Administrador, 04 Elson - Cidade Urbanismo e Mobilidade Urbana

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Cidade, urbanismo e mobilidade urbana

Elson Manoel Pereira*

Resumo
A mobilidade é um atributo do território e um direito do cidadão
urbano. Para a solução de seus problemas faz-se necessário a
compreensão da cidade, como elemento complexo. As soluções de
mobilidade precisam superar a visão puramente técnica e abordá-la
como uma realidade constitutiva da sociedade e da cidade
contemporâneas.
Palavras-chave: Mobilidade urbana; Direito à cidade; Transporte
urbano.

City, urban planning and mobility

Abstract
Mobility is an attribute of the territory. To search for good
solutions for mobility-related problems it is necessary to
understand the city as a complex element. Mobility solutions need
to overcome the purely technical vision and approach to mobility
as a constitutive reality of society and the contemporary city.
Keys words: Urban mobility; Right to the city; Urban transport.

*
Professor do departamento de Geociências e dos Programas de Pós-
Graduação em Geografia e de Pós-Graduação em Urbanismo, História
e Arquitetura da Cidade – UFSC (elsonmp@hotmail.com).
Geosul, Florianópolis, v. 29, ESPECIAL, p 73-92, jul./dez. 2014
PEREIRA, E.M. Cidade, urbanismo e mobilidade urbana.
Introdução
Um dos temas recorrentes no debate sobre a cidade brasileira
hoje é a dificuldade de se deslocar no interior de seu território. A
Mobilidade Urbana está na moda; ela está no debate acadêmico, no
debate político, nos programas de televisão, mas principalmente
afetando o cotidiano das pessoas que vivem em nossas cidades.
Mas, apesar de estar em pauta, há muita imprecisão em relação ao
seu entendimento; há muita opinião sem base científica e acima de
tudo, há um empobrecimento do debate sobre a mobilidade, pois
muitas vezes ele é restrito ao aspecto técnico dos meios de
transporte.
É preciso compreender a necessidade de mobilidade como
uma característica fundamental da sociedade e cidade
contemporâneas; desta forma, é necessário igualmente compreendê-
la a partir de sua articulação com as demais políticas urbanas.

Uma distinção fundamental


Preliminarmente é preciso, para avançarmos na compreensão
do tema, que façamos uma diferenciação entre os conceitos de
mobilidade e de transporte: transporte é o movimento de pessoas
ou mercadorias com utilização de meios de transporte individual
ou coletivo; mobilidade urbana é um atributo do território que diz
respeito ao acesso fácil a diferentes áreas de uma cidade; deve ser
entendida de uma forma ampla, articulada com a própria forma da
cidade, como o resultado de um conjunto de políticas de transporte,
de circulação, de acessibilidade e de trânsito, além das demais
políticas urbanas; o objetivo maior de uma política de mobilidade
urbana seria o de priorizar o cidadão na efetivação de seus anseios
e necessidades, melhorando as condições gerais de deslocamento
na cidade.
A indiferenciação dos termos transporte e mobilidade reduz
as possibilidades de soluções para os problemas relacionados a esta
última. Em Florianópolis, por exemplo, há dez anos, quando se

