q1.1e se poderia tirar um lucro de seiscentos
jJór cento» 2. É provavel que dos ~esgates, feitos por determi-

1 - ... «Estabeleci a V. M. um donativo no Para e no Piauby, neste


de quarenta -mil cruzados e naquel\e de muito mais, pela suavidade com
que o pratiquei, a qual o facilita a perpet.u ar-seii. -'R...epresentação do Gov.
.Alexandre de Sousa Freire a el-rei D . João V. Ms. da Bib. de Evora:
2 e. R. de i 6 de novembro de I 697.
- --~ .. ~~

O _ORGANISMO COLONIAL 151

nação e á custa da corôa, ficasse algum excedente, entre o


total das despesas e o preço por que as peças do se1-tão eram
cedidas aos moràdores i, Mas nada disto chegava, e o des-
prazer, entre os diversos elementos que compunham a popu-
lação livre, era geral e reciproco: desgosto dos funccionarios
reinóes, mal pagos de seus salarios ; dos naturaes da terra,
onerados de .tributos e sem esperanças de allivio; e, final-
mente, dos colonos recemchegados, jlludidos em seus calculos
de rapida opulencia e sonhos de facil grandeza.
Não devemos esquecer a obrigação do serviç<? militar, im-
posta a todos, na chamada infantaria paga ou nos regimentos
de ordenanças a pé e a cavallo. 'Sómente se esquivavam ao
serviço os que podiam. encorporar-se na companhia de privile-
giados, onde tinham lagar os cidadãos nobres, elegíveis para
o senado. Era ·isto sem duvida novo instrumento de tyrannia
contra os pobres e humildes, e motivo odioso de excepção
para os opulentos e poderosos. ' ·
Este bosquejo, embo.ra restricto, da posição relativa e de-
pendencia que entre si tinham os differentes grupos de popu-
lação da colonia, permitte-nos forn:mlar a synthese do edificio
social. Em baixo, a plebe de indios e negros africanos inces-
santemente renovada pelo affiuxo de constantes levas: os pri-
meiros desapparecendo gradualmente ao contacto da civiliza-
ção, os ultimos indo fundir-se com os elementos europeu e
iildigena, para formarem a · raça nova, intelligente e válida.
Acima delles, os colonos reinicolas e filhos da terra, com egual
pe.n dor para a ociosidade e as mesmas pretenções de ascen-
dencia heroica e nobre, contendem pela posse dos cargos ele-

1 J. F. LISBOA (Obras. Tom. m) refere que .de um livro de receita e


.despesa dos- resgates em 1693 consta que, por cada indio distribuido se pa-
gava o i; 1posto de 3~000 réis a el-rei e mais 3~000 réis para os gastos das
missões. Isto devia ser o custo dos indios. Em 1732 era de tres mil cruzados
a importancia consignada para os resgates. Representando contra a exiguida-
de de similhante verba, que limitava a 240 o .numero das prêsas annuaes,
dizia a camara do Pará: º«O preço mais commodo em que se pode avaliar
cada resgate é o de cinco mil réis para se comprar um índio, depois que
nesta cidade se empregam nos generos delles ». Requerimento sobre a libe1·dade

dos resgates. Ms. da Bib. Nac. de Lisboa.
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

ctivos, e cubiçam debalde os postos elevados do governo,


que o ciume da metropole reserva aos seus enviados. Estes,
ii no passo mais alto da escala, são os próceres e verdadei-
ros senhores da colonia. Á frente delle's ; e encarnando em
l si os poderes todos, estadêa-se o governador. Ahi começa a
1
oppressão, que transmittida de degráu em degrau se vae tor-
nando mais dura, até ao derradeiro, onde o ferro candente e
o azorrague estigmatizam os míseros escravos.
Fóra do quadro se nos depara a grei ecclesiastica, em pro-
\
\
miscuidade ~om as o~tras classes, más, sem ligaçãô- especial
- que a prenda exclusivamente a alguma, prestando a esta ou

I áquella o concurso de sua influencia, segundo as vantagens da


e
occasião. Nella estavam os principaes detentores advogados
i dos indios, em cuja escravização o pr~conceito geral fazia con-
sistir toda a riqueza do Estado. Esta idéa, falsa em si, con-
vertera-se em realidade pela exclusão de todo o trabalho livre;
e como, escasseando os barbaros, nos missionarios estava o
mais potente obstaculo á avidez dos brancos, contra esses mal-
vistos defensores se foram accumulando odios, traduzidos pri-
meiro em motins, depois, 9uando isso foi perigoso, em repre-
sentações á metropole. Dos religiosos foram os da Sociedade
de Jesus os mais constantes no empenho: sobre elles portanto
incidia mais ~orte a hostilidade; e, convictos os habitantes do


Pará-Maranhão de procederem com justiça, já no tempo de
Vieira conclamavam que «na expulsão dos religiosos da Com-
panhia faziam tanto serviço a el-rei como tinham feito na ex~
pulsão dos hollandezes » 1.
Mais tarde, quando a colonia começou a ter organização
regular, e o principio da autoridade melhor se fez sentir, abriu-
se o período dos vehementes libellos. Estes ataques aos mis-
sionarios foram a valvula por onde se expandiam as queixas;
originadas em tantas e tão diversas causas, que acabamos de
expôr. ,Cegos por uma só e mesma illusão, todos filiâvam os
males publicos na questão dos índios: os colonos porque não
tinham sérvós em numero bastante; os m1Ss1onarios por se
verem obrigados a dar-ih' os de mais. A:; reclamações encon-

• 1 Resp. aos cap., 25.


O ORGANISMO COLONIAL 153

traram, alfim , echo na metropole, e foram dar pretexto, senão


motivo real, á expulsão dos jesuítas de nossos domínios, e
principio á total extincção da ordem, realizada em seguida.
A Companhia de Jesus ia expiar as suas faltas, e as do go-
verno que, de certa máneira, era obra sua, pela influe~cia que
nelle sempre tivera. Agora vamos vêr como chegou esse re-
sultado.

20
\ -
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

tribuições, diversas contendas haviam de suscitar-se mais


tarde.
Os missionados pretendiam o domínio absoluto dos índios,
sempre contestado pelos colonos; a metropole resolvia que a
lei cogitava sómente da administração interna, política e eco-
nomica das aldeias, sem prejuízo da jurisdicção do governa-
dor e mais autoridades do Estado. E entretanto os religiosos,
desprezando as intimações, continuavam a usar largamente dos
poderes discrecionarios de que, com razão ou sem ella, se
julgavam investidos pelo Regimento.
Os pontos de maior importancia, em que este se afastava
das disposições anteriores, eram, além do citado governo tem-
poral, os seguintes: abolia-se o privilegio da Companhia de
Jesus, que excluía as outras ordens religiosas das missões no-
vas e entradas no sertão ; creava-se um registo de matricula,
e mudava-se a fórma da repartição dos índios; concediam-se
vinte e cinco càsaes a cada um dos missionarios, para o ser-
viço das aldeias, em vez de ser repartida por elles a terç·a
parte de todos os descimentos, conforme a lei de 1680; por
ultimo, - e aqui verdadeiramente estava a victoria dos jesui-
tas - , creavam-se dois Jogares de procurador dos indiós para
conhecer dos captiveiros, um na cidade de São Luiz, outro
em Belem, ambos nomeados pelo governador, mas escolhidos
cada um de uma lista de dois nomes pelo superior da Com-
panhia. Tanto valia isto, 'como entregar directamente · nas
mãos desta toda a jurisdicção relativa aos captiveiros.
Devia-se tudo á influencia do padre Manoel Fernandes,
confessor de Dom Pedro II e presidente do Tribunal de Mis-
sões, instituído _por Dom João IV, pr9vavelmente a instancias
de Vieira.
Mas o que mais affectava os interesses dos colonos era a
prohibição, feita aos moradores brancos e mamelucos, de resi-
direm nas aldeias, sob a comminação de· penas severas. Aca-
bava-se-lhes o negocio clandestino, que até ahi faziam com os
índios; a seducção dos presentes e das fallazes promessas, com
·que os arrancavam de lâ. O missionario era senhor absoluto,
assim das almas como dos bens de seus administrados. Na
mão delle se concentrava todo o producto das aldeias; a cha-
tinagem, base do lucro, desapparecia da communidade, sujeita
CAMPANHA DE LIBELLOS 157

ao regímen patriarchal. E ai dos que transgr_edissem a prohi-


bição ! O padre não deixaria de requerer a applicação ~a pena
de degredo aos nobres, de açoites aos simples peões, imposta
na lei. Forçados a abandõnarem as aldeias, vinham os aven-
tureiros do sertão augmentar o grupo dos descontentes, e avi-
var a hostilidade, nunca extincta, entre a população secular e
os membros das ordens religiosas, sobretudo da Companhia.
N:ada porém se fazia, que ficasse definitivo, e as alteraçõe~,
additamentos e revogações das leis realizavam-se segundo ·a
influencia predominante na occasião. Nunca houve tribunal
mais versatil que o Conselho Ultramarino, mórm<::nte nas de-
liberações ácerca dos índios. Pàrece. que todo o seu empenho
era contentar, uma ap6s outra, cada uma das partes que dis-
putavam o dominio dessa raça infeliz: os moradores sempre
insaciaveis; os missionarios continuamente queixosos dos co-
lonos, das autoridades, e do proprio Conselho.
A lei ele I 680 prohibia absolutamente os captiveiros. Os
indios, colhidos em justa guen-a, segundo a expressão ada-
ptada, ficariam prisioneiros, como era de costume, nas guerras
da Europa. Repartjdos á discreção do governador pelas aldeias
do Estado, eram, é verdade, compellidos ao serviço, mas com
o nome de fôrros. As vexações que lhes fizessem, as violen-
cias na sua liberdade, constituíam delictos, que sujeitavam os
culpados a punição severa. Está claro que similhante lei era
lettra morta; que os prisioneiros de guerra ficavam realmente
captivos; que a tomadia e compra dos escravos continuava a
ser a industria mais rendosa do sertão. E não ·tardou que a
. escravidão dos índios voltasse a ser pratica legal.
Tendo por objecto, sem duvida, compensar o exclusivismo
do Regimento das Missões, a lei de 28 de abril de 1688 res-
tabeleceu os captiveiros. Escravos seriam os índios legitima-
mente apresados; os que estivessem amarrados á corda para
o supplicio; os que já fossem escravos dos outros índios; es-
tes ultimas, porém, com a reserva de serem captivados em
guerra justa, ficção em que se amparava a iniquidade destas
leis. Mais tarde h~uve quem levantasse a duvida de serem
legítimos os captiveiros dos que, já sendo escravos de outros
selvagens, não estivessem, como se dizia, - á corda. Mas a
este parecer a opposição foi geral, e os proprios jesuítas alle-
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ.

gavam- «que era o mesmo que impossibilitar-se a mercê, e


nunca poder avultar o numero dos resgates, por serem esses
muito raros» f. Effectivamente os barbaros, perdido o gosto
da anthopophagia, preferiam permutar contra mercadorias os
prisioneiros, e isto era poderoso incentivo a que nunca entre
elles acabassem as guerras.
Na mesma occasião se determinou que todos os annos
houvesse resgates, correndo as despesas por conta da Fazenda
Real. Os índios, que desta maneira fossem captivos, eram re-
mettidos ás camaras e, por intermedio destas, repartidas aos
moradores. Esta providencia caíu porém no abandono. Os
missionarios, em systematica hostilidade ao elemento secular,
excusavam-se de acompanhar as tropas, allegando serem pou-
cos. os religiosos, para o serviço das aldeias. Por outra parte
os governadores, pouco interessados no assumpto, visto não
terem a seu cargo a repartição, empregavam os indios dispo-
níveis em expedições á colheita dos generos, que de conta
propria remettiam para o reino, fazendo aos moradores con-
correncia prejudicial. O resultado foi lançarem-se estes ultimos
a fazerem _elles mesmos os resgates, independentes elos missio-
narios, com damno dos habitantes mais "p obres (diziam as
reclamações) que não tinham os meios de p~eparar a em-
presa, e da Fazenda Real, em cujos cofres não entravam os
costumados direitos das peças descidas.
Apesar das ordens terminantes -da côrte 2, persistiam ~s
missionarios na re_cusa, e os governa.dores, talvez cançados da
lucta ingloria contra elles, na desidia. A ultima vez, que se
expediu tropa de resgate, em execução dellas, foi em 1 707.
Christovam da Costa Freire tomara conta do governo, fazendo
cumprir rigorosamente as disposições relativas ás liberdades.
Pelo que fica dito sobre as expedições clandestinas dos mora-
dores, é evidente que muitos deviam ser os índios illegalmen-
te escravizados. Em favor delles deviam requerer os missio-
narios, visto que, arrancados ao poder dos suppostos senhores,
era para as aldeias, por elles administradas, que vinham esses

1 MORAES, Hist. da Compa11hia de Jesus no :Ma1·anhão, Iiv. IV, cap. vir.


2 e. R. de 19 de março de 1693. Prov. de II de janeiro de 1721.
CAMPANHA DE LIBELLOS 159

indios. Espoliados do que reputavam sua legitima propriedade,


levantaram os habitantes um geral clamor, e Ó governador
teve receios de alguma sublevação. O remedia foi a tropa de
resgates, alvitre conhecido, e que sempre surtira. Desta vez
os regulares, tambem · ameaçados, não recusaram o seu con-
curso; acalmaram-se, como por encanto, as iras populares, e
o governador ausentou-se para Maranhão « deixando já os mo-
radores do Pará cheios de saudades» '·
Quatorze annos depois ainda o Conselho Ultramarino in-
si.stia com Bernando Pereira de Berredo que se fizessem an-
nualmente os resgates, « sob pena de uma demonstração digna
- desta culpa». Mas já então outras providencias estavam em
vigor, e os habitantes do Estado tinham adquirido a convicção
de que, pela iniciativa propria, mais facilmente remediariam a
a nunca satisfeita carencia de escravos.
Perto de' tres annos andou a expedição de I 707, em corre-
rias pelo sertão do Amazonas. Tropa ~e resgates primeiro,
tropa de guerra em seguida, marchou para expulsar os missio·
nario~ castelhanos do Alto Solimões, que constava terem vindo
para os dominios portuguezes. Os. mesmos indios que saíam
ás prêsas, eram agora conduzidos a outra guerra, em que, ,
com differente pretexto, eram eguaes as depredações. No pri-
meiro impeto, os religiosos espanhoes foram despejados das
aldeias, que haviam .estabeleci~o em territorio nosso. É de
suppôr J?.ão faltassem captivos. Em represalia, baixou de Quito
uma força, que destruiu as aldeias portuguezas e levou prisio-
neiro o commandante da tropa do Pará.
Estas incursões bellicosas foram origem de uma tentativa,
por parte dos castelhanos, que poderia ter consequencias im-
portantes para a colonia. Vendo a facmdade das communica-
ções, os missionarias cuidavam em fazer o seu commercio com
a, Europa,- pela via do Amazonas. Voltar atrás, subindo a cor-
renteza do Napo até Quito; transpôr elevadas serranias, pro-
curando a beira do Pacifico ; _regressar depois ás missões,
pelo mesmo caminho, era trabalho insano, em que o melhor
da especulação se consumia. Principiaram as negociações com

1 BERREDO• .A.nnaes, s 1452.


160 OS JESU!TAS NO GRÃO-PARÁ

o governo do Pará, e os escudos de prata, passando furtiva-


mente ás mãos dos sertanejos, deslumbravam, como reflexos
do Pactolo, os miseraveis colonos, cuja unica moeda eram
ainda as varas de panno, grosseiramente tecido, e os novellos
.de algodão, muitas vezes com o recheio de trapos velhos.
Não foi ávante o projecto dos missionarios castelhanos.
Metteu-se de permeio o suspeitoso exclusivismo da metropole,
desprezando .a opinião dos governadores, todos elles favora-
veis á tentativa. Todavia alguns exploradores mais decididos
adiantavam-se até á fronteira, fazendo negocio clandestino
com os padres. Mais tarde passou o trafico ás mãos dos car-
melitas portuguezes e, como contrabando, proseguiram estas
relações de commercio até ao tempo do Marquez de Pombal.

II

O governo de Christovam da Costa Freire não terminou


antes de 17I8. Decorrido o primeiro triennio, os moradores
requereram fosse reconduzido no cargo, por tempo egual.
Tanto basta para se affirmar que elles não eram contrariados
em seus interesses, ist<? é, na escravidão dos índios. A lei de
1688, que determinava os resgates, não se cumpria; mas os
moradores abastados, unicos que podiam fazer ouvir suas
queixas, desforravam-se com as expedições clandestinas, evi-
tando a um tempo o estorvo dos exames, e o encargo da
contribuição devida pelos captiveiros. Em taes condições, não
havia guerra injusta, nem illicita escravidão. Fossem os indios
comprados aos parceiros, illudidos com promessas, ou arre-
batados á viva força, eram todos eguaes no captiveiro. Os
paes vendiam os filhos, outros vendiam os vizinhos, os paren-
tes; e, provavelmente, muitas vezes, depois de entregue a
prêsa e recebido o preço della, era o vendedor arrastado com
o companheiro vendido, lançado no fundo da mesma canôa,
amarrado com elle ao mesmo banco. E ahi vinham aguas do
Amazonas abaixo as funebres esquadrilhas. Expostos durante
um e dois mezes, sem cobertura, ao sol e á chuva, immoveis,
ago~izavam os tristes. No seu desgosto, rejeitavam a escassa
CAMPANHA DE LIBELLOS 161

ração de farinha, que os algozes lhes distribuiam. De· manhã,


passava-se revista aos barcos, separavam-se os mortos, que
eram lançados ao rio. Dava-se então pela falta de outros:
aproveitando o somno dos guardas, tinham podido · erguer-se
até á borda, precipitando-se na agua, amarrados como estavam,
de pés e mãos. A voraz piranha, o faminto jacaré, acompa-
nhavam a frota, aguardando a hora da tragica refeição. Ou-
tros, por um milagre de agilidade e astucia, logravam fugir.
Baldado esforço: caíndo nas mãos dos primeiros dos seus, que
encontrassem, eram outra vez vendidos na proxima correria.
E assim, pouco . e pouco, foi desapparecendo entre elies o
costume da anthropophagia. Era mais proveitoso vender, que
devorar o inimigo. As guerras tornaram-se mais repetidas, po-
rém menos crueis. Vencer erà. o objecto dellas, não para des- .
truir o adversario, mas para o captivar. O mesmo succedeu
mais tarde, e succede ainda hoje, no interior da Africa.
- Buscando ouro, caçando escravos, de toda a parte, no Bra-
zil, vinham os brancos parar ao Amazonas. Descendo o To-
cantins, o Tapajós, o Madeira, não havia privações que os
repellissem, cachoeiras que os detivessem. Pela banda septen-
trional, chegavam tambem os francezes de Cayenna, os hollan-
dezes do rio Branco. Já no seculo anterior, do Maranhão in-
vadido, tinham uns e outros lançado olhos cubiçosos sobre a
carniça humana, que seria a principal riqueza da conquista.
Foram d'ali expulsos, sem terem tempo de realizar os seus
planos. ·
Na garganta estreita do· Amazonas, a fortaleza de Pauxis
vigiava a passagem dos barcos e, mais abaixo, a de Gurupá
esperava os que desciam, para o registo das peças e verifica-
ção das licenças sobre as entradas no sertão. Mas as sentinel-
las dormiam, e as igarités passavam de largo, no silencio da
noite; o_u então · acommodava-se com presentes a vigilancia
indiscreta do capitão-mói-.
O governador, por sua parte, fechava tambem os olhos.
As leis de Sua Majestade eram duras,. e a miseria dos mora-
dores carecia de remedio. El-Rei não o da.va: buscasse-o cada
um por suas mãos. Além disso, a sorte dos captivos era por-
ventura mais terrivel nos resgates. Mezes seguidos passavam
os prisioneiros no curral, emquanto a batida continuava por
2t
162 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

outros logares. O nome de Caiçara 1, persiste ainda, em cer-


tos pontos do Amazonas, mantendo o testemunho das violen-
cias passadas. A marcha da expedição era demorada. Compu-
nha-se a tropa de cêrê:a de mil pessoas, em mais de vinte' ca-
nôas, cada uma com dezeseis indios remeiros, quatro cavallei-.
"ros e outros tantos brancos, fora a escravaria tt. Com tamanha
comitiva era inevitavelmente demorada a viagem; o padecer
· dos indios, o mesmo que nas expedições particulares; a escas-
sez de mantimentos mais sensivel. Quando era no verão, e da-
vam numa praia coalhada de tartarugas, ahi se proviam de
matalotagem; na falta disso a pesca diaria mal suppria as ne-
cessidades. Dos selvagens tomados muitos pereciam á mingua.
Com os máos tratos, privações e doenças, não chegava ao Pará
mais da metade dos captivos; e neste calculo concordam to-
dos os testemunhos: das autoridades, elos missiÕnar{os, dos
moradores e dos chronistas. Chegando ao Pará, procedia-se ao
julgamento. Os theologos, por es".rÚpulosos que fossem, não ,
mandavam restituir nenhum á ' liberdade. A disputa versava
sobre conservarem os indios o nome de captivos, ficando em
poder dos colonos, ou tomarem o de fôrros, passando ao s_er-
viço dos regulares.
Estes ultimos, ainda que pro-forma murmurassem contra
as expedições clandestinas, abstinham-se de intervir directa-
mente. Não lhes tocassem nos indios das aldeias e era quanto
exigiam. Vieira tinha bradado contra os captiveiros, não qui-
zera trabalho productivo de negocios nas missões: outros tem-
pos, outros costumes! Era preciso exportar ~ cacau, o cravo,
a baunilha, para virem os· ricos paramentos, as imagens bem
esculpidas, as ferramentas para os obreiros. Quando sobravam
alguns generos dos que, para seu gasto, mandavam vir do
reino, vendiam-nos aos morado_res, .--:sem h1cro algum, diziam
· elles,-com estupenda ganancia, clamavam o·s adversarios. Na
ilha de Joannes, medravam as fazendas de creação. Nas aldeias,
os neophytos cultivavam a terra, lavravam canôas, faziam ser-
J

1 Vocabulo tupy: forte estacada no campo, servindo de curral.


2 Cavalleiros: indios de categoria nas aldeias, que mandavam nos ou·
tros, e nestas expedições serviam de ?Oldados.
CAMPANHA DE LIBELLOS 163

viços mechanicos; as mulheres fiavam e teciam, isto é, batiam


moeda, pois outra não corria no Estado. Mas tudo isto, sus-
tentavam, não era negocio; os bens terrenos applicavam-nos á
manu!enção das aldeias. Ali tinham o seu imperio, que que-
riam dilatar, como uma tentativa brilhante que era, como uma
esplendida conquista da fé. A isto tendiam seus esforços, e não
á satisfação da ignobil cubiça que seus desaffectos lhes expro-
bravam. Entretanto, apertf).dos entre uns e outros, padecendo
violencia de ambas as partes, eram os indígenas os sacrifica-
dos.
Em I 7 1 3, o senhor de Pancas, - como tal era Christovam
da Costa Freire conhecido no Estado - , pretendeu tornar-se
benemerito por mais um serviço aos habitantes, no assumpto
dos captiveiros. Já vimos que se o regímen, p·o sto em pratica
nos ultimas annos, satisfazia os regulares e pessoas abastadas,
o mesmo não succedia com a pobreza que, carecendo tambem
de escravos, não possuía os recursos pr'écisos, para armar as
canôas e fazer as entradas á propria custa. Representou a ca-
mara, sempre prompta na~ reclamações, sobretudo quando es-
tas podiam attingir os missionarias, e exi~iu o cumprimento
da lei de 1688. Moveu-se o governador, chamando á obedien-
cia os da Companhia de Jesus. Depois das costumadas tergi-
versações, propuzeram estes que os descimentos se fizessem na
forma da lei, collocando se .os índios em aldeias, juntoás cida-
des de Belern . e São Lui;i:. D'ali seriam repartidos, conforme
em todos os tempos se fizerá. Mas dilatou-se o campo em que
os interessados haviam de operar, suggerindo que pudessem
coagir-se pela força os mais bravio~ selvagens, a quem não lo-
grasse persuadir a palavra do missionaria, ou o attradivo, mais
convincente, das dadivas. Convocada a Junta de Missões, e
approvado o alvitre, foi a proposta remcttida para a côrte no
mez de , junho. Cuidavam os jesuítas illudir com ella o intento
dos moradores, difficultando, como sempre faziam, a entrega
dos indios; ficavam os colonos no proposito de retirar os mais
que pudessem, por meio das usuaes manhas ·e violencias. Uns
e outros esperavam em vão. O réquerimento levou parado por
· cinco annos no Conselho Ultramàrino, e só em I 7 I 8 teve des-
pacho.
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

III

Bernardo Pereira de Berredo foi o governador, que trouxe


este caso resoluto ao Pará. As novas determinações régias
concediam que se fizessem os resgates na fórma requerida, e
marcavam as condições. Os indios poderiam desce~-se de duas
maneiras: voluntariarpente, ou precedendo ameaças e pela
força. Com estas limitações, . todavia: «a primeira que se não
façam estes descimentos tanto á força, que hajã morte em ín-
dios>, salvo o caso de legitima defesa, que sempre os portu-
guezes haviam de ter; a segunda «que os que fugirem das
,• aldeias os não· possam matar, tornando-os a trazer». Ainda
mais: os que descessem .voluntariamente não seriam captivos,
ficando quem os empregasse obrigado a pagar-lhes salario.
Tudo isto dizia respeito aos que vivêssem no estado selva-
gem, andassem nús, não tive$sem fórma de republica, etc., o
que, na summula, extendia a clausula a todas as nações indí-
genas, ainda· não escravizadas t.
Taes disposições não foram comtudo julgadas bastante
latas, nem mesmo pelo proprio governador, que as trouxera
como dadiva aos povos por occasião de sua posse. L.o go em
março de 1719, Berredo convoca a Junta de Missões, onde se
toma um assento estabelecendo qu~, em vez de se descerem
os indios, como determinava a lei, para as aldeias, se trouxes-
sem logo para os engenhos e fazendas particulares. Para ·os
theologos e magistrados; que formavam a junta, isto não era,
por motivo algum,, contrario á lei. Pois se os tapuyas, pas-
sando pelas aldeias, sempre tinham de vir ao poder dos mo-
radores, que muito era se dispensasse esta inutil formalidade?
Por outro lado, afastava-se qualquer suspeita de escravidão,
declarando que os indios se teriam sempre por libertos, e re-
conhecendo os moradores « que o seu serviço não é nascido
do ~ominio _que tenham nelles, mas originado da applicação
que dos" mesmos se faz Pº.!" ordem 'de Sua Majestade ».

1 e. R. de _9 de março ~e 17i8.
166 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

IV

Em julho de 1722, chegou o governador João da Maia da


Gama ao Pará. A um capitão general manifestamente adverso .
aos missionarios ia succeder outro, que lhes era sem reser-
va affeiçoado. Com elle vinha um desembargador syndicante,
para, na forma do costume, tirar a residencia de Berredo, e
ao mesmo tempo averiguar o que havia, em relação aos capti-
veiros.
Tirou-se a devassa em que, como era de razão, alguns mo-
radores saíram .culpados. Com isto, sobresaltou-se a população,
havendo logo quem insinuasse que a ·syndicancia era obra dos
jesuítas, com que pretendiam desforçar-se de seus inimigos.
Fizeram-se conciliabulos; espalharam-se pasquins contra os
padres, aconselhando o povo a expulsai-os; finalmente tive-
ram logar os mesmos factos, que haviam precedido os. motins
anteriores. Entre os mais exaltados conspiradores punha-se
em evidencia Paulo da Silva Nunes, que, em reunião da· ca-
mara, apresentou uma extensa representação a favor dos ca- ·
ptiveiros e contra os missionarios. Estes ultimos, vendo-se em
perigo, appelaram para o governador, tambem por seu lado
já inquieto com estes successos. O visitador da Companhia
foi· a palacio e denunciou Paulo da Silva Nunes como cabeça
de motim. João da Maia mandou que a camara lhe remettesse
a representação, e, considerando esta sediciosa, mandou pren-
der o autor della na fortaleza da Barra. Tànto bastou para
desapparecerem, como por encanto, todas as velleidades de
revolta. Serenaram os animos irritados, e o desembargador
proseguiu em paz os inqueritos, nos quaes, segundo parece,
foram tambem achados em culpa alguns dos missionarios; -
«mas (allega Paulo da Silva Nunes), não fez o Conselho
Ultramarino demoristração alguma com os sobreditos padres,
e só contra os pobres moradores seculares, devendo ser egual
para todos a justiça> t.

1 «Repres. a El-Rei D. João v n, na Chor<JEr: Hist. Tom. m. cit.


CAMPANHA DE LlBELLOS

Este episodio da lucta entre os jesuitas e os colonos é


pouco conhecido. Delle sómente se encol!tra menção, e muito
resumida, em Varnhagen 1. Tódavia, a influencia destes factos
foi decisiva no futuro desenlace da questão. É o que, pela
continuação, se verá.
Calmados os animos, achou-se o agitador restituído á li-
berdade; mas já não era então para elle sem riscos a residen-
cia na colonia. O governador mostrara energia neste primeiro •
lance, e eram de recear outras violencias da sua parte. Deli-
berou, por essa razão, Paulo da Silva Nunes ausentar-se para o
reino: fuga devemos chamar á sua partida, que teve logar a
occultas e, por conseguinte, sem a costumada autorisação do
governador. O desejo de proseguir na lucta e tirar um. des-
forço de seus triumphantes adversarjos escurecia o sacrificio
da viagem. Dizendo-se procurador do Estado do Maranhão, o
fugitivo levava comsigo o rol das queixas, dirigidas ao mesmo
tempo contra os missionarios e o capitão general. Todos os
da sua facção, moradores mais conceituados, certamente inte-
ressados nos captiveiros, lhe tinham assignado o papel_2. Na
cõrte contava com o apoio ~e Berredo, seu antigo protector,
e dedarado opponente dos jesuitas.
Na representação, além dos factos articulados sobre o go-
verno do Estado e a perniciosa influencia dos missionarios, o
procurador allega seus merecimentos e a elevada posição, que
por espaço de dezeseis annos tivera na colonia. Primeiramente
soldado na guerra da Successã~, servira durante oito annos
como secretario do governador Christovam da Costa Freire:
os jesuítas diziam que fõra seu barbeiro, - mas uma funcção
não excluía a outra, naquelles tempos. Além disso, e prova~el­
mente como testemunho do agi.:ado de seu patrono, fõra_tam-
bem capitão-mór das villas da Vigia e de Icatú, superinten-
denté das fortificações e capitão da companhia de Privilegia-
dos. A. distincção deste ultimo cargo, que por si só era, na
colonia, um diploma de nobreza, juntava à de ter-se alllado,

1 Hist. Geral. Tom. n, Secç. XL.


2 Intitula- se: «Capitulas sobre os maos pi-ocedime11tos do Governador e Ca-
pitão Ge11ei-al do Estado do :J.Carat1b(TO». Ms. da Bibl. de Evora.
168 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

por casamento, á descendencia do valoroso Pedro Teixeira.


Tantas proeminencias, e os privilegios de cidadão do Porto,
aggravados pelo acto violento do governador, reclamavam des-
affronta immediata. E eram sempre os padres da Companhia,
origem destas perturbações no Estado 1 As leis e ordens de
Sua Majestade não se cumpriam. Os padres exerciam uma au-
toridade illimitada e despotica. Mandavam soldados, ás fazen-
das do~ moradores, arrebatar-lhes os indios, que haviam com-
prado com seu dinheiro; instigavam os creoulos, nascidos fôr-
ros, a deixarem as casas dos brancos, onde haviam recebido
creação; maltratavam de palavras e sujeitavam a violencfas os
moradores que, ainda com ordem, iam ás missões buscar gente
d_e serviço. Aos neophytos davam armas de fogo, com que fa.
ziani mortes nos 9portuguezes. Em certas aldeias, o missionario
tinha carcere, com grades de ferro, onde até os brancos mui-
tas vezes eram lançados em tronco e grilhões. E além do mal
1
que faziam aos vassallos, havia tambem o que praticavam di-
rectamente con~ra o soberano, communicando, por meio dos
barbaros, com as vizinhas possessões : dos hollandezes pelo
rio Negro; dos castelhanos pelo Solimões; dos francezes pela
costa do cabo do Norte; o que era expressamente prohibido
pelas leis de Sua Majestade.
A nada disto attendia o governador, deixando no olvido
as disposições do seu regimento, e tendo autoridade só para
opprimir os moradores, não para coagir os religiosos ao cum-
primento do dever. O commercio, que se fazia nas aldeias e
collegios da Companhia, tambem não ficava em esquecimento,
e dos ultimos dizia o procurador que - mais pa1·ecimn gran-
des alfandegas do que lagares de oração. Entretanto viviam os
moradores em grande penuria e desamparo, por falta de índios
com que acudissem á cultura das terras, e fossem recolher os
generos do sertão. O Estado, que podia ver-se tão prospero,
achava-se em vespera de ruína, que seria completa não lhe
-acudindo ~ua Majestade com promptas e efficazes providen-
cias. Essas eram apontadas em dezenove paragraphos da re-
presentação, e con~tituíam outros tantos artigos de libello, to-
dos desfechados aos missionarios, mesmo quando directamente
se referiam ao governador. Neste documento, primeiro da serie
com que Paulo da Silva Nunes de:u batalha aos jesuítas, acham-
CAMPANHA DE LIBELLOS

se condensadas todas as accusações, até ahi· sempre feitas, e


mais tarde repe,tidas contra a Ordem. As mesmas proposições,
ampliadas, discutidas, commentadas ; umas vezes copiadas á
1ettra, outras vestidas com forma diversa; em todo o caso
nunca attenuadas, ganhando talvez ma1s alcance com a repe-
tição; tal foi o valioso concurso, levado pelo procurador das
camara? do Pará e de São Luiz ~os adversarios, já numerosos,
que os jesuítas tinham na côrte.

Além da queixa contra o capitão-general, assignada por


todos os descontentes, que eram as pessoas mãis gradas da
colonia, não se descuidara Paulo da Silva Nunes de levar comsi-
go o documento que, lido em sessão da camara do Pará, fôra
uma das causas determinantes da sua prisão. Na côrte, viu-se
acolhido de braços abertos por Bernardo Pereira de Berredo,
que applaudiu e prometteu apoiar a sua obra. Presumido de
si, rancoroso, e ao mesmo tempo sincero na sua hostilidade,
como homem de idéas adiantadas que pretendia ser, o ex-
governador valia-se do prestigio do antigo cargo, para com
mais vantagem guerrear os jesuítas, contra quem, afóra as
eonvicções pessoaes, mantinha aggravos.
. O procurador do Maranhão ia: ser para elle um alliado pre-
cioso. Cqrno secretario de Christovão· da Costa Freire pene-
trara bem o mecha_n ismo do governo colonial; morador antigo
do Estado, conhecia o systema de vida da pop~lação e as ne-
cessidades locaes; era-lhe familiar toda a legislação relativa aos
índios, á administração das aldeias e ás obrigações dos mis-
sionados; possuía algumas noçõés de direito publico, e a phi-
losophia da época, citando com affectação de pedante os au-
tores sagrados e profanos, e usando de textos latinos com
mais frequencia que opportünidade. Se, como é provavel, na
facundia oi:_atoria correspondia á facil eloquencia dos escriptos,
não é de admirar que os ouropejs do seu talento deslumbras-
sem a ighorancia dos . colonos, muitos delles, é facil de crêr,
analphabetos. Por egual motivo, não hesitava Berredo em re-
22
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

cebel-o com favor, como um aproveitavel instrumento de seus


desforços. Ó escripto de Paulo da Silva Nunes é digno do
maximo apreço, como documento das idéas correntes ·no Es-
tado 'ácerca dos captiveiros, e prova da completa inefficacia
das providencias régias e dos esforços dos missionarias, que
tinham por objecto pôr a coberto os aborigenes da oppressão
dos moradores. As coisas tinham chegado a ponto que nem
se cuidava já de salvar as apparencias. As violencias confessa-
vam-se altamente, e os selvagens eram _considerados féras, en-
tes prejudiciaes, indignos de protecção ou piedade.
Começava o procurador por affirmar que os habitantes
brancos não pretendiam escravizar os indios, mas sómente
empregai-os nas fabricas e lavouras, pagando-lhes salarios,
sustentando-os, vestindo-os, e ensinando-lhes a doutrina christã
e bons costumes. Em seguida, mostrava a necessidade de se
forçarem ao trabalho, citando em abono da sua opinião a
Biblia e os padres da Igreja; escriptores pagãos como Pla-
tão, Virgilio, Plinio; e, mais autorisado que nenhum, christão
ou idolatra, o celebre Salorzano, cujas obras sobre o direito
dos indios constituiam o codigo fundamental da escravidão.
Divagando no campo da philosophia, o requerente dá-se a
investigar sobre a origem destes gentios: se, como pretendem
alguns, vinha dos judeus, captivados por Salmanazar, rei dos
assyrios, no tempo de Oséas; ou se a deverian;os prender á
descendencia de Cham. E, sem resolver, .inclina-se á opinião
dos que sustentam não serem elles «verdadeiros homens, mas
brutos silvestres incapazes de se lhes participar a fé catholica »;
com o que triumpha das razões dos missionarias que os pro-
curam christianizar. «Barbaras esqualidos, ferinos e abjectissi-
mos, ás feras em tudo similhantes, excepto na effigie huma-
na», eis o que taes entes são. D' ahi, com justa logica, pergunta,
annullanclo assim a argumentàção dos jesuitas, favoraveis á es-
cravidão dos africanos: «Se os ethiopes podem ser captivados,
porque não podem sêl-o os indios -do Maranhão?» Entrando
na apreciação das differentes especies de captiveiros, sustenta
que o dos indios não & cruel; peor se deve considerar o dos
christãos, -condemnados ao serviço das minas e· das galés.
«Pode mesmo dizer-se (accresccnta) que é mais oneroso aos
portuguezes que aos mesmos indios! » Finalmente demonstra
CAMPANHA DE LIBELLOS 171

que todo.s os bens do Estado . consistem no trabalho dos in-


. dios, não podendo haver fazenda mais fallivel que esta, por se
fundar na vida humana, principalmente quando «muitos mor-
rem por seu gosto como barbaros! » Observação cruel, e que -
por si só dá uma justa idéa da situação!
E, depois de allegar, ainda em favor dos captiveiros, que os
proprios missionados tiravam delles o 'proveito que recusavam
aos seculares, propunha se entregasse ás duas camaras de Be-
lem e São Luiz, como cabeças do Estado, o governo. dos ín-
dios, todos os quaes seriam livres, ganhando salarios, e empre-
gados no bem commum· e serviço dos povos.
Não ficou nisto o zelo de Paulo da Silva Nunes. A repre-
sentação fôra apenas, como .agora se diz, um balão de ensaio.
Nelle se pedia venia para apresentar mais propostas, cuja fiel
execução seria o remedio infallivel para todos os males da co-
lonià. Nisto acompanhara o procurador. a praxe, havia muito
seguida, pois era costume, cada vez que alguem ia requerer
sobre os indios, indicar as providencias que, na opinião sua e
das camaras, eram o seguro meio de promover o bem da corôa,
a prosperidade do Estado e dos moradores. E esse meio ·era
sempre, como sabemos, a escravidão, e a entrega das aldeias
ao governo dos brancos. Seguindo tambem as normas usuaes,
fôram acolhidas as propostas, e remettidas para informação ao
Conselho Ultramarino; e, da mesma forma que as anteceden-
tes, permaneceram sem resposta, soterradas na alluvião enorme
de papeis, sobre os q uaes o Conselho tinha de informar e re-
solver.
Por espaço de cinco annos ficaram esquecidas as propos-
tas. É, provavel que, no intervallo, trabalhassem os jesuítas, e
tambem os amigos do procurador, mas estes, distrahidos com
outros interesses, não tinham a força nem a pertinacia de seus
contendores. ·Nesse tempo PaulÔ da Silva Nunes, sem recursos
pecuniarios, pois deixara no Pará toda a sua fazenda, que
pouca seria; privado do apoio ,moral e do soccorro material
das camaras, já reconciliadas com o governador; repellido por
alguns dos proprios amigos, a quem suas repetidas instancias
haviam de enfadar; achava talvez já o empenho superior ás
suas forças, lamentava por certo ter-se embarcado nesta aven-
turosa empresa. Abandonado pelos antigos companheiros do
172 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Pará-Maranhão, escrevia ás camaras, pedindo-lhes novas pro-


curações, e dizendo ter já principiado requerimentos de grande.
utilidade.
Mas os membros do senado hesitavam em acceder a novos
pedidos, desanimados com o insuccesso da primeira tentativa
no Pará, e nada vendo resultar das apregoadas diligencias na
côrte. Da sua banda, os parciaes da Compan1!ia, justamente
receiosos, não deixavam de insinuar a origem plebeia e a es-
treiteza de meios do procurador; tanto que nunca servira na
camara, nem fôra contado entre os ddadltos ou próceres da
colonia. A isto devia attribuir-se a inutilidade de seus esforços;
e mesmo (observavam) era desdouro para a corporação o
terem ali mandado embaixador tão mesquinho. Desta maneira
se foi mudando a opinião dos moradores, a quem, além disso,
não esquecera ainda a violencia de que, no principio da con-
tenda, fôra victima o enviado.
O facto é que a primeira carta, em que este dava conta
de seus empenhos e solicitava a procuração do senado, foi
posta nas mãos do governador. Egual sorte teve outra, expe-
dida no anno seguinte; e, só depois de muitas instancias, em
que entrou talvez Berredo, como outros influentes da côrte,
a camara do Pará se resolveu a mandar-lhe os poderes, abo-
nando a quantia de cincoenta mil réis, para as despesas da
pretensão. Pela insignificancia da dadiva se pode julgar em
que apreço tinham os colonos os serviços do procurador.

VI

Era isto .em I 726. João da Maia da Gama continuava o


seu governo, de mãos dadas com os missionarios; e sem quei-
xas exorbitantes dir parte dos moradores. Tambem a corres-
pondencia com a metropole não mostra que fossem tomadas
em consideração as que Paulo da Silva Nunes produzira con-
tra elle. Logo em começo, expediu tropas de resgates; nos
dois triennios que governou, entraram no .fará, segundo allega
3370 captivos. Com este numero, e os que. provavelmente se
desceram, em maior quantidade, clandestinos, applacavam-se
.CAMPANHA DE LIBELLOS 173

as mais .urgentes necessidades dos habitantes. Foi durante o


. te~po desta administração que se navegou pela primeira vez
o rio Madeira, até Santa Cruz dos Cajubabas, e se fez a explo-
ração do Tapajós, abrindo novos sertões, de onde poderiam
baixar gentios e productos naturaes. Enviou-se tambem ·uma
expedição a descobrir os marcos da divisão de limites com os
francezes, e em ~odas estas empresas se occuparam índios e
missionarios das diversas religiões. Em 1727, a Junta de Mis-
sões resolveu que os moradores- á sua custa se reunissem ás
tropas de resgastes, sob .as ordens do cabo e missio~ario, de-
. cisão esta que a côrte approvou. Por outro lado, estava em
vigor, desde 1721, um assento para a introducção de escravos
africanos, -peças da India-, por conta da corôa, taxado o
preço em 160 mil réis por cabeça.
Tudo isso devia contribuir para trazer quietos os .animes,
sempre promptos a exaltarem-se nesta questão de interesse
vital; mas, embora sem explosões notaveis, a hostilidade en-
tre jesuítas e colonos persistia, sem que os. ultimas jamais sa-
ciassem a cubiça da desejada fazenda viva, que era afinal a
unica e mais productiva riqueza dO' Estado. .Assim, em certa ·
occasião, representava a camara de Belem que, ficando os
mesmos missionarias muitos annos nas aldeias, era motivo de
se applicarem mais aos interesses temporaes que aos da reli-
gião, e por isso se deviam mudar todos os annos. Em 1725,
um tal Francisco de Potflis, promettendo descobrir jazidas au-
ríferas no Tocantins, pedia se lhe concedesse uma escolta de
cem índios, doze so_ldados e dezoito moradores, com dois ca-
pellães por elle nomeados, e não missionarias, para evitar as
perniciosas praticas destes aos selvagens. As reclamações con-
tra a teimosia dos jesuítas de sómente falarem com os indios
na língua tupy, começavam a ser a ttendidas, e o governo de
Lisboa positivamente recommendava se lhes ensinasse a lin-
guagem portug\.ieza. Nada obstando, porém, fados estes sym-
ptomas de permanente reacção, o poder dos j esuitas conti-
nuava firme na colonia.
174 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

VII

Em 1728, após seis annos de governo, recolhia João da


Maia da Gama á côrte, sendo substituído por Alexandre de
Sousa Freire, amigo de Berredo, e como t;.il da parcialidade
adversa á Companhia. Este governador carteava-se com Paulo
da Silva Nunes, a quem chamava-meu amigo muito do meu
coração, e tanto apreciava o zelo do enviado das camaras que,
emendando a parcimonia destas, não hesitava em estimular-
lh' o, com algumas dadivas em moeda. Por ahi se mostra que,
se a influencia do antigo secretario era já bastante poderosa
para suscitar tropeços aos missionarios, a situação material
em que se encontrava não era tão prospera que o dispensasse
da humilhação das esmolas.
Em uma das occasiões escrevia-lhe o governador, justifi-
cando a remessa: - « As camaras desta cidade são pobres,
mas eu por ellas offereço a Vossa Mercê esses cem mil réis,
que cobrará por essa ordem minha. Perdôe Vossa Mercê o
chasco, mas tudo isto nasce de querer dar parte a Vossa Mercê
de todos os meus particulares e contas (referia-se áos diversos
negocios que -expunha), para que ouvindo falar nellas saiba o
que hade responder, e _aonde se hão-de procurar, se as quize-
rem sumir no Conselho. »
Já nesse tempo não era, pois, Paulo da Silva Nunes unica-
mente procurador do senado: representava o governador, de-
fendendo-lhe os actos, e advogando-lhe os interesses -particulares
ante as pessoas de valimento na côrte. Passando de mãos na
colonia a suprema autoridade, com o prestigio desta ganhara
importancia o pauperrimo enviado, e pela carta acima se re-
conhece ter já relações no Conselho Ultramarino, poden_do
accudir ás représentações prestes a sumirem-se ali, mediante
a poderosa influencia dos adversarios.
Alexandre de Sousa Freire, que já como o seu antecessor
estivera no Brazil, e andava pretendendo um Jogar no Con-
selho, acceitara o governo do Maranhão, esperançado de gran-
gear o applauso da côrte e as sympathias dos moradores.
Para conseguir estas ultin:ias, confiava na lei nova, que tra-
' CAMPANHA DE LIBELLOS. 175

zia, sobre os indios, promulgada a instancias suas, e pelas in-


dicações de Berredo e Paulo da Silvá Nunes. Trabalhando
todos juntos, tinham afinal obtido o decreto de 13 de abril de
1728, que ia ainda ser motivo de novas reclamações.
A satisfaçã? que se dava agora ás exigéncias dos colonos
consistia em se permittir, como assentara a junta, convocada
por Berredo em 1718, que os índios baixados se podessem
logo repartir entre os habitantes, satisfeita préviamente a for-
malidade da matricula. Mas havia restricções, quanto ao nu-
mero de pessoas e tempo de serviço, que haviam de limitar-se
ao absolutamente _indispensavel, e attendendo á edade, forças
e aptidão de cada· um para o trabalho. Além disso, satisfazen-
do o novo .decreto um dos votos formulados pela referida junta,
rejeitava terminantemente o outro, de mais alcance, declarando
que os descimentos se fariam por autoridade publica, e nunca
por iiuciativa particular. Ainda assim, uma circumstancia tor-
nava de summo valor esta providencia: o affirmar-se que fôra
passado o decreto em satisfação aos povos, representados por
seu_procurador.
O effeito foi o mesmo que dez annos antes se tinha visto.'
Recebida a nova da recente lei com luminarias .e outras mani-
festações de regosijo publico, em breve a illusão se dissipou.
Tinha-se divulgado, ·a principio, que o governador levava ordem
_d e abrir incondic;ionalmente os sertões, e conceder licença a
todos que quizessem ir aos índios. Quando porém se conhece-
' ram as disposições sobre a forma dos descimentos, desvane-
ceu-se o enthusiasmo dos habitantes, e com e~le a popularida.,.
de do governador. Então este, seguindo o exemplo de Berredo
convocou a Junta de Missões; expôz duvidas na comprehensão
da lei, e declarou que, na sua idéa, qualquer pessoa podia
baixar Ôs índios; impetrando licença delle governador; e que
neste sentido se devia entender a clausula de serem os desci-
mentos só por autoridade publica.
Foi o parécer admittido pela junta, não obstante a impugna-
ção do padre Jacintho de Carvalho, visitador da Companhia;
e este mesmo afinal votou a favor, receanjo, segundo dizia,
que o seu voto contrario fosse m?tivo para violencias do povo
exaltado. Mas a opposição dos missionarias não se limitou ao
pare~er, em conselho; e ao mesmo tempo que, em .Lisbóa,
. 1

OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

representavam cÕntra a interpretação da lei, no Estado recu-


savam fornecer os indios, que haviam de tripular as canôas e
constituir a força das expedições. Nem os habitantes tenci.o-
navam aproveitar.se da faculdade outorgada pela junta. Por
mais vivo empenho que tivesse Alexandre de Sousa Freire de
conciliar a bemquerença dos moradores, não se atreveu a dis-
pensar, na organização dessàS empresas, a presença do missio•
nario, que lhes dava caracter legal; e isto era o bastante para
escurecer todas as demais vantagens da concessão. Desta arte ,
ficaram sem effeito as disposições do governador ,que, usando
do expediente antigo, preparou uma tropa de resgates, por
cujo esforço se baixaram alguns indios, ficando o sertão asso-
lado com as depredações do costume.
- E xpediram-se estas novas, com as queixas dos desilludi-
dos,. a Paulo da Silva Nunes, que não ·tardou em apresentar
dois outros requerimentos ao rei, . em nome dos moradores do
Estado. No primeiro, que é um libello contra os missionarios,
repetia o alvitre de os retirar da ·administração das aldeiast
pondo nellas cabos portugztezes, brancos, casados, que, entre
outros assignalados serviços - « assistam aos índios nas doen-
ças, applicando-lhes alguns soccorros medicinaes » t . - No se-
g undo, rejeitando o parecel' da Junta de Missões, ultimamente
convocada por Alexandre de Sousa F reire, pedia se mandasse
observar como lei o assento de Berredo, cuja execução desde
I 7 I 8 ficara pendente da appl'.ovação régia, e ·só em parte fôra
admittido pela ultima resolução.
Já vimos que, se o alvará de 1728 1 pelas suas Festricções,
não correspondia ao. intento dos moradores, o de 1718, mesmo
sem a interpretação forçada da junta, tornava mais absoluto
o captiveiro, que era em ultima analyse seu objecto principal.
A distincção, que de nenhum modo os colonos tambe m que-
ria·m admittir, estava em que, pela lei nova, os índios, consi-
derados livres, sómente dos treze aos cincoenta annos de
edade eram obrigados a servir; ao passo que, pela antiga
lei, da mesma fórma nominalmente fôrros, não se lhes con-

Cf. o requerimento em M ELLO M ORAES, Chorogmphia híslorica,


tom. 1v, pag. 297 e seg.
CAMPANHA DE LIBELLOS i7'j

tava o limite da edade, e ficavam portánto escravos toda a


vida.
Em cima destas petições que, mandadas informar pelo
procurador da corôa, tiveram parecer ·contrario., apresentou
Paulo da Silva Nunes a repetição das propostas de 1724, que
havia cinco annos tinham · parado no Conselho Ultramarino.
_ As_- propostas eram as seguintes : a primeir.a que se prohibisse
. aos religiosos o governo temporal, politico e economico das
aldeias; a segunda que se puzesse em vigor a resolução de
1 7 I 8 ; a terceira que se vedasse aos missionarios continuarem
a instruir os selvagens na lingua geral; a quarta que os regu-
lares não se oppuzessem á visita de inspecção do Ordinàrio;
a quinta e ultima que se mandasseni cada anno para o Estado
cincoenta casaes de gente das Ilhas, para com ella se povoar
o sertão e haver mais braços empregados .na agricultura.
Já e1itão o padre Jacintho de Carvalho se achava e~ Lis-
boa, sem duvida chamado do Maranhão, para rebater os ata- •
ques· de tão encarniçadÓ adversario. Não menos adestrado na
lucta que Paulo da Silva Nunes, o visitador, respondendo lar-
gamente ás àccusações, fez na mesma ·occasião um protesto
contra a ·forma pela qual o governador entendia a faculdade
dos descimentos. Conhecida a questão nas suas linhas princi-
pacs, offerecem pouco interesse os argumentos de uma e de
outra parte. Eram os missionarios incriminados pe1os morado-
res de praticarem actos de cubiça é violencia; com eguaes in- "
crepações lhes retorquiam os padres. No fundo, todo este ba-
talhar versava ~ obre o dominio dos i.ndios, e tanto uns co~o
outros abertamente o confessavam. Queriam-no ·para si os ha-
bitantes, ç:ontando assim viver ein farta ociosidade, grangeada
com o trabalho dÓs infelizes que captivavam. A . situação era _a
mesma que no tempo de Vieira, com a differença que o sup-
primento das peças do sertão ia sempre ming.uando. Ainda as-
sim, havia casas onde se encontra\•am cincoenta, cem, ás vezes
duzentos e mais escravos. - «E. destas, (observa teste munha
ocular) seria a mai.or quantidade, se' não fossem os índios tão
·_sujeitos a mortandades» i . Os missionarios, de seu lado, que-

.1 Vej. Informações e parecer do desembargador Francisco D~arte dos


Santos, em MELLO MoRAES. Obra cit. Tom. IV, pag. 123 e seg.
23
. OS JESUITAS NO GltlO-PAlú.

riam, se possivel fosse, sequestrai-os do contacto dos brancos:


por tal razão procuravam vedar as entradas destes nas aldeias;
por ella não ensinavam a língua por.t ugueza, allegando ser tão
diffi.cil que só o trabalho de aprendei-a afugentava os neophy-
tos; pela mesma, emfim, creavam obstaculos ·a todas quaritas
medidas do governo tivess.em por objecto abrir o sertão, e
franquear as estandas dos selvagens aos assaltos de desen-
. freados captores.

