UD II - Saúde e Beleza

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Disciplina

Educação Física, Cultura e Sociedade

Profª. Fabiane Frota da Rocha Morgado


e-mail: [email protected]
Cap Guilherme Köpp Toescher
e-mail: [email protected]
Unidade didática II

Saúde e beleza

Sumário
1. Apresentação da Unidade 3
2. Saúde 4
3. Beleza 17
4. Práticas corporais associadas à saúde e à beleza 24
5. E a conversa continua... 26
6. Referências 28
II – Saúde e Beleza

1. Apresentação da unidade

Caro aluno,
Nesta segunda unidade didática, enfocaremos, principalmente, o conceito de
saúde e beleza, bem como procuraremos entender as inter-relações destes
constructos com práticas corporais. Para esta finalidade, apresentamos os
seguintes conteúdos, objetivos e métodos.

Conteúdos
a. Conceitos: saúde e beleza;
b. Práticas corporais associadas à saúde e beleza.

Objetivos
a) Conceituar saúde;
b) Conceituar beleza;
c) Explicar as práticas corporais associadas à saúde;
d) Explicar as práticas corporais associadas à saúde e interações com o meio
ambiente;
e) Explicar as práticas corporais associadas à beleza;
f) Debater as práticas corporais associadas à saúde e as associadas à beleza
identificando possível dicotomia.

Métodos

a) Vídeo-aula;
b) Leitura crítica de textos selecionados;
c) Vídeo sobre práticas corporais no campo da saúde.

Finalizaremos a unidade com uma breve avaliação sobre os principais


conteúdos abordados.

Assim, iniciaremos nossa caminhada por essa área do conhecimento que nos
instiga a refletir sobre temáticas amplamente complexas e relacionadas, tais
como saúde, beleza e práticas corporais.

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II – Saúde e Beleza

Prezado aluno,

Refletir sobre saúde, beleza e suas inter-relações com práticas corporais é uma
atividade de fundamental importância no âmbito da Educação Física, uma vez
que contribui para ampliar nosso conhecimento sobre as perspectivas,
motivações e concepções do sujeito moderno em relação a tais práticas,
fornecendo-nos elementos teóricos consistentes para intervenções assertivas. É
neste sentido que o instigo aos seguintes questionamentos: o que você entende
por saúde e beleza? O que entende por práticas corporais? Quais relações são
possíveis de serem estabelecidas entre saúde, beleza e práticas corporais? Esteja
convidado para construir algumas possibilidades de respostas para tais
questionamentos.

2. Saúde

Pensar sobre o conceito de saúde exige que, necessariamente, estejamos


atentos a seu caráter multifatorial. De acordo com a Organização Mundial de
Saúde, este conceito abrange um completo bem-estar físico, mental e social, de
modo a ser considerado em um sentido ampliado, no qual, além do tradicional
e legitimado aspecto biomédico, o contexto socioeconômico, ambiental,
histórico e cultural deve ser considerado.
A característica multifatorial da saúde é particularmente importante no
âmbito da Educação Física, uma vez que grande parte das abordagens
investigativas presentes nesta área tem privilegiado consideravelmente
enfoques que exploram mais os determinantes biológicos, em detrimento dos
elementos socioculturais e econômicos intervenientes no processo saúde-
doença. Ou seja, a dimensão exultada nessa tendência hegemônica é a da
“atividade física associada à saúde”, compreensão esta prevalente em boa parte
das publicações acadêmicas da área, buscando advogar a existência de uma
relação de “causa e efeito” quase exclusiva entre “exercício” e “saúde”
(BAGRICHEVSKY, ESTEVÃO, 2005).
Em uma perspectiva biomédica, por exemplo, é forte a corrente teórica
que aponta a ideia de que a prática regular de alguma atividade física previne
doenças crônico-degenerativas e cardiovasculares, contribuindo para a redução
de mortalidade causada pela a inatividade física. Um estilo de vida fisicamente
ativo tem sido relacionado também à melhora das capacidades físicas, tais como
força, resistência muscular, condicionamento cardiorrespiratório, flexibilidade,
composição corporal, que diretamente contribuem para a proteção da saúde.
Somado a essas questões, existe a crença de que os principais motivadores de

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II – Saúde e Beleza

diferentes indivíduos para ingresso em programas de atividades físicas têm


sido relacionados a aconselhamento médico, prevenção de problemas de saúde
e melhora do condicionamento físico, corroborando para a presente relação
ideológica e causal entre atividades físicas e saúde.
Existe também uma forte corrente que aponta para relações causais
estabelecidas entre sedentarismo e prevalência de diferentes doenças tais como
doença arterial coronariana, hipertensão, acidente vascular encefálico, diabetes,
osteoporose, entre outras. Busca-se destacar a suposta propriedade da
inatividade física como desencadeadora de diferentes doenças, tendo como
pano de fundo um forte apelo persuasivo que dissemina a importância de
manter-se fisicamente ativo. Assim, a relação causal estabelecida entre
atividades físicas e saúde torna-se indiscutível.
Tal fato traz implicações delicadas para o campo do conhecimento e de
intervenção, uma vez que essa interpretação adota um olhar parcial/distorcido
da realidade, que não leva em conta outros fatores contextuais relevantes aos
quais as pessoas estão submetidas e que não podem ser dissociados de seus
cotidianos. Distribuição de renda populacional, nível de (des)emprego,
condições sanitárias básicas, condições de moradia e alimentação, grau de
escolaridade, (in)disponibilidade de tempo livre, acesso a serviços de saúde e
educação, entre outros, também são aspectos que amoldam as condições da
vida humana e, portanto, precisam ser igualmente considerados
(BAGRICHEVSKY, ESTEVÃO, 2005).
Assim, embora as atividades físicas sejam tomadas tanto por
especialistas da área, quanto por empresários do fitness e mídia de massa como
um pacote repleto de promessas para felicidade, que garante um passaporte
para saúde e longevidade, sua relação direta com a saúde é ingênua e abre
margens para interpretações equivocadas.
De fato, a prática de atividades físicas pode fazer parte de um conjunto
de fatores que talvez contribua para a promoção de saúde, entretanto, é
inconsistente o discurso de que esta prática promove diretamente saúde e
previne doenças, uma vez que ela, por si só, não poderia ser considerada o
aspecto central deste desfecho. Bagrichevsky e Estevão (2005) explicam que, se
por um lado, é parcialmente aceitável a generalização de que há benefícios
orgânicos decorrentes de algumas modalidades de exercício, por outro, esta
argumentação torna-se discutível, na medida em que pretende sustentar uma
política conservadora, uma dimensão moral que responsabiliza cada pessoa por
seu próprio adoecimento e desconsidera a dinâmica sistêmica e multifária que
influencia os estados de enfermidade humana.
É assim que tanto o conceito de saúde em uma perspectiva desvinculada
de aspectos sociais, econômicos, históricos e culturais, quanto sua relação direta

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II – Saúde e Beleza

e simplista com atividade física, devem ser reconsiderados. Especialmente,


porque estas questões se encontram ancoradas em normas moralizantes de
saúde historicamente construídas e que ainda se encontram atualizadas na
sociedade contemporânea.
Os movimentos Eugênico e sanitarista - corporificados no Brasil no início
do século XX - podem ser considerados os precursores ideológicos da apologia
ao “estilo de vida ativo”, tão presente no atual imaginário social e tão
doutrinador de corpos em busca de uma silhueta mais magra, mais jovem, mais
esbelta, mais musculosa, portanto, mais saudável. O texto intitulado
“Descontinuidade e continuidades do movimento higienista no Brasil do
século XX” de Gois Junior e Lovisolo (2003), contribuirá para melhor
entendimento desta questão. Sinta-se convidado a lê-lo. Boa leitura!