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falava em problemas de mobilidade urbana logo se apontava como
solução a construção de uma nova ponte, elemento fundamental do
sistema viário da cidade e, portanto essencial num sistema de
transporte rodoviário.
O debate público ajudou a mostrar que os problemas de
mobilidade não diziam apenas ao sistema viário e seu principal
gargalo em Florianópolis: a ponte. Outros elementos, como o fato
da cidade ter uma mobilidade baseada no transporte
predominantemente rodoviário individual (automóvel), a
insuficiência de transporte público, a dificuldade de
intermodalidade e a própria ocupação dispersa e ao mesmo tempo
concentrada em alguns pontos do território, foram apontados, no
debate público, como elementos que dificultavam uma melhor
mobilidade na capital catarinense. O debate sobre a mobilidade na
capital catarinense avançou mostrando a necessidade de abordar
elementos que iam além do transporte de pessoas e mercadorias,
embora não se tenha ainda resolvido o problema de mobilidade em
Florianópolis.
Esta diferenciação nos permite apontar que, por um lado,
pode haver mobilidade sem transporte, e pode outro lado podem
existir meios de transporte sem que haja mobilidade. Explico:
quando a população tem suas necessidades supridas nas
proximidades de sua casa; quando a cidade possui certa densidade
(construtiva, de pessoas, mas também de diferenças de usos do
solo), a mobilidade pode ser feita a pé (pedestrianismo) e os meios
de transportes, motorizados ou não, são menos necessários para o
deslocamento. Da mesma forma, os meios de transporte podem ser
tão caros em determinadas situações, que muitas pessoas não
podem acessá-los, negando-se assim a mobilidade a uma parte da
população.

Mobilidade, cidade-direito e cidade-mercado


A reflexão sobre cidade-direito e cidade-mercado é
apresentada por Santos Junior (2007) quando ele discute questão

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da participação no planejamento urbano; essa discussão mostra-se
igualmente importante quando se discute mobilidade urbana.
Analisando o planejamento e a gestão das cidades brasileiras,
Santos (2007) aponta para uma disputa de dois paradigmas de
política urbana: a cidade-mercado e a cidade-direito. No primeiro,
a participação política se daria a partir do “reconhecimento dos
agentes como clientes-consumidores, portadores de interesses
privados, impedindo a construção de uma esfera pública que
represente o interesse coletivo” (p.306).
Diluem-se as ideias de totalidade e de cidadania, que perde
sua conexão com a ideia de universalidade; divide o espaço
político entre hipercidadãos e subcidadãos. Por sua vez, o
paradigma cidade-direito está, segundo o autor, em construção,
“tanto em relação ao aspecto teórico quanto em relação ao da
práxis sócio-política” (p. 307). Ele “afirma o papel central do poder
público no planejamento urbano e o seu compromisso com o
enfrentamento dos mecanismos de produção de desigualdades e
exclusão decorrentes da vigência da dinâmica do mercado no uso e
ocupação do solo urbano e do controle do poder político pelos
históricos interesses patrimonialistas” (p. 307).
Quando se encara a mobilidade apenas como um serviço
urbano, o transporte é considerado um produto (ou uma
mercadoria) e o habitante é considerado como um cliente-
consumidor. Neste contexto, a discussão da tarifa torna-se central.
Por outro lado, quando encarada como um direito, a mobilidade é
colocada no patamar da saúde ou da educação públicas: na
universidade pública brasileira, por exemplo, os custos são todos
subsidiados com verbas públicas. Por quê? Porque a educação
superior no Brasil é vista como direito fundamental; ela não é
gratuita, mas financiada pelo conjunto da sociedade brasileira.
Hegemonicamente, os governos municipais, responsáveis
constitucionalmente pelo transporte público, tem abordado a
mobilidade urbana como um serviço que deve ser pago
principalmente pelos usuários do transporte público. Portanto, a

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visão que predomina no trato com o transporte urbano é o da
cidade-mercado.
A importância da mobilidade vai além de um direito em si;
ela é um direito que dá acesso a outros direitos, na medida em que
ela possibilita ao cidadão ir ao trabalho, à escola, de acessar os
equipamentos de saúde. Mas, o contrário também é verdadeiro:
sem mobilidade, há um cerceamento do acesso aos direitos. Por
exemplo, aquele cidadão que está procurando emprego e não tem
dinheiro para pagar os meios de transporte, ele está sendo
impedido do direito ao trabalho.