VIII

O padre Jacintho· de Carvalhó, defendendo-se de conheci-


dos golpes, nada mais tinha a fazer que renovar a argumenta-
ção de seus predecessores, entre estes Vieira, de todos o mais
atilado e eloquente. Suas razões foram bem acolhidas pelo
procurador da corôa, que condemnou as providencias aconse-
lhadas em Junta de _Missões, e da mesma forma recusou a in-
terpretação da lei, tal qual fôra publicada na colonia pelo go-
vernador. A licença, concedida por este aos particulares para
baixarem os índios, em expedições separadas, não era válida~
Tambem não se podia admittir que elles fossem obrigados a
servir dos I 3 aos 50 annos de edade, como se tinha ~ecidido,
· porquanto as leis reaes determinavam não estivessem fóra das
aldeias, por mais de seis mezes annualmente. A conclusão foi
que as ponderações do padre Jacintho de Carvalho se !emet-
tessem á Junta das Missões, e se explicasse ao governador
como devia proceder;-naturalmente de accôrdo com ellas.
Ainda desta vez_ os jes.uitas levavam a melhor e, triunÍ-
phantes, multiplicavam os acintes e adas de opposição ao
governador e ás camaras do Estado t.

t Os seguintes ·papeis redigidos pelos missionarios dão idéa do vigor


com que se empenhavam na lucta:
Em' 16 de setembro de '1729: R,equerimento do padre José Lopes, pro-
posto do vice-provincial d; Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, a
:
Alexandre de Sousa Freire, em que representa e protesta contra as extorsões,
hostilidades, injustiças e inauditos desatinos, que tem praticado os moradores
CAMPANHA DE LTBELLOS

Uma tropa de guerra, .enviada ao Rio Negro, deu logar a


numerosas reclamações. Outra,' que se e~pediu do Maranhão
contra os . bravios tremembezes, encontrou tambem formidavel
opposição dos missionarios. E não eram u!licos os jesuitas em
embaraçar as empresas contra os barbaros: .E m geral, cada
uma das religiões procurava defender o territorio onde lhe to-
cava· evangelizar. Dos frades ·do Carmo queixava-se Alexandre
de Sousa Freire d~ terem-lhe sumido, no cartorio respectivo,
a deva~sa, que servira de' pretexto á gtierra decretada ~ontra
os indios do Solimões t.
Entretanto, trabàlhavam os jesuítas em Lisboa pela rem9-
ção do governador. Em 1731, terminando o triennio, pensa-
vam se lhe .desse substituto; mas . acharam.:se illudidos em
suas esperanças. Então, incertos já do futuro e receando pelo
desfecho da lucta, mudaram de tactica, convertendo · a inimi-
zade em humilhação servil. No Maranhão, onde se achava o
'"governo, o vice-provincial da Companhia foi á resídencia do
capitão-general, a cujos pés se lançou, pedindo esquecimento
dos· aggravos feitos. Não se póde pôr em duvida a exactidão
do facto, relatado em carta intima do governador a Paulo da
Silva Nunes. Passados poucos dias, sellarani-se as pazes em

nas aldeias dos índios, auxiliados pela tropa commandada por Belchior Men-
~ ~~~; .
Em 19 de setembro: Represeµtação do mesmo a El-Rei, sobre as inso-
lencias que tem praticado Bel~hior · Mendes de Moraes, cabo da tropa de.guerra·
do Rio Negro nas povoações de índios;
Em 6 de outubro: Requerimento pedindo se ponham em liberdade to-
das as peças, captivadas pelo mesmo;
Em 7 de outubro: Requerimento pedindo certidão da sentença que se
proferiu contra os tapuyas, na devassa que contra elles se tirou, para se lhes
dar guerra;
Em ·6 de setembro de 1730: Requerimento do vice-provincial, dizendo
que lhes são nece~sarios ~raslado's de todos os requerimentos que fez o pro-
curador dos índios Alexandre Camello de Azevedo, sobre os escravos que se
vendt;;!ram, e sobre a tropa de guerra de que é cabo Belchior Mendes de
~oraes. •
(Ms, da Bibl. Nac. de Lisboa. Collecção intitulada: Papeis relativos ao
Pard e Maranhão).
1 Representação do Govemado1· do Estado do .Maranhão. Ms. da Bibl. de
· Evora.

·•
-,
180 OS JESUITAS NO GRÃO-PARA

publico, com urna festa offerecida pélos jesuitas. Represen-


tou-se uma tragi-cornedia, tendo por assumpto a concordia, e
rematou o congraçamento pelas homenagens da comrnunidade,
áquelle de quem se tinham declarado ante!) irreconci!iavei?
adversados. ·
. É provavel que, sem err bargó de taes demonstrações, os je-
suítas continuassem a machinar contra elle na côrte. O facto .
é que, no anno seguinte, lhe foi nomeado successor. Alexandre
de Sousa Freire retirou-se da colonia desautorado e resentido,
deixando após si grande numero de descontentes, como consta
da queixosa representação, que em defesa de seus actos diri-
giu ao soberano.
O chefe de esquadra José da Serra foi o seguinte capitão-
general, e tomou posse em julho de I 732. Não tardaram a
. romper contra elle as hoo::~ilidades dos jesuítas, entre as quaes
terminou a existencia e o governo.
Das pazes, ou melhor tréguas, ajustadas entre Alexandre
9e Sousa .Fre!re e os regulares, havià resultado fazerem estes
certas concessões na pratica dos descimentos. Sabemos que,
apesar das prohibições da rnetropole~ muitas expedições não
autorisadas tinham logar. Outras vezes os particu.lares, que
munidos de licenÇa acompanhavam a tropa de resgates, afas-
tavam-se desta para mais a commodo praticarem suas razzias.
Desta fórma evitavam que o missionado da tropa julgasse
da boa razão dos captiveiros, consoante os regulamentos. I?es-
cíam os índios sem essa formalidade, e no collegio do Pará
se procedia .ªº exame· e ao registo. A esta pratica se oppu-
nham agora os jesuítas, allegando que os selvagens, intimida-
dos por seus captores, se declaravam licitamente escravos,
quando só o eram por viole~cia.
A razão era procedente, e só admira que os padres, tão
conhecedores do assumpto, não a tivessem percebido antes.
Os moradores é que não acceitaram sem protesto a innova-
ção. Reunidos os principaes em sessão da camara, dirigiram
ao governador, que ainda estava em São Luiz, uma extensa
representação. Neste documento, as queixas são formuladas
çom energia; a linguagem é altiva, _e deixa facilmente ver a
irritação de que se achavam possuídos os colonos, tão foespe-
radamente feridos por seus incansaveis antagonistas. O requ~
CAMPANHA DE LIBELLOS 181

rimentõ termina por uma intimação arrogante: « Ao Pará e a


todo o Estado do Maranhão (diz a Camara) já lhe não .ser-
vem as mantilhas em que o achou nascido o Regimento das
Missões. É necéssario que el-rei Nosso Senhor assim o conhe·
ça, para lhe perinittir as ·grandezas á proporção dos seus em-
·pr;;,gos. Assim o _esperamos, e que Vossa Excellencia, contem-
plando estas verdades tão manifestas, nos continue o mesmo
amparo e sôccorro com que Alexandre de Sousa Freire, ante-
cessor de Vossa Excellencia, se lembrou desta capi~ania . para
. , seu augmento e da fazenda real, com a concessão dos resga-
tes de índios » 1. ·
As grandezas, a que nesta objurgação alludiam os morado-
res, eram a escravid.ã o dos índios sem limite. o capitão-gene-
ral pensava com elles, senão em tudo, ao menos no que dizia
;espeito aos missionarias. É . plausível que a representação
fosse redigida com audiencia e de accôrdo com José da Serra;
e assim se explica o tom arrogante da mesma. Pelo menos, os
jesuítas assim o acreditaram e, de toda a maneira, é certo que ·
immediatamente lhe declararam guerra. A pugna foi de uma
e outra parte ~ egualmente vivaz. Os padres, mal acolhidos no
Conselho Ultramarino, queixaram-se directamente ao rei; o
Santo Officio interveio condemnando o proceder de José da
Serra; e este, doente e succunibindo aos desgostos, falleceu
no Pará, quando a · situaçã~ lhe era mais do que nunca incom-
portavel. Pouco tempo antes de expirar, quando o sangravam
perguntava aos enfermeiros: se o sangue trazia por acaso a
\ côr de alguma 1-oupeta r

IX

Todas e::stas dissensões acabaram- finalmente por abalar a


inercia do Conselho Ultramarino. Havia tambem a questão
aberta com o -prelado da diocese, ácerca da jurisdicção nas al-
deias, objecto de já antiga e irritante controversia; a discussão
sobre o pagamento dos dízimos, que os jesuítas obstinada-

1 Representação da Camara em 2 de setembro de_r732.


182 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

mente recusavam; e as denuncias do commercio que faziam,


não já clandestino, mas abertamente exercido, e até com os-
-tentação. Bastará dizer-se que em São Luiz vendiam _em talho
·proprio a carne de suas fazendas, conforme a camara repre-
sentara em 1729. E não era esse o unico' negocio: no Pará
tinham-no avultado,- contra o que os hab!tantes incessant~ -
mente reclamavam. Em 1734 foi, pois, nomeado um desembar-
gador, para indagar das arguições, e dar parecer sobre os re-
querimentos de Paulo da Silva Nunes, retidos no Conselho Ul-
tramarino.
A diligencia surtiu favoravel aos regulares. É possível que
no animo do syndicante actuasse a influencia poderosa da
Companhia. Talvez a real interpretação dos factos fosse pre-
judicada por informes. colhidos entre os innumeros desaffectos
que Alexandre de Sousa Freire deixara, e os que José da
Serra já contava, no Estado. Em todo o caso, para um espirita
recto e uma intelligencia penetrante, a hesitação não era pos-
sível. A sujeição parcial aos missionarias era incontestavel-
mente mais proveitosa, e sobre tudo menos cruel, para os indi-
genas, que o absoluto domínio, com tanto ardor ambicionado
pelos colonos. O desembargador pronunciou se sem ambages
contra estes: entregar-lhes a tutela dos indios, remov-endo-a
dos padres, seria um crime; a tal se fazer, em poucos annos
restaria das aldeias sómente a memoria. E . os factos se encar-
regaram de provar mais tarde a veracidade do asserto.
Da accusação de mercadejarem patenteia o syndicante o
maximo empenho em absolver os jesuítas. Era certo compra-
rem elles muitas fazendas; mas remettiam-nas para as aldeias;
para o gasto da numerosa população de conversos ; e, se
alguma vez, por lhes · sobrarem, ou cedendo a rogos, veu:.
diam pequena parte dellas, nunca isso era por mais do que
custavam.
Negando o trafico nas mercadorias do reino, o desembar-
gador admitte que os religiosos se davam ao de productos do
sertão. Elles proprios confessam que regularmente aprestavam
e expediam canôas para tal fim ; nem podiam contradizer fa-
ctos notorios, e que constavam dos livt:os publicos de registo
ainda hoje existentes. Mas varias certidões juradas, reunidas ao
processo de synd.icancia, mostram que, sobre o valor dos pro-
CAMPANHA DE LIBELLOS

duetos recolhidos, ha_via exaggero.na denuncia. Mas, que o não


houvesse-, deduziam d'ahi os padres um argumento valioso
contra a facção opposta: s·e o negocio do sertão parecia ser.
lhes a elles mais rendoso, era porque os seculares o descura-
vam, buscando para os seus barcos a carga de indios, com
violencia escravizados, de preferencia ás drogas, licitamente e
pelo trabalho honesto adquiridas.
Entretanto, o desembargador pronunciava-se contra esta
pratica. Queria que, isentos de toda a . preoccupação de lucro,
os religiosos deixassem as negociações, e os índios se appli-
cassem a tarefas, que revertessem só no interesse seu proprio.
Desta sorte se evitariam escandalos e invejas, e os missiona-
rios seguiriam de mafs perto os dictames do evangelho. Depois,
se aos governadores e mais func~ionarios não eram permitti-
das tae;; grangearias, ~orno hav.iam de o ser áquelles que, em-
bora sob outro caracter, exerciam tambem um cargo de go-
. verno; e a quem os Canones, sua lei particular, egualme.nte
as vedavam? Seu voto era pois que toda ~ mercancia cessasse,
e da Fazenda Real e çontribuição dos ·moradores se abonas-
sem congruas, para sustento dos missionarios, manutenção do
culto e assistencia aos indigenas. Não desdizia isso muito da
prática do primeiro tempo das missões, que Vieira, o glorioso
1

fundador, afastado dellas, ainda·muitos annos depois, recom-


mendava. Mas em Lisboa'. o Provedor da. Fazenda e Ó Procu-
rado_r da Corôa manifestaram-se de opinião diversa; a maioria
do ~onselho Ultramarino acompanhou·os ~ e desta forma os
jesuitas tiveram ensanchas de alargar esse commercio, que tão
exprobrado lhes havia de ser depois ·i,

, ~-·
Desta vez os je~uitas:<i)~deram 'julgar-se, para sempre, a
, t:oberto dos golpes do -seu encarniçado adversario. Entretanto
~ão succedeu assim; e Paulo da Silva Nunes, não desanimando

l Cf. a Chronica da Companhia de Jesus na vice-provinda do Mara-


nhão, Liv. m. Cap. 26-Ms. anonymo da Bibl. Nac. de Lisboa.
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

ainda, após onze annos de privações e revéses, continuava· a


trabalhar contra elles, com o mesmo fervor inquebrantavel
dos primeiros dias. Interesse, odio, capricho, é difficil apontar,
qual destes moveis seria mais poderoso no animo do procura-
dor. É presumivel que o amor proprio; estimulado pelas der-
rotas, fosse o acicate mais vivo; nem de outra maneira pode-
ria comprehender-se tão incansavel persistencia na lucta.
Ainda em 1734, e animado. sem duvida pelo despacho
que obtivera para os dois 'requerimentos ultimos, Paulo da
Silva Nunes intentou vibrar um golpe decisivo, condensando
em um memorial todas as arguições contra os jesuitas, ao
mesmo tempo que apresentava um plano, pelo qual se poderia
alcançar p~ra o Estado a prosperidad~, ·até ahi por elles . im·
pedida.
O memorial dividia-se em quatro partes. Na primeira, fazia
a descripÇão historica e geographica do Pará-Maranhão, e nar-
rava as controversias com os missionarios, detendo-se . princi- ·
paimente no . periodo agitado da assistencia de Vieira. Na se-
gunda parte, impugnava as opiniões e actos dos jesuitas, reca-
pitulando as accusações, que corriam impressas, dos mais ar-
dentes adversarios da Ordem. Na terceira, transcrevia a Monita
Secreta, ·odiosa invenção do seculo anterior, acceita ainda hoje
como authentica por intendimentos cultivados, cuja illustração
devia pôl-os ao abrigo. da fraude. Na ultima parte, propunha
os meios mais adequados, segundo a experiencia de muitos
annos, a melhorarem a situação da colonia.
Na idéa do autor, este pap~l, onde accumular:a todos os
materiaes recolhidos em tanto tempo de lucta, devia ser como
que um vas.t o edificio, construido em partes, agora reunidas
num esforço arroja~o e poderoso. Ahi se lêem trechos da pri-
meira representação, contra João da Maia da Gama; das pro-
postas de 1724; dos requerimentos feitos depois. Estas repeti- -
ções augmentavam o volume do Mllo 1 sem prejuizo da ori-
ginalidade, por isso que os terars:' e o proprio objecto das
queixas, deviam estar já de ha muito esquecidas. Desta arte
todos os capitulos de accusação_ se renovam, tomando vulto
pela approximação reciproca; e, ao mesmo tempo, os factos
isolados podem julgar-se symptomas de uma conspiração per·
manente, e de longa data, contra os direitos da corôa e dos
CAMPANHA DE LIBELLOS iss

povos. As citações de autores, adversos á ordem, estabelecem


um élo forçadô, e"ntre os acontedmentos domesticos e os ex-
tranhos, e, com isso, a presumida conspiração se torna unjver-
's al, e parece ·p ôr ~m risco a existencia da sociedade civil, em
todo o mundo christão.
Num tom p~angente e affectado se extende o rol dos quei-
xumes, por muitas paginas. Os religiosos, com o seu largo ne-
gocio, prejudicavam ·grandemente o commercio legitimo ;-ainda
mais com o privilegio de não pagarem dizimos á Fazenda
Real. Apoderavam-se das terras da corôa, -e expulsavam os
partjculares das suas p'roprias_. Praticavam violencias contra os
índios, fazendo-lhes perder a natural doçura e costumada sub-
missão, a ponto de se rebellarem, trucidando sacerdotes; até
mesmo durante a missa. Tinham por habito fazer-se temidos
dos .indígenas e dos brancos, servindo,-se de valentões assala-
riados; d'ahi resultav,a m sérias escaramuças, entre a gente dos
,, _missionarios e as tropas de resgate. Da aldei_a de Guaricorá foi
uma destas repellida - « com dezeseis armas de pederneira e
duas pecinhas de artilheria ». Não ensinavam a lingua portu-
gueza aos neophytos, e assim conseguiam _guardai-os alheios
á influencia da. verdadei.r a civilizaçã~. Na côrte, intrigavam no
Conselho Ultramarino os governadores desaffectos, consoante
haviam feito a Christovam da Costa Freire, Bernardo Pereira
di. Berr~do e seu successor.
Tal era, em resumo, o famoso libello, em que o in~itulado .
procurador do Maranhão amontoara, com todo o seu ·odio, 'o s
argumentos, que mais adequados lhe pareciam, á ~ictoria da
causa a que se consagrara. Melhor avisado, reflectiu porém que
tamanho acc.umulo ,de leitura era, para ~ habituaes delongas
do . Conselho Ultramai,-ino, a ~ais accessivel desculpa, e, refa-
zendo a ~inuta, só no anno seguinte apresentou a memoda,
. reduzida á parte primeira, mais _commedida na linguagem, e·
alterada. a ordem da argumentação e. documentos. Em appen-
dice, juntou uma curio~a e extensa relação dos bens e rendi-
mentos das ordens religiosas, no· Estadq ,t.

- - 1 Intitula-se: «Calculo do importl!ni:issimo cabedal, que embolsam os


RR. missionarios e communidades, das negodações que fazem com os índios
e .índias
. . aldeias chamadas missões,
, nas - nas cidades, villas e fazendas que teem
24
i86 OS JÉSUITAS NO GRÃO-PARÁ

Não obstante ·toda a vantagem da posição dos jesuitas, era


difficil que tantos e tão bem dirigidos esforços· não viessem
por ultimo a fructificar. A questão dos dizimas era um dos_
melhores argumentos, que contra elles poderiam invocar-se. o
pleito com o bispo, a cuja autoridade não queriatn submetter-
se, -presagiava-se tão grave e escandaloso, como o que se dera
antes, sobre .o mesmo objecto, nas missões do Paraguay. As
camaras continuavam a pedir que se. puzessem cabos brancos
nas aldeias. Tudo isto complicava a situação, aggravada pelo
orgulho dos missionarias, que em nada queriam ceder, ao
passo que as ordens régias, expedidas nos ultimas annos de
Dom João v, deixam ent:ever que as missões do Pará já não
encontravam, na côrte, o mesmo cego favor dos tempos pas-
sados.
O echo destas contendas _chegou até Roma, e o cardeal
Passionnei, que, realmente, governava em nome de Benedi-
cto XIV, fez expedir,_ em dezembro de i741, o breve Itnmensa ~
Pastor11m, aos bispos do Brazil, condemnando a escravidão
dos índios. Esta severa reprovação seria, como depois se pre-
tendeu, espécialmente dirigida contra os jesuítas, ou _fôra inspi- .
rada pelo abusivo proceder dos seculares? -Cada um dos cam-
. pos decide cóntra o adversa.rio, e o propriQ Pombal parece dar .
razão á Ordem, asseverando que fôra suspensa nos domínios
portuguezes a publicação do mandamento pontificio, "p ara im-
pc:;dir tumultos inevitaveis da parte dos colo~os.
Esta razão é pouco acceitavel, desde que, em these geral, -
a corôa portugueza sempre repellira os captiveiros, ao menos
em apparencia, e, nas comminações do papa, encontrava ap<;>io
ás suas leis. PelÔ c traria, os jesuítas, ei:nbora· defendessem
contra os colonos o principio da liberdad~, acceitavam na pra.,.
tica os captiveiros. Em Roma tinham adversarias, a quem não
podiam ser occulto13 seus feitos na America do Sul. Portanto
é verosímil que, ainda dest~ vez, por sua influencia,_a bulla~ fi-
casse demorâda, _e por ~ltimo esquecida, em Lisboa; e nisso
não teriam obstaculo, indo seu proprio interesse de par com .
o interesse dos colonos.

no Estado do Maranhão, 'etc.»-Ms. da Bibl. de Evóra, i~p. na Gborogt'.


Hi$t., tom. n, pag. 474.
CAM~ANHA DE; LIBELLOS 187

O ultimo tentamen -de;; Paulo da Silva Nunes é de 1738;


Desta ·vez renoya, com maior extensão, as proposta~, que de-
viam salvar o Estado dp Maranhão da imminente ruína, com
a mesma linguagem, as · mesmas queixas,_ as -mesmas aspira-
ções dos escriptos anteriores.
Este e outros documentos ficaram sepultados, por mais
dezesete annos, no Conselho Ultramarino, até que, em 1 7 5 5,
.um dos escribas de Pombal os trouxe á luz, reunidos em co-
. pioso volm;ne, com o titulo .suggestivo de -Terrz"biNdades Je-
·suitz"cás no governo tÍ'El-Rei D. joão - V t:. É po~sivel que
Paulo de C~rvalho, que foi amigo de Berredo, e sem duvida
conheceu o procurador, se lembrasse da existencia do' libello,
e mandasse proceder á busca no sobrecarregado archivo. Certo
é que deite fez grande cabedal o' ministro, na sua desabrida
campanha contra ·os jesuitas. '
- Vale a pena saber..se que ás .mãos delles tinham ido parar
·os rascunhos da maior parte, 'senão de todos estes P<!-peis.'
Entregou-lh'os o proprio autor,' a troco de soccorros pecunia-
rios, recebidos no carcere, aonde o levaram dividas, actos de
burla, e, sem duvida, perseguições· de adversarios, que qifficil-
mente perdóavam. Por espaço de~ oito annç_>s curtiu elle a sua
miseria nas enxovias do Limoeiro, em Lisboa, de onde sómen-
te saíu para a · cova.
. Bernardo Pereita de Berredo, esse abandonando as estereis
e não raro odiÓsas intrigas, em que andarà envolvido, acceitou
o governo de Mazagão, em Africa. Sem tempo para algo que
_ não fosse a guerra de todos os dias, ·contra os b;rberes, ali se .
cobriu de gloria, ganhando honrosa fama. -ntre as tribus do
- d eserto, cujos chefes, de vez em quando, p" 'iam treguas, para
no seu' enthusiasmo nobremente cavalheiroso o irem saudar,
como inimigo, sempre invencível nos combates, e sempre ma-
gnanimo na victoria.

1 Ms. ·da Bibl. Nac. de Lisboa, Arch. do Conselho Ultramarino.


.)


CAPITULO VIII

A SITUAÇÃO NO SECULO XVIII

I. Resenha das povoações do Estado. Põpulação indigena. Condições econo-


micas. Meio circulante.-11. As ordens religiosas. Prosperid~de dos je-
suitas. Commercio dos missionarios. Os dizimos. -III. Os trabalhos dos
indios monopolizados- pelos 1 padres. Organização mercantil das missões.
Rect:.rsos das mesmas na sua fundação. Augment9s posteriores. Oecaden-
éia do zelo antigo. - IV. O mercantilismo reprovado pelos geraes. Sua
desculpa á luz da razão. - V. Rivalidàdes com o diocesano. O governo
de ·Dom João v contrario.

,JNDA no· segundo quartel do secul~ XVIII,


quando já · esta nova phase da contenda havia
começado, a situação material e politica. da
colonia era a mesma do período anterior. Na
vasta extensão do territor· , ao longo ' da· costa,
desde os limites ultimos do Ceará até ao rio de Vicente Pin-
~zon, e, p_elo Amazonas a~ima, até fronteiras de Castella, não
mais que nove povoações de brancos, dignas desse nome, se
podiam contar; e tres dessas eram villas de donatarios, em
extremo de decadencia e abandono t. Os beneficiarias das

t « Repres . . a . El-rei Dom João v. » . cit. As povoações de donatarios


eram a de Cumá ou Alcantara, Caeté e Cametá. A corôa pertenciam as cí-
dades de Belem e São Li:iz; as villas da Môcha, no Piauhy; Icatú e Ta-
puytapéra, no Marll:nhão; Vigia, n~ capitania paraense. Anno_s depois, mais
·.
190 OS JESOITAS NO GRÃO-PARÁ

doações viviaín na metropole, indifferentes ao destin~ de suas


capitanias, onde a jurisdicção, ·que lhes era propria, coarctada
pouco a pouco pelos governadores, se tornava meramente no-
minal. As vezes, elegiam estes ultimas os capitães-móres, esbu-
lhando os donatarios cresse privilegio,. o mais importante dos
poucos, que ainda .prevaleciam. A villa da Vigia, que seu pro-
prietari<> deixara, por improductiva, reverter á corôa, qão con-
tava mais de setenta e cinco homens válidos, na gente livre;
a de Caeté apenas trinta t. Cametá, tão florescente nos dias
, em que, abundando ainda os escravos, ali se preparavam as
frotas, para as viagens de exploração e resgates, caíra em las-
timoso desamparo. De uma provisão de 1731, se vê achar-se
a povoação abandonada, sem casa de camara nem cadeia; a
igreja erma e ameaçando .ruina. Os moradores viviam longe
do povoado, em suas roças, e o capitão-mór .applicava a la-
vouras proprias os índios, addictos ao servisro da villa, em vez
.de empregal-os com proveito da communidade.
As aldei~ de iÍldios .mansos, que eram os centro.s de oµde '
havia· de irradiar a civilização, em todo o extenso .Amazonás,
seriam para mais de sessenta. Ahi ·se agglomeravam os -restos
das nações menos bravias, desapparecendo a olhos vistos, ao
contacto dos brancos, e ' sob a influencia fatal da escravidão.
Por uma avaliação posterior, pode-se computar em cincoenta
.
mil almas, approxim.adamente, o numero desses . . indígenas
. i,
,, ~.

accen~ada era ainda a· decadencia: «As. villas de uma e outra jurisdicção,


consistem em quatro existentes: Môcha e Tapuytapéra no Maranhão, e a
Vigia e Cametá, no Pará. De duas que tambem houve, apenas se conservam
reliquias, que nem rnerdem a denominação de Jogares». -Conquista recupe-
rada e liberdade 1·estituida ·por José Gonçalves da Fonseca, Ms. da Bibl. Nac.
de Lisboa.
1 Prov. de 15 de maio de 1721. Archivos do Pará.
2 «Compõe-se este 'bispado (do Pará) de sessenta e tres aldeias, admi-

nistradas• todas pela maneira seguinte : dezenove pertencentes aos religiosos


·da Companhia de Jesus, quinze aos religiosos do Carmo, nove aos da pro-
víncia de Santo Antonio, sete aos da provinda da Conceição, dez aos da
provinda da Piedade, e tres aos religiosos de Nossa Senhora das Mercês. No
que respeita ao numero de pessoa:s, de qu~ ellas se compõem, nã_o posso in-
formar a Vossa Majestade com certeza, porque sendo Vossa Majestade ser-
vido mandar, por muitas ordens, que os missionarios me dêem todos os annos
listas juradas dos indios das aldeias, não me foram presentes este anno mais
A SITUAÇÃO NO SECULO XVIII 191

Os outros, mais barbaros, embrenhavam-se em sitios recondi-


tos, pro~urando debalde defender · a liberdade com que, só
longe do alcance dos europeus, poderiam contar. Mortífera epi-
demia, que por espaço de sete annos assolou o sertão, veio
juntar seus estragos aos males de ~utra categoria, com que
se despovoava o territorio. Eni 1743, começou a 'lavrar na ca-
_pitàl, e·~ breve trecho se propagou pelo interior1 fazendo in-
n umeras victimas, principalmente em indios e mesti.çps. Até
17 50 durou o· flagello e, quando então se fez a conta, apuran-
do as perdas, verificou-s_e a da maior part~ cÍos .indios, que vi-
viam nas aldeias, e quasi todos os escravos das ordens religio-
sas. Eni 1749, pela s~mana santa, o governador mandou ·pro-
ceder a um summario recenseamento, aproveitando a época
em que grande numero de lavradores deixavam suas roças
pela cidade, onde faziam menos constante moradia. Verificou-se
que, de novecentas c'asas; existentes no perímetro urbano, ~sta­
vam quatrocentas e cincoenta deshabitàdas. Não será excessi-
vo avaliar em cêrca de vinte mil a somma das victimas, só
entre os. índios .d ómesticados, porque ascenderia a muito mais
se lhe juntassemos a provavel mortandade dos que, inteira-
mentê. selvagens, vagueavam foragidos nos mattos i.
;..-

que as do C~rmo e da Compangia, e nestas não incluem mais que os indios


.
capazes de trabalho, exceptuando velhos e rapazes; porém, pelas noticias, que
tenho adquirido, creio que algumas tem oitocentas e~ mais almas, e 'que ne-
nhuma terá menos de cento e i::incoenta».-lnformaç#i9 do governador Fr:an-
cisco Xavier de Mendonça Furtado á Me~a da Consciencia. Archivos do Pará.
Estabelecendo, pelos numeros acima, a.JUédia· de quatrocentos e setenta e
cinco individuos para cada aldeia, chegamos a perto de trinta mil; com que,
se addicionarmos vinte mil, to~l provavel das victimas da epidemia, que
grassou nos ultimos annos, anteriores á informação, alcançaremos a quantia
do calculo.
1 «Entrei na diligencia de saber formalmente o numero de p_essoas que
morriam, e só pelas listas das aldeias, que a Vossa Majestade · apresento,
consta fallecerem nellas, e nas fazendas dos religiosos desta cidade, o numero
de 10:777, que, junto com 7:600 dos moradores desta cidade, importam em
18:377, não entrando as innumeraveis fazendas desta capitania, nem as viÍlás
da Vigia, Caeté e Cametá, e as mais pessoas que andam dispersas pelo ser-
tão, que, fazendo uma proporcionada conta ou oi:çamento a todas, hão de
chegar a 40:000».-0fficio do governador Francisco Pedro Mendonça Gurjão
ao Conselho Ultramarino, 13 de agosto de 1750. Archivos do Pará. ·
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Esta medonha provação, caíndo sobre as populações indi-


gehas, dizimadas por mais de um seculo de guerras, captjvei-
ros e hecat9mbes de toda a sorte, vinha a ser a cabal ruina
dos colonos. Por deficiencia de obreiros, as colheitas perdiam-
se na terra, o solo arroteado transformava-se em baldio, e as
drogas cubiçadas do sertão corrompiam-se, ao abandono na
mata. A farinha de mandioca, sustento ordinario de todos,
triplicou de preço. Diminuíam as rendas publicas. Faltavam os
serviçaes para as obras e commissões do Estado. Gemiam os
moradores, entre a oppressão da propda miseria e as exigen-
cias de um fisco insaciavel. Sem recursos de capi~aes, que
houvessem trazido para a colonia, ou creado por meio .de pru-
dente economia; incapazes de esforço pessoal e de perseve-
rança, nos duros lavores agricolas; contemplavam inertes a
progressiva desapparição de seus bens. Se os indios, e outra
gente de côr, succumbiam por effeito da molestia, os brancos
definhavam á mingua do necessario. Neste universal . descon-
solo, para tão grave damno, um só remedio parecia -efficaz: o
mesmo de todos os tempo-s, indicado por Antonio Vieira, pre-
conizado pelos governadores, e com empenho ·requerido pelos
colonos, c~da vez que a penuria de braços indígenas· mais
asperamente se fazia sentir. Era a i~portação de negros de
Cacheu, da Costa da Mina, e da Guiné, conforme solicitava
em 1750 o capitão general t. Já quasi despovoado o immenso
Amazonas, recorria-se agora ao continente africano, _inexgota-
vel. O sangue e o suor dos captivos era ainda, como em
outro seculo proclamava Vieira, a só· riqueza, ·o unico objecto
a que tendi~m as ambições dos colonizadores. Mais adiante
vamos ver que as reformas, intentadas em outro reinado_, a
beneficio dos índios, se orientavam. por eguaes dictames de
egojsmo e oppressão.
Falseada nô espírito de colonos e governantes a idéa- de
sua missão civilizadora, e dos interesses particulares e do Es·
tado, naquellas terras, .é pouco de ·extranhar que as risonhas
promessas dos prim_eiros · temp_?s se não tivessem, ao cabo de
tant~s annos, cumprido. Do que respeita á vida economica,
tudo falt~va quanto era capaz de promover-lhe o adianta-

• 1
Officio de 13 de agosto de 1750. Archivos do Pará.
A SITUAÇÃ.O NO SECU LO XVIII 193

menta. Primeiratnenté actividade, ê o inais rudimentar esj:;iiifo


de iliiciativa, nos habitantes que; passados já tem annos, ador-
meciam ainda na mesma inercia, que lhes exprobara Vieira.
Absolutamenté .entregues á exploração do indio, nada sabiam
nem podiam fazer, senão por elle e com elle. A tudo o mais
sê conservavam indifferentes, e desta arte viviam num estado
so'Cial, que mais racionavelmente se podia dizer -semi-barbaro
que de povoação civilizada. Como no tempo do grande mis-
sionario, não havia nem mercado, nem loja, nem se1~v'içaes de ·
condição livre.• que mediante salario se podessem contratar.
De par com isto era a carencia de boa moeda um peI'tlla-
nente. e insuperavd estôrvo ao progresso economico t. O corii-
mercio externo, limitado a infrequentes relações com duas ou
tres praças do reino, fazia-se por esc~mbo directo_dos generos
da terra, com as .mercadorias importadas; todavia, nas trans-
acções de menos vulto, e nas pu~amente locáes, força era re-
fe"rir -os valores a uma unidade constante, representada essa
por algum 'objecto que, passando de mão em mão; e ger.al-
mente recebido, .t ivesse a faculdade de adquirir cousas mate--.
riaes, direitos e serviços, que é ·a caract~ristica de todo o meio
circulante; e esse objecto tinha ' de se eleger entre os produ-
ctos da colonia. Assim se fez, · como- sabemos, na primeira

«_Pelo que ·toca ao economico, necessita-se aqui de tudo o que com-


põe a furidaçã'o de uma republica, porque aqui não se vive em commum
- mas em particular, sendo a casa de cada habitante ou ·de cada régulo destes
uma republica, porque cada um tem nella todos os oHicios, que compõem
aquella, como pedreiros e carpinteiros, barbeiros; sangrador,. pescador, etc,, ...
e, por isso, não ha indios, que bastem para o serviço destes pretendidos senho-
res, para o que, concorrendo tambem a falta de moeda, são infalliveis e geraes
as privações; põrque, não .havendo nada de venda' em tenda ou mercado,
sé padece geralmente. Aqui não ha homem de ganhar, nem besta- de aluguel,
porque são taes os habitantes_que, tendo cavallos e muitos gados, não cár-
regam nada nestes por falta de uma albarda, nem se servem daquelles por
falta de uni abçgão e .um carreiro, que lhes faça um carro e metta nclle os
· bois. Tudo ha de carregar na cabeça dos pobres indios ..• ; emfim os· caval-
Ios andam desferrados, porque não ha ferradores, e, consequentemente, em
adoecendo morrem, ··o u em mancando, ficam aleijados, porque todos andam á
solta, sem haver um só, que se recolha cm estrebaria >>.~Carta do governador
José da Serra ao cardeal da Motta, de 20 de agosto de 17j5. MELLO MoRAES,
Chorngr. Hist., Tom". li pag. , 164.
25 .
-194 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

sazão da 'conquista; assim continuou a pratica mais tarde,


quando o progredir, posto que lento, inevítavel, das negocia-
çÇíes, já demandava outros commodos. O algodão, em novellos
e rôlos .de panno, foi a moeda mais em uso; 'depois .-delle, e
para quantias maiores, o cacau e o cravo 1 • Por vezes se ten-
tou pôr em circulàção as especies de cobre, mas o costume
inveterado, e o proprio bom senso dos habitàntes, levavam-nos _
a preferirem os productos, com o·valór real, que representavam,
é immediata utilidade nos 'usos da vida. Nem logravam des-
vanecer essa justificada repugnancia as asperezas da lei. Com-
mipava esta as penas de degredo e açoutes, contra quem re-
jei.tasse a moeda., a que o Provedor da Fazenda balc:iada~ente
intentava dar curso _no Estado 2. Muito violentados, os nego-
ciantes acceitavam por fim o desapreciado metal, mas só pela
metade do valor' inscripto no cunho 3 e, não obstando as dili-
gencias do governo, o algodão e o cacau continuaram a ser
por muitos annos o prinCipal e quasi exclusivo instrumento
das permutas -'. -

1 «Todos os preços se ajustavam ordinariamente por varas ou rolos. de


panho, libras ou arrobas d.e cacàu, a vara de panno a ·200 réis, a libra de
cacau a 360».-Relatorio do desembargador syndicante Frandsco da Gama
Pinto. Archivos do Pará. ·
2 Bando de 28 de junho de 1726. Archivos do Pará.
3 Bando de 23 de março de 1727, idem. -

4 Só em 1750 começou a circular moeda metallica no Estado, por uma


determinação anterior, de 13 de setembro de 1748, remettendo-se pela pri- ·
meira ·vez da metropole 80 contos de réis, dos quaes 2.5 para a capi!ania do
Maranhão, e 55 para a do Pará. Ficou d'ahi por diante prohibido continua·
rema correr por dinheiro os generós, que como tal giravam. Todavia, não se
realizou sem difficuldade a substituição. Como no Maranhão não houvesse
as drogas, a troco das quaes o governo de Lisboa determinava se d°Csse ao
publico a nova moeda, permittiam as ordens régias se ;cceitasse ouro em pó.
Tambem esse não se encontrava, e o governador Mendonça Çiurjão teve dé
abrandar as disposições da lei, facilitando a permuta por algodão, em fio ou
tecido, que era mercadoria mais commum. Cf. Officio do governador ao Con-
selho Ultramarino, 13 de setembro de 1750. Archivos do P;rá.
As novas moedas era~: de cobre o vintem, de prát'à a pataca, de ouro
as de cinco e dez cruzados. Prohibia-se leyar para o reino este dinheiro, cha- .
mado da jrovincia, e os passageiros, que tinham algum, entiegavam:..n9 ao
caixa do navio, para receberem em Lisboa o equiyalente em moeda da' Eu-
ropa. Cf. ANSELM EcKART, Zusaetz..e z..u Pedro Cud/J1tllS Besclweibutig von Bra-

'"

/
,.j
'>
A SITUAÇÃO NO SECULO 'xvm 195

I '

II

Se a colonização secular, por uma erronea comprehen&ão


do seu. objecto,_e mercê das praticas viciosas, continuadas de
geração em geração, mal podia sustentar-se; a outra, a cargo

'l
das ordens religiosas, tendo, ao menos na apparencia, mais
alto escopo, que a simples cubiça e a tyrannica dominação so-
bre os indios; a outra, dizemos, medrava a blhos vistos, e, na
sua prosperidade, constituia assumpto de escandalo e inveja
dos pauperrimos moradores , e dos governantes, impotentes no
seu esforç<?, de levantarem a communidade do abatimento em 1
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f
\
que jazia. Alguns destes tinham querido, por vezes, medir for-
ças com a poderosa Con1panhia de Jesus, que possuia, por assim

/.
dizer, o exclusivo das missões; mas infallivelmente, como te~
mos visto,
.
saíam vencidos ; e assim, por amor á vantagem' do
posto, e para tranquillamente gozarem das commodidades
delle, no curto prazo de tempo, que lh'o davam a explorar,
preferiam , viver . em paz com o que reputavam inimigo social,
.·~, ...
'

reservando-se para, 'd e regresso -ao reino, irem avolumar com

l,)_
r.e latorios, ém que os exaggeros ··n ão e~cluiam inconcussas ver-
dade,s , o_immenso ról das_. queixas, accumuladas ~ontra os mis-
sionados, no ' succeder de gerações. . ·
Usando elos mesmos processos de captiveiro e domfoio,
~'
applicados· pelos seculares, os padres logravam accrescentar
os seus estabelecimentos, ao passo que os..dos simples colonos '

minguatam, até ,á e~trema decadencia. Escravos eram os in-


dios em poder destes, como no daquelles, e em an;ibas as par-
tes o trabalho ~iolento. Não era talvez men'or a tyrannia do l...
rdigioso, nà missão, que a do lavrador, rta fazenda. Mas o des-
interesse pessoal d'o sacerdote fazia o ponto divergente, de
onde partiam o~ caminhos, dos quaes um levava a obra em-
ptehendida á existéncia vivaz, o outro conduzia ao marasmo,

silien, no volume Reisen eimiger M issionarien der Gesellscbaft J esu, Nu rember~


1785. Todo este trabalho do padre Eckart consta de interessantes e copiosas
noticias· sobre o Pará. '•


os JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

vancia da lei t ; debalde as cartas . régias, em termos severos,


lembravam aos infractores que elles tambem eram vassallos;
o abuso jámais se cohibiu,
Igual desprezo acolheu providencias ulteriores, _com refe-
rencia aos dízimos. _Crescia a opulencia das communidades,
convertenc:io em escandalo a dispensa, a principio justificavel,
dos tributos. ' Não era licito á corôa permanecer por mais
tempo indifferente ás necessidades do thesouro publico, que
na colonia carecia de rendimentos, nem surda ás __reclamações
dos hàbitantes, indtados da inveja, e feri~os, em seus interes-
ses, tanto mais vivamente quantó maior era a extensão do pri-
vilegio. Estabeleceu-se, _portanto, que continuasse i~enta do di-
zimo a producção das fazendas, cujos reditos tinham servido
de base ás primitivas fundações; mas as propriedades, adqui-
ridas mais tarde, por compra, doação ou legado,_sujeitavam-se
ao imposto, entrando assim. na lei commum 2. A resistencia
dos interessados, a esta nova orelem de cousas, sem demora se
manifestou em protestos ruidosos. O rendeiro dos dizimos,
atemorizado pelas ameaças, não ousou realizar a cobrança, e
desistiu da parcella. Desta vez o governo da metr-0pole obrou
com firmeza, mandando ao Provedor da Fazenda, na capita-
nia, proseguisse na execução que o pusilanime arrematante
abandonara 3• Sem emb.argo deste acto de insolita severidade,
a desobediencia prevaleceu, permanecendo em ~igor a praxe
antiga: os religiosos. continuaram a não pagar os dízimos.

III

Um abuso, contra o qual governantes e simples cidadãos


mais· instantemente reclamavam, era o de empregarem os mis-
sionados grande n-umero de indios, excedendo o que por lei
lhes era concedido, na extracção das drogas, e em lavores do

1
C. R. de 20 de novembro de 1699, e outra~. Vej. Catalogo dos ma-
nuscriptos <!a Bibliotheca Publica Ebore1ise, Tom. 1.
, 2 e. R. de II de janeiro de 1701. Bibl. de Evora.
' 3 e. R. de 16 de novembro de I 702. Bibl. de Evora.

f
200 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

- .
não é licito, á Íuz de um .justo criterio, impôr-lhe por isso
algum deshonroso labéo. É certo que os canones da Igreja
romana, as leis do proprio instituto, a idéa que da vida reli-
. giosa, "no christianismo, fazemos, declaradamente Ih' o vedavam.
Mas já vimos que, nesta parte do Novo Mundo, elles eram co-
lonizadores; a obra, que haviam emprehendido, tinha caracter
temporal, e, nessa qualidade; sómente com. os meios temporaes
se poderia realizar. A sociedac;le religiosa era, pois, tambem
mercantil. Tinha, nos centros de catechese, feitorias; nos mis-
sionatios, caixeiros, regentes agrícolas, ou directores industriaes; •

J e todo o systema se movia ao mando do gerente, que era o


procurador da província, em Lisboa, effeituando as transa-
cções finaes, recebendo o producto das vendas, presidindo· ás
operações de contabilidade. ·
· Por teste~unha bem informada (Francisco Xavier de Men-
donça, càpitão-general em I 7 50), sabemos como se realizava
o jogo das negociações. O methodo era tão simples como
efficaz e adequado ao seu fim. No Pará, fazia o procurador das
missões l!ma nota do que, para cada uma, lhe seria necess<:rio
mandar vir do reino, e esses objectos, á chegada, eram carre-.
gados ao missionado pelos preços . da terra. Pelos mesmos se '
lhe marcavam tambem os generos, que os indios produziam,
de suas artes rudes, lavoura, ou extrahidos da floresta; e o
lucro, pela differença dos. preços, revertia em favor da com-
munidade. Emquanto se esperava a frota, á proporção que as
-drogas entravam -do sertão se recolhiam em armazens, existen-
.tes no CoJlegio, e ali (diz o mesmo informante) «desde que
os navios _d ão fundo no porto, até que completam sua carga,
se conserva uma feira grossíssima» i. Parte dos generos se
vendiam logo aos mes.tres de navios e commissarios vindos
do reino, e o restante, que fazia a menor porção·, se embar-
cava com a marca e em nome da Companhia, ou com. a de-
claração de suppostos donos, consoante atraz se mostrou.
Bem longe vão os tempos em que o creador das missões,
Antonio Vieira, cbm tanta vehemenda interpellava seus adver-
sos, para Ih~ demonstrarem quaes _os inter~sses munda~os da

1 Officio de 23 de maio de 1757 a Diogo de Mendonça Córte Real.


Archivos do Pará.

(
A SITUAÇÃO NO SECUL-0 XVlll 201

- ,
~ua - Ordem. Mui diversos da actual opulencia tinham sido os
principios_da fundação . .QtJizera_Dom João IV dotai-a com lar-
gu~za, e assim teria feito, sem a resistencia do superior, que.
'se oppunha. A congnia estabelecida foi de 3 50 mil reis an-
nuaes, para dez sujeitos ; mais 420 mil, para .os gastos da via-
gem, e 7 56 mil para provimento das igrejas. Com isto se
partiu Vieira de Lisboa, á conquista de terras -extensíssimas e
centenares de nações populosas -; tão rico, a seu ver, como se
levara já cõn1sigo os thesouros, que, outros por tantos annos
debalde buscavam no interior das mesmas terras. Sua con-
fiança, nos actuaes e futuros r'ecutsos da empresa, denota, com
a simplicidade de coração,_a grandeza de um'alma· por inteiro
consagrada a altissl.mos fil1s. . «Logo Sua Majestade, como
tem promettido acúescentará mais a renda, e não faltarão
pessoas particulares que nos àjudem com suas esmolas ... » 1 •
- Assim falava elle, e achando pingue de mais, para as neces-
_sidades, o apanagio dos · seus padr~~. cuidava já de elevar o
numero delles. Para mantença de cada um no Maranhão basta-
vam, pelos seus calculas, vinte e cinco mil "réis, e assim das
sobras poderia sustentar ~ais quatro ou cinco. A isto accrescia
o seu ordenado como prégador régio; e, em ultimo caso, sendo
preciso, «resolver-me-ei a mandar impriinir · os borrões de
meus papelinhos », dizia 2. Das rendas da Bahia e Rio de J a- .
neiro era pago -o subsidio .régio, que em uma e outra parte
_os collegios empregavam cm assucares da ·sua lavra; e, vendi- .
dos estes no Maranhão, com o ganho -augmentava considera-
velmente o valor primitivo deste auxilio. Em bens de outra
especie, possuíam os jesuítas no Mâranhão um engenho ao
abandono, reliquia de seu primitivo estabelecimento, com pou-
cos escravos, e num'ero diminuto de gados.
·Em todo o tempo de Yieira, o cabedal da fundação não
variou sensivelmente dçsta pc~uria. Expulsos os jesuítas, em
1661, verificou-se que, além do engenho, ' toda a fazenda que
possuíam ·não valeria mais de dois ·mil cruzados; Attribuiam-
lhes seus' adve~sarios terem grangeado, ·no espaço de nove
annos, - cêrca de cincoenta mil cruzados, o que permittia aos
. .
Carta ao provincial do Brazil. Lisboa 14 de nov~mbro de 1652.
2 Idem. ·
26
,,

204
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08. JESU!TAS NO GRé:_PARÁ.
.. . . -.
.. 7'~?p. ~'. - •' ~ ·d-~;

· não só isto; o governo de Lisboa mudava dç opinião ácêrca '


. dos padres e~trangeiros, e já na carta régia da partilha re-
commendava a admissão delles no districto da 'companhia
_«pelo grande fervor de espírito com que se empregam», sem
duvida superior ao dos naturaes.
Isto não obstant<;, continuam a . reclamar sobre a fallencia
de .me.ios pecuhiarios. Em 1692, representando o superior João
Filippe Betendorff, a Dom Pepro I~, a extrema penuria em que
se encontravam as missões, obtem que o subsidio seja elevado
a 950 mil reis de congrua perpetua, para trinta religiosos,
sem prejuízo das deixas dos fieis; e esta provisão duroll até ·
final.
Não se pode com segurança affirmar que fosse injustifica,da,
naquelle momento, a mingua que o superior in_vocava. ·com-
tudo, se exceptuarmos os tempos de Vieira, em que este, com ·.
~ sua robusta fé, considerava mais que sufficientes os recursos
que possuía, foi pratica sempre adoptada por estes religiosos
confessarem pobreza.' Desta n?rma não se afastavam jámais;
nem mesmo quando se viam forçados a convir na grandeza .·
de seus réditos, porque então allegavam dividas e ef!cargos,
que elles não pastavam a satisfazer. No entanto não era esta
no assumpto a pecha unica; factos, com o mesmo relatados,
iam trazer aos jesuítas consequencias mais graves.

IV

Poucos annos decorridos, vamos colher os m1ss10narios em


flagrante delicto de negociações indebitas, cond~mnadas pelo
geral. ·
Temos· de oppôr aqui .º testemunho de Miguel Angelo
Tamburini, ás palavras de seu successoi Lourenço Ricci, no

quinque patribus consultoribus, tam male consuluerint etiam honori societa-


tis, ut deseruerint nouen missiones in flumine Amazonum, prout ferunt litt,e-
rre R.ª V.a Non istique hic est spiritus Societatis, nisi valde spurius. Quis
crederet.unquam homines Societatis dereliquisse missiones difficiliores, ut eas
'occuparent religiosi alterius religionis?» - Roma, 8 de janeiro de 17ox.

f
2o6

licito suppôr que os altos poderes da Companhia houvessem


julgado calumniosas e indignas de toda a crença as denuncia- '
ções, em tal materia. O que pensaremos, vindo a.saber que, nos
proprios archivos da Ordem, existiam provas que do geral não
podiam ser ignoradas e contra elle depunham? ·
No que toca ás missões do Pará, certos factos, reputados
de mau exemplo, tinham anteriormente preoccupado a atten-
ção dos superiores. Por differentes vezes, Tamburini criticara
o proceder de se~s subditos. Já, antes de sua accessão ao ge-
neralato, apontara como abuso, que os sec\,llares reprehendiam,
empregarem os missionarios os indios na colheita do cacau
silvestre, de que mandavam abundantes cargas para os colle-
gios. Entretanto, não prohibe tal em absoluto" recommendando
sómente se faça por Íntermedio do procurador _do ~ofiegio,
para não dar aso a escandalo e murmurações f. Eleito ao
mais elevado posto da Ordem, seu modo de enéarar o assum-
pto não muda: verbera o:ardor demasiadó; que os religiosos
consagram a resguardar interesses materiaes, e diligencía mo-
o
derar-lhe desejo das riquezas, de que se mostram condemna-
velmente animados. Em cartas successivas, dirige aos padres
do Pará identicas reprehensões. Sabe que os missionarios arre-
cadam no Collegio quantidades grandes de cravo e cacau, pa-
recendo antes mercadores, que homens de egreja, e recom-
menda que suas ordens a tal respeito sejam cumpridas !. Já

citudo pastoralis ojficii; e a mais recente, de Benedicto XIV, de 25 de fevereiro


de 1741, confirmando as anteriores. Estes documentos veem citados por Sal-
~anha, e trasladados nos pontos capitaes, em seu Mandamento.
1 « Habuimus nostros Missionarios colligere indorum opera et condu-·
cere caca um ad collegia. R.a V·ª ordinet, ut missionarii id minime pra::stent,
ne sa::culares scandalisentur : quod tamen non prohibemus, si veniant ea fa-
cienda per P. Procuratorem collegii, sine scandalo ac murmuratione. »-Carta
de 8 de janeiro de 1701, ao padre Antonio Coelho, superior do Maranhão.
- Trasladada por extenso em a nota C, no appendice, como .outras, que des-
vendam párticularidade5 de egual interesse, sobre a~ missões do Pará.
2 «Et sciat sa::pius ad nos pervenisse quod missiona:rii, prresertim pa.:.
raenses, conducant ad CoÜegium ita magoam quantitatem gariophylli et ca-
cai, ut videantur mercatores, et non sine scandalo srecularium. R.a V.a videat
nostras litteras hâc de re scriptas ad suos ·prredecessores, et exequater ilias
ordinationes. »-Carta de 21 de fevereiro de 1711 ao superior do Maranhão,
~r extenso in fine.

f
NO SBcirt.O XVIII 207

tem escripto do grave c:_scandalo, que dão com similhantes pra-


ticas, e comtudo não vê emenda; consultem entre si os de
mais graduação, sobre o adequado remedio, ~liás elle, de seu
proprio arbitrio, providenciará, ainda que d'ahi provenham
damnos temporaes. Censuravel é tambem, e causa irritação
aos moradores, o empregarem _os religiosos mais do que os
vinte e cinco casaes de índios, concedidos por lei para o ser-
viço de cada missão, accrescendo que seria indecoroso á Com-
panhia-·ser isso levado ao conhecimento do rnonarcha, pel85
adversarios della t. Tendo fallecido dois n:iissionarios·, que dei-
xaram avultado deposito de cravo e cacau, permitte que re-
mettat?- estes gen~ros para Lisboa, e o lucrÓ se ponha a ju-
ros, para com o producto occorrer ao gasto das duas missões;
comtanto que não se · comprem bens de raiz, o que poderia
excitar novas murmurações contra ~ riquézâs da Companhia 2.
Sobre o abuso de excederem o numero de índios de ser-
• 1
v1ço, outro geral, Ignacio Visconti, insiste depois 3 . Seu ante-

«Srepius scrips\mus de gravi scandalo, quod nostri dant externis in-


conducenda ad Collegium, prreserti1n paraense, maxima quantitate cacai et
gariophylli maragnonensis; et tamen nondum visa este mendatio. Unde R.ª
V.a cum P. Visitatore audiant consulrores, et efficacissiml.!m adhibeant reme-
dium; aliter'nos illud adhibebimus, etiamsi exinde resultet aliquod damnum
temporaie . .• Se~enissimus Lusitanire Rex cóncessit, ut qui.l ibet missionarius
posset habere ad suum obsequium viginti quinque indos uxoratos; sed nos-
tri, cum gravi nota externorum, utentur pluribus indis. Quapropter R.a V .• in
ho<; diligenter invigHet; nam -prreterquam quod id fieri non debea!; esset ma-
ximum dedecum Societatis, si idipsum deferretur p~r nostros adversarios ad
Serenissimum Regem. »-.-Carta de 22 de outubro de 1712, ao P. Ignacio Fer-
. reira, superior, idem.
2 « Prredecessor R.'l. V .a ·ad nos scripsit, quod missiones Canuma et Aba-
caxis, mortuis P, Francisco Xaverio Maloves et P. Laurentio Homem, habe-
bant in Coll .o Páraensi 400 congios cacai, et 600 gariophylli, ab aliis separa-
tos, proponebatque an illre merces forent mittendre Ullyssiponem, quorum
lucrum poneretur ad cens1,1111, ut inde emerentur necessaria pro illis missio-
nibus? Concedimus facultatem ad hoc, ducrimodo in Lusit.ª non ema1itur
stabilia, ne srecular!'!S magis murmurem de multis divitiis Societatis. »-Carta
de 29 de julho de 1713, ao padre José Vidigal, superior, idem.
3 « Non nisi agerrimo ac perdolenti animo audire possumus de aliqui-
bus missionarii, quod opera atque servitio servorum plusquam 25 utantur,
contra regias sanctiones, nominantu1: PP. Enunanuel Ribeiro, Josephus Ta~
vares, Ludovicus Alvares, et Joannes de. Sousa. Cum res sit periculosa, et
208 os JESUJfAS NO GRÃO-PKRÁ

cessor, Francisco Retz, tivera occasião de criticar a ganancia


com que o procurador da provinda vendia àos missionarios
as fazendas idas do reino, reálizando lucros, além do custo e
despesas. « Similhante trafico (dizia), qualquer que seja o pre-
texto deli.e, não pode fugir ao labéo de chatinagem, nem col1-
tar com a benção divina .» t ..
Eis aqui, pois, as principaes queixas, articuladas contra os
missionarios, !epetidas pelos seus mesmos. As allegações ~o
~rdeal · Saldanha não eram sem fundamento; e, por_. isso, a
congregação de cardeaes, nomeada para dar parecer sobre o
memorial de Ricci, judiciosamente respondia: »As desculpas
se lhes deve dar aquella fé e peso, que se dá a similhantes
memoriaes, sabendo-se muit-o bem a graridé difficuldade, que
padecê~ os homt;ns em se confessarem delinq~entes » ~. Nqs
porém, que aqui os temos confessos, poderemos absolvei-os, á
luz de mais racionavel argumentação. .
A obra, em que os jesuítas andavam- empenhados, pel;i sua
extensão, carecia de recursos vastos. Não enthesouràvam~ éon-
soante a opinião g~ral lhes attribuia, e a fama perduroit, ainda ·
·depQiS que, . pela experiencia, se' reconheceu o infundado do
asserto. As rei}das, á primeira vista enormes, nem sempre
bastavam a satisfazer por compl~to as necessidades das mis-

qure extemis scandalum et Vice-Provincire fastidiu,m parere aliquando pote-


rit, prrecipio R.• V.• ut diligenter inquirat de nominatis hominibus, et nisi
probentur innocentes pro qualitate criminis graviter puniat. >i-Cana de 8 de ·
julho de 1752 1 do geral Ignacio Visconti ao Vice-Provincial do Maranhão,
idem.
1 «Nullo etiam modo inclinari possum ad permittendum quod res Uly-
sipone emptas, et ad Maragnonium exportatas, Procurator V. Prov.incire ven-
dat missionariis cariori pretio quam fas est, servatis servandiS": id est, · ultra .
pretium Ulysipone solutum, et expensas fac.tas in transportatione, lucrum ali- .......
quod procurando; tale emim mercaturre genus, quocunque pallio tegatur et
dissimuletur, non potest effugere negociationis. labem, neque divinam spe-
rare benedictionem. Quid denique super hac ipsa re fierit debeat, semel at•
que iterum jam edocui, et postremo in epistola a me data 23 junii superio-
ris anni, ad quam me remitto, et in eadem dispositione insisto. »-Carta de
25 de junho de 1746, do geral Francisco Retz ao padre Caetano Ferreira,
vice-provincial, idem.
2 Parecei·· q2'e deu a congr~gação sobre o· co11teúdo 110 memo1·ial apresentado
ao Santo Padre Clemente XIII pelo geral da Companhia.

