Ciência e Neutralidade Cientifica.

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 21

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/308795411

Crítica à neutralidade científica e suas consequências para a prática científica


em psicologia

Chapter · January 2014

CITATIONS READS

5 2,996

1 author:

Carolina Laurenti
Universidade Estadual de Maringá
66 PUBLICATIONS 236 CITATIONS

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Estudos conceituais sobre a atualidade social do comportamentalismo radical View project

All content following this page was uploaded by Carolina Laurenti on 03 October 2016.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


Psicologia e Análise do Comportamento:

PSICOLOGIA E ANÁLISE
DO COMPORTAMENTO:
Conceituações e Aplicações à Educação, Organizações, Saúde e Clínica

Verônica Bender Haydu | Silvia Aparecida Fornazari | Célio Roberto Estanislau


Reitora Nádina Aparecida Moreno
Vice-Reitora Berenice Quinzani Jordão

Comissão Científica

Os capítulos desta obra foram avaliados e receberam pareceres ad hoc


dos seguintes membros da comissão científica:

Prof. Dr. Alexandre Dittrich


Prof. Dr. Alex Eduardo Gallo
Profª. Dr ª Edneia Perez Hayashi
Profª. Ms. Elen Gongora Moreira
Profª. Dr ª Eliza Dieko Oshiro Tanaka
Prof. Dr. Elizeu Borloti
Prof. Dr. Elizeu Coutinho de Macedo
Profª. Dr ª Elsa Maria Mendes Pessoa Pullin
Prof. Dr. João Juliani
Profª. Dr ª Josiane Cecília Luzia
Profª. Dr ª Josy de Souza Moriyama
Prof. Dr. Kester Carrara
Profª. Dr ª Maria Rita Zoéga Soares
Profª. Dr ª Maura Alves Nunes Gongora
Profª. Dr ª Rosana Aparecida Salvador Rossit
Profª. Dr ª Silvia Cristiane Murari
Profª. Dr ª Silvia Regina de Souza Arrabal Gil
Profª. Dr ª Solange Maria Beggiato Mezzaroba
Profª. Dr ª Verônica Bender Haydu
Prof. Dr. Wagner Rogério da Silva
Psicologia e Análise do Comportamento:
Capa
Ivan Inagaki Aristides

Editoração Eletrônica
Humanidades Comunicação Geral

Impressão e Acabamento
Midiograf
500 exemplares

Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos


Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

P974 Psicologia e análise do comportamento : conceituações e aplicações


à educação, organizações, saúde e clínica / Verônica Bender
Haydu, Silvia Aparecida Fornazari, Célio Roberto Estanislau
(organizadores). – Londrina : UEL, 2014.
568 p. : il.

Vários autores.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7846-267-3

1. Psicologia. 2. Comportamento – Análise. 3. Psicologia


educacional. 4. Psicologia clínica da saúde. I. Haydu, Verônica Bender.
II. Fornazari, Silvia Aparecida. III. Estanislau, Célio Roberto.

CDU 159.9.019.43

O conteúdo do texto é de responsabilidade de seus autores.


Sumário

Apresentação................................................................................ 9

Seção 1 - Conceituações, Teoria e Modelos

Crítica à neutralidade científica e suas consequências para a prática


científica em psicologia.......................................................................... 13
Carolina Laurenti

O comportamento como dimensão biológica dos organismos 29


Amauri Gouveia Junior

Uma discussão sobre a concepção de ciência no livro Science and


Human Behavior.................................................................................... 41
Carlos Eduardo Lopes

História Comportamental: definições e experimentação....................... 61


Carlos Eduardo Costa; Paulo Guerra Soares

Modelos animais de ansiedade: o labirinto em cruz elevado e a


microestrutura do comportamento de limpeza..................................... 91
Célio Estanislau, Naiara Fernanda Costa; Paula Daniele Ferraresi; Heloisa
Maria Cotta Pires de Carvalho

Seção 2 - Educação e Organizações

Análise do comportamento aplicada às pessoas com necessidades


educacionais especiais: programa de capacitação para profissionais da
saúde...................................................................................................... 115
Silvia Aparecida Fornazari; Raquel Akemi Hamada; Carolina Martins Rizardi;
Francislaine Flâmia Inácio; Maria Beatriz Carvalho Devides; Marina Rodrigues
Salviati; Marcio Francisco Dias
Crítica à neutralidade científica e suas consequências
para a prática científica em psicologia

Carolina Laurenti1
Universidade Estadual de Maringá.

