A RESISTÊNCIA DA ORALIDADE PELA CULTURA - História Sirley Amaro
A RESISTÊNCIA DA ORALIDADE PELA CULTURA - História Sirley Amaro
A RESISTÊNCIA DA ORALIDADE PELA CULTURA - História Sirley Amaro
ISSN: 1807-1112
[email protected]
Centro Universitário Feevale
Brasil
RESUMO
As narrativas orais ainda não têm recebido o devido reconhecimento nas políticas públicas do Brasil. O
Núcleo de Artes, Linguagem e Subjetividade (NALS), da Universidade Federal de Pelotas, desenvolve várias
atividades acadêmicas e ações culturais na cidade de Pelotas/RS. Uma parte dessas ações é desenvolvida
por uma mestra griô. O objetivo deste trabalho é apresentar algumas das atividades desenvolvidas pela
griô junto aos projetos do núcleo, como mecanismo de resistência da oralidade pela cultura. As atividades
desenvolvidas pela griô vêm ao encontro das propostas de Pedagogia da Fronteira e Estética da Ginga
defendidas pelo NALS. A maneira como a griô mantém a ancestralidade viva promove um outro olhar para
o processo educativo, não como uma determinação acadêmica formal institucionalmente fixada, mas como
uma maneira sensível, popular e cultural de manter essas tradições inesquecíveis.
Palavras-chave: Educação. Pedagogia da Fronteira. Estética da Ginga. Griô.
ABSTRACT
Oral narratives have not yet received due recognition in public policy in Brazil. The Nucleus of Arts,
Languages and Subjectivities (NALS), from Federal University from Pelotas (UFPEL), develops several
activities academically or through cultural actions in Pelotas/RS, southern Brazil. The aim of this work is to
present some of the activities undertaken by a Griot in the projects of the NALS, as a mechanism of resistance
of the orality through culture. The activities developed by the Griot come with the proposals of the Border
Pedagogy and Aesthetics of Ginga defended by NALS. The way as the Griot keeps the ancestrality alive,
promotes another look to the educational process not as a formal academic determination institutionally
fixed, but as a sensible, popular and cultural way to keep these traditions unforgettable.
Keywords: Education. Border Pedagogy. Aesthetics of Ginga. Griot.
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Doutora em Psicologia, Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Educação. Universidade
Federal de Pelotas. Pró-Reitora de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: denisebussoletti@
gmail.com. Endereço: Rua Alberto Rosa, 154. Campus das Ciências Sociais – 2º andar. CEP 96.101-770 Várzea do
Porto - Pelotas – RS – Brasil. Phone/fax: (53) 3284 55 33 e 3284 55 41.
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Doutorando em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas, Bolsista
CAPES Ator, Licenciado em Teatro. E-mail: [email protected].
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Doutorando em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas. Diretor/
Presidente da Fundação de Apoio Universitário (FAU/UFPEL). E-mail: [email protected].
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dos saberes populares seria como se uma fibra do apenas em textos literários. As oficinas de contação
“fio de Ariadne” se quebrasse. de histórias decorrem, assim, da compreensão da
Os contadores de histórias mantêm em sua centralidade do papel das narrativas orais e dos
memória saberes e fazeres culturais, passados narradores na luta contra o empobrecimento da
de geração em geração, ensinados de pais para experiência, tal como Walter Benjamin (1984)
filhos, de avós para netos, de velhos para jovens sugeriu ao referir a narrativa como experiência, ou
(PINHEIRO, 2013). Na história africana, segundo como luta contra o empobrecimento desta pelas
Ki-Zerbo (1982), as fontes para o seu conhecimento atividades que foram sendo implementadas no marco
sustentam-se sobre três pilares: os documentos industrial capitalista. Em resumo, podemos dizer
escritos, a arqueologia e a tradição oral. Esse autor que essas atividades são estratégias de formação e
considera ainda que, junto com o testemunho valorização das identidades sociais no diálogo com
escrito e o arqueológico, a história oral tem se a cultura, em sua pluralidade significativa, tendo a
transformado numa importante fonte para a história memória como fio condutor na compreensão de
africana. que os sujeitos possuem ou podem possuir tanto de
Amadou Hampâté Bá (1982) ressalta a si quanto do mundo.