O direito à cidade
Além de ser um direito em si e dar acesso a outros direitos, a
mobilidade urbana tem outro atributo fundamental: o de propiciar
direito à cidade. Sobre o conceito de Direito à Cidade é necessário
recorrer ao seu autor: durante a década de 1960, Henri Lefebvre,
tendo até então trabalhado principalmente nas áreas sociológicas e
filosóficas, concentrou a sua atenção nas questões geográficas e
urbanas. Em 1968, este intelectual publicou um dos seus trabalhos
mais importantes, a saber, O Direito à Cidade.
Nesta obra, ele propõe uma concepção alternativa do fazer e
do viver a cidade, procurando restituir ao cidadão um poder de
ação sobre o meio urbano e assim devolver-lhe uma capacidade de
atuar sobre o seu ambiente. Aliás, a reflexão conduzida revela-se
muito ampla e claramente ambiciosa: o direito à cidade se
manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à
individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. Uma
capacidade plena de mobilidade no território da cidade, permitiria
ao cidadão vivê-la em todas as suas dimensões. Mas Lefebvre
adverte: “O direito à cidade não pode ser concebido como um
simples direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só
pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada,
renovada.” (1968, p.116-7).

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Desde o século XIX, a questão da moradia constitui-se num
verdadeiro desafio. Ao longo do tempo vários pensadores
debruçaram-se sobre esta problemática. Evidentemente, houve
médicos que se confrontaram com as condições de vida
deploráveis dos seus doentes, e mais amplamente os intelectuais,
preocupados com o destino dos mais pobres e com o estado de
saúde no centro das cidades. O tema torna-se mesmo muito
politizado.
O movimento marxista, que é, aliás, muito urbano em suas
preocupações primordiais, encontrou notadamente aqui um terreno
fértil para sua reflexão. Friedrich Engels (2008) pôde por exemplo
descrever o destino das populações operárias vivendo na miséria e
na insalubridade, antes de tratar a problemática da moradia de uma
forma mais teórica. Com o tempo, porém, é mais amplamente todo
o espectro político, os múltiplos atores públicos ou mesmo os
industriais que tiveram que propor respostas, em particular
soluções em termos de financiamento, para conter esse desastre.
Após muitas décadas, dado que na França foi necessário
chegar aos anos de 1960, a questão da moradia tinha ficado menos
problemática. E, embora a chegada massiva na métropole de
populações francesas nascidas na Argélia provocasse algumas
dificuldades, esta questão da moradia tinha sido ofuscada em
benefício de outras prioridades. Ainda permaneciam, próximas a
Paris, as favelas de Nanterre ou de Noisy-le-Grand, cujo
desaparecimento aconteceria somente em meados da década de
1970. Mas no geral, a problemática da moradia tinha sido tratada
com eficiência. O sistema produtivo tinha conseguido oferecer os
meios técnicos que permitiram atender as várias carências de
moradia. E os poderes públicos tinham se organizado e se
estruturado para cumprir, o melhor possível, esta função.
E quando finalmente foi conseguido resolver o problema de
falta de moradia e de condições sanitárias, Henri Lefebvre
demonstra os limites da reflexão centrada, antes de tudo, na
questão da moradia. O sociólogo e geógrafo francês vem neste
momento sublinhar a questão do habitar. E, de certo modo, ele

