2015 DarioFerreiraSousaNeto VOrig

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA

Dário Ferreira Sousa Neto

A Pena do Cronista:

A presença das crônicas nos romances


machadianos.

v. 1

São Paulo
2015
Dário Ferreira Sousa Neto

A Pena do Cronista:

A presença das crônicas nos romances


machadianos.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Literatura Brasileira do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, para a obtenção do título de Doutor em
Letras.

Orientador: Prof. Dr. João Adolfo Hansen

v. 1

São Paulo
2015
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
E-mail para contato: [email protected]

Sobre a ortografia utilizada


A redação desta tese adota as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,
assinado em 16 de dezembro de 1990. Os textos transcritos nas citações diretas
apresentam a ortografia original das fontes consultadas.

Imagem da Capa:
Fonte: Blog Letras in.verso e re.verso - Especial Centenário Machado de Assis
Disponível em: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2008/09/c-v.html
Nome: SOUSA NETO, Dário Ferreira
Título: A Pena do cronista: A presença das crônicas nos romances machadianos.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Literatura Brasileira do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, para a obtenção do título de Doutor em
Letras.

Aprovado em:

Banca examinadora

Prof. Dr. João Adolfo Hansen (orientador) Instituição: FFLCH/USP

Julgamento________________________ Assinatura____________________________

Prof. Dr. Hélio Seixas Guimarães Instituição: FFLCH/USP

Julgamento________________________ Assinatura____________________________

Prof. Dr. Roberto Zullar Instituição: FFLCH/USP

Julgamento________________________ Assinatura____________________________

Profa. Dra. Irene de Araújo Machado Instituição: ECA/USP

Julgamento________________________ Assinatura____________________________

Profa. Dra. Luzia Margareth Rago Instituição: IFCH/UNICAMP

Julgamento________________________ Assinatura____________________________
Em memória do Prof. Dr. Ivan Teixeira, cuja presença, de
diferentes formas, é viva nesta tese.
Dedico esse trabalho à minha mãe Maria de Lourdes Sousa,
amiga e mestra das minhas primeiras leituras. Qualquer
homenagem equivale a mandar flores absurdas por via postal ao
inventor dos jardins.
Não há nenhum lugar sem linguagem: não se pode opor a
linguagem, o verbal e mesmo o verboso a um espaço fora da
linguagem. Tudo é linguagem, ou, mais precisamente, a
linguagem está por toda parte. Ela atravessa o real; não há real
sem linguagem. Toda atitude que consiste em se colocar ao
abrigo da linguagem, por trás de uma não-linguagem ou de uma
linguagem que se pretenda neutra ou insignificante, é uma
atitude de má fé. A única subversão possível em matéria de
linguagem é deslocar as coisas.
Roland Barthes, O grão da voz, p. 227

O indivíduo, parece-me, não é mais que o efeito do poder, na


medida em que o poder é um procedimento de individualização.
E é sobre o fundo dessa rede de poder, que funciona em suas
diferenças de potencial, em seus desvios, que algo como o
indivíduo, o grupo, a coletividade, a instituição aparece. Em
outras palavras, aquilo com que se tem de lidar, antes de lidar
com as instituições, são as relações de força nessas disposições
táticas que perpassam as instituições.
Michel Foucault, O Poder Psiquiátrico, p. 20
AGRADECIMENTOS

Pode acontecer que o resultado valha menos que o esforço; nem


por isso perde de preço o impulso dos autores. A boa intenção
calça, neste caso, o caminho do céu. Se cada um entender que o
seu negocio vale mais que o de todos, e que antes perder a pátria
que as botas, nem por isso desmerece a intenção dos que se
puserem à testa da propaganda contrária. Levem as botas os que
se contentarem com elas; os que amam alguma coisa mais que a
si mesmos, ainda que poucos, salvarão o futuro.
Machado de Assis, A Semana, 5 de junho de 1892, p. 68

Parafraseando Cora Coralina, o valor da vida não é o da partida, mas da


caminhada, pois quem caminha e semeia terá sempre o que colher nesse final de
percurso. Esse trabalho não é outra coisa senão a colheita dessa caminhada iniciada bem
antes da graduação em que, por falta de conhecer outros autores, visto minha formação
escolar ser fruto de uma educação deficiente da escola pública na periferia de São
Paulo, em Guaianases, Machado de Assis foi o autor mais presente no meu parco
conhecimento literário. Mesmo após ingressar na Universidade de São Paulo e me
encantar com outros escritores da Literatura Brasileira, Machado levou a melhor e hoje
concluo essa caminhada me especializando no estudo de suas obras. Contudo e
obviamente, essa caminhada não foi percorrida solitariamente, pelo contrário, foi
acompanhada por diferentes pessoas das quais faço questão de citar algumas.
A principal companhia é, sem dúvida, minha mãe Maria de Lourdes Sousa, não
apenas por ser mãe, não apenas por ter criado eu e meus irmãos sozinha, trabalhando
como empregada doméstica, mas mais que isso: ela foi a primeira responsável por
despertar em mim o gosto da leitura. Nos finais de semana, quando em casa, enquanto
ela nos preparava o almoço, eu costumava sentar próximo dela para ouvi-la contar
histórias bíblicas ou de algum outro livro e, quando descobri na biblioteca de
Guaianases os livros com essas histórias, experimentei o encantamento pela leitura. A
ela minha mais profunda gratidão.
Outra pessoa importante nesse processo é o professor Dr. João Adolfo Hansen
que, em todo esse percurso, acompanhou de modo profissional e fraternal, sugerindo
mudanças, adequações e reconhecendo os pontos assertivos da pesquisa. Sem dúvida,
meu amadurecimento intelectual tem como principal responsável meu orientador e por
isso faço-lhe este agradecimento.
Agradeço aos professores Dr. Hélio Seixas Guimarães, Dr. Roberto Zular, Dr.
Ivã Carlos Lopes, Dra. Beth Brait, Dra. Norma Discini, Dr. Margareth Rago, Dra. Isabel
Oliveira por terem me possibilitado o amadurecimento acadêmico por meio dos cursos
oferecidos e ministrados por eles. Em especial ao professor Dr. Roberto Zular e ao
professor Dr. Ivan Teixeira (in memorian) pelas análises e sugestões feitas na banca de
qualificação, as quais contribuíram significativamente para esse resultado final.
Também, agradeço de forma especial ao Programa de Pós-Graduação em Literatura
Brasileira, bem como a Comissão Coordenadora e os funcionários de Pós-Graduação, o
s quais garantiram a tranquilidade e o bom desempenho de meu trabalho por meio de
seu profissionalismo qualificado em todos momentos que deles precisei.
Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Teconológico
- CNPq -, cujo financiamento por meio de bolsa me permitiu dedicação exclusiva a esse
trabalho.
Agradeço a ajuda da minha irmã Josiane Ferreira de Sousa que me ajudou com
os fichamentos e com a preparação da tese.
Agradeço ao amigo e músico Michel Lima, cujas conversas sobre teoria da
música e do ritmo contribuíram para uma melhor análise em meu trabalho.
Agradeço a ajuda do amigo Iremar Alves da Silva Júnior que me ajudou com
sugestões na formatação dos gráficos.
Agradeço ao amigo Dennis Mitchel pela ajuda com seu conhecimento para o
melhor desenvolvimento dessa tese.
Agradeço ao amigo Lindberg Campos Filho por ter me auxiliado na tradução do
resumo.
Agradeço aos amigos Varlei Couto, por ter se disposto à leitura do último
capítulo e os comentários sobre Deleuze e Guattari, e Luter Souza pela ajuda na revisão.
Agradeço a amiga Sara Freitas, mestre e doutoranda em sociologia, pelas
conversas sobre minha pesquisa.
Agradeço aos funcionários da Biblioteca da FFLCH "Florestan Fernandes" cujo
trabalho e atenção profissional facilitaram as pesquisas lá desenvolvidas.
Por fim, agradeço aos amigos e amigas da militância LGBT, do Facebook e à
família ICM, cujo apoio, incentivo e carinho foram fundamentais, sobretudo em
momentos de maior pressão e dificuldade.
Sem dúvida alguma, esse trabalho tem um pouco de cada um de vocês.
RESUMO

SOUSA NETO, Dário Ferreira. A Pena do Cronista: a presença das crônicas nos
romances machadianos. 2015. 581 p. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2015.

A Pena do Cronista tem como proposta evidenciar a contribuição do gênero


crônica na produção ficcional de Machado de Assis. Tendo como pressuposto duas
fases distintas na produção romanesca do escritor carioca já exaustivamente pontuadas
pela crítica literária machadiana, a análise deste trabalho desenvolve a hipótese de que a
mudança na forma romanesca a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas tem
implica o uso dos procedimentos composicionais desenvolvidos nas crônicas. Para
tanto, o objetivo dessa tese é compreender, a partir da análise estrutural do romance
Memórias Póstumas de Brás Cubas e das crônicas Comentários da Semana, Crônicas
de O Futuro, Ao Acaso, História de Quinze Dias, História de Trinta Dias e Notas
Semanais, os modos de produção ficcional desenvolvidos pelo autor. Desse modo,
respaldando-se na narratologia de Gerard Genette, sobretudo nos conceitos de metalepse
e as cinco funções do narrador - de regência, testemunhal, narrativa, de comunicação e
ideológica -, a análise desenvolveu a compreensão estrutural dos quatro romances
anteriores da chamada primeira fase - Ressurreição, A Mão e A Luva, Helena e Iaiá
Garcia - (os quais compõem a chamada primeira fase) e os três posteriores - Memórias
Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro para evidenciar suas
particularidades composicionais e observar a contribuição do gênero crônica na
produção romanesca machadiana. Partindo da análise dos primeiros textos escritos em
prosa e publicados no jornal Marmota Fluminense, buscamos compreender os modos de
utilização dos procedimentos retóricos baseados em Oliver Reboul, Chaïm Perelman e
Lucie Olbrechts-Tyteca. Para compreender os diferentes modos técnicos
composicionais nas crônicas, utilizamo-nos dos conceitos de discurso polêmico,
dialogismo e polifonia recorrendo a trabalhos do círculo de Bakhtin, ao conceito de
corporalidade, de Dominique Maingueneau, de performatividade de Paul Zumthor e de
autor implicado de Wolfgang Iser e Paul Ricoeur. Em capítulo específico tratamos do
conceito de boato desenvolvido por Jean-Noël Kapferer, observando tanto a
conceituação quanto a utilização desse procedimento nas crônicas, bem como o recurso
ficcional do boato aplicado no romance Dom Casmurro em três perspectivas: o boato do
autor suposto, o boato do romance e o boato produzido pelas leituras do romance. Por
fim, para estabelecer as diferenças entre os modos de produção das crônicas e dos
romances, utilizamos os conceitos de poder, disciplina, panóptico, verdade, método
arqueológico, método genealógico, perspectivismo e arbitrariedade de Michel Foucault
e os conceitos de esquizoanálise, significante despótico, multiplicidades rizomáticas e
multiplicidades arborescentes de Guilles Deleuze e Félix Guattari. Essa diferenciação
permitiu-nos propor que, nas crônicas, o autor faz uso rico desses procedimentos como
meio de questionar os lugares de produção dos discursos de verdade das instituições
científicas, políticas e religiosas do Brasil Império; e, supostos esses sujeito discursivo e
procedimentos técnicos, o modo como o autor transforma em objeto de análise esse
lugar de produção da verdade nos três primeiros romances da segunda fase.

Palavra-chave: Machado de Assis, crônicas, romances, ficção, discursos.


ABSTRACT

SOUSA NETO, Dário Ferreira. The Chronicler's Pen: the contribution of the
chronicle genre in the roman of Machado de Assis. 2015, 581 p. Thesis (Ph.D in
Brazilian Literature) - Faculty of Philosophy, Letters and Human Sciences, University
of São Paulo, 2015.

The Chronicler’s Pen has as a proposal to highlight the contribution of the


chronicle genre in the fictional production of Machado de Assis. Taking into
consideration the fact that there are two distinct phases in the carioca novelist’s
production - already exaustively demonstrated by literary criticism on Machado - this
analysis will be based on the hypothesis that the change in his literary form from The
Posthumous Memoirs of Bras Cubas (1881) onwards is intimately related to
compositional procedures developed in his chronicle work. The central objective of this
thesis is, therefore, the better understanding - from the structural analysis of the novel
The Posthumous Memoirs of Bras Cubas and the chronicles Comentários da Semana
(Week’s Comments), Crônicas de O Futuro (Chronicles of the Future), Ao Acaso (By
Chance), História de Quinze Dias (History of Fifteen Days), História de Trinta Dias
(History of Thirty Days) and Notas Semanais Weekly Notes) - of the fictional modes of
production undertaken by the author. Thereby, drawing on Gerard Genette’s narratology
particularly on his concepts of metalepsis and the five functions of the narrator –
regency, testimonial, narrative, communication and ideological – this analysis
developed the structural comprehension of the four novels that are part of his so-called
first phase The Hand and the Glove (1874); Helen (1876); Mistress Garcia (1878); and
the three later The Posthumous Memoirs of Bras Cubas; Philosopher or Dog? (1891)
and Dom Casmurro (1899) in order to highlight their particular formal aspects and
observe the contribution the chronicle genre gave to the production of Machado’s
novels. Based on the analysis of the first texts written in prose and published in
Marmota Fluminense newspaper, we seek to understand the ways Machado de Assis
makes use of rhetorical procedures with the aid of theoretical apparatus developed by
Oliver Reboul, Chaim Perelman and Lucie Olbrechts-Tyteca. In order for us to
understand the different formal devices of composition in the chronicles, we make use
of the concepts of "controversial speech", "dialogism" and "polyphony" with reference
to the Bakhtin Circle’s works, on Dominique Maingueneau’s concept of corporeality,
on Paul Zumthor’s performativity and, finally, on Wolfgang Iser and Paul Ricoeur’s
implicated author. In particular chapter we deal with the concept of rumor developed by
Jean-Noël Kapferer, examining both the conceptualization and the use of this procedure
in chronicle as well as the fictional feature rumor applied in the novel Lord Taciturn in
three perspectives: the rumor of the alleged perpetrator, the rumor of romance and the
rumor produced by the readings of the novel. Finally, in order to establish the
differences between the modes of production of the novels and the chronicles, we use
the concepts of power, discipline, panopticon, truth, archaeological method,
genealogical method, perspectivism and arbitrariness of Michel Foucault and the
concepts of schizoanalysis, significant despotic, rhizomatic multiplicities and
arborescent multiplicities of Guilles Deleuze and Felix Guattari. This distinction
allowed us to realize that in the chronicles, the chronicler makes a rich use of these
procedures as a way to question the place of production of truth discourses in scientific,
political and religious institutions of empire of Brazil, and from this conclusion, how it
constitutes this discursive subject as an author in the three novels of the second phase.
Machado de Assis, through these procedures, makes that place of production of truth his
object of analysis.

Keywords: Machado de Assis, essays, novels, fiction, discourses.


SUMÁRIO
VOLUME 1

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 16

PRIMEIRA PARTE - A PROSA MACHADIANA: DA RETÓRICA À FICÇÃO

Capítulo 1 - Os primeiros textos em prosa.................................................................... 23


Capítulo 2 - A Estrutura Narrativa dos romances de Machado de Assis...................... 36
I - O Método....................................................................................................... 38
II - Cena.............................................................................................................. 40
III - O jogo de cena nos quatro primeiros romances........................................... 41
a) Diégese e Mimese............................................................................... 41
b) Discurso Indireto Livre e Monólogo Interior..................................... 44
IV - Quincas Borba: A retórica da loucura......................................................... 88
V - O Sumário estruturante de Dom Casmurro................................................ 105
VI - Metalepses................................................................................................. 119
a) Metalepse como modelo contratual.................................................. 125
b) Metalepse como modelo disciplinar................................................. 132
c) Metalepse como modelo arbitrário................................................... 156

SEGUNDA PARTE - CRÔNICA: A POLÍTICA AMENA E O MODELO


DESCONTÍNUO
Capítulo 1 - A crônica e o modelo descontínuo.......................................................... 180
Capítulo 2 - Cronista: Narrador ou comentarista?....................................................... 218
Capítulo 3 - O discurso cotidiano das crônicas........................................................... 235
Capítulo 4 - O contrato enunciativo entre cronista e leitor......................................... 253
Capítulo 5 - Dialogismo e discurso polêmico............................................................. 266
Capítulo 6 - O Eu no mundo e o Eu no texto.............................................................. 287
VOLUME 2

TERCEIRA PARTE: PRODUÇÃO DISCURSIVA, VERDADE E RELAÇÕES


DE PODER.

Capítulo 1 - A intencionalidade inventiva................................................................... 305


I) A polêmica da intencionalidade na crítica machadiana................................ 306
II) Os leitores do conto "Pílades e Oreste"....................................................... 308
III) Os vazios do texto literário......................................................................... 313
Capítulo 2 - Boato: o ente invisível............................................................................. 322
I) O mercado clandestino da informação.......................................................... 322
II) O Boato como matéria e objeto da crônica.................................................. 340
III) Dom Casmurro e a estética do boato.......................................................... 349
a) O boato como fruto da memória de Bento Santiago......................... 352
b) O boato como procedimento do romance Dom Casmurro............... 359
c) O boato como efeito de leitura na história da recepção de Dom
Casmurro...................................................................................................................... 365
Capítulo 3 - Performatividade como ato de leitura..................................................... 384
I) Perspectivismo e Genealogia........................................................................ 388
II) Multiplicidades de perspectivas................................................................... 393
III) Habitus e Proveniência............................................................................... 396
Capítulo 4 - As anti-metáforas machadianas............................................................... 404
Capítulo 5 - Espacialidade e Arqueologia nas crônicas.............................................. 431
I) Temporalidades cronológicas e linguísticas no espessamento da escrita
cronística....................................................................................................................... 431
II) A crônica como produção arqueológica...................................................... 440
Capítulo 6 - Linguagem, Verdade e Relações de Poder.............................................. 450
I - Multiplicidades rizomáticas e multiplicidades arborescentes.................... 487
II - A Esquizoanálise e o significante despótico............................................... 504
III - A esquizodesmistificação em Machado de Assis..................................... 518
Considerações Finais.................................................................................................... 528
Anexos.......................................................................................................................... 531
Referência Bibliográfica............................................................................................... 549
16

INTRODUÇÃO

Desde Silvio Romero, a crítica machadiana tem devotado um extenso trabalho à


compreensão da forma de escrita de Machado de Assis. Algumas análises, como a de
Romero, identificaram nela a pessoa do autor, atribuindo à gagueira o fato de seus
escritos serem fragmentados. Entre leituras de cunho psicológico ou sociológico, ainda
se recorre a fatores estranhos à composição para explicá-la. Pretendemos outro
caminho: a partir de diversos estudos sobre retórica, análise de discurso, semiótica,
pragmática e semanálise, buscamos determinar os procedimentos técnicos da escrita
machadiana e compreendê-los. Consideramos que o autor elabora uma junção de
discursos cotidianos por meio da ficcionalização de conversas flagradas nas ruas do Rio
de Janeiro, utilizando procedimentos retóricos comuns aos escritores de sua época;
pretendemos identificar esses procedimentos e buscar definir, para além da norma
estética estabelecida pela crítica literária, a composição ficcional nas crônicas e, com
isso, também especificá-los nos romances e em alguns contos.
A hipótese da pena do cronista presente principalmente em Memórias Póstumas
de Brás Cubas não é inteiramente nova. Em sua obra Um mestre na Periferia do
Capitalismo, Roberto Schwarz, ao tratar da volubilidade do narrador, aponta alguns
elementos estéticos que determinam seu estilo. Seja uma prosa alegórica cujo efeito é
cômico, seja uma inconseqüência efeitista que move o narrador, mas que não o leva
adiante e nem aprofunda as situações de que trata, opera-se por meio de elementos
técnicos como um tempo menor da escrita, um horizonte mais acanhado, uma
substância mais simples que confirma e que indica uma conduta irresponsável a
reconfirmar um poder, cuja substância é o descompromisso.1 Mais à frente, o crítico
observa outras formas de procedimentos estéticos da narrativa de Brás Cubas que se
caracterizam como anedotas, teorizações cômicas, historietas semi-alegóricas
espalhadas pelo livro, apólogos que determinam essa volubilidade e se definem como

1 Por exemplo, como continuaria o conflito X, finalmente exposto em prosa analítica? Entra em cena
a prosa alegórica e fica devendo a resposta, com efeito cômico. No mesmo espírito de inconseqüência
“efeitista”, a finalidade espontânea que move o narrador não leva adiante nem aprofunda as situações
em que está inscrita: seu tempo é menor, seu horizonte é mais acanhado, sua substância é mais
simples, desproporção que faz rir, pelo pecado contra a realidade e pelo que indica de conduta
irresponsável. Trata-se afinal de contas da urgência apenas subjetiva de reconfirmar um poder, cuja
substância é o descompromisso. (SCHWARZ, 1998, P. 50)
17

mestria da tinta machadiana2. Esses elementos estéticos apontados por Schwarz são
características determinantes do narrador volúvel de Memórias Póstumas. Ao tratar da
acumulação literária, observando a descontinuidade entre os romances anteriores e o de
1881, Schwarz aponta as crônicas jornalísticas – não somente as de Machado, mas
também de outros cronistas – como o lugar composicional para o surgimento dessa
forma de escrita que determina sua fase madura. O surgimento dessa prosa
borboleteante vem da miscelânea parlamentar, resenha de espetáculos, notícia de livros,
coluna mundana e anedotas variadas que compunham esse gênero de estatuto pouco
sério, cujas propriedades formais entram para o novo período machadiano3.
Outro crítico que, de modo mais apurado, percebe essa determinação do gênero
crônica na chamada fase madura de Machado de Assis é John Gledson. Para ele, o
modo de composição e elaboração dos temas tirados do jornal em que o cronista faz uso
constante da combinação da alegoria e do fantástico, bem como da paródia, da sátira e
da ironia, parece tornar-se uma atitude na prosa machadiana4. Tais procedimentos, para
o crítico, remetem à forma composicional de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ao
analisar alguns trechos das crônicas Notas Semanais, observa o modo de produção –
que pretendemos explorar mais à frente – de leitura e significação das notícias de

2 Fazem exceção aparentemente, por serem completas em si mesmas, anedotas, teorizações cômicas e
historietas semi-alegóricas espalhadas pelo livro. Contudo, tratando-se de passagens intercaladas, a
sua presença constitui ela própria uma interrupção. E se lhes examinarmos o teor, veremos que
ilustram justamente o triunfo da veleidade, da inaptidão para o real, além dde serem breves, não terem
continuação direta, e servirem brilhantemente à necessidade de brilho de Brás Cubas. Seja no plano da
forma, através das interrupções, seja no plano do conteúdo, através das anedotas e apólogos sobre a
vaidade humana, a experiência visada não muda. Observemos enfim que apólogos, anedotas, vinhetas,
charadas, caricaturas, tipos inesquecíveis etc. – modalidades curtas, em que Machado carrega a tinta
na maestria – são formas fechadas em si mesmas, e neste sentido matéria romanesca de segunda
classe, estranha a exigência de movimento global própria ao grande romance oitocentista. (Idem,
ibidem, p. 51)
3 As liberdades narrativas peculiares à segunda fase começam sob o signo de Sterne, conforme a
conhecida indicação de Machado. Observe-se contudo que na ocasião a prosa borboleteante era velha
conhecida não só do romancista, como de muitos outros literatos brasileiros, que a praticavam nos
folhetins semanais da imprensa, imitando modelos franceses. A miscelânea de crônicas parlamentar,
resenha de espetáculos, notícia de livros, coluna mundana e anedotas variadas, com intuito de recreio,
compunha um gênero bem estabelecido – e de estatuto “pouco sério”. Devido talvez a esta conotação
duvidosa, várias de suas propriedades formais acabaram entrando para a feição do novo período
machadiano, por razões que veremos. (...) A lista de traços comuns à crônica hebdomadária e às
Memórias Póstumas pode ser encompridada à vontade. Com funções diversas, o amálgama de
atualismo e futilidade está presente nos dois casos. (Idem, ibidem, p. 230-232)
4 Assim, ao ler essas crônicas e anotá-las, pareceu-nos cada vez mais que a ficção passou a ser uma
atitude da prosa machadiana, por meio da criação de um autor defunto, ou valorizando o leitor
ficcional dentro da técnica literária, pela combinação entre a alegoria e o fantástico, ou por meio da
incorporação da paródia, da sátira e da ironia, principalmente, ao procedimento discursivo (entre
outras novidades escritas e reescritas ao longo da década de 1870), tudo isso coma uma forma
possível de reinventar a verossimilhança em relação ao real e à própria ficção. (GLEDSON &
GRANJA, 2008, p. 75).
18

jornais. Assim, ao abordar uma determinada matéria, principalmente as ligadas a temas


políticos, as justificativas apresentadas pelos representantes políticos fazem com que o
cronista dê continuidade aos absurdos, levando-os a um efeito paradoxal em um grau
máximo de sentido como forma de ridicularização da matéria tratada5. Entre os
elementos estéticos que o crítico percebe nestas crônicas, a perspectiva é o elemento
determinante de leitura delas como o será também nos discursos de Bento e Brás
Cubas6. Para ele, tanto a ironia quanto a paródia são partes integrantes de ambos os
textos. Desse modo, considera Notas Semanais o ponto inicial desse tipo de escrito de
um narrador que não se deve levar a sério. Rompendo com os modelos sérios, tanto
românticos quanto realistas, Machado cuida para que não haja nenhum registro sério,
lançando o leitor ao domínio do ficcional – cuja encarnação perfeita é o defunto autor,
para quem a campa foi outro berço7. Outro procedimento observado nessas crônicas
como determinantes da escrita romanesca do escritor carioca é a paródia. Para Gledson,
ela ocupa um lugar central na mudança complexa da obra machadiana. Embora já esteja
presente em contos anteriores, como "A parasita Azul", nestes ainda não se opera como
estilo determinante. É nas crônicas em análise que Machado desenvolve com melhor
destreza a paródia, cujo estilo tornou-se8 determinante nos textos posteriores,
principalmente no romance de 1881 e nos contos. Dessa forma, Notas semanais teve um
papel essencial no progresso inventivo do cronista, seja na produção de seus romances e

5 Esse é o primeiro exemplo de uma tendência recorrente nessas crônicas, a de levar questões a
graus paradoxais, para então conduzi-las adiante ao absurdo total. De certa forma, esse parágrafo
fornece um modelo, ou mesmo uma justificativa, para isso, pois diz, duas vezes seguidas, que a
ficção é universal e que a verdade pode igualmente não existir - que fique claro, isso é tão
verdadeiro fora quanto dentro do Brasil; Vichy e Vidalgo são tão falsas quanto o Beco dos
Aflitos. (Idem, ibid., P. 35).
6 Claro que nenhuma dessas afirmações - nem a seção da crônica - pode ser lida sem uma perspectiva
irônica (tampouco Bento ou Brás são exatamente confiáveis), mas a insistência na ficcionalidade - ou
a universalidade do artificial, logo no início das crônicas - é significativa e precisa ser compreendida.
(Idem, ibid., P. 76).
7 A ironia e a paródia são, é claro, parte integrante desse tipo de narrativa: desligado dos seus
modelos "sérios" (o romântico e o realista), Machado recorreu a outros agressivamente não-sérios,
quer fundamentados em Luciano, Erasmo, Sterne ou outros escritores, quer em notícias comuns
achadas na imprensa. A partir de agora, nada será sério, e, de fato, Machado toma cada vez mais
cuidado para não permitir que haja um registro sério na sua obra, lançando o leitor direto em um
mundo, ou uma situação, em que nada é real, cuja encarnação perfeita é sem dúvida o "defunto autor",
"para quem a campa foi outro berço"," Nesse sentido, tudo segue sob o domínio da ficção. (Idem,
ibid., P. 78).
8 A paródia ocupa um lugar central na mudança complexa e misteriosa e, ainda assim, profundamente
coerente que aconteceu por volta de 1880, a "crise dos 40 anos". Ela está presente em "A parasita
azul" e alhures, mas de modo ainda hesitante, incapaz de estabelecer o tom dominante de todo o texto
- foram necessários cinco ou seis anos para que atingisse a maioridade. Em outras palavras, embora
possa parecer que surgia como Minerva da cabeça de Júpiter, em "Na arca" ou em Memórias
póstumas, houve muito esforço acompanhando a ousadia e a inspiração. (Idem, Ibid., P. 20)
19

contos, seja nas crônicas posteriores em que o estilo irônico se tornou mais sutil e
politicamente mordaz. Embora compreenda que foram diferentes motivações ou frentes
que determinam a produção de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Papéis Avulsos –
John Gledson aposta na hipótese dessa determinação e sugere a necessidade de estudos
detalhados dos escritos anteriores de todos os gêneros como elemento determinante para
a compreensão da obra machadiana9.
Gledson evidencia a importância das crônicas como espaço de construção para
uma estética que mudou significativamente a obra machadiana. A principal
característica é a mudança do ponto de vista ficcional presente já nas crônicas iniciais,
mas que, em seus quatro primeiros romances, ainda não está manifestado. A utilização
de um defunto autor tem bases sólidas nos recorrentes usos de pseudônimos utilizados
em suas crônicas. Como afirma, “o emprego de um narrador suspeito e volúvel das
classes dominantes – que levaria à mudança de uma ficção interessante à grande ficção”
(Idem, ibid., p. 63). Para além dos procedimentos técnicos, Gledson também observa
alguns elementos temáticos nessas Notas Semanais que repercutirão em Memórias
Póstumas de Brás Cubas10.
Lúcia Granja em sua obra Machado de Assis: Escritor em Formação dedicou-se
ao estudo das crônicas iniciais de Machado de Assis. Nessa análise, Granja resgata o
investimento machadiano na criação literária, carregado de interesses históricos e
literários a surpreender o leitor atual pela antecipação de diversos procedimentos que
caracterizaram as obras mais conhecidas do autor. Como observa Lúcia Granja, ao tratar
dos comentários políticos de Machado, a novidade não se deve à informação das
matérias, mas ao modo como o cronista as apresenta. Para a autora, não é exatamente a

9 A experimentação que finalmente produziu Memórias póstumas e Papéis avulsos aconteceu, e tinha
que acontecer, em muitas frentes. Foi uma combinação extraordinária de paciência, persistência e
ousadia; temos a intuição de que há muito mais a ser dito a respeito, e de que estudos detalhados e
cuidadosos das primeiras obras de Machado em todos os gêneros se fazem necessários mais do que
nunca. (Idem, ibid., p. 17).
10 Elas são relevantes porque nos revelam as complexidades e a situação histórica nas quais Machado
de Assis se encontrava. Elas não nos levam até o narrador morto de Memórias póstumas de Brás
Cubas, mas nos levam, sim, ao seu território. A ponta do iceberg são quatro momentos (pelo menos)
em que há ecos premonitórios do romance, que muitos leitores reconhecerão de pronto: três deles
encontram-se nas primeiras duas crônicas. Na crônica I, IV, no contexto do Paço de Macacu, somos
informados de que "também a história é tão loureira, tão disposta a dizer o sim e o não, que pode
acontecer uma cidade, a uma vila, a uma povoação qualquer, é não a ter absolutamente" - a maioria
dos leitores se lembrará de "a história, essa eterna loureira", do capítulo 4 do romance; na crônica 2,
lI, as "almas sensíveis" do apelo irônico de Brás ao leitor aparecem no episódio de Eugênia; as
palavras da esfinge para Édipo, "Resolve-me ou devoro-te", na crônica 2, V, são repetidas com uma
discreta mudança no "Decifra-me ou devoro-te" do capítulo 2; finalmente, a cética historinha contada
no capítulo 52, "O embrulho misterioso", está resumida nestas palavras da crônica 6, V: "Se achares
três mil-réis, leva-os à polícia; se achares três contos, leva-os a um banco". (Idem, Ibid., P. 79-80)
20

notícia recuperada na crônica que se torna o elemento de novidade do material, mas


“(...) o desenvolvimento de um estilo próprio de comentar as notícias (que) se constitui
na novidade do texto da crônica”(GRANJA, 2000, p. 126).
Fazendo-se um levantamento da produção machadiana já conhecida, até 1881 –
data do lançamento de Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado havia publicado
duas coletâneas de contos (Contos Fluminenses e Histórias da Meia Noite) e três contos
avulsos, totalizando dezoito contos; três coletâneas de poemas – Crisálidas, com 12
poemas; Falenas, com 19 poemas e Americanas, com 12 poemas – num total de 43
poemas; oito peças de teatro; quatro romances e duzentas e sete crônicas. A partir desse
levantamento inicial, sobretudo em relação aos textos em prosa, vemos que, até
Memórias Póstumas de Brás Cubas, sua grande produção foi de crônicas. Embora
posteriormente tenha publicado um número significativo de contos (mais de duzentos),
as crônicas dominaram sua produção (seiscentos e setenta e nove). A hipótese dessa
presença da estética da crônica não é nova, podemos ver essa sugestão presente já na
análise de Roberto Schwarz e John Gledson, como veremos abaixo, bem como nos
trabalhos de Gabriela Betella e Dilson F. Cruz Jr. A novidade que orienta este trabalho
consiste em determinar quais procedimentos que, desenvolvidos nas crônicas,
contribuíram para essa mudança significativa na produção romanesca machadiana.
Além dos trabalhos de Roberto Schwarz, John Gledson, Gabriela Betella, Dilson
F. Cruz Jr. e Lúcia Granja, utilizamos outros críticos machadianos como Hélio Seixas
Guimarães, Alfredo Bosi, Dirce Cortes Riedel, Gilberto Pinheiro Passos, José Luiz
Passos, Abel Barros Baptista, Paul Dixon, João Adolfo Hansen, Marta de Sena, Affonso
Romano de Sant'Anna, Eduardo Calbucci, entre outros, cujos trabalhos contribuíram de
modo significativa para aprofundar a análise e compreensão da produção ficcional
machadiana.
Ao levantar os diversos procedimentos composicionais nos romances e contos
machadianos, podemos verificar em suas crônicas – principalmente as compostas até
1878 – a presença deles. Para tanto, pretendemos, a partir de alguns teóricos como
Linda Hutcheon, Mikhail Bakhtin, Paul Ricoeur, Dominique Maingueneau, Paul
Zumthor, Denis Bertrand, Oliver Reboul e Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix
Guattari observar outros procedimentos presentes nessas crônicas, tendo em vista que
Machado de Assis adequou realidades, discursos e comportamentos percebidos no
cotidiano a uma forma estética particular para a composição do gênero crônica. Nossa
hipótese inicial é a de que o enriquecimento técnico-estético de seus textos a partir de
21

1881 deve-se ao fato de utilizar nos romances diversos procedimentos de suas crônicas.
Em outras palavras, ao imprimir nos romances a pena do cronista, o autor deu um salto
qualitativo, tornando-se o grande escritor consagrado na literatura brasileira.
22

PRIMEIRA PARTE:

A PROSA MACHADIANA

DA RETÓRICA À FICÇÃO

E repare o leitor como a língua portuguesa é engenhosa. Um


contador de histórias é justamente o contrário de um historiador,
não sendo um historiador, afinal de contas, mais do que um
contador de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor,
nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem
culto, letrado, humanista; o contador de histórias foi inventado
pelo povo, que nunca leu Tito Lívio, e entende que contar o que
se passou é só fantasiar.
Machado de Assis, História de Quinze Dias, p. 175
23

CAPÍTULO 1 - OS PRIMEIROS TEXTOS EM PROSA.

Para iniciarmos a compreensão da escrita machadiana, interessa-nos a análise


dos primeiros escritos em prosa do autor, os quais, embora não sejam crônicas, têm
importância capital pela maestria retórica que Machado de Assis, aos dezoito anos de
idade, mostrou ter. Trata-se de três textos escritos em 1858, quando, após um mote
lançado por Paula Brito, intitulado Os Cegos, e, mediante a manifestação de um dos
autores sobre o tema, Machado resolve envolver-se.
Em fevereiro de 1858, o editor da revista Marmota Fluminense, Paula Brito11,
lançou uma polêmica nesse periódico a ser debatida pelos leitores que se interessassem
em participar. A polêmica consistia em responder ao mote: Qual dos dois cegos mais
sente/O penoso estado seu;/O que cego por desgraça,/O que cego já nasceu?.
Considerando ser um tema já tratado pela filosofia, o editor solicita que as pessoas
enviem suas opiniões, posicionando-se, bem como artigos de filósofos que tratem dele
(ANEXO 1).
Eram comuns na imprensa daquele período as polêmicas em torno de
determinados temas como modo de romper a monotonia da vida provinciana do Rio de
Janeiro (MASSA, 2008, 170). Nesse sentido, a Marmota Fluminense entrou nesse jogo
para animar as discussões e Paula Brito modernizou a prática, ao propor um concurso
aberto a seus leitores. Antes de ser uma questão filosófica já debatida, por exemplo, no
texto de Diderot, Carta sobre os cegos (1749), parece ter incitado o editor do periódico
a lançar polêmica sobre Os Cegos o fato de Castilho e Monte Alverne, com os quais
Paula Brito tinha bastante contato, serem cegos “por desgraça”12.
Os textos – anexados neste trabalho – foram retirados da obra de Jean-Michel
Massa, Os Dispersos de Machado de Assis, de 1965. Conforme esse apanhado feito
pelo crítico francês, a participação consistiu em um total de onze textos, sendo oito
publicados nesses Dispersos, dos quais três são de autoria do Jq. Sr. e outros três, de

11 Primeiro editor brasileiro, precursor do conto, Francisco de Paula Brito nasceu no Rio de Janeiro e
foi um dos grandes mestiços que alcançou notoriedade no século XIX e fundou em 1849, no Rio de
Janeiro, a Marmota Fluminense, um jornal de variedades. Foi por meio deste jornal que Machado de
Assis publicou seus primeiros escritos no período de 1855 a 1861. Durante seus quinze anos de
existência esse jornal recebeu três nomes distintos: Marmota na Corte (1849-1852), Marmota
Fluminense (1852-1857) e A Marmota (1857-1864). (SIMIONATO, 2010)
12Conforme registra Massa, Monte Alverne, nascido em 1784, tornou-se cego em 1836. Castilho,
nascido em 1800, perdeu a visão aos cinco anos, após um surto de sarampo (MASSA, 2008, 171, nota
de rodapé, 68)
24

Machado de Assis. Pareceu-nos pela distância de datas entre um texto e outro que o
conjunto levantado por Massa não está completo, podendo haver outros textos.
Contudo, os de Machado e Jq. Sr. parecem estar sequenciados corretamente,
considerando-se o dialogismo estabelecido entre ambos os textos.
É importante observar que, devido ao fato de a escrita madura de Machado de
Assis ser objeto de grande quantidade de estudos em comparação aos textos de sua
juventude, as leituras tendem a desinteressar-se por seus primeiros escritos devido à
diferença qualitativa deles e dos posteriores. Soma-se a isso o fato de a produção
romanesca de Machado ter primazia na crítica machadiana, o que não significa que é
qualitativamente superior aos outros escritos. Desse modo, a leitura dos primeiros textos
machadianos corre o risco de ser feita a partir do julgamento consolidado pela crítica
nacional e estrangeira ao escritor consagrado, buscando no Machadinho o autor de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, o que prejudica significativamente a compreensão
de seus primeiros textos. Posto isso, pretendemos considerar os textos sobre Os Cegos a
partir de seu contexto imediato, isto é, entender sua produção não apenas por meio do
diálogo com seu polemista Jq. Sr., mas em seu conjunto disponível na compilação feita
por Jean-Michel Massa. Por isso, os dois textos – assinados por Alcipe e A13 – foram
anexados neste trabalho juntamente com os de Machado e Jq. Sr. Não anexamos os
outros três textos compostos posteriormente à polêmica por não terem sido resgatados
por Jean-Michel Massa e pela dificuldade de acesso a eles. Mas, conforme anota o
crítico francês em seus Dispersos, os três últimos textos são de T. C. Castelo Branco,
M. A. Calasans Peixoto e Antônio Manuel dos Reis. De qualquer forma, esses três
também manifestaram opinião semelhante à de Jq. Sr., tornando Machado de Assis o
único de opinião destoante dos demais.
Ao publicar seu texto quatorze dias após a proposta de Paula Brito, Jq. Sr. inicia-
o de modo consideravelmente cínico devido à referência que faz a Demócrito no
subtítulo do texto (ANEXO 2). Conforme observa Massa, essa referência c’est à dire
propos philosophique désabusé puisque Démocrite riait constamment de la folie
humaine (MASSA, 1965, p. 491). O posicionamento teórico de Jq. Sr. – motivo da
polêmica com Machado de Assis – é semelhante ao dos outros dois – Alcipe e A. Para
Jq. Sr., o cego de nascença começa a vida sem a aniquilação do que ele considera ser a

13Alcipe era a assinatura da que Massa identifica como mulher-poeta, presente na Marmota
Fluminense desde 1854 em algumas poesias; a assinatura A é apenas sugerida por Massa como
pertencendo a Moreira de Azevedo, porém, seguido de interrogação, sem qualquer outra informação
em relação a essas duas assinaturas.
25

melhor parte dela: a visão. Desse modo, não ver, para o autor, é privação, mas ter visto e
não ver é um castigo. Ainda pontua que o cego de nascença tem o desejo de ver a luz, já
o cego por desgraça tem saudades da luz; logo, o desejo provoca gozo no primeiro,
enquanto que a saudade provoca dor no segundo. Semelhante posicionamento observa-
se no texto assinado por Alcipe com o título Questão de Cegueira (ANEXO 5). Para
esta autora, embora considere que ambos os cegos sejam infelizes, o último sofre mais,
pois, enquanto o primeiro, por nunca ter visto, tem curiosidade de ver, o segundo sente
saudades do que viu. Semelhante a Alcipe, o terceiro texto assinado por A. diferencia-se
apenas pelo tamanho e pelo modo de sustentar sua afirmação, mantendo a mesma
opinião dos anteriores (ANEXO 6). Assim, os três textos – Jq. Sr., Alcipe e A. –
compartilham do mesmo posicionamento: quem sofre mais é o cego por desgraça por
ter podido ver um dia e não ver mais.
O primeiro texto de Jq. Sr. (ANEXO 2), diferentemente dos outros dois, dos
quais mantém a mesma posição ideológica, tende a um discurso bivocal, pois, ao se
inserir no debate proposto por Paula Brito, o faz por meio do riso (A vontade, essa
eletricidade intelectual, fez-me lembrar que se eu discutisse rindo-me, o fazia
filosoficamente). Como observa Voloshinov, o discurso da arte também está imbricado
no contexto não articulado da vida (TODOROV, 1981, p. 200). Desse modo, a obra
poética é um poderoso condensador de avaliações sociais não articuladas. Contudo,
diferentemente do discurso da vida, na obra poética, por não ser estreitamente
dependente de todos os fatores do contexto extraverbal, o falante elabora seu discurso,
na escolha das palavras, a partir da relação de simpatia, concordância ou discordância
que pretende ter com seu ouvinte e com o tópico da fala ou objeto do seu discurso. Essa
proximidade com o ouvinte estabelecida pelo falante Jq. Sr. dá-se na introdução, ao
apresentar-se humildemente ao seu leitor como alguém não habilitado para articular
silogismos e espertezas da lógica, embora confesse o desejo de expor sua opinião.
Ao correr do texto, observamos que esse posicionamento, por demais ambíguo,
busca estabelecer uma relação de simpatia com o leitor, uma vez que o ilude na crença
de que seja um autor que não corresponde com a sua produção textual, isto é, nos
parágrafos seguintes, Jq. Sr. mostra o quanto é habilitado em articular silogismos e
espertezas da lógica, negando, na produção do texto, o que havia enunciado na
introdução. Na elaboração de seu discurso artístico, o falante desse texto movimenta-se
para estabelecer proximidade com seu leitor, despertando nele simpatia e orientando-o
para o objeto de seu discurso. Como no mote o objeto é duplo – o cego de nascença e o
26

cego por desgraça – Jq. Sr. estabelece uma relação hierárquica entre eles, amenizando a
situação do primeiro e acentuando a do segundo, para com isso não apenas manifestar
seu posicionamento, mas orientar seu ouvinte para a sua posição antes dada. Os
mecanismos de construção veridictória se operam por meio da verossimilhança e, para
tanto, o autor faz uso da intertextualidade, incorporando o discurso do outro em seu
discurso para orientar o ouvinte às suas conclusões. Após isso, Jq. Sr. encerra seu texto
com uma crítica aos fiscais, inspetores e à Constituição, marcando-o com um discurso
ambíguo, paródico e irônico – afirma serem os fiscais e inspetores cegos de nascença e
a Constituição, cega por desgraça. Logo, aqueles nunca veem, enquanto que esta outrora
vira, mas agora lhe dera a gota serena e fez fiasco. Desse modo, o discurso desse autor
já marcado pela ironia e ambiguidade torna-se alegórico na parte final, uma vez que se
utiliza da metáfora continuada como tropo de pensamento para representar – os fiscais e
os inspetores – e personificar as abstrações – a Constituição14.
Provavelmente, a diferença de abordagem entre os três textos – de Alcipe, de A.
e de Jq. Sr. (cujos dois primeiros estão próximos do discurso da vida, conforme
mostramos, devido à sua conexão com a situação pragmática extraverbal, enquanto que
esse, dada sua veridicção pela verossimilhança, está próximo do discurso da arte) – seja
o motivo por que Machado de Assis fez questão de envolver-se na polêmica com Jq.
Sr.. Conforme observa Massa, não era comum de Machado participar dessas
competições incitadas pela Marmota15. Provavelmente, a diferença qualitativa entre os
três textos tenha determinado a preferência de Machado por polemizar apenas com Jq.
Sr., pois,embora tanto Alcipe quanto A. tenham o mesmo posicionamento que Jq. Sr. e
após a polêmica entre os dois, Machado de Assis não faz referência alguma a esses
textos, concentrando-se especificamente no debate com seu ilustre adversário
Antes de tratarmos dos textos de Machado como réplica aos de Jq. Sr., é
importante observarmos alguns procedimentos retóricos utilizados por esse autor, de
modo que nos auxiliem a compreender os procedimentos de refutação operados por
Machado de Assis. Conforme a definição que Olivier Reboul faz sobre retórica, esta é

14 A alegoria é a metáfora continuada como tropo de pensamento, e consiste na substituição do


pensamento em causa por outro pensamento, que está ligado, numa relação de semelhança, a esse
mesmo pensamento. Heinrich Lausberg, Manual de retórica literari (Fundamentos de una ciencia de la
literatura, Madrid, Gredos, 1976, t. II, pp. 283 e ss. citado por HANSEN, 2006, p. 7
15 Os motes, tão numeros na Marmota, são testemunhos bastante significativos da vida interior do
Brasil em meados do século XIX. Talvez merecessem, como os pequenos anúncios analisados por
Gilberto Freyre, um estudo particular. Sobre o tema do momento, os poetas faziam as rimas em quatro
décimas. Entre 1855 e 1858, Machado de Assis, pelo menos sob sua assinatura, nunca participou
dessas competições. (MASSA, 2008, 170)
27

decomposta em quatro partes. Para nossa análise, importam-nos as três primeiras, uma
vez que a última refere-se à performance (retoricamente, actio, ação) do orador. A
primeira é a invenção, com a qual o orador mobiliza os argumentos para persuadir seu
auditório; a segunda, a disposição, isto é, a ordem seqüencial dos argumentos; a terceira,
a elocução, isto é, os procedimentos composicionais do estilo do discurso escrito 16.
Como define Reboul, a invenção é o “inventário” no qual o orador acha os argumentos
ou procedimentos retóricos disponíveis para organizar a disposição do texto 17. Observa
também que, por invenção, pode-se entender o ato inventivo dos argumentos e de
instrumentos de prova. Cabe observarmos que diferentemente dos debates retóricos
analisados por Oliver Reboul, a polêmica proposta por Paula Brito e estabelecida entre
Machado e Jq. Sr. são textos escritos que, portanto, mimetizam os procedimentos
característicos da oratória.
De início, o primeiro texto de Jq. Sr. determina sua tese a partir de um lugar
comum - a opinião da maioria manifesta sobre o mote proposto por Paula Brito de que
o cego por desgraça é quem mais sente o seu estado penoso – e dispõe os argumentos
por meio de silogismos que o desenvolvem. Tal tese pode ser confirmada como lugar
comum que é usado por cinco dos seis autores que aceitam a proposta do editor 18.
Partindo de uma conclusão já dada, o autor dispõe seus argumentos por meio de
silogismos e citações que lhe permitirão fundamentar a tese. Cita em francês a frase de
La Boetie – vouloir est pouvoir19 – embora não faça referência direta a ele. Além dele,

16 O sistema começa com uma classificação: a retórica é decomposta em quatro partes, que
representam as quatro fases pelas quais passa quem compõe um discurso, ou pelas quais acredita-se
que passe. (...) A primeira é a invenção (heurésis, em grego), a busca que empreende o orador de
todos os argumentos e de outros meios de persuasão relativos ao tema de seu discurso. A segunda é a
disposição (taxis), ou seja, a ordenação desses argumentos, donde resultará a organização interna do
discurso, seu plano. A terceira é a elocução (lexis), que não diz respeito à palavra oral, mas à redação
escrita do discurso, ao estilo. A quarta é a ação (hypocrisis), ou seja, a proferição efetiva do discurso,
com tudo o que ele pode implicar em termos de efeitos de voz, mímicas e gestos. Na época romana, à
ação será acrescentada a memória. REBOUL, O., 2000, P. 43-44
17 Na realidade, a própria noção de invenção pode parecer-nos muito ambígua. De fato, ela se situa
entre dois pólos opostos. Por um lado, é o "inventário", a detecção pelo orador de todos os argumentos
ou procedimentos retóricos disponíveis. Por outro, é a "invenção" no sentido moderno, a criação de
argumentos e de instrumentos de prova; até o etos, explica Aristóteles, a confiança inspirada pelo
orador, deve ser "obra de seu discurso" (1356 a); em outras palavras, o importante não é o caráter que
ele já tem, e que o auditório conhece, mas é o caráter que ele cria. REBOUL, O., 2000, P. 54
18 Naturalmente, o lugar no sentido de questão também pode ser um lugar-comum, no sentido de que,
sobre qualquer espécie de assunto, podemos interrogar sobre o tipo de ser, os tipos de causas, etc.
Mas, no terceiro sentido, o lugar é sempre uma questão que permite encontrar argumentos ,que sirvam
à tese, inventar as premissas de uma conclusão dada. REBOUL, O., 2000, P. 53
19 Jamais se lamenta o que nunca se teve; o desgosto só vem depois do prazer e ao conhecimento do
bem somente se junta a lembrança de alguma alegria passada. É da natureza do homem ser livre e
28

também cita o fisiologista francês Marie François Xavier Bichat (Se a vida, é, como diz
Bichat, a reunião dos fenômenos que triunfam da morte) e o médico alemão Georg
Ernst Stahl (se a vista, como diz Stahl, é a melhor coisa da vida). Nestas duas últimas
citações, vemos a operação silogística por meio da premissa maior – a citação do
fisiologista francês – e a premissa menor – a citação do médico alemão – as quais lhe
permitem fundamentar sua tese: segue-se concludentemente que a cegueira, isto é, a
morte da vista, é a aniquilação da melhor parte da vida. A partir dessa fundamentação,
o autor estabelece a diferença entre o cego de nascença e o que fica cego depois do
nascimento. Este, por ter visto e não ver mais, torna-se, em relação àquele, mais digno
de lástima. A partir dessa diferenciação, permite-se estabelecer os argumentos de valor
em ordem crescente. Logo, como afirma, não ver, é uma privação; ter visto e não ver, é
um castigo. A privação torna-se desejo e posteriormente gozo. O castigo provoca
saudade que, por sua vez, causa dor: Entre a saudade e o desejo há uma grande
diferença; a saudade supõe dor, o desejo apenas gozo; é o que se dá entre os cegos de
nascença e depois de nascença; o primeiro deseja ver a luz, o segundo tem saudade da
luz. (ANEXO 2). Com isso, vemos tanto o recurso à invenção (heurésis) – primeira
parte da retórica – como da disposição (taxis) – segunda parte – como forma de
fundamentar a tese. Jq. Sr. aborda o tema com procedimentos sarcásticos, como meio de
angariar a simpatia do leitor. Com isso define a terceira parte de seu discurso: a
elocução (lexis). Para tanto, utiliza-se da benevolência ao escusar-se da própria
inexperiência diante de seu auditório20:

(...) porém eu por demais amigo de galhofar, e pouco a manejar


silogismos e espertezas da lógica, resolvi entrar nesse debate,
empenhado num campo inteiramente cerrado para meus hábitos
e costumes, apesar contudo do desejo que tinha de também dar a
minha humilde opinião a respeito; (...).

Mais à frente, afirma usar o riso, uma vez que o mesmo é característico de uma
escola de pensadores.
O modo de inserção do texto assinado por As. (ANEXO 3) – assinatura de

querer sê-lo; mas muito facilmente toma uma outra feição, quando dada pela educação. LA BOÈTIE,
1999, p. 123.
20 Benevolente: é aí que o ethos assume toda a sua importância. Um dos lugares mais correntes
consistia em escusar-se da própria inexperiência e em louvar o talento do adversário (cf. Navarre, p
223 s.) REBOUL, O., 2000, P. 55
29

Machado de Assis – dá-se nitidamente como discurso feito como resposta ao texto de
Paula Brito, mas principalmente e propositadamente ao de Jq. Sr. Para tanto, busca a
simpatia do leitor, de modo semelhante à introdução de seu opositor, com a diferença de
se inserir no debate como quem entra em uma batalha: Um artigo publicado no n. 929
da Marmota, decide-nos; vamos entrar na questão, expender as nossas ideias com a
simplicidade e firmeza, filhas da convicção; certos da atenção e benevolência dos
leitores. Vemos aqui o uso deliberado dos procedimentos retóricos que, conforme
observa Reboul, recorre ao exórdio como função essencialmente fática para alcançar a
benevolência do leitor. É importante observarmos que, para a Retórica, o auditório é
determinante da articulação dos procedimentos técnicos. Diferentemente de Jq. Sr., As.
explicita a presença do seu auditório, estabelecendo o que Paul Ricoeur, a partir da
fenomenologia da leitura, define como o leitor implicado do texto21. Mas, sem utilizar o
elemento da benevolência, como faz seu adversário, trata a polêmica como uma batalha.
Podemos depreender do modo de abordagem da polêmica por As. a observação
feita por Bakhtin em sua Estética da Criação Verbal de que a compreensão da fala viva
é de natureza ativamente responsiva, isto é, sua compreensão é prenhe de resposta, o
que torna seu ouvinte obrigatoriamente um falante22. No texto, As. marca sua condição
de ouvinte no parágrafo seguinte à introdução, ao afirmar que, ao ler as primeiras linhas
do artigo de Jq. Sr., esperava encontrar argumentos sólidos sobre o tema, ilusão desfeita
no término da leitura. Além de marcar essa compreensão ativamente responsiva em seu
texto, o enunciador busca consolidar a simpatia com seu leitor na empreitada que
assume contra o texto de seu ilustre adversário. Há nessa postura escritural de Machado
de Assis uma forte consciência de seu texto como resposta a discursos anteriores, bem
como, conforme se verifica no final desse texto, consciência de que o mesmo provocará
respostas posteriores.
O discurso de As., antes de tratar da polêmica proposta, centra-se como resposta

21 A primeira vista, parece se estabelecer uma simetria entre autor implicado e leitor implicado, cada
um deles com suas marcas no texto. Por leitor implicado, deve-se então entender o papel atribuído ao
leitor real pelas instruções do texto. Autor implicado e leitor implicado tornam-se assim categorias
literárias compatíveis com a autonomia semântica do texto. Construídos no texto, ambos são
correlatos ficcionalizados de seres reais: o autor implicado se identifica com o estilo singular da obra,
o leitor implicado com o destinatário a que se dirige o destinador da obra. RICOUER, P., 2007, V. 3,
P. 291-292
22 Neste caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (lingüístico) do discurso, ocupa
simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou
parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se
forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente
a partir da primeira palavra do falante”. BAKHTIN, 2006, P. 294
30

ao texto de Jq. Sr., logo, elabora-se como enunciação enunciada, pois, ao estabelecer
uma relação de perguntas e respostas com seu leitor, o enunciador busca desconstruir as
bases argumentativas do texto analisado por meio da refutação. O modo de
desconstrução do texto objeto é o da polêmica aberta, uma vez que o narrador
desqualifica as argumentações do outro: (O Sr. Jq. Sr., autor do artigo acima
mencionado, à parte alguns absurdos, nada disse sobre a questão; ou a conseqüência é
errada, e está diametralmente oposta à única conclusão possível do princípio
estabelecido). Todavia, reconhecendo a força do texto a que se opõe e, portanto, que
não basta simplesmente negá-lo em seu todo, o autor aplica o método da análise parte
por parte do discurso do outro como meio de mostrar ao leitor o motivo por que
discorda da posição de seu adversário. Como afirma Bakhtin, não é possível a
compreensão ativamente responsiva, se o falante não leva em conta a sua relação com o
outro, seus enunciados tanto presentes quanto antecipáveis e com o ouvinte 23.
A disposição desse texto responsivo dá-se primeiramente pelo discurso fático
que angaria a confiança e benevolência do leitor. Depois, o autor continua por meio da
refutação no jogo de perguntas e respostas. Essa refutação tem por objetivo induzir o
leitor à conclusão de seus argumentos. Como observa Norma Discini, em sua obra
Comunicação nos Textos, a pergunta retórica constitui um modo indireto de dizer no
qual o autor não objetiva alcançar uma resposta, mas induzir o leitor a determinadas
asserções, isto é, uma vez que mistura as vozes, contendo em si tanto a voz que
pergunta quanto a que responde, o efeito de sentido da pergunta retórica é a
manipulação do leitor para a conclusão a que o autor do texto pretende chegar. 24 Para
tanto, desqualifica os argumentos do adversário por meio da redução deles que lhe
permite a negação. A refutação é um ato reativo argumentativo de oposição que, no caso

23 Sem levar em conta a relação do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipáveis),
é impossível compreender o gênero ou estilo do discurso. Contudo, também os chamados estilos
neutros ou objetivos de exposição, concentrados ao máximo em seu objeto e, pareceria, estranhos a
qualquer olhada repetida para o outro, envolvem, apesar de tudo, uma determinada concepção do seu
destinatário. (BAKHTIN, 2006, 304)
24 A pergunta retórica: constitui um modo indireto de dizer; por meio dela, pergunta-se, não para
obter resposta, mas para conduzir o leitor a fazer determinadas asserções; contém em si,
implicitamente, a resposta, misturando vozes: a que pergunta e a que responde; advém do narrador,
que é quem faz a pergunta e quem manipula o narratário-leitor, para determinada conclusão; institui
um sujeito como presença mais próxima: em relação ao narratário-leitor e em relação ao próprio
enunciado; traz em si a voz respondente, viabilizando nos textos: a heterogeneidade mostrada; o efeito
de polifonia; faz com que o narrador se aproxime do narratário, para que este se veja obrigado a seguir
a orientação dada; promove a incorporação do narratário e do seu discurso, ao evitar uma afirmação
direta; simula a existência de um jogo de vozes, sendo compatível a determinadas cenas genéricas do
jornal; é algo desnecessário, do estrito ponto de vista informacional. (DISCINI, 2005, p. 175)
31

do texto de Machado, opera-se por meio da desqualificação do discurso25, o qual aponta


a má formação de seus argumentos: à parte alguns absurdos, nada disse sobre a
questão; ou A conseqüência é errada, e está diametralmente oposta à única conclusão
possível do princípio estabelecido.
Mais à frente, As. utiliza o que Charaudeau & Maingueneau chamam de
mudança de orientação argumentativa, isto é, a refutação que substitui um termo de
orientação argumentativa não-C por um termo de orientação argumentativa C26. No
caso, podemos verificar esse método no seguinte trecho:

O Sr. Jq. Sr. diz que, para o cego de nascença a vida começa
sem a aniquilação da melhor parte da vida – a vista – e que
portanto o cego por acidente, sofrendo essa aniquilação, é o
mais digno de lástima. A conseqüência é errada, e está
diametralmente oposta à única conclusão possível do princípio
estabelecido. É pela razão mesma de que o cego de nascença
não sofre a aniquilação da vista, que é o mais desgraçado. Ao
nascer ele esbarra com a noite que o deve cercar durante a sua
vida; esbarra com esse caos para que nunca há de soar um Fiat.
Como não ser desgraçado? Sem ter o gozo do cego por
desgraça, que vê em parte pelos olhos do espírito, ele não pode
fazer uma ideia exata dos objetos que lhe apresentais; e
conseguintemente não pode compreender-vos, – gozar um
pouco do que gozais – pelo exercício dos outros sentidos ou
faculdades. (ANEXO 3)

Após esses procedimentos de refutação, o enunciador manifesta seu


posicionamento, inclusive como recurso de disputa da atenção do leitor. Ao negar a
sentença de Jq. Sr., cuja afirmação é a de que o cego de nascença é menos infeliz que o
cego por desgraça, o enunciador opera um movimento diferente tanto deste autor quanto
dos outros dois, que têm a mesma posição deles. Apoiando-se no silogismo de seu
opositor, As. opera a inversão valorativa para afirmar o oposto: justamente por não ter
tido a aniquilação da vista como o cego por desgraça, é que o cego de nascença é mais
desgraçado. Por não ter tido o privilégio da visão, não pode, como o outro, fazer uma

25 Desqualificação do discurso: A refutação em sentido amplo pode proceder por desqualificação do


discurso do adversário, que se rejeita porque é mal formado, qualquer que seja a natureza da má
formação: significação obscura, sintaxe incorreta, léxico ridículo, pronúncia defeituosa ou provinciana
..., o que permite economizar o exame da proposição. (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2008,
423).
26 A mudança de orientação argumentativa subistitui um termo de orientação argumentativa não-C
por um termo de orientação argumentativa C: "O que você chama de coragem, eu chamo de
temeridade". O mesmo efeito pode ser obtido por encadeamentos dos pressupostos: "L 1 a: Quase não
bebi nada. - L2: Então você reconhece que bebeu. (Idem, ibd.)
32

ideia exata dos objetos.


Nos argumentos que sustentam essa posição de As., nota-se um deslocamento
interessante não visto nos outros textos: ao afirmar que o sofrimento do cego de
nascença tende a ser maior, justifica, considerando-o como parte de um corpo social,
onde toma conhecimento da sua ausência de visão e, por conseguinte, é maior seu
sofrimento por não poder ver o que os outros veem. Com essa argumentação, o autor
diferencia-se dos demais por conceber o sofrimento do cego de nascença não a partir da
compreensão subjetiva de uma possível experiência individual de mundo, mas por meio
do deslocamento que opera, tentando compreender o outro enquanto outro. Ao
observarmos as argumentações dos três autores que defendem o sofrimento maior do
cego por desgraça em detrimento do cego de nascença, vemos que os três partem de
uma perspectiva subjetiva, pensando essa realidade a partir de si mesmos e, portanto, de
uma perspectiva monológica, embora em Jq. Sr. a ambigüidade do discurso, por meio
do riso, relativize esse monologismo mais acentuado no discurso dos outros dois. Em
As., percebemos o deslocamento operado pelo enunciador para buscar compreender a
realidade do outro em sua alteridade. O autor poderia tornar-se cego por desgraça e,
portanto, vivenciar a realidade do segundo, mas jamais ser cego de nascença; isso faz
com que seu posicionamento se torne dialógico e, portanto, que seu discurso seja
bivocal, uma vez que não busca na situação pragmática extraverbal elementos para
sustentar seu argumento.
A resposta de Jq. Sr. ao texto de As. (ANEXO 4) dá-se quatro dias depois,
abertamente como réplica. Mantendo a ambivalência discursiva por meio da ironia, o
autor inicia seu texto desqualificando seu opositor ao afirmar que o mesmo deu mais
importância a seu texto do que se deveria ter dado e ataca os adjetivos que lhe fora
atribuídos por As., invertendo a lógica da crítica que lhe foi endereçada. Se o opositor
considera absurdas e que nada provam suas ideias, deveria nem ter-se dado ao trabalho
de responder. Mantendo o sarcasmo contra As., Jq. Sr. dá continuidade ao seu tom
irônico refutando o texto do outro pelo final, qualificando-o de nobre cavalheiro,
afirmando não se sentir ofendido e confirmando a sentença de Buffon, de modo que seu
leitor entenda o inverso. Como para o leitor é perceptível a agressão do primeiro texto
de As. a Jq. Sr., este utiliza-se da ironia ao nivelar o autor do texto agressivo às suas
agressividades (Entretanto o nobre cavalheiro nem de leve nos ofende, ao contrário,
trata-nos com a urbanidade que o caracteriza...) e, comparando-o a D. Quixote e seu
combate ao moinho de ventos, opera a ironia por meio da intertextualidade. Posta a
33

polêmica por As., Jq. Sr. não se prende a sustentar os argumentos expostos em seu
primeiro texto, mas a refutar os de seu oponente. Contudo, apesar do sarcasmo maior no
segundo texto, a diferença que sustenta sua argumentação continua a desconsiderar a
contextualização social do cego de nascença, conforme fizera seu oponente. Jq. Sr.
insiste no ponto ao dizer que, uma vez nascido sem vista, o cego, ao formar suas ideias
em idade já desenvolvida, terá de se acostumar com sua condição de cegueira,
defendendo a visão cartesiana de ideias inatas.
A polêmica inicial proposta por Paula Brito se desdobra em outra questão que,
segundo ambos os polemistas, é pressuposto determinante desta: a possibilidade de o
cego de nascença construir signos (no texto, fala-se de “ideias”) para si ou não. Jq. Sr.
insiste no ponto em dizer que o cego de nascença pode construir signos melhores, uma
vez que não pode estabelecer relações entre a imaginação e o mundo real. Já As.
defende a impossibilidade de construção desses signos, uma vez que os mesmos se
constroem por meio dos sentidos e pelo fato de o cego estar, apesar da deficiência,
inserido em um contexto social e, portanto, saber que qualquer imaginação não pode
corresponder com o que seja percebido pelos outros sentidos (o exemplo dado no
primeiro texto de As. é o da rosa da qual o cego poderá perceber o perfume e que, antes
de lhe dar uma ideia de “rosa”, inspirar-lhe-á o desejo de vê-la, o que lhe causará dor).
Ao encerrar seu texto, Jq. Sr. não o faz sem abrir mão de um sarcasmo maior,
provocando resposta em seu oponente, por meio da referência intertextual ao texto
bíblico: porém não nos faltarão ocasiões logo que o nobre cavalheiro, com quem
discutimos, ou rebater melhor nossas ideias, ou der mais vida às suas... se é que tem
poder de ressuscitar Lázaros.
O comentário irônico de Jq. Sr. torna-se no texto de As. alvo de polêmica ao
referir-se a ele como modesta censura do Sr. Jq. Sr. (ANEXO 7). Com isso, vemos que,
na polêmica, ambos distanciam-se cada vez mais do objeto enunciado – o mote –
prendendo-se mais à enunciação de um e de outro, o que acentua a arena do debate e,
portanto, dá a esses textos sua forma bivocal. Em sua tréplica, As. explicita o objetivo
de sua investida inicial: Desde que S. S. publicou o seu primeiro artigo sobre os cegos,
decidimo-nos a refutá-lo. Esta resolução que não deixava entrever um único motivo de
ofensa ao autor do artigo – tinha por alvo despedaçar os atavios sofísticos de seus
argumentos falsos. O objetivo explicitado de despedaçar os argumentos de Jq. Sr.,
evidencia o quanto a polêmica, apesar de ser um dos textos iniciais de Machado,
compreende o discurso como artifício que cria ilusão da realidade, rejeitando seu
34

entendimento como representação unívoca da vida empírica.


