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Capítulo I
Expansão Portuguesa e Expansão Europeia
— Reflexões em Torno da Génese dos Descobrimentos
Luís Filipe F. R. Thomaz
II
Seguida de perto pela castelhana, um pouco mais tarde pela dos demais povos da
fachada ocidental da Europa, a expansão portuguesa dos séculos XV e XVI afigura-
se-nos, de facto, a nós que tranquilamente a observamos a meio milénio de distância,
como a primeira fase de um fenómeno bem mais lato de expansão ocidental. Para
além de um claro escalonamento no tempo e de uma inegável diversidade de
objectivos, de métodos e de modelos — que se não devem de ânimo leve ignorar
pois constituem outras tantas grandes pequenas diferenças que explicam muitas
coisas conferem às várias expansões nacionais indiscutível unidade numerosos
traços suficientemente fortes para que se possa, sem violentar os factos, falar de
expansão europeia como fenómeno histórico definido.
Tal fenómeno é, sem dúvida, passível de duas abordagens metodológicas contrárias
mas não contraditórias. E legítimo partir-se da multiplicidade das expansões
nacionais para finalmente se chegar por comparação e síntese à consideração da
expansão europeia na sua globalidade — método prudente, empírico e comparativo,
1 «E ao dizer isto, com a lança virada, impeliu para o lado o cavo monte; e os ventos, como que fazendo
pelotão, precipitaram-se por onde lhes foi dada porta, e sopraram sobre as terras em turbilhão.»
2
mas que corre o risco de apenas encontrar ao fim uma unidade que provavelmente
existe já na própria génese do fenómeno. E pode encarar-se este pelo prisma da
globalidade, descendo depois, pela análise à determinação das especificidades,
diferenças e particularidades de cada caso nacional — mas corre-se então o risco de
tomar como um postulado a unidade intrínseca do fenómeno, que não é uma
premissa mas uma conclusão a demonstrar. E uma metodologia mais sedutora, mas
mais traiçoeira também... De qualquer modo ambos os métodos são, dentro de
certos limites, aceitáveis, já que como vias de aproximação ao problema são mais
complementares que contraditórios.
O verdadeiro problema situa-se, qualquer que seja o caminho preferido, a um nível
mais profundo: saber se a relativa unidade que a expansão europeia aparenta é
meramente externa e formal ou autenticamente intrínseca e material — ou, por
outras palavras, saber se ela é, a despeito de certos caracteres comuns, um
fenómeno essencialmente múltiplo nas suas origens e na sua natureza, se, pelo
contrário, um fenómeno substancialmente uno, aqui como além fruto das mesmas
raízes e produto das mesmas pulsões, ainda que secundariamente diversificado nas
suas manifestações. Aqui não estamos já no plano da metodologia, mas no da
própria interpretação do real.
Se se aceita a primeira interpretação, nada impede que se tratem como fenómenos
separados as sucessivas expansões nacionais — que entre si não deverão
logicamente ter senão relações externas, acidentais, quando muito de original a
cópia, jamais de causa a efeito.
Não haverá que buscar as razões da prioridade da expansão portuguesa, nem,
inversamente as do retardo das demais — mas para cada uma delas suas causas e,
entre si, mais o como que o porquê da transmissão dos modelos.
Se, pelo contrário, se adopta a segunda posição e se considera como um todo
orgânico a expansão europeia, a relação entre ela e as várias expansões nacionais
passa a ser apenas a de género a espécie; haverá então que buscar-lhe a causa
comum, para em seguida determinar e tentar interpretar as diferenças específicas.
E dessas diferenças específicas, sem dúvida que a mais perturbante é a precocidade
da expansão de Portugal.
Perturbante porque, na lógica da visão da história em profundidade que a escolha
desta segunda interpretação parece postular, um movimento de expansão parece
dever corresponder naturalmente a um vértice, um auge de crescimento que
justifique o transbordar.
O paradoxo está no facto de a vanguarda da expansão europeia partir exactamente
de um país que praticamente de nenhum ponto de vista se pode considerar a
vanguarda da Europa.
Finisterra do Velho Mundo, até à expansão agora em causa área marginal, arcaizante
na língua e na cultura como quase todas as áreas marginais, quase insular, entalada
entre a Meseta imensa e o Oceano infinito, sempre fora o último rincão da Península
a acolher as inovações — vindas na sua maioria de além-Pirenéus, onde, então como
hoje, se situava o centro do espaço cultural europeu.
Do centro, como em todos os espaços culturais, se originavam e se propagavam à
periferia a maior parte das mudanças. Portugal fora assim o último canto da Ibéria
a resistir às águias de Roma, o último a deixar-se incorporar na monarquia
visigótica, o último a receber o rito galo-romano e a escrita carolina, o estilo gótico,
os títulos de nobreza e o cômputo dos anos pela era do nascimento de Cristo...
3
Difícil se torna para épocas recuadas, sobre que não há dados estatísticos
disponíveis, comparar o que hoje chamaríamos os índices de desenvolvimento de
Portugal com os do resto da Europa. Mas há indícios que parecem significativos. A
modéstia, a pequenez e a rudeza das nossas construções — salvo duas ou três,
contáveis pelos dedos — são sem dúvida testemunho insofismável da modéstia do
viver do rei, dos nobres e do reino. Do rude românico do Noroeste às mansões reais,
passando pelos mosteiros e pelas casas senhoriais, tudo fica aquém dos castelos
franceses do Loire, dos esplendores de Veneza e Florença ou mesmo dos conjuntos
fidalgos de Santillana del Mar, Ubeda, Lerma, Cáceres ou Trujilho. Mais significativo
ainda — pois foi aí que na Europa se espelhou o desenvolvimento urbano, por sua
vez espelho do comércio, alma da expansão —, as nossas catedrais não passam de
modestas capelas à vista das da França ou da vizinha Espanha. Claro que não é lícito
extrapolar para a Idade Média as assimetrias e desníveis de desenvolvimento que a
Revolução Industrial introduziu; mas já nas páginas dos primeiros viajantes — como
a Peregrinatio Hispanica, de Frei Cláudio de Bronseval2 — a impressão que perpassa
é a de um país remoto e pobre onde são numerosas as carências3.
Esta constatação parece querer pôr-nos em guarda contra a tentação de ver entre
desenvolvimento e expansão um nexo de causalidade directa ou mesmo uma
correlação elevada. Mas então parece seriamente ameaçada a visão da expansão
europeia como um fenómeno uno e coerente, decorrente de uma causalidade
profunda, comum a toda a Europa Ocidental...
