2015 DarioFerreiraSousaNeto VOrig
2015 DarioFerreiraSousaNeto VOrig
2015 DarioFerreiraSousaNeto VOrig
A Pena do Cronista:
v. 1
São Paulo
2015
Dário Ferreira Sousa Neto
A Pena do Cronista:
v. 1
São Paulo
2015
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
E-mail para contato: [email protected]
Imagem da Capa:
Fonte: Blog Letras in.verso e re.verso - Especial Centenário Machado de Assis
Disponível em: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2008/09/c-v.html
Nome: SOUSA NETO, Dário Ferreira
Título: A Pena do cronista: A presença das crônicas nos romances machadianos.
Aprovado em:
Banca examinadora
Julgamento________________________ Assinatura____________________________
Julgamento________________________ Assinatura____________________________
Julgamento________________________ Assinatura____________________________
Julgamento________________________ Assinatura____________________________
Julgamento________________________ Assinatura____________________________
Em memória do Prof. Dr. Ivan Teixeira, cuja presença, de
diferentes formas, é viva nesta tese.
Dedico esse trabalho à minha mãe Maria de Lourdes Sousa,
amiga e mestra das minhas primeiras leituras. Qualquer
homenagem equivale a mandar flores absurdas por via postal ao
inventor dos jardins.
Não há nenhum lugar sem linguagem: não se pode opor a
linguagem, o verbal e mesmo o verboso a um espaço fora da
linguagem. Tudo é linguagem, ou, mais precisamente, a
linguagem está por toda parte. Ela atravessa o real; não há real
sem linguagem. Toda atitude que consiste em se colocar ao
abrigo da linguagem, por trás de uma não-linguagem ou de uma
linguagem que se pretenda neutra ou insignificante, é uma
atitude de má fé. A única subversão possível em matéria de
linguagem é deslocar as coisas.
Roland Barthes, O grão da voz, p. 227
SOUSA NETO, Dário Ferreira. A Pena do Cronista: a presença das crônicas nos
romances machadianos. 2015. 581 p. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2015.
SOUSA NETO, Dário Ferreira. The Chronicler's Pen: the contribution of the
chronicle genre in the roman of Machado de Assis. 2015, 581 p. Thesis (Ph.D in
Brazilian Literature) - Faculty of Philosophy, Letters and Human Sciences, University
of São Paulo, 2015.
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 16
INTRODUÇÃO
1 Por exemplo, como continuaria o conflito X, finalmente exposto em prosa analítica? Entra em cena
a prosa alegórica e fica devendo a resposta, com efeito cômico. No mesmo espírito de inconseqüência
“efeitista”, a finalidade espontânea que move o narrador não leva adiante nem aprofunda as situações
em que está inscrita: seu tempo é menor, seu horizonte é mais acanhado, sua substância é mais
simples, desproporção que faz rir, pelo pecado contra a realidade e pelo que indica de conduta
irresponsável. Trata-se afinal de contas da urgência apenas subjetiva de reconfirmar um poder, cuja
substância é o descompromisso. (SCHWARZ, 1998, P. 50)
17
mestria da tinta machadiana2. Esses elementos estéticos apontados por Schwarz são
características determinantes do narrador volúvel de Memórias Póstumas. Ao tratar da
acumulação literária, observando a descontinuidade entre os romances anteriores e o de
1881, Schwarz aponta as crônicas jornalísticas – não somente as de Machado, mas
também de outros cronistas – como o lugar composicional para o surgimento dessa
forma de escrita que determina sua fase madura. O surgimento dessa prosa
borboleteante vem da miscelânea parlamentar, resenha de espetáculos, notícia de livros,
coluna mundana e anedotas variadas que compunham esse gênero de estatuto pouco
sério, cujas propriedades formais entram para o novo período machadiano3.
Outro crítico que, de modo mais apurado, percebe essa determinação do gênero
crônica na chamada fase madura de Machado de Assis é John Gledson. Para ele, o
modo de composição e elaboração dos temas tirados do jornal em que o cronista faz uso
constante da combinação da alegoria e do fantástico, bem como da paródia, da sátira e
da ironia, parece tornar-se uma atitude na prosa machadiana4. Tais procedimentos, para
o crítico, remetem à forma composicional de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ao
analisar alguns trechos das crônicas Notas Semanais, observa o modo de produção –
que pretendemos explorar mais à frente – de leitura e significação das notícias de
2 Fazem exceção aparentemente, por serem completas em si mesmas, anedotas, teorizações cômicas e
historietas semi-alegóricas espalhadas pelo livro. Contudo, tratando-se de passagens intercaladas, a
sua presença constitui ela própria uma interrupção. E se lhes examinarmos o teor, veremos que
ilustram justamente o triunfo da veleidade, da inaptidão para o real, além dde serem breves, não terem
continuação direta, e servirem brilhantemente à necessidade de brilho de Brás Cubas. Seja no plano da
forma, através das interrupções, seja no plano do conteúdo, através das anedotas e apólogos sobre a
vaidade humana, a experiência visada não muda. Observemos enfim que apólogos, anedotas, vinhetas,
charadas, caricaturas, tipos inesquecíveis etc. – modalidades curtas, em que Machado carrega a tinta
na maestria – são formas fechadas em si mesmas, e neste sentido matéria romanesca de segunda
classe, estranha a exigência de movimento global própria ao grande romance oitocentista. (Idem,
ibidem, p. 51)
3 As liberdades narrativas peculiares à segunda fase começam sob o signo de Sterne, conforme a
conhecida indicação de Machado. Observe-se contudo que na ocasião a prosa borboleteante era velha
conhecida não só do romancista, como de muitos outros literatos brasileiros, que a praticavam nos
folhetins semanais da imprensa, imitando modelos franceses. A miscelânea de crônicas parlamentar,
resenha de espetáculos, notícia de livros, coluna mundana e anedotas variadas, com intuito de recreio,
compunha um gênero bem estabelecido – e de estatuto “pouco sério”. Devido talvez a esta conotação
duvidosa, várias de suas propriedades formais acabaram entrando para a feição do novo período
machadiano, por razões que veremos. (...) A lista de traços comuns à crônica hebdomadária e às
Memórias Póstumas pode ser encompridada à vontade. Com funções diversas, o amálgama de
atualismo e futilidade está presente nos dois casos. (Idem, ibidem, p. 230-232)
4 Assim, ao ler essas crônicas e anotá-las, pareceu-nos cada vez mais que a ficção passou a ser uma
atitude da prosa machadiana, por meio da criação de um autor defunto, ou valorizando o leitor
ficcional dentro da técnica literária, pela combinação entre a alegoria e o fantástico, ou por meio da
incorporação da paródia, da sátira e da ironia, principalmente, ao procedimento discursivo (entre
outras novidades escritas e reescritas ao longo da década de 1870), tudo isso coma uma forma
possível de reinventar a verossimilhança em relação ao real e à própria ficção. (GLEDSON &
GRANJA, 2008, p. 75).
18
5 Esse é o primeiro exemplo de uma tendência recorrente nessas crônicas, a de levar questões a
graus paradoxais, para então conduzi-las adiante ao absurdo total. De certa forma, esse parágrafo
fornece um modelo, ou mesmo uma justificativa, para isso, pois diz, duas vezes seguidas, que a
ficção é universal e que a verdade pode igualmente não existir - que fique claro, isso é tão
verdadeiro fora quanto dentro do Brasil; Vichy e Vidalgo são tão falsas quanto o Beco dos
Aflitos. (Idem, ibid., P. 35).
6 Claro que nenhuma dessas afirmações - nem a seção da crônica - pode ser lida sem uma perspectiva
irônica (tampouco Bento ou Brás são exatamente confiáveis), mas a insistência na ficcionalidade - ou
a universalidade do artificial, logo no início das crônicas - é significativa e precisa ser compreendida.
(Idem, ibid., P. 76).
7 A ironia e a paródia são, é claro, parte integrante desse tipo de narrativa: desligado dos seus
modelos "sérios" (o romântico e o realista), Machado recorreu a outros agressivamente não-sérios,
quer fundamentados em Luciano, Erasmo, Sterne ou outros escritores, quer em notícias comuns
achadas na imprensa. A partir de agora, nada será sério, e, de fato, Machado toma cada vez mais
cuidado para não permitir que haja um registro sério na sua obra, lançando o leitor direto em um
mundo, ou uma situação, em que nada é real, cuja encarnação perfeita é sem dúvida o "defunto autor",
"para quem a campa foi outro berço"," Nesse sentido, tudo segue sob o domínio da ficção. (Idem,
ibid., P. 78).
8 A paródia ocupa um lugar central na mudança complexa e misteriosa e, ainda assim, profundamente
coerente que aconteceu por volta de 1880, a "crise dos 40 anos". Ela está presente em "A parasita
azul" e alhures, mas de modo ainda hesitante, incapaz de estabelecer o tom dominante de todo o texto
- foram necessários cinco ou seis anos para que atingisse a maioridade. Em outras palavras, embora
possa parecer que surgia como Minerva da cabeça de Júpiter, em "Na arca" ou em Memórias
póstumas, houve muito esforço acompanhando a ousadia e a inspiração. (Idem, Ibid., P. 20)
19
contos, seja nas crônicas posteriores em que o estilo irônico se tornou mais sutil e
politicamente mordaz. Embora compreenda que foram diferentes motivações ou frentes
que determinam a produção de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Papéis Avulsos –
John Gledson aposta na hipótese dessa determinação e sugere a necessidade de estudos
detalhados dos escritos anteriores de todos os gêneros como elemento determinante para
a compreensão da obra machadiana9.
Gledson evidencia a importância das crônicas como espaço de construção para
uma estética que mudou significativamente a obra machadiana. A principal
característica é a mudança do ponto de vista ficcional presente já nas crônicas iniciais,
mas que, em seus quatro primeiros romances, ainda não está manifestado. A utilização
de um defunto autor tem bases sólidas nos recorrentes usos de pseudônimos utilizados
em suas crônicas. Como afirma, “o emprego de um narrador suspeito e volúvel das
classes dominantes – que levaria à mudança de uma ficção interessante à grande ficção”
(Idem, ibid., p. 63). Para além dos procedimentos técnicos, Gledson também observa
alguns elementos temáticos nessas Notas Semanais que repercutirão em Memórias
Póstumas de Brás Cubas10.
Lúcia Granja em sua obra Machado de Assis: Escritor em Formação dedicou-se
ao estudo das crônicas iniciais de Machado de Assis. Nessa análise, Granja resgata o
investimento machadiano na criação literária, carregado de interesses históricos e
literários a surpreender o leitor atual pela antecipação de diversos procedimentos que
caracterizaram as obras mais conhecidas do autor. Como observa Lúcia Granja, ao tratar
dos comentários políticos de Machado, a novidade não se deve à informação das
matérias, mas ao modo como o cronista as apresenta. Para a autora, não é exatamente a
9 A experimentação que finalmente produziu Memórias póstumas e Papéis avulsos aconteceu, e tinha
que acontecer, em muitas frentes. Foi uma combinação extraordinária de paciência, persistência e
ousadia; temos a intuição de que há muito mais a ser dito a respeito, e de que estudos detalhados e
cuidadosos das primeiras obras de Machado em todos os gêneros se fazem necessários mais do que
nunca. (Idem, ibid., p. 17).
10 Elas são relevantes porque nos revelam as complexidades e a situação histórica nas quais Machado
de Assis se encontrava. Elas não nos levam até o narrador morto de Memórias póstumas de Brás
Cubas, mas nos levam, sim, ao seu território. A ponta do iceberg são quatro momentos (pelo menos)
em que há ecos premonitórios do romance, que muitos leitores reconhecerão de pronto: três deles
encontram-se nas primeiras duas crônicas. Na crônica I, IV, no contexto do Paço de Macacu, somos
informados de que "também a história é tão loureira, tão disposta a dizer o sim e o não, que pode
acontecer uma cidade, a uma vila, a uma povoação qualquer, é não a ter absolutamente" - a maioria
dos leitores se lembrará de "a história, essa eterna loureira", do capítulo 4 do romance; na crônica 2,
lI, as "almas sensíveis" do apelo irônico de Brás ao leitor aparecem no episódio de Eugênia; as
palavras da esfinge para Édipo, "Resolve-me ou devoro-te", na crônica 2, V, são repetidas com uma
discreta mudança no "Decifra-me ou devoro-te" do capítulo 2; finalmente, a cética historinha contada
no capítulo 52, "O embrulho misterioso", está resumida nestas palavras da crônica 6, V: "Se achares
três mil-réis, leva-os à polícia; se achares três contos, leva-os a um banco". (Idem, Ibid., P. 79-80)
20
1881 deve-se ao fato de utilizar nos romances diversos procedimentos de suas crônicas.
Em outras palavras, ao imprimir nos romances a pena do cronista, o autor deu um salto
qualitativo, tornando-se o grande escritor consagrado na literatura brasileira.
22
PRIMEIRA PARTE:
A PROSA MACHADIANA
DA RETÓRICA À FICÇÃO
11 Primeiro editor brasileiro, precursor do conto, Francisco de Paula Brito nasceu no Rio de Janeiro e
foi um dos grandes mestiços que alcançou notoriedade no século XIX e fundou em 1849, no Rio de
Janeiro, a Marmota Fluminense, um jornal de variedades. Foi por meio deste jornal que Machado de
Assis publicou seus primeiros escritos no período de 1855 a 1861. Durante seus quinze anos de
existência esse jornal recebeu três nomes distintos: Marmota na Corte (1849-1852), Marmota
Fluminense (1852-1857) e A Marmota (1857-1864). (SIMIONATO, 2010)
12Conforme registra Massa, Monte Alverne, nascido em 1784, tornou-se cego em 1836. Castilho,
nascido em 1800, perdeu a visão aos cinco anos, após um surto de sarampo (MASSA, 2008, 171, nota
de rodapé, 68)
24
Machado de Assis. Pareceu-nos pela distância de datas entre um texto e outro que o
conjunto levantado por Massa não está completo, podendo haver outros textos.
Contudo, os de Machado e Jq. Sr. parecem estar sequenciados corretamente,
considerando-se o dialogismo estabelecido entre ambos os textos.
É importante observar que, devido ao fato de a escrita madura de Machado de
Assis ser objeto de grande quantidade de estudos em comparação aos textos de sua
juventude, as leituras tendem a desinteressar-se por seus primeiros escritos devido à
diferença qualitativa deles e dos posteriores. Soma-se a isso o fato de a produção
romanesca de Machado ter primazia na crítica machadiana, o que não significa que é
qualitativamente superior aos outros escritos. Desse modo, a leitura dos primeiros textos
machadianos corre o risco de ser feita a partir do julgamento consolidado pela crítica
nacional e estrangeira ao escritor consagrado, buscando no Machadinho o autor de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, o que prejudica significativamente a compreensão
de seus primeiros textos. Posto isso, pretendemos considerar os textos sobre Os Cegos a
partir de seu contexto imediato, isto é, entender sua produção não apenas por meio do
diálogo com seu polemista Jq. Sr., mas em seu conjunto disponível na compilação feita
por Jean-Michel Massa. Por isso, os dois textos – assinados por Alcipe e A13 – foram
anexados neste trabalho juntamente com os de Machado e Jq. Sr. Não anexamos os
outros três textos compostos posteriormente à polêmica por não terem sido resgatados
por Jean-Michel Massa e pela dificuldade de acesso a eles. Mas, conforme anota o
crítico francês em seus Dispersos, os três últimos textos são de T. C. Castelo Branco,
M. A. Calasans Peixoto e Antônio Manuel dos Reis. De qualquer forma, esses três
também manifestaram opinião semelhante à de Jq. Sr., tornando Machado de Assis o
único de opinião destoante dos demais.
Ao publicar seu texto quatorze dias após a proposta de Paula Brito, Jq. Sr. inicia-
o de modo consideravelmente cínico devido à referência que faz a Demócrito no
subtítulo do texto (ANEXO 2). Conforme observa Massa, essa referência c’est à dire
propos philosophique désabusé puisque Démocrite riait constamment de la folie
humaine (MASSA, 1965, p. 491). O posicionamento teórico de Jq. Sr. – motivo da
polêmica com Machado de Assis – é semelhante ao dos outros dois – Alcipe e A. Para
Jq. Sr., o cego de nascença começa a vida sem a aniquilação do que ele considera ser a
13Alcipe era a assinatura da que Massa identifica como mulher-poeta, presente na Marmota
Fluminense desde 1854 em algumas poesias; a assinatura A é apenas sugerida por Massa como
pertencendo a Moreira de Azevedo, porém, seguido de interrogação, sem qualquer outra informação
em relação a essas duas assinaturas.
25
melhor parte dela: a visão. Desse modo, não ver, para o autor, é privação, mas ter visto e
não ver é um castigo. Ainda pontua que o cego de nascença tem o desejo de ver a luz, já
o cego por desgraça tem saudades da luz; logo, o desejo provoca gozo no primeiro,
enquanto que a saudade provoca dor no segundo. Semelhante posicionamento observa-
se no texto assinado por Alcipe com o título Questão de Cegueira (ANEXO 5). Para
esta autora, embora considere que ambos os cegos sejam infelizes, o último sofre mais,
pois, enquanto o primeiro, por nunca ter visto, tem curiosidade de ver, o segundo sente
saudades do que viu. Semelhante a Alcipe, o terceiro texto assinado por A. diferencia-se
apenas pelo tamanho e pelo modo de sustentar sua afirmação, mantendo a mesma
opinião dos anteriores (ANEXO 6). Assim, os três textos – Jq. Sr., Alcipe e A. –
compartilham do mesmo posicionamento: quem sofre mais é o cego por desgraça por
ter podido ver um dia e não ver mais.
O primeiro texto de Jq. Sr. (ANEXO 2), diferentemente dos outros dois, dos
quais mantém a mesma posição ideológica, tende a um discurso bivocal, pois, ao se
inserir no debate proposto por Paula Brito, o faz por meio do riso (A vontade, essa
eletricidade intelectual, fez-me lembrar que se eu discutisse rindo-me, o fazia
filosoficamente). Como observa Voloshinov, o discurso da arte também está imbricado
no contexto não articulado da vida (TODOROV, 1981, p. 200). Desse modo, a obra
poética é um poderoso condensador de avaliações sociais não articuladas. Contudo,
diferentemente do discurso da vida, na obra poética, por não ser estreitamente
dependente de todos os fatores do contexto extraverbal, o falante elabora seu discurso,
na escolha das palavras, a partir da relação de simpatia, concordância ou discordância
que pretende ter com seu ouvinte e com o tópico da fala ou objeto do seu discurso. Essa
proximidade com o ouvinte estabelecida pelo falante Jq. Sr. dá-se na introdução, ao
apresentar-se humildemente ao seu leitor como alguém não habilitado para articular
silogismos e espertezas da lógica, embora confesse o desejo de expor sua opinião.
Ao correr do texto, observamos que esse posicionamento, por demais ambíguo,
busca estabelecer uma relação de simpatia com o leitor, uma vez que o ilude na crença
de que seja um autor que não corresponde com a sua produção textual, isto é, nos
parágrafos seguintes, Jq. Sr. mostra o quanto é habilitado em articular silogismos e
espertezas da lógica, negando, na produção do texto, o que havia enunciado na
introdução. Na elaboração de seu discurso artístico, o falante desse texto movimenta-se
para estabelecer proximidade com seu leitor, despertando nele simpatia e orientando-o
para o objeto de seu discurso. Como no mote o objeto é duplo – o cego de nascença e o
26
cego por desgraça – Jq. Sr. estabelece uma relação hierárquica entre eles, amenizando a
situação do primeiro e acentuando a do segundo, para com isso não apenas manifestar
seu posicionamento, mas orientar seu ouvinte para a sua posição antes dada. Os
mecanismos de construção veridictória se operam por meio da verossimilhança e, para
tanto, o autor faz uso da intertextualidade, incorporando o discurso do outro em seu
discurso para orientar o ouvinte às suas conclusões. Após isso, Jq. Sr. encerra seu texto
com uma crítica aos fiscais, inspetores e à Constituição, marcando-o com um discurso
ambíguo, paródico e irônico – afirma serem os fiscais e inspetores cegos de nascença e
a Constituição, cega por desgraça. Logo, aqueles nunca veem, enquanto que esta outrora
vira, mas agora lhe dera a gota serena e fez fiasco. Desse modo, o discurso desse autor
já marcado pela ironia e ambiguidade torna-se alegórico na parte final, uma vez que se
utiliza da metáfora continuada como tropo de pensamento para representar – os fiscais e
os inspetores – e personificar as abstrações – a Constituição14.
Provavelmente, a diferença de abordagem entre os três textos – de Alcipe, de A.
e de Jq. Sr. (cujos dois primeiros estão próximos do discurso da vida, conforme
mostramos, devido à sua conexão com a situação pragmática extraverbal, enquanto que
esse, dada sua veridicção pela verossimilhança, está próximo do discurso da arte) – seja
o motivo por que Machado de Assis fez questão de envolver-se na polêmica com Jq.
Sr.. Conforme observa Massa, não era comum de Machado participar dessas
competições incitadas pela Marmota15. Provavelmente, a diferença qualitativa entre os
três textos tenha determinado a preferência de Machado por polemizar apenas com Jq.
Sr., pois,embora tanto Alcipe quanto A. tenham o mesmo posicionamento que Jq. Sr. e
após a polêmica entre os dois, Machado de Assis não faz referência alguma a esses
textos, concentrando-se especificamente no debate com seu ilustre adversário
Antes de tratarmos dos textos de Machado como réplica aos de Jq. Sr., é
importante observarmos alguns procedimentos retóricos utilizados por esse autor, de
modo que nos auxiliem a compreender os procedimentos de refutação operados por
Machado de Assis. Conforme a definição que Olivier Reboul faz sobre retórica, esta é
decomposta em quatro partes. Para nossa análise, importam-nos as três primeiras, uma
vez que a última refere-se à performance (retoricamente, actio, ação) do orador. A
primeira é a invenção, com a qual o orador mobiliza os argumentos para persuadir seu
auditório; a segunda, a disposição, isto é, a ordem seqüencial dos argumentos; a terceira,
a elocução, isto é, os procedimentos composicionais do estilo do discurso escrito 16.
Como define Reboul, a invenção é o “inventário” no qual o orador acha os argumentos
ou procedimentos retóricos disponíveis para organizar a disposição do texto 17. Observa
também que, por invenção, pode-se entender o ato inventivo dos argumentos e de
instrumentos de prova. Cabe observarmos que diferentemente dos debates retóricos
analisados por Oliver Reboul, a polêmica proposta por Paula Brito e estabelecida entre
Machado e Jq. Sr. são textos escritos que, portanto, mimetizam os procedimentos
característicos da oratória.
De início, o primeiro texto de Jq. Sr. determina sua tese a partir de um lugar
comum - a opinião da maioria manifesta sobre o mote proposto por Paula Brito de que
o cego por desgraça é quem mais sente o seu estado penoso – e dispõe os argumentos
por meio de silogismos que o desenvolvem. Tal tese pode ser confirmada como lugar
comum que é usado por cinco dos seis autores que aceitam a proposta do editor 18.
Partindo de uma conclusão já dada, o autor dispõe seus argumentos por meio de
silogismos e citações que lhe permitirão fundamentar a tese. Cita em francês a frase de
La Boetie – vouloir est pouvoir19 – embora não faça referência direta a ele. Além dele,
16 O sistema começa com uma classificação: a retórica é decomposta em quatro partes, que
representam as quatro fases pelas quais passa quem compõe um discurso, ou pelas quais acredita-se
que passe. (...) A primeira é a invenção (heurésis, em grego), a busca que empreende o orador de
todos os argumentos e de outros meios de persuasão relativos ao tema de seu discurso. A segunda é a
disposição (taxis), ou seja, a ordenação desses argumentos, donde resultará a organização interna do
discurso, seu plano. A terceira é a elocução (lexis), que não diz respeito à palavra oral, mas à redação
escrita do discurso, ao estilo. A quarta é a ação (hypocrisis), ou seja, a proferição efetiva do discurso,
com tudo o que ele pode implicar em termos de efeitos de voz, mímicas e gestos. Na época romana, à
ação será acrescentada a memória. REBOUL, O., 2000, P. 43-44
17 Na realidade, a própria noção de invenção pode parecer-nos muito ambígua. De fato, ela se situa
entre dois pólos opostos. Por um lado, é o "inventário", a detecção pelo orador de todos os argumentos
ou procedimentos retóricos disponíveis. Por outro, é a "invenção" no sentido moderno, a criação de
argumentos e de instrumentos de prova; até o etos, explica Aristóteles, a confiança inspirada pelo
orador, deve ser "obra de seu discurso" (1356 a); em outras palavras, o importante não é o caráter que
ele já tem, e que o auditório conhece, mas é o caráter que ele cria. REBOUL, O., 2000, P. 54
18 Naturalmente, o lugar no sentido de questão também pode ser um lugar-comum, no sentido de que,
sobre qualquer espécie de assunto, podemos interrogar sobre o tipo de ser, os tipos de causas, etc.
Mas, no terceiro sentido, o lugar é sempre uma questão que permite encontrar argumentos ,que sirvam
à tese, inventar as premissas de uma conclusão dada. REBOUL, O., 2000, P. 53
19 Jamais se lamenta o que nunca se teve; o desgosto só vem depois do prazer e ao conhecimento do
bem somente se junta a lembrança de alguma alegria passada. É da natureza do homem ser livre e
28
também cita o fisiologista francês Marie François Xavier Bichat (Se a vida, é, como diz
Bichat, a reunião dos fenômenos que triunfam da morte) e o médico alemão Georg
Ernst Stahl (se a vista, como diz Stahl, é a melhor coisa da vida). Nestas duas últimas
citações, vemos a operação silogística por meio da premissa maior – a citação do
fisiologista francês – e a premissa menor – a citação do médico alemão – as quais lhe
permitem fundamentar sua tese: segue-se concludentemente que a cegueira, isto é, a
morte da vista, é a aniquilação da melhor parte da vida. A partir dessa fundamentação,
o autor estabelece a diferença entre o cego de nascença e o que fica cego depois do
nascimento. Este, por ter visto e não ver mais, torna-se, em relação àquele, mais digno
de lástima. A partir dessa diferenciação, permite-se estabelecer os argumentos de valor
em ordem crescente. Logo, como afirma, não ver, é uma privação; ter visto e não ver, é
um castigo. A privação torna-se desejo e posteriormente gozo. O castigo provoca
saudade que, por sua vez, causa dor: Entre a saudade e o desejo há uma grande
diferença; a saudade supõe dor, o desejo apenas gozo; é o que se dá entre os cegos de
nascença e depois de nascença; o primeiro deseja ver a luz, o segundo tem saudade da
luz. (ANEXO 2). Com isso, vemos tanto o recurso à invenção (heurésis) – primeira
parte da retórica – como da disposição (taxis) – segunda parte – como forma de
fundamentar a tese. Jq. Sr. aborda o tema com procedimentos sarcásticos, como meio de
angariar a simpatia do leitor. Com isso define a terceira parte de seu discurso: a
elocução (lexis). Para tanto, utiliza-se da benevolência ao escusar-se da própria
inexperiência diante de seu auditório20:
Mais à frente, afirma usar o riso, uma vez que o mesmo é característico de uma
escola de pensadores.
O modo de inserção do texto assinado por As. (ANEXO 3) – assinatura de
querer sê-lo; mas muito facilmente toma uma outra feição, quando dada pela educação. LA BOÈTIE,
1999, p. 123.
20 Benevolente: é aí que o ethos assume toda a sua importância. Um dos lugares mais correntes
consistia em escusar-se da própria inexperiência e em louvar o talento do adversário (cf. Navarre, p
223 s.) REBOUL, O., 2000, P. 55
29
Machado de Assis – dá-se nitidamente como discurso feito como resposta ao texto de
Paula Brito, mas principalmente e propositadamente ao de Jq. Sr. Para tanto, busca a
simpatia do leitor, de modo semelhante à introdução de seu opositor, com a diferença de
se inserir no debate como quem entra em uma batalha: Um artigo publicado no n. 929
da Marmota, decide-nos; vamos entrar na questão, expender as nossas ideias com a
simplicidade e firmeza, filhas da convicção; certos da atenção e benevolência dos
leitores. Vemos aqui o uso deliberado dos procedimentos retóricos que, conforme
observa Reboul, recorre ao exórdio como função essencialmente fática para alcançar a
benevolência do leitor. É importante observarmos que, para a Retórica, o auditório é
determinante da articulação dos procedimentos técnicos. Diferentemente de Jq. Sr., As.
explicita a presença do seu auditório, estabelecendo o que Paul Ricoeur, a partir da
fenomenologia da leitura, define como o leitor implicado do texto21. Mas, sem utilizar o
elemento da benevolência, como faz seu adversário, trata a polêmica como uma batalha.
Podemos depreender do modo de abordagem da polêmica por As. a observação
feita por Bakhtin em sua Estética da Criação Verbal de que a compreensão da fala viva
é de natureza ativamente responsiva, isto é, sua compreensão é prenhe de resposta, o
que torna seu ouvinte obrigatoriamente um falante22. No texto, As. marca sua condição
de ouvinte no parágrafo seguinte à introdução, ao afirmar que, ao ler as primeiras linhas
do artigo de Jq. Sr., esperava encontrar argumentos sólidos sobre o tema, ilusão desfeita
no término da leitura. Além de marcar essa compreensão ativamente responsiva em seu
texto, o enunciador busca consolidar a simpatia com seu leitor na empreitada que
assume contra o texto de seu ilustre adversário. Há nessa postura escritural de Machado
de Assis uma forte consciência de seu texto como resposta a discursos anteriores, bem
como, conforme se verifica no final desse texto, consciência de que o mesmo provocará
respostas posteriores.
O discurso de As., antes de tratar da polêmica proposta, centra-se como resposta
21 A primeira vista, parece se estabelecer uma simetria entre autor implicado e leitor implicado, cada
um deles com suas marcas no texto. Por leitor implicado, deve-se então entender o papel atribuído ao
leitor real pelas instruções do texto. Autor implicado e leitor implicado tornam-se assim categorias
literárias compatíveis com a autonomia semântica do texto. Construídos no texto, ambos são
correlatos ficcionalizados de seres reais: o autor implicado se identifica com o estilo singular da obra,
o leitor implicado com o destinatário a que se dirige o destinador da obra. RICOUER, P., 2007, V. 3,
P. 291-292
22 Neste caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (lingüístico) do discurso, ocupa
simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou
parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se
forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente
a partir da primeira palavra do falante”. BAKHTIN, 2006, P. 294
30
ao texto de Jq. Sr., logo, elabora-se como enunciação enunciada, pois, ao estabelecer
uma relação de perguntas e respostas com seu leitor, o enunciador busca desconstruir as
bases argumentativas do texto analisado por meio da refutação. O modo de
desconstrução do texto objeto é o da polêmica aberta, uma vez que o narrador
desqualifica as argumentações do outro: (O Sr. Jq. Sr., autor do artigo acima
mencionado, à parte alguns absurdos, nada disse sobre a questão; ou a conseqüência é
errada, e está diametralmente oposta à única conclusão possível do princípio
estabelecido). Todavia, reconhecendo a força do texto a que se opõe e, portanto, que
não basta simplesmente negá-lo em seu todo, o autor aplica o método da análise parte
por parte do discurso do outro como meio de mostrar ao leitor o motivo por que
discorda da posição de seu adversário. Como afirma Bakhtin, não é possível a
compreensão ativamente responsiva, se o falante não leva em conta a sua relação com o
outro, seus enunciados tanto presentes quanto antecipáveis e com o ouvinte 23.
A disposição desse texto responsivo dá-se primeiramente pelo discurso fático
que angaria a confiança e benevolência do leitor. Depois, o autor continua por meio da
refutação no jogo de perguntas e respostas. Essa refutação tem por objetivo induzir o
leitor à conclusão de seus argumentos. Como observa Norma Discini, em sua obra
Comunicação nos Textos, a pergunta retórica constitui um modo indireto de dizer no
qual o autor não objetiva alcançar uma resposta, mas induzir o leitor a determinadas
asserções, isto é, uma vez que mistura as vozes, contendo em si tanto a voz que
pergunta quanto a que responde, o efeito de sentido da pergunta retórica é a
manipulação do leitor para a conclusão a que o autor do texto pretende chegar. 24 Para
tanto, desqualifica os argumentos do adversário por meio da redução deles que lhe
permite a negação. A refutação é um ato reativo argumentativo de oposição que, no caso
23 Sem levar em conta a relação do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipáveis),
é impossível compreender o gênero ou estilo do discurso. Contudo, também os chamados estilos
neutros ou objetivos de exposição, concentrados ao máximo em seu objeto e, pareceria, estranhos a
qualquer olhada repetida para o outro, envolvem, apesar de tudo, uma determinada concepção do seu
destinatário. (BAKHTIN, 2006, 304)
24 A pergunta retórica: constitui um modo indireto de dizer; por meio dela, pergunta-se, não para
obter resposta, mas para conduzir o leitor a fazer determinadas asserções; contém em si,
implicitamente, a resposta, misturando vozes: a que pergunta e a que responde; advém do narrador,
que é quem faz a pergunta e quem manipula o narratário-leitor, para determinada conclusão; institui
um sujeito como presença mais próxima: em relação ao narratário-leitor e em relação ao próprio
enunciado; traz em si a voz respondente, viabilizando nos textos: a heterogeneidade mostrada; o efeito
de polifonia; faz com que o narrador se aproxime do narratário, para que este se veja obrigado a seguir
a orientação dada; promove a incorporação do narratário e do seu discurso, ao evitar uma afirmação
direta; simula a existência de um jogo de vozes, sendo compatível a determinadas cenas genéricas do
jornal; é algo desnecessário, do estrito ponto de vista informacional. (DISCINI, 2005, p. 175)
31
O Sr. Jq. Sr. diz que, para o cego de nascença a vida começa
sem a aniquilação da melhor parte da vida – a vista – e que
portanto o cego por acidente, sofrendo essa aniquilação, é o
mais digno de lástima. A conseqüência é errada, e está
diametralmente oposta à única conclusão possível do princípio
estabelecido. É pela razão mesma de que o cego de nascença
não sofre a aniquilação da vista, que é o mais desgraçado. Ao
nascer ele esbarra com a noite que o deve cercar durante a sua
vida; esbarra com esse caos para que nunca há de soar um Fiat.
Como não ser desgraçado? Sem ter o gozo do cego por
desgraça, que vê em parte pelos olhos do espírito, ele não pode
fazer uma ideia exata dos objetos que lhe apresentais; e
conseguintemente não pode compreender-vos, – gozar um
pouco do que gozais – pelo exercício dos outros sentidos ou
faculdades. (ANEXO 3)
polêmica por As., Jq. Sr. não se prende a sustentar os argumentos expostos em seu
primeiro texto, mas a refutar os de seu oponente. Contudo, apesar do sarcasmo maior no
segundo texto, a diferença que sustenta sua argumentação continua a desconsiderar a
contextualização social do cego de nascença, conforme fizera seu oponente. Jq. Sr.
insiste no ponto ao dizer que, uma vez nascido sem vista, o cego, ao formar suas ideias
em idade já desenvolvida, terá de se acostumar com sua condição de cegueira,
defendendo a visão cartesiana de ideias inatas.
A polêmica inicial proposta por Paula Brito se desdobra em outra questão que,
segundo ambos os polemistas, é pressuposto determinante desta: a possibilidade de o
cego de nascença construir signos (no texto, fala-se de “ideias”) para si ou não. Jq. Sr.
insiste no ponto em dizer que o cego de nascença pode construir signos melhores, uma
vez que não pode estabelecer relações entre a imaginação e o mundo real. Já As.
defende a impossibilidade de construção desses signos, uma vez que os mesmos se
constroem por meio dos sentidos e pelo fato de o cego estar, apesar da deficiência,
inserido em um contexto social e, portanto, saber que qualquer imaginação não pode
corresponder com o que seja percebido pelos outros sentidos (o exemplo dado no
primeiro texto de As. é o da rosa da qual o cego poderá perceber o perfume e que, antes
de lhe dar uma ideia de “rosa”, inspirar-lhe-á o desejo de vê-la, o que lhe causará dor).
Ao encerrar seu texto, Jq. Sr. não o faz sem abrir mão de um sarcasmo maior,
provocando resposta em seu oponente, por meio da referência intertextual ao texto
bíblico: porém não nos faltarão ocasiões logo que o nobre cavalheiro, com quem
discutimos, ou rebater melhor nossas ideias, ou der mais vida às suas... se é que tem
poder de ressuscitar Lázaros.
O comentário irônico de Jq. Sr. torna-se no texto de As. alvo de polêmica ao
referir-se a ele como modesta censura do Sr. Jq. Sr. (ANEXO 7). Com isso, vemos que,
na polêmica, ambos distanciam-se cada vez mais do objeto enunciado – o mote –
prendendo-se mais à enunciação de um e de outro, o que acentua a arena do debate e,
portanto, dá a esses textos sua forma bivocal. Em sua tréplica, As. explicita o objetivo
de sua investida inicial: Desde que S. S. publicou o seu primeiro artigo sobre os cegos,
decidimo-nos a refutá-lo. Esta resolução que não deixava entrever um único motivo de
ofensa ao autor do artigo – tinha por alvo despedaçar os atavios sofísticos de seus
argumentos falsos. O objetivo explicitado de despedaçar os argumentos de Jq. Sr.,
evidencia o quanto a polêmica, apesar de ser um dos textos iniciais de Machado,
compreende o discurso como artifício que cria ilusão da realidade, rejeitando seu
34
a questão é toda de sentimento e não de razões; porém nós julgamos que temos mais
companheiros de crença do que ele. Com isso, ao abandonar a ambigüidade e o
sarcasmo que marcaram o tom de seus dois textos, para utilizar uma investida direta
contra seu ilustre adversário, Jq. Sr. perde, ou pelo menos diminui, a bivocalidade de
seu discurso, também perdendo a força centrífuga que orientara os dois primeiros.
Tal fato permite a As., em seu terceiro e último texto dessa polêmica (ANEXO
9), promover uma investida mais violenta e satírica contra seu opositor: Mitos nasceram
e mitos foram para à tumba, donde não sairão, nem mesmo na consumação dos
séculos! A terra lhes seja leve. O tom sarcástico do enunciador, nesse trecho inicial
como desfecho final do embate que travou com Jq. Sr., confirma, em Machado, uma
maior proximidade com o discurso equívoco da sátira menipeia presente em seus textos
maduros. Se nos dois anteriores a enunciação enunciada é predominante, nesse é quase
completa em detrimento do enunciado referente ao mote de Paula Brito. Com isso,
permite-se algumas investidas irônicas como procedimento retórico de desconstrução do
texto analisado e, quanto ao debate em si, permite-se apenas o comentário (...) para
evitar uma repetição fastidiosa enviamos o leitor e S. S. Para os nossos artigos
passados onde acharão uma resposta conveniente. Conforme observou Massa:
28 Assim, a volubilidade é uma feição geral a que nada escapa, sem prejuízo de ser igualmente uma
tolice bem marcada, de efeito pitoresco, localista e atrasado. Ora ela funciona como substrado e
verdade da conduta jumana, contemporânea inclusive, que só não reconhecem os insanos, ora como
exemplo de conduta ilusória, um tanto primitiva, julgada sobre fundo de norma burguesa e utilizada
como elemento de cor local e sátira. (SCHWARZ, 2000, p. 45)
29 Trata-se de uma linha descontínua de análise da descontinuidade da pessoa humana. Para Augusto
Meyer, a vivacidade de Sterne é uma espontaneidade orgânica, do homem que goza o prazer de sentir-
se disponível. Em Machado, a aparência de movimento, a pirueta e o malabarismo são disfarces que
mal conseguem dissimular uma profunda gravidade, uma terrível estabilidade. Toda a sua trepidação
acaba marcando passo. (RIEDEL, 2008, p. 208)
37
Após apresentarmos a base teórica que nos orientará na análise dos romances,
pretendemos focar um procedimento específico, isto é, focar as interrupções para obter a
partir delas a dimensão da dinâmica estrutural dessas sete narrativas, especificando
proximidades e diferenças adotadas em cada uma delas. Em outras palavras, o que nos
interessa nesta análise dos romances são os procedimentos de interrupção, mas, para
extraí-los dos textos, é necessário que tratemos de outros procedimentos relacionados.
I - O MÉTODO.
∞
sendo TN o tempo da narrativa, TH o tempo da história, o símbolo igual a
infinitamente e os símbolos matemáticos igual (=), maior (>) e menor (<). Assim, a
pausa é o resultado do tempo da narrativa infinitamente maior que o tempo da história; a
cena, o tempo da narrativa igual ao da história; o sumário, o tempo da narrativa
variavelmente menor que o da história; a elipse, o tempo da narrativa infinitamente
menor do que o da história. A partir das definições apresentadas, pretendemos abordá-
las uma a uma, para dar melhor compreensão ao método de análise.
40
II - CENA
Para analisar a narrativa do romance de Proust, Genette opta, ao tratar das cenas,
por falar de cenas típicas ou exemplares, ao invés do termo canônico cenas dramáticas.
Tal opção, conforme o autor, deve-se ao fato de que o sumário - que corresponderia ao
conteúdo não dramático - não necessariamente anula a dramaticidade da narrativa em
Proust. Obviamente, Genette trata de um autor específico. Desta forma, manteremos
inicialmente essa conceituação canônica e, conforme seguir a análise, evidenciando-nos
qualquer dramaticidade no uso do sumário em algum dos romances, retomaremos essa
observação de Genette. A princípio, proporemos uma outra diferenciação, próxima da
definição canônica, isto é, nas cenas em que a voz do narrador domina (a diégese) há
uma diminuição da dramaticidade narrativa machadiana, enquanto que o efeito rítmico
da dramaticidade parece marcado na voz pronunciada (mimese) ou não pronunciada
(monólogo interior) das personagens e, até certo ponto, no discurso indireto livre.
Também, apostamos que haja nos procedimentos de interrupções (ou metalepses) uma
certa dramaticidade, não apenas nos romances machadianos em primeira pessoa aqui
analisados, como também nos de terceira pessoa. Enfim, são possibilidades que
levantamos e que pretendemos confirmar durante a análise dos romances.
O que nos interessa agora é tratar de algumas formas de cenas presentes nesses
romances machadianos, isto é, momentos em que há coincidência entre o tempo da
narrativa e o tempo da história. São elas: a diégese, a mimese, o discurso indireto livre e
o monólogo interior.
41
a) Diégese e Mimese
31 Porém, logo a seguir, discorre como se ele fosse o próprio Crises, e lança mão de todos os meios
para convencer-nos de que não é Homero que parece falar, mas o velho sacerdote. Do mesmo modo
procedeu em quase todo o resto de sua narrativa, ao contar-nos o que se passou em Ílio e em Ítaca,
como também em toda a Odisséia.
Isso mesmo, disse.
Há narração, por conseguinte, nos dois casos: tanto na reprodução das falas das personagens como nas
partes intermédias. (Platão, 2000, p. 147, 393b)
32 Genette observa o uso feito por Henry James, com base na distinção que Aristóteles faz desses dois
tipos de narrativas como duas variedades de mimese em sua Poética, no qual o escritor estadunidense
as transpõe como showing (mostrar) e telling (contar). Também cita a crítica feita por Wayne Booth à
valorização neo-aristotélica do mimético. Seguindo o ponto analítica do crítico francês, manteremos
neste trabalho a definição feita por ele, a despeito de toda a discussão em torno dessas diferenças.
33 Em nota, Genette observa sobre a tradução corrente da haplé diegésis por narração simples e
considera que não dá conta da especificação, pois, conforme sua leitura, o que Platão pretende é
marcar um tipo de narração sem mistura de elementos miméticos e, portanto, uma narrativa pura.
34 Genette, O discurso da Narrativa, p. 164
42
35 Definimos como bloco narrativo o conjunto de palavras que, juntas, constituem um momento da
diégese ou da mimese antes da mudança de procedimento narrativo.
43
reação da moça enquanto fala; oitavo bloco, 103 palavras para a tréplica de Félix; nono
bloco, 49 palavras para a diégese que anuncia o final do diálogo entre as personagens;
décimo bloco, 20 palavras para a mimese da fala final de Lívia, décimo primeiro bloco,
38 palavras para a diégese que mostra o último esforço de Félix para reatar o
relacionamento; décimo segundo bloco, 14 palavras para a mimese em que o filho de
Lívia, em seu colo, reage ao ver o choro da mãe; e, finalmente, o décimo terceiro bloco,
22 palavras para a diégese que relata a saída de Félix.
Embora tedioso, o exemplo comparativo em um mesmo romance torna-se
importante para mostrar como enunciação e enunciado se permutam, garantindo o efeito
de ritmo e, portanto, de dramaticidade. Não apenas este capítulo, mas juntamente com
os anteriores, a construção de blocos entre diégese e mimese garante a dramaticidade da
história. Além disso, se compararmos a totalidade dos dois capítulos, observaremos que,
enquanto no segundo o quadro narrativo ocupa apenas um terço do total do capítulo, no
penúltimo o quadro ocupa dois terços, isto é, no segundo capítulo, em um total de 1358
palavras, este quadro contém 577, enquanto que o quadro narrativo entre Lívia e Félix,
em um total de 1078, contém 846 palavras. Não apenas os números, mas a disposição
dos blocos de diégese e mimese, razão porque apresentamos essa comparação, contribui
para não apenas dramatizar a cena, mas também garantir a profundidade psicológica das
personagens, sobretudo de Félix que, de personagem tipo, ganha em toda a narrativa a
sua densidade e complexidade dramática.
Outro exemplo que nos serve para observarmos o funcionamento da mimese que
garante a riqueza de informação com redução da velocidade narrativa afirmada por
Genette é o romance Helena. A personagem principal é anunciada como filha à família
do falecido Conselheiro Vale - o reconhecimento da paternidade se dá pelo testamento
deixado pelo Conselheiro - e passa a morar com o meio-irmão Estácio e a tia Úrsula. O
narrador não conta ao leitor o passado de Helena, mas apenas o torna objeto de
especulação e boato entre a vizinhança. Um dia, indo andar a cavalo sozinho, Estácio
flagra Helena saindo de uma velha casa à qual o narrador já fizera referência no começo
do romance. Esse episódio torna-se o nó a ser desatado, pois deflagra o drama principal
do romance. Após pressionar Helena e, junto com a tia e o padre Melchior, tentar
descobrir a relação entre a personagem e o homem que mora na casa, descobrem por
Helena que ele é o seu verdadeiro pai. Diante do impasse contraditório entre a
afirmação de Helena e o testamento do Conselheiro Vale que reconhece a paternidade
da moça, ambos, o jovem e o padre, vão à casa do pai de Helena - Salvador - para
44
confirmar a versão da moça. A chegada dos dois na casa de Salvador se inicia na última
parte do capítulo XXIV. Os três capítulos seguintes são tomados pela fala de Salvador,
o qual conta para Estácio e o Padre Melchior a história sua e de Helena, comprovando
que ele é o verdadeiro pai da menina. No capítulo XXV, das 2370 palavras, 108 apenas
são de diégese intercalados em 4 blocos, enquanto que 2262 são de mimese. No capítulo
XXVI, de 1775 palavras, 66 palavras são para a diégese e 1709 para a mimese. No
capítulo XXVII, para retomar o movimento da narrativa, sem com isso perder o
conteúdo da história, o narrador intercala diégese e mimese em um total de 25 blocos.
Embora com menor presença nos quatro primeiros romances, comparado com os
três últimos, tanto o discurso indireto livre, quanto o monólogo interior, contribuem
para a dramaticidade da narrativa. No caso do discurso indireto livre, no qual a voz ou
pensamento da personagem é traduzida na voz do narrador, criando uma polifonia, há
uma maior riqueza de informação, se comparado com a diégese, mas sem perder a
velocidade da narrativa, conforme podemos ver em Ressurreição:
36 Se bem que um pouco mais mimético que o discurso contado, e em princípio capaz de
exaustividade, essa forma nunca dá ao leitor garantias nenhumas, e, sobretudo, nenhum sentimento de
fidelidade literal às falas pronunciadas "realmente": a presença do narrador é muito sensível, e na
própria sintaxe da frase, para que o discurso se imponha com a autonomia documentária de uma
citação. Está, por assim dizer, previamente admitido que o narrador não se contenta com transpor as
falas em proposições subordinadas, mas que as condena, as integra no seu próprio discurso; e, logo, as
interpreta no seu próprio estilo, como Françoise traduzindo as civilidade de Mme. Villeparisis.
(GENETTE, 1995, pp. 169-170)
37 Fala-se de discurso direto livre no caso de fragmentos que são interpretados como discurso direto,
mas sem qualquer indicação de que há discurso citado. (CHARAUDEAU, 2008, p. 173)
46
Assim, temos uma penetração sem marcas de um discurso direto feita pelo
narrador na personagem, mas que se traduz no discurso do narrador. Sobretudo na
segunda parte, quando descreve a personagem Lívia, essa descrição pode tanto ser a do
narrador, como da personagem Félix. A polifonia ganha um tom a mais, pois além de
descrever a personagem e informar o olhar que a personagem-observador lhe volta,
também permite que o leitor possa saber o impacto que a personagem observada causa
na personagem observante. Este terceiro tom é importante como forma de antecipação
da relação que se estabelecerá entre ambas as personagens.
Por sua vez, o monólogo interior, conforme afirma Genette, citando Dujardin, é:
Se, no discurso indireto livre, a personagem fala pela voz do narrador, de modo
que as duas vozes se confundam, no monólogo interior o narrador dilui-se e a
personagem o substitui, sem com isso haver separação explícita entre as formas de
diégese e mimese. Funcionando como uma espécie de aparte, característica do discurso
dramatúrgico, o monólogo interior, conforme observa Charaudeau, é um discurso
dirigido apenas a si mesmo e marcado como tal, isto é, o locutor pensa em voz alta e
produz informações para as quais é ele mesmo o destinatário como espécie de
desdobramento do sujeito da enunciação38. Podemos confirmá-lo nos seguintes
38 Monólogo - A palavra monólogo (como seu par de origem latina "solilóquio") é empregada em
dois sentidos nitidamente diferentes:
47
exemplos do capítulo IV, quando Félix, ao encontrar Viana e sua irmã, a viúva Lívia, no
teatro, fica a observá-la e, durante a observação, expressa seus pensamentos por meio do
monólogo interior:
. Discurso dirigido apenas a si mesmo (em inglês self talk): o locutor pensa em voz alta e proiduz
uma mensagem da qual ele é ao mesmo tempo o único destinatário, por meio de um tipo de
desdobramento do sujeito da enunciação (desdobramento que pode se concretizar pelo emprego de
uma segunda pessoa, pois o monólogo pode, dependendo do caso, formular-se em Eu ou em Tu: "Te
manca, Dirceu..."). Essa prática é bastante utilizada no teatro: trata-se de uma "licença" que se justifica
pela presença do público, ao qual a personagem não pode se dirigir diretamente (pelo menos segundo
as normas dominantes no teatro ocidental), mas ao qual deve, apesar disso, informar seus estados
interiores (o que se pode fazer no romance graças aos monólogos interiores ou aos comentários do
narrador). Um caso particular de monólogo é o aparte, que tem como característica principal ser
produzido quando outras personagens estão igualmente presentes no espaço cênico, cabendo ao
locutor excluí-las do círculo comunicativo (baixando a voz, colocando sua mão diante da boca, etc.);
os apartes são, portanto, necessariamente breves (ao passo que os monólogos dramáticos podem
estender-se longamente), e parecem, segundo Pavis (1980:40), "fugir à personagem". Fora do caso
particular do teatro, o monólogo é, em nossas sociedades, segundo Goffman (1987), objeto de um
"tabu": mesmo se se pode produzi-lo em certas circunstâncias e sob certas condições (das quais
Goffman nos propõem um inventário), ele seria na vida cotidiana apenas uma exceção, um
comportamento que, se se prolonga ou se repete, passa por patologia (a linguagem verbal se opõe, em
relação a isso, a um outro sistema semiótico, ainda que próximo, o canto). Quando o enunciado é
produzido na frente de testemunhas, às vezes é difícil saber (pois os indícios são a esse respeito vagos)
se ele é auto-dirigido ou dirigido a outrem. Na verdade, defrontamo-nos frequentemente com um
semi-aparte, que pode facilmente deslizar de um estatuto a outro, seja pela ação do próprio locutor,
seja da testemunha, que "se engata" no enunciado monologado, produzindo um encadeamento;
exemplos de semi-apartes: situações domésticas em que cada um cumpre suas atividades, mas em
presença e sob as vistas dos outros membros da família; comentários entre dentes de um empregado
brigando com seu computador, ou de um cliente na fila de um self-service, sem falar dos diversos
tipos de interjeições e de exclamações descritos por Goffman (1987: cap. 2). O semi-aparte deve ser
distinguido do pseudo-aparte, muito frequente na comédia clássica (o locutor finge "falar com os
botões", enquanto seus propósitos são, na realidade, destinados a uma personagem presente, mas
igualmente atestado na vida entre destinatário aparente e destinatário real). Notemos que se fala
também de aparte a propósito de trocas que ocorrem entre duas ou três pessoas (não se trata mais,
então, de "self-talk"), mas no interior de um grupo conversacional mais amplo, quando os
responsáveis pelo aparte se caracterizam como participando de um "diálogo à parte" (este emprego do
termo compartilha, portanto, com o precedente a ideia de uma exclusão voluntária de certos membros
do quadro participativo).
Em um segundo sentido, amplo, mas bem conhecido, um monólogo é um "discurso longo de uma
pessoa que não deixa seus interlocutores falar ou a quem seus interlocutores não dão resposta" (Petit
Robert, 1991), isto é, um discurso dirigido (a alguns outros e não a si mesmo), mas que escapa ao
princípio de alternância dos turnos de fala. O monólogo é sempre, portanto, uma forma discursiva
marcada em relação ao uso "normal" da linguagem verbal, a saber, o diálogo. (CHARAUDEAU,
2008, p. 340)
48
39 A ideia de medir a extensão da narrativa, separando-as pelos procedimentos definidos por Gerard
Genette, foi tirado da obra de Genette, o qual, comparando a extensão de um trecho da Ilíada de
Homero com a tradução feita por Platão em A República. Para compará-las e estabelecer a diferença
entre "imitação" e "narrativa pura", Genette conta as palavras de uma e outra, conforme vemos a
49
seguir: A diferença mais manifesta é, evidentemente, de extensão (18 palavras contra 30 nos textos
gregos, 25 contra 43 nas traduções francesas): Platão obtém tal condensação eliminando as
informações redundantes ("disse ele", "obedece", "filho de Letos"), mas também as indicações
circunstanciais e "pitorescas"; "dos belos cabelos" e sobretudo "ao longo do areal onde rola o mar"
(GENETTE, 1995, p. 163).
50
Conforme vemos no gráfico, o autor opta pelo início dramático da narrativa que,
aliás, não se repetirá dessa forma nos outros seis romances. Tendo como objetivo a
apresentação do contraste de caracteres das personagens, no primeiro capítulo opta pelo
uso da pausa e da mimese (barra vermelha). À medida que avança, a diégese (barra
azul) predomina, sendo algumas vezes intercalada com a mimese. Deste modo, a
informação dada tanto pela descrição quanto pelo diálogo tende a dominar os dois
primeiros capítulos, os quais, no geral, costumam, como forma de introdução, responder
pela caracterização e contextualização das personagens. Nos dois primeiros capítulos, a
mimese corresponde respectivamente a 38% e 57%, enquanto que a pausa corresponde,
52
40 Conforme nos informa Márcia Lígia Guidin em seu texto Cronologia da Vida e da Obra, publicado
em Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea, o envolvimento de Machado de Assis com
o Teatro se dá partir de 1859, quando passa a escrever críticas teatrais para a Revista dos Teatros,
além de, neste mesmo ano ter escrito o libreto da ópera Pipelet de Eugène Sue. Na sequência e antes
de publicar este romance constam as seguintes publicações de textos teatrais: em 1860 publica a peça
Hoje avental, amanhã luva; em 1861 publica como tradutor a obra Queda que as mulheres têm pelos
tolos e a peça de teatro Desencantos; em 1862, encena a peça O Caminho da porta; em dezembro
deste ano, é encenada a comédia O protocolo; em 1863 publica Teatro de Machado de Assis, que
reúne as comédias O Caminho da porta e O protocolo; neste mesmo ano é encenada a peça Quase
ministro; Em 1865, é encenada sua peça Os deuses de casaca, publicada um ano depois;
53
PARTE 1:
41 Pouco a pouco, para superar as reticências de uma parte dos leitores, que achavam um tanto
fastidiosa essa maneira de entrar na matéria, os romancistas preferiram inciar com um entrada in
media res (narrativa com a ação já em curso), obrigando-se a dar apenas as informações úteis à
compreensão do quadro, em uma analepse explicativa, conforme essa abertura. (REUTER, 2002, pp.
138-139)
54
PARTE 2:
(...)
— Talvez possa dissipar-se a apreensão, respondeu Félix; mas,
creio que não será fácil. Tens um coração ainda muito criança, e
que o há de ser até a morte, penso eu.
(...)
E continuou:
— Sim, perdi muito mais. Abraçar um cadáver, que é isso para
quem já abraçou uma serpente? Tu perdeste apenas alguns anos
de amor mal compreendido; não perdeste um bem precioso, que
o tempo me levou: a confiança. Podes hoje ser feliz do mesmo
modo que o querias ser então; basta que te ame alguém. Eu não,
minha querida Lívia, falta-me a primeira condição da paz
interior: eu não creio na sinceridade dos outros.
(...)
— Ninguém esperdiçou mais generosamente os afetos do que
eu, continuou o médico, ninguém, mais do que eu soube ser
amigo e amante. Era crédulo como tu; a hipocrisia, a perfídia, o
egoísmo nunca me pareceram mais que lastimáveis aberrações.
Meu espírito criara um mundo seu, uma sociedade platônica,-
em que a fraternidade era a língua universal, e o amor a lei
55
ser maior do que o tempo da narrativa. No capítulo X, intitulado "A Enferma" narra a
presença de Félix na casa do coronel, visitando sua filha Raquel que se encontra doente.
Neste capítulo, a diégese corresponde a 54% do capítulo, garantindo um movimento não
tão rápido como nas anteriores, mas sem tanta informação como na do capítulo
seguinte. O capítulo XV, intitulado Enfant Terrible, é o auge do domínio da narrativa
diegética, momento em que Félix e Lívia estão brigados e Raquel se torna um terceiro
elemento nesse conflito, tanto para competir com Lívia, quanto para, no capítulo
posterior, servir de conciliadora entre ambos. Por fim, no capítulo XIX, intitulado
"Porta do Céu" e no capítulo XXI, intitulado "Último Golpe" , a diégese corresponde
respectivamente a 58% e 69%, respectivamente.
A chave temática que orienta todo o romance é um trecho da peça Medida por
Medida de William Shakespeare, em que a personagem Lúcio afirma para Isabela que
Não passam de traidoras nossas dúvidas que nos privam, por vezes, do que fora nosso
se não tivéssemos receio de tentar (Shakespeare, p. 29). Para tanto, o adágio é posto em
cena na tentativa de relacionamento entre Félix e a viúva Lívia, os quais não concluem o
casamento por conta do ciúme doentio de Félix e do medo que Lívia passa a ter em
relação ao futuro por conta desse ciúme. Com isso, a narrativa tem como cena central os
vários conflitos do casal nos quais, em menor ou maior escala, haverá a participação de
outras personagens. São elas: Viana, o parasita irmão de Lívia, Menezes, amigo de
Félix, Coronel, D. Matilde e Raquel, Moreirinha, Cecília, Clarinha e João Batista.
Embora, a personagem antagonista seja João Batista que investe contra o
relacionamento das personagens principais, tanto Raquel, quanto Meneses, vão de certo
modo desempenhar o papel de motivo de atrito do casal, embora também desempenhem
o papel de conciliadores, com sucesso no caso de Raquel e sem sucesso, no caso de
Meneses. Com isso, essas personagens participam de diálogos com as personagens
principais e, no caso de Raquel, João Batista e Meneses, fazem parte do
desenvolvimento da trama narrativa. O Coronel e sua esposa Matilde, Moreirinha,
Cecília e Clarinha, orbitam a narrativa central sem participar dela diretamente. Mesmo o
irmão de Lívia e amigo de Félix, o parasita Viana, conforme o identifica o narrador, por
mais que esteja presente, não tem uma participação efetiva, mas apenas acessória na
trama central. Logo, seguindo o adágio shakespeariano apresentado no prefácio, a
narrativa se desenvolve em torno do conflito amoroso do casal. Com isso, podemos
determinar a estrutura narrativa do seguinte modo: introdução; aproximação; conjunção
afetiva; separação; e reconciliação. Podemos observar estruturalmente este romance do
57
seguinte modo:
O capítulo XIV, intitulado Ou capítulo do acaso, é outro que narra novo conflito
amoroso entre Félix e Lívia. Contudo, diferentemente do anterior, neste, o assunto
tratado é a situação amorosa entre as personagens coadjuvantes Moreirinha e Cecília.