o fim do século XIX e início do século XX chegava ao Brasil, mediante

N reapropriações e reinterpretações, um novo ideal cujo eixo era a


preocupação com a saúde da população, coletiva e individual. Suas
propostas residiam na defesa da saúde e educação pública e no ensino
de novos hábitos higiênicos. Convencionou-se chamá-lo de Movimento
Higienista (Soares, 2001) ou Movimento Sanitarista (Hochman, 1998). Esse
movimento tem uma ideia central que é a de valorizar a população como um
bem, como capital, como recurso principal da nação (Rabinbach, 1992). A ideia
de que um povo educado e com saúde é a principal riqueza da nação chega com
força a nossos dias e ainda aglomera em torno de si forças que se sentem
progressistas.
Defenderemos neste artigo o argumento principal de que os princípios e
objetivos do movimento, embora com diversos outros nomes, continuaram em
voga até o fim do século XX, contrariando a tese habitual de que teriam se
encerrado na década de 1930 ou 1940. Tentaremos demonstrar a hipótese de
que o Movimento Higienista do final do século XIX e início do século XX no
Brasil é o mesmo “movimento da saúde” da atualidade, com algumas
adaptações dadas por mudanças nas condições que, entre outras, provocaram
alteração dos objetivos. Assim, por exemplo, desenvolver o hábito de atividade
física sistemática continua sendo um objetivo do movimento, hoje mais
enfatizado que no começo e com novas relações, porque as mudanças
demográficas, alimentares e de estilo de vida tornaram significativas as doenças
cardiovasculares. Em decorrência das mudanças na forma de agir da sociedade,
a vida de um movimento também depende de sua capacidade de
transformação, de adequação. Contudo, o movimento permanece quando seus
princípios e valores orientadores continuam presentes sem modificações

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II – Saúde e Beleza

significativas. Talvez o Movimento Higienista tenha passado por apropriações e


ressignificações, mas não se esgotou nos anos de 1930 ou 1940, particularmente
no caso da realidade brasileira, porque as condições econômicas e sociais e os
hábitos da população ainda incidem fortemente sobre sua saúde.
A intenção de acompanhar as descontinuidades e continuidades pode
dificultar o trabalho historiográfico, mas não impedi-lo. Não partilhamos da
tese de que retratar pequenos recortes temporais implique garantia de
qualidade nas interpretações de dados dos trabalhos historiográficos. Muitos
historiadores, inclusive os da Escola dos Annales, utilizaram-se de trabalhos
panorâmicos e de síntese, como por exemplo, Phillipe Ariès, na história da
infância e Roger Chatier com a história do livro. Sob a perspectiva da prática da
pesquisa, as interpretações demandam um processo em espiral e autocorretivo
de relacionamento entre a parte e o todo, entre acontecimentos ou eventos, e o
estabelecimento de tendências.
Alguns historiadores têm confirmado a posição de que uma metodologia
ortodoxa em história não pode substituir outra. Ou seja, de nada adianta
substituir a história de acontecimentos pela história de longa duração, a política
pela social, a macro pela micro. Elas devem conviver. De acordo com Carlo
Ginzburg: “A ideia de se opor a chamada micro história à macro história não
tem sentido, assim como também é absurda a ideia de se opor a história social à
história política” (Ginzburg apud Pallares-Burke, 2000, p. 288). De forma
semelhante, Georges Duby, quando tenta justificar a história global como
tradição da Escola dos Annales, substitui o falso debate entre os defensores do
acontecimento, do evento (criticados pelos estruturalistas, principalmente, por
Lévi-Strauss) e os da longa duração (como Braudel, defensores de uma visão
estruturalista) pela vontade de combinar esses dois níveis de abordagens: “Ele
não renuncia em momento algum à ambição da primeira geração dos Annales,
de construir uma história global” (Dosse, 2001, p. 102). Tal ambição, contudo,
não elimina nem desmerece a história densa, pontual, intensiva na descrição do
micro e do local. Assim, não vemos como empecilho nadar contra a maré e a
unanimidade da “História de Migalhas”, como chama François Dosse, e buscar
uma história-síntese sobre um novo objeto. De modo algum negamos a
influência da nova história neste trabalho, sobretudo, na luta da assunção de
novos objetos, como a morte, o corpo, a sexualidade, a história das mulheres. E,
por que não, da saúde?

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II – Saúde e Beleza

AS DESCONTINUIDADES DO MOVIMENTO HIGIENISTA

Alguns autores diferenciam o Movimento Higienista da primeira metade


do século XX de uma segunda caracterização, mais contemporânea, chamada
nos Estados Unidos de Health Movement (Goldstein, 1992). Os dois momentos
seriam fundamentais para o entendimento das mentalidades dos intelectuais da
saúde e de suas intervenções políticas, sociais e culturais.
Essas diferenciações ou momentos são avaliadas de forma contraposta.
Há autores que qualificam como involução a suposta nova etapa do
movimento, outros defendem o valor de sua evolução como necessária, dadas
as mudanças nas condições e a geração de conhecimentos. Haveria involução
quando a preocupação central do Movimento Higienista abandona seu
princípio de ação sobre o coletivo (Pagni, 1997) e sua preocupação central passa
a ser o “individual” e sua base de conhecimento o biológico. Nas últimas
décadas do século XX, o movimento se caracterizaria por um crescente nível de
individualização da orientação da ação.
Pagni (1997) identifica no Movimento Higienista da primeira metade do
século XX um caráter mais coletivo, pois a prescrição dos hábitos higiênicos
fazia parte de um projeto coletivo com finalidades educativas visando uma
formação moral, por mais questionáveis que fossem aos olhos de hoje, os
hábitos teriam um fim em si mesmo. Nos seus escritos:

A formação moral e do caráter foram deixadas de lado em sua prática, restando apenas a
relação do indivíduo com seu próprio corpo como um fim em si mesmo. Nessa relação, os
indivíduos buscam desesperadamente encontrar no próprio corpo sua identidade pessoal,
destituída do mundo do trabalho e das responsabilidades sociais, deslocando para sua vida
privada toda a satisfação não mais desfrutada no mundo público (Pagni, 1997, p. 81).

Pagni considera a prescrição dos exercícios físicos e a inculcação dos


hábitos higiênicos no início do século XX como um movimento que tinha um
projeto coletivo de democratização da educação, de preocupação com a
formação moral da população e a formação da identidade nacional brasileira,
como mostra nos escritos de Fernando de Azevedo (Pagni, 1994; 1997).
Já o Movimento de Saúde estaria marcado por uma orientação
individualista e não teria preocupação social ou coletiva. O personal training
seria um de seus símbolos na qualidade de expressão do individualismo, da
preocupação com o próprio corpo e do acesso a quem pode pagar pela
prestação do serviço. Concordamos com a apreciação do crescente caráter
individualista do Movimento de Saúde, patente no caso das orientações
médicas que apelam para a consciência individual de controlar os fatores de
risco. No entanto, outras tendências e outras teses também coexistem dentro do