Nesse segundo texto de As., o tom agressivo e a polêmica aberta predominam
em relação ao enunciado sobre os cegos. Há predominância da enunciação reportada,
dada a sua dimensão metadiscursiva, na qual o enunciador coloca-se atento a seu
próprio discurso e aos discursos de outros, efetuando o choque de vozes tanto para
despedaçar os argumentos de seu adversário, quanto para confirmar os seus. Nessa
predominância há, portanto, a projeção da enunciação sobre o enunciado, marcada
semanticamente no conjunto da enunciação reportada, cujos comentários problematizam
as opções que o sistema enunciativo oferece ao enunciador27. Desse modo, ao
retomarmos a definição de Voloshinov quanto ao enunciado como expressão e produto
da interação social de três participantes: falante (autor), interlocutor (ouvinte) e tópico
da fala (objeto ou herói do discurso), vemos que, nesse segundo texto, o tópico da fala
que predominara no discurso dos três autores vistos anteriormente – os cegos de
nascença e por desgraça – desloca-se cada vez mais para a enunciação, obscurecendo o
tema proposto por Paula Brito. Não há, evidentemente, uma mudança de tema, mas um
deslocamento de foco do enunciado – o mote sobre os cegos – para a enunciação
enunciada – o modo como cada um dos autores avalia a abordagem do tema feita por
seu oponente.
Por fim, Jq. Sr. em seu terceiro e último artigo (ANEXO 8), recua pouco a
pouco do debate travado com As. Inicialmente, reforça o fato de não se dever levar a
sério o primeiro texto por ter sido escrito humoristicamente e num estilo ligeiro; depois,
justifica o segundo texto como refutação das ideias de As. e não a tentativa de defender
o primeiro texto. A seguir, passa a fazer consideráveis ressalvas aos efeitos provocados
pela ironia em seus textos anteriores contra As. Após isso, busca por meio de silogismos
e espertezas da lógica defender sua posição frente ao adversário. Certamente, Jq. Sr.
não recua da posição quanto às ideias inatas, amenizando somente sua defesa ao cego
por desgraça em detrimento do cego por nascença. Por fim, encerra o texto,
interrompendo o diálogo por meio de uma falsa relativização: O nosso colega poderá
resistir às nossas razões, poderá mesmo em consciência não se achar convencido, pois

27 Nessa passagem, do início de O homem duplicado, o narrador, ao comentar os marcadores de


coesão empregados no enunciado, justifica suas escolhas lexicais, explicitando um raciocínio que cabe
à instância da enunciação. Tem-se aí uma projeção da enunciação sobre o enunciado, uma forma de
enunciação enunciada marcada semanticamente que não nasce de uma escolha lexical ou de uma
enunciação reportada, mas sim de um comentário que problematiza explicitamente as opções que o
sistema enunciativo oferece ao enunciador. (CALBUCCI, 2007, p. 66)
35

a questão é toda de sentimento e não de razões; porém nós julgamos que temos mais
companheiros de crença do que ele. Com isso, ao abandonar a ambigüidade e o
sarcasmo que marcaram o tom de seus dois textos, para utilizar uma investida direta
contra seu ilustre adversário, Jq. Sr. perde, ou pelo menos diminui, a bivocalidade de
seu discurso, também perdendo a força centrífuga que orientara os dois primeiros.
Tal fato permite a As., em seu terceiro e último texto dessa polêmica (ANEXO
9), promover uma investida mais violenta e satírica contra seu opositor: Mitos nasceram
e mitos foram para à tumba, donde não sairão, nem mesmo na consumação dos
séculos! A terra lhes seja leve. O tom sarcástico do enunciador, nesse trecho inicial
como desfecho final do embate que travou com Jq. Sr., confirma, em Machado, uma
maior proximidade com o discurso equívoco da sátira menipeia presente em seus textos
maduros. Se nos dois anteriores a enunciação enunciada é predominante, nesse é quase
completa em detrimento do enunciado referente ao mote de Paula Brito. Com isso,
permite-se algumas investidas irônicas como procedimento retórico de desconstrução do
texto analisado e, quanto ao debate em si, permite-se apenas o comentário (...) para
evitar uma repetição fastidiosa enviamos o leitor e S. S. Para os nossos artigos
passados onde acharão uma resposta conveniente. Conforme observou Massa:

Machado de Assis, em seu terceiro artigo, triunfou alegremente,


sem pudor. Mal justifica sua vitória pela verdade das teorias que
defendia. Atribuía a si mesmo todo o mérito da vitória (…) Seu
pensamento dialético, em certos aspectos, se divertia com as
dificuldades, aderia como um polvo aos pontos fracos do
adversário, conduzia-o para o terreno que ele próprio escolhia.
Saiu engradecido de uma prova depois da qual cingiu a coroa de
cavaleiro da inteligência. (MASSA, 2008, 177).

Certamente, essa iniciação de Machado na prosa, após alguns anos compondo


poesias, mostra-nos sua habilidade de leitura e composição discursiva, podendo
manipulá-las para seu interesse como produtor de texto, provando a habilidade do
menino de dezoito anos, bastante íntimo com sua pena e podendo, apesar de ainda não
ter a bagagem intelectual evidenciada em seus textos da fase madura, elaborar textos em
uma perspectiva dialógica que permite a troca de ideias e de experiências para sua
própria produção estético-literária.
36

CAPÍTULO 2 - A ESTRUTURA NARRATIVA DOS ROMANCES DE


MACHADO DE ASSIS

Em primeiro lugar, o romance é para nós um grande


acontecimento cultural, que redefiniu o sentido da realidade, o
fluxo do tempo e da existência individual, a linguagem e as
emoções e os comportamentos. Romance como cultura,
portanto; mas certamente também como forma, aliás, formas, no
plural, porque na sua longa história encontram-se as criaturas
mais surpreendentes, e o alto e o baixo trocam de lugar de bom
grado, e os próprios limites do universo literário se tornam
incertos.
Franco Moretti, A Cultura do Romance, p. 11

Um dos procedimentos estéticos fundamentais na composição do romance


Memórias Póstumas de Brás Cubas é a interrupção da narrativa pelo comentário da sua
enunciação, contando-se alguma anedota e, principalmente, constituindo a presença do
leitor no texto.Tal procedimento foi extensamente discutido por alguns críticos
machadianos como por em Roberto Schwarz em sua obra Machado de Assis: Um
Mestre na Periferia do Capitalismo, o qual identificou o procedimento como
volubilidade do narrador e, a partir dessa conceituação, desenvolveu sua análise crítica
sobre este romance28, bem como Dirce Cortes Riedel, que tratou da digressão em sua
obra Tempo e Metáfora em Machado de Assis, na qual, estabelecendo um paralelo com
a obra de Lawrence Sterne, observa que, em Machado de Assis, tais digressões têm
como finalidade a duração, a construção, a atmosfera, o desenvolvimento dos
caracteres, paralelos ilustrativos, temáticos ou emocionais29, ou ainda Dilson Ferreira
da Cruz, em seu livro O Éthos dos romances de Machado de Assis, utilizando o termo
de Genette, observa que o uso abundante de metalepses de autor, permite que o
enunciador manipule com extrema habilidade a relação causal que une o produtor de
uma representação e a própria representação, mostrando como a narrativa traz em si

28 Assim, a volubilidade é uma feição geral a que nada escapa, sem prejuízo de ser igualmente uma
tolice bem marcada, de efeito pitoresco, localista e atrasado. Ora ela funciona como substrado e
verdade da conduta jumana, contemporânea inclusive, que só não reconhecem os insanos, ora como
exemplo de conduta ilusória, um tanto primitiva, julgada sobre fundo de norma burguesa e utilizada
como elemento de cor local e sátira. (SCHWARZ, 2000, p. 45)
29 Trata-se de uma linha descontínua de análise da descontinuidade da pessoa humana. Para Augusto
Meyer, a vivacidade de Sterne é uma espontaneidade orgânica, do homem que goza o prazer de sentir-
se disponível. Em Machado, a aparência de movimento, a pirueta e o malabarismo são disfarces que
mal conseguem dissimular uma profunda gravidade, uma terrível estabilidade. Toda a sua trepidação
acaba marcando passo. (RIEDEL, 2008, p. 208)
37

as marcas de seu enunciador. (CRUZ, 2009, p. 197).


Característica marcante em diversos textos machadianos, a interrupção da
narração da ficção pelo narrador para estabelecer o diálogo direto e indireto com o
leitor manifesta-se desde seu primeiro romance Ressurreição e repete-se nos romances
seguintes, produzindo sentidos particulares que convidam o leitor a uma reflexão sobre
a produção escritural de forma diferente e inovadora a cada obra. Não apenas nos
romances, mas também nas crônicas, gênero privilegiado para o diálogo com o leitor,
os procedimentos que interrompem a exposição do assunto para tratar da sua enunciação
ou para vinculá-lo a outro assunto, ou, ainda, para dialogar com o leitor, estruturam a
escrita machadiana.
Desse modo, interessa-nos o exame mais acurado que permita compreender o
funcionamento desses procedimentos, bem como os efeitos de sentido que produzem
para estabelecer semelhanças e diferenças entre as diferentes obras. Para tanto,
utilizamos os trabalhos de narratologia desenvolvidos por Gerard Genette e Yves
Reuter, os quais oferecem instrumentais teóricos que permitem entender esses
procedimentos em funcionamento na narração das sete obras machadianas. Em um
primeiro momento, apresentaremos a base teórica, exemplificando-a com os textos dos
romances Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena Iaiá Garcia, Memórias Póstumas de
Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro.
Tendo como foco a análise comparativa do romance Memórias Póstumas de
Brás Cubas com as crônicas publicadas entre 1876 e 1878, a manutenção dos quatro
romances anteriores deveu-se ao fato de a compreensão comum acreditar que tais
procedimentos se iniciaram com este quinto romance. É certo que, diferentemente de
todos os outros, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, tais procedimentos têm efeitos
artísticos muito peculiares, próximos dos das crônicas, sobretudo as que antecederam
esse romance, mas uma leitura atenta dos quatro anteriores nos faz observar os
procedimentos de interrupção também presentes. A escolha de estender a análise para
Quincas Borba e Dom Casmurro deveu-se ao de que em Quincas Borba, publicado em
romance dez anos depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o autor retoma a
narrativa em terceira pessoa e, portanto, a análise comparativa com os quatro primeiros
será de fundamental importância, enquanto que em Dom Casmurro o autor repete a
narrativa em primeira pessoa, o que nos permite verificar a análise em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, estabelecendo aproximações com este mesmo procedimento
de Memórias Póstumas de Brás Cubas nesse seu segundo romance de narrador-autor.
38

Após apresentarmos a base teórica que nos orientará na análise dos romances,
pretendemos focar um procedimento específico, isto é, focar as interrupções para obter a
partir delas a dimensão da dinâmica estrutural dessas sete narrativas, especificando
proximidades e diferenças adotadas em cada uma delas. Em outras palavras, o que nos
interessa nesta análise dos romances são os procedimentos de interrupção, mas, para
extraí-los dos textos, é necessário que tratemos de outros procedimentos relacionados.

I - O MÉTODO.

A distinção entre enunciado e enunciação narrativa ou, em termos genettianos,


entre história e narração é importante para percebermos como funcionam os tempos da
história e da narração. Conforme Gerard Genette, a narrativa é uma sequência duas
vezes temporal, isto é, existe o tempo da coisa contada e o tempo do ato de contar
(tempo do significado e tempo do significante)30. A distinção desses dois tempos
permite que o leitor perceba as constantes permutas produzidas pelo texto entre ambos.
No caso dos romances machadianos em primeira pessoa que analisaremos (Memórias
Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro), essa permuta temporal se torna estruturante
da compreensão do sentido deles. Contudo, não apenas neles, mas nos outros romances
e nas crônicas esse recurso estilístico tem também relevância.
Como não é nosso objetivo abordar a totalidade das discussões teóricas de que
Genette trata em sua obra, mas um ponto específico, isto é, as interrupções do narrador
na narrativa, as quais ele define como metalepses do autor e metalepse da narrativa
(procedimentos que trataremos posteriormente), a reflexão sobre o tempo apresentada
por ele interessa-nos no que é definido como anisocronias ou efeitos de ritmo.
Observando as mudanças de ritmo na obra de Marcel Proust - Em Busca do Tempo
Perdido - o teórico francês observa a velocidade narrativa que ordena a complexidade
desse romance. Assim, pontua a gradação contínua marcada desde a velocidade infinita
(elipse) até a absoluta lentidão ou ausência do tempo da história (pausa). Chamando-as
de movimentos narrativos, observa que a pausa e a elipse constituem os pontos

30 A narrativa é um sequência duas vezes temporal...: há o tempo da coisa contada e o tempo da


narrativa (tempo do significado e tempo do significante). Não só é esta dualidade aquilo que torna
possíveis as distorções temporais de que é banal dar conta nas narrativas (três anos da vida do herói
resumidos em duas frases de um romance, ou em alguns planos de uma montagem "frequentativa" de
cinema, etc.); mais fundamentalmente, convida-nos a constatar que uma das funções da narrativa é
cambiar um tempo, num outro tempo. (GENETTE, 1995, p. 31)
39

extremos desse movimento e entre eles os dois intermédios: a cena e o sumário.


Apresenta o seguinte esquema:

pausa : TN = n, TH = 0. Logo: TN ∞ > TH


cena : TN = TH
sumário: TN < TH
elipse : TN = 0, TH = n. Logo: TN < ∞ TH.

(GENETTE, Gerard 1995 p. 94 e 95)


sendo TN o tempo da narrativa, TH o tempo da história, o símbolo igual a
infinitamente e os símbolos matemáticos igual (=), maior (>) e menor (<). Assim, a
pausa é o resultado do tempo da narrativa infinitamente maior que o tempo da história; a
cena, o tempo da narrativa igual ao da história; o sumário, o tempo da narrativa
variavelmente menor que o da história; a elipse, o tempo da narrativa infinitamente
menor do que o da história. A partir das definições apresentadas, pretendemos abordá-
las uma a uma, para dar melhor compreensão ao método de análise.
40

II - CENA

Para analisar a narrativa do romance de Proust, Genette opta, ao tratar das cenas,
por falar de cenas típicas ou exemplares, ao invés do termo canônico cenas dramáticas.
Tal opção, conforme o autor, deve-se ao fato de que o sumário - que corresponderia ao
conteúdo não dramático - não necessariamente anula a dramaticidade da narrativa em
Proust. Obviamente, Genette trata de um autor específico. Desta forma, manteremos
inicialmente essa conceituação canônica e, conforme seguir a análise, evidenciando-nos
qualquer dramaticidade no uso do sumário em algum dos romances, retomaremos essa
observação de Genette. A princípio, proporemos uma outra diferenciação, próxima da
definição canônica, isto é, nas cenas em que a voz do narrador domina (a diégese) há
uma diminuição da dramaticidade narrativa machadiana, enquanto que o efeito rítmico
da dramaticidade parece marcado na voz pronunciada (mimese) ou não pronunciada
(monólogo interior) das personagens e, até certo ponto, no discurso indireto livre.
Também, apostamos que haja nos procedimentos de interrupções (ou metalepses) uma
certa dramaticidade, não apenas nos romances machadianos em primeira pessoa aqui
analisados, como também nos de terceira pessoa. Enfim, são possibilidades que
levantamos e que pretendemos confirmar durante a análise dos romances.
O que nos interessa agora é tratar de algumas formas de cenas presentes nesses
romances machadianos, isto é, momentos em que há coincidência entre o tempo da
narrativa e o tempo da história. São elas: a diégese, a mimese, o discurso indireto livre e
o monólogo interior.
41

III - O JOGO DE CENA NOS QUATRO PRIMEIROS ROMANCES

a) Diégese e Mimese

Jacyntho Lins Brandão, em seu texto Diégese em República 392d, ao tratar da


diégese na obra A República, de Platão, observa que o uso da palavra diégesis em
sentido de narração não se registra antes dele. O uso dela em sentido estético teria sido
feito pela primeira vez por Platão, nessa obra. Nela, o filósofo grego, citando Homero,
afirma que há narração tanto na reprodução das falas das personagens como nas partes
intermédias31. A partir disso, ele estabelece a diferença entre a fala de Homero,
identificando este modo como narração simples - em grego ou quando imita
as personagens como se não fosse o autor quem falasse mas elas - em grego
para, a partir dessa diferenciação, discutir o mérito dessas diferentes formas
de narrativa. Genette se apropria dessa definição platônica (embora ressaltando a
problemática posterior constituída a partir de Aristóteles)32 para estabelecer em sua
análise os conceitos de diégese e mimese.
Portanto, e conforme nota o crítico literário francês, a diégese corresponde à
"narrativa pura"33, tornando a narrativa mais breve e mais próximo do puro
acontecimento do que a mimese. À narrativa pura, ele identifica também como narrativa
de acontecimento em que o não-verbal é transposto em verbal. Isto é, propondo a
fórmula informação + informador = C, a diégese consiste em um mínimo de
informação e um máximo de informador e a mimese, em seu inverso. 34 Deste modo, as
cenas dialogadas tendem a ter uma rica informação narrativa, diminuindo sua

31 Porém, logo a seguir, discorre como se ele fosse o próprio Crises, e lança mão de todos os meios
para convencer-nos de que não é Homero que parece falar, mas o velho sacerdote. Do mesmo modo
procedeu em quase todo o resto de sua narrativa, ao contar-nos o que se passou em Ílio e em Ítaca,
como também em toda a Odisséia.
Isso mesmo, disse.
Há narração, por conseguinte, nos dois casos: tanto na reprodução das falas das personagens como nas
partes intermédias. (Platão, 2000, p. 147, 393b)
32 Genette observa o uso feito por Henry James, com base na distinção que Aristóteles faz desses dois
tipos de narrativas como duas variedades de mimese em sua Poética, no qual o escritor estadunidense
as transpõe como showing (mostrar) e telling (contar). Também cita a crítica feita por Wayne Booth à
valorização neo-aristotélica do mimético. Seguindo o ponto analítica do crítico francês, manteremos
neste trabalho a definição feita por ele, a despeito de toda a discussão em torno dessas diferenças.
33 Em nota, Genette observa sobre a tradução corrente da haplé diegésis por narração simples e
considera que não dá conta da especificação, pois, conforme sua leitura, o que Platão pretende é
marcar um tipo de narração sem mistura de elementos miméticos e, portanto, uma narrativa pura.
34 Genette, O discurso da Narrativa, p. 164
42

velocidade, enquanto que, nas cenas relatadas, a velocidade narrativa aumenta em


detrimento da informação (comparando-se com a mimese).
Podemos notar o exemplo no romance Ressurreição, quando, no segundo
capítulo, Félix vai à casa de Cecília para terminar seu relacionamento com ela. Ele já
durava seis meses. Quando Félix chega, o encontro é apresentado na narrativa por meio
do diálogo introdutório entre ambos e essa cena mimética termina no momento em que
Félix informa o término do relacionamento. O que segue é a diégese em que, na voz do
narrador, sabemos de modo superficial a reação da moça e as tentativas de explicação
feitas por Félix. Quem conhece esse romance sabe que o ponto central da história é o
relacionamento entre Félix e a viúva Lívia, o qual será marcado por diversas rupturas e
voltas até o término final feito pela viúva no penúltimo capítulo intitulado "Adeus". A
cena entre Félix e Cecília citada acima é apenas introdutória para a constituição do
caráter da personagem central Félix: um homem que por traumas passados não
consegue estabelecer relacionamento duradouro com nenhuma mulher por mais de seis
meses. Para tanto, essa cena primeira funciona como exposição do perfil psicológico
dessa personagem que se apaixona pela viúva.
Comparemos: no capítulo segundo, intitulado "Liquidação do Ano Velho", o
rompimento toma apenas a primeira parte, sendo que o quadro narrativo é composto por
quatro blocos35, isto é, 61 palavras para a diégese inicial que estabelece o encontro entre
Félix e Cecília, 124 palavras de mimese, que constitui um diálogo inicial entre ambas as
personagens, 80 palavras para a diégese da reação e explicação do término, 230 palavras
para a mimese do questionamento de Cecília e as últimas justificativas de Félix e, por
fim, 86 palavras para a diégese que encerra o relacionamento com a saída de Félix. No
penúltimo capítulo já citado, o quadro narrativo que trata do rompimento final entre
Félix e a viúva é constituído por 13 blocos: iniciado com a frase "Livia consentiu
finalmente em receber o médico", constitui-se de 95 palavras para a diégese que
introduz o diálogo do rompimento final entre o casal; o segundo bloco, de 123 palavras
para a mimese na qual Lívia aceita perdoar o ciúme do médico; o terceiro bloco, 29
palavras para a diégese que relata a postura do médico enquanto fala a viúva; o quarto
bloco, 101 palavras para a mimese na qual Lívia conclui sua fala e o médico a interpela;
o quinto bloco, 31 palavras para a diégese que relata a reação da viúva; sexto bloco, 198
palavras para a réplica de Lívia; sétimo bloco, 17 palavras para a diégese que relata a

35 Definimos como bloco narrativo o conjunto de palavras que, juntas, constituem um momento da
diégese ou da mimese antes da mudança de procedimento narrativo.
43

reação da moça enquanto fala; oitavo bloco, 103 palavras para a tréplica de Félix; nono
bloco, 49 palavras para a diégese que anuncia o final do diálogo entre as personagens;
décimo bloco, 20 palavras para a mimese da fala final de Lívia, décimo primeiro bloco,
38 palavras para a diégese que mostra o último esforço de Félix para reatar o
relacionamento; décimo segundo bloco, 14 palavras para a mimese em que o filho de
Lívia, em seu colo, reage ao ver o choro da mãe; e, finalmente, o décimo terceiro bloco,
22 palavras para a diégese que relata a saída de Félix.
Embora tedioso, o exemplo comparativo em um mesmo romance torna-se
importante para mostrar como enunciação e enunciado se permutam, garantindo o efeito
de ritmo e, portanto, de dramaticidade. Não apenas este capítulo, mas juntamente com
os anteriores, a construção de blocos entre diégese e mimese garante a dramaticidade da
história. Além disso, se compararmos a totalidade dos dois capítulos, observaremos que,
enquanto no segundo o quadro narrativo ocupa apenas um terço do total do capítulo, no
penúltimo o quadro ocupa dois terços, isto é, no segundo capítulo, em um total de 1358
palavras, este quadro contém 577, enquanto que o quadro narrativo entre Lívia e Félix,
em um total de 1078, contém 846 palavras. Não apenas os números, mas a disposição
dos blocos de diégese e mimese, razão porque apresentamos essa comparação, contribui
para não apenas dramatizar a cena, mas também garantir a profundidade psicológica das
personagens, sobretudo de Félix que, de personagem tipo, ganha em toda a narrativa a
sua densidade e complexidade dramática.
Outro exemplo que nos serve para observarmos o funcionamento da mimese que
garante a riqueza de informação com redução da velocidade narrativa afirmada por
Genette é o romance Helena. A personagem principal é anunciada como filha à família
do falecido Conselheiro Vale - o reconhecimento da paternidade se dá pelo testamento
deixado pelo Conselheiro - e passa a morar com o meio-irmão Estácio e a tia Úrsula. O
narrador não conta ao leitor o passado de Helena, mas apenas o torna objeto de
especulação e boato entre a vizinhança. Um dia, indo andar a cavalo sozinho, Estácio
flagra Helena saindo de uma velha casa à qual o narrador já fizera referência no começo
do romance. Esse episódio torna-se o nó a ser desatado, pois deflagra o drama principal
do romance. Após pressionar Helena e, junto com a tia e o padre Melchior, tentar
descobrir a relação entre a personagem e o homem que mora na casa, descobrem por
Helena que ele é o seu verdadeiro pai. Diante do impasse contraditório entre a
afirmação de Helena e o testamento do Conselheiro Vale que reconhece a paternidade
da moça, ambos, o jovem e o padre, vão à casa do pai de Helena - Salvador - para
44

confirmar a versão da moça. A chegada dos dois na casa de Salvador se inicia na última
parte do capítulo XXIV. Os três capítulos seguintes são tomados pela fala de Salvador,
o qual conta para Estácio e o Padre Melchior a história sua e de Helena, comprovando
que ele é o verdadeiro pai da menina. No capítulo XXV, das 2370 palavras, 108 apenas
são de diégese intercalados em 4 blocos, enquanto que 2262 são de mimese. No capítulo
XXVI, de 1775 palavras, 66 palavras são para a diégese e 1709 para a mimese. No
capítulo XXVII, para retomar o movimento da narrativa, sem com isso perder o
conteúdo da história, o narrador intercala diégese e mimese em um total de 25 blocos.

b) Discurso Indireto Livre e Monólogo Interior.

Embora com menor presença nos quatro primeiros romances, comparado com os
três últimos, tanto o discurso indireto livre, quanto o monólogo interior, contribuem
para a dramaticidade da narrativa. No caso do discurso indireto livre, no qual a voz ou
pensamento da personagem é traduzida na voz do narrador, criando uma polifonia, há
uma maior riqueza de informação, se comparado com a diégese, mas sem perder a
velocidade da narrativa, conforme podemos ver em Ressurreição:

Quando Félix entrou dançava-se uma quadrilha. O coronel foi


ter com ele e levou-o para onde estava a mulher que já o
esperava com ansiedade, pela razão, dizia ela, de que era um dos
poucos rapazes que ainda conversavam com velhas, estando
entre moças. (ASSIS, 2008, p. 244)

Vemos neste exemplo que a única marca a identificar a fala da personagem é a


presença do verbo dicendi (dizia) conjugado no pretérito imperfeito. Contudo, se
retirarmos essa marca, nem por isso o trecho perde sua polifonia. Mais à frente, no
mesmo capítulo III, podemos ver outros blocos de discurso indireto livre:

A conversa com a dona da casa roubou algum tempo às moças,


segundo a expressão do coronel. Era necessário que Félix se
dividisse com as senhoras que ainda tinham amor aos exercícios
coreográficos. (p. 244)

Por que motivo, o marido, casado há pouco, queria ir queimar a


um templo estranho os perfumes que a esposa merecia?(p. 246)

Lívia demorou-se em casa do coronel mais tempo do que


prometera, milagre devido ao doutor, dizia Viana. (p. 249)
45

Os exemplos citados mostram o interesse do narrador em apresentar detalhes das


interrelações das personagens, seja por meio de falas ou observações feitas pelas
personagens diante de um dado acontecimento, sem com isso perder a velocidade da
narrativa. Genette observa que o discurso transposto em estilo indireto, embora mais
mimético do que a diégese e, portanto, capaz de exaustividade, não dá ao leitor garantia
nenhuma da fidelidade literal às falas pronunciadas das personagens. Portanto, o
narrador não se contenta em transpô-las no discurso mimético, mas as condensa em seu
próprio discurso, interpretando-as em seu estilo36. Patrick Charaudeau e Dominique
Maingueneau, em seu Dicionário de Análise de Discurso, observam que o discurso
indireto livre são fragmentos interpretados como discurso direto, mas sem as marcas
dele37. Poderíamos, com a presença do verbo dizer no primeiro e no último exemplo,
afirmar que ambos compõem uma marcação do discurso direto, mas cabe observar que,
além do fato de o verbo dizer estar conjugado no pretérito imperfeito, o que faz produzir
sentido de um dizer que se estende no passado, isto é, tanto a fala da mulher do Coronel,
D. Matilde, quanto a de Viana, podem ter sido ditas várias vezes e não no momento em
que acontece a cena, também ambas as falas misturam-se com a fala do narrador sem
uma marcação que as separe em definitivo.
Outra observação importante que Charaudeau nos apresenta refere-se às frases
sem fala como limite do discurso citado, isto é, enunciados que não são atribuídos ao
locutor, mas que são pensamentos atribuídos à subjetividade, sob o ponto de vista de
uma personagem (idem, ibidem, p.175). Embora Charaudeau não afirme explicitamente
que este discurso citado seja característica do discurso indireto livre, tendemos a atribuir
como característica deste procedimento, sobretudo pelo fato de também nele se traduzir
a polifonia em que discurso da personagem e do narrador se confundem e se
potencializam. Vemos o exemplo no mesmo capítulo do romance Ressurreição:

36 Se bem que um pouco mais mimético que o discurso contado, e em princípio capaz de
exaustividade, essa forma nunca dá ao leitor garantias nenhumas, e, sobretudo, nenhum sentimento de
fidelidade literal às falas pronunciadas "realmente": a presença do narrador é muito sensível, e na
própria sintaxe da frase, para que o discurso se imponha com a autonomia documentária de uma
citação. Está, por assim dizer, previamente admitido que o narrador não se contenta com transpor as
falas em proposições subordinadas, mas que as condena, as integra no seu próprio discurso; e, logo, as
interpreta no seu próprio estilo, como Françoise traduzindo as civilidade de Mme. Villeparisis.
(GENETTE, 1995, pp. 169-170)
37 Fala-se de discurso direto livre no caso de fragmentos que são interpretados como discurso direto,
mas sem qualquer indicação de que há discurso citado. (CHARAUDEAU, 2008, p. 173)
46

Conquanto Raquel, na opinião de Félix, fosse uma menina, não


deixou este de estranhar que tão facilmente cedesse a realeza da
noite a outra mulher; mas, por outro lado refletia que esta
abdicação bem podia ser uma afetação de modéstia. Contudo, o
límpido olhar da moça revelava a mais absoluta ingenuidade.
Fez-lhe um cumprimento à beleza dela, e entrou a admirar de
longe a beleza de Lívia.
Lívia tinha efetivamente um ar de rainha, uma natural
majestade, que não era rigidez convencional e afetada, mas uma
grandeza involuntária e sua. A impressão de Félix foi boa e má;
achou-lhe uma beleza deslumbrante, mas pareceu-lhe ver
através daquele rosto senhoril uma alma altiva e desdenhosa.
(ASSIS, 2008, p. 245)

Assim, temos uma penetração sem marcas de um discurso direto feita pelo
narrador na personagem, mas que se traduz no discurso do narrador. Sobretudo na
segunda parte, quando descreve a personagem Lívia, essa descrição pode tanto ser a do
narrador, como da personagem Félix. A polifonia ganha um tom a mais, pois além de
descrever a personagem e informar o olhar que a personagem-observador lhe volta,
também permite que o leitor possa saber o impacto que a personagem observada causa
na personagem observante. Este terceiro tom é importante como forma de antecipação
da relação que se estabelecerá entre ambas as personagens.
Por sua vez, o monólogo interior, conforme afirma Genette, citando Dujardin, é:

"o discurso sem auditor e não pronunciado, pelo qual uma


personagem exprime o seu pensamento mais íntimo, mais
próximo do inconsciente, anteriormente a toda organização
lógica, isto é, em seu estado nascente, por meio de frases diretas
reduzidas ao mínimo sintático." (Genette, 1995, p. 172).

Se, no discurso indireto livre, a personagem fala pela voz do narrador, de modo
que as duas vozes se confundam, no monólogo interior o narrador dilui-se e a
personagem o substitui, sem com isso haver separação explícita entre as formas de
diégese e mimese. Funcionando como uma espécie de aparte, característica do discurso
dramatúrgico, o monólogo interior, conforme observa Charaudeau, é um discurso
dirigido apenas a si mesmo e marcado como tal, isto é, o locutor pensa em voz alta e
produz informações para as quais é ele mesmo o destinatário como espécie de
desdobramento do sujeito da enunciação38. Podemos confirmá-lo nos seguintes

38 Monólogo - A palavra monólogo (como seu par de origem latina "solilóquio") é empregada em
dois sentidos nitidamente diferentes:
47

exemplos do capítulo IV, quando Félix, ao encontrar Viana e sua irmã, a viúva Lívia, no
teatro, fica a observá-la e, durante a observação, expressa seus pensamentos por meio do
monólogo interior:

— Em que estará pensando esta moça? — dizia Félix consigo.


Evidentemente, não lhe importam os suspiros do galã, nem as
facécias do gracioso. Olha, mas não vê a cena. Estará à espera
de algum namorado remisso? Mas quem é então esse lorpa que
deixa entristecer uns olhos tão bonitos? (...)
— Ama, não há dúvida — continuou Félix a dizer entre si; basta
ver como lhe brilham os olhos a cada frase do diálogo.
Agradam-lhe os protestos do namorado e as lágrimas da dama.
Creio que sorri; é de aprovação. Oh! como está divina!" (ASSIS,
2008, p. 251)

. Discurso dirigido apenas a si mesmo (em inglês self talk): o locutor pensa em voz alta e proiduz
uma mensagem da qual ele é ao mesmo tempo o único destinatário, por meio de um tipo de
desdobramento do sujeito da enunciação (desdobramento que pode se concretizar pelo emprego de
uma segunda pessoa, pois o monólogo pode, dependendo do caso, formular-se em Eu ou em Tu: "Te
manca, Dirceu..."). Essa prática é bastante utilizada no teatro: trata-se de uma "licença" que se justifica
pela presença do público, ao qual a personagem não pode se dirigir diretamente (pelo menos segundo
as normas dominantes no teatro ocidental), mas ao qual deve, apesar disso, informar seus estados
interiores (o que se pode fazer no romance graças aos monólogos interiores ou aos comentários do
narrador). Um caso particular de monólogo é o aparte, que tem como característica principal ser
produzido quando outras personagens estão igualmente presentes no espaço cênico, cabendo ao
locutor excluí-las do círculo comunicativo (baixando a voz, colocando sua mão diante da boca, etc.);
os apartes são, portanto, necessariamente breves (ao passo que os monólogos dramáticos podem
estender-se longamente), e parecem, segundo Pavis (1980:40), "fugir à personagem". Fora do caso
particular do teatro, o monólogo é, em nossas sociedades, segundo Goffman (1987), objeto de um
"tabu": mesmo se se pode produzi-lo em certas circunstâncias e sob certas condições (das quais
Goffman nos propõem um inventário), ele seria na vida cotidiana apenas uma exceção, um
comportamento que, se se prolonga ou se repete, passa por patologia (a linguagem verbal se opõe, em
relação a isso, a um outro sistema semiótico, ainda que próximo, o canto). Quando o enunciado é
produzido na frente de testemunhas, às vezes é difícil saber (pois os indícios são a esse respeito vagos)
se ele é auto-dirigido ou dirigido a outrem. Na verdade, defrontamo-nos frequentemente com um
semi-aparte, que pode facilmente deslizar de um estatuto a outro, seja pela ação do próprio locutor,
seja da testemunha, que "se engata" no enunciado monologado, produzindo um encadeamento;
exemplos de semi-apartes: situações domésticas em que cada um cumpre suas atividades, mas em
presença e sob as vistas dos outros membros da família; comentários entre dentes de um empregado
brigando com seu computador, ou de um cliente na fila de um self-service, sem falar dos diversos
tipos de interjeições e de exclamações descritos por Goffman (1987: cap. 2). O semi-aparte deve ser
distinguido do pseudo-aparte, muito frequente na comédia clássica (o locutor finge "falar com os
botões", enquanto seus propósitos são, na realidade, destinados a uma personagem presente, mas
igualmente atestado na vida entre destinatário aparente e destinatário real). Notemos que se fala
também de aparte a propósito de trocas que ocorrem entre duas ou três pessoas (não se trata mais,
então, de "self-talk"), mas no interior de um grupo conversacional mais amplo, quando os
responsáveis pelo aparte se caracterizam como participando de um "diálogo à parte" (este emprego do
termo compartilha, portanto, com o precedente a ideia de uma exclusão voluntária de certos membros
do quadro participativo).
Em um segundo sentido, amplo, mas bem conhecido, um monólogo é um "discurso longo de uma
pessoa que não deixa seus interlocutores falar ou a quem seus interlocutores não dão resposta" (Petit
Robert, 1991), isto é, um discurso dirigido (a alguns outros e não a si mesmo), mas que escapa ao
princípio de alternância dos turnos de fala. O monólogo é sempre, portanto, uma forma discursiva
marcada em relação ao uso "normal" da linguagem verbal, a saber, o diálogo. (CHARAUDEAU,
2008, p. 340)
48

Como se pode observar, as marcas com travessão são semelhantes às do diálogo,


contudo, conforme pontuado acima, o interlocutor é o próprio sujeito do discurso. Cabe
observar que o monólogo interior é um discurso mimético, porém, neste trabalho,
escolhemos marcá-lo em separado. Um dos efeitos artísticos interessantes do monólogo
interior é fazer com que o leitor compartilhe da dúvida e, com isso, construa valores
afetivos que se produzem na alma da personagem. Assim como Félix, não saberemos
de fato o que se passa na alma de Lívia, mas menos que informar, como o faz a mimese,
seu efeito é afetar o leitor do mesmo modo como afeta a personagem.
Obviamente, não é nossa intenção carregar este capítulo de exemplos, até porque
são muitos, mas perceber os efeitos de ritmo que o uso da diégese e mimese nesses
romances produz. Para tanto, elaboramos alguns gráficos dos seis romances que podem
nos dar um panorama do jogo entre diégese e mimese na trama narrativa machadiana.
Antes, três coisas precisam ser pontuadas. A primeira refere-se ao modo como
construímos os gráficos que apresentaremos não referentes apenas a este tema, mas
também aos demais procedimentos estilísticos neste capítulo. Com base nos movimentos
narrativos apresentados por Genette, analisamos capítulo a capítulo os trechos nos quais
predominaram a diégese (momento em que a narrativa se movimenta na voz do
narrador); a mimese (momento em que o narrador dá voz às personagens); o discurso
indireto livre (quando a fala da personagem se confunde com a do narrador); monólogo
interior (momento em que a personagem exprime um pensamento); sumário (quando a
narrativa avança temporalmente, dando-nos dias, anos ou décadas, em algumas linhas);
as interrupções do narrador, chamadas por Genette de metalepses e as quais
analisaremos no final; pausa descritiva e caracteriológica (momento em que o tempo da
história para e o narrador descreve lugar ou aparência da personagem - a descrição - ou
descreve o perfil psicológico da personagem - a caracterização). Para tanto, utilizamo-
nos do recurso do programa da Microsoft (word) o qual nos informa o total de palavras
do texto e, quando selecionado um trecho, o total de palavras selecionadas. Desse modo,
fizemos uma dissecação dos sete romances, que nos permitiu construir gráficos, os
quais apresentaremos conforme se fizer necessário39.

39 A ideia de medir a extensão da narrativa, separando-as pelos procedimentos definidos por Gerard
Genette, foi tirado da obra de Genette, o qual, comparando a extensão de um trecho da Ilíada de
Homero com a tradução feita por Platão em A República. Para compará-las e estabelecer a diferença
entre "imitação" e "narrativa pura", Genette conta as palavras de uma e outra, conforme vemos a
49

A segunda coisa refere-se à escolha de deixarmos para apresentar o romance


Memórias Póstumas de Brás Cubas no final, visto ser ele o objeto principal de nossa
análise. A terceira refere-se à transposição em gráficos da estrutura dos romances
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Dado o fato de
estes romances serem compostos por 160 capítulos, 201 capítulos e 148 capítulos
respectivamente, não foi possível montar um gráfico no qual teríamos mais de um
procedimento devido à sobrecarga de informação. Neste sentido, se nos quatro primeiro
romances nos foi possível apresentar informações truncadas, como se verá nos outros
três ficou inviável devido ao grande número de capítulos. Por isso, a alternativa em
relação aos três foi a de montar um gráfico para cada um dos procedimentos.

seguir: A diferença mais manifesta é, evidentemente, de extensão (18 palavras contra 30 nos textos
gregos, 25 contra 43 nas traduções francesas): Platão obtém tal condensação eliminando as
informações redundantes ("disse ele", "obedece", "filho de Letos"), mas também as indicações
circunstanciais e "pitorescas"; "dos belos cabelos" e sobretudo "ao longo do areal onde rola o mar"
(GENETTE, 1995, p. 163).
50

GRÁFICO 1: DIÉGESE E MIMESE EM RESSURREIÇÃO

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


51

Não pretendemos transformar os gráficos em oráculos, mas apenas fazê-los


funcionar naquilo que lhes compete, isto é, dar-nos sinais sobre como, em geral,
funciona uma dada informação posta neles (que se trata, no caso, da estrutura narrativa).
Para o que nos interessa, o gráfico nos mostra como o narrador articula movimento e
informação. Conforme pontuamos acima, citando Genette, a mimese tende a ter um
maior nível de informação e uma velocidade reduzida, ao passo que a diégese tende a
ter menos informação, ou melhor, informações mais reduzidas, porque, citando Genette,
"o discurso narrativizado, ou contado, é evidentemente mais distante e, em geral, como
se acaba de ver, o mais redutor". (GENETTE, 1995, p. 169). Logo, o narrador intercala
na narrativa a diégese e mimese para garantir o movimento narrativo sem perder a
qualidade da informação. Nesse sentido, a informação em narrativa está intrinsecamente
ligada à dramatização, procedimento pelo qual a personagem ganha maior liberdade na
ação diante do narrador. Em Ressurreição, conforme anunciado no prefácio, a narrativa
tem por objetivo estabelecer no enredo o contraste de dois caracteres:

Minha ideia ao escrever este livro foi pôr em ação aquele


pensamento de Shakespeare:

Our doubts are traitors


And make us lose the good we oft might win,
By fearing to attempt.

Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma


situação e o contraste de dois caracteres; com esses simples
elementos busquei o interesse do livro. A crítica decidirá se a
obra corresponde ao intuito, e sobretudo se o operário tem jeito
para ela. É o que lhe peço com o coração nas mãos. (ASSIS,
2008, p. 236)

Conforme vemos no gráfico, o autor opta pelo início dramático da narrativa que,
aliás, não se repetirá dessa forma nos outros seis romances. Tendo como objetivo a
apresentação do contraste de caracteres das personagens, no primeiro capítulo opta pelo
uso da pausa e da mimese (barra vermelha). À medida que avança, a diégese (barra
azul) predomina, sendo algumas vezes intercalada com a mimese. Deste modo, a
informação dada tanto pela descrição quanto pelo diálogo tende a dominar os dois
primeiros capítulos, os quais, no geral, costumam, como forma de introdução, responder
pela caracterização e contextualização das personagens. Nos dois primeiros capítulos, a
mimese corresponde respectivamente a 38% e 57%, enquanto que a pausa corresponde,
52

conforme veremos mais à frente, a 30% no primeiro e 5% no segundo capítulo. Este


dado nos permite perceber a escolha estilística feita pelo autor: apresentar as
personagens por meio da dramatização e não simplesmente por uma caracterização
psicológica ou descritiva apenas. Se considerarmos os dados históricos apresentados
pela crítica machadiana, é possível perceber a emulação da dramaturgia na composição
de seu primeiro romance, pois, até a publicação dele, Machado está inteiramente
envolvido com textos de teatro40. Inegavelmente, sua primeira obra traz essa presença
do teatro na dramatização do romance.
A partir do gráfico, podemos verificar que a mimese terá predominância em
cinco momentos:
 Primeiro momento: no capítulo 1 e 2, intitulados "No dia de ano bom" e
Liquidando o ano velho" quando o narrador introduz a personagem Félix,
apresentando-a ao leitor por meio da dramatização conforme vimos
anteriormente.
 Segundo momento: no capítulo 5 e 6, intitulados respectivamente "Fico" e
"Declaração", momento em que se dá a aproximação entre Félix e a viúva Lívia
que, a partir dessa aproximação, estabelecem o relacionamento afetivo;
 Terceiro momento: no capítulo 11, intitulado O Passado, quando, na chácara
de Viana, o casal resolve falar de seu passado amoroso;
 Quarto momento: no capítulo 20, intitulado "Uma Voz Misteriosa", quando
Félix recebe a visita da personagem antagonista João Batista, o qual será o pivô
da separação definitiva do casal;
 Quinto momento: no capítulo 23, intitulado "Adeus" em que se dá a separação
definitiva do casal.

Um elemento importante nesse movimento narrativo da mimese é o que nos


propõe Yves Reuter, em sua obra Análise da Narrativa, para superar as sequências

40 Conforme nos informa Márcia Lígia Guidin em seu texto Cronologia da Vida e da Obra, publicado
em Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea, o envolvimento de Machado de Assis com
o Teatro se dá partir de 1859, quando passa a escrever críticas teatrais para a Revista dos Teatros,
além de, neste mesmo ano ter escrito o libreto da ópera Pipelet de Eugène Sue. Na sequência e antes
de publicar este romance constam as seguintes publicações de textos teatrais: em 1860 publica a peça
Hoje avental, amanhã luva; em 1861 publica como tradutor a obra Queda que as mulheres têm pelos
tolos e a peça de teatro Desencantos; em 1862, encena a peça O Caminho da porta; em dezembro
deste ano, é encenada a comédia O protocolo; em 1863 publica Teatro de Machado de Assis, que
reúne as comédias O Caminho da porta e O protocolo; neste mesmo ano é encenada a peça Quase
ministro; Em 1865, é encenada sua peça Os deuses de casaca, publicada um ano depois;
53

fastidiosas de apresentação do universo narrativo, antes da ação propriamente dita,


como é comum na narrativa de Balzac. Com base em Reuter, podemos afirmar que
Machado opta pelo que Reuter identifica como entrada in medias res, isto é, a narrativa
com a ação em curso41. Logo, o leitor saberá que Félix namora Cecília apenas quando,
no capítulo II, ele resolve terminar o relacionamento com ela, bem como o leitor saberá
que Lívia já fora casada, apenas quando ela já é viúva; por fim, saberá que ela tem um
filho à medida que Félix ganha intimidade com ela e resolve namorá-la. Isto é, o
narrador machadiano dá apenas as informações úteis à compreensão do quadro, seja
pelo recurso da analepse explicativa ou, no caso, por meio da mimese e diégese. Outro
elemento importante na mimese é o conteúdo ideológico manifesto no diálogo entre
Lívia e Félix no terceiro momento, isto é, no capítulo 11. Félix resolve perguntar a ela
sobre o passado que a faz temer um novo relacionamento e ambos falam sobre a
concepção passada e presente do amor. Vejamos alguns trechos do diálogo:

PARTE 1:

— Talvez me não compreendas melhor que os outros, continuou


Lívia, e com isto não quero dizer que sejas tão vulgar como os
mais deles. Não o és; mas há coisas que um homem dificilmente
compreenderá, creio eu.
— Nem quando ama? perguntou Félix.
Lívia não respondeu; Félix continuou:
— Mas que passado foi esse? Posso não compreender-te, como
dizes, mas saberei dizer-te algumas palavras de consolação, e
dissipar com elas a tristeza que te ficar desta confidencia, que
não é um remorso, decerto.
— Amei a meu marido, começou Lívia, e toda a minha
confidência se resume nessas poucas palavras. Tive uma paixão
da primeira idade, quando a amor vem surpreender a ignorância
do coração. Será esse o amor mais forte? Há quem diga que o
primeiro amor nasce apenas da necessidade de amar. Pode ser.
Hoje que te amo sinto que pode ser assim. Em todo o caso,
aquele afeto dominou-me toda; cobrei uma vida que me parecia
imortal.
— E ele?
— Amava-me, creio, mas não entendíamos o amor do mesmo
modo; tal foi o meu doloroso e tardio desencanto. Para mim era
um êxtase divino, uma espécie de sonho em ação, uma

41 Pouco a pouco, para superar as reticências de uma parte dos leitores, que achavam um tanto
fastidiosa essa maneira de entrar na matéria, os romancistas preferiram inciar com um entrada in
media res (narrativa com a ação já em curso), obrigando-se a dar apenas as informações úteis à
compreensão do quadro, em uma analepse explicativa, conforme essa abertura. (REUTER, 2002, pp.
138-139)
54

transfusão absoluta de alma para alma; para ele o amor era um


sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal, sem
ardores, sem asas, sem ilusões... Erraríamos ambos, quem sabe?
— Vejo que eram incompatíveis, interrompeu Félix; mas, por
que exigir de todos essa maneira de ver e sentir, que é mais da
imaginação que da realidade?
Lívia levantou os ombros.
— Estou explicando a situação da minha alma, continuou ela.
Foi aflitiva e triste; não lha ocultei. Riu-se de mim. Era um
homem apático e frio; honesto, é verdade, e bom coração, mas
falávamos língua diversa e não nos podíamos entender. Confiei
todavia na influência do amor. Empreendi a tarefa de o trazer à
atmosfera dos meus sentimentos, errada tentativa, que só me
produziu atribulação e cansaço. Fatigava-o com isso a que ele
chamava pieguices poéticas; da fadiga passou à exasperação, da
exasperação ao tédio. No dia em que o tédio apareceu conheci
que o mal estava consumado. Quis emendá-lo e não pude. Tinha
feito da nossa vida conjugal um deserto; e se a minha alma
clamava contra o destino, minha consciência me acusava de um
erro, o erro de haver perturbado a paz doméstica, a troco de um
sonho que não veio. Não me faço melhor do que sou, bem vês;
mas uma parte da culpa não será da natureza que me fez tão
pueril? Tal é o meu receio agora, continuou Lívia depois de
alguns segundos de silêncio; às vezes cuido que não vim ao
mundo para ser feliz nem para dar a felicidade a ninguém. Nasci
defeituosa, parece. Serás tu capaz de desfazer a apreensão ou
corrigir o defeito?

PARTE 2:

(...)
— Talvez possa dissipar-se a apreensão, respondeu Félix; mas,
creio que não será fácil. Tens um coração ainda muito criança, e
que o há de ser até a morte, penso eu.
(...)
E continuou:
— Sim, perdi muito mais. Abraçar um cadáver, que é isso para
quem já abraçou uma serpente? Tu perdeste apenas alguns anos
de amor mal compreendido; não perdeste um bem precioso, que
o tempo me levou: a confiança. Podes hoje ser feliz do mesmo
modo que o querias ser então; basta que te ame alguém. Eu não,
minha querida Lívia, falta-me a primeira condição da paz
interior: eu não creio na sinceridade dos outros.
(...)
— Ninguém esperdiçou mais generosamente os afetos do que
eu, continuou o médico, ninguém, mais do que eu soube ser
amigo e amante. Era crédulo como tu; a hipocrisia, a perfídia, o
egoísmo nunca me pareceram mais que lastimáveis aberrações.
Meu espírito criara um mundo seu, uma sociedade platônica,-
em que a fraternidade era a língua universal, e o amor a lei
55

comum. Deixei-me ir assim, rio abaixo dos anos, gastando a


seiva toda da juventude, sem cálculo nem arrependimento, até
que me bateu a hora das decepções funestas.
(...)
O médico prosseguiu:
— Não me caíram as ilusões como folhas secas que um débil
sopro desprega e leva, foram-me arrancadas no pleno vigor da
vegetação. Não me deixaram essas doces recordações, que são
para as almas enfermas como que uma aura de vitalidade. Meu
espírito ficou árido e seco. Invadiu-me então uma cruel
misantropia, a princípio irritada e violenta, depois melancólica e
resignada. Calejou-se-me a alma a pouco e pouco, e o meu
coração literalmente morreu.
(...)
— A obra não está completa, continuou Félix; metade apenas.
Fizeste brotar dentre as ruínas uma flor solitária, mas bela; única
neste árido terreno do meu coração. Não basta; é preciso agora
um raio que a anime e lhe conserve o perpétuo viço; essa é a
confiança, não de uma hora, mas a de todos os dias, a que não
falece nunca e nos restitui a serenidade dos primeiros tempos.
Sem ela, o meu amor será um largo e inútil martírio.
(ASSIS,2008, pp. 273-275)

Citamos as falas de ambas as personagens e as dividimos em duas partes, às


quais correspondem, na primeira, a de Lívia e, na segunda, a de Félix. Ambos
expressam dois momentos da concepção idealista e da experiência do amor: Lívia amou
o primeiro marido conforme determinam os manuais românticos da época, mas, na
experiência desse amor, essa concepção não se realiza e se frustra, dado o fato de o
marido não conceber o amor do mesmo modo que ela; Félix, por sua vez, iludido com a
concepção romântica do amor, sofrera algumas decepções, às quais apenas faz
referência abstrata, e tornara-se um homem sem confiança, de espírito árido. No final
deste diálogo, ambos acreditam que podem se restabelecer da concepção idealista do
amor, o que se verá impossível na continuação do romance, dado o ciúme doentio de
Félix. Com isso, e fazendo o que Reuter define como analepse explicativa, neste
romance, por meio da mimese, é também o modo como o autor expressa sua leitura
crítica dos valores de seu tempo.
Por sua vez, a diégese passa a dominar a narrativa a partir do capítulo X,
conforme se verifica no gráfico, intercalando com a mimese e o sumário. O
relacionamento entre Lívia e Félix inicia-se no capítulo VI, no qual, mimese e diégese,
juntas, correspondem a 95% do capítulo e nos três seguintes, a diégese divide espaço
com o sumário, garantindo a aceleração da narrativa, isto é, o tempo da história tende a
56

ser maior do que o tempo da narrativa. No capítulo X, intitulado "A Enferma" narra a
presença de Félix na casa do coronel, visitando sua filha Raquel que se encontra doente.
Neste capítulo, a diégese corresponde a 54% do capítulo, garantindo um movimento não
tão rápido como nas anteriores, mas sem tanta informação como na do capítulo
seguinte. O capítulo XV, intitulado Enfant Terrible, é o auge do domínio da narrativa
diegética, momento em que Félix e Lívia estão brigados e Raquel se torna um terceiro
elemento nesse conflito, tanto para competir com Lívia, quanto para, no capítulo
posterior, servir de conciliadora entre ambos. Por fim, no capítulo XIX, intitulado
"Porta do Céu" e no capítulo XXI, intitulado "Último Golpe" , a diégese corresponde
respectivamente a 58% e 69%, respectivamente.
A chave temática que orienta todo o romance é um trecho da peça Medida por
Medida de William Shakespeare, em que a personagem Lúcio afirma para Isabela que
Não passam de traidoras nossas dúvidas que nos privam, por vezes, do que fora nosso
se não tivéssemos receio de tentar (Shakespeare, p. 29). Para tanto, o adágio é posto em
cena na tentativa de relacionamento entre Félix e a viúva Lívia, os quais não concluem o
casamento por conta do ciúme doentio de Félix e do medo que Lívia passa a ter em
relação ao futuro por conta desse ciúme. Com isso, a narrativa tem como cena central os
vários conflitos do casal nos quais, em menor ou maior escala, haverá a participação de
outras personagens. São elas: Viana, o parasita irmão de Lívia, Menezes, amigo de
Félix, Coronel, D. Matilde e Raquel, Moreirinha, Cecília, Clarinha e João Batista.
Embora, a personagem antagonista seja João Batista que investe contra o
relacionamento das personagens principais, tanto Raquel, quanto Meneses, vão de certo
modo desempenhar o papel de motivo de atrito do casal, embora também desempenhem
o papel de conciliadores, com sucesso no caso de Raquel e sem sucesso, no caso de
Meneses. Com isso, essas personagens participam de diálogos com as personagens
principais e, no caso de Raquel, João Batista e Meneses, fazem parte do
desenvolvimento da trama narrativa. O Coronel e sua esposa Matilde, Moreirinha,
Cecília e Clarinha, orbitam a narrativa central sem participar dela diretamente. Mesmo o
irmão de Lívia e amigo de Félix, o parasita Viana, conforme o identifica o narrador, por
mais que esteja presente, não tem uma participação efetiva, mas apenas acessória na
trama central. Logo, seguindo o adágio shakespeariano apresentado no prefácio, a
narrativa se desenvolve em torno do conflito amoroso do casal. Com isso, podemos
determinar a estrutura narrativa do seguinte modo: introdução; aproximação; conjunção
afetiva; separação; e reconciliação. Podemos observar estruturalmente este romance do
57

seguinte modo:

TABELA 1 - Repartição temática dos capítulos no Romance Ressurreição


INTRODUÇÃO APROXIMAÇÃO CONJUNÇÃO SEPARAÇÃO RECONCILIAÇÃO
AFETIVA
CAP. I e II CAP. III, IV e V CAP. VI e VII CAP.VIII, IX, CAP. VIII, IX-XIII,
XIII-XVII, XVII-XX.
XX-XXIII

Conforme podemos verificar, em alguns deles tanto a separação quanto a reconciliação


tomam apenas um capítulo, como é o caso do capítulo VIII, intitulado "Queda", em que
Félix, sentindo-se apaixonado por Lívia, o que lhe significaria a violação de sua
liberdade afetiva, resolve se afastar dela, mas alguns parágrafos depois, Lívia o procura
e ambos resolvem reatar. Em alguns outros capítulos, como é o caso dos capítulos de IX
a XIII, XIII a XVII, XVII a XX e XX a XXIII, a separação e a reconciliação se
estendem. Para tanto e comparadas ao gráfico acima, a diégese e a mimese terão
importância estrutural tanto na ausência quanto na presença e disposição entre elas.
Por sua vez, o discurso indireto livre e o monólogo interior, embora
quantitativamente menores que a diégese e mimese, têm importância na trama narrativa.
58

GRÁFICO 2: DISCURSO INDIRETO LIVRE E MONÓLOGO INTERIOR EM RESSURREIÇÃO

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


59

Conforme verificamos neste gráfico, ambos os procedimentos são percentualmente


baixos, mas nem por isso deixam de ter relevância na narrativa. O discurso indireto livre
terá predominância sobretudo nos capítulos IX, XIV e XVII.
O capítulo IX, intitulado Luta divide-se entre diégese (27%) mimese (24%)
discurso indireto livre (17%) e sumário (16%). Portanto, é um capítulo bastante
condensado, pois apresenta o ciúme doentio de Félix acontecido "n" vezes por meio do
conflito interior de Lívia, bem como o plano de Luís Batista de potencializar esse
conflito até levar o relacionamento ao desgaste. Embora, em menor quantidade, o
capítulo termina com um monólogo interior de Félix, após reatarem o relacionamento:

"O casamento me restituirá a confiança", pensava ele; "quando


estivermos juntos os dois, afastados da convivência e do contato
de estranhos, a paz morará no meu coração; só então seremos
felizes sem amargura nem remorso." (p. 269)

O capítulo XIV, intitulado Ou capítulo do acaso, é outro que narra novo conflito
amoroso entre Félix e Lívia. Contudo, diferentemente do anterior, neste, o assunto
tratado é a situação amorosa entre as personagens coadjuvantes Moreirinha e Cecília.
Como sabemos, Cecília namorara Félix e, desde então, não se viam. Ao narrar Félix
chegando em casa e se deparando com Moreirinha escondendo-se de Cecília, a narrativa
intercala-se entre o diálogo dos dois e as reflexões de Félix por meio da mistura de
diégese e discurso indireto livre, bem como a chegada de Cecília e o reencontro dos ex-
namorados, produzindo a mesma intercalação.
Por fim, o capítulo XVII, intitulado Sacrifício, traz à cena amorosa do casal a
personagem Raquel. Esta, consciente do amor não assumido entre Félix e Lívia, mesmo
apaixonada pelo rapaz, resolve abandonar o campo da disputa e interceder por Lívia,
junto a Félix, com um bilhete. Esta atitude causa espanto no moço que o leva a refletir
sobre a descoberta da paixão de Raquel por ele. Neste contexto da narrativa, o narrador
usa do recurso do discurso indireto livre, apresentando as reflexões de Félix por meio de
sua voz.
No conjunto, percebemos que, se o narrador, para garantir a velocidade da
narrativa, faz largo uso da diégese, encontra um meio termo de modo que possa garantir
também a dramaticidade sem perda da velocidade narrativa. Para tanto, o discurso
indireto livre, neste romance, funciona como velocidade narrativa dramatizada, a qual
60

garante que a história avance, sem com isso se perder totalmente a complexidade do
drama demandado pela mimese.
O monólogo interior, por sua vez, terá maior relevância nos capítulos IV, VII e
XIX. Lembrando que, conforme pontuou Charaudeau, é o discurso que se desdobra em
si mesmo, tornando a personagem em interlocutor e destinatário desse discurso.
O capítulo IV, já citado e exemplificado anteriormente, apresenta quatro quadros
narrativos distintos: após voltar de Tijuca, Félix recebe a notícia do namoro de
Moreirinha e Cecília; o encontro de Félix no Ginásio com Viana e sua irmã Lívia; a ida
de Félix a Catumbi para visitar Lívia - quadro narrativo mais curto; e, por fim, o
encontro dos dois na Rua do Ouvidor, seguido pelo encontro com Meneses. É na
segunda cena - o encontro no Ginásio - que o monólogo interior predomina. No total de
1427 palavras, o monólogo corresponde a 90, isto é, 6%, mas, considerando que
acontece em uma cena específica, a do Ginásio, e, portanto, um total de 464 palavras,
essa porcentagem aumenta para 19%. Em comparação, a diégese passa de 35% a 70%, a
mimese (cena dialogada) de 30% cai para 2% e as demais em menos de 1%. Isto nos
permite perceber o jogo intercalado entre diégese e monólogo, no qual, se a cena
narrativa tem velocidade, a dramaticidade é subjetivada ao máximo. Cabe observar que
o sujeito enunciativo do monólogo é apenas a personagem Félix.
O capítulo VII, intitulado O Gavião e a Pomba, alegoria do casal, narra a
situação posterior ao início de namoro entre eles. O monólogo funciona ao longo do
capítulo como meio pelo qual o narrador dramatiza o conflito interno de Félix,
produzindo a dúvida.
Por fim, o capítulo XIX, intitulado Porta do Céu, narra o período de
estabilidade, no qual, após a última crise, o casal resolve marcar a data do casamento. O
monólogo se manifesta apenas em um momento do capítulo, quando Lívia, após sair da
casa do coronel e por ter comunicado a eles e a Raquel em específico sobre o
casamento, manifesta dúvida sobre a sua atual e futura situação de felicidade.
Desse modo, vemos o monólogo interior funcionar no romance como produtor
de curiosidade e dúvida e, neste último caso, provocar tensão e suspense no leitor
quanto ao desfecho que se dará a narrativa. Não é objetivo deste trabalho, por mais
tentador que seja, fazer uma análise interpretativa destas estruturas, mas apenas
evidenciá-las para, juntamente com os outros procedimentos, especificar, no conjunto
dos sete romances, como funcionam as metalepses. Portanto, sigamos para o romance A
Mão e a Luva.
61

GRÁFICO 3: DIÉGESE E MIMESE EM A MÃO E A LUVA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


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O romance A Mão e a Luva, publicado em vinte folhetins em O Globo, Rio de


Janeiro, de 26 de setembro a 3 de novembro de 1874 e publicado em livro no mês de
dezembro do mesmo ano (MACHADO, 2003, p. 97), tem como objetivo principal,
conforme afirma o autor na Advertência de 1874, traçar o caráter das personagens,
principalmente o de Guiomar, tendo as ações apenas como pano de fundo no qual lança
os contornos dos perfis:

Convém dizer que o desenho de tais caracteres - o de Guiomar,


sobretudo - foi o meu objeto principal, senão exclusivo,
servindo-me a ação apenas de tela em que lancei os contornos
dos perfis. Incompletos embora, terão eles saído naturais e
verdadeiros? (ASSIS, 2008, p. 317)

Embora o romance comece com o diálogo entre os amigos Estevão e Luís Alves,
o que predomina no capítulo primeiro é a diégese, conforme podemos ver no gráfico.
Diferentemente do romance anterior, neste a diégese domina o primeiro capítulo,
fazendo com que, em termos percentuais, (conforme o gráfico 3) a mimese seja menor:
a mimese corresponde a 53% apenas no capítulo IV, intitulado "Latet anguis", sentença
tirada da obra Bucólicas de Virgílio que significa "a serpente se esconde", momento em
que o narrador insere a personagem Mrs Oswald para estabelecer o diálogo entre ela e a
baronesa, madrinha de Guiomar, sobre o futuro amoroso de Guiomar. Nos demais
capítulos a mimese não chega à metade das palavras nos capítulos correspondentes.
Se em Ressureição o tempo divide-se em dois - o passado, há dez anos, e o
tempo presente, no último capítulo em que o narrador informa a situação atual das
personagens - em A Mão e a Luva, o tempo é mais dinâmico. Assim, a narrativa se
inicia quando os dois jovens ainda são estudantes de Direito e dialogam sobre a situação
amorosa de Estevão. No capítulo II, a narrativa avança dois anos à frente, colocando
Estevão na chácara de Luís Alves, depois da morte de sua mãe para, no dia seguinte,
(ainda no mesmo capítulo) estabelecer o reencontro entre Estevão e Guiomar. A
narrativa que segue até o final do capítulo IV é interrompida no quinto capítulo,
intitulado Meninice, para contar o passado de Guiomar. Retoma a narrativa sem
nenhuma marcação no capítulo VI, sendo essa ausência de marcação temporal na
mudança do capítulo a própria marcação, como afirma Genette sobre o comentário de
Proust a respeito da obra de Flaubert, Educação Sentimental. Segue o comentário de
Proust citado por Genette: "Aqui um 'branco', um enorme 'branco', e, sem a sombra de
63

uma transição, a medida do tempo de súbito vertendo-se, em vez de quartos de hora, em


anos, em décadas, (...) extraordinária mudança de velocidade, sem preparação" ao que
segue em nota de rodapé sobre este comentário de Proust o de Genette: "Como se a
mudança de capítulo não fosse, precisamente, uma transição. Mas é provável que
Proust, que cita de memória, tenha esquecido esse pormenor" (GENETTE, 1995, p. 98).
Do mesmo modo, é a mudança do capítulo V para o VI que estabelece a transição da
analepse para o momento presente da narrativa. Estruturado em um tempo linear, o
romance segue com avanço para o desenlace até o final da narrativa.
O enredo deste romance, como os romances de tese, tem como adágio central o
título do romance "a mão e a luva" ou, conforme afirma o narrador no final do romance:
"Guiomar, que estava de pé defronte dele, com as mãos presas nas suas, deixou-se cair
lentamente sobre os joelhos do marido, e as duas ambições trocaram o ósculo fraternal.
Ajustavam-se ambas, como se aquela luva tivesse sido feita para aquela mão." (ASSIS,
2008, p. 387). Logo, toda a trama movimenta-se para mostrar o desenvolvimento e
conclusão do adágio. Contudo, diferentemente dos romances naturalistas, este baseia
sua "tese" não em um conceito, mas em algo material, corpóreo e utilitário: a mão e a
luva. Além disso, o resultado é fruto de jogos, simulações e escolhas feitas pelo casal
Luís Alves e Guiomar e não, como costuma ser nos romances naturalistas, de um
determinismo da natureza ou cientificismo social. Essa escolha narrativa parece
produzir o que chamaremos de romance de anti tese por se contrapor em sua estrutura
narrativa ao modelo naturalista dos romances de Émile Zola.
Com base no gráfico 2, podemos perceber três momentos determinantes em que
a mimese predomina sobre os demais procedimentos, principalmente em relação à
diégese:

 Primeiro momento: já apresentado, no quarto capítulo, correspondendo a 53%


do total de palavras no capítulo, estabelece o diálogo entre Mrs. Oswald e a
baronesa sobre o futuro amoroso de Guiomar; momento em que a baronesa
manifesta a preocupação de preparar um marido para a moça.
 Segundo momento: no décimo capítulo, Guiomar descobre, por meio de uma
carta deixada em um de seus livros, o afeto que Jorge sente por ela.
 Terceiro momento: no décimo sexto capítulo, Luís Alves, que havia sido
incumbido por Estevão a sondar o coração de Guiomar e descobrir a
possibilidade de um relacionamento entre os dois, não só revela ao amigo que
64

Guiomar ama outro, como também, depois de contornar a informação principal,


afirma a Estevão que o outro é ele mesmo. É também neste capítulo que
Guiomar toma a decisão de pressionar Luís Alves para que este a peça em
casamento para a baronesa, embora o leitor fique a par da cena somente no
capítulo seguinte, pois nesse sabe apenas que alguém lançou uma grande folha
de papel, com o papel pequeno dobrado em quatro contendo o pedido.