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tende paradoxalmente se aproximar de alguns pontos da
argumentação desenvolvida por Martin Heidegger, que aliás ele
menciona várias vezes. A produção - extremamente materialista -
da moradia, não saberia satisfazer todas as necessidades
antropológicas. O problema contemporâneo - explica o filósofo
alemão - não é uma crise da moradia. É mais uma crise do habitar,
do não saber mais habitar, e do não saber mais construir para o
habitar. E, finalmente, é uma crise do ser (HEIDEGGER, 1973).
Pois, segundo a fenomenologia heideggeriana, construção
territorial e constituição ontológica são intimamente ligadas
(HOYAUX, 2002).
Em Henri Lefebvre, a reflexão sobre o habitar toma uma
forma mais social, e de certo modo mais política. Martin
Heidegger, na sua demonstração, não integrava diretamente a
questão do Outro. O ser estava à procura de um lar, pois está antes
de tudo numa confrontação com o espaço. Para o pensador francês,
"habitar" era participar de uma vida social, de uma comunidade,
aldeia ou cidade. A vida urbana detinha, ente outras, essa
qualidade, esse atributo. "Ela deixava habitar, permitia que os
citadinos-cidadãos habitassem" (LEFEBVRE, 1968, p. 18).
Por trás da expressão de certa nostalgia, o autor define um
habitar que não saberia existir sem sociabilidade, até mesmo sem
urbanidade. Assim, o direito à cidade constitui, entre outras, uma
tentativa de reaver a histórica relação entre o urbano e o citadino
(entre urbs e civitas). Esta tem sido prejudicada por uma geração
de ações urbanísticas de forma essencialmente quantitativa,
avaliadas em função do número de moradias disponibilizadas, e
através das quais parece monumentalizado a moradia, isto em
detrimento de lugares e construcções mais comunitários, ou até
mesmo públicos (PINSON, 1997).
Para Lefebvre, muitos dos problemas do urbanismo do
século XX têm relação com o desconhecimento, por parte daqueles
que intervinham na cidade, da essência da cidade e do urbano.

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A mobilidade e sua relação com a cidade
Assim como no urbanismo dos “homens de boa vontade”
(LEFEBVRE, 1991), um dos grandes erros das políticas públicas
setoriais ligadas à mobilidade está em não compreendê-las na sua
relação com a cidade e sua complexidade. Ao contrário, há muito
tempo vem se tentando simplificar o entendimento de cidade e por
consequência, as soluções para os problemas urbanos são
simplistas e ineficazes. Nesse aspecto, o urbanismo no século XX
fez um desserviço à compreensão do que é cidade, por compará-la,
ora com uma fábrica, ora com um organismo vivo ou com outra
metáfora simplificadora: cidade não é nada disso; por mais que as
metáforas tentem explicá-la, elas nunca chegarão próximas da
complexidade do funcionamento, dos processos, das estruturas da
cidade. Portanto, compreender o planejamento urbano sem
compreender a geografia urbana é um grande erro. Da mesma
forma, propor soluções para os problemas de mobilidade sem
compreender a cidade não alcança o cerne da questão.
“O Urbanismo está na moda. As questões e reflexões
urbanísticas saem dos círculos dos técnicos, dos
especialistas, dos intelectuais que pretendem estar na
vanguarda dos fatos. Passam para o domínio público
através de artigos de jornais e livros ao alcance e ambição
diferentes”.
“ (...) E no entanto, as questões relativas à cidade e à
realidade urbana não são plenamente conhecidas e
reconhecidas; ainda não assumiram politicamente a
importância e o significado que têm no pensamento e na
prática” (LEFEBVRE, 1991, p.1).

Para compreendermos a cidade que chegou ao século XXI


é preciso voltar na história: antes da industrialização as cidades
tinham outra forma e outro conteúdo; a industrialização tomou a
cidade de assalto. As imagens de Londres e de outras cidades da
Inglaterra logo após a Revolução industrial eram imagens do caos
urbano; isso em função do êxodo rural; a cidade chamava a

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população dos campos; a densidade ficou gigantesca. A Indústria
trouxe para as cidades problemas que ela nunca teve. Londres
passa de 400 mil para 4 milhões de habitantes em poucas décadas.

Figura 1: A cidade Industrial


Fonte : http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/revolucao-industrial/
consequencias-da-industrializacao.php, acessado em 25/11/2014.

O processo de urbanização no Brasil, embora tardio, é


igualmente acelerado. Entre 1940 e 1980, a proporção entre a
população urbana e a população rural se inverte: a população urbana
passa de 30% a 70%. Logo, a cidade que surge da revolução
industrial apresenta problemas que antes não apresentava. Esses
problemas exigem a invenção de uma área do conhecimento que
antes também não existia: o urbanismo. A própria palavra urbanismo
é inventada em 1870 por Idelfonso Cerda.