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II – Saúde e Beleza

próprio Movimento de Saúde, um exemplo seria o Movimento Sanitário, de


grande repercussão na década de 1980. Os higienistas desse movimento tinham
– e ainda têm – um discurso voltado para as condições sociais ou coletivas da
saúde e denunciaram o aspecto individualista do pensamento e intervenção do
Movimento de Saúde, ou melhor, criticavam outros higienistas que restringiam
saúde às questões puramente físicas e biológicas da unidade individual, que
apenas alude os princípios de uma parte ou tendência do Movimento de Saúde.
É certo que a tendência individualista tem maior apoio dos meios de
comunicação, que por sua vez comercializam as ações de saúde vinculadas ao
mundo dos negócios (venda de equipamentos, vestimentas, produtos
alimentares, entre outros). A intervenção sobre as condições sociais dificilmente
pode ser transformada em oportunidades de lucro para as empresas e, portanto,
em anunciantes para a mídia.
Pagni demonstra em seus estudos sobre o Movimento Higienista,
centrados em Fernando de Azevedo, ator central da historiografia da educação,
suas preocupações democráticas e coletivas. Descreve seu projeto de formação
de um país moderno com uma educação democrática, enfim, de um projeto
coletivo (Pagni, 1994). No entanto, as próprias orientações de Fernando de
Azevedo e do Movimento Higienista também tinham seu nível de
individualização. Como admite o próprio autor: “juntamente com a prescrição
de hábitos e de asseio corporal, os exercícios físicos eram prescritos para os
indivíduos provenientes de famílias mais ricas e dos meios mais cultos que
tinham acesso aos serviços prestados pelos médicos” (Pagni, 1997, p. 59-60).
Mais adiante, sobre o programa de educação física, elaborado por Fernando de
Azevedo, Pagni diz que: “A ginástica contribuiria, assim, para a educação da
vontade individual, para consciência dos limites físicos e fisiológicos do
indivíduo” (1997, p. 76-77).
Podemos observar que tanto o Movimento de Saúde, como o Movimento
Higienista, migram dialeticamente de preocupações com o indivíduo/privado
para o coletivo/público. Em outros termos, a tensão entre o individual e o
coletivo é constitutiva do próprio movimento. Seus porta-vozes tanto tentam
conciliar os dois polos, quanto assumem definidamente um deles e reforçam
seus argumentos morais e científicos para orientar a intervenção com base na
escolha. Se a tensão é constitutiva do movimento e se as diferenças são produto
de conciliações ou escolhas entre seus polos, a diferenciação interna é
constitutiva do movimento e, talvez, seja condição de sua vitalidade. Portanto,
seus “momentos” podem ser mais bem entendidos como diferentes em termos
de estratégia muito mais do que como diferenças de essência ou natureza. Mais
ainda, a tensão entre o individual e o coletivo seria constitutiva, embora
paradoxal, no campo do movimento higienista. Esgotos e águas tratados e

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II – Saúde e Beleza

campanhas de vacinação são ações públicas para todos, entretanto, apenas


trazem resultados se os indivíduos as adotam como hábitos de vida.
Hoje a oposição no campo do movimento parece estar entre os que
pretendem continuar agindo sobre as condições sociais da saúde e os que
defendem uma evolução do pensamento dos intelectuais da saúde, pois a
proposta coletiva ou social teria se esgotado no tempo. Alguns higienistas
atuais, ligados a uma tendência biológica, defendem o caráter “democrático”
científico do Movimento da Saúde em detrimento ao movimento autoritário e
militarizado do início do século. Como aludem Nahas e Corbin:

Nos EUA, nestes primeiros cem anos da profissão, a prioridade parece ter evoluído
circularmente desde o “higienismo” dos últimos anos do século passado até a educação para a
“aptidão física e a saúde” deste final de século. Entretanto, a similaridade entre as duas
épocas parece ficar só na terminologia. Atualmente, existem diferentes conceitos de saúde e
aptidão física (mais centrados no indivíduo), além da fundamentação científica muito mais
evidente e de objetivos ligados a todas as fases da vida [...], mais preocupada com a
preparação do indivíduo para decisões bem-informadas sobre exercícios, esportes, bem-estar e
saúde para uma vida inteira (1992, p. 55).

Duas observações são necessárias. A primeira é que a tendência para


acentuar o conhecimento, a responsabilidade individual e a autonomia na
promoção do bem-estar e a saúde parece ser um componente das condições
americanas que se expande para outras condições. Contudo, é discutível que a
tese de Corbin e Nahas (1992) possa ser transladada para as condições do Brasil,
onde os intelectuais de orientação coletivista ainda pensam a saúde vinculada a
condições habitacionais e de serviços, à oferta pública de atendimento da saúde
e educação, ao emprego e à participação na construção da vida em comum,
entre outras demandas. A segunda observação relativizaria o caráter de
novidade dos conhecimentos que fundamentam a intervenção. Por exemplo, os
fisiologistas do exercício hoje defendem a moderação, a exemplo dos gregos
antigos (Lovisolo, 2002), mas até a década de 1970 defendiam uma performance
atlética. Será que os gregos da antiguidade tinham mais recursos científicos que
os fisiologistas da década de 1970?

CONTINUIDADES E CRUZAMENTOS NO MOVIMENTO HIGIENISTA

No campo da educação física, Carmem Lúcia Soares sugere a


possibilidade da continuidade: “e perguntamos se os apelos da mídia às
fórmulas frenéticas de cuidar do corpo, hoje, não seriam a nova roupagem de
um higienismo e eugenismo pós-moderno?” (Soares, 2001, p. 137).
Acreditamos que sua pergunta merece uma resposta afirmativa por
várias razões que, como corolário, salientam a precipitação daqueles que

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II – Saúde e Beleza

decretaram sua morte ou desaparição. Vejamos algumas dessas razões em seus


paralelismos.

Na utilização de parâmetros antropométricos

Há semelhanças metodológicas dos higienistas da saúde física com os


estudos matemáticos do século XIX, que buscavam identificar os níveis
antropométricos médios dos homens. Há, então, uma base comum nos dados
epidemiológicos
como expressão de leis da natureza.
Para Quêtelet (apud Canguilhem, 1995, p. 124): “A principal ideia [...] é
fazer prevalecer a verdade e mostrar o quanto o homem, mesmo à sua revelia,
está sujeito às leis divinas e com que regularidade as cumpre”. Quêtelet julga
que as leis biológicas, por influência divina, podem ser quantificadas em uma
média, que não é a aritmética e sim uma mensuração mais frequente. A partir
desse cálculo, determina-se o homem médio, normal, e quanto mais ele se afasta
dessa média mais caminha para a anormalidade (Canguilhem, 1995).
No fim do século XX, os higienistas da saúde física muito se utilizaram
do método estatístico de Quêtelet, mais especificamente do índice de massa
corporal (IMC), para identificar o homem médio e os seus desvios. No XXIV
Simpósio Internacional de Ciências do Esporte, dos 12 temas livres
apresentados na área de cineantropometria e composição corporal, 10 trabalhos
utilizaram-se do método de Quêtelet. Recentemente, uma dissertação de
mestrado defendeu a forte influência de Quêtelet na educação física (Salgueiro,
2002).
Supervalorização das atividades físicas na promoção da saúde

Em 1938, defendia-se, no editorial da Revista Educação Physica (n. 19,


1938, p. 9), que: “A educação physica é um meio eficaz de propagar a hygiene e
alcançar a saúde”. Na primeira metade do século XX, o objetivo era legitimar a
área na sociedade brasileira, portanto, o discurso tinha um caráter muito forte
de propaganda dos benefícios das atividades físicas, como por exemplo: “Só são
realmente fortes os países de população forte e, para que se robusteçam os naturais de
um Estado, é imprescindível a cultura física” (Revista Educação Physica, n. 30, 1939,
p. 5). Para os seus defensores, a prática de atividades físicas fortalecia o homem
e afastava a doença, sendo símbolo da saúde.
No fim do século XX, constatamos, nos editoriais da Revista Atividade
Física & Saúde, que não houve uma variação daquele discurso. Nas palavras do
diretor da revista:

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II – Saúde e Beleza

Tem sido evidenciado que as pessoas ativas demonstram menores incidências de doenças
crônico-degenerativas comparado com pessoas inativas. Se inúmeros indícios nos levam a
estabelecer uma relação de causa-efeito entre atividade física e saúde ou entre a inatividade e
as enfermidades, pode-se questionar quais são as reais dificuldades de adoção de um estilo
vida ativo? (Achour Junior, 1995, p. 4).