Como sabemos, Cecília namorara Félix e, desde então, não se viam. Ao narrar Félix
chegando em casa e se deparando com Moreirinha escondendo-se de Cecília, a narrativa
intercala-se entre o diálogo dos dois e as reflexões de Félix por meio da mistura de
diégese e discurso indireto livre, bem como a chegada de Cecília e o reencontro dos ex-
namorados, produzindo a mesma intercalação.
Por fim, o capítulo XVII, intitulado Sacrifício, traz à cena amorosa do casal a
personagem Raquel. Esta, consciente do amor não assumido entre Félix e Lívia, mesmo
apaixonada pelo rapaz, resolve abandonar o campo da disputa e interceder por Lívia,
junto a Félix, com um bilhete. Esta atitude causa espanto no moço que o leva a refletir
sobre a descoberta da paixão de Raquel por ele. Neste contexto da narrativa, o narrador
usa do recurso do discurso indireto livre, apresentando as reflexões de Félix por meio de
sua voz.
No conjunto, percebemos que, se o narrador, para garantir a velocidade da
narrativa, faz largo uso da diégese, encontra um meio termo de modo que possa garantir
também a dramaticidade sem perda da velocidade narrativa. Para tanto, o discurso
indireto livre, neste romance, funciona como velocidade narrativa dramatizada, a qual
60
garante que a história avance, sem com isso se perder totalmente a complexidade do
drama demandado pela mimese.
O monólogo interior, por sua vez, terá maior relevância nos capítulos IV, VII e
XIX. Lembrando que, conforme pontuou Charaudeau, é o discurso que se desdobra em
si mesmo, tornando a personagem em interlocutor e destinatário desse discurso.
O capítulo IV, já citado e exemplificado anteriormente, apresenta quatro quadros
narrativos distintos: após voltar de Tijuca, Félix recebe a notícia do namoro de
Moreirinha e Cecília; o encontro de Félix no Ginásio com Viana e sua irmã Lívia; a ida
de Félix a Catumbi para visitar Lívia - quadro narrativo mais curto; e, por fim, o
encontro dos dois na Rua do Ouvidor, seguido pelo encontro com Meneses. É na
segunda cena - o encontro no Ginásio - que o monólogo interior predomina. No total de
1427 palavras, o monólogo corresponde a 90, isto é, 6%, mas, considerando que
acontece em uma cena específica, a do Ginásio, e, portanto, um total de 464 palavras,
essa porcentagem aumenta para 19%. Em comparação, a diégese passa de 35% a 70%, a
mimese (cena dialogada) de 30% cai para 2% e as demais em menos de 1%. Isto nos
permite perceber o jogo intercalado entre diégese e monólogo, no qual, se a cena
narrativa tem velocidade, a dramaticidade é subjetivada ao máximo. Cabe observar que
o sujeito enunciativo do monólogo é apenas a personagem Félix.
O capítulo VII, intitulado O Gavião e a Pomba, alegoria do casal, narra a
situação posterior ao início de namoro entre eles. O monólogo funciona ao longo do
capítulo como meio pelo qual o narrador dramatiza o conflito interno de Félix,
produzindo a dúvida.
Por fim, o capítulo XIX, intitulado Porta do Céu, narra o período de
estabilidade, no qual, após a última crise, o casal resolve marcar a data do casamento. O
monólogo se manifesta apenas em um momento do capítulo, quando Lívia, após sair da
casa do coronel e por ter comunicado a eles e a Raquel em específico sobre o
casamento, manifesta dúvida sobre a sua atual e futura situação de felicidade.
Desse modo, vemos o monólogo interior funcionar no romance como produtor
de curiosidade e dúvida e, neste último caso, provocar tensão e suspense no leitor
quanto ao desfecho que se dará a narrativa. Não é objetivo deste trabalho, por mais
tentador que seja, fazer uma análise interpretativa destas estruturas, mas apenas
evidenciá-las para, juntamente com os outros procedimentos, especificar, no conjunto
dos sete romances, como funcionam as metalepses. Portanto, sigamos para o romance A
Mão e a Luva.
61
Embora o romance comece com o diálogo entre os amigos Estevão e Luís Alves,
o que predomina no capítulo primeiro é a diégese, conforme podemos ver no gráfico.
Diferentemente do romance anterior, neste a diégese domina o primeiro capítulo,
fazendo com que, em termos percentuais, (conforme o gráfico 3) a mimese seja menor:
a mimese corresponde a 53% apenas no capítulo IV, intitulado "Latet anguis", sentença
tirada da obra Bucólicas de Virgílio que significa "a serpente se esconde", momento em
que o narrador insere a personagem Mrs Oswald para estabelecer o diálogo entre ela e a
baronesa, madrinha de Guiomar, sobre o futuro amoroso de Guiomar. Nos demais
capítulos a mimese não chega à metade das palavras nos capítulos correspondentes.
Se em Ressureição o tempo divide-se em dois - o passado, há dez anos, e o
tempo presente, no último capítulo em que o narrador informa a situação atual das
personagens - em A Mão e a Luva, o tempo é mais dinâmico. Assim, a narrativa se
inicia quando os dois jovens ainda são estudantes de Direito e dialogam sobre a situação
amorosa de Estevão. No capítulo II, a narrativa avança dois anos à frente, colocando
Estevão na chácara de Luís Alves, depois da morte de sua mãe para, no dia seguinte,
(ainda no mesmo capítulo) estabelecer o reencontro entre Estevão e Guiomar. A
narrativa que segue até o final do capítulo IV é interrompida no quinto capítulo,
intitulado Meninice, para contar o passado de Guiomar. Retoma a narrativa sem
nenhuma marcação no capítulo VI, sendo essa ausência de marcação temporal na
mudança do capítulo a própria marcação, como afirma Genette sobre o comentário de
Proust a respeito da obra de Flaubert, Educação Sentimental. Segue o comentário de
Proust citado por Genette: "Aqui um 'branco', um enorme 'branco', e, sem a sombra de
63
Dos dois homens que lhe queriam, nenhum lhe falava à alma;
ela sentia que Estêvão pertencia à falange dos tíbios, Jorge à
tribo dos incapazes, duas classes de homens que não tinham com
ela nenhuma afinidade eletiva. Não igualava, decerto, os dois
pretendentes; um era simplesmente trivial, outro sentimental
apenas; mas nenhum deles capaz de criar por si só o seu destino.
Se os não igualava, também os não via com os mesmos olhos;
Jorge causava-lhe tédio, era um Diógenes de espécie nova;
através da capa rota da sua importância, via-se-lhe palpitar a
triste vulgaridade. Estêvão inspirava-lhe mais algum respeito;
era uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, não para
vencer, uma espécie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem
asas para voar até lá. O sentimento de Guiomar em relação a
Estêvão não podia nunca chegar ao amor; tinha muito de
superioridade e perdão.
Com outra índole, aspirações diferentes e vivida em
diversa esfera, amá-lo-ia com certeza, do mesmo modo que ele a
amava. Mas a natureza e a sociedade deram-se as mãos para a
desviar dos gozos puramente íntimos. Pedia amor, mas não o
quisera fruir na vida obscura; a maior das felicidades da terra
seria para ela o máximo dos infortúnios, se lha pusessem num
ermo. Criança, iam-lhe os olhos com as sedas e as jóias das
mulheres que via na chácara contígua ao pobre quintal de sua
65
Posteriormente, após Luís Alves revelar seu amor à jovem, é que ela encontra
em seu espírito uma outra possibilidade de, para além dos dois pretendentes, realizar
seus desejos de casamento:
Neste romance, o discurso indireto livre parece funcionar de modo mais intenso
do que o anterior, conforme podemos ver no gráfico 4:
67
Vemos a predominância do discurso indireto livre nos capítulos III, VI, IX, XIII,
XVI e XVII.
O capítulo III, intitulado Ao Pé da Cerca, continuando a cena do capítulo
anterior, narra o momento em que Estevão observa uma moça andando do outro lado da
cerca até reconhecer que ela é sua antiga namorada Guiomar e, após identificá-la, dá
ensejo ao diálogo entre ambos. Dominando a primeira parte do capítulo, o discurso
indireto livre intercala-se com a diégese no processo de visualização e descrição da
moça. Contudo, a percepção é oferecida pelo olhar de Estevão e narrada no discurso do
narrador, produzindo a polifonia discursiva, visto que, ao mesmo tempo, o leitor tem
acesso às sensações que a observação causa no rapaz.
O capítulo VI, intitulado O Post-Scriptum, de todos capítulos, é o que tem a
maior ocorrência desse procedimento. Ele narra o momento logo após o encontro dos
dois antigos namorados, em que o discurso indireto livre traduz as sensações causadas
em Estevão pelo reencontro com Guiomar.
O capítulo IX, intitulado A Conspiração, narra o momento em que a baronesa
flagra Guiomar e Estevão conversando novamente na cerca, após um jantar dado na
casa dela. Sem saber que, como narra o anterior, Estevão, ao tentar reatar o
relacionamento com Guiomar, recebe uma negativa dela, a baronesa rapidamente se
articula com o sobrinho Jorge para preparar o casamento dos dois. O discurso indireto
livre funciona neste capítulo para evidenciar o contraste entre a interioridade de
Guiomar, que se mostra indiferente a qualquer tentativa de relacionamento, como a de
Jorge que, após conversar com sua tia, começa a se empolgar com a possibilidade de
casar-se com Guiomar.
O capítulo XIII, intitulado Explicações, narra o diálogo entre Guiomar e Luís
Alves, momento em que expressa a admiração pela moça, mas sem afirmar qualquer
outro sentimento. Nesse sentido, o discurso indireto livre funciona como forma de
evidenciar ao leitor a dúvida que a manifestação de Luís Alves havia causado no
espírito de Guiomar. É a primeira investida afetiva do advogado sobre a moça.
O capítulo XVI, intitulado A Confissão, narra o momento em que Luís Alves
resolve confessar ao amigo Estevão que Guiomar não tinha interesse por ele e estava
apaixonada por outro. Sequencialmente, os dois blocos de discurso indireto livre
mostram duas perspectivas diferentes sobre o mesmo tema: o conflito interno de Luís
Alves em revelar ao amigo que Guiomar estava apaixonada por Luís Alves e o sonho
69
que ainda alimentava Estevão de conseguir conquistar, com a ajuda do amigo, o coração
da moça.
Por fim, o capítulo XVII, intitulado A Carta, narra a continuação do anterior, no
qual o leitor é informado sobre o conteúdo da carta que Luís Alves recebeu e sua
decisão em pedir à baronesa Guiomar em casamento, bem como o momento conflituoso
que Guiomar vivencia entre escolher Jorge, que a pediria à tia na noite anterior, e saber
se o advogado iria ou não pedi-la em casamento. O discurso indireto livre intercala nas
duas cenas o momento anterior e posterior, respectivamente, das ações tomadas pelas
personagens, isto é, o momento anterior a Luís enviar a carta com o pedido à baronesa e
o momento posterior à atitude de Guiomar de solicitar a Luís Alves que a peça como
esposa.
Embora percentualmente o monólogo não seja expressivo na narrativa, é curioso
como metade das oito ocorrências traduz o pensamento da personagem Estevão que,
além do fato de, entre todas as personagens, ser o mais estranho ao ambiente da casa da
baronesa, à medida que o drama se desenvolve, afasta-se cada vez mais, até culminar no
rompimento completo em que descobre que seu amigo Luís Alves o traíra. Se a negativa
ao pedido de Jorge o faz perder Guiomar, a proximidade se mantém, visto ser ele
sobrinho da baronesa. Se Mrs. Oswald não consegue realizar seu projeto de casar Jorge
com Guiomar, esta também mantém-se na casa, visto ser dama de companhia da
baronesa. O mesmo não acontece com Estevão que, embora a narrativa inicie contando
o drama amoroso entre ele e Guiomar, o qual tenta retomar dois anos mais tarde, aos
poucos a personagem é afastada do ambiente, até o rompimento completo com Luís
Alves. O que se confirma quando ele acompanha de longe o casamento da amada com o
amigo traidor. É revelador o último monólogo interior do romance, no capítulo XI,
referir-se a Estevão, não apenas por ser o último do romance, mas pelo conteúdo
manifesto como podemos ver a seguir:"Não tenho outro recurso", pensou ele; "é
necessário que morra. É uma dor só, e é a liberdade". (ASSIS, 2008, p. 357)
Diferentemente de Ressurreição, neste romance esses procedimentos com as metalepses
garantem a riqueza de informação e de dramaticidade da narrativa. Contudo, antes de
vermos como funcionam esses outros procedimentos neste romance, continuemos com
nosso exame das cenas nos outros romances.
70
Vemos que Helena, à medida que conquista seu espaço na casa e no bairro da
família do Conselheiro, torna-se uma figura misteriosa, quase lendária, da qual o
narrador tira proveito. Conforme vemos no gráfico 3, indubitavelmente, a força do
romance está concentrada nos capítulos XXV e XXVI, nos quais a mimese domina
respectivamente 95% e 96%. Abriga, sem dúvida alguma, toda informação que
permitirá, nos capítulos anteriores, ao narrador explorar o suspense. Assim, podemos
72
verificar os capítulos nos quais a mimese tem certa expressividade. São eles:
espírito.
Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmão lhe
mostrara. Ao passarem por ele, o preto tirou
respeitosamente o chapéu e continuou na mesma posição e
ocupação que dantes.
— Tem razão, disse Helena; aquele homem gastará muito
mais tempo do que nós em caminhar. Mas não é isto uma
simples questão de ponto de vista? A rigor, o tempo corre do
mesmo modo, quer o desperdicemos, quer o economizemos.
O essencial não é fazer muita coisa no menor prazo; é fazer
muita coisa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais
aprazível é, talvez, esse mesmo caminhar a pé, que lhe
alongará a jornada, e lhe fará esquecer o cativeiro, se é
cativo. É uma hora de pura liberdade. (pp. 413-414)
— O senhor é cruel!
— Sou pai, respondeu o médico; pai extremoso e discreto,
mais discreto ainda que extremoso. Conto com a senhora. (p.
439)
livre, a diégese esconde o drama que se passa no espírito de Helena, à medida que foca
em Estácio:
Por outro lado, revela ao leitor as reais intenções do Dr. Camargo em relação ao
futuro da filha com Estácio. Se, como afirma Genette, o discurso narrativizado é o
estado mais distante e mais redutor, nem por isso perde sua força significativa.
Conforme podemos verificar nos capítulos I, XIV e XXVIII, Dr. Camargo dá um beijo
em sua filha como esperança do futuro planejado por ele. Vejamos o final do capítulo
primeiro:
Por fim, no final do capítulo XXVIII, o terceiro beijo que conclui o romance:
42 Em sua Moderna Gramática Portuguesa, Evanildo Bechara observa que, diferentemente do pretérito
mais-que-perfeito e do chamado condicional presente na forma simples, o pretérito imperfeito, como
ensina Coseriu, é um membro não marcado, extensivo. Logo, a sua variedade e ambivalência na
atividade do discurso, podendo funcionar, entre outras possibilidades, substituindo o futuro do
pretérito, quando se quer exprimir fato categórico ou a segurança do falante (BECHARA, 2001, p.
277-278)
80
Este gráfico evidencia um desenho em que a narrativa, por meio da diégese, fosse como
que dividida em três partes, sendo a primeira parte do capítulo I ao V, seguido de uma
planície que se estende do V até o VII, onde a diégese encontra seu ponto mais baixo;
do VIII ao XIV, mostrando uma pequena variação do XI ao XIV; e a parte que vai do
XIV ao XVI. Se observarmos este mesmo desenho com a mimese, a narrativa parece
apresentar-se por quatro partes, como segue:
No caso da mimese, a primeira parte vai do capítulo I até o IV; a segunda, do capítulo
IV ao IX; a terceira, do capítulo IX ao XV; e, por fim, a quarta parte, do capítulo XV ao
XVII. Obviamente, esse efeito de ritmo na forma da narrativa não é gratuito, mas
determinante na história do romance. Nesse sentido, podemos dividir o conteúdo da
narrativa em quatro partes:
Terceira parte: Parte mais extensa da narrativa que vai do capítulo VII até o XV, os
quais tratam da volta de Jorge ao Rio de Janeiro, sua proximidade com a família de Luís
Garcia, a mediação que Jorge faz entre Procópio Dias e Iaiá Garcia e o primeiro conflito
entre a moça e sua madrasta Estela.
43 Embora, conforme já afirmamos acima, para não estender estas análises, não abordaremos os
romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires, apenas para confirmar nossa informação cabe dizer que o
primeiro tem cento e vinte um capítulos e o último romance machadiano é divido por datas, dia da
semana ou horas de modo aleatório de 9 de janeiro de 1888 a 30 de agosto de 1889, aproximadamente
algo corresponde a cento e sessenta e oito capítulos.
86
O quadro nos mostra que uma radical mudança na narrativa machadiana a partir
de Memórias Póstumas de Brás Cubas dá-se no modo de disposição tipográfica da
narrativa, isto é, em um número oito vezes maior de capítulos, o qual, obviamente, tem
impacto relevante na estruturação da narrativa e na organização dos procedimentos
retóricos. Podemos perceber esse impacto no fato de vários capítulos destes três livros
terem às vezes cem por cento de um determinado procedimento retórico.
Décio Pignatari, em sua obra Semiótica & Literatura, chama a atenção para a
tipografia na obra machadiana, sobretudo a partir de Memórias Póstumas de Brás
Cubas. Conforme o crítico, tendo sido a tipografia uma das primeiras funções exercidas
por Machado de Assis, ela se torna determinante no modo de composição dos romances
a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, isto é, a tipografia impregnou a estrutura
de alguns de seus romances mais importantes44. Ivan Teixeira vê nessa extensão dos
capítulos, bem como em suas formas breves e volubilidade do estilo, o traço artístico
decorrente da dinâmica do jornal45. Segundo Barreto Filho, em seu texto O Romance
Brasileiro: Machado de Assis, essa "forma livre" utilizada na composição dos capítulos
faz de Memórias Póstumas de Brás Cubas um romance "disforme", que funciona em
uma reação desordenada que trai o profundo ressentimento manifesto no último capítulo
intitulado Das Negativas 46. Não à toa, Capistrano de Abreu, em um artigo publicado na
Gazeta de Notícias, em 30 de janeiro de 1881, no qual trata desse romance, inicia o
44 É possível, não certo, que o tipógrafo Machado de assis tenha criado os tipos de ficção que a crítica
tradicional costuma atribuir-lhe - especialmente a sua famosa "galeria de tipos femininos"; mais
provável, porém, é que antes se tenha empenhado nos tipos gráficos que compõem a sua escritura -
primeiro como tipógrafoe depois como jornalista e escritor. Ou seja, não foi um escritor alienado do
medium que utilizava - a palavra impressa, mecânica e industrialmente - como a maioria dos escritores
automaticamente verbais, que não distinguem um Bodoni de um Garamond, ou sequer um tipo
serifado de um tipo sem-serifa.(PIGNATARI, 2004, p. 133)
45 É possível que esse tenha sido também o processo de produção do sentido artístico e social de
Quincas Borba, cujo entendimento talvez só se venha a completar depois da comparação entre as duas
versões da obra - a de Estação e a do volume. Mesmo que se considere apneas a versão da obra do
volume, julgo que o jornal possa contribuir com informes importantes para a decodificação primária
da mensagem. Conforme esse argumento, a pequena extensão dos capítulos - assim como a
preferência pela forma breve do conto - devem ser entendidas como traço característico decorrente da
dinâmica do jornal. Além disso, a imprensa teria igualmente sugerido a Machado de Assis a
volubilidade do estilo, que se deixa entender não necessariamente como sátira à suposta inconstância
das elites, mas sobretudo como apropriação do princípio fragmentário da ordenação da matéria -
próprio à diagramação das folhas. (TEIXEIRA, 2010, p. 38-39)
46 Brás Cubas é um livro disforme, que não vale nenhum dos que a ele se seguiram. Pode ter sobre
um único – Esaú e Jacó – a vantagem de uma cintilação e de um tumulto que falta a esse livro árido de
Machado. Essa cintilação, porém, como vimos, é muitas vezes de origem duvidosa, e não é capaz de
compensar-se com o estado de maturação e as linhas assentadas do outro. (FILHO, 2012, p. 9)
87
A tese e o adágio que lhe fora difícil de compreensão passam a lhe fazer sentido,
após ser declarado herdeiro universal, como podemos ver no capítulo XVIII:
O adágio, a ser repetido até o momento de sua morte, torna-se tema central e
orientador da narrativa desse romance. Tal qual o romance A Mão e a Luva, o escritor
carioca satiriza os valores filosóficos dominantes no Brasil Império e inventa uma tese
nos moldes do naturalismo cientificista para, a partir da sua aplicação ficcional, deslocá-
la da suposta natureza que determina a vida e o futuro dos homens, realocando-a nas
tramas sociais violentas que dão a tônica à vida econômica, política, afetiva e social de
sua época47. Com isso, repete seu modelo do romance de anti-tese como paródia
ficcionalmente bem estruturada. Nesse sentido, a loucura torna-se efeito dessa estrutura.
Como afirma Afonso Romano de Sant'Anna, o tema da loucura, nesta obra, dá-se de
modo complexo e insólito, pois mostra sua relatividade nas motivações da loucura,
estranhando os conceitos cotidianos às ideologias vigentes, por meio da operação em
48 Tanto em Plácido (Esaú e Jacó) quanto em Simão Bacamarte (O Alienista) como em Quincas
Borba e Brás Cubas a temática da loucura conjugada com a razão se entreabre de modo complexo e
insólito. Deixando de opor esses elementos como inconciliáveis, como quer o modelo ideológico, ele
mostra a relatividade de um e de outro, configurando a loucura da razão e as razões da loucura, sem
optar maniqueisticamente por um dos elementos em torno da barra, pois sabe que ambos os termos da
proporção estão contaminados por definições ideológicas das quais procura se afastar. O que faz,
então, é estranhar os conceitos cotidianos, a ideologia vigente. E esse estranhamento não sendo
esporádico, mas sistemático, acaba por se dar em todos os níveis da análise.(SANT'ANNA, 2012, p.
222)
49 Se o olhar de Sterne é mais zombeteiro, o de Machado, ainda que mediado pela lente da zombaria,
é mais sério. O tempo é outro, a filosofia é outra, e a ela Machado não poupa. Mas o isolamento de
Brás Cubas em relação aos que o cercam, a superficialidade de todas as suas relações - familiares,
sociais e amorosas - apontam para o mesmo tema: ninguém se comunica com ninguém e, por isso,
ninguém conhece ninguém. O isolamento de Rubião, maior porque progressivamente encapsulado na
loucura é de tal ordem que chega a permitir a possibilidade de se entender Quincas Borba como uma
"ontologia do abandono". (SENNA, 2008, p. 44)
50 Ressalte-se, antes do mais, que esse modo de "focalização interna" aparece em Quincas com maior
frequência que nos demais romances de Machado. E, acrescente-se, de imediato, que em tempos mais
fortes que os assinalados pelo crítico linguísta. Empregado em momentos de crise moral, psicológica
ou existencial de suas criaturas, como meio de criar simbiose entre personagem e narrador, o recurso
se apresenta com feição e intenções diferenciadas.(BARBIERI, 2003, p. 29)
92
já proferidos, de forma que manifestam seus pontos de vista e suas consciências acerca
da realidade inacabada e em constante transformação, conforma a concepção de
polifonia de Mikhail Bakhtin.51 Nesse sentido, a loucura em Quincas Borba é
tensionada pela polifonia resultante do jogo de vozes que se manifestam na narrativa
por meio do discurso indireto livre. Por sua vez, o monólogo interior, conforme Genette
observa, é a emancipação de qualquer patrocínio narrativo, pois, como discurso sem
auditor e não pronunciado, a personagem pode exprimir seus pensamentos mais
próximos do inconsciente sem ter de recalcá-los, subordinando-se às regras sociais de
convivência.
Conforme a narrativa, do capítulo I ao III, a história apresenta Rubião
capitalista; do capítulo IV ao XX, utilizando-se da analepse, retorna ao passado para
apresentar Rubião em Barbacena, onde cuida do amigo Quincas Borba. Este viaja ao
Rio de Janeiro e Rubião, incumbido de cuidar do cachorro na ausência do amigo, recebe
posteriormente a notícia da morte do filósofo e, por fim, torna-se herdeiro universal de
seus bens; do capítulo XXI ao XXVII, Rubião viaja para o Rio de Janeiro, conhece o
casal Palha e Sofia e estabelece amizade com eles, até, por fim, a narrativa retomar o
tempo presente do primeiro capítulo; do capítulo XXVIII ao LXXXII, Rubião começa a
estabelecer relações de amizade com Freitas, Carlos Maria, Major Siqueira, Dr.
Camacho; alimenta sua paixão por Sofia, e, por fim, o Major - interessado em casar
Rubião com sua filha D. Tonica - aconselha-o ao casamento, momento que marca a
primeira perturbação no espírito de Rubião, quando este se imagina aclamado como
Marquês de Barbacena. O capítulo LXXXII anuncia essa perturbação com o seguinte
enunciado: "E o espírito de Rubião pairava sobre o abismo" (p. 168); do capítulo
LXXXIII ao CXLVII, a narrativa acirra a paixão de Rubião por Sofia, e enuncia
algumas crises de ciúme que Rubião passa a sentir ao supor que Carlos Maria fosse
seu rival até o momento em que, ao cortar o cabelo nos moldes de Napoleão III,
Rubião passa a acreditar ser o próprio Napoleão; do capítulo CXLVIII ao CCI, narra-
51 Enquanto artista, Dostoievski não criava as suas ideias do mesmo modo que as criam os filósofos
ou cientistas: ele criava imagens vivas de ideia auscultadas, encontradas, às vezes adivinhadas por ele
na própria realidade, ou seja, ideias que já têm vida ou que ganham vida como ideia-força.
Dostoievski tinha o dom genial de auscultar o diálogo de sua época, ou, em termos mais precisos,
auscultar a sua época como um grande diálogo, de captar nela não só vozes isoladas mas antes de tudo
as relações dialógicas entre as vozes, a interação dialógica entre elas. Ele auscultava também as vozes
dominantes, reconhecidas e estridentes da época, ou seja, as ideias dominantes, principais (oficiais e
não-oficiais), bem como vozes ainda fracas, ideias latentes ainda não auscultadas por ninguém exceto
por ele e ideias que apenas começavam a amadurecer, embriões de futuras concepções do mundo".
BAKHTIN, 2008, pp. 100-101
93
se o processo de loucura de Rubião até seu retorno para Barbacena e sua morte.
Embora apresentemos essas divisões que marcam a narrativa, vale observar
que os acontecimentos seguem num continuum narrativo, mantendo as mesmas
personagens, locais e acontecimentos que se desdobram. Apenas em alguns
momentos, como do capítulo IV ao XX, o narrador opera a analepse para contar
como Rubião enriquecera; e do capítulo CXVII ao CXIX, o narrador interrompe a
narrativa para contextualizar a notícia do casamento de Maria Benedita e Carlos
Maria.
Os níveis narrativos - extradiegético e intradiegético - e os tipos de narrador -
heterodiegético, homodiegético e autodiegético - evidenciam as atitudes narrativas de
enunciação escolhidas pelo autor52. Como propõe o crítico francês, identificar o
romance como narrador em primeira ou terceira pessoa determina apenas a escolha
gramatical e não a atitude narrativa do narrador. Embora seja uma narrativa em terceira
pessoa, ao lermos o romance Quincas Borba, em vários trechos evidenciamos a
presença do narrador no processo narrativo, marcada pelos verbos e pronomes em
primeira pessoa. A identificação do autor/narrador torna-se polêmica quando este
assume ser o mesmo autor/narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas:
52 A escolha do romancista não é feita entre duas formas gramaticais, mas entre duas atitudes
narrativas (de que formas gramaticais são apenas uma consequência mecânica): fazer contar a história
por uma das suas "personagens", ou por um narrador estranho a essa história. A presença dos verbos
em primeira pessoa num texto narrativo pode, pois, reenviar para duas situações muito diferentes, que
a gramática confunde mas a análise narrativa deve distinguir: a designação do narrador enquanto tal
por si mesmo, como quando Virgílio ao escrever "Arma virumque cano...", e a identidade de pessoa
entre o narrador e uma das personagens da história, como quando Cursoe escreve: "Em 1632, nasci
em York..." O termo "narrativa na primeira pessoa" não se refere, muito evidentemente, senão à
segunda dessas situações, dissimetria que confirma sua impropriedade. Na medida em que o narrador
pode a todo o instante intervir como tal na narrativa, toda a narração é, por definição, virtualmente
feita na primeira pessoa (mesmo que seja no plural acadêmico, como quando Stendhal escreve:
"Confessaremos que... começamos a história do nosso herói..."). A verdadeira questão é a de saber se
o narrador tem ou não ocasião de empregar a primeira pessoa para designar uma das suas
personagens. Distinguir-se-ão, pois, dois tipos de narrativa: uma do narrador ausente da história que
conta (exemplo: Homero na Ilíada, ou Flaubert na Éducation sentimentale), a outra de narrador
prsente como personagem na história que conta (exemplo: Gil Blas, ou Wuthering Heights). Nomeio o
primeiro tipo, por razões evidentes, heterodiegético e o segundo, homodiegético. (GENETTE, 1995,
p. 243)
94
Como observa Dilson Cruz, o autor da enunciação deste romance parece ter
uma mesma postura enunciativa que o de Memórias Póstumas de Brás Cubas53.
Sendo Brás Cubas o autor de suas memórias e, conforme vimos na citação anterior, o
autor de Quincas Borba, este "eu" enunciador, ao dizer ao leitor que esta personagem é
a mesma das Memórias Póstumas assume, explicitamente e de modo inquestionável,
sua autoria. Logo, o autor defunto compõe um romance autobiográfico e outro como
narrador onisciente, tornando ambos uma narrativa determinada pelo discurso
autoritário. Adilson Citelli, ao analisar os diferentes tipos de discursos, observa que
uma das características do discurso autoritário moderno, persuasivamente desejoso
de aplainar as diferenças, é a busca da neutralidade e cientificidade, pois se é neutro,
ninguém o produz, se científico, ninguém o questiona. Desse modo, o discurso
autoritário moderno tem por efeito de sentido fazer com que as verdades de uma
instituição sejam expressão da verdade de todos54. Embora o discurso de Brás Cubas,
como autor de sua obra, seja assumido, isto é, um discurso homodiegético, pretende ter
como efeito de sentido a verdade universal, visto ser o enunciador um defunto autor:
53 Assim, há que se registrar uma questão capital, já apontada anteriormente e que aqui vai só como
lembrete: embora o narrador de Memórias Póstumas ou de Quincas Borba tenha um temperamento
diferente do dos narradores dos romances que os antecederam, o ator da enunciação, que se encontra
em instância acima da deles, parece claramente o mesmo, marcado por um mesmo proceder, que, em
síntese, pode ser descrito como o uso abundante de metalepses de autor, no sentido utilizado por
Genette e que será detalhado mais adiante. De fato, o enunciador manipula com extrema habilidade a
relação causal que une o produtor de uma representação e a própria representação, mostrando como a
narrativa traz em si as marcas de seu enunciador. (CRUZ, 2009, 197)
54 O discurso autoritário e persuasivamente desejoso de aplainar as diferenças, fazendo com que as
verdades de uma instituição sejam expressão da verdade de todos, e assim colocado por Marilena
Chauí: “O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou
autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como
tendo o direito de falar e ouvir...” (CITELLI, 2002, p. 35)
95
55 Michel Foucault, em Vigiar e Punir, trata dos mecanismos de disciplina como técnica de poder própria
da quadriculação disciplinar nos presídios. Tirado da figura arquitetônica de Bentham, o Panopticon é
uma construção periférica, em forma de anel, e uma torre no centro do anel. O edifício periférico está
dividido em celas, cada uma delas possui duas janelas, uma para o exterior, por onde entra a luz, e
outra que dá para a torre central. Esta, por sua vez, possui janelas que permitem olhar através das
janelas interiores das celas. Basta situar o vigilante na torre central para assegurar a vigilância dos que
se encontram nas celas. O panóptico é uma máquina de dissociar a dupla ver-ser visto, de modo que o
indivíduo situado em sua cela, sem contato com os que se encontram nas outras celas, converte-se em
objeto de informação sem ser nunca sujeito de comunicação. Por isto, o efeito maior do panóptico é
induzir nos detentos um estado consciente e permanente de visibilidade. O primeiro efeito desta
relação de poder é, pois, a constituição deste saber permanente do indivíduo; do indivíduo confinado
em um espaço e seguido por um olhar virtualmente contínuo, que define a curva temporal de sua
evolução, de sua cura, da aquisição de seu saber, de seu arrependimento. (CASTRO, 2009, p. 314-
316)
96
56 Para alguns, o indireto livre é um tipo de ruptura política que põe o romance europeu em conflito
com a cultura dominante; para Iauss, por exemplo, ele "obriga o leitor [...] a uma intrigante incerteza
de juízo [...] e repropõe um problema de moral pública [isto é: como julgar o adultério] que já parecia
resolvido (...) A outra posição vê as coisas de modo oposto. O indireto livre é uma espécie de
panóptico tornado estilo, um dispositivo foucaultiano que dissimula e dissemina por toda parte a voz-
dominante do narrador, que permite "limitar, cancelar, aprovar, ou subsumir todas as outras vozes às
quais se concede a palavra. (MORETTI, 2009, p. 861)
57 O estilo indireto livre atinge seu máximo quando é quase invisível ou inaudível: "Ted olhava a
orquestra por entre lágrimas idiotas". Em meu exemplo, a palavra "idiotas" mostra que a frase está no
estilo indireto livre. Tirem o adjetivo, e teremos um relato-padrão: "Ted olhava a orquestra por entre
lágrimas". O acréscimo da palavra "idiotas"levanta a questão: que palavra é essa? Não é provável que
eu queira chamar meu personagem de idiota só porque está ouvindo música numa sala de concertos.
Não, numa maravilhosa transferência alquímica, agora a palavra pertence, em parte, a Ted. Ele está
ouvindo a música e chorando, e se sente constrangido - podemos imaginá-lo enxugando raivosamente
os olhos - por ter permitido que aquelas lágrimas "idiotas" corressem. Converta a frase para a primeira
pessoa, e teremos: '''Que idiota, chorar por causa dessa peça boba de Brahms', pensou ele". Mas esse
exemplo possui muitas palavras a mais, e perdemos a presença complexa do autor. O que há de tão
útil no estilo indireto livre é que, no nosso exemplo, uma palavra, como "idiota" de certa forma
pertence ao autor e ao personagem; não sabemos muito bem quem "possui" a palavra. Será que
"idiota" reflete uma leve aspereza ou distância por parte do autor? Ou a palavra pertence totalmente ao
personagem, e o autor, num acesso de empatia, "entregou-a", por assim dizer, ao sujeito em lágrimas?
Graças ao estilo indireto livre, vemos coisas através dos olhos e da linguagem do personagem, mas
também através dos olhos e da linguagem do autor. Habitamos, simultaneamente, a onisciência e a
parcialidade. Abre-se uma lacuna entre autor e personagem, e a ponte entre eles - que é o próprio
estilo indireto livre - fecha essa lacuna, ao mesmo tempo que chama atenção para a distância.
(WOOD, 2008, p. 23)
58 Fora de contexto, nada permite conferir, com segurança, a um enunciado o estatuto de discurso
indireto livre; isto está ligado à propriedade notável que possui de relatar alocuções fazendo ouvir duas
97
vozes diferentes inextricavelmente misturadas, para retomar os termos de Bakhtin ou, dois
"enunciadores", segundo palavras de Ducrot. O discurso indireto livre se localiza precisamente nos
deslocamentos, nas discordâncias entre a voz do enunciador que relata as alocuções e a do -indivíduo
cujas alocuções são relatadas. O enunciado não pode ser atribuído nem a um nem ao outro, e não é possível
separar no enunciado as partes que dependem univocamente de um ou de outro. (MAINGUENEAU,
1997, p. 97)
59 Não é nosso propósito insistir nisso, mas somente notar a relação, geralmente passada em claro,
entre o discurso imediato e o ‹‹discurso relatado››, que só se distinguem, formalmente, pela presença
ou ausência de uma introdução declarativa, (...), o monólogo não tem que ser extensivo a toda a obra
para ser recebido como ‹‹imediato››: bastam, qualquer que seja a sua extensão, que se apresente por si
mesmo, sem a interposição de uma instância narrativa reduzida ao silêncio, e da qual vem assumir a
função. Pode ver-se aqui a diferença capital entre monólogo imediato e estilo indireto livre, que por
vezes se cai no erro de confundir, ou de indevidamente aproximar: no discurso indireto livre, o
narrador assume o discurso da personagem, ou, se se preferir, a personagem fala pela voz do narrador,
e as duas instâncias veem-se então confundidas; no discurso imediato, o narrador dilui-se e a
personagem substitui-se-lhes. (GENETTE, 1995, p. 172)
98
"A NOITE ERA CLARA; fiquei cerca de uma hora entre o mar
e a sua casa. A senhora aposto que...”
99
60 Cada enunciação concreta do sujeito do discurso constitui o ponto de aplicação seja das forças
centrípetas, como das centrífugas. Os processos de centralização e descentralização, de unificação e de
desunificação cruzam-se nesta enunciação, e ela basta não apenas à língua, como sua encarnação
discursiva individualizada, mas também ao plurilinguismo, tornando-se seu participante ativo. Esta
participação ativa de cada enunciação define para o plurilinguismo vivo o seu aspecto linguístico e o
estilo da enunciação, não em menor grau do que sua pertença ao sistema normativo-centralizante da
língua única. Cada enunciação que participa de um "língua única" (das forças centrípetas e das
tendências) pertence também, ao mesmo tempo, ao plurilinguismo social e histórico (às forças
centrífugas e estratificadoras). (BAKHTIN, 2010, p. 82)
101
Neste exemplo, a narrativa evidencia pela voz do narrador o diálogo entre Palha
e Rubião. Deste modo, a mistura dá-se entre a diégese (voz do narrador) e a mimese
(voz da personagem), formando outra forma diferente de discurso indireto livre, o qual
chamaremos de introspecção. Resumindo: chamamos de fusão a junção entre o
monólogo interior e a diégese e de introspecção a mimese e a diegese - definindo como
mimese, em sentido mais específico, a voz pronunciada da personagem para outras
personagens. Temos, portanto, nesses dois trechos, dois tipos diferentes de discurso
indireto livre, correspondendo cada um deles às duas diferentes posições apresentadas
por Moretti.
Se, como vimos anteriormente, a mimese responde pela dramaticidade da
narrativa, ela é responsável pela tensão dialógica que estabelece entre a personagem
locutora e seus interlocutores. Neste sentido, o discurso mimético, como discurso da
personagem, está sujeito ao questionamento e à validação das outras personagens e
também do leitor. É, portanto, um discurso parcial, aberto à polêmica. Logo, à medida
que a narrativa produz a introspecção entre a diégese e a mimese minimiza sua
dramaticidade, produzindo efeitos de individualidade.
Por sua vez, sendo o monólogo interior um discurso não pronunciado e,
portanto, sem auditor, ele não está sujeito à polêmica, mas tem como efeito revelar a
"essência" da personagem, ou melhor, seu juízo de valor, o qual muitas vezes é
recalcado, não estabelecendo ligação com as demais personagens. Tem, portanto, como
efeito, revelar ao leitor o juízo de valor da personagem diante de um determinado tema.
A fusão produz a discordância entre as diferentes vozes, colocando o leitor diante da
incerteza de juízo e, para retomar o apontamento feito por Moretti, tal procedimento
torna-se uma ruptura política, visto que dilui o monólogo interior no discurso do
narrador e repropõe um problema de moral pública que já parecia resolvido, isto é, a
individualização da voz não pronunciada da personagem passa a se confundir com a voz
do narrador.
Na contramão disso, a introspecção tem efeitos de subjetivação da voz do
narrador que passa a se confundir com a da personagem, isto é, o panóptico
102
Por fim, uma última característica relevante desses procedimentos retóricos tem
que ver com o desenvolvimento do discurso indireto livre/monólogo interior na
estrutura do romance. Para acompanhar o desenvolvimento dos procedimento retóricos
tanto do discurso indireto livre, quanto do monólogo interior na estrutura do romance
Quincas Borba, optamos por apresentá-los na forma de linha ao invés de o fazer na
forma de colunas como foi feito nos gráficos anteriores. Para tanto, separamos o
discurso indireto livre e o monólogo interior focado na personagem Rubião (a linha
azul) dos outros discursos focados nas outras personagens. Essa abordagem
possibilitou-nos observar o processo de subjetivação da personagem Rubião em
oposição às outras personagens em conjunto na estrutura do romance. Conforme pode
ser verificado no gráfico e na sistematização repartida da narrativa feita anteriormente,
Rubião é sujeito desses procedimentos à medida que se torna um capitalista. Do
capítulo I ao C, Rubião domina tais procedimentos, isto é, o discurso indireto livre e o
monólogo interior estão a serviço da identificação da sua subjetividade para o leitor. À
medida que ele perde a consideração das demais personagens, sobretudo do casal Palha,
as personagens passam a ter predomínio maior na identificação de suas subjetividades
em detrimento da subjetividade de Rubião, que se reifica e se torna objeto desses
procedimentos. Os efeitos de ritmo, nestes procedimentos, identificam e acompanham o
processo da loucura na qual Rubião sucumbe. Um exame mais apurado desses
procedimentos evidencia os projetos individuais buscados e sofridos pelas personagens.
105
Conforme observa Genette, diferentemente das cenas, pausas e elipses, nas quais
o tempo é determinado, em princípio, o sumário caracteriza-se pela sua variabilidade,
podendo conter em algumas frases dias, anos ou décadas. Dessa forma, o sumário foi,
até o fim do século XIX, conforme pontua, o "fundo" sobre o qual se destacam as
diversas cenas que encaminham a narrativa para a sua dramaticidade, estabelecendo os
efeitos de ritmo, conforme cada narrativa. Em alguns casos, sobretudo em momentos no
qual o narrador apresenta uma determinada personagem, o sumário tem efeito
retrospectivo, constituindo o passado e o caráter da personagem. Esse sumário
retrospectivo é identificado pelo autor como analepse completa. É comum que o
sumário recorra às chamadas narrativas iterativas, isto é, narrativas em que o narrador
conta uma vez algo que acontece "n" vezes para identificar uma frequência da ação
praticada por uma determinada personagem. Por exemplo, quando, no último capítulo
do romance Helena, o narrador conta a doença da personagem Helena, utiliza o sumário
em forma de narrativa iterativa:
Yves Reuter observa que, sendo o sumário um modo de contar, tem a tendência
ao resumo e se caracteriza por uma visualização menor e, desse modo, condensa em
algumas linhas um tempo da história às vezes muito longo 61. Para Friedman, citado por
Ligia Chiappini de Moraes Leite, em sua obra O Foco Narrativo, o sumário é um relato
61 Próximo da elipse, o sumário, que encontramos no capítulo precedente, condensa e resume. Com
poucas palavras ou algumas linhas, ele corresponde a um tempo às vezes longo da ficção. (REUTER,
2004, p. 89)
106
62 A tipologia do narrador de Friedman vai procurar fornecer elementos para responder a essas
questões em cada caso, mas vai basear-se também na distinção de Lubbock e de outros teóricos
examinados anteriormente, entre cena e sumário narrativo. Segundo Friedman: "A diferença principal
entre narrativa e cena está de acordo com o modelo geral particular: sumário narrativo é um relato
generalizado ou a exposição de uma série de eventos abrangendo um certo período de tempo e de uma
variedade locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge assim que os
detalhes específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação, personagem e diálogo, começam a
aparecer. Não apenas o diálogo mas detalhes concretos dentro de uma estrutura específica de tempo-
lugar são os sine qua non da cena. (Point of View, p. 119-20.)"Essa distinção, como dissemos, vai
nortear a tipologia de Friedman, organizada do geral para o particular: “da declaração à inferência, da
exposição à apresentação, da narrativa ao drama, do explícito ao implícito, da idéia à imagem”. (Op.
Cit., p.119.) Friedman chama a atenção, logo de início, para a predominância da cena, nas narrativas
modernas, e do SUMÁRIO, nas tradicionais. (LEITE, 1985, p. 25)
107
63 Conforme já observamos o fato da mudança estrutural nos capítulos dos três romances posteriores aos
quatro primeiro, iremos nos referir ao capítulos, nos quatro primeiro romances, em que o sumário
aparece com mais de dez por cento; quanto aos últimos, nos referiremos aos capítulos em que o
sumário aparece com mais de cinquenta por cento.
115
(idem, ibidem). Tal afirmação provoca uma polifonia no capítulo, visto que, se inocenta
Prima Justina por ser esta feita de azedume e implicância, descreve indiretamente o
comportamento que Capitu passa a ter com a mãe do autor-narrador. Logo após,
interrompe o sumário para inserir outro comentário: "A vida é cheia de obrigações que a
gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente." (idem,
ibidem). Este último comentário se duplica à medida que, em um primeiro momento,
referindo-se à prima Justina, analisado contextualmente parece referir-se a Capitu. E,
como a confirmar esta segunda interpretação, o capítulo termina com a frase de Prima
Justina a Capitu: "Não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu às mãos lhe há de ir".
(idem, ibidem). Aquilo que pareceu uma referência implícita à motivação de Capitu
feita pelo narrador, agora aparece de modo explícito na boca de prima Justina, sem,
necessariamente, excluir a primeira leitura. Deste modo, o sumário passa ter uma outra
função: a de efeito ambíguo sobre o caráter de Prima Justina e Capitu.
A partir do capítulo XCVII, dá-se o início da segunda parte do romance, isto é,
momento em que Bentinho sai do seminário e vai para São Paulo estudar Direito.
Conforme podemos ver no gráfico 16, a maior ocorrência do total de sumários dá-se
nestes cinquenta e um capítulos, ou em termos percentuais, 58%. Neles, o autor-
narrador relata seu retorno à capital do Império, seu casamento com Capitu, o
nascimento de Ezequiel, a morte de Escobar e a suspeita de traição. Em outras palavras,
nestes cinquenta capítulos está toda a dramaticidade da narrativa. Nesta dramatização, o
sumário funciona como procedimento de aceleração temporal e de acontecimento para
determinar as relações entre os casais Bentinho/Capitu e Escobar/Sancha, como também
para apresentar o caráter de Ezequiel, o qual se torna prova definitiva do adultério.
Desse modo, o sumário torna-se estruturante em Dom Casmurro, visto ser o responsável
pela organização da narrativa.
Após o nascimento de Ezequiel que acontece no capítulo CVIII, o narrador cuida
de apresentar o filho por meio de suas peraltices. Jogo retórico curioso aparece no
capítulo CIX, no qual a narrativa acelera o período entre o nascimento e a infância de
Ezequiel. O jogo retórico é feito pela metalepse de regência em que o autor-narrador,
como define Genette, ressalta o ato narrativo para mostrar suas articulações, conexões e
sua organização interna:
VI - METALEPSES
64 Certas figuras, em especial a metalepse, podem facilitar a transposição de valores em fatos. "Ele
esquece os favores" por "ele não é reconhecido"; "lembrem-se de nosso pacto" por "observem nosso
pacto", são maneiras de atribuir uma conduta a um fenômeno de memória, que permite ao interlocutor
modificar sua atitude parecendo ter somente melhorado seu conhecimento dos fatos. (PERELMAN,
2005, p. 206)
65 Como se sabe, os jogos temporais de Sterne são um pouco mais ousados, isto é, um pouco mais
literais, como quando as digressões de Tristram narrador (extradiegético) obrigam o seu pai (na
diegese) a prolongar a sua sesta mais uma hora, mas ainda aqui é o mesmo princípio. (GENETTE,
1995, p. 234)
120
das palavras tornadas palavras outras66. Em seu Manual de Semiótica Ugo Volli, ao
tratar dos metassignos, observa que estes servem como sugestão ao leitor do modo de
cortar um determinado texto, funcionando com instrução de uso para o próprio signo 67.
Uma das características observada por Genette sobre a metalepse é essa determinação
que evidencia o funcionamento da narrativa seja na mudança de nível, seja na
estruturação do ato narrativo, seja o diálogo entre autor e leitor, isto é, para além do
papel da narração propriamente dita, a intervenção do narrador na narrativa, operando
uma transgressão deliberada permite que interpele o leitor, mostre o processo de
organização da narrativa por meio de anúncios e reavisos, estabelecendo uma relação
intertextual ou tecendo valores sobre determinados acontecimentos durante o ato
narrativo. Genette identifica cinco funções possíveis de metalepses: 1 - a função
propriamente narrativa; 2 - a função metalinguística identificada por ele como função
regencial; 3 - a orientação direta e indireta do narrador ao narratário, chamada função
de comunicação, seguindo a mesma definição de Jakobson das funções fática e
conativa; 4 - a orientação do narrador para si mesmo, semelhante à definição de
Jakobson da função emotiva, determinando a relação afetiva, moral e intelectual que o
narrador toma na história que conta, manifesta muitas vezes na forma de testemunho, ou
na indicação de fonte de onde tirou uma determinada informação, ou ainda, os
sentimentos que determinado fato despertam nele, chamada de função testemunhal; 5 -
por fim, as intervenções valorativas que o narrador faz na história, atribuindo um valor
por meio de comentário, a qual Genette chama de função ideológica do narrador68.
66 O meta discurso se apresenta como um jogo com o discurso; na realidade, ele constitui um jogo no
interior deste discurso. Presume-se, uma vez mais, que se possua uma concepção apropriada da
discursividade: não um bloco de palavras e de proposições que se impõem maciçamente aos
enunciadores, mas um dispositivo que abre seus caminhos, que negocia continuamente através de um
espaço saturado de palavras, palavras outras. (MAINGUENEAU, 1997, p. 95)
67 Todos estes metassignos paratextuais servem para sugerir ao leitor um determinado modo de cortar
o texto e fornecer-lhe instruções para o seu uso (por exemplo, especificando se se trata de um romance
ou de um livro de histórias, de propaganda ou de informação, de um só artigo ou de um conjunto de
artigos sobre o mesmo assunto e assim por diante). É claro que todas essas indicações podem ser
seguidas ou não pelo leitor, de acordo com a sua eficácia, a partir de seu contexto social e, antes de
tudo, dos seus interesses. (VOLLI, 2012, p. 80)
68 O primeiro desses aspectos é, evidentemente, a história, e a função que aí está conectada é a
função propriamente narrativa, da qual nenhum narrador pode desviar-se sem perder por tanto a sua
qualidade de narrador, e a que pode muito bem tentar - como fizeram certos romancistas americanos -
reduzir o seu papel. O segundo é o texto narrativo, ao qual o narrador pode referir-se por um discurso
de alguma maneira metalinguístico (na ocorrência, metanarrativo) para marcar as suas articulações, as
conexões, as inter-relações, em suma, a organização interna: esses ‹‹organizadores›› do discurso, a
que Georges Blin chamava ‹‹indicações de regência››, relevam de uma segunda função, que se pode
apelidar de função de regência. O terceiro aspecto é a própria situação narrativa, cujos dois
protagonistas são o narratário, presente, ausente ou virtual, e o próprio narrador. A orientação para o
121
narratário, à preocupação de estabelecer ou de manter com ele um contato, ou até um diálogo (real,
como em La Maison Nucingen, ou fictício, como em Tristram Shandy), corresponde uma função que
lembra ao mesmo tempo a função ‹‹fática›› (verificar o contato) e a função ‹‹conativa›› (agir sobre o
destinatário) de Jakobson. A orientação do narrador para ele próprio, enfim, determina uma função
homóloga àquela que Jakobson designa, de forma um pouco desajeitada, por função ‹‹emotiva››: é ela
que dá conta da parte que o narrador, enquanto tal, toma na história que conta da parte que o narrador,
enquanto tal, toma na história que conta, na relação que mantém com ela: relação afetiva, claro, mas
igualmente moral e intelectual, que pode tomar a forma de um simples testemunho, como quando o
narrador indica a fonte de onde tirou a sua informação, ou o grau de precisão das suas próprias
memórias, ou os sentimentos que tal episódio desperta em si; há aí algo a que se poderia chamar
função testemunhal ou de atestação. Mas as intervenções, diretas ou indiretas, do narrador a respeito
da história podem tomar também a forma mais didática de um comentário autorizado da ação: afirma-
se assim aquilo a que se poderia chamar a função ideológica do narrador, e sabe-se o quanto Blazac,
por exemplo, desenvolveu essa forma de discurso explicativo e justificativo, nele veículo, como em
tantos outros, da motivação realista. (GENETTE, 1995, p. 254-255)
122
Com base apenas nesses percentuais, podemos afirmar que nos romances
Ressurreição, Helena e Iaiá Garcia, a intervenção do narrador na narrativa tende aos
comentários, por sua vez, em A Mão e a Luva e Quincas Borba , tende à comunicação
125
70 A retórica só é exercida em situações de incerteza e conflito, em que a verdade não é dada e talvez
jamais seja alcançada senão sob a forma de verossimilhança. Afinal de contas, o debate entre Creonte
e Antígona, entre a razão de Estado, que exige a ordem para garantir a paz, e a lei divina, ética, que se
resigna com a injustiça, esse debate não se encerrou, e pode-se acreditar que não nunca se encerrará.
(REBOUL, 2000, p. 39)
71 A análise da apreensão da realidade deve ainda ser dividida em dois aspectos, um relativo aos fatos
narrados e outro relativo à narração, e considerar dois parâmetros: o saber do narrador em relação ao
enunciador e o saber em relação aos actantes do enunciado. Veja-se inicialmente o primeiro aspecto, o
saber relativo à narração. Em todos os nove romances, o narrador sabe mais sobre a narração que os
actantes do enunciado, que naturalmente, desconhecem a condução do texto, ainda que, em alguns
momentos, sejam instalados como narratários, como é o caso de Sancha em Dom Casmurro, ou
mesmo que o narratário seja transformado em interlocutor e actante dó enunciado, como em Quincas
Borba. Em sete dos nove romances, o saber do narrador sobre a narração revela-se muito inferior ao
126
Neste enunciado, o jogo dá-se entre o novo - o ano que desponta - como elemento
positivo e a morte como elemento negativo. Entre os dois pólos, existe apenas a ilusão
que produz frutos do parecer belo e melhor. Esse jogo axiológico entre novidade e
morte tem como efeito a desestabilização do ponto central que orienta os valores
humanos, isto é, a ilusão. E encerrando o último capítulo:
Se o enunciado inicial trata do ano novo, este trata da morte do amor em Lívia e
Félix. Para tanto, desenvolve o tema anterior para mostrar que a impossibilidade do
amor não se deve às questões externas, mas a própria relação que o indivíduo estabelece
consigo mesmo. No jogo entre enunciação e enunciado, entre o dito e o dizer, a chave
de leitura do amor livre, resultando em final feliz, agora aponta para outras
possibilidades - a ilusão - isto é, o que até o momento era visto como a façanha do herói
diante do obstáculo a ser vencido para se conjugar ao seu amor - aquilo que lhe é
externo e que depende dele para superar - na intervenção deste narrador, torna-se
do enunciador, pois, com frequência, ele se mostra inseguro e tem de explicar por que diz o que diz,
justificar a forma como conduz a narração, explicar os títulos que dá (ou não) aos capítulos, e assim
sucessivamente. Evidentemente, a dúvida, a insegurança, a imperícia, são do narrador; não do
enunciador. (CRUZ, 2009, 274-275)
127
Em Iaiá Garcia, quando Jorge, voltando da guerra, visita a casa da Tijuca, onde
antes havia roubado um beijo de Estela, agora casada com Luís Garcia, revive a
sensação do passado como um outro homem:
seguido pelo herói. Há, portanto, uma constante desestabilização, na qual o signo
(comentário) que remete ao signo (diegese, mimese, pausa e sumário) é atingido por
uma estranha impotência: a incerteza produzindo sua desterritorialização72. Assim, no
capítulo VIII, quando Félix se flagra perdidamente apaixonado pela viúva Lívia, o
narrador apresenta não como o triunfo do amor mas, como o título do capítulo sugere,
como a queda do homem e faz outro arremate em mais um de seus comentários:
"Algum homem pode gloriar-se de ser ingrato; dirá, com um moralista céptico, que é
uma maneira de ser independente. Mas ninguém é ridículo convencido; convencer-se é
emendar-se." (ASSIS, 2008, p. 263). Como observa Michel Foucault, se o comentário
estabelece um desnível entre o texto comentado e o comentário, pode desempenhar dois
papéis solidários entre si, isto é, se, por meio do comentário, constroem-se novos
discursos, reatualizando seu sentindo múltiplo para continuar mantendo oculto aquilo de
que o texto comentado é detentor, o comentário também, por meio desse procedimento
retórico, faz dizer o que estava articulado silenciosamente no texto comentado. 73
É, portanto, nesses deslocamentos de sentido promovidos por seus comentários
que o narrador precisa trazer o narratário ao nível da narrativa seja pela aproximação:
"Aquele dia, aurora do ano, escolhera-o o nosso herói para o ocaso de seus amores"
(ASSIS, 2008, p. 237); seja pelo diálogo que busca aparar as arestas de uma
interpretação equivocada: "Não se suponha, porém, que a pobreza o obrigasse ao
ofício;" (p. 239); seja pela enunciação de afirmativas atribuídas ao leitor com objetivo
de corrigi-las ou moderá-las:
72 O signo que remete ao signo é atingido por uma estranha impotência, por uma incerteza, mas
potente é o significante que constitui a cadeia. Eis porque o paranóico participa dessa impotência do
signo desterritorializado que o assalta por todos os lados na atmosfera escorregadia, mas ele acede
ainda mais ao sobrepoder do significante, no sentimento real da cólera, como senhor da rede que se
propaga na atmosfera. (DELEUZE E GUATTARI, 2011, p. 65)
73 Por um lado permite construir (e indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto primeiro
pairar acima, sua permanência, seu estatuto de discurso sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou
oculto de que passa por ser detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo isso
funda uma possibilidade aberta de falar. Mas, por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam
quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no
texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca,
dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que,
no entanto, não havia jamais sido dito. A repetição indefinida dos comentários é trabalhada do interior
pelo sonho de uma repetição disfarçada: em seu horizonte não há talvez nada além daquilo que já
havia em seu ponto de partida, a simples recitação. O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-
lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo
seja dito e de certo modo realizado. A multiplicidade aberta, o acaso são transferidos, pelo princípio
do comentário, daquilo que arriscaria de ser dito, para o número, a forma, a máscara, a circunstância
da repetição. O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta (FOUCAULT, 2010,
p. 25).
129
Ou ainda, enunciando a dúvida do leitor como premissa a ser refutada: "Mas a mulher
dele? A mulher dele, amigo leitor, era uma moça relativamente feliz. Estava mais que
resignada, estava acostumada à indiferença do marido" (p. 266).
Esses constantes diálogos com o leitor evidenciam que o contrato previamente
estabelecido entre autor e leitor foi alterado. No contrato romântico, o leitor espera um
destinador a demandar uma determinada ação ao herói para recuperar o objeto com o
qual se encontra em disjunção. Para tanto, deve enfrentar alguns obstáculos em busca de
estabelecer a conjunção com esse objeto. No caso de Ressurreição, o destinador (os
sentimentos de Félix) demanda que o herói enfrente o relacionamento com Lívia para
poder reestabelecer o objeto (a confiança) da qual se encontra em disjunção. Em A Mão
e a Luva, o destinador (o amor de Estevão por Guiomar) demanda que o herói enfrente a
rejeição de Guiomar, bem como o rival Jorge para poder reestabelecer o objeto (o amor
de Guiomar por Estevão). Em Helena, o destinador (testamento do Conselheiro Vale)
demanda que a heroína enfrente a família do Conselheiro falecido para poder
restabelecer o objeto que pode ser tanto o pertencimento familiar quanto a felicidade.
Em Iaiá Garcia, o destinador (amor de Jorge por Estela) demanda que o herói enfrente
sua mãe Valéria e sua ida à guerra para conquistar o coração de Estela. Obviamente,
pelos diferentes desdobramentos que essas narrativas apresentam, o leitor pode supor
outros destinadores, heróis, obstáculos e objetos de conquistas. Exatamente por conta
desses desdobramentos a embaralhar os papéis actanciais é que, em nenhum deles, o
contrato é respeitado e, para tanto, o narrador interfere na narrativa com seus
comentários para mostrar que o esquema axiológico não funciona de modo tão simples
como prevê o modelo romântico. Se o contrato foi alterado, o narrador precisa, para não
perder a atenção do seu leitor, apresentar outro contrato. Nesse sentido, as metalepses de
comunicação, de regência e testemunhal têm papel importante nesses quatro romances
para elaborar o novo contrato que reconstitua a coesão rompida e assegure a melhor
recepção da mensagem. Além dos exemplos já citados, vemos, por exemplo, esse
esforço quando, em A Mão e a Luva, para preparar a mudança na disputa pelo coração
de Guiomar, o narrador, após intercalar diégese e mimese, as quais constituem a cena de
130
aproximação entre a jovem e o advogado Luís Alves, descreve a sensação que este
causa na moça: "A ruga desfez-se a pouco e pouco, mas a moça não retirou logo os
olhos. Havia neles uma interrogação imperiosa que a alma não se atrevia a transmitir
aos lábios. Se há nos do leitor alguma interrogação, esperemos o capítulo seguinte" (p.