Não caiamos, porém, na tentação de enveredar pela explicação oposta: rincão pobre
e abandonado, com solos de má qualidade, clima irregular, regímen pluviométrico
aleatório, um terreno acidentado, Portugal ter-se-ia lançado na expansão como uma
fuga à pobreza4. O paralelo com a expansão grega da Antiguidade, a que se tem
atribuído idêntica causa, é para mais sedutor... Sedutor, igualmente, o paralelo com
a Estremadura espanhola, que sendo uma das regiões mais pobre do país teve na
conquista do Novo Mundo um relevante papel. Tal visão não é, por certo,
inteiramente falsa — e tem até a vantagem de permitir encarar como um movimento
único todo o fenómeno da emigração portuguesa que, no espaço como no tempo,
transcende largamente os limites da expansão oficial.
Por certo que a pobreza de muitas regiões alimentou ao longo dos séculos a
colonização das ilhas e do Brasil e provavelmente também a expansão no Oriente; o
que se põe em dúvida é que tenha sido esse o motor essencial e a causa do arranque
da empresa — pois nem o carácter estruturado e estatista do fenómeno nem a
ideologia triunfalista que o informa são compatíveis com a atribuição da iniciativa
às camadas mais desfavorecidas da população, nem se vê como essas pudessem ter
peso político para impô-lo5. E como explicar então as outras colonizações europeias,
2 Père Claude de Bronseval, Peregrinatio Hispanica - Voyage de Dom Edme de Saulieu, Abbé de
Clairvaux en Espagne et au Portugal (1531-1533), ed. e trad. por Dom Maur Cocheril, 2 vols., PUF,
Paris, 1970.
3 Cf. ainda Jean Aubin «Le Portugal dans l'Europe des années 1500», in L'humanisme portugais et
l'Europe. Actes du XXIème Colloque International d'Études Humanistes. Tours, 3-13 Juillet 1978. F.
Calouste Gulbenkian, Paris. 1984.
4 Cf. Orlando Ribeiro, Introduções Geográficas à História de Portugal — Estudo Crítico, Imp. Nacional-
Casa da Moeda, Lisboa, 1977; A Formação de Portugal, ICALP, Lisboa, 1987; Portugal, o Mediterrâneo
e o Atlântico, Sá da Costa, Lisboa. 1ª. ed. 1945, 2: ed. 1963.
5 No parecer que em 1432 deu sobre a oportunidade de se fazer guerra aos Mouros em Granada ou
sermos poucos, proves e mal corregidos»; mas por outro «por sermos pobres nom o devemos deixar
de fazer, cá os abastados e contentes clas vidas que tem nom buscam os haveres alheios, mas os que
som aleviados das riquezas buscam em si a cárrega delas; cá nom há tam grande fortaleza que nom
filhem exemplo que grande cobiça fortes muros rompe» (ANTT, Livraria, cod. 1928, fls. 44 v e ss.,
inter alia ms: diversas edições, nomeadamente M. H., Vol. IV, n.° 23, pp. 111 e ss., Coimbra, 1962) Mas,
pela mesma época o judeu convertido Alvar García de Santa Maria, cronista de D. João II de Castela,
sensível como todos os de sua nação aos problemas económicos, vaticinava: «a esta tomada de Ceuta
que tomaron los portogaleses fue muy grande armada e el Reyno es pequeño e con las maneras quel
rey lo fizo fue muy dañoso a los moradores del reyno de Portugal. Porque por ocasión desta armada
e de mantener a Ceuta heran muy despechados de su rey para esto. Tanto, que le avían por muy
grande sentimiento; e muchos dellos le dexaron la tierra e fueron a poblar en outros reynos.»
(Crónica de Juan Il de Castilla, Cap. 368.) V. Juan de Mata Carriazo «La conquista de Ceuta em la
"Crónica de Juan II de Castilla" de Alvar García de Santa María» in Anais da Academia Portuguesa da
História, II série, Vol. 27, Lisboa, 1981, pp. 279 e ss.
6 A bibliografia sobre o desenvolvimento da actividade marítima sob a 1.° dinastia é relativamente
abundante; podem ver-se entre outros, Luís Albuquerque, Introdução à História dos Descobrimentos,
Atlântida, Coimbra, 1962; Jaime Cortesão, Os Descobrimentos Portugueses, vol. I (Obras Completas,
Vol. XXI), Livros Horizonte, Lisboa, 1975; Vitorino Magalhães Godinho, A Economia dos
Descobrimentos Henriquinos, Sá da Costa, Lisboa, 1962, Cap. I e II; António Baião, Herâni Cidade e
Manuel Múrias (dir.), História da Expansão Portuguesa no Mundo, Vol. 1, Ática, Lisboa, 1937; e como
colecções de documentos: Pedro de Azevedo, «Documentos para a história marítima e comercial de
Portugal nos remados de D. Afonso IV a D. Duarte», in Arquivos de História e Bibliografia, 1923-1926,
Vol. I, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1976, e a monumental colectânea de João Martins
da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses — Documentos para a sua História, publicados e
prefaciados por..., Instituto para a Alta Cultura, Lisboa, 1944-1949 (3 vols. + 2 supls.).
5
7 Ver, v. g., Pierre Chaunu, L'expansion européenne du XIIIème au XVème siècle, Nouvelle Clio, PUF,
Paris, 1969.
8 Vide Marcello Caetano, A Crise Nacional de 1383-1385 — Subsídios para o seu Estudo, Verbo,
10 Sobre a evolução da política turca no Próximo Oriente pode ver-se, inter alia, Stanford Shaw,
History of the Ottoman Empire and Modern Turkey, Vol. I, Cambridge University Press, 1976 (reed.
1978); P. M. Holt, Ann K. S. Lambton e Bernard Lewis (dir.), The Cambridge History of Islam, Vol. 1A,
Cambridge University Press, 1970 (reed. 1980); Philip K. Hitti, History of the Arabs, from the Earliest
Times to the Present, 10. ed. Macmillan, Londres, 1970 (reed. 1974).
11 Pode ver-se o texto de Sanudo em J. Bongars, Gesta Dei per Francos, Vol. II, Hanover, 1611, o mesmo
projecto reaparece em 1317 no opúsculo do dominicano inglês Guilherme Adam, De Modo Saracenos
Extirpandi, cujo texto se pode ver no Recueil Des Historiens des Croisades, série Armenia, Vol. II (ed.
de Paris, 1841-1906, reimp. Gregg Press, Famborough, 1969).