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Figura 2: Ville Radieuse, de Le Corbusier de 1930


Fonte: http://thecharnelhouse.org/2010/09/17/exact-air/. Acessado em
25/11/2014

O campo do conhecimento que surge da necessidade de dar


respostas aos problemas que antes as cidades não apresentavam,
vai propor uma organização que lhes simplifica a forma e suas
funções. Essa simplificação leva a respostas insuficientes aos
problemas urbanos. Era um urbanismo funcional e que incentivava
a circulação. “Circulai, Circulai, Circulai”, proclamava Le
Corbusier, o grande ideário do urbanismo dito funcionalista ou
modernista que foi hegemônico por todo o século XX. As soluções
para a mobilidade eram buscadas a partir do sistema viário, que
deveria funcionar como um sistema de grandes artérias, seguindo a
metáfora da cidade como um organismo vivo.

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No entanto, no final do século XX, as cidades e o
planejamento funcionalista baseado no automóvel entraram em
colapso. As primeiras críticas foram feitas na década de 1960 pela
jornalista nova-iorquina Jane Jacobs (2000); em 1968, Henry
Lefebvre critica severamente toda uma geração de técnicos em
urbanismo que resolveram o problema do défict habitacional
francês do pós-guerra desvinculando o Habitar do Habitat e
simplificando ao extremo a compreensão da cidade.
“declarar que a cidade se define como rede de circulação e
de consumo, como centro de informação e de decisões é
uma ideologia, que procede de uma redução-extrapolação
particularmente arbitrária e perigosa, se oferece como
verdade total e dogma, utilizando meios terroristas. Leva ao
urbanismo dos canos, da limpeza pública, dos medidores,
que se pretende impor em nome da ciência e do rigor
científico. Ou coisa pior ainda” (LEFEBVRE, 1991, p.43).

A incompreensão do que é a cidade concorreu em grande parte


para o colapso do modelo de urbanismo do século XX. A palavra
cidade denomina todas as realidades urbanas, mas não dá conta de
todas as cidades. Lefebvre coloca que a cidade é diversa e que não é
possível compreendê-la apenas a partir daquilo que ele chama de
ordem próxima, nem apenas daquilo que acontece globalmente:
“A cidade sempre teve relações com a sociedade no seu
conjunto, com sua composição e seu funcionamento, com
seus constituintes, com sua história. Portanto, ela muda
quando muda a sociedade em seu conjunto. Entretanto, as
transformações da cidade não são os resultados passivos da
globalidade social, de suas modificações. A cidade depende
também e menos essencialmente das relações de imediatice,
das relações diretas entre as pessoas e grupos que compõem
a sociedade” (LEFEBVRE, 1991, p.46).

Essa dialética do local e do global é que vai explicar as


diversas materializações das cidades. Vamos exemplicar através da

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análise do engarrafamento no trânsito que acontece cotidianamente
em Florianópolis: aquele que acontece nos acessos das pontes
Colombo Sales e Pedro Ivo. Do ponto de vista local, o
congestionamento pode ser explicado pela existência de apenas uma
ligação rodoviária entre a ilha de Santa Catarina e o continente
próximo. Essa parece ser uma explicação plausível e aceita. Mas se
considerarmos que na última década existiu uma política federal que
incentivou a compra de automóveis através da renúncia fiscal do IPI
por parte do governo, podemos considerar que boa parte do
congestionamento pode ser também explicada pelo excessivo
número de automóveis circulantes nas cidades brasileiras.
Mesmo Curitiba, que possui um dos sistemas de transporte
coletivo mais desenvolvido do país, apresenta um índice na ordem
de 1,8 habitantes por carro, o maior entre as capitais estaduais do
país. Assim, o congestionamento poderia ser explicado pela soma
das condições locais com a política federal de incentivo à compra
de automóveis. Mas, podemos acrescentar ainda que essa política
de IPI reduzido se propõe a combater uma crise econômica
mundial, que atinge grande parte dos países. Então a cidade de
Florianópolis sofre não só por questões locais, mas igualmente por
fatores de ordem distantes: nacional e mundial.
Além disto, Lefebvre vai acrescentar que a análise dos
fenômenos urbanos exige o emprego de todos os instrumentos
metodológicos: “forma, função, estrutura, dimensões de
texto/contexto, campo/conjunto, escrita e leitura, sistema,
significante e significado, linguagem e metalinguagem, instituições
etc.” (LEFEBVRE, 1991, p 58).
Como exemplo da análise desses fenômenos, vamos
explorar a questão da relação entre a forma das cidades e a
mobilidade. O gráfico 1 apresenta uma relação do consumo per
capita de combustíveis e as densidades de algumas cidades no
mundo. As cidades americanas apresentam um alto consumo de
combustível em função da baixa densidade. As europeias
apresentam maior densidade que as americanas e um menor
consumo de combustível para transporte per capita E as cidades