362) A promessa suspensa no capítulo XII não se esclarece no capítulo seguinte. Ao
invés disso, o narrador explora ainda mais essas incertezas entre as personagens,
fazendo com que Guiomar saiba que, embora aquelas palavras sejam mais que um
cumprimento, não chegam a ser uma declaração de amor, colocando seu estado de
espírito em suspensão. Para tanto esse desvio da narrativa que tornará Luís Alves um
novo concorrente ao coração de Guiomar é justificado tanto pelo diálogo com o leitor
como pela metalepse de regência e testemunhal:
A dúvida do narrador enunciada pela frase "não sei se o era" sobre a atitude
ambígua de Luís Alves em relação à Guiomar tem como efeito de sentido a incerteza
que atinge não apenas o leitor, mas o narrador, evidenciando sua não onisciência. O
narrador coloca-se na mesma condição que o leitor sobre o significado daquela atitude
tomada por Luís Alves que, até o momento, desempenha o papel de advogado de
Estevão para conquistar o amor de Guiomar, mas que agora muda de direção, tornando-
se rival do amigo. Cabe observar que, anteriormente, Luís Alves que pleiteia Guiomar
para Estevão, foi procurado por Jorge para impedir a viagem da Baronesa a Cantagalo.
Essa duplicidade enunciada na história toma conta da narração, atingindo não apenas o
leitor, mas também o narrador que se vê obrigado a assumir o limite de seu
131
74 Essas passagens, nas quais o emprego de nós substitui eu, sugerem a ideia de um passeio no e pelo
texto que, juntos, efetuariam o autor e o leitor - este convidado a coadjuvante no traçado da obra.
(GUIMARÃES, 1997, p. 62)
132
seus limites por meio da metalepse testemunhal, e convida o leitor ao processo narrativo
por meio das metalepses de regência e de comunicação, estabelecendo com ele um novo
contrato de leitura definido como modelo contratual. Em Quincas Borba, o narrador
também estabelece esse novo contrato com o leitor por meio das metalepses de
regência, testemunhal e de comunicação, à medida que há o investimento na primeira
pessoa do plural, bem como a enunciação do processo narrativo e também o limite de
conhecimento dos fatos assumido pelo narrador. Contudo, algo diferente dá-se neste
novo procedimento narrativo: aos poucos o narrador afasta o leitor desse processo,
responsabilizando-o por certos enunciados, apontando lacunas na produção de sentido
da narrativa ou, ainda, contrariando seu modo de interpretar determinado
acontecimento, como veremos a seguir. À medida que o narrador enuncia o narratário
na narrativa, bem como enuncia o ato narrativo e também desautoriza o leitor do papel
de produtor de sentido acentuando as contradições e falhas, sem com isso se constituir
como narrador onisciente, isto é, continuando a enunciar seus limites de conhecimento,
dá-se um novo modelo de funcionamento da narrativa o qual chamamos de modelo
disciplinar.
Michel Foucault define a disciplina como um princípio de controle da produção
discursiva, isto é, a disciplina fixa no jogo discursivo uma identidade, cuja forma é
determinada por uma permanente reatualização das regras 75. Em O Poder Psiquiátrico,
o poder disciplinar é definido, em oposição ao poder da soberania, como um poder
anônimo, múltiplo, pálido, sem cor, cujo objetivo não consagra o poder de alguém, mas
apenas produz efeitos no corpo, o qual deve ser tornado dócil e submisso 76.
Maingueneau observa que um posicionamento enunciativo deve levar em conta o
investimento imaginário do corpo, cuja adesão "física" está ligada a certo universo de
sentido, isto é, as ideias enunciadas a partir de um ethos determinam um tom que
necessariamente implica certa determinação de seu próprio corpo de modo que o
75 A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo
de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras. Tem-se o hábito de
ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma
disciplina, como que recursos infinitos para a criação dos discursos. Pode ser, mas não deixam de ser
princípios de coerção; e é provável que não se possa explicar seu papel positivo e multiplicado r, se
não se levar em consideração sua função restritiva e coercitiva. (FOUCAULT, 2010, p. 36)
76 Pois bem, no lugar desse poder decapitado e descoroado se instala um poder anônimo múltiplo,
pálido, sem cor, que é no fundo o poder que chamarei da disciplina. Um poder de tipo soberania é
substituído por um poder que poderíamos dizer de disciplina, e cujo efeito não é em absoluto
consagrar o poder de alguém, concentrar o poder num indivíduo visível e nomeado, mas produzir
efeito apenas em seu alvo, no corpo e na pessoa do rei descoroado, que deve ser tornado 11 dócil e
submisso:" por esse novo poder. (FOUCAULT, 2006, p. 28)
134
80 Foucault estabelece dois usos para o termo. Um deles é associado à ordem do saber. Trata-se, nesse
caso, de uma forma discursiva que visa controlar/limitar a produção de novos discursos. Trata-se de
um projeto voltado para a disciplinarização dos saberes, o que o leva a compreender a Enciclopédie, a
criação das grandes escolas e universidades como mecanismos articulados a essa finalidade. Outra
acepção é associada à ordem do poder. Trata-se, nesse caso, de um conjunto de técnicas em virtude
das quais os sistemas de poder têm por objetivo e resultado a singularização dos indivíduos. Volta-se
para o corpo e singularização dos indivíduos. (GONDRA, 2009, p. 173 - nota de rodapé)
81 Enfim, creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição
institucional tende a exercer sobre os outros discursos - estou sempre falando de nossa sociedade -
uma espécie de pressão e como que um poder de coerção. Penso na maneira como a literatura
ocidental teve de buscar apoio, durante séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência
também - em suma, no discurso verdadeiro. Penso, igualmente, na maneira como as práticas
econõmicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente como moral, procuraram, desde o
século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se a partir de uma teoria das riquezas e da
produção; penso ainda na maneira como um conjunto tão prescritivo quanto o sistema penal procurou
seus suportes ou sua justificação, primeiro, é certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século
XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não
pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade (FOUCAULT,
2010, p. 18).
82 De qualquer forma, a AD não pode deixar de refletir sobre o gênero quando aborda um corpus. Um
136
enunciado "livre" de qualquer coerção é utópico. Uma boa ilustração deste fato decorre de um texto
que B. Gardin examinou; trata-se de um folheto sindical que pretende ser um depoimento "autêntico"
sobre a realidade do trabalho em uma linha de montagem. As coerções do gênero "depoimento"
exigem a utilização de um "falar popular" que supostamente é capaz de liberar um discurso imediato.
(MAINGUENEAU, 1997, p. 38)
83 Essas quatro variáveis, que se podem aplicar da mesma forma às cinco partes da planta — raízes,
caules, folhas, flores, frutos — especificam a extensão que se oferece à representação, o bastante para
que seja possível articulá-la numa descrição aceitável por todos: perante o mesmo indivíduo, cada
qual poderá fazer a mesma descrição; e, inversamente, a partir de tal descrição, cada um poderá
reconhecer os indivíduos que a ela correspondem. Nessa articulação fundamental do visível, o
primeiro afrontamento entre a linguagem e as coisas poderá estabelecer-se de uma forma que exclui
toda incerteza. (FOUCAULT, 2002, p. 184)
84 Um primeiro modo de atenuar é duvidar, ou fingir que se duvida. A língua humana tem formas
resvaladiças de dizer sem dizer. Veja-se o verbo parecer que, a um só tempo, abre as janelas para as
impressões do objeto e cerra sobre estas o véu da incerteza do sujeito. (BOSI, 1999, p. 133)
137
85 O falante, suporte das formações discursivas, ao construir seu discurso, investe nas estruturas
sintáticas abstratas temas e figuras, que materializam valores, carências, desejos, explicações,
justificativas e racionalizações existentes em sua formação social. Esse enunciador não pode, pois, ser
considerado uma individualidade livre das coerções sociais, não pode ser visto como agente do
discurso. Por ser produto de relações sociais, assimila uma ou várias formações discursivas, que
existem em sua formação social, e as reproduz em seu discurso. É nesse sentido que se diz que ele é
suporte de discursos. Na medida em que as formações discursivas materializam as formações
ideológicas e estas estão relacionadas às classes sociais, os agentes discursivos são as classes e as
frações de classe. Tornamos a lembrar que, embora haja diferentes formações discursivas numa
formação social, a formação discursiva dominante é a da classe dominante. (FIORIN, 1993, p. 43)
86 Em outras palavras, a sua escassa presença relaciona-se ao problema intrínseco a cada tipo de
representação, levantado por Platão mas em nada limitado à tradição ocidental, qual seja, o de que a
ficção não é verdade histórica (evidente por si mesma); é, literalmente, uma mentira, se bem possa
ambicionar a um outro tipo de verdade, a da imaginação. Pode ambicioná-lo, mas isso não significa
que o alcance. Ao contrário, segundo alguns, se trata de uma ambição destinada a permanecer ilusória;
por isso às vezes se prefere a biografia, que também apresenta elementos de ficção, à história
inventada, capaz de oferecer apenas distração, não, certamente, "verdade". (GOODY, 2009, p. 65)
87 A equivalência dos objetos do desejo não é mais estabelecida por intermédio de outros objetos e de
outros desejos, mas por uma passagem ao que lhes é radicalmente heterogêneo; se há uma ordem nas
riquezas, se isto pode comprar aquilo, se o ouro vale duas vezes mais que a prata, não é mais porque
os homens têm desejos comparáveis; não é porque através de seu corpo eles experimentam a mesma
fome ou porque o coração de todos obedece às mesmas seduções; é porque todos eles são submetidos
ao tempo, ao esforço, à fadiga e, indo ao extremo, à própria morte. Os homens trocam porque
experimentam necessidades e desejos; mas podem trocar e ordenar essas trocas porque são
submetidos ao tempo e à grande fatalidade exterior. (FOUCAULT, 2002, pp. 308-309)
138
identificado nos quatro primeiros romances. Assim, o narrador faz uso constante dos
pronomes pessoais e dos verbos conjugados na primeira pessoa do plural. Vemos alguns
exemplos como no capítulo IV: "...o nosso Rubião, acompanhando o médico até a porta
da rua,perguntou-lhe qual era o verdadeiro estado do amigo" (ASSIS, 2008c, p. 51); no
capítulo LVI: "Saltemos por cima de tudo o que ele sentiu e pensou durante os
primeiros dias." (p. 125); no capítulo CI: "Esse ato de nosso amigo fez grande
impressão nos convidados" (p. 191). Estes e outros exemplos, conjugados com as
outras metalepses, têm efeitos de sedução no ato da leitura a tornar o leitor
coadjuvante do ato da escrita. Contudo, diferentemente dos outros narradores,
este, aos poucos, estabelece uma diferença de nível, tornando o leitor menos
coautor e mais observador do processo da narrativa. Em Iaiá Garcia, quando o
narrador convida o leitor a voltar um pouco e ver como se deu o casamento de
Estela, ele o faz nos seguintes termos: "Antes de irmos direito ao centro da
ação,vejamos por que evolução do destino se operou o casamento de Estela." (p.
538). Como vemos, o leitor é convidado a acompanhar a cena que antecede ao que
vem sendo contado. Obviamente, não é um convite de compor junto, mas à medida
que o narrador, por meio dos verbos conjugados em primeira pessoa do plural,
coloca-se no mesmo nível do leitor, ambos acompanham em mesmas condições de
status. O mesmo procedimento vemos em A Mão e a Luva no capítulo IV: "Enquanto
as três almoçam, relancemos os olhos ao passado, e vejamos quem era essa Guiomar tão
gentil, tão buscada e tão singular, como dizia Mrs. Oswald" (p. 333). Diferentemente
deles, em Quincas Borba, para além desses marcadores linguísticos de comunhão entre
narrador e narratário aparecem outros marcadores que indicam o distanciamento
conforme podemos ver no capítulo III:
ser explicado. Na sequência deste trecho, abrindo o capítulo IV, o narrador informa ao
leitor quem é Quincas Borba, acentuando ainda mais esse desnivelamento:
Neste exemplo, além dessa correção feita pelo narrador, o qual pede que o
140
narratário não se esqueça de certas informações para ver a alma de Palha como uma
colcha de retalhos, essa conclusão é logo tomada com certo distanciamento pelo
narrador, o qual não a assume inteiramente, mas apenas concorda como possibilidade de
interpretação, atribuindo por meio desse distanciamento tal leitura ao leitor. No capítulo
XXVIII, ao enunciar os pensamentos do cachorro Quincas Borba em discurso indireto
livre, o narrador interrompe a narrativa para justificar o procedimento e atribui ao leitor
as afirmações enunciadas: "Mas já são muitas ideias, — são ideias demais; em todo
caso são ideias de cachorro, poeira de ideias, — menos ainda que poeira, explicará
o leitor." (p. 80) Vemos neste exemplo o mesmo procedimento a reafirmar a ideia
de coparticipação, mas que, em alguns momentos, como esse o narrador não a
assume, deixa-a sob responsabilidade do leitor. Este procedimento repete-se no
capítulo XC de forma potencializada, visto que o enunciado, além de não ser
assumido pelo narrador, não é atribuído à personagem, fazendo com que o
narratário assuma sozinho sua responsabilidade enunciativa:
88O narrador, aliás, parece mesmo se divertir em dar corda às suspeitas do leitor, deixar crescer o
142
do que chama de narrador dubitativo, isto é, por meio dos preceitos do ceticismo grego,
o narrador estabelece igual distância entre a afirmação e a negação, na qual as diferentes
hipóteses estão em condição de equivalência não permitindo qualquer conclusão
irrefutável, resultando em aporia89. Para além das dúvidas como exercício provocado
pelo narrador apontada por Süssekind ou a aporia identificada por Serpa, este capítulo
composto totalmente de metalepse de comunicação evidencia o funcionamento das
diferentes metalepses em todo o romance, visto que até o momento o narrador
estabelece esse contrato com o narratário, tornando-o coadjuvante no ato narrativo e,
conforme vimos nos exemplos anteriores deste romance, aos poucos, ele estabelece esse
distanciamento com o narratário seja apontando falhas que precisam ser preenchidas ou
atribuindo apenas ao leitor certos enunciados para, com isso, chegar a esse capítulo
central em que o contrato de coautoria é rompido, evidenciando que o narratário é
incompetente para produzir sentido que garanta coesão e coerência ao texto. Ele é
acusado, inclusive, de caluniador e responsável por prejudicar o andamento da narrativa
como afirma o narrador no final deste capítulo: "Não era razão para que eu cortasse o
episódio, ou interrompesse o livro" (ASSIS, 2008c, p. 200). Sem dúvida, concordando
com as autoras anteriormente citadas, trata-se de uma armadilha do narrador ao leitor,
mas essa armadilha, uma vez que esteja afirmada a não onisciência do narrador e a
incompetência do leitor em produzir sentido, tem como função reestabelecer a certeza e
a verdade centrada na própria narrativa que passa a funcionar sozinha como instância de
legitimação. Como observa Foucault, o modelo disciplinar é feito para funcionar
sozinho, mesmo que tenha um responsável encarregado por seu funcionamento, não por
sua individualidade, mas pela função em si que pode ser exercida por qualquer um, isto
é, suprime a individualização no topo, ao mesmo tempo em que produz uma
ciúme do protagonista e o interesse e certeza de um adultério por parte dos leitores. Para quando
menos se espera desarmá-los, não sem ironia, no "capítulo CVI", mantido integralmente na versão em
livro do Quincas Borba. O que faz aí, na verdade, o narrador machadiano? Não se trata apenas de
brincar com a armadilha armada para o leitor e Rubião. Trata-se, sim, de pôr o próprio ponto de mira à
mostra. E convida o leitor, de posse desta informação, ao exercício mais frequente da dúvida diante do
narrado, a uma recepção mais atenta, crítica. (SÜSSEKIND, 2000, p. 264)
89 Ao reconstruir os fatos, o narrador renuncia igualmente a toda afirmação e a toda negação. Esta
afasia ou recusa em se pronunciar não é essencialmente negativa. É dubitativa (ou aporética), ou seja,
situa-se a igual distância da afirmação e da negação. Ao recurar as várias hipóteses dos leitores, o
narrador se reserva a suspensão do juízo (epoché), utilizando a argumentação de que "já é muito
concertar os farrapos da realidade). Para exprimir sua dúvida, faz uso de conjunções que contêm a
ideia de que uma hipótese não seria melhor do que outras. (SERPA, 2003, p. 70)
143
90 Um sistema disciplinar é feito para funcionar sozinho: e quem é encarregado dele ou é seu diretor
não é tanto umindivíduo quanto uma função que é exercida por este, mas que poderia perfeitamente
ser exercida por outro, o que nunca ocorre na individualização da soberania. E, aliás, mesmo aquele
que é responsável por um sistema disciplinar encontra-se preso dentro de um sistema mais amplo, que
o vigia por sua vez e no seio do qual ele é disciplinarizado. Logo, creio, supressão da individualização
no topo. Em compensação, o sistema disciplinar implica, e creio ser isso o essencial, uma
individualização tendencial muito forte na base. (FOUCAULT, 2006, p. 68)
144
se do adágio filosófico de seu mentor, o narrador afirma que tal apropriação só seria
possível após o testamento, momento em que faz uma ressalva ao leitor, lembrando de
trechos narrados: "Esqueceu o projeto do sinete; mas a fórmula viveu no espírito de
Rubião, por alguns dias: Ao vencedor as batatas! Não a compreenderia antes do
testamento; ao contrário, vimos que a achou obscura e sem explicação." (p. 70). No
capítulo XXXI, após narrar as relações de amizade entre Rubião e Freitas, o
narrador inicia o capítulo apresentando outra personagem que, segundo sua
avaliação, é o oposto de Freitas. Para isso, utiliza-se da pergunta retórica para o
leitor:
Não, senhora minha, ainda não acabou este dia tão comprido;
não sabemos o que se passou entre Sofia e o Palha, depois que
todos se foram embora. Pode ser até que acheis aqui melhor
sabor que no caso do enforcado.
Tende paciência; é vir agora outra vez a Santa Teresa. A sala
está ainda alumiada, mas por um bico de gás; (p. 112)
91 Aliás, o próprio começo do primeiro capítulo afirma as duas dimensões simultaneamente: quando
informa que hesitou "se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em
primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte", Brás Cubas afirma o primado do percurso
biográfico sobre o discurso; mas a própria hesitação, o modo como a supera e os argumentos com que
a apresenta afirmam o primado do discurso sobre o percurso biográfico. Assim, é possível concluir -
mas será outra conclusão a dar-nos mais que fazer - que a diferença entre a opção romanesca e o
projeto autobiográfico se lança sobre todo o texto como se o corpo memorialístico fosse movido pela
tensão ou pela indecisão entre memória e ficção. (BAPTISTA, 2003, p. 186)
147
92 La intimidad fue entonces, primariamente, exritura, palabra, decir performativo que construía su
objeto, en contraposición, con el espacio de lo público, ua dilatado hacia la gran ciudad. (ARFUCH,
2005, p. 241)
148
Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a
pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande
César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos
o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me
vierem vindo. (p. 42)
que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar
que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto."
(p. 40). Tal qual o exemplo anteriormente apresentado em Quincas Borba, o narrador de
Dom Casmurro também esvazia esse lugar da autoria, uma vez que lhe é indiferente que
o poeta do trem possa ver no título sua obra, para se colocar apenas como encarregado
de fazer funcionar a narrativa que por sua vez passa a ser em si mesma a instância de
produção e legitimação da verdade.
Conforme vimos na tabela apresentada anteriormente, tanto em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, quanto em Dom Casmurro, há uma equivalência entre as
metalepses testemunhais e de comunicação, logo, essa narrativa autobiográfica
constrói-se tanto pelo diálogo com o leitor como pela orientação do autor a si
mesmo, marcando os acontecimentos como testemunhos vivenciados,
determinando o grau de precisão de suas memórias e enunciando o modo como
esses acontecimentos os afetam. Desse modo, a determinação memorialística
acompanhada por expressões de afeto do narrador com o leitor estabelece o jogo
de sedução e, portanto, de proximidade. Por ser uma narrativa homodiegética, a
função do narrador não é a de abrir mão da condição de onisciência, como o faz em
Quincas Borba, mas a de fazer crer que o narrado não é apenas uma interpretação
do narrador, mas informações condizentes com o acontecido. É desse modo que no
capítulo II, o programa narrativo é apresentado como um esforço para recompor o
que foi marcado por lacunas:
Vou esgarçando isto com reticências para dar uma ideia das
minhas ideias, que eram assim difusas e confusas; com certeza
não dou nada (...)e sendo este livro a verdade pura, é força
confessar que tive de interromper mais de uma vez as minhas
orações para acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-
tique, tique-tique... (p. 144)
memória e ficção, cujo papel para o narrador é, citando Montaigne, escrever sua
própria essência, ainda que tenha de contar as coisas negativas sobre si para poder
reconstruir-se a si mesmo. Além disso, mostra também o papel do narrador já não
mais como instância de legitimação da narrativa, mas como encarregado
responsável por operá-la. Vemos também nesses exemplos o modo como aborda o
leitor, seja usando pronomes de tratamento ou, como em outros momentos,
adjetivos afetivos como no capítulo X: "Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu
velho Marcolini (...) a denúncia de José Dias, meu caro leitor..." (p. 56); no capítulo
XIV: "Não me tenhas por sacrílego, leitora minha devota..." (p. 64); no capítulo
XXXVII: "...porque eu já fazia esforços, leitor amigo (p. 108); no capítulo LVII: Sim,
leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o Capítulo até ao
fim, sem susto nem vexame" (p. 143) e expressões como no capítulo XXXI:
"descontai-me a idade e a simpatia" (p. 94); no capítulo XXXII: "perdoai a barateza"
(p. 96); no capítulo XXXIV: "...e perdoai a banalidade em favor do cabimento" (p.
102); no capítulo XLII: "Não me chames dissimulado, chama-me compassivo" (p.
118) que acentuam o respeito do narrador pelo leitor. Estes e outros exemplos que
preenchem todo o romance mostram o esforço do narrador em angariar a simpatia
do leitor. E tal qual Quincas Borba, esses esforços de simpatia são intercalados com
práticas coercitivas que, implícita ou explicitamente, determinam o modo de
leitura adequada à narrativa. Assim vemos no capítulo XXXIII, quando narra seu
primeiro beijo em Capitu, afirma ao leitor: "Se isto vos parecer enfático, desgraçado
leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na
jovem cabeça de uma ninfa..." (p. 99) ou mais a frente, após o beijo, diz: "Não mofes
dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des
Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos." (p. 100). Ou no capítulo XLV, após
narrar sua discussão com Capitu e ela, para provocá-lo, promete-lhe que, quando este
for padre, permitirá que batize seu primeiro filho:
Ou ainda, no capítulo XLIX, após a reconciliação dos dois, ambos aceitam que
Bentinho atenda à promessa da mãe de ir para o Seminário, mas certos de que não
se tornaria padre e, portanto, de que voltaria para se casarem: "Não nos censures,
piloto de má morte, não se navegam corações como os outros mares deste mundo.
Estávamos contentes, entramos a falar do futuro." (p. 128). Ou ainda, no capítulo LI, ao
narrar a sua despedida de Capitu, relata o juramento feito de casarem-se um com o
outro, o qual foi selado com um beijo. A narrativa é interrompida e o tom agressivo com
o leitor dá-se mais uma vez: "Quanto ao selo, Deus, como fez as mãos limpas, assim fez
os lábios limpos, e a malícia está antes na tua cabeça perversa que na daquele casal de
adolescentes..." (p. 131). Estes exemplos mostram o modo como o narrador, permitindo
que o leitor com base nas informações tire suas conclusões, não o faz gratuitamente, isto
é, a todo o momento, a menor possibilidade de outro sentido da informação diferente da
que pretende dar, leva o narrador a um diálogo tenso e muitas vezes ofensivo com o
leitor, com efeitos coercitivos e determinando, indiretamente, um modo de ler. No
capítulo LIX, o narrador assume o limite de sua memória o que, necessariamente, o faz
esquecer certas informações, fazendo com que seu livro tenha várias lacunas. Ao dizer
isto, relata sua experiência como leitor e sugere ao leitor que faça o mesmo:
capítulo LXII, quando, ao perguntar sobre Capitu a José Dias, este provoca-lhe
ciúme, afirmando que Capitu está preste a pegar um peralta da vizinhança que case
com ela. Diante de tal afirmativa do agregado, o narrador relata sua crise de ciúme,
fazendo-o imaginar que a moça já namorava algum rapaz da vizinhança. Tal
imaginação o faz ver Capitu a olhar um rapaz a caminhar na rua, falarem-se à
janela, este lhe daria flores e... cria a lacuna. A imaginação é interrompida pela
retomada do diálogo com o leitor, determinando que este não somente preencha a
lacuna criada, mas, principalmente, induz o modo como deve ser preenchida,
colocando em dúvida ao seu interlocutor quanto à condição dele como leitor:
E... quê? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti
mesmo, escusado é ler o resto do Capítulo e do livro, não
acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da
etimologia. Mas se o achaste, compreenderás que eu, depois de
estremecer, tivesse um ímpeto de atirar-me pelo portão fora,
descer o resto dai ladeira, correr, chegar à casa do Pádua, agarrar
Capitu e intimar-lhe que me confessasse quantos, quantos,
quantos já lhe dera o peralta da vizinhança (p. 152)
O modo agressivo com que aborda o leitor evidencia o papel que o narrador
desempenha na narrativa e não uma obrigação interpretativa que o leitor deva ter
fazer dela. Se o narrador se colocasse como instância de legitimação da verdade,
bastaria dizer que Capitu envolveu-se com outro rapaz e que ambos namoraram
enquanto Bento estava no Seminário sem saber do ocorrido. Se assim o dissesse,
tal afirmativa não necessariamente inviabilizaria o casamento entre ambos, pelo
contrário, não sabendo, essa informação obtida posteriormente, serviria apenas de
uma prova a mais para confirmar a suspeita da traição de Capitu. O jogo que se
evidencia nesses procedimentos retóricos aqui apresentados é outro. Como já
dissemos, o lugar de autoria é insistentemente esvaziado, fazendo com que a
narrativa funcione sozinha. O papel do narrador é o de informante, isto é,
apresentar os fatos conforme for lembrando e deixar que a narrativa sozinha os
ordene, subordine e dê-lhes seu sentido devido. Desse modo, o discurso
autobiográfico que poderia desempenhar-se de modo monológico, passa a
desempenhar-se pela polêmica, à medida que o narrador busca seduzir e coagir o
leitor para formas interpretativas que lhe pareçam mais adequadas ao seu
154
93 O simples fato de sustentar uma polêmica pressupõe pragmaticamente que há uma crise na
comunidade em questão, que os valores que a fundam estão ameaçados. Aliás, é inevitável que, numa
polêmica que assume alguma amplitude, por sua ressonância ou por sua duração, os atores tendam a
apelar para os fundamentos, indo além do objeto imediato que desencadeou a polêmica.
(MAINGUENEAU, 2010, p. 192)
155
94 Em primeiro lugar, o poder disciplinar não põe em ação esse mecanismo, esse acoplamento
assimétrico coleta-despesa. Num dispositivo disciplinar, não há dualismo, assimetria; não há essa
espécie de apropriação parcial. Parece-me que o poder disciplinar pode se caracterizar em primeiro
lugar pelo fato de implicar, não uma coleta com base no produto ou numa parte do tempo, ou em
determinada categoria de serviço, mas por ser uma apropriação total, ou tender, em todo caso, a ser
uma apropriação exaustiva do corpo, dos gestos, do tempo, do comportamento do indivíduo. É uma
apropriação do corpo, e não do produto; é uma apropriação do tempo em sua totalidade, e não do
serviço. (FOUCAULT, 2006, p. 58)
157
verdade antes abalada. Nos quatro primeiros romances, essa operação dá-se como
modelo contratual, isto é, propõe um novo modelo em que o leitor se torna coautor sem
com isso colocar abaixo os valores ideológicos dominantes. Esse modelo também tem
como efeito a produção de uma consciência individual que se torna responsável por suas
escolhas, garantindo-lhes uma certa autonomia ilusória. Assim, em Ressurreição, o
amor, embora não idealizado, é possível à medida que o indivíduo não se perca em
ciúme e desconfiança e, portanto, se o casamento de Félix e Lívia não se consuma é
devido ao fato de o rapaz sucumbir aos seus medos. Em A Mão e a Luva, o casamento
resulta de uma escolha racional e friamente calculada por Guiomar diante das
possibilidades que se lhe apresentam. Em Helena, a personagem que nomeia o romance
sucumbe às suas crises de consciência, mesmo após a família de Estácio descobrir sua
verdadeira identidade. Em Iaiá Garcia, o amor entre Jorge e Estela torna-se impossível,
graças à fragilidade da moça diante da impetuosa investida de D. Valéria, mas o amor
torna-se possível entre Iaiá Garcia e Jorge, à medida que, diante dos atritos, optam por
superá-los. Em Quincas Borba e Dom Casmurro, o novo contrato não se sustém à
medida que o narrador pressiona o leitor, obrigando-o a reconhecer seus limites
interpretativos. Nestes, a narrativa passa a funcionar sozinha por meio do que definimos
como modelo disciplinar, não mais centrado em uma individualidade como instância de
legitimação da verdade, mas como produtor de individualidades e subjetividades.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas deparamo-nos com um
autor/narrador que se coloca fora da história e do tempo, ou, como se define, um
defunto-autor que, como observa Abel Barros Baptista, cria as condições de
possibilidade do livro de Brás Cubas, anunciando pela presença inelutável da
morte a destinação do texto literário95. O defunto-autor abre o primeiro capítulo,
nomeado Óbito do autor, com uma metalepse de comunicação, anunciando ao
leitor o seu lugar de enunciação:
95 No entanto, num caso como no outro, a morte de ambos ocorre na ficção como acontecimento
decisivo que os constitui autores supostos - "a campa foi um outro berço", dirá Brás Cubas -, e, num
caso como no outro, ambos serão remetidos para uma ausência sem retorno, não já em virtude de se
encontrarem fisicamente mortos, mas porque se apresentam através de figurações ilusórias, em que a
relação com a origem que eles foram permanecerá indecidível. (BAPTISTA, 2003, p. 166)
158
AO VERME
QUE
DEDICO
ESTAS
MEMÓRIAS PÓSTUMAS 96
96 Esse formato, embora não se mantenha nas edições mais atuais, tem como base a edição de W. M.
Jackson Inc. de 1938.
160
97 http://historiaesuascuriosidades.blogspot.com.br/2011/04/epitafio-fruto-da-vaidade-humana.html,
10 de abril de 2011, consultado em 08 de outubro de 2014.
98 Não se pode pensar o rastro instituído sem pensar a retenção da diferença numa estrutura de
remessa onde a diferença aparece como tal e permite desta forma uma certa liberdade de variação
entre os termos plenos. A ausência de um outro aqui-agora, de um outro presente transcendental, de
uma outra origem do mundo manifestando-se como tal, apresentando-se como ausência irredutível na
presença do rastro, não é uma fórmula metafísica que substituída por um conceito científico da
escritura. Esta fórmula, mais que a contestação da metafísica, descreve a estrutura implicada pelo
"arbitrário do signo", desde que se pense a sua possibilidade aquém da oposição derivada entre
natureza e convenção, símbolo e signo, etc. Estas oposições somente têm sentido a partir da
possibilidade do rastro. A "imotivação" do signo requer uma síntese em que o totalmente outro
anuncia-se como tal - sem nenhuma simplicidade, nenhuma identidade, nenhuma semelhança ou
continuidade - no que não é ele. Anuncia-se como tal: aí está toda a história, desde o que a metafísica
determinou como o "não-vivo" até a "consciência", passando por todos os níveis de organização
161
animal. O rastro, onde se imprime a relação ao outro, articula sua possibilidade sobre todo o campo do
ente, que a metafísica determinou como ente-presente a partir do movimento escondido do rastro. É
preciso pensar o rastro antes do ente. Mas o movimento do rastro é necessariamente ocultado, produz-
se com o ocultação de si. Quando o outro anuncia-se como tal, apresenta-se na dissimulação de si.
(DERRIDA, 1999, p. 57)
162
dialoga com a tradição metafórica da poesia como remédio, do poeta como médico
e do conteúdo da poesia como recipiente e líquido, desde Titus Lucrécio em seu
poema didático De rerum natura, retomado no século XVI pelo poeta italiano
Torquato Tasso em seu poema épico Gerusalemme Liberata e difundida nos
prefácios dos romances do século XVII, usados às vezes como defesa do romance e
às vezes como forma de atacar o romance, conforme observa Walter Sitti, em seu
texto O Romance sob acusação. Conforme o autor, nas discussões sobre a
importância do romance que tomam vários debates entre o século XVII e XVIII na
Europa, o romance oscila entre engano e crueldade e, portanto, entre as metáforas
de veneno e remédio (o pharmakon platônico). Essas metáforas tem em comum
identificar o romanesco como a relação completa daquilo que se pode crer ou
daquilo do qual se deve duvidar. Assim, para os críticos do romance, a ciência é a
verdade e o romance é o veneno açucarado que, adocicando a boca do leitor, o
engana, isto é, com o açúcar o romance se cobre para fazer com que o leitor engula
o líquido da indisciplina passional. Sitti cita o comentário de F. Zaccaria, em sua
Storia polemica delle proibizioni de'libri de 1777: "tudo serve para aspergir de
suave licor as bordas da vasilha, em que se quer oferecer aos incautos o veneno
mortal". (SITTI, 2009, p. 188). Em Madame Bovary, Flaubert estabelece o jogo entre
romance e veneno por meio da inversão dessa metáfora, quando o narrador afirma
que o veneno que Emma bebe tem gosto de tinta:
mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras:
Emplasto Brás Cubas." (ASSIS, 2008, p. 44). Novamente estabelece a relação entre
produção e inscrição e tal qual Emma Bovary este gosto de tinta é a causa de sua morte.
Contudo, se para a personagem flaubertiana o terrível sabor de tinta é o que determina
sua morte como um fim, para Brás Cubas, é no sabor amargo dessa pena da galhofa e
da tinta da melancolia que se dá o seu nascimento como escritura.
No capítulo IX, vemos mais um exemplo desse método topológico que
subordina a temporalidade da história à espacialidade da narrativa, quanto o defunto-
autor resolve da morte seguir para o nascimento:
E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior
transição deste livro. Vejam: o meu delírio começou em
presença de Virgília; Virgília foi o meu grão pecado da
juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe
nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia
20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura
aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada. De
modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método,
sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de
método, sendo, como é, uma coisa indispensável, todavia é
melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à
fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira,
nem do inspetor de quarteirão. E como a eloquência, que há uma
genuína e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa,
engomada e chocha. (pp. 59-60)
interior superior
inferior exterior
autor defunto
defunto autor
102 O termo grego fantástico () é utilizado no diálogo O Sofista, de Platão, na conversa
entre o Estrangeiro e Teeteto. Oposto ao termo icástico (), cujo sentido é a da cópia fiel
da essência, o termo fantástico significa a arte que copia a cópia icástica como desproporção ou
deformação também definidas como simulacro (phantásmata). No diálogo, o estrangeiro diferencia
duas artes de copiar tendo em vista o espectador. A cópia fiel (icástico) transporta do modelo copiado
as suas relações exatas de largura, comprimento e profundidade. A cópia destinada àqueles que estão
em posição desfavorável para vê-la simula o modelo de modo que seus olhares possam alcançá-la.
Para tanto, artificializa essa simulação por meio de proporções vastas e indefinidas, definidas como
fantástico (PLATÃO, 1972, p. 161). Retomaremos essa discussão sobre o conceito de fantástico mais
a frente, bem como o uso dele na leitura dos dois romances machadianos - Memórias Póstumas de
Brás Cubas - Feita por João Adolfo Hansen em seu artigo nomeado Dom Casmurro: Simulacro &
Alegoria.
169
Para Scarpelli, a tensão entre a vida narrada e a morte anunciada de Brás Cubas
é o modo como o defunto-autor encontra, semelhante à Sahrãzãd, o recurso por meio do
narrar-se para não morrer:É para o sultão com quem se enlaça que Sahrãzãd narra suas
histórias.
A relação entre narrativa e morte nas duas obras é evidenciada tanto por
Figueiredo, quanto por Scarpelli. Contudo, diferentemente de Figueiredo, a abordagem
pelo fantástico permite-nos entender não uma narrativa contra a morte em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, pelo contrário, neste romance a narrativa opera-se a partir da
morte, como lugar possível do ato de narrar. Tal procedimento faz com que uma das
170
103 Como não se trata de coincidência fortuita, é possível falar de uma interrupção da elaboração por
motivos ignorados. Os manuscritos do ramo egípcio antigo não ajudam a exclarecer a questão, pois
suas cópias são tardias (a mais antiga é do século XVII) e visivelmente remanejaram o texto primitivo.
(...) Foi somente no que se chama de ramo egípcio tardio, elaborado na segunda metadel do século XII
H/XVIII d.C., que o título do Livro das mil e uma noites passou a equivaler, de fato, ao número de
noites que continha. Nesse período, não só as histórias introduzidas para completar o livro muitas
vezes apresentavam características distintas de seu núcleo original, como mesmo este último teve suas
características formais e de conteúdo modificadas: as histórias mais antigas foram resumidas e
agrupadas em um número bem menor de noites. (JAROUCHE, 2004, p. 28-29)
171
a gente frívola não achará nele o seu romance usual" (p. 39). A adjetivação dos
leitores, ao pretender determinar um modo adequado de leitura, tem como efeito
performativo não o afastamento de perfis fixos como aviso de quem deva ou não
ler a obra, mas o de domesticar o leitor que se propõe a continuar com a leitura,
ainda que este possa tomar uma posição de afastamento em relação ao discurso do
narrador. No trecho final desse prólogo, a imposição do autor sobre a leitura dá-se
de modo bem mais substancial e determinante do que o discurso de Dom
Casmurro, quando o autor diz que a obra em si mesma é tudo. Essa totalização de
sentido determina o tom pelo qual o defunto-autor encaminha seu discurso, isto é,
a totalização esvazia o lugar de recepção, sendo, portanto, o seu sentido pré-
determinado e cabendo apenas ao leitor uma postura de mero receptor de um
sentido pré-dado. Ao leitor cabe então agradar-se ou não, recebendo como
pagamento dessa submissão o agradecimento ou a agressão do autor. Outro
exemplo é a predeterminação feita no modo de compreensão do leitor de um
determinado comentário tecido pelo defunto autor como por exemplo no capítulo
XXV, após a morte de sua mãe, a personagem retira-se para a Tijuca:
Ou quando, no capítulo XXVII, após narrar a conversa com seu pai, momento
em que este fala de Virgília com quem pretende casar o filho, o defunto autor
mimetiza a voz do leitor para polemizar com ele:
anuncia o livro como o lugar da morte, isto é, condiciona o tempo narrativo a uma
topologia e determina o modo interpretativo pelo qual o leitor é obrigado a seguir,
as metalepses funcionam como modelo arbitrário. É nesse sentido que Alfredo Bosi
vê no conceito de homem subterrâneo de Augusto Meyer o perspectivismo
arbitrário como matriz do capricho que alinha as confidências do defunto
autor104. João Adolfo Hansen propõe como arbitrário de direção essa narrativa de
autor ficcional que se manifesta também nos capítulos curtos e na "suspensão do
sentido unívoco introduzida na sua escrita pelo expediente da contínua auto-
interpretação orientada pela duplicidade da atrabile acarretam os efeitos de
indeterminação referidos, pois a tradução que rebaixa o elevado e simultaneamente
eleva o baixo dissolve as unidades e impede qualquer unificação." (HANSEN, 2008, p.
147). Conforme vimos nos exemplos e análises, para além dos capítulos curtos, a
arbitrariedade determina toda a forma de organização da narrativa e tem nas metalepses
os seus mecanismos de estruturação e realocamento da narrativa para lugar do túmulo
livro.
Deleuze e Guattari, ao abordarem a relação linguística significante-significado,
põem de lado a discussão dessa relação ser arbitrária, necessária, verso e anverso da
mesma folha, correspondente termo a termo, global ou ambivalente: todas essas
definições servem à mesma causa que é a de reduzir o conteúdo ao significado e a
expressão ao significante. Em todas essas especificações da relação, o significado não
existe sem estar em relação com o significante e este é a Redundância. Para os autores, a
forma de expressão e a forma de conteúdo não estabelecem entre relações de
conformidade, mas de independência e distinção reais. O que garante ajustar uma forma
à outra, determinando suas correlações, é o agenciamento específico variável, isto é, a
forma de expressão não se reduz às palavras, mas a um conjunto de enunciados que
surgem do campo social considerado estrato - definido como um regime de signos, bem
como a forma de conteúdo não se reduz às coisas, mas a um estado de coisas complexo
como formação de potência, a qual definem como multiplicidades discursivas de
expressões e multiplicidades não discursivas de conteúdo, tendo, cada uma delas sua
história, sua micro-história, seus agenciamentos. Em Memórias Póstumas de Brás
104 Para tanto, forjou conceitos lapidares. Por exemplo, o "perspectivismo arbitrário" de Brás Cubas,
matriz do capricho que alinhava bizarramente as confidências do defunto autor. Ou a "atenção
divertida e frouxa" que o narrador de Esaú eJacó dá aos sucessos políticos do fim do Império e do
início da República, meros pretextos que bóiam à superficie do texto romanesco. (BOSI, 2002, p. 11)
178
SEGUNDA PARTE:
CRÔNICA:
A POLÍTICA AMENA
EO
MODELO DESCONTÍNUO
106 Ainda que escrevesse em um gênero voltado para a discussão do cotidiano, muitas vezes
associado ao jornalismo, Machado o fazia em perspectiva abertamente literária, utilizando-se de
recursos e artifícios muito distantes da pretensa objetividade de um jornalista. Por mais que não
chegasse ainda a absolutizar o caráter ficcional da narração, na delimitação mais precisa das
personagens narradores como os que marcariam algumas de suas produções posteriores em diversos
gêneros, ficava evidente a tentativa de modificar o estatuto da narração, induzindo o leitor a
desconfiar do que lia. PEREIRA, 2009, pp. 50-51
107Em outubro de 1861, Machado de Assis assumiu, pela primeira vez, a função de cronista de
variedades. Tinha 22 anos e se achava envolvido já há algum tempo com a publicação de variados
textos nos periódicos do Rio de Janeiro. (GRANJA e CANO, 2008, p. 11)
182
Não foram apenas essas cento e trinta e três crônicas escritas por Machado de
Assis. Conforme apresenta a coletânea reunida por W. M. Jackson e a Editora Nova
Aguilar, há as crônicas publicadas em O Espelho no período de 11 de setembro de 1859
a 16 de março de 1860, totalizando vinte e oito crônicas e assinadas com a abreviatura
M-as; as Crônicas do Dr. Semana publicadas na Semana Ilustrada no período de 8 de
dezembro de 1861 a 26 de junho de 1864, totalizando trinta e quatro crônicas e
assinadas com o pseudônimo Dr. Semana; as crônicas Cartas Fluminenses publicadas
no Diário do Rio de Janeiro no período de 03 de março de 1867 a 12 de março de 1867,
totalizando duas crônicas e assinadas com o pseudônimo Job; as crônicas Badaladas
publicadas na Semana Ilustrada no período de 22 de outubro de 1871 a 2 de fevereiro
de 1873, totalizando dez crônicas e assinadas com o pseudônimo Dr. Semana. Dado o
fato de essas tratarem de temas mais específicos como crítica teatral ou, no caso das
Cartas Fluminenses sobre a opinião pública, optamos por analisar apenas as cento e
trinta e três crônicas por tratarem de temas mais gerais e assuntos mais variados.
Além dessas duzentas e sete crônicas, Machado de Assis também publicou as
crônicas Balas de Estalo, no período de 2 de julho de 1883 a 22 de março de 1886,
totalizando cento e vinte e cinco crônicas e assinadas com o pseudônimo Lélio; as
crônicas A+B no período de 12 de setembro de 1886 a 24 de outubro de 1886,
totalizando sete crônicas e assinadas com o pseudônimo João das Regras; as crônicas
Gazeta de Holanda publicadas no período de 1º de novembro de 1886 a 24 de fevereiro
de 1888, totalizando quarenta e oito crônicas e assinadas com o pseudônimo Malvolio;
as crônicas Bons Dias publicadas no período de 5 de abril de 1888 a 29 de agosto de
1889, totalizando quarenta e nove crônicas e assinadas com o pseudônimo Boas Noites;
as crônicas A Semana publicadas no período de 24 de abril de 1892 a 28 de fevereiro de
1897, totalizando duzentos e quarenta e oito crônicas e sem assinatura. Sendo o nosso
objetivo analisar os procedimentos das crônicas que antecederam a chamada segunda
fase da produção literária de Machado de Assis e tendo como hipótese a presença desses
procedimentos na determinação da estética literária dessa fase, optamos por não analisar
detidamente essas quatrocentos e setenta e sete crônicas, por terem sido publicadas
posteriormente ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Contudo, faremos
referências a alguns trechos dessas outras crônicas com o objetivo de evidenciar
procedimentos semelhantes aos analisados neste trabalho.
Em todas as cento e trinta e três crônicas analisadas, os temas variam entre
política, assuntos internacionais, arte, eventos, obituários e outros assuntos cotidianos.
183
Contudo, das crônicas Comentários da Semana às Notas Semanais ocorre uma mudança
dos temas tanto quantitativa quanto qualitativa. Nas primeiras crônicas, os temas de
política e arte dominam, mas conforme o cronista experimenta novos procedimentos de
escrita, os assuntos cotidianos ganham mais espaço. Para compreendermos melhor essa
variação observamos um padrão de funcionamento da crônica, o qual se estabelece pela
inserção da notícia seguida de comentários. A partir desse padrão, pudemos demarcar
quais temas são abordados, separá-los e determinar o número de vezes de sua
ocorrência, o que nos possibilitou estabelecer a seguinte tabela e gráfico:
108 108 C. S. = Comentários da Semana; H. Q. T. D: Histórias de Quinze Dias e História de Trinta Dias;
N. S.: Notas Semanais. Por serem assinadas com o mesmo pseudônimo, colocamos as crônicas
História de Quinze e de Trinta Dias juntas.
184
GRÁFICO 1: TEMAS
pedir a queda do ministério Caxias109. De qualquer forma, a análise dos temas nessas e
nas crônicas posteriores mostra uma redução quanto ao modo de abordar a política
nacional e, quando a aborda, é perceptível a mudança qualitativa como veremos à
frente. Quanto ao modo de distribuição dos temas nessas primeiras crônicas, é possível
notar um padrão: geralmente, a crônica começa por tratar de questões políticas
nacionais, passa a tratar de algum assunto internacional e conclui sobre algum assunto
ligado à arte, alguma obra literária, alguma festa, o teatro e a ópera.
Nas crônicas publicadas na revista O Futuro - com base no quadro acima - o
tema da política nacional se reduz significativamente, abrindo espaço para a arte.
Conforme observa Jean-Michel Massa, a revista O Futuro foi fundada e dirigida por um
português amigo de Machado de Assis, Faustino Xavier de Novais, irmão mais velho de
Carolina Augusta Xavier de Novais com quem Machado se casou em 1869. Na crônica
de 24 de março de 1862, Machado havia anunciado o nascimento dessa revista:
109 Apesar da série não ter, como já dissemos, uma periodicidade muito rigorosa, desde o seu início até o
final de janeiro a crônica falhou mais longamente apenas duas vezes: entre 10 e 21 de novembro e
entre 14 e 26 de janeiro, tornando-se, a partir dessa data, extremamente irregular. Assim, se o cronista
tivesse enfrentado realmente a censura política às suas opiniões, ela poderia ter começado já em
janeiro de 1862, mas não há elementos bastantes para afirmá-lo. De concreto, sabemos que a crônica
desde então se foi espaçando, voltou aos ataques veementes ao governo por ocasião da inauguração da
estátua equestre de Pedro I e reapareceu, curta, em 5 de maio de 1862, anunciando que voltava para
ficar, mas desaparecendo então para sempre. Nesse seu último texto, Machado anunciava que a
política continuaria sendo a "parte principal" da crônica, "atenta à gravidade da situação das questões
a ventilar". Se fora realmente punido com a suspensão, é estranho que nosso cronista continuasse a
falar sobre política, em um texto em que sua "pena afiada" voltaria mais cortante do que nunca,
praticamente pedindo a queda do ministério Caxias. (GRANJA & CANO, 2008, p. 19)
188
ao fato de ser uma revista literária. Conforme a definição feita por Novais citado por
Massa, esta era a finalidade da publicação:
Embora O Futuro fosse uma revista literária, o cronista inicia essas crônicas
tratando do encerramento da Assembleia Legislativa. Sem tomar a mesma postura
agressiva identificada nas crônicas anteriores, não deixa porém de tecer comentários
críticos ao Parlamento:
110 Jean-Michel Massa relata que no intervalo entre as crônicas Comentários da Semana e Ao Acaso,
durante dois anos, Machado continuou a trabalhar no Diário do Rio de Janeiro, mas de maneira
anônima, assinando apenas cinco textos de comentários literários e artísticos, pois era do que ganhava
desse jornal que o escritor mantinha seu sustento (MASSA, 2009, p. 380)
189
Essa negação de tratar a política como assunto grave evidencia a novidade nesse
retorno aos temas ligados à política nacional. Agora só lhe interessa tratar de minúcias.
Novamente reafirma seu interesse em tratar da política pelos bastidores, isto é, daquilo
que lhe seja baixo, absurdo e, portanto, risível. Ao continuar, nessa mesma crônica, esse
mesmo assunto, interrompe novamente para afirmar que o assunto é grave e que
portanto, tratá-lo na crônica seria algo ilícito e inadequado para o gênero:
Ou ainda, nessa mesma crônica, faz uma lista de comentários engraçados da fala
do senador Jobim:
Carnes verdes;
Matadouro;
Cemitério humano e cemitério de animais;
Falsas aparências do gado vaccum;
Águas potáveis;
Necessidade de espalhar o gênero humano;
A mudança da cidade;
Irmãs de caridade;
Instrução superior;
Criação de universidade;
O Contrato Social;
Quadro lúgubre dos costumes acadêmicos de S. Paulo;
Um axioma de Platão;
Elegia sobre a sorte dos calouros;
Hymno em ação de graças por ter-se abolido o entrudo, e
algumas palavras sentidas sobre as calças brancas dos homens
sérios;
Uma anedota da escola de medicina da Corte, apimentada
com algumas reticências;
Indignação por uma comédia em que um magistrado nosso
zomba da medicina legal;
Relaxação dos costumes da população de S. Paulo.
Etc., etc., etc. (p. 161-162)
111 Esta informação foi tirada da nota de rodapé feita John Gledson e Lúcia Granja na edição de Notas
Semanais publicado pela Editora da UNICAMP nota 1, p. 231.
196
112 Aconteceu que certa mulher que, havia doze anos, vinha sofrendo de uma hemorragia e muito
padecera à mão de vários médicos, tendo despendido tudo quanto possuía, sem, contudo, nada
aproveitar, antes, pelo contrário, indo a pior, tendo ouvido a fama de Jesus, vindo por trás dele, por
entre a multidão, tocou-lhe a veste. Porque dizia: Se eu apenas lhe tocar as vestes, ficarei curada. E
logo se lhe estancou a hemorragia, e sentiu no corpo estar curada do seu flagelo. Jesus, reconhecendo
imediatamente que dele saíra poder, virando-se no meio da multidão, perguntou: Quem me tocou nas
vestes? Responderam-lhe seus discípulos: Vês que a multidão te aperta e dizer: Quem me tocou? Ele,
porém, olhava ao redor para ver quem fizera isto. Então, a mulher, atemorizada e tremendo, cônscia
do que nela se operara, veio, prostrou-se diante dele e declarou-lhe toda a verdade. E ele lhe disse:
Filha, a tua fé te salvou; vai-te em paz e fica livre do teu mal. (MARCOS, capítulo 5, versículos 25-34
- Bíblia de Estudos de Genebra).
198
113 Cabe observar que os títulos das crônicas nas edições em livros são os dias do mês em que foram
publicadas.
200
Comentários Política Assuntos Internacionais Assuntos Cotidianos Referência ao Jornal Arte Evento Obituário
da Semana
Crônica 1 4 1 2/3/6/7
Crônica 2 4 5 1 2/3
Crônica 3 1 2 3
Crônica 4 1 3/4/5 2/6
Crônica 5 1/2/3/ 13 4/5/6/7/8/9/10/13 11
O Futuro Política Assuntos Internacionais Assuntos Cotidianos Referência ao Jornal Arte Evento Obituário
Crônica 1 1 2/3/4/5/6/
Crônica 2 3 1 4/5/6/7 2
Crônica 3 1/2/3/4/5/
Crônica 4 1 8 2/3/4/5/6/7
Crônica 5 1 2/3
Ao Acaso Política Assuntos Internacionais Assuntos Cotidianos Referência ao Jornal Arte Evento Obituário
Crônica 1 1/2 3 4/5/6
Crônica 2 1/2 4/5 3
Crônica 3 1 2 3/4/5
Crônica 4 2 3 1
Crônica 5 2/3 1 5/7/8 4/6
201
História de Política Assuntos Internacionais Assuntos Cotidianos Referência ao Jornal Arte Evento Obituário
Quinze Dias
Crônica 1 1 2/6 4/5 3
Crônica 2 5 4 1/3/6
Crônica 3 4 3 1/2 6
Crônica 4 2 1 3
Crônica 5 1 3/5 2/4/6
Notas Semanais Política Assuntos Internacionais Assuntos Cotidianos Referência ao Jornal Arte Evento Obituário
Crônica 1 4 5 2/3 1
Crônica 2 2/3 4/5/7 6 1
Crônica 3 3/4 1/2/5
Crônica 4 1/3/4 2
Crônica 5
Tabela 7 - Comparação das ocorrências dos procedimentos em números absolutos nas cinco séries de crônicas.
202
discursivo. A função de comentário não foi utilizada na análise visto que todos esses
procedimentos são formas distintas dos comentários desenvolvidos pelo cronista de
forma que o comentário e a notícia são a base da crônica nas quais os outros
procedimentos operam-se. Outra observação importante é o modo como dá-se esses
procedimentos nas crônicas. Diferentemente dos romances, nelas, esses procedimentos
dão-se de forma truncada não possibilitando a contagem em palavras de suas
ocorrências. Para quantificá-los, consideramos o números de vezes em que acontecem.
Além desses procedimentos, identificamos também o que Maingueneau define
como corporalidade, isto é, as ideias enunciadas a partir de um ethos determinam um
tom que necessariamente implica certa determinação de seu próprio corpo de modo que
o enunciado não é apenas uma articulação de proposições, mas também a evidência de
uma corporalidade dada no movimento da leitura e, portanto, associada a representações
e normas de disciplina do corpo114. Outro procedimento recorrente sobretudo em Notas
Semanais é o rebaixamento, como espécie de sátira que, a partir da referência semiótica
entre o alto/razão/espiritualidade/masculino como positivo e o baixo/sentimento/
corporeidade/feminino como negativo, desloca os elementos comuns de um campo ao
outro para acentuar a sua contradição e evidenciar seu absurdo. Por fim, constituem-se
também como procedimentos as figuras de linguagem, entre elas a metáfora, a alegoria,
a ironia, a personificação, a antanáclase, a paródia, o oxímoro.
É comum em um mesmo período termos mais de dois procedimentos
determinando o enunciado como por exemplo no seguinte trecho da crônica de 15 de
maio de 1877 da série História de Quinze Dias Semanais vemos três diferentes
procedimentos em uma única frase: "Furtado Coelho, à hora em que escrevo, está a
chegar; talvez haja chegado à hora em que o leitor verá estas linhas" (p. 197). Temos,
portanto, a função de regência (à hora em que escrevo), a função de comunicação (à
hora em que o leitor verá estas linhas) e o jogo com a temporalidade.
114 Um posicionamento não implica apenas a definição de uma situação de enunciação e certa
relação com a linguagem: devemos igualmente levar em conta o investimento imaginário do
corpo, a adesão "física" a certo universo de sentido. As "ideias" são apresentadas através de uma
maneira de dizer que é também uma maneira de ser, associada a representações e normas de
disciplina do corpo. Discursos de atribuição de referenciais últimos, construção de um lugar
enunciativo que dá sentido às práticas humanas, os discursos constituintes são portadores de uma
esquematização do corpo, mesmo se eles negam essa dimensão. Retomamos aqui a problemática
retórica do ethos. Concebendo-o dentro de uma perspectiva pragmática, esse ethos emana do
"mostrado": o enunciado r é percebido através de um "tom" que implica certa determinação de
seu próprio corpo, à medida do mundo que ele instaura em seu discurso. A legitimação do
enunciado não passa somente pela articulação de proposições, ela é habitada pela evidência de
uma corporalidade que se dá no próprio movimento da leitura. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 53)
206
Cuma, se hoje vivesse, sem duvida teria melhor do que eu apostrofado os blasfemos"
(ASSIS, 2008d, p. 53).
O discurso polêmico refere-se ao procedimento em que o cronista estabelece
crítica ou provocação direta a um determinado interlocutor, sendo um outro jornal ou
algum político como por exemplo na crônica de 28 de agosto de 1864 da série Ao
Acaso:
Por fim, o contrato de leitura tem que ver com o diálogo entre o cronista e o
leitor no qual aquele especifica o modo de determinação de sentido que este deva operar
na leitura como no exemplo na crônica de 30 de novembro de 1862 da série O Futuro:
séries seguintes para alcançar o ápice na última série (30%). Assim também os
procedimentos de figuras de linguagem, rebaixamento e corporalidade aumentam
significativamente da primeira para a quinta série de crônicas.
A função de comunicação em seus diferentes procedimentos garante às crônicas
um discurso mais técnico e objetivo, inventando na escrita as técnicas comuns da
retórica com as quais o orador se dirige à plateia ou opera a pergunta retórica que, como
observa, Norma Discini, constitui-se um modo de dizer, no qual conduz o leitor a fazer
determinadas asserções, visto que, implicitamente, contém em si a resposta, misturando
a voz que pergunta e a que responde, manipulando o leitor a determinadas
conclusões115. Um dos efeitos da função de comunicação é instituir o leitor como
presença próxima para viabilizar a heterogeneidade e o efeito de polifonia que, uma vez
instituída, aproximam o leitor do ponto vista do cronista, fazendo com que siga a
orientação dada, simulando um jogo de vozes, cujo objetivo é menos tratar a informação
em si e mais produzir efeitos patéticos sobre o leitor, fazendo-o compactuar com o
ponto de vista do cronista.
Se, como vimos na análise dos primeiros textos em prosa na polêmica de Os
Cegos e na série de crônicas Comentário das Semanas, ao enunciar o leitor no texto ou
estabelecer o jogo discursivo por meio de perguntas retóricas, o cronista o manipula,
levando-o a compactuar com seu ponto de vista , a redução da função de comunicação
na série Notas Semanais, bem como o aumento do rebaixamento e o modo de
tratamento do tema da política como mero espectador, produzem efeitos polifônicos
bem mais elaborados, fazendo com que estabeleça tensão entre esses procedimentos e
os discursos oficiais, jogando um contra o outro para mostrar como os discursos
produzidos no Parlamento ou os discursos da Imprensa Oficial ou ainda os discursos
religiosos são formados por convenções de certas práticas discursivas. Vemos por
exemplo na crônica de 1º de setembro de 1878, ao tratar sobre "o ofício do procurador
dessa casa que indaga à Câmara se deveria ou não mandar fornecer cadeiras para o
115 A pergunta retórica: constitui um modo indireto de dizer; por meio dela, pergunta-se, não para obter
resposta, mas para conduzir o leitor a fazer determinadas asserções; contém em si, implicitamente, a
resposta, misturando vozes: a que pergunta e a que responde; advém do narrador, que é quem faz a
pergunta e quem manipula o narratário-leitor, para determinada conclusão; institui um sujeito como
presença mais próxima: em relação ao narratário-leitor e em relação ao próprio enunciado; traz em si a
voz respondente, viabilizando nos textos: a heterogeneidade mostrada; o efeito de polifonia; faz com
que o narrador se aproxime do narratário, para que este se veja obrigado a seguir a orientação dada;
promove a incorporação do narratário e do seu discurso, ao evitar uma afirmação direta; simula a
existência de um jogo de vozes, sendo compatível a determinadas cenas genéricas do jornal; é algo
desnecessário, do estrito ponto de vista informacional. (DISCINI, 2005, p. 175)
212
tribunal do júri bem como jantar aos membros daquela tribuna quando ali se alongarem
as sessões"116, o cronista detém-se no último pedido e elabora a desconstrução do
pedido e da negação por meio do rebaixamento:
116 Nota de rodapé nº 4 feita por John Gledson e Lúcia Granja na edição de Notas Semanais publicadas
pela Editora da Unicamp, p. 245
213
117 Primum vivere, deinde philosophari (Primeiro viver, depois filosofar) Trata-se de um adágio
atualmente famoso (e muitas vezes atribuído a Hobbes), que convida a levar vida ativa e pospõe a isso
qualquer atividade especulativa. A origem exata não é conhecida, mas a máxima parte da
contraposição entre vida ativa e otium especulativo, já presente em Aristóteles (Política, 1333a 35,
1334a 16, 1337b 34)e muito citada, sobretudo pelos latinos. Além disso, existia uma tradição gnômica
segundo a qual antes de se dedicar à sabedoria e à virtude é preciso obter o necessário para viver; cf.