importância da oralidade para a manutenção Os participantes das oficinas pertencem aos
da história da África. Segundo esse autor, seria mais diferentes grupos, e o ambiente é escolhido
impossível tratar da cultura, sem fazer referência de acordo com os objetivos específicos de cada
à importância da tradição oral na África. Nesse atividade que será desenvolvida. Desse modo,
sentido, os griôs ou griots (segundo a terminologia existem oficinas que acontecem em instituições de
francesa), atuariam como elementos mantenedores assistência social para crianças, jovens e idosos,
de aspectos culturais e históricos importantíssimos de outras que são realizadas nas escolas, nas praças,
suas localidades e que, nem sempre, aparecem nos no calçadão da cidade, em eventos acadêmicos
livros de histórias oficiais. Esses mestres da cultura e culturais, em livrarias, cafés e outros que são
popular desenvolveriam suas atividades por meio escolhidos de acordo com as necessidades das
de diferentes abordagens metodológicas, sejam elas ações pretendidas.
por contações de histórias, atividades artísticas ou Além dessas atividades locais, Dona Sirley
festejos populares nas localidades por onde passem também representa o NALS em eventos fora do
(PINHEIRO, 2013). Desse modo, podemos, a partir município. Como exemplo, podemos citar a “Teia”,
de agora, considerar as relações desenvolvidas pela encontro nacional dos Pontos de Cultura, e encontros
griô Dona Sirley em consonância com as origens nacionais das entidades que integram o Programa
dos griôs africanos. Cultura Viva, do Ministério da Cultura, através da
Dona Sirley, a mestra griô, faz parte do Secretaria da Diversidade Cultural e que, em 2014,
movimento negro da cidade de Pelotas/RS. aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, para onde
Uma contadora de histórias de 77 anos, que Dona Sirley foi com um estudante da Universidade
desenvolve seus trabalhos contanto histórias de sua Federal de Pelotas (UFPEL), membro do NALS, para
ancestralidade pelas antigas charqueadas pelotenses ser uma das duas representantes do Rio Grande do
e de suas próprias vivências pelo carnaval da cidade, Sul (RS) nesse evento. Também em 2014, a griô
cenário a partir do qual emerge a maior parte de participou do Fórum Latino-americano de Memória
suas memórias. Dona Sirley é uma costureira e Identidade, que aconteceu em Montevidéu, no
aposentada que mora na periferia de Pelotas. Além Uruguai, ao qual, mais uma vez, foi acompanhada,
de griô, é uma ativista cultural, atuando ativamente tendo sido protagonista das apresentações do NALS.
em diversos grupos de promoção e valorização do Salientamos que, em suas oficinas e nas
negro, do idoso e de trabalhos com crianças, além demais atividades, Dona Sirley costuma chamar
de ser uma reconhecida carnavalesca pelotense. os participantes para fazerem parte de suas
Juntamente com o NALS, Dona Sirley performances, para, então, começar a tramar
desenvolve oficinas de contação de histórias. A os primeiros fios de suas histórias, relatando
contação de histórias é um termo que adotamos fatos, mitologias recriadas, traços, lembranças e
a partir das ações formativas de comportamento características culturais de seus ancestrais africanos,
leitor, especialmente, daquelas que se amparam não histórias dos tempos das charqueadas (parte da
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história local) e da própria tradição do carnaval no trocadas durante a construção dos fuxicos feitos por
município de Pelotas. Por meio das suas histórias todos. Por fim, a saída da griô acontece através de
aparentemente simples, Dona Sirley ressalta questões um canto coletivo caracterizando a despedida e a
das diferenças de etnia, gênero e de formação social finalização do trabalho.