Deste modo, a trama se organiza sob algumas binariedades que se desdobram: o


amor de Estevão por Guiomar e o amor de Jorge por Guiomar. Ambos os pretendentes
buscam conselheiros e articuladores para concretizar o amor: Estevão/Luís Alves e
Jorge/Mrs. Oswald. A baronesa é uma espécie de destinador na direção do qual os
amantes seguem e que é responsável por sancionar o casamento. Uma outra binariedade
responsável principal pela dramatização da narrativa é o papel duplo que Luís Alves
desempenha: de um lado, é o articulador de um possível relacionamento entre Guiomar
e seu ex-namorado Estevão; de outro, é articulador de sua própria causa sem que o
amigo o saiba. A reação da jovem é a de comparar ambos os pretendentes e não se
afeiçoar por nenhum, conforme vemos no capítulo XVIII:

Dos dois homens que lhe queriam, nenhum lhe falava à alma;
ela sentia que Estêvão pertencia à falange dos tíbios, Jorge à
tribo dos incapazes, duas classes de homens que não tinham com
ela nenhuma afinidade eletiva. Não igualava, decerto, os dois
pretendentes; um era simplesmente trivial, outro sentimental
apenas; mas nenhum deles capaz de criar por si só o seu destino.
Se os não igualava, também os não via com os mesmos olhos;
Jorge causava-lhe tédio, era um Diógenes de espécie nova;
através da capa rota da sua importância, via-se-lhe palpitar a
triste vulgaridade. Estêvão inspirava-lhe mais algum respeito;
era uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, não para
vencer, uma espécie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem
asas para voar até lá. O sentimento de Guiomar em relação a
Estêvão não podia nunca chegar ao amor; tinha muito de
superioridade e perdão.
Com outra índole, aspirações diferentes e vivida em
diversa esfera, amá-lo-ia com certeza, do mesmo modo que ele a
amava. Mas a natureza e a sociedade deram-se as mãos para a
desviar dos gozos puramente íntimos. Pedia amor, mas não o
quisera fruir na vida obscura; a maior das felicidades da terra
seria para ela o máximo dos infortúnios, se lha pusessem num
ermo. Criança, iam-lhe os olhos com as sedas e as jóias das
mulheres que via na chácara contígua ao pobre quintal de sua
65

mãe; moça, iam-lhe do mesmo modo com o espetáculo brilhante


das grandezas sociais. Ela queria um homem que, ao pé de um
coração juvenil e capaz de amar, sentisse dentro em si a força
bastante para subi-la aonde a vissem todos os olhos.
Voluntariamente, só uma vez aceitara a obscuridade e a
mediania; foi quando se propôs a seguir o ofício de ensinar;
(ASSIS, 2008, p. 365)

Entre natureza e sociedade, infância e mocidade, obscuridade e grandeza social,


o caráter de Guiomar se indispõe ao binarismo dos pretendentes, visto que nenhum dos
dois corresponde ao seu projeto de casamento. Um pouco acima, quando Luís Alves a
elogia, o espírito de Guiomar lança-se entre a curiosidade e a gratidão:

As últimas palavras de Luís Alves eram singularmente dispostas


para deixar sulco profundo na memória da moça. Não era uma
declaração de amor, nem uma cortesania de sala, coisas todas
que ela ouvira muita vez, que podiam lisonjeá-la, e decerto a
lisonjeavam; era mais que um cumprimento e não chegava a ser
uma declaração. Comoção, não a havia na voz do advogado;
firmeza, sim, e um ar de convicção profunda. Guiomar olhou
para ele quase sem dar pela presença de Jorge; mas Luís Alves
voltara-se para o recém-chegado e falava-lhe em tom jovial,
bem diferente daquele que empregara pouco antes.

Posteriormente, após Luís Alves revelar seu amor à jovem, é que ela encontra
em seu espírito uma outra possibilidade de, para além dos dois pretendentes, realizar
seus desejos de casamento:

Guiomar amava deveras. Mas até que ponto era involuntário


aquele sentimento? Era-o até o ponto de lhe não desbotar à
nossa heroína a castidade do coração, de lhe não diminuirmos a
força de suas faculdades afetivas. Até aí só; daí por diante
entrava a fria eleição do espírito. Eu não a quero dar como uma
alma que a paixão desatina e cega, nem fazê-la morrer de um
amor silencioso e tímido. Nada disso era, nem faria. Sua
natureza exigia e amava essas flores do coração, mas não havia
esperar que as fosse colher em sítios agrestes e nus, nem nos
ramos do arbusto modesto plantado em frente de janela rústica.
Ela queria-as belas e viçosas, mas em vaso de Sèvres, posto
sobre móvel raro, entre duas janelas urbanas, flanqueado o dito
vaso e as ditas flores pelas cortinas de caxemira, que deviam
arrastar as pontas na alcatifa do chão.
Podia dar-lhe Luís Alves este gênero de amor? Podia; ela sentiu
que podia. As duas ambições tinham-se adivinhado, desde que a
intimidade as reuniu. O proceder de Luís Alves, sóbrio, direto,
66

resoluto, sem desfalecimentos, nem demasias ociosas, fazia


perceber à moça que ele nascera para vencer, e que a sua
ambição tinha verdadeiramente asas, ao mesmo tempo que as
tinha ou parecia tê-las o coração. Demais, o primeiro passo do
homem público estava dado; ele ia entrar em cheio na estrada
que leva os fortes à glória. Em torno dele ia fazer-se aquela luz,
que era a ambição da moça, a atmosfera que ela almejava
respirar. Estêvão dera-lhe a vida sentimental, — Jorge a vida
vegetativa; em Luís Alves via ela combinadas as afeições
domésticas com o ruído exterior.

Neste romance, o discurso indireto livre parece funcionar de modo mais intenso
do que o anterior, conforme podemos ver no gráfico 4:
67

GRÁFICO 4: DISCURSO INDIRETO LIVRE E MONÓLOGO INTERIOR EM A MÃO E A LUVA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


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Vemos a predominância do discurso indireto livre nos capítulos III, VI, IX, XIII,
XVI e XVII.
O capítulo III, intitulado Ao Pé da Cerca, continuando a cena do capítulo
anterior, narra o momento em que Estevão observa uma moça andando do outro lado da
cerca até reconhecer que ela é sua antiga namorada Guiomar e, após identificá-la, dá
ensejo ao diálogo entre ambos. Dominando a primeira parte do capítulo, o discurso
indireto livre intercala-se com a diégese no processo de visualização e descrição da
moça. Contudo, a percepção é oferecida pelo olhar de Estevão e narrada no discurso do
narrador, produzindo a polifonia discursiva, visto que, ao mesmo tempo, o leitor tem
acesso às sensações que a observação causa no rapaz.
O capítulo VI, intitulado O Post-Scriptum, de todos capítulos, é o que tem a
maior ocorrência desse procedimento. Ele narra o momento logo após o encontro dos
dois antigos namorados, em que o discurso indireto livre traduz as sensações causadas
em Estevão pelo reencontro com Guiomar.
O capítulo IX, intitulado A Conspiração, narra o momento em que a baronesa
flagra Guiomar e Estevão conversando novamente na cerca, após um jantar dado na
casa dela. Sem saber que, como narra o anterior, Estevão, ao tentar reatar o
relacionamento com Guiomar, recebe uma negativa dela, a baronesa rapidamente se
articula com o sobrinho Jorge para preparar o casamento dos dois. O discurso indireto
livre funciona neste capítulo para evidenciar o contraste entre a interioridade de
Guiomar, que se mostra indiferente a qualquer tentativa de relacionamento, como a de
Jorge que, após conversar com sua tia, começa a se empolgar com a possibilidade de
casar-se com Guiomar.
O capítulo XIII, intitulado Explicações, narra o diálogo entre Guiomar e Luís
Alves, momento em que expressa a admiração pela moça, mas sem afirmar qualquer
outro sentimento. Nesse sentido, o discurso indireto livre funciona como forma de
evidenciar ao leitor a dúvida que a manifestação de Luís Alves havia causado no
espírito de Guiomar. É a primeira investida afetiva do advogado sobre a moça.
O capítulo XVI, intitulado A Confissão, narra o momento em que Luís Alves
resolve confessar ao amigo Estevão que Guiomar não tinha interesse por ele e estava
apaixonada por outro. Sequencialmente, os dois blocos de discurso indireto livre
mostram duas perspectivas diferentes sobre o mesmo tema: o conflito interno de Luís
Alves em revelar ao amigo que Guiomar estava apaixonada por Luís Alves e o sonho
69

que ainda alimentava Estevão de conseguir conquistar, com a ajuda do amigo, o coração
da moça.
Por fim, o capítulo XVII, intitulado A Carta, narra a continuação do anterior, no
qual o leitor é informado sobre o conteúdo da carta que Luís Alves recebeu e sua
decisão em pedir à baronesa Guiomar em casamento, bem como o momento conflituoso
que Guiomar vivencia entre escolher Jorge, que a pediria à tia na noite anterior, e saber
se o advogado iria ou não pedi-la em casamento. O discurso indireto livre intercala nas
duas cenas o momento anterior e posterior, respectivamente, das ações tomadas pelas
personagens, isto é, o momento anterior a Luís enviar a carta com o pedido à baronesa e
o momento posterior à atitude de Guiomar de solicitar a Luís Alves que a peça como
esposa.
Embora percentualmente o monólogo não seja expressivo na narrativa, é curioso
como metade das oito ocorrências traduz o pensamento da personagem Estevão que,
além do fato de, entre todas as personagens, ser o mais estranho ao ambiente da casa da
baronesa, à medida que o drama se desenvolve, afasta-se cada vez mais, até culminar no
rompimento completo em que descobre que seu amigo Luís Alves o traíra. Se a negativa
ao pedido de Jorge o faz perder Guiomar, a proximidade se mantém, visto ser ele
sobrinho da baronesa. Se Mrs. Oswald não consegue realizar seu projeto de casar Jorge
com Guiomar, esta também mantém-se na casa, visto ser dama de companhia da
baronesa. O mesmo não acontece com Estevão que, embora a narrativa inicie contando
o drama amoroso entre ele e Guiomar, o qual tenta retomar dois anos mais tarde, aos
poucos a personagem é afastada do ambiente, até o rompimento completo com Luís
Alves. O que se confirma quando ele acompanha de longe o casamento da amada com o
amigo traidor. É revelador o último monólogo interior do romance, no capítulo XI,
referir-se a Estevão, não apenas por ser o último do romance, mas pelo conteúdo
manifesto como podemos ver a seguir:"Não tenho outro recurso", pensou ele; "é
necessário que morra. É uma dor só, e é a liberdade". (ASSIS, 2008, p. 357)
Diferentemente de Ressurreição, neste romance esses procedimentos com as metalepses
garantem a riqueza de informação e de dramaticidade da narrativa. Contudo, antes de
vermos como funcionam esses outros procedimentos neste romance, continuemos com
nosso exame das cenas nos outros romances.
70

GRÁFICO 5: DIÉGESE E MIMESE EM HELENA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


71

O romance Helena foi publicado primeiramente em 35 folhetins, entre os meses


de agosto e setembro de 1876, no jornal O Globo, sendo lançado como livro em
outubro de 1876. É um romance escrito a pedido de Quintino Bocaiúva, conforme
informa Ubiratan Machado. Diferentemente dos anteriores, neste, o autor não escreve
prefácio identificando o objetivo da narrativa. Sem dúvida, dos quatro primeiros
romances, este é composto com maior densidade dramática. Conforme o gráfico 3,
comparado aos anteriores, vemos como a mimese predomina em vários momentos em
relação à diégese. De estrutura temporal linear, apenas em algumas pausas descritivas
ou caracteriológicas de algumas personagens é que o narrador fala sobre algo anterior
ao momento da história narrada. Exceção apenas, conforme pontuado no começo, aos
capítulos XXV e XXVI, quando, por meio da voz de Salvador, podemos saber do
passado de Helena e de seus pais. O começo, tal qual o anterior, domina a diégese
como forma de garantir a movimentação na introdução da narrativa.
Diferentemente dos outros romances, em Helena Machado explora o suspense.
Ele insere na narrativa uma personagem, cujo único histórico foi o de ter sido
reconhecida como filha do Conselheiro Vale em seu testamento ou, como definiu D.
Úrsula, uma intrusa, sem nenhum direito ao amor dos parentes. Conforme informa o
narrador no final do capítulo IV, Helena é uma personagem misteriosa:

Helena tornara-se o acontecimento do bairro; seus ditos e


gestos eram o assunto da vizinhança e o prazer dos
familiares da casa. Por uma natural curiosidade, cada um
procurava em suas reminiscências um fio biográfico da
moça; mas do inventário retrospectivo ninguém tirava
elementos que pudessem construir a verdade ou uma só
parcela que fosse. A origem da moça continuava misteriosa
vantagem grande, porque o obscuro favorecia a lenda, e cada
qual podia atribuir o nascimento de Helena a um amor
ilustre ou romanesco, — hipóteses admissíveis, e em todo o
caso agradáveis a ambas as partes. (ASSIS, 2008, p. 405)

Vemos que Helena, à medida que conquista seu espaço na casa e no bairro da
família do Conselheiro, torna-se uma figura misteriosa, quase lendária, da qual o
narrador tira proveito. Conforme vemos no gráfico 3, indubitavelmente, a força do
romance está concentrada nos capítulos XXV e XXVI, nos quais a mimese domina
respectivamente 95% e 96%. Abriga, sem dúvida alguma, toda informação que
permitirá, nos capítulos anteriores, ao narrador explorar o suspense. Assim, podemos
72

verificar os capítulos nos quais a mimese tem certa expressividade. São eles:

Os capítulos VI e VII: Nos dois, a mimese domina respectivamente 50% e 57%. O


primeiro relata a cena em que Helena pede para Estácio ensinar-lhe a cavalgar e, depois
de mostrar domínio sobre o cavalo, ambos saem a passear. Neste passeio é que aparece
pela primeira vez a casa com a bandeira azul, na qual, saberemos posteriormente, mora
o pai de Helena, Salvador. O segundo relata a conversa entre Estácio e D. Úrsula, na
qual o rapaz manifesta à tia preocupação com Helena por ter percebido nela uma certa
amargura, é também o capítulo em que o médico Dr. Camargo vem propor a Estácio
que este se torne deputado.
No início do capítulo VI, antes de os dois irmãos irem andar a cavalo, acontece
um diálogo entre Estácio, Helena e D. Úrsula sobre a carta que o rapaz recebeu de seu
amigo Mendonça. Ao propor às duas mulheres uma viagem à Europa, D. Úrsula retruca
dizendo que já está velha e que dali seguirá para a cova. Helena, ao ouvir isso, rebate
afirmando que a tia ainda está forte, tão forte que pode ser que ela enterre Helena
primeiro (ASSIS, 2008, p. 409). Sem dúvida o efeito de sentido dessa mimese é um
efeito de prolepse, isto é, antecipar o que vem pela frente. Outro diálogo interessante de
cunho mais ideológico é o debate entre Estácio e Helena sobre a importância da riqueza.
Segue:

— Valem muito os bens da fortuna, dizia Estácio; eles dão a


maior felicidade da terra, que é a independência absoluta.
Nunca experimentei a necessidade; mas imagino que o pior
que há nela não é a privação de alguns apetites ou desejos,
de sua natureza transitórios, mas sim essa escravidão moral
que submete o homem aos outros homens. A riqueza compra
até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que nos
coube. Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo
trajeto que nós, terá de gastar, a pé, mais uma hora ou quase.
O preto de quem Estácio falara, estava sentado no capim,
descascando uma laranja, enquanto a primeira das duas
mulas que conduzia, olhava filosoficamente para ele. O preto
não atendia aos dois cavaleiros que se aproximavam. Ia
esburgando a fruta e deitando os pedaços de casca ao
focinho do animal, que fazia apenas um movimento de
cabeça, com o que parecia alegrá-lo infinitamente.
Era homem de cerca de quarenta anos; ao parecer, escravo.
As roupas eram rafadas; o chapéu que lhe cobria a cabeça,
tinha já uma cor inverossímil. No entanto, o rosto exprimia a
plenitude da satisfação; em todo o caso, a serenidade do
73

espírito.
Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmão lhe
mostrara. Ao passarem por ele, o preto tirou
respeitosamente o chapéu e continuou na mesma posição e
ocupação que dantes.
— Tem razão, disse Helena; aquele homem gastará muito
mais tempo do que nós em caminhar. Mas não é isto uma
simples questão de ponto de vista? A rigor, o tempo corre do
mesmo modo, quer o desperdicemos, quer o economizemos.
O essencial não é fazer muita coisa no menor prazo; é fazer
muita coisa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais
aprazível é, talvez, esse mesmo caminhar a pé, que lhe
alongará a jornada, e lhe fará esquecer o cativeiro, se é
cativo. É uma hora de pura liberdade. (pp. 413-414)

O capítulo XII: Embora percentualmente menor que os outros, a mimese corresponde a


48%, maior que qualquer outro procedimento da narrativa neste capítulo. Nele, relata-se
o jantar de comemoração do aniversário de Estácio e, mais especificamente o diálogo
entre Helena e Dr. Camargo. Este, sabendo da importância que a moça passa a ter no
espírito do irmão, tenta dissuadi-la de convencer Estácio que peça a mão de Eugênia,
filha do médico, em casamento. No final do diálogo, quando ambos voltam para a festa,
Dr. Camargo revela à jovem saber da suas visitas à casa de bandeira azul, como segue:

Helena olhou ainda uma vez para o médico.


— Dá-me o seu braço até à sala? perguntou.
Camargo sorriu.
— Só isso? Eu dizia comigo outra coisa.
— Que dizia então? perguntou Helena.
— Dizia que muito se devia esperar da dedicação de uma
moça, que acha meio de visitar às seis horas da manhã uma
casa velha e pobre, não tão pobre que a não adorne
garridamente uma flâmula azul...
Helena fez-se lívida; apertou nervosamente o pulso de
Camargo. Nos olhos pareciam falar-lhe ao mesmo tempo o
terror, a cólera e a vergonha. Através dos dentes cerrados
Helena gemeu esta palavra única:
— Cale-se!
— Falo entre nós e Deus, disse Camargo.
Uma onda de sangue invadiu a face da moça, com a mesma
rapidez com que ela lhe empalidecera. Helena quis erguer-
se, mas sentiu-se exausta. Ninguém da sala pôde perceber a
impressão e o movimento; ninguém olhava para ali.
Camargo, entretanto, inclinou-se para Helena e proferiu
algumas palavras de animação, que ela interrompeu,
murmurando com amargura:
74

— O senhor é cruel!
— Sou pai, respondeu o médico; pai extremoso e discreto,
mais discreto ainda que extremoso. Conto com a senhora. (p.
439)

O capítulo XV: A mimese corresponde a 61% das palavras do capítulo e trata da


viagem a Rio Comprido, que Estácio fará acompanhando a família da noiva. A viagem é
devida ao fato de a madrinha de Eugênia encontrar-se gravemente doente e, por questão
de conveniência, Dr. Camargo ver-se obrigado a visitá-la. Sem outra expressividade no
que se refere à trama narrativa principal, isto é, o mistério que envolve a origem de
Helena, a mimese tem peso por conta da carta que o rapaz envia para ela.

O capítulo XVIII: A mimese, que corresponde a 60%, estabelece o diálogo entre


Estácio e Helena na primeira parte e, na segunda, entre Estácio e o padre Melchior.
Este, tendo de voltar às pressas de Rio Comprido por conta da carta do amigo
Mendonça, anunciando seu casamento com Helena, questiona a irmã sobre a seriedade
da promessa. Na segunda parte, tratando do mesmo assunto, dialoga com o padre sobre
essa promessa de casamento entre a irmã e o amigo.

O capítulo XXIII: Correspondendo a mimese a 57% do total de palavras do capítulo, a


dramaticidade dá-se pelo fato de o padre Melchior denunciar Estácio a ele mesmo,
fazendo com que este reconheça o amor incestuoso que sente por Helena.

Esses capítulos apresentados estão direta e indiretamente ligados à mimese dos


capítulos XXV e XXVI. Neles, a mimese funciona como potencializadora do suspense
que prepara a narrativa para seu grand finale. Não queremos, com isso, afirmar que
apenas nestes capítulos ou que apenas a mimese é que prepara o suspense da narrativa.
Pelo contrário, o que pontuamos é a potência dada a sua dramaticidade no momento em
que, ao permitir uma maior sequência de diálogo, o narrador faz a mimese funcionar
nestes capítulos como tensão necessária a encaminhar a curiosidade do leitor aos dois
capítulos já comentados.
Por sua vez, a diégese funciona neste romance como procedimento que garante o
movimento narrativo, conforme observado por Genette. Contudo, e para além desta
função própria, a diégese tem outra relevância, que é a de esconder e a de revelar.
Conforme podemos ver no capítulo VIII, misturada com uma dose de discurso indireto
75

livre, a diégese esconde o drama que se passa no espírito de Helena, à medida que foca
em Estácio:

No dia seguinte de manhã, informado de que a tia dormia


sossegadamente, Estácio abriu uma das janelas do quarto e
relanceou os olhos pela chácara. A alguns passos de
distância, entre duas laranjeiras, viu Helena a ler
atentamente um papel. Era uma carta, longa de todas as suas
quatro laudas escritas. Seria alguma mensagem amorosa?
Esta ideia molestou-o muito. Afastou-se da janela, conchegou
as cortinas, e pela fresta procurou observar a irmã. Helena
estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as
linhas, até ao final da última página. Ali chegando, deu dois
passos, tornou a parar, volveu ao princípio da carta, para a
ler de novo, não já depressa, mas repousadamente. Estácio
sentiu-se movido de imperiosa curiosidade, à qual vinha
misturar-se uma sombra de despeito e ciúme. (p. 423)

Por outro lado, revela ao leitor as reais intenções do Dr. Camargo em relação ao
futuro da filha com Estácio. Se, como afirma Genette, o discurso narrativizado é o
estado mais distante e mais redutor, nem por isso perde sua força significativa.
Conforme podemos verificar nos capítulos I, XIV e XXVIII, Dr. Camargo dá um beijo
em sua filha como esperança do futuro planejado por ele. Vejamos o final do capítulo
primeiro:

Camargo tornou a fitá-la com desusada ternura; a fronte


sombria pareceu alumiar-se de uma irradiação interior. A
moça sentiu-se enlaçada nos braços dele; deixou-se ir. Mas a
expansão era tão nova, que ela ficou assustada e perguntou
com voz trêmula:
— Aconteceu lá alguma coisa?
— Absolutamente nada, respondeu Camargo, dando-lhe um
beijo na testa.
Era o primeiro beijo, ao menos o primeiro de que a moça
tinha memória. (p. 394)

Vejamos agora o segundo beijo na primeira parte do capítulo XIV:

Daquele sonho foi despertada pelo pai, que lhe imprimiu na


testa o seu segundo beijo. O primeiro, como o leitor se há de
lembrar, foi dado na noite da morte do conselheiro. O
terceiro seria provavelmente no dia em que ela casasse.
(p.443)
76

Por fim, no final do capítulo XXVIII, o terceiro beijo que conclui o romance:

Ao mesmo tempo, na casa do Rio Comprido, a noiva de


Estácio, consternada com a morte de Helena, e aturdida com
a lúgubre cerimônia, recolhia-se tristemente ao quarto de
dormir, e recebia à porta o terceiro beijo do pai.(p. 505)

Como a dividir o livro em três partes focadas na motivação interesseira do Dr.


Camargo, a diégese a relatar os três beijos do pai na filha o faz de forma redutora e, por
isso mesmo, representativa.
Por fim, cabe observar o papel de dramaticidade que a diégese desempenha no
último capítulo. Toda a dramaticidade produzida pela mimese como suspense nos
capítulos pontuados acima nos capítulos XXV e XXVI, sendo que, neste último, em que
a diégese domina 78% do total de palavras, serve como estuário para dar o acabamento
final do drama de Helena.
77

GRÁFICO 6: DISCURSO INDIRETO LIVRE E MONÓLOGO INTERIOR HELENA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


78

Conforme vemos no gráfico 6, o discurso indireto livre tem relevância em quatro


capítulos: II, VIII e XIV.
O capítulo II narra o momento em que o testamento do Conselheiro Vale é
aberto para a família e ela fica sabendo que este reconheceu a paternidade de Helena.
Tratando do mesmo assunto - o reconhecimento de Helena e a aceitação dela na casa - o
discurso indireto livre nesse capítulo funciona para evidenciar duas perspectivas ou
reações distintas: a da D. Úrsula, irmã do falecido, que fica indignada não apenas por
saber das licenciosidades do Conselheiro, mas, sobretudo, por considerar usurpação esse
reconhecimento. Em Estácio, a impressão se dá de forma oposta à da tia, seu espírito
determinava-lhe apenas, diante da nova situação, concretizar a última vontade de seu
pai.
O capítulo VIII, narra o momento em que Estácio, observando a irmã no jardim
pela janela de seu quarto, a vê lendo uma carta. Esta cena o faz desconfiar que talvez
fosse a de um pretendente o que lhe provoca ciúme. Levado pela curiosidade, vai ter
com a irmã para, de modo discreto, saber do que se tratava e, embora a irmã lhe ofereça
a carta para que ele a leia, prefere manter-se na curiosidade do que agir com indiscrição.
Para além da dúvida provocada na personagem, o discurso indireto livre neste capítulo
contribui para acentuar o suspense narrativo sobre o passado de Helena.
O capítulo XIV narra duas cenas distintas, mas ambas focadas na família do
médico Dr. Camargo. É o capítulo em que Dr. Camargo dá o segundo beijo em sua filha
Eugênia e para o qual o discurso indireto livre funcionará como forma de
contextualização do jogo interesseiro do médico em casar a filha com Estácio. Para
tanto, o discurso indireto livre opera uma analepse que permite o leitor saber os
movimentos e preocupações anteriores sobre o futuro da filha que levaram Dr. Camargo
a investir nesse relacionamento. Em um desses momentos, seus pensamentos e projetos
são expressos do seguinte modo:

Esta dupla vitória foi o momento máximo da vida do médico.


Ele ouvia já o rumor público; sentia-se maior, — antegostava
as delícias da notoriedade, — via-se como que sogro do
Estado e pai das instituições. (ASSIS, 2008, p. 445)

Os verbos marcados, identificados por Bechara como sensitivos, conjugados no


pretérito imperfeito funcionam como não marcado e extensivo e, portanto, no exemplo
79

acima, como projeção subjetiva de um futuro do pretérito, exprimindo tanto um fato


categórico projetado, bem como a segurança do falante.42Deste modo, a projeção
subjetiva feita dos sonhos do médico quanto ao futuro da filha e a carreira política do
pretendido genro, faz com que a narrativa projete em forma de discurso indireto livre,
marcado gramaticalmente, a subjetividade da personagem. A cena seguinte narra a
notícia que o médico recebe sobre o estado de saúde da madrinha de Eugênia, uma
senhora fazendeira rica. Em forma de discurso indireto livre, Camargo manifesta seus
pensamentos sobre a necessidade de viajar para Cantagalo, de modo a garantir que sua
filha seja incluída no testamento da madrinha.

42 Em sua Moderna Gramática Portuguesa, Evanildo Bechara observa que, diferentemente do pretérito
mais-que-perfeito e do chamado condicional presente na forma simples, o pretérito imperfeito, como
ensina Coseriu, é um membro não marcado, extensivo. Logo, a sua variedade e ambivalência na
atividade do discurso, podendo funcionar, entre outras possibilidades, substituindo o futuro do
pretérito, quando se quer exprimir fato categórico ou a segurança do falante (BECHARA, 2001, p.
277-278)
80

GRÁFICO 7: DIÉGESE E MIMESE IAIÁ GARCIA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


81

O romance Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis, publicado


primeiramente em 38 folhetins de O Cruzeiro, entre janeiro e março de 1878, e como
livro no mesmo ano.
Como se observa no gráfico 7, a diégese predomina em quase todos os dezesseis
capítulos do livro, apresentando um efeito de ritmo interessante e bem diferente dos
outros romances. Podemos observar visualmente o modo como a diégese cresce
percentualmente no gráfico, formando três relevos distintos ou, se melhor quisermos,
podemos visualizar o gráfico de outro modo como abaixo:

GRÁFICO 8: DIEGESE - IAIÁ GARCIA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor

Este gráfico evidencia um desenho em que a narrativa, por meio da diégese, fosse como
que dividida em três partes, sendo a primeira parte do capítulo I ao V, seguido de uma
planície que se estende do V até o VII, onde a diégese encontra seu ponto mais baixo;
do VIII ao XIV, mostrando uma pequena variação do XI ao XIV; e a parte que vai do
XIV ao XVI. Se observarmos este mesmo desenho com a mimese, a narrativa parece
apresentar-se por quatro partes, como segue:

GRÁFICO 9: MIMESE - IAIÁ GARCIA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


82

No caso da mimese, a primeira parte vai do capítulo I até o IV; a segunda, do capítulo
IV ao IX; a terceira, do capítulo IX ao XV; e, por fim, a quarta parte, do capítulo XV ao
XVII. Obviamente, esse efeito de ritmo na forma da narrativa não é gratuito, mas
determinante na história do romance. Nesse sentido, podemos dividir o conteúdo da
narrativa em quatro partes:

Primeira parte: Do capítulo I, quando a mãe de Jorge, D. Valéria, chama o amigo do


falecido marido, Luís Garcia, para ir à sua casa e pede-lhe que convença Jorge a ir a
guerra como forma dee evitar que o filho se envolva afetivamente com Estela, a
agregada da família, até o final do IV, quando Jorge segue para lutar na guerra do
Paraguai.

Segunda parte: Do capítulo V até o VI, a relatar dois acontecimentos concomitantes: o


período em que Jorge vivencia como capitão a guerra do Paraguai (capítulo V) e o
casamento de Estela e Luís Garcia arquitetado pela mãe do Jorge, D. Valéria (capítulo
VI).

Terceira parte: Parte mais extensa da narrativa que vai do capítulo VII até o XV, os
quais tratam da volta de Jorge ao Rio de Janeiro, sua proximidade com a família de Luís
Garcia, a mediação que Jorge faz entre Procópio Dias e Iaiá Garcia e o primeiro conflito
entre a moça e sua madrasta Estela.

Quarta parte: Do capítulo XV ao XVII, desenvolve-se a paixão entre Jorge e Iaiá


Garcia, o segundo conflito entre Iaiá e a madrasta até à conclusão final, que se dá com a
morte de Luís Garcia e o casamento de Jorge e Iaiá Garcia.
83

GRÁFICO 10: DISCURSO INDIRETO LIVRE E MONÓLOGO INTERIOR IAIÁ GARCIA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


84

Como podemos verificar no gráfico 10, e considerando o romance dividido em


quatro partes, a maior ocorrência do discurso indireto livre dá-se nas três últimas partes,
isto é, nos capítulos VI, IX, XIV, XV e XVII.
O capítulo VI narra o esforço de Valéria em garantir que Estela não case com
seu filho, caso este volte logo da guerra do Paraguai. Para tanto, ela busca reaproximar-
se da moça, cedendo-lhe um dote e, conseguindo a aproximação, tentando convencê-la
de contrair um matrimônio o quanto antes, desejo que acontecerá com o casamento
entre Estela e Luís Garcia. O discurso indireto livre desenvolve-se neste capítulo,
identificando tanto o cálculo de Valéria, bem como, no final do capítulo, a tranquilidade
por acreditar que possivelmente Jorge já teria esquecido da moça, como também,
identificando o drama interior de Estela diante da notícia do dote e também da
possibilidade de casar-se com Luís Garcia.
Os capítulos IX, XIV e XV pertencem à terceira parte da romance conforme
observado anteriormente. Neles o discurso indireto livre, intercalados
predominantemente nas personagens Estela, Iaiá Garcia e Jorge, evidenciam o conflito
individual nessas três personagens, tendo como tema desse procedimento o amor no
passado entre Jorge e Estela e o amor no presente entre Jorge e Iaiá Garcia. Neste
sentido, o discurso indireto livre prepara terreno para o conflito real entre as três
personagens, conflito responsável pela dramaticidade deste romance.
O capítulo XVII, última parte do romance, encena o desfecho do conflito entre
as três personagens. Nele, o discurso indireto livre, acentuado pelos atritos ocorridos
nos capítulos anteriores, funciona como um fechamento desse conflito, como podemos
ver no exemplo a seguir:

Posto visse dissipada a tempestade que lhe negrejara sobre a


cabeça, Iaiá enxergava ainda para o lado do poente um espectro,
e para o lado do nascente uma possibilidade. Esses dois pontos
negros vinham conspurcar a beleza azul do céu e torná-lo
pesado e melancólico. O mistério do futuro unia-se ao mistério
do passado; um e outro podiam devorar o presente, e ela receava
ser esmagada entre ambos. A convivência da família aterrava-a.
Que seria para ela o casamento, se tivesse de penetrar nele com
a perpétua ameaça diante dos olhos, uma antiga semente de
amor, que a primeira brisa da primavera podia fazer brotar e
crescer de novo? Acreditava na isenção presente da madrasta, e
na inteira cura do marido, mas o futuro? A beleza de Estela
estava ainda longe do declínio, e a moléstia de Iaiá fazia-a
85

persuadir de que, ainda no declínio, seria superior à sua.


(ASSIS, 2008, p. 620)

Uma característica determinante no modo de composição dos romances


posteriores à Iaiá Garcia ou, conforme os identifica a opinião comum da crítica
machadiana, os romances da segunda fase, é a repartição dos capítulos. Memórias
Póstumas de Brás Cubas contém cento e sessenta capítulos; Quincas Borbas contém
duzentos e um capítulos e Dom Casmurro, cento e quarenta e oito capítulos.43
Comparados com os dois primeiros, estes três romances correspondem ao dobro de
palavras, porém, o número de capítulos - praticamente oito vezes mais - faz com que
sejam menores. Desse modo e para ficar materialmente mais perceptível, apresentamos
o seguinte quadro:

TABELA 2 - Quadro geral dos sete romances por números de palavras


TOTAL DE TOTAL PALAVRAS POR
PALAVRAS CAPÍTULOS CAPÍTULOS
RESSURREIÇÃO 35.576 24 1.482

A MÃO E A LUVA 24.405 19 1.284

HELENA 55.136 28 1.969

IAIÁ GARCIA 57.133 17 3.360

MEMÓRIAS 59.791 160 374


PÓSTUMAS
QUINCAS BORBAS 75.500 201 376

DOM CASMURRO 65.056 148 440

43 Embora, conforme já afirmamos acima, para não estender estas análises, não abordaremos os
romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires, apenas para confirmar nossa informação cabe dizer que o
primeiro tem cento e vinte um capítulos e o último romance machadiano é divido por datas, dia da
semana ou horas de modo aleatório de 9 de janeiro de 1888 a 30 de agosto de 1889, aproximadamente
algo corresponde a cento e sessenta e oito capítulos.
86

O quadro nos mostra que uma radical mudança na narrativa machadiana a partir
de Memórias Póstumas de Brás Cubas dá-se no modo de disposição tipográfica da
narrativa, isto é, em um número oito vezes maior de capítulos, o qual, obviamente, tem
impacto relevante na estruturação da narrativa e na organização dos procedimentos
retóricos. Podemos perceber esse impacto no fato de vários capítulos destes três livros
terem às vezes cem por cento de um determinado procedimento retórico.
Décio Pignatari, em sua obra Semiótica & Literatura, chama a atenção para a
tipografia na obra machadiana, sobretudo a partir de Memórias Póstumas de Brás
Cubas. Conforme o crítico, tendo sido a tipografia uma das primeiras funções exercidas
por Machado de Assis, ela se torna determinante no modo de composição dos romances
a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, isto é, a tipografia impregnou a estrutura
de alguns de seus romances mais importantes44. Ivan Teixeira vê nessa extensão dos
capítulos, bem como em suas formas breves e volubilidade do estilo, o traço artístico
decorrente da dinâmica do jornal45. Segundo Barreto Filho, em seu texto O Romance
Brasileiro: Machado de Assis, essa "forma livre" utilizada na composição dos capítulos
faz de Memórias Póstumas de Brás Cubas um romance "disforme", que funciona em
uma reação desordenada que trai o profundo ressentimento manifesto no último capítulo
intitulado Das Negativas 46. Não à toa, Capistrano de Abreu, em um artigo publicado na
Gazeta de Notícias, em 30 de janeiro de 1881, no qual trata desse romance, inicia o

44 É possível, não certo, que o tipógrafo Machado de assis tenha criado os tipos de ficção que a crítica
tradicional costuma atribuir-lhe - especialmente a sua famosa "galeria de tipos femininos"; mais
provável, porém, é que antes se tenha empenhado nos tipos gráficos que compõem a sua escritura -
primeiro como tipógrafoe depois como jornalista e escritor. Ou seja, não foi um escritor alienado do
medium que utilizava - a palavra impressa, mecânica e industrialmente - como a maioria dos escritores
automaticamente verbais, que não distinguem um Bodoni de um Garamond, ou sequer um tipo
serifado de um tipo sem-serifa.(PIGNATARI, 2004, p. 133)
45 É possível que esse tenha sido também o processo de produção do sentido artístico e social de
Quincas Borba, cujo entendimento talvez só se venha a completar depois da comparação entre as duas
versões da obra - a de Estação e a do volume. Mesmo que se considere apneas a versão da obra do
volume, julgo que o jornal possa contribuir com informes importantes para a decodificação primária
da mensagem. Conforme esse argumento, a pequena extensão dos capítulos - assim como a
preferência pela forma breve do conto - devem ser entendidas como traço característico decorrente da
dinâmica do jornal. Além disso, a imprensa teria igualmente sugerido a Machado de Assis a
volubilidade do estilo, que se deixa entender não necessariamente como sátira à suposta inconstância
das elites, mas sobretudo como apropriação do princípio fragmentário da ordenação da matéria -
próprio à diagramação das folhas. (TEIXEIRA, 2010, p. 38-39)
46 Brás Cubas é um livro disforme, que não vale nenhum dos que a ele se seguiram. Pode ter sobre
um único – Esaú e Jacó – a vantagem de uma cintilação e de um tumulto que falta a esse livro árido de
Machado. Essa cintilação, porém, como vimos, é muitas vezes de origem duvidosa, e não é capaz de
compensar-se com o estado de maturação e as linhas assentadas do outro. (FILHO, 2012, p. 9)
87

artigo perguntando se as Memórias Póstumas de Brás Cubas são de fato um romance,


identificando o romance nesta obra como simples acidente.
De qualquer modo, a mudança tipográfica desses romances demanda uma
abordagem diferente da que fizemos nos anteriores. Posto isso, ao invés de tratarmos da
diégese e mimese em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom
Casmurro, optamos por abordar outros procedimentos que parecem ser chave para
compreensão deles. A começar por Quincas Borba, pretendemos verificar, a partir do
discurso indireto livre e do monólogo interior neste romance, o funcionamento de
sentido desses procedimentos; em Dom Casmurro, o sumário e em Memórias Póstumas
de Brás Cubas, as metalepses.
88

IV - QUINCAS BORBA: A RETÓRICA DA LOUCURA.

O romance Quincas Borba, publicado primeiramente em A Estação, entre junho


de 1886 e setembro de 1891 e, alguns meses depois como livro, trata como tema o jogo
entre razão e loucura e, de modo paródico, as teses naturalistas em voga na época. A
história do professor Rubião, amigo e enfermeiro de Quincas Borba e, posteriormente,
herdeiro universal do filósofo, é efeito de uma produção narrativa que, como observa
José Luiz Passos, desenvolve um romance antinaturalista, pois, embora Rubião não seja
personagem de um romance de tese, é, nas palavras do crítico: "um herói que oscila
entre o determinismo e o livre-arbítrio; o rumo da sua vida passa a depender do modo
como o protagonista - o homem simplório - lida com o legado pecuniário e intelectual
do seu amigo filósofo." (PASSOS, 2007, p. 249).
Entre a desconstrução dos valores cientificistas e deterministas em voga no
século XIX - parodiados na filosofia do Humanitismo - e o jogo ficcional entre razão e
loucura, este romance narra, a partir do adágio "Ao vencedor as batatas", a ascensão
capitalista do professor Rubião, o qual, herdeiro universal de Quincas Borba, sai de
Barbacena para a capital do Império para desfrutar do seu novo status social, tornando-
se presa fácil das ambições sociais que regem as relações humanas ocidentais no século
XIX capitalista. A famosa tese de Herbert Spencer - A sobrevivência do mais apto -
resume o esforço do paralelo que este teórico busca traçar em sua obra Princípios da
Biologia de 1864 entre as suas ideias de economia e as teorias de Charles Darwin. As
teses evolucionistas de Darwin, aplicadas à sociologia, forneceram extenso material
para a literatura naturalista, sobretudo na França e no Brasil, dominante na segunda
metade do século XIX. O adágio machadiano - ao vencedor as batatas - dialoga em um
primeiro momento com as teses cientificistas, uma vez que condiciona o objeto (as
batatas) ao sujeito de uma vitória (ao vencedor). Contudo, o enunciado se sustenta em
uma polifonia de forma e sentido, à medida que opera um rebaixamento e uma redução.
Se, para os cientificistas, deterministas e naturalistas da época, a natureza do indivíduo
determina sua vitória ou derrota na disputa social, como sujeito ou objeto de um modelo
social fundado na ideia de progresso, herdeira do pensamento iluminista, seu
pressuposto se baseia na ideia de que o vencedor é alguém cuja prosperidade econômica
e social resulta de sua força natural, justificando por meio de uma suposta natureza as
desigualdades sociais e econômicas cada vez mais acentuadas na sociedade burguesa.
Em Machado, o vencedor tem como objeto da vitória algo associado à alimentação - daí
89

o rebaixamento - e momentâneo, isto é, o vencedor luta para conquistar as batatas,


comê-las e sair do local com força para buscar comida em outros lugares - daí a
redução. Deste modo, funcionando no romance como adágio alegórico, passa a ter
sentido para a personagem Rubião, quando este é declarado herdeiro universal de
Quincas Borba. Quando, anteriormente, o filósofo explica ao professor sua tese do
Humanitismo e anuncia o adágio, este não compreende muito bem a explicação e atribui
tal pensamento à loucura, conforme podemos ver:

Rubião mal sustinha o papel nos dedos. Passados alguns


segundos, advertiu que podia ser um gracejo do amigo, e
releu a carta; mas a segunda leitura confirmou a primeira
impressão. Não havia dúvida; estava doido. Pobre Quincas
Borba! Assim, as esquisitices, a frequente alteração de
humor, os ímpetos sem motivo, as ternuras sem proporção,
não eram mais que prenúncios da ruína total do cérebro.
Morria antes de morrer. Tão bom! Tão alegre! Tinha
impertinências, é verdade; mas a doença explicava-as.
Rubião enxugou os olhos, úmidos de comoção. Depois, veio a
lembrança do possível legado, e ainda mais o afligiu, por lhe
mostrar que bom amigo ia perder. (ASSIS, 2008c, p. 61)

A tese e o adágio que lhe fora difícil de compreensão passam a lhe fazer sentido,
após ser declarado herdeiro universal, como podemos ver no capítulo XVIII:

RUBIÃO e o cachorro, entrando em casa, sentiram, ouviram a


pessoa e as vozes do finado amigo. Enquanto o cachorro
farejava por toda a parte, Rubião foi sentar-se na cadeira
onde estivera quando Quincas Borba referiu a morte da avó
com explicações científicas. A memória dele recompôs, ainda
que de embrulho e esgarçadamente, os argumentos do
filósofo. Pela primeira vez, atentou bem na alegoria das
tribos famintas e compreendeu a conclusão: “Ao vencedor,
as batatas!”. Ouviu distintamente a voz roufenha do finado
expor a situação das tribos, a luta e a razão da luta, o
extermínio de uma e a vitória da outra, e murmurou
baixinho.
— Ao vencedor, as batatas!
Tão simples! tão claro! Olhou para as calças de brim surrado
e o rodaque cerzido, e notou que até há pouco fora, por
assim dizer, um exterminado, uma bolha; mas que ora não,
era um vencedor. Não havia dúvida; as batatas fizeram-se
para a tribo que elimina a outra a fim de transpor a
montanha e ir às batatas do outro lado. Justamente o seu
caso. Ia descer de Barbacena para arrancar e comer as
90

batatas da capital. Cumpria-lhe ser duro e implacável, era


poderoso e forte. E levantando-se de golpe, alvoroçado,
ergueu os braços exclamando:
— Ao vencedor, as batatas!
Gostava da fórmula, achava-a engenhosa, compendiosa e
eloquente, além de verdadeira e profunda. Ideou as batatas
em suas várias formas, classificou-as pelo sabor, pelo
aspecto, pelo poder nutritivo, fartou-se antemão do
banquete da vida. Era tempo de acabar com as raízes pobres
e secas, que apenas enganavam o estômago, triste comida de
longos anos; agora o farto, o sólido, o perpétuo, comer até
morrer, e morrer em colchas de seda, que é melhor que
trapos. E voltava à afirmação de ser duro e implacável, e à
fórmula da alegoria. Chegou a compor de cabeça um sinete
para seu uso, com este lema: AO VENCEDOR AS BATATAS.
Esqueceu o projeto do sinete; mas a fórmula viveu no
espírito de Rubião, por alguns dias: Ao vencedor as batatas!
Não a compreenderia antes do testamento; ao contrário,
vimos que a achou obscura e sem explicação. Tão certo é que
a paisagem depende do ponto de vista, e que o melhor modo
de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão. (p. 69-70)

O adágio, a ser repetido até o momento de sua morte, torna-se tema central e
orientador da narrativa desse romance. Tal qual o romance A Mão e a Luva, o escritor
carioca satiriza os valores filosóficos dominantes no Brasil Império e inventa uma tese
nos moldes do naturalismo cientificista para, a partir da sua aplicação ficcional, deslocá-
la da suposta natureza que determina a vida e o futuro dos homens, realocando-a nas
tramas sociais violentas que dão a tônica à vida econômica, política, afetiva e social de
sua época47. Com isso, repete seu modelo do romance de anti-tese como paródia
ficcionalmente bem estruturada. Nesse sentido, a loucura torna-se efeito dessa estrutura.
Como afirma Afonso Romano de Sant'Anna, o tema da loucura, nesta obra, dá-se de
modo complexo e insólito, pois mostra sua relatividade nas motivações da loucura,
estranhando os conceitos cotidianos às ideologias vigentes, por meio da operação em

47 Em minha dissertação de mestrado, Ideologia do Cotidiano e Saberes Sujeitados, ao analisar as sete


crônicas A + B, escritas entre 12 de setembro a 24 de outubro de 1886, publicadas no jornal Gazeta de
Notícias e assinadas com o pseudônimo João das Regras analisei o modo como Machado se apropria
das teses naturalistas e as desconstrói por meio da paródia. Mais especificamente, no final da primeira
crônica a personagem B pergunta à personagem A se ela crê na luta pela vida; ao confirmar sua
crença, a personagem B a interpela dizendo que na luta pela vida vence o mais forte ou o mais hábil e,
ao perguntar se a personagem A é forte, diante da negativa, aconselha então que seja hábil,
reproduzindo o discurso de Iago ao fidalgo veneziano Rodrigo: Mete dinheiro na bolsa. O acréscimo
na frase de Spencer, intercalando com a fala de Iago, provoca um deslocamento interessante no
diálogo, conforme pude mostrar, esvaziando os discursos naturalistas que tentam justificar as
desigualdades sociais para realocá-los no contexto de corrupção econômica e política tratado como
tema nessas crônicas. (SOUSA NETO, 2008, p. 47-56)
91

todos os níveis da estrutura narrativa48.


Entendendo a loucura como efeito temático desse enredo antinaturalista, o
discurso indireto livre e o monólogo interior, neste romance, têm papel fundamental
para determinar a dinâmica da estrutura narrativa. Como observa Marta de Senna, o
isolamento de Rubião, que se encontra cada vez mais encapsulado na loucura, permite
entender esse romance como uma ontologia do abandono49. Essa ontologia do
abandono é evidenciada com maior frequência pelos procedimentos do discurso
indireto livre e monólogo interior, comparado aos outros romances, uma vez que o
narrador, por meio do monólogo interior, traduz os estados de consciência das
personagens, evidenciando seus pensamentos inconsistentes e confusos e, por meio do
discurso indireto livre, cria uma simbiose entre o discurso da personagem e o do
narrador. Deste modo, o discurso indireto livre e o monólogo interior têm papel
significativo na produção de sentido desse romance50.
Conforme já observamos acima, o discurso indireto livre, porque não permite
identificar-se como discurso da personagem ou do narrador, torna-se polifônico,
fazendo com que a narrativa mantenha um equilíbrio entre o nível de informação e a
velocidade narrativa. Para além disso, a perspectiva polifônica permite uma maior
complexidade e profundidade da narrativa, uma vez que a estrutura do romance se
mantém em um intenso diálogo entre as vozes sociais de modo que as personagens
dialogam com outras vozes – sociais, culturais, filosóficas – para produzirem seus
discursos em perfeita igualdade – e, portanto, em constante disputa – com os discursos

48 Tanto em Plácido (Esaú e Jacó) quanto em Simão Bacamarte (O Alienista) como em Quincas
Borba e Brás Cubas a temática da loucura conjugada com a razão se entreabre de modo complexo e
insólito. Deixando de opor esses elementos como inconciliáveis, como quer o modelo ideológico, ele
mostra a relatividade de um e de outro, configurando a loucura da razão e as razões da loucura, sem
optar maniqueisticamente por um dos elementos em torno da barra, pois sabe que ambos os termos da
proporção estão contaminados por definições ideológicas das quais procura se afastar. O que faz,
então, é estranhar os conceitos cotidianos, a ideologia vigente. E esse estranhamento não sendo
esporádico, mas sistemático, acaba por se dar em todos os níveis da análise.(SANT'ANNA, 2012, p.
222)
49 Se o olhar de Sterne é mais zombeteiro, o de Machado, ainda que mediado pela lente da zombaria,
é mais sério. O tempo é outro, a filosofia é outra, e a ela Machado não poupa. Mas o isolamento de
Brás Cubas em relação aos que o cercam, a superficialidade de todas as suas relações - familiares,
sociais e amorosas - apontam para o mesmo tema: ninguém se comunica com ninguém e, por isso,
ninguém conhece ninguém. O isolamento de Rubião, maior porque progressivamente encapsulado na
loucura é de tal ordem que chega a permitir a possibilidade de se entender Quincas Borba como uma
"ontologia do abandono". (SENNA, 2008, p. 44)
50 Ressalte-se, antes do mais, que esse modo de "focalização interna" aparece em Quincas com maior
frequência que nos demais romances de Machado. E, acrescente-se, de imediato, que em tempos mais
fortes que os assinalados pelo crítico linguísta. Empregado em momentos de crise moral, psicológica
ou existencial de suas criaturas, como meio de criar simbiose entre personagem e narrador, o recurso
se apresenta com feição e intenções diferenciadas.(BARBIERI, 2003, p. 29)
92

já proferidos, de forma que manifestam seus pontos de vista e suas consciências acerca
da realidade inacabada e em constante transformação, conforma a concepção de
polifonia de Mikhail Bakhtin.51 Nesse sentido, a loucura em Quincas Borba é
tensionada pela polifonia resultante do jogo de vozes que se manifestam na narrativa
por meio do discurso indireto livre. Por sua vez, o monólogo interior, conforme Genette
observa, é a emancipação de qualquer patrocínio narrativo, pois, como discurso sem
auditor e não pronunciado, a personagem pode exprimir seus pensamentos mais
próximos do inconsciente sem ter de recalcá-los, subordinando-se às regras sociais de
convivência.
Conforme a narrativa, do capítulo I ao III, a história apresenta Rubião
capitalista; do capítulo IV ao XX, utilizando-se da analepse, retorna ao passado para
apresentar Rubião em Barbacena, onde cuida do amigo Quincas Borba. Este viaja ao
Rio de Janeiro e Rubião, incumbido de cuidar do cachorro na ausência do amigo, recebe
posteriormente a notícia da morte do filósofo e, por fim, torna-se herdeiro universal de
seus bens; do capítulo XXI ao XXVII, Rubião viaja para o Rio de Janeiro, conhece o
casal Palha e Sofia e estabelece amizade com eles, até, por fim, a narrativa retomar o
tempo presente do primeiro capítulo; do capítulo XXVIII ao LXXXII, Rubião começa a
estabelecer relações de amizade com Freitas, Carlos Maria, Major Siqueira, Dr.
Camacho; alimenta sua paixão por Sofia, e, por fim, o Major - interessado em casar
Rubião com sua filha D. Tonica - aconselha-o ao casamento, momento que marca a
primeira perturbação no espírito de Rubião, quando este se imagina aclamado como
Marquês de Barbacena. O capítulo LXXXII anuncia essa perturbação com o seguinte
enunciado: "E o espírito de Rubião pairava sobre o abismo" (p. 168); do capítulo
LXXXIII ao CXLVII, a narrativa acirra a paixão de Rubião por Sofia, e enuncia
algumas crises de ciúme que Rubião passa a sentir ao supor que Carlos Maria fosse
seu rival até o momento em que, ao cortar o cabelo nos moldes de Napoleão III,
Rubião passa a acreditar ser o próprio Napoleão; do capítulo CXLVIII ao CCI, narra-

51 Enquanto artista, Dostoievski não criava as suas ideias do mesmo modo que as criam os filósofos
ou cientistas: ele criava imagens vivas de ideia auscultadas, encontradas, às vezes adivinhadas por ele
na própria realidade, ou seja, ideias que já têm vida ou que ganham vida como ideia-força.
Dostoievski tinha o dom genial de auscultar o diálogo de sua época, ou, em termos mais precisos,
auscultar a sua época como um grande diálogo, de captar nela não só vozes isoladas mas antes de tudo
as relações dialógicas entre as vozes, a interação dialógica entre elas. Ele auscultava também as vozes
dominantes, reconhecidas e estridentes da época, ou seja, as ideias dominantes, principais (oficiais e
não-oficiais), bem como vozes ainda fracas, ideias latentes ainda não auscultadas por ninguém exceto
por ele e ideias que apenas começavam a amadurecer, embriões de futuras concepções do mundo".
BAKHTIN, 2008, pp. 100-101
93

se o processo de loucura de Rubião até seu retorno para Barbacena e sua morte.
Embora apresentemos essas divisões que marcam a narrativa, vale observar
que os acontecimentos seguem num continuum narrativo, mantendo as mesmas
personagens, locais e acontecimentos que se desdobram. Apenas em alguns
momentos, como do capítulo IV ao XX, o narrador opera a analepse para contar
como Rubião enriquecera; e do capítulo CXVII ao CXIX, o narrador interrompe a
narrativa para contextualizar a notícia do casamento de Maria Benedita e Carlos
Maria.
Os níveis narrativos - extradiegético e intradiegético - e os tipos de narrador -
heterodiegético, homodiegético e autodiegético - evidenciam as atitudes narrativas de
enunciação escolhidas pelo autor52. Como propõe o crítico francês, identificar o
romance como narrador em primeira ou terceira pessoa determina apenas a escolha
gramatical e não a atitude narrativa do narrador. Embora seja uma narrativa em terceira
pessoa, ao lermos o romance Quincas Borba, em vários trechos evidenciamos a
presença do narrador no processo narrativo, marcada pelos verbos e pronomes em
primeira pessoa. A identificação do autor/narrador torna-se polêmica quando este
assume ser o mesmo autor/narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas:

Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as


Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo
náufrago da existência, que ali aparece, mendigo, herdeiro
inopinado, e inventor de uma filosofia. Aqui o tens agora em
Barbacena. (ASSIS, 2008c, p. 50).

52 A escolha do romancista não é feita entre duas formas gramaticais, mas entre duas atitudes
narrativas (de que formas gramaticais são apenas uma consequência mecânica): fazer contar a história
por uma das suas "personagens", ou por um narrador estranho a essa história. A presença dos verbos
em primeira pessoa num texto narrativo pode, pois, reenviar para duas situações muito diferentes, que
a gramática confunde mas a análise narrativa deve distinguir: a designação do narrador enquanto tal
por si mesmo, como quando Virgílio ao escrever "Arma virumque cano...", e a identidade de pessoa
entre o narrador e uma das personagens da história, como quando Cursoe escreve: "Em 1632, nasci
em York..." O termo "narrativa na primeira pessoa" não se refere, muito evidentemente, senão à
segunda dessas situações, dissimetria que confirma sua impropriedade. Na medida em que o narrador
pode a todo o instante intervir como tal na narrativa, toda a narração é, por definição, virtualmente
feita na primeira pessoa (mesmo que seja no plural acadêmico, como quando Stendhal escreve:
"Confessaremos que... começamos a história do nosso herói..."). A verdadeira questão é a de saber se
o narrador tem ou não ocasião de empregar a primeira pessoa para designar uma das suas
personagens. Distinguir-se-ão, pois, dois tipos de narrativa: uma do narrador ausente da história que
conta (exemplo: Homero na Ilíada, ou Flaubert na Éducation sentimentale), a outra de narrador
prsente como personagem na história que conta (exemplo: Gil Blas, ou Wuthering Heights). Nomeio o
primeiro tipo, por razões evidentes, heterodiegético e o segundo, homodiegético. (GENETTE, 1995,
p. 243)
94

Como observa Dilson Cruz, o autor da enunciação deste romance parece ter
uma mesma postura enunciativa que o de Memórias Póstumas de Brás Cubas53.
Sendo Brás Cubas o autor de suas memórias e, conforme vimos na citação anterior, o
autor de Quincas Borba, este "eu" enunciador, ao dizer ao leitor que esta personagem é
a mesma das Memórias Póstumas assume, explicitamente e de modo inquestionável,
sua autoria. Logo, o autor defunto compõe um romance autobiográfico e outro como
narrador onisciente, tornando ambos uma narrativa determinada pelo discurso
autoritário. Adilson Citelli, ao analisar os diferentes tipos de discursos, observa que
uma das características do discurso autoritário moderno, persuasivamente desejoso
de aplainar as diferenças, é a busca da neutralidade e cientificidade, pois se é neutro,
ninguém o produz, se científico, ninguém o questiona. Desse modo, o discurso
autoritário moderno tem por efeito de sentido fazer com que as verdades de uma
instituição sejam expressão da verdade de todos54. Embora o discurso de Brás Cubas,
como autor de sua obra, seja assumido, isto é, um discurso homodiegético, pretende ter
como efeito de sentido a verdade universal, visto ser o enunciador um defunto autor:

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e


realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a
primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o
contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a
calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a
não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o
melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros,
embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se
o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um
vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo!
que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao
fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se,
confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em
suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem

53 Assim, há que se registrar uma questão capital, já apontada anteriormente e que aqui vai só como
lembrete: embora o narrador de Memórias Póstumas ou de Quincas Borba tenha um temperamento
diferente do dos narradores dos romances que os antecederam, o ator da enunciação, que se encontra
em instância acima da deles, parece claramente o mesmo, marcado por um mesmo proceder, que, em
síntese, pode ser descrito como o uso abundante de metalepses de autor, no sentido utilizado por
Genette e que será detalhado mais adiante. De fato, o enunciador manipula com extrema habilidade a
relação causal que une o produtor de uma representação e a própria representação, mostrando como a
narrativa traz em si as marcas de seu enunciador. (CRUZ, 2009, 197)
54 O discurso autoritário e persuasivamente desejoso de aplainar as diferenças, fazendo com que as
verdades de uma instituição sejam expressão da verdade de todos, e assim colocado por Marilena
Chauí: “O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou
autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como
tendo o direito de falar e ouvir...” (CITELLI, 2002, p. 35)
95

conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O olhar da opinião,


esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o
território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e
nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do
exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão
incomensurável como o desdém dos finados. (ASSIS, 2008a, p.
95)

Na condição de defunto-autor, o narrador pode produzir seu discurso com total


franqueza, visto que não está sujeito ao olhar da opinião. Além disso, as metalepses do
autor, estruturantes em Memórias Póstumas de Brás Cubas, faz com que
constantemente ele interfira para impor ao leitor o sentido de seus escritos.
É neste tipo de discurso embaralhado com o nível narrativo e o tipo de narrador,
que o autor produz os discursos indiretos livres e monólogos interiores na narrativa de
Quincas Borba. Em outras palavras, se o discurso autoritário é explícito em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, cujo nível narrativo intradiegético e o tipo de narrador
homodiegético organizam sua enunciação, em Quincas Borba este tipo de discurso
dilui-se no tipo de narrador heterodiegético - o narrador não faz parte da história - e
extradiegético - o narrador coloca-se exterior à diegese que narra.
Franco Moretti, em seu texto O século sério, ao analisar o discurso indireto livre
em Madame Bovary, afirma que, neste romance, este procedimento retórico subtrai a
literatura europeia às suas antigas funções didáticas, na qual o narrador onisciente e que
tudo julga sai de cena para dar lugar ao narrador que opera doses maciças de estilo
indireto livre. Segundo ele, alguns críticos identificam nesse procedimento uma ruptura
política a colocar em conflito o romance europeu com a cultura dominante, isto é,
obrigando o leitor a uma intrigante incerteza de juízo que, anteriormente, parecia estar
resolvido. Para outros, este procedimento retórico torna-se uma espécie de panóptico55

55 Michel Foucault, em Vigiar e Punir, trata dos mecanismos de disciplina como técnica de poder própria
da quadriculação disciplinar nos presídios. Tirado da figura arquitetônica de Bentham, o Panopticon é
uma construção periférica, em forma de anel, e uma torre no centro do anel. O edifício periférico está
dividido em celas, cada uma delas possui duas janelas, uma para o exterior, por onde entra a luz, e
outra que dá para a torre central. Esta, por sua vez, possui janelas que permitem olhar através das
janelas interiores das celas. Basta situar o vigilante na torre central para assegurar a vigilância dos que
se encontram nas celas. O panóptico é uma máquina de dissociar a dupla ver-ser visto, de modo que o
indivíduo situado em sua cela, sem contato com os que se encontram nas outras celas, converte-se em
objeto de informação sem ser nunca sujeito de comunicação. Por isto, o efeito maior do panóptico é
induzir nos detentos um estado consciente e permanente de visibilidade. O primeiro efeito desta
relação de poder é, pois, a constituição deste saber permanente do indivíduo; do indivíduo confinado
em um espaço e seguido por um olhar virtualmente contínuo, que define a curva temporal de sua
evolução, de sua cura, da aquisição de seu saber, de seu arrependimento. (CASTRO, 2009, p. 314-
316)
96

a dissimular e disseminar por toda parte a voz-dominante do narrador, permitindo


limitar, cancelar, aprovar ou subsumir todas as outras vozes às quais concede a
palavra56. Embora a crítica literária divida-se entre estes dois posicionamentos, isto é,
entender o discurso indireto livre como ruptura política entre o romance e os discursos
dominantes ou como o panóptico foucauldiano, não nos parece, necessariamente, que
esta oposição deva ser levada ao seu extremo. James Wood afirma que, graças ao estilo
indireto livre, o leitor pode ver as coisas tanto pelo olhar da linguagem da personagem
como da linguagem do autor, habitando tanto na onisciência quanto na parcialidade 57.
Em outras palavras, esta duplicidade de valores evidenciada no ato da leitura produz a
incerteza de juízo não apenas no nível da história, mas no da narração, pondo em jogo
tanto o discurso supostamente onisciente do autor, que tenta desvendar o íntimo da
personagem, isto é, o panóptico foucauldiano, como produtor de individualidades
cindidas com o social, bem como a ruptura política com o discurso dominante produtora
de incertezas. Como afirma Maingueneau, citando Ducrot, o discurso indireto livre faz
ouvir duas enunciações que disputam as alocuções enunciativas, as quais não permitem
atribuir nem ao narrador nem à personagem a autoria do discurso58.