Focilides, fr 9 Gentili Prato, citado por Platão (A República, 3, 407a) e retomado pela tradição
paremiográfica (Diogen. 4, 39, Geg. Cypr. L. 1, 95, Arsen. 6, 8a;
("é preciso buscar o sustento; a virtude, quando se tem
com que viver"), assim como por um célebre trecho de Horácio (Ep. 1, 1, 52-54), no qual o poeta
contrapõe a verdadeira ética baseada na virtude à moral corrente que apregoa o enriquecimento como
bem mais precioso (para maiores detalhes, cf. nº 1807). Finalmente, é preciso assinalar uma instrução
de Cícero ao filho (Epistulae ad Marcum filium, fr 2), segundo a qual Philosophiae quidem praecepta
noscenda, vivendum autem esse civiliter, "por certo é preciso conhecer os preceitos da filosofia, mas é
preciso viver como bom cidadão, conhecida por nós graças a Lactâncio (Divinae Institutiones, 3, 14,
17), que a cita como parte de sua violenta acusação contra a filosofia pagã entendida como detentora
da sabedoria e da verdade (TOSI, 2000, 164)
214
sentença, isto é, para ela primeiro deve julgar, para depois viver. Esse uso é
hiperbolizado uma vez que, em vários outros momentos, o cronista observa a
recorrência do Parlamento em seguir a lei conforme lhe interessa, o que acentua a
posição da Câmara como absurda. O segundo argumento é a alegação de que o jantar é
um agente de corrupção e para sustentar essa afirmativa, o cronista desenvolve toda a
tese do benefício do jejum, segundo os princípios católicos, no qual, promovendo um
estado de graça espiritual, macera a carne e seus maus instintos. Para tanto, produz o
rebaixamento no qual estabelece o jantar como torção da condição humana que iguala o
júri à condição da besta; bem como equipara a virtude à couve-flor. A afirmação em
concordância com o discurso contínuo da Câmara, posta sob tensão com os discursos
descontínuos operados pelos procedimentos de rebaixamento, corporalidade, função
testemunhal, função de comunicação, hipérbole, intertextualidade e ironia inverte as
disposições dos discursos oficiais deslocando da sua gravidade e seriedade para
evidenciar o que há de risível, ridículo e, conforme afirma o cronista em passagem já
citada, pegar-lhe o que há de divertido.
Michel Foucault, em As Palavras e As Coisas, ao tratar sobre o estatuto das
descontinuidades para a história em geral, questiona sobre as divisórias estabelecidas e
o limite como corte arbitrário o qual, nessas demarcações, busca estabelecer a coerência
que faz aparecer entre elas um sistema contínuo e unitário. A partir desses
questionamentos, define o descontínuo como uma "erosão que vem de fora, a esse
espaço que, para o pensamento, está do outro lado, mas onde, contudo, ele não cessou
de pensar desde a origem" (FOUCAULT, 1999, p. 69). Para melhor compreender essa
descrição operada pela arqueologia, o filósofo francês propõe, por hora, o acolhimento
dessas descontinuidades que se dão na ordem empírica. Em sua obra A Ordem do
Discurso, tratando a descontinuidade como cesuras que rompem o instante e dispersam
o sujeito em uma pluralidade de posições e funções possíveis, ele afirma que a
descontinuidade golpeia e invalida as menores unidades tradicionalmente conhecidas ou
facilmente contestadas: o instante e o sujeito118. Esse golpe e essa erosão dado de fora
118 Não se trata, bem entendido, nem da sucessão dos instantes do tempo, nem da pluralidade dos
diversos sujeitos pensantes; trata-se de cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em uma
pluralidade de posições e de funções possíveis. Tal descontinuidade golpeia e invalida as menores
unidades tradicionalmente reconhecidas ou as mais facilmente contestadas: o instante e o sujeito. E,
por debaixo deles, independentemente deles, é preciso conceber entre essas séries descontínuas
relações que não são da ordem da sucessão (ou da simultaneidade ) em uma (ou várias) consciência; é
preciso elaborar - fora das filosofias do sujeito e do tempo - uma teoria das sistematicidades
descontínuas. Enfim, se é verdade que essas séries discursivas e descontínuas têm, cada uma, entre
215
certos limites, sua regularidade, sem dúvida não é menos possível estabelecer entre os elementos que
as constituem nexos de causalidade mecânica ou de necessidade ideal. É preciso aceitar introduzir a
casualidade como categoria na produção dos acontecimentos. Aí também se faz sentir a ausência de
uma teoria que permita pensar as relações do acaso e do pensamento. (FOUCAULT, 2010, p. 58)
216
ligadas por nenhum princípio de unidade119. Ao remeter a matéria de jornal como peças
a outras peças completamente distintas como o texto bíblico, literário, político,
filosófico ou discursos cotidianos como por exemplo o ditado popular, o cronista opera
as interrupções e estabelece sua dispersão, lançando o leitor em um completo estado de
suspensão reflexiva como afirma na crônica de 24 de janeiro de 1865 da série Ao Acaso:
"Dito isto, dou a palavra à reflexão dos leitores." (p. 247). São esses procedimentos
operados pelo modelo descontínuo característico da crônica machadiana que fazem da
crônica um discurso ficcional como veremos a seguir.
119 Todavia, o exame detido de todas essas máquinas, sejam elas reais, simbólicas ou imaginárias, deve
certamente intervir, mas de uma maneira totalmente determinada: considerando as máquinas como
índices funcionais capazes de nos pôr na pista das máquinas desejantes, que lhes são mais ou menos
próximas ou afins. Com efeito, as máquinas desejantes são alcançadas apenas a partir de um certo
limiar de dispersão que não deixa que nelas subsista a identidade imaginária e nem a unidade
estrutural (instâncias estas que são ainda da ordem da interpretação, isto é, da ordem do significado ou
do significante. As máquinas desejantes têm como peças os objetos parciais; os objetos parciais
definem a working machine ou as peças trabalhadoras, mas num tal estado de dispersão que uma peça
não para de remeter a uma peça de uma máquina totalmente distinta, como o trevo vermelho e o
zangão, a vespa e a orquídea, a buzina da bicicleta e o eu de rato morto. (DELEUZE & GUATTARI,
2010, p. 427)
218
120 Ninguém insistiu mais do que ela no corte que a ficção literária" introduz no funcionamento do
discurso. Uma barreira intransponível separa o discurso assertivo (Aussage), que se refere à realidade,
da narrativa de ficção. Uma lógica diferente, com as implicações sobre o tempo que iremos expor,
resulta desse corte. Antes de vermos suas consequências, é preciso entender a razão dessa diferença;
ela resulta inteiramente do fato de a ficção substituir a origem-eu do discurso assertivo, que é ela
própria real, pela origem -eu dos personagens de ficção. Todo o peso da ficção repousa na invenção de
personagens, de personagens que pensam, sentem, agem e que são a origem-eu fictícia dos
pensamentos, sentimentos e ações da história narrada. (RICOEUR, 2010, v. 2, p. 111)
219
121 A extensão da metalinguagem natural à metalinguagem técnica atesta com propriedade a importância
crucial dessa noção: não há enunciado, qualquer que seja sua dimensão, que não esteja submetido à
orientação de um ponto de vista. A mais objetivante neutralidade a implica inevitavelmente, ainda que
por omissão. Mas essa extensão obscurece ao mesmo tempo sua significação e torna delicado seu
manuseio. Se definirmos, de maneira muito geral, o ponto de vista como o conjunto de operações que
o enunciador efetua para orientar e estruturar seu enunciado, verificaremos que ele é transversal às
diferentes formas do discurso, mas recebe uma significação específica conforme se trate de um
discurso narrativo, descritivo ou argumentativo. Além do mais, em cada caso, o ponto de vista
engloba, ao mesmo tempo, o modo de presença do enunciador em seu discurso e a maneira pela qual
ele dispõe, organiza e orienta seus conteúdos. (BERTRAND, 2003, p. 113)
122 O ponto de vista responde à questão: de onde vemos o que é mostrado pelo fato de ser narrado? E,
assim, de onde se fala? A voz responde à questão: quem fala aqui? Se não quisermos ser iludidos pela
metáfora da visão, numa narrativa em que tudo é contado e na qual fazer ver pelos olhos de um
personagem é, segundo a análise que faz Aristóteles da léxis (elocução, dicção), "colocar sob os
olhos", ou seja, transformar a compreensão em quase intuição, então é preciso considerar a visão
como uma concretização da compreensão e, portanto, paradoxalmente, como um anexo da escuta
(RICOEUR, 2010, v. 2, p. 172).
221
vista variáveis permite que o autor possa variá-los no mesmo texto123. Essa atividade
perceptiva no texto é comandada pelo observador e, portanto, está presente sempre que
houver discurso e representação124. Ricoeur considera o ponto de vista e a voz do texto
como sinônimos e, portanto, o texto pode se compor de diferentes pontos de vista que
interagem e estabelecem o dialogismo do texto tanto no plano espacial, como no plano
temporal da expressão125. O cronista pode operar as estratégias de apreensão do objeto
pela totalidade, seja de maneira englobante ou cumulativa, ou também pelas
particularidades, isolando os detalhes ou selecionando, entre esses, os aspectos mais
representativos de uma totalidade inacessível por outros meios. No caso do incêndio do
Paço Municipal de Macacu, a narrativa fantástica operada pelo cronista permite que o
leitor possa apreender o objeto por meio da totalização englobante que lhe permite
perceber que toda justificativa apresentada nos jornais não passa de meios puramente
discursivos que satisfazem interesses dos grupos políticos em disputa naquele
município. Em crônica anterior, do dia 2 de junho de 1878, o cronista tratou do mesmo
assunto, observando que a causa do incêndio perdeu-se em imaginação e conjecturas.
Para ironizar o modo como tentaram justificar o motivo do desastre como combustão
espontânea, ele o faz também por alegoria, mas diferentemente da anterior, opera o
ponto de vista particularizando o caso:
123 O ponto de vista diremos, designa numa narrativa em terceira ou em primeira pessoa a orientação
do olhar do narrador em direção a seus personagens e dos personagens uns em direção aos outros. Diz
respeito à composição da obra e torna-se com Boris Uspenski objeto de uma “poética da composição”,
já que a possibilidade de adotar pontos de vista variáveis - propriedade inerente à própria noção de
ponto de vista - dá ao artista a ocasião, sistematicamente explorada por ele, de variar os pontos de
vista no interior da mesma obra, de multiplicá-los e incorporar suas combinações na configuração da
obra. (RICOEUR, P., 2010, V. 2, P. 162)
124 Os tipos de observador se depreendem da discursivização dos atos de conhecimento. Eles
implicam, por isso mesmo, uma atividade.perceptiva. Esta pode ser explicitada por meio de
predicados da percepção (ver, envolver com, o olhar, perceber, explorar, rexaminar, etc.) que definem
a natureza do ato; a estratégia utilizada e o papel atribuído ao observador. Ela pode igualmente ser
induzida pela disposição dos objetos, pelo modo de sua seleção, pela estruturação das diferentes partes
em relação à totalidade visada. (BERTRAND, D. 2003, P. 126)
125 O plano espacial e o plano temporal da expressão do ponto de vista nos interessam vivamente. É em
primeiro lugar a perspectiva espacial, tomada literalmente, que serve de metáfora a todas as outras
expressões do ponto de vista. A condução da narrativa não é possível sem uma combinação de
perspectivas puramente perceptivas, implicando posição, ângulo de abertura, profundidade do campo
(como é o caso para o filme). O mesmo acontece com a posição temporal, tanto do narrador com
relação a seus personagens quanto dos personagens entre si. O importante aqui é mais uma vez o grau
de complexidade que resulta da composição entre perspectivas temporais múltiplas. O narrador pode
caminhar ao poasso de seus personagens, fazendo o presente de narração deles coincidir com o seu,
aceitando assim seus limites e sua ignorância; pode, ao contrário, se mover para frente e para trás,
considerar o presente do ponto de vista das antecipações de um passado rememorado, ou como a
lembrança passada de um futuro antecipado.(RICOEUR, 2010, v. 2, p. 164).
222
Concordando o leitor da notícia com a hipótese de que o desastre foi causado por
combustão espontânea, também deve concordar com o cronista que os paços tinham o
mau costume de dormir com luz e ler até alta madrugada, assim como o fato de o paço
municipal de Macacu fumar na cama. Nesse sentido, o ponto de vista da crônica parece
aproximar-se do discurso argumentativo, observado por Bertrand, ao designar a
expressão de um juízo, de uma opinião, de uma tomada de posição126. Contudo,
diferentemente do discurso argumentativo, na crônica não há um percurso bem definido
que se desenvolva da tese refutada à tese proposta – podemos dizer que nem sequer há
tese na crônica.
Em crônica de 30 de outubro de 1859, ao definir os procedimentos do gênero,
afirma:
A proximidade entre cronista e leitor como leitores dos jornais da época opera-se
por meio do ponto de vista enunciado nas crônicas. Conforme podemos observar em
vários momentos delas, esse ponto de vista é marcado pelo cronista como leitor que tem
126 No discurso argumentativo, enfim, o ponto de vista designa a expressão de um juizo, de uma
opinião, de uma tomada de posição. A metáfora espacial dessa última expressão indica claramente que
os modos de enunciação, são, aí também, questão de posições. A opinião pode ser expressa sob a
aparência do discurso objetivo ou da evidência, (com o "ele", a pessoa de universo: "é evidente
que...”) ou sob a égide de um sujeito coletivo (com o "se": "sabe-se há muito tempo que..."), ou pelo
empenho de uma subjetividade assumida (com o "eu"). O ponto de vista daquele que sustenta uma
opinião será igualmente, determinado pela maneira como ele instala o discurso de outrem, com vistas
a refutá-lo ou a consolidar seu próprio discurso. Ele resultará, enfim, da textualização do percurso
argumentativo, de sua organização e de seu desenvolvimento: ir da tese refutada à tese proposta, do
particular ao geral, do exemplo ao argumento, ou inversamente. (BERTRAND, D. 2003, P. 117)
223
O fato que mais deu que falar, durante a semana que finda hoje,
foi um folhetim insolente e sensaborão. Discutiu-se, comentou-
se e sobretudo admirou-se esse conjunto de banalidades que,
com o título de Chronica da semana, se publicou domingo
último nas colunas da folha oficial. A favor da importância do
Jornal, o Chronista atirou à admiração pública meia dúzia de
facécias, que pelo tom se pareciam com aquelas que, tendo sido
intercaladas fraudulentamente em um folhetim do Sr. Dr.
Macedo, obrigaram a este a deixar aquele trabalho especial de
que se achava encarregado. Nem mais nem menos, o escritor
acusava os moços que fazem profissão da pena de uma liga,
tendo por fim o louvor mútuo e a todo o transe. Atacava ao
mesmo tempo a dignidade moral e intelectual da mocidade
brasileira. E isto no rodapé da folha oficial. (ASSIS, 2008d, p.
71)
O sarcasmo com que o cronista trata Scoevola e que é compartilhado com seu
leitor tem por pressuposto que ambos – leitor e cronista – conhecem os textos desse
autor, bem como a referência histórica do pseudônimo, o que permite ao cronista operar
a junção de temas distintos e dar-lhes um novo significado como forma de desmistificar
a polêmica criada por Scoevola. Além do Jornal do Commercio, o cronista também
explicita a leitura que faz do jornal Correio Mercantil na crônica de 16 de dezembro de
1861:
Como se vê, ele cita desse jornal um comentário referente à política do Estado
Imperial para o teatro feito por Macedo Soares, de cuja opinião discorda
veementemente. Na crônica de 24 de dezembro de 1861, percebe-se que seu comentário
anterior havia provocado debate com esse autor, pois nesta crônica refere-se à resposta a
seu texto anterior:
Nessa citação, vemos sua contenção em aprofundar alguns debates para não
226
cansar seu leitor. Essa fuga de temas densos, que possam cansar tanto o cronista quanto
o leitor, é enunciada na crônica de 12 de outubro de 1861:
Desse modo, cria no leitor a expectativa do correr da pena que apenas pontuará
alguns temas que possam interessar a ambos, guardando-se de prender-se a alguns deles
e cansar a si e ao leitor. Essa expectativa criada no leitor constitui o gênero como um
texto leve que estabelece o campo ilusório onde o interlocutor está não diante de um
texto em si, mas de uma conversa presencial com o cronista. Essa constituição opera-se
pelo ponto de vista marcado pelas categorias do discurso embreado: categoria actancial
em primeira pessoa, dêixis temporal do presente e dêixis espacial determinada no texto
pelo ato da leitura dos jornais. As categorias temporais e espaciais se estabelecem pelos
comentários que o cronista faz dos jornais publicados naquele momento. A maior parte
dos temas tratados nas crônicas é tirada dos jornais da época, como foi dito, embora na
maioria deles não haja referência explícita como os que aqui expusemos. Contudo, essa
não explicitação evidencia a pressuposição do cronista de que compartilha com seu
leitor a leitura dos temas tratados na crônica.
Ao tratar da tipologia do observador, Bertrand afirma que é no texto e a partir do
texto que se podem identificar a sua posição e seu estatuto 127. Com base em J.
Fontanille, o semioticista francês apresenta quatro tipo de observadores, porém todos
depreendidos da debreagem enunciativa. Interessa-nos para nossa análise o que
Bertrand, a partir de E. Strauss, define como perspectiva do observador. Tal conceito
demarca a inacessibilidade de uma totalidade visada. A experiência sensível do
observador só se opera por meio de uma percepção fragmentada e sucessiva que
atualizam, limitam e especificam a noção de “totalidade”. Operada por meio de uma
apreensão discursiva a perspectiva do observador estabelece uma totalidade virtual pelo
jogo da conjunção “e”, denotando seu caráter particular e fragmentário. Isto é, a
distância entre o foco perceptivo e a apreensão que se realiza opera-se como síntese de
transição – com base em Merleau-Ponty – na qual a coisa nunca é atingida em sua
completude128.
Desse modo, essa distância entre o foco do observador – o ponto de vista – e a
apreensão do objeto torna-se jogo enunciativo nas crônicas machadianas. O cronista, ao
elaborar as fragmentações temáticas, estabelecendo rearranjos distintos do que se
encontra no jornal e inventando esse campo ilusório em seu leitor como mimetização da
conversa cotidiana, pode reavaliar e desconstruir os valores que se estabelecem
dogmaticamente nas matérias de jornais. Na crônica de 12 de outubro de 1861 da série
Comentários da Semana, fazendo referência a uma matéria do Jornal do Commercio
que trata de mulher acusada de praticar "bruxarias" na revelação de segredos ocultos, o
cronista, menos interessado em defendê-las, estabelece o rearranjo enunciativo que
elabora entre textos distintos, questiona a lógica positivista fundada na crença
cientificista de sua época:
128 Essa distância entre o foco perceptivo e a apreensão efetivamente realizada constitui um dos
porblemas centrais da fenomenologia da percepção, à qual voltaremos ao estudar a figuratividade. Os
aspectos fragmentários da percepção são chamados "esboços" por Husserl e seu arranjo na apreensão
é uma "composição de esboços"; essa mesma operação é chamada "síntese de transição" por Merleau-
Ponty, precisando que "a ipseidade da coisa nunca é atingida". (p. 127)
228
A proximidade maior dá-se com o discurso narrativo, uma vez que, como ele, a
crônica estabelece uma focalização tanto interna quanto externa. Também a criação de
personagens que, muitas vezes, toma quase toda a crônica. Na crônica de 11 de agosto,
há duas narrativas quase sequenciais, as quais têm como mote o processo eleitoral: uma
trata do processo eleitoral em Paquetá e a outra – que segue transcrita abaixo – alegoriza
129 No discurso descritivo, o ponto de vista se refere diretamente à atividade perceptiva. A primeira
acepção do dicionário Robert é esta: "lugar onde nos devemos colocar para ver um objeto o melhor
possível". O ponto de vista é, pois, regido pelo observador e seu modo de presença enunciativa. Ele
pode estar completamente oculto ("A Terra é redonda"), pode estar implicado pela indicação da
posição de observação ("Vista da Lua, a Terra é redonda"), pode estar assumido, em focalização
interna, por um ator da narrativa que então toma a si a atividade descritiva ("Qyabdi ela levantou os
olhos [...] percebeu um grande luar, uma poeira de sol, já cheia do burburinho matinal de Paris", E.
Zola, L'assomoir). (pp. 114-115)
230
130 Geralmente a posição do Destinador nas narrativas etnoliterárias (mitos, contos, rituais, etc.) é a
tal ponto caracterizada pela estabilidade, que não se imagina que ele possa escapar às obrigações
programadas de seu papel. Emoldurando o relato, situa-se nos dois extremos da cadeia narrativa: é ele
que atribui uma missão ao herói no momento do contrato, é ele que reconhece e avalia a ação
concluída no momento da sanção. Papel cristalizado e permanente no universo do conto, o Destinador
é o grande regulador que encarna o pano de fundo axiológico, definindo o desejável, o temível e o
odiável logo de início, e avaliando ao final do percurso a conformidade das ações realizadas.
BERTRAND, D. 2003, P. 342
131 Ele pensava, ele sentia etc." Um pequeno número de marcas formais bastam: "aparentemente",
"evidentemente", "parecia que", "como se". Essas marcas de um ponto de vista "alheio" são
geralmente combinadas com a presença de um narrador colocado numa relação de sincronia com a
cena da ação. (RICOEUR, 2010, v. 2, p. 165)
232
132 Essa tese encontra certo apoio no uso que Todorov faz do conceito de transformação narrativa
("Les transformations narratives", in Poétique de Ia prose, op. cit.). A vantagem é combinar o ponto de
vista paradigmático de Lévi-Strauss e de Greimas com o ponto de vista sintagmático de Propp: entre
outros efeitos, a transformação narrativa duplica os predicados de ação (fazer), indo das modalidades
(dever, poder fazer) às atitudes (gostar de fazer). Além disso, torna possível a narrativa, operando a
transição do predicado de ação à sequência, enquanto sintese de diferença e semelhança; em suma,
"ela interliga dois fatos sem que esses possam se identificar" (ibid., p. 239). Essa sintese é nada mais
nada menos, a meu ver, que aquela já operada e entendida como síntese do heterogêneo no plano da
compreensão narrativa. Concordo mais uma vez com Todorov quando opõe transformação a sucessão
("Les deux principes du récit", in Les Genres du discours, op. cit.). É certo que a noção de transformação
parece dever filiar-se à racionalidade narratológica. diferentemente de minha noção de configuração,
que me parece fazer parte da inteligência narrativa. A rigor, só poderemos falar de transformação se
lhe dermos uma formulação lógica. Entretanto, na medida em que a narrativa dá lugar a outras
transformações além da negação, de que dependem disjunções e conjunções, por exemplo a passagem
da ignorãncia ao reconhecimento, a reinterpretação de acontecimentos já ocorridos, a submissão a
imperativos ideológicos (ibid., pp. 67 ss.), parece difícil dar um equivalente lógico a todas as
organizações narrativas cuja competência adquirimos em razão de nossa familiaridade com as intrigas
tipo herdadas de nossa cultura. (p. 82-83 - Nota de rodapé)
133 A "situação de locução" (Sprechsituation) preside a primeira distinção entre narrar (erzahlen) e
comentar (besprechen). Essa é de longe, para nós, a mais importante; é ela que fornece ao original
alemão seu subtítulo: Besprochene und erzahlte Welt. Corresponde a duas atitudes. de locução
diferentes, caracterizadas, no comentário, pela tensão ou pelo engajamento (gespannte Haltung), e na
narrativa, pela distensão ou pelo distanciamento (entspannte Haltung). (p. 115)
233
do presente da informação que ele se ocupa, fazendo com que o leitor entenda o passado
como tal sem se subtrair a ele134, de modo que passado e narrativa na crônica não se
identificam.
Bertrand chama a atenção para o modo como o nouveau roman desmorona a
arquitetura enunciativa, na medida em que dá ao leitor a impressão de um universo
embaralhado, fazendo desaparecer os procedimentos de referencialização interna que
caracteriza o discurso narrativo. A partir de suas leituras de Lukács, Bakhtin, Ricoeur e
Kundera, afirma ter o romance moderno nascido com Rabelais e Cervantes, os quais
romperam com esses procedimentos narrativos tradicionais, bem como com a adesão a
seus valores, uma vez que a perspectiva das personagens centrais nesses romances já
não é aquela aprioristicamente representativa dos valores coletivos da esfera social 135.
Considerando os flagrantes que a crítica machadiana tem feito ao aproximar Memórias
Póstumas de Brás Cubas desses romances da tradição da sátira da menipeia e
acolhendo a análise feita por Bertrand, parece-nos que os laços de proximidade entre os
procedimentos discursivos da crônica com Memórias Póstumas se afinam cada vez
mais. Nesse sentido, o comentarista deste romance personificado no autor defunto
estabelece similaridades profundas com os diferentes cronistas machadianos que o
antecedem por meio desses procedimentos discursivos.
Contudo, essa proximidade entre As., M. A. (Muito Abelhudo), Gil, Eleazar,
Manassés e Brás Cubas, Bento Santiago e Conselheiro Aires não poderia nos colocar
diante de outras diferenças? É importante retornar ao conceito de destinador
apresentado anteriormente. Conforme Bertrand, o destinador é inicialmente aquele que
faz crer, faz saber e faz poder, propondo valores e suscitando a adesão do sujeito. O
destinador é o grande regulador que encarna o pano de fundo axiológico e define o
desejável, o temível e o odiável a seu destinatário. É também uma posição actancial
inscrita no percurso narrativo e, conforme Bertrand, modulável, instável e sujeita a
transformações expostas ao reconhecimento de seu estatuto pelos sujeitos do discurso.
Principalmente em Memórias Póstumas, o narrador que também é autor e personagem
136 Ao analisarmos os modos de funcionamento dos diferentes saberes (saberes sujeitados, saberes
legitimas, saberes sepultados) dos quais Foucault trata em sua obra, aproximando-os ao conceito de
ideologia do cotidiano analisado por Mikhail Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem cabe
aqui uma observação sobre ideologia nos termos foucauldianos e bakhtinianos. Em Bakhtin, o uso da
palavra ideologia se contrapõe ao conceito de psicologia, por não considerar o discurso como
determinado por fatores individuais e orgânicos, mas puramente sociológicos. Portanto, a atividade
central do indivíduo, longe de ser determinado por fatores psíquicos como o querem os idealistas com
quem Bakhtin polemiza, é determinada por fatores históricos e sociais, cuja constituição se dá no
domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada em nenhum sistema e, à medida que
não é determinada por nenhum sistema, se opõe ao que Bakhtin chama de sistemas ideológicos
constituídos. Michel Foucault observa a problemática da palavra ideologia por três razões: primeiro
porque ideologia está sempre em oposição a algo que seria a verdade e, nesse sentido, prefere não
fazer a divisão entre o que proveria da cientificidade e da verdade e aquilo que proveria de outra
coisa, mas ver historicamente como se produzem efeitos de verdade dentro do discurso que não são
em si mesmo nem verdadeiros, nem falsos; segundo, porque a palavra ideologia refere-se a algo assim
como o sujeito; terceiro, porque a palavra ideologia é usada em uma posição secundária em relação a
algo que funciona para ela como infraestrutura ou determinante econômico, material. Por essas três
razões Foucault observa que não se deve usá-la sem uma certa precaução. Nesse sentido, tanto a
história do saber, quanto as formas de exercício do poder é para Foucault uma história de práticas e
não de ideologias (Ditos e Escritos, volume 3, p. 148). Desse modo, e seguindo a precaução observada
por Foucault, definimos o conceito da palavra ideologia ao sentido restrito definido por Bakhtin, isto
é, como oposta ao conceito de psicologia usada tanto pela literatura marxista do contexto de Bakhtin,
quanto pela filosofia idealista romântica à qual ele se opõe, como discursos construídos histórica e
sociologicamente.
236
137 A crônica escolhe por entre os diversos assuntos da semana aqueles que lhe oferecem maior
interesse, reorganizando os fatos nessa narrativa, evidência que não se pode negar. Nessa
reorganização da realidade está presente a pena do cronista, que escolhe, reproduz, elege para o
comentário esse ou aquele assunto. Não há um tema que a norteie preferencialmente, nem mesmo a
política, a qual pode até estar ausente em alguns dos textos. (GRANJA, 2000, p. 27)
138 O cotidiano de cada indivíduo está inserido nesse universo de discursos. E é a partir dessa
materialidade discursiva que se constitui sua subjetividade. Logo, a subjetividade nada mais é que o
resultado da polifonia, das muitas vozes sociais que cada indivíduo "recebe" e tem a condição de
"reproduzir" (paciente) e/ou de reelaborar (agente)(BACCEGA, 2000, p. 22)
239
subjetivo e despretensioso permite que rompam com essa referência ao real por meio da
reestruturação que, na crônica, é evidenciada como assunto puxa assunto. Desse modo,
o discurso da crônica rompe com a noção comum de referência para estabelecer outro
tipo de referência mediado pela linguagem, isto é, ao invés de ser orientada em direção
à realidade, "torna-se ela mesma material como o mármore para o escultor" (RICOEUR,
1005, p. 320). Affonso Romano de Sant'Anna, ao tratar do tema da loucura em Esaú e
Jacó, O Alienista, Quincas Borba e Memórias Póstumas de Brás Cubas, observa que,
nessas obras, a temática da loucura conjugada com a da razão se entreabre de modo
complexo e insólito à medida que o autor, ao invés de opô-las como elementos
irreconciliáveis, mas evidenciando a sua relatividade por meio do estranhamento dos
conceitos cotidianos da ideologia vigente de modo sistemático em todos os níveis de
sua análise139. No exemplo acima citado sobre a definição da crônica, há uma
característica importante sobre o discurso cotidiano, com base em Bertrand, que,
embora de forma mais enfraquecida que o discurso poético, o discurso cotidiano opera-
se por meio de uma organização vasta de campos conceituais fundamentados na
figuratividade, a exemplo das "numerosas metáforas espaciais chamadas de
'orientação', tão recorrentes no dia-a-dia" (BERTRAND, 2003, p. 216).
Não somente a crônica é apresentada a partir desse movimento discursivo
ficcional, como também os temas tratados nela são abordados a partir de sua
estruturação discursiva. Nesse mesmo sentido, observa Reboul que a verdade do
discurso não passa de um acordo entre interlocutores, acordo que permite a discussão e
sem o qual ela não é possível140.
Em crônica de 16 de junho de 1878, ao tratar do congresso agrícola, convocado
pelo ministro da Agricultura, o cronista problematiza as relações políticas que
ameaçavam surgir no congresso e a necessidade de uma discussão mais prática sobre os
139 Tanto em Plácido (Esaú e Jacó) quanto em Simão Bacamarte (O alienista), como em Quincas Borba e
Brás Cubas a temática da loucura conjugada com a razão se entreabre de modo complexo e insólito.
Deixando de opor esses elementos como inconciliáveis, como quer o modelo ideológico, ele mostra a
relatividade de um e outro, configurando a loucura da razão e as razões da loucura, sem optar
maniqueisticamente por um dos elementos em torno da barra, pois sabe que ambos os termos da
proporção estão contaminados por definições ideológicas das quais procura se afastar. O que faz,
então, é estranhar os conceitos cotidianos, a ideologia vigente. E esse estranhamento não sendo
esporádico, mas sistemático, acaba por se dar em todos os níveis da análise. (SANT'ANNA, 2012, p.
222).
140 Deve-se a eles a idéia de que a verdade nunca passa de acordo entre interlocutores, acordo final
que resulta da discussão, acordo inicial também, sem o qual a discussão não seria possível. A eles se
deve a insistência no kairós, momento oportuno, ocasião que se deve agarrar na fuga incessante das
coisas, ao que se dá o nome de espírito da oportunidade ou de réplica vivaz, e que é a alma de
qualquer retórica viva. (REBOUL, 2000, p. 9)
241
problemas que seriam tratados: "Venhamos à política prática, útil, progressiva; metamos
na alcofa os trechos de retórica, as frases-feitas, todos os fardões da grande gala
eleitoral. Não digo que os queimemos, demo-lhes somente algum descanso." (ASSIS,
2008e, p. 115)
Em uma primeira leitura, parece que o cronista estabelece a tensão entre as
discussões vazias e a necessidade prática da política, mas, no contexto da crônica, esse
trecho aponta para o caráter do discurso (retórica) que mediatiza as relações políticas
com as necessidades práticas. Também não se trata aqui de uma tensão entre retórica e
realidade, mas a evidência de que o jogo retórico no Parlamento é estéril, pois o
objetivo são os fardões da grande gala eleitoral e não os efeitos práticos da política na
vida cotidiana. Ironizando, evidencia a condição material da linguagem que mascara os
jogos de interesses individuais ou de grupos, os quais certamente determinariam o ponto
central desse Parlamento. Na crônica do dia 30 de junho de 1878, põe em
questionamento a informação tratada a partir da mediação da linguagem: "A 'tribuna
parlamentar', que é uma simples poltrona do mogno, deve abrir-nos os olhos. A
metáfora é um abscesso nas organizações políticas; convém rasgá-lo ou resolvê-lo, e
voltarmos à frase sadia e nua: pão, pão; queijo, queijo." (p. 137)
Isto é, ao personificar o lugar da política como sujeito político, o cronista
evidencia que a política parlamentar não passa de um jogo permeado por metáforas
estranhas às necessidades do país. Ao retomar os acontecimentos noticiados tanto na
cidade de Chique-Chique quanto em Macaúbas como resultados das disputas eleitorais,
o cronista coloca em dúvida a veracidade da notícia a partir da ficcionalização do
discurso jornalístico:
Zumthor, ao tratar da relação de texto e leitor, define-a como contrato social que
se estabelece entre autor e leitor por meio do texto e observa os três pontos importantes
que determinam o que ele chama de elemento ritual: o autor tem de ser identificado
242
como tal, o público deve estar familiarizado com os temas tratados e o texto também
deve ser identificado como tal141. No caso do jornal, esse elemento ritual se define pelo
reconhecimento do texto jornalístico pelo leitor como fonte de informação “verdadeira”.
É, como define Bertrand, esse modelo que define o contrato de veridicção,
estabelecendo a relação de confiança que permite o compartilhamento de crenças no
interior do discurso, possibilitando a manipulação da notícia.
No contexto em que Machado de Assis escreve essas crônicas em análise (1860-
1880), havia dois grandes partidos: o Partido Liberal e o Partido Conservador. A
imprensa era determinada por essa divisão política de modo que o Diário do Rio de
Janeiro, a Ilustração Brasileira e O Cruzeiro, nos quais escreveu esse conjunto de
crônicas, eram jornais liberais; do outro lado, havia o Jornal do Comércio, o qual
diversas vezes foi alvo de ataques do cronista. Assim, o auditório do cronista eram,
sobretudo, leitores afinados com o Partido Liberal. Contudo, é o discurso do jornal em
que escreve – Ilustração Brasileira – que o cronista põe em questionamento,
comentando seu estatuto veridictório no exemplo anteriormente citado. Com isso, o
discurso torna-se o lugar frágil onde se introduzem e se leem a verdade e a falsidade, a
mentira e o segredo a partir desse acordo implícito entre autor e leitor142. Marialva
Barbosa, em sua obra História Cultural da Imprensa: Brasil 1800-1900, ressalta essa
formação do auditório na relação entre leitores e jornais determinada pelas mensagens
que veiculam. O texto veiculado pelo jornal é dirigido a um leitor desconhecido e
universal, mas à medida em que é lido determina seu público e alarga o círculo de
atuação que permite novos modos de elaborar a comunicação. Citando o conceito de
autonomia semântica definida por Paulo Ricoeur, Barbosa observa a distância entre a
141 Isto mesmo supõe a necessidade e a convergência de três elementos, constitutivos de toda
literatura e também da poesia, em sua universalidade. Por um lado, um grupo de produtores de
textos, fabricando objetos que se poderia qualificar poéticos ou literários. Esses produtores s ão
assim identificados pelo grupo. Segundo, um conjunto de textos que sejam socialmente
considerados como tendo um valor em si próprios. Esse valor que qualificamos de literário ou
poético, poderia, em outros contextos culturais, receber uma outra espécie de designação,
assinalando uma utilidade toda particular. Enfim, terceiro elemento necessário, a participação
de um público, recebendo esses textos como tal. Em cada um desses pontos articula-se um
elemento ritual: textos identificados como tal, produtores assim identificados, público iniciado.
(ZUMTHOR, 2007, p. 47)
142 O discurso é esse lugar frágil em que se introduzem e leem a verdade e a falsidade, a mentira e o
segredo; [...] equilíbrio mais estável ou menos, proveniente de um acordo implícito entre os dois
actantes da estrutura da comunicação. É esse entendimento tácito que é designado pelo nome de
contrato de veridicção. Greimas. Du sens II. Essais sémiotiques, p. 105, citado por BERTRAND,
2003, p. 239
243
143 O conceito solicitação é trabalhado por Abel Barros Baptista em sua obra Autobibliografia, cuja
importância nessa autonomia semântica do texto é fundamental para compreender os efeitos de
sentidos na relação entre texto e leitor. Retomaremos essa discussão, bem como apresentaremos a
definição do conceito de solicitação mais à frente.
144 Essa relação dos leitores com os jornais mostra o caráter significativo das mensagens que
veiculam. Em princípio, um texto escrito é dirigido a um leitor desconhecido e universal. Mas a obra
cria o seu público, alargando o seu círculo de atuação e iniciando novos modos de comunicação. Ao
estabelecer esse contato, o leitor deixa claro que um auditório está sendo formado. O texto abre-se a
um número indefinido de leitores e, por conseguinte, de interpretações, que depednem em grande
parte da forma como é apreendido. o texto impresso pode atingir o leitor no ambiente solitário, longe
da sociabilidade peculiar que a leitura em voz alta permite, ou, transmitido pela voz, indicar a
presença próxima de um outrem que influencia na compreensão daquela mensagem. O que é lido, é,
muitas vezes, oralmente, transmitido a outros. E, mais uma vez, indiretamente, alarga-se o número de
leitores, através da oralidade. O texto transmitido pelos jornais é, assim, também discurso falado, cuja
força de locução e de compreensão depende não apena dos aspectos articulados do discurso, mas da
mímica, dos gestos, de elementos não articulados, aquilo que alguns autores chamam de prosódia
(Ricoeur, s/d, 38-39) (BARBOSA, 2010, p. 213)
244
telégrafo e do fonógrafo; tal crítica, porém, é feita de forma indireta por meio da ficção
fantástica:
145 Estrangeiro — Vejo primeiro a arte de copiar, que consegue os melhores resultados quando o
original é reproduzido em suas proporções de comprimento, largura e profundidade, [235e] além das
cores apropriadas a cada parte, do que resulta uma cópia perfeita.
Teeteto — Como! Não é isso, justamente, que todos os imitadores procuram fazer?
Estrangeiro — Pelo menos, não é o que se verifica com os que modelam ou pintam obras
monumentais. Pois se quiserem reproduzir as verdadeiras proporções do belo, sabes muito bem que as
partes superiores parecerão menores do que o natural, [236a] e maiores as de baixo, por
contemplarmos umas de longe e outras de perto.
Teeteto — Sem dúvida.
Estrangeiro — E então? E o que dá a impressão de belo, por ser visto de posição desfavorável, mas
que, para quem sabe contemplar essas criações monumentais em nada se assemelha com o modelo que
presume imitar, por que nome designaremos? Não merecerá o de simulacro, por apenas parecer, sem
ser realmente parecido?
246
Hansen, em seu artigo Dom Casmurro: Simulacro & Alegoria, ao tratar sobre o uso
desse procedimento nas narrativas de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom
Casmurro, afirma que o fantástico narra o não-ser e suas ações impossíveis. Apropriado
por Machado de Assis na tradição luciânica, essa forma de narrativa opera ações e
eventos falsos. Com isso, o texto joga com a duplicidade de perspectiva do leitor, pois
"a história não é fácil de crer se for lida por meio da verossimilhança positivista-realista,
mas é totalmente crível se for lida como gênero fantástico, que aplica convenções
críveis para narrar o incrível" (HANSEN, 2008, p. 150). Para o crítico brasileiro, esse
improvável do “não-natural” que marca o gênero fantástico torna-se imprevisível para o
leitor que, portanto, sofre o deslocamento de leitura para um outro esquema retórico,
outro gênero discursivo e, portanto, outra legibilidade.
No caso da crônica acima citada, diante da notícia do processo eleitoral
apresentada pelo cronista em uma ambientação de guerra em que os partidários,
identificados no texto como cavaleiros, se armam, afiando suas espadas e jurando por S.
Jorge ou por Santiago de Compostela; tal enunciação faz com que a imagem da disputa
eleitoral se torne despropocional na crônica e, com isso, permite o leitor enxergar a
animosidade violenta que caracteriza as disputas eleitorais no Rio de Janeiro. Esse
deslocamento de sentido pode ser visto também na crônica de 1º de fevereiro de 1877,
que comenta a notícia de jornal sobre um navio cubano que diziam navegar nas águas
do Império, resultando em uma crise diplomática entre o governo brasileiro e o governo
espanhol:
146 O discurso, em sua realização romanesca e fictícia, e também cotidiana e funcional, alterna
constantemente as debreagens e as embreagens, variando seus registros e seus modos de sucessão: o
enunciador instala, por exemplo, uma personagem, que ele coloca num universo ao mesmo tempo
espacial, temporal e actorial (debreagem), ele a faz falar (embreagem interna), Introduz em seu
discurso outras personagens (debreagem de segundo grau), que por sua vez podem tomar a palavra
(embreagem de segundo, grau), etc. Percebemos então a arquitetura enunciativa do discurso que se
põe em ação. (BERTRAND, 2003, p. 94)
248
vinte dias antes da crônica - a discussão sobre uma possível revolução feita pelos
liberais contra a inauguração da estátua de D. Pedro I havia acalorado a imprensa
fluminense. Conforme a matéria desse jornal governista, publicada na parte de
Publicações a Pedido, a acusação contra eles feita pelo jornal Diário do Rio de Janeiro
não passava de boatos provocados pelos próprio liberais. Segue a transcrição do texto:
PUBLICAÇÕES À PEDIDO
Ainda o Diário e as balas.
147 Adequamos o texto às normas gramaticais atuais, mas para que se possa verificar não apenas o
conteúdo, mas à forma da escrita, disponibilizamos a imagem da matéria.
250
148 A figuratividade não é mera ornamentação das coisas; é essa tela do parecer cuja virtude consiste
em entreabrir, em deixar entrever, em razão de sua imperfeição ou por culpa dela, como que uma
possibilidade de além-sentido. Os humores do sujeito reencontram, então, a imanência do sensível
(BERTRAND, 2003, p. 158)
149 Cf. Genette, Gérard. "Verossímil e Motivação". In Barthes, Roland et alii. Literatura e
Semiologia. Seleção de ensaios da revista "Communications". Trad. Célia Neves Dourado. Petrópolis,
Vozes, 1971.
150 O terceiro grau pode ser o mais interessante, no caso desses romances de Machado. O leitor
observa neles, desde o momento em que os autores ficcionais afirmam que sua história não é fácil de
crer, pois num caso é um morto que fala e noutro um desmemoriado que lembra, outros enunciados
sem explicação que vão sendo justapostos a esse núcleo de impossibilidade inicial. Mas, no início
mesmo da história, advertem seus leitores da sua condição de morto e de desmemoriado e, com isso,
motivam ou explicam o arbitrário da falta de explicação ou motivação para suas ações e para o
encadeamento delas. Os formalistas russos do início do século XX chamavam de "procedimento a nu"
a técnica que representa para o leitor o próprio ato que constrói o discurso, ou seja, as decisões do
narrador. HANSEN, 2008, P. 152
252
151 Percebe-se, em toda a sua riqueza, qual o sentido de mímesis I: imitar ou representar a ação é, em
primeiro lugar, pré-compreender o que é o agir humano: sua semântica, sua simbólica, sua
temporalidade. É nessa pré-compreensão, comum ao poeta e a seu leitor, que se delineia a construção
da intriga e, com ela, a mimética textual e literária. (RICOEUR, 2010, v. 1, p. 112).
152 Por um lado, podemos ficar tentados a dizer que a narrativa põe a consonânica ali onde só há
dissonância. Desse modo, a narrativa dá forma ao que é informe. Nesse caso, contudo, a forma dada
pela narrativa pode ser suspeita de trapaça. Na melhor das hipóteses, fornece o "como se" próprio de
toda ficção, que sabemos não ser mais que ficção, artifício literário. É por isso que consola diante da
morte. (pp. 124-125)
153 As "ilusões referenciais" não são um efeito de sentido qualquer do texto: exigem uma teoria
detalhada das modalidades de veridição. Ora, essas modalidades delineiam-se por sua vez no fundo de
um horizonte de mundo que constitui o mundo do texto. Pode-se certamente incluir a própria noção de
horizonte na imanência do texto e tomar o conceito do mundo do texto por uma excrescência da ilusão
referencial. (RICOEUR, v. 1, p. 135)
253
154 A enunciação reportada, entendida como "um simulacro da enunciação" (Fiorin, 1999, p. 41),
pode ser tomada como exemplo desse "desdobramento. Quando, por meio do diálogo (Courtés, 1991,
p. 249), simula-se, no enunciado, a estrutura de comunicação de enunciador e enunciatário, tem-se a
enunciação reportada. Essa reportação à enunciação possui uma dimensão metadiscursiva, na medida
em que faz pressupor uma relação entre a interlocução dos actantes da enunciação e a dos actantes do
enunciado. Trata-se de uma manifestação de "heterogeneidade enunciativa" (Charaudeau &
Maingueneau, 2004, p. 326), por meio da qual se nota uma enunciação que se coloca "além da"
enunciação concretizada no texto (CALBUCCI, 2007, p. 65).
254
do que elas são ("Continua o mesmo senhor, dizendo que o cego de nascença fantasia
um mundo à sua guisa, e identifica-se com ele, idealizando e colorindo as coisas melhor
do que elas são"), confirmando esse método recorrente em sua escrita madura. Também
quando, ao encerrar seu texto pedindo que seu oponente não se zangue, por não ter tido
a intenção de atacar a ele e sim a seus argumentos, marca essa ressalva de modo irônico
ao parafrasear Buffon: "O estilo é o homem!".
As crônicas machadianas apresentam elementos importantes para a
compreensão dos modos de composição a partir da análise da enunciação elaborada pelo
cronista e da constituição do ponto de vista depreendida nesses textos. Nelas se
confirma a assertiva de Denis Bertrand de que a enunciação deve ser compreendida
como "mediação entre o sistema social da língua e sua assunção por uma pessoa
individual na relação com o outro" (BERTRAND, 2003, p. 89). Na crônica de 12 de
outubro de 1861 da série Comentários da Semana, já citada anteriormente, ao tratar da
forma como a imprensa noticiou o caso de duas videntes de forma negativa, o cronista
se contrapõe à notícia jornalística conhecida de seu leitor, articulando outras
informações que também compõem o sistema cultural, estabelecendo uma análise
crítica:
O contraponto feito pelo cronista à matéria de jornal sobre a questão das sibilas
por meio da junção intertextual do fato com a poesia de Virgílio e Bocage torna-se
procedimento recorrente da composição machadiana no conjunto de suas crônicas,
como estabelecimento de relações do sistema social da língua na enunciação do
comentarista para seu destinatário, como pontuado por Bertrand, que põem o discurso
em funcionamento pelo ato individual de utilização. Neste, conforme Benveniste, o
enunciador constitui a intersubjetividade como articulação pragmática do discurso. Com
base em Benveniste e Bertrand, definimos o enunciador como aquele que, no
acontecimento de linguagem, projeta fora de si categorias semânticas que elaboram o
universo de sentido. Conforme Bertrand, essa operação consiste em uma cisão criadora
das representações actanciais, espaciais e temporais do enunciado,155, como também
do sujeito, do lugar e do tempo da enunciação.
Na crônica de 14 de janeiro de 1862, ao fazer referência ao texto assinado pelo
pseudônimo Scoevola, editado nas Publicações a Pedido do Jornal do Commercio, o
qual criava polêmica em torno da diplomacia brasileira no Rio da Prata por meio de um
nacionalismo exacerbado que propunha anexar aquela região ao Império brasileiro, o
cronista utiliza-se do mesmo procedimento intertextual, conjugando a polêmica do outro
cronista, sua promessa de relatar sobre o casamento da princesa imperial do Brasil e a
referência histórica desse pseudônimo:
155 O enunciador, no acontecimento de linguagem, projeta fora de si categorias semânticas que vão
instalar o universo do sentido. Essa operação consiste em uma separação, uma cisão, uma pequena
"esquizia" ao mesmo tempo criadora, por um lado, das representações actanciais, espaciais e
temporais do enunciado e, por outro, do sujeito, do lugar e do tempo da enunciação. (BERTRAND,
2003, p. 90)
256
156 O impessoal da enunciação rege a enunciação individual e esta às vezes se insurge contra ele. A
fala, "idealizada como livre, [...] se fixa e se cristaliza no uso, dando origem, por redundâncias e
amálgamas sucessivos, a configurações discursivas e estereótipos lexicais que podem ser interpretados
como tantas outras formas de 'socialização' da linguagem. A primazia da práxis enunciativa sobre o
engajamento particular na fala em ato é um primeiro dado: a enunciação, a seu modo, convoca os
produtos do uso que ela atualiza no discurso. Quando os revoga, ela pode transformá-las, dando lugar
a práticas inovadoras, que criam relações semânticas novas e significações inéditas. E, esses
enunciados, por sua vez, se forem assumidos pela práxis 'coletiva, poderão cair no uso, nele se
sedimentando e assim se tornando convocáveis, antes de se desgastarem e serem revogados. A escrita
literária, tensionada entre conservação e revolução das formas, associa estreitamente esses dois
movimentos. A abordagem do componente passional ilustra particularmente o fenômeno: as
lexicalizações passionais, depositadas na língua pela história e pelo uso, oferecem estruturas de
acolhimento para os estados de alma efetivos, conferindo-lhes estatuto, sentido e valor. (BERTRAND,
2003, p. 88)
257
enunciados presentes nas matérias dos jornais para evidenciar ao leitor a sua produção.
Ao problematizar as matérias de jornais enunciadas em seus textos, o cronista
coloca-se como coparticipante de seu leitor na leitura dos jornais e, portanto, permite-se
comentar as matérias compartilhadas com ele.
Ao conceituar os atos de enunciação para depreender no romance machadiano o
funcionamento desses procedimentos enunciativos, Calbucci faz a distinção entre os três
níveis enunciativos da narrativa: 1º nível: enunciador/enunciatário; 2º nível:
narrador/narratário; 3º nível: interlocutor/interlocutário (CALBUCCI, 2007, p. 32). Ao
aplicar esses níveis enunciativos, mostra a subversão que a narrativa de Brás Cubas
opera nos três, de modo que somente com muito cuidado é possível distinguir o Brás
Cubas enunciador do Brás Cubas narrador e interlocutor. E é exatamente esse o esforço
que o autor empreende para especificar como se opera essa subversão constituída em
inovação da escrita machadiana. Contudo, se, a partir dessa análise de Calbucci, formos
verificar os três níveis enunciativos, assim como em Memórias Póstumas de Brás
Cubas, a voz do texto (o cronista, entendido como o 2º nível enunciativo) o
comentarista também é o enunciador, assinando no final de cada crônica o nome Gil,
Machado de Assis, M .A., Eleazar ou Manassés. Por tratar de temas do cotidiano
conhecidos de seu leitor, esse cronista embaralha os limites ficcionais do texto,
produzindo o que definiremos aqui como campo ilusório no leitor. Isto é, a ilusão a que
o leitor é levado pelo texto de estar diante de alguém com quem estabelece uma
conversa que rompe a distinção do ler e do ouvir e, portanto, também do ver. Conforme
observa Calbucci sobre o romance machadiano, "há uma notável diferença entre a
enunciação de 1º e de 2º grau. Como o enunciador e o narrador não estão sincretizados,
o enunciado produz um efeito de sentido de ficcionalidade." (Idem, p. 131). Nas
crônicas, conforme observaremos abaixo, acontece exatamente o inverso: comentarista
e enunciador estão sincretizados na figura do cronista e, portanto, há um rompimento no
efeito de sentido de ficcionalidade. É importante observar isso: não se trata de ausência
de efeito de sentido de ficcionalidade, o que equivaleria a afirmar que a crônica não é
um texto ficcional; muito pelo contrário, por meio de procedimentos composicionais
abordados anteriormente, o cronista rompe esse efeito de sentido para constituir o
campo ilusório do cotidiano em seu leitor, levando a um grau máximo os efeitos
ficcionais do texto.
O procedimento estético que percebemos ser operado pelo cronista é definido
por Bertrand como embreagem. Esse conceito, emprestado de Greimas, define-se como
259
159 Pela debreagem, o sujeito enunciante cria objetos de sentido diferentes do que ele é fora da
linguagem. Ele projeta no enunciado um não-eu (debreagem actancial), um não-aqui (debreagem
espacial) e um não-agora (debreagem temporal), separados do /eu-aqui-agora/, que fundamentam sua
inerência a si mesmo. A debreagem é a condição primeira para que se manifeste o discurso sensato e
partilhável: ela permite estabelecer, e assim objetivar, o universo do "ele" (para a pessoa), o universo
do "lá" (para o espaço) e o universo do "então" (para o tempo). (...) Num segundo momento, a partir
do horizonte da debreagem, o sujeito enunciador pode retornar á enunciação e realizar a segunda
operação, a embreagem, que instala o discurso em primeira pessoa. Ela consiste então, para o sujeito
da fala, em enunciar as categorias dêiticas que o designam, o “eu”, o “aqui” e o “agora”: sua função é
manifestar e recobrir o “lugar imaginário da enunciação” por meio dos simulacros de presença, que
são eu, aqui e agora. (BERTRAND, 2003, P. 90-91)
260
Um pouco antes, no início desta crônica, afirma ao leitor qual é a forma certa de
iniciar uma crônica:
261
de vista deste como parcial e estabelecendo a polissemia do texto 160. Se, conforme
pontuamos anteriormente, na crônica há a sincretização entre o primeiro e o segundo
nível enunciativo, neste exemplo acontece a sincretização entre os três níveis
enunciativos, reforçando, para o leitor, o campo ilusório da conversa cotidiana. Nesta
crônica, embora o discurso embreado que permite a palavra ao açougueiro seja marcado
textualmente – interrompe-me aqui o açougueiro –, ao passar-lhe a responsabilidade de
fazer o resto da crônica, o cronista reafirma, por meio da aproximação ilusória com o
leitor, o aspecto informal deste gênero e, na medida em que a mesma não se pretende
constituir como um gênero ficcional, consegue iludir o leitor ao confundir a leitura com
uma conversa corriqueira entre cronista, leitor e açougueiro.
Tanto nesta crônica quanto na anterior, essa proximidade que ficcionaliza uma
conversa entre amigos opera-se pela enunciação do corpo presente por meio da
constituição enunciada de imagens visuais. Isto é, ao escrever sobre como se deve
iniciar uma crônica, a transposição entre o escrito e o visto opera-se de modo
interligado, constituindo a imagem visual por meio da enunciação enunciada: "Diz-se
isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a
sobrecasaca." A enunciação opera a proximidade da visão e da audição, entre o ler e o
ouvir: o leitor lê o cronista e, na medida em que o texto se quer e se afirma informal,
permite usar expressões populares de sentido próximo, como escrever e dizer. Na
medida em que o artifício da informalidade da escrita da crônica permite essa
proximidade semântica entre dois sentidos distintos – audição e visão – permite também
a complementação visual por meio da enunciação enunciada: "diz-se isto, agitando as
pontas do lenço." Com o procedimento, apaga-se a escrita na leitura, constituindo-se
como imagem visual autônoma e, portanto, englobando o leitor no campo ilusório do
texto.
Esse procedimento é perceptível também nas crônicas Comentários da Semana.
Na crônica de 1 de novembro de 1861, ao comentar a obra Ensino Praxedes e seu
método fundado na filosofia do A B C, afirma:
160 Atente-se agora para duas inversões geniais: primeira, o enunciador-narrador torna-se
repentinamente interlocutor da personagem que até então não havia tido o direito à palavra. Assim ele
deixa de ser senhor do texto, que é tomado de assalto pelo açougueiro, que se rebela contra o ponto de
vista do narrador. O cronista, reafirmando sua dupla condição de interlocutor e enunciador, se retira,
aparentemente irritado ou sem argumentos, deixando ao seu interlocutor a tarefa de concluir a crônica,
o que sugere que ele passaria à condição de narrador. (...) A intervenção do açougueira suscita duas
questões importantes: primeiro, a dificuldade ou impossibilidade de se chegar à verdade, uma vez que
só existiriam versões sobre um fato; segundo, todo discurso se constrói em oposição a outros
discursos, que acabam por constituí-lo. (CRUZ, 2002, p. 73)
263
Neste trecho, o cronista enuncia a reação do leitor por meio dos mesmos
procedimentos observados nas crônicas anteriores. Neste exemplo, o cronista rompe o
distanciamento de leitura, pressupondo a curiosidade do leitor sobre o tema tratado,
inserindo-o por meio da enunciação enunciada e tornando-o participante enunciativo do
texto. A continuidade desse campo ilusório dá-se pelo discurso indireto do outro – o
boticário – na medida em que o cronista afirma não conhecer o conteúdo da obra e,
portanto, permitindo-se fazer a referência ao discurso do outro como participante da
enunciação. Na crônica de 12 de outubro de 1861, após tratar da notícia sobre as sibilas
e o contraponto que estabelece em seus comentários com a notícia dos jornais, opera a
enunciação do movimento corporal para mudar o assunto da crônica: "Não podia
melhor encabeçar o meu escrito; mas o que é doloroso é o salto mortal que sou obrigado
a dar do prefácio às ocorrências do dia." (p. 54) Vemos aqui também o enunciador
operar a proximidade entre a escrita e a imagem constituída da movimentação corporal
no salto mortal que dá entre um tema e outro.
Essa proximidade entre cronista e leitor opera-se também por meio do uso das
categorias em primeira pessoa do plural. Isto é, na medida em que o cronista comenta
algumas matérias de jornais e a partir delas tece seus comentários, ele conjuga, por
vezes, os verbos na primeira pessoa do plural, tornando o leitor coparticipante de suas
opiniões ou enunciando a identificação entre ambos. Confirma-se essa afirmativa na
crônica de 25 de novembro de 1861, após tratar dos Anais da sessão legislativa, na qual
faz superficialmente o discurso de um membro do Senado:
Nesta crônica, por meio do travessão posto no texto, o cronista insere a opinião
do leitor sobre o senador-diretor e o discurso ao qual fez referência, interrompendo-o
em seguida, para voltar às ocorrências da semana. Na crônica de 1º de novembro de
1861, ao referir a oferta feita ao dramaturgo Pinheiro de Guimarães, autor da peça A
história de uma moça rica, embora o verbo esteja conjugado na terceira pessoa do
singular, estabelece a proximidade de opinião entre o cronista e o leitor:
opositor, estabelecendo uma disjunção entre texto e autor, mas, em seguida, por meio de
uma sutileza retórica, retoma a conjunção entre texto e autor para desferir sua crítica.
Ao citar Buffon, mostra ser improcedente a disjunção, sem, contudo, afirmá-lo. A
referência ao letrado e cientista francês opera-se como discurso de autoridade que se
contrapõe à sua disjunção e com isso cria uma equivocidade de sentido, deixando ao
leitor inferir se há ou não crítica. Para tanto, opera a citação em contexto diferente. A
referência é tirada do livro de Buffon Discurso sobre o Estilo, no qual o autor afirma:
161 SOUSA NETO, Dário Ferreira. Memórias do cotidiano e saberes sujeitados: análise das crônicas A +
B de Machado de Assis, São Paulo, FFLCH – USP, 2008 (Dissertação de Mestrado).
162 No entanto, para em grego também pode significar «ao longo de», e, portanto, existe uma
sugestão de um acordo ou intimidade, em vez de um contraste. É este segundo sentido esquecido do
prefixo que alarga o escopo pragmático da paródia de modo muito útil para as discussões das formas
de arte modernas, como veremos no capítulo seguinte. (...) A paródia é, pois, na sua irônica
«transcontextualização» e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica
entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada
pela ironia. (...) O prazer da ironia da paródia não provém do humor em particular, mas do grau de
empenhamento do leitor no «vaivém» intertextual (bouncing) para utilizar o famoso termo de E. M.