Ambos supervalorizam o papel da atividade física, que por sua vez


constitui-se como área de intervenção profissional, provocando um reforço
permanente dos argumentos tradicionais legitimadores da intervenção.
Segundo Lovisolo (1995), isso se explica pelo interesse desses profissionais em
valorizar sua intervenção na sociedade, processo comum à maioria das
profissões. Segundo sua perspectiva, uma profissão entra em crise quando
perde seus argumentos legitimadores e o reconhecimento social, quando deixa
de convencer. Argumentar para manter e acrescer a legitimidade e o
reconhecimento é atividade corrente das categorias profissionais. No começo do
século XX as condições colocavam o Estado como ator principal de legitimidade
e reconhecimento. Hoje, diante de novas condições, “na promoção da saúde, os
especialistas encontraram um campo que lhes permite lutar pelo prestígio na mídia e na
moda e fazer bons negócios” (Lovisolo, 1995, p. 129).
Os higienistas da saúde física continuam tratando o corpo como uma
máquina A metáfora criada no auge do higienismo no século XIX na Europa
continua no discurso de vários higienistas, como pode ser observado neste
trecho:

O corpo humano é uma máquina capaz de fazer inveja ao mais sofisticado computador. [...]
Todo esse conjunto impressionante necessita de cuidados. Isso requer dedicação,
investimento e alguns procedimentos que você precisa conhecer (Guiselini, 1996, p. 15).

Parece-nos um discurso muito próximo à descrição de Georges Vigarello


sobre a história da higiene na Revolução Industrial:

Toda a máquina exige a limpeza freqüente das suas engrenagens e a rejeição, não menos
freqüente, das escórias ou partes inutilizadas do carvão. Sendo o corpo humano uma
máquina das mais delicadas, é necessário velar pela sua limpeza e pela expulsão regular dos
seus dejetos (Vigarello, 1985, p. 165).

Temos certeza que não precisamos nos alongar muito sobre a comparação
acima, tamanha a força das fontes, que sugerem uma proximidade muito
evidente.

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II – Saúde e Beleza

Higienistas x Saúde Física

Da mesma forma, podemos observar a continuidade entre as


interpretações biológicas dos higienistas da bacteriologia com os da saúde
física, no que tange às explicações biológicas das causas das doenças. A
diferença que se coloca é que, no primeiro caso, as teorias da bacteriologia
definiam o agente biológico externo causador da doença e, no segundo, os
fatores de risco ameaçavam a saúde biológica, substituindo assim o micróbio
pelo fumo e a obesidade, por exemplo. O reducionismo biológico é
característico da separação das duas correntes pelo tempo, mas não pelos ideais.

Semelhança entre os hábitos higiênicos do início do século e os fatores de


risco

É patente o aspecto normativo na continuidade do movimento. Ambos


querem identificar a melhor forma de viver, afastando a doença. Se no início do
século XX a novidade era o banho diário, como na seguinte passagem: “O asseio
nos preserva das indisposições das doenças, ele é para o corpo o que a decência é para os
costumes. [...] O Banho saudável por excelência é o frio, de chuveiro, precedido de uma
boa ensaboagem tomada pela manhã” (Revista Educação Physica, n. 61, 1942, p. 26),
no fim do século eram divulgados os benefícios do uso do preservativo ou da
atividade física sistemática como fatores de segurança, como hábitos higiênicos.
O caráter de prescrição dos hábitos individuais, portanto, é uma constante nos
dois momentos do movimento.

Da fadiga ao estresse

Para se evitar a fadiga, o esgotamento, o cansaço e o estresse, em épocas


diferenciadas, são adotadas as mesmas receitas de recuperação: alimentação,
sono, atividade física, lazer e autocontrole. Antes, necessitávamos realizar
atividade física para resistir ao esforço físico do duro processo de trabalho;
agora, necessitamos realizar atividade física para substituir a falta de esforço
físico, o sedentarismo no processo de trabalho e na vida cotidiana. Mudam os
tempos, mas o higienismo da atividade física mantém a receita (Lovisolo, 2002).
A primeira teoria sobre estresse foi elaborada pelo fisiologista austríaco
Hans Seyle, ainda na década de 1930, porém, seu livro Stress: a tensão da vida,
publicado em 1956, tornou-se sua obra mais famosa sobre o assunto (Datti,
1997). Contudo, sua caracterização da síndrome do estresse pouco se diferencia
da fadiga do século XIX, e ambas representam discursos centrais em suas
respectivas épocas.

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II – Saúde e Beleza

A legitimidade na ciência.

Tanto os higienistas quanto os defensores da saúde física gozaram de


prestígio científico e usaram o argumento de autoridade da ciência para
alcançar a legitimidade da opinião pública. Além disso, demonstraram uma
enorme confiança em uma sociedade regida pela tutela da ciência. Nas palavras
do editor da Revista de Saúde Pública da Universidade de São Paulo:

A produção de conhecimentos científicos, como toda atividade humana, diz respeito às suas
finalidades sociais e está estreitamente vinculada à busca constante de melhores condições de
vida, procurando responder às crescentes e renovadas necessidades de bem-estar e de conforto
das populações. Os avanços alcançados pela ciência moderna vêm fornecendo ao Homem
elementos para alterar e dominar a Natureza; a sua adequada utilização vem promovendo as
alterações perseguidas em todos os campos e, especificamente, naquele da saúde podem-se
apontar as positivas contribuições que a sua aplicação provoca nos perfis epidemiológicos e
no aumento da sobrevida com qualidade, sem evidentemente esquecer os persistentes desafios
ainda presentes, no nosso meio (Goldbaum, 1999, p. 1).

Esse discurso, que apresenta um otimismo em relação às conquistas


científicas no campo da saúde, não difere do discurso do início do século XX,
em que o cientificismo era patente, era a resposta correta. Os avanços da ciência
experimental e o controle de diversas epidemias construíram uma ponte entre a
ciência e a modernidade. Longe da crise do final do século XX, a ciência gozava
de imenso prestígio, contudo, o discurso dos cientistas da saúde (os higienistas)
continuava sem variações importantes.

Incutir hábitos saudáveis: a educação para a saúde e a educação higiênica

As tendências do movimento encontram na educação uma poderosa


arma de auxílio na propagação dos ideais higienistas. Por meio de uma
educação para a saúde ou educação higiênica, objetivava-se a reformulação dos
hábitos das crianças, para posteriormente atingir os adultos, por meio de
estratégias óbvias, como por exemplo, a criança de hoje é o adulto de amanhã,
ou pela própria influência da criança na família. Vejamos o texto a seguir:

O progresso maior em materia de protecção e melhoramento da saude provém da educacão


hygienica dos indivíduos, começada o mais cedo possivel, para que desde o inicio da vida
sejam creados habitos sadios, em vez de, mais tarde, com grandes difficuldades, ser necessario
combater os máos costumes já arraigados e procurar substitui-los por normas de proceder de
accôrdo com as regras da hygiene. Assim, é nas escolas que deve ser feito o maior esforço
educativo, procurando-se que viva a criança num meio perfeitamente hygienico e cercado de
pessoas cujos habitos são os que se quer incutir como bons. E não somente se obtem, por esse

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II – Saúde e Beleza

modo, que os habitos do escolar se formem ao influxo desse meio sadio, como tambem se
consegue exercer, por intermédio da criança, accentuada influencia no lar e na família
(Fontenelle, 1940, p. 841).

Mais uma vez os paralelos se cruzam, não fossem a ortografia de época e


o uso do termo higiene, o texto de um higienista do início do século XX sobre a
educação higiênica facilmente seria confundido com uma visão atual de
educação para a saúde. Observemos as semelhanças:

A Educação Física escolar pode representar o ambiente ideal para a aprendizagem de


conceitos importantes para toda a vida. A Educação Física é o melhor meio para reunir
informações, atitudes e ações associadas com comportamentos saudáveis. A avaliação da
aptidão física, o desenvolvimento de programas para as necessidades individuais e a
discussão de conceitos básicos relacionados à saúde individual podem ser partes de um amplo
esquema educacional (Nahas; Corbin, 1992, p. 50).

A continuidade é evidente mesmo quando o tempo e a linguagem são


diferentes. Os momentos dos movimentos representam o desejo da classe
médica e dos profissionais da saúde de elaboração de um projeto de sociedade
que julgam melhor. Eles indicam a ambição de intervenção política desses
intelectuais, que constroem um modelo e tentam colocá-lo em prática. Que
anseiam conscientizar a sociedade dos benefícios de uma vida saudável,
lançando mão de diversas estratégias.