12 Pode ver-se um excelente capítulo sobre as relações entre a Etiópia e a Europa Ocidental na Idade
Média em Jean Doresse, L'empire du Prête Jean, Vol. II, L'Éthiopie Médiévale, Plon, Paris, 1957. Ver,
também, O. G. S. Crawford, Ethiopian Itineraries, circa 1400-1524, Hakluyt Society, Londres, 1958. Cf.,
ainda, Domingos Maurício, «A "Carta do Preste João" das Índias e seu reflexo nos descobrimentos do
infante D. Henrique», in Brotéria, 71 (1960), pp. 218-244, idem, «Ainda a "Carta do Preste João" das
Índias», ibidem, 72 (1961), pp. 285-303.
13 Vide Vitorino de Magalhães Godinho, O «Mediterrâneo. Saariano e as Caravanas do Ouro, separata
da Revista de História, n° 23-25, S. Paulo, 1955; Cf. Pierre Vilar, Or et monnaye dans l'histoire, Paris,
1978; Jacques Heers, Genès au XVIème siècle - civilisation méditerranéenne, grand capitalisme et
capitalisme populaire, Flammarion, Paris, 1971.
7
14 Sobre a ideia de Cruzada ver Paul Alphandéry e Alphonse Dupront, La chrétienté et l'idée de
croisade, 2 vols, L'Évolution de l'Humanité, Albin Michel, Paris, 1939, Michel Villey, La croisade —
Essai sur la formation d'une théorie juridique, L. Vrin, Paris, 1942; Paul Rousset, Histoire d'une
idéologie: La croisade. L'Age d'Homme, Lausana, 1983; Elizabeth Siberry, Criticism of Crusading (1095-
1274), Clarendon Press, Oxford, 1985; Luís Filipe Thomaz, «Cruzada e Anti-Cruzada», in Communio
— Revista Internacional Católica, ano 11, n. ° 6, Lisboa, 1985: Carlos Erdmann, A Ideia de Cruzada em
Portugal, Coimbra, 1940, Alberto Martins de Carvalho, art. «Cruzada, espírito de», in Dicionário de
História de Portugal, dir. por Joel Serrão, s. v., Luís Filipe F R. Thomaz e Jorge Santos( Alves, «Da
Cruzada no Quinto Império», in A Memória da Nação, Sá da Costa., Lisboa, 1991, Margarida Barradas
de Carvalho, «L'idéologie religieuse de la Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara», in
Bulletin des Brudes Portugaises, n.° 19, 1955-1956.
15 Esta ideia foi sobretudo desenvolvida por Jaime Cortesão, op. cit. supra, nota 6. Sobre o
franciscanismo pode ver-se, por exemplo, P. Ilídio de Sousa Ribeiro, O.F.M., Escola Franciscana
(História e Filosofia), Lisboa, 1943; Joaquim Cerqueira Gonçalves, Humanismo Medieval, Braga, 1971,
idem, Homem e Mundo em São Boaventura, Braga, 1970. Ivan Gobry, St. François d'Assise et l'esprit
franciscain, col. Maitres Spirituels, Ed. du Seuil, Paris, s. d.; Étienne Gilson, La philosophie au moyen-
âge — des origines patristiques à la fin du XIVème siècle, Payot, Paris, 1952.
16 Foi a posição adoptada por António Sérgio e criticada entre outros por Magalhães Godinho, op. cit.
supra, nota 6.
8
espírito de cruzada tinha mais que em qualquer outra parte hipóteses de manter a
vitalidade na Península — onde estava ainda incompleta a Reconquista, cuja
imagem era na consciência nacional dos estados dela originados elemento
relevante. Não deixa de ser curioso notar que ainda em meados do século XVI João
de Barros começa as suas Décadas da Ásia não pela viagem de Vasco da Gama, como
se poderia esperar, mas pela Hégira e pela fundação do Islão, verdadeira origem, a
seus olhos, de toda aquela história17... Ao ideal de guerra santa — brandido
sobretudo pelo poder público e seus apologistas, mas de inegável papel polarizador
entre os vários estratos da população — poderíamos juntar factores psicológicos
mais difusos, actuantes num outro plano, decorrentes da marginalidade de Portugal
em relação à cultura europeia. Aqui, como em outras zonas de fronteira e contacto
de civilizações — pensemos por exemplo nos Gregos frente aos Turcos —, a
exacerbação do antagonismo religioso coexistia de bom grado com uma osmose
cultural assaz intensa em todos os domínios que não pareciam abrangidos pela
intangibilidade do absoluto intemporal identificado com a religião18. Daí um certo
relativismo pragmático e uma permeabilidade cultural que muito devem ter
facilitado os contactos com os outros povos. Mas factores de tal ordem, se a
posteriori podem, em parte, explicar o êxito da expansão portuguesa em certos
campos, não fazem sentido por si sós, nem podem constituir causa eficaz do
movimento expansionista.
Resta-nos examinar as causas materiais. Neste campo tem sido, e com justeza,
observado desde há muito19 que a expansão portuguesa mergulha as raízes mais
profundas num grande movimento de crescimento orgânico do Ocidente europeu
— crescimento a um tempo demográfico e económico, de que a chamada «revolução
comercial do século XI» representa a consequência mais notável e a face mais
visível20. Movimentos de colonização interna, com as grandes arroteias do século
XII, tentativas mais ou menos felizes de expansão externa, do «Drang nach Osten»
teutónico às Cruzadas do Oriente, passando pelo apoio intensivo à reconquista
cristã da Península, incremento da monetarização, génese do capitalismo comercial,
desenvolvimento urbano, emergência da burguesia — eis outras tantas facetas da
mesma transformação. Portugal participa nela, directamente, pelo seu crescimento
interno, indiretamente graças ao incremento do comércio entre o Mediterrâneo,
com a Itália setentrional por fulcro económico, e o mar do Norte, com o pólo na
Flandres, que, passando pela sua costa e pelos seus portos, os anima, ligando-os, pela
comunhão de interesses, às redes marítimas em expansão. A tendência da corte para
da Idade Média, 950-1350, Ed. Presença, 2: ed., Lisboa, 1986: Carlo M. Cipolla, História Económica da
Europa Pré-Industrial, Ed. 70, Lisboa, 1986; Giuliano Conte, Da Crise do Feudalismo ao Nascimento do
Capitalismo, Ed. Presença, 2ª. ed., Lisboa, 1984. Cf., ainda, B. H. Slicher van Bath, História Agrária da
Europa Ocidental (500-1850), Ed. Presença, Lisboa (1984).