O modelo de ciência moderna foi considerado ao longo de ao menos


três séculos (XVII, XVIII e XIX) o paradigma dominante de conhecimento
científico (Köche, 2002; Santos, 1987/2004). Boa parte dos projetos
de Psicologia científica nasceu à luz da ciência moderna, herdando, por
conseguinte, o compromisso com alguns pressupostos basilares desse
modelo de ciência (Figueiredo, 2003). Um dos preceitos do paradigma
científico moderno consiste na noção de neutralidade científica – a ideia
de que a ciência, mediante a adoção de métodos e técnicas especializados,
é capaz de produzir conhecimento objetivo, isento da interferência de
qualquer tipo de valor particular, sejam eles pessoais, sociais, econômicos
ou políticos.
Considerando esses aspectos, este texto pretende examinar
basicamente dois pontos. O primeiro deles consiste em apresentar
algumas críticas tecidas pela filosofia da ciência contemporânea ao
modelo moderno de ciência, mais especificamente, aquelas que atingem
o preceito de neutralidade científica. O segundo ponto insere essa
discussão no terreno psicológico, extraindo algumas consequências da
crítica contemporânea à neutralidade do cientista para a prática científica
em Psicologia.
O texto segue apresentando algumas características gerais da
idea de neutralidade científica, que servirão como pano de fundo para a
descrição de algumas objeções endereçadas a ela e aos seus conceitos
correlatos. Por fim, serão discutidos alguns desdobramentos desse debate
para as pretensões científicas do conhecimento psicológico.

1
Endereço para correspondência: Rua Vereador Nelson Abrão, 2025. Zona 05. Cep. 87015-230.
Maringá, PR. E-mail: [email protected]

13
Psicologia e Análise do Comportamento:

A busca pela neutralidade científica na ciência moderna

A teoria dos ídolos de Francis Bacon (1561-1626) parece ser o


epítome da busca da neutralidade na ciência moderna. Nessa teoria,
Bacon (1620/1979) especifica algumas condições prévias para a produção
de conhecimento científico. Uma delas consiste em uma purificação dos
fatores (ídolos) que obstruirão o alcance das formas – leis universais
que especificam relações de necessidade e suficiência causal entre os
elementos da natureza. São quatro ídolos: da tribo, da caverna, do foro
e do teatro. Os ídolos da tribo dizem respeito às deficiências oriundas da
própria constituição humana. Trata-se da ideia de que os sentidos e as
percepções, sem o devido tratamento, conduzem a ilusões e à falsidade,
e de que sentimentos e afetos podem corromper o acesso à verdade (cf.
Bacon, 1620/1979, pp. 21, 25-26). Os ídolos da caverna restituem os
erros provenientes das idiossincrasias do homem, fruto da história de
vida do indivíduo, das suas relações interpessoais, de sua personalidade
e da educação recebida (cf. Bacon, pp. 21-22, 26-28). Já os ídolos do foro
dão relevo às falhas decorrentes das imprecisões da linguagem, como
o emprego de conceitos e palavras ambíguos, ou de termos que não
correspondam a coisas (ficções) (cf. Bacon, pp. 22, 28-30). Por fim, os
ídolos do teatro são erros decorrentes de sistemas filosóficos ou teorias que
são empregados de maneira acrítica obedecendo, não raro, ao princípio de
autoridade (cf. Bacon, pp. 22-23, 30-37).
A teoria baconiana dos ídolos sugere, então, que sentimentos,
afetos, percepções, personalidade, valores, e teorias “contaminam”
a constituição do conhecimento verdadeiro. Esse, por sua vez, só é
alcançado por aqueles capazes de se livrar dessas fontes de erro, tornando-
se, metaforicamente, tão puros quanto uma criança: “o intelecto deve
ser liberado e expurgado de todos eles [ídolos], de tal modo que o acesso
ao reino do homem, que repousa sobre as ciências, possa parecer-se ao
acesso ao reino dos céus, ao qual não se permite entrar senão sob a figura
de criança” (Bacon, 1620/1979, p. 38, grifos do autor). Livre, portanto,
das distorções da realidade (ídolos), o pesquisador poderia dedicar-se

