'Epopeia de Gilgamesh' - A Obra Que Contou Sobre o Dilúvio Universal Antes Da Bíblia - BBC News Brasil
'Epopeia de Gilgamesh' - A Obra Que Contou Sobre o Dilúvio Universal Antes Da Bíblia - BBC News Brasil
'Epopeia de Gilgamesh' - A Obra Que Contou Sobre o Dilúvio Universal Antes Da Bíblia - BBC News Brasil
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15 agosto 2020
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Ele lutou contra a morte até aceitar o inevitável e se tornar sábio. Detalhe de uma placa decorativa que
mostra Gilgamesh, da civilização assíria, século 9 aC.
Um dia de novembro de 1872, um jovem saiu de uma sala no Museu Britânico e, segundo seus
colegas, começou a correr "por todos os lados". E em seguida "para o choque de todos os
presentes, passou a se despir".
Se chamava George Smith e nunca saberemos por que ele tirou a roupa, mas conhecemos o
motivo de sua alegria.
Ele havia lido um relato que faz parte de uma história imaginada há 4 mil anos e que havia
desaparecido por dois milênios e meio.
Esse relato estava sepultado com os restos de um dos primeiros grandes impérios da história da
humanidade.
Glória enterrada
Em 612 a.C., a Babilônia, decida a terminar com o domínio assírio na Mesopotâmia, liderou uma
aliança em um ataque contra a última capital assíria, de Ninive.
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A cidade foi saqueada por completo depois de um ataque de três meses e o rei assírio Sin-shar-
ishkun foi assassinado.
Foi o princípio do fim de um império que havia começado a se forjar por volta de 2025 a.C. Em seu
apogeu, o império governou "os quatro cantos do mundo", que eram os limites conhecidos até
aquela época, do litoral do Golfo Pérsico até as montanhas de Anatólia e às planícies aluviais do
Egito.
Durante um período de 300 anos (entre 900 e 600 a.C.) esta foi a civilização mais avançada de que
se tinha conhecimento.
Mesmo depois da sua queda, o legado do império seguiu nas táticas e tecnologias de guerra
adotadas por civilizações posteriores.
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Esculturas em relevo de Nínive que representa homens que nadam para pescar e outros que fazem a
colheita na terra
Mas muito foi perdido durante a conquista, em especial o tesouro de ideias assírias contidas na
biblioteca de Nínive, que havia sido concebida no século 7 a.C. para abrigar todo o conhecimento
humano.
A rebelião liderada pelos babilônios deixou a cidade mais rica do mundo em ruínas, com palácios
queimados e moradores mortos ou escravizados.
Em uma noite de dezembro de 1853 no que hoje é o Iraque, uma equipe de escavadores
comandada por Hormuzd Rassam, o primeiro arqueólogo nascido e criado no Oriente Médio,
encontrou o palácio do rei assírio Asurbanipal (que reinou entre 668 e 627 a.C.).
Além das magníficas obras de arte talhadas em pedra há mais de dois milênios e meio, os
escavadores coletaram do solo milhares de fragmentos de tabletes e argila cobertos pela
intricada escrita cuneiforme.
Primeiro arqueólogo nascido e criado no Oriente Médio, Hormuzd Rassam descobriu palácio do rei
Asurbanipal
Tudo foi empacotado em caixas enviadas ao Museu Britânico, onde as armazenaram, mas não as
classificaram até 1861, quando contrataram George Smith para lidar com elas.
Cativado pelas antiguidades que chegavam de Nimrud e Nínive, ele havia passado anos apenas
aprendendo a entender a escrita cuneiforme e a língua acadiana.
Uma década depois, naquele dia em que explodiu de felicidade no museu, ele leu sobre um
mundo afogado por uma enchente, um homem que construiu um barco e uma pomba solta em
busca de terra.
Fazia parte da cuidadosamente transcrita "Epopeia de Gilgamesh", o poema épico primeiro escrito
por volta de 1.800 aC, cerca de mil anos antes da composição da Bíblia judaica (o Antigo
Testamento cristão).
O resto da história
Um mês depois, Smith leu sua tradução para a Society for Biblical Archaeology em Londres.
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A história foi capturada em páginas de argila úmida, na língua acadiana falada na Mesopotâmia e na
escrita cuneiforme, uma das formas mais antigas de expressão escrita
Foi a primeira vez que um público ouviu parte do
poema em mais de 2.000 anos. Isso foi uma
sensação e gerou um debate em todo o mundo. Podcast
É uma daquelas obras da literatura antiga que nos chateia porque o seu herói, apesar de ser "dois
terços deus", é muito humano: está sempre errando, nunca atinge o seu objetivo e, como todos,
tem que aceitar a morte, esse fato inevitável com o qual convivemos.
Quando a história começa, os súditos de Gilgamesh, o rei de Uruque, levam suas queixas aos
deuses, porque o rei abusa de seu poder.
As divindades criam um ser igual a Gilgamesh, Enquidu, para competir e lutar com ele "para que
Uruque conheça a paz".
Mas antes que Enquidu possa desafiar Gilgamesh, ele precisa ser "humanizado" por Shamhat,
uma prostituta sagrada, que o seduz e passa seis dias e sete noites com ele. Depois disso, ele
deixa de ser o selvagem que era e "tem sabedoria e compreensão mais amplas".
Do confronto entre Enquidu e Gilgamesh nasce uma profunda amizade e eles partem juntos em
busca da glória, em direção ao Bosque de Cedros, um lugar longínquo de onde, segundo a
tradição babilônica, os reis traziam madeira para as grandes construções.