da região sul do RS. Além das histórias, Dona Sirley Outras atividades desenvolvidas por Dona
compõe músicas, nas quais imprime essas questões Sirley são as oficinas com as crianças, como parte
perpassadas por fatos históricos através de sua do projeto da Confraria do Fuxico, em que, além
interpretação e autoria. Essas músicas são utilizadas de contar as suas histórias e de ler outras histórias,
durante as oficinas como meio e elo de integração as crianças vão ajudando a griô a costurar uma saia
com os participantes. com fuxicos, à qual cada uma adiciona um fuxico
Além de contar e cantar suas histórias, Dona e, dentro dele, insere uma palavra relacionada a
Sirley ressalta particularmente o valor na lembrança uma história que conheça. Para cada nova história,
de uma Pelotas negra, geralmente, esquecida de ser uma palavra e um fuxico são adicionados. Nesse
valorizada pela “história oficial” através da tradição trabalho, a relação entre a música e a literatura
europeia acentuada nos registros históricos escritos se fazem fortemente presentes. Entre as leituras
locais. A mestre griô, durante suas atividades, preferidas, estão as crônicas do escritor Eduardo
também organiza o que podemos considerar Galeano, como, por exemplo, a “A casa das
como sendo um ritual em que são confeccionados palavras”, do Livro dos Abraços.
objetos e executadas atividades com o intuito de ir Outras atividades se caracterizam por Oficinas
tecendo as histórias e as músicas em algo material, de confecção de bonecas de pano ou abayomi. As
como uma colcha de retalhos, por exemplo. Entre bonecas aqui criadas fogem aos estereótipos das
uma história e/ou uma música e outra, a griô Dona bonecas vendidas pelo comércio em geral, com as
Sirley convida os participantes para dançarem e/ tradicionais características caucasianas, e remontam
ou encenarem o que está sendo contado naquele a uma tradição quase perdida e/ou esquecida de
momento. Facilmente, os participantes entram confeccionar bonecas com traços de identificação
nesse universo lúdico que a mestra vai criando étnico-cultural com os participantes da oficina. Cada
lentamente ao longo da oficina. boneca confeccionada pelo grupo surge a partir de
Na oficina de fuxicos5, a griô ensina a técnica uma das histórias contadas durante a oficina. Cabe
de confecção de fuxicos e de como construir outros salientar que essas bonecas são criadas com traços
objetos e vestimentas a partir deles. Mas, ela vai e características relacionados à cultura de matriz
além disso, estimulando os participantes a trocarem africana.
histórias para cada novo fuxico criado. Essas oficinas, Durante a confecção das bonecas abayomi,
normalmente, são constituídas de três momentos: a Dona Sirley conta aos participantes as histórias
apresentação, a troca de histórias e a despedida. Na relacionadas às origens dessas bonecas, quando
apresentação, ocorre a entrada da griô utilizando eram criadas a partir de retalhos de tecidos
uma canção escolhida, cantada por ela e ensinada rasgados. Essas bonecas são costuradas sem olhos,
no decorrer aos participantes. Tais canções, na nem boca, mantendo a tradição que as mulheres
maior parte das vezes, são canções populares e, em negras realizavam durante o período de escravidão
cada uma, uma lembrança é evocada e partilhada brasileiro. Segundo Dona Sirley, essas bonecas,
com o grupo. Logo após, as histórias vão sendo apesar do aspecto lúdico e alegre do brinquedo
criado, também trazem uma mensagem de opressão
pela falta dos olhos e da boca.
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O fuxico é uma técnica artesanal que aproveita sobras Já nas oficinas de Histórias de amor e
de tecidos para fazer uma pequena trouxinha de pano. carnaval, a griô Dona Sirley insere e revive os
Sozinho, o fuxico pode ser utilizado como adorno,
elementos do carnaval, com os participantes
costurado um a um, pode cobrir almofadas, bolsas,
roupas e uma infinidade de outros objetos. Segundo o
vestindo indumentárias relacionadas a personagens
conhecimento popular, o fuxico surgiu nas senzalas, típicos dos carnavais antigos, como, por exemplo,
quando as escravas, ao costurarem os retalhos desprezados as baianas, os mascarados, os palhaços, entre
pela casa-grande, ficavam conversando sobre o dia a dia outros. Nessas atividades, o foco são as histórias
(FAJARDO; MATHIAS; AUTRAN, 2002, p. 74). de carnaval relacionadas à formação histórica da
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cidade de Pelotas, intercaladas por momentos em acadêmico e, muito menos, de ter a sua própria
que são cantadas e dançadas algumas marchinhas condição existencial considerada pelos órgãos
dos antigos carnavais. oficiais. Entretanto, para realizar essas atividades, o
Em outras atividades, Dona Sirley, juntamente NALS propõe que outras pedagogias sejam criadas
com os integrantes do NALS, realiza o Cortejo Griô. e/ou reconhecidas, com o intuito de mostrar a
Nessas ações, reúnem-se vários agentes sociais e pluralidade de ações desenvolvidas em nossa
culturais da cidade, em especial, representantes do sociedade, que nem sempre estão visíveis aos
movimento negro, para desenvolverem atividades órgãos midiáticos, políticos e governamentais, como
itinerantes pelo centro histórico da cidade, detentoras de uma validade em si, desvinculada
divulgando a cultura de matriz africana, como rodas das normatizações das propostas pedagógicas tidas
de capoeira, sambas de roda, apresentações de como oficiais. Sobre esse assunto, destacamos o
dança, exposição de fotografias que trazem imagens que Arroyo (2014) refere ao dizer que:
das antigas charqueadas e dos primeiros africanos a
chegarem ao RS e também exposição de estandartes Ao se afirmar presentes como sujeitos
e camisetas históricas de várias escolas de samba políticos, sociais exigem o recontar dessa
locais. Todas essas atividades possuem o mesmo história pedagógica que os segregou como
sujeitos e os relegou a meros objetos,
fio narrativo e fluem na perspectiva da contação de destinatários das pedagogias hegemônicas.