56 Para alguns, o indireto livre é um tipo de ruptura política que põe o romance europeu em conflito
com a cultura dominante; para Iauss, por exemplo, ele "obriga o leitor [...] a uma intrigante incerteza
de juízo [...] e repropõe um problema de moral pública [isto é: como julgar o adultério] que já parecia
resolvido (...) A outra posição vê as coisas de modo oposto. O indireto livre é uma espécie de
panóptico tornado estilo, um dispositivo foucaultiano que dissimula e dissemina por toda parte a voz-
dominante do narrador, que permite "limitar, cancelar, aprovar, ou subsumir todas as outras vozes às
quais se concede a palavra. (MORETTI, 2009, p. 861)
57 O estilo indireto livre atinge seu máximo quando é quase invisível ou inaudível: "Ted olhava a
orquestra por entre lágrimas idiotas". Em meu exemplo, a palavra "idiotas" mostra que a frase está no
estilo indireto livre. Tirem o adjetivo, e teremos um relato-padrão: "Ted olhava a orquestra por entre
lágrimas". O acréscimo da palavra "idiotas"levanta a questão: que palavra é essa? Não é provável que
eu queira chamar meu personagem de idiota só porque está ouvindo música numa sala de concertos.
Não, numa maravilhosa transferência alquímica, agora a palavra pertence, em parte, a Ted. Ele está
ouvindo a música e chorando, e se sente constrangido - podemos imaginá-lo enxugando raivosamente
os olhos - por ter permitido que aquelas lágrimas "idiotas" corressem. Converta a frase para a primeira
pessoa, e teremos: '''Que idiota, chorar por causa dessa peça boba de Brahms', pensou ele". Mas esse
exemplo possui muitas palavras a mais, e perdemos a presença complexa do autor. O que há de tão
útil no estilo indireto livre é que, no nosso exemplo, uma palavra, como "idiota" de certa forma
pertence ao autor e ao personagem; não sabemos muito bem quem "possui" a palavra. Será que
"idiota" reflete uma leve aspereza ou distância por parte do autor? Ou a palavra pertence totalmente ao
personagem, e o autor, num acesso de empatia, "entregou-a", por assim dizer, ao sujeito em lágrimas?
Graças ao estilo indireto livre, vemos coisas através dos olhos e da linguagem do personagem, mas
também através dos olhos e da linguagem do autor. Habitamos, simultaneamente, a onisciência e a
parcialidade. Abre-se uma lacuna entre autor e personagem, e a ponte entre eles - que é o próprio
estilo indireto livre - fecha essa lacuna, ao mesmo tempo que chama atenção para a distância.
(WOOD, 2008, p. 23)
58 Fora de contexto, nada permite conferir, com segurança, a um enunciado o estatuto de discurso
indireto livre; isto está ligado à propriedade notável que possui de relatar alocuções fazendo ouvir duas
97

Para compreendermos melhor esse jogo de deslocamento e discordâncias entre


vozes, cabe aqui retomar a definição do monólogo interior apresentado tanto por
Genette como por Charaudeau. O monólogo é o discurso sem auditor e não
pronunciado, por meio do qual a personagem exprime seu pensamento mais íntimo
como mimese individualizada. Nessa individualização, o narrador pretende mostrar a
verdade essencial de uma determinada personagem 59. Charaudeau observa que, como
objeto de um "tabu", o monólogo seria na vida cotidiana a manifestação de uma
patologia, no qual a personagem recalca certas informações sobre sua visão de mundo,
não podendo compartilhá-las com as demais personagens. Assim, em Quincas Borba
podemos identificar esse discurso mimético individualizado em alguns momentos da
narrativa. O primeiro deles dá-se no capítulo I, quando Rubião capitalista,
contemplando a enseada, avalia sua situação e conclui que, caso as coisas tivessem
ocorrido de forma diferente, não estaria ali naquela condição. Nesse momento, atribui a
Deus o fato de sua irmã ter morrido sem se casar com Quincas Borba:

RUBIÃO fitava a enseada, — eram oito horas da manhã.


Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do
chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria
que ele admirava aquele pedaço de água quieta;
(...)
— Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas, pensa
ele. Se mana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas
me daria uma esperança colateral. Não casou; ambos
morreram, e aqui está tudo comigo; de modo que o que
parecia uma desgraça... (ASSIS, 2008c, p. 47)

Discurso prontamente censurado pela personagem retorna no capítulo seguinte

vozes diferentes inextricavelmente misturadas, para retomar os termos de Bakhtin ou, dois
"enunciadores", segundo palavras de Ducrot. O discurso indireto livre se localiza precisamente nos
deslocamentos, nas discordâncias entre a voz do enunciador que relata as alocuções e a do -indivíduo
cujas alocuções são relatadas. O enunciado não pode ser atribuído nem a um nem ao outro, e não é possível
separar no enunciado as partes que dependem univocamente de um ou de outro. (MAINGUENEAU,
1997, p. 97)
59 Não é nosso propósito insistir nisso, mas somente notar a relação, geralmente passada em claro,
entre o discurso imediato e o ‹‹discurso relatado››, que só se distinguem, formalmente, pela presença
ou ausência de uma introdução declarativa, (...), o monólogo não tem que ser extensivo a toda a obra
para ser recebido como ‹‹imediato››: bastam, qualquer que seja a sua extensão, que se apresente por si
mesmo, sem a interposição de uma instância narrativa reduzida ao silêncio, e da qual vem assumir a
função. Pode ver-se aqui a diferença capital entre monólogo imediato e estilo indireto livre, que por
vezes se cai no erro de confundir, ou de indevidamente aproximar: no discurso indireto livre, o
narrador assume o discurso da personagem, ou, se se preferir, a personagem fala pela voz do narrador,
e as duas instâncias veem-se então confundidas; no discurso imediato, o narrador dilui-se e a
personagem substitui-se-lhes. (GENETTE, 1995, p. 172)
98

na forma de discurso indireto livre, deslocando a autoria e jogando o leitor na incerteza


do juízo. No terceiro capítulo, ao observar as duas gravuras inglesas, passa a pensar em
Sofia, esposa do amigo Palha. Novamente o monólogo interior evidencia a cobiça
libidinosa que este sente pela mulher do outro:

Foi ela que me recomendou aqueles dois quadrinhos,


quando andávamos os três, a ver coisas para comprar.
Estava tão bonita! Mas o que eu mais gosto dela são os
ombros, que vi no baile do coronel. Que ombros! Parecem de
cera! Tão lisos, tão brancos! Os braços também; oh! Os
braços! Que bem feitos! (p. 49)

Novamente, operando uma autocensura, os pensamentos transformam-se em


discurso indireto livre, lançando a censura para o deslocamento e a incerteza. A mesma
tensão pode ser percebida no capítulo XLIII, quando D. Tonica, irritada com Sofia por
ter sido preterida, planeja contar tudo ao Palha: "Conto-lhe tudo", ia pensando "ou de
viva voz, ou por uma carta... Carta não; digo-lhe tudo um dia, em particular." (p.
102) Novamente, o ódio é recalcado e tornado em xingamentos manifestos na
forma de discurso indireto livre: miserável, indigna, vil... (...) Vil, indigna, miserável...
(p. 102). No capítulo LXXI, após o baile da baronesa em que Sofia dança com Carlos
Maria e, este aproveita para galanteá-la, Sofia rememora o discurso sedutor do
rapaz e se censura por ter lhe dado a oportunidade de o produzir:

A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a


sua casa. A senhora aposto que nem sonhava comigo?
Entretanto, eu quase que ouvia a sua respiração. O mar batia
com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos
rijamente; com esta diferença que o mar é estúpido, bate
sem saber por quê, e o meu coração sabe que batia pela
senhora.”
Sofia teve um calafrio, procurou esquecer o texto, mas o
texto ia-se repetindo: “A noite era clara... (p. 156)

Nos capítulos seguintes, ainda rememorando a frase de Carlos Maria, Sofia se


censura não apenas por ter permitido o episódio acontecer, mas por continuar lembrar-
se dele:

"A NOITE ERA CLARA; fiquei cerca de uma hora entre o mar
e a sua casa. A senhora aposto que...”
99

Quando Sofia pôde arrancar-se de todo à janela, o relógio de


baixo batia nove horas. Zangada, arrependida, jurou a si
mesma, pela alma da mãe, não pensar mais em semelhante
episódio. Considerou que não valia nada; o erro foi deixar
que o rapaz chegasse ao fim dos seus atrevimentos. Verdade
é que, procedendo assim, evitou algum grande escândalo,
porque ele era capaz de a acompanhar até a cadeira e dizer-
lhe o resto ao pé de outras pessoas. E o resto repetia-se
ainda uma vez na memória dela, como um trecho musical
teimoso, as mesmas palavras, e a mesma voz: “A noite era
clara; fiquei cerca de uma hora... (p. 157)

O efeito da tensão entre discurso assumido como monólogo interior e o seu


deslocamento no discurso indireto livre produz algo interessante nesse episódio: o
esvaziamento do monólogo, o qual, no primeiro momento, aparece tal qual o discurso
de Carlos Maria com 68 palavras; no segundo momento, 20 palavras e por fim, 9. Como
estes exemplos apresentados, os demais em que ocorre o monólogo interior intercalam-
se com o discurso indireto livre, o qual parece funcionar como filtro dessa voz
individual e não pronunciada para tornar-se nessa discordância de enunciadores,
seguindo a afirmação de Maingueneau.
Essa permuta entre monólogo interior e discurso indireto livre, conforme os
exemplos citados, bem como a fala da personagem que se dilui na voz do narrador, nos
permite observar duas formas diferentes de funcionamento do discurso indireto livre: a
primeira, próxima ao monólogo interior, evidencia os pensamentos da personagem.
Assim, no capítulo XLV, ao refletir sobre o episódio em que convida Sofia a
contemplar o cruzeiro do sul, Rubião, censura-se por ter tomado tal postura:

Sofia parecia tê-lo animado ao que fez: os olhos frequentes,


depois fixos, os modos, os requebros, a distinção de o
mandar sentar ao pé de si, à mesa de jantar, de só cuidar
dele, de lhe dizer melodiosamente coisas afáveis, que era
tudo isso mais que exortações e solicitações? E a boa alma
explicava a contradição da moça, depois, no jardim: era a
primeira vez que ouvia tais palavras, fora do grêmio
conjugal, e ali perto de todos, devia tremer naturalmente;
demais, ele expandira-se muito, e precipitou tudo. Nenhuma
graduação; devia ter ido pé ante pé, e nunca segurar-lhe as
mãos com tanta força que chegasse a molestá-la. (p. 104-
105)

Neste exemplo, a narrativa enuncia a mistura entre a diégese (voz do narrador) e


100

o monólogo interior (voz da personagem), formando o discurso indireto livre, o qual


chamaremos de fusão. Se, conforme observa Genette, o monólogo interior é o discurso
sem auditor e não pronunciado, por meio do qual a personagem exprime seu
pensamento mais íntimo como mimese individualizada e, por meio dele, o narrador
pode mostrar a "essência" da personagem e, conforme observa Charaudeau, o monólogo
interior é objeto de um "tabu", como manifestação de uma patologia, no qual a
personagem recalca certas informações sobre sua visão de mundo, não podendo
compartilhá-las com as demais personagens, ao diluir-se na diégese por meio do que
chamamos de fusão, há nesse processo o que Moretti trata com base em alguns críticos,
os quais definem o discurso indireto livre como procedimento uma ruptura política a
colocar em conflito o romance europeu com a cultura dominante. Em outras palavras, a
fusão entre monólogo interior e diégese produz o que Bakhtin define como força
centrífuga do discurso como processo ininterrupto de descentralização e desunificação,
rompendo com a individualização do discurso da personagem característico do romance
dialógico60.
Outra forma é a tensão entre a fala da personagem e a do narrador, ou melhor,
entre a mimese e a diégese, resultada em discurso indireto livre. No capítulo LIV, por
motivo do sumiço de Rubião à sua casa, Palha visita-o em Botafogo e lá encontra o Dr.
Camacho:

Quinze dias depois, estando Rubião em casa, apareceu-lhe o


marido de Sofia. Vinha perguntar-lhe o que era feito dele?
onde se ia metido que não aparecia? estivera doente? ou já
não cuidava dos pobres? Rubião mastigava as palavras, sem
acabar de compor uma frase única. No meio disto, Palha viu
que havia na sala um homem mirando os quadros, e abafou a
voz.
— Desculpe, não vi que estava com visitas, disse ele.
— Desculpar o quê? é um amigo, como o senhor. Doutor,
aqui está o meu amigo Cristiano de Almeida e Palha. Creio
que já lhe falei dele. Este é o meu amigo Doutor Camacho, —

60 Cada enunciação concreta do sujeito do discurso constitui o ponto de aplicação seja das forças
centrípetas, como das centrífugas. Os processos de centralização e descentralização, de unificação e de
desunificação cruzam-se nesta enunciação, e ela basta não apenas à língua, como sua encarnação
discursiva individualizada, mas também ao plurilinguismo, tornando-se seu participante ativo. Esta
participação ativa de cada enunciação define para o plurilinguismo vivo o seu aspecto linguístico e o
estilo da enunciação, não em menor grau do que sua pertença ao sistema normativo-centralizante da
língua única. Cada enunciação que participa de um "língua única" (das forças centrípetas e das
tendências) pertence também, ao mesmo tempo, ao plurilinguismo social e histórico (às forças
centrífugas e estratificadoras). (BAKHTIN, 2010, p. 82)
101

João de Sousa Camacho.


Camacho fez um sinal de cabeça, disse uma ou duas frases e
quis ir; mas Rubião acudiu, que não, senhor, que ficasse.
Eram ambos amigos; e depois a lua não tardava a iluminar a
bela enseada de Botafogo. (p. 122-123)

Neste exemplo, a narrativa evidencia pela voz do narrador o diálogo entre Palha
e Rubião. Deste modo, a mistura dá-se entre a diégese (voz do narrador) e a mimese
(voz da personagem), formando outra forma diferente de discurso indireto livre, o qual
chamaremos de introspecção. Resumindo: chamamos de fusão a junção entre o
monólogo interior e a diégese e de introspecção a mimese e a diegese - definindo como
mimese, em sentido mais específico, a voz pronunciada da personagem para outras
personagens. Temos, portanto, nesses dois trechos, dois tipos diferentes de discurso
indireto livre, correspondendo cada um deles às duas diferentes posições apresentadas
por Moretti.
Se, como vimos anteriormente, a mimese responde pela dramaticidade da
narrativa, ela é responsável pela tensão dialógica que estabelece entre a personagem
locutora e seus interlocutores. Neste sentido, o discurso mimético, como discurso da
personagem, está sujeito ao questionamento e à validação das outras personagens e
também do leitor. É, portanto, um discurso parcial, aberto à polêmica. Logo, à medida
que a narrativa produz a introspecção entre a diégese e a mimese minimiza sua
dramaticidade, produzindo efeitos de individualidade.
Por sua vez, sendo o monólogo interior um discurso não pronunciado e,
portanto, sem auditor, ele não está sujeito à polêmica, mas tem como efeito revelar a
"essência" da personagem, ou melhor, seu juízo de valor, o qual muitas vezes é
recalcado, não estabelecendo ligação com as demais personagens. Tem, portanto, como
efeito, revelar ao leitor o juízo de valor da personagem diante de um determinado tema.
A fusão produz a discordância entre as diferentes vozes, colocando o leitor diante da
incerteza de juízo e, para retomar o apontamento feito por Moretti, tal procedimento
torna-se uma ruptura política, visto que dilui o monólogo interior no discurso do
narrador e repropõe um problema de moral pública que já parecia resolvido, isto é, a
individualização da voz não pronunciada da personagem passa a se confundir com a voz
do narrador.
Na contramão disso, a introspecção tem efeitos de subjetivação da voz do
narrador que passa a se confundir com a da personagem, isto é, o panóptico
102

foucauldiano que busca dissimular e disseminar por toda parte a voz-dominante do


narrador. Se a subjetividade da personagem, produzida pelo monólogo interior, é diluída
no discurso indireto livre, à medida que a fusão confunde as vozes enunciadoras,
criando uma ruptura entre o discurso do romance e o discurso da cultura dominante, a
introspecção, impedindo diferenciar a diégese da mimese, isto é, impedindo diferenciar
o discurso da personagem, o qual é marcado pela parcialidade e dramaticidade do
discurso do narrador que busca a velocidade da narrativa em detrimento da informação,
produz efeitos de individualidade como mecanismo de isolamento do indivíduo em seu
meio social.
103

GRÁFICO 11: DISCURSO INDIRETO LIVRE E MONÓLOGO INTERIOR EM QUINCAS BORBA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


104

Por fim, uma última característica relevante desses procedimentos retóricos tem
que ver com o desenvolvimento do discurso indireto livre/monólogo interior na
estrutura do romance. Para acompanhar o desenvolvimento dos procedimento retóricos
tanto do discurso indireto livre, quanto do monólogo interior na estrutura do romance
Quincas Borba, optamos por apresentá-los na forma de linha ao invés de o fazer na
forma de colunas como foi feito nos gráficos anteriores. Para tanto, separamos o
discurso indireto livre e o monólogo interior focado na personagem Rubião (a linha
azul) dos outros discursos focados nas outras personagens. Essa abordagem
possibilitou-nos observar o processo de subjetivação da personagem Rubião em
oposição às outras personagens em conjunto na estrutura do romance. Conforme pode
ser verificado no gráfico e na sistematização repartida da narrativa feita anteriormente,
Rubião é sujeito desses procedimentos à medida que se torna um capitalista. Do
capítulo I ao C, Rubião domina tais procedimentos, isto é, o discurso indireto livre e o
monólogo interior estão a serviço da identificação da sua subjetividade para o leitor. À
medida que ele perde a consideração das demais personagens, sobretudo do casal Palha,
as personagens passam a ter predomínio maior na identificação de suas subjetividades
em detrimento da subjetividade de Rubião, que se reifica e se torna objeto desses
procedimentos. Os efeitos de ritmo, nestes procedimentos, identificam e acompanham o
processo da loucura na qual Rubião sucumbe. Um exame mais apurado desses
procedimentos evidencia os projetos individuais buscados e sofridos pelas personagens.
105

V - O SUMÁRIO ESTRUTURANTE EM DOM CASMURRO

Conforme observa Genette, diferentemente das cenas, pausas e elipses, nas quais
o tempo é determinado, em princípio, o sumário caracteriza-se pela sua variabilidade,
podendo conter em algumas frases dias, anos ou décadas. Dessa forma, o sumário foi,
até o fim do século XIX, conforme pontua, o "fundo" sobre o qual se destacam as
diversas cenas que encaminham a narrativa para a sua dramaticidade, estabelecendo os
efeitos de ritmo, conforme cada narrativa. Em alguns casos, sobretudo em momentos no
qual o narrador apresenta uma determinada personagem, o sumário tem efeito
retrospectivo, constituindo o passado e o caráter da personagem. Esse sumário
retrospectivo é identificado pelo autor como analepse completa. É comum que o
sumário recorra às chamadas narrativas iterativas, isto é, narrativas em que o narrador
conta uma vez algo que acontece "n" vezes para identificar uma frequência da ação
praticada por uma determinada personagem. Por exemplo, quando, no último capítulo
do romance Helena, o narrador conta a doença da personagem Helena, utiliza o sumário
em forma de narrativa iterativa:

Durante sete dias o estado de Helena apresentou


alternativas que lançavam na alma dos seus a confiança e a
desesperação. Algumas horas houve de delírio, durante o
qual dois nomes volviam frequentemente aos lábios da
enferma, — o de Estácio e o do pai. Nas horas da razão,
falava pouco, não proferia nenhum nome, salvo o de
Melchior que ela queria ver junto de si. O capelão obedecia
docilmente. Ao pé dela, via-a com pena, mas sem
desesperação; primeiramente, porque ele aceitava sem
murmúrio os decretos da vontade divina; depois, porque não
sabia ao certo se, em tal situação, era a vida melhor do que a
morte. Em todo caso, consolava-a. (ASSIS, 2008b, pp. 503-
504)

Yves Reuter observa que, sendo o sumário um modo de contar, tem a tendência
ao resumo e se caracteriza por uma visualização menor e, desse modo, condensa em
algumas linhas um tempo da história às vezes muito longo 61. Para Friedman, citado por
Ligia Chiappini de Moraes Leite, em sua obra O Foco Narrativo, o sumário é um relato

61 Próximo da elipse, o sumário, que encontramos no capítulo precedente, condensa e resume. Com
poucas palavras ou algumas linhas, ele corresponde a um tempo às vezes longo da ficção. (REUTER,
2004, p. 89)
106

generalizado ou a exposição de uma série de eventos que abrange um período longo de


tempo ficcional62. De modo geral, o sumário funciona nos romances machadianos como
procedimento de aceleração do tempo da história, permitindo que a leitura se
desenvolva em seus momentos miméticos determinantes para a dramatização da
narrativa. Contudo, ao compararmos os sumários presentes nos sete romances aqui
analisados, percebemos um funcionamento diferenciado em Dom Casmurro.
Analisemos os sete gráficos:

62 A tipologia do narrador de Friedman vai procurar fornecer elementos para responder a essas
questões em cada caso, mas vai basear-se também na distinção de Lubbock e de outros teóricos
examinados anteriormente, entre cena e sumário narrativo. Segundo Friedman: "A diferença principal
entre narrativa e cena está de acordo com o modelo geral particular: sumário narrativo é um relato
generalizado ou a exposição de uma série de eventos abrangendo um certo período de tempo e de uma
variedade locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge assim que os
detalhes específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação, personagem e diálogo, começam a
aparecer. Não apenas o diálogo mas detalhes concretos dentro de uma estrutura específica de tempo-
lugar são os sine qua non da cena. (Point of View, p. 119-20.)"Essa distinção, como dissemos, vai
nortear a tipologia de Friedman, organizada do geral para o particular: “da declaração à inferência, da
exposição à apresentação, da narrativa ao drama, do explícito ao implícito, da idéia à imagem”. (Op.
Cit., p.119.) Friedman chama a atenção, logo de início, para a predominância da cena, nas narrativas
modernas, e do SUMÁRIO, nas tradicionais. (LEITE, 1985, p. 25)
107

GRÁFICO 12: SUMÁRIO EM RESSURREIÇÃO

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


108

GRÁFICO 13: SUMÁRIO EM A MÃO E A LUVA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


109

GRÁFICO 14: SUMÁRIO EM HELENA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


110

GRÁFICO 15: SUMÁRIO EM IAIÁ GARCIA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


111

GRÁFICO 14: SUMÁRIO EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


112

GRÁFICO 15: SUMÁRIO EM QUINCAS BORBA

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


113

GRÁFICO 16: SUMÁRIO EM DOM CASMURRO

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


114

Se verificarmos o quadro percentual desses procedimentos, veremos que o sumário


aparece quantitativamente maior em Iaiá Garcia com dez por cento do total de palavras:

TABELA 3 - Percentual comparativo dos procedimentos nos sete romances


CENA METALEPSES PAUSA SUMÁRIO
RESSURREIÇÃO 79% 6% 8% 7%
A MÃO E A LUVA 72% 10% 14% 4%
HELENA 88% 2% 8% 3%
IAIÁ GARCIA 80% 3% 7% 10%
MEMÓRIAS PÓSTUMAS 59% 30% 5% 6%
QUINCAS BORBA 85% 9% 3% 3%
DOM CASMURRO 61% 25% 5% 8%

Conforme a tabela, o sumário em Dom Casmurro é o segundo maior em termos


percentuais. Contudo, se observarmos os gráficos, podemos ver que não apenas
quantitativamente, mas conforme a disposição de suas ocorrências no romance, o
sumário torna-se estruturante em Dom Casmurro. Para não tornar a análise muito
extensa, apresentaremos os efeitos de sentido do sumário nos três romances em que o
percentual está acima de 5%, isto é, Ressurreição, Iaiá Garcia e Memórias Póstumas de
Brás Cubas e, posteriormente, analisaremos seu funcionamento em Dom Casmurro63.
Em Ressurreição, a maior ocorrência do sumário dá-se: no capítulo IV (13%),
quando Félix se retira para Tijuca e ocorre o intervalo entre o encontro com Lívia no
teatro e a ida do herói à casa da viúva em Catumbi; nos capítulos VII, VIII e IX
(respectivamente, 12%, 35% e 16%), quando o narrador resume os diversos conflitos
amorosos entre Félix e Lívia; no capítulo XVIII (25%), quando o narrador relata os
efeitos da notícia do casamento entre Félix e Lívia e, por fim, no capítulo XXIV (31%),
momento em que a narrativa retorna ao tempo presente e faz um resumo da situação
atual de cada personagem.
Em Iaiá Garcia, a maior ocorrência do sumário dá-se: no capítulo I (34%),
quando, após Luís Garcia receber o recado de D. Valéria, o narrador intercala a pausa e

63 Conforme já observamos o fato da mudança estrutural nos capítulos dos três romances posteriores aos
quatro primeiro, iremos nos referir ao capítulos, nos quatro primeiro romances, em que o sumário
aparece com mais de dez por cento; quanto aos últimos, nos referiremos aos capítulos em que o
sumário aparece com mais de cinquenta por cento.
115

o sumário apresentando a família de Luís Garcia; nos capítulos III e IV


(respectivamente, 11% e 14%), quando o narrador relata a paixão de Jorge por Estela e
a resistência da moça às suas investidas; no capítulo V (34%), momento em que Jorge
está na guerra do Paraguai; nos capítulos VII e VIII (respectivamente, 16% e 13%),
quando Jorge retorna da guerra e, aos poucos, retoma sua amizade com Luís Garcia; no
capítulo XIV (11%), quando o narrador relata a aproximação e paixão entre Jorge e Iaiá
Garcia; por fim, no capítulo XVII (21%), quando o narrador relata o momento em que
Estela, após a morte do marido, resolve ir embora para Minas Gerais.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a maior ocorrência do sumário dá-se:
no capítulo III (60%), quando o autor-narrador apresenta sua genealogia; no capítulo
XLV (84%), quando o autor-narrador resume o processo que segue à morte de seu pai;
no capítulo XLVII (63%), quando o autor-narrador, após a morte de seu pai, narra sua
reclusão; por fim, no capítulo CLIX (51%), penúltimo capítulo, quando o narrador
relata a demência de Quincas Borba.
De todo modo, vemos que o sumário funciona nesses três romances conforme a
definição feita pela crítica: resumo temporal, resumo dos acontecimentos, analepse
retrospectiva e, no caso de Memórias Póstumas de Brás Cubas, como salto temporal
entre uma cena e outra não relacionadas.
Em Dom Casmurro, esses efeitos de sentido do sumário dominam a primeira
parte do romance em que o autor-narrador relata sua infância e paixão por Capitu. A
narrativa inicial, sobretudo no capítulo II, cuida de apresentar o momento presente e o
motivo da escrita, fazendo predominar as metalepses (metalepses: 57%; cena: 11%;
pausa: 16% e sumário: 16%) de modo que o sumário funciona como resumo. Ao iniciar
a história, o autor-narrador apresenta as personagens, fazendo o sumário funcionar
como analepse retrospectiva, conforme podemos verificar nos capítulos V, VI, VII,
XIII, XVI e XXIV. No capítulo LXVI, o sumário parece funcionar de modo distinto
daquilo definido pela crítica literária e identificado nos outros romances machadianos.
O capítulo relata a dedicação que Capitu tem a D. Glória, após a ida de Bentinho para o
seminário:

Capitu ia agora entrando na alma de minha mãe. Viviam o mais


do tempo juntas, falando de mim, a propósito do sol e da chuva,
ou de nada; Capitu ia lá coser, às manhãs; alguma vez ficava
para jantar.
Prima Justina não acompanhava a parenta naquelas finezas, mas
116

não tratava de todo mal a minha amiga.


Era assaz sincera para dizer o mal que sentia de alguém, e não
sentia bem de pessoa alguma Talvez do marido, mas o marido
era morto; em todo caso, não existiria homem capaz de competir
com ele na afeição, no trabalho e na honestidade, nas maneiras e
na agudeza de espírito. Esta opinião, segundo tio Cosme, era
póstuma, pois em vida andavam às brigas, e os últimos seis
meses acabaram separados. Tanto melhor para a justiça dela; o
louvor dos mortos é um modo de orar por eles. Também gostaria
de minha mãe, ou se algum mal pensou dela foi entre si e o
travesseiro. Compreende-se que, de aparência, lhe desse a
estima devida. Não penso que ela aspirasse a algum legado; as
pessoas assim dispostas excedem os serviços naturais, fazem-se
mais risonhas, mais assíduas, multiplicam os cuidados,
precedem os fâmulos. Tudo isso era contrário à natureza de
prima Justina, feita de azedume e de implicância. Como vivesse
de favor na casa, explica-se que não desestimasse a dona e
calasse os seus ressentimentos, ou só dissesse mal dela a Deus e
ao Diabo.
Caso tivesse ressentimentos de minha mãe, não era uma razão
mais para detestar Capitu, nem ela precisava de razões
suplementares. Contudo, a intimidade de Capitu fê-la mais
aborrecível à minha parenta. Se a princípio não a tratava mal,
com o tempo trocou de maneiras e acabou fugindo-lhe.
Capitu, atenta, desde que a não via, indagava dela e ia procurá-
la. Prima Justina tolerava esses cuidados. A vida é cheia de
obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de
as infringir deslavadamente. Demais, Capitu usava certa magia
que cativa, prima Justina acabava sorrindo, inda que azedo mas
a sós com minha mãe achava alguma palavra ruim que dizer da
menina.
Como minha mãe adoecesse de uma febre, que a pôs às portas
da morte, quis que Capitu lhe servisse de enfermeira. Prima
Justina, posto que isto a aliviasse de cuidados penosos, não
perdoou à minha amiga a intervenção. Um dia, perguntou-lhe se
não tinha que fazer em casa; outro dia, rindo, soltou-lhe este
epigrama: "Não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu às
mãos lhe há de ir". (ASSIS, 2008b, pp. 158-159)

Em um primeiro momento, o sumário - o qual sublinhamos - parece funcionar


como resumo do período de ausência do autor-narrador. Contudo, o autor-narrador
interrompe a narrativa para apresentar o caráter da prima Justina. Ao tentar justificar seu
vínculo desinteressado com Dona Glória, faz a seguinte afirmação: "Não penso que ela
aspirasse a algum legado; as pessoas assim dispostas excedem os serviços naturais,
fazem-se mais risonhas, mais assíduas, multiplicam os cuidados, precedem os fâmulos.
Tudo isso era contrário à natureza de prima Justina, feita de azedume e de implicância."
117

(idem, ibidem). Tal afirmação provoca uma polifonia no capítulo, visto que, se inocenta
Prima Justina por ser esta feita de azedume e implicância, descreve indiretamente o
comportamento que Capitu passa a ter com a mãe do autor-narrador. Logo após,
interrompe o sumário para inserir outro comentário: "A vida é cheia de obrigações que a
gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente." (idem,
ibidem). Este último comentário se duplica à medida que, em um primeiro momento,
referindo-se à prima Justina, analisado contextualmente parece referir-se a Capitu. E,
como a confirmar esta segunda interpretação, o capítulo termina com a frase de Prima
Justina a Capitu: "Não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu às mãos lhe há de ir".
(idem, ibidem). Aquilo que pareceu uma referência implícita à motivação de Capitu
feita pelo narrador, agora aparece de modo explícito na boca de prima Justina, sem,
necessariamente, excluir a primeira leitura. Deste modo, o sumário passa ter uma outra
função: a de efeito ambíguo sobre o caráter de Prima Justina e Capitu.
A partir do capítulo XCVII, dá-se o início da segunda parte do romance, isto é,
momento em que Bentinho sai do seminário e vai para São Paulo estudar Direito.
Conforme podemos ver no gráfico 16, a maior ocorrência do total de sumários dá-se
nestes cinquenta e um capítulos, ou em termos percentuais, 58%. Neles, o autor-
narrador relata seu retorno à capital do Império, seu casamento com Capitu, o
nascimento de Ezequiel, a morte de Escobar e a suspeita de traição. Em outras palavras,
nestes cinquenta capítulos está toda a dramaticidade da narrativa. Nesta dramatização, o
sumário funciona como procedimento de aceleração temporal e de acontecimento para
determinar as relações entre os casais Bentinho/Capitu e Escobar/Sancha, como também
para apresentar o caráter de Ezequiel, o qual se torna prova definitiva do adultério.
Desse modo, o sumário torna-se estruturante em Dom Casmurro, visto ser o responsável
pela organização da narrativa.
Após o nascimento de Ezequiel que acontece no capítulo CVIII, o narrador cuida
de apresentar o filho por meio de suas peraltices. Jogo retórico curioso aparece no
capítulo CIX, no qual a narrativa acelera o período entre o nascimento e a infância de
Ezequiel. O jogo retórico é feito pela metalepse de regência em que o autor-narrador,
como define Genette, ressalta o ato narrativo para mostrar suas articulações, conexões e
sua organização interna:

Ezequiel, quando começou o capítulo anterior, não era ainda


gerado; quando acabou era cristão e católico. Este outro é
118

destinado a fazer chegar o meu Ezequiel aos cinco anos, um


rapagão bonito, com os seus olhos claros, já inquietos, como se
quisessem namorar todas as moças da vizinhança, ou quase
todas. (p. 224)

Como podemos ver, embora seja uma metalepse de regência, tal


procedimento funciona como sumário, no qual o autor-narrador resume um período de
cinco anos para inserir o filho, peça fundamental, na narrativa.
Esta análise não tem como objetivo entrar na discussão temática sobre a traição
de Capitu ou o ciúme exagerado de Bentinho, mas perceber os efeitos de ritmo
produzido na narrativa pelos procedimentos retóricos. Neste sentido, cabe observar que,
em grande parte, as pausas descritivas e caracteriológicas, cuja função é a de
contextualizar o perfil psicológico das personagens na narrativa, dominam a primeira
parte dela, isto é, do total de pausas descritivas e caracteriológicas (3.552 palavras),
temos 78% do capítulo I ao XCVII. Por sua vez, o sumário, produzindo efeitos
dramáticos de sentido na segunda parte da narrativa, parece constituir junto com as
pausas o procedimento a confirmar a assertiva posta no final do romance: "Mas eu creio
que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de
reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca." (p. 276) Para
além disso, se a caracterização de Capitu funciona como argumento retórico que induz o
leitor à conclusão da traição, o sumário, por sua vez, opera papel não no caráter, mas na
articulação da ação de Ezequiel na narrativa. Posto isso, o sumário estrutura a prova
principal e objetiva de que o menino é fruto da traição de Capitu com o melhor amigo
de Bento, Escobar.
119

VI - METALEPSES

Para concluir este capítulo, retomamos a afirmativa inicial sobre a importância


das metalepses na narrativa machadiana. Figura retórica, a metalepse é definida por
Perelman como figura que transpõe os valores em fatos64 ou, na definição de Sebastião
Cherubim, em seu Dicionário de Figuras de Linguagem, "figura em que se toma o
antecedente pelo consequente e vice-versa. 'Eles viveram' por 'Eles estão mortos'.
'Surgiram as flores' por 'Surgiu a primavera'" (CHERUBIM, 1989, p. 45). Definição
semelhante é dada por Antônio Geraldo Cunha em seu Dicionário Etimológico da
Língua Portuguesa, com o acréscimo de que tal palavra origina-se do grego metalépsis
(CUNHA, 2010, 424). Conforme Isidro Pereira, a palavra metalépsis ou 
significa "participação em; ação de tomar depois de outro; troca, permuta" (PEREIRA,
1998, p. 367). Parece ser nesse sentido de participação na narrativa que Genette
pretende conceituar uma das funções da metalepse quando afirma que seu princípio é o
de toda intrusão do narrador ou do narratário extradiegético no universo diegético 65, ou
conforme define em Métalepse, uma transgressão deliberada do narrador na narrativa
(GENETTE, 2004, p. 14).
Os níveis narrativos são muitas vezes embaralhados pela metalepse, podendo
fazer na narrativa sistema com prolepse, analepse, silepse e paralepse, cujos sentidos
podem variar de níveis de modo a produzir um efeito de bizarria umas vezes bufa e
outras fantástica (p. 234), de maneira que o extradiegético seja também diegético,
criando, como observa o crítico francês, o efeito perturbador de que narrador e
narratário, enunciador e enunciatário, autor e leitor pertençam a alguma narrativa.
Maingueneau faz observação semelhante ao tratar do metadiscurso, quando observa o
jogo enunciativo no interior do discurso a funcionar como um dispositivo que abre
caminhos destinados a retificar a trajetória da enunciação através dos espaços saturados

64 Certas figuras, em especial a metalepse, podem facilitar a transposição de valores em fatos. "Ele
esquece os favores" por "ele não é reconhecido"; "lembrem-se de nosso pacto" por "observem nosso
pacto", são maneiras de atribuir uma conduta a um fenômeno de memória, que permite ao interlocutor
modificar sua atitude parecendo ter somente melhorado seu conhecimento dos fatos. (PERELMAN,
2005, p. 206)
65 Como se sabe, os jogos temporais de Sterne são um pouco mais ousados, isto é, um pouco mais
literais, como quando as digressões de Tristram narrador (extradiegético) obrigam o seu pai (na
diegese) a prolongar a sua sesta mais uma hora, mas ainda aqui é o mesmo princípio. (GENETTE,
1995, p. 234)
120

das palavras tornadas palavras outras66. Em seu Manual de Semiótica Ugo Volli, ao
tratar dos metassignos, observa que estes servem como sugestão ao leitor do modo de
cortar um determinado texto, funcionando com instrução de uso para o próprio signo 67.
Uma das características observada por Genette sobre a metalepse é essa determinação
que evidencia o funcionamento da narrativa seja na mudança de nível, seja na
estruturação do ato narrativo, seja o diálogo entre autor e leitor, isto é, para além do
papel da narração propriamente dita, a intervenção do narrador na narrativa, operando
uma transgressão deliberada permite que interpele o leitor, mostre o processo de
organização da narrativa por meio de anúncios e reavisos, estabelecendo uma relação
intertextual ou tecendo valores sobre determinados acontecimentos durante o ato
narrativo. Genette identifica cinco funções possíveis de metalepses: 1 - a função
propriamente narrativa; 2 - a função metalinguística identificada por ele como função
regencial; 3 - a orientação direta e indireta do narrador ao narratário, chamada função
de comunicação, seguindo a mesma definição de Jakobson das funções fática e
conativa; 4 - a orientação do narrador para si mesmo, semelhante à definição de
Jakobson da função emotiva, determinando a relação afetiva, moral e intelectual que o
narrador toma na história que conta, manifesta muitas vezes na forma de testemunho, ou
na indicação de fonte de onde tirou uma determinada informação, ou ainda, os
sentimentos que determinado fato despertam nele, chamada de função testemunhal; 5 -
por fim, as intervenções valorativas que o narrador faz na história, atribuindo um valor
por meio de comentário, a qual Genette chama de função ideológica do narrador68.

66 O meta discurso se apresenta como um jogo com o discurso; na realidade, ele constitui um jogo no
interior deste discurso. Presume-se, uma vez mais, que se possua uma concepção apropriada da
discursividade: não um bloco de palavras e de proposições que se impõem maciçamente aos
enunciadores, mas um dispositivo que abre seus caminhos, que negocia continuamente através de um
espaço saturado de palavras, palavras outras. (MAINGUENEAU, 1997, p. 95)
67 Todos estes metassignos paratextuais servem para sugerir ao leitor um determinado modo de cortar
o texto e fornecer-lhe instruções para o seu uso (por exemplo, especificando se se trata de um romance
ou de um livro de histórias, de propaganda ou de informação, de um só artigo ou de um conjunto de
artigos sobre o mesmo assunto e assim por diante). É claro que todas essas indicações podem ser
seguidas ou não pelo leitor, de acordo com a sua eficácia, a partir de seu contexto social e, antes de
tudo, dos seus interesses. (VOLLI, 2012, p. 80)
68 O primeiro desses aspectos é, evidentemente, a história, e a função que aí está conectada é a
função propriamente narrativa, da qual nenhum narrador pode desviar-se sem perder por tanto a sua
qualidade de narrador, e a que pode muito bem tentar - como fizeram certos romancistas americanos -
reduzir o seu papel. O segundo é o texto narrativo, ao qual o narrador pode referir-se por um discurso
de alguma maneira metalinguístico (na ocorrência, metanarrativo) para marcar as suas articulações, as
conexões, as inter-relações, em suma, a organização interna: esses ‹‹organizadores›› do discurso, a
que Georges Blin chamava ‹‹indicações de regência››, relevam de uma segunda função, que se pode
apelidar de função de regência. O terceiro aspecto é a própria situação narrativa, cujos dois
protagonistas são o narratário, presente, ausente ou virtual, e o próprio narrador. A orientação para o
121

Interessam-nos neste trabalho as quatro últimas funções definidas por Genette.


Entendendo-as como uma das definições da metalepse, transgressão deliberada do ato
narrativo, propomos utilizar as seguintes terminologias:
METALEPSE REGENCIAL: refere-se à intervenção
metalinguística/metanarrativa (no caso das crônicas, metadiscursiva), na qual o narrador
ressalta as articulações, conexões e organização interna que evidenciam o ato narrativo,
ou, em termos semióticos, a enunciação enunciada.
METALEPSE DE COMUNICAÇÃO: refere-se tanto ao diálogo que o
narrador estabelece com o narratário, como também à inserção do narratário na
narrativa, isto é, de forma direta o narrador pode convidar o leitor a ver uma
determinada cena ou, indiretamente, quando, ao referir-se a uma personagem, o
narrador utiliza-se do pronome possessivo na primeira pessoa do plural, criando uma
identificação entre a personagem, o narrador e o narratário: Exemplo: "o nosso Rubião",
ou ainda, as tensões que o narrador estabelece com o leitor, tendo como efeito o
discurso polêmico.
METALEPSE TESTEMUNHAL: refere-se à orientação que o narrador
estabelece a si mesmo, podendo tomar a forma de um simples testemunho, indicação de
fonte da qual tirou a informação (é o caso da intertextualidade), a determinação do grau
de suas memórias ou o modo como determinado episódio desperta os seus sentimentos
do narrador.
METALEPSE DE COMENTÁRIO: refere-se às intervenções de comentários
feitas pelo narrador a respeito de um determinado episódio. Genette, conforme
mostramos anteriormente, define-a como função ideológica, porém, optamos por não
usar a palavra ideológica por entendermos que a ideologia manifesta-se em todas essas
funções e também em diversos outros procedimentos retóricos da narrativa.

narratário, à preocupação de estabelecer ou de manter com ele um contato, ou até um diálogo (real,
como em La Maison Nucingen, ou fictício, como em Tristram Shandy), corresponde uma função que
lembra ao mesmo tempo a função ‹‹fática›› (verificar o contato) e a função ‹‹conativa›› (agir sobre o
destinatário) de Jakobson. A orientação do narrador para ele próprio, enfim, determina uma função
homóloga àquela que Jakobson designa, de forma um pouco desajeitada, por função ‹‹emotiva››: é ela
que dá conta da parte que o narrador, enquanto tal, toma na história que conta da parte que o narrador,
enquanto tal, toma na história que conta, na relação que mantém com ela: relação afetiva, claro, mas
igualmente moral e intelectual, que pode tomar a forma de um simples testemunho, como quando o
narrador indica a fonte de onde tirou a sua informação, ou o grau de precisão das suas próprias
memórias, ou os sentimentos que tal episódio desperta em si; há aí algo a que se poderia chamar
função testemunhal ou de atestação. Mas as intervenções, diretas ou indiretas, do narrador a respeito
da história podem tomar também a forma mais didática de um comentário autorizado da ação: afirma-
se assim aquilo a que se poderia chamar a função ideológica do narrador, e sabe-se o quanto Blazac,
por exemplo, desenvolveu essa forma de discurso explicativo e justificativo, nele veículo, como em
tantos outros, da motivação realista. (GENETTE, 1995, p. 254-255)
122

Essas definições nos ajudam a compreender como se dá o processo de


enunciação do ato narrativo, à medida que o narrador evidencia o seu privilégio
discursivo, desestabilizando os efeitos de sentido ficcionais, os quais, muitas vezes,
deixam de funcionar como mecanismos ilusórios para evidenciar o status do discurso.
Desse modo - e sobretudo na narrativa machadiana - a metalepse pode ter como efeito
de sentido retificar a trajetória da enunciação, ao colocar-se em conformidade com as
intenções do autor ou, como observa Elisa Guimarães sobre as operações
metalinguísticas, funcionar como equação no momento em que o discurso é marcado
por incertezas69. Neste sentido, a metalepse pode funcionar como mecanismo que busca
assegurar a melhor recepção da mensagem. Contudo, a metalepse pode funcionar
também como enquadramento do ato enunciativo para estabelecer a polêmica entre
autor e leitor, isto é, como procedimento dialógico, a metalepse funciona como
antecipação ou resposta do discurso do outro, seja como efeito de persuasão ou de
coerção do leitor sobre um determinado tema. A prosa machadiana, como já temos
observado até o momento, inventa uma forma discursiva marcada por vaivéns que
desarticulam e desnaturalizam os discursos monológicos, como observa Alfredo Bosi:

a linguagem machadiana inclui operações intertextuais de estilo


joco-sério e a soltura da frase de Sterne, de Xavier de Maistre,
de Garrett, desarticuladores da sintaxe clássica e criadores de
uma escrita digressiva, metanarrativa, auto-irônica. O que é uma
das faces da sua modernidade, esse conceito protéico. As noções
de "dialogismo" e "carnavalização" de Mikhail Bakhtin ainda
poderão prestar bom serviço no cumprimento dessa tarefa
analítica, desde que sejam adotadas cum grano salis. (BOSI,
1999, p. 162).

Deste modo a metalepse pode saturar o código linguístico, rompendo a regra do


jogo para evidenciar as relações de poder como organizador do ato discursivo, de modo
que sua presença excessiva evidencia a corrosão e até mesmo a destruição sistemática
da coesão textual. Nesse sentido, a metalepse é o esforço pelo qual o autor tenta ou
recuperar a coesão corroída ou evidenciar a impossibilidade de qualquer coerência
discursiva.
A análise dessas metalepses nos permitiu perceber quatro modelos de
funcionamento evidenciados nos sete romances e nas crônicas: o primeiro modelo

69 As operações metalinguísticas - "As operações metalinguísticas consistem em proposições


equacionais que surgem desde que há incerteza." (GUIMARÃES, 1997, p. 27)
123

pretende restabelecer a coesão e a coerência, propondo um outro contrato de leitura com


o leitor e, portanto, mascarando o discurso como produtor da relação poder-saber (os
romances Ressurreição, Helena, A Mão e A Luva, Iaiá Garcia), - nós o chamamos de
modelo contratual; o segundo modelo também busca reestabelecer a coesão e
coerência, contudo, ao invés de propor um contrato de participação da produção de
sentido com o leitor, evidencia a incompetência hermenêutica do leitor, como também
esvazia o lugar da autoria, fazendo com que o discurso narrativo funcione sozinho
(Quincas Borba e Dom Casmurro) - chamaremos de modelo disciplinar; o terceiro
modelo, tal qual os anteriores, busca restabelecer a coesão e coerência da narrativa e,
como o segundo, opera o jogo da sedução e coerção, mas, diferentemente do segundo, o
tom é marcado por um diálogo agressivo com o leitor, impondo seu modo de
interpretação do mundo de forma que seu discurso torna-se autoritário, evidenciando,
bem mais que os anteriores, a ficcionalidade da incoerência textual (Memórias
Póstumas de Brás Cubas) - chamaremos de modelo arbitrário; por fim, o quarto
modelo evidencia a lógica das relações de poder como discurso e, com isso, acirra a
incoerência do mundo e, portanto, potencializa a incerteza no jogo retórico e mostra por
meio de procedimentos descontínuos, os efeitos discursivos como relações de poder (as
crônicas) - nós o chamamos de modelo descontínuo.
Antes de tratarmos sobre os diferentes efeitos de sentido da metalepse na
narrativa machadiana, cabe observar que, comumente, alguns críticos tendem a
identificar o uso das metalepses na narrativa como elemento de mudança na composição
das obras a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Conforme veremos na análise
sobre as crônicas em outro capítulo, antes mesmo de Machado de Assis escrever seu
primeiro romance, este procedimento já era comum na prosa machadiana. Conforme
vemos na tabela abaixo, em maior ou menor grau, as metalepses aparecem em todos os
seus romances:
124

TABELA 4 - Percentual comparativo da metalepse nos sete romances


METALEPSE
RESSURREIÇÃO 6%
A MÃO E A LUVA 10%
HELENA 2%
IAIÁ GARCIA 3%
MEMÓRIAS PÓSTUMAS 30%
QUINCAS BORBA 9%
DOM CASMURRO 25%

Conforme vemos, em maior ou menor percentual, este procedimento é


recorrente tanto nas narrativas homodiegéticas como nas heterodiegéticas. Obviamente,
o fato de Memórias Póstumas de Brás Cubas ter o maior percentual desse procedimento
é determinante em sua estrutura narrativa. Contudo, para compreender essa
determinação devemos analisar as diferentes funções de seu uso. Deste modo, se
observarmos de forma mais detalhada podemos compreender melhor qual a sua
relevância em cada narrativa.

TABELA 5 - Percentual comparativo das diferentes metalepses nos sete romances


METALEPSE METALEPSE METALEPSE METALEPSE
REGENCIAL COMUNICAÇÃO TESTEMUNHAL COMENTÁRIO
RESSURREIÇÃO 0,4% 1,5% 2% 2%
A MÃO E A LUVA 2% 5% 1% 2%
HELENA 0,4% 0,2% 0,3% 0,6%
IAIÁ GARCIA 0,4% 0,3% 0,1% 1,8%
MEMÓRIAS PÓSTUMAS 4% 10% 11% 5%
QUINCAS BORBA 1,5% 4,6% 1,6% 1,5%
DOM CASMURRO 5% 9% 9% 3%

Com base apenas nesses percentuais, podemos afirmar que nos romances
Ressurreição, Helena e Iaiá Garcia, a intervenção do narrador na narrativa tende aos
comentários, por sua vez, em A Mão e a Luva e Quincas Borba , tende à comunicação
125

com o leitor e, por fim, nos romances homodiegéticos, tende à comunicação e ao


testemunho. Contudo, é preciso examinar como se dá textualmente cada um desses
procedimentos.

a) A Metalepse como modelo contratual.

Olivier Reboul observa que os procedimentos retóricos têm maior relevância e


desempenho em momentos marcados pela incerteza e pelo conflito, isto é, quando, na
falta de uma demonstração rigorosa, é o debate do contraditório em que cada orador se
esforça por detectar tudo o que seu discurso tem de performativo, fazendo com que a
verdade ceda lugar para o discurso verossímil70. Obviamente, Reboul refere-se à
oratória e seus procedimentos retóricos específicos. No caso do romance, como texto
escrito, essa incerteza discursiva é mimetizada, marcando o romance moderno,
conforme observa Catherine Gallagher, e produzindo a articulação da incerteza
epistemológica, isto é, à medida que os procedimentos retóricos evidenciam a diferença
entre narrador e enunciador, resultando em uma dúplice origem vocal da ficção, o
romance moderno evidencia a natureza da ficção e realça a força emotiva da
personagem para criar uma ilusória realidade e aparente profundidade, fazendo com que
o leitor se deixe invadir por um prazeroso sentido de familiaridade com a personagem,
o qual a autora define como "efeito personagem", isto é, "a impressão conscientemente
ilusória, de uma criatura preexistente, com muitos níveis de existência e com
exterioridade e interioridade próprias" (GALLAGHER, 2009, pp. 652-653). É esse
duplo aspecto da apreensão da realidade entre os fatos narrados e a narração, como
observa Dilson Cruz, que marca, por meio das metalepses, a narrativa machadiana
desde seu primeiro romance71.

70 A retórica só é exercida em situações de incerteza e conflito, em que a verdade não é dada e talvez
jamais seja alcançada senão sob a forma de verossimilhança. Afinal de contas, o debate entre Creonte
e Antígona, entre a razão de Estado, que exige a ordem para garantir a paz, e a lei divina, ética, que se
resigna com a injustiça, esse debate não se encerrou, e pode-se acreditar que não nunca se encerrará.
(REBOUL, 2000, p. 39)
71 A análise da apreensão da realidade deve ainda ser dividida em dois aspectos, um relativo aos fatos
narrados e outro relativo à narração, e considerar dois parâmetros: o saber do narrador em relação ao
enunciador e o saber em relação aos actantes do enunciado. Veja-se inicialmente o primeiro aspecto, o
saber relativo à narração. Em todos os nove romances, o narrador sabe mais sobre a narração que os
actantes do enunciado, que naturalmente, desconhecem a condução do texto, ainda que, em alguns
momentos, sejam instalados como narratários, como é o caso de Sancha em Dom Casmurro, ou
mesmo que o narratário seja transformado em interlocutor e actante dó enunciado, como em Quincas
Borba. Em sete dos nove romances, o saber do narrador sobre a narração revela-se muito inferior ao
126

Deste modo, observamos em Ressurreição o papel que desempenha a metalepse


de comentário no jogo entre o narrado e a narração. Os comentários do narrador
manifestam-se do começo ao fim da narrativa, fazendo com que o tema comum do
romantismo - o amor livre - possa ter outras chaves interpretativas ou outros olhares
além da visão dominante da escola romântica. Assim temos no primeiro capítulo:

Aqueles para quem a idade já desfez o viço dos primeiros


tempos, não se terão esquecido do fervor com que esse dia é
saudado na meninice e na adolescência. Tudo nos parece melhor
e mais belo, - fruto da nossa ilusão, e alegres com vermos o ano
que desponta, não reparamos que ele é também um passo para a
morte. (ASSIS, 2008, p. 236)

Neste enunciado, o jogo dá-se entre o novo - o ano que desponta - como elemento
positivo e a morte como elemento negativo. Entre os dois pólos, existe apenas a ilusão
que produz frutos do parecer belo e melhor. Esse jogo axiológico entre novidade e
morte tem como efeito a desestabilização do ponto central que orienta os valores
humanos, isto é, a ilusão. E encerrando o último capítulo:

cabe a reflexão do poeta: "perdem o bem pelo receio de o


buscar". Não se contentando com a felicidade exterior que o
rodeia, quer haver essa outra das afeições íntimas, duráveis e
consoladoras. Não a há de alcançar nunca, porque o seu coração,
se ressurgiu por alguns dias, esqueceu na sepultura o sentimento
da confiança e a memória das ilusões. (p. 314)

Se o enunciado inicial trata do ano novo, este trata da morte do amor em Lívia e
Félix. Para tanto, desenvolve o tema anterior para mostrar que a impossibilidade do
amor não se deve às questões externas, mas a própria relação que o indivíduo estabelece
consigo mesmo. No jogo entre enunciação e enunciado, entre o dito e o dizer, a chave
de leitura do amor livre, resultando em final feliz, agora aponta para outras
possibilidades - a ilusão - isto é, o que até o momento era visto como a façanha do herói
diante do obstáculo a ser vencido para se conjugar ao seu amor - aquilo que lhe é
externo e que depende dele para superar - na intervenção deste narrador, torna-se

do enunciador, pois, com frequência, ele se mostra inseguro e tem de explicar por que diz o que diz,
justificar a forma como conduz a narração, explicar os títulos que dá (ou não) aos capítulos, e assim
sucessivamente. Evidentemente, a dúvida, a insegurança, a imperícia, são do narrador; não do
enunciador. (CRUZ, 2009, 274-275)
127

interno à própria personagem e evidencia a incerteza que resulta em ruptura do ser


consigo mesmo. Em outras palavras, na perspectiva deste narrador, os sentimentos
proclamados pela escola romântica não passam de frutos da ilusão, que também pode
ser um passo para a morte, sobretudo se o coração já está lançado à sepultura.
Em A Mão e A Luva, a crise amorosa de Estevão que abre a narrativa é
relativizada pela metalepse de comentário. Quando, após uma madrugada em claro na
companhia de Luís Alves, Estevão acorda, o narrador tece o seguinte comentário: "A
natureza tem suas leis imperiosas: e o homem, ser complexo, vive não só do que ama,
mas também (força é dizê-lo) do que come". (p. 321) O enunciado estabelece a
contrariedade entre duas leis imperiosas da natureza e, ao fazê-lo, apresenta o valor
sublime compartilhado com os leitor - o amor - e coloca no mesmo nível desse valor
outro valor cotidiano, corporal e baixo - o comer; ao colocá-los no mesmo nível,
desestabiliza o abstrato e positivo com o corporal e negativo para mostrar que, se a dor
do rompimento amoroso era aguda na véspera, naquele momento se deixa encobrir pela
sombra do passado. Ou quando, passado dois anos, o então bacharel em Direito
Estevão, esquecido do seu primeiro amor, precisa ser justificado pelo narrador, este o
faz por meio dessa relativização dos sentimentos mudados pelo tempo:

Para os varões maduros, nunca a mocidade folga como no tempo


deles, o que é natural dizer, porque cada homem vê as coisas
com os olhos da sua idade. Os recreios da juventude não são
decerto igualmente nobres, nem igualmente frívolos, em todos
os tempos; mas a culpa ou o merecimento não é dela, — a pobre
juventude, — é sim do tempo que lhe cai em sorte. (p. 322)

Em Iaiá Garcia, quando Jorge, voltando da guerra, visita a casa da Tijuca, onde
antes havia roubado um beijo de Estela, agora casada com Luís Garcia, revive a
sensação do passado como um outro homem:

Mudam os homens, a vida varia seus aspectos; há porém nas


coisas inanimadas a virtude de guardar as feições fugitivas do
tempo; e a rua insignificante, o prédio denegrido, o muro
escalavrado cativam os olhos da memória, reconstruindo a
sensação que se foi. (p. 549)

Nestes e em outros numerosos exemplos a cortarem as narrativas, como um


aparte do narrador, as metalepses de comentário produzem, entre a diégese, a mimese,
as pausas e os sumários, a incerteza dos valores que pareciam consolidados no percurso
128

seguido pelo herói. Há, portanto, uma constante desestabilização, na qual o signo
(comentário) que remete ao signo (diegese, mimese, pausa e sumário) é atingido por
uma estranha impotência: a incerteza produzindo sua desterritorialização72. Assim, no
capítulo VIII, quando Félix se flagra perdidamente apaixonado pela viúva Lívia, o
narrador apresenta não como o triunfo do amor mas, como o título do capítulo sugere,
como a queda do homem e faz outro arremate em mais um de seus comentários:
"Algum homem pode gloriar-se de ser ingrato; dirá, com um moralista céptico, que é
uma maneira de ser independente. Mas ninguém é ridículo convencido; convencer-se é
emendar-se." (ASSIS, 2008, p. 263). Como observa Michel Foucault, se o comentário
estabelece um desnível entre o texto comentado e o comentário, pode desempenhar dois
papéis solidários entre si, isto é, se, por meio do comentário, constroem-se novos
discursos, reatualizando seu sentindo múltiplo para continuar mantendo oculto aquilo de
que o texto comentado é detentor, o comentário também, por meio desse procedimento
retórico, faz dizer o que estava articulado silenciosamente no texto comentado. 73
É, portanto, nesses deslocamentos de sentido promovidos por seus comentários
que o narrador precisa trazer o narratário ao nível da narrativa seja pela aproximação:
"Aquele dia, aurora do ano, escolhera-o o nosso herói para o ocaso de seus amores"
(ASSIS, 2008, p. 237); seja pelo diálogo que busca aparar as arestas de uma
interpretação equivocada: "Não se suponha, porém, que a pobreza o obrigasse ao
ofício;" (p. 239); seja pela enunciação de afirmativas atribuídas ao leitor com objetivo
de corrigi-las ou moderá-las:

72 O signo que remete ao signo é atingido por uma estranha impotência, por uma incerteza, mas
potente é o significante que constitui a cadeia. Eis porque o paranóico participa dessa impotência do
signo desterritorializado que o assalta por todos os lados na atmosfera escorregadia, mas ele acede
ainda mais ao sobrepoder do significante, no sentimento real da cólera, como senhor da rede que se
propaga na atmosfera. (DELEUZE E GUATTARI, 2011, p. 65)
73 Por um lado permite construir (e indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto primeiro
pairar acima, sua permanência, seu estatuto de discurso sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou
oculto de que passa por ser detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo isso
funda uma possibilidade aberta de falar. Mas, por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam
quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no
texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca,
dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que,
no entanto, não havia jamais sido dito. A repetição indefinida dos comentários é trabalhada do interior
pelo sonho de uma repetição disfarçada: em seu horizonte não há talvez nada além daquilo que já
havia em seu ponto de partida, a simples recitação. O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-
lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo
seja dito e de certo modo realizado. A multiplicidade aberta, o acaso são transferidos, pelo princípio
do comentário, daquilo que arriscaria de ser dito, para o número, a forma, a máscara, a circunstância
da repetição. O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta (FOUCAULT, 2010,
p. 25).
129

Ironia da sorte chamará o leitor a este desfecho de uma situação


que, algumas semanas antes, tão outra se lhe afigurava. Chame-
lhe antes lógica da natureza, porque o coração de Félix, que
aparentava ser de mármore, era simplesmente da nossa comum
argila. (p. 262)

Ou ainda, enunciando a dúvida do leitor como premissa a ser refutada: "Mas a mulher
dele? A mulher dele, amigo leitor, era uma moça relativamente feliz. Estava mais que
resignada, estava acostumada à indiferença do marido" (p. 266).
Esses constantes diálogos com o leitor evidenciam que o contrato previamente
estabelecido entre autor e leitor foi alterado. No contrato romântico, o leitor espera um
destinador a demandar uma determinada ação ao herói para recuperar o objeto com o
qual se encontra em disjunção. Para tanto, deve enfrentar alguns obstáculos em busca de
estabelecer a conjunção com esse objeto. No caso de Ressurreição, o destinador (os
sentimentos de Félix) demanda que o herói enfrente o relacionamento com Lívia para
poder reestabelecer o objeto (a confiança) da qual se encontra em disjunção. Em A Mão
e a Luva, o destinador (o amor de Estevão por Guiomar) demanda que o herói enfrente a
rejeição de Guiomar, bem como o rival Jorge para poder reestabelecer o objeto (o amor
de Guiomar por Estevão). Em Helena, o destinador (testamento do Conselheiro Vale)
demanda que a heroína enfrente a família do Conselheiro falecido para poder
restabelecer o objeto que pode ser tanto o pertencimento familiar quanto a felicidade.
Em Iaiá Garcia, o destinador (amor de Jorge por Estela) demanda que o herói enfrente
sua mãe Valéria e sua ida à guerra para conquistar o coração de Estela. Obviamente,
pelos diferentes desdobramentos que essas narrativas apresentam, o leitor pode supor
outros destinadores, heróis, obstáculos e objetos de conquistas. Exatamente por conta
desses desdobramentos a embaralhar os papéis actanciais é que, em nenhum deles, o
contrato é respeitado e, para tanto, o narrador interfere na narrativa com seus
comentários para mostrar que o esquema axiológico não funciona de modo tão simples
como prevê o modelo romântico. Se o contrato foi alterado, o narrador precisa, para não
perder a atenção do seu leitor, apresentar outro contrato. Nesse sentido, as metalepses de
comunicação, de regência e testemunhal têm papel importante nesses quatro romances
para elaborar o novo contrato que reconstitua a coesão rompida e assegure a melhor
recepção da mensagem. Além dos exemplos já citados, vemos, por exemplo, esse
esforço quando, em A Mão e a Luva, para preparar a mudança na disputa pelo coração
de Guiomar, o narrador, após intercalar diégese e mimese, as quais constituem a cena de
130

aproximação entre a jovem e o advogado Luís Alves, descreve a sensação que este
causa na moça: "A ruga desfez-se a pouco e pouco, mas a moça não retirou logo os
olhos. Havia neles uma interrogação imperiosa que a alma não se atrevia a transmitir
aos lábios. Se há nos do leitor alguma interrogação, esperemos o capítulo seguinte" (p.
362) A promessa suspensa no capítulo XII não se esclarece no capítulo seguinte. Ao
invés disso, o narrador explora ainda mais essas incertezas entre as personagens,
fazendo com que Guiomar saiba que, embora aquelas palavras sejam mais que um
cumprimento, não chegam a ser uma declaração de amor, colocando seu estado de
espírito em suspensão. Para tanto esse desvio da narrativa que tornará Luís Alves um
novo concorrente ao coração de Guiomar é justificado tanto pelo diálogo com o leitor
como pela metalepse de regência e testemunhal:

Se esse contraste era premeditado, — não sei se o era, — não


podia vir mais de feição ao espírito de Guiomar. De quantos
homens a moça tratara até ali, era o primeiro que lhe inspirava
curiosidade, e também, naquela ocasião, a primeira pessoa que
se compadecia dela. Veja o leitor: — curiosidade e gratidão; —
veja se há duas asas mais próprias para arrojar uma alma no seio
de outra alma, — ou de um abismo, que é às vezes a mesma
coisa.
Eu disse "compadecia", e esta só palavra, desacompanhada de
outra coisa, pode fazer crer ao leitor que, durante aqueles dias
em que a perdemos de vista, tornara-se Guiomar uma criatura
desditosa. Nada disso; a situação era a mesma, não a mesma
anteriormente à carta de Jorge, mas a mesma da noite em que ela
a recebeu, situação, decerto, assaz sombria e carregada para um
coração que receia ser constrangido, mas não desesperada nem
angustiosa. (p. 363)

A dúvida do narrador enunciada pela frase "não sei se o era" sobre a atitude
ambígua de Luís Alves em relação à Guiomar tem como efeito de sentido a incerteza
que atinge não apenas o leitor, mas o narrador, evidenciando sua não onisciência. O
narrador coloca-se na mesma condição que o leitor sobre o significado daquela atitude
tomada por Luís Alves que, até o momento, desempenha o papel de advogado de
Estevão para conquistar o amor de Guiomar, mas que agora muda de direção, tornando-
se rival do amigo. Cabe observar que, anteriormente, Luís Alves que pleiteia Guiomar
para Estevão, foi procurado por Jorge para impedir a viagem da Baronesa a Cantagalo.
Essa duplicidade enunciada na história toma conta da narração, atingindo não apenas o
leitor, mas também o narrador que se vê obrigado a assumir o limite de seu
131

conhecimento sobre a personagem Guiomar. Tais efeitos de sentidos operados pelas


metalepses embaralham o universo narrativo, fazendo com que as operações
enunciativas potencializem seu contraste.
Em Helena, quando o médico Dr. Camargo recebe a carta de Estácio, pedindo a
mão de Eugênia em casamento, manifesta seu contentamento, dando um beijo na testa
da filha. O narrador interrompe a narrativa e chama a atenção do leitor para o
significado daquele beijo, como também antecipando o terceiro que acontece no último
capítulo: "Daquele sonho foi despertada pelo pai, que lhe imprimiu na testa o seu
segundo beijo. O primeiro, como o leitor se há de lembrar, foi dado na noite da morte
do conselheiro. O terceiro seria provavelmente no dia em que ela casasse." (p. 443)
Marcando como símbolo do jogo de interesses do médico em querer casar a filha com o
jovem Estácio, o terceiro beijo é anunciado não como um ato pura e simplesmente, mas
como significação desse jogo. Contudo, o verbo conjugado no futuro do pretérito, como
também a referência ao dia em que aconteceria o terceiro beijo, não acontece no
romance, evidenciando o limite de informação do narrador. Posteriormente, o leitor
saberá que o terceiro beijo é dado na morte de Helena e não no dia do casamento -
acontecimento que não será narrado. Neste mesmo capítulo, o narrador repete o mesmo
procedimento, agora não sobre o casamento, mas sobre a insistência do médico em que
o jovem seguisse uma carreira política: "Vimo-lo apresentar a Estácio a maçã política;
recusada a princípio, foi-lhe de novo apresentada, e finalmente aceita com a noiva" (p.
445), para então evidenciar o interesse do médico ao dizer: via-se como que sogro do
Estado e pai das instituições. Como observa Elisa Guimarães, o emprego do pronome
nós - que no caso está marcado pelo verbo conjugado na primeira pessoa do plural -
substituindo o eu do narrador, sugere que autor e leitor, juntos efetuam um passeio no e
pelo texto, tornando o leitor coadjuvante no processo da escrita 74. Em A Mão e a Luva,
ao narrar o reencontro entre Guiomar e Estevão na cerca que separava a casa da
Baronesa e a de Luís Alves, em Botafogo, o narrador usa do mesmo recurso para
contextualizar a personagem Guiomar: "A sineta do almoço chamou-as a outros
cuidados, e a nós também, amigo leitor. Enquanto as três almoçam, relancemos os olhos
ao passado, e vejamos quem era essa Guiomar tão gentil, tão buscada e tão singular,
como dizia Mrs. Oswald" (ASSIS, 2008, p. 333). Neste exemplo, evidencia não só a

74 Essas passagens, nas quais o emprego de nós substitui eu, sugerem a ideia de um passeio no e pelo
texto que, juntos, efetuariam o autor e o leitor - este convidado a coadjuvante no traçado da obra.
(GUIMARÃES, 1997, p. 62)
132

participação do leitor como coadjuvante no processo da escrita, como também os coloca


- narrador e narratário - no mesmo nível diegético das personagens, as quais, após a
sineta do almoço são chamadas a outros cuidados.
Essas diferentes funções da metalepses identificadas nestes quatro romances
evidenciam a quebra do contrato romântico pelo narrador, operada pelas incertezas que
permeiam as histórias, para reestabelecer um novo contrato com o leitor, o qual é
chamado como coadjuvante no processo de construção desse novo sentido ficcional. Por
meio das metalepses testemunhais, o modelo participativo desautoriza a compreensão
de um narrador onisciente e, portanto, coloca-o em vários momentos no mesmo nível de
saber do leitor; por meio das metalepses de regência, evidencia o processo de
construção narrativa a mostrar ao leitor como funciona a estrutura do romance, jogando
com a ilusão de sujeito autoral da obra; por meio das metalepses de comentário,
desnaturaliza os valores consolidados historicamente, propondo outra perspectiva
interpretativa que não substitui simplesmente as anteriores, mas que, muitas vezes, as
suspendem e colocam o leitor na incerteza epistemológica; e, por fim, por meio das
metalepses de comunicação, insere-se o leitor como coparticipante no processo de
interpretação do texto. Em outras palavras, as metalepses de comentário propõem um
novo contrato de leitura. Para tanto, as metalepses testemunhais funcionam como
concessão do narrador ao narratário, abrindo mão de seu lugar de onisciência e
potencializando as incertezas. Feito isso, as metalepses de comunicação nivelam
narrador e narratário por meio do jogo de sedução que ilude o leitor como coautor do
texto. Essa sedução é investida no leitor por meio das metalepses regenciais, que lhe
disponibilizam os processos de enunciação da narrativa, constituindo, com isso, um
novo contrato ficcional entre autor e leitor. Por fim, cabe observar que essas operações
feitas pelas metalepses, embora assumam esses lugares de incertezas epistemológicas,
não pretendem evidenciar a relação poder-saber operadas no discurso. Pelo contrário,
seu objetivo é deslocar o leitor para um outro campo ilusório, levando-o a acreditar-se
como coautor da obra e, com isso, reatualizando o domínio discursivo do narrador.

b) A Metalepse como modelo disciplinar.