Intervencionistas sociais e higienistas sociais

Todo o movimento social gera suas contradições e não raro a


participação de atores identificados com posições ideológicas ou políticas
opostas. Não foi diferente com o Movimento Higienista. Os críticos atuais do
Movimento Higienista, e de seu momento individualista (higienistas sociais da
década de 1980), tendem a enfatizar as diferenças ideológicas ou políticas entre
os higienistas e a desconhecer o engajamento político deles no início do século,
sobretudo no Brasil, como no caso de intervencionistas sociais como Belisário
Penna e Miguel Couto e até mesmo de higienistas da bacteriologia, como Carlos
Chagas. Interessante é o Caso de Rudolf Virchow, na Alemanha, que militou em
partidos de esquerda, chegou a participar de protestos atrás de barricadas
contra o governo em 1848 e tornou-se forte opositor do Chanceler Otto Von
Bismarck, a ponto do mesmo desafiá-lo a um duelo, que nunca se realizou
(Scliar, 1996). Vejamos os escritos de Belisário Penna (1923):

O descaso pelos problemas de saúde publica manifesta-se na exiguidade das verbas


destinadas a esse fim, e até na ausencia de tal verba nos orçamentos de innumeros

15
II – Saúde e Beleza

municipios, cujas rendas são absorvidas na quasi totalidade por intendentes, secretários,
collector e fiscaes. São chefes e cabos eleitoraes das varias oligarchias que nos felicitam e que
vão levando a nação, a passos largos, para a perda da sua soberania [sic] (Penna, 1923, p.
29).
[...] não convem absolutamente aos magnatas de posse dessa rica e vasta propriedade, que os
seus súbditos ou servos se instruam e adquiram saúde, pois que seria isto o ponto final do seu
nefasto predomínio (Penna, p. 32).
Todos os problemas relativos á salubridade das regiões e á saúde dos seus habitantes
prendem-se intimamente aos de sua organização política e social (Penna, p. 68).
Comparando esse discurso com o dos higienistas sociais da década de
1980, podemos observar uma clara continuação dos ideais da Liga Pró-
Saneamento do Brasil, posterior Sociedade Brasileira de Higiene, com os ideais
do Movimento Sanitário. Por exemplo, para Gastão Campos deveria ser
organizado um novo Movimento Sanitário, que teria como objetivo criticar
radicalmente o modelo médico sanitário do fim do século XX no Brasil,
deixando claro os determinantes sociais do processo saúde-doença e buscando,
no cerne desse movimento, constituir uma sociedade justa (Campos, 1991),
atitude muito similar ao intervencionismo da Sociedade Brasileira de Higiene.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos perceber que os momentos do higienismo só podem se definir


em virtude de sua tensão constitutiva, ou seja, pelo que tinham de comum, por
um objetivo central: o estabelecimento de normas e hábitos para conservar e
aprimorar a saúde coletiva e individual. É somente nesse aspecto que podemos
encontrar certa homogeneidade. Fora isso, só podemos encontrar uma
mentalidade higienista em uma generalidade difusa e heterogênea, tanto no
âmbito político quanto no científico.
Desse modo, defendemos a tese de que o Movimento Higienista ou
Sanitarista do início do século XX no Brasil extrapola a periodização tradicional
que lhe imputa o término nos anos de 1930 ou 1940, e prossegue com suas
tradições e ideais heterogêneos até o fim do século XX e, muito possivelmente,
até hoje, no início do século XXI, não ganhando características que determinem
uma diferenciação histórica absoluta entre as duas intervenções.
Esperamos poder auxiliar e esclarecer os profissionais e intelectuais da
saúde a buscarem na história a resposta para estas perguntas: Devemos ou não
procurar uma nova mentalidade que se afaste da intervenção higienista? Em
caso positivo, essa tarefa será viável? Será que a preocupação com a realidade
brasileira aumentou ou estamos diante de argumentos de legitimação e
reconhecimento que parecem forçados a sempre declarar o “novo”? Devemos
ou não unir forças no desenho de uma intervenção que conviva com a

16
II – Saúde e Beleza

diversidade, com a própria tensão constitutiva, e construa possibilidades para


um país melhor e mais justo?

3. Beleza
O conceito de beleza abre margens para distintas classificações, que
variam amplamente de acordo com autores, épocas e culturas. De acordo com
Eco (2004), a beleza jamais foi algo de absoluto e imutável, mas assumiu
diversas faces segundo o período histórico e o país e isso não apenas no que diz
respeito à beleza física (do homem, da mulher, da paisagem), mas também no
que se refere à beleza das artes, ideias, coisas, deuses etc.
De modo geral, podemos entender que beleza – em conjunto com belo,
gracioso, bonito, sublime, maravilhoso, soberbo e outras expressões similares –
é um adjetivo de uso frequente para indicar algo que nos agrada. Nesse sentido,
aquilo que é belo é igual àquilo que é bom e, de fato, em diversas épocas
históricas, criou-se um laço estreito entre belo e bom. Nas palavras do Eco
(2004, p.8):

Se, no entanto, julgarmos com base em nossa experiência cotidiana,


tendemos a definir como bom aquilo que não somente nos agrada, mas
que também gostaríamos de ter. Infinitas são as coisas que
consideramos boas: um amor correspondido, uma honesta riqueza, um
quitute refinado, e em todos esses casos desejaríamos possuir tal bem.

Nessa perspectiva, Guzzo (2005) chama atenção para o fato de que,


principalmente na contemporaneidade, cada vez mais deseja-se um corpo belo,
perfeito e saudável. É assim que novas tecnologias (anabolizantes, esteroides,
suplementos alimentares, técnicas cirúrgicas de correção, extração de gordura,
exercícios extenuantes) têm sido utilizadas para a construção do corpo ideal.
Cada vez mais o corpo torna-se uma combinação de próteses, enxertos, metais e
outros tantos artefatos que modificam sua estrutura química, física e, sobretudo,
estética. A ciência trabalha para a construção de corpos perfeitos, alinhados,
músculo a músculo, esticados ruga a ruga e controlados quilo a quilo. De fato,
para autora, são infinitas as formas de arquitetar a beleza. Muitas delas, porém,
oferecem riscos, desde a possibilidade de não mudança até a morte (esta
questão será aprofundada na próxima unidade didática).
É assim que beleza e saúde são constructos amplamente articulados. No
texto abaixo, adaptado do artigo intitulado “Saúde e beleza do corpo feminino
– algumas representações no Brasil do Século XX”, de Andrade (2004),
veremos como o conceito de beleza e saúde têm sido relacionados, na medida
em que ser belo é comumente reduzido a ser saudável, enquanto a saúde é

17
II – Saúde e Beleza

habitualmente reduzida a ser esbelto e estar em forma, obedecendo a uma


rotina de manutenção do corpo, como não fumar, não beber, praticar esportes.

A beleza tratada como assunto de saúde

O
corpo está sempre sendo redescoberto e reinventado, e todas as
marcas que se inscrevem ou se constroem em torno dele – nas artes, na
medicina, na mídia etc. – são sempre provisórias, características de
cada época, cultura ou grupo social. Em função disso, pretendo
mapear algumas das transformações colocadas ao corpo, principalmente o
feminino, no decorrer do século XX no Brasil. Como referência, opero com as
mudanças efetivadas pelos discursos que aliam beleza e saúde, localizando
onde e como esse par se confunde, se diferencia e/ou se torna um mesmo e se
ressignifica.
No decorrer do século XX, a imagem do que é saúde e do que é beleza
sofre um deslocamento em relação a conceitos de períodos anteriores. A
conquista de um corpo saudável e belo passa a ser entendida como um objetivo
individual a ser atingido por meio de um exercício intencional de autocontrole,
envolvendo força de vontade, restrição e vigilância constantes. Deborah Lupton
(2000, p. 24) diz que a obesidade passa a ser vista como um sinal tangível de
falta de controle, impulsividade, auto-indulgência, enquanto que o corpo magro
é um testemunho do poder da autodisciplina, um exemplo do domínio da
mente sobre o corpo e de um virtuoso sacrifício.
A busca por esse novo corpo belo e saudável durante o século XX
acarretou, durante as últimas décadas, a substituição do açúcar nas gôndolas
dos supermercados (e na mesa de uma significativa parcela da população que
se sente interpelada pelo discurso da boa forma) por produtos light e diet.