9
se fixar em Lisboa, principal porto do Reino, ilustra bem o crescente peso do litoral
na vida do País.21
Guardemo-nos, porém, de enveredar por uma espécie de substancialismo histórico
que identifique necessariamente predomínio do litoral com predomínio social da
burguesia. Sem perdermos de vista a maior complexidade do caso português,
pensemos, para afastar tal tentação, em casos extremos mas claros na sua
simplicidade: pensemos, por exemplo, nas Molucas do século XV ou XVI, na sua vida
económica, cultural e política totalmente dependentes da rede comercial malaia,
sem contudo nela desempenharem mais que um papel passivo; ou em ilhas como
Malta ou Chipre, cujo destino histórico resulta muito mais das vicissitudes das redes
marítimas do Mediterrâneo que da sua própria evolução social interna. Que a
burguesia em Portugal não se apropriou do Estado, nem impôs os seus valores, nem
mesmo criou uma consciência autónoma de classe, é por demais evidente.22
Exemplo típico o de Fernão Gomes, o mercador de Lisboa que em 1469, por contrato
com a Coroa ficou encarregado dos descobrimentos: enriquecido, entra na nobreza,
feito cavaleiro de uma ordem militar... Mas voltemos à deslocação do centro de
gravidade do Reino e à consolidação das suas relações atlânticas.
As ligações económicas que assim se desenvolvem — e logo adquirem expressão
política mediante a aliança à Inglaterra, destinada a perdurar do século XIV aos
nossos dias — explicam até em parte, que Portugal tenha escapado à unificação
peninsular operada por Castela. Em 1383-1385 foi, de certo modo, o nexo com a
rede marítima atlântica que saiu vencedor do nexo com o espaço ibérico — o que é
talvez sintoma de que a vitalidade da rede atlântica igualava, se não ultrapassava, a
da mediterrânica. Não deixa, com efeito, de ser surpreendente que a Catalunha, de
personalidade histórica e individualidade étnica não menores que as de Portugal, e
que tão activamente interviera nas redes marítimas do Mediterrâneo, se tenha
deixado tranquilamente absorver pela Meseta, volvidos apenas uns três quartos de
século23, Por essa época já a expansão portuguesa se tornara, em boa parte, uma
21 O mesmo fenómeno se reflecte no teor dos capítulos apresentados em Cortes pelo braço popular:
nos-ia demasiado longe. Pondo de lado outros factores (como a osmose dinástica de Aragão e Castela
com os Trastâmaras), quer-nos parecer que do ponto de vista de Castela o Mediterrâneo pesava ainda
mais que o Atlântico, e por isso a grande maioria da nobreza castelhana preferiu em 1475 D. Isabel,
que representava a união com Aragão, a D. Joana, que representava a ligação a Portugal. Do ponto de
vista aragonês foram talvez. os elevados custos da sua política de expansionismo mediterrânico,
levada ao apogeu por Afonso V (1416-1458) que tomaram aconselhável o alargamento da retaguarda
de suporte mediante a união com o poderoso reino de Castela, tal como sucedeu a Veneza, que se
virou para a conquista da Terra Firme (c. 1400-1500) para poder levantar tropas e cobrar tributos
que lhe permitissem suster o seu império mediterrânico perante a crescente pressão otomana. A
expansão para um mar quase virgem, como era o Atlântico, envolvia sem dúvida muito menores
riscos e mais leves custos. Se este raciocínio está certo, compreende-se que a expansão tenha
assegurado a Portugal a independência, mas custado a Aragão a independência. Busquem-se
elementos para o aprofundamento do estudo comparativo que aqui esboçamos em: José Ángel García
de Cortázar, «La época medieval», in Historia de España Alfaguara, dir. por Miguel Artola, Alianza
Editorial, Madrid, 1973 (reim. 1985); Julio Valdeón, José M. Salrach e Javier Zabalo, «Feudalismo y
consolidación de los pueblos hispánicos (siglos XI-XV)», in Historia de España, dir. por Manuel Tuñón
10
de Lara, Vol. IV, Labor, Barcelona, 3." ed., 1982; Jean-Paul de Flem, Joseph Pérez, Jean-Marc Pelorson,
José M. Lopez Piñero, Janine Fayard, «La Frustración de un Imperio (1476-1714)», ibidem, Vol. V.
1984; Freddy Thiriet, Histoire de Venise, col. Que sais-je ? PUE, Paris 1969 ; Frederic C. Lane, Venice :
a maritime republic, John Hopkins University Press, 1973; Charles Dichl, La République de Venise,
Paris, 1915 (reed. Flammarion, 1985). Não foi apenas Castela que não soube resistir à atracção do
Mare Nostrum; a tomada de Ceuta, os planos de intervenção em Granada e outros factos menores
mostram claramente que, em parte pelo prestígio e peso da tradição que fazia do Mediterrâneo o
centro do Universo, em parte por um desejo mais ou menos consciente de imitar por um lado o
vizinho castelhano, por outro as repúblicas italianas, Portugal só lenta e gradualmente se virou para
a «expansão barata» no vazio, ou seja para o Atlântico, muito mais acessível, afinal, quer do ponto de
vista geográfico, quer do financeiro. C. Jacques Heers, « L’expansion maritime portugaise à la fin du
Moyen-Âge : la Méditerranée » in Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, T. XXII, 2. série, n. 2, 1986.
24 Para além deste comércio de exportação, já hastas vezes referido e estudado, Luís Adão da Fonseca
26 Desta tendência a obra mais notável (a bem dizer a única digna de referência) e a de António Borges
uma cura pior que o mal, pois na literatura da época, de Sá de Miranda a Manuel
Severim de Faria, o que abunda não são as loas à emigração mas as queixas contra o
despovoamento: «Não me temo de Castela, donde inda guerra não soa, mas temo-
me de Lisboa, que ao cheiro desta canela, o Reino nos despovoa [...].»29
O determinismo demográfico parece pois de excluir. Vejamos o económico. A
chamada «revolução comercial» é a face externa de um crescimento económico
interno, pois o incremento do volume de trocas corresponde logicamente a um
aumento dos excedentes de produção. Este resulta essencialmente de um acréscimo
de produtividade decorrente de um aperfeiçoamento técnico ou, em certas
circunstâncias, meramente do aumento demográfico, por uma questão de
economias de escala. Permitindo igualmente a libertação de mão-de-obra dos
sectores directamente produtivos para o sector terciário, tal incremento facilita a
formação de uma classe, improdutiva, de mercadores profissionais que assegure a
organização e exploração da actividade comercial. Esta, uma vez organizada, leva à
progressiva substituição de uma economia fechada, de autoconsumo, por uma
economia aberta, de troca — que, em circunstâncias normais e dentro de certos
limites, por uma espécie de feedback económico, provoca um aumento de produção,
por uma razão de economias de escala e graças à possibilidade de especialização de
cada região agrícola na sua vocação natural30. E o incremento da produção, com o
aumento dos excedentes disponíveis para troca, cria, por sua vez, mercado para os
produtos importados31. Este foi, nas suas linhas gerais, o mecanismo que presidiu à
29 «Carta a António Pereira, senhor de Basto, quando se partiu para a Corte com a casa toda», in
Francisco Sá de Miranda, Obras Completas, ed. de M. Rodrigues Lapa, Vol. I, n. 139, p. 81, Sá da Costa,
Lisboa, 1937; de Manuel Severim de Faria, vide «Remédios à falta de gente», in Notícias de Portugal,
Lisboa, 1655.