'
.A SITUAÇÃO NO SECULO xvm 209

sões. Se e~ tal assumpto podessemos paixar ás estatísticas,


certo enc~ntrariamos que jámais empresa de magnitude tal se
" realizou com tão limitados meios. Engrossada pelo ciume e
odio dos colonos, que medi~m a parcimonia e actividade dos
religiosos pela dissipação e indolencia proprias, a riqueza das
missões do Pará nos surprehende. Differente, porem, vem a ser
nossa impressão, se compararmos, ao valor conhecido della, o
custo das tentativas de colonização, feitas depois. Mais ainda,
se nos -lembrarmos que, expulsos os missionarias, todas as di-
ligencias de conservar e proseguir a sua obra, quaesquer que
fossem os meios empregados, saíram baldados.. Além do que,
nem sempre chegavam as rendas de certos estabelecimentos
para os gastos, como se vê de correspondencias particulares
da Companhia; sobre..cuja veracidade não pode exist~ duvidai.
Provocava a geral admiração dos extranhos, e aviventava
a crença em occultas riquez:3:s, o modo parco pelo qual os je-
suítas regiam seus negocios. Em .tudo os gastos sçi reduziam
ª? .-ninimo. As igrejas, na maior parte, eram simples palho-
d'as~. As ·alfaias· do culto. mais que modestas. A ~flljmentação
dos religfosos frugal : carnes seccas de seus cui:raes, :·peixe sal-
gado pelos indios, .legumes e fructas que estes mesmos culti-
vavam. Roupeta de algodão grosso, fiado e tinto na terra; sa-
patos ·de duas sólas, feitos em casa, de cabedal fabricado nas
fazendas; chapéo com bastante uso, e a capa, que não era
propria do religioso_, mas do serviço commum: 2 tal era o

l Sirva de exe~plo o seguinte trecho da ·carta do padre Jacintho de


Carv:alho, procurador da vice-provincía em Lisboa, ao ·visitador no P~rá: «Se
V. R. fizer que os collegios se desempenh~m, e me não obriguem a tomar
todos os annos novos dinheiros a juro 5obre outros juros, lá me ficarei· ou
morto ou \livo, quando não, pode V. R. mandar outro procurador .•. » De
Lisboa, 8 de abril de r732. E ainda a correspondencia do geral: <C!n missiçi-
ne in qua obiit P. Laurentius Homem, 'i.nventi sunt d~enti, aut trecenti con-
gii, seu metretre gariophyl.li, quos etsi P. Visitator Orlandinus partim appli-
cavit Ecclesire Paraensi et partim Ec.clesire Maragnonensi; ilias tamen appli-
camus conductioni operariorum; nam missio gravata est Ulysipone in septem
millibus cruciatis et ultra. »-De Miguel Angelo Tamburini, Roma, 22 de
outubro de 1712.
2 «Üs vestidos, sendo os mesmos que em toda a parte,. teem aqui a
grandissima differença de que muitas das roupetas são de algodão grosso, tin-
tas na terra, e as capas não passam de seis, que são do commum daquelles
27
210 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

trajo e o tratamento dos que, com tanto afan, procuravam bens


materiaes. •
·As almas grosseiras não comprehendiam similhante abne·
gação, nem que tantas riquezas passassem por int~iro, e sem
deixar vestígios, pelas mãos desses homens. Não sabiam que
eram para elles os valores, como os materiaes de construcção
para o obreiro, as munições de guerra para o soldado: coisas
que lhes não pertencem, como lhes não pertencerá, quando-
realizado, o objecto de seus esforços. O jesuíta, tendo perdido,
ao entrar na Ordem, a personalidade, e deixado atrophiar o
instincto da posse, era-lhes, neste sentido, igual. Propagar a
fé christã e dilatar o poder da Sociedade, - isto é acabar a
construcção e a conquista - eis no que unicamente cuidava.

Aos missionarios, em declarada guerra com a população


secular, pelos indios; em antagonismo com o poder real, pelos
dízimos; em opposição ás leis canonicas, pelo commercio que
não podiam deixar, não lhes bastavam essas contendas: dis-
putavam tambem acrimoniosamente com a autoridade eccle-
·siastica que, sendo.lhes benevola, poderia em occasião de tor-
menta servir-lhes de amparo e defesa. Era como se o carac:ter
de milícia, que o primitivo fundador lhes impuzera, trouxesse
realmente comsigo obrigações bellicosas, e a de em todo o
tempo, e em toda a parte, procurarem campos de batalha.
O debate, em que se gladiavam os religiosos paraenses com
o bispo, seu hierarchico superior, segundo a disciplina eccle-
siastica, não era exclusivo da diocese; já em outros pontos da
America tinha dado motivo a confüctos, que ficaram celebres.

religiosos, que primeiro saírem para fora. Os ch.apéos entendo que duram á
vida do religioso, a quem se dão, e os sapatos grossos, de duas solas, são fei-
tos em casa pelos seus officiaes, e de cabedal tam bem fabricado nas suas fa-
zendas. O comer é mais ordinario que em outra alguma parte .•. »-Carta de
Francisco Xavier de Mendonça, capitão general, a Diogo de Mendonça Côr-
te Real-, por extenso in fine. Nota D. 1

'
A SITUAÇÃO. NO SECULO XVlll 211
<""

As desaven ças da Companhia com os bispos Juan de Palafox,


de Puebla de los Angeles, e Bernardino Cardenas, de Assum-
pção~ tantas vezes contra ella invocadas por seus adversarias, _
constit uem interessantes capitulas da historia das missões.
A discussão versava sobre o poder que tinham os bispos
de coarctar-lhes a faculdade de prégar e confessar; com o de,
co~siderando-os como parochos nas aldeias a seu cargo, exer-
cerem nas egrejas o chamado direito de visita. Contra isto al-
tamente protestavam os religiosos, declarando-se independen-
tes do mando episcopal. Por muitos annos foi a confroversia
motivo de accêsas discordias, levantadas na colonia, insuffia-
das de Roma, e que na côrte faziam mover, á roda dos conse-
lheiros- da corôa, as influencias mais poderosas.
O assumpto, mesquinho em si, e limitado á disciplina in-
terna do corpo ecclesiastico, não tem importancia, que o re:::-
commende a demorada attenção. Bastará mencionai-o, como
parte das causas que, afinal conjugadas, deram em terra com
o poderio, tanto tempo indomavel, dos jesuítas. Foi no reinado
de Dom João V que as discussões chegaram ao auge. O pre-
lado Dom Bartholomeu do Pilar, tomando em 1725 conta da
diocese, obtiver~ do Conselho pltramarino uma ordem, que
particularmente individuava os pontos seguintes: primeiro, que
elle devia visitar él;S parochias dos missionarios, e superinten-
der na administraÇão dos sacramentos; segundo, que, aos reli-:-
giosos das missões do Pará não era licito, sem approvação
sua, confessar. Contra tal se insurgiram os jesuítas, em. rui-
doso protesto. Allegavam serem as igrejas propriedade da
Companhia, e que, portanto, sobre ellas não tinham os bispos
jurisdiCção; que pela propria regra do seu instituto, que lh'o
vedava, se não podiam considerar parochos ou curas d'almas;
finalmente, que sendo as conquistas ultramarinas depen<lencias
da Ordem de Christo, os ·privilegias desta, cobrindo as mis-
sões, repelliam em absoluto a intervenção do Ordinario t.
A volta destes argumentos, desenvolvidos em tão exten-
sas como fastidiosas dissertações, girou por annos seguidos a

I «Representação que se fez a Sua Majestade sobre a isenção do Ordi-


nario, no toc;:ante ás visitas dos missionarias em 1727 n, em MELLO .MoRAES,
Chorogr. Hist., tom. III, pag. 376.
212 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

contenda, e se moveram de ambas as partes intrigas e chica-


nas. O rei, sempre firme na primeira opinião, é mal disposto
com os jesuitas, levava-os a dizerem a seu respeito: O homem
está doido nesta matn·z'a i. Vencidos afinal não desanimam.
Recorrem á astucia, pedindo ao bispo eleja outros parochos,
certos de que os não achará; logo recuam, temendo que, de-
ferido o requerimento, lhes venha à saír contrario o proprio
ardil. Assim, com diversa fortuna, foi proseguindo a disputa:
os missionarias, inabalaveis no que julgavam direito seu; o
prelado invocando aquelle que, por effeito das ordens régias,
lhe assistia. -
Entretanto . iam-se accumulando no horizonte as nuvens,
que presagiavam a tormenta final. Já não era tão segura na
côrte a protecção, de que ·por tantos annos os jesuítas haviam
gosado. Em Roma, ao lado do pontífice Benedicto XIV, tinham
elles no cardeal ,Passionnei um inimigo encarniçado. A bulla
de 25 de fevereiro de 1741 1 contra os é:lerigos negociantes, o
breve de 20 de dezembro do mesmo anno, dirigido aos bis·
pos do Brazil, sobre a escravidão dos indios, tinham expressa-
mente por alvo a Companhia. Ainda então, poderosos .amigos ·
tiveram a força ge impedir que o ultimo fosse publicado em
Portugal; mas bem se podia ver que esses factos, em concor-
rencia, eram ós prodromos de acontecimentos mais graves. So-
bre a florescente sociedade, até ahi tão invejada, recaía por
fim 6 adio universal. Arrogante, e segura de suas forças, ella
desafiava a todos os poderes, e em todos os degraus da escala
social creara inimigos. Em Portugal, seguiu a regra commum.
O que tinha feito nas missões do Pará bem sabemos; e, se
houveramas de' admittir o dizer de Voltaire, que a Companhia
de Jesus se perdeu pelo orgulho, em nenhuma outra parte
esse conceito mais amplamente se ~ffirmou.

1 Carta do P. Jacintho de Carvalho, de Lisboa, 8 de abril de 1732, cit.


CAPITULO IX

A. EXPLORACÃO
. DO CONTINENTE
~

I. Progresso do descobrimento. Receios da Espanha. O colono e o missiona-


rio. -II. Viagem aventurosa "de uns paulistas. O padre Samuel Fritz.
Suas peregrinações. Empresas do mesmo contra o domínio portuguez.
-III. Investigação do rio Madeira. Exploradores de Mato Grosso. Ma-
noel Felix de Lima. João de Sousa de Azevedo. - IV. Obstaculos á ex-
ploração por extrangeiros. Godin des Odonnais. Humboldt. Esforços
. convergentes do aventureiro e do evangelizador.

NTRET ANTO, o descobrimento proseguia.

l
Buscando as drogas, ou á cata de indios que
podesse escravizar, invadia o colono os ·sertões
mais reconditos. De par com elle, caminhava o
missionado, com a mira na catechese, e . o pro~
posito de repovoar as aldeias, constantemente desfalcadas por
tantas causas, que se tem enumerado.
A portentosa jornada de J;>edro - Teixeira produzira na Es-
panha, sempre temerosa de inopinados assaltos, uma impres-
são de pavor; em outras nações, levantou enthusiasmos e sus-
citou projectos de arrojadas aventuras. Já se tinha por menos
que incerta a fidelidade portugueza, e havia receios que, pelo
Amazonas acima, ficasse patente aos inimigos da monarchia
o ádito ás regiões, de onde ella extrahia seus thesouros. Ao pa- ·
dre Christovam de Acuõa se proh:ibiu primeiramente tra-
2r4 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

zer a publico a relação da viagem, para não dar ensejo ás


correrias dos inglezes e hollandezes t. Em breve, porém, se
poz de lado a reserva, e o jesuíta deu á estampa a celebre
· obra, que tem por titulo Nuevo descobrz'mento. Os exaggeros
da narrativa eram muitos, e, por isso, adequados a exaltar ima-
ginações cubiçosas. Em França, appareceu quem submettesse
ao cardeal Mazarino o plano da conquista e fundação de um
grande imperio, cuj~ capital seria na «celebre ponta dos Co-
manares », assim nomeando o logar onde ao presente demora
Manáos 11 • Mas já então era Portugal independente, ao go- e,
verno francez, não pareceu opportupo ir esbulhar desses terri-
torios uma nação a quem favorecia. Os hollandezes, esses, mal
seguros no Maranhão, onde foi curto o seu domínio, e com-
batidos vigorosamente no sul, nunca ousaram dilatar suas
expedições até ao Pará, onde aliás tinham o chamariz dos ín-
dios, de que para a sua colonização absolutamente necessita-
vam. Desta arte não teve a empresa de Pedro Teixeira as
consequencias, que o avarento temor dos espanhoes. lhe havia
ag()urado.

1 << El P. Acufía no imprime nada, porque asi se lo han mandado, por-


que no lo entiendam los ollandezes, que ya lo tienen corrido y tienen mas
noticia dello que nadie>>.-Carta do padre Antonio Ruiz de Montoya, ao pa-
dre Rafael Pereira, cita~a na obra Viaje dei Capitan Pedro Texeira, de Marcos
Jimern!s de la Espada, pag. 53.
2 « Monseigneurn. -Que peut-ou offrir de plus grand dans un petit

ouurage, que la grande Riuiere des Amazones? Elle se présen_te maintenant


avec toutes ses grandeurs à V. E. apres les auoir si longtemps cachées. Elle
vous demande le Baptesme, pour tous ses Peuples. Elle vous demande des
Loix pour toutes ses Nations, et un Roy valeureux pour toutes ses Prouin- -
ces, afin de les unir à sa Couronne. Si la conqueste en est facile, la despence
n'en est point excessive. II ne faut point de grandes Armées, pour donner
des Batailles. Il ne faut point de gra'nd Equipage d' Artillerie, pour faire des
Sieges. II ne fant que des Appareils conuenables, pour dresser d'abord cinq
Colonies. La Premiere dans l'Isle du Solei!, pour garder la meilleure entrée
de son Emboucheure. La Seconde sur le Bosphore fameux, pour en defendre
& conserver le passage, La Troisseme en la célebre pointe des Comanares,
pour estre le Siege de l'Empire. La Quatriesme aupres du Mont de Suane,
pour en occuper la Mine d'Or. Et la derniere sur l'Emboucheure de la Ri-
uiere de Maragnon, pour veiller à la frontiere du costé des Andes».-'l(elation
histo1·ique et geographique de la grande riviere des .Amaz.ónes, par le comte de
Pagan, à Paris MDCLVI.

f
A EXPLORAÇÃO DO CONTINENTE 215

Com a entrada dos jesuitas, princ1p1ou a descoberta a ser


definitiva, e se iniciaram. as tentativas sérias de colonização.
Até ahi,. as expedições dos conquistadores tinham por objecto
repellir os europeus de outra origem, ou captivar indios, já
para o trabalho de suas reduzidas plantações, já para auxilia-
res nas empresas de guerra. Outras vezes eram, como temos
visto, explorações de caracter mercantil: pesquisa de terrenos
auriferos, ou colheita das riquezas vegetaes, em que abunda o
sertão. Na estreiteza do seu egoismo, elles nada viam mais que
o proprio interesse. Nenhum plano formavam de ~proveitar
para a civilização a raça inferior, que haviam subjugado. A cu-
riosidade embotada não os incitava a estudar-lhe os costumes;
tão pouco lhes occorria consignar o fructo de suas observações
em memorias, que os estudiosos podessem manusear.
Outro, e muito mais levantado, era o escopo dos missioD:a-
rios, ainda quando- a preoccupação dos bens materiaes já os
tinha separado da primitiva regra. Rudimentar qual era a ci-
vilização, por elles offerecida aos i_!.ldigenas, não se compara
com a degradante existencia dos escravos nas fazendas, ou
mesmo nas povoações. O que se veio a saber, ácerca dos ín-
dios, em tempos passados; quanto até nós chegou de sua his-
toria, de seus usos, de sua linguagem ; o processo da occupa-
ção portugueza, no Brazil, e das primeiras evoluções cio orga-
nismo s~cial, até constituir os.fundamentos de possante nacio-
nalidade; tudo se tem de buscar nos annaes das ordens reli-
giosas; particularmente da Companhia de Jesus.
Começando a segunda metade do seculo XVIII, estava por
assim dizer terminado o periodo das pesquisas geographicas.
Pelo Amazonas acima, até á fronteira castelhana, era frequente
a navegação. Transitava·se do braÇo principal ao Essequibo
pelo rio Branco; e o Trombetas abrira outra porta de com-
municaçãó com a · Guyana hollandeza t. A passagem do Ore-

«Dizem alguns que os indios das cabeceiras deste rio (Trombetas)


teem communicação com os hollandezes de Surinam; por se achar entre elles
algmna ferramenta fabricada em Hollanda ... Em o anno de 1741, subiu
Nicolau Hortsman, allemão, com muito vagar, pelo rio Essequ~bo. acima,. e
de rios em lagos veio por fim a dar, com a sua embarcação, no rio Negro,
onde entrou por este rio Branco». - MORAES, Hist. da Companhia de Jesus.
216 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

naco ao rio Negro, se bem que facto por então desconhecido,


já fôra tentada. Na outra margem, sertanejos arrojados iam
até Mato-Grosso, vencendo ·a corrente impetuosa, eriçada de
penhascos, do Madeira e do Tapajós; do Xingu descortinavam-
se já as regiões superiores; Antonio Vieira iniciara a ex-
ploração da ampla bacia do Tocantins. Em toda a -parte, na
extrema com as nações vizinhas, os missionarias serviam de
vedetas, defendendo, por vezes á viva força, contra ~s assal-
'tos de extranhos, as nossas possessões ; e neste particular ha-
vemos· de convir que os• jesuitas, deixando de parte a feição
de cosmopolitismo, propria da ordem, em todo o tempo se re-
velaram guardas zelosos dos domínios portuguezes.

II

A ·conquista do Amazonas, pela ousadia de aventureiros


cubiçosos, não irradiava sómente do Pará para o sertão. As
suas ribas yinham parar, de longes t_erras, exploradores, para
quem era brinco Õ atrayessar centenas de leguas de impervios
caminhos, por terras asperas e caudalosas torrentes. De taes
perambulações é, sobre todas, notavel a que vamos referir. Nos
primeiros mezes de I 6 5 I, chegou á fortaleza de Gurupá o

)
mestre de campo Antonio Raposo Tavares, acompanhado de
cincoenta e nove paulistas e alguns índios. Eram as reliquias
de uma ' forte b.andeira, de duzentos portuguezes e cêrca de
mil auxiliares indigenas, que á caça de escravos, dois annos
atrás, partira de São Paulo. As tropelias deste grupo são fa-
mosas. Em certa aldeia do Paraguay, assaltam a igreja á hora
dos officios divinos. Surprehendendo os índios, entretidos na
oração, tomam-nos prisioneiros, saqueiam e profanam o templo.
Prevenidos por alguns fugitivos, correm os missionarias das
aldeias circumvizinhas, com seus neophytos, a libertar os
captivos, e expellir os assaltantes. Acceitam estes batalha e,
·mais peritos que os padres na arte da guerra, facilmC7nte der-
rotam os improvizados contendores. Um dos missionarias fica

(
218 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Falemos agora de uma viagem que, não sendo original-


mente de exploração, enriqueceu a sciencia geographica com
o primeiro mappa do Amazonas, levantado nos proprios loga-
res, por individuÕ a quem não falleciam para tal aptidões. Re-
ferim~-nos ao padre Samuel Fritz, da Companhia de Jesus, ce-
lebre no mundo scientifico por essa obra, e notavel, co!llo mis-
sionario, pelo fervor evangelico, que lhe valeu o cognome de
Apostolo do Amazonas.
Aos l l de setembro de 1689, desembarcou elle em Belem.
Vinha das missões espanholas do Solimões, denominadas de
Maynas, onde principiara a trabalhar tres annos antes. Natu-
ral da Bohemia, consagrara-se, como muitos outros da sua Or-
dem, oriundos da Europa central, á evangelização dos selva-
gens. Ninguem jámais_prégou com maior zelo; ninguem supe-
rior numero de barbaros conseguiu aldear. Mayorunas, pevas,
cambebas, 'yurimaguas e outras po_pulosas nações de ind.ios
rendeu á fé catholica. Abrasado de enthusiasmo, e seduzido
pela ampla messe, que se lhe deparava ali, dilatou os limites
da s1:1a missão cerca de duzentas leguas pelos domínios por-
tuguezes. Foi no decurso destes trabalhos que se dirigiu ao
Pará.
Não se deve admittir, como pretendia~ os portuguezes,
que o movei desta jornada tenha sido a espionagem. Se bem
que as autoridades da colonia não soub~ssem ainda de suás
pretensões invasoras, o facto de fazer indagações geographi-
cas, e delinear um mappa, bastava a denunciai-o ás suspeitas,
proprias do vigente regímen. A theoria, depois por elle enun-
ciada, em virtude da qual seria indebita a posse de Portugal
naquellas terras, parece depôr contra a lealdade dos seus in-
tentos; mas a verdade é que, perlustrando, em tão grande ex-
tensão, o curso do Amazonas, o jesuíta tinha sómente em vista
seus commodos pessoaes, satisfazendo ao mesmo tempo a na-
tural curiosidade de um espírito indagador e. amante da scien-
cia. Adoecendo em estado grave, das febres proprias d~ clima,
e por effeito das fadigas, reflectiu que mais facilmente lhe se-
ria dado baixar á séde dos domínios portuguezes, no Grão-
Pará, do que retroceder contra a correnteza das aguas, com a
penosa jornada, por terra, até Quito. Resolven portanto descer
o rio, e buscar a cura das molestias, e o indispensavel repouso ·

(
A EXPLORAÇÃO DO CONTINENTE 219

no gasalhado dos s_e us, tão ricos de bens e autoridade no Es-


tado vizinho. Não lhe esquivou o prestigio dos socios os in-
commodos, provenientes da qualidade de forasteiro. O gover-
nador Sá de Menezes, ao saber de sua presença no Pará, man-
dou-o deter no collegio, até chegarem determinações de Lis-
boa. Quiz o jesuita embarcar para a côrte, e pleitear aos pés
do soberano o seú direito á liberdade: não lh'o consentiram.
Tardaram as ordens do governo dezenove mezes, durante os
quaes o recluso se occupou em colligir informações e debuxar
o seu mappa. Afinal, soube que o iam repôr nas missões de
Castella e, com effeito, pas-sados ainda tres mezes mais, partiu
com uina escolta de vinte soldados. Incumbia a esta ·vedar-lhe
a communicação com habitantes do territorio portuguez; mas,
além disso, tinha o cabo da tropa tambem por encargo resta-
belecer a autoridade da corôa, até ao limite do padrão de ~e­
dro Teixeira. A lembrança do rio do Ouro, cujo nome era de
per si um estimulo; a noticia de algum commercio, que por lá
se fazia com os índios, portadores 'de pepitas; aviventavam
esperanças de se encontrar naquellas alturas o ádito ao sem-
pre appetecido El-Dorado. Por tal razão, tinham os habitantes
do Pará muito a peito não deixarem passar a outras mãos esse
domínio..
Chegando Fritz a um povo de yurimaguas, aldeados por
elle na descida, dois dias álem da bôca do Juruá, pediu que os
soldados retrocedessem, para não .pôrem com a sua pr~sença
em sobresalto os selvagens. Ma.s o che~e, invocando as instru-
cções, insistiú em proseguir na jornada, "até onde se achavam
estabelecidos os da nação omagua. Assim se fez, e, a poucas
horas de caminho, alcançaram a primeira reducção.
Então, descobrindo o i~tento que o levara á quellas para-
gens; o cabo solemnemente reivindica para el-rei de Portugal
o senhorio das terras, e intima o jesuíta a retirar-se dellas.
Obtemperava Fritz achar-se dentro dos limites de Castella.
Para elle era usurpação o. avanço dos nossos, rio acima. Ao
passo que estes pretendiam levar a fronteira até dentro do
Napo, onde, pelas informações yagas de Pedro T eixeira, se de-
via encontrar o marco, em E spanha, rejeitavam esse direito, e
queriam traçar a divisoria pelo rio Negro.
Samuel Fritz não se contentava com essa linha. A seu ar-
220 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

bitrio, deviam os portuguezes ser repellidos aguas abaixo, até


ao meridiano, que passa na foz do rio de Vicente Pinzon.
N ulla era a posse de Pedro T dxeira; nullas as explorações
successivas dos portuguezes. A decisão de Alexandre VI e o
tratado de Tordesilhas regulavam, no seú conceito, de modo
irrefragavel a materia t .
Com estas idéas, deliberou o jesuita seguir até Lima, a ex-
pôr ao vice-rei as necessidades materiaes de sua obra evange-
lica; o perigo em que ficavam os neophytos, abandonados á
tyrannia dos portuguezes ; e os argumentos de direito, a seu
parecer decisivos, com que justificava a posse de Castella.
Continuou a fadigosa viagem contra a corrente do Amazonas;
subiu pelo Huallaga; atravessou a Cordilheira e, jornadeando
por Cajamarca e Trujillo, chegou alfim onde era a cabeça do
governo espanhol, nesta parte da America. Surprehendeu a
todos o vêl-o chegar. Acompanhado sómente de um índio; com
uma sotaina curta, em farrapos, por vestido; alpercatas e meias
de filamentos de palma nos pés; alto de estatura, vermelhp de
côr, as longas barbas hirsuta~; revivia no aspecto um antigo
solitario, saíndo dos desertos da Thebaida.
Ao cabo desta longa peregrinação,. só comparavel ás do
apostolo Xavier no Oriente, teve elle o desgosto de não ver
seus projectos acolhidos, conforme a mente enthusiastica lhe
presagiara. Concedeu-lhe o vice-rei meios pecuniarios, soccorro
de viveres, e o apoio moral da sua autoridade; mas negou-lhe
a força militar, que havia de ajudai-o a proseguir na conquista,

1 «De lo referido claramente se conclue: lo primero, que como los


portugueses, por derecho, no pretenden ni pueden pretender mas, desde la boca
de este rio de Amazonas, que quatro grados y dos tercios en longitud, sola-
mente llega el derecho de su conquista y demarcacion bacia el meridiano, que
passa por la boca del rio de Vicente Pinzon; y asi todas las <lemas tierras, rios
y gentes bacia el occidente tocan por derecho a la conquista, y est:m dent~o
de Ja demarcacion de la corona de Castella. Lo segundo, las possessiones, que
desde el dicho meridiano de la demarcacion, que passa la boca del rio de Vi-
cente Pinzon, han tomado hasta aora hacia el occidente los portugueses, son
invalidas e nulas. Asi el domínio, que desde ali, hasta el rio Negro, han usur-
pado. »-Apuntes acerca de .la linta de demarcacion entre las conqtlistas de Espaiia
y P<>rtugal no Diario de la bajada del padre Samuel Fritz_ hasta la ciudad del
Gran-Pará-Ms. da Bibl. de Evora. ·


A EXPLORAÇÃO DO CONTINENTE 221

ou a defendei-a contra armadas reivindicações. A despeito disso,


o apostolo infatigavel voltou ao , theatro de seus labores, e
poude reunir as ovelhas, que a noticia das incursões portugue-
zas, e o receio da impendente escravidão, ao primeiro brado,
havia disperso. Chegando á côrte de Lisboà noticia das ten-
tativas do míssionario, éontra elle por mais de uma vez se·
expediram ordens de prisão; mas, apesar da.S instantes recom-
mendações do governo, o pertinaz invasor escapou indemne á
vindicta dos que injustificadamente pretendia desapossar 1,
Entretanto, de tudo isto veio a resultar um conflicto á
mão armada, na fronteira. Em . I 708 mandou o governador
·Christovam da Costa Freire notificar aos padres, companhei-
ros de Fritz, que houvessem de abandonar sem tardança as
missões. Obedeceram elles, mas, em despique, baix~u uma
força castelhana ao territorio portuguez, expulsou os missio-
narios carmelita·s , ali postos, queimou as aldeias a cargo destes,
e regressou a Quito leva,ndo, com os outros, prisioneiro o
capitão que havia forçado os jesuítas a retirarem-se. A isto
se respondeu de nosso lado ·com equivalentes represalias. Os
portuguezes apossaram-se novamente das missões, e voltaram
ao Pará, trazendo em custodia o padre Sana, um dos que as
ordens da côrte com mais empenho mandavam_apprehender.
Por- essa ·mesma occasião, recommendava o governo da me-
tropole se entregassem aos j esúitas portuguezes as missões re-
conquistadas, como mais aptos a defenderem-nas contra novas
correrias dos espanhoes. Mais uma vez elles, porém, rejeitaram
a honra e proveitos do encargo, não lhes sendo talvez oppor-
tuno ir contender com os do seu proprio habito, que ao mesmo
proposito de civilização dos indigenas viviam consagrados. Só
no reinado de Dom José, desvanecidas estas duvidas, os cau-
telosos padres foram estabelecer uma aldeia, em logar pouco ·
acima, na foz do Javary, que se tornou então ·a front~ira de-
finitiva.

i C. R. de 20 de marÇo de 1708, 13 de agosto de 1710, 19 de janeiro


de 1711. Ms. da Bibl.. de Evora.
222 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

III

No rio Madeira, ou da Madet'ra, como se dizia, tarde prin-


cipiaram as expl.~rações dos portuguezes. A ferocidade das
tribus guerreiras defendia-lhe a entrada contra a audacia dos
aventureiros, e, por muitos annos, até bem perto de nós, os
índios muras, que povoavam suas margens, constituíam justa
razão de temor, para os colonos. Antes desses, era a nação
dos torazes que dilatava suas correrias até ao curso do Ama-
zonas, onde iam assaltar as canôas, que andavam no trafico
do cacau. Foi contra elles, em 1719, o capitão-mór do Pará
João de Barros Guerra, havendo-se com tal rudeza na campa-
nha que completamente os destruiu. Ignorando-se na colonia
qual fosse a origem deste rio, e o caminho percorrido por
suas aguas, grande foi . a surpresa ao saber-se que, acima das
cachoeiras, andavam europeus; noticia trazida por indivíduos
que, livres do receio dos torazes, haviam subido a fazer res-
gates. O governador João da Maia da Gama, informado disso,
mandou explorar' o rio por uma tropa de guerra.· A frent~
della, Francisco de Mello Palheta, em l 722, trarn~oz as ca-
choeiras, e alcançou Santa Cruz de los Cajubabas, onde en-
controu os missionarios espanhoes. Com a noticia do que vira
até ali, recolheu a Belem. Não soube, porém, da communicação
com Mato Grossci, que dentro em poucos annos, pela ousadia
dos descobridores de minas, se patenteava.
No correr de 1734, dera o paulista Antonio Fernandes de
Abreu com as primeiras jazidas auríferas, naquellas terras.
Para lá, a fa!1Ja de nunca vistas riquezas chamou logo popula-
ção numerosa e de gente arrojada. De muito longe, concorriam
aventureiros das mais oppostas categorias: proprietarios arrui-
nados, mechanicos sem t rabalho, fallidos negociantes, deserto-
res e criminosos; sósinhos uns, outros acompanhados de fami-
lia, o maior numero com séquito de escravos, adquiridos pela
violencia, durante a jornada; finalmente, o pessoal variegado
que em todos os tempos a cubiça do ouro chama a similhan-
tes logares. Consoante a regra, as desillusões foram grand~s e

f
A EXPLORAÇÃO DO CONTINENTE 223

proximas. Em principio, avultou a producção das minas, satis-


fazendo as esperanças mais avidas, mas, ao cabo de pouco
tempo, escasseava o metal, continuando os generos indispen-
saveis á vida a manter-se em preços fabulosos. Salvo alguns
privilegiados da fortuna, em geral não dava o rendimento do
trabalho para cobrir o custo das mercadorias, que da beira-
mar, onde . só h~via recursos, tinham de ser· levados á parte
central do continente.
Em 1742, lembrou-se o europeu Manoel Felix de Lima de
buscar sorte melhor, descendo os rios, que se dirigem ao norte;
e, para -tal fim, reuniu, entre companheiros e escravos, umas
cincoentá pessoas. Despendei.1 o pouco, que ainda possuía; em
apparelhar-se, e aos seus, para a jornada, e, lançando-se affou- _
tamente pelo Sararé, passou ao Guaporé, e d'ahi ao Madeira,.
onde, encontrando as missões dos jesuítas, alcançou meio de se
transportar facilmente ao Pará. Dos brancos alistadoS' na co-
mitiva tres sómente h~viam ~hegado ao termo da viagem; os
outros . debandaram no caminho, desanimando ás privações e
incommoc!os. Aos prinieiros deparou o governo da colonia·
acolhimento pauco digno da constancia,· qu·e haviam mostrado;
)\O:anoel Felix de Lima e outro foram remettidos em custodia
· para Lisbo~ ào .terceiro se lhe ab~iu, por castigo, praça de sol-
. dado num regimento do Pará. Inculpava-os o capitão-general
de haverem transgredido a lei, que vedava aos naçionaes a en-
trada em colonias extrangeiras, quando, fazendo caminho, atra-
vessaram por onde se :·achavam estabelecido!? os castelhanos.
O que ficou por soldado, de nome Joaquim Ferreira Chaves,
em breve desertou, passando pela capitania de Maranhão a
Goyaz, e de lá a Mato Grosso, onde foi levar noticia de que
por aquelles rios podia haver commercio com o Pará. .
Aproveitando a informação, desce em 1749, pelo mesmo
caminho, José Leme ·do Prado, gàstando cincoenta e dois dias
· n~ viagem até Belem. Com este successo, que definitivamente
abriu a via de communicação, pelo interior do territorio brazi-
Iicó, se converte em re.a lidade a hypothese, pela qual os anti-
gos geogrà.phos ligavam o curso do Amazonas á bacia do
Prata. Dois ànnos antes, tinham os jesuítas espanhoes transfe-
rido suas missões para a margem oriental do Guaporé, de cu-
jas terras se apoderaram, cortando-nos a passagem. A inicia-
A EXPLORAÇÃO DO CONTINENTE 225

Gu.rjão, que ~stava á testa do governo, deseja guardai-o perto


de si, para aproveitar-lhe os conhecimentos, nas projectadas
demarcações com a Espanha, annunciadas para breve. Com
esse proposito lhe dá índios e utensilios, para assentar no rio
Madeira uma colonia. Baldado empenho 1 Incitado por seu
animo aventureiro, e pela ganancia do trafico ~om a longínqua
região das minas, João de Souza de Azevedo continua a sé-
rie de v.~agens, que lhe valeram reputação e fortuna.

IV

Se fal era a opposição que o governo portuguez fazia á


ivre passagem de seus naturaes pelo inter:ior do territorio,
pode-se fazer idéa do ciume, com que seriam recebidõs os ex-
tranhos. Este ciume deu logar á pathetica aventura de Ma-
dame Godi?- des Odonnais, que tanto arruido produziu no
mundo scientifico, e se inscreve por famosa. nos annaes das _
viagens. Em 1749, entrara o sabio, seu .e sposo, em domínios
portuguezes, executando os trabalhos de: exploração que em-
prehendera, da região amazonica, concluídas as observações •
astronomicas, que o tinham levado, em companhia de La CÔn- -
damine e Bouguet, á America meridional. Emquanto esperava
· lhe · facultassem meios ·de transportar-se a Cayenna, o astro-
n.o mo francez muda de intento, e propõe ao governador ir
pesquisar na serra d9 Parú, onde lhe constava existir· a pre-
ciosa arvore da quina. Depois pede licença para tornar-se pelo
Amazonas a buscar sua esposa, que. ficara em Quito. Taes
solicitações avivam suspeitas, que desde o primeiro instante
se haviam levantado, no- espírito dos governantes. O capitão-
general dá ordem que seja o indiscreto investigador conduzido
ao rio de Vicente Pinzon, fron.t eiro das possessões ·francezas t • .
Perdida esta Õccasião de voltar perto da companheira de sua
vida, distrahido· por outras preoccupações, ou á falta dos re-
cursos necessarios, Godin só em 1765 pode buscai-a outra vez.

1 Correspondencia ·de 1; dé setembro de 1750.


29
226 OS JE:SUITAS NO GRÃO-PARÁ

Por intermedio do embaixador de França em Lisboa, alca_n ça


per,missão para subir o rio até Quito, apesar do parecer -con-
trario do Conselho Ultramarinq ; mas, por circumstàncias, que
nos são occultas, não realizou a viagem. Passam _annos, até
que, em 1769', a desditosa senhora, vendo-se aba~donàda, e
no auge do desespero, projecta um feito, que é, para o seu
sexo, de incrível audacia. Acompanhada qe poucos servos,
intenta dirigir-se ao Pará, tomando o caminho, que .dois se·
culos antes Orellana seguira. Não nos pertence descrever os
pormenores desta jornada, que a fraque~a feminil não con- ,
sentiu fosse levada a bom · fim. Pouca parte do caminho es-
tava vencido, quando difficuldades, superiores á sua constan-
. eia, fizeram regressar Madame Godin ao ponto de partida.
«Não ha (diz a seu respeito ·um escri~tor notavel), t histo-
ria mais singular nem mais tocante, que a das fadigas por ella
soffridas, dos perigos a qué S€ expôz, das infelicidades -que
lhe succederam no caminho. Seu proceder offerece-nos viva
pintura da força, que distingue o homem, unida á sensibilidade
e á meiguice, que são ,proprias do outro sexo ».
Passou meio seculo, e a persisten.te desconfiança mandava
fechar ·a entrada do. Amazonas ao grande Humboldt. Mas li-
vres corriam sempre as aguas, que a tyrannia das leis huma-
nas não podia deter. A communicação do rio Negro com o
Orenoco, até ahi contestada, tornou-se, pela revelação do illus-
tre sabio, num facto scientifico. Contra os obstaculos da natu-
. reza, e as fictícias barreiras, levantadas pela erronea política de
um seculo atrasado, se _arremessoÜ a audacia dos áventureiros,
esporeada pela cubiça. Na trilha. do sertanejo seguia ó religio-
so, e, aos poucos,-ia plantando marcos nesses intransitados ca-
minhos, lençoes de agua, que cor~am a vastidão do continente.
Cada um desses marcos, que era a missão, constituía, até novo
avanço, a divisoria do mundo policiado com o selvagem. E a

.
fronteira, assim delineada, jámais recuou. ,Desta arte, impulsos
tão diversos, quaes er_am os do aventureiro e d~ missionario
. '
se conjugavam afinal num esforço commum.

1 RoBERTSON na Historia da America.


CAPITULO X

A COMPANHIA DE COMMERCIO

- .
I. Antecedentes .dê Sebastião José de Carvalho. Seu projecto da Companhia
0rienta.J,. Missão a Vienna. Regresso ao reino. Por morte de Dom João v
é chamado ao poder.-II. O tratado de limites. Francisco Xavier de Men-
. donça governador do Gi:ão-Pará. Seu earacter. Desagrado dos habitantes.
Estado da questão jesuitica ·em 1751.-III. Desmandos da população e
dos missionarias . . Situação dos indigenas. P roposta sobre a introducção
de negros no Estado. Carvalho institue a Companhia do Grão-Pará. oit
posição dos jesuite.s-_ Sermão do padre Ballester..-IV. Protesto da Mesa
do Bem Commum. Castigo de seus membros. Participa~o dos jesuitas::
Providencias sobre à repressão no Pará.

(z750-z755)

QUESTÃO, por tantos annos debatida, e~tl


afinal no período ultimo de sua existencia. A s
governos frouxos anteriores vae succeder um .
autoridade energica e ciosa do seu poderio ; e
quer no territorio do- reino, -qBer nas mais dis-
tantes c0lonias, os subc;lit0s da corôa portugueza vêem, coin
pasmo, tiesenvolver-se uma ferroa Gie mand0, para elles tã"o
,€:xcessiva quanto n0va. ·
O fallecímento de D. João v . tiilha levantado á frente do
governo um homem, que chegava com o _firme proposito de
se fazer notar por ~ctos dignos de fama. Quer~m alg uns attri-
buir sua accessão aos cargos publicos a relevantes dotes, que
part icularmente o recommendavam; outros, seus adversados,
vêem 11a sua 'primeira fOrtuna o ·resultado da subserviencia,
. com que s~ dedicava a captivar o favor dos poderosos: Uma
228 OS JESUITAS NO QRÃO-PARÁ

e outra opinião são infundadas; e_, se o futuro dominadQr de


Portugal possuia talentos e caracter, adequado~ á situação a
que depois chegou, é certo qúe os principios da sua carreira
os deveu apenas, como tantos outros, ao mero acaso do pa-
rentesco, e da protecção, baseada em considerações de ordem
sentimental.
Bem pouco se conhece da vida de Sebastião José de Car-
valho e Mello até á epoca da sua en~rada na vida publica.
Admiradores do afamado ministro, ou seu.s contrarios, nenhuns
se deram a indagar de factos que, delineando o caracter do
homem, explicariam, pelas antecedencias, a norma de proceder
do ' estadista. Para a embaixada de Londres foi elle nomeado
em 1738 substituindo a seu tio Marco Antonio de Azevedo
1

Coutinho, chamado á côrte, para o cargo de secretario ' dos


negocios extrangeiros e da guerra. O simples facto da escolha,
em tal momento, torna plausível a idéa de ser ella devida á


indicação d' este ultimo; tanto mais se soubermos que lhe era
sobrinho bene~erito de particular affeição: .Os actos de Se-
':_b astião José de Carvalho, como enviado em Londres, não dei-
xaram de si lembrança, que fizesse prever a f~ma posterior do
seu nome. Citam os biographos uma energica reclamação
contra o proceder dos capitães de navios inglezes, em portos
lusitanos, e sobre os privilegios, que os subditos de Portugal
deviam ter, em territorio britanico; mas bem se deixa ver que
similhante representaçãó só podia ter Jogar em cumprimento
de ordens, expedidas de Lisboa. Depois disso, nenhuma outra
p:iemoria resta dos serviços de Carvalho na Inglaterra.
' Mais conhecidos são os factos_ relativos á sua missão a
Vienna, posto que -não trãzidos, até agora, a lume, com a indi-
viduação que merecem. Não é comtudo geralmente sabido
que a enviatura de Pombal, áquella côrte, lhe foi antes dada
como pena disciplinar, que por escolha motivada pela excel-
lencia de séus meritos. O caso prende-se ao gosto _do diplo-
mata pelos estudos economic6s, e ao desejo, já então evi-
dente, de conquistar nome hÓnroso na sua patrià. Seu espir~to
observador, fazendo-lhe ver a crescente prosperidade do tra-
fico inglez na India, ao mesmo tempo que o comparava com
a progressiva decadencia do nosso domínio, levou-o a ~onsi­
derar na possibilidade de se levantar em Portugal uma com-

(
_OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

As desintelligencias, entre a rainha Maria Thereza e a côrte


·.
pontificia,· versavam sobre a promessa, não cumprida, do capello
cardinalício ao auditor de Rota, Mellini, favorecido pelo gabi-
nete de Vienna; e aggravavam-se com o proceder hostil de -
certos ministros de Benedicto XIV, especialmente do secretario
de estado, cardeal Valenti, cuja demissão a soberana exigia. A
estes pontos de cont~oversia, accresceu, no correr das negocia-
ções, o reconhecimento, pelo papa, de -Francisco 1, esposo de
Maria Thereza, por imperador; a questão relativa ao patriarcha-
do de Aquileia, no territorio veneziano; e, por ultimo, a conten-
da pelo breve; chamado de elegibilidade, a favor do arcebispo
de Moguncia t. Em cada um destes assumptos alcaaçou o ple-
nipotenciario portuguez. solução, a contento das partes, desva·
necendo-se todo o desagrado existente entre Roma e Vienná.
Não causará extranheza envolver-se a côrte de Lisboa nes-
tas negociações, embora sail:>amos ter Dom João v rejeitado
depois o mais honroso papel de arbitro da paz, entre as gran-
des potencias da Europa, envolvidas na grande guerra já nesse
tempo accesa ~. A presente intervenção dizia respeito a ne-

l Era direito dos archiduque! de Austria e do senado de Veneza nomea-


rem alternativamente o patriarcha de Aquileia; annulavam, porém, a alterna-
tiva os patriarchas venezianps, fazendo que o papa lhes nomeasse em vida um
e
coadjuctor, da sua mesma nacionalidade, que lhes succedia, assim nunca
tinha o archiduque occasião de exercer a sua prerogativa. Contra esta usurpa-
ção protestava Maria Thereza. O breve de elegibilidade dizia respeito á ·con- -
firmação do prelado, em diversos beneficias, pelo papa. Uma contenda, que se
levantara, por questões de pre.:edencia, com o nuncio, na dieta, presidida pelo
arcebispo, para a eleição de Francisco 1, contribuiu para tomar mais viva a
resistencia de Benedicto x:v. Afinal o pleito resolveu-se a favor Claquelle,
que, em agradec:imento, pr~~enteou a Carvalho com um enorme tonel de
vinho' do Rhene. ·
2 É c:onhec:ida a carta, de D. Luiz da Cunha a Alexandre de Gu5mâc;i
e a resposta deste, 11.lais de unia vez impressas. Estrevera de Paris o embai-
xador portuguez: uEu convido a el-rei nosso amo para figurar muit9 na Eu-
ropa, sem ter pane nas desgraças della. Os principes belligerantes estão· can-
sados da guerra e todos desejam a paz. Esta pretendo eu que se faça em Lis-
boa, e que nosso amo seja arbitro della. » R~sposta de Alexandre de Gus-
mão. . . « Finaltnente falei a el-rei. Estava perguntando ao prior da freguezia
por quanto rendiam as esmolas dás alll.las, e pelas missas que se diziam por
ellas. Disse que a proposição de Vossa Excellencia era muito propria das tna-
ximas francezas, com 3{i quaes Vossa Exc:ellencia se tinha c;omnaturalisado, e
que não proseguisse mais.» '

'
A COMPANHIA DE COMMERCIO 231

godos da igreja, muito do empenho do -religioso soberano, e


tôra-lhe impetrada pelo pontifice, talvez mesmo, como em
Vienna pretendiam, por instigações de Manoel Pereira de Sam:
paio, ministro de Portugal junto á curia. Ancioso de respon-
der aos desejos do papa, o governo ' de Lisboa cuidou logo de
encetar a negociação, incumbirido os primeiros passo~ della a
Manoel Telles da Silva, portuguez, _que residia na capital de
Austria e," ao serviço desse paiz, exercia ó cargo de presi-
dente do Conselho de Flandres. Excusou-se o escolhido in-
tetmediario, com a fidelidade que devia á corôa extranha,
inhibindo-9 de ·receber ordens -da de sua nação; entretanto
submetteu á imperatriz a proposta da mediação portugueza,
que· ella sem reluctancia ·acceitou.
Sabedor daquella recusa, Manoel Pereira de Sampaio, que
tivera· a lembrança, ··-e porventura aspirava a grangear, para
si· unicamente, as glorias do atcordo, offereceu-se a man-
dai-o tratar em Vieima por individuo de confiança sua. Já en-
tão fôra resolvida a nomeação de Carvalho. D'ahi resultou o

descontentamento de -Sampaio, com prejui~o das negociações,
e uma d_eclarada ihimizad.e , nunca mais extincta, entre .elle e
o plenipotenciario escolhido t.
E~ noveml;>ro de I 744 p;:i.rtiu este. ultimo para Allema-
nha, por via de Ingla.te1~ra. Não ia, porém, com o caracter de
embaixador. Designado como simples emissario, na carta,
mais de af)resentação que de crença, do soberano portuguez
á imperatriz, não perdia, por isso, o posto de enviado á côrte:
de Londres. Termina~a a sua tarefa, viu-se todavia sem cargo
· diplomatico. No intervallo, outro fôra provido naquella em-
baixada;· 2 e, nada obstante o exito da missão, e as provas .
de contentamento das partes interessadas, Carvalho saíu de
Vienna, como muito parece, no régio desagrado. Por elle .se

. 1 Esta inimizade tomou-se proverbial na familia Carvalho, chegando ao


ponto que o noll_le desse emulo do mais eminente de seus membros era em-
pregado, para genericamente designar qualquer odiado adversado. Vê-se isso
numa carta de Francisco Xavier de Mendonça a seu irmão Sebastião José ·de
Carvalho, onde se lê tratando dos jesuitas : Estas gentes são o meu Manoel Pe-
reira de Sampaio.
· 2 O desembargador Encerrabodes, a cuja, .sorte futura não foi ,ta!vez
extranho este successo.
OS JESUITAS NO GRÃO-P.ARÁ,

explica a ·sêca ·phrase, em que o governo ,de Lisboa participa


a retirada do seu representante, para tratar de sua saude t. O
ex-embaixador foi mal acolhido no paço. Ou as desavenças
com Manoel Pereira, de Sampaio; ou a obstinação na idéa
da Companhia indiana,. pela qual, ainda em 1748, insistia; pro- ;
vavelmeqte ambos os motivos conjugados, produzindo o des-
favor, fechavam-lhe bruscamente a cam:ira, em qu~ de modo
tão auspicioso se havia estreado.
Porventura a linguagem arrogante de suas cartas ao tio
Marco Antonio, lhe alienara tambem esta antiga protecção.
Debalde trabalhou Carvalho por conseguir, na alta ad~inistra-
1
ção do Estado, algum posto, dos que lhe seria licito ambicio- .
nar; e, pesaroso, viu que lhe fôt'a de todo iputil, senão prej4di-
cial, o encargo da régia confiança, que na Al.lemanha tão ca- -
balmente desempenhara. Um facto, porém, de nenhum m9do
relacionado com os successos políticos, tinha de reconciliai-o
com o seu desterro,- pois como tal havemos de considerar a -·
famosa missão naquelle paiz: o enlace com a condessa Daun,
que, dando-lhe as alegrias serenas da familia, foi tambem a
origem de sua assombrosa fortuna .
• Expirando Dom João V, a 31 de julho de 1750, ás sete ho- -
ras da tarde, logo no dia 2 de agosto foi Sebastião José de
Carvalho designado, para o mesmo cargo de secretario dos ne-
gocios extrangeiros e da guerra, que seu tio Marco Antonio,
pouco antes fallecido, exercera. A rainha Marianna· de Austria
pagava, por esta forma, uma divida de amizade á sua .compa-
triota, esposa do novo ministro, mal podendo imaginar que
este primeiro acto de governo do soberano, seu filho, marcava
o termo da sua influencia nos publicos negocios.
Anti;: o obscuro fidalgote, de duvidosa estirpe, roído de
ambições, e até ahi sem peso na côrte, abria-se agora, rico de
promessas, um vasto, horizonte. Já elle talvez, como em sonho,
descortinava o futuro. Conscio de seus dotes súperiores, e in-
ebriado de orgulho, mcdia·se com os miseras fantoches daquella
côrte ostentosa e ridícula e, certo, havia de julgar-se grande.
Mais ainda, ao conhecer a nullidade de um principe alheio in-
,-
1 Carta de Dom João v a Maria Theresa. Bibl. Nac. de Lisboa. Coll.
Pomb.
A .COMPANH IA DE COMMERCIO 233

tc:iramente ás coisas do goverp() ; só interessado em caças, ·ca-


valgadas, musica e, como o pai, nas galantes .aventuras. Désse-
lhe a fortuna um ,favoravel ensejo, e, com a sua força de von-
tade, e superior intelligencia, elle, o desdenhado Sebastião Yosé,
se tornaria senhor desse phantasma de rei e da nação! E as-
sim Ih'o facultou o destino.

II

Dos assumptos · politicos, que passaram do reinacio de


Dom João v, a todos excedia em importancia o acerto de
fronteiras com a Espanha, nas possessões da America Meri-
dional. As longas negociações, para cujq termo assás contri-
!:miram os esforços da rainha daquelle paiz, que era infanta de
Portugal, haviam-se tornado, por esta intervenção, suspeitas àos
espanhoes. Consideravam estes o tratado lesivo, e como tal
condemnado â não ter realização pratica, não obstante o accor-
do das ch~ncellarias. Do lado ·portugu~z dividiram se as opi-
niões: a . muitos pareceu sacrificio exéessivo a entrega da co-
lonia do Sacramento, com que dominavamos a bôca do Prata;
outros julgavam bem compensada. esta perda, nos terrenos au-
riferos, que pelo tratado haviam de ser-nos entregues._
Sebastiã<? José .de Carvalh<? era dos que tinham por van-
tajosa a partilha; e, por essa razão, determinou proceder logo
ás demarcações. A escolha dos commissarios, que presidiam a
estas, harto <:Iemonstrava o valor, attribuido pelo ministro á
convenção. Para a banda dô sul, elegeu elle a Gomes Freir~
de Andrade, distincto pôr muitos annos de applaudido go- .
vemo no Rio de Janeiro; ~o norte, commetteu a direcção dos
trabalhos a seú irmão F.rancisco Xavier d~ Mendonça Furtado,
projecto que já tinha em 'mente, ao nomeai-o, pouco antes, ca-
pitão-general do Grão-Pará
Ao prestigio, que o plenipótenciario tirava deste ultimo
cargo, accresda o das novas condições, em que fôra exercel-o,
reformando·se na occasião o systema administrativo da colo-
nia. Dividia-se esta agora em dois governos differentes: a séde
principal ficava sendo em Belem; e o governador geral, a
30

'
..