14
Psicologia e Análise do Comportamento:

metódica, sistemática e exaustivamente à observação dos fenômenos da


natureza (Bacon, 1620/1979; Köche, 2002).
Esse processo de purificação dos pré-conceitos na produção de
conhecimento científico subscreve as clássicas dicotomias entre fatos e
valores, e entre fatos e teorias típicas da ciência moderna. No caso da
distinção radical entre fatos e valores, o modelo científico moderno entende
que os fatos encerram descrições causais entre eventos observáveis, cujo
caráter inexoravelmente ordenado pode fundamentar o conhecimento
legítimo. Já os valores incorporam emoções e sentimentos; e por serem
pessoais, relativos e irregulares não podem alicerçar o conhecimento
verdadeiro. Essa desqualificação dos valores, anunciada desde Bacon,
esteve presente em Copérnico e Newton, e foi atualizada pelo programa
positivista lógico de ciência, que não outorgou aos valores significado
cognitivo (Mariconda, 2006). Com efeito, as questões de fato (objetivas)
foram reservadas à ciência; e as de valor (subjetivas) aos campos da ética,
política, estética, religião e senso comum.
No caso da dicotomia entre fatos e teorias, os primeiros são
vistos como sólidos e imutáveis, e, por isso, são os árbitros decisivos de
disputas teóricas, “o último tribunal de recursos” (Kuhn, 2006, p. 135).
As teorias, diferente dos fatos, são fluidas e mutáveis, pois são calcadas
na interpretação de pesquisadores individuais. A interpretação, por ser
um processo humano, difere de pessoa para pessoa. Nessa ótica, dois
observadores muito bem equipados fariam as mesmas observações, e
possíveis discordâncias residiriam somente nas eventuais diferenças de
suas convicções teóricas. Em outras palavras, se os fatos não mudam,
as diferentes descrições dos fatos devem-se unicamente às “diferentes
interpretações daquilo que é visto igualmente por observadores normais”
(Hanson, 1975, p. 130, grifos do autor). Em suma, para a ciência moderna
os fatos são o fundamento das teorias, pois são “puros”; já as diferenças
entre os fatos se manifestam apenas na atividade de interpretação, que
impinge teorias distintas a essa plataforma arquimediana (os fatos).
Sendo a ciência capaz de descobrir fatos sólidos isentos de qualquer
compromisso com uma forma de valor particular, o conhecimento
científico é, pois, objetivo. Objetividade, aqui, pode ser entendida como

15
Psicologia e Análise do Comportamento:

sinônimo de neutralidade. A objetividade, por seu turno, é a garantia de


acesso à verdade, isto é, a uma representação fiel do objeto conhecido,
posto que livre das perturbações do intelecto humano. Desse modo,
a produção de conhecimento no modelo científico moderno segue o
itinerário da neutralidade, objetividade e verdade. Nessa ótica, a ciência
é considerada a única forma de produção humana capaz de receber, com
justiça, a designação de conhecimento. Sendo “contaminadas” por valores,
as outras formas de compreensão da realidade são passíveis de falsidade,
e, portanto, sequer são merecedoras de serem tratadas como formas
de conhecimento. No limite, recebem a alcunha de opinião. O cientista
moderno pensava, então, ter descoberto o caminho do conhecimento
certo e verdadeiro. E “esse caminho era o da ciência” (Köche, 2002, p. 58).
A ciência moderna inaugura o cientificismo – o dogmatismo moderno –,
que consiste na crença de que o único conhecimento válido é o científico,
não admitindo outras formas de se atingir o saber senão aquelas
consagradas pelos cânones do método científico.

Críticas à noção de neutralidade científica

A despeito do sucesso de suas aplicações teóricas e práticas, o


modelo de ciência moderna tem sofrido ácidas críticas, advindas da
própria ciência (Earman, 1986; Mayr, 2004/2005; Prigogine, 2003), e
também da história, filosofia e sociologia das ciências (Bourdieu, 1983;
Kuhn, 2006; Santos, 1987/2004). Um dos alvos de crítica é, justamente,
a noção de neutralidade científica e de seus correlatos, como a dicotomia
entre fatos e valores (ou fatos e teorias), bem como sua postura dogmática
cientificista.
Diferente da visão de ciência moderna, que entende os fatos como
sendo acessíveis e indubitáveis para qualquer observador bem equipado,
Kuhn (2006) critica a demarcação rígida entre fatos e teorias. Defende
que os fatos da ciência não são sólidos, mas fluidos, já que dependem
das crenças e teorias existentes: “produzi-los [os fatos] exigia uma
aparelhagem, ela própria dependente de teoria, na maioria das vezes

16
Psicologia e Análise do Comportamento:

dependente da teoria que os experimentos iriam, supostamente, testar”