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como Moscou e Hong Kong apresentam densidade muito alta e o
consumo de energia em transporte, per capita, muito baixo.

Gráfico 1: Densidade urbana versus consumo de energia em


transporte
Fonte: http://blog.environmentalresearchweb.org/2011/07/26/urban-
density-and-fuel-consump-1/, acessado em 25/11/2014.

Se analisarmos, por exemplo, Houston, veremos uma cidade


com baixa densidade e um alto consumo de energia para transporte
per capita; estudando um pouco a morfologia dessa cidade,

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encontraremos um centro verticalizado, mas com baixa densidade
habitacional, e um subúrbio distante onde mora grande parte da
população. Entre esses dois espaços, estão localizadas várias
autoestradas destinadas ao deslocamento dos habitantes da cidade,
muitas delas com congestionamentos diários. Trata-se de um
movimento caracterizado como pendular entre o centro e a
periferia, que está relacionado diretamente a forma da cidade. A
figura 3 ilustra tal realidade.

Figura 3: Houlston, EUA.


Fonte: http://blog.comshalom.org/carmadelio/tag/homossexualidade,
acessada em 25/11/2014.

No começo de julho deste ano estive em Xanxerê/SC, cidade


de 20 mil habitantes. Apresentei essas informações numa palestra e
coincidentemente a prefeitura local estava discutindo a

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possibilidade de aumentar o perímetro urbano da município.
Apresentei um rápido estudo e mostrei que, com o mesmo
perímetro urbano que o município possui hoje com uma densidade
razoável, eles poderiam chegar a 220 mil habitantes. A cidade
abrigaria uma população cinco vezes maior que aquela que possui
hoje sem aumentar as distâncias urbanas hoje existentes. Mantendo
a mesma densidade atual, haveria a necessidade de aumentar em
muito seu perímetro urbano para alcançar tal população. Na
primeira hipótese seria, sem dúvida, uma cidade com uma
morfologia que demandaria deslocamentos diários menores, com
menos dispêndio de energia para transporte per capita.
Assim vemos que a compreensão dos problemas da cidade
passa por uma análise dos fenômenos urbanos de forma complexa,
pois a cidade é complexa; se desvincularmos as questões de
mobilidade das questões urbanas, nós não vamos conseguir
responder aos problemas, nem encontrar as soluções.
O pensamento crítico sobre o urbanismo levou a repensar os
fundamentos do urbanismo hegemônico do século XX que era (é)
baseado, sobretudo na circulação de automóveis e na necessidade
de construção de grandes estruturas viárias para dar vazão a esta
circulação.
A partir da crítica a esse modelo rodoviarista, algumas
cidades no mundo estão inclusive destruindo estruturas viárias,
como autoestradas e viadutos, e refazendo o espaço urbano a partir
da ideia da cidade como lugar de permanência e do convívio
humano. Foi o caso de Seul (Coreia do Sul), por exemplo, que se
propôs a voltar atrás: uma autoestrada urbana foi destruída
restaurando um curso d’água que havia sido coberto. É um
exemplo que mostra um movimento tentando repensar o urbanismo
desenvolvido durante o século XX.