234 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

quem era o do Maranhão, subalterno, tinha, menos o nome,


o grau hiera:rchico, e a autoridade, de um vice-rei.
Se Carvalho nutria, consoante parece, o empenho de tor-
nar effectivo o ajuste de limites, nenhuma pessoa lograria en-·
contrar mais idonea, que o governad~r do Grão-Pará, para
- . secundar-lhe os intentos. Dotado, como Sebastião José, de agu-
deza natural e vontade energica, consagrava elle a seu irmão
uma amizadé respeitosa, -que assás contribuía para tornai-o
comparte dedicado de seus projectos. E 'tal sentimento era
reciproco, suscitando entre as duas almas um accordo cons-
tante, muito em favor desses planos. Quem percorrer a cor-
respondencia, trocada entre os dois,' quan'd o Francisco Xavier .
residia na America, em cada pagina. verá patenteada a mutua
estima, e a affeição, que os unia. Não raro, no meio dos a9'-
sumptós mais arduos, a expressão carinhosa vem contrastar
com a gravidade propria do discurso político. Paternai e sen-
tencioso, Sebastião José, como primogenito, e pelá sua elevada
. . da familia;
posição e superiores talentos, é o chefe venerado
fiel em obedecer, e respeitoso rio suggerir, mostra-se o outro,
além de filho segundo, subordinado na_intélligencia.e no posto.
Mas não se creia, por isso, ter sido Francisco Xavier, na colo-
nia, o cego executor, e nada mais, de alheios dictames. Braço
intelligente, movido de longe por uma vontade robusta, sabia
tambem propôr, resolve~ e 'executar. Inferior em capacidades.
e cultivo mental a seu irmão, levava-lhe todavia vantagem no
caracter. 'N unca o veremos dissimulado e tortuoso, nem invo-
cando, para seus intuitos, falsidades. Exaltado e irritavel, ar-
remette de frente contra os obstaculos, e procura derribai-os
a golpes leaes. ,Altaneiro tio trato, celebre pelo grosseria de
modos, que ficou lendaria, não tem, como daquelle outro di-
ziam, cabe/los no coração. A similhança delle, é partidario. dos
meios violentos.; de bom grado espanca, prende, desterra; mas
não abriga ep ·si a crueza ferina, que seméia patíbulos, inventa
supplícios e acaba de saciar-se depois com os despojos das vi~
ctimas. -Pelo contrario, não raras vezes lhe succede, após a
exaltação do momento, caír em si, reconhecer ·o· erro, recom-
mendar á clemencia o accusado de hontem, desculpar-se a seu .-
modo do arrebatamento indiscreto.
Sua estreia no governo distingue-se logo por actos de

(
A. COMPANHIA DE COMMERCIO 235

energia e irritação, que bem lhe pintam o caracter. Fazendo


viagem de Lisboá ao Maranhão, Francisco Xavier entrou no
porto a 26 de julho de ·1751 e, dando posse ao governador
subalterno, Luiz de Vasconcellos Lobo, que com elle viera,
deu-se pressa em saír para o Pará. Mas a nau deu nos baixos
á vista de terra; além de outras a varias, perdeu o leme; e,
send,o o concerto demorado, o capitão-general ·deliberou trans-
portar-se por terra. ,
Já isto foi uma novidade para a população, não habjtuada
a vêr quem tão elevadas funcções ·exereia desprezar, por zélo
do serviço publico, os commodos pessoaes. O pasmo cresceu,
porém, quando um facto, logo depois conhecido, patenteou
qual ia ser a ol-ientação do novo governo. Lastimavam os ha-
bitantes do Turyassú, logar vizinho da cidade, acharem-se, ha-
via quatorze annos, privados dos soccorros da religião, e vê-
rem. seu templo ao abandC!no, pela a.u sencia do parodio, cujo &

officin pertencia aos religiqsos carmelitas. A estes intimou


Francisco Xavier, recebendo as queixas, que sem demora ele-
gessem um missionario; accrescentando que tal dia, passando
no logar, em caminho para o Pará, tencionava ali ouvir missa;
dessem portanto os padres as necessarias providencias, para
que não houvesse elle governador de .tomar as suas. Tanto
bastou para entrai:em os religiosos no dever, e os christãos,
até ahi sem pastor, se vêrem servidos como desejavam.
A este exemplo de firmeza, que, pelo desusado, a não es-
tarem os missionados cegos pelo orgulho de sua força, lhes
daria muito que pensar, accrescentemos,. para completo relevo
da personagem, um que nos familiarize .com as demasias do
seu proceder e palavras. · .
A pouco trecho da chegada de Mendonça ao Pará, rompe
entre elle e o ouvidor acerba discordia, a proposito das escra-
. vidões. Confiando nas immunidades da toga, o magistrado
;
obstina-se em desattender as ordens_do governador e, exaltado
tambem, lança-lhe o repto, inten_tando prender e sujeitar a
processo crime certo official delle protegido. Irado, manda o
capitão-general ir á sua presença o ouvidor, e ordena-lhe que
deixe ém pàz o indiciado réo. Em. tom colerico, responde o
_ juiz e, exacerbándo-s~ a discussão, dos argumentos os interlo-
cutores passam ás injurias, das palavras ás vias de facto. Ao
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

alarido acodem os criados e gente da guarda. Mal se defende


o ouvidor com o prestigio do cargo, e, pondo mão no espa-
dim, a custo. alcança a rtia, onde ainda o perseguem da ja-
nella as vozes do furioso adversaria. Metiam esse homem. na
golilha, bradava o capitão ·general. A golilha merece Voss~ E%-
cellenda, o outro retorquia, já em desordenada carreira. Tal foi
o edificante espectaculo, que os habitantes do Pará presencia-
ram, logo nos primeiros tempos do governo de Mendonça.
Para desaggravar a justiça real, offendfda na sua' pessoa, o
oiividor abriu devassá contra o seu antagonista. No dizer das
testemunhas, revelava-se este, no trato com os administrados,
atrabiliario e grosseiro; praticava injustiças; favorecia os seus
apaniguados, com detrimentQ do publico; insultava as pessoas
bem nascidas, com epithetos de bêbedos e negros; taxava publi_-

... camente de lad1·ões e velhacos os principaes negociantes t.


Tudo isso, pelo que sabemos do caracter do governador, de-
via ser ex~cto. O que surp.r ehende é a independencia de taes
· declarações, que se explica, todãvia, como arranco desespe-
. rado dos habitantes, ·contra um poder que, desde os primeiros
actos, se lhes presagiàva_ offensivo de seus interesses mais
caros.
Esta arremettida, porém, foi a ultima. Não valeu ao ardido
01.:1vidor o apoio da opinião publica, nem a ostentação das for-
malidades judiciarias. Com pouco, viu-se recluso naJortaleza,
por ordem de Francisco Xavier, a quem teve de entregar a
devassa. Transferido preso para o reino, foi demittido do ser-
·viço publico, e degredado para sessenta leguas da côrte. 'Assim
pagou a ousadia .de se medir com o potentado, que ia sub-
metter a um jµgo novo, e de robusta autoridade, a indiscipli-
nada população da colonia. Para esta, em antithese completa ·
do seu viver anterior, abre-se agora a era de passiva obedien-
cia, característica do regímen pombalino.
A indisposição, que no processo se manifesta contra o ca-
pitão-general, tem sua origem, mais que na arrogancia da pes-
soa, na missão qué lhe fôra commettida, e da qual entravam

1 • . Cf.
os curiosos documentos dados ·á estampa no diario Commercio de
Portugal, pelo sr. José Antonio Moniz, distincto empregado e professor de
bibliologia na Bib. Nac. de Lisboa.

(
A COMPANHIA DE COMMERCIO 237

a surgir quasi seguros indícios. Começara o recem-chegado


pqr toc:,ar em negocios de índios, e nada mais era preciso para
levantar contra elle o sentimento geral. No Maranhão, corrêra
com insistencia que era o principal objecto àa sua ~inda fazer
termfoar, por .uma vez, às captiveiros. Divulgava-se que o pa-
dre Malagrida:, chegado havia pouco do reino, tinha visto ·or-·
dens escriptas .nesse sentido. Sondado, a respeito de tal, por al.:
gum ip.enos tímido, Mendonça negara, dissimulando o propo-
sito; m.as bem depressa confirmou, com seus actos, as sus-
. peita:s. . ·
Os requerimentos de Pau~o da Silva Nunes, parados por
tantos annos no Conselho Ultramarino, tinham afinal vilÍdo á
luz. Os emulos· dos jesuítas não descançavam, e, com a mu-
dança do governo, anteviàrn ensejos de victoria. A mão do
ministro Carvalho tinha ido um relatorio do bacharel João da
Cruz Diniz Pinheiro, ouvidor do Màranhão, onde se desenha-
vam, com vivas côres, as miserias da terra, e se accentuava a
parte, que n<;llas tinha a acção dos missionarios. Com. mais
-exacção, talvez, do que o antigo procurador das camaras, a
quem o odio naturalmente .suggeria exaggêros, ·e ste informante
mais uma vez desçrevia os b~ns, e avaliava a riqueza dos reli-
giosos. O docúmento fôrá confiado em segredo ao ministro,
conforme a nota, por elle proprio lançada i, demonstrando o
alto apreço em que o tomou.
Já no antecédente reina?o começara ~ mover-se, contra os
evangelizadores, o mechanismo governamental. Chamara-se a
attençã~ das . autoridades. locaes para as numerosas providen-
cias anteriores, sobre a partição e liberdades i. Tambem a
- bulla Immensa Pastorum, de Benedicto XIV, sobre as escravi-
. dões, fosse ella um golpe vibrado aos jesuitas, ou simples con-
demnação do abuso, sempre verberad<? pelos pontífices, saía do
esquecimento, em que até então fôra guardada.
Tão importantes foram julgados estes assumptos, que elles

' · t «Breve noticia dos maravilhosos interesses do Estado do Maranhão


ponderados no seu descobrimento, e vertidos em ultima ruina pelos meios
- propostos para a sua subsistencia ». -Ms. da Bibl. Nac. de Lisboa. Arch. do
Conselho Ultlamarino. Por extenso it1 fine, nota E. ·
2 Officio de Gurjão, 6 de maio de 1748. Arch. do Pará.
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

·fazem, com o negócio dos limites, o assumpto qua.51 exclusivo


das instrucções, em duas vias, uma publica e outra secreta,
expedidas a Mendonça, quando foi governar o Pará. Convem .
desfazer aqui a idéa, geralmente admittida, . de ter Carvalho.
entrado para o ministerio com opinião formada ·contra os je-
suítas, e já machinando os projectos, que haviam_de terminàr
pela sua expulsão. ·Ao contrario,- similhante assertõ se vê ca-
balmente desmentido por estas instrucções. '"
Nellas, o governo considera a prosperidade do Gi;-ão-Pará
e Maranhão indissoluvelmente ligada á liberdade dos índios, e
ao estado das missões. Recapitula a legislação sobre os capti-
veiros, a qual, nnnca cumprida., dera logar ás ordens de I 74i
e annos. seguintes. Declara livres todos os selvagens, e revoga
quaesquer providencias em contrario. Recommenda . que os
moradores do Estado cultivem as terras com escravos ne-
gros, como é uso no Brazil, ou então tomem os indios a sol-
dada.
Acêrca dos religfosos, prescreve que, se estes fizerem dif-
fi.culdades sobre as escravidões, e recusarem pag~r os salarios;
o governador os persuada a que se sujeitem, e sejam os pri-
meiros na obediencia, sob pena de se verem esbulhados das
terras, que só por abuso senlioreiam. Manda, além disso, infor-
mar sobre o 'excessivo poder _çios ecclesiasticos, no temporal, e
pergunta se -não convirá occuparem-se elles sómente do es·
piritual, recebendo dl!- corôa o necessariÕ, para sua congrua
sustentação. Nada, em tudo, se' lê que toque especialmente aos
jesuítas, ou demonstre contra elles ho?tilidade. Ao revés disso
o rei ordena que os mesmos estabeleçam mais duas aldeias:
uma perto da bôca do Javary, outra das cachoeiras do Japurá,
nos limites de Castella; e- que, em as novas fundações do cabo
'do Norte, se lhes dê tambeip. preferencia, «por serem elles que
tratam os indios com mais caridade e melhor sabem formar e
conservar as aldeias t ».
Esta é a . summula das instrucções secretas, diversas das
que tinham de saír a publico, pela inclusão dos artigos, refe-
rentes ao proceder dos religiosos, e de outros sobre a instituição

1 Instrucções por extenso in .fine. Nota F.

f
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

dos outros habitantes t. Os jesuítas, arrogantes, continuavam a


recusar os índios, ainda mesmo para o serviço real. Orgul.ho-
so~ de .suas riquezas, e das repetidas victorias contra seus
opponentes~ não tinham limites na prepotenci~. No governo
antecedente, haviam chegado ao excesso de mandarem arre-
batar á escolta um criminos9, que ia para a 'forcâ, e, do mes-
mo lance, o algoz, ·outro sentenciado, que Jôra escravo do Col-
legio. Apesar das reclamações da justiça, só depois de um
cerco em regra, pela força militar, entregaram os homiziados.
Na. villa da Môcha, indo o ouvidor fazer uma demarcação, que
limitava as fazendas da Companhia, o superior, julgando a
solução lesiva, excommungou o magistrado. Outros factos de
menor importancia, a cada passo, demoQstravaril reputarem-sé
os missionados -isentos da obrigação de obediencia ou respeito
ao poder civil. Do pé em que viviam com os indígenas infor- -
triava Mendonça: «Toda a administração da justiça, que.. de-
veram ter os governadores e ministros, está nos regulares ...
Elles teem o senhorio universal de todos os indios deste Es- ,
tado » 2.
Não obstando quantos regulamentos e ordens especiáes se
haviam promulgado, em favor destes ultimos, jámais fôra tão
desenfreada a oppressão. As formalidades legaes, com que, ao .
menos,·se cohonestava antes a tyrannia, não s~ executavam, e
innumeraveis ·_escravos se reti~ham sem prova. Nas tropas de
resgate, as peças _tinham de ser exam!nadas pelo missionario,
que julgava da legitimidade da presa. Segundo a decisão delle;
se o captiveiro era justo, ficava sendo perpetuo para o indio;
se infundado, ·servia este, por espaço de cinco aqnos, depois
dos quaes, passava, como livre, ás aldeias .da repartição. Do
exame se fazia um auto, transcripto depois em registo espe-
cial; mas succedia frequentes vezes, decerto intencionalmente,
perderem-se os livros, e d'ahi provinha, na duvida, mante-

t "Naquelle tempo eram pela liberdade, porque não tinham as reli-


giões captivo algum, e agora são ellas que, se não teem todos, teem certa-
mente a maior parte », -Francisco Xavier a Diogo de Mendonça·Cô.rte-Real.
Officio de 30 .de novembro de 175r. Arch. do Pará.
2 Officio de 30 de janeiro de 1752, a Diogo de Mendonça Côrte-Real.

Arch. do Pará.

(
A COMPANHIA DE COMMERCIO

rem-se na escravidão muitos, que pelo exame eram livres,


além de outros, apprehendidos occultamente, e portanto nunca
admittidos á qúalificação. Apezar de vedados, os resgates con-
tinuavam. Criminosos, foragidos do Pará, viviam, nos recessos
do Amazonas, entregues ao illicito trafico, protegidos dos mis-
sionarios, a. quem facilitavam os desdmentos . para as aldeias.
· _ De entre elles, o mameluco Francisco Portilho de Melfo foi o
mais celebre. Estabelecera varias povoações de indios no rio
' Negro, chegando, no tenJ.po ~de Mendonça, a ter ás suas or-
dens cerca de setecentas pessoas. Antes disso, o governador
Gurjão, na impossibilidade de o sujeitar pela força, propuzera-
Jhe descer, ~om esses índios, para a costa de Macapá, ficando
·~lle Portilho com a administração. Receoso de alguma cilada,
o sertanejo só mais tarde accedeu, quando Mendonça, reco-
nhecendo egualmente a impotencia de o castigar, renovou a
proposta. .
Em tal anarchia, facil é imaginar que tratos supportariam
os selvagens. Muitos delles appareciam cóm o nome do se-
nhor, gravado a ferro em brasa, ou com lancêta, no peito, e,
sendo as lettras grandes, ás vezes em duas regras. Era este o
castigo da fuga, ou de algum delicto, que.. os moradores, por
não perderem o escravo, occultavam á justiça; proceder este
em qualquer dos casos critninoso, e que .a lei declaradamente
impedia. A praxe fôra introduzida pelos cabos de tropas de
r~sgate que, por distincção dos indios 1 apartados para a fa-
zenda real, lhes punham marca; e sob tão bons auspícios a
continuavam os moradores i.
De tudo isto dava o novo governador conta, · em longas
cartas a seu irmão, e ao ministro, por cuja secretaria os ne~
godos coloniaes particularmente corriam: Entretanto, ia occ·or-
rend~ ao mais urgente, consoante lhe seus bons desejos , de
acertar aconselhavam. Nada deixando transpirar da recent.e

1 Officio de Francisco Xavier de Mendonça de 16 de novembro de


1752. Archivos do Pará. A requerimento da camara se mandara executar no
Estado a lei de 3 de m~io dE'. 1741, vigente no Brazil, dispondo que se
marcassem a· ferro em brasa os escravos fugidos nos mocambos; só porém
os negros; os índios, esses em caso algum.-Resol. de 30 de maio de 1750.
Prov. de 12 de maio de 1751.
3i
()S · JESUJTAS NO GRÃO-PARÁ

-
'lei, que apolia os capt!veiros, tratou de cprrigir as violações
da ~~tiga. Aqs índios, m.arc~~os a ferro, ma,nciou pôr em liber-
dad~. 9 m.esmo praticou com todos aquelles, de .cuja licita,
escravidão havia duvida,s. Para ~cprimir a continuação dos res-
gates, ordenou que os commandantes das fortalezas do Ama-
zonas prendessem q.s pessoas, qi.1e soubessem occupadas_nelles,
enviando á sédé da capitania ºli índios, livres desde esse mo-
mento. Contemplancio, pqrém, ~ cxtrem.a penuria dos babitan-
tes, eil-o que aponta, a9 governo q. inoppõrtunidade de re5ql-
ver a questão por. um golpe immediàto. «Este Estado, e prin-
cipaJ!Ilente esta capitania (diz), se acha rec;:Iuzicio á extrema
!Iliseria; Todos os seus moradores estão na ultima conster!la.-
çã~; são poucos os que ainda cultivam alguns generos. A
maior par~e conservam algum índio escravo, para lhes ir bus-
çar a,o rio, ou ao mato,' o miserayçl s,usten,to quotidiano! com
que passam pobrissimamente, mettidos em uma choupana,,.. a -
que elles chamam roça » l.. D_e certo, sem a eloquencia de
Vieira, não desenha tqdavia com ~enos exacção a inópia
deste povo infeliz. Fazendo por galvanizar um organismo
inerte, Mendonça conyoca os principaes habitantes; pergunta:
lhes que remedio antecipam a uma situação, cada dia ma,is
perigosa. _A cons.ulta é igual á de toda,s as épo~as. A· uma
opin.am ós do conselhq se lhes faculte descerem os indios para
as fazendas, como fa~em os religiosos. A introducção dos
africanos não lhes sorri; . pnis, com ·que recursos hão-de pa-
gai-os? E mais, ~tendo os missionarios á sua disposição tantos
índios, ·que nada lhes custam, como pocierão .os mor3:d,~res ti-
rar vant3:gem com os negros, por elevado preço? Estq.s razões
. convencem o governador, que apoia o alvitre dos descimentos,
suggerip.do a creação de aldeic;ts, para onde se ~ragam os ín-
dios, na vizinhança das cidades e povoações principaes; isen-
tos, porém, da jurisdicção dos religiosos; ao governádor caben-·
do providenciar sobre a repartição e a cobrança dos salarios.
· A proposta e as observações de ·Mendonça tiveram em
Lisboa acolhimento. O governo concedeu o adiamento na pu:
blicação da lei emancipadora, e autorisou novamente os resga-
tes. Parece que · isso foi antes uma fraternal condescendencia

Officio de 30 de novembro de 175;, A(ch. do Pará.

(
A COMPANHIA DE COMMERCIO 243

de Carvalho, que o effdto dos· argumentds invocados. Em ver-


dade, não erá o . ministro, já então primeiro na ·confiança do
monarcha, hoinem que levemente mudasse de prbposito; e
tanto assim que, firme neÍle, na mesma occasião accentua os
preceitos anteriores. A escravidão dos indios não pode jamais
conduzir á prosperidade': emancipal-os será o meio ·unico. de
os levar ao trabalho; acçeitem isso os colonos, e terão servi-
çaes, tantos quantos lhes fôrem · necessarios. , Estas maximas
faça o governador por incutil-as no espirita das pessoàs illus-
tradas, e mais influentes da terra i. -
No entanto, desembaraçado.por esta parte dos receios, que
o assoberbavam pela manutenção da ordem publica, poude
Mendonça consagrar-se a 'o utros assumptos, não menos impor-
tantes, do seu governo: fomentar, pelos meios a seu alcance,
.a restauração economica da província, e preparar o serviço das
demarcações. . .
· A importação de negros de Africa parecera-lhe, á primeira
vista, ineffic~z 2. Porventura, no reêondito de seu ánimo, con-
demnando uma escravidão, repellia, por eguàimente injusta, a
outra. Cumpria-lhe, porém, dar seguimento ás régias dtdens,
e do Maranhão indicavam-lhe o caminho. Tinham os tnorádo-
r~s d'ali, por obviarem' á~ falta dos ihdios, pedido ao governo .de
Lisboa escravos africanos. Sabendo, porém, que o encargo se
dava sempre a privilegiados cdntratantes, e receosos talvez dos
inco~~enientes do mbnopolio, occorreu-Ihes intentarem por si
o negocio. Com este objecto, assentaram de fdrinar uma com-
panhia, e a camara de São Luiz impetrou licença para ella:. A
deci;ão foi favoravel, persistindo as. autoriSações, àinda no caso
de fazer ·a corôa o costumado contràto com os especuladores
do reino ª·
Este projecto não consta que tivesse sequer principio de
execução. A iniciativa sossobrou na falta de recursos pecunia~

1 Sebastião José de Carvalho a: Francisco- Xavier. Carta ·de 15 de maio


de 1753· Bibl. Nac. de Lisboa.
2 «Sendo a introdi.tcção dos pretos uma especialissima mercê de Sua
Majestade para estes moradores, pode tambem ser a causa da total ruina
deste Estado». -Officio de 28 de janeiro de 1752. Arch. do Pará.
3 Resol. de 17 de julho de 1752·
244 ' OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

rios, e nâ inercia habitual. Entretanto, não podia o muito, que


havia de apr.oveitavel na idéa, passar desper.cebido á natural
agudeza de Mendonça. Trocando por enthusiasmo a repugnan:
eia anterior, já vê agora, na introducção de negros por ~ma
companhia de negociantes, a opportuna providencia para a ' li-_
bertação dos indigenas .i; e não lhe é menos grato, como s~bor­
dinado, realizar os planos do ministro, do que, por veneração
affectuosa, Jisongear antigas idéas do prop~gnador da Compa-
nhia Oriental. Já então esta ultima tivera principio, commet- .
tend0 Carvalho a organização a Feliciano Velho Oldemberg, ·
que era o mais opulento negociante do reino; e o acolhimento
animador, que tivera a pretenção dos maranhenses, assegurava
o exito de qualquer out'.a similhante.
Concorrendo, _pois, neste ponto, o sentir dos dois irmãos,
não ha duvida que virá a bom porto a empresa, e desvane-
cem-se, por completo, os receios de Mendonça. Oppôf, ao or-
ganismo compacto das religiões, elementos até ahi dispersos,
amalgamados d~ futuro na companhia, parece-lhe facil meio
de entrar com ellas em competencia, e disputar-lhes o rendoso
commercio do Estado. Insistindo, conforme Carvalho lhe re-
commendara, em mostrar á gente da terra a inconveniencia
das escravidões, aponta-lhes o exemplo da recente tentativa;
incita-lhes o .estiI_Ilulo de habitantes da principal capitania;
aguça-lhes· a cubiça, co~ o prospeeto ~e seguras riquezas.
Debalde, porém, o fa~. Não logra extinguir o preconceito, re-
lativo aos indios, nem despertar as vontades, á sombra delle
hereditariamente adormecidas. Ainda assim não desanima, e,
pelas suggestões do immediato interesse ou do temor,, leva al-
guns dos mais graduados habitantes a ~cceita~em o projecto;
convoca-os, e faz que tracem na sua presença as linhas geraes
do plano. Mas, 'quando chega a vez de cada um propôr a sua
quota para º· fundo social, então se demonstra a lamentavel
indigencia da populacão. Trinta' 'e dois mil cruzados eis o ma-
ximo que se pode reunir para tão importante negociação, e
isso, observa Mendonça, t a ultima substanda da capitania 2.

1 Officio de 18 de janeiro de 1754: «A companhia é o unico meio de


acabar com a escravidão dos indios. » ...:. Arch. do Pará.
:i Idem, id. ,

(
A COMPANHIA DE COMMERCIO 245

Não importa~ do, reino virá o auxilio. Seu irmão grangeará o


concurso dos opulentos da metropole._ Desde já, para maior
incentivo, indica tres privilegios: que a companhia, por espaço
de trinta annos, não pague direitos das madeiras levadas &
Lisboa, na torna viagem, dÓs barcos, empregados no transporte
de negros; que o cabedal, entrado para ella, não fique sujeito
á execi:lção, por dividas cõntrahidas depois; que o mesmo tenh~
isenção ge confisco, at.é mesmo no.s casos excepcionaes de'
lesa-magestade. Nestas b~ses, e patrocinada pelo capitão-gene-

\
ral, foi endereçada a supplica ao soberano.
Já então se acercavam de Carvalho os financeiros sem es-
crupulos, que foram a calamidade e fizeram a :eputação do.
seu governo. Nada teve a invejar, ilesse ponto, o regímen, tão .
cioso das régias prerogativas, ás actuaes democracias. Punha-se
um paradeiro á avidez dos nobres abatidos, entregando, por
·outra parte, o reino inteiro, á exploração de mercantes insacia·
1
\
vei~. Com o fundamento! sincero no ministro, de adiantar o
·commercio e as industrias do paiz, iam criar-se os odiosos

,.
m«?nopolios, e chover os pingues empregos, sobre os favoritos i
plebeus; e, se estes enriqueciam cotri os despojos da nação, ·1
crescia tambem parã:Uelamente,· pela reciprocidade das conces-
sõc::s, 'a fortuna do doador t, Já Feliciari~ Velho Oldemberg f

l Não ·é necessario, para comprovar este asserto, recÕrrer aos pamphle-


tarios inimigos de Pombal, nem aos documentos clandestinos do tempo, um
dos quaes, por exemplo, refere que os interessados na Companhia do Grão ·
Pará offereceram á condessa Daun, si.:a esposa, quinz.e acções, 110 valor de cento
e cincoenta mil cruz.a.dos. (Carta de Francisco Xavier Teixeira de Mendonça a
um nobre de Hespanha; Ms. da Bibl. Nac. de Lisboa). A falsidade dos alga-
rismos, por isso que as acções eram de quatrocentos mil réis, pode nos fazer
pôr em duvida a affirmativa. Se, todavia, recorrermos ás Memorias d_e Jacome
Ratton, panegyrista do ministro, por ser um dos favorecidos, as quaes, sobre
este capitulo mui desastradamente procuram defendel-o, melhores argumen-
tos se nos offt.!recem.- A paginas 188 e 189 lemos: «Deixando Sebastião José
de Carvalho a sua casa da rua Formosa, para ir viver na barraca da Ajuda,
foi a dita casa arrendada por 4:000 cru~ados annuaes, a uma casa de com-
mercio ingleza: excessivo aluguel para aquelle tempo, mas que os ditos com-
inerciantes pagavam de mui boa vontade, pela conservação do contra:eto do
páu-brazil. . . O padre frei José de Mansilha, procurador geral da Companhia
dos Vinhos do Alto-Douro, comprava por bom preço todos os vinhos da
quinta de Oeiras, como muito necessarios, dizia elle, para lotar os da dita
Companhia, cuja necessidade acabo~ com- o minísterio do dono da quinta .. •
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

alcançara o valioso privilegio do commerc10 da India e -da


China. Entrava agora a familia Cruz, amparada no val_imento
de um de seus membros, simples religioso, que, no tempo em
que Carvalho era no Paço uin repellido pretendente, lhe ren-
dera serviços. Apôs esses viriam os Quintellas, os Stephens,
os Jotges, e alguns outros, de cuja opulencia permanece até
hoje a memoria. ·
José Frarici_sco da Çn.1z que, se devemos acreditar os . coé-
vos, no Brazil, dera começo de maneira indecorosa á sua for-
tuna t, foi o encarregado de estudar o projecto dos colonos
paraenses. De muitas conferencias entre elle e o ministrb, re-
sultou á' propost~, em cincoenta e cinco paragraphos a qual,
subscripta pot um grupo de negociantes, formou o. estatuto
da companhia. Mal podia o governador do Grão-Pará reconhe-
cer nella a modestia do seu plano primitivo. Tomado de en-
thusiasmo, communicava-lhe o irmão que el-rei a mandava es-
tabelecer, convenddo de sua utilidade, «não com o capital ~e
doze contos de réis, que offereciam os moradores; mas de um ·.
milhito cruzados! 2 Elle mesmo, ministro, estava organizando
. o projecto definitivo, que brevemente enviaria. Tres. gran-
des negocios o occ1:1pavam agora: a creação .da companhia;·
a secularização das aldeias, . dirigidas pelos missionarios; a
liberdade dos índios; e o primeiro seria a base dos outros
dois 3,

Os vendedores lhe largavam os generos por diminutos preços, e nunca: se


apressavam em obter o pagamento·; e, se por acaso algum esquecia ao minis-
tro influente, esquecia tambem ao vendedor». Se taes factos são, como é
pfausivel suppôr, verdadeiros,. padece com elles a inteireza do marquez, cuja
boa fé Ratton pleiteia n~ seguintes palavras: «Eis aqui como os ministros,
ainda os mais rectos, se não podem livrar dos ardis daquelles que só estu-
dam os meios de os enganar ii. _À candura de similhante apreciação dispensa
os é:ommentarios.
1 C<Teve José Francisco, nos poucos annos que se demorou na Bahia
tres testamentarias pingues, e das quaes pouco ou nada cumpriu, de maneira
que, depois da slia morte, montava o alcance para cima de tresenro·s mil cru-
zados» . - GRAMOZA, Successos de Portugal, tom. 1.
2 Sebastião JO'sé de Carvalho a Francisco Xavier.,Carta de 14 de mar<jo
de 175 5. Bibl. Nac. de Lisboa.
3
O mesmo ao mesmo. Carta de 12 de maio de 1'}'55. Bibl. Nac. de
_Lisboá.
OS JESUI'.fAS NO\ GRÃO.- PARÁ

. '

o discurso authentico, por outro emend.ado. Ainda assim, do


texto que ficou, sáem mal feridos os capitalistas, para quem
affiuia agora a corrente dos monopolios. - «Eu, senhores, (di-
zia o prégador) n~o intento impugnar as companhias dos ho-
mens, p9rque o commercio não se prohibe, quando é licito; o
meu intento é só persuadir,_ aos que enriqueceram· por meios
illicitos, que entrem na companhia que Christo quer hoje esta-
belecer com elles. » E; mais adiante: « A primeira condição é
que, neste contrato de sociedade, ou n~sta nova companhia,
só podem entrar aquelles que enriqueceram por meios z'lli'âtos !»
Riam os m1vintes á socapa, percebendo a allusão ao Cruz, e
outros talvez, de consciencia tambem carregada. Mas o jesuíta
explicava a parabola: queria dizer que « nenhum homem de
negocio se ·póde encorporà.r nesta' junta, sem preceder nelle a
verdadeira penitencia» t. · -
Mesmo não encerrando ataque ·directo, e reduzida a estes
termos, a satyra era púngent~ bastante, para açttlar a colera
do secretario de Estado, e dos argentarios, seus amigos. Com
effeito, a represalia não tardou. Poucos dias eram passados,
quando um corregedor, _á frente de soldados, 'roi ao collegió
de Santo Antão intimar .a ordem de exilio, para setenta le-
guas da côrte, ao audacioso prégador; na mesma occasião
saíu para o desterro o padre Bento da Fonseca, procurador
vice-provincial do Maranhão; mas um e outro facto se enca-
deiam, ·a um esforço de reacção mais importante, que as sim-
ples objurgatorias do pulpito.

IV

A opinião publica, ainda não habituada a inclinar-se, como


depois, ao primeiro nuto de um despota, recebera mal, como vi-
, mos, o. acto que, em detrimento de tantos, enriquecia com exor-
bitantes privilegios a nova instituição. Os negociantes, donos

• 1 Cf. o texto original existente na Bibl. Nac. de Lisboa, Coll. Pomb.

(
A CO!t\PANHIA DE COM!'liERCIO 249

do pequeno commercio, que se fazia com o Pará-Maranhão, pro-


testavam, e certo numero de entre elles endereçaram uma sup-
plica á Mesa do Bem Commum, para que tomasse a defe~a
dos interesses lezados. Era aquella uma companhia, equiv~lente
na organização, e modo de funccionar, aos syndicatos profissio-
naes, e camaras de commercio,_de nossos dias; filiada, na ori-
gem, ás antigas corporações de. mesteres, pugnava pelos inte-
resses da classe, continuan~o as boas tradições da :Junta de
Commer~z"o, dissolvida no reinado de Dom João v; e, obede-
cendo aos impulsos ·do beatismo predominante, e aos costumes
herdados, formava ao mesmo tempo uma confraria religiosa,
sob-a invocação do Espir_ito Santo, adaptada, porventura, para
que este· lhe alumiasse as decisões. Como representante das
missões do Marànhão que, sabemos, faziam grosso commercio
com a praça de Lisboa, o padre Bento da Fonseca estava em
relações constantes com muitos homens de negocio; e, ao
mesmo tempo, era elle pessoa que, por muitos annos de re-
sidencia no Grão-Pará, conhecia bem as necessidades e Jn-
teresses do Estado. Sua opinião foi, portanto, ouvida, e elle
mesmo preparou a minuta, sobre a qual o advogado João
Th~más de Negreiros, em nome da Mesa do Bem Commum,
redigiu um extenso e bem fundado protesto, contra a inop-
portunidade da creação e a injustiça dos privilegias da Com-
panhia. '
Recordara Be~to da Fonseca os · successos do Maranhão,
no seculo anterior, quando instituição similhante deu causa á
- sedição de Beckmann. Nessa parte; Ó advogado Negreiros se
espraiou, com individuação talvez indiscreta; e, em seguida,
arrazoando . suas queixas, buscava demonstrar que não era a
fundação util, ao bem geral ·do paiz oil da colonia; tão pouco
aos interesses da corôa, como tambem o não era ao serviço
de Deus. Facilmente se deixava ver, na longa dissertação, a
influencia da gente de Igreja, no ferv€>r com que deplora a
ruina das missões, privadas dos meios de subsistencia; que
·tiravam do livre commercio de seus generos. A linguagem
-erá, posto que respeitosa, em mais de uma parte energica;
e havia comparações, entre o proceder actuar e o d<_;>s reis de
outros tempos, que offenderiam talvez o orgulho de Dom José,
e de certo o amor proprio intangível do ministro, para quem
31!


250 OS JESUITAS NO GRÃO-PARA

a ·resistencia a seus diétames foi sempre a maior das in-


jurias. , _
Em corporação, foi a Mesa do Bem Commum levar a sup-
plíca ao soberano, dias após que a oração do padre Ballester
dera o signal das manifestações; e, no m~smo acto, fora~ dis-
tribuídas cópias, por diversas pessoas presentes. Era isso ap-
, pelar da parcialidade' do príncipe para a justiça do publico, e
Carvalho poude facilmente capitular o facto de ultraje á di-
. . gnidade régia, como aso lhe deram as allusões, á revolta. de
· 1684, para as converter, perante o rei, em ameaçàs. Justificava
assim o arbitraria procedimento, com que ia por uma vez fa-
zer calar os_ protestos, e demonstrar que, á execuÇão de suas
vontades, não permittia obstaculos. Era elle já o valido do mÕ-
narcha, cuja indolencia acariciava, tomando-lhe das mãos . o
fardo do governo. Favoreciam-no as circumstancias em sus.ci-
tar-lhe resistencias, que esmagaria de .um golpe, manifestando
a ·sua força; com o que, tanto se fazia valer ante o soberano,
pela energia, como respeitar dos vassallos, pela severidade.
Ainda não tinham chegado os dias do terremoto, e dos tiros
de Belem, que, pelo terror, lhe entregaram á discrição a von-
tade real; mas longe iam os tempos, em .que o cardeal da' Motta
recusava ' ouvir as propostas sobre a Companhia Oriental, ou o
tio Marco Antonio o desterrava, por ellas, para o fundo da
Allemanha. Agora era elle guem dominava, sósinho e acima
. de todos. O rei, offe~dido co~ os termos da representação, e
os modos de ,quem lh'a trouxera, tudo -sem duvida ardilosa-
mente exaggerado pelo ministro, encarregava a este o castigo,
e voltava ás suas ·caçadas e distracções habituaes.
O agastamento de Carvalho ia pesar rijamente sobre os
levianos offensores, tanto mais quanto se lhe deparava agora
occasião a desaggravar queixas antigas. Não era a primeira
vez que a gente do commercio, altiva, por independente do
governo, lhe .contrastava as decisões .. Uma destas, que mais
clam.ores levantou, foi o decreto (de 28 de novembro de 1753),
que regulava a partida das frotas, designando os tempos cer-·
tos, em que deviam saír do reino e voltar. Em Lisboa se fize:
- ram varias requerimentos, allegando a impossibilidade da exe-
cução, e no Brazil, sobretudo n.a Bahia e em Pernambuco, não
fôra menor a resistencia, contribuindo para dar-lhe força o apoio

l.l
A COMPANHIA DE COMMERCIO

das autc;iridades coloniaes, do que resultou a inobservancia,


por assim dizer constante, da lei. O restabelecimento do sys-
tema tributario dos quintos nas minas, a substituir as Qppres-
sivas capitações (lei de f de dezembro de 1753), -fôra uma re-
forma pedida e necessaiia ; mas o ministro, seguindo a orien-
taÇãq propria do seu caracter, a acompanhara de taes vexa-
ções, no modo de fiscalizar, que Minas Geraes em ·peso se pro-
nunciou contra ella. Outras providencias, tendentes, em seu
pensar, a erguer do abatimento o commercio do Brazil, expe-
rimentaram egual opposição t; e taes antecedentes, exacer-
bando-lhe o animo, levavam-no agora a destruir com rudeza '
uma contradicção, para a qual, em outras circumstancias, se
mostraria talvez mais benevolo.
Inesperadamente e á mesma hora, foram sete dos doze
membros que compunham a Mesa do Bem Commum,-os que
tinham participado no protes~o - , e o advogado Negreiros,
presos em suas casas, conduzidos á cadeia, e mettidos em se-
gredos. No dia 30 de setembro, saíu o decreto que relegava
Negreiros, e mais dois, para o presidio de Mazagão, e os res-
tantes para diversos ·pontos ,do reino. N~m escapou á pena
um dos mesarios, que recusara assignar a representação, por
t~r, dizia elle, ce1·tas dependencias do senhor Sebastião :José.
Esse· mesmo, que propoz se remettésse á secretaria o requeri-
mento primitivo dos reclamantes, sem commentario algum, foi
exilado para Porto de Moz.
Apprehendidos os papeis pertencentes á Mesa, encontrou-
se a prova material do accordo com os jesuítas. A minuta de
Bento da Fonseca lá estava para condemnal-o ao desterro.
Foi chamado á secretaria·do reino o provincial da Companhia,
e advertido que a intromissão de seus r~ligiosos, em negocios

Sebastião José de Carvalho a Francisco Xavier: <e Foram tantas as re-


pres.e ntações quantas são ·as camaras das referidas Mii:ias, queixando-se barba-
ramente de que os opprimiam». E adiante: «Lembro-me de que os e~tabe­
lecimentos' das casas de inspecção, da regularidade da navegação, da mode-
ração dos direitos, da determinação dos tem_pos· certos, dada á partida e torna-
viagem do Brazil ... tambem tiverám por 'r econhecimento as repetidas oppo-
sições e o; inconsiderados requerimentos". - Carta familiar de 1 .2 de maio
de f755. Bibl. Nac. de Lisboa .


OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

. .
politicos, daria motivo a repressão severa. O terremoto do 1. 0
de novembro, chamando para outra parte a attenção de Car-
valho, remiu as penas dos condemnados, menos um, o desdi-
toso Negreiros, que pereceu esmagado sob as paredes do car-
, cere, onde esperava a hora de embarcar para o presidio. Os
outros aproveitaram da amnistia, publicada em seguida, e que
foi o unico acto de clemencia deste genero.
. Os successos de Lisboa inspiraram receios de que, no Pará,
igual opposição se levantasse. O exemplo do padre Ballester.po-
dia ser ·imitado na colonia, onde maior era a influencia dos
jesuitas. Os habitantes ha_viam de sentir ver-s.e privados da
· liberdade de commerciar com a metropole; e, entre esses, os
promotores da companhia, desilludidos e alvo da zombaria
geral, certo lamentariam a cega confiança nas promessas do
governador. Os antecedentes hist?ricos da população, sempre
prompta aos actos de turbulencia, justificavam. por outro lado
as apprehensões. Era, pois; de atilado concei~o prever algum
sedicioso e violento protesto dos moradores.
As instrucções, enviadas por Carvalho a seu irmão; de-
monstram o proposito de reduzir, por actos de ~nergia, os
recalcitrantes á proinpta obediencia. Escrevendo, . em 4 de
agosto dá-lhe noticia do sermão do padre Ballester, cujo ob-
jecto tjnha sido, dizia, provocar ·uma sedição contra ,ª Com-
panhia de Commercio: informa-o de ter a Mesa do Bem Com-
mum ousado fazer a el-rei uma representação - e sacrílega
satyra contra uma lei tão util e necessaria, em ·cuja observai1.-
cia tinha a sua real pal_avra emp·enhada »; conta que ficavam
presos, e respondendo a interrogatorio, nos carceres, os homens
de negocio; os jesuítas confusos e em desanimo. Se estes ul-
timos intentassem, no Estado, praticar, como em Lisboa,
usando do pulpito, para excitar os animos contra a nova insti-
tuição, a identicas penas ficariam sujeitos, isto é deportado
para o reino seria o prégador, e o superior admoestado a con-
ter, no· respeito devido ás leis, os 'religiosos, sob pena de m.ais
severo proceder. Os particulares, que semeassem o· desconten-
tamento, por meio de criticas ou protesJ;os, seriam logo pre-
sos, para desengano dos outrós. Se, porém, a opposição che~
gasse ao excesso de romper em tumultos, a devassa e a pena
uJtima · esperavam os cabeça.S. Já por ahi se annunciavam os

r
A COMPANHIA DE COMMERCIO 253

cadafalsos do -Porto; 1nas ~ indolencia, que se lhes fizera pro-


pria do temperamento, e o habito da oppressão pelos régulos
locaes, exim"iram ·os habitantes dó Pará a este primeiro ensaio
da. crueza pombalina. Entretanto, o ministro prepotente inicia-
va o terror, declarando já que era caso de lesa magestade
criticar os seus decretos t.

Sebastião José de Carvalho a Francisc_9 Xavier: "O primeiro ou pri-


meiros d~quelles sediciosos, antes de se precipitarem em maiores absurdos,-
sejam promptamente presos, postos em segredo, e nelle perguntados, se sa-
bem que é crime de lesa magestade dizer mal das leis d'el-rei, malquistan-
do-as no conceito do povo ignorante » . - Carta de 4 de ' agosto de 17 55 .
Bibl. Nac. de Lisboa. ·
f

fl
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Com estas .palavras principia a carta, em · que Sebastião


José de Carvalho participa ao governador do Grão-Pará expe-
dir-lhe a lei das liberdades. Dependente, em seu espírito, esta
providencia da instituição da Companhia de Commercio, e dó
termo do regimen, até ahi adoptàdo nas missões, foi promut-·
gada na mesma data que o estabelecimento daquella, assim
como o decreto, que retirava aos religiosos o governo dos ín-
dios, passando este definitivamente ao poder civil.
A reforma, que tão profundamente abalava o pre.dominio
das ordens monasticas, e a que, alterando as relações do indí-
gena com o colono; era a egual tempo transformação social e
economica, não permittiu a prudencia do governo sa,írem a
publico; mas, permanecendo secretas, ao arbítrio do capitão-
general foi encommendado pôl-as em execução, quando che-
gasse o mome,nto opportuno. '
Estas ordens não as recebeu 'elle na capital do seu gover-
no, pois saíra della, em outubro do anno antecedente para o
rio Negro, onde devia encontrar-s.e com os encarregados das
demarcações por Castella. A commissão, que sobrepujava em
importancia qualquer outra das que lhe incumbiam, era por-
ventura tan~bem mais que ellas eriçada de escolhos. Sabemos -
que, do lado espanhol, a convenção fôra acolhid_a com descon-
fiança. Em Portugal variavam as opiniões, podendo-se dizer
que havia um forte partido contrario. O Pará via sómente pre-
juízos na troca de territorios. João de Sousa de Azevedo, o
arrojado sertanejo qil';!, viajando d'ali a Mato Grosso, tantas
vezes percorrêra as regiões, por onde havia de passar a fron~
teirà, consultado. pelo governador, respondia parecer:-lhe tal
divisão uma trai'ção fonnal; e o proprio Mendonça chega a
inferir, das informações que -recolhe, «que naquelle contrato
tiveram os outros melhores procuradores que os portugue-
zes)) i.
Aos obstaculos, que . das prevenções de uma e outra parte
haviam de resultar, juntavam-se as difficuldades de ordem ma·
teria!. Já o antécessor de Mendonça, .em I 7 50, representara ao
governo de Lisboa quão difficil se tornaria grangear, no Es-
tado, os recursos indispensaveis á expedição. A epidemia di-

l Officio de 20 de jan'eiro de 17~ 2. Bibl. Nac. de Lisboa.

fi
A EMANCIPAÇÃO DOS INDJOS 257

minuira o numero de indios, faltando portanto as farinhas, e a


gente de remo. Achando-se o ponto de encontro dos pleni-
potené:iarios, no rio Negro, em terreno longínquo, deshabitado
e inculto, indispensavel se tomav~ depositar ali, com antece-
dencia, todo o necessario para o conveniente agasalho da nu-
merosa população adventícia, soldaºos, tripulações, e commis-
sarios de ambas as nacionalidades, que compunham as expe-
dições. Mas tal difficuldade não era para desanimar o actu~l
governador. No seio do deserto havia ago.ra de surgir uma
cida.d e; sobre mantimentos provia-se, mandando plantar pelos
indígenas extensas roças, que fornecessem as farinhas; e o pro-·
v:incial dos jesuítas, e superiores dos outros missionarias, da-
riam; para os serviços de transporte; lavoura e edificação, os
indios que lhes fossem requisitados.
Com isto se ateou a guerra, entre os religiosos ·e o capitão·
general. As positivas determinações. do governo, confessando
aliás ~ melhor desejo de c'umpril-as, obtemperavam os missio·
narios não terem nas aldeias tantos índios disponíveis. Escasso
como era o numero dos que se apresentavam para tomar
parte na expediçãÓ, esses mesm~s depois se evadiam. Guar·
necidas as embarcações, e disposto Mendonça a partir, deser-
tavam; e assim, mais de uma vez, fo.rçado lhe foi dilatar a .
viagem.
. Avisado destes faétos o governo da metropo!e, não hesita
em proceder severamente contni os que, com verosimilhan-
ça, julga delinquentes. Extingue por isso nas aldeias, a qu~
pertencem os desertores; o poder t~mporal dos missionarios;
manda substituir o religioso em funcções, por padre de' outra
ordem, incumbido só cios encargos espirituaes; e commette a
administração política é:Io povoado á autoridade civil, na forma
que o governador, em junta com. o prelado diocesano e ma-
gistrados, venha a resolver t.
Em todo o tempo, e foram muitos mezes, que durou·-a
expedição, o principal commissario · portuguez teve de luctar
coÍn essa contrariedade. A fuga dos indios não era caso novo,
hem que unicamente a extranhas suggestões se podesse attri-
buir. A cada passo os assalariados abandonavam quem os ti-

1 e. R. de II de março de I755·
33

'

A EMANCIPAÇÃO DOS INl)IOS 2 59

que referem os jesuítas, ao marquez de Enseiiada, que foi o


mais habil ministro de Fernando VI, não lhe soffreu o animo
assistir tranquillo á ·realização de um convenio, prejudicial á
sua pat_ria; e, posto que, no conselho, tivesse .v otado com os
collegas, saindo delle, tudo communicou ao embaixador da·s
Duas Sicilfas, para que prevenisse o rei, seu amo, presumptivo
herdeiro da corôa espanhola: Ainda, se devemos fé, ao escri-
ptor~parcial dos jesuitas, a quem seguimos, d'ahi resultou fa- ,
zer o rei das Duas Sicilias um- protesto; e, conhecidos os me-
neios de Enseiiada, cair este no régio desagrado, sem que
Fernando vr., dominado por sua mulher, deixasse de ·p roseguir
na execução do convenio t. Qualquer ·que seja a crença·, que
esfa .anedocta possa merecer-nos, o· abandono . em que final-
mente caiu o tratado, subindo ao throno Carlos III, presta-lhe
de certo modo verosimilhança.
Luctando.contra os obstaculos que, ao feliz_desempenho da
sua commissão, oppunha a má vontade dos missionarios, con-
tra . elles se vae acerando a · inimizade de Mendonça. Mui!os
paragràphos de suàs cartas dão testemunho dessa disposição
de espírito: « Os regulares ·(escrevia elle a Sebastião José) são
o inimigo mais poderoso do Estado, e, por isso mesmo que
domestico, ainda' mais poderoso e nocivo ». Ou então : « O
cansado, absoluto e prejudiciàlissimo pod~r dos · r~gulares, é á ·
total ruina do Estado, e ha de ---obstar ao . progresso de quan-
tos estabelecimen~os nelle se quizerem fazer)). Instigado pelos
embaraços, que a cada passo lhe suscitam com réplicas, · pro-
testos, reclamações, promette extinguir-lhes a arrogancia, conio
fa°;;:ia ao esca"lracho das vinhas de Ocz"r~s. E o exces_so de irri-
tação traduz-se na phrase, adoptada entre os irmãos para ex-
primir o~ rancores' da familia: Estas gentes silo o o/eu Manoel
Pereira d~ Sampaio ! 2
Executando a parte de suas instrucÇõ,es, relativa aos mis-
sionarios, onde se via o influxo .dás queixas e propostas, sobre
as quaes Paulo da Silva Nunes, em tempos anteriores, tanto
insistira, Mendonça, por si proprio, in?agara çlos recursos das

1 Von der Schicksale der Jesuiten in Portugal: em MÜRR, fournal


zrw Kimstgescbichte und zur allgemeinen Litteratur. Tom. 4.
2 ·carta de . i8 de fevereiro de 17~4. Bibl. Nac. de Lisboa.
260 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

missões, dos bens que as co~munidades religiosas possuíam,


do fu~damento com que se lhes imputava a ruína do Estado
pelo monopolio do commercio. Para esse fim, visitara os al-
deament_os e povoações vizinhas da capital; ouvira as opiniões
dos principaes habitantes; e, procurando com elles como de-
belJar os males presentes, pa.recera-lhe o alvitre da companhia
para a introducção de negros, o mais adaptado ao proposito.
Com eIIe enfraquecia as communidades, suscitando-lhes um
valente competido_r no trafico do sertão. Mas isso não bastava:
· ·cumpria arrancar-lhes de todo a opulencia, e reduzil-as á mo-
destia primordial.
Mandara o Conselho Ultramarino perguntar o valor das
fazendas ruraes, pertencentes aos religiosos, e se deveria a co-
rôa apossar-se dellas, prestando aos despojados os indispensa-
veis meios de subsistencia. O gover~ador foi· de parecer que
a expropriação se fizesse. Auglnentar-se-ia, no Estado, . a ·Fa-
zenda Real,-com o producto dos dízimos; de cujo pagamento
os regulares se haviam desobrigado; e, privados estes de todo o
' pretexto de negocios, cresceria a renda das alfandegas, pelos
direitos incidentes nos generos, até ahi livrés, como proprie-
dade das missões. E, acima de tudo isto, affirmava Mendonça,
campearia a vantagem de se vêrem os padres transformar e de
feitores de fazendas em. .missionados ·e conquistadores de al-
mas para o céo » i.
Esta proposta ' de espoliação tinha fundamento n~ lei, ~.
.' além · disso, não era esta a primeira vez que se punha em du-
vida o direito dos regulares, á posse das terras. As represen-
tações de Paulo da Silva Nunes haviam feito saír á tona par-
ticularidades interessantes. Por effeitq delJas, verificou-se qÚé
não podiam as communidades, segundo as leis do reino, adqui-
rir bens de raiz, sem preceder licença régia; e j!S existentes
no Pará não a tinham. A providencia era antiga, e já se . acha
consignada nas primeiras Ordenações, de 1446 2. Tivera por
objecto impedir que os conventos continuasse~ absorvendo as

1 Carta a Sebastião José de Carvalho, r8 de fevereiro de 1754. Bibl.


Nac. de Lisboa.
2 Liv. 2. Tit. xr: «Que os clerigos e hordeês nom comprrem beês de

rrajz ssem autoridade delrrey» . FIGUE~J;DO, Synop•is:. Ch1:011ol. 'tom. 1.


A EMANCIPAÇÃO DOS IND!OS 261

melhores terras cultivaveis, em detrimento éla população rural.


Judiciosa, no reino, essa praxe, pela escassez do terreno, não
teria muita razão de ser nas colonias, onde a extensão, pode-se
dizer illimitada, do sólo, requeria sómente quem .o fizesse va·
l.
ler. Por isso, as acquisições dos .regulares não tinham em prin·
cipio levantado protestos, e o abuso fôra sanccionado pela
diuturna pratica. Mas a lei -era lei, e o texto da ordenação
positivo. Desperta a attenção dos poderes do estado, pronun-
ciaram-se estes; e aconteceu, ..Pºr isso, serem os missionados
demandados ajuizo, poucos annos havia, quando já nos tribu-
1
f
naes superiores do reino fermentava latente a hostilidade, que
brevemente ia romper. · .
· Chamados a responderem, os car~elitas e os mercenarios,
ignorantes da lei, ostentosamente invocaram o seu ·direito ás
propriedades, que ·haviam adquirido por · compras e heranças.
Mais :cautelosos, os jesuítas confessaram a illegalidade, ·e ardi-
losamente offereceram entregar todos os .bens, unia vez que
Sua Majestade lhes desse as congruas. Só desta maneira, as-
' seguravarri, lograriam descanço em seus claustros. Mas o . in-
tento era outro : de antemão sabiam elles que não ousaria o
rei gravar os cofres publicos com esse dispendio. Agora, po-
rém, differente era a situação. Mendc;mça enumerava as conve-
niencias do sequestro; indicava se convertessem as fazendas
em povoações; propunha qÜe todos o~ escravos, existentes
nellas, fossem declarados livres, collocando-se em cada ·uma,

{

como administradçn·, um ojficial de guerra. Está aqui todo o "
plano . da emancipação, realizada per Carvalho mais tarde. )

Aléni disso, queria Mendonça que os religiosos se recolhessem


aos conventos, e se lhes prohibiSse. admittiiem noviços. E con-
cluía, exprimindo a idéa, que d'ahi por diante foi ' a sua De-
tenda Carthago: «É impossivel restabelecer a prosperidade
do Estado, sem retirar a.o s regulares _todas as fazendas que J
J
possuem:& t . . Os manes de Berre_d o e Paulo da Silva Nunes
deviam então--rejubilar na sepultura.

~ .

~ Carta a Sebastião José de C~rvalho, 18 de .fevereiro de 1754.. Bibl.


Nac, de Üsb~a.