30 Os economistas da «escola clássica» deram a estre princípio uma importância capital (vide, v. g.,
Adam Smith, Riqueza das Nações, Livro VI, trad, port., Fund. Calouste Gulbenkian, 2 vols., Lisboa,
1981-1983; David Ricardo, Princípios de Economia Política e Tributação, Cap. VII; trad. port., Abril,
São Paulo 1982). As restrições que os economistas posteriores têm posto ao optimismo dos clássicos
não afectam a validade básica do princípio. O mecanismo é o seguinte: imaginemos que na ilha de
Samos, devido a condições naturais favoráveis, a vinha produz 30 almudes de vinho por jeira de terra,
mas o olival apenas dá 20 almudes de azeite, enquanto na vizinha ilha de Cós se passa o inverso, isto
é, se colhem 20 almudes de vinho mas 30 de azeite por jeira; e imaginemos, para simplificar, que em
cada ilha há 2000 jeiras cultivadas, metade com vinha, metade com olival. No seu conjunto a
sociedade formada pelas duas ilhas disporá de 50 000 almudes de vinho e outros tantos de azeite. Se
o custo do transporte dos géneros cobrir a diferença de preços e entre as duas ilhas se estabelecer
uma comunicação regular, permitindo que cada uma se especialize no que melhor produz, se Samos
dedicar as suas 2000 jeiras à vinha e Cós as suas ao olival, a produção global elevar-se-á em tal caso
a 60 000 almudes de vinho e outros tantos de azeite em vez de 50 000 de cada produto, pelo que a
sociedade no seu conjunto beneficiará. E importante ter presente este raciocínio ao estudar a história
do comércio ultramarino, sob risco de o não entender. Podem entre as duas sociedades em presença
e no interior de cada uma delas os benefícios não ser equitativamente distribuídos; mas isso não
impede que de imediato o comércio seja uma vantagem generalizada, isto é., de que ambas as partes
beneficiam. Um preconceito muito divulgado, derivado de uma interpretação simplista das teorias
marxistas, pretende que no comércio colonial haja necessariamente uma parte exploradora e outra
explorada; por isso insistimos no princípio da vantagem global, sem o qual nem é possível
compreender a revolução comercial da Idade Média nem o sistema de comércio pacífico instalado
pelos Portugueses ao longo da costa ocidental africana nos séculos XV e XVI.
31 É a célebre lei dos mercados de João Baptista Say (1767-1832). Várias crises de superprodução (em
especial a grande depressão de 1929-1930) vieram demonstrar que a produção não cria, a curto
prazo, automaticamente o mercado, como optimistamente supunha Say (cuja crítica fundamental se
deve a Keynes). Isso não impede que, como tendência geral e a longo prazo, o princípio seja válido; o
mesmo se passa aliás com outras intuições fundamentais da escola clássica, que se revelaram
impróprias para a análise do tempo curto mas valem para o tempo longo. Para a história das
13
doutrinas económicas vide, v. g., Arthur Taylor, As Grandes Doutrinas Económicas, col. Saber, Europa-
América, 2. ed., Lisboa, 1962, Henri Denis, História do Pensamento Económico, trad. de António Borges
Coelho, Livros Horizonte, Lisboa, 1974.
32 John Hicks. A Theory of Economic History, Oxford University Press, 1969 (trad. franc.: Une théorie
quintal de ferro custar em Riga 500 ducados, chegará a Génova ao custo de 1.500 ducados, isto é,
sofrerá um aumento de preço de 200 por cento e, provavelmente, não se conseguirá vender: um
quintal de ouro que valha 500.000 ducados chegará ao preço de 51.000 ducados, ou seja, sofrerá um
aumento de dois por cento. Este pequeno exemplo numérico imaginário (que completa o que demos
supra, nota 30) ajuda a compreender por que se desenvolveu, de início, sobretudo o comércio de
bens raros, excepto em pequenas distancias.
14
V
Deixemos de lado a colonização da Madeira e dos Açores que pouco de novo
apresenta: podemos considerá-la, simplesmente, o produto do cruzamento dos
movimentos de colonização interna, que começam nas grandes arroteias do século
XII, com o alargamento da área oceânica usualmente abrangida pelas redes
atlânticas em expansão. Um fenómeno que, portanto, se enquadra perfeitamente
numa dinâmica ainda medieval — o que de certo modo explica, por exemplo, o
arcaísmo das suas instituições senhoriais. Pouco adianta considerar que a Madeira,
numa segunda fase, com a cultura do açúcar, apresenta um tipo de economia
profundamente comercializada, quase totalmente virada para a exportação,
prefigurando as economias coloniais do século XVII e seguintes: é um
desenvolvimento posterior, sem significado para o debate que de momento nos
ocupa, que é acerca da génese da expansão. Que o quadro institucional ensaiado na
Madeira — o sistema de donatarias - tenha sido depois transferido para o Brasil,
também não importa de momento: é um caso de transmissão de modelos que ilustra
mais a continuidade entre a colonização moderna e as instituições medievais que a
novidade daquela.34
Comecemos pois a nossa análise pela conquista de Ceuta, tradicionalmente
apontada como acto inaugural da expansão.
Começará aí de facto uma nova era? Não se lhe houvesse seguido a 19 anos de
distância a passagem do Bojador e por certo que ninguém se lembraria de ver nela
mais que uma das várias manifestações do movimento de nutação do equador
religioso que era o Mediterrâneo. A ocupação de Trípoli (1143), de Mahadiya (1148-
1159) e de Jerba (1284-1335) pelos normandos da Sicília, para não falar já de
ataques sem consequências como a cruzada de S. Luís (1270) ou a expedição a
Mahadiya em 1390 representam a sua oscilação para sul, como a conquista árabe da
Sicília (827) e de Malta (870) e mais tarde as transgressões almorávida (1096),
almóhada (1212) e merínida (1340), que por pouco não submergiram Portugal,
representam as suas oscilações para norte.