Forster, entre cumplicidade e distanciação. HUTCHEON, 1989, P. 48
269
163 As relações dialógicas - fenômeno bem mais amplo do que as relações entre as réplicas do diálogo
expresso composicionalmente - são um fenômeno quase universal, que penetra toda a linguagem
humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e
importância. Dostoiévski teve a capacidade de auscultar relações dialógicas em toda a parte, em toda a
parte, em todas as manifestações da vida humana consciente e racional; para ele, onde começa a
consciência começa o diálogo. Apenas as relações puramente mecânicas não são dialógicas, e
Dostoiévski negava-lhes categoricamente importância para a compreensão e a interpretação da vida e
dos atos do homem (sua luta contra o materialismo mecanicista, o fisiologismo em moda e Claude
Bernard, contra a teoria do meio, etc.). Por isso todas as relações entre as partes externas e internas e
os elementos do romance têm nele caráter dialógico; ele construiu o todo romanesco como um
"grande diálogo". No interior desse "grande diálogo" ecoam, iluminando-o e condensando-o, os
diálogos composicionalmente expressos das personagens; por último, o diálogo se adentra no interior,
em cada palavra do romance, tornando-o bivocal, penetrando em cada gesto, em cada movimento
mímico da face do herói, tornando-o intermitente e convulso; isto já é o "microdiálogo", que
determina as particularidades do estilo literário de Dostoievski. (BAKHTIN, 2008, p. 47)
270
165 A polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso refutável do outro, que é o seu
objeto. Já a polêmica velada está orientada para um objeto habitual, nomeando-o, representando-o,
enunciando-o, e só indiretamente ataca o discurso do outro, entrando em conflito com ele como que
no próprio objeto. Graças a isto, o discurso do outro começa a influenciar de dentro para fora o
discurso do autor. É por isto que o discurso polêmico oculto é bivocal, embora, neste caso, seja
especial a relação recíproca entre as duas vozes. p. 170
166 O plurilingüismo introduzido no romance (quaisquer que sejam as formas de sua introdução) é o
discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções do
autor. A palavra desse discurso é uma palavra bivocal especial. Ela serve simultaneamente a dois
locutores e exprime ao mesmo tempo duas intenções diferentes: a intenção direta da personagem que
fala e a intenção refrangida do autor”. BAKHTIN, 2010, P. 127
167 Enfim, as advertências presentes nos romances de Machado - e agora se percebe o quanto fazem
jus ao nome - parecem compor com as narrativas uma harmonia admirável, e apontar para um único
sujeito da enunciação, um único éthos. Além de confirmar sua dissimulação, a análise dos vários
níveis enunciativos caracteriza o enunciador como adepto da polêmica, pois sempre a instala de forma
mais ou menos sutil. As advertências revelam que esse enunciador, em vez de optar por uma versão
única dos fatos, prefere debate, o confronto de opiniões, e, assim, deixa que seus narradores
apresentem livremente seu ponto de vista sobre o mundo, o qual constitui a palavra do herói, como
diria Bakhtin. D. F. da Cruz p. 327-328
Surge assim um enunciador contestador que instaura o debate bem nos termos propostos por Bakhtin
(1981), pois, como ocorre com as polêmicas veladas, o discurso do narrador primeiro é construído de
maneira que, além de resguardar seu próprio sentido objetivo, ele possa atacar polemicamente o
discurso do outro (o narrador) sobre o mesmo assunto e afirmação do outro sobre o mesmo objeto
(Bakhtin, op. cit., 169). ( p. 395)
272
O Sr. Jq. Sr. diz que, para o cego de nascença a vida começa
sem a aniquilação da melhor parte da vida – a vista – e que
portanto o cego por acidente, sofrendo essa aniquilação, é o
mais digno de lástima. A conseqüência é errada, e está
diametralmente oposta à única conclusão possível do princípio
estabelecido. É pela razão mesma de que o cego de nascença
não sofre a aniquilação da vista, que é o mais desgraçado. Ao
nascer ele esbarra com a noite que o deve cercar durante a sua
vida; esbarra com esse caos para que nunca há de soar um Fiat.
Como não ser desgraçado? Sem tero gozo do cego por desgraça,
que vê em parte pelos olhos do espírito, ele não pode fazer uma
ideia exata dos objetos que lhe apresentais; e conseguintemente
não pode compreender-vos, – gozar um pouco do que gozais –
pelo exercício dos outros sentidos ou faculdades. (ASSIS,
ANEXO 3)168
Nessa polêmica com Jq. Sr., o autor explicita seu posicionamento, refutando o
de seu adversário. Como polêmica aberta a refutação é direta e explícita de modo que se
evidencia qual seja o posicionamento do autor. Procedimento semelhante se dá na
crônica de 16 de dezembro de 1861 da série Comentários da Semana, na qual o cronista
faz referência ao texto de Macedo de Soares publicado no jornal Correio Mercantil,
168 Cabe relembrar que esses textos foram tirados do livro Dispersos de Machado de Assis organizados
por Jean-Michel Massa, mas, para facilitar a leitura, os incluímos nos anexos desta tese.
273
cujo posicionamento tenta provar que o não escapa à lei econômica e que, portanto,
deve ser regido pelas corporações industriais. Tomando posicionamento contrário, o
cronista estabelece seu discurso polêmico evidenciando o posicionamento:
M. S.169
169 Adequamos o texto às normas gramaticais atuais, mas para que se possa verificar não apenas o
conteúdo, mas à forma da escrita, disponibilizamos a imagem da matéria. Também transcrevemos
apenas alguns trechos relacionados à discussão com a crônica machadiana.
275
A crítica feita por Machado de Assis, provoca Macedo Soares, três dias depois,
em 19 de dezembro de 1861, a publicar uma réplica na qual volta a reafirmar os riscos
da intervenção do Estado no teatro, bem como prejuízo da censura que era então
praticada. Curiosamente, seu texto se inicia a partir da mesma base intertextual com o
qual Machado de Assis encerrou sua crônica, isto é, pela referência intertextual a Victor
Hugo. Macedo de Soares inicia relatando a discussão sobre a mesma situação na França
em que o ministro do interior Dufaure, em 1849, também montou uma comissão
composta por diversos nomes importantes da literatura como Theophilo Gautier, Victor
Hugo, Alexandre Dumas, Rolle, Régnier, Prevost, Hostein, entre outros, dos quais,
apenas Hostein defendeu a concorrência livre, de onde Macedo Soares retirou seus
argumentos e, a manutenção de medidas restritivas teve efeitos negativos no teatro
francês.
ideias de outros: somente assim poderão ter objetividade social e gerar novas ideias. O
cronista confirma essa compreensão da existência social das ideias na crônica de 4 de
agosto de 1878, ao definir a sua função como cronista:
171 Compreende-se que a enunciação individual não pode ser vista como independente do imenso
corpo das enunciações coletivas que a precederam e que a tornam possível. A sedimentação das
estruturas significantes, resultante da 'história, determina todo ato de linguagem. Há sentido "já-dado",
depositado na memória cultural, arquivado na língua e nas significações lexicais, fixado nos esquemas
discursivos, controlado pelas codificações dos gêneros e das – formas de expressão que o enunciador,
no momento do exercício individual da fala, convoca, atualiza, reitera, repete ou, ao contrário, revoga,
recusa, renova e transforma BERTRAND, D. 2003, P. 87
282
173 “(...) todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de
um outro texto. Em lugar da noção da intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade, e a
linguagem poética lê-se pelo menos como dupla. Assim, o estatuto da palavra como unidade minimal
do texto revela-se como o mediador que liga o modelo estrutural ao ambiente cultural (histórico),
assim como o regulador da mutação da diacronia em sincronia (em estrutura literária)”. KRISTEVA,
2005, P. 68
174 Na versão de Ducrot, "o locutor polifônico" vê reconhecida a si certa atividade, a de um
"encenador" que pode escolher suas identificações. Com relação a essa concepção, a noção de
intertextualidade abaixa o papel do locutor, que passa a ser apenas uma instância de reformulação de
discursos já ocorridos alhures, que o dizem mais do que ele os diz. No caso da argumentação, a noção
de roteiro argumentativo (cf. infra, § 8) permite levar especificamente em conta essas relações de
intertextualidade (PLANTIN, 2008, p. 66).
284
175 É nesse ponto da fuga ativa que a máquina revolucionária, a máquina artística, a máquina
científica, a máquina (esquizo)analítica devêm peças e pedaços umas das outras. (DELEUZE E
GUATTARI, 2010, p. 426)
176 O cronista do passado quer simplesmente “pondo em crônica”, isto é, organizando
cronologicamente histórias existentes, quer oferecendo com arte seu enfoque dos fatos – Fernão Lopes
– tem a responsabilidade de escrever para ficar, a responsabilidade de fixar aquilo que, um dia, foi
presente. O cronista moderno, cronista de jornal, possui uma responsabilidade bem mais leve, mas,
apenas quanto à necessidade de permanecer, de guardar o fato ou a notícia que lhe serve de base. Pode
voltar, sem cerimônia, as costas parta a notícia, pois não vai informar”. LOPEZ, Telê Porto Ancona. A
crônica de Mário de Andrade: impressões que historiam. Org. Antonio Candido. Campinas: Editora da
Unicamp, 1992. P. 165-166
285
Esse ponto de vista marcado no texto pelo pronome “eu” – calou-me profunda
mágoa no coração – estabelece a tensão com um “ele” – Há dias falou a imprensa –, na
qual pressupõe um eco latente do “eu” com uma segunda pessoa, isto é, com o
destinatário a quem se dirige, o qual se interpõe na tensão como outro sujeito cujo
resultado dá-se na movimentação de perspectiva nas crônicas. Na medida em que
consideramos as “instâncias do fato literário” em que encontramos o contexto, o autor, o
texto e o leitor e, como afirma Zumthor, que esse texto só existe na medida em que há
leitores, entendendo o leitor como operador da ação de ler, podemos considerar a
constituição da crônica como o ato de leitura operado pelo cronista, criando um campo
virtual de ilusão para seu leitor entender seus textos como conversa que se trava em
qualquer lugar e não como simples ato decodificador. Em outras palavras, na medida
em que o cronista opera elementos técnico-estéticos em seu texto como ato de leitura
que faz do contexto, cujo espaço compartilha com seu leitor, ele cria um campo ilusório
por meio do que Mikel Dufrenne, citado por Zumthor, define como virtual, isto é, a
acumulação memorial marcada no corpo como imaginário imanente daquilo que é
percebido.
Conforme pontua, o pressentido não é necessariamente uma imagem, mas tem
possibilidade de produzir imagem. Essa percepção não opera somente no corpo
individual, mas a individualidade da percepção aloca o “eu” em seu grupo determinado
com o qual compartilha grande parte desse imaginário imanente. Desse modo, ao operar
alguns elementos técnico-estéticos em seus textos, o cronista o faz considerando esse
imaginário o qual sabe compartilhar com seu leitor e, portanto, identificando-se com
ele, algumas vezes, até confundir propositalmente sua opinião com a do leitor.
Na crônica de 26 de outubro de 1861 da série Comentários da Semana, ao tratar
da polêmica entre Joaquim Manuel de Macedo com o Jornal do Commercio, por conta
de o Jornal ter atribuído ao escritor trechos que não eram de sua autoria, o cronista tece
o seguinte comentário: "Sem descer à refutação desta censura, porque fora duvidar da
sensatez do leitor, que sem dúvida se riu dela (...)." (ASSIS, 2008d, p. 71) O cronista,
conhecedor do autor a quem se atribuía a autoria do texto, sabe bem que Macedo jamais
poderia escrever amenidades contra jovens escritores, conforme quis o Jornal do
289
Commércio fazer acreditar; também sabe do respeito que esse autor compartilhava com
os leitores da Corte e, portanto, confunde sua opinião com a do seu leitor, ao dizer que
este se rira da mentira daquele jornal. Na crônica de 1º de novembro de 1861, ao tratar
da exposição da nova obra Ensino Praxedes e a filosofia do A B C, diz: "Ouço já o meu
sôfrego leitor perguntar-me o que é a filosofia do A B C" (p. 79). O cronista atribui
textualmente a pergunta a seu leitor, pressupondo sua curiosidade sobre o tema e
permitindo-se antecipá-lo e atribuindo a ele seu pressuposto. Com isso inventa o campo
ilusório que lhe permite inserir o seu leitor no texto, como se o mesmo tomasse a
palavra do cronista e determinasse um diálogo entre eles. Tal constituição textual reduz
a força do texto como escritura que se distancia do leitor e o corporifica como voz
presente ao leitor.
Paul Ricoeur chama a atenção para a necessidade de o texto compartilhar com o
leitor um repertório do familiar177. Aristóteles diz que o orador, o poeta e o historiador
falam e escrevem de modo verossímil, imitando os endoxa, as boas opiniões dos sábios
ou da maioria deles, que são tidas por verdadeiras. O familiar de que fala Ricoeur é
repetido na diferença verossímil. A escritura tem a coerência estrutural determinada
pelo seu gênero, do conhecimento comum do tema a ser tratado e da situação em que o
texto se produz para poder estabelecer o que o filósofo francês chama de estratégias de
desfamiliarização das normas que a leitura possa reconhecer. Porque é texto
jornalístico, a crônica tem como pressuposto tratar de temas noticiados nos jornais.
Desde que os assuntos da crônica sejam localizáveis no texto do jornal, para o leitor não
importa necessariamente a ordem. No jornal, as matérias são justapostas e, na maioria
das vezes, não relacionadas, por isso tal veículo constrói-se para a leitura muito mais
como ordenação espacial do que temporal. Desse modo, as interrelações operadas pelo
cronista mantêm-se como repertório familiar desde que parte considerável de seus
temas seja reconhecida pelo leitor.
O cronista opera seu texto a partir desse pressuposto, como podemos ver na
crônica de 18 de agosto de 1878, na qual, ao tratar do processo de revolução na
Argentina, faz o seguinte comentário: "Sabe o leitor, se leu os jornais, que a província
argentina de Corrientes fez uma revolução e aclamou um governador provisório, o
cidadão Pampin." (ASSIS, 2008e, p. 216). Ao partir desse repertório familiar em que
177 Só atinge seu leitor se, por um lado, compartilhar com ele um repertório familiar, quanto ao gênero
literário, ao tema, ao contexto social, ou mesmo histórico; e se, por outro, praticar uma estratégia de
desfamiliarização com relação a todas as normas que a leitura crê poder facilmente reconhecer e
adotar. (RICOEUR, v. 3, p. 290)
290
autor e leitor estão a par das tensões políticas na Argentina, o comentarista pode fazer a
exigência de que seu leitor só poderá entender seu comentário se de fato tiver lido a
matéria sobre o assunto. Com isso, o cronista opera o que Ricoeur chama de leitor
implicado, isto é, o papel atribuído ao leitor real pelas instruções do texto178. Esse leitor
é determinado tanto pelo gênero – no caso da crônica, o leitor real implicado no texto é
o leitor de jornais – como pelo contexto social. No caso das crônicas "Comentários da
Semana", "O Futuro", "Ao Acaso", "História de Quinze Dias", "História de Trinta Dias"
e "Notas Semanais", o leitor identifica-se ideologicamente com os jornais em que essas
crônicas são publicadas, de vertente politicamente liberal. Portanto, como observa
Olivier Reboul, o seu leitor – o auditório179 – não é um leitor universal e, por isso, pode
ser implicado no texto. Logo, sabendo quem é seu leitor e por compartilhar com ele
posicionamentos ideológicos semelhantes, pode operar estratégias de desfamiliarização
por meio de diferentes procedimentos composicionais, como as metáforas, os enigmas,
os ritmos, a polissemia, o dialogismo, a alegoria e mesmo as narrativas fantásticas que
provocam o deslocamento da perspectiva do leitor. Esses recursos composicionais
contribuem também para prender a atenção do leitor e combater tanto o esquecimento,
quanto a desatenção180 - no caso do texto escrito, provocam o interesse.
Conforme observação de Ricoeur, o texto é um conjunto de instruções
executadas pelo leitor de modo passivo ou criativo. Logo, o texto se completa na
interação com seu leitor. Porém, essa leitura não é subjetiva e independente do autor. Há
o que o crítico francês denomina como estratégias de persuasão181. Citando Wayne
178 À primeira , vista, parece se estabelecer uma simetria entre autor implicado e leitor implicado, cada
um deles, com suas marcas no texto. Por leitor implicado, deve-se então entender o papel atribuído ao
leitor real pelas instruções do texto. Autor implicado e leitor implicado tornam-se assim categorias
literárias compatíveis com a autonomia semântica do texto. Construídos no texto, ambos são
correlatos ficcionalizados de seres reais: o autor implicado se identifica com o estilo singular da obra,
o leitor implicado com o destinatário a que se dirige o destinador da obra. (291-292)
179 Sempre se argumenta diante de alguém. Esse alguém, que pode ser um indivíduo ou um grupo ou
uma multidão, chama-se auditório, termo que se aplica até aos leitores. Um auditório é, por definição
particular, diferente de outros auditórios. Primeiro pela competência, depois pelas crenças e
finalmente pelas emoções. Em outras palavras, sempre há um ponto de vista, com tudo o que esse
termo comporta de relativo, limitado, parcial. REBOUL, O., 2000, P. 92-93
180 Uma argumentação oral deve combater dois inimigos mortais: desatenção e esquecimento; e só
pode fazer isso por meio de procedimentos oratórios. As chamadas culturas "orais" confirmarn isso; é
certo que argumentam e ensinam, mas por repetições, aliterações, ritmos, metáforas, alegorias,
enigmas, que desenvolvem a função poética em detrimento da função crítica, como se observa ainda
em nossos provérbios. REBOUL, O., 2000, P. 95
181 Com efeito, é do autor que parte a estratégia de persuasão que tem o leitor como alvo. É a essa
estratégia de persuasão que o leitor responde acompanhando a configuração e se apropriando da
proposição de mundo do texto. RICOUER, P., 2010, V. 3, P. 270
291
Booth, ao tratar da literatura moderna, observa que essa literatura, considerada por
Booth e outros críticos como literatura venenosa, exige um leitor que responda (p. 278-
279). Embora identificando esse tipo de leitor como produzido pela literatura moderna,
vemos com Reboul que a Retórica aristotélica já presumia esse jogo interpretativo entre
texto e leitor ativo. É próprio de todo texto dialógico estabelecer a réplica do diálogo
como ativa compreensão responsiva (BAKHTIN, 2006, 279) e, portanto, estar disposta
à resposta do leitor, pois, como afirma o crítico russo, a obra é um elo na cadeia da
comunicação discursiva.
Uma das características determinantes na retórica para que o orador possa
inspirar em seu auditório confiança é o ethos: o comentarista deve ser sensato, sincero e
simpático182. Na definição de Maingueneau, o enunciador deve legitimar seu dizer, isto
é, em seu discurso ele se atribui uma posição institucional e marca a sua relação com
um saber. No entanto, ele não se manifesta somente como um papel e um estatuto, pois
também se deixa apreender como uma voz e um corpo. O ethos se traduz também na
elocução, que se relaciona tanto ao escrito quanto ao falado, e que se apoia em uma
"dupla figura do enunciador, aquela de um caráter e de uma corporeidade"
(MAINGUENEAU, 1984, p. 100) No início das crônicas Notas Semanais, o
comentarista opera o exórdio da primeira crônica como forma de angariar a
benevolência do leitor:
182 Mas, em todo caso, ele deve preencher as condições mínimas de credibilidade, mostrar-se sensato,
sincero e simpático. Sensato: capaz de dar conselhos razoáveis e pertinentes. Sincero: não dissimular o
que pensa nem o que sabe. Simpático: disposto a ajudar seu auditório (cf. 11,1,1377 b e também 1366
a). (REBOUL, 2000, p. 48).
292
– o ele – SIC e o tu – o leitor. Nessa distinção, pode tornar manifestos tanto sua voz
quanto seu corpo mimetizado.
Para proceder a persuasão, conforme definição de Reboul, o comentarista pode
operar dois tipos de estruturas argumentativas: os exemplos, que partem do particular
para o geral e, portanto, se constituem como procedimento indutivo, e o silogismo, que
parte do geral para o particular e, portanto, opera como procedimento dedutivo. Na
crônica de 25 de agosto de 1878 da série Notas Semanais, ao falar sobre o caso do atleta
Bataglia que, após desafiar um adversário, oferecendo uma grossa quantia a quem o
derrubasse, comenta sua queda alguns minutos depois e o modo como o atleta tenta se
justificar:
183 A palavra entimema, emprestada do grego, pertence à teoria da argumentação retórica e é empregada
em dois sentidos diferentes para designar duas formas particulares de discursos silogísticos. Por um
lado, o entimema é definidocomo um silogismo fundado sobre premissas não seguras, mas somente
prováveis: “As mães comumente amam seus filhos, Maria é a mãe de Paula, então, Maria ama Paula”.
Na sistemática aristotélica, em que se considera que as exigências do discurso retórico são
293
incompatíveis com o exercício da inferência científica, essa última é substituída pela inferência
retórica. À dedução silogística corresponde o entimema, e à indução, o exemplo. Em um outro
sentido, que não é aristotélico, o entimema foi definido como um silogismo em que é omitida uma
premissa (“Os homens são falíveis, e você é um homem!”). O entimema como silogismo truncado
conviria à retórica, uma vez que seria menos pedante que o silogismo completo. Sua utilização supõe
que a premissa omitida seja facilmente recuperada. Outra razão é igualmente proposta: o entimema
seria utilizado porque o auditório ordinário é composto por espíritos frágeis, incapazes de acompanhar
um encadeamento silogístico em todo seu rigo. Essa segunda justificativa supõe que a premissa
omitida é muito difícil de ser recuperada. Vê-se que essas duas justificativas são
incompatíveis.CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2008, p. 192-193
184 O silogismo utilizado pela argumentação cotidiana chama-se entimema; emprega-se esse termo
para distingui-lo do silogismo demonstrativo. As premissas do entimema não são proposições
evidentes, mas nem por isso são arbitrárias; elas são endoxa, proposições geralmente admitidas,
portanto verossímeis. (REBOUL, 2000, p. 155)
294
silogismo opera-se de modo truncado em que se têm as premissas explícitas – "o jejum
é o estado de graça espiritual e a justiça é feita por seres inteligíveis" – e as premissas
implícitas – "o jejum torna os seres inteligíveis" – a conclusão, portanto, também
implícita, é que os membros do júri devem dedicar-se ao jejum para fazer um bom
julgamento. Em ambas as formas de argumentos feitas pelo cronista, o sentido é levado
à forma do absurdo. No primeiro caso – o exemplo – o absurdo é operado por meio da
antanáclase, isto é, o escorregão do atleta aparece em sentido literal, enquanto que o
escorregão de Helena e de Eva aparece em sentido figurado. No segundo caso – o
silogismo – opera a partir da premissa cristã em que o jejum é o modo de operar a
espiritualidade e alcançar o divino e, portanto, nada mais justo do que a justiça divina.
Desse modo, o leitor é convocado ativamente à interpretação desses procedimentos
irônicos sem a qual poderá cair na armadilha da literalidade e tornar-se alvo da ironia do
cronista.
Outra forma de operação retórica em seus textos como método persuasivo são os
dois tipos de provas definidos por Reboul como atekhnai – as provas extrínsecas,
atécnicas, que são constituídas por testemunhas, confissões, leis, contratos, etc.; e as
entekhnai – provas intrínsecas, inventadas pelo orador e, portanto, dependentes de seu
método e de seu talento pessoal. A intertextualidade pode ser considerada como prova
extrínseca, na medida em que o comentarista invoca outros textos que não fazem parte
da matéria jornalística em análise para confirmá-la ou refutá-la. No caso das provas
intrínsecas, podemos considerar as narrativas alegóricas ou fantásticas em que, ao se
deparar com uma determinada notícia, na maioria das vezes, o comentarista a refuta
levando seu sentido ao absurdo. Novamente, é a leitura ativa do leitor que permite a
compreensão crítica feita pelo comentarista. Na crônica de 23 de junho de 1878, o
cronista comenta a notícia publicada em O Cruzeiro a respeito do fenômeno Sr. Watson,
grande celebridade na arte de natação e, por isso, alcunhado de homem-peixe. Ele veio
de navio para o Rio de Janeiro e o comentarista literaliza a alcunha, desacreditando-o
por meio da intertextualidade:
A referência ao texto bíblico do livro de Jonas que, por não querer profetizar ao
povo de Nínive, foi obrigado a viajar no ventre de um grande peixe; a citação de um
provérbio que, segundo Caldas Aulete, significa ter modos descomedidos e insolentes,
orgulhoso e enfatuado, com soberba e a referência à fábula de La Fontaine, O morcego
e as duas doninhas, em que o morcego, para livrar-se de ser devorado por doninhas, usa
sua dupla condição de rato voador servem como provas para refutar a credibilidade do
homem-peixe que, por vir de navio e não a nado pelo oceano, coloca em dúvida sua
qualidade de grande nadador. Em crônica de 21 de julho de 1878, ao escrever sobre
diversos casos de desaparecimento de dinheiro dos cofres públicos, trata de um caso em
específico de Juiz de Fora. Conforme nota de Rodapé feito por Granja e Gledson, a
matéria do Jornal do Commércio de 20 de julho trazia a seguinte informação:
185 Trecho do jornal tirado da nota de rodapé nº 16 feita por Lúcia Granja e John Gledson em ASSIS,
2008, p. 176.
296
186 A linha que pretendo seguir é esta: a Poética não fala de estrutura, mas de estruturação; ora, a
estruturação é uma atividade orientada que só termina no espectador ou no leitor. Desde o começo, o
termo poiésis imprime a marca de seu dinamismo a todos os conceitos da Poética e faz deles
conceitos de operação: a mímesis é uma atividade representativa, a sýstasis (ou sýnthesis) é a operação
de dispor os fatos em sistema e não o sistema em si mesmo. Além disso, o dinamismo (dýnamis) da
poíesis é visado desde as primeiras linhas da Poética como exigência de remate perfeito (47 a 8-10); é
ele que pede, no capítulo VI, que a ação seja levada a termo (téleios). É certo que esse remate perfeito
é o da obra, de seu mythos. só é comprovado, porém, pelo "prazer próprio" (53 b 11) à tragédia, que
Aristóteles denomina seu érgon (52 b 30), seu "efeito próprio".(RICOEUR, 2010, v. 1, p. 86)
297
187 Essas isotopias, no caso, de ordem figurativa, estabelecem um primeiro nível de leitura. Elas dizem
respeito à espacialização (“muralha”, “janela”, “barras”, “lençóis”, “bosques”, “árvores”: podemos
notar as duas isotopias sucessivas, da verticalidade e da horizontalidade), à temporalização (“a “noite”
no plano da temporalidade enunciada, mas também o “agora” que, relacionado à enunciação, marca,
ao mesmo tempo, a sucessividade dos atos e o encadeamento das orações) e à actorialização
(“homem”). As isotopias, com seus elos anafóricos, garantem a continuidade da leitura do sentido.
(BERTRAND, 2003, p. 38).
298
dando sentido ao sentido, também efetuando o que Roland Barthes define como “o
prazer do texto”188.
A teoria do desvio apresentada por Reboul considera a figura como dupla
operação, evidenciando a construção de sentido conjunta entre autor e leitor: o cronista
constrói o enunciado operando o desvio, o leitor o descodifica retornando-o à norma,
permitindo a ficcionalidade do discurso como operação positiva que implica a condição
do enunciado figurado dizer mais do que o determinado pelo uso corrente. Nessa
operação, o leitor é posto diante das lacunas do texto que, para Ingarden, citado por
Ricoeur, fazem com que o texto seja inacabado uma primeira vez. A atividade de
construção de sentido convoca o leitor para concretizar a atividade imagética nesses
lugares de indeterminação que tornam o texto suscetível de diferentes execuções189.
Essas zonas de indeterminação desafiam a capacidade do leitor em configurar ele
mesmo a obra que o autor desfigurou, tornando-se o que Ricoeur define como drama de
concordância-discordante uma vez que essas zonas de indeterminação decorrem de
procedimentos retóricos incorporados ao próprio texto. Esses procedimentos retóricos
permitem o movimento entre o repertório do familiar e as estratégias de
desfamiliarização em que o leitor, convocado a atuar sobre o sentido do texto e,
portanto, colocado em pé de igualdade com a obra, acaba sendo envolvido pelos efeitos
de ilusão no sentido de acreditar-ver. Diferentemente do leitor que se envolve nas
malhas ilusionistas da narrativa, o leitor crítico é aquele em que a "ilusão se torna
alternadamente irresistível e insustentável" (RICOEUR, 2010, v. 3, p. 290).
Tais procedimentos retóricos nos colocam diante da questão a ser tratada
posteriormente sobre a diferença intencional de composição entre os cronistas aqui
colocados em análise e os narradores dos romances machadianos. Ricoeur chama a
188 Mas se creio, ao contrário, que o prazer e a fruição são forças paralelas, que elas não podem
encontrar-se e que entre elas há mais do que um combate: uma incomunicação, então me cumpre na
verdade pensar que a história, nossa história, não é pacífica, nem mesmo pode ser inteligente, que o
texto de fruição surge sempre aí à maneira de um escândalo (de uma claudicação), que ele é sempre o
traço de um corte, de uma afirmação (e não de um florescimento) e que o sujeito dessa história (esse
sujeito histórico que eu sou entre outros), longe de poder acalmar-se levando em conjunto o gosto
pelas obras passadas e a defesa das obras modernas num belo movimento dialético de síntese, nunca é
mais do que uma contradição viva : um sujeito clivado, que frui ao mesmo tempo, através do texto, da
consistência de seu ego e de sua queda. (BARTHES, 2010, p. 28)
189 Para Ingarden, um texto é inacabado uma primeira vez no sentido de que oferece diferentes
“visões esquemáticas” que o leitor é chamado a “concretizar”; por esse termo, deve-se entender a
atividade imagética mediante a qual o leitor se esforça para figurar para si os personagens e os
acontecimentos narrados pelo texto; é com relação a essa concretização imagética que a obra
apresenta lacunas “lugares de indeterminação”; por mais articuladas que sejam as “visões
esquemáticas” disponíveis para execução, o texto é como uma partitura musical, suscetível de
diferentes execuções. (RICOUER, P., 2010, V. 3, P. 286-287)
299
atenção para a definição do narrador não digno de confiança, uma vez que sua
constituição na narrativa torna-se uma peça da estratégia de ruptura que a formação de
ilusão exige na qualidade de antídoto. "Essa estratégia é uma das mais aptas para
estimular uma leitura ativa, uma leitura que permite dizer que algo acontece; esse jogo
em que o que se ganha é proporcional ao que se perde". (Idem, ibid.)
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A Pena do Cronista:
v. 2
São Paulo
2015
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A Pena do Cronista:
v. 2
São Paulo
2015
302
SUMÁRIO
VOLUME 1
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 16
VOLUME 2
TERCEIRA PARTE:
PRODUÇÃO DISCURSIVA,
VERDADE
E RELAÇÕES DE PODER
190 Já que a enunciação é considerada como um ato entre outros, porque como todo ato é orientada,
voltada para um objetivo e uma “visão de mundo”, ela pode ser considerada como um enunciado cuja
função é a “intencionalidade”. Essa intencionalidade se deduz da realização do ato de fala, assim
como a intencionalidade de uma personagem da narrativa se lê, posteriormente, seguindo de trás pra
frente as transformações dos estados de coisas que ela provocou. (BERTRAND, 2003, p. 96-97)
191 É verdade que as mudanças de sentido são, enquanto tais, inovações, isto é, fenômenos de fala, e
muito freqüentemente essas inovações são individuais, e mesmo intencionais: à diferença das
mudanças fonéticas, geralmente pouco conscientes, "as modificações semânticas são muitas vezes a
obra de uma intenção criadora" (p. 238). P. 181 (RICOEUR, 2005 p. 238) Cabe aqui observar que,
conforme pode-se verificar nos capítulos seguintes, faremos uso de diversos termos técnicos
desenvolvidos, analisados ou apropriados de outros autores por Paul Ricoeur. Contudo, devido às
escolhas hermenêuticas e conceituais desenvolvidas por Ricoeur, as quais se distanciam e muitas
vezes se contradizem aos conceitos de Michel Foucault e Deleuze e Guattari, nos limitaremos apenas
aos termos de forma metodológica, mas não conceitual e, à medida em que se evidenciar contradições
com estes outros autores, faremos as devidas adequações com base em suas teorias. Nesse sentido,
embora Ricoeur fale em intenção criadora, optamos pela readequação ao termo intenção inventiva,
pois como observa Deleuze e Guattari o conceito de criação é transhistórico e remete sempre a uma
origem, negando o devir das máquinas desejantes e remetendo-se a uma unidade principal como
origem de toda imitação: "As criações são como linhas abstratas mutantes que se livraram da
incumbência de representar um mundo, precisamente porque elas agenciam um novo tipo de realidade
que a história só pode recuperar ou recolocar nos sistemas pontuais". (DELEUZE & GUATTARI,
2012, volume 4, p. 100). Desse modo, propomos o entendimento da intencionalidade como inventiva
como forma de agenciar o processo da enunciação definido por Deleuze e Guattari como estilo não
como uma criação psicológica individual, mas como um agenciamento de enunciação (volume 2, p.
89)
306
192 Diferentemente do narrador digno de confiança, que assegura a seu leitor que ele não
empreenderá a viagem da leitura com esperanças vãs e falsas crenças no que concerne não só aos fatos
relatados; mas às avaliações explícitas ou implícitas dos personagens, o narrador indigno de confiança
bagunça essas expectativas' deixando o leitor na incerteza quanto a saber aonde ele quer finalmente
chegar. Assim, o romance moderno exercerá tanto melhor sua função de crítica da moral
convencional, eventualmente sua função de provocação e de insulto, quanto mais o narrador for
suspeito e o autor apagado, esses dois recursos da retórica de dissimulação reforçando-se mutuamente.
(RICOEUR, 2010, p. 278)
307
Paul Ricoeur e essa discussão da crítica machadiana, abordaremos com base no conto
“Pílades e Orestes” de Machado de Assis, tal problemática neste capítulo.
Roberto Schwarz, em sua obra Machado de Assis: um mestre na Periferia do
Capitalismo, com base na afirmativa de Augusto Meyer sobre a forma de procedimento
narrativo em Memórias Póstumas de Brás Cubas, define o autor defunto como
narrador volúvel:
193 A referência repetida à obra de Roberto Schwarz leva-me a um último ponto, que é o da relação deste
livro com a tradição crítica machadiana. Para mim, é claro que tal tradição evoluiu muito nos últimos
anos, sobretudo devido aos trabalhos de Schwarz, que, por razões compreensíveis, o presente livro
trata só de passagem, apesar de os considerar ‘extremamente interessantes, embora numa direcção
diferente da que aqui se segue’. (p. 202) Uma das virtudes desta nova linha, quer seja minha; de
Schwarz ou de Raymundo Faoro, é que mostra (em contraste com a crítica mais tradicional, a qual
Barros Baptista ataca, com toda razão) um Machado coerente, consciente, construtor de projeto
artístico, em consonância com o seu tempo, o seu país, e (principalmente no caso de Schwarz)
também com as exigências da arte. Seria sobremaneira interessante – e espero tal não pareça
pretensioso – que Abel Barros Baptista se definisse em relação também ao nosso, ou aos nosso,
308
1906. Posto não ser o mais famoso dos contos dessa obra da qual faz parte o conto Pai
contra Mãe, traz tanto no texto quanto na sua recepção algumas questões intrigantes,
que certamente contribuirão para perceber esses procedimentos.
A história de Quintanilha e Gonçalves, dois advogados do Império, não passa
despercebida ao leitor do século XXI, na medida em que, no desenvolver da narrativa,
tende a provocar uma pergunta nova sobre a temática abordada: teria o autor carioca
tratado de uma relação homossexual ou se trataria apenas de relações interesseiras de
amizade?
Em um ensaio publicado na internet, com o título “Entre Bento e Flora: A muda
cautela de Quintanilha em “Pílades e Orestes”, André Luiz Barros da Silva analisa o
conto em diálogo com o romance Esaú e Jacó, a partir do triângulo amoroso entre
Quintanilha, Gonçalves e Camila e Pedro, Paulo e Flora, respectivamente. A abordagem
central do texto dá-se em torno do dizer calado194, que determina a relação entre as
personagens masculinas, bem como marca o desenvolvimento da narrativa. A referência
a um possível relacionamento afetivo e sexual entre as duas personagens é dada como
refutação de exageros de carinhos por parte de Quintanilha195.
No XI Congresso Internacional da ABRALIC, em 2008, Edilson Santos
apresentou um ensaio sobre o conto com o título “O clássico na tessitura de Pílades e
Orestes de Machado de Assis: uma breve leitura”, cujo ponto principal é compreender
as relações intertextuais, com base nas teorias de Julia Kristeva, entre o conto
194 O termo é tirado da seguinte passagem do Memorial de Aires: “Não falamos de coisas velhas,
nem de coisas novas, mas só das futuras. No fim da noite adverti que falávamos todos, menos o casal
recente; esse, depois de algumas palavras mal atadas, entrou a dizer de si mesmo, um dizer calado,
espraiado e fundido”. A cena magistral traduz a contenção dos dois recém-casados que já decidiram ir
viver em Portugal mas não podem ou não querem revelá-lo. (ASSIS, 1975 [1908], p. 213).
195 Em “Pílades e Orestes”, a aparente simetria entre os amigos acaba se mostrando uma dessimetria
pronunciada, pendendo para o lado de Gonçalves. Arrisquemos uma comparação: o sutil olhar do
narrador do conto corresponderia ao do Conselheiro, narrador dos dois romances subseqüentes de
Machado, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Como o Conselheiro, o narrador do conto vai captando
mudanças quase imperceptíveis nas brechas do cotidiano dos personagens ao redor, como um “oráculo
em tempo real”, que acompanhasse as minúcias dos acontecimentos individuais e coletivos, amorosos
e políticos. Se no romance o narrador se centrará, primeiro, nos irmãos e, em seguida, em Flora, no
conto ele se concentra exclusivamente nas “cautelas e pensamentos” de Quintanilha, que acaba
exagerando nos “carinhos” para com o outro – a ponto de levantar suspeitas de homossexualidade: “A
união dos dous era tal que uma senhora chamava-lhes os ‘casadinhos de fresco’, e um letrado, Pílades
e Orestes” (ASSIS, 1997 [1903], p. 125). O que vai ficando claro é que Quintanilha se anula diante de
Gonçalves – da mesma forma que Pílades foi sempre conhecido como o amigo mudo de Orestes na
Electra de Sófocles. “Cautelas e pensamentos”, em seu caso, significam um zelo desproporcional, que
trai sua infelicidade individual, posto que o indivíduo nele parece querer se anular. Em outras
palavras, é Quintanilha e sua subjetividade o eixo da narrativa; e ela se define por uma carinhosa
submissão ao amigo, que ele não percebe e de que o leitor só vai se inteirando aos poucos. (SILVA, s.
d., p. 3)
310
196 No mesmo ano de publicação do seu artigo sobre o conto, Maciel publicou na Revista Terra Roxa
e outras terras, um ensaio com o título Momentos do Homoerotismo. A atualidade: homocultura e
escrita pós-identitária, cujo texto apresenta alguns momentos do homoerotismo na Literatura
Brasileira, com intuito de desenhar um percurso relevante nas representações da temática que vai
desde a desqualificação e ao silenciamento até o reconhecimento do caráter fluido das posições de
identidade.
197 A obra de arte se diferencia destes dois tipos de objetos à medida que não é nem universalmente
determinada, nem possuidora de autonomia, mas sim um objeto intencional. Aos objetos intecionais
falta a determinação total, pois as sentenças no texto funcionam como linha de orientação que levam
a uma produção esquemática (schematisches Gebilde), por Ingarden descrita como a objetividade
representada da obra de arte. (ISER, 2001, p. 92)
313
A interação diádica entre diferentes locutores esboçada por Iser com base na teoria da
interação da psicologia social difere do ato da leitura, pois a relação entre o texto e o
leitor não permite as réplicas próprias das interações face-a-face e o leitor "nunca
retirará do texto a certeza explícita de que a sua compreensão é justa" (ISER, 2001, p.
87). Diferentemente do conceito de intencionalidade inventiva, a intencionalidade do
autor comparada com o conceito de objeto intencional de Iser é apenas superficial, pois
a proposta de Gledson ignora a simulação observada por Iser, pressupondo nessa
intencionalidade uma interação diádica entre autor e leitor.
Para uma mesma passagem, três leituras distintas. Enquanto para Silva tal
passagem reforça o anulamento individual de Quintanilha por meio de uma carinhosa
submissão ao amigo, para Palmas é a comprovação do mau caráter de Gonçalves. Na
leitura de Maciel, a personagem reage violentamente contra o quadro como se a peça
denunciasse a relação reprimida entre os dois. Não se considera, por exemplo, que a
crítica feita por Gonçalves poderia resultar do desagrado quanto à falta de qualidade do
pintor, da possibilidade de deformação das imagens pintadas e da franqueza pressuposta
nessa relação de amizade. Confirma-se o que Iser define como “atividade de
constituição, pela qual tais vazios funcionam como um comutador central da interação
do texto com o leitor”. (ISER, 2001, p. 91)
316
Tanto neste, como em vários outros contos, a relação de amizade entre homens é
bem marcada no texto, sem a tensão presente no conto “Pílades e Orestes”. A relação
entre Simão e Emílio é marcada pela traição que leva este a se alistar na Guerra do
Paraguai ao descobrir que seu amigo Simão passara a ter relacionamento amoroso com
sua mulher Maria. Se neste conto evidencia ao leitor a paixão doentia que Simão nutre
por Maria e a relação sexual que ambos acabam mantendo, em “Pílades e Orestes”
Camila é uma personagem secundária, cuja presença na narrativa provoca o afastamento
das duas personagens. Ao relatar a afetividade não nomeada de Quintanilha por
Gonçalves, o narrador diz:
É possível contrastar essa imagem não nomeada com outro momento do conto
em que o afeto de Quintanilha por Camila pode ser nominado: "Quintanilha descobriu
um dia de manhã que sonhara com ela a noite toda, e à noite que pensara nela todo o
dia, e concluiu da descoberta que a amava e era amado" (Idem, ibidem). O que leva
Quintanilha a nomear o sentimento nutrido pela prima é o fato de descobrir que sonhara
com ela à noite e passara pensando nela todo o dia. Ao compararmos a disposição
emocional dele tanto a Gonçalves quanto à prima, o que os diferencia é a
impossibilidade de nomeação. Em 26 de abril de 1895, no seu primeiro julgamento sob
acusação de manter relações sexuais com outros homens, Oscar Wilde define o amor
como a afeição que não pode dizer o nome 198. Os afetos inominados tanto no processo
de Oscar Wilde como no conto de Machado parecem tematicamente próximos, na
medida em que podemos ler na narrativa a facilidade com que Quintanilha denomina o
afeto pela prima contrastado ao afeto inominado dedicado a Gonçalves Além disso, no
início do conto, Quintanilha refere-se ao amigo como seu Gonçalves e, mais à frente, ao
referir-se a Camila como nossa alemãzinha, o narrador afirma que pronomes
possessivos dão intimidade. Somam-se a isso as duas expressões acima citadas, uma por
uma senhora vizinha que se refere aos dois como casadinhos de fresco e outra pelo
narrador, ao dizer que "A vida que viviam os dois, era a mais unida do mundo". Vale
observar também que, ao ser questionado sobre a validade da relação amorosa entre
Quintanilha e Camila, Gonçalves opta por não manifestar opinião, embora expresse
comportamento entendido pelo amigo como desaprovação. A certeza de que pudesse
198 “O amor que não ousa dizer o nome’ nesse século é a grande afeição de um homem mais velho
por um homem mais jovem como aquela que houve entre Davi e Jonatas, é aquele amor que Platão
tornou a base de sua filosofia, é o amor que você pode achar nos sonetos de Michelangelo e
Shakespeare. É aquela afeição profunda, espiritual que é tão pura quanto perfeita. Ele dita e preenche
grandes obras de arte como as de Shakespeare e Michelangelo, e aquelas minhas duas cartas, tal como
são. Esse amor é mal entendido nesse século, tão mal entendido que pode ser descrito como o `Amor
que não ousa dizer o nome’ e por causa disso estou onde estou agora. Ele é bonito, é bom, é a mais
nobre forma de afeição. Não há nada que não seja natural nele. Ele é intelectual e repetidamente existe
entre um homem mais velho e um homem mais novo, quando o mais velho tem o intelecto e o mais
jovem tem toda a alegria, a esperança e o brilho da vida à sua frente. Que as coisas deveriam ser assim
o mundo não entende. O mundo zomba desse amor e às vezes expõe alguém ao ridículo por causa
dele.”
(Essas foram as palavras do literato em seu primeiro julgamento, em 26 de abril de 1895.) Acesso em:
http://brgaudencio.wordpress.com/2007/07/31/o-homem-das-frases-celebres-oscar-wilde/
318
Esse não-dito do texto resulta da função comunicativa realizada por meio das
determinações formuladas por ele, acionando a interação entre texto e leitor como forma
de regulação.
Ao tratar sobre as formas de operação dos discursos sobre a sexualidade na
sociedade burguesa do século XIX, Michel Foucault observa que nossa sociedade não
fala menos do sexo, mas fala de outra maneira. Essas outras maneiras de falar
estabelecem quem fala, a partir de quais pontos de vista, surtindo outros efeitos. A
compreensão dos códigos discursivos sobre a sexualidade não se estabelece por uma
divisão binária entre o dito e o não-dito, pois há diversas formas de não-dizer, bem
319
como diferentes locutores que podem dizer e tipos de discurso autorizados. Nesse
sentido, o filósofo francês considera que o mutismo:
199 A solicitação é ou deve ser atenta, minuciosa, morosa e paciente: os pontos críticos em que o livro
se solicita são lugares mínimos noutros lugares mínimos, obscuros ou obscurecidos, marginais ou
marginalizados, mas tudo depende deles: tudo, quer dizer, não a nossa capacidade de destruir o
edifício, mas a possibilidade de o próprio edifício se edificar. Se se quiser, o pequeno, e por isso não
se põe aqui a questão do minimalismo, arrasta a ruína do grande. A metáfora do edifício - que é
também uma das metáforas do livro, ou uma das metáforas da completude do livro como construção
sujeita a uma técnica, governada por um projeto e orientada por uma utilidade - mereceria um
trabalho que aqui não realizarei. Aliás, Dom Casmurro seria uma excelente oportunidade, dada a
importância da casa, da edificação, da demolição e da reconstrução da casa: mas serei levado a tratar
esse tema concluindo, de forma talvez deceptiva, que por força da casa, mas não só dela, o livro de
Dom Casmurro resultará uma ruína de um edifício que nunca chegou a existir. Isso mesmo, de resto,
faz desse romance o paradigma da ficção do livro e da ação da ficção sobre o livro. Eu gostaria de
afirmar a dimensão afirmativa dessa ruína, e gostaria de mostrar que Ia solicitação é um processo de
esclarecimento e não de destruição, de aprendizagem e não de relativismo estéril, ainda que com
riscos, ou com o risco da perda, do desvio, do descaminho, da desfiguração. Suponho, porém, que não
há aprendizagem sem risco, e por isso falo de experiência e de experiência da solicitação. No
essencial, o risco maior nunca se elimina, porque é inerente à própria atividade da leitura: chamar um
texto a confirmar análises e argumentações, sabendo de antemão que nunca as confirmará. A
320
Nessa perspectiva, o enfoque acima dado à mesma argumentação feita pelo texto
de Maciel, em relação aos outros três, não pretende defender a existência de uma
relação afetivo-sexual entre Quintanilha e Gonçalves, mas marcar o silêncio que se
opera na solicitação feita nessas leituras, que optam por enfatizar o perfil interesseiro do
advogado pobre em detrimento de um possível sentimento afetivo reprimido
socialmente. Se o texto opera a indeterminação de sentido na relação afetiva das duas
personagens, apresenta-se a pergunta do porquê de a leitura em torno das questões
econômicas tornar-se dominante na recepção desse conto. Tratar-se-ia de uma
incompatibilidade temática a ser abordada no conjunto da obra de Machado Assis ou de
uma tendência heteronormativa na recepção de seus leitores quanto à identificação das
relações afetivas entre seus personagens? Como observa Maciel:
solicitação é um procedimento de leitura que conhece este risco, que não o ilude e que, sobretudo,
exulta com indisfarçável entusiasmo na momento em que se revela inexorável. (BAPTISTA, 2003, p.
13)
321
de 2014.
201 Informação tirada da nota de rodapé número 1 feita por Leonardo Affonso de Miranda Pereira
(ASSIS, 2009, p. 232)
326
Este caso evidencia a brincadeira que o cronista faz entre verdade e discursos
oficiais produzidos por meio do telégrafo. Em crônica de 13 de setembro de 1896 da
série A Semana, o cronista retoma essa discussão sobre a veracidade noticiada pelo
telégrafo, ao referir-se à notícia de que na Bahia havia surgido um emissário de Jesus
Cristo, chamado Manuel de Benta Hora. Novamente, estabelece esse jogo entre verdade
e mentira ao dizer que não afirmará se tal notícia é verdade ou mentira, podendo ser as
duas coisas, visto que a verdade confine na ilusão e a mentira na boa fé. O que interessa
ao cronista é o modo como a imprensa da Bahia noticia o caso:
anteriormente citada. Uma das observações é de que o boato é uma proposição que une
uma característica a uma pessoa, servindo tanto para construir quanto para desmentir
um determinado fato202. Desse modo, a função do boato pretende a construção ou
negação de um determinado ethos atribuído a alguém, ao que o cronista define como
calúnia, que pode ser tanto a afirmação de algo sobre alguém quanto a sua negação.
Essa movimentação discursiva do boato faz dele, como afirma o pesquisador francês,
um tipo de informação que o poder não pode controlar203 - portanto, a sua essência é a
de ser uma palavra à margem da palavra oficial. Essa afirmação faz com que Kapferer
defina o boato como um contra-poder, pois ele prolifera no âmbito da conquista e da
gestão do poder204. O boato nos faz lembrar que o conceito de verdade é resultado de
convenções e atribuições que, uma vez repetidas por instâncias do poder, são
naturalizadas e transformadas em fatos reais205. Como afirma Kapferer, "o boato é
simultaneamente um processo de dispersão da informação e um processo de
interpretação e de comentário. Shibutani considera o boato como uma ação coletiva que
pretende dar um significado a fatos inexplicados." (p. 10). Essas características do boato
- anônimo, repetido, marcado pelo exagero, discursos não oficiais - fazem dele matéria
dos saberes sujeitados conceituados por Michel Foucault. Isto é, os boatos são saberes
desqualificados como saberes não oficiais, tratados pelas instâncias de poder como
saberes ingênuos e hierarquicamente inferiores, porém, o reaparecimento desses saberes
estabelece o que Foucault define como a reviravolta dos saberes206. Cabe aqui fazer
202 Todo boato é uma proposição que une uma característica a uma pessoa ou a um objeto. Algumas
dessas proposições se prestam facilmente ao desmentido dos fatos, porque elas se apresentam sob uma
forma que as torna verificáveis, isto é, capazes de serem submetidas a um teste. (KAPFERER, 1993,
p. 225)
203 Os boatos não incomodam só porque são "falsos": se fosse assim ninguém se importaria.
Acredita-se neles justamente porque têm um fundo de verdade; fato comprovado pelos "vazamentos
de informação" e segredos políticos divulgados. Os boatos incomodam porque são um tipo de
informação que o poder não pode controlar. Diante da versão oficial, surgem outras verdades: a cada
um a sua. p. 9
204 A essência do boato, nós já demonstramos, é de ser uma palavra à margem da palavra oficial. Ela
é um contrapoder. É natural, portanto, que os boatos proliferem no âmbito da conquista e da gestão do
poder. p. 196
205 Já dissemos que o critério da verdade é, nesse caso, puramente social: é verdadeiro aquilo que o
consenso considera como tal. Falar é se engajar num processo de discussão, de elaboração, a partir da
notícia, com o objetivo de se chegar a uma definição coletiva da realidade. p. 48
206 Essa crítica local se efetuou, parece-me, por aquilo, através daquilo que se poderia chamar de
"reviravolta de saber". Por "reviravoltas de saber", quero dizer o seguinte: se é verdade que, nesses
anos que acabaram de passar, era comum encontrar, pelo menos num nível superficial, toda uma
temática (...) parece-me que debaixo de toda essa temática, através dela nessa mesma temática, o que
se viu acontecer foi o que se poderia chamar de insurreição dos "saberes sujeitados". E, por ‘saber
sujeitado’, entendo duas coisas. De uma parte, quero designar, em suma, conteúdos históricos que
329
uma ressalva à conceituação dos saberes sujeitados feita pelo filósofo francês e a
concepção do boato, sobretudo na perspectiva do cronista. O que Michel Foucault
reviravolta dos saberes deu-se em um determinado momento da crítica francesa em
torno de dez a quinze anos antes dessas aulas ministradas no Collège de France no
período de janeiro a março de 1976, isto é, no período da década de 1960 e 1970.
Portanto essa reviravolta está associada a uma corrente teórica na França conhecida
como Estruturalismo, cujo início tornou possível dar status de conhecimento a esses
saberes cotidianos, os quais, até aquele momento, eram deliberadamente ignorados
pelas Instituições Acadêmicas. A enunciação de saberes sujeitados por meio do boato é
cotidiana e antiga de modo que o boato nunca dependeu de um reconhecimento
institucional para fazer essa reviravolta, muito pelo contrário, o seu anonimato permite
que se espalhe rapidamente, promovendo a dispersão das informações e obrigando os
saberes oficiais a se posicionarem. Obviamente essa tensão que o boato estabelece com
os poderes oficiais, faz com que esses se atualizem de modo que possam estabelecer
uma contensão e apropriação dele, dinâmica identificada por Mikhail Bakhtin como
ideologia do cotidiano. Também, é preciso observar que o boato é transfuncional, isto é,
se questiona os poderes instituídos estabelecendo com ele uma oposição, também pode
ser usado como forma de antecipação a outros boatos por esses mesmos poderes.
O cronista, na crônica de 14 de novembro de 1864, anteriormente citada, afirma
que a força do boato consiste no fato de que "alguns simplórios têm mesmo o
preconceito de que nada corre em público que não tenha um fundamento de verdade, —
preconceito que determina no espírito de alguns jurados a condenação de todos os que
são acusados perante a justiça". Isto é, não se trata de saber se o boato é verdadeiro ou
falso, mas de perceber que ele joga com esse contrato social da verdade, a qual, para ser
oficialmente reconhecida como verdade, precisa ser mantida pelo Estado. Essa relação
de poder produz ambiguidades, isto é, se a verdade oficial depende da vontade do
Estado, ela está intrinsecamente ligada ao segredo. A relação entre verdade e segredo
associados ao poder produz a dúvida como efeito de sentido, pois, não sendo
207 Conforme analisa Alexandre Guida Navarro, em seu artigo "Kulkucán como metáfora de la
guerra", essa serpente a qual o cronista faz referência foi uma importante divindade dos maias,
associada a diversas manifestações culturais, no qual se destaca o poder político, a guerra e a religião.
Também conhecida como serpente emplumada, é representada pela ave quetzal como símbolo do céu
e pela serpente como símbolo da terra, ambos geradores da vida. Conforme relata Navarro: "La
primera mención escrita de la presencia de Kukulcán entre los mayas la registra el clérigo Francisco
Fernández, quien en 1545 informó al obispo de Chiapas, Bartolomé de las Casas, que en Campeche
los indígenas afirmaban “que antiguamente vinieron a aquella tierra veinte hombres [de los cuales]
el principal de ellos se llamaba Cocolcan [y] a éste llamaron dios de las fiebres o de las
calenturas” (Las Casas, 1967: 121).El primer o bispo de Yucatán, Fray Diego de Landa, describió en
1566 en la Relación de las Cosas de Yucatán, algunos de los edificios que componen la Gran
Nivelación de Chichén Itzá. En la obra, dice: “Que es opinión entre los indios que con los yzaes que
poblaron Chicheniza, reinó un gran señor llamado Cuculcan, y que muestra ser esto verdad el
edificio principal que se llama Cuculcan…” (Landa, 2003: 94). Para el fraile, Kukulcán era un dios,
y considera en su relato que:Dicen que entró [a Yucatán] por la parte del poniente y que difieren en
si entró antes o después de los yzaes o con ellos, y dicen que fue bien dispuesto y que no tenía mujer
no hijos; y que después de su vuelta fue tenido en México por uno de sus dioses y llamado Cezalcuati
331
y que en Yucatán también lo tuvieron por dios por ser gran republicano, y que esto se vio en el
asiento que puso en Yucatán después de la muerte de los señores para mitigar la disensión que sus
muertes causaron en la tierra (LANDA, 2003: 94)."
208 Ver nota 136, na qual explicamos o uso do conceito ideologia do cotidiano.
332
que "as ideologias do cotidiano, por mais revolucionárias que sejam, submetem-se à
influência dos sistemas ideológicos estabelecidos e assimilam as formas, práticas e
abordagens ideológicas neles acumulados" (BAKHTIN, 1999, p. 121).
O boato, portanto, tem como efeito obrigar as autoridades a falar, pois coloca em
cheque o estatuto de única fonte autorizada a falar dos discursos oficiais, ou como diz o
cronista, se a verdade é a tipografia mantida pelo Estado, o boato é a tipografia da
mentira. Ao colocar em cheque a tipografia do Estado, o boato constitui-se como uma
tipografia não-oficial que escapa ao controle do Estado como palavra de oposição209 - o
que define o boato como um contra-poder.
Em crônica de 7 de janeiro de 1862, ao tratar sobre o expediente do Ministério
do Império, publicado no dia anterior na folha oficial, o cronista questiona o fato de o
ministro ter oficiado o seu colega da Fazenda, afirmando que o "conselheiro Candido
Borges Monteiro, jubilado em uma das cadeiras da faculdade de medicina desta cidade,
tem direito ao ordenado por inteiro, por ter mais de 25 anos de serviço efetivo" (ASSIS,
2008d, p. 151). Diante dessa contradição que o cronista identifica como equívoco
aritmético, exige que tal fato possa ser elucidado pelo ministro, visto que o silêncio
poderia propagar certos boatos. O cronista atribui sua propagação a um ente anônimo e,
portanto, afirma:
209 Ora, o boato é uma relação com autoridade: desvendando segredos, sugerindo hipóteses, ele obriga
as autoridades a falar. Além disso, ele põe em cheque o estatuto de única fonte autorizada a falar. O
boato é um discurso espontâneo, sem ter sido pedido. Ele é, frequentemente, uma palavra de
oposição: os desmentidos oficiais não o convencem, como se o oficial e o crível não fossem
correspondentes. O boato procede a um questionamento das autoridades, de "quem tem o direito de
falar sobre algo. Informação paralela e, algumas vezes, oposta à informação oficial, o boato é um
contra-poder. p. 16
333
Há nessa resposta aquilo que Kapferer observa como forma para se tentar acabar
com o boato: o fator temporal. Como afirma o pesquisador francês, "em matéria de
prevenção o fator temporal é fundamental. É preciso agir logo, enquanto o boato está
circunscrito a um plano geográfico" (p. 239). Dessa forma, o governo, de modo
anônimo, ao ter sua ação questionada por um jornal da oposição, procura responder,
dois dias depois. Contudo, o cronista tira proveito da resposta para fundamentar a
verdade do boato como podemos ver, na crônica seguinte, do dia 14 de janeiro:
210 Esse texto resposta foi tirado da nota de rodapé feita Lúcia Granja e John Gledson. (ASSIS, 2008, p.
14, nota 6)
335
sentido à autoria do comunicante como se o mesmo tivesse dito que tal ação deveria ser
censurada. Para fechar sua análise, utiliza-se da ironia, ao dizer que a ação do ministro,
contrário ao Conselheiro beneficiado, não comprometeu a amizade de ambos, bem
como essa amizade política, uma vez não comprometida, não faria com que o Partido
Conservador fosse amputado em um de seus membros: membro eloquente quando fala
e quando não fala! Nesse outro comentário, a ironia se dá pela ambiguidade do verbo
amputar, isto é, em sentido figurado, significa o Partido Conservador perder um
componente, mas em sentido literal, a amputação significa o Partido se tornar aleijado,
operando a corporalidade em seu comentário irônico. Além disso, faz uso da
intertextualidade, ao citar um trecho do poema heróicômico O Hissope de Antonio
Dinis da Cruz e Silva, cujo trecho citado faz referência ao momento anterior do litígio
entre o Bispo e o Deão:
Canto II
Evidencia-se nesse trecho da crônica que, para mimetizar o boato como matéria
da crônica, o cronista faz uso de diferentes procedimentos como o discurso polêmico, as
figuras de linguagem, a intertextualidade, o rebaixamento, operando por meio desses
procedimentos a ficcionalidade dos discursos.