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PEREIRA, E.M. Cidade, urbanismo e mobilidade urbana.

Figura 3: Dois momentos da autoestrada destruída em Seul:


urbanismo repensado
Fonte: http://portalarquitetonico.com.br/uma-impressionante-renovacao-
urbana-em-seul/

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É preciso então repensar a mobilidade articulada a reflexão
sobre a cidade, sua forma, suas funções, sua estrutura e seus
processos.

Considerações conclusivas
A partir desta forma de pensar, a mobilidade urbana
apresenta-se como uma variável dependente; ela é resultante do
modelo de cidade implantado; mais ou menos pensado de acordo
com os planos urbanísticos, mas totalmente dependente da forma
de urbanização. A seguir apresentamos algumas reflexões
conclusivas:
Primeiramente é preciso considerar a mobilidade como uma
realidade constitutiva da sociedade contemporânea. É preciso mais
do que nunca, considerar as condições urbanas da mobilidade.
Segundo Chalas (2007), “se existe uma dimensão a se levar
realmente em conta para se tentar compreender o que se tornaram
as cidades no mundo, é a dimensão da mobilidade (...). Não
somente os habitantes se deslocam mais frequentemente, como eles
vão mais longe” (p.35). E ele acrescenta: o que confere à
mobilidade sua plena significação e seu caráter radicalmente
inovador, são suas implicações sociais e espaciais sem precedente
histórico segundo quatro perspectivas essenciais:
1.1. A mobilidade atual em nossas cidades surge de uma
lógica de ruptura ou de mutação civilizacional: na
cidade de antigamente, a mobilidade era considerada
apenas como um elemento complementar do
sedentarismo; hoje ela é fundadora de redes de
pertencimento, de modos de apropriação dos
territórios, conferindo à fixidez um papel subalterno:
“o marginal urbano, o excluído, é, em nossos dias, o
ser bloqueado, o ser incapaz de se movimentar a
grandes distâncias e regularmente”(p.36).
1.2. A segunda perspectiva é a falsa ideia de que a cidade
acabará com a necessidade de mobilidade; “a cidade
poderá, deverá até, se fazer contra o automóvel

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PEREIRA, E.M. Cidade, urbanismo e mobilidade urbana.
invasor (...) mas ela, a cidade, não se fará contra a
mobilidade em si” (37).
1.3. A terceira perspectiva é a que permite interpretar que
existe uma interpenetração entre cidade e mobilidade:
“na figura da cidade-móvel, deslocamento e
espacialidade se recortam até se confundirem, chegando
a constituir uma única e mesma realidade” (p.38).
1.4. Por fim, é preciso compreender que a mobilidade não é
apenas um fato técnico, ela é igualmente um fato
cultural.

Em Segundo, é preciso apreender a dimensão urbana da


mobilidade. O corolário sesse aspecto é que para combater os
problemas da falta de mobilidade em nossas cidades é preciso ir
além das questões puramente técnicas; é preciso compreender as
práticas sociais que acontecem na cidade; é preciso considerar a
forma como se estrutura a cidade; é preciso tratar das políticas
públicas de forma intersetorial, buscando-se uma transversalidade
da análise. Além disto, o atual estágio de desenvolvimento de
consciência da sociedade, exige que as soluções de mobilidade
contemplem aspectos relacionados ao respeito ambiental e à
acessibilidade universal.
Por fim, é preciso mais uma vez recorrer a Lefebvre; assim
como o urbanismo não pode ser conduzido sem a compreensão do
que é a cidade, os problemas de mobilidade não serão resolvidos
sem que tenhamos o domínio do fenômeno urbano. Além disto,
assim como o autor francês fala em suas conclusões, é preciso
resgatar, na cidade, o homem na sua relação social: a realização da
sociedade urbana exige um planejamento orientado para as
necessidades sociais, as necessidades da sociedade urbana.

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PEREIRA, E.M. Cidade, urbanismo e mobilidade urbana.
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92 Geosul, v.29, ESPECIAL, 2014

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