A intervenção ibérica na Barbaria — encarada como o prolongamento natural da
reconquista, justificada, para mais, pelo facto de parte de Marrocos ter pertencido
aos Visigodos, de quem os reis peninsulares se consideravam sucessores — era já
projecto antigo. No acordo feito em Sória, em 1291, entre Sancho IV de Castela e
Jaime II de Aragão, delimitavam-se já as áreas de influência, segundo o princípio
adoptado na Península de cada um conquistar para sul sem intervir, obliquamente,
no que era considerado da conquista do vizinho; a repartição cessa, para oeste em
Ceuta, o que parece corresponder, logicamente, a uma reserva tácita para Portugal
dos territórios mais a ocidente. E de facto, em 1299, o papa criava, simbolicamente,
um bispado em Marrocos, atribuindo o direito da apresentação alternativamente
aos reis de Castela e Portugal35. A intervenção portuguesa, como a castelhana, não
se concretizou de momento; mas de que permanecia em mente são claros
36 O texto das bulas pode ver-se in M. H., 1, na sua ordem cronológica. Cf. o artigo citado na nota
anterior.
37 Particularmente significativa deste prestígio é a argumentação desenvolvida no reinado de D. João
III contra o abandono das praças marroquinas. Vide Otília Rodrigues Fontoura, Portugal em Marrocos
na Época de D. João III - Abandono ou Permanência? dissertação de licenciatura policopiada,
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1966 (com transcrição de vários pareceres) Outros
pareceres dispersos, in As Gavetas da Torre do Tombo (v. 8, Vol. IX, Lisboa, 1971).
38 Não interessa discutir aqui a autenticidade do texto do parecer, apenas conhecido através da
recensão de Rui de Pina, Crónica de D. Duarte, Cap., XIX (Cf. M. H., n.° 1); sejam de D. Pedro sejam de
Rui de Pina, os argumentos contra a viabilidade da expansão no Norte de África são ponderosos.
39 Vide Marcel Bataillon, « Le rêve de la conquête de Fès et se sentiment impérial portugais au XVIème
siècle », in Études sur le Portugal au temps de l'humanisme, pp. 85 e ss., F. C. Gulbenkian, Centro
Cultural Português, Paris, 1974.
40 3ª. parte, cena IV, pp. 232, ss., ed. M. Rodrigues Lapa, Sá da Costa, Lisboa, 1937. Cf., também, os
Tânger se discutiu em Cortes o seu abandono (de que ficara como penhor o «Infante
Santo» D. Fernando), se tenham oposto à retrocessão os dois portos mercantis de
Lisboa e Porto ao lado dos concelhos do Algarve — de quem, obviamente, protegia
Ceuta da pirataria moura as costas.41
A ideia porém de uma pressão burguesa sobre o vedor João Afonso — de quem
segundo Zurara partiu a iniciativa do ataque — é uma hipótese gratuita, que
nenhum documento confirma. E a recém-revelada Crónica de D. João II de Castela,
de Alvar Garcia de Santa Maria (a mais antiga das que referem o caso, em 20 anos
anterior à de Zurara)42 faz da classe mercantil muito mais a vítima que o autor moral
da empresa — pois, coisa que Zurara refere também mas por meias palavras que até
aqui ninguém pudera interpretar, para custear a expedição apoderou-se el-Rei de
todas as mercadorias e navios disponíveis no reino, explorando durante dois anos
por sua própria conta todo o comércio com a Inglaterra e Flandres.
A ideia de que era a obtenção de trigo o móbil essencial da empresa é ainda mais
indefensável. David Lopes demonstrou à saciedade que não podiam ser as serranias
calcárias do Rife, o celeiro de Marrocos e do Reino — e que o trigo, se abundava era
na costa atlântica, mais para sul, sobretudo à volta de Safim, onde os Portugueses,
de facto, se haviam de abastecer mais tarde algumas vezes43 E todas as investigações
posteriores confirmaram claramente que Ceuta esteve ao longo de todo o domínio
português em constante défice cerealífero, obrigando a importar pão do Reino, da
Madeira, da Andaluzia, do Marrocos atlântico e até da Flandres44.
Só o prestígio de António Sérgio e a necessidade de contrapor algo ao dogma vesgo
de uma certa historiografia até há pouco quase oficiosa de que não havia interesses
comerciais na expansão explicam que historiadores de valor tenham perdido o seu
tempo a empreender nas crónicas a pesca à linha ao burguês e a caçada ao grão de
trigo... Assim sucedeu ao romantismo cavaleiresco de Oliveira Martins uma espécie
de romantismo estomacal do povo faminto a pedir pão — talvez mais racional, mas
não mais documentável...
Convenhamos contudo em que se não pode ir muito longe, pois a documentação
para este período é escassa. O principal argumento contra a tese de paternidade
burguesa da expedição a Ceuta vem de uma espécie de extrapolação do que sabemos
ter-se passado depois45. Nos reinados de D. Duarte (1433-1438) e D. Afonso V
41 Jaime Cortesão viu mais longe que António Sérgio, pois não reduziu o papel de Ceuta de mero
entreposto de cereais marroquinos, antes viu nela a chave de dois universos mercantis, o
mediterrânico e levantino e o magrebino e sudanês. Para além do seu valor como escala de comércio
há, porém, que não esquecer o seu valor estratégico, como testa de ponte para a conquista de
Marrocos, ou mesmo para a de Granada e como base o corso marítimo: cf. o artigo de Jacques Heers,
cit. supra, nota 23.
42 Crónica de Juan de Castilia (cf. supra nora 5), Cap. 367.
43 Ver sobretudo os seus artigos na História de Portugal, dir. por Damião Peres, Vol. III, Barcelos, 1931.
44 Vide Manuel Henrique Corte-Real, A Feitoria Portuguesa na Andaluzia (1500-1532), I. A. C., Centro
de Estudos Históricos anexo à Fac. Letras de Lisboa, 1967, e Robert Richard, Études sur l'histoire des
portugais au Maroc, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1955. Que saibamos a documentação
existente no Corpo Cronológico da Torre do Tombo sobre a feitoria portuguesa da Sicília, de onde se
importava também trigo, está ainda por estudar. O facto de Ceuta não ser, como pensava António
Sérgio, a escápula do trigo de Marrocos não impede que a fertilidade de Marrocos em cereais tenha
agido como atractivo para a conquista — mas para a conquista territorial e não para a de meros
intrepostos litorâneos (vide os textos transcritos na ob. cil e supra, nota 37).