Conforme vimos o funcionamento das metalepses nos quatro romances, a


narrativa como instância legitimadora de sentido e produtora de verdade é
desestabilizada à medida que o narrador abre mão do lugar da onisciência, assumindo
133

seus limites por meio da metalepse testemunhal, e convida o leitor ao processo narrativo
por meio das metalepses de regência e de comunicação, estabelecendo com ele um novo
contrato de leitura definido como modelo contratual. Em Quincas Borba, o narrador
também estabelece esse novo contrato com o leitor por meio das metalepses de
regência, testemunhal e de comunicação, à medida que há o investimento na primeira
pessoa do plural, bem como a enunciação do processo narrativo e também o limite de
conhecimento dos fatos assumido pelo narrador. Contudo, algo diferente dá-se neste
novo procedimento narrativo: aos poucos o narrador afasta o leitor desse processo,
responsabilizando-o por certos enunciados, apontando lacunas na produção de sentido
da narrativa ou, ainda, contrariando seu modo de interpretar determinado
acontecimento, como veremos a seguir. À medida que o narrador enuncia o narratário
na narrativa, bem como enuncia o ato narrativo e também desautoriza o leitor do papel
de produtor de sentido acentuando as contradições e falhas, sem com isso se constituir
como narrador onisciente, isto é, continuando a enunciar seus limites de conhecimento,
dá-se um novo modelo de funcionamento da narrativa o qual chamamos de modelo
disciplinar.
Michel Foucault define a disciplina como um princípio de controle da produção
discursiva, isto é, a disciplina fixa no jogo discursivo uma identidade, cuja forma é
determinada por uma permanente reatualização das regras 75. Em O Poder Psiquiátrico,
o poder disciplinar é definido, em oposição ao poder da soberania, como um poder
anônimo, múltiplo, pálido, sem cor, cujo objetivo não consagra o poder de alguém, mas
apenas produz efeitos no corpo, o qual deve ser tornado dócil e submisso 76.
Maingueneau observa que um posicionamento enunciativo deve levar em conta o
investimento imaginário do corpo, cuja adesão "física" está ligada a certo universo de
sentido, isto é, as ideias enunciadas a partir de um ethos determinam um tom que
necessariamente implica certa determinação de seu próprio corpo de modo que o

75 A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo
de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras. Tem-se o hábito de
ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma
disciplina, como que recursos infinitos para a criação dos discursos. Pode ser, mas não deixam de ser
princípios de coerção; e é provável que não se possa explicar seu papel positivo e multiplicado r, se
não se levar em consideração sua função restritiva e coercitiva. (FOUCAULT, 2010, p. 36)
76 Pois bem, no lugar desse poder decapitado e descoroado se instala um poder anônimo múltiplo,
pálido, sem cor, que é no fundo o poder que chamarei da disciplina. Um poder de tipo soberania é
substituído por um poder que poderíamos dizer de disciplina, e cujo efeito não é em absoluto
consagrar o poder de alguém, concentrar o poder num indivíduo visível e nomeado, mas produzir
efeito apenas em seu alvo, no corpo e na pessoa do rei descoroado, que deve ser tornado 11 dócil e
submisso:" por esse novo poder. (FOUCAULT, 2006, p. 28)
134

enunciado não é apenas uma articulação de proposições, mas também a evidência de


uma corporalidade dada no movimento da leitura e, portanto, associada a representações
e normas de disciplina do corpo77. É essa instância subjetiva efetuada pela enunciação
como voz que permite ao narratário construir um corpo a partir de um conjunto difuso
de estereótipos, acedendo a uma maneira de ser por meio de uma maneira de dizer, de
modo que esse destinatário, não sendo apenas um consumidor de ideias, pode evocar
por meio desse corpo e eficácia do discurso a sua realidade do mundo78. É nesse sentido
que Pierre Bourdieu, em seu texto A Economia das trocas linguísticas, define a
linguagem como uma dimensão da héxis corporal, isto é, a característica de uma classe
pela qual se submete o aspecto fonológico do discurso a uma deformação sistemática e
na qual se exprime toda relação com o mundo social79.
O narrador de Quincas Borba por meio dos pronomes pessoais e dos verbos

77 Um posicionamento não implica apenas a definição de uma situação de enunciação e certa


relação com a linguagem: devemos igualmente levar em conta o investimento imaginário do
corpo, a adesão "física" a certo universo de sentido. As "ideias" são apresentadas através de uma
maneira de dizer que é também uma maneira de ser, associada a representações e normas de
disciplina do corpo. Discursos de atribuição de referenciais últimos, construção de um lugar
enunciativo que dá sentido às práticas humanas, os discursos constituintes são portadores de uma
esquematização do corpo, mesmo se eles negam essa dimensão. Retomamos aqui a problemática
retórica do ethos. Concebendo-o dentro de uma perspectiva pragmática, esse ethos emana do
"mostrado": o enunciado r é percebido através de um "tom" que implica certa determinação de
seu próprio corpo, à medida do mundo que ele instaura em seu discurso. A legitimação do
enunciado não passa somente pela articulação de proposições, ela é habitada pela evidência de
uma corporalidade que se dá no próprio movimento da leitura. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 53)
78 Nessa perspectiva, o destinatário não é somente um consumidor de "ideias". Ele acede a uma
"maneira de ser" através de uma "maneira de dizer". O laço assim estabelecido entre o corpo e a
eficácia do discurso não deixa de evocar a realidade das práticas linguageiras, tais como as apreendem
em um nível diferente certas tendências da sociolinguística, a de Bourdieu em particular. Para este
autor, "a linguagem é uma técnica do corpo e a competência propriamente linguística, especialmente a
fonológica, é uma dimensão da héxís corporal na qual se exprime toda a relação com o mundo social".
Assim, "é por intermédio da disciplina corporal e linguística que se opera a incorporação das
estruturas objetivas e que as 'escolhas' constitutivas de uma relação com o mundo econômico e social
são interiorizadas sob a forma de montagens duráveis e subtraídas à tomada de consciência". Os
conflitos entre formações discursivas evidentemente não se deixam reduzir a conflitos de classes
sociais, mas, de um modo ou de Outro, trata-se de fato de organizar uma relação com o mundo através
da linguagem de uma comunidade; compreende-se que a constituição de um modo de enunciação
específico articulado sobre esquemas corporais se torne crucial". (MAINGUENEAU, 2008, 94)
79 Mas é preciso ainda tirar as conseqüências do fato de que o capital lingüístico é um capital
incorporado e que o aprendizado da língua é uma dimensão do aprendizado de um esquema corporal
global, ele próprio ajustado a um sistema de chances objetivas de aceitabilidade. A linguagem é uma
técnica do corpo e a competência propriamente lingüística, especialmente a fonologia, é uma
dimensão da héxis corporal onde se exprime toda relação com o mundo social. A héxis corporal, que é
característica de uma classe, submete o aspecto fonológico do discurso a uma deformação sistemática.
Isto se dá por intermédio daquilo que Pierre Guiraud chama de "estilo articulatório", dimensão do
esquema corporal que constitui uma das mediações mais importantes entre a classe social e a
linguagem: assim, o estilo articulatório das classes populares é inseparável de toda uma relação com o
corpo dominada pela recusa dos "maneirismos" ou das "afetações" e pela valorização da virilidade
(BOURDIEU, 1983, p. 179)
135

conjugados em primeira pessoa tanto no singular quanto no plural enuncia a instância


subjetiva que tem como efeito a construção do corpo do narrador/narratário a
estabelecer representações e normas de disciplina como ato de leitura e produção de
sentido. Essa disciplina, como define Foucault, estabelece tanto a forma discursiva de
controle da produção de novos discursos na ordem do saber, como também o conjunto
de técnicas pelas quais os sistemas de poder têm por objetivo e resultado a
singularização dos indivíduos80. É portanto, por meio do jogo entre restrição e coerção,
ou como preferimos definir neste trabalho, no jogo entre sedução e coerção que o poder
disciplinar desenvolve seu papel positivo e multiplicador. Existe, portanto, nesse jogo,
dois níveis distintos: o nível da ficção e o da enunciação. No nível da ficção, o autor
ficcional opera esse poder disciplinar sobre o leitor por meio das metalepses; no nível da
enunciação, como discurso que mostra seu funcionamento, o romance evidencia para o
leitor como o poder opera por meio desses procedimentos.
Michel Foucault observa que a busca pelo natural, pelo verossímil, pelo discurso
verdadeiro faz com que os discursos se organizem por meio de um poder de coerção e,
portanto, para se entender o papel positivo e multiplicador da disciplina é preciso levar
em conta sua função restritiva e coercitiva81. Maingueneau, ao analisar um folheto
sindical que pretende ser um depoimento autêntico sobre a realidade do trabalho,
observa que nenhum enunciado é livre de qualquer coerção e, portanto, para ter este
efeito precisa se adequar ao gênero de modo que possa cumprir seus efeitos de
sentido82. Portanto, para entender esse esforço no qual a coesão e a coerência textuais

80 Foucault estabelece dois usos para o termo. Um deles é associado à ordem do saber. Trata-se, nesse
caso, de uma forma discursiva que visa controlar/limitar a produção de novos discursos. Trata-se de
um projeto voltado para a disciplinarização dos saberes, o que o leva a compreender a Enciclopédie, a
criação das grandes escolas e universidades como mecanismos articulados a essa finalidade. Outra
acepção é associada à ordem do poder. Trata-se, nesse caso, de um conjunto de técnicas em virtude
das quais os sistemas de poder têm por objetivo e resultado a singularização dos indivíduos. Volta-se
para o corpo e singularização dos indivíduos. (GONDRA, 2009, p. 173 - nota de rodapé)
81 Enfim, creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição
institucional tende a exercer sobre os outros discursos - estou sempre falando de nossa sociedade -
uma espécie de pressão e como que um poder de coerção. Penso na maneira como a literatura
ocidental teve de buscar apoio, durante séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência
também - em suma, no discurso verdadeiro. Penso, igualmente, na maneira como as práticas
econõmicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente como moral, procuraram, desde o
século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se a partir de uma teoria das riquezas e da
produção; penso ainda na maneira como um conjunto tão prescritivo quanto o sistema penal procurou
seus suportes ou sua justificação, primeiro, é certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século
XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não
pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade (FOUCAULT,
2010, p. 18).
82 De qualquer forma, a AD não pode deixar de refletir sobre o gênero quando aborda um corpus. Um
136

garantem a simultaneidade dos enunciados que explicam e justificam o duplo registro


de seu funcionamento é preciso levar em conta as coerções da linearidade textual que as
metalepses determinam com significativo esforço. Essa coerção resulta da necessidade
da certeza e da crença plena que exclui inteiramente qualquer dúvida, como observa
Perelman, por meio da afirmação necessária e universal, pois, como observa o filósofo
polonês, "a necessidade da certeza é o estado em que temos consciência de pensar a
verdade, que é justamente essa coerção universal, essa obrigação mental; a
subjetividade desaparece, o homem pensa como inteligência, como homem e não mais
como indivíduo." (PERELMAN, 2005, p. 36). Para tanto, diante da dúvida dos valores e
das crenças, o autor ficcional potencializa em seu leitor essas dúvidas, não com o intuito
de desmontar uma vez por todas essa necessidade de verdade, mas como forma de,
diante da inevitável incerteza, apresentar o discurso de modo anônimo e múltiplo como
única possibilidade de reconciliação de seu leitor com a verdade. É, portanto, uma voz
que se mostra enquanto fala e, ao se mostrar, como observa Michel Foucault, propõe o
afrontamento entre a linguagem e as coisas para estabelecer-se de uma forma que exclui
toda incerteza83.
Alfredo Bosi, em sua análise sobre o Memorial de Aires, afirma algo importante
sobre esse jogo entre o narrador e o leitor no processo de reconciliação da verdade como
um dos modos de atenuar a cisão entre o sujeito e a verdade, isto é, duvidar ou fingir
que duvida, como faz o Conselheiro Aires, sendo a linguagem marcada por formas
resvaladiças que permitem dizer sem dizer, podendo abrir janelas para as impressões do
objeto e cerrar sobre elas o véu da incerteza do sujeito84. Nesse sentido, o narrador,
como suporte das formações discursivas, conforme observa José Luiz Fiorin, investe
nas estruturas sintáticas abstratas temas e figuras ao elaborar a sua narrativa para

enunciado "livre" de qualquer coerção é utópico. Uma boa ilustração deste fato decorre de um texto
que B. Gardin examinou; trata-se de um folheto sindical que pretende ser um depoimento "autêntico"
sobre a realidade do trabalho em uma linha de montagem. As coerções do gênero "depoimento"
exigem a utilização de um "falar popular" que supostamente é capaz de liberar um discurso imediato.
(MAINGUENEAU, 1997, p. 38)
83 Essas quatro variáveis, que se podem aplicar da mesma forma às cinco partes da planta — raízes,
caules, folhas, flores, frutos — especificam a extensão que se oferece à representação, o bastante para
que seja possível articulá-la numa descrição aceitável por todos: perante o mesmo indivíduo, cada
qual poderá fazer a mesma descrição; e, inversamente, a partir de tal descrição, cada um poderá
reconhecer os indivíduos que a ela correspondem. Nessa articulação fundamental do visível, o
primeiro afrontamento entre a linguagem e as coisas poderá estabelecer-se de uma forma que exclui
toda incerteza. (FOUCAULT, 2002, p. 184)
84 Um primeiro modo de atenuar é duvidar, ou fingir que se duvida. A língua humana tem formas
resvaladiças de dizer sem dizer. Veja-se o verbo parecer que, a um só tempo, abre as janelas para as
impressões do objeto e cerra sobre estas o véu da incerteza do sujeito. (BOSI, 1999, p. 133)
137

materializar valores, crenças, explicações, justificativas e racionalizações possíveis do


discurso. No entanto, esse investimento não se dá por ser ele agente do discurso como
se fosse livre de qualquer coerção social. Pelo contrário, sendo produto de relações
sociais e, portanto, compartilhando com o leitor de várias formações discursivas, o autor
ficcional as reproduz, criando um ponto de identificação com o leitor para reafirmar os
valores ideológicos de uma determinada classe social: a classe dominante85. Nesse
sentido, a coerção dá-se juntamente com a sedução, cujo efeito de identificação entre
narrador e narratário opera mecanismos discursivos por meio dos desejos compactuados
pelos leitores que motivam a narrativa. Esta é a questão que leva Jack Goody, em seu
texto Da oralidade à escrita, a se perguntar até que ponto o ato de narrar histórias tem a
ver com a sedução e ver nessa busca pela ficção o jogo entre a dúvida e a verdade 86. É
nesse sentido que Michel Foucault, em As palavras e as coisas, ao tratar da
equivalência dos objetos de desejo, observa que esta não se dá porque esses desejos
sejam comparáveis, mas porque estão submetidos ao tempo, ao esforço, à fadiga e à
própria morte87. Desse modo se a ordem do desejo que movimenta a narrativa dá-se
pelo jogo da sedução, esta não se estabelece como troca entre desejos comparáveis, mas,
porque, submetida ao tempo e à grande fatalidade da vida, opera-se no jogo social das
formações discursivas por meio da coerção.
Em Quincas Borba, o diálogo com o leitor estabelece o mesmo jogo de sedução

85 O falante, suporte das formações discursivas, ao construir seu discurso, investe nas estruturas
sintáticas abstratas temas e figuras, que materializam valores, carências, desejos, explicações,
justificativas e racionalizações existentes em sua formação social. Esse enunciador não pode, pois, ser
considerado uma individualidade livre das coerções sociais, não pode ser visto como agente do
discurso. Por ser produto de relações sociais, assimila uma ou várias formações discursivas, que
existem em sua formação social, e as reproduz em seu discurso. É nesse sentido que se diz que ele é
suporte de discursos. Na medida em que as formações discursivas materializam as formações
ideológicas e estas estão relacionadas às classes sociais, os agentes discursivos são as classes e as
frações de classe. Tornamos a lembrar que, embora haja diferentes formações discursivas numa
formação social, a formação discursiva dominante é a da classe dominante. (FIORIN, 1993, p. 43)
86 Em outras palavras, a sua escassa presença relaciona-se ao problema intrínseco a cada tipo de
representação, levantado por Platão mas em nada limitado à tradição ocidental, qual seja, o de que a
ficção não é verdade histórica (evidente por si mesma); é, literalmente, uma mentira, se bem possa
ambicionar a um outro tipo de verdade, a da imaginação. Pode ambicioná-lo, mas isso não significa
que o alcance. Ao contrário, segundo alguns, se trata de uma ambição destinada a permanecer ilusória;
por isso às vezes se prefere a biografia, que também apresenta elementos de ficção, à história
inventada, capaz de oferecer apenas distração, não, certamente, "verdade". (GOODY, 2009, p. 65)
87 A equivalência dos objetos do desejo não é mais estabelecida por intermédio de outros objetos e de
outros desejos, mas por uma passagem ao que lhes é radicalmente heterogêneo; se há uma ordem nas
riquezas, se isto pode comprar aquilo, se o ouro vale duas vezes mais que a prata, não é mais porque
os homens têm desejos comparáveis; não é porque através de seu corpo eles experimentam a mesma
fome ou porque o coração de todos obedece às mesmas seduções; é porque todos eles são submetidos
ao tempo, ao esforço, à fadiga e, indo ao extremo, à própria morte. Os homens trocam porque
experimentam necessidades e desejos; mas podem trocar e ordenar essas trocas porque são
submetidos ao tempo e à grande fatalidade exterior. (FOUCAULT, 2002, pp. 308-309)
138

identificado nos quatro primeiros romances. Assim, o narrador faz uso constante dos
pronomes pessoais e dos verbos conjugados na primeira pessoa do plural. Vemos alguns
exemplos como no capítulo IV: "...o nosso Rubião, acompanhando o médico até a porta
da rua,perguntou-lhe qual era o verdadeiro estado do amigo" (ASSIS, 2008c, p. 51); no
capítulo LVI: "Saltemos por cima de tudo o que ele sentiu e pensou durante os
primeiros dias." (p. 125); no capítulo CI: "Esse ato de nosso amigo fez grande
impressão nos convidados" (p. 191). Estes e outros exemplos, conjugados com as
outras metalepses, têm efeitos de sedução no ato da leitura a tornar o leitor
coadjuvante do ato da escrita. Contudo, diferentemente dos outros narradores,
este, aos poucos, estabelece uma diferença de nível, tornando o leitor menos
coautor e mais observador do processo da narrativa. Em Iaiá Garcia, quando o
narrador convida o leitor a voltar um pouco e ver como se deu o casamento de
Estela, ele o faz nos seguintes termos: "Antes de irmos direito ao centro da
ação,vejamos por que evolução do destino se operou o casamento de Estela." (p.
538). Como vemos, o leitor é convidado a acompanhar a cena que antecede ao que
vem sendo contado. Obviamente, não é um convite de compor junto, mas à medida
que o narrador, por meio dos verbos conjugados em primeira pessoa do plural,
coloca-se no mesmo nível do leitor, ambos acompanham em mesmas condições de
status. O mesmo procedimento vemos em A Mão e a Luva no capítulo IV: "Enquanto
as três almoçam, relancemos os olhos ao passado, e vejamos quem era essa Guiomar tão
gentil, tão buscada e tão singular, como dizia Mrs. Oswald" (p. 333). Diferentemente
deles, em Quincas Borba, para além desses marcadores linguísticos de comunhão entre
narrador e narratário aparecem outros marcadores que indicam o distanciamento
conforme podemos ver no capítulo III:

Não trazia ideias adequadas ao convite, é verdade; vinha com a


herança na cabeça, o testamento, o inventário, coisas que é
preciso explicar primeiro, a fim de entender o presente e o
futuro. Deixemos Rubião na sala de Botafogo, batendo com as
borlas do chambre nos joelhos, e cuidando na bela Sofia. Vem
comigo, leitor; vamos vê-lo, meses antes, à cabeceira do
Quincas Borba. (p. 49 - grifo nosso)

Embora se repita o convite de acompanhamento, este é introduzido pelo


desnivelamento de informação entre o narrador e o leitor, isto é, antes de fazer o
convite, o narrador avisa o leitor de algo que ele ainda não sabe e que, portanto, precisa
139

ser explicado. Na sequência deste trecho, abrindo o capítulo IV, o narrador informa ao
leitor quem é Quincas Borba, acentuando ainda mais esse desnivelamento:

Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as


Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago
da existência, que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado, e
inventor de uma filosofia. Aqui o tens agora em Barbacena. (p.
50)

Além dessa diferença de informação em que o narrador evidencia saber mais


que o leitor, o tom do diálogo é mais agressivo e, portanto, tende à coerção, isto é, para
que o leitor possa estar no mesmo nível de informação que o narrador, ele precisa
conhecer a mesma coisa que este: o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, do
qual é autor. No capítulo XIV, o narrador informa que Rubião quase caiu para trás,
quando abriu o testamento de Quincas Borba, mas, antes de dizer o motivo, ele sugere
ao leitor que o adivinhe. Ao fazer isso, joga com a mentira e o segredo, isto é, é um
narrador que sabe mais que o leitor, mas não quer aparecer como tal quando enuncia o
narratário na narrativa por meio da pergunta e, deste modo, estabelece o segredo. Ao
fazer isto, ele quer parecer um narrador que constrói com o leitor a narrativa, embora
não o seja, estabelecendo a mentira. Ao mesmo tempo, algumas informações ou
procedimentos de composição são atribuídos ao narratário, o qual, embora possa parecer
constituí-lo como coadjuvante do ato narrativo, o narrador acentua as "falhas" do
narratário, corrigindo-as como vemos no início do capítulo XIX, no qual o narrador
começa por avisar: "Não esqueça dizer que..." (p. 71) Ou quando, no capítulo LV,
quando Rubião anuncia ao Palha e ao Dr. Camargo sobre sua vontade de voltar a
Barbacena o narrador relata a reação de Palha e busca defini-la por meio do diálogo
com o leitor, tomando o mesmo procedimento:

A última hipótese trouxe à fisionomia do Palha um elemento


novo,que não sei como chame. Desapontamento? Já o elegante
Garrett não achava outro termo para tais sensações, e nem por
ser inglês o desprezava. Vá desapontamento. Misturem-lhe o
espanto da notícia da separação, e a sombrinha de pesar; não se
esqueçam da separação, não esqueçam a cólera que primeiro
trovejou surdamente, e não faltará quem ache que a alma deste
homem é uma colcha de retalhos. Pode ser; (p. 124 - grifo
nosso)

Neste exemplo, além dessa correção feita pelo narrador, o qual pede que o
140

narratário não se esqueça de certas informações para ver a alma de Palha como uma
colcha de retalhos, essa conclusão é logo tomada com certo distanciamento pelo
narrador, o qual não a assume inteiramente, mas apenas concorda como possibilidade de
interpretação, atribuindo por meio desse distanciamento tal leitura ao leitor. No capítulo
XXVIII, ao enunciar os pensamentos do cachorro Quincas Borba em discurso indireto
livre, o narrador interrompe a narrativa para justificar o procedimento e atribui ao leitor
as afirmações enunciadas: "Mas já são muitas ideias, — são ideias demais; em todo
caso são ideias de cachorro, poeira de ideias, — menos ainda que poeira, explicará
o leitor." (p. 80) Vemos neste exemplo o mesmo procedimento a reafirmar a ideia
de coparticipação, mas que, em alguns momentos, como esse o narrador não a
assume, deixa-a sob responsabilidade do leitor. Este procedimento repete-se no
capítulo XC de forma potencializada, visto que o enunciado, além de não ser
assumido pelo narrador, não é atribuído à personagem, fazendo com que o
narratário assuma sozinho sua responsabilidade enunciativa:

Oh! precaução sublime e piedosa da natureza, que põe uma


cigarra viva ao pé de vinte formigas mortas, para compensá-
las. Essa reflexão é do leitor. Do Rubião não pode ser. Nem
era capaz de aproximar as coisas, e concluir delas, — nem o
faria agora que está a chegar ao último botão do colete, todo
ouvidos, todo cigarra... (p. 178 - grifo nosso)

Esses exemplos mostram, por meio da metalepse de comunicação, o jogo sutil


que o narrador estabelece com o narratário ao considerá-lo como coadjuvante do
processo da narração e, a partir disso, apontar possíveis falhas de leitura, como também
fazê-lo assumir sozinho certas afirmações da narrativa. Este movimento segue até o
momento em que o narrador abandona o narratário e denuncia o equívoco de leitura
apressada sobre um determinado episódio. Trata-se da história contada pelo cocheiro a
Rubião sobre um rapaz que ele levara para se encontrar com uma dama na casa de uma
costureira que morava na rua da Harmonia, história que fará com que Rubião acredite
referir-se a Sofia e Carlos Maria, após descobrir que uma das costureiras de Sofia
morava nessa mesma rua. No capítulo CVI, após narrar a perseguição de Rubião à
costureira e sua briga com Sofia, o narrador interrompe a narrativa para acusar o leitor
de calúnia e não apenas o acusa como mimetiza a voz do narratário na narrativa:
141

... OU, mais propriamente, capítulo em que o leitor,


desorientado,— não pode combinar as tristezas de Sofia com a
anedota do cocheiro. E pergunta confuso: — Então a entrevista
da Rua da Harmonia, Sofia, Carlos Maria, esse chocalho de
rimas sonoras e delinquentes é tudo calúnia? Calúnia do leitor e
do Rubião, não do pobre cocheiro, que não proferiu nomes, não
chegou sequer a contar uma anedota verdadeira. É o que terias
visto, se lesses com pausa. Sim, desgraçado, adverte bem que
era inverossímil; que um homem, indo a uma aventura daquelas,
fizesse parar o tílburi diante da casa pactuada. Seria pôr uma
testemunha ao crime. Há entre o céu e a terra muitas mais ruas
do que sonha a tua filosofia,— ruas transversais, onde o tílburi
podia ficar esperando.
— Bem; o cocheiro não soube compor. Mas que interesse tinha
em inventar a anedota?
Conduzira Rubião a uma casa, onde o nosso amigo ficou quase
duas horas, sem o despedir; viu-o sair, entrar no tílburi, descer
logo e vir a pé, ordenando-lhe que o acompanhasse. Concluiu
que era ótimo freguês; mas, ainda assim não se lembrou de
inventar nada. Passou, porém, uma senhora com um menino, —
a da Rua da Saúde, — e Rubião quedou-se a olhar para ela com
vistas de amor e melancolia. Aqui é que o cocheiro o teve por
lascivo, além de pródigo, e encomendou-lhe as suas prendas. Se
falou em Rua da Harmonia foi por sugestão do bairro donde
vinham; e, se disse que trouxera um moço da Rua dos Inválidos,
é que naturalmente transportara de lá algum, na véspera, —
talvez o próprio Carlos Maria, — ou porque lá morasse, ou
porque lá tivesse a cocheira, — qualquer outra circunstância que
lhe ajudou a invenção, como as reminiscências do dia servem de
matéria aos sonhos da noite. Nem todos os cocheiros são
imaginativos. Já é muito concertar farrapos da realidade.
Resta só a coincidência de morar na Rua da Harmonia uma das
costureiras do luto. Aqui, sim, parece um propósito do acaso.
Mas a culpa é da costureira; não lhe faltaria casa mais para o
centro da cidade, se quisesse deixar a agulha e o marido. Ao
contrário disso, ama-os sobre todas as coisas deste mundo. Não
era razão, para que eu cortasse o episódio, ou interrompesse o
livro. (pp. 198-200)

Adjetivos como desorientado, caluniador e desgraçado evidenciam o nível de


tensão que o narrador estabelece com o leitor, constrangendo-o para, em seguida,
desautorizá-lo de qualquer participação no processo narrativo. Flora Süssekind vê nesse
procedimento narrativo o exercício que o narrador promove ao leitor para que este
duvide de suas inferências, quando coloca o ponto de vista à mostra, desestabilizando a
prática interpretativa do leitor88. Elisa Serpa identifica nesse procedimento a definição

88O narrador, aliás, parece mesmo se divertir em dar corda às suspeitas do leitor, deixar crescer o
142

do que chama de narrador dubitativo, isto é, por meio dos preceitos do ceticismo grego,
o narrador estabelece igual distância entre a afirmação e a negação, na qual as diferentes
hipóteses estão em condição de equivalência não permitindo qualquer conclusão
irrefutável, resultando em aporia89. Para além das dúvidas como exercício provocado
pelo narrador apontada por Süssekind ou a aporia identificada por Serpa, este capítulo
composto totalmente de metalepse de comunicação evidencia o funcionamento das
diferentes metalepses em todo o romance, visto que até o momento o narrador
estabelece esse contrato com o narratário, tornando-o coadjuvante no ato narrativo e,
conforme vimos nos exemplos anteriores deste romance, aos poucos, ele estabelece esse
distanciamento com o narratário seja apontando falhas que precisam ser preenchidas ou
atribuindo apenas ao leitor certos enunciados para, com isso, chegar a esse capítulo
central em que o contrato de coautoria é rompido, evidenciando que o narratário é
incompetente para produzir sentido que garanta coesão e coerência ao texto. Ele é
acusado, inclusive, de caluniador e responsável por prejudicar o andamento da narrativa
como afirma o narrador no final deste capítulo: "Não era razão para que eu cortasse o
episódio, ou interrompesse o livro" (ASSIS, 2008c, p. 200). Sem dúvida, concordando
com as autoras anteriormente citadas, trata-se de uma armadilha do narrador ao leitor,
mas essa armadilha, uma vez que esteja afirmada a não onisciência do narrador e a
incompetência do leitor em produzir sentido, tem como função reestabelecer a certeza e
a verdade centrada na própria narrativa que passa a funcionar sozinha como instância de
legitimação. Como observa Foucault, o modelo disciplinar é feito para funcionar
sozinho, mesmo que tenha um responsável encarregado por seu funcionamento, não por
sua individualidade, mas pela função em si que pode ser exercida por qualquer um, isto
é, suprime a individualização no topo, ao mesmo tempo em que produz uma

ciúme do protagonista e o interesse e certeza de um adultério por parte dos leitores. Para quando
menos se espera desarmá-los, não sem ironia, no "capítulo CVI", mantido integralmente na versão em
livro do Quincas Borba. O que faz aí, na verdade, o narrador machadiano? Não se trata apenas de
brincar com a armadilha armada para o leitor e Rubião. Trata-se, sim, de pôr o próprio ponto de mira à
mostra. E convida o leitor, de posse desta informação, ao exercício mais frequente da dúvida diante do
narrado, a uma recepção mais atenta, crítica. (SÜSSEKIND, 2000, p. 264)
89 Ao reconstruir os fatos, o narrador renuncia igualmente a toda afirmação e a toda negação. Esta
afasia ou recusa em se pronunciar não é essencialmente negativa. É dubitativa (ou aporética), ou seja,
situa-se a igual distância da afirmação e da negação. Ao recurar as várias hipóteses dos leitores, o
narrador se reserva a suspensão do juízo (epoché), utilizando a argumentação de que "já é muito
concertar os farrapos da realidade). Para exprimir sua dúvida, faz uso de conjunções que contêm a
ideia de que uma hipótese não seria melhor do que outras. (SERPA, 2003, p. 70)
143

individualização tendencial muito forte na base90. Neste sentido, ao narrar o momento


em que Rubião sugere ao Dr. Camargo a mudança de uma palavra em seu artigo, o
narrador afirma no capítulo CXIII:

SE tal fosse o método deste livro, eis aqui um título que


explicaria tudo: “De como Rubião, satisfeito da emenda feita no
artigo, tantas frases compôs e ruminou, que acabou por escrever
todos os livros que lera”. Lá haverá leitor a quem só isso não
bastasse. Naturalmente, quereria toda a análise da operação
mental do nosso homem, sem advertir que, para tanto, não
chegariam as cinco folhas de papel de Fielding. Há um abismo
entre a primeira frase de que Rubião era coautor até a autoria de
todas as obras lidas por ele; é certo que o que mais lhe custou foi
ir da frase ao primeiro livro; — deste em diante a carreira fez-se
rápida. Não importa; a análise seria ainda assim longa e
fastidiosa. O melhor de tudo é deixar só isto; durante alguns
minutos, Rubião se teve por autor de muitas obras alheias.
(ASSIS, 2008c, p. 209-210)

Se, explicitamente, o narrador afirma que a pequena emenda de Rubião ao artigo


do Dr. Camargo o induz a acreditar ser autor de todas as obras que lera, implicitamente,
o narrador esvazia esse lugar de autoria para evidenciar apenas o papel de responsável
encarregado de fazer funcionar as operações da narrativa, o que pode ser feito por
qualquer um que, como Rubião, se autoriza e, com isso, evidencia a narrativa a
funcionar sozinha, visto que ele, como narrador, tem limites sobre certas informações e
o leitor, por sua vez, tende a interpretações equivocadas e às vezes caluniadoras. A
narrativa, portanto, como modelo disciplinar, funciona sozinha.
Cabe dizer que, antes mesmo de o narrador desautorizar o leitor e tomar as
rédeas da narrativa, não como instância de legitimação e produção de verdade, mas
como encarregado pelo funcionamento do modelo disciplinar, a armadilha manifesta-se
também no jogo entre o mostrar e o esconder, isto é, em vários momentos o narrador
enuncia alguma informação que ele mesmo deixou passar e, em outros momentos, avisa
ter uma determinada informação, mas que prefere escondê-la. No capítulo XVI, após
Rubião ser nomeado herdeiro universal de Quincas Borba e, por conta disso, apropriar-

90 Um sistema disciplinar é feito para funcionar sozinho: e quem é encarregado dele ou é seu diretor
não é tanto umindivíduo quanto uma função que é exercida por este, mas que poderia perfeitamente
ser exercida por outro, o que nunca ocorre na individualização da soberania. E, aliás, mesmo aquele
que é responsável por um sistema disciplinar encontra-se preso dentro de um sistema mais amplo, que
o vigia por sua vez e no seio do qual ele é disciplinarizado. Logo, creio, supressão da individualização
no topo. Em compensação, o sistema disciplinar implica, e creio ser isso o essencial, uma
individualização tendencial muito forte na base. (FOUCAULT, 2006, p. 68)
144

se do adágio filosófico de seu mentor, o narrador afirma que tal apropriação só seria
possível após o testamento, momento em que faz uma ressalva ao leitor, lembrando de
trechos narrados: "Esqueceu o projeto do sinete; mas a fórmula viveu no espírito de
Rubião, por alguns dias: Ao vencedor as batatas! Não a compreenderia antes do
testamento; ao contrário, vimos que a achou obscura e sem explicação." (p. 70). No
capítulo XXXI, após narrar as relações de amizade entre Rubião e Freitas, o
narrador inicia o capítulo apresentando outra personagem que, segundo sua
avaliação, é o oposto de Freitas. Para isso, utiliza-se da pergunta retórica para o
leitor:

Queres o avesso disso, leitor curioso? Vê este outro convidado


para o almoço, Carlos Maria. Se aquele tem os modos
“expansivos” e francos”, — no bom sentido laudatório, — claro
é que ele os tem contrários. Assim, não te custará nada vê-lo
entrar na sala, lento, frio e superior, ser apresentado ao Freitas,
olhando para outra parte. Freitas que já o mandou cordialmente
ao diabo por causa da demora (é perto do meio-dia), corteja-o
agora rasgadamente, com grandes aleluias íntimas.
Também podes ver por ti mesmo que o nosso Rubião, se gosta
mais do Freitas, tem o outro em maior consideração; esperou-o
até agora, e esperá-lo-ia até amanhã. Carlos Maria é que não tem
consideração a nenhum deles. Examinai-o bem; é um galhardo
rapaz de olhos grandes e plácidos, muito senhor de si, ainda
mais senhor dos outros. Olha de cima; não tem o riso jovial, mas
escarninho. Agora, ao sentar-se à mesa, ao pegar no talher, ao
abrir o guardanapo, em tudo se vê que ele está fazendo um
insigne favor ao dono da casa, — talvez dois, — o de lhe comer
o almoço, e o de lhe não chamar pascácio. (p. 83)

Evidencia-se neste exemplo o distanciamento de informação entre narrador


e narratário, sobretudo pelo uso do adjetivo curioso, como se a cena não tivesse
outra razão senão a de alimentar única e simplesmente a curiosidade do leitor. Em
alguns momentos da narrativa, o narrador faz ressalvas a suas afirmações para
novamente deixar o leitor a par daquilo que ele ainda não sabe. Assim, no capítulo
XXXIII, após narrar sobre o cesto com morangos que Rubião recebe de Sofia, ele
relata a reação da personagem diante do bilhete com a assinatura de Sofia para
então fazer a ressalva e melhor precisar sua reação:

Rubião viu, sentiu, palpou tudo pela única força do instinto e


deu por si beijando o papel - digo mal, beijando o nome, o nome
145

dado na pia de batismo, repetido pela mãe, entregue ao marido


como parte da escritura moral do casamento, e agora roubado a
todas essas origens e posses para lhe ser mandado a ele, no fim
duma folha de papel... (p. 88 - grifo nosso)

Ou quando, no capítulo L, depois de narrar nos capítulos anteriores a reação


de Rubião após o jantar na casa de Sofia, ao invés de continuar a narrativa, recua e
pede paciência à leitora para outra cena, concomitante à narrada, da conversa
entre Sofia e Palha:

Não, senhora minha, ainda não acabou este dia tão comprido;
não sabemos o que se passou entre Sofia e o Palha, depois que
todos se foram embora. Pode ser até que acheis aqui melhor
sabor que no caso do enforcado.
Tende paciência; é vir agora outra vez a Santa Teresa. A sala
está ainda alumiada, mas por um bico de gás; (p. 112)

Estes e outros exemplos da metalepse de comunicação mostram-nos que, se


o narrador arma uma armadilha para afastar de vez o leitor do ilusório papel de
coadjuvante no ato narrativo, já o prepara para atuar apenas como observador,
aceitando como verossímil a ficcionalidade empregada pelo narrador por meio dos
vários procedimentos retóricos já anteriormente citados. Desse modo, a sedução e
a coerção, isto é, este movimento operado pelo narrador de trazer o leitor ao ato
narrativo e ao mesmo tempo desautorizá-lo desse processo, juntam-se com as
metalepses de regência, testemunhal e de comentário para constituir a
verossimilhança da ficcionalidade por meio do modelo coercitivo, permitindo que
o narrador leve o leitor à sua total indiferença sobre os acontecimentos
interpretados pelo narrador com chave naturalista como vemos no final do
romance:

Mas, vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é


provável que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é
que dá o titulo ao livro, e por que antes um que outro, —
questão prenhe de questões, que nos levariam longe. Eia! chora
os dois recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É
a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar,
como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os
risos e as lágrimas dos homens. (p. 325)

A visão niilista que parece se depreender desse enunciado final, resulta do


146

paradoxo entre o riso e a lágrima, os quais, postos em mesma condição de


possibilidade têm como efeito de sentido a indiferença do narrador diante dos
fatos narrados. Interessa-nos observar não se essa indiferença pertence ao autor
suposto ou à visão de mundo de Machado de Assis, mas perceber como ela foi
retoricamente produzida por meio do diálogo entre narrador e narratário
materializado pelas diferentes metalepses. Ou com base na definição de disciplina
conceituada por Foucault, para que se possa garantir o sentido global e contínuo
de seus efeitos é preciso um investimento da escrita que registra, codifica e
transmite por uma certa estrutura hierárquica centralizando a instância subjetiva
no modelo disciplinar que enuncia tanto o narrador quanto o narratário. Essa
enunciação da instância subjetiva do narrador e narratário potencializa os efeitos
de sentido da narrativa a ponto de não mais se poder distinguir se determinados
enunciados pertencem ao narrador, às personagens, ao leitor ou a Machado de
Assis.
Em Dom Casmurro, embora o efeito de sentido seja semelhante ao de
Quincas Borba, os procedimentos dão-se de modo diferente pelo fato de ser um
romance autobiográfico. Como afirma Abel Barros Baptista, em A Formação do
Nome, é característica da autobiografia o desejo de dizer a verdade sobre o
biografado, porém, à medida que esse gênero se constrói sobre uma opção
romanesca, faz com que o corpo memorialístico se mova na tensão ou indecisão
entre memória e ficção 91. Desse modo, a autobiografia ficcional, ao jogar com a
memória e a ficção, produz em sua estrutura a ambiguidade interpretativa de
saber se, como memória, produz um discurso de verdade, ou se, como ficção,
produz discursos retoricamente estruturados com efeitos de verossimilhança, pois,
como memória autobiográfica, seu tema é a intimidade do biografado. Como
observa Leonor Arfuch em seu texto Cronotopías de la intimidad, o eu que se
enuncia, toma a si mesmo como testemunha a buscar em sua interioridade a
verdade de si na e pela escritura, isto é, pelo dizer performativo que constrói seu

91 Aliás, o próprio começo do primeiro capítulo afirma as duas dimensões simultaneamente: quando
informa que hesitou "se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em
primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte", Brás Cubas afirma o primado do percurso
biográfico sobre o discurso; mas a própria hesitação, o modo como a supera e os argumentos com que
a apresenta afirmam o primado do discurso sobre o percurso biográfico. Assim, é possível concluir -
mas será outra conclusão a dar-nos mais que fazer - que a diferença entre a opção romanesca e o
projeto autobiográfico se lança sobre todo o texto como se o corpo memorialístico fosse movido pela
tensão ou pela indecisão entre memória e ficção. (BAPTISTA, 2003, p. 186)
147

objeto em contraposição com o espaço público92. Esta intimidade é produzida de


modo performativo pelo biografado, tendo a si mesmo como única testemunha e,
portanto, como instância de legitimação da verdade. Contudo, por se produzir
como ficção, desestabiliza essa instância e projeta na própria estrutura narrativa
sua legitimidade. É nessa projeção que se evidencia a isotopia dos dispositivos
disciplinares, a qual determina cada elemento em seu lugar, subordinando e
ordenando-os para estabelecer a hierarquia de seus valores e êxitos. Em outras
palavras, à medida que o autor-narrador enuncia, por meio das metalepses de
regência, o ato de narrar, estabelece entre acontecimentos distintos uma
homogeneidade de sentido de forma ordenada e subordinada para determinar sua
funcionalidade na escrita, isto é, faz dos procedimentos articulados o modo com
que o contrato de verdade entre narrador e leitor se estabeleça. Assim, no capítulo
I e II de Dom Casmurro o autor-narrador busca estabelecer relações entre
elementos distintos. Primeiro a relação com o poeta do trem:

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo,


encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu
conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao
pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me
versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem
inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava
cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para
que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
(ASSIS, 2008b, p. 39)

Segundo, o sentido da palavra Casmurro:

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido


que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e
metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de
fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor
título para a minha narração - se não tiver outro daqui até ao fim
do livro, vai este mesmo (p. 40)

Terceiro, a relação entre o adjetivo e sua vida atual:

92 La intimidad fue entonces, primariamente, exritura, palabra, decir performativo que construía su
objeto, en contraposición, con el espacio de lo público, ua dilatado hacia la gran ciudad. (ARFUCH,
2005, p. 241)
148

Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes


disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la
construir de propósito, levado de um desejo tão particular que
me vexa imprimi-lo, mas vá lá. (p. 40)

Quarto, a referência a Goethe: "como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí


vindes outra vez, inquietas sombras...?" (p. 41) e quinto, os medalhões de César,
Augusto, Nero e Massinissa:

Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a
pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande
César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos
o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me
vierem vindo. (p. 42)

Ele os ordena e subordina-os para fazê-los funcionar como um


procedimento de controle contínuo em que se está perpetuamente posto na
situação de ser olhado. Como já dito, esse narrador funciona menos como uma
individualidade produtora e mais como uma individualidade produzida, na qual o
papel do narrador é o do responsável que faz funcionar o que poderia ser feito por
qualquer um. Em outras palavras, para restabelecer a instância de legitimação da
verdade, o autor opta por evidenciar os procedimentos retóricos da construção
narrativa, os quais, muitas vezes, parecem desconexos, de modo que seu efeito de
sentido sejam o de fazer o leitor acreditar que o autor apenas se confessa e, como
tal, resgata pela memória fatos desconexos apresentando-os de modo desconexos e
permitindo que a narrativa funcione sozinha, estabelecendo a isotopia temática
que cumprirá a função de ordenar e subordinar os fatos, segundo a hierarquia de
seus valores e êxitos conforme afirma no capítulo LXVIII:

Eu confessarei tudo o que importar à minha história. Montaigne


escreveu de si: ce ne sont pas mes gestes que j'escris, c'est moi,
c'est mon essence. Ora, há só um modo de escrever a própria
essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida
que me vai lembrando e convidando à construção ou
reconstrução de mim mesmo. (p. 163)

Ao tratar do título, sua origem e uso, o narrador brinca com essa


possibilidade de autoria anônima ao dizer que "O meu poeta do trem ficará sabendo
149

que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar
que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto."
(p. 40). Tal qual o exemplo anteriormente apresentado em Quincas Borba, o narrador de
Dom Casmurro também esvazia esse lugar da autoria, uma vez que lhe é indiferente que
o poeta do trem possa ver no título sua obra, para se colocar apenas como encarregado
de fazer funcionar a narrativa que por sua vez passa a ser em si mesma a instância de
produção e legitimação da verdade.
Conforme vimos na tabela apresentada anteriormente, tanto em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, quanto em Dom Casmurro, há uma equivalência entre as
metalepses testemunhais e de comunicação, logo, essa narrativa autobiográfica
constrói-se tanto pelo diálogo com o leitor como pela orientação do autor a si
mesmo, marcando os acontecimentos como testemunhos vivenciados,
determinando o grau de precisão de suas memórias e enunciando o modo como
esses acontecimentos os afetam. Desse modo, a determinação memorialística
acompanhada por expressões de afeto do narrador com o leitor estabelece o jogo
de sedução e, portanto, de proximidade. Por ser uma narrativa homodiegética, a
função do narrador não é a de abrir mão da condição de onisciência, como o faz em
Quincas Borba, mas a de fazer crer que o narrado não é apenas uma interpretação
do narrador, mas informações condizentes com o acontecido. É desse modo que no
capítulo II, o programa narrativo é apresentado como um esforço para recompor o
que foi marcado por lacunas:

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar


na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor
o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a
fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um
homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas
falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. (p. 41)

O jogo entre memória e ficção estabelece a veridicção da narrativa, cujo


papel desempenhado pelo narrador é apenas o de apresentar as coisas conforme a
memória determina, ainda que lhe seja custoso colocá-las no papel. É nessa
perspectiva que o narrador, no capítulo LVIII após contar a queda de uma moça na
rua, afirma:
150

Vou esgarçando isto com reticências para dar uma ideia das
minhas ideias, que eram assim difusas e confusas; com certeza
não dou nada (...)e sendo este livro a verdade pura, é força
confessar que tive de interromper mais de uma vez as minhas
orações para acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-
tique, tique-tique... (p. 144)

Ou quando, LXVII, após voltar do seminário para casa acompanhado José


Dias, por conta de sua mãe que se encontra doente, o narrador confessa que teve
por um momento certo contentamento com a possível morte de sua mãe, visto que
tal fato lhe devolveria a liberdade. A confissão é acompanhada pelo remorso e
traduzida pelas metalepses de comunicação e testemunhal como efeito do
compromisso com a verdade em relatar tudo, inclusive aquilo que o desagrada,
como podemos ver neste e no capítulo seguinte:

CAPÍTULO LXVII - Ia só andando, aceitando o pior, como um


gesto do destino, como uma necessidade da obra humana, e foi
então que a Esperança, para combater o Terror, me segredou ao
coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com
palavras, mas uma ideia que poderia ser traduzida por elas:
"Mamãe defunta, acaba o seminário".
Leitor, foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como
se esvaiu, e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito do
remorso que me ficou. Foi uma sugestão da luxúria e do
egoísmo. A piedade filial desmaiou um instante, com a
perspectiva da liberdade certa, pelo desaparecimento da dívida e
do devedor; foi um instante, menos que um instante, o
centésimo de um instante, ainda assim o suficiente para
complicar a minha aflição com um remorso. (p. 161)

CAPÍTULO LXVIII - Poucos teriam animo de confessar aquele


meu pensamento da Rua de Mata-cavalos. Eu confessarei tudo o
que importar à minha história. Montaigne escreveu de si: ce ne
sont pas mes gestes que j'escris, c'est moi, c'est mon essence.
Ora, há só um modo de escrever a própria essência, é contá-la
toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai
lembrando e convidando à construção ou reconstrução de mim
mesmo. Por exemplo, agora que contei um pecado, diria com
muito gosto alguma bela ação contemporânea, se me lembrasse,
mas não me lembra; fica transferida a melhor oportunidade. (p.
163)

Estes três trechos exemplificam de forma mais contundente o jogo entre


151

memória e ficção, cujo papel para o narrador é, citando Montaigne, escrever sua
própria essência, ainda que tenha de contar as coisas negativas sobre si para poder
reconstruir-se a si mesmo. Além disso, mostra também o papel do narrador já não
mais como instância de legitimação da narrativa, mas como encarregado
responsável por operá-la. Vemos também nesses exemplos o modo como aborda o
leitor, seja usando pronomes de tratamento ou, como em outros momentos,
adjetivos afetivos como no capítulo X: "Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu
velho Marcolini (...) a denúncia de José Dias, meu caro leitor..." (p. 56); no capítulo
XIV: "Não me tenhas por sacrílego, leitora minha devota..." (p. 64); no capítulo
XXXVII: "...porque eu já fazia esforços, leitor amigo (p. 108); no capítulo LVII: Sim,
leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o Capítulo até ao
fim, sem susto nem vexame" (p. 143) e expressões como no capítulo XXXI:
"descontai-me a idade e a simpatia" (p. 94); no capítulo XXXII: "perdoai a barateza"
(p. 96); no capítulo XXXIV: "...e perdoai a banalidade em favor do cabimento" (p.
102); no capítulo XLII: "Não me chames dissimulado, chama-me compassivo" (p.
118) que acentuam o respeito do narrador pelo leitor. Estes e outros exemplos que
preenchem todo o romance mostram o esforço do narrador em angariar a simpatia
do leitor. E tal qual Quincas Borba, esses esforços de simpatia são intercalados com
práticas coercitivas que, implícita ou explicitamente, determinam o modo de
leitura adequada à narrativa. Assim vemos no capítulo XXXIII, quando narra seu
primeiro beijo em Capitu, afirma ao leitor: "Se isto vos parecer enfático, desgraçado
leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na
jovem cabeça de uma ninfa..." (p. 99) ou mais a frente, após o beijo, diz: "Não mofes
dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des
Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos." (p. 100). Ou no capítulo XLV, após
narrar sua discussão com Capitu e ela, para provocá-lo, promete-lhe que, quando este
for padre, permitirá que batize seu primeiro filho:

Abane a cabeça leitor; faça todos os gestos de incredulidade.


Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso
antes tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que
torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer
por isso na veracidade do autor. Todavia, não há nada mais
exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, com tais palavras e
maneiras. Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira
boneca. (p. 124)
152

Ou ainda, no capítulo XLIX, após a reconciliação dos dois, ambos aceitam que
Bentinho atenda à promessa da mãe de ir para o Seminário, mas certos de que não
se tornaria padre e, portanto, de que voltaria para se casarem: "Não nos censures,
piloto de má morte, não se navegam corações como os outros mares deste mundo.
Estávamos contentes, entramos a falar do futuro." (p. 128). Ou ainda, no capítulo LI, ao
narrar a sua despedida de Capitu, relata o juramento feito de casarem-se um com o
outro, o qual foi selado com um beijo. A narrativa é interrompida e o tom agressivo com
o leitor dá-se mais uma vez: "Quanto ao selo, Deus, como fez as mãos limpas, assim fez
os lábios limpos, e a malícia está antes na tua cabeça perversa que na daquele casal de
adolescentes..." (p. 131). Estes exemplos mostram o modo como o narrador, permitindo
que o leitor com base nas informações tire suas conclusões, não o faz gratuitamente, isto
é, a todo o momento, a menor possibilidade de outro sentido da informação diferente da
que pretende dar, leva o narrador a um diálogo tenso e muitas vezes ofensivo com o
leitor, com efeitos coercitivos e determinando, indiretamente, um modo de ler. No
capítulo LIX, o narrador assume o limite de sua memória o que, necessariamente, o faz
esquecer certas informações, fazendo com que seu livro tenha várias lacunas. Ao dizer
isto, relata sua experiência como leitor e sugere ao leitor que faça o mesmo:

E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda


bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros
omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo
nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e
evocar todas as coisas que não achei nele. Quantas ideias finas
me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as
montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me
aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os seus
altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na
bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e
tudo marcha com uma alma imprevista.
É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim
preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as
minhas. (p. 146)

De certo modo, ao contar como, na condição de leitor, ele preenche os livros


que lê de coisas que não encontra neles, o narrador performatiza o ato de leitura
de seu leitor, orientando-o para que, como afirma em seguida, este também
preencha as lacunas que encontrar no processo da narrativa. É o que acontece no
153

capítulo LXII, quando, ao perguntar sobre Capitu a José Dias, este provoca-lhe
ciúme, afirmando que Capitu está preste a pegar um peralta da vizinhança que case
com ela. Diante de tal afirmativa do agregado, o narrador relata sua crise de ciúme,
fazendo-o imaginar que a moça já namorava algum rapaz da vizinhança. Tal
imaginação o faz ver Capitu a olhar um rapaz a caminhar na rua, falarem-se à
janela, este lhe daria flores e... cria a lacuna. A imaginação é interrompida pela
retomada do diálogo com o leitor, determinando que este não somente preencha a
lacuna criada, mas, principalmente, induz o modo como deve ser preenchida,
colocando em dúvida ao seu interlocutor quanto à condição dele como leitor:

E... quê? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti
mesmo, escusado é ler o resto do Capítulo e do livro, não
acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da
etimologia. Mas se o achaste, compreenderás que eu, depois de
estremecer, tivesse um ímpeto de atirar-me pelo portão fora,
descer o resto dai ladeira, correr, chegar à casa do Pádua, agarrar
Capitu e intimar-lhe que me confessasse quantos, quantos,
quantos já lhe dera o peralta da vizinhança (p. 152)

O modo agressivo com que aborda o leitor evidencia o papel que o narrador
desempenha na narrativa e não uma obrigação interpretativa que o leitor deva ter
fazer dela. Se o narrador se colocasse como instância de legitimação da verdade,
bastaria dizer que Capitu envolveu-se com outro rapaz e que ambos namoraram
enquanto Bento estava no Seminário sem saber do ocorrido. Se assim o dissesse,
tal afirmativa não necessariamente inviabilizaria o casamento entre ambos, pelo
contrário, não sabendo, essa informação obtida posteriormente, serviria apenas de
uma prova a mais para confirmar a suspeita da traição de Capitu. O jogo que se
evidencia nesses procedimentos retóricos aqui apresentados é outro. Como já
dissemos, o lugar de autoria é insistentemente esvaziado, fazendo com que a
narrativa funcione sozinha. O papel do narrador é o de informante, isto é,
apresentar os fatos conforme for lembrando e deixar que a narrativa sozinha os
ordene, subordine e dê-lhes seu sentido devido. Desse modo, o discurso
autobiográfico que poderia desempenhar-se de modo monológico, passa a
desempenhar-se pela polêmica, à medida que o narrador busca seduzir e coagir o
leitor para formas interpretativas que lhe pareçam mais adequadas ao seu
154

propósito. Portanto, o narrador constrange e pressiona o leitor a fazer ou ler


conforme o que acha adequado para a compreensão de suas memórias, ameaçando
destituí-lo de sua condição de leitor. Tais procedimentos evidenciam que o tom
geral do narrador é confessional e, portanto, compromete-se em dar as
informações ao leitor, sabendo que este poderá entender de modo diferente. Para
garantir que o efeito de sentido pretendido tenha êxito, o narrador estabelece a
polêmica com o narratário. A polêmica estabelecida faz com que o ato narrativo
como produtor de memórias instaure-se na tradição das autobiografias ao mesmo
tempo em que suas controvérsias atinjam o estatuto de sua tradição, ganhando
autoridade no ato narrativo. Como observa Maingueneau, a manifestação da
polêmica pressupõe pragmaticamente haver uma crise no discurso e que os
valores que o fundam estão ameaçados, fazendo com que seus interlocutores
apelem aos fundamentos do discurso para superá-la93. Essa dinâmica evidencia
haver uma troca como aspecto essencial do diálogo. Neste sentido, o locutor busca
antecipar as possíveis refutações de seu discurso para inviabilizar qualquer
tentativa que comprometa o sentido pretendido com suas informações. Só poderá
haver polêmica, portanto, se os interlocutores estiverem em condição de
igualdade, fazendo com que os procedimentos por si mesmos legitimem ou
deslegitimem as informações apresentadas.
Esse desenvolvimento narrativo que vemos apresentado tanto em Quincas
Borba, como em Dom Casmurro, desmonta as normas pressupostas da narrativa
estabelecida pelas escolas romântica e realista, isto é, o narrador heterodiegético é
destituído de sua condição de onisciência, não se tornando por isso um narrador
que apenas testemunha os fatos acontecidos. Pelo contrário, por se tratar de um
discurso ficcional, ele pode revelar por meio do monólogo interior os pensamentos
das personagens, bem como relatar cenas concomitantes e, ao mesmo tempo,
assumir o seu limite como narrador, isto é, enunciar que nem sempre sabe sobre
determinado acontecimento ou pensamento de determinada personagem ou,
ainda, colocar-se em dúvida sobre certas informações. Obviamente, essa

93 O simples fato de sustentar uma polêmica pressupõe pragmaticamente que há uma crise na
comunidade em questão, que os valores que a fundam estão ameaçados. Aliás, é inevitável que, numa
polêmica que assume alguma amplitude, por sua ressonância ou por sua duração, os atores tendam a
apelar para os fundamentos, indo além do objeto imediato que desencadeou a polêmica.
(MAINGUENEAU, 2010, p. 192)
155

duplicidade na postura do narrador que, em determinados momentos, conhece


mais que as personagens e em outros conhece menos estabelece um paradoxo,
pois, ao mesmo tempo em que pode falar o que determinada personagem pensa, o
narrador assume seus limites de conhecimento. Para tanto, como vimos nos quatro
romances da chamada "1ª fase", um novo contrato é estabelecido com o leitor por
meio de procedimentos metadiscursivos, no qual narrador e narratário nivelam-se
e o ato narrativo passa a ser enunciado. Em Quincas Borba, evidencia-se a falência
desse contrato, pois se o narrador continua a assumir seu limite de conhecimento,
o narratário é forçado por ele a reconhecer seu limite interpretativo. Ao assumir o
seu limite de conhecimento e, ao mesmo tempo, denunciar o limite de
interpretação do leitor, o narrador esvazia o sentido de autoria para fazer com que
a narração funcione sozinha, sendo o seu papel apenas o de informante que, como
tal, precisa por vezes retificar ou acrescentar as informações dadas. Em Dom
Casmurro, a tensão entre memória e ficção resulta, não como síntese, mas como
presença do paradoxo deste novo modelo narrativo, em discurso polêmico entre os
interlocutores, estabelecendo o distanciamento entre informação e interpretação.
Esse distanciamento exige que as regras sejam constantemente restabelecidas por
meio de novos sistemas recuperadores o que torna um perpétuo trabalho da
norma na anomia característica do modelo disciplinar. Em outras palavras, à
medida em que o narrador especifica seus leitores, pelo uso do substantivo no
masculino e no feminino do singular e por meio de adjetivos ou expressões
adjetivas como "curioso", "caluniadores", "leitor amigo", "meu caro leitor", "leitora
minha devota", "desgraçado leitor", "leitor precoce", "leitora castíssima", "leitor
das minhas entranhas", "dona leitora", "leitores obtusos", "leitora amada", "leitor
desorientado", "leitora impaciente", entre outros, transforma esses adjetivos em
sistemas disciplinares suplementares como forma de recuperar esses indivíduos
ao infinito, isto é, essa individualização dada por meio dos adjetivos evidencia a
especificação de um leitor ou leitora para o qual o narrador se volta como forma de
recuperá-los, uma vez que estes são irredutíveis ao modelo disciplinar. É neste
sentido que o modelo disciplinar como procedimento da narração se evidencia
como anomizante, pois coloca de lado, ou melhor, evidencia no ato enunciativo
certo número de indivíduos para reinventar novos sistemas recuperadores que
permitam reestabelecer a regra. Como Foucault observa, o sistema disciplinar,
156

diferentemente do poder soberano, desenvolve-se em um fluxo contínuo, fazendo


com que se interfira incessantemente, mesmo antes do próprio ato, estabelecendo
um jogo de vigilância, recompensas, punições e pressões, pois seus efeitos
implicam a apropriação do corpo e do tempo em sua totalidade94. Diferentemente
dos modelos anteriores, o modelo disciplinar não pretende centrar-se como poder
em um indivíduo visível e nomeado, mas como produtor de efeitos sobre o corpo,
tornando-o dócil e submisso. Sobretudo em Dom Casmurro, não se trata de
referenciar na escrita uma individualidade antedada, mas de produzir
individualidades esquemáticas e centralizadas pela escrita e, com isso, criar suas
próprias margens.

c) A Metalepse como modelo arbitrário.

O romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado primeiramente em


folhetim na Revista Brasileira entre 15 de março e 15 de dezembro de 1880 e lançado
em livro em janeiro de 1881, foi a primeira experiência de narrador homodiegético no
gênero romance da Literatura Brasileira. Embora seja o primeiro romance com um
narrador homodiegético, não foi a primeira experiência ficcional de diálogo com o leitor
conforme já constatamos. Desde seu primeiro romance, Machado de Assis desenvolve
um tipo de narrador que intervém na narrativa, dialogando com o leitor, enunciando o
ato narrativo, elaborando discursos voltados a si mesmo como forma de testemunho,
referenciando as fontes citadas ou ainda precisando melhor tanto as memórias como
também os sentimentos que os episódios narrados despertam nele. A diferença entre
Memórias Póstumas de Brás Cubas e os outros romances - mesmo os dois posteriores -
dá-se no modo de funcionamento das metalepses. Como vimos, nos seis romances
analisados, há um investimento metadiscursivo que reconhece o grau de incerteza de
valores presente na sociedade brasileira do século XIX e, a partir desse reconhecimento,
opera de forma oportunista mecanismos retóricos para conciliar o indivíduo com sua

94 Em primeiro lugar, o poder disciplinar não põe em ação esse mecanismo, esse acoplamento
assimétrico coleta-despesa. Num dispositivo disciplinar, não há dualismo, assimetria; não há essa
espécie de apropriação parcial. Parece-me que o poder disciplinar pode se caracterizar em primeiro
lugar pelo fato de implicar, não uma coleta com base no produto ou numa parte do tempo, ou em
determinada categoria de serviço, mas por ser uma apropriação total, ou tender, em todo caso, a ser
uma apropriação exaustiva do corpo, dos gestos, do tempo, do comportamento do indivíduo. É uma
apropriação do corpo, e não do produto; é uma apropriação do tempo em sua totalidade, e não do
serviço. (FOUCAULT, 2006, p. 58)
157

verdade antes abalada. Nos quatro primeiros romances, essa operação dá-se como
modelo contratual, isto é, propõe um novo modelo em que o leitor se torna coautor sem
com isso colocar abaixo os valores ideológicos dominantes. Esse modelo também tem
como efeito a produção de uma consciência individual que se torna responsável por suas
escolhas, garantindo-lhes uma certa autonomia ilusória. Assim, em Ressurreição, o
amor, embora não idealizado, é possível à medida que o indivíduo não se perca em
ciúme e desconfiança e, portanto, se o casamento de Félix e Lívia não se consuma é
devido ao fato de o rapaz sucumbir aos seus medos. Em A Mão e a Luva, o casamento
resulta de uma escolha racional e friamente calculada por Guiomar diante das
possibilidades que se lhe apresentam. Em Helena, a personagem que nomeia o romance
sucumbe às suas crises de consciência, mesmo após a família de Estácio descobrir sua
verdadeira identidade. Em Iaiá Garcia, o amor entre Jorge e Estela torna-se impossível,
graças à fragilidade da moça diante da impetuosa investida de D. Valéria, mas o amor
torna-se possível entre Iaiá Garcia e Jorge, à medida que, diante dos atritos, optam por
superá-los. Em Quincas Borba e Dom Casmurro, o novo contrato não se sustém à
medida que o narrador pressiona o leitor, obrigando-o a reconhecer seus limites
interpretativos. Nestes, a narrativa passa a funcionar sozinha por meio do que definimos
como modelo disciplinar, não mais centrado em uma individualidade como instância de
legitimação da verdade, mas como produtor de individualidades e subjetividades.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas deparamo-nos com um
autor/narrador que se coloca fora da história e do tempo, ou, como se define, um
defunto-autor que, como observa Abel Barros Baptista, cria as condições de
possibilidade do livro de Brás Cubas, anunciando pela presença inelutável da
morte a destinação do texto literário95. O defunto-autor abre o primeiro capítulo,
nomeado Óbito do autor, com uma metalepse de comunicação, anunciando ao
leitor o seu lugar de enunciação:

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo


princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu
nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja
começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a

95 No entanto, num caso como no outro, a morte de ambos ocorre na ficção como acontecimento
decisivo que os constitui autores supostos - "a campa foi um outro berço", dirá Brás Cubas -, e, num
caso como no outro, ambos serão remetidos para uma ausência sem retorno, não já em virtude de se
encontrarem fisicamente mortos, mas porque se apresentam através de figurações ilusórias, em que a
relação com a origem que eles foram permanecerá indecidível. (BAPTISTA, 2003, p. 166)
158

adotar diferente método: a primeira é que eu não sou


propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para
quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria
assim mais galante e mais novo. (ASSIS, 2008a, p. 41)

Fim e começo correspondem-se fora de uma linearidade narrativa,


apresentando-se apenas como procedimento narrativo pelo qual possibilita a
escolha do defunto-autor para dar a forma de seu livro. A morte torna-se neste
romance o lugar da produção discursiva e, portanto, o lugar de instituição do ato
narrativo. A dedicatória e o prólogo Ao leitor são marcas determinantes desse
lugar. Ao abrir o romance, o faz por meio da dedicatória ao primeiro verme
responsável por roer suas frias carnes:
159

AO VERME

QUE

PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES


DO MEU CADÁVER

DEDICO

COMO SAUDOSA LEMBRANÇA

ESTAS

MEMÓRIAS PÓSTUMAS 96

96 Esse formato, embora não se mantenha nas edições mais atuais, tem como base a edição de W. M.
Jackson Inc. de 1938.
160

A disposição tipográfica dessa dedicatória enuncia não apenas sua relevância


semântica, mas principalmente sua relevância formal determinando o livro como topos,
isto é, desenha-se na versificação das frases a imagem de uma lápide semelhante à
forma de um caixão, de modo que o conteúdo que a preenche e determina sua forma é o
epitáfio do autor como expressão de seu último egoísmo a arrancar à morte um farrapo
ao menos da sombra que passou, conforme afirma no capítulo CLI, quando da morte de
Lobo Neves:

Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E,


aliás, gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma
expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a
arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou.
Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus
mortos na vala comum; parece-lhes que a podridão anônima os
alcança a eles mesmos. (p. 255)

A função do epitáfio na tradição ocidental, conforme comenta em seu blog


Roberto Fernandes97, é a de relatar os atos heroicos de um nobre, um rei ou um
membro proeminente da corte. Os romanos justificaram a necessidade desse
costume presente até hoje na cultura ocidental, exportando-a para outras
diferentes culturas. Se o ato de enterrar corresponde simbolicamente ao esforço de
esconder o corpo, como também a memória do defunto, o epitáfio funciona como
forma de esconder evidenciando, isto é, à medida que busca eternizar os atos
heroicos, oculta seus defeitos ou lembranças daquilo que se considera desonroso.
O epitáfio corresponde, portanto, ao conceito de grafia como rastro instituído de
Derrida, isto é, à medida que se inscreve como possibilidade, oculta-se simulando
pela linguagem a verdade como instituição 98. Conforme observa Fernandes, o auge

97 http://historiaesuascuriosidades.blogspot.com.br/2011/04/epitafio-fruto-da-vaidade-humana.html,
10 de abril de 2011, consultado em 08 de outubro de 2014.
98 Não se pode pensar o rastro instituído sem pensar a retenção da diferença numa estrutura de
remessa onde a diferença aparece como tal e permite desta forma uma certa liberdade de variação
entre os termos plenos. A ausência de um outro aqui-agora, de um outro presente transcendental, de
uma outra origem do mundo manifestando-se como tal, apresentando-se como ausência irredutível na
presença do rastro, não é uma fórmula metafísica que substituída por um conceito científico da
escritura. Esta fórmula, mais que a contestação da metafísica, descreve a estrutura implicada pelo
"arbitrário do signo", desde que se pense a sua possibilidade aquém da oposição derivada entre
natureza e convenção, símbolo e signo, etc. Estas oposições somente têm sentido a partir da
possibilidade do rastro. A "imotivação" do signo requer uma síntese em que o totalmente outro
anuncia-se como tal - sem nenhuma simplicidade, nenhuma identidade, nenhuma semelhança ou
continuidade - no que não é ele. Anuncia-se como tal: aí está toda a história, desde o que a metafísica
determinou como o "não-vivo" até a "consciência", passando por todos os níveis de organização
161

do uso do epitáfio registra-se entre os séculos I e III depois de Cristo, quando a


moda romana possibilitava os diálogos dos funerais em banquetes, reafirmando
esse jogo de vaidade, em um período em que a fama e a virtude se confundiam, no
qual falavam sobre seus feitos, virtudes e prodígios . Ora, nesta dedicatória em
forma de epitáfio, percebemos algo exatamente oposto: ao invés de enunciar os
feitos heroicos ou qualquer qualidade do autor em vida, seu enunciado volta-se
para a sua própria morte, estabelecendo a dualidade entre vida/morte e alto/baixo
respectivamente o verme e as memórias. É portanto, uma enunciação enunciada
que se duplica no lugar da morte, isto é, no plano da expressão o livro se enuncia
como túmulo e no plano do conteúdo a memória se enuncia como cadavérica e já
roída pelo verme. Com isso, a narrativa se subordina à topologia do livro que é
enunciado como túmulo: o túmulo-livro.
Essa dedicatória também evidencia dois efeitos de sentido importantes: o
primeiro efeito é que o processo de desincorporação do eu enunciativo, isto é, um
eu que se performatiza unicamente pela palavra, ou melhor, pela escrita e que só se
torna discurso à medida que perde a carne. Duas consequências desta primeira
perspectiva: parece reafirmar o cogito cartesiano cuja existência não se dá pela
carne, mas pela razão, isto é, ele existe, porque diz, porque se faz palavra; como
também há nessa dedicatória o inverso do que se encontra no evangelho segundo
João capítulo 1, versículos do 1 ao 14, quando anuncia:

No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o


Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as
coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do
que foi feito se fez. (...) E o Verbo se fez carne e habitou entre
nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória
como do unigênito do pai. (BÍBLIA DE GENEBRA, 1999, p.
1228)

Se, na tradição cristã, o Cristo é enunciado como existente, porque se fez


carne, embora exista antes disso, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, há
exatamente uma situação inversa, isto é, o eu que se enuncia, embora enuncie uma

animal. O rastro, onde se imprime a relação ao outro, articula sua possibilidade sobre todo o campo do
ente, que a metafísica determinou como ente-presente a partir do movimento escondido do rastro. É
preciso pensar o rastro antes do ente. Mas o movimento do rastro é necessariamente ocultado, produz-
se com o ocultação de si. Quando o outro anuncia-se como tal, apresenta-se na dissimulação de si.
(DERRIDA, 1999, p. 57)
162

existência anterior à morte, condiciona sua existência a essa desincorporação que


tem como responsável o primeiro verme que a roeu. Daí o segundo efeito de
sentido a ser observado: a dedicatória tem como objeto marcar o afeto de quem
dedica ao dedicado, assim Brás Cubas dedica ao verme, mas quem é esse verme ou
o que há de especial nele para ser marcado como ponto de partida do romance?
Como já pontuamos acima, o verme é posto como a primeira personagem da
narrativa visto ser o responsável por aniquilar a carne e, por meio dessa
aniquilação da carne, permitir a memória, ou melhor, a escritura. Maria Rosa
Duarte de Oliveira, em seu texto Memórias Póstumas entre o ver e o verme: uma
poética da leitura, chama a atenção para as condições de produção dessa
dedicatória. Segundo a autora, a dedicatória joga com o fim e o começo, também
anunciado no primeiro capítulo quando o defunto-autor afirma que a campa lhe foi
outro berço, com a não-carne e o livro, com o alto (a dedicatória) e o baixo (os
vermes) como recorte e reordenação, sob a ótica do presente, dos resíduos numa
nova imagem na qual o eu do defunto autor passa da condição do roído para a de
roedor99.
Paul Dixon, em O Chocalho de Brás Cubas, observa que o brinde que Brás
Cubas faz ao verme, estabelece na relação sujeito-objeto, o paralelo com o roer do
verme às frias carnes do cadáver de Brás Cubas e a reversibilidade entre sujeito e
objeto, apontada por David Abram, em favor de um paradigma da
intersubjetividade100. Essa manifestação de afeto ao responsável por fazê-lo
existir como livro, bem como a afirmação de sua existência como enunciador,
instaura a instância subjetiva desenvolvida não como narrativa propriamente dita,
isto é, como sequências de ações determinadas pelo tempo, mas como instância
que objetiva o tempo em uma dada espacialidade: o túmulo-livro. Em outras

99 a convivência do alto - a tradição emotiva e laudatória das dedicatórias - e do baixo - a


antidedicatória ao verme, alçado ao plano de "primeiro roedor" e alvo da honraria de ser lembrado -; o
paradoxo e a paródia, procedimentos tão caros ao gênero da sátira menipéia, já fazem aqui asua
entrada. (OLIVEIRA, 2008, p. 22)
100 Quando o narrador reconhece e brinda o verme, como o primeiro agente a decompor seu corpo,
está demonstrando precisamente a mesma "reversibilidade" apontada por Abram. Enquanto narrador
que dedica seu livro, Brás é o sujeito e o verme o objeto. Enquanto refeição de "frias carnes", Brás é o
objeto e o verme o sujeito. Como Flávio Loureiro Chaves já reconheceu em seu estudo de Quincas
Barba (54-55), e como sustentei em meu livro sobre os contos, o pensamento de Machado de Assis
antecipa muitas ideias da filosofia fenomenológica, especialmente no que diz respeito à rejeição de
modelos objetivos em favor de um paradigma de intersubjetividade. O tratamento peculiar do mundo
natural em Machado deriva desta visão protofenomenológica. (DIXON, 2009, p. 68)
163

palavras, a dedicatória funciona como determinação de uma espacialidade


atemporal produtora de subjetividade.
Ao subordinar a linearidade narrativa à campa que lhe foi um outro berço,
Brás Cubas pode narrar acontecimentos de suas memórias de modo aleatório e,
muitas vezes, desconexos, pois a produção do discurso e a narrativa invertem-se
de modo que, se nos romances, de modo geral, o ato enunciativo se subordina a
uma temporalidade característica da narrativa, em Memórias Póstumas a narrativa
- e portanto a temporalidade - subordina-se ao ato enunciativo e, portanto, ao
espaço do discurso. Essa subordinação permite não apenas a fragmentação dos
capítulos como tem observado a crítica machadiana, mas a fragmentação da
narrativa. Assim, no capítulo I, por exemplo, o defunto-autor narra a sua morte e
enterro:

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do


mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi.
Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro,
possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao
cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não
houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava —
uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão
triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar
esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha
cova: “—Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis
dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda
irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a
humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens
escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a
dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas;
tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que
lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi
assim que me encaminhei para o undiscovered country de
Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas
pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo.
Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas,
entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o
Cotrim, — a filha, um lírio-do-vale, — e... (ASSIS, 2008a, pp.
41-42)

Interrompe a narrativa para abrir diálogo com o leitor:

Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira


164

senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que


não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade,
padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se
deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era coisa
altamente dramática... (p. 42)

Ao retomar a narrativa, volta ainda à sua morte, tratando do acontecimento


anterior ao enterro:

Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece


que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que
sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De
pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca
entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
— Morto! morto! dizia consigo.
É a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante
viu desferirem o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem
embargo das ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa
senhora também voou por sobre os destroços presentes até às
ribas de uma África juvenil...

No capítulo seguinte, após outros interrupções feitas pelas metalepses, o


defunto-autor retoma a narrativa em tempo anterior à sua morte para contar ao
leitor como adoeceu e anunciar seu projeto inacabado do emplasto:

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara,


pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro.
Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais
arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me
estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os
braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou
devoro-te.
Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento
sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a
nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que
então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado,
verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as
vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um
produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que
estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me
influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais,
mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do
remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. (pp. 43-44)

O emplasto pretendido pela personagem e interrompido por sua morte


165

dialoga com a tradição metafórica da poesia como remédio, do poeta como médico
e do conteúdo da poesia como recipiente e líquido, desde Titus Lucrécio em seu
poema didático De rerum natura, retomado no século XVI pelo poeta italiano
Torquato Tasso em seu poema épico Gerusalemme Liberata e difundida nos
prefácios dos romances do século XVII, usados às vezes como defesa do romance e
às vezes como forma de atacar o romance, conforme observa Walter Sitti, em seu
texto O Romance sob acusação. Conforme o autor, nas discussões sobre a
importância do romance que tomam vários debates entre o século XVII e XVIII na
Europa, o romance oscila entre engano e crueldade e, portanto, entre as metáforas
de veneno e remédio (o pharmakon platônico). Essas metáforas tem em comum
identificar o romanesco como a relação completa daquilo que se pode crer ou
daquilo do qual se deve duvidar. Assim, para os críticos do romance, a ciência é a
verdade e o romance é o veneno açucarado que, adocicando a boca do leitor, o
engana, isto é, com o açúcar o romance se cobre para fazer com que o leitor engula
o líquido da indisciplina passional. Sitti cita o comentário de F. Zaccaria, em sua
Storia polemica delle proibizioni de'libri de 1777: "tudo serve para aspergir de
suave licor as bordas da vasilha, em que se quer oferecer aos incautos o veneno
mortal". (SITTI, 2009, p. 188). Em Madame Bovary, Flaubert estabelece o jogo entre
romance e veneno por meio da inversão dessa metáfora, quando o narrador afirma
que o veneno que Emma bebe tem gosto de tinta:

Esticou-se na cama. Um sabor amargo na boca despertou-a.


Entreviu Charles e fechou os olhos. Observava-se
curiosamente, para ver se sofria ou não. Mas nada! Nada
ainda. Ouvia o bater do relógio, o estalar do fogo, e a
respiração de Charles que estava de pé junto à cama. "Ah!
coisa de nada, a morte", pensava ela. "Vou adormecer e está
tudo terminado". Tomou um gole de água e virou-se para a
parede. O terrível sabor de tinta continuava. (FLAUBERT,
1998, p. 321)

Do mesmo modo, para os defensores, a metáfora da açúcar corresponde não


ao engano, mas ao prazer que se experimenta ao zombar dos outros. Em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, o defunto-autor busca no emplasto o mesmo efeito que o
epitáfio desde a tradição romana, isto é, a sede de nomeada. O que orienta seu
desejo do emplasto é, como afirma, "o gosto de ver impressas nos jornais,
166

mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras:
Emplasto Brás Cubas." (ASSIS, 2008, p. 44). Novamente estabelece a relação entre
produção e inscrição e tal qual Emma Bovary este gosto de tinta é a causa de sua morte.
Contudo, se para a personagem flaubertiana o terrível sabor de tinta é o que determina
sua morte como um fim, para Brás Cubas, é no sabor amargo dessa pena da galhofa e
da tinta da melancolia que se dá o seu nascimento como escritura.
No capítulo IX, vemos mais um exemplo desse método topológico que
subordina a temporalidade da história à espacialidade da narrativa, quanto o defunto-
autor resolve da morte seguir para o nascimento:

E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior
transição deste livro. Vejam: o meu delírio começou em
presença de Virgília; Virgília foi o meu grão pecado da
juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe
nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia
20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura
aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada. De
modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método,
sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de
método, sendo, como é, uma coisa indispensável, todavia é
melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à
fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira,
nem do inspetor de quarteirão. E como a eloquência, que há uma
genuína e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa,
engomada e chocha. (pp. 59-60)

Como demonstra por meio da metalepse de comunicação, o defunto-autor


assume como método do livro a falta de juntura aparente, isto é, sem se subordinar
à necessidade de coesão e coerência que garantam a linearidade da narrativa, pelo
contrário, tal como os exemplos mostrados, em toda a narrativa, os procedimentos
narratológicos de anisocronia (diégese, mimese, monólogo interior, discurso
indireto livre, sumário e elipse) estão subordinados às metalepses que, por sua vez,
funcionam como organizadoras desse romance. Desse modo, começo, meio e fim
não se operam de modo temporal, mas espacial, isto é, a morte da personagem
compõe tanto o começo como o fim, transformando este romance em um
palíndromo.
O trocadilho da sua condição de autor ("não sou propriamente um autor defunto,
mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço") sugere também esse ciclo
167

observado no palíndromo, pois, se o pressuposto do romance em geral propõe a ordem


da vida à morte como determinante do ato narrativo, ao negar que seja um autor
defunto, Brás Cubas propõe um quiasma na ordem do enunciado, isto é, a leitura cruza-
se como um X. Conforme define o Diccionário de La Real Academia de España, o
quiasmo é uma figura retórica que consiste em apresentar, consecutivamente e em
ordem invertida, os elementos de duas frases ou sequências (LA RAE, 2014) 101.
Conforme observa Lima Vaz, em seu texto Mística e Política: A Experiência mística na
tradição ocidental, o uso dessa figura na experiência mística cristã tem origens
agostiniana que estabelece o esquema geométrico dialético dessa figura como
constitutiva do espírito-no-mundo por meio da relação entre interior-exterior e inferior-
superior, no qual o interior é permutável com o superior e o exterior, permutável com o
inferior (VAZ, 1992, p. 497). O autor estabele o seguinte desenho:

interior superior

inferior exterior

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o trocadilho enunciado no primeiro


capítulo estabelece esse cruzamento e nos permite perceber o jogo simbólico que
corrobora os outros elementos tipográficos apresentados anteriormente. Deste modo,
temos:

autor defunto

defunto autor

101 Consultado no site: http://lema.rae.es/drae/?val=Quiasmo em 26 de outubro de 2014.


168

De modo que os substantivos autor e defunto, ao cruzarem-se em forma de


quiasmo, estabelecem o paralelo entre vida e morte, à medida que autor representa a
vida, defunto, a morte, o autor-defunto estabelece portanto o movimento temporal vida-
morte e defunto-autor, o movimento inverso, sugerindo esse ciclo observado no
palíndromo, pois, se o pressuposto do romance em geral propõe a ordem da vida à
morte como determinante do ato narrativo, ao negar que seja um autor defunto, Brás
Cubas propõe a inversão dessa ordem no próprio enunciado, estabelecendo-se nessa
figura invertida do defunto-autor a constituição do programa narrativo. Ao localizar o
lugar de narrativa e autoria da obra na morte do autor, dá-se o fantástico como
constituição de leitura desse romance. Em outras palavras, o palíndromo determinado
nos termos autor defunto e defunto autor, ao exigir uma outra proposta de leitura, insere
o romance na tradição do gênero fantástico102.
Conforme afirma Todorov em sua obra Introdução à Literatura Fantástica a
escritura só se torna possível a partir da morte daquilo que fala (TODOROV, 2010, p.
183). Ao anunciar a sua morte como procedimento de escrita, Brás Cubas se faz existir
como puro discurso e, como tal, a memória torna-se procedimento para ludibriar e adiar
a morte confirmada na carne já roída, mas combatida no discurso. Mais que isso, ao
iniciar e encerrar o romance falando de sua morte, o autor busca manter um círculo,
lançando ao infinito essa necessidade de existir por meio do discurso. Sendo o último
capítulo - Das negativas - o seu primeiro - Óbito do autor - estabelece esse parentesco
com os contos árabes compilados na obra 1001 Noites, cuja numeração também é um
palíndromo, estabelecendo essa circularidade que lança as memórias da narradora ao
infinito e permitindo em ambos a eterna existência por meio do ato narrativo como
eterno retorno. Se em Mil e Uma Noites, Sahrãzãd narra como forma de driblar não
apenas a sua morte, mas a morte de outras mulheres, em Memórias Póstumas de Brás

102 O termo grego fantástico () é utilizado no diálogo O Sofista, de Platão, na conversa
entre o Estrangeiro e Teeteto. Oposto ao termo icástico (), cujo sentido é a da cópia fiel
da essência, o termo fantástico significa a arte que copia a cópia icástica como desproporção ou
deformação também definidas como simulacro (phantásmata). No diálogo, o estrangeiro diferencia
duas artes de copiar tendo em vista o espectador. A cópia fiel (icástico) transporta do modelo copiado
as suas relações exatas de largura, comprimento e profundidade. A cópia destinada àqueles que estão
em posição desfavorável para vê-la simula o modelo de modo que seus olhares possam alcançá-la.
Para tanto, artificializa essa simulação por meio de proporções vastas e indefinidas, definidas como
fantástico (PLATÃO, 1972, p. 161). Retomaremos essa discussão sobre o conceito de fantástico mais
a frente, bem como o uso dele na leitura dos dois romances machadianos - Memórias Póstumas de
Brás Cubas - Feita por João Adolfo Hansen em seu artigo nomeado Dom Casmurro: Simulacro &
Alegoria.
169

Cubas, a morte da personagem instaura o nascimento do defunto autor para quem a


campa foi outro berço conforme afirma.
A aproximação entre as duas obras já foi feita por outras duas críticas
machadianas: Marli Fantini Scarpelli e Vera Lúcia Follain de Figueiredo, mas ambas
delimitaram suas análises dentro da abordagem alegórica do romance machadiano.
Conforme observa Figueiredo, assim como Sahrãzãd, encontra-se no romance
machadiano uma certa disposição para lutar ficcionalmente com a morte:

A morte pode ainda ser responsável pelo não fechamento da


narrativa, como em Mil e uma Noites. Graças às interrupções, às
suspensões, aos encadeamentos da trama, Sahrãzãd coloca a
morte em xeque, adiando o seu próprio fim, ao adiar o fim das
histórias. Quando se lê Memórias Póstumas de Brás Cubas,
encontra-se também uma certa disposição para lutar
ficcionalmente contra a morte.(FIGUEIREDO, 2008, 78).

Para Scarpelli, a tensão entre a vida narrada e a morte anunciada de Brás Cubas
é o modo como o defunto-autor encontra, semelhante à Sahrãzãd, o recurso por meio do
narrar-se para não morrer:É para o sultão com quem se enlaça que Sahrãzãd narra suas
histórias.

Em razão do adultério da primeira esposa, o sultão manda


decapitá-la e, ferido pela desconfiança, continua matando todas
as novas escolhidas. Estas vão para a alcova como quem vai
para o cadafalso, exceto Sahrãzãd, que, sabendo-se marcada
para morrer, em lugar de submeter-se ao risco da alcova, seduz o
esposo com sua habilidade de exímia narradora. Desse conúbio,
nasce a mais consagrada metáfora de narrativa: narra-se para
não morrer. Levando essa metáfora ao extremo do paroxismo,
Brás Cubas, um "defunto autor", que volta à vida através de suas
próprias "memórias póstumas", lança a seus leitores futuros -
como uma mensagem cifrada, dentro de uma garrafa à deriva
entre o século XIX e XXI - seu legado estético: fora da arte, a
vida não tem visibilidade; a não ser através da arte, o curso da
vida é incapturável. (SCARPELLI, p. 35, 2001)

A relação entre narrativa e morte nas duas obras é evidenciada tanto por
Figueiredo, quanto por Scarpelli. Contudo, diferentemente de Figueiredo, a abordagem
pelo fantástico permite-nos entender não uma narrativa contra a morte em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, pelo contrário, neste romance a narrativa opera-se a partir da
morte, como lugar possível do ato de narrar. Tal procedimento faz com que uma das
170

características estéticas determinantes na composição deste romance seja a suspensão de


sentido.
O tema da morte em ambas as obras estabelece um ciclo narrativo em que o fim
coincide-se com o começo de modo que a estrutura do romance rompe com a
linearidade realista/positivista de seu tempo: no romance machadiano a obra inicia e
termina com a morte. Conforme afirma Mamede Mustafa Jarouche, tradutor de Mil e
uma Noites para o português, o conjunto de narrativas que a obra reúne resulta de um
conglomerado feito por diversos autores anônimos. Dividido em dois ramos diferentes -
sírio e egípcio antigo - os quatro manuscritos do ramo sírio, sendo o primeiro deles,
traduzido para o francês por Jean-Antoine Galland, cuja tradução popularizou a obra no
ocidente, contêm duzentas e oitenta e duas noites, encerrando-se abruptamente no
mesmo ponto. Foi somente no ramo egípcio tardio que as histórias passaram a
corresponder de fato ao título103. O título chama a atenção pela correspondência
alegórica entre o objetivo das narrativas, isto é, Sahrãzãd conta suas histórias para evitar
a morte das mulheres do reino, e o título mil e uma noites, cuja numeração propõe um
palíndromo, estabelecendo alegoricamente um ciclo como constante retorno para evitar
a morte. Curiosamente, mas não necessariamente significativo, o número de noites
registradas pelo ramo sírio encontrado, embora não corresponda com o título, é também
um palíndromo (282). O termo grego conforme verificamos no
dicionário Grego/Português,significa correr para trás.
Se o palíndromo, intencional ou não, na obra árabe aparece de modo explícito,
em Memórias Póstumas de Brás Cubas, produz-se por meio da estrutura do ato de
narrar. Conforme podemos observar no capítulo 85 deste romance, o defunto autor,
sugere a proximidade do seu ato de narrar ao de Sahrãzãd:

E assim reatamos o fio da aventura, como a sultana


Scheherazade o dos seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto
máximo do nosso amor, o cimo da montanha, donde por algum
tempo divisamos os vales de leste e de oeste, e por cima de nós

103 Como não se trata de coincidência fortuita, é possível falar de uma interrupção da elaboração por
motivos ignorados. Os manuscritos do ramo egípcio antigo não ajudam a exclarecer a questão, pois
suas cópias são tardias (a mais antiga é do século XVII) e visivelmente remanejaram o texto primitivo.
(...) Foi somente no que se chama de ramo egípcio tardio, elaborado na segunda metadel do século XII
H/XVIII d.C., que o título do Livro das mil e uma noites passou a equivaler, de fato, ao número de
noites que continha. Nesse período, não só as histórias introduzidas para completar o livro muitas
vezes apresentavam características distintas de seu núcleo original, como mesmo este último teve suas
características formais e de conteúdo modificadas: as histórias mais antigas foram resumidas e
agrupadas em um número bem menor de noites. (JAROUCHE, 2004, p. 28-29)
171

o céu tranquilo e azul. Repousado esse tempo, começamos a


descer a encosta, com as mãos presas ou soltas, mas a descer, a
descer... (ASSIS, 2008a, pp. 181-182)

Dessa forma, após o susto da separação de Virgília e Brás Cubas, o defunto-


autor conta-nos a intensidade com que a relação dos amantes foi retomada e, para tanto,
compara a retomada dessas aventuras com o modo de narrar de Sahrãzãd em Mil e uma
Noites: "E assim reatamos o fio da aventura, como a sultana Scheherazade o dos seus
contos". (p. 181). Há uma assimetria na comparação uma vez que a metáfora "fio" no
caso dos amantes é, no romance, o assunto dos amores da personagem-narrador,
enquanto que em Mil e uma Noites, além de ser o assunto, pois com ele é que a
personagem mantém sua vida, é também o procedimento estrutural da narrativa que
organiza a obra. Contudo, a comparação não é gratuita, torna-se determinante para a
compreensão dos procedimentos técnicos de organização da narrativa de Memórias
Póstumas de Brás Cubas. Deste modo, este fio que mantém viva a possibilidade do
dizer, do contar em ambas obras pode ser entendido como metáfora da morte.
Em seu texto O que é um autor? Foucault trata do parentesco da escrita com a
morte a partir de três diferenças: a primeira, como subversão de um tema milenar
presente na epopeia dos gregos, cujo objetivo era perpetuar a imortalidade do herói por
meio da recuperação da morte aceita como ato de imortalizar-se; a segunda, como
exorcismo da morte por meio da narrativa cita Mil e Uma Noites, cuja narrativa se opera
como inverso da epopeia grega, à medida que Sahrãzãd busca narrar para não morrer. A
terceira diferença é a relação entre escrita e morte como manifestação do
desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve (FOUCAULT,
2013, pp. 268-302); isto é, por meio de signos que marcam a singularidade do escritor
como ausência, fazendo papel de morto no jogo da escrita, estabelecendo uma totalidade
desse eu enunciativo que pode, portanto, narrar os fatos como bem entende sem que
com isso a veracidade do que conta venha a ser questionada pelo leitor, pois como
defunto-autor, estabelece a si mesmo um salvo-conduto pelo qual pode circular por todo
o território da verdade sem por isso ser questionado, ou, nas suas palavras:

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e


realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a
primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o
contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a
calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a
não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o
172

melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros,


embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se
o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um
vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo!
que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao
fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se,
confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em
suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem
conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O olhar da opinião,
esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o
território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e
nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do
exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão
incomensurável como o desdém dos finados. (ASSIS, 2008a, p.
95)

Portanto, o palíndromo como figura que determina o modo de organização


e articulação deste romance subordina tempo e espaço a espacialidade como
túmulo-livro. Tal estruturação permite ao defunto-autor organizar as
procedimentos narrativos conforme seu bel prazer e, desse modo, as metalepses
deixam de ser um aparte do autor ou modos de estabelecer novos contratos ou de
promover o esvaziamento da figura autoral, para tornarem-se procedimentos
estruturais que organizam o ato narrativo. Em outras palavras, se nos romances
analisados anteriormente, as metalepses funcionam como procedimentos que
interrompem a narrativa para determinar seus efeitos de sentido, em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, as metalepses funcionam como procedimentos que
subordinam a narrativa (história) à narração, o que as torna em conjunto o que
chamamos de modelo arbitrário. O prólogo Ao leitor anuncia o modo de
funcionamento da narração nomeado pelo defunto-autor como forma livre com
rabugens de pessimismo escrita com a pena da galhofa e a tinta da melancolia. Essa
qualificação de procedimento feita no prólogo - bem como todo o resto - pretende
perfomatizar um modo de leitura para o qual o leitor deva se orientar e sem o qual
não terá condições de compreender a obra. Logo, o discurso de Brás Cubas se
impõe não apenas compartilhando informações, mas, antes de tudo, como
determinação hermenêutica que se impõe ao olhar do leitor e se reforça no final
desse parágrafo ao determinar qual tipo de leitor tem condições de acompanhar a
leitura, isto é, qualifica os diferentes modos de recepção pela exclusão: "Acresce
que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que
173

a gente frívola não achará nele o seu romance usual" (p. 39). A adjetivação dos
leitores, ao pretender determinar um modo adequado de leitura, tem como efeito
performativo não o afastamento de perfis fixos como aviso de quem deva ou não
ler a obra, mas o de domesticar o leitor que se propõe a continuar com a leitura,
ainda que este possa tomar uma posição de afastamento em relação ao discurso do
narrador. No trecho final desse prólogo, a imposição do autor sobre a leitura dá-se
de modo bem mais substancial e determinante do que o discurso de Dom
Casmurro, quando o autor diz que a obra em si mesma é tudo. Essa totalização de
sentido determina o tom pelo qual o defunto-autor encaminha seu discurso, isto é,
a totalização esvazia o lugar de recepção, sendo, portanto, o seu sentido pré-
determinado e cabendo apenas ao leitor uma postura de mero receptor de um
sentido pré-dado. Ao leitor cabe então agradar-se ou não, recebendo como
pagamento dessa submissão o agradecimento ou a agressão do autor. Outro
exemplo é a predeterminação feita no modo de compreensão do leitor de um
determinado comentário tecido pelo defunto autor como por exemplo no capítulo
XXV, após a morte de sua mãe, a personagem retira-se para a Tijuca:

Creio que por então é que começou a desabotoar em mim a


hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro
inebriante e sutil. — “Que bom que é estar triste e não dizer
coisa nenhuma!” — Quando esta palavra de Shakespeare me
chamou a atenção, confesso que senti em mim um eco, um eco
delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um
tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas mãos, e o espírito
ainda mais cabisbaixo do que a figura, — ou jururu, como
dizemos das galinhas tristes. Apertava ao peito a minha dor
taciturna, com uma sensação única, uma coisa a que poderia
chamar volúpia do aborrecimento.
Volúpia do aborrecimento: decora esta expressão, leitor; guarda-
a, examina-a, e se não chegares a entendê-la, podes concluir que
ignoras uma das sensações mais sutis desse mundo e daquele
tempo. (p. 96)

Ou quando, no capítulo XXVII, após narrar a conversa com seu pai, momento
em que este fala de Virgília com quem pretende casar o filho, o defunto autor
mimetiza a voz do leitor para polemizar com ele:

Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral da


pessoa que devia influir mais tarde na minha vida; era aquilo
174

com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda fores viva, quando


estas páginas vierem à luz, — tu que me lês, Virgília amada, não
reparas na diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro
empreguei quando te vi? Crê que era tão sincero então como
agora; a morte não me tornou rabugento, nem injusto.
— Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir a verdade
daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?
Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz
senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar
a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos
afetos. (pp. 101-102)

Neste exemplo, temos também o procedimento comum do defunto-autor


dialogar com suas personagens como se fossem elas seus leitores. Neste caso,
Virgília é tirada da condição de personagem e instituída como leitora, com quem
passa a dialogar e tensionar. Semelhante procedimento é aplicado também no
capítulo XIII, ao narrar sua experiência na escola, Brás Cubas, após comentar sobre
o seu professor Ludgero Barata, o institui como interlocutor para estabelecer
diálogo com ele:

Ó palmatória, terror dos meus dias pueris, tu que foste o


compelle intrare com que um velho mestre, ossudo e calvo, me
incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que
ele sabia, benta palmatória, tão praguejada dos modernos, quem
me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as
minhas ignorâncias, e o meu espadim, aquele espadim de 1814,
tão superior à espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu
velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na
aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é a mestra
das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo,
nunca me meteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com
as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à
mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver
uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto
durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa
casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua
mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas
trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, — ninguém,
nem eu, que te devo os rudimentos da escrita. (p. 71)

Ou ainda, no capítulo XXXIII, quando narra o beijo que dera em Eugênia


para comentar com ela, constituída como leitora, o que naquele momento passava
em sua mente:
175

Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: — Bem-


aventurados os que não descem, porque deles é o primeiro beijo
das moças. Com efeito, foi no domingo esse primeiro beijo de
Eugênia, — o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe
tomara, e não furtado ou arrebatado, mas candidamente
entregue, como um devedor honesto paga uma dívida. Pobre
Eugênia! Se tu soubesses que ideias me vagavam pela mente
fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços
nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo
esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a
suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem... (p.
110)

Essa movimentação das metalepses permite que o defunto-autor embaralhe


o tempo da narração com o tempo da história de modo que, para além do papel de
observador, ele se instaure juntamente com o leitor na história, de forma que o
tempo narrado se confunda com o tempo da narração, conforme podemos ver no
capítulo XXXII, quando anuncia sua decisão em descer para a casa do pai: "Fui dali
acabar os preparativos da viagem. Já agora não me demoro mais. Desço imediatamente;
desço, ainda que algum leitor circunspecto me detenha para perguntar se o capítulo
passado é apenas uma sensaboria ou se chega a empulhação..." (p. 108). A embreagem
enunciativa da pessoa permite que o defunto autor embaralhe a temporalidade, à medida
que, acompanhando-a, enuncia a embreagem enunciativa de tempo - "Já agora não
demoro mais" - de forma que o acontecimento no passado se torna presente e com isso o
leitor é instaurado na história pela embreagem enunciativa de lugar - "ainda que algum
leitor circunspecto me detenha para perguntar..." Este embaralhamento entre narração e
história só é possível por conta da estrutura topológica do romance que subordina e
organiza como bem entender o defunto-autor a temporalidade da história.
Determinar os procedimentos de metalepse em Memórias Póstumas de Brás
Cubas como modelo arbitrário, remete-nos a toda discussão no campo da
linguística sobre a arbitrariedade da relação entre o significante e o significado que
tem como ponto de partida as aulas compiladas de Ferdinand Saussure. Sem entrar
neste campo de discussão que levou alguns linguistas como Benveniste e Pichon a
entender essa relação entre significante e significado como necessária e não
arbitrária, interessa-nos o desenvolvimento teórico feito por Jacques Derrida, em
Gramatologia, quando traz a esse debate o conceito de escritura, isto é,
questionando a concepção saussuriana da da escritura como sistema externo ou
176

reflexo exterior da realidade da língua, o filósofo definindo escritura como inscrição


e, portanto, instituição durável de um signo, sendo essa durabilidade o seu núcleo
irredutível do conceito de escritura Determina na ideia mesma de instituição a sua
arbitrariedade, logo, nenhuma relação de representação natural está implicada
como pressupõe a concepção hegeliano-saussuriana. Desse modo, propondo a
concepção de escritura como ao mesmo tempo exterior à fala - portanto não é sua
imagem - e interior à fala, sendo esta em si mesma uma escritura, o conceito de
grafia implica a instância do que chama de rastro instituído, isto é, nas palavras do
filósofo:

Não se pode pensar o rastro instituído sem pensar a


retenção da diferença numa estrutura de remessa onde a
diferença aparece como tal e permite desta forma uma certa
liberdade de variação entre os termos plenos. A ausência de
um outro aqui-agora, de um outro presente transcendental,
de uma outra origem do mundo manifestando-se como tal,
apresentando-se como ausência irredutível na presença do
rastro, não é uma fórmula metafísica que substituída por um
conceito científico da escritura. Esta fórmula, mais que a
contestação da metafísica, descreve a estrutura implicada
pelo "arbitrário do signo", desde que se pense a sua
possibilidade aquém da oposição derivada entre natureza e
convenção, símbolo e signo, etc. (DERRIDA, 1999, p. 57)

Desse modo, o rastro implicando a grafia imprime a relação com o outro


para articular sua possibilidade, mas que em movimento produz sua ocultação e
apresenta-se na dissimulação de si. Obviamente, em termos gerais, a
arbitrariedade determina toda a escrita que produz esse rastro a ocultar à medida
que se enuncia. Contudo, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, essa
arbitrariedade se constitui na e pela escrita, conforme já observamos no efeito de
sentido produzido pelo palíndromo e anunciado como programa narrativo no
prólogo do leitor. Neste romance, já não se trata mais de um contrato ilusório que
devolve pelo ficcional o leitor às suas certezas, antes abaladas. Também não se
trata de um procedimento que ao mesmo tempo em que enuncia a não onisciência
do narrador, enuncia a incompetência interpretativa do leitor, esvaziando o lugar
da autoria para fazer com que a narrativa funcione sozinha no que chamamos de
modelo disciplinar. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, desde sua abertura que
177

anuncia o livro como o lugar da morte, isto é, condiciona o tempo narrativo a uma
topologia e determina o modo interpretativo pelo qual o leitor é obrigado a seguir,
as metalepses funcionam como modelo arbitrário. É nesse sentido que Alfredo Bosi
vê no conceito de homem subterrâneo de Augusto Meyer o perspectivismo
arbitrário como matriz do capricho que alinha as confidências do defunto
autor104. João Adolfo Hansen propõe como arbitrário de direção essa narrativa de
autor ficcional que se manifesta também nos capítulos curtos e na "suspensão do
sentido unívoco introduzida na sua escrita pelo expediente da contínua auto-
interpretação orientada pela duplicidade da atrabile acarretam os efeitos de
indeterminação referidos, pois a tradução que rebaixa o elevado e simultaneamente
eleva o baixo dissolve as unidades e impede qualquer unificação." (HANSEN, 2008, p.
147). Conforme vimos nos exemplos e análises, para além dos capítulos curtos, a
arbitrariedade determina toda a forma de organização da narrativa e tem nas metalepses
os seus mecanismos de estruturação e realocamento da narrativa para lugar do túmulo
livro.
Deleuze e Guattari, ao abordarem a relação linguística significante-significado,
põem de lado a discussão dessa relação ser arbitrária, necessária, verso e anverso da
mesma folha, correspondente termo a termo, global ou ambivalente: todas essas
definições servem à mesma causa que é a de reduzir o conteúdo ao significado e a
expressão ao significante. Em todas essas especificações da relação, o significado não
existe sem estar em relação com o significante e este é a Redundância. Para os autores, a
forma de expressão e a forma de conteúdo não estabelecem entre relações de
conformidade, mas de independência e distinção reais. O que garante ajustar uma forma
à outra, determinando suas correlações, é o agenciamento específico variável, isto é, a
forma de expressão não se reduz às palavras, mas a um conjunto de enunciados que
surgem do campo social considerado estrato - definido como um regime de signos, bem
como a forma de conteúdo não se reduz às coisas, mas a um estado de coisas complexo
como formação de potência, a qual definem como multiplicidades discursivas de
expressões e multiplicidades não discursivas de conteúdo, tendo, cada uma delas sua
história, sua micro-história, seus agenciamentos. Em Memórias Póstumas de Brás

104 Para tanto, forjou conceitos lapidares. Por exemplo, o "perspectivismo arbitrário" de Brás Cubas,
matriz do capricho que alinhava bizarramente as confidências do defunto autor. Ou a "atenção
divertida e frouxa" que o narrador de Esaú eJacó dá aos sucessos políticos do fim do Império e do
início da República, meros pretextos que bóiam à superficie do texto romanesco. (BOSI, 2002, p. 11)
178

Cubas, a autobiografia é uma forma de conteúdo, a forma-autobiografia que estabelece


relação com outras formas de conteúdo (romance, documento, história) que remete a
conceitos como leitura, leitores os quais determinam o ato de ler e o ato de aprender e
apreender operando novas formas de subjetivação.
Ao mesmo tempo, esse significante despótico opera uma uniformização
substancial da enunciação, cuja subjetividade, por sua vez, promove atos de
individuação coletivas ou particulares, isto é, o eu que se enuncia, somente o faz por
meio da obediência aos enunciados da realidade dominante e, ao se enunciar, reflete seu
próprio uso no enunciado. Em outras palavras, o que se define como sujeito não passa
de agenciamentos coletivos de enunciação, sendo a subjetivação um desses
agenciamentos como regime de signo que se remete a um novo agenciamento. Deste
modo, ao enunciar a forma-autobiografia, o defunto-autor a enuncia a partir de
enunciados da realidade dominante que tem na morte o seu limite ou o seu grande
fantasma. Para tanto, desterritorializa a temporalidade ficcional da narrativa para
reterritorializá-la na topologia do túmulo vazio da memória (a carne roída pelo verme
anunciada como epitáfio): o túmulo-livro torna-se o lugar do déspota como motor
imóvel dessa narrativa que produz e reproduz novas subjetividades corporificadas na
enunciação do leitor como performance de leitura. Esse grafismo que é sempre póstumo
subordina o corpo à representação da palavra operada pelas metalepses como um
modelo arbitrário despótico.
179

SEGUNDA PARTE:

CRÔNICA:
A POLÍTICA AMENA
EO
MODELO DESCONTÍNUO

A crônica é como a poesia: ça ne tire pas à consequence. Quem


passa por uma igreja, descobre-se; quem passa por um botequim
não se dá esse trabalho; entra a beber uma xícara de café ou um
grog; pede duas lérias aos amigos, quer ouvir morder na pele do
próximo; exige cócegas, pelo menos. É assim a crônica. Que
sabes tu, frívola dama, dos problemas sociais, das teses políticas,
do regimen das coisas deste mundo? Nada; e tanto pior se
soubesses alguma coisa, porque tu não és, não foste, nunca serás
o jantar suculento e farto; tu és a castanha gelada, a laranja, o
cálix de chartreuse, uma coisa leve para adoçar a boca e rebater
o jantar. (ASSIS, Notas Semanais, p. 156)
180

CAPÍTULO 1 - A CRÔNICA E O MODELO DESCONTÍNUO

O poder disciplinar não é descontínuo, ao contrário, ele implica


um procedimento de controle contínuo; no sistema disciplinar,
não se está à eventual disposição de alguém, está-se
perpetuamente sob o olhar de alguém ou, em todo caso, na
situação de ser olhado.
Michel Foucault, O Poder Psiquiátrico, p. 59

Um dos elementos fundamentais na diferenciação entre o discurso do romance


e o discurso da crônica é que o lugar discursivo da produção da crônica machadiana é o
jornal e, portanto, lugar entremeado com o discurso jornalístico, ainda que
consideremos os chamados romances de folhetim, isto é, definimos como lugar não
apenas o espaço em que esses discursos se constroem, mas a intersecção que o discurso
da crônica estabelece com o discurso jornalístico. Telê Ancona Lopez, em seu ensaio "A
crônica de Mário de Andrade: impressões que historiam", observa que, diferentemente
das crônicas antigas, cujo gênero limitava-se a registrar acontecimentos reais ou de
viagens, a crônica jornalística trata de assuntos já noticiados nos jornais e, como não
tem compromisso em noticiá-los, dá-lhes as costas para elaborar a sua ficcionalidade 105.
A análise das crônicas machadianas produzidas no período de 1861 e 1878
permite-nos perceber a variedade de temas tratados como notícia. No geral, os temas
são retirados dos diferentes jornais que circulam não apenas na capital do Império, mas
também em outros locais do país, bem como de jornais vindos de países da Europa.
Comumente, as notícias são conhecidas dos leitores das crônicas, o que torna o papel do
cronista menos um noticiador e mais um comentarista das matérias já noticiadas,
operando diferentes procedimentos que ficcionalizam a crônica conforme observação de
Ancona Lopez. Obviamente, a crônica machadiana é um gênero voltado a temas
cotidianos, os quais, em sua grande maioria são extraídos dos jornais da época.
Contudo, conforme observa Leonardo Affonso de Miranda Pereira, o cronista
desenvolve esse gênero de forma abertamente literária ao utilizar nesses escritos

105 O cronista do passado quer simplesmente “pondo em crônica”, isto é, organizando


cronologicamente histórias existentes, quer oferecendo com arte seu enfoque dos fatos – Fernão Lopes
– tem a responsabilidade de escrever para ficar, a responsabilidade de fixar aquilo que, um dia, foi
presente. O cronista moderno, cronista de jornal, possui uma responsabilidade bem mais leve, mas,
apenas quanto à necessidade de permanecer, de guardar o fato ou a notícia que lhe serve de base. Pode
voltar, sem cerimônia, as costas parta a notícia, pois não vai informar”. LOPEZ, Telê Porto Ancona. A
crônica de Mário de Andrade: impressões que historiam. Org. Antonio Candido. Campinas: Editora da
Unicamp, 1992. P. 165-166
181

procedimentos composicionais muito distintos dos recursos característicos da pretensa


objetividade jornalística. Com isso, já começava sua tentativa de determinar e modificar
seus procedimentos, permitindo que o leitor colocasse em questionamento o estatuto
dos discursos por meio da suspensão de sentido, da relativização e diluição dos
enunciados, das práticas intertextuais, do rebaixamento entre outros que contribuem não
apenas para o leitor da época, mas ao leitor de hoje perceber as condições de produção
das formações discursivas106.
A análise de conjunto dessas cinco séries de crônicas nos permitiu perceber a
variação no modo de produção desses temas ao longo de dezessete anos, bem como a
consolidação do modo de tratamento estético do gênero nas crônicas machadianas. Para
nossa análise neste trabalho, escolhemos as crônicas Comentários da Semana,
publicadas no Diário do Rio de Janeiro no período de 12 de outubro de 1861 a 5 de
maio de 1862, totalizando vinte e uma crônicas, assinadas com o pseudônimo Gil nas
nove primeiras crônicas e, posteriormente, assinadas com a abreviatura M. A.. Conforme
observam Lúcia Granja e Jefferson Cano na introdução dessa coletânea publicada pela
Editora UNICAMP, é a primeira vez que Machado de Assis assume a função de
cronista de variedades107. Além dessas, também analisaremos as crônicas nomeadas
Crônicas, publicadas na revista O Futuro no período de 15 de setembro de 1862 a 1º de
julho de 1863, totalizando dezesseis crônicas e assinadas com o nome do autor; as
crônicas Ao Acaso publicadas no Diário do Rio de Janeiro, no período de 5 de julho de
1864 a 16 de maio de 1865, totalizando quarenta e duas crônicas e assinadas com a
abreviatura M. A.; as crônicas História de Quinze Dias e História de Trinta Dias
publicadas na revista Illustração Brasileira no período de 1º de julho de 1876 a abril de
1878, totalizando quarenta crônicas e assinadas com o pseudônimo Manassés; por fim,
as crônicas Notas Semanais, publicadas no periódico O Cruzeiro, no período de 2 de
junho de 1878 a 1º de setembro de 1878, totalizando quatorze crônicas e assinadas com
o pseudônimo Eleazar.

106 Ainda que escrevesse em um gênero voltado para a discussão do cotidiano, muitas vezes
associado ao jornalismo, Machado o fazia em perspectiva abertamente literária, utilizando-se de
recursos e artifícios muito distantes da pretensa objetividade de um jornalista. Por mais que não
chegasse ainda a absolutizar o caráter ficcional da narração, na delimitação mais precisa das
personagens narradores como os que marcariam algumas de suas produções posteriores em diversos
gêneros, ficava evidente a tentativa de modificar o estatuto da narração, induzindo o leitor a
desconfiar do que lia. PEREIRA, 2009, pp. 50-51
107Em outubro de 1861, Machado de Assis assumiu, pela primeira vez, a função de cronista de
variedades. Tinha 22 anos e se achava envolvido já há algum tempo com a publicação de variados
textos nos periódicos do Rio de Janeiro. (GRANJA e CANO, 2008, p. 11)
182

Não foram apenas essas cento e trinta e três crônicas escritas por Machado de
Assis. Conforme apresenta a coletânea reunida por W. M. Jackson e a Editora Nova
Aguilar, há as crônicas publicadas em O Espelho no período de 11 de setembro de 1859
a 16 de março de 1860, totalizando vinte e oito crônicas e assinadas com a abreviatura
M-as; as Crônicas do Dr. Semana publicadas na Semana Ilustrada no período de 8 de
dezembro de 1861 a 26 de junho de 1864, totalizando trinta e quatro crônicas e
assinadas com o pseudônimo Dr. Semana; as crônicas Cartas Fluminenses publicadas
no Diário do Rio de Janeiro no período de 03 de março de 1867 a 12 de março de 1867,
totalizando duas crônicas e assinadas com o pseudônimo Job; as crônicas Badaladas
publicadas na Semana Ilustrada no período de 22 de outubro de 1871 a 2 de fevereiro
de 1873, totalizando dez crônicas e assinadas com o pseudônimo Dr. Semana. Dado o
fato de essas tratarem de temas mais específicos como crítica teatral ou, no caso das
Cartas Fluminenses sobre a opinião pública, optamos por analisar apenas as cento e
trinta e três crônicas por tratarem de temas mais gerais e assuntos mais variados.
Além dessas duzentas e sete crônicas, Machado de Assis também publicou as
crônicas Balas de Estalo, no período de 2 de julho de 1883 a 22 de março de 1886,
totalizando cento e vinte e cinco crônicas e assinadas com o pseudônimo Lélio; as
crônicas A+B no período de 12 de setembro de 1886 a 24 de outubro de 1886,
totalizando sete crônicas e assinadas com o pseudônimo João das Regras; as crônicas
Gazeta de Holanda publicadas no período de 1º de novembro de 1886 a 24 de fevereiro
de 1888, totalizando quarenta e oito crônicas e assinadas com o pseudônimo Malvolio;
as crônicas Bons Dias publicadas no período de 5 de abril de 1888 a 29 de agosto de
1889, totalizando quarenta e nove crônicas e assinadas com o pseudônimo Boas Noites;
as crônicas A Semana publicadas no período de 24 de abril de 1892 a 28 de fevereiro de
1897, totalizando duzentos e quarenta e oito crônicas e sem assinatura. Sendo o nosso
objetivo analisar os procedimentos das crônicas que antecederam a chamada segunda
fase da produção literária de Machado de Assis e tendo como hipótese a presença desses
procedimentos na determinação da estética literária dessa fase, optamos por não analisar
detidamente essas quatrocentos e setenta e sete crônicas, por terem sido publicadas
posteriormente ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Contudo, faremos
referências a alguns trechos dessas outras crônicas com o objetivo de evidenciar
procedimentos semelhantes aos analisados neste trabalho.
Em todas as cento e trinta e três crônicas analisadas, os temas variam entre
política, assuntos internacionais, arte, eventos, obituários e outros assuntos cotidianos.
183

Contudo, das crônicas Comentários da Semana às Notas Semanais ocorre uma mudança
dos temas tanto quantitativa quanto qualitativa. Nas primeiras crônicas, os temas de
política e arte dominam, mas conforme o cronista experimenta novos procedimentos de
escrita, os assuntos cotidianos ganham mais espaço. Para compreendermos melhor essa
variação observamos um padrão de funcionamento da crônica, o qual se estabelece pela
inserção da notícia seguida de comentários. A partir desse padrão, pudemos demarcar
quais temas são abordados, separá-los e determinar o número de vezes de sua
ocorrência, o que nos possibilitou estabelecer a seguinte tabela e gráfico:

TABELA 6 - Percentual comparativo dos temas nas cinco séries de crônicas


C. O FUTURO AO ACASO H. Q. T. D. N. S.
S.108
POLÍTICA 22% 5% 15% 16% 25%
ASSUNTOS INTERNACIONAIS 7% 5% 10% 10% 2%
REFERÊNCIA A JORNAIS 8% 3% 9% 4% 2%
ARTE 40% 72% 38% 25% 10%
ASSUNTOS COTIDIANOS 6% 8% 17% 28% 41%
EVENTOS 10% 3% 7% 14% 12%
OBITUÁRIO 7% 5% 3% 8% 8%

108 108 C. S. = Comentários da Semana; H. Q. T. D: Histórias de Quinze Dias e História de Trinta Dias;
N. S.: Notas Semanais. Por serem assinadas com o mesmo pseudônimo, colocamos as crônicas
História de Quinze e de Trinta Dias juntas.
184

GRÁFICO 1: TEMAS

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


185

Como podemos ver na tabela e no gráfico, as crônicas de Comentários da


Semana têm como tema principal a política e a arte e, entre elas, tratam de outros temas
sem o mesmo peso. O envolvimento do jovem cronista na vida política do país se
confirma pela abordagem do tema muitas vezes agressiva e contundente por meio de
sua pena afiada. Conforme observa Jean-Michel Massa em sua obra A Juventude de
Machado de Assis, a postura agressiva de Machado evidencia-se nessas crônicas à
medida que critica parlamentares, citando-os nominalmente, como é o caso do
Conselheiro Penna, do Ministro da Agricultura e do Ministro da Fazenda no Ministério
do Duque de Caxias e do Ministro do Império Duque de Caxias. Na crônica do dia 1º de
novembro de 1861, da série Comentários da Semana, o cronista a inicia com o tom
ácido dirigido a todo o Ministério de Duque de Caxias:

O que há de política? É a pergunta que naturalmente ocorre a


todos, e a que me fará o meu leitor, se não é ministro. O silêncio
é a resposta. Não há nada, absolutamente nada. A tela da
atualidade política é uma paisagem uniforme; nada a perturba,
nada a modifica. Dissera-se um país onde o povo só sabe que
existe politicamente quando ouve o fisco bater-lhe à porta.
O que dá razão a este marasmo? Causas gerais e causas
especiais. Foi sempre princípio nosso do governo aquele
fatalismo que entrega os povos orientais de mãos atadas às
eventualidades do destino. O que há de vir, há de vir, dizem os
ministros, que, além de acharem o sistema, cômodo, por amor
da indolência própria, querem também pôr a culpa dos maus
acontecimentos nas costas da entidade invisível e misteriosa, a
que atribuem tudo.
Dizem, é verdade, que há tal ministro que, adotando
politicamente aquele princípio, descrê da sua legitimidade
quando se trata da sua pessoa, e que, longe de esperar que a
chuva lhe traga água, vai á própria fonte buscar com que
estancar a sede. O leitor vê bem o que há de profundamente
injurioso em semelhante proposição, e facilmente compreenderá
o sentimento que me leva não insistir neste ponto.
Mas, seja ou não assim, o que nos importa saber é que os nossos
governos são, salvas as devidas exceções, mais fatalistas que um
turco de velha raça. Seria este ministério uma exceção? Não;
tudo nele indica a filiação que o liga intimamente aos da boa
escola. É um ministério-modelo; vive do expediente e do aviso;
pouco se lhe dá do conteúdo do ofício, contanto que tenha
observado na confecção dele as fórmulas tabelioas; dorme á
noite com a paz na consciência, uma vez que de manhã tenha
assinado o ponto na secretaria.
Está dada a razão por que subiu no meio das antífonas e das
orações dos amigos, apesar dos travos de fel com que alguns
quiseram fazer-lhe amargar a taça do poder. Diziam estes: “É
186

um ministério medíocre”. Mas, por Deus, por isso mesmo é que


é sublime!Em nosso país a vulgaridade é um título, a
mediocridade um brasão ; para os que têm a fortuna de não se
alarem além de uma esfera comum é que nos fornos do Estado
se coze e tosta o apetitoso pão-de-ló, que é depois repartido por
eles, para glória de Deus e da pátria. Vai nisto um sentimento de
caridade, ou, direi mesmo, um princípio de equidade e de
justiça. Por toda a parte cabem as regalias às inteligências que se
aferem por um padrão superior; é bem que os que se não acham
neste caso tenham o seu quinhão em qualquer ponto da terra. E
dão-lhe grosso e suculento, a bem de se lhes pagar as injúrias
recebidas da civilização.
Não se admire, portanto, o leitor se não lhe dou notícias
políticas. Política, como eu e o meu leitor entendemos, não há. E
devia agora exigir-se de um melro o alcance do olhar da águia e
o rasgado de seu vôo? Além de ilógico fora crueldade. Estamos
muito bem assim; demais, não precisa o império de capricórnio.
(ASSIS, 2008d, pp. 77-78)

As críticas machadianas nessas crônicas chegam inclusive a apontar erros de


quem escrevia as rubricas vizinhas do Diário do Rio de Janeiro. Massa identifica nessas
crônicas uma postura enérgica, radical, jacobina, o que deve ter resultado em sua
censura por parte do diretor político do jornal, Saldanha Marinho. Como afirma Massa:

O que se passou? Não se sabe exatamente, mas o idealismo de


Machado de Assis se machucou, seja pela realidade, seja pela
atitude dos seus. Daí a náusea que tomou conta dele. Todavia, as
crônicas espacejavam: 22 de fevereiro, 2 de março, 24 de março,
19 de abril. E mudavam de direção; agora eram quase
exclusivamente dedicadas à literatura. Depois da crônica de 19
de abril, particularmente cáustica, sobre a inauguração da
estátua, calou-se. Só retornou em 5 de maio de 1862, exatamente
antes da queda do ministério Caxias (MASSA, 2009, p. 267)

Para Massa, o espaçamento entre as crônicas no mês de fevereiro, março e abril


terá ocorrido, talvez, por uma censura que o cronista sofrera da direção do jornal; a
atenuação na crítica observável nesse período poderia resultar do mesmo motivo. Lúcia
Granja e Jefferson Cano, na introdução da edição dos Comentários da Semana,
relativizam essa opinião de Jean-Michel Massa, observando que o espaçamento entre as
crônicas já havia acontecido anteriormente no mês de novembro e de janeiro, bem como
mostram que, na última crônica, Machado utilizou sua "pena afiada" para praticamente
187

pedir a queda do ministério Caxias109. De qualquer forma, a análise dos temas nessas e
nas crônicas posteriores mostra uma redução quanto ao modo de abordar a política
nacional e, quando a aborda, é perceptível a mudança qualitativa como veremos à
frente. Quanto ao modo de distribuição dos temas nessas primeiras crônicas, é possível
notar um padrão: geralmente, a crônica começa por tratar de questões políticas
nacionais, passa a tratar de algum assunto internacional e conclui sobre algum assunto
ligado à arte, alguma obra literária, alguma festa, o teatro e a ópera.
Nas crônicas publicadas na revista O Futuro - com base no quadro acima - o
tema da política nacional se reduz significativamente, abrindo espaço para a arte.
Conforme observa Jean-Michel Massa, a revista O Futuro foi fundada e dirigida por um
português amigo de Machado de Assis, Faustino Xavier de Novais, irmão mais velho de
Carolina Augusta Xavier de Novais com quem Machado se casou em 1869. Na crônica
de 24 de março de 1862, Machado havia anunciado o nascimento dessa revista:

O Futuro, revista que aparecerá a cada quinzena, é mais um laço


de união entre a nação brasileira e a nação portuguesa. Muitas
razões pedem esta intimidade entre dois povos, que esquecendo
passadas e fatais divergências, só podem, só devem ter um
desejo, o de engrandecer a língua que falam, e que muitos
engenhos tem honrado. O Futuro, concebido sobre uma larga
base, é uma publicação séria e porventura será duradoura. Tem
elementos para isso. A natureza dos escritos que requer um
folheto de trinta páginas, publicado cada quinzena, muitos dos
nomes se me diz farão parte da redação, entre os quais figura o
do velho mestre Herculano, e a inteligência diretora e
proprietária da publicação, o filho dileto do autor do Bilhar,
F.X. de Novais, dão ao Futuro um caráter de viabilidade e
duração (ASSIS, 2008, v.4, p. 190).

A partir de 15 de setembro do mesmo ano, Machado tornou-se cronista da


revista. Ao que parece, essa redução expressiva em relação à política deve-se sobretudo

109 Apesar da série não ter, como já dissemos, uma periodicidade muito rigorosa, desde o seu início até o
final de janeiro a crônica falhou mais longamente apenas duas vezes: entre 10 e 21 de novembro e
entre 14 e 26 de janeiro, tornando-se, a partir dessa data, extremamente irregular. Assim, se o cronista
tivesse enfrentado realmente a censura política às suas opiniões, ela poderia ter começado já em
janeiro de 1862, mas não há elementos bastantes para afirmá-lo. De concreto, sabemos que a crônica
desde então se foi espaçando, voltou aos ataques veementes ao governo por ocasião da inauguração da
estátua equestre de Pedro I e reapareceu, curta, em 5 de maio de 1862, anunciando que voltava para
ficar, mas desaparecendo então para sempre. Nesse seu último texto, Machado anunciava que a
política continuaria sendo a "parte principal" da crônica, "atenta à gravidade da situação das questões
a ventilar". Se fora realmente punido com a suspensão, é estranho que nosso cronista continuasse a
falar sobre política, em um texto em que sua "pena afiada" voltaria mais cortante do que nunca,
praticamente pedindo a queda do ministério Caxias. (GRANJA & CANO, 2008, p. 19)
188

ao fato de ser uma revista literária. Conforme a definição feita por Novais citado por
Massa, esta era a finalidade da publicação:

Ao público brasileiro e português.


Estabelecer um campo comum em que livremente, sem
preocupações mesquinhas de opinião ou nacionalidade, viessem
discursar os escritores de ambas as nações, levar a estes o
conhecimento mútuo do movimento literário de cada uma e dar
impulso, com o exemplo recíproco, ao progresso literário de
países tão férteis em imaginações ricas e pensadores elevados.
(Futuro, n.1, 15.9.1862) (Massa, 2009, p. 302).