(Kuhn, 2006, p. 136). Kuhn também impugna o itinerário empirista
que advoga a prioridade dos fatos em relação às teorias – primeiro tem-
se os fatos, e depois, as teorias, que estão assentadas em fatos. Longe
dessa concepção tradicional de ciência, a própria demarcação dos fatos
já está circunscrita em uma teoria. Assim, fatos e teorias são construídos
concomitantemente: as teorias moldam a descrição dos fatos ao mesmo
tempo em que os fatos moldam as teorias deles extraídas.
Considerando essa relação de interdependência, a delimitação
dos fatos e das teorias é produto de um processo de negociação do qual
participam fatores biográficos, sociais, políticos, bem como processos
advindos da observação da natureza (Kuhn, 2006). Hanson (1975)
complementa: “elas [observação científica e a interpretação] não podem,
em princípio, separar-se e seria conceitualmente inútil tentar a cisão. A
observação e a interpretação vivem uma vida de simbiose mútua, de modo
que cada uma sustenta a outra, conceitualmente falando, e a separação
redunda em morte de ambas” (p. 138).
Com efeito, diferente da teoria dos ídolos baconiana, a discussão
científica contemporânea sugere que as teorias são inerentes à delimitação
dos fatos das ciências. Isso significa que ao processo de produção de
conhecimento científico cumpre explicitar essa participação e como ela
afeta o delineamento dos fatos, ao invés de se voltar para sua aniquilação,
como parece propor Bacon (1620/1979).
Embora tenha sinalizado um abandono gradativo do princípio de
autoridade da escolástica, sendo responsável pelo próprio surgimento
do campo da ciência natural (Mariconda, 2006), a distinção absoluta
entre fato e valor já não apresenta mais esse caráter progressista. O
abismo entre o conhecimento produzido por cientistas e o conhecimento
produzido pelo homem comum, que salvaguardava a neutralidade do
próprio empreendimento científico, não parece mais se sustentar. Isso
porque há um circuito de retroalimentação entre ciência e sociedade:
“o desenvolvimento social e a aplicação da ciência determinam, em
considerável medida, o posterior desenvolvimento conceitual interno da

17
Psicologia e Análise do Comportamento:

ciência” (Marcuse, 1966/2009, p. 161). O trecho que segue esclarece esse


ponto:

A ciência está hoje em uma posição de poder que traduz quase


imediatamente avanços puramente científicos em armas políticas
e militares de uso global e eficiente. O fato de que a organização
e o controle de populações inteiras, tanto na paz quanto na guerra,
tornou-se, em sentido estrito, um controle e organização científicos
(dos aparelhos domésticos técnicos mais comuns até os mais
sofisticados métodos de formação da opinião pública, da publicidade
e da propaganda) une inexoravelmente a pesquisa e os experimentos
científicos com os poderes e planos do establishment econômico,
político e militar. Consequentemente, não existem dois mundos: o
mundo da ciência e o mundo da política (e sua ética), o reino da teoria
pura e o reino da prática impura – existe apenas um mundo no qual
a ciência, a política e a ética, a teoria e a prática estão inerentemente
ligadas. (Marcuse, 1966/2009, p. 160)

Nessa perspectiva, dizer que a intenção do pesquisador é pura,


que é motivado simplesmente pela curiosidade; que ao trabalhar em
seu gabinete ou laboratório não pode antever se suas descobertas terão
efeito benéfico ou destrutivo para a sociedade, e que, em última análise, a
aplicação de seus achados será feita por técnicos com o aval de políticos,
não justifica a neutralidade e a irresponsabilidade do cientista perante
as consequências sociais da ciência (Marcuse, 1966/2009). Desse modo,
a questão da responsabilidade social da ciência e dos cientistas passa a
ser vista como algo inseparável da própria atividade científica. Mais uma
vez, a teoria baconiana dos ídolos é colocada em xeque, pois essas críticas
sugerem que aspectos políticos e econômicos participam, ativamente, do
processo de constituição do conhecimento científico. Por conseguinte,
a ciência não pode mais ser um conhecimento desinteressado –
desinteressado pelos interesses políticos e econômicos que se utilizam do
conhecimento científico (Morin, 1990/2008).
A distinção rígida entre fatos e valores, e fatos e teorias da ciência
moderna não escapa a mais uma crítica. Bourdieu (1983) dá visibilidade
à disputa de interesses não apenas políticos e econômicos no interior da
ciência, mas também aos interesses pessoais de cientistas e grupos de