45 Quer a ideia de prosseguir desde o ano seguinte a conquista territorial do reino de Fez a partir de
Ceuta (Zurara, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses Livro 1, Cap. 9), quer a de arrasar simplesmente
a praça (idem, C.° de Ceuta, Cap. 97-99), quer a de a utilizar antes como base para a conquista de
Granada (v. a carta de D. João I a D. Fernando I de Aragão, 20.X.1415, in M. H., II, n.° 108, pp. 226 e ss.)
17
(1438-1481), com efeito, tanto quanto podemos auscultar o sentir das várias
camadas da população do Reino, é, em geral, a nobreza que se mostra entusiasta das
conquistas em Marrocos, enquanto a classe mercadora se lhes mostra hostil. Mesmo
sem atribuir a tais oposições um valor absoluto, não deixa de ser notável o facto de
que sob a regência de D. Pedro (1439-1449), guindado ao poder pelos concelhos
urbanos, em especial Lisboa, se incrementem os descobrimentos marítimos46, mas
cessem completamente as incursões na Barbaria — para recomeçarem depois que
o jovem rei, espicaçado pela nobreza, entra em conflito com o tio e o afasta do poder.
A escola historiográfica que fez da tese burguesa e frumentária de António Sérgio
um dogma vê-se obrigada a arriscados malabarismos para explicar uma tão
completa inversão de posições.
Da parte da classe mercantil o desinteresse é fácil de entender.
Se o papel das praças do Algarve de Além-Mar era menos o de servirem de lugar de
troca que o de conferirem segurança à navegação pelo Estreito, o acréscimo de
lucros resultante do aumento de segurança decorrente da multiplicação das praças
fortes é logicamente decrescente enquanto os encargos crescem, praticamente, na
proporção directa do número de praças — pois a sua descontinuidade geográfica
não permite que se façam economias de escala. Por isso Ceuta é suficiente e a
multiplicação das posições é uma operação antieconómica — sobretudo para as
classes que, em homens e dinheiro, suportavam quase todo o peso dos encargos.
Assim haveria de ser até à época de D. João II (1481-1495), em que a política
portuguesa na Barbaria sofre nítida inflexão, orientando-se para sul, para o
Marrocos atlântico e para uma presença tanto quanto possível pacífica e
predominantemente comercial — mas agora num contexto inteiramente novo.
Trata-se, com efeito, de obter, para fornecer pelo comércio marítimo às populações
da Guiné, os produtos magrebinos que tradicionalmente lhes eram fornecidos pelo
comércio caravaneiro muçulmano, substituindo, como pitorescamente se tem dito,
a caravela à caravana, e obtendo assim, quase na fonte, o ouro, os escravos e os
demais produtos do Sudão.
Tal inflexão corresponde à instrumentalização da expansão marroquina, posta
agora ao serviço da expansão marítima pela costa de África, numa perfeita inversão
da hierarquia de objectivos que, como veremos, vigorava no início47. Mas não nos
antecipemos, pois esse é precisamente o ponto de chegada da evolução que
pretendemos analisar.
parecem pouco compatíveis com a ideia de que o fundamento da empresa fora a obtenção de uma
escápula comercial (embora Ceuta também o fosse pelo que a sua tomada não desagradaria à classe
mercantil). Mas Zurara sublinha (C.° de Ceuta, Cap. 101) que enquanto os «fidalgos e outros bons
homens haviam grande folgança por ficarem em aquela cidade, sperando que polo bem que em ela
fizessem acrescentariam muito mais em suas honras», «outros do povoo tinham as tenções mui
contrarias daquesta»; e ao longo de todo o século XV é sobretudo à nobreza que vemos entusiasmada
com a aventura marroquina. Para mais pormenores, ver infra o estudo «A evolução da política
expansionista portuguesa na primeira metade de Quatrocentos».
46 Mais por estímulo às iniciativas de D. Henrique (concessão do quinto das presas e resgates, Carta
Régia de 22.X.1443, M. H, VIII, 1 n.° 62, p. 107; isenções aos povoadores dos Açores, Carta Régia de
3.IV.1443, ibidem, n.° 21, p. 43, etc.) que por intervenção directa nas navegações: seja como for o
escopo de tal política é patente: desviar de Marrocos as atenções de D. Henrique e criar alternativas
viáveis à expansão marroquina que as circunstâncias tomavam indesejável.
47 Sobre a política ultramarina de D. João II, especialmente no que concerne a Marrocos, vide os
trabalhos citados supra, notas 43 e 44; cf. a nossa comunicação «A política ultramarina de D. João II
— tentativa de interpretação global» ao Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua Época,
Universidade do Porto, Setembro de 1988, reproduzida infra.
18
48 Dai as tentativas da realeza, desde D. Dinis, para reservar a si a nobilitação de novos elementos:
vide Ordenações Afonsinas, Livro 1, título Ixiii dos cavaleiros como e per quem devem ser feitos e
desfeitos» (ed. de Mário Júlio de Almeida Custa, F. Calouste Gulbenkian, pp. 360 e ss., Vol. 1, Lisboa,
1984).
49 Vide António Henrique de Oliveira Marques, Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV (Nova História
de Portugal, dir. por Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Vol. IV), ed, Presença, Lisboa, 1987.
50 Cf., para o nosso país: José Antunes, António Resende de Oliveira e João Gouveia Monteiro,
Meneses e na Crónica de D. Duarte de Meneses, de Gomes Eanes de Zurara, bem assim como nos Anais
de Arzila, de Bernardo Rodrigues. A ed. crítica da primeira destas três crónicas está em preparação
por António Manuel Clemente Lázaro; a da segunda, por Larry King, foi pub. pela Universidade Nova
de Lisboa, 1978; a da terceira, por David Lopes, 2 vols., Ac. das Ciências de Lisboa, 1915-1920. Uma
ed. fac-similada da ed. de 1793 da primeira (in Collecção de Livros Inéditos da História Portuguesa,
Vol. 11) foi recentemente pub. pela Universidade do Porto, Comissão Organizadora do Congresso
Internacional «Bartolomeu Dias» — V Centenário da Passagem do Cabo da Boa Esperança, 1988.
52 Zurara, Crónica de Ceuta, Cap. VI, (1ª. ed., Lisboa, 1641; única ed. Acessível Francisco Maria Esteves
Pereira, Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I composta por Gomes Eanes de Zurara, pub.
por ordem da Academia das Sciências de Lisboa, segundo os manuscritos n.os 368 e 355 do Arquivo
Nacional, pur..., Academia das Sciências de Lisboa, 1915).