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Não havia madeira na Mesopotâmia, então eles tiveram que trazê-la das montanhas. Esta é uma
máscara de argila com o rosto de Humbaba da cidade de Sippar na Baixa Mesopotâmia, atual Iraque
Mas, de acordo com uma tabuleta encontrada no final do século 20, a floresta de cedro neste
poema é diferente do conceito que se tinha dela nos tempos antigos.
Neste caso é uma selva animada com o canto dos pássaros, a cacofonia dos insetos e os gritos dos
macacos nas árvores, tudo entretendo Humbaba — um gigante, guardião e senhor daquela selva,
na qual vivia como um rei cercado por seus músicos.
Enquidu e Gilgamesh têm a intenção de matar o rei e cortar suas árvores, e eles conseguem isso.
Humbaba é imobilizado pelos 13 ventos enviados pelo deus-sol Shamash e implora, em vão, por
sua vida; Enquidu e Gilgamesh cortam seu pescoço, removem seu coração e pulmões e também
seus dentes.
Depois de fazer o que haviam se proposto, Enquidu olha o resultado das ações e diz a Gilgamesh:
"devastamos esta terra... o que diremos aos deuses quando voltarmos?"
Após a batalha, quando Gilgamesh está limpando os vestígios da luta, a deusa Ishtar o deseja e
pede que ele se case com ela, prometendo-lhe riqueza e poder.
Mas Ishtar é a deusa da guerra e do amor, do sexo e da violência, e um pedido de casamento dela
é um negócio arriscado — seus amantes anteriores tiveram finais terríveis — então Gilgamesh a
rejeita impiedosamente.
"Você nada mais é do que um braseiro que sai no frio; uma porta dos fundos que não impede a
explosão nem o furacão; (...) Calçado que aperta o pé de seu dono! Qual amante você sempre
amou?"
Enfurecida, Ishtar pede a seu pai, o deus do céu e rei dos deuses Anu, que envie um grande
monstro à Terra para matar Gilgamesh e destruir Enquidu.
O monstro é o Touro do Céu, um animal feroz que destrói tudo em seu caminho. Porém, os amigos
conseguem matá-lo e Ishtar, furiosa, os amaldiçoa; Enquidu, ao ouvir isso, arranca a perna do
touro e atira contra ela.
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O Touro do Céu foi identificado como a constelação de Touro, uma das primeiras a serem descritas
Mais uma vez, com a vitória, os heróis ofendem os deuses. Aos olhos divinos, isso foi um ato de
suprema arrogância.
"Porque o Touro do Céu eles mataram, e Humbaba eles mataram; portanto um deles, aquele que
derrubou as montanhas de cedro, deve morrer", disse Anu.
E assim foi.
Devastado pela morte de Enquidu, Gilgamesh mergulha em uma dor sem limites: ele não permite
que Enquidu seja enterrado "até que um verme caia de seu nariz".
Finalmente, ele percebe que deve seguir em frente, dá a Enquidu um grande funeral e começa a
pensar sobre si mesmo e sobre sua mortalidade.
"O pavor entrou em minha barriga. Com medo da morte, fico vagando pela planície."
É por isso que ele embarca numa grande jornada, seguindo o caminho do Sol e sobre as Águas da
Morte, em busca do homem que sobreviveu ao dilúvio e descobriu o segredo da imortalidade:
Utnapishtim.
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É então que ele lhe diz que há muito tempo os deuses haviam lhe dito que iriam inundar o mundo
e que ele deveria construir um navio e transportar todas as sementes da vida nele.
Quando a chuva parou, diz Utnapishtim, ele abriu uma escotilha e viu apenas água.
Depois de enviar uma pomba e uma andorinha, que voltaram quando não conseguiram encontrar
um lugar para pousar, ele soltou um corvo e quando viu que este não voltava, deixou todos saírem
do barco e fez uma oferenda aos deuses.
Quando Enlil, o senhor do céu e da terra, chegou, os outros deuses disseram ter causado o dilúvio
e, antes de partir, após refletir, ele voltou para Utnapishtim e sua esposa imortal.
O objetivo de Utnapishtim era fazê-lo entender que ele foi tornado imortal por um evento único
que ocorrera há muito tempo e que nada parecido iria acontecer com Gilgamesh.
"Quem por você convocará os deuses a uma assembleia, para que possa encontrar a vida que
busca?"
Não havia segredo ou qualquer outra coisa que Utnapishtim pudesse revelar a Gilgamesh.
Gilgamesh faz uma última tentativa: arranca do fundo do mar uma planta que Utnapishtim havia
lhe revelado e que restauraria sua juventude, mas antes que pudesse aproveitar-se dela, uma
cobra a comeu e partiu, mas não sem antes se livrar de sua velha pele.
Desiludido e finalmente ciente dos limites de suas próprias habilidades, ele retorna a Uruque
reconciliado com sua sorte e mais sábio.
Sua luta heroica contra a morte, primeiro em busca do reconhecimento imortal por meio de obras
gloriosas e depois em busca da vida eterna, o leva a enfrentar o fracasso inevitável e a
compreender que a única imortalidade à qual ele pode aspirar é aquela que gera alguma
conquista duradoura.
Nas palavras do prólogo: ele veio de uma estrada distante, estava cansado e encontrou a paz.
Finalmente sereno, ele aceita que embora os indivíduos sejam mortais, a humanidade é eterna e
vê a cidade como uma expressão da humanidade e das gerações futuras: suas notáveis obras
seriam as que garantiriam que sua fama sobreviveria à sua morte.
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