18
Psicologia e Análise do Comportamento:

cientistas particulares. Bourdieu vê a ciência como um campo, que pode


ser entendido como um sistema de relações objetivas entre posições
adquiridas por pesquisadores que concorrem pelo monopólio de uma
espécie particular de capital simbólico: a autoridade científica – o poder
de impor os critérios que definem o que é e o que não é científico. A
autoridade ou competência científica consiste na capacidade técnica e no
poder social de agir e falar em nome da ciência. Esse tipo de autoridade é
atribuído a um dado pesquisador ou grupo de pesquisadores não apenas
pela sua competência técnica, mas também em função de sua posição
atual no campo, de sua origem social e capital cultural e simbólico herdado
e acumulado ao longo de sua trajetória de vida acadêmica. Além disso, o
próprio Bourdieu (1983) destaca que a avaliação da capacidade técnica é
influenciada pelos títulos escolares, distinções e rituais de consagração
científica.
Em função desses fatores, a distribuição do capital científico
no interior do campo não é igualitária, a ponto de poder inscrever os
praticantes da ciência em dois pólos: dominantes e dominados (Bourdieu,
1983). Os dominantes, que detêm o capital científico, procuram preservá-
lo por meio de estratégias de conservação, com vistas a perpetuar a ordem
científica com a qual compactuam. Em outro extremo encontram-se os
dominados, os que não detêm o capital, mas que, por meio de estratégias
de subversão, lutam para alcançá-lo. Por meio de um “golpe de estado”, os
dominados procuram acumular capital científico desviando em proveito
próprio o crédito que outrora beneficiava os antigos dominantes. Aqui,
acumular capital é fazer um nome conhecido e reconhecido, que destaca seu
portador de um fundo indiferenciado, no qual se perde o homem comum.
É pelo confronto entre dominantes e dominados ou entre ortodoxias e
heterodoxias que vão se definindo os contornos e os limites de um dado
campo científico, bem como se explicam parte das transformações que
ocorrem nas teorias, nos objetos e nos métodos (Bourdieu, 1983).
Essa distribuição desigual da autoridade científica explica, por
um lado, a tendência dos pesquisadores em se concentrar em torno dos
problemas de pesquisa mais prestigiosos. E, por outro, ajuda a elucidar o
fluxo de migração de pesquisadores para objetos que, mesmo sendo menos

19
Psicologia e Análise do Comportamento:

prestigiosos, têm a vantagem de atrair um menor número de adeptos.


Isso pode acarretar um nível de competição mais fraco e, justamente por
isso, maiores possibilidades de reconhecimento (Bourdieu, 1983).
A descrição da ciência como um campo no qual participam disputas
pela autoridade científica desmorona o mundo puro da ciência e da
infalibilidade de seus produtos. Por outro lado, faz ressurgir a ciência
como uma prática social atravessada por interesses nem sempre explícitos,
por posições em luta que, em última análise, vão dando os contornos
e os limites do universo científico. As análises de Bourdieu (1983) do
campo científico mostram que, diferente da teoria dos ídolos baconiana,
idiossincrasias, desejos humanos por reconhecimento e poder interferem
no processo de tomada de decisão da ciência.
Em suma, a filosofia da ciência contemporânea faz objeções
severas à noção de neutralidade do pensamento científico moderno. A
teoria dos ídolos baconiana é colocada em dúvida quando se explicita a
participação de sentimentos, afetos, interesses particulares, aspectos
sociais, econômicos e políticos no processo de produção de conhecimento
científico.
A crítica à neutralidade científica pode encorajar uma concepção
que decreta o fim da ciência, instalando o relativismo e o obscurantismo.
O argumento parece ser o seguinte: para que um dado conhecimento
seja classificado como científico, o seu processo de produção deve estar
assentado na neutralidade do cientista. Como essa neutralidade foi
impugnada pelas críticas de natureza epistemológica e sociológica,
a possibilidade do próprio empreendimento científico foi colocada
em suspeita. Enfim, se o conhecimento não puder ser objetivo (isto é,
neutro), então, não pode ser científico. Não obstante, as objeções à
idea de neutralidade científica não implicam necessariamente nessa
ilação. Declarar o fim da ciência com base na impossibilidade de se
cumprir o preceito da neutralidade subscreve uma relação entre ciência e
neutralidade passível de desidentificação.
A filosofia da ciência contemporânea parece investir na possibilidade
de um empreendimento científico cuja objetividade não é mais pautada

20
Psicologia e Análise do Comportamento:

pela noção de neutralidade científica (Santos, 1987/2004). Com efeito,


trata-se de decretar o fim de uma concepção específica de ciência – aquela
que define ciência como um conhecimento purificado de valores e de
crenças, e que leva à verdade acerca de um mundo externo que independe
das ações humanas.
Nesse sentido, a ciência contemporânea não abdica do ideal
científico de objetividade, mas o coloca em outras bases. Objetividade não
é mais sinônimo de neutralidade. A objetividade “decorre da aplicação
sistemática de métodos que permitam identificar os pressupostos os
preconceitos os valores e os interesses que subjazem à investigação
científica supostamente desprovida deles [sic]” (Santos, 2000, p. 31). Nessa
linha de raciocínio, dizer que não há fato puro, pois todo fato científico é
um recorte da realidade orientado por teorias, significa afirmar que não
exista fato objetivo? “Não!”, responde Morin (1990/2008), que completa:
“é preciso dizer que é graças às ideias bizarras, graças às hipóteses, graças
aos pontos de vista teóricos é que, efetivamente, conseguimos selecionar
e determinar os fatos nos quais podemos trabalhar e fazer operações de
verificação e falsificação” (p. 43).
Essa concepção alternativa de ciência também investe na busca
por critérios de validação do conhecimento científico. Kuhn (2006),
por exemplo, discute critérios de “exatidão, amplitude de aplicação,
consistência, simplicidade, etc” (p. 149). Todavia, esses critérios não
servem para selecionar proposições (ou crenças) conflitantes que
correspondam a um mundo exterior imutável e absoluto. Esses critérios
selecionam crenças ou teorias concorrentes em relação à sua capacidade
de satisfazer os objetivos da ciência, sancionados pelas práticas dos
cientistas em um dado contexto.
Na esteira dessas análises, parece ainda ser possível advogar a
favor de uma distinção entre conhecimento científico e outras formas
de conhecimento sem que isso endosse o dogmatismo cientificista.
Na visão cientificista da ciência moderna a assimetria entre ciência e
outras formas de saber era pautada por uma relação desigual, unilateral
e hierárquica, já que o conhecimento científico dispunha de um acesso