histórias referida anteriormente. Exigem que sua história seja reconhecida,
O caráter informal das atividades ou melhor, que as narrativas da história
desenvolvidas pela griô Dona Sirley manifesta-se oficial das teorias pedagógicas sejam
nas experimentações e possibilita ao participante outras (ARROYO, 2014, p. 12).
transitar entre espaços e conceitos que algumas
formalizações mais institucionalizadas poderiam O NALS busca uma pedagogia que foque seu
dificultar. Além disso, suas atividades conseguem compromisso para o restabelecimento da formação
abordar e tocar os participantes de uma maneira pedagógica, mantendo o espaço para perguntas,
leve, simples, rápida e envolvente, trazendo todos mais do que para respostas conceituais e finalizadas,
para o universo vibrante de suas histórias. Com o amparando a experiência radical da diversidade
seu carisma, Dona Sirley consegue estimular o e da diferença, aproximando-se e diluindo as
público para que todos contribuam, ao trocarem e linhas que às vezes separam e criam fronteiras,
acrescentarem suas histórias em um jogo prazeroso, muitas vezes, pensadas como intransponíveis.
ressaltando na forma final o valor da riqueza da Esse posicionamento é assumido pelo NALS como
diversidade cultural brasileira. Pedagogia da Fronteira (BUSSOLETTI; VARGAS,
2013). A origem desses conceitos surge a partir de
2 ALGUMAS PROPOSTAS DO NALS E AS embasamentos nas teorias de Pedagogia de Fronteira
ATIVIDADES DA GRIÔ: TEORIA ENCONTRANDO proposta por Giroux (1992) e de Identidade de
A PRÁTICA Fronteira referida por McLaren (1999).
O NALS desenvolve todas as suas atividades Ao compreender esse processo dentro desses
respaldado em preceitos teóricos que se propõem referenciais teóricos, acabamos por revelar estéticas
a buscar novas alternativas de pensamento/ emergentes derivadas de uma mestiçagem e os
posicionamento ético, estético e pedagógico. cenários com os quais a interculturalidade lida,
Nessas propostas, são considerados e respeitados configurando o que nós também defendemos como
os diversos agentes formadores de nossa Estética da Ginga (BUSSOLETTI; VARGAS, 2013).
história, suas histórias e vozes, além de haver a A Estética da Ginga desenvolve-se a partir do
compreensão, o valor e o respeito de que muitos trabalho conceitual de Hélio Oiticica (1939-1980).
grupos sociais desenvolvem pedagogias próprias Oiticica buscava o que está além da arte, a qual
que não se enquadram nas normatizações políticas ele denominou “intervenção”, assumindo que todo
oficiais contidas nas abordagens e metodologias participante da obra não seria um mero espectador,
caucasianas, europeias e elitizadas. passivo, mas que teria a possibilidade de intervir,
O NALS busca os sujeitos que, muitas vezes, agir e criar a obra que estava sendo proposta naquele
não têm oportunidade de receber reconhecimento momento (BUSSOLETTI; VARGAS, 2013). Oiticica
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