C·)

262 OS JES UITAS NO GRÃO-PARÁ

II

Na auserícia do capitão general, o bispo, Dom frei Miguel


de Bulhões, foi investido no governo da c~lonia. Confidente e
thuriferario de Mendonça, alimentava o prelado, contra os nlÍs-
sionarios, animosidade igual á '~e seus predecessores. _Achava-
se ainda pendente, aguardando solução de Lisboa, a questão
das visitas. Em favor das : egalias episcopaes, apparece, é ver-
dade, em I 748, uma decisão, mandando pôr em pratica, no
Estado, o m.esmo que em I 731 se determinou para Gôa, isto_
é, que as aldeias se sujeitem á visita do Ordinario; mas, ainda _
em face da directa in.timação, as communidades recusam-se; e ·
os jesuitas, mais altivos, e fiados nas· influencias que os prote-
gem, sustentam que será preciso submetter o assumpto a um,
definitorio provincial, que em derradeira instancia decidirá. Ao
mesmo tempo, levantam a pretenção de serem as igrejas pro-
priedade sua particular, assistindo-lhes direito a indemnisação,
no caso d~ esbulho: flagrante contradicção ao que sempre
tinham afflrmado, justificando o _seu commercio, a saber: que
este era dos índios, e applicado, entre outros objectos, á ere-
cção e fabrica das igrejas i, Não lhes bastando .repellirem, J?Or·
este modo, a jurisdicção episcopal, procuravam ainda cercear
as prerogativas espirituaes do Ordinario. Por uma carta de
Carvalho· a seu irmão, sabemos que o jesuíta Manoel de Aze-
vedo alcançara do pontífice um breve, para que os missiona-
rios da ·Sociedade podessem," no Brazil, administrar o sacra-
mento da confirmação, em territorio fóra das missões, isto é,
da exclusiva jurisdicção dos bispos.
Com tantos aggravos, o prelado, monge dominico, e nessa
qualidade inimigo natural dos jesuitas; doído, como superior,

1 Francisco Xavier a Sebastião José ,de Carvalho: « .• • Do que ;e vê


que, no anno .de 1729, o cabedal com que se faziam as igrejas era dos índios,
e não tinham os padres nellas mais que a administração ; e, em 1749, são
suas as igrejas e casas de residenci<l, fundadas a expensas proprias, e, se ·
Sua Majestade quizer dar nova fórma, é preciso que lh'as cumpre>>. -Carta
familiar, 25 de outubro .·de r752. Bibl. Nac. de Lisboa. ·

. (•
A EM;\NCIPAÇÃO DOS INDJOS

de vêr menosprezados seus privilegias; interessado além disso


em lisonjear os Carvalhos, de quem espera adiantamentos; de
bom grado se presta a ser o braço direito da repressão , Antes
mesmo de assumir o governo, intriga e denuncía: assim vae
alhana_ndo o caminho, para a mitra mais pingue, que ambi-
,ciona, na metropole. Aos pés dos protectores, raja-se em exag-
geros de servilismo. Se faltarem os índios para a viagem do
capitão-general, elle mesmo temará o remo, que foi o primeiro
officio dos apostolas. Assim escreve a Carvalho; e esse excésso
de fingimen~o, na adulação, é a photographia do seu caracter i.
Á vista disto se julgará como receberia a ordem; vinda da
côrte, para a expulsãõ de alguns padres.
Por estes se d~q principio ao cástigo, que breve se ex-
tenderia a toda a Ordem. Carvalho mandava retirar do Estado,
e recolher ao reino, quatro missionarias « pelos attentados com
que insultaram os ministros de Sua ·Majestade, e cÕntrabandos
que fizeram e em que continuam» 2. Não lhes foram declara-
das as culp~s, , nem dellas tão pouco souberam os superiores.
É necessario recorrer ·á. correspondencia de Mendonça, para as
encóntrar. Manoel Gonzaga era o missionaria que, no Piauhy,
havia lançado a excommtinhão ao ouvidor. Sobre outro, Theo-
doro da Cruz, pesava o aleive de ter mini~trado peçonha a
um clerigo; e, escrevendo elle ao bispo que desejava uma sa-
tisfação publiça de tamanha injuria, fôra a reclamação tomada
por offensa. Aos dois restantes, padres Antonio José e Roque -
Hundertpfund, missionarias do rio Madeira, se arguia de insti-
garem ao desprezo das régias ordens, que vedavam a commu-
nicação, po'r essa via, com Matto Grosso, e de facilitarem o
contrabando do ouro. Aos mesmos, a Relação Ab1·eviadà, co-
nhecido pamphleto de Pombal, accusa de terem, no tempo das
demarcações, sublevado os indios das vizinhanças do rio Negro,

«Não terei mais remedia que ir eu mesmo, com todos os meus fa-
miliares, supprir a falta dos índios; nem se poderá julgar improprio em um
prelado o exercido de remar, attendendo que os bispos são os legítimos suc-
cessores dos apostolas, os quaes largaram os remos para empunharem os ba-
culos».-Carta a Sebastião José de Carvalho, 8 de março de 1754. Bibl. Nac.
de Lisboa .
• 2 Carta .a Francisco Xavier de Mendonça, 14 de março de 1755. Bibl.
Nac. de Lisboa.

J
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

induzindo-os a desertarem ; e ao ultimo incrimina mais de par-


ticipar em um trama, cujo objecto era entregar a província
aos francezes de Cayenna. As ·duas imputações são egual-
mente calumniosas, e a apologia dos accusados saiu cabal t.
Em setembro embarcaram os exilados, chegando a Lisboa no
dia immediado ao do terremoto. Atravessando a custo do
cáes, por entre as ruínas da cidade, mal sabiam elles quanto
lhes fôra propicia a medon)la catastrophe. O infinito pavôr e
as affiicções do momento o.ã o davam ao governo aso a cuidar
em negocios minimos. Caíram em temporario esquecimento
as culpas dos jesuitas, e o padre Hundertpfund poude reco-
lher-se· immune á Allemanha, sua patria, evitando a carcere,
reservado aos companheiros que, por emquanto poupados,
ficavam ainda nas missões.

l «Flumina ilia (Madeira e Negro) distant ah urbe Paraensi minimum


300 horis. Ego missionarius fui in fl.umine Madera ab anno 1742 usque ad
1746 inclusive: deinceps vero ah anno 1747 fui socius Ven. P. Malagrida, .
et usque ad annum 1755, quo mihi exsulandum omnino ex Maragnonia fuit
numquam amplius ad ilia fl.umina perveni, sed semper hresi in districtu Pa-
raensi, in distancia tantum 50 hor.arum ah urbe. Ergo jam anno i746 de-
buissem inducere lndos fl.uminum Madera et Rio Negro ad deferend~s habi-
tationes suas, ub deinde impediretur expeditio dernarcationis limitum, A. 1754
faciend2.1- Carta do padre Roque Hundertpfund em MÜRR, ]otlrnal :{Ur
Kuntsgeschicbte u11d :{Ur· allg~neneinen Litteratur, Tom. 4. Do crime de trai-
ção mandou o bispo fazer a devassa, e os demais accusados remettidos para
Lisboa, permaneceram no carcere, até que,. mais humano, Francisco Xavier
intercedeu por elles. Deste caso refere o bispo Dom frei João de S. José,
successor de Bulhões: e Dois clerigos de pessirna conducta delataram contra
o pae de Lourenço Furtado, dizendo era infiel á corôa, e que meditava meios
para entregar a praça a Cayenna ... Poude tanto a calumnia que lhe acabou
a vida,.antes que a apologia podesse mostrar a innocencia».-Viagem de Vi-
sita ao Senão, na Revista do Instituto Hist. e Gtogr. 'Bras. Tom. 9. Da co-
participação do jesuita não fala. Mendonça, porém, na mesma occasião em
que solicita clemencia para os presos, attribue-lhe o papel de instigador,
posto que de nenhum facto positivo houvesse revelação na devassa. Officio
de 23 de novembro de 1757. Arch. do Pará. ·

(
• A EMANCIPAÇÃO DOS INDIOS

III

·. A erecção da companhia de commercio-não encontrou no


Pará a hostilidade, receada por Carvalho. Os negociantes esta-
belecidos na terra, eram em pequeno numero.. Pobres, e humi-
lhados pelo tratamento grosseiro de Francisco Xavier; tendo
visto frustr--ada e punida a soberbia do ouvidor, em cuja de-
vassa tinham dado vazão ao desgosto; jámais lhes passaria
pela mente declararem-se ,e~ oppo~ição a um governo tão
forte, · como demonstrava ser o actual. Os jesuítas, atordoados
com o golpe, que tão inopinadamente os feri~, do ·exilio dos
',
seus, e avisados do que succedêra na côrte, não ousavam lan-
_çar-se em commettimentos novos de resistencia, e punham em
reserva as energias, para a decisiva contenda, !?Obre d domí-
nio das missões, que já proxi_m á se lhes .antolhava. O resto da
população era indifferente: tudo supportaria, comprehendendo
que nada lhe podia ser mais duro que permán·e cer no mesmo
estado de abatimento e penur_ia. · Promettiam-fue negros ?e
Africa em quantidade, e o milhão dos accionistas, a derramar- .·
se no trafico, por multiplicados canaes. Os missionarias iam
perder as vantagens, que lhes dava_ a superioridade do seu
commercio, e porventura teriam de entregar mais tarde os in-
dios, de que faziam tão proveitoso uso. Da mudança, algum
bem havia de resultar.
No sertão, continuava Mendonça preoccupado com a falta
de gente, para o serviço das embarcaÇões, e trabaJho de p.re-
parar subsistencias e alojamentos para a numerosa comitiva
dos demarcadores. As .deserções principiadas no Pará na::o ces-
savam; attribuindo elle, ao só influxo dos missionarias, o _que
em parte se poderia imputar á instabilidade natural dos selva-
. gens. Via tambem meneios dos jesuítas na demora dos com-
inissarios castelhan~s que, hospec:Ies delles no Orenoco, não
vinham realizar a demarcação. E, com ~sto, crescia a sua indi-
gnação contra os padres.
As novas. que lhé ch~gavam ·de outras partes, quer da séde ·
do seu governo, em Belem, quer do sul do Brazil ou da me-
tropole, todas lhe confirmavam as. desconfianças, que desde o
34.



266 OS JESUlTAS NO GRÃO-PARÁ '

princ1p10 alimentava. Do Pará o. bispo continuava a presagiar-


lhe ciladas, e descobria-lhe cr supposta conjuração de Hundert-
pfund. O que sabia da rebellião dos indios, ·no Paraguay, exa-
gerado por interessadas falsidades, como por effeito da distan-
cia, e pela incerteza dos factos, avivava-lhe suspeitas, sugge-
ria-lhe receios. De Lisboa, manifestava-lhe se1:1 irmão fiar pouco
da lealdade castelhana. As tropas, que deviam operar no Rio
da Prata ·com as portuguezas, tinham-se retirado a Buenos
Ayres,' deixando Gomes Freire a braços com a revolta; e as
excusas do gabinete çle Madrid eram frouxas, a ponto de pa-
recerem ,capdosas. Temendo da banda do norte alguma ines-
perada incursão, mandava o governo estabelecer a nova· capi-
tania de São José-do rio Negro, «para se povoar a ·fronteira
occidental do Amazonas e defender . as communicações com
Matto Grosso»; e recomrnendava que fossem expellidos os
espanhoes, e apprehendidos os índios das aldeias, que se en-
contrassem na margem portugueza do Madeira. As instrucções
accrescentav_a m: «Excuso de vos lembrar o muito que se faz ·
necessario separar os padres jesuitas (que já claramente estão
fazendo esta guerra) da fronteira de Espanha. . . Tambem
será bom qu.e acheis meios para lhes interromperdes as coffi-
municações co1'n os outros padres, que residem nos domínios
de Espanha, ;isto que-; com esta potencia ecc!esiastica, nos acha~ ·
mos ;m tifo .dura e tão custosa guerra». Desta arte via Men-
donça o poder dos jesuitas senhorear em Espanha, e ameaçar ·
talvez a integridade dos domi~ios portuguezes. As noç.ões que .
de fóra recebia, a interpretação dos factos, á sua vista presen-
tes~ davam-lhe a consciência de uma enorme responsabilidade,
e apontavam-lhe o inimigo, o m~smo em toda a parte,-que a
todo o custo era preciso abater. Seu espirito não fôra talhado
para longas dissimulações e astutos planos; o subitaneo im-
pulso a um acto violento era a lei delle: expulsar os jesuitas
da colonia pareceu-lhe então o meio . salvador.
Não vindo os commissarios ~spanhoes, aproveitou Men•
donça a delonga, para ir fundar nas margens do Madeira a •
villa de Borba a Nova, em que, segundo as instrucções dà
côrte, se convertia a aldeia jesuíta de Trocano. O facto tem
importancia, por iniciar a aboliçã~ do-poder civil dos religiosos
nas aggremiações de indígenas, e tambem por um_incidente,.

(
A EMANCIPAÇÃO DOS INDTOS

que mais tarde havia de ser · explorado na campanha anti-je-


suítica: a anedocta famosa dos artilheiros disfarçados, que Pom-
bal fez correr mundo nas paginas da Relação Abreviada.
- A criação da villa, embora fazendo parte do plano, já ccm-
certad~ entre Carvalho e seu irmão, de organizar, á feição de
- m1.micipfo, os povoados, até ahi regidos pelos missionarios, ti-
nha por apparente objecto proporcionar um logar de «refresco .
e descanço » aos vassallos, que freqU:entavam o caminho de
Mato Grosso i, Apreciando, pelo que valiam, as judiciosas con-
siderações de Menponça, ·o governo da rrietropole favorecia
agora o .q ue antes. vedava com ciume.· Abaixo deste logar ha-
bitava João de Souza dé Azevedo, o audacioso sertanejo que,
desprezando as prohibições, mais do que ninguem contribuira
para abrir, pela banda do norte, uma porta, á central e insu-
lada região de Matto Grosso; ·e, com tanto risco o fazia que,
na ultima viagem, se sujeitára á execução pela somma de nove
mil cruzados, fiança exigida, pelo governador, ás pessoas de
quem suspeitava haveriam 'de romper a interdicção. Salvo1:1-o
da peràa total de sua ºfazenda, em que o arresto importaria, o
óom senso de Mendonça, que dispensando a culpá, reconheceu
a utilidade do
.
feito
- 2 •. Era isso ' contra as suas instrucções, pat-
ticularmente instantes -:peste ponto. Em Lisboa, receavarn se
despovoasse o Pará, pela seducção das minas, '"e que as nações
limitrophes, conhecendo a via, corressem a apossar-se do va-
lioso territorio. Mas o governo da colonia, mais perspicaz que ·
os anteriores, demonstra a inanidade de taes raciocínios : bispo
e governador combatem os receios, e apontam o impossível
de transportar ~ provêr, em paiz inimigo, e _a Íão grande ·dis-
tancia, quaesquer forças militares. A teimosia de Azevedo, e
as judiciosas considerações de Mendonça, dão por fim em terra
com a proI?-ibição, j~ anteriormente revogada por lei, mas ain-
da effectiva 3 •

1 C. R. de 3 de março de 1755.
2 e; Do mal da·desobediencia deste homem tiramo""s o bem de sabermos
que em seis mezes de tempo ~e pode ir.desta cidade, e vir, ás minas de Mato
Grosso».-Officio de 9 de março de 1754. Arch. do Pará.
3 Resol. de ·23 de outubro .de 1752 1 baseada em parecer do Conselho
Ultramarino, aut_o risa as communicações pelo Madeira, vedando em absoluto
a navegação do Tocantins.

- . •
268 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

..
Á dishmcia de um tiro de espingarda da missão, achava-se
estabelecido o posto fiscal. Um offi~ial e poucos soldados vi-
giavam o rio, fazendo visita ás canôas, que desciam. Quando
algum mineiro transitava com ouro, acompanhavam-no dois
_ guardas á capital, para lá se verificar ·o que trazia, e ter Jogar
o pagamento do imposto. .
Chegou o governador a Trocano em 20 de dezembro. Por
espaço de alguns dias, conservou occulto ao rnissionario, . que
era o allemão Anselmo Eckart, o objecto da viagem. A ' 3 I,
fazendo-lhe certa communicaçã? por escripto, tratava-o ainda.
por míssz"onario de Trocano; mas, n~ dia immediato, convi-
dando o religioso para assistir á solemne inauguração-da villa,
que- nomeou por Borba a · Nova, omittiu qualquer referencia
áquelle tjtulo, de certo por considerar extincto o cargo.
Convocados os índios ao som das trombetas, fez-lhes um
official,. da escolta de Mendonça, perito na linguagem tupy;
·.u ma pratica, insinuando-lhes que, para o futuro, viveriam em
. outros costumes, outra disciplina e outra lei. Em seguida, en-
traram os selvagens, ajudados por soldados, de fazer uma gran-
de derrubada, e, no meio da clareira, em pouco tempo abertá,
elevaram, á feição de columna, um t9sco madeiro: o pelouri-
nho, symbo_lo das franquias· municipaes. Alguns vivas ao so-
berano, e os tiros de duas pequenas peças de artilharia, exis-
tentes ?ª missão, saudaram o levantamento desta ·á dignidade
de villa. Restava só designar qu~m havia de reger a povoação,
e quaes as suas leis, para a obra ser completa.
Sobre um .e outro ponto havia o goverp.ador antecipada-
mente disposto . . Poude, pois, recolher-se sem demora ao rio
Negro, a esperar os demarcadores, emquanto o missionario se
retirava para uma aldeia vizinha, a dos Abacaxis, pertencente
tambem á sua Ordem. A administração dos indios e o go-
verno da v.illa ficaram a cargo de um official militar. A expe-
riencia, d'ahi 'resultante, tinha de servir de molde á transfor-
mação successiva das outras aggremiações indígenas, dirigidas
f>elos missionarios.
Tão . obscura ficaria na historia a aldeia de Trocano como
o tem sido a villa, que lhe suê:cedeu, não fôra o incidente dos
canhões. Os que salvaram _em presença dt; Mendonça eram
duas peças de pequeno alcance, levadas para ali annos atrás,

(

A EMANCIPAÇÃO DOS INDIOS

com assentimento do governador João da Maia da Gama, não


para defesa material, mas afim de, com o estrondo, afugenta-
rem os selvagens, da tribt.i hostil dos mu1·as. Subjugados estes
índios, inuteis jaziam no povoado as innocentes machinas de
guerra, excepto nas occasiões de publico regosijo, em que seus
tiros acordavam os echos da floresta .. Nenhum cabedal fizera
Mendonça deste facto; seu irmão, porém, mais ardiloso, não
hesitou em divulgar que se achavam os jesuítas, a exemplo do
Paraguay, fortificados_em Troca~o, sendo talvez os padres alle-
mães, desta aldeia e dos Abacaxis, disfarçados .g uerreiros. E
assim o descarado engano ·correu mundo i.
..-
IV

..
'.

Enfastiado de aguardar no rio Negro os commissarios espa-


nhoes, e· cqnvencido 'afinal de que ·não viriam; cançado das pri-
vações inevitaveis em logar tão remoto, enfermo em razão del-
las e por effeito do clima; achou Mendonça que era tempo de
regressar á capital. Já a isso o convidavam ordens . da cõrte,
que aliás não recebera ainda, por irem em caminho; e seu ir-
·mão, dando-lhe .Parte das instrucções que lhe recommendavam
se recolhesse ao Pará, para tratar da saude, fazia notar que
«com os amo.s não ha cumprimento senão cega obediencial> !!.
Não obstante, deixava _e lle contrariado a povÕação, que ambi-
cionava houvesse de ser, ao menos por âlgum t'empo, cidade
populosa, e ficar celebre como estanda ·onde . se firmariam
perpetuas pazes entre duas nações. Não fõra o sitio bem es-
colhido, nem se prestava a magnificencias. O terreno alaga-
diço mal se podia trilhar a pés enxutos. Por espaço de dois

«Indo fundar-se no mez de janeiro de 1756 a villa de Borba a Nova,


na aldeia chamada de Trocano, se achou nella o padre Anselmo Eckart, alle-
mão, que havia chegado poucos mezes antes como. missionario, armado com
duas peças de artilharia, e, unido com outro padre, tambem allemiio, chamado
Antonio Meisterburgo, ambos praticara m naquelle territorio desordens, que -
fizeram verosímil a suspeita, de que em vez de religiosos, poderiam ser dois
disfarçados engenheiros ».-Relação ·abreviada da .republica que os jesttitas, etc.
2 Carta de 2 de dezembro de 1756. Bibl. Nac•. de Lis)?qa.

J
'
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

annos, ali trabalharam os indios da missão de carmelitas, exis-


tente no logar, com muitos outros, arrebanhados de diversas
paragens. A rudeza dos obreiros não permittia esmeras de ar-
chitectura: de taboas, palha e-barro grosgeiro se construiram,
ao ·geito do sertão, as casas de moradia e quarteis da tropa;
mas entre . as edificações avultava, a que ,devia ser palacio das
conferencias, com duas largas portas por onde haviam de en-
trar, cada um de seu lado, e dispensando precedencia13, os
dois grupos de -commissarios. Caíndo breve em ruínas as
constnicções tôscas, feitas então, a vilÍa de Barcellos, ainda
hoje insignificante, nada cqnserva que rememore os pJanos,
relativamente grandiosos, de seu fundador.
Deix!lndo esse logar de Marillá a 23 de novembro, o go-
·vernador chegou á capital aos 22 do mez seguinte, disposto
a publicar immediatamente a lei das liberdades, com que, a
um tempo, realizava os planos de seu irmão, e satisfazia, por
um golpe decisivo, a colera que o animava contra ~s missio-
narias, especialmente os da _companhia de Jesus. Não lhe per-
mittiu comtudo a doença agir com a. promptidão desejavel.
Temia elle que os habitantes, sempre desaffeiçoados ao regi- -
men novo, que os successos anteriores deixavam ·entrever, se
abalançassem· a algum acto de resistencia formal ; e, reputan-
do a sua ·presença indispensavel pa~a submettel-a, foi adiando
até que, recobradas as forças, se viu em posse da sua e~ergia
habitual. Ainda assim usou de precauções. Attendendo aos
conselhos do bispo e autoridades civis da capitania, começóu
por dar á publicidade em 5 de fevereiro, sómente a lei que
abolia o governo temporal dos missionarios, ainda a~sim ex-
pungida das palavras relativas á emancipação, complemento
necessario della. Convocada no collegio dos jesuítas a junta
de missões, e lido o diploma, resolveu-se ficarem nas aldeias
todos os bens existentes, posto que os missionarios allegassem
di~eitos sobre elles; em seguida se apregoou a lei, em bando
pelas ruas. .
Por mais preparados que estivessem os religiosos para o
golpe, certo é que, no primeiro instante, grande foi o seu es-
panto e confusão. Nem mesmo, na peór das imaginações, elles
o esperavam tão fundo. Acharem-se privados do governo das
aldeias era sib.1ação qite já de ha muito·os ameaçava, e, não

t
A EMANCIPAÇÃO DOS INDIOS

sendo nova, cuid_ariam de acudir-lhe como das outras v'e zes;


mas despojarem,nos ~e propriedades, que julgavam suas ele-
gitima~ente adquiridas; expulsarem-nos, de tudo despidos, e
sem compensação, como servos infleis, parecia-lhes, além de
lllJUria, supremo escarneo. Mais esta vez entrava, nas dissen-
sões dos jesuitas com o poder civil, o orgulho, principal causa
da , sua perda.
Cinco dias pássados, requereu o bispo nova junta, a pedi-
do dos missionarias, que tin'ham de propôr certas duvidas.
·Perguntou primeiramente o vice-provincial da Companhia se
aos seus padi::es seria li~ito tomarem conta ~dos generos: cacau,
salsá-parrilha, etc., guardados nas aldeias, e. cüjo producto des-
. tinávam a solver adiantamentos, feitos para beneficio das mes-
mas, e sa,larios aos indios livres. A resposta foi, como se devia
esperar, negativa; e a tal replicou o jesuita com um protesto, .
que infallivelmente o condemnava. Era a confissão implicita
do caracter mercantil, que haviam assumido as missões, e até
então sempre por elles renegada: Deixando-se levar pela má
comprehensão ·de seu, direito, e por 'uma analogia infeliz ~e
expressões, o provincial, tendo só em vista a conta corrente da
sua administração financeira, deu a entendêr que os missiona-
rias eram caixeiros da sociedade, trabalhando como taes, e
. nesse caracter lhes cumpria reivindicar- Ó que não era proprie- ·
dade sua individual, mas do acervo commum. Pode-se calcular
o jubilo de Mendonça ao ouvir tão insen.s ata declaração. Or-
denando ficassem os generós em deposito, deu parté ao go-
. vemo do succedido, como a prova mais cabal de quanto no
assumpto havia a~teriormente asseverado i . _ ' ·
Outro ponto, sobre que versou a consulta, foi a posição, em
'que se con~ervaria(ll nas aldeias os religiosos, prÍv~dos da an-
tiga autoridade; e ahi se lévantou a tão debatida questão das
visitas, reservada, por indicação de Carvalho, par~ esse mo-

t Officio' de 27 de maio de 1757: .« Sendo seis as communidades que


aqui administram as aldeias, foram entre todos singulares os religiosos da
Companhia, em fazerem uma asserção tal como esta, de dizerem que conser-
vavam nestes sertões tantos caixeiros quantos eram 0$ mission_arios que ti-
nham nas aldeias, os quaes_ todos trabalhavam em benefici.o do commum da
sua religião, e em total destruição dos povos de que se tinham encarregado».
-Arch. do Pará.


l
272 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ •

mento. Com a sua astuciosa mansidão, e_certo já de qaal se-


ria a resposta dos jesuitas, declarou o bispÔ que estimaria fi-
cassem os missionarios nas aldeias, exercendo funcções de pa-
rochos, sujeitos todavia á sua inspecção, consoante as leis do
reino. Unico, entre os religio'sos presentes, o representante da
Companhia se manifestou c~ntra; invocou argumentos antigos;
declârou que por modo algum os seus subditos haviam de su-
jeitar-se á jurisdicÇão episcopal. Com isto proferia a sentença .
dos seus. Abandonando as aldeil!s e o trabalho de doutrinarem
os indígenas; que por mais de dois seculos fôra a sua occupa-
ção e razão de existencia na America, o que fatiam ainda ali?
A resposta do governo de Lisboa foi a que o desafio arro-
gante demandava. No anno seguinte,- porque era grande ,a
demora em transmittir informações e voltarem resolvidas as
consultas - , ordem expedida do reino mandou suspender to-
das as congruas, que aos jesuítas do Pará e Maranhão fossem
pagas à titulo de missões, parochias ou qualquer_outro ·1. Pri-
vado.s assim desta renda, comó o tinham sido já das vastas
propriedades; sem meios de subsistencia, além dos que podiam
fornecer-lhes, de outra parte, os consocios, o que entrava nas
praxes da Ordem; só lhes restava abandonarem o campo. Mas,-
. antes disso, outras imprudencias vieram tornar-lhes mais pe-
nosa a situação, e acarretaram sobre alguns, em quanto não
chegava a derrocada final, o effei.to de tantas iras accumuladas
e até ahi repressas.
A recusa dos 'missionarios accdtarem a ju~isdicção episco-
pal tinha, como inevitavel consequencia, a sua retirada das al-
deias. É verdade que o superior propunha ficarem elles exer-
cendo funcções de coadjuctores, ao lado e de accordo com os
parochos, que o bispo elegesse; mas o alvitre fôra prudente-
mente rejeitado,. para evitar conflictos, e ' impedir que, á som- ,
bra do cargo, continuassem os jes1.titas a manter sobre os ín-
dios a mesma indisputavel influencia. Vendo-se por esta-parte
coarctàdo, e reconhecendo a impotencia de seus meios, o pro-
vincial lançou-se em actos de represalia, dos que unicamente
servem a revelar o desespero dos vencidos ; não reflectindo
que fazia assim o jogo de adversarios, anciosos de vêrem a

1 Prov. de 14 de agosto de 1758.

'
A EMANCIPAÇÃ~ nos· INDIOS 273

sociedade irremediavelmente perdida. No seu arrebatamento


passou aos _religiosos ordem de abandonarem as aldeias~ tra-
zendo o que podessem dos bens transportaveis. Assim se cum-
priu' en~ toda a párt~. Alfaias, imagens e paramentos, tudo os
sacerdotes carreg~vam em bârcos, muitas vezes occulto de
maneira indecorosa, entrê os generos de commercio, resto das
·grangearias de que não queriam. privár a communidade. Onde
havia gados e ca~ôas, isso vendiam., a troco de generos. E,
deslizando as emban:a~ões, de tantas partes, rio abaixo, a cha:.
pinhar com o peso das cargas, mais pareci~ voltar de pre-
datorias incursões, que recolher ao cenóbio de catechistas,
só occ~pados na prégação do Evangelho. · ·
_ Interrogado sobre taes factos, o prelado jesuita não occul-
tou q~e tudo se ·passara assim por ordem sua. Sustentava,
como sempre, .que os bens existentes·.nas aldeias pertenciam
á sua religião; que, pai:çi. havel-os, contrahira ' esta grandes• di·
vidas, de cujo valor teria direito a indeinnização, sendo esbu-
lhada. Com mais vigor defendia ainda á. propriedade de duas
fazendas, na vizinhança da cidade, depois . villãs de Curuçá e
Porto Salvo ; e não sómente do terreno, com os· productos da
cultura, senão tambem dos indi?s que o ·traba~havam,- escra-
vos 'no dizer do jesuíta__..:.., transmuda<;Io do antig<;> altruísmo,
e objurgando já agora as liberdades. Ao · rei e á rainha~ em
-lacrimosas suppliêas, recorriam os padres, por outra I>arte, das
violencias de Mendonça, ·asseverando que tirar-lhes os escravos
o mesmo era que prival-os dos ultimas meios de subsistencia.
E não se pejavam; para comprovarem a sua boa fé, e a justiça
destes captiveiros, -de invocar a recordação de antigos tempos,
em que padeciam, advogando o direito dos índios 1 •
Tál excesso de impudencia era symptoma da jntima dis-
solução, que minava o corpo da sociedade, e em pouco tempo
a ·faria perecer. Cegos; para tudo que não fosse o proprio e
imm~diato in_teresse, os jesuítas .·não enxergavam a transfor-

· 1 ••• ~Sendo hós- os protectores das liberdades, pcir cujo respeito tem"os
padecido tanto neste Estado, não queriamos nem podíamos possuir algum
escravô, que não foss~ legitimo; assim como.taqibem não estamos para per-
der os que são verdadeiros, e que possuímos com bom e seguro titulo, dan- ·-
do·os, como quer o governador, por livres».-Carta d,o padre Domingos An-
tonio, reitor do collegio do Pará á rainha. Ms. da Bibl. de Evora.
35


274 OS JESUITAS N.O GRÃO"'PARÁ

mação, que ia dar-se; não comprehendiam que a era antiga,


das escravidões, terminava, e que nenhuma occasião mais util
se lhes poderia deparar de applicarem o famoso opportunisrrto 1
que, .no espiritual como no mu~dano, fôra sempre a norma de
sua politica. Passados. tantos annos, em luctas incessantes, pro-
pugnando as Íiberdades; mal vistós e ,co.m batidos pelos colo•
nos, em toda a America lusitana, de São Paulo ao Pará, só
por fazerem obstaculo aos captiveiros; pelo roes.mo motivo,
perseguidos no Maranhão, e duas veze;; expulsos; renegavam
a doutrina tradicional, e passavam ao campo adverso, no pro-
prio mo~ento em que o apregoado objecto de seus esforços
ia alfim ser realidade. É certo que o subterfugio dos licitos
captiveiros, a que agÓra se pegavam, fôra obra sua; concessão
por meio da qual, sem renegarem os principios, transigiam
com os interesses contrariados. Por outro lado, a condição dos
indios, denç:iminados livres, nas aldeias,, s~b o regimen do obri-
gatorio trabalho, da estreita obediencia, é dos castigos, não se
differenciava do estado servil; se bem que podiam allegar ser
essa disciplina· o meio unico de manter, sujeitos aos encargos
da vida policiada, homens que o aguilhão das necessidades
não compellia, e a quem a natureza pródiga, e o ·exemplo qos
congeneres, para não menciona_rmos os impulsos do atavismo}
· convidavam á facil existencia do antepassado, indolente e no-
made. Mas, sophismando assim os principios, a que se di~iam :
fieis, os ,missiÕnarios, se por uma parte offendiam a lei moral; ·
que lhes exigia coherencia; por outra chamavam sobre si as
iras de um governo obstinado nos seus projectos, e implaca·
vel, como já havia mostrado, contra quem se a elles oppunha;
mais ainda, qual se deve imaginar, assumindo a ~esistep.cia,
como agora, o caracter de desafio, Recorrer do governador •
para a côrte, do ministro para Ó rei, e ainda da presumivel
indifferençé!: deste para a benevolencia da rainha, era .d·esco-
nhecer em absoluto a transformação, que nos ultimos annos
se havia dado nas altas regiões do poder. Os jesuitas ·do Pará
fiavam ainda muito da influencia dos seus, no 'p aço, quando os
ventos já sppravam francamente do lado contrario. Desta formá,
. juntando a impudencia 'das representações ao desvario das ,
represalias, instigavam a colera do adversario, e davam-lhe o
desejado pretexto para os ultimos golpes,

~/
A EMANCJPAÇÃO DOS iNDIOS 275

' No Ml:!.ranhão: não se mostravam os regulares mais submis-


sos; ~; faltando, para coo.ter-lhes as arrogaricié!s, a energia do
irmão de Carvalho, irromperam em estrondosos protestos, nos
_qu~es, rnal avisado_ s , tomaram parte 'outros·religiosos, além dos
jesl!itas, Não colhêra estes ali de surpresa, como no Pará, a
nova ordem de coisas. Levou-lhes a noticia ui:n mensageitp,
~1-ª"l)óêstinamente _enviado pelos conso_c ios, emquanto o cprreio,
portq_dor da participação official ao governo de São Luiz, era
detido por difficuldadl'!s no transito, h.a bilmente prepl:!,radas
pelos .missionados. ,
Q uando, pois, lhes foram i.ntj.madas as disposições, prom·
ptos se achavam já a responqer, com protestos e requerimen-
tos .diversos, que deixaram perplexo o governador sub.altero~.
l\s igrejas, existentes nas povoações, eram, conforme enten-
1

diam, do padroado real; el-rei, como grão-mestre .da Ordem


,de Christo, fizera mercê dçllas .á Companhia: portanto, não se
julgavam obrigados a entregal-as aos parochos, escolhidos peio
bispo, nem a reconhecer a inteira jurisdicção delle, consoante
se lhes exigia. «_Todos estes réquerimentos (dizia Mendonça)
não consistem em ·outra cois~ mais que em forcejarem estes
religiosos · por se sústentarem nas povoações· que administra-
vam, e o grande_commercio que nellas faziam» i.
Outros successos, no rio Negro, fizeram crescer a irritação
dos governantes, e deram aso a pod~rem elles divulgar, mais
tarde, que uma vasta conspiração, organizada pelos jesuitas,
em tódas as classes tinha adeptos, e visav.a a semear a anar-
.chia no Estado, preparando· elementos para uma aberta rebel-
lião. A 1 1 de março, revoltaram-se os soldados; que tinham
ficado de guarnição no Jogar onde deviam ser as conferencias
das demarcações, rol..lbaram os armazens reaes, e, embarca.n -
do-se em canôas, apossaram-se da forta:leza, existente na barra
do rio. Negro_. D'ahi proseguiram, aguas do Solimões acima,
em direcção á fronteira castelhana. Perto della, num posto
militar, quiz o commandante chamal-os á obedjencia, mas· seus
proprios soldados se rebellaram, juntando-se aos camaradas.
O official, prisioneiro, foi iI?-cumbido de levar ao capitão-gene-
ral as condições em .que os revoltosos voltariam á disciplina .
..
1 Offido de 26 de maio de 1757. Arch. do Pará.

-·'


A. EMANCIPAÇÃO ,. DOS INDIOS

.naquelles' desatinos> f. Com esta informação, e sem mais fun-


damento que meras süspeitas, o~ deliberada má fé, Carvalho
affirma que os jesuitas «não podendo obrar na honra e fideli-
dade dos officiaes das tropas, obraram comtúdo nos soldados
<;le menos obrigações> 2. E sobre taes bases se tem construido
à historia desta, por tantos motivos, interessante contenda!

Antes do governo -de Mendonça, -quando o bispo Dom frei


Miguel de Bulhões tomara o baculo, levara cómsigo o breve
Immensa pastontm, a cuja publicação, como sabemos, conve-
niencias do governo, ou i_nfluencias poderosas, se t!nham op-
posto. O documento menciona diligencias, empregadas com
Dqm João v, para que o monarcha desse ás exhortações do
pastor o apoio da autoridade civil~ e. o resultado foi a pro-
messa, feita por elle, de promover ·a fiel exe~ução das leis,
tantas vezes promulgadas em favor dos selvicolas Com effei- ª·
to, nos annos seguintes mais decisiva é a protecção que o go-
verno lhes outorga: annullam-se as licenças particulares para
os resgates, e põe-se· termo aos que, por conta do estado, se
faziam. Ao mesmo tempo, coincidencia qt:ie tem seu ~alor,
manifesta-se . nas decisões da corôa uma tal ou qual tenden-
cia a ·coarctar os abusos dos · missionarias. No entanto, ao
condemnatorio diploma pontificio não se allude. É licito con-
.
·1 Officio de Í3 de junho de 1757. Archivos do Pará.
2 Relação Abreviada, etc.
3 «Antes de tudo excitamos a eximia pi_e dade, e nunca-assás comprehen-
dido zelo da propagàção da fé catholica, que resplàndecem no nosso caris-
. simo em Christo fillio João, rei preclarissimo de Portugal e ·dos Algarves: o
qual pela filial reverencia que nos professa, e a esta santa séde apostolica, nos
segurou logo, sem a menor dilação, que ordenaria a todos e cada um dos
ministros e offi.ciaes dos seus dominios, que castigassem- com as gravíssimas
penas estabelecidas pelas suas leis todos os que fossem comprehendidos na
culpa de excederem com os referidos' indios a mansidão e caridade, que pres-.
crevem os dictames e os preceitos evangelicos ». - Collecciio dos Breves pontiji-
cios e lei; régias, etc.

'

os JÊSUITAS NO GRXOPPA:l!Ã

jecturar, no caso, a intervenção do padre Carbone, conselheiro


intimo e amigo do rei, quasi ministro pela autoridade e mais
do que isso pela influencia, o qual não havia de consentir se
divulgasse escripto de tal ordem, e com que os bons créditos·
.da Sociedade padeciam. Bem desejaria o bispo prom1.1lgar. o
breve, ao entrar na diocese, mas atou-lhe as mãos o re~eio d~
commetter .uma itnprudencia. Ser-lhe-ia perigosó' attrahir a co-
lera do fégio confident~, e o amor das c~nveniencias pessoaes
dominava nelle o odio, aliás profundo, que tinha aos jesuitas.
Com o fâllecimento de Dom -João v, que a curto espaço
seguiu o do jesuita, mudarâ a situação; mas o novo governa-
dor, incumbido de estabelecer um regimen, tão -opposto aos ·
usos e preçonceitos existentes, temia sobresaltar o espirito
publico, se empregasse desde· logo meios radicaes. Deu tempo
a preparar os animos para a reforma, entendendo que, afas-
tado o temor da repulsa, as letras pontificias serviriaro a con-
ter a · gente da Igreja, e -dar maior autoridade ás orden.s ~
corôa:
Neste proposito o confirmara o assentimel)to do mini~tro
seu irmão. Mas cheg01.i. finalmente a época, em que Ih.e era
dado coroar, com as ultimas resoluçõ_es, Q pia.no, que fazia
- agora a méta -do seu governo.' Passados dois annos de ~esitap
ção e silencio, vae-se pê>r termo á secular injÚst;iça, e resgatar,
num lance de generoso altruismo, as . ignomin-ias p.assadii.s.
A resistencia dos jesuitas facilitava -lhe .~ tarefa. pedaq1.ado-se
em lucta -com<> poder civil, davam-lhe elles o melhor pretexto _
para, de-um golpe, arrebatar os indios á sua temida influencia,
e estabelecer definitivamente nas aldeias, o .regim:en novo, sem -
_recorrer _a subterfugios, que poucÓ e pouco fossem apartando
dellas os missionarios. Escravos da s0berba, fiados no antigo
poder e, sobretudo, inconscios da situação, os fi.1hos de Loyola
tinham abandonado o campo, simul~ndÓ a retirada. Nada me-
lhor podiam ·fazer em beneficio d.os que tinham em mente ex- ,.
pulsai-os: frustrando.Jhes a expectativa, ·em .brev:e o gov:ema-
dor os substituiu nas missões por delegados pr0prios;
A "2 I de maio, houve _junta em casa do 'bispo, para ·se .con-
siderarem os impedimentos, que podia haver ainda á execução
da .1ei. Foi: u.nanime parecer dos presentes que, da parte dos
moradores, nenhuma resistencia surgiria. Havia seis ann~ qµe


(1
A EMANCIPAÇÃO DOS lNDlOS 279

se lhes dava a entender serem os indios livres. Tinha-se feito


, dós salarios, chegando a perto de
a .repartição, no regirrien
dois mil os serviçaes distribuídos. Estavam portanto os secu-
lares já familiarizados com a idéa, e só era de temer alguma
opposição, suscitada pelos ecclesiasticos nos pulpitos e confes-
sionarios: mas a essa obviaria o brev~ de Benedicto XIV, até
ahi secreto, que se publicava como a lei.
J!oi isso o que se fez, ·dando conhecimento da mesma,
primeiramente aos prelados das religiões, e autoridades da
capitania, em reunião no paço episcopa!, effectuada no dia 28;
em seguida ao povo, nas ruas, por u~ bando, na forma costu~
mada. No dia immediato, se affixou o edital do bispo, com a
copia do breve. · ' ,
·Apesâr de quanto haviam feito, em opposição á refo~ma,
e dos juízos contrarios, que não deixavam _de manifestar, tão
enraizada se achava, ácerca dos jesuítas, a idéa que tudo que
se obras~e em favor das Uberdades era devido a esforços _seus,
que, ainda desta vez, a opinião publica lhes ,attribuiu o makfi-
Cio. Nãp ousando pronunciar-se contra o governo, os colonos,
em. seu desabafo, lançavam á conta de seus antigos contendo-
res a innovà.ção, que .estes, tanto havendo trabalhado por ella,
no extremo da incoherencia rejeitavam agora t. Mas tudo se
passou sem abafo. Resignados os habitantes do Pará-Maranhão
volviam os olhos para a Companhia de éommercio que com
os negros vindos de Africa hav_!~ de trazer-lhes a prosperidade.
Com isso não mudavam de norte: guardavam zelosos as mes-
mas esperanças, que a mesma illusão alimentava. '

t ·tt .... Os tristes pàdres da Companhia ~ que de culpados na pronml-


gação dà nova lei ~ão teem mais que 6 que falsamente lhes impõem os mal
a_ffectos ••• » MoRAES, Hist. da Comp. Liv. 5.0 , cap. 1.

.

•'



meio de defesa talvez inconsciente, mas o uriico efficaz. Em
toda a vastidão do contínente americano, o só Jogar onde as
communidades inqigenas prosperaram, aproveitando da civili-
zação a parte material adequada ao seu temperamento, pode-
se dizer que foi o Paraguay, lá onde os jesuítas tinham esta-
belecido as reducções. Depois das crueldades 'sem · nom\'.! d~
conquistadores do Mexico e do Perú,. e ao tempo que no ter-
ritorio portuguez a oppressão dos colonos rapidamente prose-
guia a sua obra destruidora, os missionarios da Companhia
tinham logrado estabelecer, em terreno neutro, um abrigo para
as reliquias da perseguida raça. Vedado á cubiça dos forastei-
ros por leis prohibitivas, e regido por uma branda tyrannia,
á s.o mbra da qual prosperava, o territorio das missões consti-
tuía quasi uma nação autonoma, encravada nos domínios de
Castella. Esta soberba creação dos jesuítas foi a experiencia
fundamental das ét!Jtidões çia gent~ .indiana. O que para esta
podia valer a nossa civilização, bem como as idéas de lil:>er-
dade e individualisíno que lhe são proprias, colhe-se dos resul-
, tados obtidos. A nullidade destes, desfazendo.se a obra dos
jesuítas, logo que foi destruído o seu regímen, não prova, como
muitos querem, contra a razão . dd systema: demonstra si_m-
plesmente a incapacidade da materia, sobre a qual elle agia.
A nossa concepção dos destfoos humanos repugna a hu- ·
milhante tutela, material e mental, em que os missionarios
co~servavam seus neophytos; trias não' surtiu melhor o metho-
, e o que
'do contrario; .
da comparação ficou patente foi a in-
fluencia fatal do anjbiente da civilização européa, sobre a raça.
. conquistada. Podia, muito embora, preservai-a de completa
anniquilaç'ão o systema..jesuitico, que era a continuação da: exis-
tencia selvagem, com o seu communismo rudimentar, e um
est~do mental, caracterizado pelo amalgamá das crenças genti-
licas anteriores com as superstições novas do ~:tholidsmo.
Entregues a si. os índios, ou volviam gradualmente aos seus
matos, e á primitiva rudeza, ou tinham de s uccumbir, persis-
tindo nas relaçõe~ coi.n a raça mais forte. Do nõrte ao suJ do '
continente foi este o seu destino. E m umas partes dewad.a nte
,servidão;, ·em outras o iexilio para os confins da zona ci~iliza­
da, nas terras que a compaixão dos invasores lhes outorga; a -
breve trecho, por uma · e outra forma, a sua total extincção. ·

)'
/,/
, .

.. A DERROCADA

Não vem longe o dia_ em que os grupos indigenas, tão nume-


rosos ~a época do desc?brimento, terão desapparecido. Os in-
dividuos isolados, incapazes da lucta pela vida, esses vegetam
na condição de infimos ~árias, até que, fundindo-se com ele-
mentos ethnicos mais robustos, se apague no cruzamento o
stygma de inevitavel destruição, que lhes macula a origem.
De um e outro modo, fatal é a eliminaçã9 deste ramo da fa-
- milia humana _q ue, em breve, por _uma lei cruel da natureza,
irá juntar-se ao numero, já crescido, das raças extinctas.
Tinham talvez ÜnÍa intuição desse destino os jesuitas;- .por
isso era seu alvo principal, em todas· as conjunturas, sonegarem
os conversos, e_eximil-os, quanto possiveí, á communhão com
os brancos. Sendo assim, supposto não poderam no Grão-Pará
conseguir a separii.ção absoluta, realizada no Paraguay, tinham
no Regi'mento das Missões um adjuvante poderoso desse pro-
posito. «Nas aldeias (dizia essa lei celebre) não poderão as-
sistir nem morar outras _algumas pessoas, mais que os indi9s
com as sua~ familias»;· e impunJia a pena vulgar de açoites
aos . peões, . e de degredo á gente nobre; nos casos de contra-
venção. Fôra esta disposição, por muito tempo, pedra de es-
candalo contra os missionarios, pois é facil de· compreherider
que, no trato constante
.
com os indios livres,
I
darfa. a bruteza
destes _não po\lcas occasiões de proveito á chatinagem dos ci-
vilizados. Agora o preceito salvador era derogado por uma
lei, assigpada na mesma datà. (7 de junho de 17 5 5) que a de-
claração das liberdàdes, e, juntamente com ella, promulgada
dois annos depois, a 28 de maio de 1757. Essa annullava o
Regimento das Missões, com menção especial do capitulo pri-
meiro, pelo qual aos missionarios perteµcia o governo « não
só espiritual mas o pÕliÜco e temporal das aldeias», e todos
' os mais com este relacionados ; restituia á execução a lei de
1663, passando as aldeias a ser governadas pelos indios deno-
minados prz"ncipaes, aspiração de Paulo da Silva Nunes, cujas
propostas serviram de base á reforma pombalina; e estabele-
. c~a de maneira definitiva a separação, entre a magistratura
civil e as funcções de ordem espiritual, por ser vedado aos
ecclesiasticos «como ministros de Deus e da sua .Igreja mistu-
rarem-se no governo secular». . .
Onde o ministro de .Dom José se afastou do procurador do


OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Pará-Maranhão, foi na parte relativa ás liberdades, que este de


nenhum modo consentia. A lei determinava, como outra já an- ,
terior, de 161 r, destinada ao Brazil, que fossem livres todos
os gentios, e os mestiços índios de qualquer condiç:ío-,' só ex- _
ceptuando os oriundos de mãe african~ escrava; provia .á n~­
cessidade de serviçaes, dando regulamento á locaç_ão dos ín-
dios e á taxa dos salarios; e, para acabar de v~z com o regímen
antigo, e extinguir a lembrança das missões, mandava que es--
tas tomassem a designação de -villas ou Jogares, conforme a
população, tendo seus juízes ordinarios, vereadores e officjaes
de justiça, escolhidos, quando fosse possível, entre_os mesmos
índios ali residentes.
Cumpria, porém, evitar que, á primeira voz de liberdade,
os ,que se viam objecto de tamanha solicitude abandonassem
as estandas, onde por obrigação de captiveiro, salario, ou cos-
tume de obediencia, trabalhavam ainda; Para esse effeito acon-
selhava Carvalho a seu irmão o pre~crever, sob penas severas,
que nenhuma pessoa, fosse índio ~u portuguez, se ausentasse
do territorio da sua ·residencia, e mandava ao !Desmo tempo
crear obras publicas, e casas de cotrecção, para coagir ao tra-
balho os índios ociosos ou incorrigíveis. Mas não se tornou'
isso necessario. Poucos de entre os libertos saberiam üma no-
vidade, que tanta gente era interessada em occultar~lhes; e a
esses faltaria o animo de affirmarem o seu direito, em face _d o ·
temido s~nhor. Não tinham já, para incitai-os á reivindicação
das alforrias, os jesuítas, passados agora ao inimigo; e, de
qualquer forina, o que lhes era, pela experiencia colhida, a
liberdade, senão. a rnudança de um captiveko para outro, fre.
quentes vezes mais duro? Ac~rescia tambem que, pela repar-
tição post:a em pratica nos ultimos annos, grande numero dos
que estavam em- poder ' dos colonos eram fôrros, sem diffe-
rença, porém, dos escravos mais que em nome, e na ficção do
_minguado saJario; e Ulll) e outros Se confundiam, cada UID in-
consciente do seu estado de servidão absoluta ou . condiciorial,
segundo a lei. D"ahi resultou _n ão se notar nos primeiros tem-
pos variação sensível nas condições da vida urbana, e da la-
voura dos pàrticulares. A tránsformação ià dar-se com a ere-
cção das villas, e a applicação do regímen, ideado por Men-
donça sob o titulo de Dt'rectorio.
• 1

. (
A DERROCADA

Este nada mais era .que a extensão, a todas as novas po-


voações, do ·regulamento ordenado para a villa de Borba que,
como sabemos, foi a primeira emancipada dos missionarios. A
tronsformação não era tal qual as liberaes disposições do .de-
creto de I 7 5 5 permittiam · suppôr: porventura não acreditaria
muito nella o proprio Carvalho; mas-seu irmão, pelo conheci-
mento que · tinha dos indios, harto sabia quão longe estayam
elles de poderem sósinhos haver-se com os direitos e obriga-
ções, que de;> uso. da iQteira liberdade decorriam. Destruído
fôra, com seus defeitos, o velho edificio, mas não pequena dif-
ficuldade offe~~cia o substituil-o por ' outro, que os não tiyesse
equivalentes. O Directorio vinha a ' ser, por fim de contas; a
continuação do regímen anterior, sob a administração de um
fu1.1ccionario seculár. Do antigo Regimento das missões, conser-
vavam-se algumas partes f; os índios ficavam sujeitos á mesma
tutela; e, supposto existisse pas povoações a nominal autori-
dade dos juízes ordinarios, da cá.mara, e dos principaes, o po-
der effectivo cabia ao director, que sem a menor limitação em
tudo dispunha. A mingua de gente habilitada, exerciam o car-
go ind.ividuos da classe milit~r: primeiramente officiaes e, bai-
xando a escala, até simples cabos de esquadra. . Ignorantes e
despotas, certo haviam de ser os hom~ns, a quem se confiava
missão de tão dev~do alcance social. «Não era coisa extraor-
dfoaria- (diz um escriptor) ver um capitão de infantaria servir
á mesa a um fidalgo, ou um official de cavallaria feito cocheiro
de qualquer grande do reino; já se vê, p9is, que' os postos
. mais inferiÓres não podiam ser melhor providos 2 ». Destas pa-
lavras se pode colligir quaes as aptidões dos. novos funcciona-
rios coloniaes. Os magistrados indígenas, esses, por sua rudeza
e timidez,. não podiam ser mais que servis instl.J.l.mentos nas
mãos delles; usando da jurisdicção que possuíam para melhor
opprimirem, á ordem do tyranno superior, os seus congeneres.
O conimercio passava a ser nominalménte livre; mas, attenta

«Das ordens que expedi aos direi:to; es remetto a Vossa Excellencia a


copia'; nellas i.nclui as que se contem no Regime~1to das mis~ões, e diziam res-
peito ao. proveito e utilidade dos indios, e que nunca aqui se observaram ... »
-Officio de Francisco Xavier de Mendonça a Thomé Côrte Real, 21 de
· maio de 1757· 'Arch. do Pará. _
2 SORIANO, Historia do 1'.einado de el-rei D. José. Toµi. II, pag. 7.

".