21
Psicologia e Análise do Comportamento:

privilegiado ao real. A filosofia da ciência contemporânea parece encorajar


outra relação: trata-se de uma relação de diferença e não de superioridade
entre ciência e outros tipos de conhecimento. Diferença porque os
objetivos, as expectativas e os interesses da ciência, suas formas de
dialogar com a realidade natural e social, bem como seus métodos de
aferir as potencialidades e as limitações desse diálogo são distintos de
outros campos do saber, mas isso não significa dizer que são sublimes.
Afastando-se, pois, do cientificismo da ciência moderna, a filosofia da
ciência contemporânea incita a ciência a dialogar com outras formas de
conhecimento, reconhecendo nelas virtualidades para enriquecer sua
relação com o mundo (Santos, 1987/2004, 2000).
Em suma, a crítica à neutralidade científica não inviabiliza o
empreendimento científico. Diferente disso, ela lança o desafio de a
ciência encontrar técnicas, métodos e teorias que deem visibilidade à
complexidade de elementos (cognitivos, afetivos, volitivos, econômicos,
políticos) participantes da construção do conhecimento científico, e que
geralmente são considerados como pano de fundo ou questões secundárias
a esse processo. Em tese, isso significa que o exame da história da ciência
é também o estudo da história de cientistas individuais ou de grupos de
cientistas na defesa dos limites do que é e do que não é científico.

A problemática da neutralidade científica no contexto psicológico


científico

A maioria dos projetos de Psicologia científica originou-se no


cenário da ciência moderna (Figueiredo, 2003). Com efeito, o preceito
da neutralidade científica impôs-se também às propostas psicológicas
com pretensões científicas, trazendo a elas dificuldades suplementares.
A Psicologia teria, desde o início, a tarefa inglória de estudar tudo aquilo
que as outras ciências desprezam ou evitam, pois a noção de neutralidade
científica assenta-se na crença de que aspectos subjetivos ou psicológicos
são fontes de desvio e erro para a construção de um conhecimento
objetivo, uma vez que levariam o cientista a confundir o que é com o que
ele espera ou gostaria que fosse (Bacon, 1620/1979).

22
Psicologia e Análise do Comportamento:

Nesse contexto, a Psicologia moderna parece sofrer o seguinte


impasse. Por um lado, quanto mais a Psicologia tenta se ajustar aos
cânones da ciência moderna, como o da neutralidade científica, menos
psicológica ela parece se tornar. Por outro lado, quanto mais se aproxima
das questões psicológicas, menos próxima da ciência ela se coloca. Na
tentativa de resolver esse embaraço, a Psicologia acaba assentando-se em
um pensamento dicotômico: ou se assume como ciência não-psicológica,
ou como psicologia não-científica (Figueiredo, 2003). Como decorrência
disso, a Psicologia moderna é constantemente obrigada a tomar posição
diante de dicotomias clássicas, quais sejam: objetivo ou subjetivo, externo
ou interno, fatos ou valores, ciência ou misticismo.
Não obstante, a escolha por um dos elementos dessas díades parece
ainda ser subsidiária da relação de implicação entre ciência e neutralidade
própria do modelo científico moderno. Sob esse prisma, para ser científico,
o processo de produção de conhecimento psicológico deve ser encorajado
pela neutralidade científica. Aquelas vertentes psicológicas que optam
pelo objetivo e externo, isto é, pelos fatos, têm grandes chances de serem
científicas. Já aquelas abordagens que se pautam pelo subjetivo e interno,
enfim, pelos valores, são privadas de estatuto científico.
A desidentificação entre objetividade e neutralidade operada
pela filosofia da ciência contemporânea inaugura outras possibilidades
ao campo de conhecimento psicológico. A Psicologia contemporânea
não precisa abdicar do ideal científico de objetividade. Não parece
haver inconsistência entre objetividade e fatores psicológicos como
pensamentos, afetos, crenças, disposições, e expectativas. Isso porque a
filosofia da ciência contemporânea sugere que a objetividade da ciência
reside justamente na sua capacidade teórico-metodológica de expor
essas fontes de produção de conhecimento. Assim, ao lado da sociologia
e história das ciências, a Psicologia parece ter condições de instruir o
discurso da filosofia da ciência elucidando os condicionantes psicológicos
da produção de conhecimento científico. No entanto, para que essas
potencialidades se concretizem, é necessário que a Psicologia invista
em algumas práticas. É preciso que a Psicologia busque alternativas