53 Tratado da vida e Feitos do muito venturoso S. Infante D. Fernando, Cap. XII, ed. crítica com
introdução e notas de Adelino de Almeida Calado (Frei João Álvares, Obras, Vol. D, Acta Universitatis
Conimbrigensis, Coimbra, 1960, pp. 17-20.
54 Vide Livros dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (livro da Cartuxa), ed. diplomática por João José Alves
Dias, Estampa, Lisboa, 1982, pp. 135 e ss. (tb M. H., VI, n.° 48, pp. 94-96).
19
55 Livro dos Conselhos.... pp. 116 e ss.; M. H., V, n.° 101, pp. 201-204.
56 Ver sobretudo a Introdução, de José de Bragança à sua ed. da Crónica da Guiné, de G. E. de Zurara,
Liv.* Civilização, Porto 1937; cf. Júlio Gonçalves, O Infante D. Pedro as «Sete Partidas» e a Génese dos
Descobrimentos, Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1955. Estas teorias brigam frontalmente com um
documento tão indiscutível como a Carta Régia de 1443 (cf. supra, nota 46), passada pelo próprio
regente D. Pedro, que atribui a D. Henrique a iniciativa e organização dos primeiros descobrimentos.
57 Cf. supra, nota 46, e infra, nota 71.
58 D. Henrique estava desde 1416 encarregue da defesa e provimentos de Ceuta, o que implicava o
controlo da actividade corsária portuguesa na área do Estreito (carta régia de 18.11.1416, M. H., II,
n.° 116, p. 240-241). Sabe-se que tanto ele como D. Pedro tinham ao seu serviço navios corsários,
visto D. Duarte ao subir ao trono os isentar do pagamento do quinto das presas devido à Coroa (numa
adaptação do princípio do direito muçulmano que reserva ao califa o quinto de todo o saque): vide
cartas régias de 25.IX.1433 e 6.X1.1433, M. H., IV, n.° 79, p. 266, e n."88, p. 281, respectivamente.
20
Luís de Albuquerque, Círculo de Leitores (no preio) onde se acharão indicações bibliográficas mais
pormenorizadas, bem assim como Francisco M. Rogers, The Quest for Eastern Christian — Travels and
Rumor in the Age of Discovery, Un. of Minnesota Press, Minneapolis, 1962.
64 Crónica da Guiné, Cap. VII «... se poderiam pera estes reinos trazer muitas mercadarias que se
haveriam de bom mercado segundo razão, pois com eles não tratavam outras pessoas destas partes
nem doutras nenhumas que sabidas fossem; e que isso mesmo levariam pera lá das que em estes
reinos houvesse, cujo tráfego trazeria grande proveito aos naturaes.» É por esse trato ser vantajoso
a ambas as partes (cf. supra nota 30) que em principio, deveria ser pacifico, a alusão ao «grande
proveito que trazeria aos naturaes» completa o raciocínio que Zurara começa a desenvolver pouco
mais acima: «achando-se em aquelas terras alguma povoação de Cristãos ou alguns taes portos em
que sem perigo podessem navegar...» Subjacente queda o contraste com os portos muçulmanos onde
21
a rivalidade religiosa periodicamente exacerbada por uma ou outra das partes punha
frequentemente em risco o comércio.
65 Aparentemente a ideia de lançar expedições de reconhecimento, de fins militares, parece ser mais
antiga que a de estabelecer comércio com as populações, já que aquelas se iniciaram por 1422 ao
passo que este só foi encetado por 1443, e em circunstâncias por assim dizer fortuitas: fora capturado
numa razia em terra o filho de um chefe azenegue (Crónica da Guiné, caps. XII-XIII), que prometeu
que seu pai daria por si quatro ou cinco escravos negros; foi a pretexto desse resgate que se organizou
o primeiro contacto comercial pacífico com as populações saarianas (ibidem, Cap. XVI).
66 Vice-almirante Gago Coutinho, A Náutica dos Descobrimentos — Os Descobrimentos Marítimos
Vistos por um Navegador, colectânea de artigos (...) organizada e prefaciada pelo com. Moura Braz, 2
vols., Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1951-1952. Cf. Quirino da Fonseca, Os Navios do Infante D.
Henrique, Col. Henriquina, Lisboa, 1958.
67 Crónica da Guiné, Cap. XVI, «como Antão Gonçalves foi fazer o primeiro resgate» — cf. supra, nota
65. Parece que foi desta expedição de Antão Gonçalves que o infante 1). Pedro colheu a ideia de
«trazer os mouros daquela parte a tratos de mercadoria», pois enviou numa expedição subsequente
um homem seu — Gomes Pires, patrão d’El-Rei — com esse objectivo em companhia do mesmo
Antão Gonçalves (cf. idem, Cap. XXIX).
68 Bula, Illius qui se pro divini, de Eugénio IV, 19.XII.1442, M. H., VII, n.° 228, pp. 336-337; traduzida
das várias expedições recenseadas por Zurara, in Luís Filipe de Oliveira. «A expansão quatrocentista
portuguesa: um processo de recomposição social da nobreza», in 1383-1385 e a Crise Geral... (cf.
supra, nota 22) pp. 199-208 B.
73 Crónica da Guiné, caps. XVI c XCIV.
74 Ibidem, Cap. XCVI.
23
75 Vide A Economia dos Descobrimentos Henriquinos, pp. 211 e ss., Sá da Costa, Lisboa, 1962,
conclusão.
76 A novidade é mais quantitativa que qualitativa, uma vez que já desde o século XIV, pelo menos, que
os reis se dedicavam ao comércio, como forma de obterem liquidez: nomeadamente, sabe-se que D.
Fernando possuía doze naus de comércio, que fez entrar na companhia das naus que mandou
constituir (Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, Cap. XCI, pp. 245 e ss., ed. da Liv. Civilização, Porto,
1979).
77 Cf. Karl Polanyi e Conrad Arensberg, Les systèmes économiques dans l'histoire et dans la théorie,
78 Cf. Manuel Nunes Dias, O Capitalismo Monárquico Português (1415-1549) — Contribuição para o
Estudo das Origens do Capitalismo Moderno, 2 vols., Fac. de Letras de Coimbra, 1963-1964.
79 Vide, v. g. J. J. L. Duyvendak, China's Discovery of Africa, Arthur Probsthain, Londres, 1949; para um
enquadramento mais geral na história chinesa, Wolfram Eberhard, A History of China, Routledge &
Kegan Paul, Londres & Henley, 4. ed., 1977.
25
80Publica-se o texto deste estudo tal qual foi redigido em 1983; as notas, porém, foram ajuntadas em
1988 e contêm por isso indicações bibliográficas mais actualizadas.