Embora O Futuro fosse uma revista literária, o cronista inicia essas crônicas
tratando do encerramento da Assembleia Legislativa. Sem tomar a mesma postura
agressiva identificada nas crônicas anteriores, não deixa porém de tecer comentários
críticos ao Parlamento:

E havendo dito estas coisas à minha pena, tinha eu acabado de


preparar o papel, e eis que ela começou, entre os meus já
desacostumados e emperrados dedos, a mencionar que no dia 4
deste mês se efetuou o encerramento da assembleia legislativa,
cerimônia sobre a qual nada há que dizer, porque foi conforme
os estilos que por sua natureza nada oferecem de notável.
Os membros do parlamento foram procurar no remanso da paz o
repouso das lutas da tribuna e dos trabalhos com que auxiliaram
a administração na sessão finda. Entre os serviços prestados este
ano pela representação nacional, convém não esquecer o de
haver habilitado o governo a fazer o serviço financeiro de 63 a
64 por meio de um orçamento definido e discutido. (ASSIS,
2008, v. 4, p. 75)

É no seu retorno ao Diário do Rio de Janeiro, a partir de junho de 1864,


compondo as crônicas nomeadas Ao Acaso, que a política torna-se objeto de novo
tratamento - bem mais frequente do que nas crônicas de O Futuro, mas de modo
qualitativamente diferente em relação às crônicas Comentários da Semana110. Como
afirma o cronista na primeira crônica dessas séries do dia 5 de junho de 1864, ele apenas
tratará com o leitor da política amena, conceito que define e exemplifica:

110 Jean-Michel Massa relata que no intervalo entre as crônicas Comentários da Semana e Ao Acaso,
durante dois anos, Machado continuou a trabalhar no Diário do Rio de Janeiro, mas de maneira
anônima, assinando apenas cinco textos de comentários literários e artísticos, pois era do que ganhava
desse jornal que o escritor mantinha seu sustento (MASSA, 2009, p. 380)
189

Vinha aqui muito a pêlo fazer uma divagação política a respeito


dos ministérios que fazem programa, mesmo quando não tem
nenhum, e dos programas que ainda estão à espera de
ministérios. Mas eu não quero de modo algum tornar demasiado
séria a fisionomia destes escritos. Só farei exceção para os
assuntos de política amena.
O que é política amena? Tenho exatamente na lista dos
acontecimentos da semana um fato de política amena: é o
discurso do sr. barão de são Lourenço, na primeira discussão do
voto de graças.
S. ex. ocupou a tribuna durante duas horas quase, e produziu no
auditório a mais franca hilaridade.
Eu mesmo, agora que já passaram alguns dias, não posso
lembrar-me daquele discurso sem sentir um sorriso entreabrir-
me os lábios.
Explicarei a causa do meu sorriso.
O discurso do sr. barão tende a ser engraçado. O ilustre senador
entendeu que devia oferecer à corporação de que faz parte um
hors d'oeuvre oratório e nessa disposição subiu à tribuna. Ah!
Declarou-se ressuscitado político e comparou-se a um ganso do
capitólio, a um guarda noturno, a uma sentinela, a um mugido, e
a outras coisas mais que não vem a pêlo enumerar.
Em alguns pontos s. ex. fez política tétrica: eu só quero ocupar-
me com um dos pontos de política amena.
Uma das gracinhas do ilustre senador foi dizer mal dos poetas
como homens públicos.
Para s. ex. um soneto é um pecado que priva o autor da mínima
atenção dos homens sérios.
Parece que a lei justa e verdadeira seria aquela que, parodiando
a lei espartana, mandasse ditar fora do seio comum, o infeliz que
nascesse com a deformidade poética.
Longe disso, o ilustre senador vê que a qualidade de poeta é uma
recomendação nos tempos de hoje, e deplorou esse fato, ora em
frase indignada, ora em frase picaresca.
S. ex. declara que não vê letra redonda há muitos anos; devo
crer que nesse tempo esqueceu o que porventura tivesse lido
anteriormente. (ASSIS, 2008, v. 4, p. 118)

O comentário feito ao discurso do Senador Barão de São Lourenço - título


nobiliárquico do baiano Francisco Martins, membro do Partido Conservador - evidencia
uma nova abordagem nesse retorno de Machado de Assis ao tema da política. Sua
crítica continua com o mesmo tom enérgico e radical - vê-se no trecho citado que, antes
mesmo de criticar o senador, ele critica o ministério liberal de Zacarias Góes de
Vasconcelos -, porém, não se trata mais de tomar posição diante de um tema e
estabelecer a polêmica aberta, conforme vimos em seus primeiros textos em prosa; a
partir dessas crônicas, o cronista define como política amena a sátira luciânica, a qual
190

consiste em abordar o tema, acentuando seu absurdo e expondo-o ao ridículo. Em outras


palavras, a política torna-se alvo da técnica que marca a escrita machadiana: a sátira da
menipeia.
Em crônica de 1º de setembro de 1878 da série Notas Semanais, o cronista
noticia a proposta da Câmara Municipal feita no dia anterior de nomear uma comissão
para examinar os atos em que aquela Câmara vinha deixando de cumprir suas
atribuições e indicar medidas que pudessem restabelecer a ordem das coisas. Na
eminência de manifestar sua opinião sobre o assunto, ele a interrompe e dialoga com o
leitor:

A proposta foi aprovada; e, posto me pareça que o seu resultado


não pode corresponder ao pensamento que a formulou, acho que
tanto a Câmara, como o eminente cidadão, procederam com
intenção reta e animados de sentimentos liberais.
Não me obriguem os leitores a pôr os colarinhos do estilo grave,
dizendo os graves motivos do meu parecer. Entende-se que
daquelas colunas para baixo só podemos curar de minúcias, e
este caso municipal é dos de máxima ponderação. Verdade é
que, assim como a vida é entremeada de reflexões e pilhérias,
também o folhetim pode, uma vez ou outra, sacudir a sua tosse
parlamentar e deitar ao mundo uma ou duas observações de
calibre sessenta. Vá que seja: imitemos a vida, por dois minutos.
(p. 235)

Essa negação de tratar a política como assunto grave evidencia a novidade nesse
retorno aos temas ligados à política nacional. Agora só lhe interessa tratar de minúcias.
Novamente reafirma seu interesse em tratar da política pelos bastidores, isto é, daquilo
que lhe seja baixo, absurdo e, portanto, risível. Ao continuar, nessa mesma crônica, esse
mesmo assunto, interrompe novamente para afirmar que o assunto é grave e que
portanto, tratá-lo na crônica seria algo ilícito e inadequado para o gênero:

É o que acontece com o poder municipal; esvaiu-se-lhe a vida,


não por ato de um poder cioso, mas por força de uma lei
inelutável, em virtude da qual a vida é frouxa, mórbida ou
intensa, segundo as condições do organismo e o meio em que
ele se desenvolve. É o que acontece com o direito de voto; a
reforma que reduzir a eleição a um grau será um melhoramento
no processo e por isso desejável; mas dará todas as vantagens
políticas e morais que dela esperamos? Há uma série de fatores,
que a lei não substitui, e esses são o estado mental da nação, os
seus costumes, a sua infância constitucional...
191

Lá me ia eu resvalando neste declive das ponderações graves,


que só a espaços, e ao de leve, podem ser lícitas à mais
desambiciosa das crônicas deste mundo. Encerremos o período,
leitor; e passemos a assunto menos crespo, um assunto de
comestíveis. (p. 236)

Nas crônicas Ao Acaso, das duzentas e sessenta e cinco notícias que


identificamos, quarenta e uma fazem referência à política nacional - o equivalente a
15% do total de notícias - mantendo agora o tom de sarcasmo como podemos ver na
crônica de 12 de junho de 1864, que relata alguns trechos das falas dos senadores:

Agora passo a mostrar quanto custa a fama de bom humor e


jovialidade.
Expressões ouvidas no parlamento esta semana:
Um Representante da Nação: — Não aceito as proposições
que vão de encontro às minhas opiniões...do momento!
(Risadas).
Outro Representante: — Confesso que se o governo me
demitisse, fazia bem. Eu sou, realmente, um mau funcionário; se
não fora o chefe do estado-maior tudo iria por água abaixo!
(Hilaridade).
O mesmo Representante: — Seja franco o nobre ministro;
deite uma taboinha para cá e verá como eu passo para lá!
(Hilaridade).
Há outras expressões, do mesmo jaez, de que me não
recordo agora.
O efeito é certo; rompe a hilaridade; adquire-se a fama de
jovial e bom humor; mas avalie-se o custo desta fama...
Tenho outra expressão parlamentar desta semana. É de um
novo La-Pallisse:
Um Representante (tom de lente ou diretor de faculdade)
— Não, não há dúvida: a destruição é a antítese da conservação!

Un quart d'heure avant sa mort


Il était encore en vie.

N. B. Rogo aos representantes, a quem tenho colhido estes


pedacinhos de ouro, hajam de não suprimi-los na publicação dos
discursos. Já não se trata de ir à posteridade — de casaca ou de
jaqueta; — trata-se de irem nus. (p. 123)

Ou na crônica de 14 de agosto de 1864, tratando da relatoria do Ministro das


Relações Exteriores do Brasil, Marquês de Abrantes, feita ao Senado. O cronista se
centra no modo como em um aparte, o ministro responde ao senador Visconde de
Jequitinhonha:
192

As palavras a que me refiro foram ditas em aparte ao Sr.


Visconde de Jequitinhonha. Aqui vai o pedacinho do discurso
para melhor ser apreciado o aparte do ilustre marquês.
Diz o Sr. visconde de Jequitinhonha:
“Ora, alguém já viu, segundo a aritmética “moderna” ou antiga
que 69:555$939 com 14:020$672 somasse 101:668$526?
(hilaridade). Estou que todos somarão 83:576$611; e então o
deficit que S. Excia., o nobre provedor, achou na casa dos
expostos de 20:061$607 fica reduzido a 1:969$492. O saldo que
ficou do ano anterior, diz o relatório, é de 7:200$, deduzindo-se
estes 7:200$ dos 20:061 $407, fica um deficit, diz ainda o
relatório, de 12:000$, quando aliás, digo eu, deve existir em vez
de deficit, um saldo de 5:230$508!!!
Ora, estes enganos crassíssimos que aparecem no relatório, pelo
que diz respeito à casa dos expostos, não me dão direito a
desconfiar que as contas do hospital geral não sejam exatas?
Eu espero, Sr. presidente, que o nobre provedor explicará isto
...”
O Sr. Marquês de Abrantes: — “Não caio nessa”.
Confesso que ao ler este aparte do Sr. Marquês de Abrantes
caiu-me a alma aos pés, não só pela vergonha que ele me
causou, como pelas considerações que do fato se podem deduzir.
Em que tempo estamos? Que país é este? Pois um funcionário
público, elevado às primeiras posições, — não para satisfação da
vaidade, mas para servir ao país — responde daquele modo a
uma intimação tão grave?
Não é lisonjeiro o estado da nação ante a qual se pronunciam
tais palavras com a frescura que elas respiram, e que o ilustre
marquês sabe empregar. Com exemplos desta ordem, só
conseguireis ter uma mocidade sem fé, sem decoro, sem ilusões;
nada alcançareis que seja durável, digno, elevado. (pp. 160-161)

Ou ainda, nessa mesma crônica, faz uma lista de comentários engraçados da fala
do senador Jobim:

Sem sair do senado, e apenas volvendo os olhos para os bancos


opostos, encontraremos o Sr. Jobim, autor de alguns discursos
sempre lidos com interesse.
Está hoje provado que os discursos do Sr. Senador Jobim são o
melhor remédio contra o aborrecimento crônico ou agudo, não
porque S. Excia. seja dotado de graça, mas por serem os
discursos mais desenxabidos, mais incongruentes, mais
extravagantes que inda se ouviu.
Tive a pachorra de ler o último discurso e S. Excia., de fio a
pavio. S. Excia. tratou de várias questões, insistiu em algumas,
embrulhou quase todas. Para que os leitores façam ideia do
discurso aí dou o índice dos pontos de que ele trata:
193

Carnes verdes;
Matadouro;
Cemitério humano e cemitério de animais;
Falsas aparências do gado vaccum;
Águas potáveis;
Necessidade de espalhar o gênero humano;
A mudança da cidade;
Irmãs de caridade;
Instrução superior;
Criação de universidade;
O Contrato Social;
Quadro lúgubre dos costumes acadêmicos de S. Paulo;
Um axioma de Platão;
Elegia sobre a sorte dos calouros;
Hymno em ação de graças por ter-se abolido o entrudo, e
algumas palavras sentidas sobre as calças brancas dos homens
sérios;
Uma anedota da escola de medicina da Corte, apimentada
com algumas reticências;
Indignação por uma comédia em que um magistrado nosso
zomba da medicina legal;
Relaxação dos costumes da população de S. Paulo.
Etc., etc., etc. (p. 161-162)

Esses trechos exemplificam a escolha de abordagem que o cronista passa a fazer


sobre política nacional. Seu método, diferente do utilizado em Comentários da Semana,
propõe-se a evidenciar o que há de ridículo na política e rir com o leitor às custas dos
parlamentares e ministros.
Essa metodologia de tratamento das notícias parece ter efeito na seleção das
matérias a serem noticiadas nas crônicas. Conforme podemos verificar no quadro
apresentado anteriormente, aos poucos, o cronista passa a priorizar os assuntos
cotidianos, aumentando gradativamente sua abordagem nas crônicas seguintes. Nas
crônicas História de Quinze Dias e História de Trinta Dias, ambas assinadas com o
pseudônimo Manassés, o cronista dedica um terço das crônicas aos assuntos cotidianos.
Definimos como assuntos cotidianos notícias recolhidas dos jornais que tratam de
acontecimentos eventuais envolvendo cidadãos anônimos como o caso de um sujeito no
Ceará que, supondo estar morto, despertou antes que fechassem a cova relatado na
crônica de 1º de julho de 1876:

Ao menos, Abdul, se foi enterrado, foi morto e bem morto. Não


aconteceu o mesmo àquele sujeito do Ceará, a quem quiseram
dar a última casa, estando ele vivo, e mais que vivo.
194

Um minuto mais, tinha ele cinco palmos de terra sobre o ventre,


por outras palavras um suplício maior que o de todos os que
inventou Dante. Acordou a tempo, com mágoa talvez de um ou
mais oradores que levavam redigidas e lacrimejadas as virtudes
do defunto, e acharam naturalmente pouca cortesia da parte do
ressuscitado.
Mas aqui vai o melhor.
Dizem os jornais que o serviço foi preparado às pressas; que o
escrivão do registro teve de interromper o alistamento dos
votantes para ir registrar o óbito de Manuel da Gata.
Ressuscitado este, desfez o enterro, mas não se desfez a nota do
cemitério. Manuel da Gata pode viver cem anos mais;
civilmente está, não só morto, mas até sepultado no cemitério,
cova número tantos. (ASSIS, 2009a, p. 61)

Ou quando o cronista comenta na crônica de 15 de julho de 1876 dois casos: a


infestação de ratos em Canguçu e a crise de ciúme que um homem de 113 anos passou a
ter de sua mulher de 104:

Exigiria monumento se achasse o segredo de matar os ratos de


Canguçu. Nunca vi tanto rato como nas correspondências
daquela vila! Aquilo e o casal do Ceará cujo marido, com 113
anos de idade tem ciúmes da mulher, que já orça pelos 104, é
tudo que tenho visto de mais espantoso no mundo.
Que um homem de 113 anos tenha ciúmes, concebe-se; não é
vulgar, mas pode-se admitir. Agora, que uma mulher de 104 os
inspire, esse é, na verdade, um dos prodígios do século e do
país.
Os cônjuges de que se trata estão unidos há 80 anos. Leiam bem;
há 80 anos. Durante esse tempo podiam, ver morrer cinco ou
seis constituições e cair noventa e sete governos no Estado
Oriental. Podiam ter casado no tempo do Diretório e ir hoje
cumprimentar o marechal Mac-Mahon, que o substitui. Ora, não
é depois de tanto tempo que um homem respeitável se lembra de
zelar a mulher. Homem de Deus! mas não és tu que a zelas, é
um século! (p. 72)

Outro exemplo de assuntos cotidianos é a vinda do enviado do Papa ao Rio de


Janeiro anunciada no dia 1º de setembro de 1876:

Tivemos também esta quinzena o enviado de Sua Santidade.


Antes de chegar digno monsenhor, toda a gente imaginava
alguma cousa semelhante a um urso, um tigre pelo menos,
sedento de nosso sangue. Sai-nos um homem polido, belo,
amável; um homem com quem se pode tratar.
Dizem que teve recepção fria; teve-a como haviam de ter
195

Palmerston ou o conde de Cavour. Talvez que dos homens de


hoje só Bismarck conseguiria reunir no arsenal da marinha
umas trinta e cinco pessoas; e pela simples razão de que ele
exprime a força e o sucesso. No mais, há pouca curiosidade
nesta cidade; ninguém deixa de vender uma ação do Banco
Industrial para ir ver um homem encarregado de missão
importante. Não há recepções frias nem quentes; há a dita
curiosidade, mas curiosidade preguiçosa, gasta, sonolenta. (p.
94)

Conforme o quadro, nas crônicas Comentários da Semana, os assuntos


cotidianos ocupam seis por cento das notícias; nas crônicas da revista O Futuro, das
sessenta e cinco notícias identificadas, cinco tratam de assuntos cotidianos (8%); em Ao
Acaso, das duzentas e sessenta e cinco notícias, quarenta e seis são de assuntos
cotidianos (17%). Com isso, vemos que a mudança da abordagem do tema da política
acaba tendo efeito no modo de tratar os assuntos cotidianos. Nas crônicas História de
Quinze Dias e Trinta Dias, este aumento corresponde a vinte e oito por cento, sendo,
portanto, entre os sete temas, o mais frequente e, nas crônicas Notas Semanais passa a
representar quarenta e um por cento contra vinte e cinco por cento do tema da política e
doze por cento do tema sobre eventos.
Aos poucos, o cronista passa a ter um maior distanciamento do tema da política.
Se nas primeiras crônicas em Comentários da Semana, a postura do cronista era debater
posicionamentos políticos-ideológicos, em Notas Semanais, o cronista trata a política
ocupando um lugar de observador dos acontecimentos políticos. Na crônica de 25 de
agosto de 1878, trata do conflito entre o Supremo Tribunal de Justiça e o Ministro da
Fazenda quanto ao caso do ex-tesoureiro das loterias, preso administrativamente havia
mais de um mês. O acusado requereu habeas corpus, negado pelo Supremo Tribunal da
Justiça a despeito do apoio ao pedido feito pelo Ministro da Fazenda de que, caso o
acusado tentasse novamente essa liberdade provisória, fosse considerado em seu caso o
conflito de jurisdição111. O cronista, ao noticiar o caso, reafirma ser assunto que não lhe
cabe por não ter nenhum lado recreativo por onde lhe pegue, ao dizer isso, afirma que
seu papel é o de mero espectador:

Esta foi a semana militante; outra será a triunfante; e essas duas


fases da Igreja ficam assim reproduzidas na vida civil.
Já o domingo último amanheceu nebuloso com a notícia do

111 Esta informação foi tirada da nota de rodapé feita John Gledson e Lúcia Granja na edição de Notas
Semanais publicado pela Editora da UNICAMP nota 1, p. 231.
196

conflito entre dois poderes constitucionais, assunto que me


escapa, por não ter nenhum lado recreativo por onde lhe pegue.
É dos que ficam muito acima do alcance da nossa mão. Nisto se
parece a crônica com a Turquia de hoje: tem limites apertados.
Há outro ponto em que o cronista se parece com os turcos: é em
fumar quietamente o cachimbo do seu fatalismo. O cronista não
tem cargo d'almas, não evangeliza, não adverte, não endireita os
tortos do mundo; é um mero espectador, as mais das vezes
pacato, cuja bonomia tem o passo tardo dos senhores do harém.
Debruça-se, cada domingo, à janela deste palacete, e contempla
as águas do Bósforo, a ver os caíques que se cruzam, a
acompanhar de longe a labutação dos outros.
Isto quer dizer, em bom português, que o cronista não pleiteou
candidatura, não se mediu com o Battaglia, nem pretende figurar
na regata de Botafogo; fica alheio a todas as lutas, ou sejam de
força, ou de destreza, ou de ambas as coisas juntas. Simples e
honesto mironi. A semana foi militante; mas o cronista foi
expectante; seja dito por amor da rima. Claro é que não lutou
nem luta na questão dos chalés da Praça do Mercado, essa fênix
renascida de um incêndio, mandado talvez pela Providência para
exterminá-la de todo; o que não conseguiu; não restando agora
mais do que a esperança de um terremoto. (ASSIS, 2008e, p.
223)

Em crônica de 30 de junho de 1878, trata do retorno da Câmara Municipal. O


autor intercala a renovação dos seus membros e a reforma de seus móveis, aconselhando
que esses tomem um xarope propagandeado pela impressa carioca e satirizada pelo
cronista:

Não tarda, pois, que as ilustríssimas cadeiras, assim repintadas,


recebam galantemente os novos vereadores; e eu seria o último
dos cidadãos e o menos zeloso dos munícipes, se lhes não
lembrasse dois fatos capitais: primo, que o erário municipal se
acha necessitado de um forte peitoral de cereja; secundo, que de
nenhum modo convém dar-lhe o peitoral de Ayer, bebida infecta
e pobre de substâncias restauradoras e confortivas, mas só e
somente o xarope Alvear, o mais enérgico e substancial de todos
os que conhece a farmácia moderna. (p. 132)

Em crônica 14 de julho de 1878, aproveitando as discussões sobre uma possível


reforma judiciária debatida na Câmara e no Senado, o cronista a aborda a partir da
narrativa que alegoriza a discussão, marcando a rua como o lugar no qual trata do
assunto:
197

O que é a reforma judiciária? Um escritor de Porto Novo do


Cunha, em artigo publicado esta semana, diz que é a - "Popéia
incasta que oscula o sicário e o estimula ao delito".
Há já alguns meses que eu suspeitava isto mesmo. Vindo uma
noite do teatro, descobri junto às grades do Largo de S.
Francisco, um vulto feminino trajado à romana, osculando um
gatuno e dando-lhe uma chave falsa. Não pude distinguir as
feições; vejo agora que era a reforma judiciária, a quem daqui
aconselho que se não entregue a tão deploráveis exercícios. (p.
158)

Em crônica de 9 de junho de 1878, ao tratar do projeto de Código Civil a ser


revisado pelo Ministério da Justiça, o cronista ironiza as manifestações interesseiras,
mascaradas por indicações de terceiros, ao se auto indicar para fazer parte da comissão.
Seu argumento irônico de que se considera apto a exercer tal função deve-se ao
procedimento de rebaixamento à medida que afirma bastar um pedaço de pano da toga
de José Thomaz Nabuco de Araújo, o qual como senador já vinha elaborando esse
projeto. A ironia está no fato de fazer referência não ao trabalho do senador, mas à sua
toga, estabelecendo uma relação indireta com um dos milagres de Jesus, registrado no
Livro de Marcos, quando uma mulher que sofria de uma hemorragia tocou em sua veste
e foi curada112:

Mal se falou numa comissão para rever o projeto de código


civil, começaram a afluir de todas as partes indicações e
designações ao Sr. ministro da justiça.
Cada manhã traz nas asas úmidas um jurista apropriado ao
mister. Prenez mon ours, é o dito invariável dos recadinhos que
S. Excia. recebe antes do almoço; e não escritos por mão dos
próprios senão de outros, porque há sempre amigos anônimos,
dedicações obscuras, corações serviçais.
Pela minha parte, dispenso a intervenção de ninguém; apresento-
me eu próprio, disposto a cortar na ampla toga de Nabuco um
colete para uso da minha glória pública e doméstica. Coletes de
fazenda vulgar, qualquer os pode ter, à sua custa; mas um bom

112 Aconteceu que certa mulher que, havia doze anos, vinha sofrendo de uma hemorragia e muito
padecera à mão de vários médicos, tendo despendido tudo quanto possuía, sem, contudo, nada
aproveitar, antes, pelo contrário, indo a pior, tendo ouvido a fama de Jesus, vindo por trás dele, por
entre a multidão, tocou-lhe a veste. Porque dizia: Se eu apenas lhe tocar as vestes, ficarei curada. E
logo se lhe estancou a hemorragia, e sentiu no corpo estar curada do seu flagelo. Jesus, reconhecendo
imediatamente que dele saíra poder, virando-se no meio da multidão, perguntou: Quem me tocou nas
vestes? Responderam-lhe seus discípulos: Vês que a multidão te aperta e dizer: Quem me tocou? Ele,
porém, olhava ao redor para ver quem fizera isto. Então, a mulher, atemorizada e tremendo, cônscia
do que nela se operara, veio, prostrou-se diante dele e declarou-lhe toda a verdade. E ele lhe disse:
Filha, a tua fé te salvou; vai-te em paz e fica livre do teu mal. (MARCOS, capítulo 5, versículos 25-34
- Bíblia de Estudos de Genebra).
198

colete de seda, é privilégio dos talentos másculos. Prenez mon


ours. (p. 100)

A referência intertextual ao milagre de Jesus narrado no livro de Marcos


estabelece a discrepância entre o efeito do milagre e a constituição do cronista como
especialista para participar da comissão a rever o novo projeto do Código Civil.
Curiosamente, a relação intertextual entre os dois acontecimentos não se opera por um
rebaixamento direto, pois, ao propor o mesmo método utilizado pela mulher com
hemorragia, o cronista rebaixa o segundo por meio do deslocamento.
Esses exemplos mostram o modo como o cronista passa a tratar a política,
afirmando ser um mero espectador ou tratando do tema a partir do lugar de fora, seja a
rua quando se refere à reforma judiciária ou como quem observa a renovação da Câmara
Municipal não pelos novos vereadores, mas pela pintura na sala de reuniões e pelas
mobílias que foram renovadas para recebê-los. Postura completamente distinta das
crônicas anteriores, o cronista reafirma seu interesse pela política amena e por aquilo
que possa ser mais recreativo tanto a ele como produtor dos textos quanto ao seu leitor.
Tal mudança perceptível tanto no modo de tratar a política nacional, quanto no aumento
expressivo dos assuntos cotidianos determina inequivocamente os procedimentos
estéticos de sua escrita como observaremos mais à frente.
Antes, cabe observar duas outras mudanças: a primeira refere-se à mudança
formal das crônicas a partir de História de Quinze Dias: já não as compõem mais como
um texto corrido, mas passa a dividi-las por capítulos curtos, procedimento semelhante
que será empregado nos romances Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba
e Dom Casmurro conforme observamos no capítulo anterior; a segunda mudança refere-
se à disposição dos temas noticiados. Para melhor percebermos essa mudança na
disposição dos temas, apresentamos o quadro abaixo com as cinco primeiras crônicas de
cada série apenas como amostragem da disposição das notícias em cada uma delas. Para
facilitar a visualização da tabela identificamos como crônica 1, 2 3, 4 e 5, as primeiras
crônicas de cada série que são as seguintes: Comentário da Semana - crônica 1: 12 de
outubro de 1861; crônica 2: 18 de outubro de 1861; crônica 3: 26 de outubro de 1861;
crônica 4: 1 de novembro de 1861; crônica 5: 10 de novembro de 1861; O Futuro -
crônica 1: 15 de setembro de 1862; crônica 2: 30 de novembro de 1862; crônica 3: 15 de
dezembro de 1862; crônica 4: 1º de janeiro de 1863; crônica 5: 15 de janeiro de 1863;
Ao Acaso - crônica 1: 05 de junho de 1864; crônica 2: 12 de junho de 1864; crônica 3:
199

20 de junho de 1864; crônica 4: 26 de junho de 1864; crônica 5: 3 de julho de 1864;


História de Quinze Dias - crônica 1: 1º de julho de 1876; crônica 2: 15 de julho de 1876;
crônica 3: 1º de agosto de 1876; crônica 4: 15 de agosto de 1876; crônica 5: 1º de
setembro de 1876; Notas Semanais - crônica 1: 2 de junho de 1878; crônica 2: 9 de
junho de 1878; crônica 3: 16 de junho de 1878; crônica 4: 23 de junho de 1878; crônica
5: 30 de junho de 1878. Os números correspondem a ordem das notícias que aparecem
nas respectivas crônicas113.

113 Cabe observar que os títulos das crônicas nas edições em livros são os dias do mês em que foram
publicadas.
200

Comentários Política Assuntos Internacionais Assuntos Cotidianos Referência ao Jornal Arte Evento Obituário
da Semana
Crônica 1 4 1 2/3/6/7
Crônica 2 4 5 1 2/3
Crônica 3 1 2 3
Crônica 4 1 3/4/5 2/6
Crônica 5 1/2/3/ 13 4/5/6/7/8/9/10/13 11

O Futuro Política Assuntos Internacionais Assuntos Cotidianos Referência ao Jornal Arte Evento Obituário
Crônica 1 1 2/3/4/5/6/
Crônica 2 3 1 4/5/6/7 2
Crônica 3 1/2/3/4/5/
Crônica 4 1 8 2/3/4/5/6/7
Crônica 5 1 2/3
Ao Acaso Política Assuntos Internacionais Assuntos Cotidianos Referência ao Jornal Arte Evento Obituário
Crônica 1 1/2 3 4/5/6
Crônica 2 1/2 4/5 3
Crônica 3 1 2 3/4/5
Crônica 4 2 3 1
Crônica 5 2/3 1 5/7/8 4/6
201

História de Política Assuntos Internacionais Assuntos Cotidianos Referência ao Jornal Arte Evento Obituário
Quinze Dias
Crônica 1 1 2/6 4/5 3
Crônica 2 5 4 1/3/6
Crônica 3 4 3 1/2 6
Crônica 4 2 1 3
Crônica 5 1 3/5 2/4/6
Notas Semanais Política Assuntos Internacionais Assuntos Cotidianos Referência ao Jornal Arte Evento Obituário
Crônica 1 4 5 2/3 1
Crônica 2 2/3 4/5/7 6 1
Crônica 3 3/4 1/2/5
Crônica 4 1/3/4 2
Crônica 5

Tabela 7 - Comparação das ocorrências dos procedimentos em números absolutos nas cinco séries de crônicas.
202

Conforme podemos verificar na tabela, as três primeiras série de crônicas tem


um modelo padrão de apresentar as notícias de jornais: geralmente, o cronista inicia
pelo tema da política, faz alguma referência a outro jornal e depois intercala entre temas
ligados à arte, assuntos internacionais, eventos e óbitos. A partir da série História de
Quinze Dias não se mantém qualquer padrão: como se pode ver, ele tratar dos assuntos
ao sabor do momento, mudando o assunto, para retomá-lo logo a frente conforme o
correr da pena. Nessas duas últimas séries, o papel de colibri será mais utilizado à
medida que pula de um assunto a outro completamente diferente para retomá-lo mais à
frente. Tal disposição da notícia faz com que a crônica se torne mais leve e permita que
o cronista se utilize de procedimentos mais variados nessas últimas do que nas
anteriores. Analisando a frequência dos temas nas cento e trinta e três crônicas, temos o
seguinte panorama em gráfico:
203

GRÁFICO 2: TEMAS TRATADOS NAS CINCO PRIMEIRAS CRÔNICAS DE CADA SÉRIE

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


204

Conforme já observamos, à medida que se dá a mudança tanto na qualidade


quanto na quantidade e na disposição dos diferentes temas noticiados, há também uma
variação no uso dos procedimentos composicionais das crônicas. Com base nos
conceitos tratados por Gerard Genette, Yves Reuter, Dominique Maingueneau, Patrick
Charaudeau entre outros, os quais tratamos no capítulo anterior, bem como na crítica
machadiana, sobretudo os teóricos que trataram das crônicas como Marlise Meyer,
Lúcia Granja, Dilson Ferreira da Cruz, Dirce Cortes Riedel, Marília Rothier Cardoso,
Gabriela Kvacek Betella, Ana Luiza Andrade, John Gledson, Jefferson Cano, Leonardo
Affonso de Miranda Pereira, entre outros, utilizamos os seguintes procedimentos:

Função Testemunhal: discurso no qual o cronista orienta o ponto de vista a si


mesmo, evidenciando seus limites, proximidades e distanciamentos dos assuntos
tratados, bem como a enunciação dos afetos produzidos no cronista por determinados
assuntos. Também refere-se às fontes de onde cita uma determinada informação,
sobretudo, a intertextualidade.
Função Narrativa: quanto o assunto tratado é feito por meio da diégese ou da
mimese. Recorrentemente, para tratar de determinada notícia, o cronista faz uso de
anedotas, bem como mimetiza a voz do leitor ou do interlocutor e também constrói
diálogos entre as personagens.
Função de Regência: procedimento comum nas crônicas, refere ao
metadiscurso e a metalinguagem. Desde suas primeiras crônicas, Machado de Assis
costuma por meio de seus enunciadores definir tanto a função da crônica como a função
do cronista.
Função de Comunicação: outro procedimento comum nas crônicas, refere à
orientação do cronista ao leitor ou a algum interlocutor. Faz parte também dessa função
o discurso polêmico e o dialogismo.

Essas funções, como já vimos no capítulo anterior, foram emprestadas da teoria


de narratologia desenvolvida sobretudo por Gerard Genette. Diferentemente das
metalepses que tratamos no capítulo sobre os romances, aqui são funções no sentido em
que trata Genette, visto que a metalepse se define pela mudança de nível do discurso.
Quando essas funções são utilizadas na narrativa, conforme vimos, necessariamente dá-
se esta mudança de nível. Nas crônicas, diferentemente dos romances, essas funções
compõem o seu corpo textual e, desse modo, não há quebra nem mudança de nível
205

discursivo. A função de comentário não foi utilizada na análise visto que todos esses
procedimentos são formas distintas dos comentários desenvolvidos pelo cronista de
forma que o comentário e a notícia são a base da crônica nas quais os outros
procedimentos operam-se. Outra observação importante é o modo como dá-se esses
procedimentos nas crônicas. Diferentemente dos romances, nelas, esses procedimentos
dão-se de forma truncada não possibilitando a contagem em palavras de suas
ocorrências. Para quantificá-los, consideramos o números de vezes em que acontecem.
Além desses procedimentos, identificamos também o que Maingueneau define
como corporalidade, isto é, as ideias enunciadas a partir de um ethos determinam um
tom que necessariamente implica certa determinação de seu próprio corpo de modo que
o enunciado não é apenas uma articulação de proposições, mas também a evidência de
uma corporalidade dada no movimento da leitura e, portanto, associada a representações
e normas de disciplina do corpo114. Outro procedimento recorrente sobretudo em Notas
Semanais é o rebaixamento, como espécie de sátira que, a partir da referência semiótica
entre o alto/razão/espiritualidade/masculino como positivo e o baixo/sentimento/
corporeidade/feminino como negativo, desloca os elementos comuns de um campo ao
outro para acentuar a sua contradição e evidenciar seu absurdo. Por fim, constituem-se
também como procedimentos as figuras de linguagem, entre elas a metáfora, a alegoria,
a ironia, a personificação, a antanáclase, a paródia, o oxímoro.
É comum em um mesmo período termos mais de dois procedimentos
determinando o enunciado como por exemplo no seguinte trecho da crônica de 15 de
maio de 1877 da série História de Quinze Dias Semanais vemos três diferentes
procedimentos em uma única frase: "Furtado Coelho, à hora em que escrevo, está a
chegar; talvez haja chegado à hora em que o leitor verá estas linhas" (p. 197). Temos,
portanto, a função de regência (à hora em que escrevo), a função de comunicação (à
hora em que o leitor verá estas linhas) e o jogo com a temporalidade.

114 Um posicionamento não implica apenas a definição de uma situação de enunciação e certa
relação com a linguagem: devemos igualmente levar em conta o investimento imaginário do
corpo, a adesão "física" a certo universo de sentido. As "ideias" são apresentadas através de uma
maneira de dizer que é também uma maneira de ser, associada a representações e normas de
disciplina do corpo. Discursos de atribuição de referenciais últimos, construção de um lugar
enunciativo que dá sentido às práticas humanas, os discursos constituintes são portadores de uma
esquematização do corpo, mesmo se eles negam essa dimensão. Retomamos aqui a problemática
retórica do ethos. Concebendo-o dentro de uma perspectiva pragmática, esse ethos emana do
"mostrado": o enunciado r é percebido através de um "tom" que implica certa determinação de
seu próprio corpo, à medida do mundo que ele instaura em seu discurso. A legitimação do
enunciado não passa somente pela articulação de proposições, ela é habitada pela evidência de
uma corporalidade que se dá no próprio movimento da leitura. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 53)
206

A partir da identificação das ocorrências desses procedimentos nessas cento e


trinta e três crônicas, pudemos quantificá-las para estabelecer o modo de construção
textual operado pelo cronista à medida que altera significativamente o modo de
tratamento dos temas abordados, conforme vimos anteriormente. Com isso, montamos a
seguinte tabela e gráfico:

TABELA 8 - Percentual comparativo dos procedimentos nas cinco séries de crônicas.


C. S. O FUTURO AO ACASO H. Q. T. D. N. S.
FUNÇÃO TESTEMUNHAL 22% 20% 11% 14% 30%
FUNÇÃO DE REGÊNCIA 15% 21% 31% 13% 11%
FUNÇÃO DE 48% 48% 47% 26% 19%
COMUNICAÇÃO
FUNÇÃO NARRATIVA 2% 2% 3% 9% 4%
FIGURAS DE LINGUAGEM 4% 4% 7% 18% 19%
REBAIXAMENTO 7% 0% 1% 4% 12%
CORPORALIDADE 2% 3% 1% 4% 8%
207

GRÁFICO 3: PROCEDIMENTOS ENCONTRADOS NAS CRÔNICAS

FONTE: Gráfico elaborado pelo autor


208

Cada bloco desse gráfico representa um dos sete procedimentos que


apresentamos anteriormente e cada coluna, a relação de porcentagem identificada em
cada série de crônicas. Em uma análise de conjunto das funções, podemos verificar que
as funções de regência e de comunicação diminuem da primeira à quinta série de
crônicas - a de comunicação, se em Comentários da Semana (primeira série) determina
cinquenta por cento dos procedimentos, em Notas Semanais (quinta série) passam para
dezenove por cento; em contrapartida, as funções testemunhal e narrativa aumentam da
primeira para a quinta série de crônicas, assim como as figuras de linguagem, o
rebaixamento e a corporalidade.
Conforme vimos, na série Comentários da Semana, os posicionamentos políticos
do cronista são evidenciados, fazendo com que estabeleça uma polêmica mais aberta e
direta com seus adversários. Nessa série, a presença da função de comunicação é de
48%, tal qual a série O Futuro no qual o tema da política é, entre as cinco séries, o mais
baixo. Na série Ao Acaso, cuja abordagem política dá-se pela desconstrução e não mais
pelo enfrentamento, a função de comunicação também é alta, correspondendo a 47%.
Em um primeiro momento, parece não haver uma relação direta entre o tema da política
e o procedimento de comunicação, visto que a diferença percentual desse tema nas três
séries de crônicas não altera a presença desse procedimento. Contudo, como
observamos anteriormente, a função de comunicação corresponde a quatro
procedimentos diferentes: diálogo direto com o leitor, dialogismo, discurso polêmico e
contrato de leitura.
O diálogo direto com o leitor refere-se ao procedimento comum na escrita
machadiana em que o cronista ou narrador enuncia no texto seu leitor, leitores ou
leitora, como por exemplo na crônica de 12 de outubro de 1861 da série Comentários da
Semana: "Os Leitores hão de admirar-se de me ver já no fim destas linhas, sem ter dado
minha opinião sobre a História de uma moça rica, drama do Sr. Dr. Guimarães, que se
representa atualmente no Ginásio" (ASSIS, 2008d, p. 55).
O dialogismo consiste na conversa com interlocutores imaginários, podendo ser
o leitor, mas sem enunciá-los - neste caso, o marcador linguístico são perguntas feitas e
respondidas pelo cronista como por exemplo na crônica de 12 de junho de 1864 da série
Ao Acaso: "Alguns cavalheiros e senhoras distintas resolveram cantar. . . o que? Um
quarteto? Um sexteto? Um coro? Não, uma ópera!" (ASSIS, 2008, v. 4, p. 124); ou
quando o cronista dialoga com as personagens tratadas em suas crônicas como na
crônica de 12 de junho de 1861 da série Comentários da Semana: "A vossa avó de
209

Cuma, se hoje vivesse, sem duvida teria melhor do que eu apostrofado os blasfemos"
(ASSIS, 2008d, p. 53).
O discurso polêmico refere-se ao procedimento em que o cronista estabelece
crítica ou provocação direta a um determinado interlocutor, sendo um outro jornal ou
algum político como por exemplo na crônica de 28 de agosto de 1864 da série Ao
Acaso:

No folhetim passado transcrevi uma notícia da Cruz, e um texto


do evangelho de S. Matheus. A notícia dava parte das esmolas
feitas pela associação de caridade da Candelária, e o texto de S.
Matheus recomendava o segredo de tais atos, para não imitar os
hipócritas das sinagogas.
A esta simples confrontação responde a Cruz que ela não tem
nada com a associação da Candelária; que, portanto, S. Mateus
não escreveu para ela; finalmente que a boa razão lhe manda
publicar as boas obras dos outros para terem imitadores.
Ora, para fazer a confrontação entre a notícia da Cruz e S.
Matheus, eu fundava-me neste raciocínio: a Cruz escreve-se e
distribui-se na Candelária, os redatores pertencem àquela igreja;
logo, é caro que, havendo ali uma associação de caridade, os
redatores da Cruz fazem parte dela, porque, mesmo que eles
tenham um pão, é natural que o repartam com os pobres, não
sendo possível acreditar que eles assistam impassíveis às
esmolas que se lhes fazem nas barbas.
Isto posto, publicar os benefícios da associação é publicar os
próprios benefícios.
Em vez de explicar estas coisas, a Cruz responde com aquela
violência habitual, tão longe da mansidão evangélica. Não é
nova nem particular à freguesia da Candelária. (ASSIS, 2008, v.
4, p. 178)

Por fim, o contrato de leitura tem que ver com o diálogo entre o cronista e o
leitor no qual aquele especifica o modo de determinação de sentido que este deva operar
na leitura como no exemplo na crônica de 30 de novembro de 1862 da série O Futuro:

Neste aposento construído no fundo do edifício que o leitor


acaba de percorrer instalo-me eu, e aqui praticarei mansamente
com o leitor sobre todas as coisas que nos fornecer a quinzena,
sem fadiga para mim nem mágoa para ninguém. Durarão as
nossas palestras o intervalo de um charuto, mais infelizes nisto
que as rosas de Malherbe. Olhe o leitor: à roda da mesa estão
jornais de todo o império; sentemo-nos como bons e pacíficos
amigos, e comecemos por encarar afoitamente aqueles
estouvados peruanos.
O leitor sabe já de todas as ocorrências de que foi testemunha o
210

velho Amazonas; sabe que ali troou o canhão e que fomos


ludibriados no começo, no meio e no fim (p. 79).

Considerando essas diferentes formas da função de comunicação, podemos ver


que entre as três séries de crônicas, a mudança é maior do que possa parecer, conforme
a tabela:

TABELA 9 - Percentual comparativo de alguns procedimentos em três séries de


crônicas.
FUNÇÃO DE COMUNICAÇÃO COMENTÁRIOS DA SEMANA O FUTURO AO ACASO
DIÁLOGO COM O LEITOR 56% 87% 76%
DIALOGISMO 22% 9% 14%
CONTRATO DE LEITURA 1% 4% 2%
DISCURSO POLÊMICO 10% 0% 9%

Comparada a função de comunicação nessas três séries, evidencia-se a alteração


de procedimento à medida que o cronista muda o tema, isto é, em Comentários da
Semana, o tema da política corresponde a 22% e, em consequência, o diálogo com o
leitor, 56%; o dialogismo, 22%; contrato de leitura, 1%; e o discurso polêmico, 10%.
Em O Futuro, o tema da política corresponde a 5% - quase um quinto em relação a série
anterior. Essa mudança afeta significativamente o modo de produção desses
procedimentos conforme vemos na tabela, isto é, há um aumento do diálogo com o
leitor e uma redução do discurso polêmico, o qual, nessa série é nulo. Ao mesmo tempo,
à medida que o autor retoma o tema da política na série Ao Acaso, há um aumento
desses procedimentos, os quais foram reduzidos ou ausentes da série O Futuro, porém,
à medida que a abordagem se dá pelo que define como política amena, em comparação
com a primeira série, o diálogo com o leitor é maior e os procedimentos de polêmica,
menores. Nas séries seguintes - História de Quinze Dias e de Trinta Dias e Notas
Semanais, como vimos na tabela anterior e no gráfico, o procedimento da função de
comunicação em conjunto reduz significativamente: em História de Quinze Dias e de
Trinta Dias a função de comunicação corresponde a 26% e em Notas Semanais, a 19%.
Outra alteração perceptível é a função de regência: de 15% em Comentários da
Semana, em O Futuro manifesta-se em 21%, tendo sua maior manifestação em Ao
Acaso (31%), reduzindo-se nas duas últimas séries. Ao mesmo tempo, a função
testemunhal, determinando 22% na primeira série, reduz-se gradativamente nas duas
211

séries seguintes para alcançar o ápice na última série (30%). Assim também os
procedimentos de figuras de linguagem, rebaixamento e corporalidade aumentam
significativamente da primeira para a quinta série de crônicas.
A função de comunicação em seus diferentes procedimentos garante às crônicas
um discurso mais técnico e objetivo, inventando na escrita as técnicas comuns da
retórica com as quais o orador se dirige à plateia ou opera a pergunta retórica que, como
observa, Norma Discini, constitui-se um modo de dizer, no qual conduz o leitor a fazer
determinadas asserções, visto que, implicitamente, contém em si a resposta, misturando
a voz que pergunta e a que responde, manipulando o leitor a determinadas
conclusões115. Um dos efeitos da função de comunicação é instituir o leitor como
presença próxima para viabilizar a heterogeneidade e o efeito de polifonia que, uma vez
instituída, aproximam o leitor do ponto vista do cronista, fazendo com que siga a
orientação dada, simulando um jogo de vozes, cujo objetivo é menos tratar a informação
em si e mais produzir efeitos patéticos sobre o leitor, fazendo-o compactuar com o
ponto de vista do cronista.
Se, como vimos na análise dos primeiros textos em prosa na polêmica de Os
Cegos e na série de crônicas Comentário das Semanas, ao enunciar o leitor no texto ou
estabelecer o jogo discursivo por meio de perguntas retóricas, o cronista o manipula,
levando-o a compactuar com seu ponto de vista , a redução da função de comunicação
na série Notas Semanais, bem como o aumento do rebaixamento e o modo de
tratamento do tema da política como mero espectador, produzem efeitos polifônicos
bem mais elaborados, fazendo com que estabeleça tensão entre esses procedimentos e
os discursos oficiais, jogando um contra o outro para mostrar como os discursos
produzidos no Parlamento ou os discursos da Imprensa Oficial ou ainda os discursos
religiosos são formados por convenções de certas práticas discursivas. Vemos por
exemplo na crônica de 1º de setembro de 1878, ao tratar sobre "o ofício do procurador
dessa casa que indaga à Câmara se deveria ou não mandar fornecer cadeiras para o

115 A pergunta retórica: constitui um modo indireto de dizer; por meio dela, pergunta-se, não para obter
resposta, mas para conduzir o leitor a fazer determinadas asserções; contém em si, implicitamente, a
resposta, misturando vozes: a que pergunta e a que responde; advém do narrador, que é quem faz a
pergunta e quem manipula o narratário-leitor, para determinada conclusão; institui um sujeito como
presença mais próxima: em relação ao narratário-leitor e em relação ao próprio enunciado; traz em si a
voz respondente, viabilizando nos textos: a heterogeneidade mostrada; o efeito de polifonia; faz com
que o narrador se aproxime do narratário, para que este se veja obrigado a seguir a orientação dada;
promove a incorporação do narratário e do seu discurso, ao evitar uma afirmação direta; simula a
existência de um jogo de vozes, sendo compatível a determinadas cenas genéricas do jornal; é algo
desnecessário, do estrito ponto de vista informacional. (DISCINI, 2005, p. 175)
212

tribunal do júri bem como jantar aos membros daquela tribuna quando ali se alongarem
as sessões"116, o cronista detém-se no último pedido e elabora a desconstrução do
pedido e da negação por meio do rebaixamento:

Porquanto, a dita Câmara Municipal, perguntando-lhe o


procurador se podia mandar fornecer jantar ao Tribunal do Júri,
quando as sessões se prolongassem até tarde, respondeu que
não, visto que tal despesa não se acha autorizada em lei.
Teve razão a Câmara, e teve-a duas vezes; a primeira, porque a
lei o veda, e a obediência à lei é a necessidade máxima; a
segunda, porque o jantar é, de certo modo, um agente de
corrupção. Não me venham com sentenças latinas: primo vivere,
deinde judicare. Não me venham com considerações de ordem
fisiológica, nem com rifões populares, nem com outras razões da
mesma farinha, muito próprias para embair ignorantes ou colher
descuidados, mas sem nenhum valor ou alcance para quem olhar
as coisas de certa altura. A questão é puramente moral; e a
presença do rosbife não lhe diminui nem lhe troca a natureza.
Não me venham também com o jantar na política; porque, em
certos casos, não há incompatibilidade entre o voto e o prato de
lentilhas; e, politicamente falando, o paio é uma necessidade
pública. O caso dos jurados é outra coisa.
A primeira e inevitável consequência do jantar aos jurados seria
a condenação de todos os réus, não porque o quilo implique
severidade, mas porque induz à gratidão. Como se sabe,
absolvidos os réus, paga a municipalidade as custas; não é crível
que um tribunal de homens briosos e generosos condene a mão
que lhe prepara o jantar. Convém contar com o pudor dos
estômagos. Acresce que a digestão é variável em seus efeitos.
Umas vezes inclina ao cochilo, e não se pode calcular que
inúmeros erros judiciários sairão de um tribunal que dorme a
sesta; outras vezes, o organismo precisa de locomoção, e as
sentenças cairão da pena, como frutas verdes que um rapaz
derruba. Não cito o caso dos que fazem o quilo entre a espadilha
e o basto, e ficariam impacientes por sair; caso verdadeiramente
assustador, visto que a maior das nossas forças sociais é o
voltarete.
Cotejem agora as inconveniências do jantar com as vantagens do
jejum. O jejum, um estado de graça espiritual, é uma das formas
adotadas para macerar a carne e seus maus instintos. A
satisfação da carne torce a condição humana, igualando-a à das
bestas; ao passo que a privação amortece a condição bestial e
apura a outra; fortifica, portanto, o ser inteligível, aclara as
idéias, afina e eleva a concepção da justiça. A sopa tem suas
vantagens; o assado não é, em si mesmo, uma abominação;

116 Nota de rodapé nº 4 feita por John Gledson e Lúcia Granja na edição de Notas Semanais publicadas
pela Editora da Unicamp, p. 245
213

pode-se almoçar e querer bem; não há incompatibilidade


absoluta entre a virtude e a couve-flor. A justiça, porém, requer
alguma coisa menos precária, mais certa; não se pode fiar de
hipóteses, de casualidades, de temperamentos.
O que me admira, neste caso, não é a decisão da Câmara, que
aplaudo, desde que é fundada em lei, e o respeito da lei é a
primeira expressão da liberdade. O que me admira é que só
agora reclame o júri um bocado de pão. Pois nunca pediu o júri
uma verbazinha para os seus pastéis? Só agora há estômagos
naquele tribunal? Só agora há processos longos e juízes
famintos? Tanto pior; se esperam tantos anos, podem esperar
alguns mais. (ASSIS, 2008e, pp. 236-238)

Parecendo tomar posição favorável à decisão da Câmara de negar o jantar ao


tribunal do júri, o cronista apresenta alguns argumentos os quais, ao invés de sustentar
sua defesa, a suspendem. O primeiro argumento deve-se à necessidade máxima de
obedecer à lei: o uso do substantivo adjetivado máxima coloca a necessidade de
obediência como princípio básico e indiscutível, transformando a obediência em um
axioma científico pelo qual se orientam certas afirmações. Para sustentar essa tese, ele
refuta qualquer contra-argumento que coloque como necessidade básica a manutenção
da vida pelo alimento, atualizando a sentença latina que afirma primum vivere, deinde
philosophari. Segundo Renzo Tosi, em seu Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas,
trata-se de um adágio muitas vezes atribuído a Hobbes, mas cuja origem exata não é
conhecida. Esse adágio convida a levar a vida ativa e pospõe a isso qualquer atividade
especulativa, afirmativa presente na Política de Aristóteles e na República de Platão. Há
também uma tradição gnômica segundo a qual antes de se dedicar à sabedoria e à
virtude é preciso obter o necessário para viver117. Na refutação feita pelo cronista, além
da atualização na qual judicare substitui philosophari, há também a inversão da

117 Primum vivere, deinde philosophari (Primeiro viver, depois filosofar) Trata-se de um adágio
atualmente famoso (e muitas vezes atribuído a Hobbes), que convida a levar vida ativa e pospõe a isso
qualquer atividade especulativa. A origem exata não é conhecida, mas a máxima parte da
contraposição entre vida ativa e otium especulativo, já presente em Aristóteles (Política, 1333a 35,
1334a 16, 1337b 34)e muito citada, sobretudo pelos latinos. Além disso, existia uma tradição gnômica
segundo a qual antes de se dedicar à sabedoria e à virtude é preciso obter o necessário para viver; cf.
Focilides, fr 9 Gentili Prato, citado por Platão (A República, 3, 407a) e retomado pela tradição
paremiográfica (Diogen. 4, 39, Geg. Cypr. L. 1, 95, Arsen. 6, 8a;
("é preciso buscar o sustento; a virtude, quando se tem
com que viver"), assim como por um célebre trecho de Horácio (Ep. 1, 1, 52-54), no qual o poeta
contrapõe a verdadeira ética baseada na virtude à moral corrente que apregoa o enriquecimento como
bem mais precioso (para maiores detalhes, cf. nº 1807). Finalmente, é preciso assinalar uma instrução
de Cícero ao filho (Epistulae ad Marcum filium, fr 2), segundo a qual Philosophiae quidem praecepta
noscenda, vivendum autem esse civiliter, "por certo é preciso conhecer os preceitos da filosofia, mas é
preciso viver como bom cidadão, conhecida por nós graças a Lactâncio (Divinae Institutiones, 3, 14,
17), que a cita como parte de sua violenta acusação contra a filosofia pagã entendida como detentora
da sabedoria e da verdade (TOSI, 2000, 164)
214

sentença, isto é, para ela primeiro deve julgar, para depois viver. Esse uso é
hiperbolizado uma vez que, em vários outros momentos, o cronista observa a
recorrência do Parlamento em seguir a lei conforme lhe interessa, o que acentua a
posição da Câmara como absurda. O segundo argumento é a alegação de que o jantar é
um agente de corrupção e para sustentar essa afirmativa, o cronista desenvolve toda a
tese do benefício do jejum, segundo os princípios católicos, no qual, promovendo um
estado de graça espiritual, macera a carne e seus maus instintos. Para tanto, produz o
rebaixamento no qual estabelece o jantar como torção da condição humana que iguala o
júri à condição da besta; bem como equipara a virtude à couve-flor. A afirmação em
concordância com o discurso contínuo da Câmara, posta sob tensão com os discursos
descontínuos operados pelos procedimentos de rebaixamento, corporalidade, função
testemunhal, função de comunicação, hipérbole, intertextualidade e ironia inverte as
disposições dos discursos oficiais deslocando da sua gravidade e seriedade para
evidenciar o que há de risível, ridículo e, conforme afirma o cronista em passagem já
citada, pegar-lhe o que há de divertido.
Michel Foucault, em As Palavras e As Coisas, ao tratar sobre o estatuto das
descontinuidades para a história em geral, questiona sobre as divisórias estabelecidas e
o limite como corte arbitrário o qual, nessas demarcações, busca estabelecer a coerência
que faz aparecer entre elas um sistema contínuo e unitário. A partir desses
questionamentos, define o descontínuo como uma "erosão que vem de fora, a esse
espaço que, para o pensamento, está do outro lado, mas onde, contudo, ele não cessou
de pensar desde a origem" (FOUCAULT, 1999, p. 69). Para melhor compreender essa
descrição operada pela arqueologia, o filósofo francês propõe, por hora, o acolhimento
dessas descontinuidades que se dão na ordem empírica. Em sua obra A Ordem do
Discurso, tratando a descontinuidade como cesuras que rompem o instante e dispersam
o sujeito em uma pluralidade de posições e funções possíveis, ele afirma que a
descontinuidade golpeia e invalida as menores unidades tradicionalmente conhecidas ou
facilmente contestadas: o instante e o sujeito118. Esse golpe e essa erosão dado de fora

118 Não se trata, bem entendido, nem da sucessão dos instantes do tempo, nem da pluralidade dos
diversos sujeitos pensantes; trata-se de cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em uma
pluralidade de posições e de funções possíveis. Tal descontinuidade golpeia e invalida as menores
unidades tradicionalmente reconhecidas ou as mais facilmente contestadas: o instante e o sujeito. E,
por debaixo deles, independentemente deles, é preciso conceber entre essas séries descontínuas
relações que não são da ordem da sucessão (ou da simultaneidade ) em uma (ou várias) consciência; é
preciso elaborar - fora das filosofias do sujeito e do tempo - uma teoria das sistematicidades
descontínuas. Enfim, se é verdade que essas séries discursivas e descontínuas têm, cada uma, entre
215

são evidenciados na crônica de 30 de junho de 1878 em que, ao referir a renovação da


Câmara Municipal, o cronista observa o esforço da velha câmara em dar uma mão de
cal à sala das sessões:

De todas estas, a mais importante é a da câmara municipal.


Sabe-se que não só a câmara é diferente da outra, mas até de si
mesma.
Vereador, que o era há dois meses, não passa hoje de um
modesto contribuinte; contribuinte, que o era, acordou há dias
vereador. Ali há choro e ranger de dentes; aqui, um riso da bem-
aventurança. Sorrisos e lágrimas, como diria um vate piegas, se
não preferisse dizer lágrimas e sorrisos, que é solutamente a
mesma coisa.
A câmara velha quis fazer as coisas fidalgamente; mandou dar
uma mão de cal à sala das sessões, espanar as janelas, deitar
meia dúzia de pontos às cortinas. Há nisto mais cortesia do que
sagacidade. Eu, no caso da câmara velha, recebia a nova com as
mesmas teias de aranha e dedadas dos contínuos, como se lhe
dissesse: - Veja Vossa Ilustríssima a virtude espartana que deve
ter um vereador; é obrigado a meditar um contrato e catar uma
pulga, a diminuir as despesas dos calçamentos e o lustro do
calçado. Todo o sebo que poderia adquirir a consciência, aqui
ficou colado a esta mesa de pinho. Não lhe importe cair dessa
cadeira velha; é o meio de não cair da opinião pública. Em vez
disto, a câmara velha prefere dar à nova um espécime do palácio
de Armida, alguma coisa semelhante ao luxo do Califa de
Bagdá. É polido, mas impolítico. (ASSIS, 2008e, p. 131)

Por meio da alegoria, corporalidade e rebaixamento, o cronista não se refere


literalmente à mudança visual do prédio, mas evidencia essas continuidades na velha
política que mascara por meio da renovação a velha prática de manutenção do mesmo
poder e da mesma cultura que nunca se renova, mas apenas se repete. Para tanto, propõe
que a Câmara Velha, ao invés de dar uma mão de cal à sala das sessões, deixassem as
mesmas teias de aranha e todo o sebo que poderia adquirir a consciência, para que,
mesmo que caísse da velha cadeira, não caísse da opinião pública. Em outras palavras,
reconhecendo os velhos erros praticados pelas Câmaras anteriores, evitasse repeti-los
para o bem da sociedade carioca. Ou como afirma mais a frente: elas não passam de
verdades velha, caiadas de novo. Na crônica de 26 de junho de 1864 da série Ao Acaso,

certos limites, sua regularidade, sem dúvida não é menos possível estabelecer entre os elementos que
as constituem nexos de causalidade mecânica ou de necessidade ideal. É preciso aceitar introduzir a
casualidade como categoria na produção dos acontecimentos. Aí também se faz sentir a ausência de
uma teoria que permita pensar as relações do acaso e do pensamento. (FOUCAULT, 2010, p. 58)
216

o cronista trata sobre o caso de um ladrão honesto. Sem se prender no acontecimento


em si, discorre sobre a contradição dos termos que identifica o gatuno para propor a
escrita de dois livro com os seguintes títulos: Dos Nomes e Das Coisas e a História do
Silêncio, evidenciando, em relação ao primeiro, o desacordo entre as coisas e os nomes:

Este desacordo entre as coisas e os nomes dá lugar a um livro,


que eu não sei se já está escrito, mas que, à semelhança de que
fiz em um dos meus folhetins passados, indico a algum escritor
à cata de assunto; livro que pode ser intitulado - Dos nomes e
das coisas - e onde pode entrar uma apreciação de todas as
coisas ridículas, desonestas e tolas que se designam por nomes
sérios, honestos e sensatos.
E já que indiquei o título e a matéria de um livro por fazer,
deixem-me indicar a matéria e o título de outro livro ainda não
feito, e cuja idéia foi-me suscitada por uma discussão no
Parlamento, há uns tempos atrás. O título deste livro, se eu o
fizesse, seria: História do silêncio, trazendo por epígrafe este
conceito de um filósofo antigo: - Quem não sabe calar-se, não
sabe falar.
Conteria esta obra todos os casos da história da humanidade, em
que o talento e a virtude fizeram-se notar por um silêncio
oportuno, contrariamente àqueles casos em que a virtude e o
talento obtiveram vitória com o uso da palavra.
Creio que a fábula do corvo, que tinha um queijo no bico, fala
alto em favor do preceito que manda falar com discrição e
oportunidade. Tarde conheceu o corvo da fábula que não se
pode acumular dentro de um saco dois proveitos: a vantagem de
possuir um queijo e a vaidade de mostrar a garganta afinada.
O prólogo deste seria uma exposição de princípios tendentes a
desenvolver o pensamento da epígrafe, acima citada, concluindo
pela demonstração de que não basta ter língua e pulmões para
falar, como não basta ter dois pés e não ter pernas, para ser um
homem.
Acho que este livro seria um livro muito falado e muito
procurado. (ASSIS, 2008, v. 4, p. 131)

Nas crônicas, essa reatualização dos procedimentos conjugada com as novas


formas de tratamento dos temas evidencia o que chamamos de modelo descontínuo. O
modelo descontínuo faz com que essas funções conceituadas por Genette e
depreendidas nas cinco séries de crônicas aqui analisada, à medida que o cronista as
renova, qualificando-as como procedimentos de desconstrução dos discursos oficiais,
invertem suas disposições e evidenciam suas regras de formações como discursos
dominantes, operando interrupções e dispersões, cujas peças, conforme a definição de
Deleuze e Guattari, remetem a outras peças completamente distintas, as quais não estão
217

ligadas por nenhum princípio de unidade119. Ao remeter a matéria de jornal como peças
a outras peças completamente distintas como o texto bíblico, literário, político,
filosófico ou discursos cotidianos como por exemplo o ditado popular, o cronista opera
as interrupções e estabelece sua dispersão, lançando o leitor em um completo estado de
suspensão reflexiva como afirma na crônica de 24 de janeiro de 1865 da série Ao Acaso:
"Dito isto, dou a palavra à reflexão dos leitores." (p. 247). São esses procedimentos
operados pelo modelo descontínuo característico da crônica machadiana que fazem da
crônica um discurso ficcional como veremos a seguir.

119 Todavia, o exame detido de todas essas máquinas, sejam elas reais, simbólicas ou imaginárias, deve
certamente intervir, mas de uma maneira totalmente determinada: considerando as máquinas como
índices funcionais capazes de nos pôr na pista das máquinas desejantes, que lhes são mais ou menos
próximas ou afins. Com efeito, as máquinas desejantes são alcançadas apenas a partir de um certo
limiar de dispersão que não deixa que nelas subsista a identidade imaginária e nem a unidade
estrutural (instâncias estas que são ainda da ordem da interpretação, isto é, da ordem do significado ou
do significante. As máquinas desejantes têm como peças os objetos parciais; os objetos parciais
definem a working machine ou as peças trabalhadoras, mas num tal estado de dispersão que uma peça
não para de remeter a uma peça de uma máquina totalmente distinta, como o trevo vermelho e o
zangão, a vespa e a orquídea, a buzina da bicicleta e o eu de rato morto. (DELEUZE & GUATTARI,
2010, p. 427)
218

CAPÍTULO 2 - CRONISTA: NARRADOR OU COMENTARISTA?

É claro que o narrador nada vê, nada ouve, é um corpo sem


órgãos, ou melhor, é como uma aranha concentrada, fixada na
sua teia: nada observa, mas responde aos menores signos, à
mínima vibração, saltando sobre sua presa.
Deleuze & Guattari, O Anti-Édipo, p. 96

A virtual polêmica dessas aproximações entre a crônica e o romance certamente


pressupõe as diferenças entre o discurso narrativo e outras formas de discurso. A
compreensão torna-se mais complexa ao considerarmos o discurso da crônica como
híbrido e, portanto, possibilitado a se organizar a partir de diferentes formas discursivas.
Para tanto, analisaremos a distinção elementar entre o discurso da crônica e o do jornal.
Como a grande parte dos discursos que se pretendem objetivos, como o discurso
histórico, científico e mesmo o do romance naturalista e realista, o discurso do jornal
está voltado para a realidade empírica e, portanto, segundo a definição feita por Paul
Ricoeur em sua obra Tempo e Narrativa, voltado para o passado real de um sujeito real,
esse discurso marca seu sistema temporal determinando um grau zero, o qual define
como discurso assertivo (Aussage)120. Desse modo, há um distanciamento significativo
entre esse discurso assertivo e o discurso ficcional. Conforme a observação de Ricoeur,
essa diferença resulta do fato de a ficção substituir a origem-eu do discurso assertivo –
que estabelece a noção do real – para a origem-eu das personagens de ficção. Esse
deslocamento do discurso do sujeito real para um actante, ou sujeito ficcional, permite
inventar a origem-eu fictícia dos pensamentos, sentimentos e ações da história narrada.
Se observarmos as formas de construção discursiva das crônicas machadianas, vemos
confirmada a leitura de Ancona Lopez, citada anteriormente, uma vez que, se o cronista
não tem o objetivo de informar, ele pode, inclusive, operar as matérias tratadas a partir
do próprio discurso e, portanto, ficcionalizá-las.
Na crônica de 2 de junho de 1878 da série Notas Semanais, ao tratar sobre a
intervenção das comissões sanitárias no Rio de Janeiro, como seu objetivo não é
noticiar, até porque trata de matérias já noticiadas, aborda a matéria a partir de seu

120 Ninguém insistiu mais do que ela no corte que a ficção literária" introduz no funcionamento do
discurso. Uma barreira intransponível separa o discurso assertivo (Aussage), que se refere à realidade,
da narrativa de ficção. Uma lógica diferente, com as implicações sobre o tempo que iremos expor,
resulta desse corte. Antes de vermos suas consequências, é preciso entender a razão dessa diferença;
ela resulta inteiramente do fato de a ficção substituir a origem-eu do discurso assertivo, que é ela
própria real, pela origem -eu dos personagens de ficção. Todo o peso da ficção repousa na invenção de
personagens, de personagens que pensam, sentem, agem e que são a origem-eu fictícia dos
pensamentos, sentimentos e ações da história narrada. (RICOEUR, 2010, v. 2, p. 111)
219

ponto de vista. Uma dessas comissões determinara que um estabelecimento onde se


vendia água de Vidalgo e Vichy, por não serem legítimas, isto é, originadas desses
locais, informasse por meio de um rótulo a proveniência delas. A partir da notícia
apresentada resumidamente no texto, o cronista censura a determinação, classificando-a
como ingenuidade e injustiça:

A comissão multou a casa, porque supõe a existência de fontes


minerais em Vidalgo e Vichy, quando é sabido que uma e outra
das águas assim chamadas são pura combinações artificiais. Vão
publicar-se as receitas. Acresce que as águas de que se trata nem
são vendidas ao público. Há, na verdade, muitas pessoas que as
vão buscar; mas as garrafas voltam intactas, à noite, e tornam a
sair no dia seguinte, para entrar outra vez; é um jogo, um puro
recreio, uma inocente diversão, denominada o jogo das águas,
mais complicado que o jogo da bisca e menos arriscado que o
jogo da fortuna. (ASSIS, 2008e, p. 88)

Desse modo, a partir de um discurso assertivo – a matéria do jornal sobre o caso


– o cronista desloca essa origem-eu voltada para o real e, portanto, para o tempo
presente, para uma origem-eu voltada para o discurso ficcional, estabelecendo as
personagens ficcionais na crônica por meio da personificação. Ele o faz, quando explica
o motivo da injustiça. Para tanto, personifica as garrafas que, uma vez levadas para as
casas, voltam intactas, para saírem no dia seguinte e novamente retornarem. Tal
movimento promovido pelas garrafas – que se tornam personagens ficcionais – é
identificado pelo cronista como um puro recreio denominado jogo das águas. Em
crônica de 9 de junho de 1878 da mesma série, ao tratar do caso do incêndio provocado
no paço municipal de Macacu, novamente opera esse deslocamento, personificando o
paço não somente como personagem agente, mas também como personagem passional:

Lembram-se de haver ardido o paço municipal de Macacu?