23
Psicologia e Análise do Comportamento:

ao cientificismo dogmático por um lado, sem incorrer na defesa de um


relativismo, por outro. Para tanto, ela precisa se familiarizar com o
discurso científico-filosófico contemporâneo, que envolve não apenas o
investimento em novas técnicas e métodos de investigação, mas também,
e principalmente, em uma reflexão sobre os pressupostos filosóficos
(ontológicos, epistemológicos e éticos) do fazer científico. Assim, longe
de buscar sua objetividade só no acúmulo de fatos, a Psicologia deve
empregar esforços no estudo de história da ciência, lógica e filosofia
analítica, buscando também uma concepção menos dogmática e mais
ampla de método (Machado, Lourenço, & Silva, 2000).
Na esteira dessa análise, a superação da dicotomia entre fatos e
teorias da ciência moderna reclama por parte da Psicologia o abandono de
uma confiança exacerbada no método científico como um meio de alcançar,
quase que de maneira mecânica, verdades empíricas (Machado, Lourenço
& Silva, 2000). Em outro extremo, a Psicologia deve também evitar
investigações teóricas como “mera verbiagem e especulação ingênua”
(Machado, Lourenço & Silva, 2000, p. 02). Nesse sentido, a comunicação
entre fatos e teorias, e não a redução de um a outro, requer da Psicologia
a busca pelo equilíbrio de vários tipos de investigação, como as teóricas, as
conceituais e as empíricas (Machado, Lourenço & Machado, 2000). Se os
fatos psicológicos são moldados pelas teorias psicológicas, e estas, por sua
vez, são igualmente moldadas pelos fatos, então, a Psicologia deve, mais
do que nunca, buscar critérios de correção do conhecimento produzido
para que essa relação não redunde em um círculo vicioso.
Se, de acordo com a filosofia da ciência contemporânea, não há uma
separação absoluta entre fatos e valores, a Psicologia deve refletir os valores
cognitivos, sociais, políticos e econômicos que subjazem à produção do
conhecimento psicológico. Trata-se, pois, de dar visibilidade aos aspectos
responsáveis pelos contornos do campo psicológico – aspectos que
incluem não apenas reflexões teóricas, metodológicas e tecnológicas, mas
também interesses em luta pela busca de autoridade científica, isto é, pelo
poder dizer o que é e o que não é científico no âmbito psicológico.
A Psicologia deve rever sua relação com outros campos do saber,
notadamente, com o senso comum. Sob a ótica do cientificismo, o

24
Psicologia e Análise do Comportamento:

conhecimento psicológico contrasta com o “conhecimento” do senso


comum. O primeiro é superior, objetivo e verdadeiro. O segundo é inferior,
subjetivo e passível de falsidade, já que está à mercê das impressões
superficiais dos sentidos e das idiossincrasias individuais. Destoando dessa
concepção, a filosofia da ciência contemporânea estabelece uma diferença
entre senso comum e ciência, sem subscrever uma relação unilateral entre
esses tipos de saber. É certo que o senso comum pode aprender com a
Psicologia. Com o conhecimento psicológico, o homem comum pode ter
uma relação mais crítica com a realidade social, questionando aquilo que
sempre lhe foi transmitido como algo natural, independente de ações
humanas. Ele pode entender também os condicionantes psicológicos de
suas ações, e, a partir desse conhecimento, vislumbrar possibilidades de
mudança de sua própria vida, de seu entorno e, quiçá, de sua cultura.
Mas, inversamente, a Psicologia pode aprender com o senso comum.
O senso comum é afeito a conviver com a diferença, com a pluralidade de
crenças e opiniões. Nesse contexto, o respeito é um exercício constante
para promover a convivência mútua. Isso não significa que não há
debate ou conversa acalorada, mas, ao menos, o diálogo é iniciado com
o outro sem desqualificá-lo de antemão. O senso comum é curioso, mas
ressabiado; precisa da conversa para formar um julgamento, mesmo que
esse seja pautado por impressões iniciais e superficiais.
A Psicologia, tal como o senso comum, convive com uma
diversidade de crenças ou teorias psicológicas, o que para o próprio Kuhn
(1962/2003) foi visto como um sinal da fraqueza do campo psicológico.
Mas diferente do diálogo que se vê no senso comum, o terreno psicológico
parece ser alvo de uma falta de comunicação. Muitas vezes, essa ausência
de interlocução é travestida de superespecialização. A comunicação entre
diferentes abordagens psicológicas é evitada como uma questão política.
Cada uma desenvolve uma linguagem própria, passível de ser entendida
apenas em seu próprio raio de atuação. Os problemas internos tornam-se
cada vez mais técnicos e cada vez menos interessantes para os de fora.
No limite, a falta de diálogo cria um campo protetor a cada abordagem
psicológica que se torna imune a qualquer crítica externa.