Neste momento a indústria de alimentos passa a oferecer inúmeras opções.


Diferentemente do contexto pré-moderno, no qual a alimentação é marcada pela
tradição e rituais locais, na modernidade o alimento é desterritorializado, gerando uma
oferta mundial de gêneros das mais variadas procedências (Mira, 2001, p. 191).

Esses produtos colaboraram para a configuração de outra conformação


de corpo que se estabeleceu, um corpo mais magro e mais esguio. Com essa
nova configuração, a relação do sujeito com o seu corpo é alterada: comer era/é
um dos grandes prazeres que passa a ser cerceado em nome da boa forma.
Entretanto, o bem-estar e o prazer colocam-se, ao mesmo tempo, cada vez mais
como uma necessidade que deve estar presente em tudo e, nesse percurso, a
mídia de modo geral colabora para confirmar essa necessidade. A esse respeito,
Sant’Anna explicita que:

18
II – Saúde e Beleza

[...] na medida em que o bem-estar se torna uma regra, nas cidades são multiplicados
os serviços de prazer e conforto em tudo o que se faz: muitas publicidades de alimentos
diet, por exemplo, defendem a aliança entre a dieta e o prazer de comer, termos
incompatíveis no passado (Sant’anna, 2000c, p. 38).

Os alimentos diet e light também prometem um corpo mais saudável


porque apresentam, em sua formulação, uma quantidade menor ou a ausência
de gordura e açúcar, prevenindo contra o aumento excessivo nas taxas de
colesterol, controle da diabetes e da obesidade. Na época em que vivemos, além
de contar com esses novos produtos da indústria tecnológica de alimentos para
reduzir a ingestão de calorias e facilitar a aproximação com esse corpo padrão,
as pessoas têm à disposição academias com equipamentos ultramodernos que
ajudam a queimar os excessos do corpo, onde homens e mulheres suam em
torno de um mesmo desejo: a conquista de um abdômen enxuto e modelado.
Essa tática do mercado – de incentivo ao consumo de alimentos light e
diet – reforça uma dada perspectiva de saúde que, através de práticas
disciplinadoras e educativas, aponta normas de comportamento com a intenção
de promover a saúde. Denise Gastaldo (1997, p. 148), ao discutir perspectivas de
Educação em Saúde, afirma que esse é um processo educativo e, ao mesmo
tempo, disciplinador, pois promove comportamentos que devem ser adotados
pela população como um todo e interfere nas escolhas individuais, informando
sobre como atingir estilos de vida “saudáveis”. A autora refere ainda que o
modelo de Medicina de Vigilância que passou a vigorar em meados do século
XX muda o foco da medicina de corpos patológicos para cada um dos membros
da população (Gastaldo, 1997, p. 151). Com isso, os limites entre saúde e
doença, como escreve a autora, são reorganizados, e pessoas consideradas
saudáveis podem ficar cada vez mais saudáveis, enquanto que outras podem
ser saudáveis e doentes ao mesmo tempo. O cuidado com a saúde torna-se uma
guerra permanente contra a doença, indica Zygmunt Bauman (2001, p. 93) em
suas análises. A doença não é mais compreendida como um evento incomum,
extraordinário, que pode ser tratado e que se apresenta com um começo e um
fim. Ao contrário, é indicada como algo sempre presente, a sombra da saúde:

[...] seu outro lado é [uma] ameaça sempre presente: clama por vigilância incessante e
precisa ser combatida e repelida dia e noite, sete dias por semana. [...] E, finalmente o
significado de um regime de vida saudável não fica parado. Os conceitos de dieta
saudável mudam em menos tempo do que duram as dietas recomendadas simultânea
ou sucessivamente (Bauman, 2001, p. 93).

Nesse contexto, educar para viver de modo saudável significa investir


constantemente em prevenção. Saúde é aí compreendida como uma

19
II – Saúde e Beleza

responsabilidade individual que deve ser sempre atualizada. Algumas práticas


mais radicais vão estimular o indivíduo a exercer poder sobre seu próprio
corpo, sobre sua saúde. Esse controle sobre si mesmo para garantir a prevenção
de doenças e, sobretudo, conquistar sempre mais saúde é alcançado,
principalmente, através de informação sobre alimentação, exercícios físicos e
sobre riscos provocados pelos hábitos de fumar e beber (Gastaldo, 1997, p. 152).
O estímulo constante pela busca de saúde, de aptidão física e de prevenção de
doenças incita um consumo crescente de novos produtos para emagrecer,
queimar gorduras, desenvolver os músculos, de novas roupas esportivas, novos
aparelhos de ginástica, novos espaços para a prática de exercícios. Acredito que
essa busca incansável pela saúde e pela boa forma, que é marcada como uma
competência do indivíduo, na mesma direção para a qual aponta Bauman, é
como ir às compras:

Não se compra apenas comida, sapatos, automóveis ou itens de mobiliário. A busca


ávida e sem fim por novos exemplos aperfeiçoados e por receitas de vida é também uma
variedade do comprar, e uma variedade da máxima importância, seguramente, à luz
das lições gêmeas de que nossa felicidade depende apenas de nossa competência pessoal
mas que somos (como diz Michel Parenti) pessoalmente incompetentes, ou não tão
competentes como deveríamos, e poderíamos ser, se nos esforçássemos mais (Bauman,
2001, p. 87).

A busca por saúde e boa forma física – ou aptidão, como denomina


Bauman – organiza a vida em torno do consumo. Consumo não relacionado
apenas com as necessidades básicas do sujeito, mas o consumo articulado ao
desejo de ter, poder, adquirir, fazer. De acordo com o autor, o desejo

é uma entidade muito mais volátil e efêmera, evasiva e caprichosa, e essencialmente


não-referencial que as ‘necessidades’, um motivo autogerado e autopropelido que não
precisa de outra justificativa ou causa (Bauman, 2001, p. 88).

Ou seja, o desejo tem a si mesmo como referência e não é, por isso, nunca
saciado, nunca satisfeito, e acaba em uma via de mão dupla. De um lado, os
produtores sempre preocupados em produzir novos desejos em seus
consumidores a um elevado custo; de outro, consumidores insatisfeitos e
prontos, rápidos, ágeis para irem às compras, alimentando, generosamente, a
indústria capitalista.
Em séculos anteriores, a gordura foi sinônimo de saúde, beleza e
sedução. No século XX, principalmente a partir da segunda metade, essa
representação sofre modificações, talvez uma inversão. A magreza encarna o
novo ideal de beleza, e a gordura é associada à doença, à falta de controle sobre
o corpo e, por extensão, também falta de controle sobre a própria vida. O