Como observa Kapferer, o boato é a mídia do não-dito, fazendo com que
cheguem a conhecimento público informações que determinada tradição política proíbe
212 A essência do boato, nós já demonstramos, é de ser uma palavra à margem da palavra oficial. Ela
é um contrapoder. É natural, portanto, que os boatos proliferem no âmbito da conquista e da gestão do
poder. Dessa maneira, o francês se incomoda, em geral, com problemas de saúde: é um assunto tabu,
que não se deve abordar publicamente. Por isso é um tema frequente de boatos: ele lança a dúvida
sobre a perenidade do homem e sua capacidade de governas de modo lúcido e sereno. O boato é o
mídia do não-dito; ele permite levar ao conhecimento público assuntos que a tradição política proíbe
que se mencionem abertamente. (KAPFERER, 1993, p. 196)
213 Aderir a um boato é manifestar sua solidariedade à voz do grupo, à opinião coletiva. O boato
proporciona ao grupo a ocasião de compartilhar opiniões, de se exprimir: isso acontece, em geral: às
custas de outro grupo, de algum bode expiatório. A identidade se constrói facilmente pela designação
unânime do inimigo comum. p. 96
338
célebre resposta do príncipe Hamlet ao seu lord camarista Polônio, como: boatos,
boatos, boatos! Essa localização geográfica na proposta da tradução, ressalva a
dinâmica do espaço público e privado como habitat natural do boato, conforme afirma o
cronista:
214 Conforme o estudo feito por Marcela Maciel em seu artigo Rua do Ouvidor, primeiro cenário do
Brasil moderno: A Rua do Ouvidor começou a ganhar importância com a vinda da família real para o
Brasil, por conta da abertura dos portos, em 1808. Comerciantes desembarcavam da Europa e se
instalavam naquela área. Por volta de 1821, chegaram as famosas modistas francesas. Até Dona
Leopoldina, primeira imperatriz do Brasil, fazia compras na Ouvidor. Ela freqüentava o ateliê de
Madame Josephine, uma das primeiras profissionais a se instalar no local. O auge da Rua do Ouvidor,
porém, foi durante o final do século XIX. Alberto Cohen, autor do livro "Ouvidor, uma rua do Rio",
confirma a fala de Machado de Assis.- Era a principal artéria do centro do Rio de Janeiro. E tudo que
acontecia aqui, irradiava para o resto do país. Muitas inovações chegaram primeiro à Rua do Ouvidor.
Lá foi instalado o primeiro telefone, e surgiram a primeira vitrine, o primeiro cinema, a primeira linha
de bonde regular da cidade e até o primeiro motel. Primeira rua de pedestres do Rio, a via também foi
a primeira a ter obras de calçamento, em 1857, e a receber iluminação elétrica, em 1891. A história do
próprio Machado de Assis se confunde com a da rua. Na Ouvidor foi fundada a Academia Brasileira
de Letras, em 1896. E grande parte dos livros do escritor foi publicada pela Livraria Garnier, uma das
mais importantes da época e que funcionava ali. http://puc-riodigital.com.puc-
rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1873&sid=55#.VGEKMPnF92Q. Consultado em 10 de
novembro de 2014
340
repetição, pelo exagero e pela velocidade com que corre à boca pequena, evidencia a rua
como o lugar próprio dos boatos. Marcando essas características, o cronista evidencia o
boato como, conforme a definição de Kapferer, o mercado clandestino da informação.
215 Existem, na verdade, duas linguagens de boato. Este se apresenta ora como um "diz-se", ora como
"segundo fonte bem informada". No primeiro caso, o "diz-se" remete ao grupo, à coletividade: são os
outros que falam, isto é, a comunidade a que nós pertencemos, do mesmo modo que o circuito do
boato. O "diz-se" é um chamado discreto, um pedido de adesão ao consenso que está em vias de se
realizar. Como não há a presença de um expert, de uma fonte original, o "diz-se" não conta com uma
adesão racional: ele joga com o desejo de posse, de se reunir a um grupo, de participar, de se fundir
ele mesmo neste "se", nessa unanimidade nascente. O "diz-se" é um apelo à comunhão social. p. 61
341
Vê-se que a notícia, embora tenha sido dada pelo Jornal do Commercio em 12
de abril do mesmo ano, é tratada a partir dos boatos e como boato por meio da
referência de comentários que não constam da matéria do jornal e pelo marcador da
partícula "se" como índice de indeterminação do sujeito.
A segunda forma enunciativa é a afirmação de que dada informação origina-se
de uma fonte bem informada. Ao buscar uma paternidade para a informação, o boato
tem efeito de verossimilhança operando a confiabilidade no que é contado, tornando a
informação segura e, portanto, compartilhável. Quem o enuncia, dificilmente teve
contato com a fonte a que se refere, mas apenas repete de alguém que por sua vez
conhece o expert que tudo sabe.216
Na crônica de 1º de julho de 1877, o cronista trata sobre o conflito entre a artista
216 Assim, em busca de uma paternidade verossímil e segura, através de poucas palavras, desejo de
convencer, ou simplesmente repetição do que o circuito precedente havia lhe confirmado, aquele que
transmite um boato se diz quase sempre muito próximo da origem. Certamente ele nem mesmo
encontrou aquele que está na origem dos fatos, este expert fundamental que tudo viu, e que tudo sabe.
Em compensação ele conhece aquele ou aquela que tiveram acesso a este importante expert. p. 62
342
O caso é noticiado a partir de fontes que o artista diz conhecer, assim como o
outro caso seguinte que envolve um ator conhecido do cronista. Na crônica de 14 de
julho de 1878 da série Notas Semanais, ao comentar sobre o caso de oitenta russos que
tiveram sua viagem embargada pela polícia do Rio Grande do Sul, o cronista afirma
algo diferente do que os jornais diziam, declarando ter outra fonte:
O papel do cronista é ficar à espreita dos sucessos da rua, a partir dessa relação
entre a sua subjetividade - conforme nosso humor ou a nossa opinião/um guisado de
moral doméstica - e a subjetividade coletiva - ouvir e palpar o sentimento da
cidade/solturas do Rua do Ouvidor. Conforme vimos anteriormente, a Rua do Ouvidor
é esse espaço geográfico onde há nela, assim estreitinha, um aspecto e uma sensação de
intimidade. "É a rua própria do boato. Vá lá correr um boato por avenidas amplas e
lavadas de ar. O boato precisa do aconchego, da contigüidade, do ouvido à boca para
murmurar depressa e baixinho, e saltar de um lado para outro" (ASSIS, 2008, v. 4, p.
1007). É por meio desses boatos que o cronista se propõe a falar das coisas mais triviais,
leves, às vezes, um tom mais carrancudo, fazendo dessa mistura algo semelhante ao
autoritarismo e tolice de Geronte e a malandragem de Scapin - personagens de Molière.
Ao se propor tratar da política amena, a produção da notícia na crônica dá-se a
partir dessa mistura, isto é, tomar algo grave como por exemplo o incêndio causado no
Paço Municipal de Macacu e operar o rebaixamento, a personificação e a alegoria
quando afirma que o incêndio foi causado porque o Paço Municipal tinha o costume de
dormir tarde e fumar na cama ou que a razão toda não foi nenhum incêndio, mas o fato
de o Paço, sendo uma mulher, descobrir que estava grávida e, para não ser julgada pelos
munícipes, resolveu fugir para a Rua do Ouvidor. Diante de um acontecimento grave - o
incêndio no Paço Municipal de Macacu - e da exígua informação dada pelo poder
público - o incêndio foi causado por combustão espontânea - produzindo incertezas,
dúvidas e questionamentos, o papel do cronista é preencher essas fraturas/vazios do
discurso oficial com o boato produzido por meio dos procedimentos como o
rebaixamento, a alegoria, a intertextualidade, a personificação, entre outros e
transformar a notícia em discurso polêmico aberto ou velado. Como observa Bakhtin, a
polêmica orienta-se para o discurso refutável do outro, tendo-o como seu objeto, já a
polêmica velada estabelece uma relação indireta com o discurso do outro, visto ser seu
objeto o objeto nomeado, representado, enunciado, entrando em conflito com o discurso
do outro por meio do objeto e fazendo do seu discurso um discurso bivocal (BAKHTIN,
2008, p. 170).
Como observa Kapferer, cada ouvinte torna-se intermediário do boato por livre e
espontânea vontade. Sendo atingido pela mensagem, seu papel é repassá-la como modo
de compartilhar seus sentimentos. Dessa maneira, não se trata apenas de repetir o que
ouviu, mas convencer seu interlocutor, fazendo uso do exagero como arma de
345
217 Numa situação natural, cada receptor decide ser receptor. Ninguém o obriga a servir de
intermediário para o boato: ele faz por sua livre e espontânea vontade, porque se sente atingido pela
mensagem e porque quer dividir seus sentimentos. Nesse caso, ele não conta o que a pessoa antes dele
falou: ele tenta convencer seu interlocutor. Além do mais, a divulgação do boato é uma troca: a cada
transmissão, as duas pessoas discutem entre elas. O receptor não permanece mudo, contentando-se em
registrar em silêncio (como nas simulações de laboratório): ele reage, elabora, responde, coloca
questões ao receptor. Após essa discussão bastante significativa, o próprio receptor pôde modificar
sua versão inicial do boato. (KAPFERER, 1993, p. 125)
218 Em todos os casos, o boato corre porque haveria perigo, físico ou simbólico, de se desconhecer a
notícia, mesmo que essa seja verdadeira ou falsa. Precisamente, além de sua função de alerta, o boato
decide também o destino que deve se dar à notícia, o que se deve pensar dela. Aí reside uma segunda
função da repetição: falar para saber. (p. 47)
346
de revoltas imaginárias.
E o jogo é bonito e fino. Passando, como há de passar, o dia 25
sem demonstração alguma, é ao terror das medidas
anteriormente tomadas que se atribuirá a tranqüilidade da festa.
(ASSIS, 2008d, pp. 187-188)
Esse exemplo evidencia que mesmo a oposição pode ser alvo de boato,
reafirmando-se seu caráter transfuncional. Em situações como essa, o papel do cronista
torna-se o de prevenir seus leitores e desmentir o boato. Para tanto, o cronista faz uso da
intertextualidade - comparando os conservadores aos gansos que salvaram com seu
grasnar a cidade de Roma - do rebaixamento - a comparação aos gansos e a diferença do
motivo e do resultado com a história romana, isto é, se os gansos do templo da deusa
Juno no Monte Capitolino salvaram Roma da invasão gaulesa, alertando a cidade do
ataque iminente com seus grasnos, ou se os gansos do Império, cansados de espreitar
um ataque, inventam um com seus gritos apenas para ganhar conceito nos ânimos
augustos.
Conforme nota de Lúcia Granja e Jefferson Cano, no dia 3 de março, foi
publicado um artigo no editorial do Diário do Rio de Janeiro comentando sobre esse
boato criado pelos conservadores:
1878:
219 de um modo geral, a autobiografia é movida pelo desejo de dizer a verdade sobre o autobiógrafo
e, através dela, se a narrativa autobiográfica se insinua alegórica, a verdade sobre o sentido da vida ou
do mundo. (BAPTISTA, 2003, p. 183)
220 Em outro campo, é a falta de evidência material que levou Bento Santiago a desenvolver sua
argumentação para tentar provar a ocorrência de um adultério. (CRUZ, 2008, p. 405)
350
Kapferer observa que, quando a informação é rara, ela engendra o boato e não
necessariamente a informação que o boato faz circular é verdadeira ou falsa, mas
interpretativa, isto é, à medida em que as fraturas de uma determinada informação são
muitas de modo que nem todas as peças se encaixem, o informante opera um exercício
interpretativo que lhe permita dar unidade ao relato contado de forma que pareça o mais
verossímil possível. É, portanto, na chave da verossimilhança que o boato opera e passa
dar sentido às informações isoladas. Ler o romance Dom Casmurro pela chave do boato
não é propor que seu discurso seja verdadeiro ou falso, mas entender esse discurso
memorialístico como um exercício de interpretação, marcado pela ambiguidade, cujo
procedimento transforma essa ficção autobiográfica em uma estética do boato, pois
como observa Kapferer:
personagem ao reconstituir por meio da memória o seu passado com base na premissa
da traição de Capitu; a segunda, refere-se ao procedimento composicional da narrativa
marcado pela ambiguidade e pelos vazios textuais como efeito do esforço interpretativo
de suas memórias; a terceira, por fim, refere-se ao modo de recepção na história da
crítica literária machadiana e de outras leituras como efeito desse jogo composicional e
interpretativo. Em outras palavras, o boato se manifesta no esforço memorialístico do
narrador, na forma composicional do romance e na sua recepção por diferentes leitores
anônimos ou conhecidos. A personalidade de Bento Santiago resulta dessa malha
memorialística como experiência cotidiana por meio de um fluxo incessante de
pensamentos, sentimentos e sensações e só por meio do contato com essa malha
memorialística, segundo observação de Ian Watt em sua obra A Ascensão do Romance,
que o leitor pode participar inteiramente da vida desse eu que se enuncia na
autobiografia ficcional222.
222 O principal problema ao retratar-se a vida interior é a escala temporal. A experiência cotidiana do
indivíduo compõe-se de um fluxo incessante de pensamentos, sentimentos e sensações; contudo a
maioria das formas literárias - por exemplo, a biografia e até a autobiografia - tendem a ser uma malha
temporal muito aberta para conseguir reter sua atualidade; e assim também a memória em geral. No
entanto é esse conteúdo de consciência minuto a minuto que constitui a verdadeira personalidade do
indivíduo e determina seu relacionamento com os outros: só através do contato com essa consciência
o leitor pode participar inteiramente da vida de uma personagem de ficção. (WATT, 2010, p. 202)
353
223 Quase todos os romances anteriores, principalmente após as Memórias Póstumas de Brás Cubas,
têm um foco mais restrito, pois se concentram no desenvolvimento e na crise de um único indivíduo.
Brás Cubas nos conta a sua vida (é certo que com os poderes de um biógrafo onisciente, já que nos
fala do além); em Quincas Borba a vida de Pedro Rubião de Alvarenga ocupa a narração da primeira à
última página do romance, e temos um narrador impessoal, mas opinativo. Em Dom Casmurro há um
caso clássico de autobiografia confessional; Bento Santiago reimagina a sua formação sentimental a
fim de compreender as razões da sua própria queda, cuja culpa ele atribui a Capitu. (PASSOS, 2007,
p. 239)
354
224 Durandin, um dos especialistas do estudo da mentira, resume dessa forma os resultados dessas
diversas experiências [45]:
- um depoimento totalmente exato é excepcional;
- os depoimentos declaram serem as informações verdadeiras ou falsas segundo o mesmo critério, isto
é, sempre agindo de boa-fé;
- o que nós declaramos reflete algumas vezes mais nossos estereótipos mentais do que aquilo que nós
vimos realmente;
- em consequência, se vários depoimentos coincidem, isto não significa necessariamente um índice de
verdade nestas declarações. Isso pode significar que várias pessoas, dividindo os mesmos estereótipos
e os mesmos clichês mentais, percebem os fatos de uma maneira idêntica, todavia errados.
(KAPFERER, 1993, p. 31)
355
que o narrador estabelece como orientação de leitura para o leitor de modo que se
garanta as ligações que passam sempre e a partir do modo como o narrador escolhe e
organiza suas memórias como forma de tentar resolver a questão final, isto é, se a
Capitu da Glória já estava na de Matacavalos ou se essa foi mudando com o tempo.
Outro exemplo encontramos no capítulo LXXII, ao propor uma reforma dramática à
medida que o destino, como o dramaturgo, não revela o desfecho da narrativa:
Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta
história poderia responder mais, tão certo é que o destino, como
todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o
desfecho. Eles chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-
se as luzes, e os espectadores vão dormir. Nesse gênero há
porventura alguma coisa que reformar, e eu proporia, como
ensaio, que as peças começassem pelo fim. Otelo mataria a si e a
Desdêmona no primeiro ato, os três seguintes seriam dados à
ação lenta e decrescente do ciúme, e o último ficaria só com as
cenas iniciais da ameaça dos turcos, as explicações de Otelo e
Desdêmona, e o bom conselho do fino Iago: "Mete dinheiro na
bolsa." Desta maneira, o espectador, por um lado, acharia no
teatro a charada habitual que os periódicos lhe dão, por que os
últimos atos explicam o desfecho do primeiro, espécie de:
conceito, e, por outro lado, ia para a cama com uma boa
impressão de ternura e de amor:
226 Aqui importa atentar para a ambiguidade com que o relato é construído, possibilitando que os
leitores empíricos, baseados no que o próprio texto diz e distorcendo o mínimo, projetem suas
simpatias e visão de mundo neste ou naquele personagem, acreditando mais ou menos no que diz o
narrador e formulando até mesmo interpretações e julgamentos opostos sobre as personagens e suas
motivações. A narração se apresenta com lacunas suficientes de modo a permitir que os leitores, como
faz o próprio Bento Santiago, tenham espaço suficiente para projetar sua própria subjetividade,
indentificando-se e desidentificando-se com personagens e diferentes interpretações dos fatos
narrados. (GUIMARÃES, 2004, p. 234)
227 Mas o boato é também um convite (jogo). Falar, quer dizer, falar junto, em coletividade.
G.Bateson demonstrou que toda conversação é, de certa forma, a proposição de um certo tipo de
relação entre os dois interlocutores. Contar um boato a alguém é convidá-lo a "boatar", é dizer-lhe de
modo implícito: "Você e eu não vamos nos deter nos assuntos mundanos ou na meteorologia, e sim
conversar sobre os boatos". Ora, o boato é uma comunicação ao nível da emoção: ele incita os
comentários morais, as opiniões pessoais e as reações emotivas. Contar um boato significa que se quer
iniciar ou prosseguir uma relação mais íntima com o interlocutor, em que cada um possa se expor um
pouco mais, desnudar os sentimentos, os valores, sem precisar falar de si próprio. Em resumo, o boato
fornece a ocasião de trocar não a informação, mas a expressão. (KAPFERER, 1993, p. 54)
361
Esse acontecimento leva Bentinho a uma luta interior entre o desejo e a culpa,
em que os instantes do diabo intercalavam-se nos minutos de Deus. Sentindo se mal
pela atração que sentira pela esposa do amigo, busca fugir do desejo e, na manhã
seguinte, narrado no capítulo CXX, embora já tenha fugido, ainda aparece como
363
sombra; segue, por fim o capítulo que narra o anúncio da morte de Escobar. Essa
sequência continua até o capítulo CXXIII intitulado Olhos de Ressaca, momento
narrativo em que Bentinho supõe a traição. Essa sequencialidade dos acontecimentos
permite a leitura em defesa de Capitu ao depreender dela a projeção de culpa nascida e
recalcada em Bentinho nos capítulos anteriores e, posteriormente projetado em sua
esposa229. Contudo, para os defensores da traição, o simples fato de o narrador relatar
esse momento, é prova cabal da honestidade de Bento Santiago.
Leituras mais refinadas e detalhadas como as feita por Helen Caldwell, Roberto
Schwarz, Silviano Santiago, Gilberto Pinheiros Passos, entre muitos outros críticos
machadianos buscam nas formas de produção da narrativa de Dom Casmurro,
elementos que evidenciem a paranoia de Bentinho e inocentem Capitu. Como afirma
Caldwell em sua obra O Otelo Brasileiro de Machado de Assis:
229 Freud define a projeção como um mecanismo de defesa psicológico no qual o indivíduo projeta
seus pensamentos, motivações, desejos e sentimentos recalcados em uma outra pessoa. Peter Gay
define a projeção como uma operação no qual o indivíduo ao invés de lidar com certos pensamentos
de modo consciente, sobretudo, os de infidelidade, projeta no parceiro ou parceira e passa a acreditar
que o outro é quem tem tais pensamentos. ( Shepard Simon. "Basic Psychological Mechanisms:
Neurosis and Projection". The Heretical Press. In: http://www.heretical.com/sexsci/bpsychol.html.
Acessado em 15 de novembro de 2014.)
364
233 Ao final do texto, não é só o Dom Casmurro que está sob suspeita, mas tudo o que é narrado,
incluindo-se aí a maneira como o narrador se refere a Bentinho e a Bento Santiago. Para Veríssimo, é
o amor e o ódio por Capitu, que o narrador tenta mas não consegue esconder, que o tornariam suspeito
diante dos olhos do leitor. Como se pode notar, os questionamentos sobre as consequências de um
ponto de vista tão particular sobre a narração dos fatos têm a mesma idade do romance, que desde as
páginas iniciais apresenta a recepção como problema (GUIMARÃES, 2004, p. 237).
367
Vê-se por esse trecho o pressuposto da traição que determina a leitura de Pujol,
levando a fazer um julgamento ácido do caráter de Capitu. Menos ácida que Pujol, mas
tendo o mesmo pressuposto, é a leitura de Lúcia Miguel Pereira, em sua obra Machado
De Assis: Estudo Crítico e Biográfico publicada em 1936 - dezenove anos depois da
obra de Pujol. A autora afirma: "No Dom Casmurro vai mais uma vez, por meios muito
diversos, abordar a questão da responsabilidade. Capitu, se traiu o marido, foi culpada -
ou obedeceu a impulsos e hereditariedades ingovernáveis? é a pergunta que resume o
livro" (PEREIRA, 1988, p. 237). De modo menos incisivo que o de Pujol, o foco de
leitura de Lúcia Miguel Pereira acentua uma condicional que possibilita a dúvida.
Contudo, o foco de sua leitura continua a ser Capitu. Ao pontuar a diferença entre
Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, Pereira observa o tom
sentimental que marca esse romance e afirma que se Brás Cubas pensou, Bentinho
viveu, como a diferença fundamental entre os dois livros. Mais à frente chama a atenção
para o estilo e a ideia central da possível traição de Capitu: "Ligando-o a estes, há o
estilo, e há a ideia de saber se Capitu foi uma hipócrita, ou uma vítima de impulsos
instintivos. Em outras palavras, se pode ser responsabilizada; e por aí entra na galeria
machadiana das criaturas dirigidas por fatalidades poderosas e desconhecidas" (p. 239).
368
234 Publicado em 1960 nos Estados Unidos com o título The Brazilian Othello of Machado de Assis:
A Study of "Dom Casmurro", sua primeira tradução brasileira aconteceu apenas quarenta e dois anos
369
depois
235 Cold Case foi um seriado estadunidense sobre uma divisão policial especializada em investigar
crimes ocorridos em outras épocas, até então não elucidados. A série decorre na cidade
de Filadélfia, Pensilvânia. Estreou em setembro de 2003, na CBS e foi uma das séries mais vistas ao
estrear naquele ano. No Brasil, o SBT exibe a série de forma descontínua, de acordo com o interesse
da emissora em completar eventuais lacunas na sua grade de programação. Também foi exibida
pelo Warner Channel.
236 Como o objetivo neste trabalho é apenas apresentar as diferentes recepções das leituras de Dom
Casmurro, deixamos na bibliografia as referências tanto da obra de Helen Caldwell, como a
apresentação de Paulo Franchetti, caso se queira conhecer mais detalhadamente as análises de ambos
os trabalhos.
237 O livro foi traduzido para o português três anos depois com o título Machado de Assis: Impostura
e Realismo - Uma Reiterpretação de Dom Casmurro.
370
apontando indícios que possam contrapor a versão de Bento, Gledson propõe uma
leitura alegórica como interpretação ficcional do país:
238 Somos levados portanto a reconhecer este paradoxo fundamental: a crença no desmentido
obedece à mesma 1ógica da crença no boato, propriamente dito. Nos dois casos, trata-se de acreditar
nas informações. O problema da extinção de um boato é antes de mais nada uma questão pessoal: o
"que acreditar?" depende do "quem fala?". Sem um emissor confiável, o combate antiboato está
propenso ao fracasso. (KAPFERER, 1993, p. 226)
372
defende o respeito à lógica de funcionamento da obra, cujo efeito, isto é, ler Dom
Casmurro como proprietário e narrador-impostor tenderia a torná-lo uma figura
mecânica. Franchetti, por sua vez, e dando fechamento a apresentação, observa que se o
romance se constitui como armadilha, ao evidenciá-la, já estaria desarmada e, por isso,
qual a razão de lê-lo? Como observa Franchetti:
Desse modo, tanto a adesão quanto a recusa, dão desdobramentos para que o
boato produzido por Bento Santiago resista ao tempo, fazendo com que um novo grupo
o descubra e apodere-se dele das formas mais inusitadas e apaixonadas dos modos de
leitura do romance. Há nesse movimento, independentemente da adesão ou recusa, o
que Kapferer identifica como mobilização de grupo. Nessa mobilização, sempre
aparecem alguns papéis possíveis: o instigador - aquele cuja liderança foi ameaçada
pela modificação ocorrida na cidade (no caso, Capitu, para quem adere ao discurso do
narrador, para quem recusa o ponto de vista da narrativa, Bentinho); o intérprete -
responsável por propor uma explicação coerente e convincente (a crítica literária,
professores de literatura, amantes do romance que conseguem citar trechos inteiros de
cor); os apóstolos - pessoas que aderem determinada posição (seja a adesão ou a
refutação) e se responsabilizam por reproduzi-las (citando fontes tanto do romance,
quanto das leituras dos intérpretes); o recuperador - pessoa que, independentemente de
aderir ou recusar, atua como uma espécie de advogado do diabo, isto é, reproduz o
ponto de vista com menor adesão para simplesmente fomentar o boato. Esses
recuperadores são apresentados por Kapferer de modo mais detalhado, podendo ser: o
oportunista que recupera o boato como forma de reafirmar sua autoridade moral; o
galanteador: não acredita no boato, mas se delicia em brincar com ele para criar um
clima de perturbação no auditório; os receptores passivos - pessoas que não militam a
favor nem contra o boato, mas estão sempre questionando à sua volta para saber das
373
O mais famoso dessas encenações foi o julgamento realizado pela Folha de São
Paulo, em junho de 1999, que teve como juiz o jurista José Paulo Sepúlveda Pertence,
então ministro do Supremo Tribunal Federal; como advogado de acusação o ex-ministro
da Justiça do governo Lula Márcio Thomas Bastos e como advogada de defesa, a
procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo Luiza Nagib Eluf.
Como testemunhas de acusação foram convidados o escritor Carlos Heitor Cony e
Marcelo Rubens Paiva e como testemunhas de defesa, o historiador Boris Fausto e a
escritora Rosiska Darcy de Oliveira. Situação curiosa foram os testemunhos feitos tanto
por Cony quanto por Paiva, os quais, embora insistissem na ocorrência do adultério,
defenderam a inocência de Capitu, pois, para Cony, o adultério era defensável, pois
Bentinho era um marido "chato" e Paiva afirmou que Bentinho tinha tendências
homossexuais:
241 http://www.rse.org.br/rse-informa/noticia/literatura-alunos-simulam-o-julgamento-de-capitu.
Consultado em 15 de novembro de 2014.
375
Obviamente, citar essa polêmica aqui não significa endossá-la - dado o seu teor
extra-romance e profundamente imaginativa - mas evidenciar os vários efeitos do boato
como efeito de leitura na história da recepção de Dom Casmurro, boato do qual nem
Machado de Assis escapou.
Vale a pena citar também algumas repercussões compartilhadas no facebook
como forma de leituras desse romance. A primeira delas resulta da relação anacrônica
dessa suspeita de paternidade. Se foi possível a riqueza produzida pela dúvida da
paternidade no final do século XIX, hoje em dia com o desenvolvimento da chamada
genética forense, essa dúvida já não faz mais sentido. 244 A partir dessa questão
elaborou-se uma atualização do romance a partir da Genética Forense como podemos
ver a seguir:
244 A Genética Forense é a área de conhecimento que trata da utilização dos conhecimentos e das
técnicas de genética e de biologia molecular no auxílio à justiça. A Genética Forense é conhecida
como DNA Forense. Apesar de o ramo mais desenvolvido da Genética Forense ser a Identificação
Humana pelo DNA e sua aplicação mais popular ser o Teste de paternidade, a Genética Forense
não se limita a isso, podendo ser aplicada na identificação ou individualização de animais, plantas e
microrganismos. A Genética Forense se iniciou quando foram utilizadas pela primeira vez
características genéticas para a definição de paternidade, ajudando a justiça. A fase moderna da
Genética Forense teve início na década de 1980, quando pesquisadores descobriram regiões altamente
variáveis do DNA, capazes de individualizar uma pessoa. Em 1985, Sir Alec Jeffreys apelidou as
características únicas do DNA de uma pessoa de "impressões digitais do DNA". No decorrer da
década de 1990, com a popularização do exame reação em cadeia da polimerase (PCR, do
inglês polymerase chain reaction), desenvolveram-se técnicas cada vez mais sensíveis, capazes de
identificar a origem de amostras biológicas com muito pouco DNA. A Genética Forense é a área do
conhecimento que trata da utilização dos conhecimentos e das técnicas de genética e de biologia
molecular no auxílio à justiça. A Genética Forense também é conhecida como DNA Forense. Apesar
de o ramo mais desenvolvido da Genética Forense ser a Identificação Humana pelo DNA e sua
aplicação mais popular ser o teste de paternidade, a Genética Forense não se limita a isso, podendo ser
aplicada na identificação ou individualização de animais, plantas e microrganismos. Texto tirado do
site da Wikipédia
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Gen%C3%A9tica_forense) Consultado em 15 de novembro de 2014.
378
Fonte: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/conteudovisual/literalmente_maio_2009/
Fonte: http://literatortura.com/
Por fim - e para conclusão deste capítulo - cabe aqui fazer referência a algumas
narrativas que reescreveram a história de Bento Santiago e Capitu, ficcionalizando as
variadas leituras da crítica machadiana. A primeira delas refere-se a uma atualização de
Lúcio Manfredi que propõe a leitura de Dom Casmurro por meio da chamada ficção
científica:
246 Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de
realidade. O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e
os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é o resultado das
sínteses passivas do desejo como autoprodução do inconsciente. Nada falta ao desejo, não lhe falta o
seu objeto. É o sujeito, sobretudo que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há
sujeito fixo pela repressão. O desejo e o seu objeto constituem uma só e mesma coisa: a máquina,
enquanto máquina de máquina. O desejo é máquina, o objeto do desejo é também máquina conectada,
de modo que o produto é extraído do produzir e algo se destaca do produzir passando ao produto e
dando um resto ao sujeito nômade e vagabundo (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 43)
385
tempo de Machado, a crônica não era entendida como texto literário. Certamente esse
não reconhecimento da crônica como texto literário facilitava a proximidade entre autor
e leitor, pois, como texto que pretendia tratar das coisas corriqueiras e cotidianas do
Brasil Império, bem como abordar notícias amenas no calor da hora, aparentemente não
exigia a elaboração mais rigidamente formal pressuposta em outros gêneros literários.
No ato da leitura, o leitor lia a crônica sem preocupação estética, pois esse gênero não se
propunha como formal. Desse modo, o campo ficava aberto para a construção imagética
por meio de elementos técnico-estéticos com que o cronista também inovava em sua
produção textual. Com isso, a escrita da crônica torna-se, na pena do cronista,
eficazmente performativa, implicando o reconhecimento do próprio leitor na
decodificação do texto.
A performance, como momento privilegiado da recepção, torna-se produtividade
de leitura por meio de um conjunto de percepções provocadas no leitor pelo cronista.
Conforme Zumthor, esse procedimento aproxima-se da ideia de katharsis proposta por
Aristóteles, pois não consiste apenas em passar uma informação ao leitor, mas provocar
nele um deslocamento interpretativo dos temas tratados. 247 Utilizando-se do conceito
de horizonte de expectativas de Jauss, Zumthor observa o acordo que existe entre texto
e leitura, provocando o surgimento de um sentido apropriável pelo leitor.
Estabelecendo-se como concretização no ato da leitura, a performance, que implica a
percepção dos elementos estéticos e semânticos do texto, provoca transformações no
leitor, que os recebe como "emoção pura, mas que manifestam uma vibração fisiológica,
realizando o não-dito do texto lido, o leitor empenha sua própria palavra às energias
vitais que a mantêm" (p. 53). Performance é termo buscado em John Austin, em que “o
discurso performativo explícito ou implícito como ato de linguagem” é dotado de uma
força ilocucionária ou ilocutória que, ao ser dito, provoca reações no leitor.
Em nossa dissertação, já aqui citada, discutimos essa performatividade como
procedimento composicional nas crônicas “A + B”, mostrando que Austin define como
“proferimento performativo” o enunciado que, não se limitando a constatar algo como
verdadeiro ou falso, não é apenas um dizer, mas um fazer no momento em que elabora o
247 Ela a aproxima, de algum modo, da ideia de catarse, proposta (em um contexto totalmente
diferente) por Aristóteles! Comunicar (não importa o que: com mais forte razão um texto
literário) não consiste somente em fazer passar uma informação; é tentar mudar aquele a quem
se dirige; receber uma comunicação é necessariamente sofrer uma transformação.
ZUMTHOR, 2007, p. 52
386
dizer (AUSTIN, 1990, p. 38). Para definir os critérios dos proferimentos performativos,
Austin considera que deva haver algumas condições necessárias para isso. São elas: A1
– procedimento convencionalmente aceito, que apresenta um determinado efeito
convencional e que inclui o proferimento de certas palavras por certas pessoas e em
certas circunstâncias; A2 – as pessoas que o pronunciam, bem como as circunstâncias
devem ser adequadas; B1 – tal procedimento deve ser executado por todos os
participantes de modo correto; B2 – também deve ser executado de modo completo (p.
31). Desse modo, alguns enunciados são proferidos como constativos, porém efetuam
ações em seu proferimento, tornando-os performativos implícitos. Ducrot observa que
os proferimentos constativos são elaborados como enunciados que buscam descrever
certas imagens reais ou imaginadas que não estão à vista do interlocutor (DUCROT,
1984, p. 439). Além disso, aponta que a distinção entre dizer e fazer é falsa, pois, à
medida que um enunciado é elaborado, ele opera ações sobre o sujeito da enunciação e
o destinatário, considerando que todo ato enunciativo ocorre no quadro de uma
determinada cultura e submete-se a um controle social operado por meio de elementos
convencionais segundo determinados códigos que o sujeito enunciativo domina (p.
457).
No final da crônica de 1º de novembro de 1861, ao comentar sobre as diferenças
culturais entre muçulmanos e cristãos, o cronista diz:
I – Perspectivismo e Genealogia
248 O texto vibra; o leitor o estabiliza, integrando-o àquilo que é ele próprio. Então é ele que vibra,
de corpo e alma. Não há algo que a linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema
completamente fechados; e as lacunas e os brancos que aí necessariamente subsistem constituem
um espaço de liberdade: ilusório pelo fato de que só pode ser ocupado por um instante, por mim,
por ti, leitores nômades por vocação. Também assim, a ilusão é propria da arte. A fixação, o
preenchimento, o gozo da liberdade se produzem na nudez de um face a face. Em presença desse
texto, no qual o sujeito está ali, mesmo quando indiscernível: nele ressoa uma palavra
pronunciada, imprecisa, obscurecida talvez pela dúvida que carrega em si, nós, perturbados
procuramos lhe encontrar um sentido. ZUMTHOR, 2007, p. 53
389
A folha oficial, que toma o seu papel a sério, sem reparar que
encanta mais “par son plumage que par son ramage”, não se
arreceou de comprometer no futuro o queijo do experiente, e
abriu o largo bico para dizer que entre muitos candidatos um
havia que merecia exclusivamente os sufrágios dos eleitores.
(ASSIS, 2008d, 87)
Para avaliar a conjuntura política anunciada pela imprensa sobre o decreto que
regula a concessão de condecorações das ordens honoríficas do Império, o cronista
remete o leitor ao texto de Platão, no qual a personagem Agatão, ao discorrer sobre
Eros, afirma que "(...) e quando as partes se põem voluntariamente de acordo, as leis,
rainhas das cidades, declaram que é justo". (PLATÃO, 1980, p. 249) Com isso, por
meio da referência ao texto grego, o cronista compromete a seriedade e põe em
evidência o ridículo que caracteriza a ação ministerial. Ele o faz também polemizando
com o Jornal Oficial, o qual, diante das críticas, tenta justificar a ação do Ministro do
Império. Por meio da metáfora da águia, o cronista opera a redução qualitativa do
Ministro, estabelecendo a coerência entre a qualidade do sujeito e a de suas ações:
burlesca e má. Tanto a lei quanto o Ministro são alvos da crítica pelo negativo: a
metáfora da coroa é improcedente à lei ministerial – portanto, burlesca e má; a metáfora
da águia é improcedente ao Ministro do Império cujo horizonte limita-se à beira dos
telhados da sua secretaria. Ainda mais um exemplo: na crônica de 29 de dezembro de
1861, ao discorrer sobre o decreto que abria um crédito suplementar ao Ministro da
Fazenda, noticiado na folha oficial – Jornal do Commercio – o cronista o faz,
estabelecendo um paralelo comparativo com o governo francês de Napoleão III:
391
texto Niezstche, a genealogia e a história, quando, a certa altura, Foucault aponta uma
última característica do sentido histórico (wirkliche Historie) niezstchiano de que ele
não teme ser um saber perspectivo249. Se a história tradicional, em sua epistemologia,
esforça-se por apagar o que pode revelar, em seu saber, o lugar de onde os historiadores
olham, o momento em que estão e o partido que tomam, a genealogia sabe que é
perspectiva, não recusando o sistema de sua própria injustiça, pois olha de um
determinado ângulo para assim poder apreciar; conforme Foucault, "em vez de fingir
um discreto aniquilamento diante do que olha, em vez de aí procurar sua lei e a isto
submeter cada um de seus movimentos, é um olhar que sabe tanto de onde olha quanto
o que olha."
II – Multiplicidade de perspectivas.
249 Finalmente, última característica desta história efetiva: ela não teme ser um saber perspectivo. Os
historiadores procuram, na medida do possível, apagar o que pode revelar, em seu saber, o lugar de
onde eles olham, o momento em que eles estão, o partido que eles tomam - o incontrolável de sua
paixão. O sentido histórico, tal como Nietzsche o entende, sabe que é perspectivo, e não recusa o
sistema de sua própria injustiça. Ele olha de um determinado ângulo, com o propósito deliberado de
apreciar, de dizer sim ou não, de seguir todos os traços do veneno, de encontrar o melhor antídoto. Em
vez de fingir um discreto aniquilamento diante do que ele olha, em vez de aí procurar sua lei e a isto
submeter cada um de seus movimentos, é um olhar que sabe tanto de onde olha quanto o que olha. O
sentimento histórico dá ao saber a possibilidade de fazer, no movimento de seu conhecimento, sua
genealogia. A "Wirkliche Historie" efetua, verticalmente ao lugar em que se encontra, a genealogia da
história. (FOUCAULT, 2002, p. 30)
394
250 A reivindicação do subjetivo de Abram já sugere uma compatibilidade com Machado de Assis,
porque esta mesma defesa da subjetividade foi um dos principais projetos dos escritos do autor
brasileiro. Abram encontra abrigos para esta forma de pensamento em dois lugares bem distintos: no
xamanismo das culturas pré-modernas, e na filosofia fenomenológica de Edmund Husserl e Maurice
Merleau-Ponty. (DIXON, 2009, 66)
251 Quando o narrador reconhece e brinda o verme, como o primeiro agente a decompor seu corpo,
está demonstrando precisamente a mesma "reversibilidade" apontada por Abram. Enquanto narrador
que dedica seu livro, Brás é o sujeito e o verme o objeto. Enquanto refeição de "frias carnes", Brás é o
objeto e o verme o sujeito. Como Flávio Loureiro Chaves já reconheceu em seu estudo de Quincas
Borba (54-55), e como sustentei em meu livro sobre os contos, o pensamento de Machado de Assis
396
Ao trazer para o seu discurso os diversos eventos que circulam em seu cotidiano,
longe de querer analisar exaustivamente cada um deles, o cronista os personifica na
busca de alcançar o saber e, com isso, torna cada evento um sujeito incompletamente
interpretado. Tal método de composição textual coloca-se como oposição a qualquer
dogma cosmológico substantivo, pois se estabelece como experiência pessoal e,
portanto, é encorpado por meio da singularização de cada ponto de vista percebido na
ação dos eventos expostos. Confirma-se essa leitura no final da crônica de 1º de
novembro de 1861:
antecipa muitas ideias da filosofia fenomenológica, especialmente no que diz respeito à rejeição de
modelos objetivos em favor de um paradigma de intersubjetividade. O tratamento peculiar do mundo
natural em Machado deriva desta visão protofenomenológica. (p. 68)
397
Desse modo, a experiência manifesta nesse trecho marcada pelo ponto de vista
do cronista se opera como uma experiência corporal identificada por Viveiros de Castro
como habitus ou feixes de afecções e capacidades enquanto origem das perspectivas,
identificados pelo antropólogo como maneirismo corporal. Essa experiência marcada
como habitus pelo cronista permite que identifique seu lugar cultural ao ler a cultura do
outro sem com isso submetê-la aos valores de sua cultura; certamente, como trata
Viveiros de Castro no final de seu texto, os dois pontos de vista cosmológicos aqui
contrastados (...) são, do nosso ponto de vista, incompossíveis. Longe de buscar a
distinção entre a cultura mulçumana e a cristã, para proceder a uma relação hierárquica
de valores e de méritos, o cronista marca as diferentes formas de compreender o mesmo
evento como acidente que constitui um habitus e que pressupõe, em termos
nietzschianos, a proveniência (Herkfunt) como tronco de uma raça, pertencimento de
grupo – "do sangue, da tradição, de ligação entre aqueles da mesma altura ou da mesma
baixeza" (FOUCAULT, 2002, p. 20). Conforme observa, essa análise de proveniência
permite a dissociação do “eu” e faz pulular nos lugares e recantos de sua síntese vazia,
bem como reencontrar, sob o aspecto único, a proliferação dos acontecimentos para
mostrar a heterogeneidade daquilo que parecia estar em conformidade consigo mesmo
(p. 21). Novamente, observa-se a proximidade entre genealogia e perspectivismo, na
medida em que, se o perspectivismo ameríndio, como aponta o antropólogo, se dá pelas
diferenças dos corpos em suas afecções, afetos ou capacidades que singularizam cada
espécie de corpo, constituindo um saber para o outro em sua alteridade apreendida como
tal, na proveniência, sua inscrição dá-se no corpo, no sistema nervoso, no humor, no
aparelho digestivo, pois, como afirma o filósofo francês, o corpo traz consigo, em sua
vida e em sua morte, em sua força e em sua fraqueza, a sanção de todo erro e de toda
verdade, assim como traz consigo também e inversamente sua proveniência (p. 22).
Nesse corpo, encontra-se "o estigma dos acontecimentos passados, do mesmo modo que
dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles se atam e de
repente se exprimem, mas nele também eles se desatam, entram em luta, se apagam uns
aos outros e continuam seu insuperável conflito. Em suma: o corpo é a superfície de
inscrição dos acontecimentos e a genealogia está no ponto de articulação do corpo com
a história como análise de proveniência." Há nisso o que Zumthor identifica como
398
teatralidade, o laço que liga, por meio do corpo, a performatividade ao espaço em que
se opera. Isto é, na medida em que o acontecimento é, por meio das intertextualidades,
ficcionalizado pelo cronista por meio do deslocamento dos signos, o leitor, tornado
espectador, modifica seu olhar, vendo como espetacular aquilo que antes via como
acontecimento. Na crônica de 7 de janeiro de 1862, ao noticiar uma guerra iminente
entre os Estados Unidos e a Inglaterra, o cronista apropria-se desse acontecimento e o
transforma em espetáculo:
possíveis motivações das homenagens que se perdem na notícia. Desse modo, a leitura
perspectivista do cronista marca o conjunto de maneiras ou modos de ser na imagem
reenunciada em seu texto, de modo que os constitui como habitus. Isto é, como origem
das perspectivas ou análise de proveniência que demarcam os acidentes em seus ínfimos
desvios – na crônica, a aparência moderna que motiva as homenagens e a tradição da
homenagem que se apaga nessa aparência, mas que o cronista evidencia por meio do
sarcasmo – e, com isso, agita o que pretende ser imóvel e fragmenta o que se quer
unido, alcançando o ponto de articulação do corpo com a história. Tal movimento
evidencia na imagem constituída na crônica esses corpos inteiramente marcados de
história e a história arruinando o corpo, isto é, os filhos das Luzes e das tradições
burguesas denunciando, em seus maneirismos corporais , a velha prática de submissão
e adulação de vassalos a suseranos.
Esse modo de evidenciar as motivações individuais mascaradas por
comportamentos triviais que o cronista adota, utilizando-se do sarcasmo, manifesta-se
também em algumas crônicas na polêmica que trava com outro cronista identificado
como Scaevola. Este, em diversos momentos e a partir de qualquer assunto, acentua em
seus textos o sentimento patriótico de dominação do Império Brasileiro sobre os países
do Rio da Prata. Na crônica de 14 de janeiro de 1862, o cronista afirma:
O texto torna-se o lugar simbólico por excelência da voz, como uma articulação
entre o autor e o leitor e entre os sujeitos (leitor e autor) e o objeto. Com isso, a voz
restabelece no texto uma relação de alteridade que funda a palavra do leitor-autor,
mesmo quando essa voz é, por meio da leitura isolada, interiorizada. Com isso,
conforme observa Paul Zumthor, essa voz atravessa o limite do corpo sem rompê-lo,
significando o lugar do sujeito não reduzido a uma localização pessoal 254. Por meio das
lacunas que as crônicas estabelecem no ato de leitura, por meio da ilusão virtual que
produzem no leitor a partir dos elementos técnico-estéticos aqui abordados, as crônicas
tornam-se o espaço virtual por excelência que, por meio da performatividade, convida o
leitor a reorganizar saberes que se apresentam para ele no conjunto de leituras que é
forçado a fazer, juntamente com o cronista, sobre seu momento histórico, traçados nas
relações corriqueiras do cotidiano. Convidado a proceder a uma leitura perspectivista e
genealógica na reelaboração das informações que se reenunciam não pela tematização
enunciada que esconde a trama epistêmica que as motiva, mas por uma reconstituição
de sua proveniência, percebe as emergências que criam tensões entre campos e saberes
muitas vezes paradoxais. Essa forma de procedimento composicional, conforme
buscamos mostrar em nossa análise, seguida de aperfeiçoamentos da prática de escrita
machadiana, determina sua composição e reelabora uma nova relação do leitor com o
texto.
Esses procedimentos composicionais da crônica machadiana ao proporem o
dialogismo com o leitor, convocando-o a participar do processo de significação dos
textos de modo que se torne parte integrante dos efeitos de sentido por meio da
prova− um "não−lugar", uma pura distância, o fato que os adversários não pertencem ao mesmo
espaço. (p. 24)
254 Primeira tese: a voz é o lugar simbólico por excelência; mas um lugar que não pode ser
definido de outra forma que por uma relação, uma distância, uma articulação entre o sujeito e
o objeto, entre o objeto e o outro. A voz é pois inobjetivável. Segunda tese: a voz, quando a
percebemos, estabelece ou restabelece uma relação de alteridade, que funda a palavra do
sujeito. Terceira tese: todo objeto adquire uma dimensão simbólica quando é vocalizado.
Concebem-se as implicações dessa tese para a poesia; tanto mais ela permanece plenamente
verdadeira quanto mais a voz é interiorizada, e não se produz percepção auditiva registrável
por aparelhos. Quarta tese (ela também se referindo diretamente ao poético): a voz é uma
subversão ou uma ruptura da c1ausura do corpo. Mas ela atravessa o limite do corpo sem
rompê-lo; ela significa o lugar de um sujeito que não se reduz à localização pessoal. Nesse
sentido, a voz desaloja o homem do seu corpo. Enquanto falo, minha voz me faz habitar a
minha linguagem. Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele. Quinta tese: a voz
não é especular; a voz não tem espelho. Narciso se vê na fonte. Se ele ouve sua voz, isto não é
absolutamente um reflexo, mas a própria realidade. Sexta tese: escutar um outro é ouvir, no
silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa voz, dirigindo-se a mim, exige de
mim uma atenção que se torna meu lugar, pelo tempo dessa escuta. Essas palavras não
definiriam igualmente bem o fato poético? (ZUMTHOR, 2007, p. 97)
403
255 Max Black não se limita a opor uma teoria da interação a uma da substituição. Ele acrescenta a
esta uma teoria da comparação na qual vê um caso particular da anterior. Não é, contudo, desta
maneira que ela é introduzida, mas a partir de uma reflexão geral sobre a noção de linguagem
"figurativa": toda figura implica um deslocamento, uma transformação, uma mudança de ordem
semântica, que faz da expressão figurada uma função "no sentido algébrico" de uma expressão literal
preliminar. (RICOEUR, 2005, p. 137)
256 Depois de ter enfrentado a violência da interpretação, temos de encarar a possibilidade inversa, a
de uma redundância da interpretação. (RICOEUR, 2010, v. 1, p. 127)
404
teóricas por conta de toda a discussão sobre o conceito ideologia. Entendendo portanto,
que os diferentes usos da metáfora são determinados e que ela pode ser usada tanto para
colocar em questionamento os discursos dominantes como também para reafirmá-los
(em concordância com a análise de Hutcheon sobre a ironia), trataremos a metáfora
como transfuncional. Essa transfuncionalidade da metáfora confirma a observação de
Donald Davidson, cuja compreensão de sentido da metáfora só é possível a partir da
análise dos textos onde ela é utilizada.
Partindo desse pressuposto, a análise que pretendemos fazer nas crônicas de
Machado de Assis busca não uma definição conceitual abstrata da metáfora, mas a
compreensão da função atribuída a ela pelo escritor como recurso discursivo da
construção de seus textos. Desse modo, partimos do entendimento da palavra como
elemento integrante do enunciado, o qual se constrói como respostas a enunciados
anteriores e futuros. A elaboração da palavra como discurso estabelece diálogos em seu
contexto de uso, devendo-se considerar os sujeitos envolvidos no ato da enunciação.
Posto isso, ao tratarmos da metáfora nos textos machadianos, mais
especificamente em suas crônicas, devemos considerar alguns pontos importantes:
- Tanto a linguagem poética quanto a linguagem cotidiana são marcadas por
palavras metafóricas, independentemente da funcionalidade que lhes é dada pelo
enunciador;
- A metáfora pode estar consolidada de tal modo na linguagem corrente que seu
sentido figurado não é mais percebido como tal, tornando-se literal pelo uso – o que os
teóricos identificam como a “metáfora morta” ou catacrese;
- Disso decorre que o sentido figurado, sem sofrer alteração semântica, torna-se
literal no uso corrente, perdendo seu sentido usual anterior ou mantendo concomitância
com ele;
Nesse sentido, não consideraremos todos os usos metafóricos presentes nos
textos machadianos, mas nos ateremos a um uso particular da metáfora como
procedimento de desconstrução de valores e sentidos que determinam sua semântica.
Considerando esses apontamentos anteriores – a recorrência da metáfora tanto no
discurso cotidiano quanto no discurso poético, bem como a presença de catacreses como
metáfora morta – pretendemos observar essa particularidade na produção machadiana, a
qual se utiliza de metáforas mortas (as catacreses) e opera nelas, seja em trechos do
texto ou no todo, um processo de desconstrução do sentido já consolidado pela
literalização da metáfora.
406
Dirce Cortês Riedel, em sua obra Metáfora: O Espelho de Machado de Assis, faz
uma análise minuciosa do uso das metáforas nos romances da segunda fase machadiana,
definindo o procedimento de uso como metáfora paródica257. Com base nos trabalhos
de Bakhtin, a autora afirma que esse parodiar produz um duplo descoroamento, isto é,
coloca o próprio mundo às avessas. Desse modo, entende os textos que analisa como
textos construídos pela recorrência da paródia, uma vez que o narrador equívoco
parodia ao mesmo tempo que negaceia o conflito das duas vozes, estabelecendo uma
ambivalência entre a paródia e a estilização. Ao analisar o romance Quincas Borba, a
autora mostra como os enredos e as personagens, na recorrência da paródia e da
estilização, se estabelecem a partir dos contrastes entre alto e baixo, grandeza e queda,
nobreza e abjeção, estabelecendo o tragicômico da situação carnavalesca com que o
narrador apresenta seus defeitos e vícios258.
A primeira metáfora paródica observada por Riedel é o nome dado à filosofia de
Quincas Borba: o Humanitismo. Referência ao Positivismo de Augusto Comte, essa
filosofia se propõe princípio das coisas na mesma chave do sistema filosófico genético
do positivismo como base da religião da Humanidade "com a qual o filósofo de
Montpellier completou o seu sistema" (RIEDEL, 1974, p. 4). É como paródia do
Positivismo, portanto, que Quincas Borba desenvolve a filosofia do Humanitismo:
257 Apesar de utilizarmos o mesmo conceito de Riedel para os modos de uso da metáfora em
Machado de Assis, preferimos o termo anti-metáfora a metáfora paródica, pois identificar esse uso
como metafórico não torna possível evidenciar seus efeitos de desvio provocados no ato da leitura,
uma vez que a metáfora não é propriamente desvio, mas redução de desvio para que o sentido que ela
evoca possa ser compreendido pelo leitor. Só haverá desvio se a palavra metafórica for tomada em
sentido literal. É justamente esse o procedimento que Machado utiliza para desarticular a metáfora
tornada como catacrese e, assim, acentuar não a similaridade, mas as diferenças entre o sentido
corrente da palavra e o sentido que o contexto lhe dá por meio da figurativização. (RICOEUR, 2005,
p. 236)
258 O que caracteriza os opostos que trocam de postos, no coroamento-descoroamento dos
personagens é o conceito espacial “alto/baixo”, conceito que constrói modelos culturais sem nenhum
conteúdo espacial, tomando, no sistema interno do texto, os sentidos de –
“coroamento/descoroamento”, “grandeza/humilhação”, “loucura/razão”, “não-senso/senso-comum”,
“impassibilidade/subserviência”, “domínio/desorientação”, “auto-domínio/insegurança”, “realidade
intangível/realidade tangível”, “delírio poético/realidade palpável”. RIEDEL, 1974, p. 26-27
407
Se, como vimos nessa citação, a preocupação do filósofo francês é definir sua
filosofia como dogma que estabelece a ordem entre o objeto contemplado e o sujeito
contemplador e, para tanto, estabelece sua crítica ao protestantismo, religião dominante
do seu meio social, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba estabelece a
definição religiosa de sua filosofia, primeiro pela crítica a uma religião estranha ao
Brasil no século XIX. Isto é, se seu Humanitismo liga-se ao bramanismo - religião
indiana - ao estabelecer a concepção de castas no corpo social, a diferença com essa
religião dá-se pela individualização e pelo rebaixamento por meio da corporalidade. No
Bramanismo, a organização social repousa na divisão em castas hereditárias, assim
como também no hinduísmo, de forma que essa organização social é expressa pela
metáfora do corpo humano. No Humanitismo, o que o filósofo define como uma estreita
significação teológica e política do bramanismo, torna-se a grande lei do valor pessoal.
Desse modo, há um processo de literalização da metáfora "corpo" por meio da
individualização, de modo que a diferença não se dá mais por castas, mas pelas partes
do corpo de que cada pessoa descende: "Assim, descender do peito ou dos rins de
Humanitas, isto é, ser um forte, não era o mesmo que descender dos cabelos ou da ponta
do nariz. Daí a necessidade de cultivar e temperar o músculo." Desse modo, a metáfora
paródica dá-se por meio da literalização e do rebaixamento, e, portanto, da
desautomatização do corpo metafórico - termo muito em voga na filosofia e sociologia
da época - para um retorno do corpo biológico tratado como conceito filosófico. Essa
metáfora paródica evidenciada por Riedel produz o que chamamos de anti-metáfora,
isto é, o processo de desautomatização da catacrese (metáfora morta) que é enunciada
como metáfora viva, para então, retomar outros aspectos apagados do sentido figurativo
da metáfora. Em outras palavras, como observa Foucault em As Palavras e As Coisas
410
ao tratar das quatro similitudes no século XVI, a segunda forma da trama semântica, a
aemulatio, apresenta-se sob a forma de um simples reflexo e que, ao se transportar por
meio da metáfora, faz com que as duas figuras se apossem uma da outra, de modo que o
semelhante envolve o semelhante e cercam-se até se envolverem por uma duplicação
que tem o poder de prosseguir ao infinito, estabelecendo-se como círculos concêntricos,
refletidos e rivais259.
Ao discutir sobre o significante despótico em sua obra O Anti-Édipo, , Deleuze e
Guattari observam que, como representação recalcante, o significante sobrecodifica a
cadeia territorial por meio das famosas metáforas e metonímias e induz o significado à
sua constituição de máquina despótica sobrecodificante e desterritorializada, mantendo-
nos presos à questão "o que isso quer dizer?" de modo que todas as respostas se tornem
insuficientes ao remetê-la ao nível de um simples significado260. No exemplo de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, o Humanitismo é definido como corpo, porém,
diferentemente do bramanismo - e das ciências sociológicas e filosóficas do século XIX
- há um processo de literalização dessa metáfora. Como observa Susanne Lüdermann no
vocábulo corpo, organimo, no Dicionário de Metáforas Filosóficas:
259 A emulação apresenta-se de início sob a forma de um simples reflexo, furtivo, longínquo;
percorre em silêncio os espaços do mundo. Mas a distância que ela transpõe não é anulada por sua
sutil metáfora; permanece aberta para a visibilidade. E, neste duelo, as duas figuras afrontadas se
apossam uma da outra. O semelhante envolve o semelhante, que, por sua vez, o cerca e, talvez, será
novamente envolvido por uma duplicação que tem o poder de prosseguir ao infinito. Os elos da
emulação não formam uma cadeia como os elementos da conveniência: mas, antes, círculos
concêntricos, refletidos e rivais. (FOUCAULT, 2002, p. 28-29)
260 O significante, terrível arcaísmo do déspota em que ainda se procura o túmulo vazio, o pai morto
e o mistério do nome. E talvez seja isto que anima hoje a cólera de certos linguistas contra Lacan,
assim como o entusiasmo dos adeptos: a força e a serenidade com que Lacan reconduz o significante à
sua origem, à sua verdadeira origem, a idade despótica, e monta uma máquina infernal que solda o
desejo à lei, porque refletindo bem, pensa ele, é certamente sob esta forma que o significanete convém
ao inconsciente e aí produz efeitos de significado. O significante como representação recalcante, e o
novo representado deslocado que ele induz, as famosas metáforas e metonímias - tudo isso constitui a
máquina despótica sobrecodificante e desterritorializada. O significante despótico tem por efeito
sobrecodificar a cadeia territorial. O significado é precisamente o efeito do significante (não o que ele
representa ou designa). (DELEUZE & GUATTARI, 2011, pp. 276-277)
411
castigo para o qual servia esse objeto no tempo de Cristo. Conforme a análise de
Fernanda Maria Matos da Costa, em sua dissertação de mestrado A morte e o morrer em
Juiz de Fora, observa que a cruz como símbolo tem seu significado associado a
questões de natureza transcendental em diferentes sociedades, cuja apropriação do
cristianismo a enriquece como símbolo, condensando nela a história da salvação e a
paixão do Salvador como possibilidade de ressurreição.261 Vemos que, como símbolo
do cristianismo, a cruz substitui a analogia de proporção por uma analogia de
proporcionalidade que, como observa Deleuze e Guattari citado anteriormente, opera
um processo de sobrecodificação e desterritorialização, isto é, se a cruz em diferentes
culturas tem diferentes funções e significados, sua apropriação pelo cristianismo e seu
condicionamento como símbolo da fé cristã opera o despotismo do significante que
barra de antemão a significação como estoque transcendente e distribui a falta a todos os
elementos da cadeia. É essa barragem e controle pela falta que o cronista faz evidenciar
ao retornar o sentido literal da cruz não ao sacrifício para o qual seu símbolo funciona,
mas ao castigo, isto é, "se, no fim de um mês de leitura, o católico não tem perdido a fé
em que vive, — está livre de tornar-se herege..." Essa crítica evidencia a forma como a
matéria do jornal pretende apresentar o general como um bom católico segundo critérios
políticos e não religiosos. Em crônica do dia 7 de agosto do mesmo ano, o cronista volta
à mesma crítica, sobretudo pelo jornal seguinte ter apresentado o general como modelo
a ser seguido por outros generais:
261 A cruz , como símbolo, teve seu significado comumente associado a questões de natureza
transcendental, em diferentes sociedade. Exercendo variadas funções (síntese, medida, ponte, pólo do
mundo, entre outros, a cruz exerce um papel mediador entre o mundo terrestre imanente e o mundo
supratemporal transcendente, através de seus dois eixos cruzados. Dessa forma, o simbolismo da cruz
foi apropriado pelo cristianismo, enriquecendo e condensando nessa iagem a história da salvação e a
paixão do Salvador, significando também a possibilidade da ressurreíção. "A cruz simboliza o
Crucificado, o Cristo, o Salvador, o Verbo, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Ela é mais que
uma figura de Jesus, ela se identifica com sua história humana, com sua pessoa". Segundo um
dicionário de 1858, a cruz é "signal venerável" para os cristãos, porque nela padeceu Jesus Cristo; a
associação com a morte e o morrer é inevitável: "Instrumento formado de duas hasteas que se
atravessam ordinariamente em angullos recots, ou com pequena differença, e sobre o qual antigamente
se pregavam, ou atavam os criminosos, do modo que se vê nos crucifixo, para os fazer morrer; entre
os Christão é signal veneral, porque nella padeceu Jesus Christo. Era também insígnia do ídolo
Serapis, do Egypto" (MATOS, 2007, p. 82)
413
Sócrates – São dores de parto, meu caro Teeteto. Não está vazio;
algo em tua alma deseja vir à luz.(...)