286 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

a incapacidade dos índios, o director assistia ás permutas, e


regulava os preços nas transacções. A repartição de serviçaes
pelos moradores continuava, dividindo-se a gente apta para o
trabalho em duas turmas, das quaes alternadamente uma per-
manecia na povoação, ·e a outra se distribuía mediante sala-·
rios, de antemão fixados, a quem b governador indicasse. Tani-
bem ficavam em vigor, para augmento dos nucleos de popu-
lação, os descimentos, incumbidos aos juízes ordinarios e pri"n-
dpa~s, e isso com muita i~stancia, quaesquer que houvessem
de sér os gastos da fazenda real: ora sendo, como devemos
suppôr, nnlla a iniciativa desses funccionarios, índios boçaes,
que só por suggestão de outrem poderiam obrar, é claro que
ainda neste ponto o àrbitrio do director faria lei. _Eis, em breve
resumo, as fundamentaes disposições do regulamento, expos-
. tas em noventa e cinco paragraphos, as quaes, _muito embora
em opposição com o plano de Çarvalho, · que era o da eman-
cipação ampl_a, fôram por ·ene admittidas, ·e mandadas appli-
car, em sua integra., no Estado do Brazil. Assim se derogaram
·de um lanço os principios, renovado~ de leis anteriores, e que
nos decretos de junho de 1755 seduzem os espíritos liberaes.
Com razão Mendonça os julgava inopportunos t; mas não
eram mais feitos ao proposito os que lhes substituiu. A refor-
ma, na pratica de quasi meio seculo, largamente patenteou
quanto era improficua.
Em novembro de 58 saíu o governador da capital, fun-
dando yillâ.s nas aldeias, pertencentes ás missões, até Barcel-
los, onde chegou no mez de maio seguinte. Estes eram os .
povoados mais florescentes; os de menos importancia toma-

1 Officio de 21 de maio de 1757: «Devendo executar as duas leis de


6 e 7 de junho' de. 1755 1 pelas quaes Sua Majestade foi servido mandar de-
clarar a liberdáde de todos os indlos deste Estado ..., reconhecendo eu, como
quem está lidando com elles continuamente, e como quem tem vivido nas
suas povoações mais de dois annos, que as piíssimas intenções de Sua Majes-
tade ficariam frustradas, se absolutamente se entregasse a estes miseraveis e
rusticos ignorantes o governo absoluto da quantidade de povoações, que con-
stituem .~te grande Estado ... e não sendo passivei que pa~sassem de um
extremo a outro sem se buscar algum meio porque se podesse chega~ áquel!e
importante fim, me não occorreu outro mais preporcionado do que pôr em
cada povoa_ção um homem com o titulo de director . .. »..,....Arch. do Pará.

e
A DERROCADA

vam o predicamento de logai-es. A solemnidade er~ curta. Em


sitio des.coberto e adrêde preparado, levantava-se o pelourinho;
o capitão-general, ou o seu delegado, dava o nome, que era o
de uma yilla do. reino, -á povoação, substituindo a voz indi-
gena, pela qual era conhecida .até ahi ; em seguida elegia os
vere~dores: e outro_ s magistrados, investia o director, e abria
os livros da camara com' o termo da fundação. Em breve dis-
curso, que os indios, na sua maior parte ignorando o portu-
guez, não. comprehendiam, expunha o caracter da transforma-
ção, e os beneficias decorrentes do novo systema politico.
Ruidosos vivas e descargas de fusilaria celebravam o final da
oração; e as danças e bebedices usuaes nos folguedos indige-
nas terminavam o· acto. No dia seguinte, começava a vida
nova; para os indios subsistia a mesma, se não 'peór sujeição ;
mas, graças ao facil niethodo, pelo qual, em pouco tempo, um
territcrio quási deserto se encheu. de villas, o extenso Grão-
Pará tomou, para os incautos, que de longe observavam, a ap-
parencia de estado populoso e importante.
' Assim considerada, se reduz a suas legitimas proporções
a reforma pombalina. Vaga theoria, inapplicavel na pratica,
como outras ·saídas do mesmo cerebro, desvirtuada na execu-
ção por aquelle mesmo que devia rnalizal-a, estava de ante-
mão condemnada a desapparecer. Della só podia ficar, e fi-
cou, a parte que tinha por objecto excluir os religiosos. Ainda
assim a posterioridade não lhe deu razão, e as tentativas de
~ se entregar aos catechistas a missão civiliz~dora renovam-se
em nossos dias no proprio Brazil, e em outras partes do mundo.
Os resultados desde o principio não corresponderam á ex-
pectativa. Talvez por instigações dos missionados, consoante
slippunha o governador, os indios mostraram-se desgostosos;
~ além disso temiam que a mudança. lhes trouxesse mais ruim
captiveirO, suspeita que q- correr dos factos d~monstrou fun-
dada. Aos colonos tambem não foi agradavel a impressão pro-
duzida pelo novo regímen; excluídos, quasi em absoluto, da
exploração do selvagem, que tão dileCta lhes era, encaravam
.com inveja a parte leonina concedida aos directores. Dos re-
gulares, os carmelitas e capuchos acceitaram a situação, con-
tentando-se com ficarem por parochos nas aldeias, que ante-
riormente dirigiàtl)o; mas os jesuitas, já expulsos das suas, não


288 OS JES ~ ITAS NO GRÃO-PARÁ

cansavam de levantar obstaculos. Entre elles e · o reformador


rompeu accêsa lucta; pela posse dos bens, que a todo_o tránse
pretendiam defender e·este ultimo havia jurado·extorquir-lhes:
Privados do domínio, que tinham em· tantos indios fôrros, cujo ·
trabalho usufruíam; havendo perdido, pela emancipação .geral,
a posse de muitos outros, que diziam escravos; · porfiavam
agora em conservar as terras, prodftctos ,e ferramentas que,
só em deposito e como tut~res dos indígenas, possuíam. No
Maranhão, onde a autoridade çivil era mais debil, e logravam
álem disso a amizade do ouvidor, faziam recuar o encarregado
do governo, fulminando excomm.unhões, á sombra da bulla
In cama domzni que invocavam.- Mendonça, irritado e surpreso,
manifestava em acres termos, segundo usava, as suas impres-
sões. «Que roubem o mundo inteiro e depois ninguem lhes
possa tirar os ·fructos da mão, eis o que querem », dizia elle
dos jesuítas, referindo-se á bulla t_ Sua exasperação chegara
ao auge, e levava-o a procurar com ancia a occasião de des-
forço, que a fatalidade dos acontecimentos trazia já proxima.

II

Á revolta dos missionarios paraenses, contra os planos do


seu governo, respondeu o futuro marquez de Pomb~l com
immediata repressão. Não. lhe consentia o genio autoritario e
vingativo deixar impunes as resistencias, e o rancô~, contra os ·
que lhe encontravam as resoluções, cres_cia nelle á medida
que o seu ascendente sobre o monarcha augmentava tambem.
Não tinha soado ainda a hora em que os· carcerês se povoa-
ram com os adversarios da sua política; mas já os successos
anteriores tinham mostrado ·que a severidade do ministro,· no
modo ·de proced.er contra elles, facilmente chegava a excessos.
Entretanto, nas providencias tÕmadas contra os jesuítas, a ener-
gia não é ainda totalmente despida de lenidade.
Como pena dos embaraços, por elles levantados á execu- .
ção do tratado de limites, já desobedecendo ás ordens régias,

1 .. Officio de 24 de outubro de 1757. Arch. do Pará.

o
OS JESUITAS NÓ GRÃO-PARÁ

Anselmo Eckart e André Mei~terburg, disfa1-çados engenheiros


da Relaçilo Abreviada. Entretanto não se ·dava ainda impor•
taricia á famosa artilharia; as desordens e absolutisn:zos, de que
trata o estrondoso manifesto pombalino, eram simples desa-
venças com o official que Mendonça deixara, administ;ando a -
aldeia de Trocano, quando elevada a' villa, dois annos arites.
No intervallo, a situação dos jesuitas, tornara~se na côrte
mais grave. As ·informações, idas do sul do Brazil, mostravam,
como as do Grão-Pará, a Companhia de Jesus em plena ~ebel­
lião contra o governo portuguez. Na mente de Carvalho eram
taes movimentos . preparados, concordes, e obedientes a um
plano commum. Não lhe foi difficil capacitar disso o soberano
que, alheio aos publicos negocios, era nas suas mãos como a
debil creatura hypnotizada, que uma vontade extranha de
longe go,,vetna. Morrera a rainha mãe que, pel~ sua devoção
ás coisas da Igrejã, era ainda uma barreira aos projectos do
, ministro. A 2 r de setembro foram os jesuitas, confessores' da
. familia real, expulsos do paço, e todos os de mais prohibidos
de ali voltar. A 8 de outubro são expedidas as primeiras .
instrucções ao ministro de Portugal em Roma, para obter a .
intervenção do papa, e providencias severas contra esses reli-
giosos. A ro de- fevereiro seguinte, repetem-se a_s instancias.
O gabinete de Lisboa e o seu representante não descançarão
agora', antes de terem conseguido a satisfação que pretendem:
Carvalho dá então principio ao systema de envolver em
tudo os jesuitas, que foi a caracteristica de seus _actos d'ahi
por diante, e a origem principal da sua fama. Por uma obses-
são, que nunca mais o ha de largar, eíl-o começa a fazei-os
compartes de todos os successos, a que se pode imputar um
fim criminoso ou malevolo. Não lhe bastam os factos reaes,
de que tem provas, como a opposição á companhia do Grão-
Pará, ao tratado de limites, á liberdade dos índios. Acha ne_- ,
cessario inculpai-os na sedição do·Porto, a que foram alheios i.

1 A este respeito escreve F. L. Gomes: « Quiconque aurait lu ces


.plaintes de Carvalho "devait s'attendre, en ouvrant le proces du soulevement
de Porto, à y trouver des preuves évidentes de la culpabilité des jésuites;
.aussi, que! n'a, pas été notre étonnemente en n'en trouvant aucune trace
parmi cette montagne de dossiers 1>1-Le Marquis de Pomba.J, esquisse de sa vie
politique, pag. 112.

(
A DERRO"CADA

Attribue-lhes a intriga palaciana, que valeu o desterro ao ri-


-caço Martinho Velho Oldemberg e a Diogo- de Mendonça
Côrt~-Real. O fanatismo de Malagrida, que nas suas prédicas
e escriptos contraria a explicação scientifica do terremoto, e. ·
o define como castigo do céo, é para elle um crime horrendo,
faz parte de uma conspiração contra a _segurança do estado.
Tudo isto se encontra nas instrucções enviadas ao ministro
em Roma, as quaes são evidentemente obra sua, posto que
c;:om o nome do ministro dos extrangeiros, Dom Luiz da Cu...
nha, Q segundo.
Mas o attentado famoso do <;luque de Aveiro foi o seu ca-
bal triumpho. Tão denso - é ? vé_o, l~u1çado desde o primeiro
instante sobre este sucçesso; tão apertada a tyrannia, que
depois obsta l;Í. espontanea wanifestação da- verdade; que im-
possivel tem sigo até hoj~, e será semprç:, porventura, chegar
em tal assgmpto a condus{)es decisivas, Não se penetra~ bem
. ·olil motives, que poderiam impellir tã;o eleva<;lo fidalgo, qual o
roi;>rdomo-mór, ao attentado. Apear Carvalho, como insinua a
sentenç3.? Mais simples· teria sido então matal-o a elle mi.
nistro. Vingar-se da · recÚsa ·de mercês, e da licença para o
casamento de seu filh~, com a irm~ -do duque de Cadaval?
Desproporcionado era o desforço, e innnito o perigo de quem
o tentava; em comparação ao damno recebido. Desa,ffrontar
a honra dos Tavoras, pelo adulterio da marqueza moça, com
o rei? Nem o duque se achava pelo facto directamente attin-
gido, nem a posição de régia concubina seria na côrte vili-
pendio. '
Não obstantes as declarações falseadas, ou e~torquidas nos
tratos, que o· filho da victim_a mais tarde admittiu, mais ve-
rosimilhança tem a versã.o, que logo em seguida ao attentado
se propalou: os tiros eram destit1ados, não ao monarcha,- mas ao
seu creado e valido Pedro Teixeira, em cuja sége se achava,
e de quem o orgulhoso fidalgo tinha offensas t.

1 Despacho do enviado britanico ·Hay de I 3 de setembro de I 7 58 l


« His Majesty &unday night 3d, in,st., going with a favourite serva11t to visit a
. mi$tr~~~. (upqn which qcca~k>n, there are two çhaises, the King in one the
Qther fQHQwi\l.g bim; Q1.lt uofortunately that n,ight they were tQgeth.er),
thrqç tmm OP. hor~ebaçif \n, ma:;ks mi::t ·them; l~t the fQremost 1:q1J.ipage
pass, and attacked the last. The king is wounded iu the right il'ffi. • • the


OS JESUITÃS NO GRÃO-PARÁ

Afastadas as razões, mais humanas, de ambição; orgulho e


pundonor, resta a hypothese de ter sido Gabriel Malagrida, vi-
sionario e propheta, o inconsciente motor do crime. Cumpre
notar que todas as razões, allegadas na sentença, para envolver
na conspiração os jesuítas, são das mais frívolas; e só a pre-
- venção de animo as poderia acceitar, ou então o proposito de
a qualquer preço, mesmo contra o verosímil; chegar a tal fim.
De todos os jesuítas Malagrida é ó que Pombal mais detesta.
0

Inaccessivel ao temor, que já traz a nação subjugada, o mis-


sionario ousa erguer a voz, quando o silencio é lei. Desterrado
para Setubal, pela divulgação do i'!Scripto sobre o terremoto,
aliás approva~o pela censura, congrega ali, para os exercícios
espirituaes, a flôr da nobreza. Para os juizes da inconfidencia,
essas reuniões são os conciliabulos onde se assenta o crime.
O padre é quem allicia os conjurados, lhes exalta os espíritos
e santifica a empreza. Elle e outros companheiros, que a accu-
sação designa, atam os diversos fios do trama, servem de cor-
reios· aos conspiradores. A perseguição, movida á' Companhia,
arranca-~he l:irados, tanto de censura ao ministro, como de
condemnação ao soberano que a permitte. Eil-o animado,
como crê, do dom proplietico, e não é essa a primeira vez : _
já por occasião do terremoto tal se acreditara i . Um perigo
imminente, que é a mánifestaÇão da colera divina, ameaça o
rei. Acaso o duque de Aveiro, no seu orgulho, se julgou o
instrumento do providencial castigo, e tomou a inspiração do
delid:o, nos vaticínios d'esse, a quem o exaltado fanatismo; as
penitencias e as canceiras da vida apostolica tinham desequi-
librado o intellecto? .A nevoa oe mysterio, que Pombal desdo-
brou sobre esta sinistra tragedia ;. as torpezas dO' processo, _que
o despojam de toda a fé; as encontradas paixões, a que deu
logar a tentativa de comprometter os jesuítas no crime; tudo

serv!lnt is much hurt ••• This blow is thought to have been designed against
the man, ·not against the master. » SMITH, Memofrs of the Marquis of Pom- -
bal, vol. 1, pag. 210.
1
«Illuxit tandem anno 1755 fatalis ilia dies, quae . totum· Portugal-
lire regnum, civitatem prresertim Ul!ysiponensem terribilli ille terrremotu
concussit, quem P . Malagridre fuisse a Deo revelatum non pie tantum, sed
quasi certo creditur. »-Carta do padre Bento da Fonseca em MÜRR; fournal
für K1mstgeschicbte, tom. 16. - --

( .
294 OS JESUITAS NO G~O-PARÁ

São Julião da Barra; um em Almeida; os outros recuperaram


a liberdade quando, em 1777, as sobreviventes victimas de
Pombal, voltaram ao mundo.
Rapido foi, d'ahi por dianté, o curso dos acontecimentos,
até ao final desastre da Ordem em Portugal. As reclamações
do gabinéte de Lisboa correspondera Benedicto XIV com o
breve da reforma, em que reconhecia as irregularidades, prati-
cadas pelos religiosos nas missões. Buscaram mais tarde os je-
suitas dàr esse diploma por apocrypho, pueril tentativa, com
que a sua reputação não lucrou.
O breve, que tem a data do 1. 0 de abril de 1758, é inti-
mado aos padres a 2 de maio. Sob o docel, e em ,habitos
pontificaes, o cardeal Saldanha publicamente recebe, na igreja
. de São Roque, a forçada homenagem dos que lhe são agora
subditos. A 15 profere contra elles o severo mandamento que,
se não inteiramente redigido por Carvalho, é. composto, ao
menos, por sua directa inspiração. Nelle se declara informado
das praticas escandalosas do commercio, a que se entregam;
prohibe expressamente, e sob qualquer pretexto que seja, a
continuação de taes actos, e commina a pena de excommu-
nhão aos trangressores. A 6 do mez seguinte, anniversario do
rei, o ministro encerra-se em demorada conferencia com o pa-
tri3:rcha de Lisboa; . no dia immediato, e e!:? resultado della,
um edito do prelado veda aos membros da Companhia de
Jesus . o exercerem as sacerdotaes funcções no pulpito e -no
confessionario. O exemplo em breve é seguido nas outras dio-
ceses, cujos pastores não querem ser menos promptos em obe-
decer ás insinuações vindas do alto. Entretanto o visitador
chama á sua presença os procuradores dos collegios e missões,
ordena a exhibição dos livros de contas, examina as receitas
e despesas. Se é licito, em tal materia, acreditar os jesuitas, a
diligencia saiu baldada. Dos enormes thesouros, attribuidos á
sociedade, não se encontrou signal. Verifica-se que em muitas
partes ·havia dividas, e que os collegios de Coimbra e do Pará,
os mais numerosos da provinda de Portugal, recebiam soccor-
ros de outros, menos importantes. O certo é que nem então,
nem mais tarde, após o sequestro, apparece o inventario, que
infallivelmente havia de se fazer com estrépito, dos occultos
bens; pelo contrario, tal silencio parece indicar que, além das

• (•

A DERROCADA 295

· casas de residencia, igrejas, e os objectos de culto, muitos


dell_es. necessariamente ricos, os reljgiosós nada mais possuiam
de valor 1.
A 3 de setembro foi a famosa noite dos tiros. Conhecida,
pelas indiscreções do paço, a verdadeira enfermidade .do rei,
os que -sabia~ dos amores com Dona Thereza de Tavora na-
turalmente attribuiram a ciume ou desaffronta o attentado.
-Carvalh? logo comprehendeu a imrnensa vantagem que de tal
, indicação poderia tirar. Cumplice das frascarias aventuras do
soberano, que simulava passar com elle, a conferir sobre os
negocios do estàdo, o ·tempo consagrado ás entrevistas, des-
viava a colera da 'rainha, e congraçava-se talvez, . fazendo re-
cair o pezo . de sangrenta vingança, sobre a odiada familia da
rival. O ambicioso politico tudo' tinha a ganhar: firmava-se
na paço, destruía os adversarios, e abatia de vez, com um
golpé tremendo, essa orgulhosa nobreza, que até ahi o desde-
nhara.
O rei aterrado e sem alma cedia a tudo. Consentiu que no
patíbulo de Belem tirassem a· vida, innocente, áquelle de quem
havia infamado' o thalamo. A ·seu lado o ministro exagerava o
pavor, incutia-lhe receios de uma conjuração, que dentro do
proprio paço o iria assaltar. Durante algum tempo; os secreta-
rias de estado se revezavam a acompanhal-o, guardando-o de
imaginados perigos, e ·se1npre um delles pernoitava em apo-
sento -contiguo á camara real !i!.
Fóra do palacio, entretanto, imperava o terror. Seguros '
em poder da justiça os indigitados criminosos, as denuncias,
os arbítrios da devassa, as ordens de Carvalho levam innume-

t · « Vix erat domus ulla, qure rere alieno, prresertim post terrre motum,
non laboraret. Collegiis et Conimbricenci . et Paraensi (hrec erant omnium
maxima; pri~um enim ducentas alterum personas 100 numerabat) succur-
rere debebant domicilia minora, ad debita paulo citius expungenda. »-His-
toria pe~secutionis Societatis Jesu in Lusitânia, em MÜRR, ,Journal cit., vol. 8,
pag. 96. ·
2 Despacho do enviado allemão Klevenhüller,.de 17 de dezembro de
17 58: « Die drei Staatssecretarii sind bestandig dergestalten um den Konig dass
·je einer wechselweis um den andem hei dem Konige wacht, und nahe an
seiner Kammer übernachtet. » --Citado em DUHR, Pombal sein Charakter und
seine Politik, pag. 84. .'' . .

••
OS JESUITAS NO GRÃO-PÂRÁ

ras pessoas á prisão. Um estado de angustia geral, similhante


ao que, tres annos antes, o terremoto produzira, domina·agora.
Poderoso ou humilde, ninguem está seguro em sua casa; e ai!
dos que são parentes "ou amigos dos conjurados; dos que ou-
sam falar do governo; dos que alguma vez encontraram as
opiniões ou os interesses do ministro. Só na capital o numero
dos presos excedeu de um miihar t; e, para muitos, os cala-
bouços se · abrira1n sómente dezoito annos depois, quando se
achavam na maior parte esquecidos, e alguns tidos por mor-
. tos já eram.
Por terem falado ao duque de Aveiro foram dois jesuitas
nomeados por cumplices na sentença; e, com esses, Malagrida,
pelas ,relações com a marqueza de Tavora, que o . dizia santo;
mas do processo não se poude apurar contra elles indicio
algum. Isso· não obstante, era proposito de Carvalho envol-
vêl-os na conspiração, e assim fez. A falta de argumentos, re-
correu ás declamações vagas que, lanÇando a suspeita, dispen-
sam a prova; e o vulgo,- acceita~do por verdadeiros todos os
crimes imputados aos jesuitas, não teve difficuld~de em attri-
buir-lhes mais este. A embuscada de 3 de setembro éie 1758,
figuràndo na historia como um attentado da Companhia.- é uma
consequencia da lucta empenhada pelo governo de pom José
contra ella, nos sertões do Paraguay e do Amazonas.
Todos os esforços de Pombal, nas su~ relaÇões posterio-
res com a côrte de Roma, tendem a fazer vingar essa idéa, e
deve-se confessar que similhante campanha foi tão habil_ quanto
activa. Se as circumstandas favoreceram a Carvalho, entre-
gando-lhe um adversaria, pela ordenação fatal dos aconteci-
mentos já prestes a succumbir; é certo que a iniciativa ôelle,
a repetição de seus golpes certeiros, adiantou um successo,
que talvez só mais tarde, e bem tarde, viria a realizar-se, pela
dissolução gradual de um ·organismo, que não tinha já raz_ão
de ser. Apparelhada, pelo seu fundadorf . em companhia de ·
guerra, destinada, como as antigas ordens militares, aô com-

1 Kleveuh1ller, despach.o de 9 de janeiro de 1759: «Auf der andere


Seite fahrt man mit Arretirung haufiger Personen fort, so dass deren schon
über tauseud nur hier in der Stadt gezahlt werden wollen. » -DUBR, Pombal,
pag. 84.

(
A DERROCADA 297

bate, a sociedade de Jesus tinha de decafr como ellas, deixar-


se eivar na paz dos mesmos vícios, e ·succumbir por fim de
morte egual. Dos templarios ~ parà não falarmos nas outras
cavallarias, cuja existencia, com menos realce, foi a mesma -
dos templarios e dos jesuitas a origem, o viver e o destino final,
pode-s~ diz~r, são eguaes. J?esde que o turco se estabeleceu
definitivamente em Constantinopla, e a Europa ·occidental tra-
tou com ell~ de potencia a potencia,' as ordens de cavallaria
deixaram de. florescer. Da mesma sorte, assente em alicerce
inabalavel, no mundo christão, o protestantismo, e delimitado
perfeitamente o seu terreno, a ·milicia, levantada para º' der-
rubar . e repellir, fica _necessariamente ociosa; na paz deixa-se
ven.cer da mollicia deprimente ; e, substituindo a primitiva
abnegação e o ideal, de onde lhe- vinha a força, pelo desejo do
mando e influenciá mundana, eil-a irreparavelmente a cami-
nho da perda.
Por outro lado, .a obra de catechése, a que se consagrara
nas terras ultramarinas, ernquanto fervorosamente batalhava
ua Europa, fôra baldada tambem. No Oriente, os mais perse-
verantes esforços sómente pequena brecha logravam fazer ·en-
tre os milhões de indivíduos, adeptos de religiões; desde
muito estabelecidas. O artificio de acommÕdar as formulas
e~teriores do christianismo aos ritos gentilic;os, f?ra julgado um
êrime: éomo tal, tiveram os jesuítas de deixai-o, e assim perde-
ram o maior numero dos proselytos, com que se desvaneciam.
Em Africa, poucÓ haviam trabalha.d o. Na America, a opposição
constante dos colonos, e a subita violenci~ dos gov~rnos de
Espanha e Portugal, mallogravam-lhes a tentativa, J!lOstravam-
1hes ·a inutilidade do esforço secular_, applicado á transforma- ·
ç.ão de uma raça, que apenas superficialmente era susceptivel
de remodelar-se. Desta arte, pois, como defensores da Igreja
catholica, pela terminação do c?mbate ; como esculcas da. ci-
vilização entre os gentios, por se lhe terem frustrado as dili-
gencias; terminada era virtualmente na historia a missão da
Companhiá de Jesus.

38


OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

IV

A derruir este abalado edificio consagrou Pombal todo o


potente esforço da sua vontade;' e, bem se pode dizer, nunca
mais aturada energia trabalhou ao serviço do odio. A campa-
nha principiou verdadeiramente em 1755, quando em Lisboa
surgiu a opposição á Companhia do Grão-Pará, e proseguiu,
sem descanço da parte do ministro, até Ganganelli publicar,
em 1773, o famoso breve da abolição. Perseguido pela idéa
fixa de d~struir a sociedade, como unico desforço cabal da
opposição que tinha della; convicto, ou não, .da realidade de
todos os maleficios que lhe ~sacava; Carvalho, nos factos da
administração interna do paiz, nas rel~ções diplomaticas, n<;>s
escriptos, nas conversações particulares, deixa entender então
que a destruição da sociedad~ jesuítica é o escopo principal,
que a sua activida_!1e tem em mira.
Para mais ampla convicção, podemos recorrer aos tres gros·
sos volumes, que consti_tuem o manuscripto da Deducç&o Ckro-
nologica t, livro famoso, 'em que todàs as razões do governo de
Dom José, contra os discipulos de Loyola, se acham compen-
diadas. Ali, quasi em -todas as paginas, veremos a redacção
original· modificada, por suppressão de phrases, addições, notas
á margem, emendas do estylo, alterações que muitas vezes
transformam o sentido anterior. Essas correcções, que a mi·
nuciosa penna do minis~o traçou, sobre o texto primitivo, da
mão de um escrevente subalterno, mostram que a teia do fa.

1 Deducção· chronologica e analytica. Parte 1.ª Na qual se · manifesta


pela successiva serie. de cada um dos Reynados da Monarchia Portugueza
desde o governo do Senhor Rey Dom João m até o presente os horrorosos
estragos que a Companhia-denominada de-Jesus fez cm Portugal etc. Parte 2."
Na qual se manifesta o que successivamente passou nas successivas épocas
do Mundo, sobre a censura, prohibição e impressão dos livros, etc. Parte ) .•
Petição de-recurso apresentada em audiencia publica á Majestade de El~Rey
Nosso Senhor sobre o ultimo. e critico estado desta monarchia depois que a
Sociedade chamada de Jesus foi desnaturalisada e .proscripta dos dominios de
França e Hespanha. -Cf. Ms. da Bibliotheca Nacional de Lisboa. Collecção
Pombalina cod. 444 a 446.

f
.: A DERROCADA 299

moso libello, a começar no plano, até ás· particularidades da


execução, é toda obra sua; embora, por uma ambigua expres-
são do . rosto impresso 1 , o favorito .José Seabra pareça o
autor. Se ao poderoso secretario de Está.do, pela dignidade do
cargo, não convinha apresentar-se ostensivamente como escri-
'. ptor de tal obra, o mesmo não succedia com o Procurador da
Corôa, seu devotado collaborador, de quem provavelmente er~
o trabalho secundado da compilação. .o facto de vermos o
-primeiro ministro apartar a attenção dos cuidados do governo,
que todos lhe pertenciam, para o applicar com tal desvelo a
uma tarefa, que_mais se pode dizer litt~raria, bem claramente
manifesta a importancia que a questão jesuitica assumira a
seus othos. Dominado por um pensamento constante, não ha
lavôr qrie ~che excessivo, nem attenção que lhe pareça denÍa- -
siada. ExpelHdP o inimigo do reino, ir acabal-o em Roma, seu
ultimo refug~ ;· esmagar as ultimas cabeças da hydra, que, já
ferida de morte, ainda colleia e ameaça; esse é o seu fim; e só
descançará quando o tiver conseguido. '· · ·
Buscando isso, emquanto, por uma parte, diligenciava
obrígar a curia pelá acção diplomatica, agia, por outro lado,
sobre a opinião publica, nos. ,Paizes catholicos, innundando a ·
Europa de pamphletos. ·Traduzidos em diversas línguas, ~s es-
~riptos, de sua penna ou redigidos sob immediata inspecção
sua, Relação Abreviada, Deducção Chronologi'ca, memorias e
. promeµiorias á côrte de Roma,' são lidos em toda a parte no
.extrangeiro, e vão avolumar a já tão numerosa bibliotheca das
obras contra a Companhia deJesus. Em Roma, dentro da pro-
pria casa da embaixada, umá imprensa clandestina funccjona,
dando á estampa os pasquins. O livreiro Nicolau Pagliarini,
accusado de ser o divulgador desses escriptos, .de origem ille-
gal, e que atacavam não só os jesuítas, senão tambem a côrte
pontifida, não escapa á pena de prisão, nos estados do papa,
depois do que se refugia em Lisboa. As publicações, cuja res-
ponsabilidade o governo portuguez confessava, distribuia-as o
ministro Almada e Mendonça aO Pont~fice, membros do Sa-
cÍ:"o Collegio, e pessoas gradas de Roma. O capuchinho Nor-
bert, conhecido tambem por abbade Platel, e cujo nome ver-

t «Dada d luz. pelo doutor José Seabra da Silva» •



300 OS JESUIT~S NO GRÃO-PARÁ

· <ladeiro é Parisot, celebre pela extensa obra que publicou,


sobre os chamados ritos malabares e o proceder dos jesuitas
na India, corre a pôr-se ao soldo de Carvalho, entre os obreiros
da sua officina litteraria. Elle é o autor de uma odiosa nárração
do supplicio de Malagrida, em lingua f~anceza, notavel pelos
ultrajes á desditosa victima do rancôr pombaJino ; e esse es-
cripto nos pinta o caracter do foliculario venal e sem fé.
Fiel ás ordens da sua côrte, trabalhando com afinco em
Roma, o ministro portuguez Almada su{>plica, intriga, ameaça.
Carvalho, de quem é parente proximo, franqueia-lhe os the-
souros do Brazil, para comprar o voto favoravel dos cardeaes.
e Sáe mais barato (diz-lhe este) fazer a guerra com o dinheiro
que com exercitos > ; e propõe mandar-lhe para Roma pratas,
porcelanas de Saxe, e <liam-antes, cujo valor ha de téntar·os
assessores do pontífice t. Todo o seu empenho se dirige agora
a- conseguir que á Mesa de Consciencia e ·ordens, tribunal pri-
vilegiado dos ecclesiasticos ·e cavalleiros, seja permittido re:
laxar á justiça civil os jesuítas incriminados de regicidio. 'Por
algum tempo o pontífice hesita, tergiversa, recusa; afinal, te-
mendo um scisma, capitula. _Mas o breve Dilecti jilii não sa-
tisfaz os desejos de Carvalho, q.ue exigia mais largas conces-
sões : debalde o papa Rezzonico se humilhara cedendo ; o
rompimento da côrte de Lisboa é inevitavel.
Que motivos teria o ministro _para solicitar com tal ancia
a autorisação? Porque não se aproveitou della, incompleta,
para levar ao cadatalso os jesuitas? Que escrupulos ou in,
fl.uencias o demoveram de prescindir da licença, e quebrar a
lei, ou -impôr a sua vontade aos milgistrados da Mesa de Con-
sciencia, quando o assentimento destes lhes parecesse indis-

1 « On tr~uve ici plus de cent mille cruzruios employés en argenterie fi-


nement travaillée à Paris, et en porcelaine de Saxe. Je ne sais comment les
remettre à Rome, sans.que l'on sâche d'oú viennent cette argenterie et cette
porcelaine, et à qui elles sont destinées. Je pourrai aussi vous envoyer quel-
ques diaruants bruts que vous ferez tailler là bas; en attendant vous me direz
s'ils peuvent servir pour des croix pectorales etc. Je vous envoie quatre ba- -
gues dignes d'être offertes pour gagner ou, tout au moins, pour commenéer
à acquérir quelques bons amis».-Carta confidencial de Sebastião José de
D.rvalho a Francisco de Almada e Mendonça. Trad. por F. L. Gomes na
sua obra Le Marq11is de Pombal, cit. pag. 167.

f
..
(
A DERROCADA 301

pensavel? Pode-se presumir que intervieram ahi susceptibili-


dades de consciencia do rei. Certo é que o proposito, iniciado
com tanto ardor, não· foi ávante, ·e que, para tirar a vida ao
objecto de seu odio, o implacavel perseguido·r recorreu á In-
quisição, quando nella poude finalmente dom.inar. · -

No proprio dia em que foram presos os Tavoras, em todo


o reino os jesuítas· se acharam subitamente reclusos nas suas
residencias, cercadas por tropa. O que a isto succedeu . é sa- _
bido: expulsão dos cenobios, sequestro de bens, encarcera-
mentos, exilios.. Muitos dos padres foram logo deportados
para a Itâlia; outros, porque <?S julgavam talvez mais crimino-
sos, recolhidos ás prisões de Estado. Ficaram isentos de pena
os nacionaes que, não sendo ainda professos, quizessem secu-
Jarizar-s~: a esses foi permittido permanecerem no- reino.
Entretanto dava-se ordem para egual proceder nos domi-
nios ultramarinos, par.a onde partiam embarcações, com ordem
de trazerem, na volta, os membros da proscripta sociedade.
Malagrida foi dos muitos destinados ás masmorras. A esse
distinguia o secrétario de està.do com odio especial: «Mais
endureCido que Antiacho, mais desesperado que Judas, pela
ridícula vaidade de sustentar a honra de uma companhia, que
possue o segredo de como que enfeitiçar todos aquelles que
lhe são dedicados », assim o qualifica o abbade Platel; ...
« cheio de tenacidade, soberba e fingimento, com que adquiriu
a boa opinião ·ou fama de santidade», dizem os inquisidores
na sentença; e um e outro juizo se pode acreditar reflectirem
o pensamento de Carvalho. O proprio jesúita sabe ter attrahi-
do para si, de preferencia a qualquer outro da mesma socie-
dade, os raios da tremenda colera. «Sobre m~m, (conta elle)
este homem despeja toda a sua accumulada ira)) t

«In me autem prresertim acerbitatis sure virus, quod diu collegerat


omne evomuit>J. - Carta. de Malagrida a Clemente xm, na Hist. persecttt.
S. J. in J..usit; MÜRR, Journal, cit., tom. vm, pag. 102.



302 OS JESUlTAS NO GRÃO-PARÁ

Na realidade, o missionari~ era uma alma simples, votada


ao sacrificio, dominada pelo ascetismo. Conservava todo o
fervor apostolico e o desinteresse dos pristinos· tempos da
Companhia. Podemol-o considerar um segundo Anchieta, ou
então o Francisco Xavier do Brazil. Todos os testemunhos
a este respeito são conformes. Sua vida era feita de tra-
balhos e privações. Nas extensas peregrinações, que fez no
Brazil por terra, caminhava sempre a pé. Disciplinava-se
amiude. Sua alimentação era frugal, abstendo~se '' quasi sempre
de carne e, peixe. Não tinha do valor do dinheiro a menor no-
ção; e com poucos cruzados se julgava habilitado a intentar
as fundações mais custosas: foi assim que, recorrendo a pes-
soas piedosas, qU:iz povoar o Brazil de igrejas, recoÍhimentos
e seminarios. Oppoz-se Pombal, desde qlle entrou para o go-
verno, a que ~lle levasse por diante essa~ edificações, princi-
piadas com o auxilio do rei; mais tarde não hesitou em fazer
declarar pelos inquisidores que elle tinha enganado os povos,
extorquindo-lhes mu#o grosso cabedal com pretex_tos de devo-
ção. Da sentença do Santo Officio se vê que muita~ pessoas o
tinham por santo e verdadeiro propheta; algumas lhe attribuiam
milagres. Elle proprio se julgava em posse do favor celeste, e
referia os prodigios que alcançara. Duas vezes, em apertado
risco de naufragio, tinha implorado a Virgem, e as vidas fô-
ram salvas. Com as suas orações dera saude a enfermos, e
éonseguira descendencia a esposas estereis. Nó carcere, já de
todo mentecapto, tinha visões; jurava terem-lhe apparecido
_ Santo Ignacio, São Francisco de Borja, e outros' bemaventura-
dos; acordando, ouviu vozes q~e lhe ditavam a vida de Santa
Anna e. a do Anti-Christo, uma tragedia de Esther e Mardo-
cheu, e obras propheticas. Estas revelações deram finalmente
ao seu inimigo ª· opportunidade de impôr-lhe o tragico fim,
que de ha muito tinha em vista.
Em julho correu o rumor que Malagrida, preso no forte da
Junqueira, seria levado ao Santo Officio, e queimado a 31
d' esse mez, para commemorar a festa de Santo Ignacio. Não
se realizou, porém, então a espe~taculosa vingança de Carva-
lho, pela opposição do inquisidor Dom José de Bragança, um
dos meninos de Palhavã, irmãos bastardos do soberano. Sósi-
nho no carcere, o jesuita, com mais de setenta annos de eda-·

"
-A DERROCADA

de, alquebrado pela velhice, e já tocado antes pela clemencia,


resvalava agora no abysmo da completa loucura. Os guardas,
que o espreitavam, _viam-no virado para a janella da prisão, a
exclamar: Quem me chamar quem me falar o meu confessor
diz-me que não dê attencão ! f Nos seus cubiculos, os outros
habitantes do forte, presos -de Estado que, s_uborna'.ndo um
carcereiro, tinham conseguido communicar entre si, discutiam
o caso: para uns, os mais superticiosos, era manifesta a intro-
missão divina; aos reflectidos evidenciava-se a insensatez. Con-
seguindo, pelo mesmo guarda, obter pennà e tinta, começou o
jesuíta a escr~ver s~us desvarios. Um dia, o desembargador
que administrava a prisão, desceu ás casamatas, e encontran-
do-o, attento ás vozes celestes, a compôr a vida de Santa Anna,
arrebatou-lhe os pàpeis. Passados dias, foi o prisioneiro cha-
mado a pe!guntas. .Interrogado sobre os escriptos, insinuou.
que os fizessem examinar por theologos e pelo Santo Officio,
e se veria nada conterem de ·reprehensivel; em seguida, recu-
perando por alguns instantes a lucidez, pediu lhe dissessem
e porque razão ' o tinham encarcerado?» Se era por cumplice do
regicídio, comb interpretavam então o aviso que elle, por di- _
vina inspiração, tinha mandado á camareira-mór, sobre o pe- .,
rigo em que se achava o soberano?
Durante isto, o abbade Platel, provavelmente Paulo de Car-
valho, e outros theologos da confiança de Pombal, examina-
vam o · m.anuscripto, e 'capitulavam de heresia a insensatez.
Malagrida passou do forte da Junqueira aos calabouços do
Rocio. Ha quem pretenda que teve relação. com o processo o
exonerar-se o i1;1fante Dom José do cargo de inquisidor geral;
em substituição, q - cardeal, irmão de Carvalho, ·assumiu essa
jurisdicção suprema. Correu a causa seus tramit_es, com as de-
longa~ usuaes. As culpas .versavam principalmente sobre as
heresias contidas nos escriptos, com as aggravantes, que nos
interrogatorios fornecia a loquacidade de um réo alienado da
razã:o. ~ãó ousaram os juizes, por um resto de pudôr, submet-
tel-o aos tormentos; mas irrogaram-lhe na sentença o ultraje
de inculcarem que este velho de setenta annos, abatido, além

l Referido pelo marquez de Aloma, na sua. obra As prisões da Junqueira,


escripta no carcere.

• •

OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

dos jejuns e penitencias pelas molestias e privações dos ultimos


tempos, usava entregar-se no carcere a praticas de solitaria
lascivia.
A 20 àe setembro de 1761 teve logar o auto de fé. O con-
curso de povo era enorme, e nos logares reservados via-se ' o
, corpo diplomatico, que o governo não ousara convidar, mas
que a curiosidade attrahia. Para conter qualquer manifestação a
que o fanatismo popular, t~ndo Malagrida por santo, pudéra.
dar motivo, mobilizara se a força militar.
Este espectaculo, em que pela ultima vez a justiça eccle-
siastica, em Portugal, fez condem,riar á morte um homem, por
motivos religiosos, começando ás sete horas da manhã, só veio
a terminar de madrugada no seguinte dia. Os seuteneiados
era~ em numero de cincoenta, mas de todos Malag~ida foi
sósinho a padecer a ultima pena. O publicista Francisco Xa-
vier de Oliveira, que em Vienna, no tempo de Carvalho, fre-
quentava a · embaixada, e com o ministro discorria sobre ã.
lamentavel decadencia mental, a que o fanatismo trouxera a
..
patria commum, figurava no auto em effigie, como hereje e
rebellado contra o .Santo Offido: a sentença entregou o ma:
nequim ás chammas·, como teria feito ao Óriginàl, se a justiça
dos inquisidores o colhera ás mãos. Outras estatuas eram tra-
zidas tam.bem de réos fallecidos nos carceres, e nenhuma for-
malidade se omittiu das que podiam impressionar o publico e
augmentar o solemne do acto. · •
Aos lados do jesuíta heresiarcha caminhavam dois confes-
sores, que o exhortavam. Dois fidalgos çla primeira nobreza
do reino, o duque de Cad<;tval e o conde de Villa Nova, fàmi-
liares do Santo Officio, lhe faziam escolta, pavoneando-se,
ufanos do encargo. Por longas horas; em quanto não chegou
a vez de lhe ser lida a sentença, Malagrida sentado, de cabeça
baixa, os cotovellos fincados nos joelhos, as mãos enclavinha-
das á altura do rosto, immovel e silencioso, a tudo que se lhe
passava em tornQ parecia alheio. Ainda ali, consoante disse
aos confessores, a voz etherea Ihe falou. Em certo momento
pediu mesa, isto é, quiz falar aos inquisidores. Durou a conferen-
cia uma hora e, terminada, voltou tranquillo ao seu logar. Os
espectadores observavam-no com interesse infatigavel; pode-se~
dizer que sobre elle sómente todas as atts:nções convergíam.

f
A DERROCADA 305

O acto final da tragedia . approximava-se. Leu-se a sen-


tença, o que levou duas horas, e, todo esse tempo ajoelhado
e submisso, posto que sem. ar de humilhação, nunca a sereni-
dade o abandonou. Paramentou-se em seguida, como que in-
consciente, e quasi rison}\o, parl:l. a formalidade da degrada-
ção: seu espírito desprendera-se dos objectos terrenos, e libra-
va-se agora ao sonhado paraíso. O arcebispo de Lacedemonia
arrancou-lhe as vestes sagradas, e com ellas a roupeta de je-
suita, que até esse instante conservara, .contra os usos da
Inq~isição. Formava' o intento 'de quem ditou aos juizes a
condemnação, patentear que nãÓ era um membro s.ó , mas o
corpo inteiro da Ordem, ao menos symbolicamente, justiçadó
nesse' dia. · · - -.
D'ahi a pouco, os restos calcinados de Malagrida, morto
pelo ga~rote, eram p~r mão do executor dispersos ao _vento.
Decorrido mais de um seculo, e numa época em que as no-
ções scientificas, divulgadas por todos, dão a facil interpreta-
. ção dos milagres, afastada, pelo conhecime~to das doenças
mentaes, a presumpção de .impostura, as palavras de Voltaire
ácerca da execução ficam como a definitivo julgamento da
posteridade sobre quem a ordenou: O exqsso do ridiculo e do
aósurdojuntou-se ao excesso do horror/ '

VI

Emquanto isto se passava na côrte, nas colonias iam-se


executando as ordens de expulsão e sequestro. No Pará o
irmão de Pombal não podera concluir a tarefa, que ultima-
mente tinha sido o objectivo principal do seu governo; mas
chamado a outras funcções em Lisboa, d'ali ainda,'· como o es-
calracho das vinhas de Oeiras, ia extirpando do sólo, em que
por tantos annos livremente medrara, a sociedade jesuitic.a.
Subtrahidas as missões á influencia della, os golpes dirigiam-se
agora a essa prósperidade material tão invejada. Levara-se
por diante o exame do direito dos· missionarios, á posse dos
bens que ostentavam, e o resultado foi contra elles. O governo
mandara-lhes tirar,. ·p~r falta de tituló legal; as fazendas de
39

• •

OS JESUITA~ NO GRÃO-PARÁ

gado, que possuiam t. s9 na ilha de Marajó 134 mil cabeças


bovinas, um milheiro e meio de cavallos passaram á corôa. O
golpe era rude, mas os religiosos . não desanimavam; ·espera-
vam ainda um revirar da fortuna, que os restituisse á supre-
macia anterior. A cadeia fatal dos acontecimentos ia porém
levar-lhes o desengano.
Só a 2 5 de agosto de 17 59 se veio a .saber no Pará do
crime commettido pelo duque de Aveiro. Com a surprehen- '
dente nová, espalharam-se os pormenores da conspiração, e a
parte capital dos jesuítas no attentado. Julgue-se qual seria
em tal conjunctura a consternação dos perseguidos padres!
- Já então se não tinham de haver pessoalmente ·com ô impla-
cavel Mendonça; mas esse, de longe, dava ordens ao successor,
que, por interesse ou convicção, participava da mesma sanha
contra elles. Se até ahi poucas dedicações contavam ·os rel~­
giosos, no destroço de sua antiga grandeza, ·agora, com semi-
lhél;nte culpa a cargo, quem seria bastante ousado para llies
manifest~r bemquerença? O abandono foi . portanto completo;
mas ainda nessa ci;>llisão elles se não desprenderam da costu-
mada soberba.
Mandou o governador Mello e Castro celebrar na cathedral
acções de graças, pelo feliz escape do rei: concorreram _ao
templo todas as communidades religiosas, mas os jesuítas, ou
em represalia de não terem sido convidados, ou por fazerem
uma demonstração especial contra o governo, não comparece-
ram á solemnidade. . Este_proceder não podia deixar de lhes
ser nocivo no conceito publico: o que fôra sómente um acto
de despeito ou mal cabida arrogancia, se taxou de impruden-
cia; e nenhuma duvida houve já sobre a partiéipação da so-
ciedade em um crime, a cujo mallogro se mostrava tão sensí-
vel. Dias depois, celebraram-se as acções de graças na igreja
dos jesuítas: de pessoas extranha~ ao seu gremio ni'nguem.
compareceu. Como de pestiferos afastava-se delles temerosa .a
população fiel ao rei t.

1 Aviso de 2 de agosto de 1757.


2 Officio do governador Manoel Bernardo de Mello e Castro ; Pará, 6
de fevereiro de 1760 : « • • • Dispuz na catliedral desta cidade uma missa e
Te-Deum, a cujo acto assis!iram todas as communidades religiosas, á exce·

e.
(
A DERROCADA

De. .então por diante, passaram os padres em notavel des-


conforto. Privados da gerencia das missões, e das opulentas
propriedades, de onde tiravam o melhor de seus rendimentos;
perdidas as congruas, que a munificencfa régia em felizes ' tem-
pos lhes outorgara; apeados do antigo poder, que lhes vinha
em parte dos bens, sobretudo, por~m, da incontrastaveL in-
fluencia na côrte; objecto agora da suspeita geral, ainda li-
vres, viviam no collegio como que reclusos; e, na estreiteza
de meios, a qu-e se achavam reduzidos, mal podiam sustentar
çom .dec6ro a numerosa communidade. ·
Dec.o rreram mezes, emquanto o seu destino se preparava.
A distancia' da Europa, e a rarez~ das communicações, _torna-
vam mais intensa á. agonia dos que tinham a apprehensão de
desgraças. Nenhum echo chegava._á colonia do que no entretan-
to succedia em Lisboa. Afinal rompeu-se o véo, que occultava
aos jesuítas as agruras do porvir. A 16 de junho de 1760 deu
fundo, bem longe da cidade, a nau da Companhia de Com-
mercio de riome Nossa Senhora da Arrabida. Desembarcou
a mala a deshoras, e ninguem da tripulação falou á gente de
terra. ~ Na mesma noite, a força armada cercou as casas dos
jesuitas: de manhã o juiz de fóra, seguido da tropa, publicou
pelas ruas o decreto de expulsão, já executado no reino. Fi-
cara~ os religiosos desde então em custodia. Os que se acha-
vam em diversas residencias no interior, foram transportados
ao collegio. Do Maranhão, onde o mesmo se .praticou, chega-
ram oitenta e seis; todos, em numero de cento e vinte seis,
embarcaram na mesma nau. Fêz-lhes-companhia na viagem o
bispo Bulhões, que regressava a Portugal para buscar a remu-
neração, em ·diocese mais rica, dos excellentes serviços pres-
tados na demorada campanha contra os missio~arios. . ·
A 3 de dezembro surgiu o navio em Lisboa. A travessia
fôra longa e trabalhosa; . quatro jesuitas dos mais adiantados
em annos, vencidos de enfermidade, tinham fallecido no mar.
•,

pção dos padres da Companh ia . . . Seguiram-se nos seus conventos a celebra-


rem o mesmo acto os religioso"s do Çarmo, Mercês e Santo Antonio, e a to-
dos eu assisti com as pessoas distinctas da terra , e tambem os padres da
Companhia fizeram a mesma demonstração, porém não tiveram na igreja
· pessoa alguma de fóra» . -Arch. do Pará.




OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ -

Foi a bordo um emissario do governo e fez ·uma escolha dos


pris_ioneiros. A uns mandou conduzir para Azeitão, onde a casa,
que pertencera ao duque de Aveiro, servia de prisão de Estado;
outros partiram, em poucos dias, exilados para a Italia: . esses
eram os portuguezes. Os padres de outras nacionalidades fo.
raro todós encerrados nos carceres de S~o ·Julião da . Barra:
Pombal temia porventura que estes, mais intelligentes ou ou-
sados, sem razão de contarem, como os naturaes, com algum
àcto da sua clemencia futura, lhe fossem ainda suscitar obsta-
culos á realização do proposito, que lhe era caro, de anniquilar
para todo o sempre a Companhia de Jesus.

'

f
~)


EPILOGO

HISTORIA das missões do Grão-Pará termina


aqui. Pode-se tjizer tambem que a da Sociedade
de Jesus. Em todas as nações da Europa, um
tolle geral se levantara contra ella. Em França,
:;;;;;;;:;;;;;;:;:;;;;;;:;~· o escandalo do processo Lav_allette, a fallencia
mercantil da Companhia, - convirá agora dizer : de Jesus? -
declarada pelo parlamento de Pari~, assignalam o embate fi- '
nal. Mas em toda a parte são razões de ordem politica que
determinam o proceder dos governos. Accusam-nos ali de se
quererem tornar independentes do poder civil, para ultima-
mente o usurparem.' Em Espanha, Carlos III persuad~-se ·que
elles o querem depôr, e collocar no throno a seu irmão. Em
Portugal, Carvalho allegava pertenderem elles estabelecer-se,
pela força, n9s dominios da America, de forma tal que, dentro
em dez ailnos, impossivel se tornaria expellil-os. O imprudente
proceder- de Clemente XIII com ~ duque de Parma precipita
os acontecimentos. As tropas dos Bourbons invadem os ter-,
ritorios pontificios. O papa Rezzonico morre, ·tendo-lhe apres-
sado o fim as angustias· "dos ultimos dias. Ganganelli alfim
cinge a tiára e, posto que sem compromisso formal, como se
tem demonstrado, de abolir a Companhia, julga-se já, pelas
circumstancias· de sua eleição, e necessidades indeclinaveis da
politica, de antemão obrigado a fazel-o. Ainda assim hesita
por -_ quatro annos. Emquanto o pontifice frouxamente se
defende, os governos insistem ; passam das insinuações ás

•• •
..
310 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

ameaças. Não é possivel resistir por mais. tempo. Clemente XIV


publica a resolução, já de ha muito assentada em seu espi-
rito, mas que não tivera ainda a coragem de pôr em pratica.
O breve· famoso Dominus ac Redemptor sáe á l~z em julho
de 1773.
-Não succumbiu de todo a grei, tão detestada, aos effeitos
da formidavel colligação. Frederico o Grande e Cathari~a II
deram-lhe boa acolhida em seus estados. Fieis á regra antiga,
alguns de seus adeptos a conservaram vivaz na Russia, onde
se consagraram ao ensino. Lá foi ter o missionario paraense
A~selmo Eckart, quando, por morte do rei Dom Jo:ié, saíu do
carcere. Annos ~epois, restituiu Pio VII a Sociedade á existen-
cia legal. Mas, no intervallo, o mundo havia feito largo cami-
nho, e o progredir dos espiritos não deixavà campo aos je5ui-
tas, para assumirem o antigo logar saliente no theatro dO" uni-
verso. Ainda hoje o instituto de L'oyola' está em vida; ainda
hoje aqui e além seus discípulos ensinam e convertem, redu-
zem e dominam as consciencias; mas quem ousará dizer que
a situação actual do mesmo mostra sequer um reflexo da an-
tiga preponderancia, na evolução das idéM e dos costumes? ·
E o peor para a sua fama é que, da grande obra, na qual
seus esforços mais efficazmente podiam ter-~e aproveitado, já
poucos vestígios restam. Na America Central e do Sul, ainda
magestosas basilica5 assignalam a passagem dos missionarios;
a historia consigna os episodios de suas luctas, em prol de
uma raça opprimida; mas esta, quasi extincta, não ficará para
testemunhar aos vindouros a grandéza do intento, e os sacri-
ficios por elle realizados.
Mal - se retiraram os · religiosos das missões, quebrou-se o
laço fragil, que prendia os indígenas aos costumes de uma si-
mulada civilizaÇão. A reforma pombalina, que os declarava
livres, o Dü·ectorio de Mendon~, que devia ser origem de
rapido adiantamento social e economico, não fizeram mais, que
apressar-lhes a ruína. Nos domínios de Espanha, á saída dos
missionarias, embora com regulamentos ·diversos, produziu-se
o mesmo effeito. Mas não entra isso em nosso quadro: veja-
mos, apenas o que succedeu no Pará.
Poucos annos passados que se m.udara o regímen das mis-
sões, mandou o governo de Lisboa um funccionario, co~ o

f
- 3 I 2' OS J ESUITAS NO GRÃO- PARÁ

·,

gro, nos ánnos precedentes a 1772. Estava-se ainda beni perto


do inicio do novo regimen. Já éntão o dçscalabro geral das
agglomerações indigenas, a que tantos progressos se· haviam
vaticinado, era manifesto, e a promettida liberdade não se dif-
ferençava da escravidão antiga senão em mostrar.se talvez
mais gravosa.
Em vez de se applicarem aos ~rabalhos' agricolas, nas ter-
ras que nos povoados lhes pertenciam, andavam os indios va-
gueant~s , á ordem dos directores, de um para outro sitio, 'exe-
cutando as tarefas, que ao capricho daquelles prazia indicar-·.
lhes f : d'ahi provinha o abandono e a p.rogressiva decadencia
dós log~res.
Pouco importa que as terras sejam fecundas; a antiga cu-
biça produzia os' mesmos resultados. Aos que se acham
eagora investidos da autoridade, donos das povoações e dos
habitantes,. os modestos proventos da agricultura não lhes me-
recen) cuidados; querem, sim; o ganho abundànte das drogas;
e.m cuja extracção occupam os homens válidos. Vae nisso o
proprio interesse, pois llies compete, pelo regimento, a sexta ·
parte dos lucros, e ao mes.m~ tempo cumprem ordens do go-
vernador, q_'ue lhes recommenda grangeiem negocios para a
Companhia de Commercio. Abaixo e acima, sempre de via-
gem, com o fadigoso remo em punho, os índios não teem des-
canço : passam do povoado ao longínquo sertão, onde vão _ar-
rancar os generos ao seio da mà.tta; d 'ali á capital, conduzin.:
do a valiosa carga, á espera da~ qual estão as naus; e mal che-
gam ás suas casas, no reg resso, éil-os obrigados a p~rtir em
nova expedição. .
Desta arte ia medrando, com a reforma pombalina, o abuso
que no tempo dos missionarias tantas queixas levantara, agora
porém mais intoleravel aos moradores, e prejudicial á econo-

1 Representação sobre os meios de dirigi'r o governo temporal dos ín-


dios, por Antonio José Pestana da 'Silva : « ••. Os indios vivem errantes ;
não tomam amor aos domicílios porque os n~o teem ; não se lembram das
lavouras, porque as não cultivam . . . Ainda que as leis os tenham libertado
do antigo captiveiro, é certo que as ordenanças do directório, e a sua execu-
ção, lhe não tem adoçado o peso, com aquella reforma e novo governo. ;-·
Publicada por Mello Moraes, Cborograpb. Hist . cit. Tom. 4, pag: r 39.

'
·.