20
II – Saúde e Beleza

crescimento da indústria, as novas frentes de trabalho, a necessidade de mão-


de-obra maior e mais bem qualificada, a otimização do tempo e dos espaços
exige corpos mais ágeis, mais aptos. Assim, o excesso de peso começa a
atrapalhar, lembrando o ócio e a imobilidade e não combinando com a
modernidade e os ares cosmopolitas do novo século. Isso mostra que as
representações têm relação com as formas pelas quais o real e a realidade
tornam-se efetivos para nós. O corpo é o local onde muitas lutas em busca de
significados, inscritos em torno do social e do cultural, se concentram, se
desdobram e se fazem reapresentadas. Ele é produzido como um elemento
discursivo de múltiplas instâncias econômicas, sociais e culturais, como, por
exemplo, da mídia e da medicina. Produzido desse modo, o corpo incorpora e
torna visíveis modos de ser e de viver no mundo, no qual alguns grupos têm o
poder de representar e dizer pelo outro; esses grupos exprimem verdades que
se legitimam e se tornam hegemônicas, produzindo, assim, sempre novos
processos de significação que posicionam, de modos diferenciados, os sujeitos
na ordem social.
As múltiplas identidades que constituem os corpos não são dadas ou
naturais. As identidades só parecem fixas e sólidas quando vistas de relance,
afirma Bauman (2001, p. 98). O que é ser gordo/ a ou magro/a, ser saudável ou
doente, ser belo/a ou ser feio/a são representações que foram produzidas em
determinados contextos históricos, de forma interessada e no interior de
práticas de significação. Assim como o corpo e a identidade, os significados não
são sempre os mesmos, não são fixos. Os significados são negociados,
contestados, transformados, nunca completos ou acabados. Deste modo, a
representação é aqui entendida como um processo de significação histórica
socialmente localizado, pois o que hoje é entendido como sendo beleza e saúde
é parte deste tempo, não era entendido desse mesmo modo no passado e,
provavelmente, não será no futuro. Silva (1999, p. 32) acrescenta que conhecer e
representar são processos inseparáveis e que a representação – compreendida
aqui como inscrição, marca, traço, significante, e não como processo mental – é
a face material, visível, palpável, do conhecimento. Nessa busca de significação
e de novas representações harmonizadas com o século XX, a obesidade passa a
ser indício de doença e de feiura, e a magreza, análoga à saúde e à beleza.
Muitas vezes, diz Sant’Anna (2001, p. 21), os espaços citadinos e seus
equipamentos são os primeiros a excluir a presença dos seres pesados e
grandes: em escolas, cinemas, teatros e aviões, as cadeiras costumam ser mais
confortáveis aos magros e pequenos. Para sentirem-se incluídas nesses espaços
citadinos, as pessoas buscam adaptar o seu corpo aos traços que constituem a
norma. Com o objetivo de ser parte integrante de tais representações, o desejo e
a obsessão pelo corpo magro, esbelto, leve e delicado assume centralidade nos

21
II – Saúde e Beleza

dias atuais, tornando tais representações hegemônicas. No entanto, a essa


representação, outras vão-se agregando ou dela se diferenciando. Como
exemplo do que estou dizendo, desde os anos de 1990, aparecem os seios
femininos em tamanhos significativamente maiores como destaque no corpo
que continua esguio, tirando ou dividindo o espaço que era antes legítimo das
nádegas e valendo qualquer sacrifício ou recurso científico para atingir esse fim,
desde exercícios localizados para o peito, cremes e massagens até a prótese de
silicone. Marilyn Yalom, no seu livro A História do Seio, refere que essa é uma
preocupação também entre as americanas desde a década de 80 e que, estudos
recentes

[...] de ciências sociais que procuram entender esse fenômeno sugerem que as mulheres
estão infelizes com o seu corpo porque não se conformam com as figuras esguias e de
seios grandes que pressentem que os homens preferem; de fato, as mulheres têm a
tendência de sobrestimar o tamanho do seio quando avaliam o seu caráter geral de
atração. Existem bons motivos para acreditar que a sociedade paga um preço muito
acima do valor monetário ao alimentar a fantasia de corpos e seios perfeitos sem
reconhecer qualquer outro tipo (Yalom, 1998, p.229).

O desenvolvimento e as facilidades da cultura de commodities têm


colaborado para colocar em cena novos valores, novos conceitos de beleza e de
cuidados com a saúde. No fim do século XIX e início do XX, a gordura começa a
ceder lugar ao corpo violão ou ampulheta, mantendo, no entanto, a
generosidade das formas: seios salientes, cintura fina (ainda pelo uso do
espartilho, tão difundido no século XIX) e ancas arredondadas, pois a magreza
em excesso ainda remetia à ideia de pobreza e/ou de um corpo doente.
Segundo Yalom, no século XIX, os espartilhos estavam por todos os lados, não
apenas nos corpos de mulheres e raparigas, ou nas prateleiras dos armazéns e
lojas de roupas íntimas, ou representados em catálogos e revistas. Estavam nas
fantasias dos poetas e amantes e na língua dos oradores e reformadores (Yalom,
1998, p. 207).
Os/as oradores/as e reformadores/as, geralmente da área médica,
ampliavam suas críticas, em termos de saúde, ao uso do espartilho. Ele foi
responsabilizado pela deterioração dos músculos torácicos, por abortamentos,
hemorragias internas e dificuldades para respirar; foi, enfim, a prisão imutável
do corpo feminino. As mulheres (feministas da época) que lutavam contra o uso
do espartilho falavam de uma nova mulher, formada empreendedora,
ambiciosa que foi feita para trabalhar, para ser vista, mas também para gozar a
vida; vivendo não apenas para os outros, mas para si, e tanto mais útil quanto
mais fiel às suas necessidades (Yalom, 1998, p. 207).
Com o auxílio da transição do espartilho para o soutien, uma importante
mudança ocorre na vida das mulheres: pela primeira vez, uma peça de roupa

22
II – Saúde e Beleza

era desenhada exclusivamente para os seios (Yalom, 1998, p. 209) que, diferente
do espartilho, não os elevava, mas buscava o conforto. Com isso, o corpo
ampulheta foi sendo substituído por corpos cada vez mais magros, obedecendo
às exigências de rapidez, agilidade e movimento que a vida moderna e o
desenvolvimento industrial demandavam. Os anos 20, segundo Yalom,
configuraram-se como uma das irregularidades históricas em que as mulheres
buscaram obter uma aparência lisa comprimindo os seios. A indústria da época
colaborou, colocando no mercado o soutien em forma de faixa que achatava os
seios, inventando uma silhueta masculinizada. A ênfase recaía sobre a
simplicidade, liberdade e abandono estilizado (Yalom, 1998, p. 211),
favorecendo a funcionalidade, a praticidade e a agilidade. Em relação a essa
necessidade de mudança, funcionalidade, praticidade, rapidez e,
necessariamente, adaptação, Bauman indica que,

Num mundo em que coisas deliberadamente instáveis são a matéria-prima das


identidades, que são necessariamente instáveis, é preciso estar constantemente em
alerta; mas acima de tudo é preciso manter a própria flexibilidade e a velocidade de
reajuste em relação aos padrões cambiantes do mundo lá fora (Bauman, 2001, p. 100).

A magreza como matéria-prima instável das novas identidades corporais


foi-se impondo como norma, e a gordura teve de ser queimada, derretida,
apontando a necessidade de adaptar-se, ser flexível e acompanhar a precisão de
reajuste do corpo. Esse novo padrão de corpo, que foi-se configurando e
afirmando como verdadeiro ao longo do século passado, intensificou a
participação das mulheres na prática de esportes, não só em busca de um corpo
em forma e mais saudável, mas também, em busca de novos espaços de
convivência e de sociabilidade. Deborah Lupton (2000, p. 33) indica que, desde
a virada para o século XX, a participação em atividades esportivas tem sido
vista como uma experiência intensa, unindo prazer sensual, autodisciplina,
autodescoberta, autoexpressão e plenitude. A autora conclui a frase citando
Mrozeck:

o esporte era um divertimento, assim como uma obrigação – um peculiar mas essencial
paradoxo não diferente daqueles que emergem na conversão religiosa (Mrozeck apud
Lupton, 2000, p. 33).

Lupton (2000) mostra em uma de suas pesquisas, através de entrevistas


realizadas com homens e mulheres diversos, que a saúde é habitualmente
reduzida a ser esbelto/a e estar em forma, obedecendo a uma rotina de
manutenção do corpo, como não fumar, não beber, praticar esportes com
regularidade e não cometer excessos alimentares. As entrevistas foram
realizadas por vários pesquisadores/as em diferentes áreas e mostraram
23
II – Saúde e Beleza

resultados semelhantes em relação ao conceito de saúde, entendida como


autocontrole, autonegação e força de vontade. Em função disso, normalmente,
as pessoas sentem-se culpadas por suas doenças, examinam seus estilos de vida
em busca de hábitos não-saudáveis, como não praticar esportes, por exemplo. O
hábito de exercitar-se, principalmente em academias, é o que exige maior
persistência, pois caracteriza-se como um trabalho de esforço pessoal,

[...] atua como um marcador da capacidade de um indivíduo para a autorregulação.