Sócrates – E nunca ouviste falar, meu gracejador, que eu sou
filho de uma parteira famosa e imponente, Fanerete?
Teeteto – Sim, já ouvi.
Sócrates – Então, já te contaram também que eu exerço essa
mesma arte? (PLATÃO, 2001, p. 45) 262
262 Na edição bilingüe Grego-Italiano, organizado por Luca Antonelli de 1994, o termo em grego é
, traduzido para o italiano como arte maieutica; na tradução brasileira feita por Carlos
Alberto Nunes de 2001 – tradução que utilizamos neste trabalho – aparece como arte obstétrica.
416
missão de presidir aos partos por nunca ter dado à luz, tem por pressuposto sua
superioridade, decorrente de não precisar ser fecundado por outro sábio. Sócrates
considera também que o artista da seja dotado de conhecimento para
discernir se o fruto da concepção é bom ou ruim, de modo que possa "levar a bom termo
partos difíceis ou expulsar o produto da concepção quando não se acha muito
desenvolvido" (p. 46); também, é necessário que o parteiro seja bom casamenteiro,
podendo conhecer qual a mulher mais indicada para esse ou aquele varão, com objetivo
de terem filhos perfeitos; por fim, após estabelecer as semelhanças entre a arte da mãe e
a sua, o filósofo distancia-se dela, inferiorizando-a em relação a si, por ela tratar de
corpos e, por isso, não poder definir se o fruto da concepção é falso ou verdadeiro. A
arte socrática trata de almas e, portanto, não parteja mulheres, mas homens, podendo
definir se o fruto é falso ou verdadeiro. No trecho da crônica machadiana, como
veremos mais à frente, a referência à maiêutica socrática é direta. Contudo, se no texto
de Platão a metáfora é viva, em Machado e no século XIX esse sentido figurado
atribuído ao termo está tão consolidado que a palavra se tornou uma catacrese, isto é,
qualquer filósofo, intelectual ou político que se defrontassem com esse termo
imediatamente o associariam ao sentido filosófico socrático. Embora nos dicionários de
Língua Portuguesa de 1871 e de 1913 que pesquisamos não apareça o termo maiêutica,
no Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie ,de André Lalande, cuja
primeira edição se deu em 1902263, o termo é definido como:
263 A edição que consultamos é de 1960, isto é, a 8ª edição, revista pelos membros e correspondentes
da Sociedade Francesa de Filosofia
417
264 É importante observar que a oposição só é percebida, se considerarmos o contexto social das
relações entre homens e mulheres no Brasil do século XIX. Em setembro de 1791, Olympe de Gouges
lança sua “Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne” como forma de desafiar a conduta
injusta da autoridade masculina e da lógica patriarcal expressa nas “Declarations des droits de
l’homme et du citoyen”. Em 1790, na Inglaterra, Mary Wollstonecraft publicou seu livro A
Vindication of the Rights of woman, onde estão lançadas as bases do feminismo moderno. Em 1832,
Nísia Floresta publicou sua tradução livre da obra de Mary, com o título Direito das mulheres e a
injustiça dos homens, cuja terceira edição foi lançada no Rio de Janeiro, em 1839 (a segunda foi em
Porto Alegre em 1833). Além de Nísia Floresta, diversas outras mulheres participavam ativamente da
vida política e cultural na capital do Império. Obviamente, isso não tornava a sociedade carioca e
brasileira menos machista, muito pelo contrário. Conforme mostram diversas estudiosas, como
Constância Lima Duarte, biógrafa de Nísia Floresta, eram recorrentes os ataques que essas mulheres
sofriam na imprensa carioca por conta de seu ativismo feminista, mas, apesar disso, tiveram
significativa influência em vários escritores, como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e
Machado de Assis.
265 Vale observar que, apesar da diferença estabelecida pelo filósofo entre a sua arte e a da parteira –
o filósofo trata de homens e a parteira de mulheres –, tal distinção não pode ser compreendida como
desigualdade entre os sexos no contexto de Platão por ser a condição inferior atribuída à mulher em
relação ao homem um elemento dado como norma entre os gregos.
418
cronista retoma a discussão feita na crônica anterior do dia 16 de dezembro, sobre o ato
do ministro do Império que, por meio do decreto nº 2.858 de 7 de dezembro de 1861,
regulava a concessão de condecorações das ordens honoríficas do Império. Na crônica
do dia 16, o cronista afirma que tal ato foi feito como tentativa do Ministro em reunir
retalhos e fazer seu manto de glória. Na crônica do dia 24 de dezembro, opera a anti-
metáfora da maiêutica ao afirmar que o decreto de concessão às condecorações era um
parto moral, deixando o ministro em convalescença, mas que o pequeno passava bem:
"O Sr. Ministro do Império, esse, depois do longo e laborioso trabalho da parturição
moral, relativamente ao regulamento das condecorações, ficou abatido; a crise foi
tremenda; as conseqüências não podiam ser menos. Acha-se em convalescença; o
pequeno está bom." (ASSIS, 2008d, p. 135)
Ricoeur, baseando-se em Derrida, problematiza a tensão entre o conceito
filosófico e a metáfora morta. Essa tensão tende a se diluir na medida em que a metáfora
alcança a sua eficácia para, uma vez tornada catacrese, estabelecer um movimento de
ascendência que constitui a formação do conceito.266 Desse modo, a superação do
termo elevada à condição de conceito dá-se pelo que o autor identifica como usura da
metáfora. Esse movimento da metáfora, que passa do figurado para seu apagamento
conotativo é um movimento de idealização. O autor observa que esse movimento de
idealização – no exemplo citado acima, o movimento da palavra que deixa de denotar a
prática da mãe de Sócrates até tornar-se o conceito filosófico socrático – "põe em ação
todas as oposições características da metafísica: natureza/espírito, natureza/história,
natureza/liberdade, assim como sensível/espiritual, sensível/inteligível,
sensível/sentido." (p. 441)
A manutenção do termo maiêutica como procedimento para se obter
conhecimento, no século XIX, tempo em que a participação da mulher nas ciências, na
política, na educação, no comércio e em diversas outras áreas era mais comum em
relação à cultura grega, reforça a misoginia e, portanto, a desigualdade entre os sexos.
266 Uma simples inspeção do discurso segundo sua intenção explícita, uma simples interpretação pelo
jogo da pergunta e da resposta não bastam mais. À desconstrução heideggeriana deve doravante
acrescentar-se a genealogia nietzschiana, a psicanálise freudiana, a crítica marxista da ideologia, isto
é, as armas da hermenêutica da suspeita. Assim armada, a crítica está à altura de desmascarar a
conjunção impensada da metafísica dissimulada e da metáfora usada. Mas a eficácia da metáfora
morta só toma seu sentido completo quando se estabelece a equação entre a usura que afeta a
metáfora movimento de ascendência que constitui a formação do conceito. e o rn a da metáfora se
dissimula na "superação" do conceito. Por “superação”, J. Derrida traduz com muita felicidade a
Aufhebung hegeliana. Desde então, reviver a metáfora é desmascarar o conceito. (RICOEUR, p. 2005,
p. 440)
419
Desse modo, o homem que deve governar a pólis é o filósofo, pois, enquanto o
guerreiro defende a cidade e o comerciante a sustenta, o filósofo é quem pode dar bom
267 Machado escarnece, pelo humor, confirmando-a e esvaziando-a, a escritura de um mundo que se
supõe estável, que se acomoda em valores fixos, numa literatura de significado, que privilegia o
sentido consignado no dicionário como sentido primeiro - a denotação. (RIEDEL, 1974, p. 29)
420
termo a ela, por ser um homem dotado de justiça, virtude própria do conhecimento. A
república, isto é, a coisa (res) pública deve estar sob o cuidado de homens sábios:
célebre: “Este mundo me espanta e não posso imaginar que este relógio exista e não
tenha relojoeiro”. Em 1802, Wiliam Paley define o universo como uma grande
arquitetura que tem por trás de si o seu arquiteto, sendo esse arquiteto um grande
relojoeiro. A metáfora relojoeiro associada a Deus pelos iluministas deístas tornou-se
comum no século XIX, literalizando-se, embora esse sentido estabelecesse
concomitância com a definição semântica de quem exerce a profissão de relojoeiro.
É importante observar que, para esses iluministas, a metáfora relojoeiro
pressupõe uma ordem lógica no universo e uma concordância com a ideia de um
criador, embora divergissem dos teístas, por não acreditarem que esse criador
controlasse a criação. A ideia pressuposta nessa metáfora morta e, portanto, consolidada
por seu uso corrente, é a de que o Universo funciona numa lógica coerente e causal,
como também a afirmação da existência de um ser perfeito que tenha dado organicidade
e funcionalidade à vida.
Na crônica, ao se apresentar como um relojoeiro, o cronista indiretamente se
equipara a Deus – assim como Brás Cubas se equipara a Moisés. Contudo, a anti-
metáfora opera-se pelo destronamento desse Deus Relojoeiro; para os iluministas
citados anteriormente, a comparação de Deus ao relojoeiro deve-se ao poder de criar o
relógio – o Universo – que funciona segundo uma lógica coerente; na crônica
machadiana, o relojoeiro exerce o ofício pela crença nessa lógica; contudo, sente-se
frustrado por descobrir que há discrepância entre os relógios, podendo estar certo o dele,
como o do barbeiro. O cronista, ao referir a metáfora iluminista que remete ao Deus
cristão, opera a anti-metáfora, que torna a catacrese relojoeiro à sua condição de
metáfora para, a partir de outras características, desconstruir o sentido metafórico
cristalizado nessa catacrese. Embora a palavra relojoeiro seja utilizada em sentido
metafórico, a ação desse relojoeiro é literalizada, pois sua descrença no ofício deve-se
ao fato de não poder controlá-lo conforme pressupõe a metáfora iluminista. Aqui vemos
que a norma é restabelecida às avessas, isto é, o código não é negado, apenas os valores
se permutam de modo opositivo, permitindo, conforme observa Riedel, que a
dissonância centre a leitura das oposições machadianas, de modo que, ao deslocar os
postos por seus opostos, produza uma descentralização como oposições fixas.
Essa oposição é percebida na sequência do texto onde, mais à frente, o relojoeiro
descrente tem como alternativa ir à fava ou tornar-se escritor, isto é, cronista.
Novamente, o cronista recupera outro termo metafórico também associado ao tempo,
mas que remete ao deus pagão Chronos. Há, nesse processo desconstrucionista, um
424
268 Essas inversões caracterizam uma literatura carnavalizada, penetrada do sentimento das
mudanças e das conversões e dos contrastes carnavalescos na sucessão de coroamentos –
descoroamentos, e da lógica carnavalesca na ascensão por impostura e demagogia. RIEDEL, 1974,
p. 42
425
Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta
lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-
feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote
que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-
lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e
quinhentos, e dei um jantar. Neste jantar, a que os meus amigos
deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni
umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três
(anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
(ASSIS, 1956, p. 83)
Desse modo, a relação de superioridade entre senhor e escravo era mais que
moral, era geopolítica pela clivagem geográfica e racial determinada entre colonizador
(Europa) e colonizado (Brasil). Conforme a autora observa em outra parte de sua obra, a
escravidão tinha também um valor moral religioso associado à resignação e submissão
que impunha sobre o escravizado uma carga positiva para torná-lo escravo fiel
(SPERBER, 556). Nessa perspectiva da moral cristã, o senhor, ao dar ao escravo a carta
de alforria, transformava o direito em favor, positivando com a moral cristã a sua
imagem de bom senhor. A metáfora alforria invoca não apenas o ato em si, mas o
contexto de valores que determinam as posturas dos senhores escravocratas diante da
sociedade. Nesse sentido, a ação do cronista é invertida, pois, ao invés de sua ação ser
determinada pelos valores da moral cristã que o tornariam um homem bom, ele se
movimenta para essa imagem, mas, ao fazê-lo de modo calculado, mostra a real
intenção que determina a ação de dar a carta de alforria ao jovem Pancrácio. Ao fazer
isso, o cronista mostra ao leitor a metáfora pelo seu inverso ou avesso, produzindo a
anti-metáfora da palavra alforria:
Princesa Isabel, como a libertadora dos escravos. Dessa forma, apaga as diversas
tensões dos processos políticos que determinaram a lei de 13 de maio, tornando a
história do país um belo conto de fadas. Contudo, na crônica do dia 20-21, Machado,
por meio da paródia do Evangelho de São João, opera a desconstrução da metáfora
Abolição. Agora o faz não pela aplicação literal do sentido etimológico da palavra, mas
por meio do paralelo paródico estabelecido entre o seu contexto e o contexto do
evangelista, transformando a anti-metáfora numa alegoria, como anti-metáfora
continuada:
269 Os importantes trabalhos de Dirce Cortes Riedel sobre as metáforas machadianas (aos quais
faremos referência no capítulo sobre as anti-metáforas em Machado de Assis) e sobre o tempo no
romance machadiano foram reunidos pela EDUERJ com esse título em 2008. Conforme a editora
afirma na contracapa da obra, essa compilação das duas obras em uma é resultado de duas
homenagens: "Por um lado, homenageia o Ano do Centenário de Machado de Assis, instituído pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Por outro, a memória daquela que foi formadora de
gerações, professora emérita da universidade, participante ativa do processo do ensino universitário de
literatura no Brasil - Dirce Cortes Riedel. O presente volume reúne os dois livros que Dirce Cortes
Riedel escreveu sobre o escritor brasileiro por quem nutria maior paixão. Com base nessa paixão, ela
construiu sua inigualável persona de educadora. Ao escrever, ensina a ler o incontornável Machado de
Assis.Republicados em ordem cronológica inversa, O tempo no romance machadiano (1959) e
Metáfora: o espelho de Machado de Assis (1974) confirmam que podem ser de interesse para o
estudioso de Machado e da Literatura Brasileira. Baseado em tese defendida em 1957, O tempo no
romance machadiano nos resgata uma Dirce de vanguarda. Já Metáfora: o espelho de Machado de
Assis nos revive a Dirce plenamente mestra, dona de uma metodologia própria de análise literária".
(EDUERJ, 2008) Cabe ainda observar que uma das grandes contribuições de Riedel para a crítica
machadiana foi a introdução das teorias de Bakhtin como instrumental teórico de análise das obras
machadianas.
270 Para Aldous Huxley (O tempo e a máquina), o tempo objetivo, como o conhecemos, é invenção
muito recente. O moderno sentido de tempo é quase tão novo quanto os Estados Unidos, um
subproduto do industrialismo, um tirano. A consciência que temos do tempo atingiu tal intensidade,
que nos horrorizamos com a falta de pontualidade do Oriente, com a resignação com que um hindu
aceita as horas vazias. Nossa noção do tempo, considerada uma coleção de minutos, dos quais cada
um é preenchido por alguma ocupação, é totalmente estranha ao oriental. Num mundo pré-industrial,
não há a consciência da existência dos minutos. E, examinando o paradoxo a que chegamos, conclui
Huxley que, possuindo a mais viva consciência das mínimas parcelas constitutivas do tempo, perdeu o
homem industrializado a antiga consciência do tempo nas suas mais profundas divisões. Conhecemos
o tempo artificial das máquinas, mas perdemos a consciência do tempo natural, do majestoso tempo
cósmico, medido pelo sol e pela lua. (RIEDEL, 2008, p. 166)
271 Na construção dos três romances estudados, a arbitrariedade na disposição dos capítulos,
inarticulados, muitas vezes, é causada pela estrutura em dois planos, e não vertical. Há o plano do
narrador e o plano da narrativa, mas, como aquele é parte desta, a descontinuidade do seu tempo
interior, da sua durée é que impera. As cenas nunca são narradas de fora, à maneira épica, mas
parecem representadas à maneira dramática, como continuam vivas no narrador (p. 216)
433
272 A tarefa de verificação da opacidade de uma obra, conquanto possa ser orientada empírica e
intuitivamente, é de difícil execução. Há que conceber a obra como um todo divisível em alguns
níveis que se articulam. Esses níveis podem variar com a argúcia do analista. Geralmente a dividimos
nos níveis de narração/personagem/lingua(gem). O estudo desses níveis indicará a complexidade das
obras, complexidade que aqui aparece como sinônimo de espessamento da escrita. Poder-se-ia dizer
que aqui é que se realiza melhor o espaço simbólico das heterotopias a que se referia Foucault. Em
nossa literatura parece ter sido Machado de Assis, na ficção, quem primeiro trabalhou insistentemente
no espaço do simbólico, privilegiando antes os signos que a realidade empírica. Tome-se o exemplo
máximo em Memórias póstumas de Brás Cubas: a invenção do espaço em branco e a reinvenção do
espaço preto das letras, a desarticulação da linearidade e da cronologia embaralhando espaços
fantásticos do delírio e da loucura, a decomposição da causalidade do antes e do depois rearticulando
o tempo da vida e da morte aleatoriamente; tudo aí mostra que Machado, no nível da narração,
principalmente, trabalhou sobre a opacidade dentro e fora da série literária. Por isso é que os críticos
nunca conseguiram colocá-lo numa única escola. Seus vínculos eram com um universo simbólico
bastante individualizado por meio do qual ele contestava a ideologia literária e a ideologia da
comunidade. (SANT'ANNA, 2012, p. 66)
434
273 A razão do alienista Dr. Simão Bacamarte é fantasia de obcecado que tem poderes para exercê-la.
A filosofia de Quincas Borba é caricatura de razões darwinianas e jargão positivista. Descrendo da
evolução linear e satirizando os prodígios das novas ciências, o universalismo moral de Machado
situa-se às vezes aquém das reações agônicas de Pompéia, Euclides e Cruz e Souza, mas às vezes
parece ir além delas. Aquém: é a sua indiferença à modernização ideológica que já então prometia
mais do que cumpriria; daí o efeito de contrapelo conservador que produziu em alguns leitores a sua
reserva ou isenção em face das utopias do tempo. Mas além: o século que passou e que nos separa de
Machado nos obriga a rever criticamente o próprio conceito fetichizado de modernidade como fatal
liberação das amarras da injustiça, da violência e da impostura. (BOSI, 1999, pp. 157-158)
435
274 Oswald de Andrade, em Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, leva
mais adiante o espessamento da escrita. Ao assinar o prefácio de Memórias sentimentais de João
Miramar por meio do personagem Machado Penumbra mostra a natureza parodística de sua escrita e
incrementa a complexidade dentro de nosso espaço ficcional. Oswald leva adiante o espessamento da
escrita. Investe contra a ideologia social e literária de modo mais agressivo. Atinge outros níveis de
desarticulação da narrativa que Machado não atingiu: instaura o texto como produto
(des)compromissado com a prosa e a poesia. Não se trata de retomar o romance poético de Alencar. A
experiência, reflexo dos procedimentos futuristas europeus, traz o texto para um novo espaço de
libertação. O texto se produz alheio às convenções do que se chama gênero literário (p. 66)
436
275 Conforme nota de rodapé feita por Leonardo Affonso de Miranda Pereira, o Rio de Janeiro era
invadido, na ocasião, por diversas nuvens de gafanhotos - como aquela noticiada no Jornal do
Commercio do dia 10 de outubro de 1876 sob o título "Ainda gafanhotos": "Ontem, pouco depois do
meio-dia, nas proximidades da estação de Entre Rios foi avistada uma nunvem de gafanhotos
seguindo o rumo norte". Nota de rodapé nº 2 p. 126
437
Este mês de maio, que é o mês das flores, vai ser o mês das
artes, que são as flores do espírito. Bonita idéia! Não é sublime,
mas tem a vantagem de ser chocha. Dou-a de graça, ao primeiro
poeta aux abois.
Mas, dizia eu, que vai ser o mês das artes, como já é o mês dos
malasartes; haja vista o roubo ao general Osório. Furtado
Coelho, à hora em que escrevo, está a chegar; talvez haja
chegado à hora em que o leitor verá estas linhas. (p. 197; grifo
nosso)
276 Para dar esse último passo, Agostinho retoma uma asserção anterior (16, 21 e 21,27), que não só
ficou em suspenso como apareceu engolida pelo assalto cético, qual seja, a de que é quando o tempo
passa que o medimos; não o futuro que não é, não o passado que já não é, nem o presente que não tem
extensão, mas "os tempos que passam". É na própria passagem, no trânsito, que se deve buscar
concomitantemente a multiplicidade do presente e seu dilaceramento (RICOEUR, 2010, volume 1, p.
32).
438
mede não é o passado nem o futuro, mas expectativas e lembranças como produtos do
presente277. Ao demarcar na linguagem a noção de temporalidade, isto é, por meio do
uso de advérbios, locuções adverbiais e as conjugações verbais 278, a análise de Ricoeur
confirma a afirmativa de Coquet de que o tempo cronológico se subordina ao tempo
linguístico.
O cronista, ao tratar de temas do presente e evidenciar o modo como a noção do
tempo cronológico se naturaliza nos discursos, promovendo a ilusão de sequencialidade
temporal em seus contemporâneos, segundo uma perspectiva positivista, opera em seus
textos a desconstrução dessas sequências, fazendo com que, por meio do dialogismo e
da intertextualidade, passado, presente e futuro se conjuguem e, por meio dessas
conjunções, desconstruam a ilusão de sequencialidade temporal.
Na crônica de 28 de agosto de 1878 da série Notas Semanais, ao tratar sobre as
diversas atividades culturais ocorrendo na corte imperial e, entre elas, algumas
atividades esportivas, como o Skating-rink e a corrida de gâmbias279, lê essas atividades
a partir da intertextualidade, fazendo referência a fatos históricos e mitos da cultura
grega antiga:
277 A aporia do tempo longo ou breve está resolvida? Está, se admitirmos: 1) que o que medimos não
são as coisas futuras ou passadas, mas sua expectativa e sua lembrança; 2) que estas são afecções que
possuem uma espacialidade mensurável de um gênero único; 3) que essas afecções são como o avesso
da atividade do espírito que avança e avança; finalmente 4) que essa ação é ela mesma tripla e por isso
se distende na medida em que se estende(p. 38-39).
278 Ao dizer que não há um tempo futuro, um tempo passado e um tempo presente, mas um triplo
presente, um presente das coisas futuras, um presente das coisas passadas e um presente das coisas
presentes, Agostinho nos pôs na pista de uma investigação da estrutura temporal mais primitiva da
ação. É fácil reescrever cada uma das três estruturas temporais da ação nos termos do triplo presente.
Presente do futuro? Daqui por diante, ou seja, a partir de agora, comprometo-me a fazer isso amanhã.
Presente do passado? Tenho agora a intenção de fazer isso por que acabei de pensar que... Presente do
presente? Agora faço isso porque agora posso fazê-lo: o presente afetivo do fazer atesta o presente
potencial da capacidade de fazer e se constitui em presente do presente. (p. 106)
279 Segundo o Novo Dicionário de Língua Portuguesa, de António Cândido de Figueiredo, 1913,
Gâmbia significa pessoa muito alta. Há também um ditado popular em Portugal dar às gâmbias que
significa por-se a correr.
439
280 Cabe insistir que Sant'Anna atribui essa produção da ficção crítica a Guimarães Rosa, o qual
dilata as propostas de Machado e de Oswald, levando além o espessamento da escrita identificada
nesses dois autores. Contudo, insistimos novamente que a leitura de Sant'Anna está restrita aos contos
e romances de Machado de Assis; lendo a produção machadiana a partir das crônicas, diremos que
Guimarães Rosa produz uma ficção crítica diferente da de Machado, mas não além como o quer
Sant'Anna.
440
281 A kátharsis constitui portanto um momento distinto da aísthesis, concebida como pura
receptividade, ou seja, o momento de comunicabilidade da compreensão percepcionante. A aísthesis
libera o leitor do cotidiano, a kátharsis o torna livre para novas avaliações da realidade que tomarão
forma na releitura. Há um efeito ainda mais sutil ligado à kátharsis: por meio da clarificação que ela
exerce, a kátharsis enceta um processo de transposição, não só afetiva mas também cognitiva, que
pode ser relacionada com a allegorese, cuja história remonta à exegese cristã e pagã. Há alegorização
sempre que nos pomos a "traduzir o sentido de um texto de seu primeiro contexto para um outro
contexto, o que euqivale a dizer: dar-lhe uma nova significação que extrapola o horizonte do sentido
delimitado pela intencionalidade do texto no seu contexto originário". É finalmente essa capacidade
de alegorização, ligada à kátharsis, que faz da aplicação literária a réplica mais aproximada da
apreensão analogizante do passado na dialetica do vis-à-vis e da dívida (RICOEUR, 2010, volume 3,
p. 304).
282 Podemos acrescentar agora que é no ato de recontar, mais do que no de contar, que essa função
estrutural do fechamento pode ser discernida. A partir do momento em que uma história é bastante
conhecida - e é esse o caso da maioria das narrativas tradicionais ou populares, bem como o das
crônicas nacionais que relatam os acontecimentos fundadores de uma comunidade -, acompanhar a
história é menos encerrar as surpresas ou as descobertas no reconhecimento do sentido vinculado à
história tomada como um todo do que apreender os próprios episódios bem conhecidos como
conduzindo a esse fim. (Volume 1, P. 117-118)
283 Ao aplicarmos essa metodologia nas crônicas A+B, evidenciou-se uma reorganização de saberes
feita pelo cronista semelhante ao que Foucault define como arqueologia. Na articulação das formações
discursivas desde História da loucura, Foucault estabeleceu essas articulações com o político, o social,
o econômico, os quais, em diferentes graus, manifestaram-se em suas obras posteriores. Justificando
essa metodologia arqueológica, Foucault observa que a descrição dos discursos não deve prender-se
unicamente ao discurso em si, mas articular-se com outras formas não-discursivas para explicitar o
441
conjunto de relações entre as ciências em suas regras de formação, entendendo suas compatibilidades
e incompatibilidades. Conforme observa Roberto Machado, a arqueologia é “uma análise do discurso,
das formações discursivas, que pretende determinar as regras de formação dos objetos, das
modalidades enunciativas, dos conceitos e dos temas e teorias” (Ibid., p. 159). Desse modo, ao
observarmos os procedimentos retóricos estruturais e não-estruturais nessas crônicas, vemos que
Machado opera por meio deles diversos saberes em torno de uma temática: a política. (SOUSA
NETO, 2008, p. 16)
442
284 O horizonte ao qual se dirige a arqueologia não é, pois, uma ciência, uma racionalidade, uma
mentalidade, uma cultura; é um emaranhado de interpositividades cujos limites e pontos de
cruzamentos não podem ser fixados de imediato. A arqueologia: uma análise comparativa que não se
destina a reduzir a diversidade dos discursos nem a delinear a unidade que deve totalizá-los, mas sim a
repartir sua diversidade em figuras diferentes. A comparação arqueológica não tem um efeito
unificador, mas multiplicador. FOUCAULT, 2007, p. 180
285 Bolo feito de fubá de milho e mel, entre outros ingredientes. Também conhecido como "manauê" - a
palavra é de provável origem africana. (Nota de Rodapé de John Gledson e Lúcia Granja, p. 95)
443
286 Não será acaso, por conseguinte, encontrarmos consignadas passagens de Goethe, Shakespeare,
Prévost, Homero, Walter Scott, Ariosto, Dante, Luciano, Montaigne, Camões, Victor Hugo, Platão,
Plutarco, além da Bíblia, constituindo-se uma sugestiva galeria de leituras, a mostrar que a circulação
literária não podia passar despercebida por Machado de Assis, o qual intentava lograr a reorientação
de sentidos, efetuando a mescla em que o nacional se corporificava sem localismos excessivos e com
parte de sua legibilidade ligada à presença da literatura estrangeira a que o Brasil estava
indissoluvelmente preso (PASSOS, 2003, p. 20). Interessa-nos essa citação não pela interpretação que
Gilberto Pinheiro Passos faz dos efeitos alegóricos e simbólicos desse romance, mas, como um dos
principais estudiosos de Machado de Assis, evidenciando a presença da Literatura Francesa sobretudo
nessa obra, serve-nos como endosso do modo de funcionamento da intertextualidade.
287 Mas uma analepse ‹‹mista››, como a narrativa de Des Grieux, pode ser dita completa num sentido
inteiramente outro, pois, como já notamos, vai apanhar a narrativa primeira, não no seu início, mas no
próprio ponto (o encontro em Calais) em que esta se tinha interrompido para lhe dar lugar: quer dizer,
a sua amplitude é rigorosamente igual ao seu alcance, e o movimento narrativo realiza uma perfeita
ida-e-volta. (GENETTE, 1995, p. 61)
446
288 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Sociedade, Cultura e
Educação, ministrada pela Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos no Mestrado do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre –
de março a julho de 2004. Tirado do site: http://pt.scribd.com/doc/27119110/Voltaire-e-a-Critica-Da-
Razao-Otimista. Consultado no dia 08 de dezembro de 2014.
289 Mas o escárnio mais direto que Voltaire tece em Cândido – através do personagem Pangloss.– é
o ataque à chamada “filosofia do otimismo”, segundo a qual nós vivemos no melhor dos mundos
possíveis e cujo maior defensor foi Gottfried Wilhelm von Leibniz.Considerado um dos maiores
pensadores do século XVII, Leibniz acreditava em uma harmonia pré- estabelecida” entre a matéria e
o espírito, e concebeu uma filosofia racionalista que reconciliava a existência da matéria com a
existência de Deus (LEIBNIZ,1987).Ele defendia a doutrina de que um Deus bom, poderoso e perfeito
criou o mundo, e que tudo no mundo é, em última instância, perfeito como o Criador. Ao ser
questionado sobre como Deus, sendo perfeito, havia criado o mal no mundo, Leibniz replicou que,
dentre todas as possibilidades, Deus havia criado a melhor dos mundos possíveis, do qual o malfaz
parte. E aquilo que os seres humanos percebem como imperfeições faz parte de um plano maior de
Deus que, devido a nossas limitações, não podemos compreender. “Se pudéssemos compreender a
ordem do universo suficientemente bem, descobriríamos que ela ultrapassa todos os desejos do mais
sábio de nós, e que é impossível que ela seja melhor do que é [...] ” (LEIBNIZ, 1987, p. 37). Voltaire
fez de Pangloss uma espécie de caricatura de Leibniz, um personagem patético e obcecado por suas
crenças, que não é capaz de rever suas posições em face às evidências, continuando a advogar o
otimismo mesmo enquanto vivencia os maiores horrores. Pangloss, cujo nome pode ser traduzido por
“bufão” - uma pessoa que bravateia mas permanece na inação – prega uma filosofia que conduz a uma
atitude passiva e condescendente em relação ao sofrimento e às mazelas ao seu redor. Afinal, se
vivemos no melhor dos mundos possíveis, não há nada que possamos fazer para mudar o que
percebemos como errado ou ruim. (VENTURELLA, 2004, p. 4)
449
para criar sua única, verdadeira e definitiva explicação; quarto, estabelece a polêmica
aberta com o leitor. inventando a voz do leitor na narrativa - "Ouço daqui uma objeção
do leitor: — Como pode ser assim, diz ele, se nunca jamais ninguém não viu estarem os
homens a contemplar o seu próprio nariz? Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste
no cérebro de um chapeleiro;" por fim, inventa a narrativa alegórica sobre o chapeleiro
que olha para a ponta do nariz com o objetivo de entender "a causa da prosperidade do
outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o
outro chapeleiro... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz." Vemos
nesse exemplo os procedimentos funcionarem de modo distinto ao funcionamento
identificados na crônicas. Se nas crônicas, esses procedimentos operam a dispersão dos
discursos oficiais da política, da imprensa ou da religião, evidenciando o modo de
funcionamento desses discursos como discursos produtores de verdade, nos romances e,
principalmente, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, esses procedimentos
funcionam de modos diferentes a partir das duas assinaturas: pela assinatura do autor
ficcional, esses procedimentos funcionam como produtores de verdade; pela assinatura
de Machado de Assis, esses procedimentos evidenciam o modo de funcionamento dos
discursos produtores de verdade, isto é, à medida em que o leitor percebe a
incongruência de seus funcionamentos quando comparados com os textos a qual fazem
referência, evidencia-se uma outra forma de dispersão que é a paródia desses discursos.
450
Eu, a verdade, falo, mas não a fiz dizer, por exemplo: Eu, a
verdade, falo para me dizer como verdade, nem para lhes dizer a
verdade. O fato dela falar não significa que ela diga a verdade. É
a verdade, e ela fala. Quanto ao que ela diz, vocês é que têm de
se haver com isso.
Jacques Lacan, Seminário 16: de um Outro ao outro, p. 169
O jogo operado pelo discurso das crônicas, como discurso de potência, evidencia
os valores de verdade operados pelos discursos de poder (sobretudo das instâncias
políticas, religiosas ou midiáticas ligadas aos partidos políticos) em um percurso que
mobiliza e entrecruza as modalidades veridictórias, as modalidades epistêmicas e as
modalidades aléticas. Segundo Bertrand, as modalidades aléticas articulam o necessário
(/dever ser/) e o contingente (/dever não ser/), o impossível (/não dever ser/) e possível
(/não dever não ser/), centrados nas condições de existência do objeto e no enunciado
das relações entre as coisas, independentemente de qualquer sujeito, pois válidos a
todos; as epistêmicas exprimem a relação entre o que se julga certo (/crer ser/) ou
improvável (/crer não ser/)/ provável (/não crer não ser/) ou incerto (/não crer ser) como
modos de assunção do saber pelo sujeito, o qual mantém sob a forma de juízo com seu
objeto de conhecimento; as modalidades veridictórias referem-se ao saber
compartilhado ou não, estabelecendo a relação entre sujeitos e objetos de modo
intersubjetivo, contratual ou polêmico290. O semioticista francês observa que o discurso
científico consiste em apagar a veridicção para afirmar o alético, fundamentando a
verdade nas coisas em si e colocando-as como necessidade, como evidência ou como
produto de um cálculo291. Para Bertrand, esse percurso operado pelo discurso científico
290 As modalidades aléticas, de início, articulam o necessário (/dever ser/) e o contingente (/dever não
ser/), o impossível (/não dever ser/) e o possível (/não dever não ser/). Estão centradas exclusivamente
nas condições de existência do objeto e no enunciado das relações entre as coisas, independentemente
de qualquer sujeito, e válidas para todos, Designam a objetivação do saber. As modalidades
epistêmicas, em seguida, exprimem a relação que o sujeito cognitivo mantém com seu objeto de
conhecimento, sob a forma do juízo que faz a respeito dele, e a força de seu engajamento no
enunciado. Ele o julga certo (/crer ser/) ou improvável (/crer não ser/), provável (/não crer não ser/) ou
incerto (/não crer ser/). Tais modalidades marcam os modos de assunção do saber pelo sujeito.
(BERTRAND, 2003, P. 317)
291 Vemos assim que, da alética à epistêmica, e da epistêmica à veridictória, é um verdadeiro percurso
que se delineia. O do discurso científico consiste em apagar a veridicção para afirmar o alético, que é
451
não passa de uma estratégia persuasiva por meio do enquadramento nas estratégias de
veridicção. Há todo um processo de figurativização nesse percurso que confere
orientação espacial aos conceitos e valores. Assim, os exemplos que o semioticista nos
dá são os do jogo entre felicidade e tristeza, consciência e inconsciência, saúde e
doença, virtude e vício, o racional e o passional, de modo que a própria corporeidade é
regida por essas representações axiológicas:
o único que fundamenta a verdade nas coisas em si, impondo-as como necessidade, como evidência,
ou como produto de um cálculo. A ciência, tornando-se sujeito, parece fazer-se por si mesma. Mas
trata-se na verdade de uma estratégia persuasiva, que convida a reconhecer, a contrario, a
"preeminência dos julgamentos epistêmicos sobre os julgamentos aléticos'" e, mais amplamente, o
enquadramento deles pelas estratégias e motivações da veridicção. (p. 318)
292 No extremo oposto, é conhecido o resultado do exame osteológico feito em seus restos mortais
exumados da sepultura em que jaziam na antiga Igreja de São Sebastião, do Morro do Castelo, em 16
de novembro de 1862, e a ela depois restituídos. D. Pedro II, presente ao ato, registrou em seu Diário
que o Dr. Bernardo de Sousa Fontes, futuro Visconde de Sousa Fontes, professor de Anatomia da
Faculdade de Medicina, lhe dissera na ocasião, tratar-se de ossos de um homem com menos de 40
anos. O laudo final do exame, assinado também pelo Dr. Francisco Ferreira de Abreu, depois Barão de
Teresópolis, professor de Medicina Legal do mesmo estabelecimento de ensino, estimou a idade entre
os limites de 35 e 50 anos. (BELCHIOR, 2008, pp. 80-81)
452
um dever crer, isto é, entre o jogo das modalidades aléticas e epistêmicas produzidas
tanto pela Medicina quanto pela imprensa:
Se a modalidade alética nessa crônica é posta sob suspensão por meio do boato e
da narrativa alegórica para evidenciar o processo de produção dos conjuntos modais que
se entrecruzam e apagam as instâncias de enunciação como forma de fundamentar a
verdade nas coisas em si, impondo como necessidade ou evidência, não é o que
acontece no trecho a seguir de um dos capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas,
quando o defunto-autor, narrando a causa da sua morte por meio da metalepse de
comunicação, impõe o discurso ao leitor como verdade independentemente da crença do
leitor:
nos capítulos anteriores para colocar como objeto de análise tanto essas estratégias
discursivas de produção da verdade como também as instituições que as produzem,
fazendo evidenciar a relação entre verdade e poder.
Um desses procedimentos é a recorrência do rebaixamento, que se torna
determinante como forma de questionamento dos lugares de verdade, constantemente
invertendo os axiomas e pondo a nu a constituição desses jogos discursivos. Na crônica
de 25 de agosto de 1878 da série Notas Semanais, o cronista comenta a eleição para
escolha dos candidatos que seriam eleitos no dia 5 de setembro para a deputação
provincial. Estabelecendo o pleito a partir de axiomas bélicos, o cronista opera esses
rebaixamentos:
293 A verdade é, por consequência, subordinada à "legislação da linguagem", que oculta o divórcio
entre as palavras e as coisas, forçando a passagem do particular ao geral, transformando a
irredutibilidade das impressões singulares em generalizações conceituais. Operando por meio de tais
transferências, os conceitos nada são além de figuras: "Afinal, o que é a verdade? Um exército móvel
de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, um compósito de correlações humanas poética e
retoricamente amplificadas, transpostas, ornamentadas, e que, ao cabo de muito uso, apresentam-se
aos olhos de um povo como canônicas e obrigatórias. (BERTRAND, 2003, p. 218)
458
tempo provocam efeitos de comicidade que não escapam à pena do cronista. Em crônica
do dia 14 de julho de 1878, comenta o surgimento de um jornal das vítimas da seca,
acentuando a contradição entre o não ter pão e água, mas poder lançar um jornal:
Conforme a nota de Lúcia Granja e John Gledson, o jornal foi criado para
denunciar os horrores da seca e, com isso, criticar o Imperador. Obviamente, o que está
em questionamento não é propriamente a veracidade da seca ou a existência das vítimas,
mas o uso político que permeia e usa a situação de pessoas em condição de miséria para
benefício de um determinado grupo contra o Império. Outro fato comentado pelo
cronista na crônica do dia 16 de junho de 1878 dessa mesma série, é o caso da prisão de
um casal de estelionatários que agiam no Rio de Janeiro, abrindo um consultório,
prometendo curar todas as moléstias e adivinhar outras coisas por meio do magnetismo:
devido, isto é, ao dizer para a leitora que o casal preso não era de dois cantores, brinca
com a metáfora musical dois canários, operando uma literalização, para associar por
meio da antanáclase, isto é, não era essa espécie de pássaro, mas de outra espécie: o
casal eram dois melros e, com isso, retorna ao sentido figurado, em que o adjetivo
também significa indivíduo cheio de manha e de esperteza. Para justificar que não se
tratava de um homem vulgar, utiliza-se da expressão darwinista struggle for life. Após
anunciar a prisão dos dois pela polícia, utiliza-se da referência à Divina Comédia para
anunciar-lhes um maior castigo reservado aos adivinhos como Miroli294.
A veridicção posta em realce nessas crônicas instala, como observa Bertrand, um
hiato na produção e interpretação dos valores de verdade. Bertrand estabelece o estatuto
do discurso veridictório a partir da oposição ser/parecer, estabelecendo um quadrado
semiótico para definir a combinação dos valores de ser e de parecer, bem como as suas
negações. Desse modo, afirma que a coincidência entre ser e parecer (relação de
contrariedade) estabelece a noção de verdade; a coincidência entre parecer e não-ser
(relação de complementaridade negativa) estabelece a noção de mentira; a do não
parecer e ser (relação de complementaridade positiva) estabelece a noção de segredo e
a relação entre não-parecer e não-ser (relação de subcontrariedade) define a
falsidade295. A partir desse contrato de veridicção e com base em Fontanille, Bertrand
nos apresenta quatro tipos diferentes de verdades: a evidência, a falsidade, a
dissimulação ou segredo, a simulação ou mentira.
Michel Foucault, com base em Nietzsche, ao propor uma história da verdade,
questiona-se sobre os diferentes modos da relação entre a verdade e o discurso. Para
tanto, distingue duas histórias da verdade: uma interna, na qual a verdade se corrige a
partir de seus próprios princípios de regulação e outra externa que parte das regras de
jogo que fazem nascer determinadas formas de subjetividade, determinados tipos de
saber:
294 Conforme nota de Lúcia Granja e John Gledson: Dante, Divina Comédia, vol 1 - Inferno, canto XX,
vv. 23-4. No quarto compartimento, os impostores que se dedicam à arte divinatória são punidos.
Eles têm o rosto eo pescoço voltados para as costas, pelo que são obrigados a caminhar ao reverso:
Leitor a que Deus dá proveito/do que escutas agora, dize, então/se eu podia manter sereno o peito/
ante a trágica e cruel aberração/vendo que aos olhos lhes manava/pelas nádegas correr-lhes à
junção (trad. de Cristiano Martins) nota 19, p. 118.
295 O quadrado da veridicção se apresenta como uma combinação dos valores de ser e parecer, e de
suas negações: a combinação define os termos de "segunda geração". Assim, quando há coincidência
do parecer e do ser num universo de discurso, há "verdade"; a coincidência do parecer e do não-ser
define a "mentira"; a do não-parecer e do ser define o "segredo"; enfim, a coincidência do não-parecer
e do não-ser define a "falsidade". D. Bertrand P. 241
461
296 verbetes tirados do Dicionário Grego-Português e Português Grego de S.J. Isidro Pereira, p. 441
297 E é assim que se estabelecerá o verdadeiro jogo da parresía, a partir dessa espécie de pacto que faz
que, se o parresiasta mostra a sua coragem dizendo a verdade contra tudo e contra todos, aquele a que
essa parresía é endereçada deverá mostrar sua grandeza de alma aceitando que lhe digam a verdade.
Essa espécie de pacto, entre aquele que assume o risco de dizer a verdade e aquele que aceita ouvi-la,
está no cerne do que se poderia chamar de jogo parresiástico. A parresía é, portanto, em duas
palavras, a coragem da verdade naquele que fala e assume o risco de dizer, a despeito de tudo, toda a
verdade que pensa, mas é também a coragem do interlocutor que aceita receber como verdadeira a
verdade ferina que ouve. (FOUCAULT, 2011, p. 13)
463
298 Na sociedade moderna, o discurso revolucionário, como todo o discurso profético, fala em nome do
outro, fala para dizer um futuro, futuro que já tem, até certo ponto, a forma do destino. Quanto à
modalidade ontológica do dizer-a-verdade que diz o ser das coisas, ela se encontraria sem dúvida
numa modalidade de discurso filosófico. A modalidade tecnicista do dizer-a-verdade se organiza
muito mais em torno da ciência do que do ensino, ou em todo o caso em torno de um complexo
constituído pelas instituições de ciência e de pesquisa e as instituições de ensino. E a modalidade
parresiástica, creio que justamente ela, como tal, desapareceu e não a encontramos mais, a não ser
enxertada e apoiando-se numa dessas três modalidades. O discurso revolucionário, quando assume a
forma de uma crítica da sociedade existente, desempenha o papel de discurso parresiástico. O discurso
filosófico, como análise, reflexão sobre a finitude humana, e crítica de tudo o que pode, seja na ordem
do saber, seja na ordem da moral, extravasar os limites da finitude humana, desempenha um pouco o
papel da parresía. Quanto ao discurso científico, quando ele se desenrola - e não pode deixar de fazê-
lo, em seu desenvolvimento mesmo - como crítica dos preconceitos, dos saberes existentes, das
instituições dominantes, das maneiras de fazer atuais, desempenha justamente esse papel parresiástico.
(FOUCALT, 2011, p. 29)
464
série A Semana, no relato sobre duas feiticeiras e uma cartomante que foram presas pela
polícia:
299 O prefácio de Charles Baudelaire foi tirado da obra Nouvelles histoires extraordinaires traduzida
para o francês em 1857 por Charles Baudelaire. A obra Contos de Imaginação e Mistério foi
publicada em português pela Editora Tordesilhas, sem identificação do tradutor e do ano de
publicação. O acesso a essa obra foi feita pelo site
:http://minhateca.com.br/Jessica.Maria.Gomes/Documentos/livros+em+pdf/livros/Edgar+Allan+Poe/
Contos+de+Imaginacao+e+Misterio+-+Edgar+Allan+Poe,5756375.pdf. Consultado em 23 de
novembro de 2014.
467
No nosso ano terrível, vimos esse nariz chegar mais que ao fim
do mundo, chegar ao céu. Ninguém fez disso crime, alguns
fizeram virtude, e ainda os há virtuosos e credores. Realmente,
prometer com um palmo de papel um palácio de mármore é o
mesmo que dar um verdadeiro amor com dois pés de galinha. A
feiticeira fecha o corpo às moléstias com uma das suas
bugigangas, talvez a ceroula velha, — e há facultativo (não digo
competente) que faz a mesma coisa, levando a ceroula nova.
Que razão há para fazer de um ato malefício, e benefício de
outro?
Sendo o nariz a imaginação que puxa o povo à paróquia, para o cronista, não há
diferença entre crer em palácio de mármore ou receber um verdadeiro amor com dois
pés de galinha. Mais que isso, se a feiticeira fecha o corpo às moléstias usando uma das
suas bugigangas encontradas pela polícia, há religiosos que fazem a mesma coisa,
subtraindo a ceroula nova do fiel. Desse modo, o questionamento feito pelo cronista é o
tratamento diferenciado dos que criticam as feiticeiras, sem com isso, criticar o pároco,
E continua:
no começo da crônica, quando afirma ter ido à Federação Espírita Brasileira, conta isso
como algo espantoso. O episódio a que refere o trecho citado foi acompanhado pelo
cronista Lélio apenas depois de ele ter saído do corpo e ido à Federação apenas em
espírito e na volta descobre que um outro espírito habitava em seu corpo, quando o viu
sentado e rindo: "Vi o meu corpo sentado e rindo. Parei, recuei, avancei e disse-lhe que
era meu, que, se estava ocupado por alguém, esse alguém que saísse e mo restituísse. E
vi que a minha cara ria, que as minhas pernas cruzavam-se". Depois de alguma conversa
com o espírito que havia invadido seu corpo, Lélio descobre que era o diabo e que
estava ali para o servir. Como havia dito ter mandado o diabo ao diabo, visto que o
orador havia provado que esse não existia, espanta-se ao descobrir que o espírito a
ocupar seu corpo era o próprio diabo, ao que o diabo retruca afirmando que existia, mas
que essas novas religiões no poder lhe haviam tirado o emprego dele:
O serviço a que o diabo afirma prestar a Lélio é mostrar-lhe que, assim como a
pretensão publicitária de todo remédio novo é a de prometer fazer o que o antigo não
fazia, assim também o espiritismo operava um discurso publicitário para se mostrar
melhor que as religiões antigas. Em outras palavras, o diabo veio livrar Lélio de sua
crendice no espiritismo. Essa crítica ao espiritismo, conforme já dissemos, deve-se ao
fato de esse dizer-a-verdade profético característico das religiões pagãs estar sendo
apagado pela modalidade científica do dizer-a-verdade que o espiritismo busca se
atribuir. É, portanto, a negação do elemento mágico da profecia que faz com que o
cronista ironize e ridicularize o espiritismo.
Diferentemente do dizer-a-verdade profético, o modo da sabedoria é um falar em
seu próprio nome, de modo que o sábio está presente naquilo que diz. Tal qual a
verdade da profecia, a crônica faz referências a essa verdade do sábio. Em crônica do
dia 14 de janeiro de 1862 da série Comentários da Semana, o cronista faz referência ao
costume que Diógenes tinha de sair com a lanterna na mão a procurar pela rua um
homem. A referência estabelece o paralelo para comunicar ao leitor a falta de notícias
472
de modo que o cronista, tal como Diógenes, sai à cata não de homens, mas de notícias e,
ao invés de percorrer as ruas, percorre os dias das semanas:
não dei com ele sozinho, mas todos, a cidade em peso, se é que a
cidade em peso não tem coisa mais séria em que cuidar, (os
touros, por exemplo, o voltarete, o cosmorama) o que de todo
não é impossível.
E quando digo que o achei, erro; porque não o achei, não o vi,
não o conheço, achei-o sem achar. Parece um enigma e é decerto
enigma, mas dos que eu quisera ver-te fazer, leitor, se tens
queda por tais ocupações.
Suponho no leitor uma alta dose de penetração, não me canso
em explicar-lhe que o homem de que se trata é o incógnito
benfeitor das órfãs da Santa Casa, o que deu 20:000$000, sem
dar o seu nome.
Sem dar o seu nome! Este simples fato conquista a nossa
admiração Não que ela esteja acima das forças humanas, é essa
justamente a condição da caridade evangélica, em nome da qual
os filhos do Evangelho inventaram a caridade nas gazetilhas.
Mas, na realidade, o caso é raro. Vinte contos dados assim, com
simplicidade sem uma notícia nas folhas públicas, sem duas
barretadas, sem uma ode, sem nada; vinte contos que caem da
algibeira do benfeitor para as mãos dos beneficiados, sem passar
pelos prelos, os bentos prelos, os adoráveis prelos, que tudo
contam, até as ações mais recônditas? A ação é cristã; mas é tão
rara, como as pérolas.
Por isso digo: achei um homem. O anônimo da Santa Casa é o
homem do Evangelho. Imagino-o com dois traços principais: o
espírito de caridade, que deve ser e é anônimo, e um certo
desdém para com os clarins da Fama, os rufos de tambor, os
pífanos da publicidade. Pois bem, esses dois traços
característicos são duas forças. Quem as tem possui já de si uma
grande riqueza. (ASSIS, 2009a, pp. 209-210)
300 Assim, ao mesmo tempo que se reconhecem tão facilmente no cinismo, os filósofos se demarcam
dele violentamente com uma caricatura repulsiva. Eles [o] apresentam como uma espécie de alteração
inaceitável da filosofia. O cinismo desempenharia, de certo modo, o papel de espelho quebrado para a
filosofia antiga. Espelho quebrado em que todo filósofo pode e deve se reconhecer, no qual ela é e do
que ela devia ser, o reflexo do que ele próprio é e do que ele próprio gostaria de ser. E ao mesmo
tempo, nesse espelho, ele percebe como que uma careta, uma deformação violenta, feia, sem graça, na
qual ele não poderia em hipótese alguma se reconhecer nem reconhecer a filosofia. Tudo isso para
dizer, simplesmente, que o cinismo foi percebido, creio, como a banalidade da filosofia, mas uma
banalidade escandalosa. Da filosofia tomada, praticada, vestida em sua banalidade, ele fez um
474
três referências feitas pelo cronista vemos o deslocamento que faz da filosofia cínica
quando o cronista busca não homens mas notícias e, para isso, percorre com sua
lanterna não as ruas, mas os dias da semana nos jornais. Também, na última, a negação
irônica da busca de Diógenes que caça um homem honesto na Grécia. O cronista afirma
ter encontrado um homem honesto - o doador anônimo de vinte contos de réis - e,
portanto, sugere que Diógenes se enforque como forma de acentuar a incompetência do
filósofo grego. A paródia, para o qual usa a citação de Diógenes, funciona como crítica
ao costume da época em que os benfeitores costumavam alardear na imprensa suas boas
ações. Esse tema será retomado em dois momentos nos romances machadianos: em
Quincas Borba, quando, no capítulo LXVII, Rubião, tendo contado ao Camacho no dia
anterior um evento em que salvara um menino de ser atropelado por um tílburi, vê a
notícia no jornal publicado pelo amigo. Em um primeiro momento, Rubião fica irritado
e se sente traído, mas aos poucos se conforma, acostuma-se até começar a gostar e se
sentir lisonjeado pelo modo como a notícia foi escrita; em Memórias Póstumas de Brás
Cubas, no capítulo CXXIII, o defunto-autor, ao justificar o cunhado Cotrim, aponta
como defeito o costume dele de mandar para os jornais a notícia de um ou outro
benefício que praticava, desculpando-se ao dizer que as boas ações eram contagiosas,
quando públicas, conforme veremos de modo mais detalhado mais à frente.
Outra referência à verdade da filosofia como paródia encontramos na primeira
crônica do dia 05 de junho de 1864 da série Ao Acaso, quando o cronista convida o
leitor a comparar o folhetim à trípode de ouro encontrada por pescadores de Mileto:
esquina!
Se a pítia, em vez de designar o mais sábio, houvesse designado
o menos instruído, o menos apto, o menos capaz, a trípode
corria o risco de não pertencer a ninguém, mas com certeza não
haveria a guerra da Iônia.
Não houve guerra no nosso caso, ó leitores, nem a trípode correu
o risco de ficar abandonada; aceitou-a o menos apto: sou eu.
(ASSIS, 2008, v. 4, p. 117)
Dizia não sei que homem de Estado que é de boa política fazer o
mal, porque depois toda a concessão é considerada um bem de
valor real. Este preceito não foi mal compreendido pelo atual
chefe da nação francesa, que depois de arrecadar todas as
liberdades públicas, vai agora concedendo, hoje uma largueza à
imprensa, amanhã, outra ao parlamento, e depois outra no
sentido da autonomia provincial, e a cada pedaço que larga à
nação faminta, esta aceita agradecida e tece louvores ao seu
protetor.
Também por cá se dá o mesmo. Preceito tão salutar não podia
deixar de ser observado neste país. Semelhante à dos correios,
houve ultimamente uma do Sr. Ministro da Justiça, que acaba de
restabelecer por um aviso as prisões que competem aos oficiais
da guarda nacional.
301 Encontramos a referência à trípode de ouro em um site sobre Os Sete sábios da Grécia de autoria de
W. A. Ribeiro Jr. Segundo Ribeiro Jr., a lenda da trípode de ouro foi contada por Diógenes Laércio:
Diógenes Laércio (D.L. 1.1.27-8) conservou as diversas versões da lenda que agrupou esses homens.
Uma delas conta que, certo dia, alguns pescadores de Mileto encontraram uma trípode de ouro.
Interrogado o oráculos de Delfos, ele ordenou que a entregassem ao mais sábio dos homens. O povo
de Mileto entregou-a a Tales, que declinou da honra afirmando que havia outros mais sábios que ele.
A trípode passou então por todos os homens da lista, mas todos tiveram a mesma atitude. Sólon (ou
Bias), finalmente o sétimo a recebê-la, ofereceu a trípode a Apolo, dizendo que o deus era o mais
sábio. http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0210 Consultado em 24 de novembro de 2014.
476
E pensei: “Naturalmente
Traz toda a historia sabida;
É burro, há de ter presente
A proteção recebida”
(...)
Ele, burro circunspecto,
Asno de boa feição,
Tirou de fino intelecto
Esta profunda razão:
302 O trecho entre aspas é a citação que o autor faz de GREIMAS, Semiótica e ciências sociais, p. 28.
303 Conforme nota de Lúcia Granja e Jefferson Cano: A fonte de Machado para esta expressão é
Voltaire, que, contando a vida de Molière, diz que o escritor teatral, depois de dar uma esmola a um
mendigo, foi chamado por ele, que lhe disse "Senhor, talvez não tivesse a intenção de me dar um luís
de ouro: venho devolvê-lo". Molière teria dado ainda um outro luís de ouro ao mendigo e exclamado
"Où la vertu va-t-elle se nicher", ou "Onde a virtude vai se esconder!". Voltaire "Vie de Molière avec
des petits sommaires de ses pièces (1739)", in OEuvres complètes de Voltaire. Paris: Garnier, 1879,
vol. 23, p. 95 (ASSIS, 2008, p. 110, nota 11)
481
Novamente, a crítica não se refere ao saber científico em si, mas à mistura com o
discurso publicitário. Para tanto, o cronista opera a hipérbole na notícia como
procedimento que evidencia o absurdo da campanha publicitária de forma que se
Hipócrates é o alfa da ciência, o Dr. Hoffmann se auto-intitula o ômega.
Outra crítica feita nessa mesma série é a da propagação de um curso de música
chamado Música a Vapor, anunciando um novo ensino musical, no qual os professores
Carlos Hermann e Rahn garantem o aprendizado de modo que o aluno possa compor
uma música como se escrevesse uma carta. A crítica é feita por meio de uma suposição
alegórica na qual o leitor, interessado em aprender música tentara diversas
possibilidades sem sucesso, mas encontraria naquele método a solução de seus
problemas:
Esses três exemplos são apenas alguns dos vários produzidos pelo cronista que
mostram o modo como ele denuncia por meio do rebaixamento, da intertextualidade, da
sátira e da alegoria, essa junção de ciência e publicidade que domina a época moderna
como modalidade do dizer-a-verdade técnico. A crença cega no discurso realista-
positivista possibilitou que cada vez mais, sabendo da crença popular na ciência,
diversas instituições científicas, cientistas e empresas transformassem o saber técnico
em produto de consumo, abandonando o compromisso com esse saber para torná-lo
produto publicitário nos jornais da época. Daí o investimento crítico por meio dos
procedimentos analisados nos capítulos anteriores que o cronista faz como forma de
ridicularizar esse costume. Essa denúncia transforma-se em procedimento estético no
romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando o defunto-autor narra sua
tentativa de inventar um remédio para curar a melancolia da humanidade.
A quarta modalidade, a que Foucault dedicou todo um curso, é a parresía,
segundo o qual o parresiasta tem como regra dizer tudo, dizer a verdade, estabelecendo
correspondência entre o que diz e o que pensa e assumindo o risco de dizer tudo, isto é,
tendo coragem para arriscar a vida dizendo a verdade. Conforme Foucault assume mais
a frente, na época moderna, essa modalidade do dizer a verdade aparece apenas
enxertada e apoiando-se em uma das três modalidades anteriores. No capítulo XXIV do
romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, já citado aqui, o defunto autor, ao falar do
tipo de formação acadêmica que obtivera, diz ao leitor que, por mais que possa espantá-
lo o modo como realça a sua mediocridade, tem o compromisso de falar com franqueza,
isto é, o defunto-autor assume sua verdade discursiva como a de um parresiasta.
Assumindo, portanto, produzir a parresía, o defunto-autor confirma a correspondência
necessária entre o que diz e o que pensa. Contudo, um quiasma marca o seu lugar de
autoria: ele não é autor defunto, autor que por conta do que diz, coloca a vida em risco,
mas defunto autor que faz com que a autoria perca a sua condição de ente real para se
tornar um adjetivo. A morte toma o lugar do ente real como produção discursiva. Em
outras palavras, a morte não é efeito da autoria do parresiasta que coloca a vida em risco
485
como produção da coragem de verdade; pelo contrário, é na condição de morto que diz
poder falar a verdade. Estabelece, portanto, nessa inversão e na justificativa desse
desdém dos finados a crítica aos modos de produção da verdade na sociedade brasileira
do século XIX, ao evidenciar a impossibilidade da franqueza, visto o autor/orador estar
sujeito ao olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças, que obrigam a
calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as
revelações que se fazem à consciência. Portanto, à força de embaçar os outros, o
autor/orador embaça-se a si mesmo como forma de evitar o vexame, a sensação penosa
e o vício hediondo. Confirma-se, portanto, a afirmação de Foucault ao dizer da
impossibilidade da parresía na época moderna.
Ao analisar a transformação na história da parresía, Foucault observa que nos
textos do século V e, sobretudo no século IV, ela se torna uma prática perigosa e,
portanto, existe a recomendação de certas precauções e limites. Uma das críticas feitas é
a da parresía democrática vista primeiro como liberdade de qualquer um falar e não
como privilégio estatutário dos que são capazes, por seu nascimento, seu estatuto, sua
posição. Sobretudo Platão em A República e Isócrates no início do Discurso sobre a paz
vão criticar essa forma de parresía, visto que ela permite a qualquer um falar e,
portanto, falam igualmente os bêbados e pessoas que não estão em posse de sua razão,
produzindo discursos falsos, opiniões nefastas ou nocivas, perigosas para a cidade.
Segundo, vendo a parresía como perigosa, na medida em que requer de quem fala uma
coragem de correr o risco de desagradar, a atenção do povo, sujeita a discursos
sedutores, faz com que os que falam o que é verdadeiro e bom não sejam ouvidos, não
agradem, podendo provocar reações negativas, expondo quem fala à vingança e à
punição304.