~PILOÚO · 313

mia das povoações. Raro se fazia a distribuição de serviçaes,


_ordenada - pelo regulàmento. Obter alguns. in.dio's por salario,
era· o
mercê que só favoritismo conseguia; e esse~ ficavam em
permanente servidão com a mesma pessoa: sem embargo dos
clamores, quê essa desegualdade de proceder suscitava. Os in-
dios ·não se revezavam no serviço exterior, de maneira que
·uma parte. delles estivesse sempre occupada nos trabalhos
agricolas, para a · manteilça commum; e d'ahi r:esultava fica-
_rem as terras maninhas, e · as aldeias famintas. Apartada das
familias a parte viril da população, entrava a miseria nos mes-
quinhos lares, abandonados ás mulheres e creanças; avultava
a mortalidade da infancia; e a fecundidade natural das indias
dissolvia-se no abôrto, praticado sem reserva, já pàra occultar
infidelidades ao varão ausente, já para evitar os percalços da
maternidade ao desamparo i. '
Não obstando todas as medidas de protecção theoriça,
consignadas nas leis, as · relações entre brancos e indigenas
continuavam a ser, para· estes, oppressivas, tanto ou mais que
antigamente. Nos chamados togares e villas imperava sem li-
mitação alguma a vontade do director, homem, pela regra, bo- -
· çal e violento, quasi sempre soldado, "e muitas vezes do ínfimo
posto. Estes funccionarios, refere o ouvidor citado, « teem ar:
rogado toda ·a; jurisdicÇão coactiva., e fazem de suas casas os
carceres e patibulos dos inPios » 2. Quando, por muito empe-
nho com o governador, alguns destes iam servfr nas fazendas
particulares, obrigavam-nos ali a trabalhar mais_do que as for-
ças humanas permittiam ; e então se, no excesso da fadiga, se
deixavam adormecer, deitavam-lhes, para os despertar, pimenta
nos olhos. Se fugiam á dureza do trabalho e aos máos tratos,
eram condemnados a servir de calceta nas obras reaes. Não s<7

1 « _• • Os indios vivem famintos e necessitados, sem estarem abáste·


cidos e fartos, por .andarem sempre vagando, e sem os casados poderem sus-
tentar os encargos de seus matrimo1:iios, e os solteiros sem terem estabeleci·
mentos e destino para_o mesmo fim. Deste erro nasce a falta de propagação ;
e outro_mais que faz horror, e vem a ser: as casadas e solteiras, se conce-
bem, tomam beberagens de fructas irritantes para abortarem; estas para en-
cobrirem a sua leViandade, aquellas a gravidade de seu cri.me na ausencia
dos maridos.» -Repres. de Pestana. Cborogr. Hist. Tom. 4, pag. 165.
2 Idem, pag. 161. ·
40


l
EPILOGO

logo distingue as missões portuguezas das castelhanas» t.


Naquellas reconditas estaricias, padres .do Carmo e da socie-
dade · de Jesus, á ·compita, promoviam, com a educação reli-
giosa, o bem material de seus conversos. Uns e outros, bem
sabemos, faziam enriquecer, com o trabalho desses pupillos,
as communidades a que pertenciam; mas, conseguindo tal, da
mesm.a sorte alargavam, com elementos novos, a esphera be-
nefica de sua acção. · ,
Nó momento de que nos occupamos agora, tudo isso ces-
sara. Em decair progressivo foram os antigos estabeleci~entos
dos .regulares, sob o regímen laical, arrastando uma lamenta-
, vel existencia, até aos derradeiros annos do século. O inade-
quavel do systema ao objecto accentuava-se com o correr
dos tempos. Quanto mais longe ia ficando. a tradição jesuitica,
tanto mais se afrouxava a disciplina que, sem violencia, podià
sujeitar os indios a aturado trabalho. Povoavam-se os matos
de transfugas, em quanto os Jogares de habitação ficavam
ermos. Os pastores de almas e os directores, sem o estimulo
do ideal, que animava os missionarios, e tendo em mira só-
mertfe a pitança _do cargo, assistiam indiffer~ntes ao desmoro-
nar do edificio, a que haviam de ;>er columnas. O governo
hesitante de Maria I não se atrevia a restabelecer o regímen
antigo, para . o qual as sympathias de uma côrte beata pen-
diam, e que a opinião dos prudentes · d~sde muito indicava.
Na impossibilidade de chamar os jesuítas, unicos que po-
deriam renovar, com . o exito ant~rior, a obra da cat~chese, a
rainha acceitou a proposta do gov~rnador do Pará, Dom Fran-
cisco de Souza Coutinho, pará a reorganização da civilizadora
tarefa. Com esse objecto ab,oliu-se o qirecto~io. Os índios en-
•traram no direito commum, extinguindo-se a oppressiva tu-
tela, a que viviam sujeitos. Determinou-se que os contratos,
para locação de serviços, se fizessem por accordo reciproco
das par_tes. Mais uma vez se prohibiram os descimentos e guer-
ras offensivas; e, para attrahir _a população selvagem, dispôz a
lei que os comboieiros, e pessoas que atravessassem o sertão,
fossem munidos de brindes, para distribuir aos gentios, e, com -
o engôdo dos mesmos, convidai-os 'a . gosarem as vantagens de

t · Relation abrégée d'un voyage, ~te. -Paris, 1745, pag. 90.

• . •
. OS JESUlTAS NO GRÃO-PARÁ

uma existencia confortavel, perto dos brancos. Mas a feição


caracteristica da nova estructura foi a agremiaçã9 dos indige·
nas em corpos de milícias, cujos officiaes fossem indistincta·
mente os principaes índios, e os brancos residentes. nos povoa-
dos. Sob tal norma, a metamorphose do primitivo systema
não podia ser mais completa: através do directorio passavam
os grupos selvicolas do regímen theocratico ao militar; ao re-
ligioso substituía-se o capitão;. o soldado succedia ao catechu-
meno.
Não requer extrema agudeza o comprehender que s1m1-
lhante organização não poderia favorecer a liberdade. O di-
ploma da rainha mudava o estatuto legal, mas não alterava a
situação dos indígenas. o regímen militar, por sua natureza
, tyrannico, facilitava a oppressão, contra a qual a rudeza do
gentio, o temor e o habito da servil obediencia impossibilita-
vam o reagir. A propria lei encerrava contradições, que des-
truiam a parte favoravel á liberdade; pois se, por . uma parte,
recommendava que em nenhum caso se coarctasse aos índios
o alvedris>; na escolha de suas· tarefas i, por outra ficavam
elles obdgados aos serviços reaes: a uns se impunha· o traba-
lho das pescarias; outros se achav~m á disposição dos contra-
ctadores dos dízimos ·e das marchantarias. Aléni disso po-
diam ser coagidos ao trabalho, nas lavouras particulares, quan-
do tal requeresse ·o proprietario a quem 'não quizesse~ por
vontade servir i.

l << • • • Ordeno-vos que jámais dispotibaes arbitrariamente desta gente


em beneficio de quem quer que seja, e por mais justo que pareça o pretexto,
ainda mesmo para o meu real serviço ... » -C. R. de 12 de maio de 1798.
2 « ; .• E carecendo algum particular de homens para fazer as suas la-
vouras, deverá procurai-os e ajustai-os, e não os achando, posto que os .haja
no seu districto: Hei por bem conceder ao ouvidor autÓridade para mandar
pelo tempo preciso o numero de operarias de que necessite um tal particu-
lar•.• » - Idem.

, (
• (>)
(.
EPILOGO

II

As causas, que davam origem ao despovoamento e des-


truiam a raça, continuavam portanto a subsistir. Todas quan:.
' tas providenci~s se haviam ordenado, para proteger os selva-
gens, desde o ·tempo dos reis castelhanos, se mostravam sem
effeito na pratica. Só o systema dos jesuitas fôra producente,
·mas esse, destruido agora, além d~ opposição geral da popu-
Jação, tinha os contras, que deram em terra. com a Compa-
nhia: estabelecia um estado no estado; incitava á ganancia,
de que ~s missionarios não podiam defender-se e tiravam ele-
mentos para o antagonismo,_em que viviam com o poder civil.
Ainda que dêmos ao exaggero das - ch.ronicas desconto
grande, é inconfutavel que a população indigena foi numerosa,
pelo menos no littoral do Oceano, e nas margens dos rios.
Quando os ·primeiros exploradores percorriam as costas, em
toda a parte onde aportavam, lhes vinham ao encontro os sel-
vagens, umas vezes em pasmo, outras hostis. --º espanto de
Thomé de Souza, manifestado. nas caracteristicas palavras que
já citámos:- são tantos que ainda que os cortassem em açougue
nunca faltariam 1, e as relações das correrias dos invasores,
computando em milhares ·os mortos e prisioneiros, valem por
minuciosas estatisticas !!. Na bacia immensa do Amazonas, ao
longo das praias ou terras altas, estiravam-se as agremiações
humanas, povoadas como formigueiros: e relativamente curto
era o espaço, que separava umas das ·outras, nas principaes
arterias, sobretudo se o compararmos aos desertos, que se nos
- deparam hoje. Todas as descripções de viajantes são em tal
materia concordes. No dizer de Antonio Vieira, algúns ·dos
que tinham ido á jornada de Quito referiam ter encontrado
povoações tão ·grandes como Lisboa; os paulistas, chegados
de suas ter~as ao Pará, passando do Paraguay ao ·Amazonas,

1 Pag. 129.
2 Como por exemplo os quinhentos mil, em que fala Simão Estado da
Silveira na Relação ~tmmiaria, atrás citada, pag. 128.



J
EPILOGO 319 .

contacto desta com a barbarie indígena. Ainda a tradição re-


novou, neste seculo, e realiza hoje em dia, raras tentativas de
policiamento pela catechese. Mas aos missionarios falta o en-
thusiasmo e a autoridade dos seus predecessores jesuítas. O re-
sultado da experiencia tem .sido nullo até agora, e os selvagens
continuam a viver relativ.a mente tranquillos em seus recessos.
. Mas a paragem no movimento de exploração não é defini-
tiva. O geographo chega, .e o bando dos que andam á busca
das riquezas florestaes não tardará a seguil·o. O velho mundo
despeja na America -o excesso de sua população; ella irá aos
poucos preenchendo os vacuos, fazendo cunha nas regiões
desconhecidas, alastrando afinal em onda irresistível. Não ,es-
tará então o mis_s ionario entre o selvagem e o invasor faminto
de riquezas, para retardar o lastimoso desfecho. Tanto mais
escravo do feroz egoísmo quanto mais culto, o civilizado ter-
minará sem remorso a destruidora tarefa. A dura lei dos des-
J
tinos, que condemna a raÇa mais .debil a desapp~recer do pla-
neta, cumprir'-se-,á fatalmente !?-º Bra.zil, como em outras partes
do globo se tem cumprido.

FIM.



')
(
APPENDICE

{
OS JESUITAS Nó GRÃO-PARÁ

nenhum D 7 uryasstí. A isto accrescenta: «Como podia o aut,or dizer que.deste


rio do Pará ao Mearim havia apenas dezenove leguas, quando tal rio fica
além de cinco graus mais para leste daquelle? » A resposta é facil :. o rio da
Lama é o Turyassú; os baixos, em que fala, são os ·situados na foz delle; o
rio do Pará tomava-se pelo Amazonas, em virtúde de um erro naquelle tempo
vulgar.

Justifica Varnhagen o seu asserto com o atlas de Mercator de 1619, que
é o mesmo de Jodoco Hondius de 1630, reduzido e posto em francez. Mas o
exame desse mappa, e a comparação das distancias exactas nos de hoje, pro-
vam o contrario.
É coisa facil identificar a Serra Escalvada de Mercator e Gabriel Soares
com o morro de Itacolumim, posto que seja este coberto de mato. ou ·
naquelle tempo era a vegetação menos espessa, ou as barreiras, que lhe ficam
proximas, davam mais na vista aos navegantes: de toda a maneira, a sua
posição não nos deixa a menor duvida. Do rio em questão nos diz· Gabriel
Soares que «ainda que se chame da Lama, pode abrigar naus de duzentos
toneis.» Será po>sivel· confundil-o assim descripto com a amplidão do rio do
Pará? Quanto ao Turyassú, ensinam os rpteiros 1 que na entrada do rio ha
oito a onze metros de fundo, e que, mais acima, o rio é tão estreito que,
para virar da vasante para a enchente, é preciso encostar a prôa no tujuco.
Não estará assim bastantemenle explicada a designação de rio da Lama?
Do que fica dito se collige que Gabriel Soar~s, escreve~do por informa-
ções de pilotos portuguezes, não dizia o que Varnhagen lhe attribue. A si~
tuação dq rio da Lama, logo em seguida á bahia de Diogo Leite, a insignifi-
cancia do seu curso, a distancia deste á Serra Escalvada, de confÓrmidade
com o mappa do geographo hollandez, tudo mostra ser elle o Turyassú.
Trinta e cinco leguas a oeste fica o Amazonas, com uma só boca. E nisto
Gabriel Soares não contrariava a opinião corrente, no tempo eín que os na-
vegantes, entrando por uma e outra 'foz, julgavam ser cada uma dellas a
verdadeira e unica do grande rio equinoxial.

t Vide o ~Jeiro impresso do pratico Filippe Francisco Pereira, Pernambuco, 1879.

(
APPENDICE

NOTA-~

Sobre os ca pitães-mo res

Eis'o texto do termo de homenagem de um destes poderosos funccio-


narios~ extrahido do livro competente dos archivos do Pará, presentemente na
Bibliotheca Publica do mesmo Estado:
-OMENAGEM que .deu João de Almeida da Mattà, do posto de Capitão-
mór da Capitaóia do Pará, em 25 de Outubro de 1745. Muito alto e muito
poderoso Senhor Dom João, mui verdadeirq Rey e natural Senhor. Eu João
de Almeida da Matta ..faço preito e omenagem nas reaes mãos de V. M. pelo
cargo de capitão-mór da Capitania do Gram-Pará, de que V. M. me fez
mercê, que manterei e defende~ei a todo meu poder, e nella receberei V. M.
no alto e no baixo, de dia e de noite e a qualquer hora que seja, com mui-
e
tos e com poucos, indo V. M. com seu livre poder, farei guerra e mante-
rei tregua e paz, .segundo por V .. M. me fôr mandado; e não entregarei a
ditq Capitania a pessoà alguma de ~ualquer qualidade, preeminencia e condi-
ção que seja, senão a V. M. ou a seu certo recado,- logo sem demora, arte
ou cautela; e a todo o tempo que qualquer pessoa me der cartá assignada
por V. M., ~ sellada com o sinete das armas reaes, porque me quite este
preito e omenagem, na fórma e maneira com as clausulas e obrigações nella
conteúdos, lhe farei entrega da capitania, e me obrigo que a pessoa que nella
deixar a tenha e mantenha e guarde inteiramente. Eu João de Almeida da
~atta faço·este preito e omenagem nas mãos de V. M. uma, duas e tres ve-
zes, segundo o uso e costume, obrigo e prometto de tudo guardar inteira-
mente,. sem arte e cautela; engano ou minguamento algum. E juro.aos San-
tos Evangelhos, em que ponho. minhas mãos, que emquanto em mim fôr
'_terei sempre os soldados da dita capitania ·prestes e promptos ao serviço de
V. M. e defensa della, e obediencia a seus mandados, como bom e fiel vas-
salo, sem usar mais de outra ju-risdicção que a que- por V. M. me é conce-
dida em seus regimentos. E de como o dito João de Almeida da Matta fez o
dito preito e omenagem, assignou este termo, com ás testemunhas que se
achavão presentes, o provedor da Fazenda Real, Felix Gomes de Figueiredo,
e o capitão Ant_o nio Rodrigues Martins. E eu José Gonçalves da Fonseca,
secretario do Estado, o escrevi e assignei.
Seguem-se as quatro assignaturas.



OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

NOTA_!C

Cartas jesuíticas sobre as missões do Pará

'Do Geral Ignacio Visconti ao Vice-Prooincial


do Maranhão.

V. P .Ji Maragn.
R.de in Xpo P.

Per praesentes R. V.•m facimus certiorem mentis.. • 1 esset nonnulla,


quae aliunde indicata et proposita nÓbis fuerunt. Apud nos intercessum fuit
pro revocanda. consuetudine recitandi Litanias, B. Virginis,· sive Lauretanas
quam consuetudinem abolevit praeceptum obedientiae R. A. Rets bonae me-
moriae, quo mandavit, ut singulis anni; ordenabat. • • Sanctorum Litaniae.
'Visum itaqu·e nobis fuit. statuere, ut Vice-Província confonnetur cum Pro-
víncia Lusitaniae, qua ..• recitare Lauretanae diebus Sabbatis, Festi ac pervi-
giliis B. Virginis; unde decernimus et decla~amus laudatum praeceptum obe-
dientiae non extendi, neque comprehendere praefatos dies Sabbati, festivita-
tes et pervigilia Deiparae dicata ••• recitari potuerint Litaniae Lauretanae.
Cajetanus Álbertus Cordeiro, Josephus de Souza Fonseca, et Ignatius
Gomes a nobis pos.tularunt, ut in Societatem admittamus, rescribimus ad
R. V .•ro •.• remittendo. Ipsius itaque erit, auditis consultoribus, •..• an ido-
nei sint, et admitti debeant. Quod si admitti possent nullo modo fiat .quin
prius constet .•• sanguinis puritate per Ímplementum et authentica testimo-
nia prout mentis est in Lusitania. Hoc ipsum jam alias commendavimus
cum omnibus candidatis generaliter et ,nullo excepto: observandam, constat
tamen talem admissionem fuisse contra mentem nostram interpretatam. Cum
vero res, de qua agitur, multis incor..venientibus sit obnoxia, de novo com-
mendamus, ut sine ulla interpretatione obse~vetur. ·
Antonius de Sá causas nobis exponit, quae sufficientes sunt, ut iterum
abire sinamus. R. V.• quam primum illum dimittat. Aliis repetitis occasioni-
bus commendavimus ne conjungantur plurima officia in uno eodemque So-
cio, nec tamen cessant lamenta, quaprop!er iterum praecipimus, ut-officia Mi-

t As reticencias correspõndem a logares, impossíveis de restabelecer no texto original,


damnific:ido pela acção do tempf?. As palavras em italico ·representam a interpretação proposta
pelo sabio professor sr. Ca.ndido de Figueiredo, que obsequiosamente se prestou a coadjuvar ~
autor na publicação destas cartas.

t
APPE:NDlCE

nistri, et Procuratoris omnimo separentur. Audiendus etiam est .P. Ludovi-


cus dé Oliveira, qui simul missionapum et missionum P;ocuratorem agit
uno, vel altero onere videtur libertandus.
Non nisi aegerrime, ac perdolenti animo audire possumus de aliquibus
missionariis, quod ·opera atque servitio servorum plu5quam 25 utantur, con-
tra Regias Sanctiones; nominantur P. P. Emmatiuel Ribeiro, Josephus Ta-
vares, Ludovkus Aivares, et Joannes de Souza cum ••• periculosa, et quae
externis scandalum, et Vice-Provinciae fastidiosa parere aliquando poterit,
praecipuo .R. V .ae_diligentiam .·, • de nominatis hominibus; et nisi probentur
innocentes. • • cri minis graviter puniat.
. • • • sequentia: I .o Prudenter extemorum procuratores agant. 2. 0 Quod
nonnullis praesertim Coadjutoribus permittatur differre exercitia spiritualia.
3.0 Quod servis non explicetur Doctrina Christiana ut moris ·erat, ••• P. Ma-
rolani. ·4. 0 quod a multis jam mensibus retineatur in Collegio, tamensi vir
quidã facino ••• detrimento, et gravamine ipsius Collegii: 5. 0 denique, quod
nuUum omnimo servetur secretum super iis, quae in consultationibus discu-
tiuntur. His omnibus R. V.a. opportuno remedio obviam eat. Quod tamen
ad secretum attinet: serio admoneat, ac reprehendat consultores, etsi opus
videatur praecepto obedientiae cohibeat; siquidem ex revelatione eoruin,
quae in consultationibus disponuntur, nihil boni, sed plurima mala orire
possunt.
' Hâec sunt, quae praesenti. çiçcasione occurrunt R. V.a.e significanda;
quamvis autem executione dari statim debeant ;-nihilominus utramque episto-
lam tradet successori suo, tum pro illius instructione, cum etiai;n ut provideh-
tiam adhibere possit, si adhibitain interea non fuisse intelligat. V alere jubeo
R. V,am et S. S. me commendo. Romae 8 Julii x752. •

R. V.ae
servus in Ch."'
lgnatius Vicecomes.

II

Ve Miguel Angelo Tamburini, por commissão


do Gt11·al, ao Superior do Maranbão.

Rv.de in Xpto Pater.

Miramur et certe scand:tlizamur, quod Rv.a cum quinque Patribus con-


sultoribús, tam mal~ .consuluerint etiam honori Societatis, ut deseruerint no-
vem Missiones in flumine Amazonum, prout ferunt litterae Rv.ae Non istique
hic est Spiritus Societatis, nisi valde spurius. Quis crederet unquam homines
Societatis dereliq uisse Missiones d_ifficiliores, ut eas occuparent Religiosi alte-



328 OS JESUtTAS NO GRÃO-PARÁ·

rius Religionis? Neque in eo sensu nostra ordinatio prudenter intelligend~


erat: curamus enim Missiones toto animi conatu augere, non minuere. Vel
igitur Missionarii associati esse debent, si possent, vel conjungere duos ex
duabus Missionibus, ut ute'rque simul de his curam haberent: et si hoc fieri
non potest, interim ad Nos recurrendum erat pro responso. Rv.ª in poenam
tam gravis erroris publice dicat suam culpam in refectorio, comedat in parva
mensa, et semel jejunet: et advertat sibi non irnponii majorem penitentiam,
quam meruerat, nec Saeculares etiam scandalizentur. Qpinque Patres, hu-
jusce rei consiliarios Rv.• severe ac graviter reprehendat: et certe miramur
etiam quod ipsi de proprio consílio non erubuerint; si namque aliquae Mis-
siones essent deserendae, eae utique deserendae essent, quae sunt propin-
quiores civitatibus, et in quibus praecipue est petra scandali circa libertatem
Indorum. Ex quo
Nos reprobato consílio Rv.ae, et quinque Patrum, petimus per P.m Se-
bastianum de Magalhães à Serenissimo Rege Lusitaniae ut easdem Missiones
restituere faciat Societati. Et in eo casu Rv.a mittat eosdem Missionarios ad
easdem Missiones: videat tamen si comode possint, attenta locorum distan-
tia, uniri duae Missiones in unam, ut Patres queant esse associati. Tribus
vero modis propositis a Rv.a, et aliis sociis, quibus conservetur et crescat ea
Missio, non plene assentimur: significam us tamen Ulyssipone fundari.
Domum Novitiatus pro-]ndiis orientalibus. Si igitur ea Missio velit concur-
rere ad expensas pro rata, libenter annuimus, et illic poterunt acceptari tot
novitii, quodquos ea Missio potérit sustentare. Nos jam monuimus Patrem
Procuratorem Brasiliensem, ut acceptaret aliquos Novitios pro Maranonia: et
quamvis respondit Missionem esse gtavatam aere alieno, nostris tamen de-
cretis insistimus. Curamus etiam de Procuratore instituendo, qui Ulyssipone
rebus Maranonis incumbat, et ab uno ex jstis collegiis sustentetur. Intelligat
etiam Rv.a quod concessimus Patri Emanueli dos Santos facultatem, ut per
Procuratorem Ulyssipone degentem possit emere commodiori pretio aliqua
necessaria Missionariis Maranonis, quorum ipse agit Procuratorem.
De hoc eodem P. Santos habuimus, quod amotus fuerit a Collegio Ma-
ranoniensi, quia frequentabat domum sui consangunei, de Societate beneme-
riti, quam nostri etiam adibant, absque ulla specie mali. Ideo Rv.a auditis
hac de_re suis consultoribus, teneatur stare eorum suffragiis, et revocare Pa-
trem ad idem Collegium si consultores judicent, vel Pater ad aliquam Mis-
sionem libere et spontanee non se coriferat. Et quomodocumque res se ha-
beat in consultatione, Rv ·ª curet omnino cotisolari eundem Patrem, et spe-
ciajiter patrem Joannem a Silva ••• Fratres Antonium Rodriguez et Giraldum
Ribeyro, ut contenti perseverent in. Missione; repetitae enim querimoniae ad
Nos perveniunt quod multi Socii ibi tristentur et affiigantur. Patri Thomae
Carneyro concedimus eamdem quam anno praeterito dedimus facultatem,
recta via transeundi in Brasiliam, sed non per Ulissiponem, si Missio non
multis indigeal operariis: si autem ipse velit permanere, rem gratam nobis
faciet; et tunc. moneatur de nimia asperitate in tractandis Indis, in quo non
semel valde excessit, quamvis eos bene edoceat, cureturque ut animus ejus- . ,
dem uniatur aliquibus Sociis, cum quibus videtur abire in discordias: et for-
san hoc est in causa ejus disçesms. Non ideo tamen Pater Villar (de cujus

(
APPENDICE 329

valida professione non est dubitandum) a sua m1ss10ne removeri debet,


cum ••• laboret in vinea Domini. Inter hos duos Patres excitata est questio
de libertate quatuor lndorum, ~v.ª auditis utrinque rationibus, in casu dubio
decidat in favores libertatis. Et hinc
Redeundum est ad· Rv.am)' quae male se gessit cum Gubernatore, cum
actum esset de libertate Indorum; quamvis enim Serenissimus Rex Lusita-
niae permittat coemi in silvis mancipia, non ideõ permitti debet, ut Nostri ea
examinet, satis est quod non çontradicatur. permissio Serenissimi Regis in
hac materia. Facta igitur efficacia, et urbana ºexcusatione apud Gubernatorem
Statu~, Nostri ab eo omnjno· abstineant.
Trienriio Rectoratus absóluto,, mittatur in Lusitaniam P. Franciscus de
Andrade Rector Maranoniensis, et ejus loco succedat P. Joannes.Carolus-Or-
landinus, pro quo mittimus Patentes; quas eti~m mittimus pro P. Antonio a
_Cunha ad Rectoratum Paraensem, sed hic moneatur de defectibus in infor-
mationibus .
. De contractu· inito a P. Josepho Ferre_xra Superiore cum D. Catharina a
Costa, eligantur Judices Arbitri, et horum sententiae omnino standum est,
ut pro bono· pacis ,~itentur lites, et hoc ipsum scribimus ad eamdem Domi-
nam, cum qua urbane agendum est. Et non ·a bs re est modo respondei-e ad
quaesitum Rv.:e circa praxim nostri privilegii, ve.rbo Privilegium in Com-
pendio § 9. Et diximus praxim esse prorsus eamdem quam habent privile-
gia. Pupillorum in hac materia; et cum haec sint valde trita per omnia tri-
bunalia, in eo explicando non amplius immoramur.
Dubium vero de- sepeliendis in nostris Ecclesiis, qui habet Litteras Pai:ti-
cipationis, nullum est; quia ex vi earumdem Litterarum hoc privilegium mi-
nime ºconceditur. De quaesito circa nostrae ordinationis existentiam, de non
mittendis coacte Missionariis ad flumen Amazonum. Respondemus fictam
, esse deber~ talem ordinati'onem, cum hic saltem non appareat, vel ad minus
male intellectam, ut hoc palliato titulo repugnent aliqui se transferre ad ilias
Missiones, ne acr sibi noceat; .quam tamen repugnantiam Religiosi. . • Reli-
gionem .•• Societatis erubescentia, non ostendunt, aut allegant. Verum. qui-
' dem est, Societatem non solere stricte cogere ad Missiones subeundas, sed
exhonari, movere, ac impellere.
· Habuimus, nostros .M'issionarios co!ligere Indorum opera, et conducere
cacaum ad Collegia. Rv.a ordinet, ut. Missionarii id minime prestent, ne
saeculares scandalizentur: quod tamen non prohibemus, si veniant ea facienda
per P. Procuratorem Collegii sine scandalo, ac murmuratione. Querit etiam
Rv.ª, quaenam jurisdictio sit Superioris ipsius Missionis? Respondemus eam
esse velut Vice-Provincialis. ldeo poterit acceptare Novitios in Societatem in
Lusitania. Ad dubium po!estatis, qua Nostri per Missiones agunt Parochos
·Rv.ª Responde\nus eam provenire ex ju_re Patronatus Serenissimorum Re-
gum Lusitania:. '

in ea Missione: at scribemus etiam ad ·P. Provincialem Lusitaniae, ut videat


si .~liqui velint· esse Missionarii Maranonienses, et aliam diligentiam pro aliis
adhibebimus, si adsint pecuniae. Et Rv.a compendiosius ad Nos scribat, et
42

•• •
330 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

totis viribus animat .Socios e·xanimatos, ut ad animarum saiu tem se accingant


ferventissime. Sanctis Rv.•• sacrificiis me plurimum comendo. Romae 8 Ja-
nuarii 1701.
Rv.••
Servus in Xpo.
:J.(icbael Angelils Tamburinus,
ex comiss.n• R. P. N. Gen.i•

III

'De Miguel Angelo Tamburini, Geral, ao Su-


perior do Maranhoo.

P. Superiori Missionis Maragnonensis, Ulyssipone.

Vehementer, ut par est; nos urget solicitudo de Missione Maragnonen-


si; illic ~nim ... jam albescit prope immensa, .quin hactenus ad iliam con-
ducerentur operarii pro rei necessitate, imo potius aliqui ex illis extremum
diem recenter clauserunt, et 0011 sine intimo cordis nostri dol9re.
Haec fuerunt in causa, ut túm ex Lusit.•, tum etiam ex Brasilia instan- ·
ter quaereremus Sociorum 11011 'leve subsidium; sed cum multi ex istis non-
dum absolveru11t studia, nova cura nos oppressit. Quamobrem de novo
recurrimus ad bo11um }ESUM Crucifixum, qui, ut existimamus, inclinato ca-
pite nobis insinuavit, ut ex Lusit.• designaremus R. V,•m in Superiorem
illius Missionis, simul et unum Professorem Theologiae; optatis enim si~
respondebit eventus. R. V.ª velit toto animo sequi vocantem Deum, spiri-
tum supra vires induat, se seque accingat ad opus Divinae gloriae, et boni
tot animarum; et ·certa manear, quod non solum apud Deum, sed apud ho-
mines etiam merebitur praemium, quo donabitur suo tempore, si recte adim- '
pleat Prov.•m sibi comissam, postquam in Lusit.•m redierit.
Ut tamen prius habeat notitiam illius Missionis, saltem confusam, intel-
ligat hinc expeditas fuisse Patentes pro P. Ignatio Ferreyra in Sup.r•m Mara-
gnonensem, qui forrasse occupat illud officium; sed cum ,hic Socius polleat
ingenio, ac doctrina, R. V.• eum curet animare ad iterum docendum unam
lectionem Theologiae Speculativae, et aliam Theologiae Moralis; quia illic
non invenitur alter idoneus ; et lectio Theologiae Moralis perquam necessaria
est pro Coadjutoribus Spiritualibus, qui ibi sunt.•Nec dabitamus P.•m Fer-
reyra non aegre laturum ejusmodi labores; hoc enim modo longe melius
promovebit suam Missionem, quam ita diligit, ut pro illius bono docuerit
Philosophiam, cum actu agebat Rectorem Paraensem. Alter Professor Theo-
logiae, qui destinabitur a P. Visitatore de nostro mandato, et proficiscetur ex
Lusit.ª, dictabit aliam lectionem . Et si, auditis consultoribus, in facie loci
opus fuerit mutare hanc dispositionem, quod istam vel al!ia;n !ectionem, l}ti-
que non repugnabimus, dummodo fiat mutatio in evidenter melius.

{'
APPENDICE 331

Et cum sciamus Collegium Maragnonense esse bene aptum ad studia


litterarum, Nostri illic dent operam rei litterariae. Si tamen Cursus Theolo-
. gicus, et Philosophicus simul concurrant, tunc doceatur Tbeologia in Coll. 0
Maragnonensi, et Philosophia in Coll. 0 Paraensi, nam in primb non debitur
locus habitationi toti Sociorum. Si vero unicus sit Cursus, sive Theologiae,
sive Philosophiae, doceatur in Coll. 0 Maragnonensi.
Nostri Juniores, qui incumbunt ad latinitatem, et Rhetoricam, mittantur.
ad publicam Scholam, in qua student externi. Sed ~alde comendamus, et
maxime opus est pro bono communi, ut eligatur Magister, qui suo muneri
recte satisfaciat, et discipulos ita bene instruat, ut saltem tres, aut quatuor
evadant optimi rhetores, et temporis decursu alios quoque reddant bene ido-
neos. P. Joannes de Villar (si non aliter expedierit} cum sit recte exemplaris,
et zelans, potest praefici Novitiis, qui ibi sunt; jam enim sustinuit illud offi-
cium, et juxta normam Societatis illos educabit. P. P. Rectores Maragnonen-
sis, et Paraensis, jam absolverunt suum triennium . Ideo R. V.ª nostro no-
mine constituat P. Emanuelem Bello in V. Rectorem Paraensem ; et si inte-
rea bene se gerant, audita prius R. V·ª; pro ilias mitteni.us solitas J>atentes.
Jam ordinavimus ut illic de novo conficerentur Informationes ad guber-
nan~um· de pluribus Sociis; quae, si jam sint confectae, R. V_.ª illas revideat,
et subjungat suum judicium, si forte potuit cognoscere Socios, de quibus in-
formatur: si tamen confectae non sint, ilias conficiat, et ad nos mittat.
Praeter haec maxime comendamus: ut R .. V·ª totis animi viribus incum-
bat ad Regularem observantiam promovendam . Et sciat saepius ad nos per-
venisse, quod Missionarii, praesertím Paraenses, conducant ad Coll.um ita '
magnam quantitatem Gariophylli, et Çacai, ut videantur mercatores, et non
sine scandalo saecularium. R. V~· videat nostras litt.ns hac de re scriptas ad
. mos praedecessores, et exequatur ilias ordinationes. Intelleximus quoque de-
siderari inter aliquos Socios eam conjunctionem animorum, quae prorsus ne-
cessaria est. in filiis Societatis, et multo magis in Missionariis. R. V·ª tota
laboret in eradicandis hujusmodi amaritudinibus. Et cum aliqui sint etiam
contristati, R. V.• curet eos consolari; et speciali modo consoletur Fr.em
Joannem Gr~eber, natione Germanum, et eum commendet P.i Rectori Coll.ii,
in quo ille habitarerit. Alia videbil R. V .a in litteris, quas modo scribimus .
ad P. Vice-Superiorem illius Missionis, et ilia mandet executioni, quantum
opus fuerit. Si deinde in Collegiis desiderentur, vel in Missionibus, aliquot
exemplaria nostri Instituti, R. V·ª de hoc audiat illos Patres, et nos mqneat,
ut mittantur, quae fueriat necessaria.
Nostram itaque impertimur benedictionem, ut R. V .ae nulla alia sit
mens, nisi augendi Missionen Maragnonensem, et accendendi Socios in igne
Divini Spiritus, ut in eo comburatur integra ilia gentilitas. '
Ss. R. V .ae Ss. me impense commendo. Romae 21. Februarii I 711.
R. V.ae

Servus in Christo
~icbael Angelus Tamburüms.



332 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

IV

'Do mesmo ao mesmo.

P. lgnatio Ferreyra, Superiori, in Maragnonio.


' R. P.

Congerenda hic sunt nonnula quae habuimus ex alliis litteris. ln primis,


ibi fuit dubitatum, an Sup.or Missionis, aut V. Superior possit constituere
Visitatorem pro aliquo Coll.º, et Missionibus? Sed nulla est causa dubitandi,
quia Superior, aut V. Superior habet jurisdictionem Provlis (provincialis), ut
jam scripsimus. Quaesitum etiam fuit, an duo magni cacabi pertinentes ad
Coll.u.n; Maragnonense, quorum valor ascendit ad duo mille cruciatos, de-
beant numerari inter praetiosa Collegii, ita -ut nequeant- alienari sine no~tro
consensu? Respondemus affirmative sine aliqua haesitatione .•• Coll.um non
habet molem sacchaream, cui possint inservire dicti cacabi, concedimus ut
illi véndantur, sub eo tame~ pacto, et non aliter, ~t valor acceptus colloce-
tur in rebus fructiferis.
Quaeritur deinde, quid a nostris faciendum sit, si per secundam seten-
tiam cogantur solveré decimas Regio Decimatori contra nostra privilegia? ln
hoc puncto P.er Procurator, qui est Ullyssipone, debet adhibere omnem vim,
ut recte informet Judices; si tamen detur, ut nostri cadant lite, nullum
alium est remedium, nisi, ut solvaritur Decimae. Petitur subinde, quaes poe-
nae sint injungendae illis, qui a·peruerint litteras Superiorum; nam dicitur,
quod vitium hoc incipiat grassari in ista Missione l. ln primis, R. V.a pu-
blice moneat omnes Socios, quod incurrant peccatum r.:servatum, prout ded-
sum est in nostro Instituto, qui aperiunt litteras Superiorum; et simul comi-
netur poenam gravissimam hujus ~odi delinquentibus; si 'vero postea pro-
betur aliquem cõmisisse hoc delictum, tunc R. V.a.de judicio suorum Consul-
torum illi imponat poenam gravissi_mam ad aliorum exemplum; et si opus
fuerit, agatur de illo dimittendo. Redditus ex Regio aerario, qui solvantur
pro triginta missionariis, bene dimidiantur inter utrumque Collegium ;. nam
licet Maragnonense non ' habeat tot missionarios, habet tamen alia onera
equipolentia. .. -
Saepius scripsimus de grave scandalo, quod nostri dant externis in con-
ducenda ad Coll.um praesertim Paraense, maxima quantitate cacai, et gario-
. phylli Maragnonensis; et tamen nondum visa est emendatio. Unde R. V.ª
cum P. Visitatoré audiant Consultores, et efficacissimum adhibeam reme-
dium; aliter nos illud adhibebimus, etiamsi exinde resultet aliquod damnum
temporale. ln missione, in qua obiit P. Laurentius Homem inventi sunt du-

t Tem á margem um additamento, que parece dizer: -Possumus in eo consentire, quod


suo tempore excutiatur, qu.ando ita ferat casus.

' f;
f;
APPENDICE 333

centi, aut trecenti congii, seu metretae gariophylli, quos etsi P. Visitator
O rlandinus partim applicavit Ecclesiae Paraensi, et partim Ecclesiae Mara-
gnonensi; illos tamen applicamus conductioni operariorum; nam Missio gra-
vata est Ulyssipone in septem millibus cruciatis, et ultra. Serenissimus Lusi-
taniae Rex concessit, ut quilibet Missionarius possit habere ad suum obse-
quium viginti quinque Indos uxoratos; sed nostri cum gravi nota externorum
utuntur pluribus Indis. Quapropter R. V·ª in hoc diligenter invigilet praeter-
quam quod id fieri non debeat, esset maximum dedecus Societatis, si idipsum
deferretur per nostros adversarios ad Serenissimum Regem.
Cum paucissimi sint socii, qui ordinarie assistant in Collegiis Maragno-
nensi et Paraensi, necesse est ut utrobique assignetur Confessarius, qui ha-
beat licentiam absolvendi a reservatis. Haec, et alia sibi scripta communicet
R. V .a P.ri Visitatori, ut uterque unitis viribus. egregie •.•
• . • Missionis. Neque unus vel alter se - excuset, quod impediantur
adinvicem; ·quia tunc erit culpa utriusque; eo quod noluerint mutuo concor-
dari, quod certe non speramus. Ss. (sanctis) R.ae V .ae Ss. (sacrificiis) me
impense .commendo. Romae 22. -0ctobris 1712.
R. V.ae

Servus in Christo
:M:ichael Angelus Tamburinus.

'Do mes1no ao Vice-Superior do Maranbão.

P. Josepho Vidigal, V. Sup.ri, in Maragnonio.


R. P.

Tota, et praecipua cura R. V.ae, ac P. Visitatoris sit in augendis Mis-


sionibus, et in procur~nda conversione gentilium; oc proinde uterque non
debet, ut plurimum, in eodem loco simul comorari. Missiones ad flumen
Amaxonum, non sunt ad meditullium regionis, sed tantum prope ostium
fluminum, quae illic s_unt frequentissfma. ldeo necesse est, ut prius conver-
tantur lndi, qui degunt inter primum, et 2.um flumen, et sic de aliis; nam
hoc modo melius procedet conversio animarum, et Missiones poterunt faci-
ln
lius visitari. multis Missionibus, praesertim A racurensi pueri sunt male
instructi in catechismo. Observetur consuetudo docendi 9is in die omnes
pueros doctrinam Christianam in nostra Ecclesia. Indi, qui sunt in Missione,
ubi erat P. Murcott, non uniantur Missioni P .is Orlandini, sed illis praeficia-
tur alius operarius. Coll.um Maragi1onense habet paucas Missiones; R. V.ª
excitet illos socios ad conversionem Indorum. Et sciat R. V·ª aliquas Missio-
nes, quae modo sunt sub P. P. Carmelitanis .fuisse desertas a nostris sine
consensu nos~rorum praedecessorum.


334
0

OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Etsi Theologi ibi, finito 3·º examine Theologico possent accipere con-
clusiones ad Gradum, ut citius convolarent' ad Missiones, volumus tamen,
ut in futurum absolvatur quadriennium Theologicum; nam sic evadunt do-
ctiores, et maturiores. Excipimus aliquem casum, in quo aliqua missio quasi
extreme 'indigeret ; et time posset dispensari cuni uno vel altero in aliq uibus
mensibus post 3.um examen Theologicum. Quando ibi nostri nequeant habere
3.um annum Probationis, debent habere integrum mensem exercitiorum Spi-
rítualium, ut ubique fieri solet in simili casu. .
Praedecessor ,R. V.~e in ultimis !itt.is nobis proposuerat sequentia du-
bia in hunc modum. Solent Missionarii hujus Missionis a multis annis eam
partem Indorum, quam Seren .mus Rex ad ipsorum servitium assignat, certis
anni temporib'us mittere ad colligenda semina cacai, avellendamque gario-
philli corticem, ut emant, quae ad Ecclesiae ornamentum, et fabricam sunt
necessaria, ad vestiendos pauperes, aegrotorum medicamina, et levamen, cul-
tra, bipenes, falces, et similia, quibus indiget paupertas Indorum, eo magis,
quo remotiores sunt missiones.
Quaeritur modo, utrum, posito, quod cacaum et gariophyllum sint ar-
bores agrestes in terris a nemine habitatis, vel habitatis ab íllis, qui nullo in
pretio habent cacaum, et gariophyllum, liceat hoc, vel non Iiceat Missionariis,
non habentibus aliunde, a quo possint obtinere huj~s modi res, et quae ne-
cessaria sunt ad munera praestanda gentilíbus, cum quibus volunt pacem
stabílire, ut Fides introducatur .
Quaeritur etiam, utrum Rectoribus licuerit hucusque id facere cum In-
dis Coll.iis, ut necessaria pro Coll.o emerent, quae alio modo hucusque non
poterant habere? Isti enim sunt contractus, quos reprobant ipsimet, qui in-
troduxerunt, cum missiones erant pancissimaé, nec tot gentiles, quod hodie
suis e sylvis extrahebantur.
Ut antem plenius respondeamus his dubiis P,is Ferreyra b. m., R. V.•
de iisdem audiat omnes seniores in ista Missione, et una charta collígat
eorum notitias, et íllas ad nos mittat; sic enim singulís satisfacíemus.
Ad aliud dubium ibi pariter exortum, ad quem·, scilicet, devolvatur ju-
risdictio, si non acceptet nominatus a Sup.re d,efuncto, jam respondimus, eam
jurisdictio1_1em devolvi ad Rectorem Maragnonensem, si Visitator nominatus,
vel confirmatus a Generali Socíetatis, non velít ali um nominare; quia ejus-
modi Visitatores habent eandem potestatem, qua fruuntur Provles. Praeterea,
si detur casus, in quo Sup. 0 r moribundus, dum modo sit bene sui compos,
dicat soli suo Confess. 0 se nominare hunc, vel ullum in suum successorem,
valet utique nominatio.
Intelligat subinde R. V.•, quod de jur~ Societatis nemo possit aperire
litteras Generalís (aut etiam P . P. Assistentiuth) sive absit, sive. obierit ille,
ad quem Gener<ilis scribit, et litterae deberent comburí. Sed cum in Iocis re-
motioribus detur specialis difficultas propter bonum regifnen, utimur hac
providentia in casu mortis (cum de Sup.re absente nulla possit esse contro-
versia) ubiprimum pervenerint hujusmodi litterae at V. Sup.or, si praesens .
sit, aut Rector convocct ad consultatiooem, et coram consultoribus numeret
litteras Generalis, combustis alíorum lítteris, , et in publico íllas tradat P.
Praefecto Spirituali, qui postea eas aperiret, et leget, apertasque tradat illi,

f
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APPENDICE 335

qui fuerit. V. Sup.or, si in ipsis nihil inveniat contra ipsum, si autem inve-
niat, illud non debet tradi, sed comburi. .
Informationes ad gubernandum, quas misit ejus praedecessor, non sunt
confectae juxta paradigma Societatis, ideo novae conficiantur, et scribantur
in folio chartae, et singulae non sint separatae in diversa chatta, sed ·una
scribatt.ir"successive cum distinctione post aliam.
Bene revocavit R. V.a P. Joannem Murcott in CoU.um, ut examinentur
factae de eo delationes; et gaudebimus, si deprehendetur innocens; illius
autem perseverantia pendet ah exemplari t:mendatione. Cum multi defendant
P. Claudium Gomes, de illo diffusius scribimus ad P. Visitatorem, qui hac
de re aget cum R. V·ª· Casus vero solicitationis debet melius examinari cum
omnibus circumstant.iis, qui si verus sit, ille debet privari ab audiendis con-
fessionibus, et pejus foret, si ille mitteretur in Brasiliam. Unde ibi res tota
decidenda est, attenta penuria opcrariorum, ac illius emendatione. De Fr. Jo-
st>pho de Moura jam scripsimus Octobre, et si ille potest conservari cum
emendatione, conservari debet ,· est enim aliunde benemeritus.
Cum ista Missio paulo ante fecerit plures expensas, et faciet, s1 mve-
niantur duo :professores, ut diximus, judicavimus suspendere emptionem li-
brorum de nastro Instituto. Si tamen R. V .a existimet illos adhuc emi posse,
de eo nos moneat, et quod corpora emenda sunt.
Meritas agimus gratias P. Proc.ri Brasiliae pro solicitudine, qua favet
isti Missioni, et illas jam egimus P. Prov.li; ~undemque Proc.rem mónemus
de qualitatibus recipiendoram. Si Coll." Conimbricense, et Eborense non
alunt gratis Missionarias Maragnonenses, eos Rectores monebimus, et jam
fecin:ius reprehendere illos; qui minus religiose impediebant alios, -ne se con-
ferrent in Maragnonium.
Praedecessor R. V.ae ad nos scripsit, quod missione Canuma, et Aba-
caxis, mortuis P.e Francisco Xaverio Maloves, et P ..; Laurentio Homem, ha-
bebant in Coll. 0 Paraensi 400 congios cacai, et 600 gariophilli, ab aliis se-
paratos, proponebatque, an illae merces forent mittendae Ullyssiponem, quo-
rum lucrum poneretur ad censum, ut inde· emerentur necessaria pro illis
Miss.ionibus? Concedimus faculta tem ad hoc, dummodo in Lusit.• non eman-
tur stabilia, ne saeculares magis murmurent de multis divitiis Societatis.
Ss. R. V.o.e Ss. me valde commendo. Romae 29. Julii 1713.

"'
Servus in Christo,
Dveicbael Angelus Tamburinus.



'
OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

YI

'Do Geral Francisco Retz. ao Vice-Provincial _do


Maranhão.

R. in Xpo P.
P. Caietano Ferreyra Prov.•• Maragnonensis V. Prov.li, Parae.
2.• via.
Antequam Romã pervenirent Literae, quas R. V. subscripsit mense De-
cembri superiqris anni, aliam acceperam 6 Octobris datam, in qua dicit
nullã meã responsíonê ad Maragnonium appulisse, quod mibi novum non
accidit, seio enim dietas responsiones post discessum naviíi Maragnonensiíi
Ulyssiponem perlatas fuisse; easdem, ut spero, cum bis accipiet R. y. praesenti
anno. Respondeo igitur iis, de quibus modo me monet. Et in primis. ipsi
gratias ago pro labore, et solicitudit}e, qua Collegia visitavit; et licet, in bac
visitatione omnia recte peregisse comperiam, illud mibi maxime placet, quod
omnes compulerit, ut exercitiis S. P. N• vacarent; maximo jure enim desi-
dero, et Superioribus comendatíi valo, neminem unum sinant b;;nc sanctis-
simam functionem praeterire, nisi quis omnino sit impeditus, id est, graviter
infirmetur ;· coetera nanque impedimenta deponi debent, et ea maxime, quae
de rebus et negotiis saecularibus provenire castigaverit. pnde R. V. optime
injunxit Sociis Domus Visiensis, ut pro babendis dictis exercitiis dies dupli-
carent in compensationem eoríi quae omiserant. Mibi etiam gratissimum erit,
si Socii, qui per praedia, et residentias existunt, ad Collegia se receperint se-
mel in anno, ut Laudata exercitia serventius, et majori cum perfectione, per-
agere possint; quare de hac mea voluntate, et commendatione omnes co-.
munefaciet et nullo modo in posterum permittat extra Collegia manere scilito
tempore exercitiorum. Quod si aliquis ex supra memoratis locis ita longe
distat, ut Socii sine maxima incommoditate ad Collegium se conferre ne-
queant quod a R. V. judicand~m erit, attentís etiam personae circumstantiis,
v. g. senectute, debilitate, etc. ali um determinet, ubi quietius, et a tempora-
lium strepitu semoti Deo vacent.
Quaestionem super Indorum examine vidi, et P. Procuratorê Ulyssipone
existente monui, ut de ilia coram Serenissimo Rege quam primum ageret,
prout a R. V. sibi comissum fuit; plurimum tamen desidero, ut, quantum
fieri poterit, similes controversiae declinentur, ut omnis praecidatur occasio
obloquendi, etiam iis, qui minus affecti sunt . Et probare non possum imatu-
rum, et praecipitem admissionem Bartholomei Antonii, de quo expectari de-
berent informationes necessãriae tum de sanguine, vita et moribus, tum
etiam de. impedimento resuÍt-ªnte ex bomicidio, dum illud non probatur mere
casuale, et citra ctllpam Tbeologicam commissum; ad bane autem probatio-
nem nullactenus sufficiens est ipsius. occisoris testimonium. Igitur super hac

f
.,
APPENDICE 331

re scripsi Ulyssiponem, et P. Procuratori commendavi distinctissimam ca-


peret informationem de juvene, et crimine, et ad R. V. per suas naves
mitteret, quam cum suis consultoribus examinabit' et conservare in novitiatu
poterit Laudatíi - Bartholomeum, si undequaque idoneus, et sine impedi-
mento apparuerit, sin vero probabitur reum vere esse, et .homicidium non
sine culpe comisisse, quamprimGm dimittat. Nullo etiam modo inclinari pos-
sum ad permittendum, quod res Ulyssipone emptas, et ad Maragnonium ex-
portatas Procurator V. Provinciae vendat Missionariis cariori pretio, q uam fas
est, servatis servandis, id est, ultra pretium Ulyssipone solutum, et expensas
factas in transportatione lucrum aliquod procurando; tale enim mercaturae
genus quocunque pallio tegatur, et dissimuletur, non pos!est effug-ere nego-
tiationis labem, neque Divinam sperare brnedictionem. Quid deniq super hac
ipsa re fieri debeat, semel, atq iterum jam edocui, et postremo in epistola a
me data 23 Junii superioris anni, ad quam me remitto, et in eadê disposi-
tione insisto.
Circa controversium ortam inter P. P. Antonjum Moreira, et Josephum.
Antonium respective ad· Cathedram Philosophiae, approbo R. V. disposi1io-
nem, in ea ipsa firma sit, nisi grave aliquid aliam interea postulaverit provi-
dentiam. E duobus candidatis solus- ad me scripsit Josephus Angelus, cui
respqn'deo, ut Sorores indecenti statu prius collocet: et hoc, prout existimo,
satis erit, ut a conatu suo desistat. Instet R. V. iterum, atque iterum pro re-
vocandis duobus Capucinis a Missione, in quam se introduxerunt. Et quod '
mutationem Cursus Philo,sophici in Collegium Paraense, id statuat, quoad
convenientius judicaverit, attentis rerum, et temporum circunstantiis.
Postremo, quoniam R. V. me rogat, ut patentes Litteras pro Successore
mitta~, ipsi licet aliquantulum invitus morem gero, et his aêclusas mitto;
plurimum tamen commendó, ut maximo sub secreto habeat, quoadusque
trieunium suíi perfecte ab:,olvat, si forte priusquam absolverit, ad manus suas
pervenerit. Ad munus V. Provincialis des!gnavi P. Carolum Pereira, cui Pa-
tentes debito tempore tradendas curabit. Mitto etiam Successionem pro eodem
V. Provinciali, q uam licet nova vidcatur; pro meliori providentia necessaria
existimavi: asservábitur occlusa, et sub omnimodo secreto solumque aperie-
tur pro caSIJ necessitatis, qui solus erit casus mortis. '
Ac tandem R. V. gratias ago quam maximas pro zelo, vigilantia, et
aequitate, qua perfecturam suam, non sine mea satisfatione, adimplere cura-
vit. Nonnulla, quae ex aliorum litteris didici, ad aj.iam epistolam re_servo.
Valeat R. V. et S. S. suis mei plurimum recordetilr. Romae 25 Junii 1746.

R. V .
. servus in Xpo
Franci:cus Rctz...

4J

'·•


• 338 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

NOTA-'D

Carta de FranciJco Xavier de Mendonça Fur-


tado, go-vernador do Grão-Pará, a Thoiné Joaqrtim
da· Costa Córte Real, minist1·0 da marinha. '

Jll.flllJ e Ex.mo Sr.-Devendo sair da villa de Borba a Nova, que antiga-


. mente era aldeia de Trocano, no rio da Madeira, o padre Anselmo Eckart,
por ordem que recebeu do seu prelado, o padre Francisco de Toledó, V,. Pro-
vincial e Visitador da Companhia nessa V. Provincia, lhe expediu tambem
que trouxesse comsigo tudo o que dissesse respeito á subsi:;tencia daquella
povoação, incluindo-se até as alfaias que pertenciam á igreja, com o .funda-
mento de que aquelles bens só tocavam á s.ua religião, por serem bens in-
dustriaes, licita e necessariamente adquiridos, o que. serviria para se pagar
uma grande importancia, que o mesmo padre affirma, que aquella povoação
devia á Procuratura.
Quanto aos bens iridustria~s licita e necessariamente adquiridos já pela
nota informei a V. Ex.•, largamente demonstrando que o negocio que estes
padres faziam não só não lhes era licito, nem ainda necessario, e que aquella
idéa era nova, porque os mesmos religiosos haviam affirmado na real
presença de Sua Majestade que o negocio que faziam era dos indios, sem
que tivessem os mesmos religiosos cousa algum.i com aquelles interesses.
. Como larga e evidel)temente mostrei na sobredita occasião, cujo papel
poderá a V; Ex.a participar o seu collega, por cuja via foi dirigido, e como
naquella occasião me achava summamente molestado,. em forma que não .
pude concluir aquelle discurso, na parte que dizia respeito ás dividas que
aquelle religioso affectou, informarei a V. Ex.ª na forma em que tenho
comprebendido este negocio.
Já mostrei que estes padres não teem bens alguns industriaes, por não
serem · licita nem necessariamente adquiridos, como diz o padre Visitador;
nesta agora provarei que são affectadas as dividas que o dito padre finge de-
verem as aldei:\s, e antes pelo contrario teem estes religiosos ad,1uirido com
aquella administração grossissimos generos, como farei certo. com a eviden-"
eia e brevidade que me fór pos;;ivel.
É nestes religiosos maxima antiquissima· que sempre trabalharam por
estabelecer, que tinh~m contrahido grande~ emprestimos, espalhando éstas vo-
zes não só aos povos, mas att! tomando a liberdade de chegarem á real pre-
sença de Sua Majestade, a representar-lhe uma necessidade apparente, tanto
para lhe desvanecer algumas noticias que lhe tivessem chegado dos grossissi-.
mos negocios que aqui sempre fizeram, como para lhe extor"<Juirem, com \\.