25
Psicologia e Análise do Comportamento:

Talvez, a fragilidade da Psicologia não esteja em sua pluralidade


teórico-metodológica, mas em sua dificuldade de colocar essa diversidade
para dialogar. Um debate orientado por reflexões dos pressupostos
científico-filosóficos do conhecimento psicológico dificilmente redundará
em ecletismo ou reducionismo. Esse diálogo é capaz de colocar diferenças
e afinidades entre abordagens psicológicas em bases conceituais mais
claras. Com efeito, a pluralidade do campo psicológico pode ser revertida
a favor da Psicologia com a adoção de posturas muito similares às do
senso comum, quais sejam: a curiosidade pelo outro, pelo diferente,
sem desqualificá-lo a priori; a necessidade do diálogo e do debate como
condição para a formação de julgamento alheio; e o exercício do respeito
no debate acalorado de ideas.
É com atitudes semelhantes a essas que a Psicologia pode dar
passos largos na constituição de um conhecimento objetivo, mesmo
que esse conhecimento não seja calcado na neutralidade científica. Em
outras palavras, a Psicologia pode ser uma ciência objetiva no sentido de
ser capaz de expor de modo cada vez mais sistemático os condicionantes
cognitivos, afetivos, políticos e econômicos do processo de produção do
conhecimento psicológico.

Referências

Bacon, F. (1979). Novum organum (J. A. R. de Andrade, Trad.). In V. Civita


(Org.), Os Pensadores (pp. 05-231). São Paulo: Abril Cultural. (Trabalho original
publicado em 1620).

Bourdieu, P. (1983). O campo científico (P. Montero & A. Auzmendi, Trads.). In R.


Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu: Sociologia (pp. 122-155). São Paulo: Ática.

Earman, J. (1986). A primer on determinism. Dordrecht: Reidel.

Figueiredo, L. C. M. (2003). Matrizes do pensamento psicológico (10ª ed.).


Petrópolis: Vozes.

26
Psicologia e Análise do Comportamento:

Hanson, N. R. (1975). Observação e interpretação (L. Hegenberg & O. S. da Mota,


Trads.). In S. Morgenbesser (Org.), Filosofia da ciência (2a ed.) (pp. 127-138). São
Paulo: Cultrix; EDUSP.

Köche, J. C. (2002). Fundamentos de metodologia científica (20a ed. atualizada).


Petrópolis: Vozes.

Kuhn, T. S. (2003). A estrutura das revoluções científicas (B. V. Boeira, & N. Boeira,
Trads.). São Paulo: Perspectiva (Trabalho original publicado em 1962).

Kuhn, T. S. (2006). O problema com a filosofia histórica da ciência (C. Mortari,


Trad.). In O caminho desde a estrutura (pp. 133-151). São Paulo: Unesp.

Machado, A., Lourenço, O. & Silva, F. J. (2000). Facts, concepts and theories: the
shape of psychology’s epistemic triangle. Behavior and Philosophy, 28, 1-40.

Marcuse, H. (2009). A responsabilidade da ciência. Scientiae Studia, 7, 159-164.


(Trabalho original publicado em 1966).

Mariconda, P. R. (2006). O controle da natureza e as origens da dicotomia entre


fato e valor. Scientiae Studia, 4, 453-472.

Mayr, E. (2005). Biologia, ciência única (M. Leite, Trad.). São Paulo: Companhia
das Letras. (Trabalho original publicado em 2004).

Morin, E. (2008). Ciência com consciência (M. D. Alexandre, & M. A. S. Dória,


Trads.) (12a ed. revista e modificada pelo autor). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
(Trabalho original publicado em 1990).

Prigogine, I. (2003). O fim da certeza (A. M. da Cunha, Trad.). In C. Mendes


(Org.), Representação e complexidade (pp. 47-67). Rio de Janeiro: Garamond.

Santos, B. S. (2000). A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência


(vol. 1). São Paulo: Cortez.

Santos, B. S. (2004). Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez. (Trabalho


original publicado em 1987).

27

View publication stats

Você também pode gostar