Esse conceito de exercício está fortemente atrelado ao conceito de saúde como uma
criação ou uma realização do eu. Está também relacionado a noções contemporâneas
mais amplas de corpo ideal como aquele que é controlado firmemente, contido no
espaço, destituído de excesso de gordura ou de músculos flácidos (Lupton, 2000, p.
29).

4. Práticas corporais associadas à saúde e à beleza

Prezado aluno,

Vimos nos capítulos prévios que a atividade física tem sido historicamente
relacionada com saúde, por vezes, de modo simplista, em uma relação causa-
efeito. Vimos também que saúde e beleza são termos com significados
semelhantes, quando o assunto é a busca pelo corpo belo e ideal. Agora, vamos
pensar nas relações que saúde e beleza estabelecem com práticas corporais. De
igual modo às atividades físicas, as práticas corporais têm sido apontadas como
promotoras de saúde e beleza. Todavia, devemos ficar atentos a essa questão,
na medida em que as práticas corporais devem ser utilizadas no contexto da
Educação Física para além da intenção do binômio saúde e beleza, podendo
enfocar relações saudáveis com o próprio corpo, socialização, prazer, ampliação
das próprias experiências corporais, cooperação, cordialidade etc. Aí está o
grande desafio da área e dos futuros profissionais. Vamos começar nossas
reflexões?

“Práticas corporais” é uma expressão abrangente, polissêmica e


multifacetada, que tem sido utilizada por diferentes campos do conhecimento
com diferentes significados. No âmbito da Educação Física, o termo tem sido
comumente entendido como acervo daquilo que vem sendo chamado de
cultura corporal do movimento, ou seja, as diferentes manifestações culturais
relacionadas ao corpo, expressas nos jogos, nas ginásticas, nas danças, nas lutas,
nos esportes, entre outros (SILVA et al., 2009).

24
II – Saúde e Beleza

Considerando este conceito, emerge a seguinte questão: quais seriam as


práticas corporais que têm sido associadas à saúde e beleza na
contemporaneidade? Luz (2008) esclarece esta questão e nos leva a refletir sobre
inúmeras outras. Para o autor, a universalidade do paradigma ou utopia da
saúde pode ser constatada tanto na quantidade e na diversidade das atividades
e práticas atualmente designadas como “de saúde”, como na tendência a
ressignificar atividades anteriormente vistas na sociedade como atividades
lúdicas de jogo ou lazer, esporte ou recreação, estéticas, ou mesmo eróticas,
como atividades de saúde. Nesse sentido, o autor esclarece três tipos de
categorias que incluem diferentes práticas corporais associadas à saúde e beleza
que são mais presentes nos grandes centros urbanos.
A primeira é composta pela ginástica e suas variações. Praticada
coletivamente nos espaços das academias, com predominância das faixas etárias
mais jovens (18-35 anos), mas com tendência de expansão para faixas etárias
mais avançadas (40-60 anos), a ginástica tem tradição milenar na cultura
ocidental, tendo tido grande desenvolvimento na sociedade urbana durante as
últimas décadas do século XIX e no século XX. Todavia, a ginástica praticada há
um século não tinha a mesma finalidade social ou ideológica daquela do final
do século. Isto é, a primeira, associada à educação física e ao esporte, era
dependente do paradigma da saúde-vitalidade, mas visava ao equilíbrio corpo-
mente, numa recuperação moderna nacionalista da concepção latina de mens
sana in corpore sano. Já a segunda, vigente neste início de terceiro milênio, é
estreitamente ligada à estética do corpo individual, e visa “modelar” os corpos
dos indivíduos para que eles adquiram uma forma condizente com as rigorosas
normas de beleza da cultura em voga. Visa, portanto, fortalecer e desenhar
músculos, levantar nádegas e seios, definir peitoral etc., modelando assim uma
imagem de saúde que associa força, juventude e beleza. Para tal objetivo,
diferentes tipos de ginásticas são realizados, incluindo modelos e paradigmas
distintos de saúde, do mais “biomecânico” ao mais “bioenergético”, variando
desde a musculação até a yoga, alongamento, a capoeira, as artes maciais etc.
O resultado esperado pela maioria dos praticantes dessas atividades é
estético, e não propriamente de saúde, afirma Luz (2008). Como a busca da
beleza-juventude é o grande empenho, muitas vezes, há um excesso nas
práticas mais hard (ginástica aeróbica “marcada” por thecnomusic ou ritmos
semelhantes, como “malhação”) do fisiculturismo que acaba danificando a
própria saúde. É frequente o uso de esteroides anabolizantes e outras
substâncias químicas pelos praticantes de modalidades como musculação,
sobretudo, os de sexo masculino, no sentido de fazer “crescer” músculos, torná-
los mais aparentes, e de evitar o cansaço para poder praticar mais exercícios. De
fato, a conservação da juventude por meio do exercício físico e da saúde como

25
II – Saúde e Beleza

decorrência da beleza configuram os sentidos atribuídos a estas atividades, bem


como as representações que lhe estão associadas.
A segunda categoria engloba práticas corporais de modalidade leve, tais
como a hidroginástica, caminhada e alongamento ou ainda aquelas ligadas às
medicinas alternativas, como o tai-chi-chuan, a yoga ou a biodança. São mais
praticadas por mulheres maduras. Nesses casos, o paradigma da vitalidade-
energia está presente e a saúde é representada como equilíbrio-harmonia. O
corpo é vivido como uma dimensão da pessoa, percebida como unidade
bioespiritual. A busca da beleza e da forma associam-se à recuperação da saúde,
ou flexibilidade, ou rejuvenescimento. A cordialidade e a cooperação entre as
praticantes são habituais, com frequentes atividades comuns de congraçamento.
A terceira e última categoria é composta pela dança de salão. De acordo
com Luz (2008), esta prática corporal, originária no Brasil desde a primeira
metade do século XX, tornou-se, na última década, além de opção de lazer,
indicação médica crescente para depressões, melancolia, timidez, isolamento,
osteoporose, problemas de dores na coluna, obesidade e outros males crônicos
não identificáveis com alguma patologia orgânica conhecida. Contrariamente à
uniformidade da academia de ginástica, a academia de dança de salão cultiva a
diversidade das formas dos corpos e não possui preocupação exclusiva com
estética. Na dança de salão, não é a “modelagem” do corpo que importa, mas
sua agilidade, sobretudo nos pés e pernas.
Em conjunto, essas categorias apontam diferentes práticas corporais que
têm sido associadas à saúde e beleza. Todavia, no âmbito da Educação Física,
essa associação direta tem sido palco de debates calorosos, que questionam a
redução do sentido de práticas corporais quando entendidas exclusivamente
como propagadoras de saúde.

5. A conversa continua...

Caro aluno,

Com intuito de aprofundar nossa discussão sobre práticas corporais, saúde e


beleza, explorando mais profundamente as associações entre esses constructos,
convido-os à última atividade obrigatória desta unidade. Trata-se de um vídeo
que está disponibilizado para você assistir.
Trata-se de uma entrevista com a professora Yara Carvalho no programa
Insight, intitulado Práticas corporais na atenção primária à saúde, discursa
sobre a importância das práticas corporais no serviço de saúde, trazendo o
conceito de práticas corporais como aquelas que agregam modalidades

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II – Saúde e Beleza

ocidentais (danças, ginásticas, esportes, lutas etc.) e orientais (tai-chi-chuan,


yoga etc.).
Após assistir ao vídeo, reflita sobre as distintas possibilidades de intervenção
tanto no ambiente formal (escolar), como no não formal (clubes, academias,
clínicas etc.), fazendo uso de práticas corporais que considerem o conceito
ampliado de saúde.

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II – Saúde e Beleza
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