' f!)
( •1
APPENDICE 339

aquelles clamores, algumas grandes ajudas de custo, para se erigrossa·r em


mais nos grandes fundos que conservam.
Deixando os requerimentos que fizeram mais antigos, participarei a
V. Ex.ª o que na era de 1692 fez a Sua Majestade o Senhor D. Pedro 11 o
padre João Filippe, Reitor que então era deste cbllegio. '
Tomou pois o dito religioso a liberdade de representar áquelle monar-
cha, entre uma quantidade de absurdos, a grande pobreza em que se acha-
vam os seus conventos e residencias, pedindo ao dito Principe lhe mandasse
satisfazer uma grande quantidade de dinheiro, como se vê de uma_carta fir-
mada peia mão real, dàtada de 19 de março de 1693, de 'que remetto a
V. Ex.• a cópia, a qual não deferiu o dito monarcha, mandando-se sómente
informar daquelles factos, na forma que da mesma carta consta. · .
Esta mesma idéa seg·uiram sempre aqu_elles religiosos, fazendo grandís-
simas negociações, e affectando não 5ó uma 'pobreza summa, mas ainda so-
bre ella grandes empenhos, para com aquella necessidade commoverem a
piedade dos principes e, cm consequencia desta, não só lhes occultarem as
sobreditas negociaçoes, mas tambem llies usurparem as ajudas de custo, que
acima disse.
Só pelos livros de Razão, que ~stes padres conservam em seu poder, se
poderia demonstrar os immensos cabedaes. que teem tirado da administração '
dos índios neste Estado; porém, ainda que clles não hão-de apresentar os
ditos livros, sempre se poderá calcular e fazer uma idéa da riqueza com que
se acham, e do grande prejuizo que fizeram ao Estado, para a adquirirem.
É publico nc~ta cidade que, dentro do collegio, ·ha uns grandes ·arnia-
zens, em que se recolhem as drogas, que estes padres e'xtrahem dos sertões.
Tambem é facto patente e notorio que, desde que os navios dão fundo
no porto desta cidade, até que completam a sua carga, se conserva uma feira
grossíssima, déntro nos ditos armazens, em que os mesmos padres vendem
a maior parte ,dos generos, reservando sómente uma pequena porção para
fazerem o commercio parti.:ular em seu nome', o_qual, ainda sendo de uma
parte tão diminuta, importa na grossissima somma que abaixo demonstrarei
a V. Ex.a ·
Não podendo haver outra pr-0va mais concludente que os ·manifestos
dos livros da Fazenda Real, por elles consta que este pequeno commercio,'
que os padres reservavam para si, desde o anno de 1726 até 1756, lhes não
importou liquidamente menos de 159:898~000 réis, deixando-se ainda por
liquida_!", por falta de noticias, algumas das parcellas, que constam das certi-
dões da Fazenda Real e das contas a ellas juntas.
Importando o pequeno negocio uma tão consideravel quantia, quanto
.sommará o grosso commercio dos generos n1ais preciosos do Estado, que a
estes padres são privativos? como ambar, tartarugas, baunilha, dos quaes não
acho manifesto mais do que de uma caixa, que mandaram no anno de 1747,
·e creio que todos os outros introduziram sempre por alto, porque elles são
os senhores de quasi tod_os estes preciosos generos.
Tambem deve accrescer, ao negocio occulto, o que estes religiosós fize-
ram no Javary, no contrabando, q';le havia entre elles e os jesuítas castelha-
nos, o · qual dehcanqo o excesso a que aqui chego, e regulando-me pelas

,, •
<• • •
340 • OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

mais prudentes informações, é sem a menor ·duvida que lucram nelle mais
de cem mil patacas liquidas, segundo o sobredito calculo dos homens mais
prudentes, e que maior voto tinham nes!_a materia.
O commercio da terra não é menos importante, · porque delles são os
azeites de andirob'a, manteiga de tartarugas, salgas . de peixe, uma grande
parte das carnes, farinhas, feijões, arroz, e finalmente quasi todos os comes-
tíveis, e um grande nup1ero de arrobas de algodão, ássucar e· aguardente;
os officiaes das artes fabris, como pintores, entalhadores; pedreiros, fer-
reiros, tecelões, e finalmente até oleiros, conservando-os- nas suas fazendas,
nas quaes tem estabelecido umas grandes fabricas de olaria, vendendo nellas
tanto tijolo e telha como louças, por um preço mais de dobrado do que se
costuma vender em Lisboa, cujos officiaes continuamente trabalham a favor
·do commum da sua religião, deixando-lhe um grandíssimo lucro; e pagando
a estes officiaes pelo limitadíssimo preço de vinte e quatro varas de panno
grosso de algodão, quando são das aldeias da ·repartição, e, quando são· das
suas privativas, não recebem mais que a doze, até quinze ·varas, vindo por
esta forma .a ficarem senhores não só da grande importancia daquelias obras,
mas tambem do suor destes miseraveis officiaes.
• Tenho demonstrado a V. Ex.• brevissimamente os lucros que estes pa-
dres teem ; agora será preciso tambem participar a despesa que fazem, para
·que V. Ex.• comprehenda bem a sinceridade, com que estes religiosos affir-
mam que teem. grandes empenhos, e que se lhes devem satisfazer.
Os vestidos, sendo os mesmos que em toda a parte, tem aqui a grandis-
' sima differença de que muitas das roupetas são de algodão grosso, tintas na
terra, e as capas não passam de seis, que são ,do commum dàquelles religio-
sos, que primeiro saírem para fóra. Os chapéos entendo que duram a vida
do religioso, a quem se dão, e os sapatos grossos, de duas solas, são feitos.
em casa, pelos seus officiaes, e de cabedal tambem fabricado nas suas fazendas .
O comer é m·ais ordinario que em outra alguma parte, reduzindo-se
todo o manti.mento, que se gasta no collegio, á vacca que vem dos seus cur-
raes, peixe salgado que lhe fazem os índios, arroz, farinha e feijão das suas
fazendas, e manteiga de tartarugas, que tambem lhes. fazem os indios.
Sendo este o gasto grosso, que se faz com a sustentação dos padres, só
restam os generos -que mandam vir do reino para a sua subsistencia, como
são vinhos, vinagres, azeites, e farinhas. ·
Quanto aos vinhos, são inteiramente da quinta que possuem em Carca-
vellos, comprados com o dinheiro desta v.ice-provincia, para o fo"!ecimento
dos collegios e aldeias. Os azeites, vinagres e farinhas creio que se compram
em Lisboa, porém são transportados a esta cidade sem pagarem direitos em
parte ·alguma. •
De todos os provimentos que vem do reino, em nome do corrimum do
collegio, se fazem' os das aldeias, pela forma que referirei a V. Ex.ª. Faz o
procurador das Missões relação do que lhe é preciso, para caéla uma das al-
deias e, separando aquellas parcellas, e carregando-as a cada um dos missio-
narias, pelos mais altos preços, que corre_m na terra depois de partirem os
·navios, são cobrados pontualissimamente, pelos efeitos que vem do sertão,
que . todos se recebem na Procuratura, vindo desta sorte a .fazer um grossis~
APPENDICE 341

simo commercio do collegio para as m1ssoes, no qual avançam certamente


mais de I 50 por cento, ficando assim o collegio não só com- os provimentos,
que lhe ficam' de graça, mas avançando um grande ganho sobre elles; ver-
dade esta que aqui é constante e notoria, a todos os que teem conhecimento
desta materia. - ' '
O gasto da botica mais tocava á receita, que acima fiz, do que a esta
despesa, porque é um dos bons rendimentos que tem o collegio, reputando
sempre as drogas por um excessivó preço; e, não havendo outra na terra,
vem a prover não só as aldeias, mas todos os moradores, ficando della todos
os annos ao collegio um grande lucro. ·- '
A despesa da igreja não pode ser muito grande, quando a maior parte
das festas se fazem á custa dos particulares, ficando muito poucas por conta
do collegio; e, para se fazer o calculo dellas, em forma que não seja dimi-
nuto, se lhe podem arbitrar 200~000 réis por anno, e com esta ultima par-
cel1a se completa toda a despesa, que fazem estes religiosos.
Combina~do agora esta verdadeira despesa, com a receita egualmente
.certa, que acima consta, comprehenderá V. Ex.a, por uma evidente demons-
1_!:ação, que não ha as imaginadas dividas, que o padre visitador affecta, e
que, antes pelo contrario, teem estes religiosos juntado um grosso cabedal,
.com o importantíssimo commercio que sempre fizeram neste Estado.
Tenho exposto a V. Ex.ª o que diz respeito ao· collegio do Pará, e, pelo
que toca ao do Maranhão, tambem passa o mesi:no, com a differença porém
que, naquella capitania, são estes religiosos muito·mais poderosos em fundós
de terras, porque tem nellas as mais importantes fazendas, e em consequen-
~ eia mais solidos estabelecimentos.
Com às aldeias succede sem differença o mesmo que com ô commum
do collegio, porque, sendo governados pelos mesmos religiosos, seguem as
mesmas idéas do negocio, affectando sempre as maiores dividas, confessando
elles mesmos as negociações; porém dizem que cont_am mau successo, que
sempre a despesa excede a receita; nem podiam de outra forma inculcar as
dividas que elles dizem nas aldeias.
Para estes religiosos -Sustentarem aquella asserção, é preciso _provarem
que elles são os mais mal governatlo:o deste Estado, e os mais inhabeis para
o. commercio, facto que a elles será tão 'difficultoso de provar., como a V. Ex.ª
· e a todos de o crêr.
Farei a V. Ex.ª uma evidente demonstração, do que succede com os
mais regulares que aqui teem missões, 7 que tratam egualmente das ald.eias,
como são as. tres pr-ovincias de capuchos, Santo Antonio, Conceição, e Pie-
dade; e a do Çarmo, não falando na das Mercês, porque esta apenas con-
•serva tres pequenas aldeias.
Nenhuma destas communidades cheg;i ao excesso de dizer que as aldeias,
que administram, teem empenho algum, e só os religiosos da Companhia ti-
veram sempre a liberdade de affectarem taes empenhos para, ou embaraça-
rem as disposições que Sua Majestade foi servido ciar a este respeito, ou ver
se podem extorquir-lhe aquellas quantias, sem mais justiça que a sua ?mbi-
ção, pois 'n ão podem tam!J~m gizer que fuziam maior~s despesas nas aldeias
que as religiões. "


• lt
342 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Porque isto só poderá fazer algum peso, dito em Lisboa, e se alguem não
tiver bastante noticia destas materias; mas aqui no Pará· não pode merecer
credito algum, porque além de que a estes padres lhes dá Sua Majestade
95olooo réis cada anno para a subsistencia dos missionarias, maior congrua
que a todos os outros, nem por isso· fazem maiores despesas do que elles,
nem menores negociações, como é publico e notorio; e se os outros se não
empenham não tendo tão boa economia como elles, como haviam de con-
trahir as·divigas que affectam, tendo nestas materias·tanto desvelo como a to-
dos é constante?
Fazendo· a este respeito uma evidencia notaria do que p~ssa na aldeia
dos Sacacazes, da ilha de Joannes, na qual, porque teve dois religiosos suc-
cessivos, ·que com zelo cuidaram na sua obrigação, não tendo a dita aldeia
outro algum commerc;io mais que o ,de um pouco de peixe sêco, fizeram
toda a prata que julg~ram precisa para a igreja, a qual dizem que importa
cm mais de 6:000 cruzados, e vestimentas que valem mais de dois, e se aqüel-
le pequeno commercio, porque houve os dois religiosos que cuidaram na sua
obrigação, produziu um tal effeito, julgue V. Ex.~ a que sommas terá che-
gado o das outras aldeias, aproveitando-se das preciosas drog~s do sertão, as
quaes aquella não mandava.
Ultimamente farei a V. Ex.a uma combinação desta aldeia dos Sacaca-
zes com a de Trocano, que hoje é villa de Borba a Nova, e por ella compre-
henderá V. Ex.• a boa fé e sinceridade, com que o padre Visitador pede o
pagamento das dividas, que só existem na sua prevenida idéa.
Não tendo a aldeia dos Sacacazes mais do que o pequeno ramo de com-
'', mercio; que acima disse, se conserva não só sem divida alguma, mas teem
( aquelles índios enriquecido a sua igreja de alfaias, em forma que passa o seu
valor de 8:000 cruzados; e a do Trocano, que sempre fez um grossíssimo
negocio de cacau, salsa, cravo, copahiba, manteiga e salgas ·de peixe, não ha
nella igreja, porque uma palhoça que servia daquelle ministerio se queimou
ha muitos annos, e nunca mais se cuidou em fazer outra; não ha paramen-
tos decentes para se dizer missá, por que os que se acharaín são indignos de
se celebrar com elles; e finalmente não ha naquella povoação cousa que boa
seja, e, sem gasto algum que' se possa ver, diz o padre Visitador que deve á
Procuratura 900 e tantos mil réis; sem mais prova que a liberdade, que to-
mou, de fazer aquella representação .
. Ainda que. considero a V. Ex.•· complet.amente Í!;1formado dos interesses
deste Estado, pareceu-me indispensavel do meu officio e da minha obriga-
ção participar-lhe estas certas e infalliveis noticias, para que, querendo estes
padres extorquir do Erario Real algumas 'sommas, com os affectados pretex-
tos _dos seus empenhos, .saiba V. Ex.ª a verdade deUes, para os fazer certos
a9 nosso Augustíssimo Amó: Deus guarde a V. Ex.•, etc. - Pará, 2 3 de
maio de 1757.

(Copia extrol1i~a ~os ~rcbivos do Par!),

f
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344 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Pastos Bons; e tem mais na capitania do Cumá tres ermidas parochiáes an~ .
nexas e subordinadas á freguezia, que são: S. Bento, S. José, e Nossa Se-
nhora da Agua do Lupe; com o que vem a ter todo o Estado vinte e quatro
freguezias e nove ermidas parochiaes, fora duas mais, que tem a cidade de
S. Luiz, de S. José e S. João, que é dos soldados, e outras duas na e.idade
dé Belem, que são a do Santo Christo dos soldados, e a de Nossa Senhora
do Rosario e ou.tras particulares,. que estão por varias fazendas.
4. Ha nelle quinze conventos de religiosos: quatro do Carmo, qua-
tro das Mercês, tres de Capuchos, e quatro da Companhia; dos do Carmo,
são dous no bispado do Pará, um na cidade, outro na villa da Vigia; e da
mesma forma dous da Companhia, e um das Mercês, que todos são senho-
res de muitas moradas de casas na cidade, e fazendas, pelo Guamá, Mojú e
mais rios capazes, e estes ultimos da maior parte dos gados da grande Ilha
de Joannes. Dos CapuchÓs tambem são dous: Santo Antonio, ~ S. José, que
ieem cada um suas duas fazendas, a que chamam Doutrinas, com muita gente.
5. No bispado do Maranhão teem dotis conventos os do Carmo: um na
, cidade da ilha, outro na villa de Santo Antonio de Alcantara ; e da mesma
forma os da Co.mpanhia e Mercês; e estes teem -mais outro no rio Mearim, e
os de Santo Antonio teem um na ilha,. tambem com duas doutrinas, com
muita gente como os mais, e todos os outros com muitas fazendas e gente
de toda a qualidade. Além destes h; seis hospícios, tres dos Capuchos no
bispado do Pará, na cidade, no Cayá, e no Gurupá, que têm cada um suas
duas doutrinas, como os mais; e ~res dos padres do Carmo; dous no Estado
do Maranhão, um na ilha e outro nas Aldeias Altas, que teem suas fazendas
de terras e gados, com bastantes índios fôrros e escravos, e outro no districto
do Pará, no rio Negro, d'onde dão providencia ás dependex:icias dos missiona-
~ rios. Além destes ha tres resi.dencias da Companhia no Estado do Maranhão:
· uma na Ilha, e duas no sertão da Tutoya, e Aldeias Altas, a que vão aggre-
gando fazendas de cultura, gados e escravos, com doações e compras como
. nos mais convent~s. Teem mais estes mesmos tres seminarios, um na cidade
do Pará, outro na do Maranhão, e outro no rio Parnahiba, onde nãó ensi-
nam senão por dinheiro, e procuram ir aggregando a cada um as fazendas
que podem adquirir .. Com o que, em summa, vem a haver em tedo o Es-
tado vinte e sete casas de regulares, fóra· as das fazendas, engenhos, e mis-
sões que lhes estão entregues. ·
6. Contém-se néste Estado sete capitanias: as do Piauhy, Maranhão, e
Pará, que pertencem in totum a Sua Majestade, e as do Cumá, Camutá,
Cayté, e Ilha grande de Joannes e Marajó, que pertenc;em a donatarios. A
do Piauhy contém as povoações e fazendas que vem dos·confins da capita-
nia do Ceará e Pernambuco, até ao rio Parnahiba: a do Maranhão com-
prehende as que medeiam entre o dito rio Parnahyba e o Pinaré; e a do.
Pará principia pela parte esquerda do Guamá, e segue tudo quanto alcança o
districto da Vigia e sertão das Amazonas e Cabo do Norte· até os ultimos
confins já declarados, em que entra· a capitania do Cabo do Norte antiga,
que foi extincta. A capitania do. Cumá principia do rio Pinaré, e ponta de ·
Tapuitininga, e alcança toda quanta terra medeia destes extremos até o rio
Gurupy, correndo cincoent~ leguas pela c~st~; e a do Cayté principia do rio

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APPENDICE 345

Gurupy, e vae correndo a costa outras cincoentas leguas até o Guamá, rio
na sua barra caudaloso em que finaliza; e a do Camutá extenck-se a tudo
quanto medeia entre o Mojú e o Tocantins; e a da Ilha Grande de Joannes
comprehende tudo o que contém a sua muita extensão.
7. Nas duas capitanias do Piauhy e Maranhão entende o governador
do Maranhão; e o do Pará em todas, como governador e capitão general.
Nas tres de Sua Majestade ha nove fortalezas, duas no districto do Mara-
nhão, uma á entrada da cidade, e outra no rio Itapec~ru; e sete no districto
do fará, uma na barra da cidade, e seis nos districtos do sertão das AmazoM
nas, no Macapá, Parú, Pauxis, Gurupá, Tapajós, e rio Negro; além disto
ha mais tres fortins, dois na cidade do Pará, e um no Maranhão; e tres ca-
casas fortes, duas neste mesmo Estado, no Iguará e Mearim, e uma no do
Pará, nas cabeceiras do Guamá. ·
8. Ha em todo o Estado cincoenta e sete rios mwegaveis; e muitos pata
mezes, fóra infinitos riachos de menor conta, dos quaes correm seis pela ca-
pitania do _Piauhy que são: Igaruçú, Piauhy, Canindé, Gorugueia, Poty, é
Soroby, e um que é o Parnahyba em que todos entram pelo sul, que a di-
vide çla do Maranhão. E por esta correm dez, que vem a ser: rio das Balsas,
e Riachão que entram no dito Parnahyba pelo Norte, e o Preguiças, em que
entra ·o rio .Preto, que saiem do sertão do Iguará; ltapecurú em que entra o
das Alpercates; Moni, em que entra o Iguará; e M_earim, em que entra o
Guajaú pela direita, e mais o Pinaré que divide esta capitania da do Cumá;
nesta ha o de Orutinguaba, Ariparig!Jaba; e Turyassú, e o do Gurupy que a
divide da capitania do Cayté, da qual sai sómente o Pereá, .e o Guamá que
a divide da do Pará.
9. Nesta do Pará h,a os rios Moju, Capim, Acará e o grande rio das
Amazonas, em que enrtam pela direita os rios Irijó, Jary, Trombetas, Ja-
- mundás, Urubú, e o famoso rio Negro, em que entram o Jaquipiri, rio Bran-
co, Catabuhu,.. e Caíary; e continuam ainda por esta parte no Amazonas os
rios }apurá, Içá, e Napo, e pela esquerda os rios _Xingu, Tapajós, e o cele-
bre Maçleira, em que entram o Mamoré, Aporé, e Sararé; e continuam ainda
no Amazonas por esta parte. os rios Purús, Coary, Catuá, Cayame, Teffé,
.Juruá, Jutahy, e Javary; e_na capitania do Camutá entra o rio Tocantins; e
na de Joannes o rio Marajó. -
10. Tem mais o continente do Estado trinta e cinco bahias, por onde
se navega em canóas, algumas tão grandes que se perde nellas vista "de ter-
ra. Destas são quatro situadas na capitania do Maranhão, que são as do Pe-
reá, Moconuduba, Quebrapotes ou S. José e a de Tapuytapera; e quatorze no
districto· da capitania do Cumá e sua costa, ·chamadas Cumá, Curimattá, Mo-
cunanduba, , Cabello de Velha, Carsapueira, Turirana, Turyassú, Matuoca,
Carará, Maracosamé, Pirocava, Ti.romáhuba, Guiririba, e Guiririba Mearim;
e na capit!lnia do Cayté e sua costa nove, que são Gurupy, Pereátinga, Pe-
reáuna, Toqueemboque, Giramonga, Senambola, Punga, Manigituba,_ Cayté;
e na do Pará oito, que são Maracaná, Cotipurú, Mariquiguy, Piramerim,
Guarapijó, Salinas, bahia do Sol, e de Santo Antonio.
1 1. Ha em todo o .Estado trinta e um engenhos reaes de fazer assucar:
cinco na capitania de ?· Luiz do Maranhão, em que entra um dos padres do
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OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

Carmo, no rio ltapecuru, com mais de duzentos escravos, que não faz nada,
e dous na capitania do Cumá, em que entra um dos padres da Companhia;
e vinte e quatro no Pará, um dos padres da Companhia no Mojú, e outro ·
dos do Cârmo no Guamá, ambos afamados pela muita quantidade de gente
que conservam, e os mais dos moradores, que quasi todos se occupam em
fazerem aguardente, de modo que se vende o assucar por pouco, sendo mau,
a tres mil réis a arroba. E além destes ha em todo o Estado cento e vinte
engenhocas de aguardente, quarenta e três na capitania do Maranhão, que
vem a ser: uma na freguezia de Pastos Bons, tres na de S. Bernardo da
Pamahiba, uma nas Aldeias Altas, duas na do Icatú, quatr9 no Mearim,
vinte e duas na do ltapecurú, e dez na ilha do Maranhão; e na capitania do
Cumá trinta e cinco; e nó Estado do Pará quarenta e duas, duas na capita-
nia do Cayié, quatro na do Camutá, cinco na villa da Vigia, e trima e uma
·. em todo o districto do Pará. E só para esta fabrica ha applicação summa, e
della tamb.em muito cuidam o regulares, a quem pertencem algumas das
que estão declaradás.
12. No mesmo Estado todo se acham quatrocentas e quarenta e oito
fazendas de gado vaccum e cavallar, de que pertencem duzentas e quarenta
e cinco á capitania do Piauhy, que quasi todas são muito populosas, e destas
vinte e tantas á administração dos padres da Companhia da Bahia; e cento e-
sessenta e tres á capitania de S. Luiz do Maranhão, quarenta e quatro situa-
d~s 11a extensão de ce'nto e vinte leguas que tem a freguezia de Pastos Bons
donde não tem entrado religiões, e trinta e cinco na das Aldeias Altas que
terá de extensão cem leguas, nas quaes entra uma do ·carmo, e outra da
Companhia, e trinta e uma na de S. Bernardo que tem de territorio cincoen-
ta leguas, em que entram dez da Companhia, e vinte e .du.as na do lcatú que
terá o mesmo territorio, em que entram duas dos padres das Mercês, e vinte
e cinco no districto do rio Mearim, que poderá ter trinta leguas, em que en-
tram tres do Carmo, tres da. Companhia,_e uma das Mercês, e seis no Ita-
pecurú, ·que terá de districto quarenta leguas, em que entram duas da Com-
panhia e uma do Carmo, e as mais dos moradores; e na capitania do Cumã
ha quarenta, de que pertencem oito á Companhia, duas ao Carmo, e uma ás
Mercês; com o que vem a ter os regulares em todo o Estado cincoenta e
Cinco fazendas de gado vaccum, e cavallar. E no Pará são seµhores, a Com- ·
·panhia, Carmo e Mercês de quasi todo o que dá a grande Ilha de Joannes
no districto do Marajó, e ainda que lá 'tem curraes i:nais outras pessoas secu-
lares, são todos pequenos em comparação dos dos regulares. Fóra disto ha
varias · fazendas de frades do Carmo e Mercês, em particular cheias de i,n-:
dias, a que ellcs chamam aldeias proprias. Ha mais na capitania do Cumá
umas salinas da natureza, que quando tomam agua do mar, nas aguas de
setembro, e lhes corre o tempo, dão sal para sete annos, e se perde a maior
parte por não poder aproveitar-se; e no districto do Maranhão um engenho
real de serrar madeira, sem exercido por estar quasi arruinado.
13. Tem ma!s todo o Estado duas cidades, que são as de S. Luiz do
Maranhão e a de Nossa Senhora de Belem do Pará, e sete villas: tres da
corôa, duas no Estado do Maranhão, que são lcatú e Piauhy; e uma no do
Pará onde chamain a Vigia; e quatro de donatarios que são: S~nto Antonio

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APPENDICE 347

de Alcantara no Cumá, Camutá, Cayté e Marajó; ·e para todas estas, e cida-


des, e mais alguns districtos, ha dezoito juízes ordinarios em todo elle, com
seu~ -officiaes que são, fóra os das villas e cidades nomeadas, os do Gurupá
e nova povoação de S. José no Macapá no districto do Pará, e os de Mearim,
Parnahiba, e Aldeias Altas no districto do Maranhão, e os do Parnaguá,
Gorugueia, Soroby, e Piracuruca no Piauhy, e tres ouvidores geraes lettrados
que lhes presidem em cada uma das tres comarcas, e- dous provedores da fa-
zenda nas duas cidades, e um commissario, que é o mesmo ouvidor do
Piaµhy.
14. Em todas as capitanias do Estado ha oitenta aldeias, duas ·n o distri·
-eto do Piauhy, de Aruazes, e Paracatis, administradas por clerigos; duas de
Araios e Araperüs junto do Parnahiba_, no districto do Maranhão, tambem
administradas por padres da Companhia, que- são: uma de Guanaris, e duas
de Barbados, e duas de Cahicahiies, e Aranhis, uma de Tarambambés, uma
de Gamellas;e outra de Tapijaras, chamada S. José; na capitania do Cumá
ha cinco, tres adm_inistradas por padres da Companhi_a, S. João, Maracú, e
Pinaré, e uma por .padres do Carmo no Turyassú, e outra pelos das Mercês
no Gurupy.
I 5. E no districto do Pará se contam sessenta e tres, de que pertencem
ás villas dos donatarios quatro, uma no Cayté, administrada por padres da
Companhia, uma no Camutá, e duas na Ilha de Joannes, administradas por
padres capuchos; e nas terras da administração real ha cincoenta e nove, de
que regem uma no sertão do Urubú os padres d1s Mercês, e dezoito os pa-
dres da Companhia que vem a ser: Maracanã, Cabu, Vigia, Mortigura, Su-
mauma, Araticú, Aricurú, Aricará; e no rio -Xingú, Itacuruçá, Pirauiry,
Aricará; e no rio Tapajós, Borary, Cumarú, S. lgnacio, e S. José; e no rio
Madeira, Abacaxis, e Trocano; e nove pelos padres capuchos de Santo An-
tonio, que são: Menino Jesus, S. José, Anaiatuba, Bócas, Caviana, Urubu-
cuara, Acarapy, Parú; e pelos padres capuchos da Conceição seis, que são:
Ma~gabiras, Cayá, Conceição, Iary, Tuari, Uramucú; e os padres capuchos
de S. José nove, que são: Gurupá, Arapijó, Caviana, Maturú, Jamundá,
Pauxis, Curuá, Manema, Su_rubiú, Gurupátuba; e os' padres do Carmo, no
Solimões ou rio das Amazonas, oito, que são: Coary, Teffé, Maneruá, Para-
guary, Turucuatuba, S. Paulo, e S. Pedro; e no rio Negro, Jaú, Caragay,
Aracary, Comarú, Mariuá, S. Caetano, Cabuquena, Bararuá, Dary; e fóra
disto teem os capuchos -todos oito a nove doutrinas, como já disse, em que
teem muita gente, toda boa e escolhida, a que chamam muito sua, porque
sómente della se servem elles, e não consentem que se viio a outra parte,
sem embargo de serem os mesmos que dizem ella é li'fre: e assim_vão em
summa a serem as aldeias governadas quatro pelo ordinario, trinta pelos pa-
dres da Companhia, vinte e seis pelos padi:es capuchos; com mais oito dou-
trinas: duas pelos padres das Mercês, e dezoito peios do Carmo. Nenhuma
desta gente que se comprehende em aldeias, doutrinas e fazendas dos padres
paga dízimos, por serem todos participantes dos privilegias ou abusos que
elles·inculcam para tambem os não pagarem.
(Ms. da Bibliotbeca Publica de Lisboa-Archivo do Conselho
Ultrnmarino - Brazil, papeis avulsos). '



·• •
OS JESUITAS NO GRÃO- PARÁ

NOTA-F

Instrucções regias publicas e secretás, para


Francisco Xavier de Mendonça, capitão-general do
Estado do Pará e Maranbão.

Francisco Xavier de Mendonça, amigo, governador, e capitão-general


do Estado do Pará e Maranhão: Eu el-rei, vos envio muito Saudar. Atten-
dendo ao que se me representou da grande necessidade, que ha_via, de dividir
esse Estado em .dous governos, por ser ,prec_isa a assistencia do governador
e capitão-general na cidade do Pará, onde a occorrencia dos negocios e o
trafico de commercio o occupavam a maior parte do anno na referida resi-
dencia, vos ordeno que o façais na dita cidade do Pará; e para a cidade de
S. Luiz do Maranhão fui servido nomear a Luiz de Vasconcellos Lobo por
governador, com a patente de tenente-coronel, o qual será vosso subalterno,
a quem ordeno execute as vossas ordens. '
I. Confiando de vós, que me servireis com a actividade e zelo e pru-.
dencia, que requerem os negocios do mesmo Estado, vos encarrego, em
primeiro Jogar, . que attendaes muito á gloria de Deus, como abaixo vos
instruireis, para que em execução das minhas reaes ordett~ e resoluções te-
nhaes todo o cuidado nesta obra, tão importante para a extensão e augmento
do cbristianismo como tambem das povoações desse Estado.
2. O interesse publico e as conveniencias do Estado quê ides gover-
nar, estão indispensavelmente unidas aos negocios pertencentes á conquista e
liberdade dos indios, e juntamente ás missões, de tal sorte que a decadencia,
e ruína do mesmo Estado, e as infe!icidades, que se tem sentido nelle, são
effeitos de se não acertarem, ou de se não executarem, por má intelligencia,
as minhas reaes ordens, que .sobre estes tão importantes negocios se teem
passado.
3. Tendo-se permittido o captivarem-se índios, foi preciso reprimir-se o
excesso, com que se usava daquella permissão, mandando-se publicar varias
leis, pelos senhores reis meus predecessores. ·
4. Mostrou a experiencia que não bastavam as providencias dadas ·nes-
tas leis, e se prohibiu geralmente o captiveiro dos indios, por outra do pri-
meiro de abril de 1680; e, passando o espaço de oito annos, fui servido
attender ás representações em que se ponderavam os inconvenientes que ha-
via na dita liberdade, e fui servido perníittir em alguns casos o captiveiro,
pelo alvará em fórma de lei de 28 de abril de 1688.
5. Desta lei se abusou, e até a junta das Missões achou nella um pre-
texto para extender as suas faculdades a ma\s do que lhe era permittido, e
f

f
APPENDICE 349

do que ·se lhe podia conceder; por cujo motivo.fui servid~ declarar, por oi:·
dem do meu conselho ultramarino, de 21 de março de 1747 por nullas as
licenças, que a mesma junta das missões tinha dado para os captiveiros que
em virtude della se fizeram, ordenando que. os indios se puzessem em liber-
dade, e que se recolhesse a tropa de resgate que, contra a fórma da dita lei,
andava fóra havia annos, cuja ordem fui servido confirmar por resolução de
13 de julho de 1748.
6. Para conter estes desordenad9s procedimentos, e evitar tão conside-
. ravel damno, sou servido declarar que nenhuns destes indios poss:nn ser
escravos, por nenhum principio ou pretexto, para o que hei por revogadas
todas as leis, resoluções e provisões que até agora subsistiam, e quero que -
só vall1a esta minha resolução, que fui servido tomar no decreto de 28 do
corrente, que baixou ao conselho- ultramarino, para que todos os moradores
do Estado cuidem em fabricar as suas terras, como se usa no Brazil, ou
pelo serviço dos mesmos indios, pagando a estes os seus jornaes e tratando-
os com humanidade, sem ser, como até agora se praticou, com injusto, vio-
lento e barbara rigor.
7.· Para que os moradores daquelle Estado observem inteira e religiosa-
mente esta minha resolução, os persuadireis a que se sirvam de escravos ne-
,
gros, ·e que, servindo-se de indios, os tratem com caridade, e de fórma que
não experimentem os effeitos da escravidão, mas sim que convenham com
elles nos preços de seus jornaes; e podereis facilital-os a este modo de culti-
var as terras, na occasião presente, em que a epidemia, que matou tantos
indios os annos passados, dá occasião a mudarem de methodo, e facilitar-se
a pratica do que acima vos aponto, com a qual os indios possam gosar da
sua liberdade, nos poucos que restam daquelle contagio; e usareis de todo o
modo e prudencia por vos oppórdes ás difficuldades que muito póde haver,
e a fórma em que se devem vencer as muitas contradições, que olhareis em
um estabelecimento tantas vezes contestado em aquelle paiz, e que se enca-
minha a tirar um vicio, de muitos annos dominante nÓ mesmo Estado.
8. Para o estabelecimento acima referido cuidareis muito em examinar
as aldeias livres que hoje ha; e o numero dos índios que dellas se podem
tirar para o serviço publico, sem prejuizo ou detrimento ·do commodo parti-
cular das mesmas aldeias; de quantos mais indios se poderá necessitar, e
como se poderão descer, e attrahir voluntariamente pelo cuidado dos missio-
narios, que os exhortarão a virem cultivar as terras, propondo-lhes para esse
fim conveniencias, nos jornaes e commodidades que hão de perceber no
dito exercido, promettendo-lhes ao mesmo tempo o uso da sua liberdade e
conveniencia3, com uma fé inalteravel, que vós fareis executar e cumprir, de
sorte .que a experiencia confirme a estes indios em tudo e por tudo o que
com elles se ajustar. ·
9. Para se poderem aldear alguns indios· nas ald!?ias já estabelecidas, ou
nas que de novo se estabelecerem, fareis com que os indios, que de novo
forem para as sobreditas aldeias a estabelecer-se, achem nellas tudo o de que

.
se necessitar parà o seu estabele~imento, mandando-se-lhes prevenir até os
mesmos mantimentos, que forem mais naturaes e mais convenientes á sua
saude; porque por este modo se conservarão melhor, e assim se lhes dará
'

•J

350 OS JESUlTAS NYJ GRÃO-PARÁ

logo um testemunho prompto do cuidado e benevolencia· que nunca expe-


rimentaram.
10. Para melhor estabelecimento dos salarios, que devem vencer estes
indios, e dos effeitos da s~a liberdade, ouvireis as camaras respectivas e a
junta das missões, para que, com os arbitrios de uns e outros, façaes uma
taxa dos salarios, que se hão de pagar aos mesmos indios, a·qual regulareis, .
não pela que agora existe, nem pela que ao futuro se poderá fezer, quando
Ós povos estiverem em maior abundancia, mas sómente attendendo á pobrezà
e miseria dos moradores, para que os indios tenham uma justa compensação
do seu trabalho; e, se fôr differente o premio segundo o seu merecimento,
pode ser este o estimulo para se vencer a natural frouxidão dos mesmos
indios.
11. Para a introducção dos escravos negros, em execução da resolução
de 27 de maio de 1750, é preciso que informeis, declarando o numero dos
negros que podem ser necessarios; quantos se podem mandar cada anno;
que possibilidade teem os moradores para os satisfazerem; e sobre esta mate-
ria ouvireis os· principaes moradores e pessoas mais intelligentes e interessa-
das nesta negociação, sobre os meios por que com menos vexação e descom-
modo se póde fazer a introducção de escravos negros, e a forma do paga-
mento destes e~cravos; e com toda a distincção me informareis sobre esta
materia. ,
12. Com os novos povoadores, que mando desta cidade e das Ilhas para·
o Pará, será muito conveniente e util que, quando os estabelecerdes, cuideis
muito que elles sigam a sua condição, acostumando-os ao trabalho e cultura
das terras, na fórma que praticavam nas Ilhas; porque, não sendo differente
genero de trabalho, e indo costumados a elle, ' não ha motivo para que não
cultivem pelas suas mãos as terras que. se lhes repartirem, 'evitaiido-se
1
assim
uma ociosidade muito. prejudicial; e da minha parte declareis aos ditos po-
voadores, que cultivarém as suas terras por suas mãos, que este exercido nas
suas proprias lavouras os não inhabilitará para aquellas honras a que, pelo
costume do paiz, podessem aspirar, antes para este mesmo effeito poderão
ter a preferencia que merecem, pelo serviço- que me tiverem feito e ao pu-
blico, na referida cultura das suas terras.
13. Se encontrardes, nos regulares e pessoas ecclesiasticas, alguma diffi-
culdade sobre a mal entendida escravidão, que elles praticarem com os indios,
como tambem no estabelecimento destes a jornaes, para a cultura das suas
ter~as, por não encontrarem neste novo methodo tantas utilidades como no
que até agora praticaram, os persuadireis da minha parte a qué sejam os
primeiros nesta execução das minhas reaes ordens, porque os seus estabeleci-
mento~, de todas ou da maior ·parte das fazendas que possuem, é contra a
fórma da disposição da lei do reino, e poderei dispôr das mesmas terras em
execução da dita lei, quando entenda que a frouxidão e tolerancia, que tem
havido ne~ta materia, até serve de ~mbaraço ao principal objecto, para que
se mandaram a esse Estado as pessoas ecclesiasticas; e sobre o assumpto
conteúdo neste paragrapho me informareis exactamente da sua execução com
toda a especialidade, para cujo effdto vos ordeno que vades, e que mandeis
onde não poderdes ir, visitar todas as aldeias, sem embargo de qualquer privi-
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352 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

voura das terras, e algumas sementes dos fructos, que mais naturalmente se
poderem produzir nellas.
19.' Recommendo-vos muito a extensão da cultura e povoação de todo
esse governo, conforme ~ opportunidade e occasiões que tiverdes para esse
effeitô, porém mais particularmente v9s ·encarrego de povoardes o districto
do rio Mearim, que fui servido mandar aldear por resolução de 7 de fevereiro
do anno passado, e tambem especialmente as missões do ..Cabo do Norte.,
onde cuidareis em estabelecer não só povoações mas tambem logo alguma
defensa, para fazer a barreira desse Estado por essa parte, evitando por esta
fórma as desordens e conquistas que por esta parte podem fazer os francezes
e hollandezes, para cujo fim mandareis missionarias, executando-se sem de-
mora nem admittir excusa a resolução que -fui servido tomar a estê respeito
em 23 de jull10 de 1748. . '
20•. Por carta assignada pel* real mão -Oo Senhor Rei Dom Pedro, meu
avô, em 19 de março de 1693, sé dividiram os districtos das miss,Pes entre
as communidades estabelecidas nesse Estado, ficando as missões da parte
do sul do rio das Amazonas aos padres eia Companhia, e as do Cabo do
Norte aos padres de Santo Antonio, sem limitação para o interior dos ser-
tões, mas de então para cá se descobriram novas terras, e todos os dias se
vão abrindo e conhecendo outras, que todas estão sem missionarias, nem .se
saber a quem pertencem, pelo que se faz precisa uma nova divisão, para cujo
effeito fareis as averiguações e tomareis as noticias necessarias, para me in-
formardes· do que será mais justo, para eu poder tomar resolução sobre esta
materia tão importac.te.
21. Por me constar que o vosso antecessor não executou a resolução de
23 de julho de 1748, acima referida, em que fui servido çirdenl!r que os pa-
dres da Companhia estabelecessem aldeias no rio das Amàzonas, seus colla-
teraes, e nos confins e limites dos meus domínios, para augmento da chris-
tandade nos indios, como tambem para a conservação dos domínios, e ter eu
agora noticia de que nos referidos sitias havia alguns missionarlos reÚgio-
sos do Carmo calçados, em cuja contemplação se' não executou a dita reso-
lução: sou servido ordenar-vos que em virtude della chameis ao vice-pro-
vincial da Companhia, e lhe encarregueis que logo e sem demora se estabe-
leça uma aldeia de índios no rio Solimões, que ainda que é o mesmo das
Amazonas, tem aquelle nome desde o rio Negro, até o rio Napo; na mar-
gem ·do sul, entre a bôcca oriental do rio Javary, e uma aldei~ que adminis-
tram os religiosos do Carmo, com a invocação de S. Pedro, como tambem
estabelecerá outra aldeia na bôcca mais occidental do rio ]apurá, jÚnto ás
primeiras cachoeiras do dito rio, mandando os missi<?narios que lhe parece-
rem mais aptos para este ministerio, os quaes estabelecerão as ditas aldeias,
onde entenderem serem mais uteis para a conservação dos índios, como
tambem para conservação dos meus .domínios por aquella parte do sertão,
ficando assim satisfeita por ora a divisão feita no anno de 1693, e a resolu-
ção de 1748. • •
22. Nas aldeias do Cabo do Norte, que nesta instrucção vos encom-
mendo muito .cuideis iogo em estabelecer, e as mais, que se fizarem nos li-
-mites desse Estado, preferireis s~mp:e os padres da .Companhia, entregando-
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.....

APPENDICE 353

lhes os novos estabelecimentos, não· sendo em terras que expressamente es-


tejam dadas a outras communidades, por me constar que os ditos padres da
· Companhia são os que tratam os iridios com mais caridade, e os que melhor
sabem formar e conservar as aldeias, e cuidareis, no principib destes estabele-
cimentos, em evitar quanto vos fôr possível o poder temporal dos missiona-
rios' sobre os mesmos índios; restringindo-o quanto párecer conveniente.
. 23. Para que os missionariós se não descuidem das suas obrigações, e
se siga o fim pretendido, tereis cuidado de vos iqformar e examinar se se
formam as aldeias, com aquelle cuidado do seu augmento, que os missiona-
rios 'd evem ter, como tambem em polirem, ensinarem e doutrinarem os in.:.
dios, e. em que aldeias se aproveitam mais a· publica _u tilidade e vigilancia
dos mesmos missionarios; e ·tambem cuidareis quaes são as nações dos
mesmos índios mais doceis e capazes de receberem o ensino, a sua inclina-
ção, o genio dominante de cada uma das ditas nações, para de tudo me in-
formardes, e á proporção do progresso, que fiz~rem os missionarios, agrade-
cer-lhes o seu trabalho, ou advertil-os dos seus descuidos, e tambem poder
dar algum premio proporcionado aos índios que mais se distinguirem, para
lhes servir de estimulo a todos a it1inha real ,cleme1;1cia e attenção, que com
os benemeritos mandar praticar.
24. Tendo representado o padre Gabriel Malagrida, da Companhia de
Jesus, o quanto seria conveniente que no Brazil houvesse recolhimentos e
seminarios para instrucção da mocidade: el-rei meu senhor e pae foi servi-
do deferir, por decreto de 23 de julho do anno passado, cuja copia se vos
remette, e havendo duvida no Conselho Ultramarino, sobre a sua execução,
por se encontrar com a resolução que se tinha tomado em maio do mesmo
anno, me representou o mesmo.Conselho, em coflsulta de 3 de novembro do
anno passado, na qual fui servido resolver em 18 de janeiro deste presente
anno de 1751, que se cumprisse o decreto com as declarações que baixaram
assignadas pelo secretario de estado Diogo de Mendonça Côrte Real, cuja
copia se vos remette, e de tudo fareis um prudente uso, pelo que respeita a
esse Estado, não consentindo que o zelo apostolico deste missionario exceda
as faculdades dos estabelecimentos dos referidos recolhimentos e seminarios,'
havendo os meios convenientes, e necessarios para os seus estabelecimentos;
porém dareis toda ajuda e favor para que se criem e aperfeiçôem os semina-
rios nas duas cidades episcopaes, e ainda- nas mais povoações das capitanias
desse Estado, em que houver quem os queira fundar e dotar; e vos advirto
que aos seminarios das duas cidades fui servido fazer mercê de lhes dar du-
zentos mil réis em cada um anno, depois de éstarem estabelecidos, cuja' con-
grua deve ir na. folha ecclesiastica dás provedorias da fazenda respectivas; -
porém, aos seminarios, que se estabelecerem com as' clausulas acima referidas,
se lhes dará a mesma congrua, com a differença que será imposta nos sobe-
jos do pãgamento da folha de cada uma das' provedorias respectivas, depois
de·satisfeitas todas as obrigações da .mesma folha, e vos advirto que, como
as _ditas duas provedorias não tem rendimentos sufficie_ntes actualmente, em
que possam ter sobejos, não consintaes o estabelecimento· destes seminarios
fóra das ' duas cidades, sem que tenham renda bastante, e proporcionada aos
seminaristas; que nelles se houverem de recolher,· para o seu sustento, inde-
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354 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ .

pendente dos ditos duzentos ~il réis, visto o pouco rendimento que presen7
temente teem as provedorias da fazenda.
25. Quanto aos recolhimentos deveis examinar os meios e condições,
com que se erigem, e vendo vós que não são proporcionadas as rendas
para a sua firme subsistencia e decente sustentação, embaraçareis a sua fun-
dação e estabeleGimento, servindo-vos de alguns pretextos, que desculpem a
inobservancia do decreto .de 23 de julho de 1750, e resolução de 18 de .ja- .
neiro de l 75 l, até que possaes dar-me conta particulamiente pela s_ecretaria
de estado: porém advirto-vos que esta inobservancia déve ser qualificada com' ,,.
a falta de meios de subsistencia destes ·recolhimentos, porque havendo-os
podem ser de alguma utilidade.
· 26. Pelo que respeita aos conventos de freiras, de que fala o referido
.decreto, não consentireis por nenhum principio na sua fundação, sem distin-
cta e expressa licença minha; sem embargo das clausulas do mesmo decreto,
de que os g1YUernadores lhes não poriio duvida; porque nas declarações que baixa-
ram com a resolução de 18 de janeiro deste presente anno, assignadas pelo
sécretario de estado Diogo de Mendonça Côrte Real, se declara na setima -
que os governadores não ponham duvida alg!1ma ás ditas fundações, que não seja
prudente e grave, para o maior serviço de Deus e de Sua Majestade; - e como
não vos faltarão duvidas prudentes, com que possaes justamente encontrar
estas fundações, as embaraçareis para me dar conta, consultando sempre com
o bispo, de quem me enviareis o seu parecér.
27. Recommendo-vos muito que procureis attentamente os meios de
segurar o Estado, como tambem os de fazer florescer o commercio, para se
conseguir o primeiro fim, além do que· fica dito a -respeito de se aldearem os
índios, especialml!nte nos lifriites das ·capitanias, e tereis o çuidado, quanto
fôr possivel, que se povôem todas as terras possíveis, introduzindo-se novos
povoadores . .
28. Fareis um exame possível, onde poderdes chegar, e encarregareis
ao governador do Maranhão-.que, no seu districto, faça a mesma diligentja,
para examinar as fortalezas, e reparal-as quanto fôr possivel, como tambem
para o estabelecimento de outras, sendo riecessarias; dando-me conta de tudo
o que a este respeito achardes sobre esta materia, e especialmente .sobre a
fortaleza que, em .8 de março de 1749, se me propôz ser precisa na costa de
Macapá, examinando logo qual ella deve ser, de que força, e os meios que
mais facil, e promptamente se podem applicar a esta o.bra; e vos advh10 que
tanto esta fortaleza como todas as demais, que se fizerem para defensa e se-
gurança desse Estado, se hão de fazer de fórma e modo que não pareça re-
ceio dos nossos confinantes, havendo ao mesmo tempo a cautela precisa,,
para qui: elles nos não surprehendam, para que pelos m~ios de facto não re-
novem as pretensões antigas, e não queiram impossibilitar-nos, para lhes dis-
putarmos em todo o tempo por' força.
29. Como considero que as tropas, para a defesa desse Estado, se acham
totalmente destituídas. da disciplina militar, e fiando do vosso zelo que as po-
nhaes em estado de me servirem, vos encarrego que me informeis do numero_
de tropas que poderão ser necessarias para o serviço desse Estado, á propor-
ção do paiz, da fórma que se devem fardar, do modo porqu,e se lhes deve


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APPENDICE 355

fazer prompto o pagamento, sem prejuizo das outras despesas do Estado, da


·necessidade que ba de armamentos, e ultimamente dos officiaes de que ne-
cessjtam estas mesmas tropas para o seu governo e disciplina, para eu vos
· poder dar as providencias necessarias sobre estas materias.
30. Reconfmendo':..vos muito que por ora probibaes absolutamente a
communicaÇão do caminho desse ·Estado para as minas, por convir assim ao
meu real serviço, no que teréís toda a vigilancia, e não menos em que os
vizinhos desse governo não offendam os dos outros dominios da America
portugueza, nem prejudiquem a fazenda real com o contrabando e int~oducçã~
dos generos da Europa, o que executareis até sobre esta materia se vos or-
denar o contrario. ·
3i. Para se poder adiantar o commercio desse .Estado, examinareis os
generos que produzem todas essas capitanias, capazes ·para ·servirem ao mes-
mo commercio, e de quaes é mais facil, mais barata e mais fertil a sua pro-
ducção, e, na informação que dareis sobre esta materia, imporeis o vosso.
parecer, ouviJ!dO as pessoas mais peritas no commercio e cultura dos ditos.
generos, para se facilitar e favorecer o augmento e a éultura delles.
32. Tereis grande cuidado de animar -Õs senhores das fazendas, instando
com elles a que cuiaem na cultura e perfeição dellas, para que ·s e experimente
bondade e abundancia dos generos, que melhor se produzem,--prometten~o­
lh~s, aos que se distinguirem nesta parte, a i;ninha real protecção. Ouvireis
corri benevolencia e agrado todos .os requerimentos e propostas, que vos fi-
zerem, para o augmento e estabelecimento das suas fabricas e lavouras, pro-.
mettendo-lhes pôr tudo na minha real presença, como com efreito o executa-
reis, p~la Secretaria de .Estâd.o e pelo Conselho Ultramarino.
3r: ·Por não convir ao meu real serviço, nem ao augm~nto do commer-
cio desse Estado, que nelle se abram minas de qualquer qualidade ou metaes,
vos ordeno que por nenhum principio permittaes que se abram minas em
todo o districto desse governo, e que tenhaes todo o cuidado e vigilancia na
execução desta ordem, a qual vos hei por muito recommendada, para evitar
que os povoadores se distraiam, com este pretexto, da cultura da;; terras, e
os persuadireis que este é o mais seguro meio da sua subsistencia, pois que '
com o commercio dos seus generos se faz infallivel a mesma subsistencia.
34. ' O anno passado mandei introduzir nesse Estado moeda provincial,
em utilidade dos moradores delle, e por me ter chegado á minha real noti-
cia que aquelhi: utilidade, e da minha real fuzenda, não foram contempladas
na distribuição da referida moeda, por cujo motivo vos ordeno me informeis
pela Secretaria de Estado da forma com que se executou aquella distribuição,
e achando vós que houve alguma vexação, e podendo ainda temedial-a, o
fureis, dando-me de tudo conta, e especificando os nomes das pessoas que
nesta materia .tiveram alguma culpa, e da qualidade e prova que della ·ha. .
3 5. Cabendo !1º possivel o tempo em que se demorar a frota, _vos in-
formareis com pessoas, que vos pareçam poder dar-vos noticias verdadeiras,
dos discursos que se fazem sobre o tratado dos limites, e a execução da divi-
são dos dominios, e com especialidade vereis se podeis alcançar alguma noti-
cia dos administradores das aldeias castelhanas, e da mesma fórma a respeito
da abertura do caminho desse Estado para o Mato Grosso; e não só vos
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356 OS JESUITAS NO GRÃO-PARÁ

instruireis daquellas noticias, que vos parecerem fidedignas, mas .tamb11m me


dareis conta de todas as noticias vagas, sobre estas materias, nas quaes ouvi-
reis sempre o bispo do Pará, a quem insinuareis que, por ordem minha espe-
cial, fiado no seu zelo, ordeno diga sem politica tudo o que souber sobre
estes dous assumptos. '
36. Com o vosso antecessor vos instruireis do paiz e de todas as partes
de que se compõe esse governo, e fareis muito para que a sua instrucção
seja por escripto, da qual remettereis copia 'pela Secretaria de Estado ;-e ainda
de algumas pessoas particulares, sobre a abertura do caminho desse Estado,
para o Mato Grosso, e lhes direis que tendes ordem para executar as mes-
mas ordens, que se acham em seu poder sobre esta materia.
37. Quando chegardes á cidade de São Luiz do Maranhão, cuidareis
muito em persuadir, da ininha parte, a todos os habitarites della, que ainda
que a necessidade dos negocios e a utilidade do commercio pedem que a
vossa .assistencia seja mais na cidade do Pará, essa assistencia em nada dimi-
nue os seus privilegios e preeminencias, e, por mostrar a minha real attenção
com a cidade do Maranhão, fui servido nomear governador para ella a Luiz
de Vasconcellos Lobo, por fiar da sua capacidade que na~ vossas ausencias
os governe com toda a attenção que merecem esses meus vassallos.
38. Recommendo-vos muito que cuideis em procurar os meios possiveis
para haver communicação da cidade do Maranhão com a terra firme.
39. Esta instrucçâo guardareis secretamente, e só della communicareis
ao governador do Maranhão os .paragraphos que vos parecerem ser conve-
nientes para o seu governo, na observancia das minhas reaes ordens. Escripta
em Lisboa a 31 de maio de 1751.-Rei.-~iogo de Mendonça _Cdrte Real 1,

(Ms. da Bibliotheca Nacional de Lisbo• - Co11ecção Pombalina).

t Estas instrucções são em dois exemplares. Os numeros 13 e 14, 24 a 26 e 39 faltam cm


um delles, evidentemente por ser esse o das Instruc;õu publicas, de que outras pessoas, além do
governador, podiam tomar conhecimento. -



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0 P1~1rb. ®' Arr..ru.1.ô . 17

MISSÕES DA COMPANHIA DJ~ JESUS NO ÜRÃO-PARÁ E ·MARANHÃO


C üPLL\.. RED U ZIDA DO J\!lAPP '\.E XI S TENTE NA BIBLIO'fl-IECA EBORE NSE


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INDICE

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INDICE

PAG.
1755 Expulsão âe varios padres • 289
As preoccupaçõ~s de Pombal ·. 290
Crime do duque de .Aveiro. 291
Intervenção de Malagrida • 292
III. Destino dos religiosos desterrados. 2 93
Providenciâs no reino contra os jesuitás. 294
Consequencias do mallogrado regicidio . 295
A evolução da sociedade jesuitica termina 296
IV. Diligencias de Pombal contra a mesma . 298
A 'Deàticção chro11olcgica e outros escriptos 2 99
Peita dos cardeaes por ordens de Lisboa. 300
V. Prisão e desterro dos jesuitas 301
Sorte de Malagrida . 3º01
Sua exiStencia na prisão. 302
O supplicio. 304
VI. Sequestro dos bens da Companhia de Jesus no Pará. 305
A noticia do regicidio chega á colonia • ·• 3o6
Partem os ultimos missionarios para o reino 307

Epilogo

APPENDlCE

Nota A-Sobre a situação geographica do Amazonas 32}


Nota B-Sobre os capitães-nióres. 325
Nota C-Cartas jesuiticas . 326
Nota D-Carta de Francisco Xavier de ~endonça ao ministro da ma-
rinha . 338
Nota E-Relatorio do bacharel João Antonio da Cruz Diniz Pinheiro 343
Nota F __:Instrucções para francisco Xavier de Mendonça; governa-
dor do Grão-Pará · • •348

COLLOCAÇÃO DAS ESTAMPAS

Vista da cidade de Belem do Grão-Pará em 1753-No ante-rosto.


Mappa da vice-provinda da Sociedade de Jesus no Grão-Pará-N.o fim.
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