Conforme vimos no capítulo sobre as anti-metáforas, na crônica de 24 de
outubro de 1886 da série A + B, o cronista opera a desconstrução do conceito de
República formulado por Platão ao tratar da parresía, quando propõe que sejam
suprimidos todos os postos e os filhos da República sejam cabeleireiros: "Eu faria
decretar que todos os filhos de república fossem cabeleireiros. Cabeleireiro, como se
304 Vocês veem, portanto, a noção de parresía se dissociar. De um lado, ela aparece como a latitude
perigosa, dada a todo o mundo e a qualquer um, de dizer tudo e qualquer coisa. E, depois, há a boa
parresía, a parresía corajosa, e essa parresía corajosa (a do homem que generosamente diz a verdade,
inclusive a verdade que desagrada) é perigosa para o indivíduo que dela faz uso e não há lugar para
ela na democracia. Ou a democracia abre espaço para a parresía, e isso é necessariamente uma
liberdade perigosa para a cidade; ou a parresía é de fato uma atitude corajosa que consiste em
empreender dizer a verdade, e então não tem espaço na democracia. (FOUCAULT, 2011, p. 35)
486
sabe, é o mais pacato dos cidadãos de um Estado. Outros que o solapem, que deitem
fogo às instituições; o cabeleireiro compõe as cabeças, e, quando muito, abre uma
espécie de estrada da liberdade, que alegra a vista, sem alteração da ordem..." (ASSIS,
1956, p. 48).
Sem aprofundar muito a discussão feita por Foucault sobre a parresía
democrática nas obras de Platão, Isócrates e Aristóteles, evidencia-se a crise dela no
pensamento grego do século IV a. C, colocando como problema principal a
diferenciação ética dessa coragem da verdade.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a fala franca do defunto-autor só é
possível pela sua condição de morto e como produção da verdade de si. Conforme o
trecho visto, a franqueza é evidenciada em seu discurso pelo fato de ele falar
abertamente de seus fracassos conforme afirma no capítulo "Das negativas" ao dizer
que: "Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não
conheci o casamento". A sua incompetência de realização é compensada pelo que define
como positivo, isto é: "Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de
não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida,
nem a semidemência do Quincas Borba". O fato de, pela sua boa fortuna, não ter de
comprar o pão com o suor do seu rosto, ao invés de compensar sua incompetência, a
potencia, à medida que evidencia as condições para ter alcançado as suas realizações. A
compensação se dá no nível discursivo em que a convenção simbólica na qual a obra se
insere é exatamente a falta de convenção simbólica como definição do arbitrário, de
modo que há na estrutura do romance uma consciência teórica em que a construção da
ficção narrativa se opera pela autodestruição do defunto-autor como efeito do ethos.
Desse modo, podemos ver que à medida que o cronista opera a desconstrução
das pretensas verdades, sejam elas proféticas, filosóficas ou científicas, constrói a
verdade da derrisão. Se nas crônicas, os discursos dominantes e institucionais são
objetos da derrisão do cronista, nos romances e, sobretudo, em Memórias Póstumas de
Brás Cubas, a derrisão entranha-se no ato enunciativo de modo que não se pode dizer
com certeza quem fala, se Brás Cubas, Dom Casmurro, Conselheiro Aires ou Machado
de Assis. Essa derrisão, como observa Georges Minois em sua obra História do Riso e
do Escárnio, é característica da figura do bobo do rei, o qual encarna o papel ambíguo,
de poder expressar a verdade pelo riso e pela derrisão:
305 O conceito de estrato é apresentado pelos autores como fenômenos de espessamento no Corpo da
Terra ao mesmo tempo molares e moleculares. O estrato apresenta três dimensões diferentes que nos
amarram diretamente à cultura estabelecida: a dimensão do organismo, a qual pretende que sejamos
organizados de modo hierarquizado e com função determinada dentro de um corpo articulado; a
dimensão da significância que nos condiciona à relação de significante e significado, intérpretes e
interpretados; e a dimensão da subjetivação, na qual devemos estar fixados como sujeitos às
representações transcendentes que organizam o modo dominante de produção de subjetividades.
Qualquer indivíduo que não esteja organizado é tratado como marginal depravado e cópia imperfeita
de modelos normatizados. A estratificação é como a criação do mundo a partir do caos, uma criação
contínua, renovada, e os estratos constituem o Juízo de Deus. O artista clássico é como Deus, ao
organizar as formas e as substâncias, os códigos e os meios, e os ritmos, ele cria o mundo.
(DELEUZE & GUATTARI, 2012, p. 230-231)
306 Um agenciamento maquínico é direcionado para os estratos que fazem dele, sem dúvida, uma
espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem uma determinação atribuível a um
sujeito, mas ele não é menos direcionado para um corpo sem órgãos, que não pára de desfazer o
organismo, de fazer passar e circular partículas a-significantes, intensidades puras, e não pára de
atribuir-se os sujeitos aos quais não deixa senão um nome como rastro de uma intensidade. (2011,
volume 1, p. 18)
489
implicar para um corpo sem órgãos307 voltado a desfazer o organismo, fazendo passar
e circular partículas assignificantes, intensidades puras, e não para de atribuir-se os
307 Deleuze e Guattari definem o Corpo sem Órgãos como um corpo povoado de multiplicidades. O CsO
é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo: ali onde o desejo se
define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria
torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo (DELEUZE & GUATTARI, 2004, volume 3, p. 15) O CsO
não é de modo algum contrário aos órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. O inimigo é o
organismo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama
organismo. O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, isto é, um fenômeno de
acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações,
dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil. O CsO oscila
entre dois pólos: de um lado, as superfícies de estratificação sobre as quais ele é rebaixado e
submetido ao juízo, e, por outro lado, o plano de consistência no qual ele se desenrola e se abre à
experimentação (p. 21). Os três grandes estratos que nos amarram diretamente: a superfície do
organismo (você será organizado, você será o organismo, articulará seu corpo, senão você será
depravado), o ângulo de significância e de interpretação (você será significante ou significado,
intérprete e interpretado, senão será desviante) e o ponto de subjetivação ou de sujeição (você será
sujeito e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado, senão você
será apenas um vagabundo). O CsO opõe a desarticulação a esse conjunto de estratos (ou as n
articulações) como propriedade do plano de consistência, a experimentação como operação sobre este
plano (não interprete, experimente), o nomadismo como movimento. Desarticular o organismo nunca
foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções,
superposições, passagens e distribuições de intensidades, territórios e desterritorializações. Como
fazer para arrancar a consciência do sujeito, arrancar o inconsciente da significância e da interpretação
para fazer dele uma verdadeira produção, arrancar o corpo do organismo? A prudência é a arte comum
dos três (p. 22); é necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada
aurora; conservar pequenas provisões de significância e de interpretação para opô-las a seu próprio
sistema; conservar pequenas rações de subjetividade para poder responder à realidade dominante -
imitar os estratos - não se atinge os CsO e seu plano de consistência desestratificando grosseiramente
O pior não é permanecer estratificado (organizado, significado, sujeitado) mas precipitar numa queda
suicida ou demente. (p. 23). Deve-se instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que
ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de
fugas possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por
segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. O CsO é
tudo isto: necessariamente um Lugar, necessariamente um Plano, necessariamente um Coletivo
(agenciando elementos, coisas, vegetais, animais, utensílios, homens, potências, fragmentos de tudo
isto, porque não existe "meu" corpo sem órgãos, mas "eu" sobre ele, o que resta de mim, inalterável e
cambiante de forma, transpondo limiares) (p. 24). Encontra-se CsO já nos estratos não menos do que
sobre o plano de consistência desestratificado, mas de uma maneira completamente diferente (p. 25).
Há dois tipos de CsO: um que se opõe à organização dos órgãos, que se opõe ao organismo; o outro
que pertence ao organismo. No estrato do organismo, é o tecido canceroso, a quem o organismo
reconduz à sua regra; no estrato da significância: um corpo brotando do déspota que bloqueia toda
circulação dos signos; no estrato da subjetivação: um corpo asfixiante que não deixa subsistir uma
distinção entre os sujeitos. O CsO do dinheiro - a inflação; Se os estratos dizem respeito à coagulação,
à sedimentação, basta uma velocidade de sedimentação precipitada num estrato para que ele perca sua
figura e suas articulações , e forme seu tumor específico nele mesmo, ou em tal formação, em tal
aparelho (p. 26). O CsO é desejo, é ele e por ele que se deseja, podendo ser tanto o plano de
consistência ou campo de imanência do desejo, mas também na proliferação do estrato canceroso:
desejo de dinheiro, desejo de exército, desejo de polícia e de Estado, desejo-fascista. Há desejos toda
vez que há constituição de um CsO numa relação ou outra. (p. 28) O problema material de uma
esquizo-análise é o de saber se possuímos os meios de realizar a seleção, de separar o CsO de seus
duplos (corpos vítreos vazios, corpos cancerosos, totalitários e fascistas) (p. 29) Por mais que as
máquinas-órgãos se enganchem sobre o CsO, este permanece sem órgãos e nem volta a ser organismo
no sentido usual da palavra. Ele guarda seu caráter fluido e deslizante (p. 29 v. 6) Sobre o CsO que
tudo se passa e se registra, mesmo as cópulas dos agentes, as divisões de Deus, as genealogias
esquadrinhadoras e as suas permutações. Tudo está sobre esse corpo incriado, como os piolhos na juba
do leão. (p. 30 v. 6)
490
sujeitos aos quais não deixam senão um nome como rastro de uma intensidade.
(DELEUZE & GUATTARI, 2011, pp. 18-20).
Para definir o conceito de rizoma, os autores o estabelecem como oposto a raiz.
A raiz é a imagem da árvore-mundo que se desenvolve pelo binarismo. Desenvolvendo-
se pela binaridade, a árvore/raiz necessita de uma forte unidade principal, unidade
necessária para chegar a duas, três, quatro ou cinco, até produzir a multiplicidade
arborescente, desde que se sustente em uma forte unidade principal. Essa binaridade faz
com que uma ponta da raiz opere no objeto e a outra no sujeito:
Se lhes disser desde já, que não tenho papas na língua, não me
tomem por homem despachado, que vem dizer coisas amargas
aos outros. Não, senhor; não tenho papas na língua, e é para vir
a tê-las que escrevo. Se as tivesse, engolia-as e estava acabado.
Mas aqui está o que é; eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado
de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora,
descri do ofício. A única explicação dos relógios era serem
iguaizinhos, sem discrepância; desde que discrepam, fica-se sem
saber nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do
meu barbeiro. (...)Foi por essas e outras que descri do oficio; e,
na alternativa de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo
alvitre; é mais fácil e vexa menos. (ASSIS, 2008, v. 4, p. 801-
802)
308 O sistema-radícula, ou raiz fasciculada, é a segunda figura do livro, da qual nossa modernidade se
vale de bom grado. Desta vez a raiz principal abortou, ou se destruiu em sua extremidade: vem se
enxertar nela uma multiplicidade imediata e qualquer de raízes secundárias que deflagram um grande
desenvolvimento. Desta vez, a realidade natural aparece no aborto da raiz principal, mas sua unidade
subsiste ainda como passada ou por vir, como possível. Deve-se perguntar se a realidade espiritual e
refletida não compensa este estado de coisas, manifestando, por sua vez, a exigência de uma unidade
secreta ainda mais compreensiva, ou de uma totalidade mais extensiva. Seja o método do cut-up de
Burroughs: a dobragem de um texto sobre outro, constitutiva de raízes múltiplas e mesmo adventícias
(dir-se-ia uma estaca), implica uma dimensão suplementar à dos textos considerados. É nesta
dimensão suplementar da dobragem que a unidade continua seu trabalho espiritual. É neste sentido
que a obra mais deliberadamente parcelar pode também ser apresentada como Obra total ou o Grande
Opus. A maior parte dos métodos modernos para fazer proliferar séries ou para fazer crescer uma
multiplicidade valem perfeitamente numa direção, por exemplo, linear, enquanto que uma unidade de
totalização se afirma tanto mais numa outra dimensão, a de um círculo ou de um ciclo. Toda vez que
uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução
das leis de combinação. Os abortadores da unidade são aqui fazedores de anjos, doctores angelici,
posto que eles afirmam uma unidade propriamente angélica e superior. (volume 1, pp. 20-21)
494
que separa o interior do exterior do texto, e nessa medida legisla inapelavelmente sobre
o texto atribuído, mas reprodu-la no interior da ficção, e nessa medida sofre, por sua
vez, a ação legisladora de uma outra assinatura que necessariamente se apresentou antes
da assinatura ficcional" (BAPTISTA, 2003, p. 151). Como assinatura ficcional,
portanto, o defunto-autor reproduz seus discursos, organizações, seleções, memórias e
interpretações como unidade principal que remete ao significante despótico. Por sua
vez, o romance lido a partir da assinatura do autor Machado de Assis opera a paródia
desse significante despótico ao evidenciar a produção da verdade que se sustenta nessa
unidade principal.
Retomando à conceituação do rizoma como sistema de funcionamento das
crônicas, ele se constitui por formas diversas e se estende de forma ramificada. O
rizoma se estabelece pelos princípios de conexão e de heterogeneidade. Qualquer ponto
de um rizoma se conecta a qualquer outro, diferentemente da árvore ou da raiz que
fixam um ponto, uma ordem. Desse modo, estabelecendo-se por princípio de
heterogeneidade, a crônica possibilita o hibridismo como sua forma estrutural.
Conforme vimos em alguns trechos das crônicas Gazeta de Holanda, elas se organizam
como crônica-poesia, as crônicas A+B se organizam como diálogos e, de formas mais
dispersas, as outras crônicas tomam a forma de epístola, como é o caso da crônica de
20-21 de maio de 1888 ou a crônica de 04 de setembro de 1892. Das cento e trinta e três
crônicas analisadas, pudemos verificar cinquenta e quatro ocorrências de hibridismo,
seja por meio da narrativa alegórica, por meio de cartas, epístolas, diálogos, receitas de
cozinha, as crônicas se metamorfoseiam, fazendo com que os gêneros se entrecruzem e
estabeleçam a multiplicidade rizomática.
Os princípios de conexão entre uma notícia e outra são estabelecidos por
passagens abruptas, tipografadas ou pela antanáclase como ferramentas pelas quais a
crônica faz conectar notícias às mais diversas, como por exemplo, na crônica de 15 de
outubro de 1877 da série História de Quinze Dias. Nela, a notícia da contratação de dois
cantores líricos - a soprano espanhola Adelina Patti e o tenor italiano Ernesto Nicolini -
feita pelo Jornal do Commercio e a notícia de um indivíduo preso no mês anterior
acusado de falsificar dinheiro é feita pelo duplo sentido da palavra nota:
.......................................................................................................
311 Assinar significa inscrever na obra o nome próprio - em princípio o nome civil, mas não
necessariamente -, numa operação de eficácia dupla: por um lado, indicação e reivindicação de
origem, de paternidade, de responsabilidade; por outro, possibilidade de curso próprio libertado da
origem e fora do alcance da paternidade. (BAPTISTA, 2003, p. 10).
498
Saiam donde for, basta que enfeitem a moça andaluza. Não lhe
faltarão guitarras nem guitarreiros, que levantem até a lua os
seus méritos, ainda que eles sejam mal pesados. Que valem
cinquenta ou cem gramas de menos a um merecimento, se lhe
não tiram este nome? Tudo está no nome. Vi estadistas que
tinham de ciência política um quilo muito mal pesado, e nunca
os vi gritar contra o açougueiro; alguns acabaram crendo que o
peso era justo, outros que até traziam um pedaço de quebra...
— Isto prova, interrompe-me aqui o açougueiro, que o senhor
entende pouco do que escreve. Se realmente tivesse ideias claras
saberia que não há só quilos mal pesados; também os há bem
pesados. Mas quem os recebe da segunda classe, não corre às
folhas públicas. Creia-me, isto de filosofia não se faz só com a
pena no papel, mas também com o facão na alcatra. Saiba que o
mundo é uma balança, em que se pesam alternadamente aqueles
dois quilos, entre brados de alegria e de indignação. Para mim,
tenho que o quilo mal pesado foi inventado por Deus, e o bem
pesado pelo Diabo; mas os meus fregueses pensam o contrário, e
daí um povo de cismáticos, uma raça perversa e corrupta...
— Bem; faça o resto da crônica. (ASSIS, 2008, v. 4, p. 958)
Não se trata aqui de uma mimetização da voz do açougueiro feita pelo cronista
(obviamente, considerando o nível ficcional), mas uma tomada de voz, na qual o
499
312 Atente-se agora para duas inversões geniais: primeira, o enunciador-narrador torna-se repentinamente
interlocutor da personagem que até então não havia tido o direito à palavra. Assim ele deixa de ser
senhor do texto, que é tomado de assalto pelo açougueiro, que se rebela contra o ponto de vista do
narrador. O cronista, reafirmando sua dupla condição de interlocutor e enunciador, se retira,
aparentemente irritado ou sem argumentos, deixando ao seu interlocutor a tarefa de concluir a crônica,
o que sugere que ele passaria à condição de narrador. Mas a inversão de instâncias não teria a mesma
graça se não fosse acompanhada pela introdução do ponto de vista do açougueiro, que afirma, em
oposição ao narrador, que há quilos de todas as espécies, defendendo, evidentemente, aquele que
atende aos seus interesses e lhe permite um lucro maior. A intervenção do açougueiro suscita duas
questões importantes: primeiro, a dificuldade ou impossibilidade de se chegar à verdade, uma vez que
só existiriam versões sobre um fato; segundo, todo o discurso se constrói em oposição a outros
discursos, que acabam por constituí-lo.(CRUZ, 2002, pp. 72-73)
313 Os boatos nos lembram a evidência o óbvio: nós não acreditamos em nossos conhecimentos porque
eles são verdadeiros, fundamentados ou provados. Guardadas as proporções, o que acontece é o
inverso: eles são verdadeiros porque nós acreditamos que sejam. O boato redemonstra, se é
necessário, que todas as certezas são sociais: é verdadeiro aquilo que o grupo social a que
pertencemos considera como tal. O saber social repousa sobre a fé e não sobre a prova. Esta afirmação
não deveria nos surpreender: o mais belo exemplo de rumor não é a religião? Não é ela a propagação
de uma palavra atribuída a uma Grande Testemunha inicial? E significativo que, no cristianismo, esta
fonte original se chame Verbo. Assim como o boato, a religião é uma fé contagiosa: espera-se que o
fiel acredite na palavra, que ele adira à verdade revelada. Não é a prova da existência de Deus que cria
a fé, mas o inverso. Por isso as íntimas convicções que movem os povos baseiam-se, frequentemente,
em palavras. (KAPFERER, 1993, p. 242)
500
(ASSIS, 2008, v. 4, p. 221). Essa verdade mantida pelo Estado, portanto, se constitui
como o significante despótico desterritorializado da matéria do jornal e reterritorializado
no corpo da crônica como forma de denúncia da sua pseudomultiplicidade arborescente.
Outra característica importante é que o rizoma pode ser rompido, quebrado em
lugar qualquer contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas ou
que atravessam uma estrutura. Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade
segunda as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído,
mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar.
Há um processo de desterritorialização produzido pela pena do cronista no jogo entre o
discurso jornalístico e o discurso ficcional: a matéria jornalística se desterritorializa,
formando uma imagem da ficção e a ficção se reterritorializa nessa imagem; também a
ficção se desterritorializa devindo ela mesma uma peça na reprodução do discurso
jornalístico, que reterritorializa ao deslocar o seu discurso pretensamente real.
Comumente se diria que o discurso ficcional mimetiza o discurso jornalístico ao
reproduzi-lo de maneira significante. Contudo, como observam Deleuze e Guattari, não
se trata de imitação, mas de captura do código como devir, isto é, o devir-ficção do
jornal e o devir-jornalístico da ficção, operando uma explosão de discursos
heterogêneos na linha de fuga composta de um rizoma comum que não pode mais ser
atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante 314. Ou, como afirma o
cronista na crônica de 5 de junho de 1864:
314 Ao mesmo tempo trata-se de algo completamente diferente: não mais imitação, mas captura de
código, mais-valia de código, aumento de valência, verdadeiro devir, devir-vespa da orquídea, devir-
orquídea da vespa, cada um destes devires assegurando a desterritorialização de um dos termos e a
reterritorialização do outro, os dois devires se encadeando e se revezando segundo uma circulação de
intensidades que empurra a desterritorialização cada vez mais longe. Não há imitação nem
semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha de fuga composta de um rizoma
comum que não pode mais ser atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante.
(DELEUZE & GUATTARI, 2011, volume 1, p. 26)
502
signifique que o discurso jornalístico "faça como" o discurso ficcional, mas que o efeito
desse jogo rizomático entre o discurso jornalístico e o discurso ficcional é o modo como
o cronista evidencia a ficcionalidade do discurso jornalístico que se pretende como real
e a realidade do discurso ficcional ao evidenciar o modo de produção de poder nesses
discursos. Como observam Deleuze Guattari:
despótico sobre seu mapa. É o caso do trecho das crônicas já citadas de 7 e 14 de janeiro
de 1862 da série Comentários da Semana, quando o cronista questiona o fato de o
expediente do Ministério do Império ter oficiado o conselheiro Borges Monteiro,
jubilado em duas cadeiras da Faculdade de Medicina, a ter direito a um ordenado por
inteiro por ter prestado 25 anos de serviços efetivos. O cronista, usando do expediente
do boato, questiona a legitimidade ao identificar o que chama de equívoco aritmético,
exigindo que o fato seja elucidado pelo ministro, antes que reforce o boato. Em
resposta, um artigo anônimo publicado no Jornal do Commercio no dia 9 de janeiro
atribui a autoria do boato ao cronista e ao Diário do Rio de Janeiro, onde a crônica foi
publicada. Essa atribuição se dá como esforço do significante despótico de transformar
o boato da crônica em imagem, constituindo-o em raiz ao atribuir sua origem e, com
isso, neutralizando suas multiplicidades segundo eixos de significância e subjetivação.
Contudo, na crônica seguinte, o cronista refuta essa tentativa de "paternidade" do boato,
dizendo ser apenas eco desse boato e passa a evidenciar o modo de funcionamento dessa
resposta ao identificar o sujeito anônimo como sendo o Governo, bem como alterando o
sentido da palavra "louvor", usada na resposta, não como mérito, mas como censura,
conforme analisamos anteriormente, como forma de ressituar, operando nessa resposta
linhas de fugas possíveis, explodindo seus estratos, rompendo as raízes e operando
novas conexões. Em resumo, o rizoma, diferentemente das árvores/raízes, conecta um
ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete
necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito
diferentes, inclusive estados de não signos.
A espacialidade opera-se como procedimento recorrente nas crônicas,
determinando o modo como o cronista opera essas multiplicidades. Vemos por
exemplo, na crônica do dia 14 de janeiro de 1862 da série Comentários da Semana, ao
evidenciar o seu modo de produção: "Rir-se-ão os Fluminenses se me virem atravessar
(perdoa-me, ó Diógenes!), não as ruas da cidade, mas os dias da semana, com uma
lanterna na mão à cata de notícia?" (ASSIS, 2008d, p. 156). Ou na sequência dessa
mesma crônica, estabelecendo a comparação da crônica com um campo de plantação:
"Um elegante folhetinista dos nossos, achando-se nas mesmas circunstâncias que eu,
encabeçou o seu escrito hebdomadário com esta expressão do gordo Sancho: “Diz-me o
que semeaste, dir-te-ei o que colherás”. Aproveito a lembrança , e pergunto se alguma
coisa se pode colher deste terreno que se chamou – a semana passada, - onde nada foi
semeado?". Em crônica do dia 4 de dezembro de 1892 da série A Semana, o cronista,
504
por meio da função regência, define a crônica como esse topos em que as notícias se
entrecruzam e fazendo do papel do cronista esse tecelão que se movimenta entre elas:
315 Deleuze e Guattari apontam três tipos de linhas que compõem nossas relações: as de
segmentaridade dura, características dos grandes conjuntos molares ou estratos, como as classes
sociais e os gêneros; as de segmentaridade maleável, caracterizadas por relações moleculares de
desestratificações relativas, com velocidades acima ou abaixo dos limites da percepção, e que, ao
contrário dos grandes movimentos e cortes que definem os estratos, compõem-se de elementos
rizomáticos, esquizos, sempre em devir, fluxos sempre em movimento que retiram o homem da
rigidez dos estratos; e as linhas de fuga, que se caracterizam por uma ruptura com os estratos ou sua
desestratificação absoluta. (CASSIANO & FURLAN, 2013, p. 372)
507
p. 11)
A matéria enseja a crítica não ao caso em si, mas à proposta que o jornal católico
Le Monde apresenta como meio para substituir o que considera como impiedade. A
impiedade não está no ato de matar alguém, mas no fato de o fazerem com um
instrumento herdado da Revolução Francesa; portanto, como observa o cronista, a
crítica feita pela folha católica é uma questão simplesmente de forma, cujo fundo é
mantido e respeitado. Na concepção desse jornal, ser piedoso é matar os condenados
catolicamente. Nessa mesma crônica, o cronista rebate uma crítica feita pelo Deputado
Lopes Netto à imprensa por esta ter dito que ele, em outra sessão da Câmara, havia
glorificado o México. Na crônica do dia 20 de junho de 1864 da mesma série, o cronista
havia dito sobre o discurso desse deputado o qual, ao tratar sobre a dotação
orçamentária das princesas, aproveitou o ensejo para glorificar o México:
Diante dessa crítica ao seu discurso, o deputado, em sessão seguinte, negou ter
feito qualquer elogio ao México e o cronista, rebatendo o discurso do deputado,
510
Tratando ainda dessa discrepância entre as palavras e as ideias e como elas são
ditas nas tribunas do Parlamento e publicadas na imprensa, em crônica do dia 28 de
agosto de 1864 da mesma série, o cronista critica essa prática comum dos parlamentares
em suprimir seus discursos nos jornais e nos anais, visto que o Parlamento não é uma
academia onde se mostre uma fala com elegância, mas o lugar em que a sociedade deve
saber o que pensam e o que falam seus representantes sobre os mais variados assuntos:
Esses exemplos e variados outros tratados como política amena mostram como o
interesse do cronista, sobretudo no que se refere às questões políticas, voltam-se cada
vez mais para as produções discursivas como produções de verdades e de realidade. Ao
ressaltá-las, evidenciando o seu jogo e a distância com a vida cotidiana, o cronista opera
a desautomatização da linguagem, criando rotas de fuga no interior desses discursos
para evidenciar os discursos políticos como jogos de poder.
Desse modo, entendendo os discursos produzidos seja pela instituição religiosa
ou pela instituição política como discursos performáticos que produzem realidades com
base em interesses individuais ou de grupos, naturalizados como discursos de verdade, o
cronista, ao evidenciar seu modo de funcionamento e acentuar as contradições internas
dessas formas de produção discursiva, esquizofreniza esses significantes despóticos -
essas palavra de ordem - operando por dentro deles rotas de fuga que permitam os
leitores perceberem os seus modos de produção. Em outras palavras, à medida em que o
cronista evidencia o limite da linguagem na sua relação com realidade - o paradoxo do
ladrão honesto - ressaltando que a realidade escapa a qualquer linguagem e que, muitas
vezes, coisas ridículas, desonestas e tolas são designadas por nomes sérios, honestos e
sensatos; ou que os discursos políticos alteram-se conforme os interesses individuais ou
de grupo, como o faz o Deputado Lopez Netto; ou ainda, quando a preocupação de uma
instituição religiosa sobre a pena de morte dá-se não pelo ato de matar, mas pela forma
como é feito, ele desloca os termos e faz evidenciar os sentidos para os quais funcionam
esses discursos e, com isso, cria rotas de fuga, operando a desautomatização da
linguagem e evidenciando a suas relações de poder.
A palavra, vista como palavra de ordem, sobretudo da política é evidenciada
pelo cronista como marcada por "retortas e alambiques, onde se apuram as palavras e as
ideias, de modo tal que as tornam inteiramente diversas daquilo que significam na
ordem comum". Como observam Deleuze e Guattari, a linguagem não é feita para que
se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer316. Diferentemente, e fazendo da
crônica um instrumento de desautomatização dessa palavra de ordem, o papel da
crônica é o "de atirar semanalmente aos leitores um punhado de rosas.. . sem quebrar-
316 A unidade elementar da linguagem — o enunciado — é a palavra de ordem. Mais do que o senso
comum, faculdade que centralizaria as informações, é preciso definir uma faculdade abominável que
consiste em emitir, receber e transmitir as palavras de ordem. A linguagem não é mesmo feita para
que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer. (DELEUZE & GUATTARI, 2011, volume
2, p. 12)
512
lhes os espinhos." (ASSIS, 2008, p. 138). Ou, conforme apresenta no início das crônicas
Ao Acaso:
317 A esquizoanálise ou a pragmática não tem outro sentido: faça rizoma, mas você não sabe com o
que você pode fazer rizoma, que haste subterrânea irá fazer efetivamente rizoma, ou fazer devir, fazer
população no teu deserto. Experimente. (DELEUZE & GUATTARI, 2012, volume 4, p. 36).
513
semovente.
Travamos conversa e fizemos conhecimento; quando ele soube
que eu manejava a enxadinha com que agora revolvo estas terras
do folhetim, deixou escapar dos lábios uma exclamação:
— “Ah!”
Estava longe de conhecer o que havia neste — Ah! — tão
misterioso e tão significativo.
Minutos depois começou o pregão da pequena. O meu indivíduo
cobria os lanços, com incrível desespero, a ponto de por fora de
combate todos os pretendentes, exceto um que lutou ainda por
algum tempo, mas que afinal teve de ceder.
O preço definitivo da desgraçadinha era fabuloso. Só o amor à
humanidade podia explicar aquela luta da parte do meu novo
conhecimento; não perdi de vista o comprador, convencido de
que iria disfarçadamente ao leiloeiro dizer-lhe que a quantia
lançada era aplicada à liberdade da infeliz. Pus-me à espreita da
virtude.
O comprador não me desiludiu, porque, apenas começava a
espreitá-lo, ouvi-lhe dizer alto e bom som:
— “É para a liberdade!”
O último combatente do leilão foi ao filantropo, apertou-lhe as
mãos e disse-lhe:
— “Eu tinha a mesma intenção”.
O filantropo voltou-se para mim e pronunciou baixinho as
seguintes palavras, acompanhadas de um sorriso:
— “Não vá agora dizer lá na folha que eu pratiquei este ato de
caridade”.
Satisfiz religiosamente o dito do filantropo, mas nem assim me
furtei à honra de ver o caso publicado e comentado nos outros
jornais.
Deixo ao leitor a apreciação daquele airoso duelo de filantropia.
318 Assim, a suposta adequação pode ser interpretada de maneira dita anagógica, em direção ao "alto";
ou então, inversamente, de maneira analítica, em direção ao "baixo", reportando o mito às pulsões -
mas, como as pulsões são decalcadas do mito, desfalcadas do mito, levando em conta as
transformações ... Queremos dizer que é a partir do mesmo postulado que Jung é levado a restaurar a
mais difusa, a mais espiritualizada religiosidade, e que Freud se vê confirmado em seu mais rigoroso
ateísmo. Para interpretar a adequação postulada por ambos, Freud tem tanta necessidade de negar a
existência de Deus quanto Jung tem de afirmar a essência do divino (DELEUZE & GUATTARI,
2011, p. 82).
519
319 Como observa Helen Caldwell, o Otelo de Shakespeare aparece no argumento de vinte e oito
narrativas, peças e artigos. Segundo Caldwell, Otelo não foi a única peça de Shakespeare da qual
Machado se serviu: Romeu e Julieta serve de trama para um romance e nove contos; o personagem
Hamlet aparece um pouco por contaminação - mesmo quando se está tratando dos Otelos
(CALDWELL, 2002, p. 19)
520
320 Portanto, seria preciso ouvir as advertências de Lacan sobre o mito freudiano do Édipo, que "não
poderia permanecer indefinidamente em evidência nas formas de sociedade em que se perde cada vez
mais o sentido da tragédia ... : um mito não se preserva se ele não sustenta algum rito, e a psicanálise
não é o rito do Édipo". (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 115)
321 É significativa a leitura que Caldwell faz desse romance ao evidenciar como o mito de Otelo é
articulado por Bento Santiago como forma de confirmar a culpa de Capitu, incriminando-a de
adultério com seu melhor amigo. Contudo, Caldwell não rompe com o mito, pelo contrário, tendo
como pressuposição de que o mito representa esse drama familiar burguês, propõe por meio dele a
defesa de Capitu. Conforme diz a autora: Através de tamanha alquimia psicológica, Machado de
Assis transforma o Mouro de Veneza no Casmurro do Engenho Novo. A semente da paixão de
Santiago encontra-se em Otelo (e Iago); mas, se o ciúme de Santiago é mais inclusivo, também é mais
neurótico - ao extremo da insanidade. Sinal dessa mácula, creio eu, é essa certa dose de ironia
inserida por Machado no autor fictício do livro - através de um nome. (CALDWELL, 2002, p. 186-
187). Portanto, a autora, na ânsia de inocentar Capitu, não se dá conta de que o recurso ao mito
corresponde ao modo de produção de sentido do narrador e que, ao invés de se querer provar
inocência ou culpa, deve-se evidenciar o modo de produção desses discursos que engessam os
acontecimentos à representação do mito e não, como afirma, que o mito deva funcionar como prova
de inocência de Capitu.
521
Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro jogam com o arbitrário de direção narrativa
e, à medida que suprime a familiaridade do princípio de causalidade que legitima a
memória do leitor, "dissolvem a verossimilhança tradicional por meio da estilização e
paródia da mesma como gênero cômico" (HANSEN, 2008, p. 154). Dessa forma, como
afirma Hansen, o uso de autores ficcionais faz a narrativa tradicional desfuncionar.
O que chamamos aqui de esquizodesmistificação é o processo pelo qual a pena
do cronista não se contrapõe a esse uso do mito característico do pensamento
romântico-realista, pelo contrário, opera na crônica a referência explícita ao mito.
Contudo, essa operação nas crônicas dá-se por meio do esvaziamento ou da
hiperbolização na qual o mito passa a não mais cumprir sua função de produtor de
verdade e interpretante da realidade. Esse processo é esquizo, pois cria rotas de fuga
dentro da determinação do significante despótico e essa fuga faz com que o mito retorne
à sua condição de mito perdendo seu efeito simbólico e imaginário.
Vemos por exemplo o processo de hiperbolização do mito como forma de dar
sentido a um determinado acontecimento no caso da crônica já citada do dia 9 de junho
de 1878 da série Notas Semanais. O cronista retoma a discussão sobre o caso de
incêndio do Paço Municipal de Macacu e, diante do posicionamento oficial de que o
incêndio havia sido causado por combustão espontânea, propõe outra explicação: a de
que o Paço não havia pegado fogo, mas fugido, pois escondendo dos munícipes a sua
verdadeira sexualidade, isto é, o Paço - másculo por aparência - tinha conseguido até
então dissimular o sexo, visto que se tratava de uma bela quadragenária. Ao descobrir
que era mãe, ela passou a sentir um misto de júbilo e terror. Para evitar a execração
universal cogitou duas possibilidades: jogar-se no rio ou fugir da cidade. Nessa
informação, o cronista convoca dois mitos distintos: o grego - essa quase Medéia - e o
hebraico - fez-se Agar. Evitando matar o filho como fez Medéia - referência ao mito
grego narrado na obra Argonautica de Apolônio de Rodes - resolve fugir como o fez
Agar (serva de Abraão e Sara, no episódio narrado no Pentateuco hebraico e traduzido
para o Cristianismo no livro de Gênesis) para proteger seu filho. A narrativa de Gênesis
conta que Agar foi expulsa por Abraão a pedido de sua esposa Sara, por esta sentir-se
humilhada pelo fato de a escrava ter dado um filho a seu marido e ela não. O mito
funciona como explicação para o acontecimento do incêndio do Paço Municipal de
Macacu. Contudo, operado por meio da narrativa fantástica, a personificação do Paço e
sua adequação ao mito operam a esquizodesmistificação posto que, ao afirmá-lo, o
cronista o hiperboliza para evidenciar os absurdos discursivos que tentam justificar a
522
causa do incêndio. O argumento que se desenvolve nesse recurso ao mito não é a busca
da representação simbólica como resposta e explicação a um determinado
acontecimento, mas a paródia dos modos de produção discursiva vinculados na
imprensa que tentam justificar o caso criminoso do incêndio.
Em crônica de 7 de julho de 1878 da mesma série, o cronista comenta a notícia
de um caso no interior da Bahia, na cidade de Caravelas, no qual um homem havia dado
à luz uma criança. Segundo a imprensa, o homem sentia dor agudíssima na região
precordial e, com o uso de medicamentos, acabou por expelir pedaços de uma criança.
As notícias na imprensa eram dadas como um acontecimento verdadeiro e sério, mas o
cronista, fazendo recurso ao mito de Baco - gerado na coxa de Júpiter - e Minerva que
saiu armada da cabeça de Júpiter, ironiza o modo como o caso de Caravelas era
noticiado na imprensa:
muito antigas na Grécia e compilada sob autoria de Homero em sua segunda obra
Odisséia. Conforme a narrativa, após um ano casados, Odisseu teve de se separar da
esposa para participar da Guerra de Tróia, ausentando-se de Ítaca por quinze anos.
Nesse tempo, Penélope fica aguardando o retorno do marido, mas instada pelo pai, vê-se
obrigada a ter de escolher um dos pretendentes à sua mão. Contudo, acreditando no
retorno de Odisseu, Penélope lança mão de vários artifícios para ganhar tempo, entre
esses artifícios, está o de coser um tela para o dossel funerário de Laertes:
Durante o dia e aos olhos de todos, Penélope cosia, mas a noite desmanchava o
trabalho feito, até que essa artimanha foi descoberta por uma serva que a revelou a
todos. Penélope busca outro artifício: propõe que se casará com o pretendente que
conseguir entesar o arco de Odisseu. Todos tentam, mas sem sucesso, até que um
mendigo se propõe a fazê-lo e, sob riso geral, consegue. Penélope reconhece no
mendigo seu marido. O mito funciona como uma das imagens mais populares de
feminilidade, no qual a mulher espera o retorno do amado e, enquanto espera, tece,
borda, junta os fios e as cores. Conforme observa Célia Gago em seu artigo "Fiar, tecer,
narrar, criar", o trabalho de Penélope é associado à rotina das tarefas domésticas
femininas, cujo trabalho repetitivo é uma estratégia da heroína como forma de parar o
tempo para garantir o retorno do marido. Segundo a psicóloga:
322 Célia Gago, sem data. Texto tirado do site: http://sbpa-rj.org.br/site/?page_id=470 Consultado no dia
30 de novembro de 2014.
526
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ANEXOS:
ANEXO 1:
OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 925, 12 de fevereiro de 1958.
O cego de nascença e o cego por desgraça.
ANEXO 2:
OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 929, 26 de fevereiro de 1958, p. 1.
O que é mais doloroso, ser-se cego de nascença ou cego por acidente? That is
the question...
Como bem disse o Sr. Redator da Marmota, a questão apresentava-se
essencialmente filosófica, e o grande campo para os sectários da doutrina espiritualista
estava aberto com uma discussão toda metafísica; porém eu por demais amigo de
galhofar, e pouco acostumado a manejar silogismos e espertezas da lógica, resolvi não
entrar nesse debate, empenhado num campo inteiramente cerrado para meus hábitos e
costumes, apesar contudo do desejo que tinha de também dar a minha humilde opinião a
respeito; mas bem razão tinha aquele que disse: vouloir est pouvoir!
A vontade, essa eletricidade intelectual, fez-me lembrar que se eu discutisse
rindo-me, ainda o fazia filosoficamente, pois o riso já foi o característico de uma escola
de pensadores, e, portanto, animado com essa ideia tomei a minha pena ligeira de
folhetinista e comecei o meu raciocínio sobre a questão, desta maneira:
Se a vida é, como diz Bichat, a reunião dos fenômenos que triunfam da morte; se
a vista, como diz Sthall, é a melhor coisa da vida; segue-se concludentemente que a
cegueira, isto é a morte da vista, é a aniquilação da melhor parte da vida.
O cego de nascença começa a vida sem essa aniquilação, isto é, não sofre essa
subtração na sua força vital, portanto este argumento só serve para mostra sofrimento no
cego posterior ao nascimento, que a meu ver é o mais digno de lástima.
Não ver, é uma privação; ter visto e não ver, é um castigo.
O cego de nascença idealiza as coisas colorindo-as melhor do que elas são,
fantasia um mundo à sua guisa, identifica-se com ele, e portanto se visse a realidade,
talvez essa desmerecesse à sua imaginação, e assim amasse mais o seu mundo. O cego
depois tem refletida na alma as cenas que pasmou e quando se recorda dela é sentido a
morte de suas melhores ilusões! Quantos soluços não custariam a Homero e a Milton as
533
pinturas que, em suas cegueiras, fizeram-nas imortais epopéias, de quadros tão belos da
natureza que eles viram, guardaram e não contemplariam jamais?
O cego de nascença tem uma vida toda de espírito; a poesia, essa elasticidade da
alma, como diz Lamartine, povoa o seu mundo de cenas fantásticas, que ele contempla
uma realidade; e que melhor paisagista do que a poesia?
Entre a saudade e o desejo há uma grande diferença; a saudade supõe dor, o
desejo apenas gozo; é o que se dá entre os cegos de nascença e depois de nascença; o
primeiro deseja ver a luz, o segundo tem saudade da
luz...........................................................................
.............................................................................................................................................
.........
Quase faço um sermão de lágrimas, não é verdade, Sr. Redator? Porém
desculpe-me se menti ao meu programa; V. S. deve saber que hoje, o programa
representa a antítese da execução, e portanto já devia esperar isso; mas para finalizar,
sempre direi que acho mais digno de lástima o homem que já não vê, do que aquele que
somente não vê...
Os fiscais e inspetores de quarteirão não são entes infelizes, e todavia são cegos
de nascenças, nunca vêem: ao passo que a nossa constituição é bem digna de dó porque
houve tempo em que já viu, mas agora!... coitada! Deu-lhe a gota serena e fez fiasco...
Todavia eu preferiria antes ser cego do que ter bons olhos e não ver como o
célebre astrônomo Lalande que dizia: J’ai visite toute l’étendue du ciel, ET n’y ai point
vu Dieu!
Razão porque ninguém me tira da cabeça que os pedestres descendem desse
grande matemático... no que diz respeito à pouca vista...
Basta.
Jq. Sr.
ANEXO 3:
OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 931, 5 de março 1958, pp. 1-2.
humana que deve ter uma origem, que não pode estar em si, porque seria um absurdo,
que não pode ser obra do acaso que nada produz, mas que deve nascer de um Ente
Supremo, infinito, eterno. Este reconhecimento que importa um dos pontos capitais da
filosofia, e a base da religião não pode ser operado senão pelas ideias recebidas pelos
sentidos. Pode o cego de nascença sem uma só noção do mundo físico, esta grande
manifestação da existência de Deus, fazer uma ideia exata da Divindade? Não o cremos.
E pois, mais uma vez está provado que é mais doloroso o estado do cego de
nascença comparado ao cego por acidente, pois que este tem uma ideia de tudo o que
existe pelos olhos do espírito e da memória.
Por enquanto é bastante o que acima expendemos; voltaremos à questão, talvez,
e então seremos mais extensos. Estamos certos que o autor do artigo a que nos
referimos há de ficar zangado com as nossas palavras, e talvez volte a falar sobre a
matéria.
Aguardamo-lo. Entretanto, fique certo de uma verdade: nós não ferimos
personalidades, mas sim argumentos: mesmo apesar da frase de Buffon: – O estilo é o
homem.
As.
ANEXO 4:
Chamado à fala pelo Sr. As. Sobre um artigo, intitulado – Os Cegos – que
discutimos; não podemos resistir ao emprazamento do ilustre cavalheiro, apesar de
repararmos que o mesmo senhor tenha ligado mais importância do que nós mesmos a
esse ligeiro escrito, e que trata com mais interesse, do que apresenta mostrar um artigo
humilde e obscuro como o seu autor. Pela nossa parte declaramos que jamais
refutaríamos ideias que fossem absurdas e que nada provassem; leríamos até ao fim o
artigo que nos tivesse despertado a curiosidade; e vendo que nada havia nele digno de
interesse, murmuraríamos apenas em voz baixa: – que lástima, o que é que isto prova?!
Entretanto, o nobre cavalheiro nem de leve nos ofende, ao contrário, trata-nos
com a urbanidade que o caracteriza, e tem, portanto, toda a razão quando diz: – o estilo
537
é o homem.
Sentimos desenganar ao autor do artigo em questão, que enganou-se quando
disse que nos zangaríamos com os seus argumentos; viemos ao seu chamado para um
combate franco, leal e sem prevenções. Para que armas envenenadas quando não se
combate um ponto de honra, ou que tenha relação com nossa pessoa e brios?! Fora o
combate de D. Quixote e do moinho de vento...
Não viemos sustentar os nossos primeiros argumentos, viemos apenas mostrar a
inconseqüência dos vossos, Snr. As.
- Escutai-nos:
Declarais que o cego de nascença, logo ao primeiro passo na vida, esbarra com a
noite que o deve cercar para sempre, noite eterna e sem a esperança de um Fiat lux, e
portanto, que deve ser muito desgraçado o seu penoso estado: isto não é procedente: vós
colocais o caso em vós mesmos, e avaliais do prejuízo daquele que nascesse sem vista;
repetimos uma vez, que assim não é que deve estabelecer a questão: o pensamento não
funciona nele com a força do raciocínio; quando suas ideias estiverem desenvolvidas, já
ele está acostumado com essa noite eterna, ele não sabe o valor do tesouro que perdeu,
porque nasceu e criou-se sem conhecer esse tesouro; porque, enfim, não fez
comparações, e a comparação mata a unidade, como sabeis!
Quanto ao vosso sistema sobre as ideias serem exclusivamente adquiridas pelos
sentidos, e que apresentais como uma razão de impossibilidade para o cego de nascença
criar um mundo ideal; só vos responderemos que a teoria de ideias inatas é altamente
filosófica, e que neste caso a sua aplicação é muito sensata.
Perguntais ainda se pode o cego de nascença, sem uma só noção do mundo
físico, fazer uma ideia exata da divindade?! Com efeito! É uma contingência muito
mesquinha essa em [que] pondes as provas da existência de Deus!! É acabar com todas
as ideias imateriais e em que se funda a crença dos espiritualistas sobre a divindade! É
reconhecer a Deus, somente em suas obras, e fazer dependente de acontecimentos
físicos, uma ideias toda dependente da alma!!....
Quiséramos ser mais longo; porém não nos faltarão ocasiões logo que o nobre
cavalheiro, com quem discutimos, ou rebater melhor nossas ideias ou der mais vida às
suas... se é que tem poder de ressuscitar Lázaros.
Jq. Sr.
538
ANEXO 5:
QUESTÃO DE CEGUEIRA
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 932, 9 de março 1958, pp. 2-3.
ANEXO 6
OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 933, 12 de março de 1958.
Questão proposta na Marmota n. 925, de 12 de fevereiro do corrente ano.
mocidade!
A.
ANEXO 7:
OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 934, 16 de março de 1958, pp. 2-3.
Como esperávamos, o Sr. Jq. Sr. voltou ao campo; e desta vez, não para
sustentar os seus argumentos, mas para refutar os nossos. Tensionando não estendermos
com reflexões preliminares, vamos reunir todas as nossas forças para defender as nossas
opiniões e os nossos argumentos.
Entretanto não podemos deixar de declarar que, desde que alguém se apresenta
em público por um qualquer órgão da imprensa, ligamos todo o interesse às suas
palavras, porque o tomamos pelo que ele se apresenta. Isto seja dita em resposta à
censura modesta do Sr. Jq. Sr.
Desde que S. S. publicou o seu primeiro artigo sobre os cegos, decidimo-nos a
refutá-lo. Esta resolução, que não deixava entrever um único motivo de ofensa ao autor
do artigo – tinha por alvo despedaçar os atavios sofísticos de seus argumentos falsos.
Havia nisso um pensamento humanitário; – Receávamos que espíritos menos fortes se
deixassem impressionar por uma linguagem que tão bem soube dourar uma aluvião de
paradoxos. Escrevemos, e adivinhamos logo que S. S. voltaria a falar sobre a matéria. O
que não esperávamos, porém, é que os seus novos argumentos mais inconseqüentes que
os primeiros, deixassem a questão no mesmo pé; e que aqueles que partilham as suas
mesmas ideias, sofressem uma terrível decepção, tanto mais inesperada quanto que a
tradicional capacidade e aptidão de S. S. era um forte baluarte contra todo o desânimo e
fraqueza.
Com efeito! a refutação que S. S. dá aos nossos argumentos em vez de destruí-
los dá-lhes mais força. Não há destruição possível quando o edifício assenta sobre bases
colossais.
Convictos da nossa opinião, fortes em nossos princípios, todos os argumentos
que se nos apresentarem contrariando-nos, serão destruídos com a violência das
542
falta de órgão visual, os corpos e as imagens necessárias para a criação de seu mundo
imaginário; logo não se dá no cego de nascença a idealização de um tal mundo.
Isto é evidentemente lógico; só uma obstinada vontade de dissentir, poderá negá-
lo: estamos certos de que o público sensato há de reconhecer a verdade destas deduções,
verdade que só pode nascer da solidez de princípios certos e evidentes.
Mostremos, porém, como são sólidas as nossas opiniões – e como essa base não
assenta sobre princípios falsos; concedamos que se dá essa hipótese, que o cego de
nascença, contra todas as doutrinas filosóficas, creia esse mundo na sua fantasia: prova
isso por acaso que seja menos penoso o seu estado? – Por ventura seria melhor para ele
idealizar esses panoramas informes, pálidos, hipotéticos, reformados todos os dias; que
gozar, admirar o mundo real, palpável, variado, sublime? A resposta salta aos olhos e da
sua verdade convence-se o mais e obstinado espírito.
O último tópico do artigo do Sr. Jq. Sr. é interessantíssimo. S. S. acusa-nos de
materialista: e para prová-lo lança mão de um dos sofismas mais reprovados; atribui-nos
uma opinião que não temos, dizendo que admitimos e reconhecemos Deus somente nas
suas obras, nós que dissemos que uma das provas mais vivas, por isso que palpável da
existência de Deus, era o mundo físico!
Ora, quem nos ler com atenção há de convencer-se da nossa inocência; assim
como quem ler os artigos de nosso adversário, reconhecerá facilmente no seu autor, uma
veneração fanática pelas doutrinas espiritualistas. Nós não somos nem espiritualistas
puros, nem materialista; harmonizamos as doutrinas de ambas as escolas e seguimos
assim em ecletismo com o qual nos damos às mil maravilhas.
Quanto ao reconhecimento de Deus em suas obras, repetimo-lo, o cego de
nascença não pode conceber uma ideia exata, clara, perfeita da Divindade; isto não quer,
porém, dizer que ele não possa ter dela ideia alguma pois como dissemos acima,
equilibramos com mais perfeita harmonia o espiritualismo e o materialismo.
Assim não acontece, porém, ao nosso adversário. Contra a filosofia de todos os
tempos ele só encontra provas da existência de Deus na ordem metafísica. Isto e a
admissão de ideias inatas são um sacrifício heróico ao espiritualismo que não podemos
deixar de louvar. O que será então da fantasia caprichosa e romanesca dos poetas que
reconhecem a mãe de Deus em todas as suas obras?
Concluamos; cremos ter respondido satisfatoriamente ao Sr. Jq. Sr.; instar a
fazer reviver todos estes pontos que acabamos de destruir seria uma sensaboria muito e
muito desagradável. Confiamos que o Sr. Jq. Sr. para vir de novo falar sobre a matéria
544
procure outras argumentações, senão tão conseqüentes como as nossas, pela facilidade
da opinião que admitiu, ao menos mais sensatas.
Se não respondemos mais em tempo é pela afluência de trabalho que nos pesa;
algumas horas vagas que nos restam, ocupamos na conclusão de alguns trabalhos
literários a que estas questões prejudicam um pouco.
Entretanto, até à vista.
As.
ANEXO 8:
OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 935, 19 de março de 1958, p. 2.
Ainda uma resposta ao Ilmo. Sr. As.
Pela consideração e cavalheirismo que nos merece o Sr. As. Voltamos ainda à
questão – os cegos – para respondermos ao nobre antagonista que nos interpela. Já
dissemos uma vez, e o colega teria lido, que o nosso primeiro artigo, escrito
humoristicamente e num estilo ligeiro, com quanto apresentasse a ideia que nos domina
na presente questão, no ponto em que encarávamos como mais infeliz o cego por
desgraça, era contudo essa ideia revestida de argumentos adequados ao estilo, e não um
verdadeiro estudo metafísico; entretanto mereceu ele as honras de uma refutação, e com
quanto saíssemos a campo para replicar, declaramos imediatamente que o nosso
segundo artigo era uma refutação das ideias do nosso opositor e nada mais, pois com
efeito só tínhamos em vista, destruir as proposições do Sr. As, que se não combinavam
com o nosso modo de pensar; feito esse segundo artigo e tendo ele, sido ainda repelido,
vamos agora fortificar os nossos primeiros argumentos, robustecê-los de razões, pois
não é possível deixá-los sob a sua primeira e ligeira forma, quando temos um adversário
disposto a debater a questão filosoficamente, e com aquela erudição que lhe
conhecemos.
Antes, porém, de passar adiante, devemos uma explicação ao disposto adverso.
O colega é injusto quando nos julga um espírito aferrado à escola espiritualista,
quando as ideias que apresentamos não dão-lhe direito à tal suposição. Se admirarmos
em parte o idealismo de Mallebranche, e o panteísmo de Spinosa, não podemos deixar
de curvarmo-nos à força da voz poderosa de Cousin, esse chefe da escola eclética na
545
França; prezamos a metafísica de agora, que diverge um pouco da antiga, pois trata de
separar a imaginação das percepções abstratas; o nosso reclamo, pois, sobre ideias
inatas que o autor, como que reprovou, não veio senão para mostrar a possibilidade da
criação de um mundo ideal para o cego de nascença, e não como uma profissão de fé
nossa; essa ideia emitimo-la para atuar unicamente sobre quem nos referíamos – o cego
de nascença – finalmente apresentamo-la para provar que ele poderia idear, sem ver, e
como diz Chateaubriand: - que importa saber se recebe ideias pelos sentidos ou não?
Engana-se também o ilustre colega dizendo que o acusamos de materialista; não
o julgamos crente como Xenófanes em que Deus e o mundo é tudo o mesmo: não o
temos nessa escola por certo; quisemos apenas mostrar que a Divindade pode dispensar
provas físicas. Ao contrário de nós, o ilustre colega é que mostrou pelo correr de seu
argumento ter uma ideia falsa dos cegos natos, pois admitido o seu princípio sobre –
influírem muito para a crença em Deus as provas materiais e visíveis – segue-se que
supõe ele terem os cegos de nascença uma ideia pouco segura ou duvidosa de Deus;
pois essas grandes provas que lhes são vedadas, desconhece-as inteiramente. Será,
porém, afirmável essa suposição? Duvidamos muito.
O homem que cegou por acidente, principia por ter sido vítima de uma moléstia,
uma fatalidade, ou um desgosto; é esse o exórdio para os seus padecimentos posteriores,
para a recordação do que gozou, comparações com sua atualidade, e as dores pela perda
do bem que, como muito fielmente chama Camões:
........ aquilo que mais Val
Quanto mais perdido for....
O cego nato não sofreu esse começo doloroso, fisicamente falando: não é o seu
mal uma conseqüência desastrosa e, portanto, tem menos esse espinho nos seus
sentimentos; não teve ele esses dias da transição da luz para as trevas, que deve ser o
mais horrível dos males; não teve, finalmente, esse combate em sua razão para indagar a
causa por que a Providência o tratou assim! Ao contrário disso, o cego de nascença tem
a esperança – essa vida da alma; – pode encarar possível a sua regeneração, o que sem
ao dá com aquele que, vendo o seu órgal vital quebrado e inutilizado em sua forma, não
pode esperar que contra os dados certos e anatômicos, se dê, só para com ele, um
milagre! E são será isto, quando não uma consolação para o cego de nascença, ao menos
um tormento de menos?
Um ente acostumado a ter a luz como coisa de sua economia vital, e que a vê
apagada, não sentirá uma maior coluna de desgosto do que aquele que sem uso desse
546
bem, apenas sofre pela sua ausência, como por mais um gozo o que não desfruta?
Encaremos também que o cego de nascença ou não cura do futuro ou o entrevê,
como, já dissemos, suscetível de melhora; ama ao Senhor e espera em um Deus de
misericórdia. O cego por desgraça, porém, pode tornar-se um espírito descrente e
blasfemo; pois não acha justo o seu estado, embora fizesse por merecê-lo, por isso que o
culpado nunca está convicto de sua culpabilidade, e portanto só crê no Eterno como em
um Deus de vinganças.
E não será mais feliz a vida deslizada entre hinos de amor, do que entre pragas e
maldições?!
O nosso colega poderá resistir às nossas razões, poderá mesmo em consciência
não se achar convencido, pois a questão é toda de sentimento e não de razões; porém
nós julgamos que temos mais companheiros de crença do que ele. Aguardamos a sua
resposta e o saudamos.
Jq. Sr.
ANEXO 9:
OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, n° 937, 26 de março de 1938, pp. 2 -3
Todavia pode explicar-se dum modo muito natural este fenômeno, queremos
dizer esta ausência total de um orgulho parvo em um homem que como S. S. empunha
com hábil mão a pena ligeira e dourada de folhetinista. É que os corações bons e as
almas simples jamais se conformam como esses prejuízos, com essas fumaças, - com
idiotia perniciosa – que embota o espírito, e mata os verdadeiros talentos. Honra pois
lhe seja feita.
Como dissemos, os argumentos de S. S. estão totalmente inutilizados. Ponto por
ponto os destruímos, e o nosso ilustre adverso nem tratou de os fazer reviver! Parece
isto uma evasiva na falta dos princípios, e de idéias; não é assim? Prove-nos o contrário.
É sensível a diferença que existe entre o segundo artigo do nosso adversário, e o
terceiro. Naquele há calor, a viveza, a coragem; neste há frieza, e o desânimo S. S.
parece estar convencido, senão da falsidade da sua opinião, ao menos da inconseqüência
dos seus argumentos. Assim o ilustre adverso toca de passagem nas suas idéias inatas, e
nem de leve refuta os nossos raciocínios sobre a impossibilidade da creação de um
mundo – colorido pela imaginação do cego de nascença. E na verdade; como refutá-lo?
Como provar que é mais feliz ser-se cego de nascença, que cego por desgraça? Seria
querer provar, conseqüência imediata que o estado de ignorância é melhor que o da
certeza; que o mundo insensível tem vantagem sobre o mundo sensível, e, conseqüência
remota, que o mundo vegetal – impera sobre o animal, a planta sobre o homem; seria
querer provar todos estes absurdos, palpáveis, evidentes; – seria chegar de conseqüência
em conseqüência à destruição de todos os seus princípios. Ora isto seria uma derrota e
uma decepção terríveis para os seus irmãos de crença, e S. S. deixou-nos esse trabalho,
cônscio talvez de que o faríamos com menos impiedade que o seu raciocínio.
Por aqui vê-se que o nobre adverso tinha fortes razões para não tratar da questão
filosoficamente; estava certo de que no fim de seu artigo acharia o contrário do que teria
dito no começo; absteve-se de passar por este desgosto; fez bem.
Todo o artigo é assim. O ilustre antagonista ou divaga ou repete os mesmos
argumentos sediços e insensatos. Para evitar uma repetição fastidiosa enviamos o leitor
e S. S. para os nossos artigos passados onde acharão uma resposta conveniente.
Entretanto não podemos deixar de dizer ainda duas palavras sobre um dos
tópicos do artigo em questão.
S. S. nega que seja um espírito aferrado às doutrinas espiritualistas. Pode-se
prová-lo sem ir muito longe. Dizer que a idéia de Deus e da sua existência é toda
dependente da alma e não tem parte no mundo físico; não é aderir ao espiritualismo
548
mais puro e mais absoluto? Se negar isto, faz-nos crer que será então capaz de negar a
mesma existência de Deus.
O Sr. Jq. Sr., adivinhamos, deve em todas as questões colocar-se no extremo;
tem até gosto nisso. Se não admitisse as idéias inatas de Descartes, admitiria sem
dúvida a táboa rasa de Locke: se não fosse espiritualista puro, seria um materialista
perfeito: é um sistema especial.
Concluamos, e concluamos por uma vez. Depois do último artigo do Sr. Jq. Sr.
não há discussão possível: exceto se tomando aspirações quixotescas tentarmos destruir
o que já por nós se acha aniquilado.
Concluamos pois. O ilustre adversário queira desculpar alguma palavra mais ou
menos ofensiva que tenha escapado no meio da discussão, e sobretudo os erros deste
artigo escrito ao correr da pena.
Voltamos outra vez ao silêncio donde jamais sairemos, exceto se formos
impelido fortemente.
As.
549
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