Dizer-se agora que o incêndio não foi devido à combustão
espontânea, nem à imprudência do paço, mas só e somente a
oculto propósito. (...) Saiba-se que esse paço, másculo na
aparência, tinha conseguido até hoje dissimular o sexo, pois era
e é nada menos que uma bela quadragenária. A fim de se poupar
às seduções e conseqüentes perigos, disfarçou os encantos sob a
estamenha de uma municipalidade interior. Nunca, em tão
largos anos, pôde ser suspeitada a dissimulação. Os gamenhos
de Macacu, baldos às vezes de corações disponíveis, mal
suspeitavam que ali palpitava um, e vasto, e virgem. Os partidos
revezavam-se sem dar pela coisa; e a bela incógnita parecia
220

destinada ao eterno mistério. Ultimamente, por motivos que não


vem ao caso narrar, o paço municipal de Macacu sentiu em seu
ser uma grande revolução: era mãe! Não se descreve a dupla
sensação que este fato lhe produziu. Júbilo, primeiramente,
depois terror. Complicação do natural com o social. Que
admira? A vila é recatada e de bons costumes; o paço, pela
austeridade de seu proceder, granjeara a universal estima.
Ameaçava-o agora a execração universal. Sob a impressão do
primeiro momento, o paço teve ideia de atirar-se ao rio; venceu
porém, o instinto materno; essa quase Medéia por antecipação
(como os leilões), fez-se uma simples Agar. (pp. 98-99)

Nesses dois exemplos, fica evidente a diferença entre o discurso assertivo do


jornal e o discurso ficcional da crônica que opera os diferentes procedimentos
composicionais e, portanto, de estilização, evidenciando a descontinuidade desses
discursos oficiais e ressaltando suas contradições. Tais exemplos compõem em grande
número o desenvolvimento das crônicas machadianas. É preciso, a partir deles,
determinar a especificação ficcional desse gênero.
Bertrand chama a atenção para a importância do ponto de vista como
procedimento que permite compreender os diferentes discursos. Para o semioticista
francês, todo enunciado está submetido à orientação de um ponto de vista. Mesmo
aqueles que pretendem uma objetiva neutralidade o tem inevitavelmente implicado,
mesmo que por omissão121. Como define Ricoeur, o ponto de vista é o convite feito ao
leitor para que olhe na mesma direção do narrador ou da personagem122. No caso do
discurso narrativo, como define Genette, narrativo designa o discurso homodiegético e
heterodiegético, substituindo a tradicional classificação de primeira ou terceira pessoa,
tornando-se poética da composição, uma vez que a possibilidade de adotar pontos de

121 A extensão da metalinguagem natural à metalinguagem técnica atesta com propriedade a importância
crucial dessa noção: não há enunciado, qualquer que seja sua dimensão, que não esteja submetido à
orientação de um ponto de vista. A mais objetivante neutralidade a implica inevitavelmente, ainda que
por omissão. Mas essa extensão obscurece ao mesmo tempo sua significação e torna delicado seu
manuseio. Se definirmos, de maneira muito geral, o ponto de vista como o conjunto de operações que
o enunciador efetua para orientar e estruturar seu enunciado, verificaremos que ele é transversal às
diferentes formas do discurso, mas recebe uma significação específica conforme se trate de um
discurso narrativo, descritivo ou argumentativo. Além do mais, em cada caso, o ponto de vista
engloba, ao mesmo tempo, o modo de presença do enunciador em seu discurso e a maneira pela qual
ele dispõe, organiza e orienta seus conteúdos. (BERTRAND, 2003, p. 113)
122 O ponto de vista responde à questão: de onde vemos o que é mostrado pelo fato de ser narrado? E,
assim, de onde se fala? A voz responde à questão: quem fala aqui? Se não quisermos ser iludidos pela
metáfora da visão, numa narrativa em que tudo é contado e na qual fazer ver pelos olhos de um
personagem é, segundo a análise que faz Aristóteles da léxis (elocução, dicção), "colocar sob os
olhos", ou seja, transformar a compreensão em quase intuição, então é preciso considerar a visão
como uma concretização da compreensão e, portanto, paradoxalmente, como um anexo da escuta
(RICOEUR, 2010, v. 2, p. 172).
221

vista variáveis permite que o autor possa variá-los no mesmo texto123. Essa atividade
perceptiva no texto é comandada pelo observador e, portanto, está presente sempre que
houver discurso e representação124. Ricoeur considera o ponto de vista e a voz do texto
como sinônimos e, portanto, o texto pode se compor de diferentes pontos de vista que
interagem e estabelecem o dialogismo do texto tanto no plano espacial, como no plano
temporal da expressão125. O cronista pode operar as estratégias de apreensão do objeto
pela totalidade, seja de maneira englobante ou cumulativa, ou também pelas
particularidades, isolando os detalhes ou selecionando, entre esses, os aspectos mais
representativos de uma totalidade inacessível por outros meios. No caso do incêndio do
Paço Municipal de Macacu, a narrativa fantástica operada pelo cronista permite que o
leitor possa apreender o objeto por meio da totalização englobante que lhe permite
perceber que toda justificativa apresentada nos jornais não passa de meios puramente
discursivos que satisfazem interesses dos grupos políticos em disputa naquele
município. Em crônica anterior, do dia 2 de junho de 1878, o cronista tratou do mesmo
assunto, observando que a causa do incêndio perdeu-se em imaginação e conjecturas.
Para ironizar o modo como tentaram justificar o motivo do desastre como combustão
espontânea, ele o faz também por alegoria, mas diferentemente da anterior, opera o
ponto de vista particularizando o caso:

123 O ponto de vista diremos, designa numa narrativa em terceira ou em primeira pessoa a orientação
do olhar do narrador em direção a seus personagens e dos personagens uns em direção aos outros. Diz
respeito à composição da obra e torna-se com Boris Uspenski objeto de uma “poética da composição”,
já que a possibilidade de adotar pontos de vista variáveis - propriedade inerente à própria noção de
ponto de vista - dá ao artista a ocasião, sistematicamente explorada por ele, de variar os pontos de
vista no interior da mesma obra, de multiplicá-los e incorporar suas combinações na configuração da
obra. (RICOEUR, P., 2010, V. 2, P. 162)
124 Os tipos de observador se depreendem da discursivização dos atos de conhecimento. Eles
implicam, por isso mesmo, uma atividade.perceptiva. Esta pode ser explicitada por meio de
predicados da percepção (ver, envolver com, o olhar, perceber, explorar, rexaminar, etc.) que definem
a natureza do ato; a estratégia utilizada e o papel atribuído ao observador. Ela pode igualmente ser
induzida pela disposição dos objetos, pelo modo de sua seleção, pela estruturação das diferentes partes
em relação à totalidade visada. (BERTRAND, D. 2003, P. 126)
125 O plano espacial e o plano temporal da expressão do ponto de vista nos interessam vivamente. É em
primeiro lugar a perspectiva espacial, tomada literalmente, que serve de metáfora a todas as outras
expressões do ponto de vista. A condução da narrativa não é possível sem uma combinação de
perspectivas puramente perceptivas, implicando posição, ângulo de abertura, profundidade do campo
(como é o caso para o filme). O mesmo acontece com a posição temporal, tanto do narrador com
relação a seus personagens quanto dos personagens entre si. O importante aqui é mais uma vez o grau
de complexidade que resulta da composição entre perspectivas temporais múltiplas. O narrador pode
caminhar ao poasso de seus personagens, fazendo o presente de narração deles coincidir com o seu,
aceitando assim seus limites e sua ignorância; pode, ao contrário, se mover para frente e para trás,
considerar o presente do ponto de vista das antecipações de um passado rememorado, ou como a
lembrança passada de um futuro antecipado.(RICOEUR, 2010, v. 2, p. 164).
222

Não acabou menos depressa o paço municipal de Macacu, que


aliás acabou mais radicalmente; ardeu. Sobre as causas do
desastre perde-se a imaginação em conjeturas, sendo a mais
verossímil de todas a da combustão espontânea. Se não foi isso,
foi talvez o mau costume que têm todos os paços municipais de
dormirem com luz e lerem até alta madrugada. O de Macacu
parece que até fumava na cama. Imprudência que se não
combina com a madureza própria de um paço municipal.
(ASSIS, 2008e, p. 92)

Concordando o leitor da notícia com a hipótese de que o desastre foi causado por
combustão espontânea, também deve concordar com o cronista que os paços tinham o
mau costume de dormir com luz e ler até alta madrugada, assim como o fato de o paço
municipal de Macacu fumar na cama. Nesse sentido, o ponto de vista da crônica parece
aproximar-se do discurso argumentativo, observado por Bertrand, ao designar a
expressão de um juízo, de uma opinião, de uma tomada de posição126. Contudo,
diferentemente do discurso argumentativo, na crônica não há um percurso bem definido
que se desenvolva da tese refutada à tese proposta – podemos dizer que nem sequer há
tese na crônica.
Em crônica de 30 de outubro de 1859, ao definir os procedimentos do gênero,
afirma:

O folhetinista, na sociedade ocupa o lugar do colibri na esfera


vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre
todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas.
Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política. (ASSIS,
2009b, p. 56)

A proximidade entre cronista e leitor como leitores dos jornais da época opera-se
por meio do ponto de vista enunciado nas crônicas. Conforme podemos observar em
vários momentos delas, esse ponto de vista é marcado pelo cronista como leitor que tem

126 No discurso argumentativo, enfim, o ponto de vista designa a expressão de um juizo, de uma
opinião, de uma tomada de posição. A metáfora espacial dessa última expressão indica claramente que
os modos de enunciação, são, aí também, questão de posições. A opinião pode ser expressa sob a
aparência do discurso objetivo ou da evidência, (com o "ele", a pessoa de universo: "é evidente
que...”) ou sob a égide de um sujeito coletivo (com o "se": "sabe-se há muito tempo que..."), ou pelo
empenho de uma subjetividade assumida (com o "eu"). O ponto de vista daquele que sustenta uma
opinião será igualmente, determinado pela maneira como ele instala o discurso de outrem, com vistas
a refutá-lo ou a consolidar seu próprio discurso. Ele resultará, enfim, da textualização do percurso
argumentativo, de sua organização e de seu desenvolvimento: ir da tese refutada à tese proposta, do
particular ao geral, do exemplo ao argumento, ou inversamente. (BERTRAND, D. 2003, P. 117)
223

em mãos os jornais impressos:

O fato que mais deu que falar, durante a semana que finda hoje,
foi um folhetim insolente e sensaborão. Discutiu-se, comentou-
se e sobretudo admirou-se esse conjunto de banalidades que,
com o título de Chronica da semana, se publicou domingo
último nas colunas da folha oficial. A favor da importância do
Jornal, o Chronista atirou à admiração pública meia dúzia de
facécias, que pelo tom se pareciam com aquelas que, tendo sido
intercaladas fraudulentamente em um folhetim do Sr. Dr.
Macedo, obrigaram a este a deixar aquele trabalho especial de
que se achava encarregado. Nem mais nem menos, o escritor
acusava os moços que fazem profissão da pena de uma liga,
tendo por fim o louvor mútuo e a todo o transe. Atacava ao
mesmo tempo a dignidade moral e intelectual da mocidade
brasileira. E isto no rodapé da folha oficial. (ASSIS, 2008d, p.
71)

Nesta crônica de 26 de outubro de 1861 da série Comentários da Semana, vemos


confirmado o ponto de vista do cronista como leitor dos jornais da época ao referir-se à
polêmica entre Joaquim Manuel de Macedo e o Jornal do Commercio por conta do
acréscimo que esse jornal fez a um artigo desse autor, resultando no pedido de sua
demissão do jornal. O comunicado público desse autor foi publicado nesse mesmo
jornal em 15 de outubro de 1861, onze dias antes da crônica. Na crônica de 16 de
dezembro de 1861, cita novamente o Jornal do Commercio, ao tratar da lei das
condecorações decretada pelo Ministro do Império:

A folha oficial deu a público um decreto que reúne as duas


condições, de abusivo e de ridículo; é o decreto que regula a
concessão de condecorações. A impressa impugnou o ato
governamental, e à folha oficial foram ter algumas respostas,
com que se procurou tornar a cousa séria. (p. 127)

Conforme vemos na citação acima, o cronista comenta a matéria como se


acabasse de ler o decreto naquele jornal, pressupondo ter o seu leitor também a tenha
feito, podendo comentá-la, portanto, com esse pressuposto. Na crônica de 24 de
dezembro de 1861, novamente comenta a polêmica criada por Scoevola, que publica
com certa periodicidade na seção A Pedidos do Jornal do Commercio:

Nas colunas do Jornal do Commercio continuam a aparecer os


contendores da questão diplomática, Scoevola, depois de ter
224

feito sacrificio da mão direita diante de Porsenna, anda


mostrando que é capaz ainda de outras cousas muito asseadas.
(p. 134)

Ainda sobre Scoevola, na crônica de 7 de janeiro de 1862, comenta sobre a


promessa deste de publicar nesse jornal uma série de artigos sobre o casamento da
princesa imperial. Na crônica de 14 de janeiro de 1862, esse autor torna-se tema da
crônica machadiana por conta da polêmica que o mesmo criara em torno da diplomacia
brasileira no Rio da Prata:

Eu podia, é verdade, entreter o leitor com o imortal Romano da


mão queimada, que jurou aos deuses fundir as repúblicas
confinantes ao sul do império em uma monarquia e dá-la em
presente a um príncipe da família imperial, não esquecendo de
casá-lo com a Sra. D. Leopoldina. O publicista casamenteiro não
é das cousas que menos riso excitam, pelo contrário, é divertido
a mais não poder ser. (idem, 156)

O sarcasmo com que o cronista trata Scoevola e que é compartilhado com seu
leitor tem por pressuposto que ambos – leitor e cronista – conhecem os textos desse
autor, bem como a referência histórica do pseudônimo, o que permite ao cronista operar
a junção de temas distintos e dar-lhes um novo significado como forma de desmistificar
a polêmica criada por Scoevola. Além do Jornal do Commercio, o cronista também
explicita a leitura que faz do jornal Correio Mercantil na crônica de 16 de dezembro de
1861:

Espera-se com ânsia, e pela minha parte, com fé, o resultado do


estudo da comissão, porque a matéria apesar de importante, não
foi até aqui estudada. Entretanto, antes que tenha aparecido o
trabalho oficial, já uma opinião se manifestou nas colunas do
Correio Mercantil. Essa opinião, sinto dizê-lo, devia ser a última
lembrada, se merecesse ser lembrada. A doutrina liberal de
concorrência aplicada à espécie prejudica o ponto essencial da
questão, e que se tem em vista atingir. Criar no teatro uma
escola de arte, de língua e de civilização, não é obra da
concorrência, não pode estar sujeita a essas mil eventualidades
que tem tornado, entre nós o teztro uma cousa difícil e a arte
uma profissão incerta. É na ação governamental, nas garantias
oferecidas pelo poder, na sua investigação imediata, que existem
as probabilidades de uma criação verdadeiramente séria e
seriamente verdadeira. Uma legislação emanada da autoridade, a
reunião dos melhores artistas, a escolha dos mestres de ensino, a
225

criação de escolas elementares, onde se aprenda arte e língua,


duas cousas muitas vezes ausentes de nossas cenas, a boa
remuneração ao trabalho dos compositores, um júri de
julgamento de peças, em boas bases, ficando extinto o
conservatório, tudo isto sem cuidar-se na flutuação das receitas,
tais são os fundamentos, não de um teatro-escola, mas do teatro,
na sua acepção mais abstrata. (p. 129)

Como se vê, ele cita desse jornal um comentário referente à política do Estado
Imperial para o teatro feito por Macedo Soares, de cuja opinião discorda
veementemente. Na crônica de 24 de dezembro de 1861, percebe-se que seu comentário
anterior havia provocado debate com esse autor, pois nesta crônica refere-se à resposta a
seu texto anterior:

Devia responder agora aos dous artigos que a respeito do Teatro,


a concorrência e o governo publicou no Correio Mercantil o Sr.
Macedo Soares. Macedo Soares é o verdadeiro nome das iniciais
M.S., com que saiu o primeiro artigo. Permitirá o meu ilustrado
e talentoso contendor que eu fuja ao debate; por convicção de
erro, não; por medo, fora possível, se eu atendesse só a minha
inferioridade pessoal, e não à consideração de que estou no
terreno da verdade. (p. 137)

Contudo, ao invés de envolver-se em uma polêmica com Macedo Soares sobre a


política do Estado a respeito do teatro, o cronista prefere fugir do debate resguardando-
se de responder a seu ilustrado contendor. Tal postura evidencia a intencionalidade do
cronista em priorizar o diálogo com seu leitor e, portanto, explicitar a função de seus
textos como a de se ater a comentar com o leitor as notícias que ambos lêem nos jornais:
"E pelas condições deste escrito não me é dado estabelecer uma discussão sobre a
matéria (...)". Característica peculiar da conversa cotidiana, o cronista enuncia essa
forma de apenas pincelar os assuntos que ambos compartilham em suas leituras na
crônica de 1º de dezembro de 1861:

Poupo ao leitor uma dissertação que tinha muito lugar agora


sobre essa existência, que é o sonho dourado dos filósofos
verdadeiramente amigos da humanidade. Quero antes voltar a
folha, e convidar o leitor a acompanhar-me na dor que, à sua
classe particularmente, e ao país em geral, acaba de causar a
morte de um distinto militar (...). (p. 115)

Nessa citação, vemos sua contenção em aprofundar alguns debates para não
226

cansar seu leitor. Essa fuga de temas densos, que possam cansar tanto o cronista quanto
o leitor, é enunciada na crônica de 12 de outubro de 1861:

Não me cansarei, nem cansarei a paciência dos leitores, em falar


da ópera em si: todos sabem que a música de Auber é
lindíssima, e que o libreto de Scribe, à parte os atentados contra
a história, é uma não mal enredada e bem escrita composição.
(p. 54)

Desse modo, cria no leitor a expectativa do correr da pena que apenas pontuará
alguns temas que possam interessar a ambos, guardando-se de prender-se a alguns deles
e cansar a si e ao leitor. Essa expectativa criada no leitor constitui o gênero como um
texto leve que estabelece o campo ilusório onde o interlocutor está não diante de um
texto em si, mas de uma conversa presencial com o cronista. Essa constituição opera-se
pelo ponto de vista marcado pelas categorias do discurso embreado: categoria actancial
em primeira pessoa, dêixis temporal do presente e dêixis espacial determinada no texto
pelo ato da leitura dos jornais. As categorias temporais e espaciais se estabelecem pelos
comentários que o cronista faz dos jornais publicados naquele momento. A maior parte
dos temas tratados nas crônicas é tirada dos jornais da época, como foi dito, embora na
maioria deles não haja referência explícita como os que aqui expusemos. Contudo, essa
não explicitação evidencia a pressuposição do cronista de que compartilha com seu
leitor a leitura dos temas tratados na crônica.
Ao tratar da tipologia do observador, Bertrand afirma que é no texto e a partir do
texto que se podem identificar a sua posição e seu estatuto 127. Com base em J.
Fontanille, o semioticista francês apresenta quatro tipo de observadores, porém todos
depreendidos da debreagem enunciativa. Interessa-nos para nossa análise o que
Bertrand, a partir de E. Strauss, define como perspectiva do observador. Tal conceito
demarca a inacessibilidade de uma totalidade visada. A experiência sensível do
observador só se opera por meio de uma percepção fragmentada e sucessiva que
atualizam, limitam e especificam a noção de “totalidade”. Operada por meio de uma
apreensão discursiva a perspectiva do observador estabelece uma totalidade virtual pelo
jogo da conjunção “e”, denotando seu caráter particular e fragmentário. Isto é, a

127 A presença do observador se instala no texto. O focalizador-espectador torna-se um ator explícito no


interior do enunciado. Mas seu papel é então exclusivamente cognitivo. Não tem outra função a não
ser construir o espaço figurativo. É, por exemplo, o se anônimo da descrição "realista": "Podeia-se
ver, à direita, etc".(BERTRAND, 2003, p. 125)
227

distância entre o foco perceptivo e a apreensão que se realiza opera-se como síntese de
transição – com base em Merleau-Ponty – na qual a coisa nunca é atingida em sua
completude128.
Desse modo, essa distância entre o foco do observador – o ponto de vista – e a
apreensão do objeto torna-se jogo enunciativo nas crônicas machadianas. O cronista, ao
elaborar as fragmentações temáticas, estabelecendo rearranjos distintos do que se
encontra no jornal e inventando esse campo ilusório em seu leitor como mimetização da
conversa cotidiana, pode reavaliar e desconstruir os valores que se estabelecem
dogmaticamente nas matérias de jornais. Na crônica de 12 de outubro de 1861 da série
Comentários da Semana, fazendo referência a uma matéria do Jornal do Commercio
que trata de mulher acusada de praticar "bruxarias" na revelação de segredos ocultos, o
cronista, menos interessado em defendê-las, estabelece o rearranjo enunciativo que
elabora entre textos distintos, questiona a lógica positivista fundada na crença
cientificista de sua época:

Há dias falou a imprensa de duas mulheres, que existem nesta


corte, e cuja profissão é adivinhar os sucessos do futuro. O tom
com que a imprensa tratou as pobres sibilas calou-me profunda
mágoa no coração. Pobres sibilas, profetisas do que há de vir,
não vos compreenderam, e escarneceram de vossa inspiração!
Eu que professo a crença do maravilhoso, e que não duvido da
capacidade humana, no tocante a devassar o futuro, zombei dos
jornais e do século, e orei comigo mesmo pelas pobres vítimas.
A vossa avó de Cuma, se hoje vivesse, sem duvida teria melhor
do que eu apostrofado os blasfemos.
O que poderia fazer a minha linguagem pálida, hoje, que nem é
possível falar dos deuses, nem adubar uma increpação com
singelas, mas brilhantes, expressões pagãs? Valha a desculpa, se
não vale o canto, como diz o poeta.
Por direito de nascimento pertenço à vossa clientela e o fim
particular que levo nas linhas que aí ficam escritas é pedir-vos
que, com o auxílio da vossa poderosa lente moral, me designeis
qual a sorte desses comentários que vou fazer aos
acontecimentos da semana. Se for boa a predição, tornar-me-ei
forte; se contrária me for, quebrarei a pena e me recolherei á
tenda, como o velho guerreiro, sem me queixar de ninguém.
(ASSIS, 2008d, pp. 53-54)

128 Essa distância entre o foco perceptivo e a apreensão efetivamente realizada constitui um dos
porblemas centrais da fenomenologia da percepção, à qual voltaremos ao estudar a figuratividade. Os
aspectos fragmentários da percepção são chamados "esboços" por Husserl e seu arranjo na apreensão
é uma "composição de esboços"; essa mesma operação é chamada "síntese de transição" por Merleau-
Ponty, precisando que "a ipseidade da coisa nunca é atingida". (p. 127)
228

É o que faz também na análise da polêmica de Scoevola em torno, como vimos,


da diplomacia do Rio da Prata, abordando o objetivismo crítico desse autor por meio da
junção de outros temas, como o casamento da princesa imperial – tema tratado por
Scoevola – e a referência histórica de seu pseudônimo, identificando tanto o lugar
quanto a motivação que orientam a escrita desse autor:

Assim, cheguei a pensar que Scoevola queria tirar desta


solicitude pelas augustas princesas e pelos Estados do Prata as
vantagens a que visam todos aqueles que só vêem este mundo
pelo ponto de vista das armarias heráldicas. A declaração em
contrário de Scoevola em seu último escrito avulta tanto como
um caracol. Scoevola, pelos modos, pertence a certo partido
político que não tem sacrificado muito à sinceridade, e tem
como regra de diplomata que a palavra foi dada ao homem para
esconder os conceitos e as convicções. Terá ele lido no futuro
que a forma monárquica há de vir a estabelecer-se no Rio da
Prata, e quererá desde já mostrar-se o propugnador extremoso
dessa ideia, que considera a única salvadora daquelas
repúblicas? A sua vaidade far-lhe-á ver-se desde já vazado em
bronze a figurar no meio de uma praça do novo reino? Este meio
de perpetuidade alcança longe e alto demais para supô-lo no
espírito de Scoevola. Opto pela primeira impressão. Já o
governo fez ver, em comunicado, ao publicista oficioso quanto
têm de inconvenientes os seus escritos a respeito das repúblicas
do sul. Realmente não me parece patriotismo de boa índole a
enunciação de projetos que significam apenas desejos muito
individuais, e que não respondem à opinião feita do país. (p.
156)

Mesmo as manifestações em negativo feitas por Scoevola provam para o cronista


que para esse a palavra foi dada ao homem para esconder conceitos e convicções. Há
nessa afirmativa uma compreensão do discurso próxima do que observa Bertrand
quando distingue a concepção do discurso entre estadunidenses e franceses, afirmando
que, para estes, a linguagem é "um tecido de mentiras e um instrumento de manipulação
social" (BERTRAND, 2003, p. 99). Além desse rearranjo que faz por meio da
fragmentação das informações, a escolha do discurso embreado, da conjugação de
verbos na primeira pessoa do plural, confundindo propositadamente sua opinião com a
do leitor, as referências enunciadas da fonte de sua informação ou a ocultação delas,
todos esses procedimentos tornam-se, na pena do cronista, instrumentos textuais
determinantes para a reavaliação e a desconstrução dos valores universalizados como
229

verdades em sua época.


Para se compreender a forma desse tipo de discurso é importante observar, com
Bertrand, o jogo de posições enunciativas que determinam seu ponto de vista a partir
das questões que se lançam ao texto sem cair na generalização de tratá-lo – uma vez
visto como ficcional – como discurso narrativo. Embora esse conjunto de operações que
o enunciador efetua para orientar e estruturar seu enunciado seja transversal às
diferentes formas de discurso, Bertrand aponta nele a possibilidade de definição, uma
vez que receba significação específica, embora o semioticista trabalhe apenas com as
três classificações clássicas de discurso: narrativo, descritivo e argumentativo. Seguindo
sua análise, se o discurso dissertativo mantém semelhanças com o da crônica, isto é, a
expressão de um juízo, de uma opinião e a tomada de posição, também se percebem
algumas proximidades com discurso descritivo, pois nele, como na crônica, o ponto de
vista se refere diretamente à atividade perceptiva. É o lugar em que o observador se
posiciona para ver o objeto da melhor forma possível 129. Na crônica de 21 de julho de
1878, o cronista identifica o lugar de onde fala, estabelecendo o distanciamento entre
ele e o leitor: "Já daqui estou a ver franzidas as sobrancelhas liberais do leitor, não mais
liberais do que as minhas, que o são, e de bom cabelo;" (p. 171); ou mesmo na crônica
de 28 de julho de 1878:
Quanto ao leitor, se o vejo daqui a roer as unhas, a contar as
tábuas do teto, a receber bilhetinhos noturnos e lacônicos, vejo-o
sobretudo desgraçado, porque nem entende a consorte, nem a
consorte o entende. Tinham uma só língua, um só costume, um
só parecer; unidade que se rompeu, indo as partes componentes
em direções opostas. (ASSIS, 2008e, P. 181)

A proximidade maior dá-se com o discurso narrativo, uma vez que, como ele, a
crônica estabelece uma focalização tanto interna quanto externa. Também a criação de
personagens que, muitas vezes, toma quase toda a crônica. Na crônica de 11 de agosto,
há duas narrativas quase sequenciais, as quais têm como mote o processo eleitoral: uma
trata do processo eleitoral em Paquetá e a outra – que segue transcrita abaixo – alegoriza

129 No discurso descritivo, o ponto de vista se refere diretamente à atividade perceptiva. A primeira
acepção do dicionário Robert é esta: "lugar onde nos devemos colocar para ver um objeto o melhor
possível". O ponto de vista é, pois, regido pelo observador e seu modo de presença enunciativa. Ele
pode estar completamente oculto ("A Terra é redonda"), pode estar implicado pela indicação da
posição de observação ("Vista da Lua, a Terra é redonda"), pode estar assumido, em focalização
interna, por um ator da narrativa que então toma a si a atividade descritiva ("Qyabdi ela levantou os
olhos [...] percebeu um grande luar, uma poeira de sol, já cheia do burburinho matinal de Paris", E.
Zola, L'assomoir). (pp. 114-115)
230

a participação do Partido Republicano nesse processo:

Havia em Teerã um rapaz, grande gamenho e maior vadio, a


quem o pai disse uma noite que era preciso escolher um ofício
qualquer, uma indústria, alguma coisa em que aplicasse as
forças que despendia, arruando e matando inutilmente as horas.
O moço achou que o pai falava com acerto, cogitou parte da
noite e dormiu. De manhã foi ter com o pai e pediu-lhe licença
para correr toda a Pérsia, a fim de ver as diferentes profissões,
compará-las e escolher a que lhe parecesse mais própria e
lucrativa. O pai abençoou-o; o rapaz foi correr terra. Ao cabo de
um ano, regressou à casa do pai. Tinha admirado várias
indústrias e profissões; entre outras, vira fazer chitas, as famosas
chitas da Pérsia, — e plantar limas, as não menos famosas limas
da Pérsia; e destas duas ocupações, achou melhor a segunda.
— Lavrar a terra, disse ele, é a profissão mais nobre e mais
livre; é a que melhor põe as forças do homem paralelas às da
natureza. Dito isto, comprou umas jeiras de terra, comprou umas
sementes de limas e semeou-as, depois de invocar o auxílio do
sol e da chuva e de todas as forças naturais. Antes de muitos
dias, começaram a grelar as sementes; os grelos fizeram-se
robustos. O jovem lavrador ia todas as manhãs contemplar a sua
obra; mandava regar as plantas; sonhava com elas; vivia delas e
para elas. — Quando as limeiras derem flor, dizia ele consigo,
convidarei todos os parentes a um banquete; e a primeira lima
que amadurecer será mandada de presente ao xá. Infelizmente os
arbustos não se desenvolviam com a presteza costumada; alguns
secaram; outros não secaram, mas também não cresceram.
Estupefação do jovem lavrador, que não podia compreender a
causa do fenômeno. Ordenou que lhe pusessem dobrada porção
d'água; e vendo que a água simples não produzia efeito, mandou
enfeitiçá-la por um mago, com as mais obscuras palavras dos
livros santos. Nada lhe valeu; as plantas não passaram do que
eram; não vinha a flor, núncia do fruto. O jovem lavrador
mortificava-se; gastava as noites e os dias a ver um meio de
robustecer as limeiras, esforço sincero, mas inútil. Entretanto,
ele lembrava-se de ter visto boas limeiras em outras províncias;
e muitas vezes comprava excelentes limas no mercado de Teerã.
Por que razão não alcançaria ele, e com presteza, a mesma
coisa? Um dia, não se pôde ter o jovem lavrador; quis, enfim,
conhecer a causa do mal. Ora, a causa podia ser que fosse a falta
de alguns sais no adubo, ares pouco lavados, certa disposição do
terreno, pouca prática de plantador. O moço, porém, não cogitou
em nenhuma dessas causas imediatas; atribuiu o acanhamento
das plantas... ao sol; porque o sol, dizia ele, era ardente e
requeimava as plantas. A ele, pois, cabia a culpa original; era ele
o culpado visível, o sol. Entrando-lhe esta convicção no ânimo,
não se deteve o rapaz; arrancou todas as plantas, vendeu a terra,
meteu o dinheiro no bolso, e voltou a passear as ruas de Teerã;
231

ficou sem ofício. Conclusão: se soubéssemos um pouco mais de


química social... (p. 202-203)

Nesta crônica, o ponto de vista se estrutura como narrativo, pela seleção da


personagem – um jovem lavrador em Teerã – bem como pelo desenvolvimento do
percurso narrativo; insere-se nela o que Bertrand define como destinador130 que atribui
uma missão ao herói – "o pai disse uma noite que era preciso escolher um ofício
qualquer" – o narrador mantém-se no exterior da narrativa – "Havia em Teerã um rapaz"
– e caminha junto à personagem por meio do uso dos verbos no pretérito perfeito – "O
moço achou que o pai falava com acerto, de manhã foi ter com o pai e pediu-lhe licença
para correr toda a Pérsia, comprou umas jeiras de terra, comprou umas sementes de
limas e semeou-as". Como observa Ricoeur, o narrador coloca seu presente em
sincronia com o da narrativa e exprime por meio dos verbos no passado seus
movimentos, as quais são marcas de um ponto de vista alheio combinadas com a
presença do narrador numa relação de sincronia com a cena da ação.131 A presença do
tempo no passado, excluindo o tempo presente e futuro, a presença de advérbios ou
locuções adverbiais – de manhã, a fim de, ao cabo de um ano, antes de muitos dias,
todas as manhãs infelizmente, noites e dias, Um dia - as quais tecem uma rede
consideravelmente mais fina para a esquematização do mundo narrado (p. 122). Os
predicados de ação – o rapaz foi correr a terra, comprou umas jeiras de terra, comprou
umas sementes de limas e semeou-as, ia todas as manhãs contemplar a sua obra,
mandava regar as plantas, sonhava com elas, vivia delas e para elas. Esse predicado de
ação, como observa Ricoeur, vai das modalidades, isto é, o dever e o poder fazer às
atitudes, gostar de fazer. A narrativa torna-se possível, pois opera a transição do
predicado de ação à sequência, estabelecendo a síntese entre semelhança e diferença que
interliga dois fatos sem que esses possam se identificar. Ricoeur a define como síntese

130 Geralmente a posição do Destinador nas narrativas etnoliterárias (mitos, contos, rituais, etc.) é a
tal ponto caracterizada pela estabilidade, que não se imagina que ele possa escapar às obrigações
programadas de seu papel. Emoldurando o relato, situa-se nos dois extremos da cadeia narrativa: é ele
que atribui uma missão ao herói no momento do contrato, é ele que reconhece e avalia a ação
concluída no momento da sanção. Papel cristalizado e permanente no universo do conto, o Destinador
é o grande regulador que encarna o pano de fundo axiológico, definindo o desejável, o temível e o
odiável logo de início, e avaliando ao final do percurso a conformidade das ações realizadas.
BERTRAND, D. 2003, P. 342
131 Ele pensava, ele sentia etc." Um pequeno número de marcas formais bastam: "aparentemente",
"evidentemente", "parecia que", "como se". Essas marcas de um ponto de vista "alheio" são
geralmente combinadas com a presença de um narrador colocado numa relação de sincronia com a
cena da ação. (RICOEUR, 2010, v. 2, p. 165)
232

do heterogêneo no plano da compreensão narrativa132.


Contudo, ao colocarmos essa narrativa em seu contexto – entendendo-a como
alegoria do Partido Republicano - o gamenho vadio estabelece similaridades com os
aristocratas, plantadores de café no Vale do Paraiba que montaram em 1870 o Partido
Republicano e passam a atribuir todos os problemas políticos ao poder moderador do
Imperador D. Pedro II. Vemos que a narrativa fica subordinada aos comentários da
crônica. Citando Harald Weinrich, Ricoeur estabelece a distinção entre narrar
(erzählen) e comentar (besprechen). A partir da situação de locução diferentemente
caracterizada, o comentário opera o tensionamento do texto e, portanto, seu
engajamento, enquanto que a narrativa opera a distensão e o distanciamento. 133. No
comentário, os tempos verbais que são o presente, o passado e o futuro, enquanto que,
na narrativa, o passado, imperfeito, perfeito, mais que perfeito e futuro do pretérito. Em
francês há uma diferença entre o passé composé e o passé simple, sendo este
característico do discurso narrativo, enquanto que o passé composé caracteriza o
discurso comentado. No caso da língua portuguesa, não há essa distinção. São esses
tempos que sinalizam ao leitor quando se trata de um comentário e de uma narrativa.
Mesmo quando há narrativa na crônica, essa tensão não é totalmente distendida, pois,
quando a utiliza, o comentador o faz por meio da narrativa fantástica e da alegoria,
subordinando a narrativa ao comentário. De modo que, mesmo nos procedimentos
intertextuais em que o cronista faz referência ao passado, ou nos discursos narrativos, é

132 Essa tese encontra certo apoio no uso que Todorov faz do conceito de transformação narrativa
("Les transformations narratives", in Poétique de Ia prose, op. cit.). A vantagem é combinar o ponto de
vista paradigmático de Lévi-Strauss e de Greimas com o ponto de vista sintagmático de Propp: entre
outros efeitos, a transformação narrativa duplica os predicados de ação (fazer), indo das modalidades
(dever, poder fazer) às atitudes (gostar de fazer). Além disso, torna possível a narrativa, operando a
transição do predicado de ação à sequência, enquanto sintese de diferença e semelhança; em suma,
"ela interliga dois fatos sem que esses possam se identificar" (ibid., p. 239). Essa sintese é nada mais
nada menos, a meu ver, que aquela já operada e entendida como síntese do heterogêneo no plano da
compreensão narrativa. Concordo mais uma vez com Todorov quando opõe transformação a sucessão
("Les deux principes du récit", in Les Genres du discours, op. cit.). É certo que a noção de transformação
parece dever filiar-se à racionalidade narratológica. diferentemente de minha noção de configuração,
que me parece fazer parte da inteligência narrativa. A rigor, só poderemos falar de transformação se
lhe dermos uma formulação lógica. Entretanto, na medida em que a narrativa dá lugar a outras
transformações além da negação, de que dependem disjunções e conjunções, por exemplo a passagem
da ignorãncia ao reconhecimento, a reinterpretação de acontecimentos já ocorridos, a submissão a
imperativos ideológicos (ibid., pp. 67 ss.), parece difícil dar um equivalente lógico a todas as
organizações narrativas cuja competência adquirimos em razão de nossa familiaridade com as intrigas
tipo herdadas de nossa cultura. (p. 82-83 - Nota de rodapé)
133 A "situação de locução" (Sprechsituation) preside a primeira distinção entre narrar (erzahlen) e
comentar (besprechen). Essa é de longe, para nós, a mais importante; é ela que fornece ao original
alemão seu subtítulo: Besprochene und erzahlte Welt. Corresponde a duas atitudes. de locução
diferentes, caracterizadas, no comentário, pela tensão ou pelo engajamento (gespannte Haltung), e na
narrativa, pela distensão ou pelo distanciamento (entspannte Haltung). (p. 115)
233

do presente da informação que ele se ocupa, fazendo com que o leitor entenda o passado
como tal sem se subtrair a ele134, de modo que passado e narrativa na crônica não se
identificam.
Bertrand chama a atenção para o modo como o nouveau roman desmorona a
arquitetura enunciativa, na medida em que dá ao leitor a impressão de um universo
embaralhado, fazendo desaparecer os procedimentos de referencialização interna que
caracteriza o discurso narrativo. A partir de suas leituras de Lukács, Bakhtin, Ricoeur e
Kundera, afirma ter o romance moderno nascido com Rabelais e Cervantes, os quais
romperam com esses procedimentos narrativos tradicionais, bem como com a adesão a
seus valores, uma vez que a perspectiva das personagens centrais nesses romances já
não é aquela aprioristicamente representativa dos valores coletivos da esfera social 135.
Considerando os flagrantes que a crítica machadiana tem feito ao aproximar Memórias
Póstumas de Brás Cubas desses romances da tradição da sátira da menipeia e
acolhendo a análise feita por Bertrand, parece-nos que os laços de proximidade entre os
procedimentos discursivos da crônica com Memórias Póstumas se afinam cada vez
mais. Nesse sentido, o comentarista deste romance personificado no autor defunto
estabelece similaridades profundas com os diferentes cronistas machadianos que o
antecedem por meio desses procedimentos discursivos.
Contudo, essa proximidade entre As., M. A. (Muito Abelhudo), Gil, Eleazar,
Manassés e Brás Cubas, Bento Santiago e Conselheiro Aires não poderia nos colocar
diante de outras diferenças? É importante retornar ao conceito de destinador
apresentado anteriormente. Conforme Bertrand, o destinador é inicialmente aquele que
faz crer, faz saber e faz poder, propondo valores e suscitando a adesão do sujeito. O
destinador é o grande regulador que encarna o pano de fundo axiológico e define o
desejável, o temível e o odiável a seu destinatário. É também uma posição actancial
inscrita no percurso narrativo e, conforme Bertrand, modulável, instável e sujeita a
transformações expostas ao reconhecimento de seu estatuto pelos sujeitos do discurso.
Principalmente em Memórias Póstumas, o narrador que também é autor e personagem

134 No comentário, ocupo-me no presente de uma informação retrospectiva; portanto, os tempos


retrospectivos abrem o passado à nossa influência, enquanto a narrativa o subtrai dela. Debater sobre o
passado significa prolongá-lo no presente. (p. 119)
135 Ora, como os teóricos da literatura demonstraram (de Lukács e Bakhtin a Ricoeur e Kundera), o
romance moderno foi criado quando, com Rabelais e Cervantes, a narrativa rompeu com a adesão a
esses valores, ao adotar a perspectiva de uma outra personagem central que não-aquela que é a priori
representativa dos valores coletivos da esfera social, introduzindo assim a ironia na origem da escrita
romanesca da modernidade: Panurge, por exemplo, - em O terceiro-livro, ou Sancho em Dom
Quixote. (BERTRAND, 2003, p. 289)
234

esforça-se na introdução da obra para legitimar-se como tal e, portanto, operar os


discursos por meio dessas três categorias. Nesse sentido, a narrativa de Memórias
Póstumas não poderia ser entendida como discurso manipulador?
235

CAPÍTULO 3 - O DISCURSO COTIDIANO DAS CRÔNICAS

O cotidiano de cada indivíduo está inserido nesse universo de


discursos. E é a partir dessa materialidade discursiva que se
constitui sua subjetividade. Logo, a subjetividade nada mais é
que o resultado da polifonia, das muitas vozes sociais que cada
indivíduo "recebe" e tem a condição de "reproduzir" (paciente)
e/ou de reelaborar (agente).
Maria Aparecida Baccega, Palavra e Discurso, História e
Literatura, p. 22

Em nossa dissertação – já aqui citada – havíamos observado que o gênero


crônica, caracterizando-se como gênero híbrido, é marcado pela ideologia do cotidiano
e por saberes sujeitados. O conceito ideologia do cotidiano136, utilizado como título da
dissertação citada, é retirado da obra de Mikhail Bakhtin o qual define como encontro
desordenado da palavra interior com a palavra exterior, considerando que o indivíduo
apresenta-se como um fenômeno sócio-ideológico e que, portanto, os discursos
individuais são determinados por discursos sociais que "acompanham cada um dos
nossos atos e gestos e cada um de nossos estados de consciência" (BAKHTIN, 1999, p.
118). A partir da discussão sobre o conceito de expressão, no qual critica a teoria da
expressão que se fundamenta na noção de que ela se constrói no interior, sendo sua
exteriorização apenas sua tradução, o crítico russo afirma que não é a atividade mental

136 Ao analisarmos os modos de funcionamento dos diferentes saberes (saberes sujeitados, saberes
legitimas, saberes sepultados) dos quais Foucault trata em sua obra, aproximando-os ao conceito de
ideologia do cotidiano analisado por Mikhail Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem cabe
aqui uma observação sobre ideologia nos termos foucauldianos e bakhtinianos. Em Bakhtin, o uso da
palavra ideologia se contrapõe ao conceito de psicologia, por não considerar o discurso como
determinado por fatores individuais e orgânicos, mas puramente sociológicos. Portanto, a atividade
central do indivíduo, longe de ser determinado por fatores psíquicos como o querem os idealistas com
quem Bakhtin polemiza, é determinada por fatores históricos e sociais, cuja constituição se dá no
domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada em nenhum sistema e, à medida que
não é determinada por nenhum sistema, se opõe ao que Bakhtin chama de sistemas ideológicos
constituídos. Michel Foucault observa a problemática da palavra ideologia por três razões: primeiro
porque ideologia está sempre em oposição a algo que seria a verdade e, nesse sentido, prefere não
fazer a divisão entre o que proveria da cientificidade e da verdade e aquilo que proveria de outra
coisa, mas ver historicamente como se produzem efeitos de verdade dentro do discurso que não são
em si mesmo nem verdadeiros, nem falsos; segundo, porque a palavra ideologia refere-se a algo assim
como o sujeito; terceiro, porque a palavra ideologia é usada em uma posição secundária em relação a
algo que funciona para ela como infraestrutura ou determinante econômico, material. Por essas três
razões Foucault observa que não se deve usá-la sem uma certa precaução. Nesse sentido, tanto a
história do saber, quanto as formas de exercício do poder é para Foucault uma história de práticas e
não de ideologias (Ditos e Escritos, volume 3, p. 148). Desse modo, e seguindo a precaução observada
por Foucault, definimos o conceito da palavra ideologia ao sentido restrito definido por Bakhtin, isto
é, como oposta ao conceito de psicologia usada tanto pela literatura marxista do contexto de Bakhtin,
quanto pela filosofia idealista romântica à qual ele se opõe, como discursos construídos histórica e
sociologicamente.
236

que organiza a expressão, mas a expressão é que organiza a atividade mental,


modelando e determinando sua orientação. A partir disso, afirma que o nosso mundo
interior se adapta às possibilidades de nossa expressão, aos seus caminhos e orientações
possíveis, resultando disso a ideologia do cotidiano como a totalidade da atividade
mental centrada sobre a vida cotidiana, sendo essa ideologia constituída pelo domínio
da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num sistema a acompanhar cada
um dos nossos estados de consciência. Para Bakhtin, os sistemas ideológicos
constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da
ideologia do cotidiano e, em retorno, buscam exercer sobre essa ideologia uma forte
influência para lhe dar o tom. Embora esses sistemas ideológicos alimentem-se da seiva
da ideologia do cotidiano e tentam determinar seu tom, constantemente são deslocadas
e forçadas a uma reatualização de modo contínuo e ininterrupto. Em outras palavras, se
os sistemas ideológicos se cristalizam dessa seiva cotidiana e tentam normatizá-la,
constantemente, precisam se reatualizar, visto que a ideologia do cotidiano está
constantemente em movimento.
Michel Foucault, em sua obra Em Defesa da Sociedade ao tratar do método de
sua pesquisa que resultou no curso ministrado de janeiro à março de 1976 no Collège de
France, chama a atenção para o surgimento de uma crítica local por aquilo que define
como reviravoltas do saber, isto é, a insurreição dos saberes sujeitados. Com a fórmula
saberes sujeitados define duas coisas: a primeira, conteúdos históricos que foram
sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações funcionais, isto
é, blocos de saberes históricos e funcionais presentes e disfarçados no interior dos
conjuntos funcionais e sistemáticos, os quais começaram a reaparecer por meio dessa
crítica local; a segunda, uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes
não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados dentro de uma hierarquia
de conhecimento e cientificidade requeridos. Essa segunda definição é exemplificada
como os saberes dos psiquiatrizados, do doente, do enfermeiro, do médico,
marginalizado pelos saberes oficiais (FOUCAULT, 2002, pp. 10-12).
Ao lermos as crônicas machadianas, sobretudo as da série Ao Acaso, História de
Quinze Dias, História de Trinta Dias e Notas Semanais, que tratam das questões
políticas a partir do conceito de política amena, com o significativo aumento de casos
cotidianos em detrimento do tema da política e das artes conforme observamos
anteriormente, entendemos o deslocamento feito no campo do saber que consiste na
focalização dos saberes oficiais por meio desses saberes de pessoas não autorizadas a
237

produzirem saberes. Dois exemplos já citados anteriormente, reforçam esse


deslocamento operado pelo cronista. O primeiro deles refere-se à crônica de 9 de junho
de 1878 da série Notas Semanais a respeito da comissão que irá discutir o novo código
civil:

Mal se falou numa comissão para rever o projeto de código


civil, começaram a afluir de todas as partes indicações e
designações ao Sr. ministro da justiça.
Cada manhã traz nas asas úmidas um jurista apropriado ao
mister. Prenez mon ours, é o dito invariável dos recadinhos que
S. Excia. recebe antes do almoço; e não escritos por mão dos
próprios senão de outros, porque há sempre amigos anônimos,
dedicações obscuras, corações serviçais.
Pela minha parte, dispenso a intervenção de ninguém; apresento-
me eu próprio, disposto a cortar na ampla toga de Nabuco um
colete para uso da minha glória pública e doméstica. Coletes de
fazenda vulgar, qualquer os pode ter, à sua custa; mas um bom
colete de seda, é privilégio dos talentos másculos. Prenez mon
ours. (ASSIS, 2008e, p. 100)

Ao se propor como candidato à comissão, o cronista evidencia o modo como


esses nomes são discutidos e possivelmente escolhidos: não se deve à competência
individual que os qualifique para compô-la, mas indicações trazidas nas asas úmidas da
manhã. Segundo o cronista, o Ministro da Justiça recebia antes do almoço, vários
recadinhos, contendo o dito prenez mon ours. Conforme Gledson e Granja informam
em nota de rodapé, esse adágio refere-se à comédia de Scribe - L'ours et le pacha. Ao
pé da letra significa "leva meu urso", mas cujo significado figurado é livrai-me disso. A
crítica à forma de indicação feita pelo cronista por meio da intertextualidade evidencia
um pedido, mascarado de recusa. Por isso, e conforme vimos na referência intertextual a
um dos milagres de Cristo, o cronista afirma-se capaz por estar disposto a cortar na
ampla toga de Nabuco um colete para uso da minha glória pública e doméstica,
fazendo o contrário dos que se mostram interessados na Comissão e, por meio do
rebaixamento, opera a ironia. O segundo exemplo encontramos na crônica de 14 de
julho de 1878 da mesma série, na qual o cronista trata da reforma judiciária. Para tanto,
alegoriza o tema, afirmando ter encontrado um vulto feminino na rua a entregar uma
chave falsa para um gatuno, figura que depois reconheceu como sendo a reforma
judiciária. A alegoria é feita a partir da citação de um outro artigo publicado no Jornal
do Comércio sobre o tema que, conforme notam Gledson e Granja, era carregado de
238

linguagem empolada e assinado por um lavrador de Porto Novo de Cunha. Ao tratar da


reforma judiciária a partir do lugar da rua e da Comissão, evidenciando por meio da
intertextualidade e do rebaixamento o modo como os nomes para essa Comissão eram
indicados, o cronista opera saberes não oficiais e cotidianos como procedimento de
desconstrução desses saberes e poderes oficiais.
Como define Lúcia Granja em sua obra Machado de Assis: um escritor em
formação, o cronista escolhe entre os diversos assuntos da semana aqueles que lhe
despertam maior interesse. Seu texto, portanto, se reelabora como ato de leitura das
notícias dos jornais, constituindo a escritura da crônica como reorganização da realidade
por meio da pena do cronista137. O hibridismo da crônica resulta da junção da
objetividade e informação do jornalismo e a subjetividade da literatura. Ricoeur observa
que essa referência ao real cotidiano, característica do texto jornalístico, na crônica "é
abolida para que seja liberado outro tipo de referência a outras dimensões da realidade"
(RICOEUR, 2005, p. 225-226). Ao tratar da constituição da subjetividade pelo discurso,
Maria Aparecida Baccega, em sua obra Palavra e Discurso: História e Literatura,
observa que o cotidiano de cada indivíduo insere-se nesse universo de discursos, em
cuja materialidade discursiva constitui-se a sua subjetividade, isto é, conforme a autora,
a subjetividade resulta da polifonia das muitas vozes sociais que cada indivíduo recebe
e, a partir dela, reproduz e reelabora estabelecendo com essa polifonia de vozes os
papéis de agente e paciente138. É a partir dessa polifonia que o cronista opera o
hibridismo como material ficcional de seus textos, evidenciando esses saberes
sujeitados recolhidos do cotidiano.Partindo também do conceito de ideologia do
cotidiano de Bakhtin, Baccega define o cotidiano como a vivência no tumulto de
expressões que materializam a vida social e o mundo interior do indivíduo. Portanto, é
no cotidiano que se pode perceber o processo de mudança social e o surgimento de
novos sentidos, mesmo que operados lentamente. Logo, o papel do cronista é o de
evidenciar essas vozes sociais desautorizadas da produção do saber, mas potência de
ressignificação e transformação de valores.

137 A crônica escolhe por entre os diversos assuntos da semana aqueles que lhe oferecem maior
interesse, reorganizando os fatos nessa narrativa, evidência que não se pode negar. Nessa
reorganização da realidade está presente a pena do cronista, que escolhe, reproduz, elege para o
comentário esse ou aquele assunto. Não há um tema que a norteie preferencialmente, nem mesmo a
política, a qual pode até estar ausente em alguns dos textos. (GRANJA, 2000, p. 27)
138 O cotidiano de cada indivíduo está inserido nesse universo de discursos. E é a partir dessa
materialidade discursiva que se constitui sua subjetividade. Logo, a subjetividade nada mais é que o
resultado da polifonia, das muitas vozes sociais que cada indivíduo "recebe" e tem a condição de
"reproduzir" (paciente) e/ou de reelaborar (agente)(BACCEGA, 2000, p. 22)
239

Esses processos de deslocamento do tema da política, da arte, da religião


operados pela crônica por meio de saberes sujeitados na dinâmica do que Bakhtin define
como ideologia do cotidiano correspondem ao modelo característico desse diálogo entre
cronista e leitor o qual definimos como modelo descontínuo. Se o funcionamento
retórico dos discursos oficiais se estabelece a partir de padrões em que o jogo do
silogismo propõe premissas que visam conclusões a justificarem a arbitrariedade da
política, legitimando os abusos e absurdos dos poderes oficiais, o modelo descontínuo
da crônica opera os deslocamentos por meio do paradoxo entre os saberes oficiais e
saberes sujeitados que concorrem na avaliação da política para acentuar suas
contradições, evidenciar sua arbitrariedade e denunciar seus abusos e absurdos. Cabe
observar que por modelo descontínuo não se trata de propor um padrão de
funcionamento ou uma regra engessada a limitar o ato criativo do discurso da crônica;
pelo contrário, o modelo descontínuo é o método pelo qual o discurso da crônica opera a
dispersão dos discursos oficiais, resultando muitas vezes em aporia e levando o leitor a
uma suspensão dos valores como forma de desconstrução dos discursos oficiais que
muitas vezes toma como discurso legítimo. À medida que o método composicional do
cronista se opera pelo modelo descontínuo como efeito de diferentes procedimentos
aqui analisados, os saberes oficiais tidos pelo leitor como legítimos são colocados em
suspensão, tendo como efeito de sentido o questionamento da sua percepção de verdade.
O autor inicia a crônica do dia 1º de novembro de 1877, da série História de
Quinze Dias, definindo-lhe a estrutura:

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica;


mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das
primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a
merenda, sentaram-se à porta para debicar os sucessos do dia.
Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia
que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais
ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às
plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias
do dito morador, e ao resto, era a cousa mais fácil, natural e
possível do mundo. Eis a origem da crônica. (ASSIS, 2009a, p.
253-254).

Ao definir o modo de estruturação do gênero por meio do exemplo alegórico,


evidencia o caráter cotidiano e subjetivo da crônica operado em torno de temas
objetivos. À medida que as vizinhas tratam de temas do real cotidiano, o caráter
240

subjetivo e despretensioso permite que rompam com essa referência ao real por meio da
reestruturação que, na crônica, é evidenciada como assunto puxa assunto. Desse modo,
o discurso da crônica rompe com a noção comum de referência para estabelecer outro
tipo de referência mediado pela linguagem, isto é, ao invés de ser orientada em direção
à realidade, "torna-se ela mesma material como o mármore para o escultor" (RICOEUR,
1005, p. 320). Affonso Romano de Sant'Anna, ao tratar do tema da loucura em Esaú e
Jacó, O Alienista, Quincas Borba e Memórias Póstumas de Brás Cubas, observa que,
nessas obras, a temática da loucura conjugada com a da razão se entreabre de modo
complexo e insólito à medida que o autor, ao invés de opô-las como elementos
irreconciliáveis, mas evidenciando a sua relatividade por meio do estranhamento dos
conceitos cotidianos da ideologia vigente de modo sistemático em todos os níveis de
sua análise139. No exemplo acima citado sobre a definição da crônica, há uma
característica importante sobre o discurso cotidiano, com base em Bertrand, que,
embora de forma mais enfraquecida que o discurso poético, o discurso cotidiano opera-
se por meio de uma organização vasta de campos conceituais fundamentados na
figuratividade, a exemplo das "numerosas metáforas espaciais chamadas de
'orientação', tão recorrentes no dia-a-dia" (BERTRAND, 2003, p. 216).
Não somente a crônica é apresentada a partir desse movimento discursivo
ficcional, como também os temas tratados nela são abordados a partir de sua
estruturação discursiva. Nesse mesmo sentido, observa Reboul que a verdade do
discurso não passa de um acordo entre interlocutores, acordo que permite a discussão e
sem o qual ela não é possível140.
Em crônica de 16 de junho de 1878, ao tratar do congresso agrícola, convocado
pelo ministro da Agricultura, o cronista problematiza as relações políticas que
ameaçavam surgir no congresso e a necessidade de uma discussão mais prática sobre os

139 Tanto em Plácido (Esaú e Jacó) quanto em Simão Bacamarte (O alienista), como em Quincas Borba e
Brás Cubas a temática da loucura conjugada com a razão se entreabre de modo complexo e insólito.
Deixando de opor esses elementos como inconciliáveis, como quer o modelo ideológico, ele mostra a
relatividade de um e outro, configurando a loucura da razão e as razões da loucura, sem optar
maniqueisticamente por um dos elementos em torno da barra, pois sabe que ambos os termos da
proporção estão contaminados por definições ideológicas das quais procura se afastar. O que faz,
então, é estranhar os conceitos cotidianos, a ideologia vigente. E esse estranhamento não sendo
esporádico, mas sistemático, acaba por se dar em todos os níveis da análise. (SANT'ANNA, 2012, p.
222).
140 Deve-se a eles a idéia de que a verdade nunca passa de acordo entre interlocutores, acordo final
que resulta da discussão, acordo inicial também, sem o qual a discussão não seria possível. A eles se
deve a insistência no kairós, momento oportuno, ocasião que se deve agarrar na fuga incessante das
coisas, ao que se dá o nome de espírito da oportunidade ou de réplica vivaz, e que é a alma de
qualquer retórica viva. (REBOUL, 2000, p. 9)
241

problemas que seriam tratados: "Venhamos à política prática, útil, progressiva; metamos
na alcofa os trechos de retórica, as frases-feitas, todos os fardões da grande gala
eleitoral. Não digo que os queimemos, demo-lhes somente algum descanso." (ASSIS,
2008e, p. 115)
Em uma primeira leitura, parece que o cronista estabelece a tensão entre as
discussões vazias e a necessidade prática da política, mas, no contexto da crônica, esse
trecho aponta para o caráter do discurso (retórica) que mediatiza as relações políticas
com as necessidades práticas. Também não se trata aqui de uma tensão entre retórica e
realidade, mas a evidência de que o jogo retórico no Parlamento é estéril, pois o
objetivo são os fardões da grande gala eleitoral e não os efeitos práticos da política na
vida cotidiana. Ironizando, evidencia a condição material da linguagem que mascara os
jogos de interesses individuais ou de grupos, os quais certamente determinariam o ponto
central desse Parlamento. Na crônica do dia 30 de junho de 1878, põe em
questionamento a informação tratada a partir da mediação da linguagem: "A 'tribuna
parlamentar', que é uma simples poltrona do mogno, deve abrir-nos os olhos. A
metáfora é um abscesso nas organizações políticas; convém rasgá-lo ou resolvê-lo, e
voltarmos à frase sadia e nua: pão, pão; queijo, queijo." (p. 137)
Isto é, ao personificar o lugar da política como sujeito político, o cronista
evidencia que a política parlamentar não passa de um jogo permeado por metáforas
estranhas às necessidades do país. Ao retomar os acontecimentos noticiados tanto na
cidade de Chique-Chique quanto em Macaúbas como resultados das disputas eleitorais,
o cronista coloca em dúvida a veracidade da notícia a partir da ficcionalização do
discurso jornalístico:

Lastimei as desgraças de Chique-Chique: não me atrevo a


lastimar a 2ª edição das de Macaúbas. Começo a suspeitar que a
luta travada nessas duas vilas é uma simples metáfora de
estudantes de retórica. É sabido que, em geral, quando um
correspondente escreve estas solenes palavras: "a província está
ardendo," - quer dizer simplesmente que foram demitidos dois
subdelegados; e quando diz: "o povo dorme tranquilo à sombra
da paz" anuncia, de um modo poético, a nomeação de outros
dois. (p. 137)

Zumthor, ao tratar da relação de texto e leitor, define-a como contrato social que
se estabelece entre autor e leitor por meio do texto e observa os três pontos importantes
que determinam o que ele chama de elemento ritual: o autor tem de ser identificado
242

como tal, o público deve estar familiarizado com os temas tratados e o texto também
deve ser identificado como tal141. No caso do jornal, esse elemento ritual se define pelo
reconhecimento do texto jornalístico pelo leitor como fonte de informação “verdadeira”.
É, como define Bertrand, esse modelo que define o contrato de veridicção,
estabelecendo a relação de confiança que permite o compartilhamento de crenças no
interior do discurso, possibilitando a manipulação da notícia.
No contexto em que Machado de Assis escreve essas crônicas em análise (1860-
1880), havia dois grandes partidos: o Partido Liberal e o Partido Conservador. A
imprensa era determinada por essa divisão política de modo que o Diário do Rio de
Janeiro, a Ilustração Brasileira e O Cruzeiro, nos quais escreveu esse conjunto de
crônicas, eram jornais liberais; do outro lado, havia o Jornal do Comércio, o qual
diversas vezes foi alvo de ataques do cronista. Assim, o auditório do cronista eram,
sobretudo, leitores afinados com o Partido Liberal. Contudo, é o discurso do jornal em
que escreve – Ilustração Brasileira – que o cronista põe em questionamento,
comentando seu estatuto veridictório no exemplo anteriormente citado. Com isso, o
discurso torna-se o lugar frágil onde se introduzem e se leem a verdade e a falsidade, a
mentira e o segredo a partir desse acordo implícito entre autor e leitor142. Marialva
Barbosa, em sua obra História Cultural da Imprensa: Brasil 1800-1900, ressalta essa
formação do auditório na relação entre leitores e jornais determinada pelas mensagens
que veiculam. O texto veiculado pelo jornal é dirigido a um leitor desconhecido e
universal, mas à medida em que é lido determina seu público e alarga o círculo de
atuação que permite novos modos de elaborar a comunicação. Citando o conceito de
autonomia semântica definida por Paulo Ricoeur, Barbosa observa a distância entre a

141 Isto mesmo supõe a necessidade e a convergência de três elementos, constitutivos de toda
literatura e também da poesia, em sua universalidade. Por um lado, um grupo de produtores de
textos, fabricando objetos que se poderia qualificar poéticos ou literários. Esses produtores s ão
assim identificados pelo grupo. Segundo, um conjunto de textos que sejam socialmente
considerados como tendo um valor em si próprios. Esse valor que qualificamos de literário ou
poético, poderia, em outros contextos culturais, receber uma outra espécie de designação,
assinalando uma utilidade toda particular. Enfim, terceiro elemento necessário, a participação
de um público, recebendo esses textos como tal. Em cada um desses pontos articula-se um
elemento ritual: textos identificados como tal, produtores assim identificados, público iniciado.
(ZUMTHOR, 2007, p. 47)
142 O discurso é esse lugar frágil em que se introduzem e leem a verdade e a falsidade, a mentira e o
segredo; [...] equilíbrio mais estável ou menos, proveniente de um acordo implícito entre os dois
actantes da estrutura da comunicação. É esse entendimento tácito que é designado pelo nome de
contrato de veridicção. Greimas. Du sens II. Essais sémiotiques, p. 105, citado por BERTRAND,
2003, p. 239
243

intenção do autor e a significação do texto por meio da solicitação143 da leitura144.


Ao tratar de um telegrama noticiado na imprensa pela agência Havas, instituição
responsável por noticiar acontecimentos ocorridos na Europa, o cronista critica sua
veracidade, na crônica de 15 de agosto de 1877, após essa mesma agência desmentir a
notícia dada anteriormente sobre a proposta do governo da Inglaterra de doar 4 mil
libras em ajuda às vítimas da seca no Ceará:

A vocação do telégrafo é um logro. Ele pode acertar muitas


vezes ou aproximar-se da verdade; mas o logro é a sua vocação.
Essa quinzena foi a das 4.000 libras do parlamento inglês.
Quando a agência Havas nos disse gravemente que o governo da
Inglaterra propusera 4.000 libras para o Ceará, houve pasmo e
agradecimento nas fisionomias. O caso era novo; mas os
desastres do Ceará são vulgares? Toda a gente fiou-se na palavra
da agência, cuja gravidade, veracidade e universalidade são
conhecidas. Vai se não quando descobre-se que não houve
pedido inglês, de libras inglesas ao parlamento inglês. Era o
inverso do nosso adágio. O telegrama era só para brasileiro ver.
É certo que a agência Havas não se explicou ainda a este
respeito; mas devemos acreditar que, se nós pasmamos com a
afirmação, ela deve ter pasmado com a reificação, e o efeito nela
deve ser maior (ASSIS, p. 2009a, p. 229)

Ao chamar a atenção do leitor para essa ocorrência de desencontro das


informações, o comentarista estabelece a ironia ao acentuar a fragilidade do pressuposto
que o leitor tem sobre as informações passadas pelo telégrafo. Não se trata somente de
um erro ou de um fato acidental, mas de uma condição determinante da vocação do
telégrafo. A mesma crítica faz na crônica de 23 de junho de 1878, após tratar do

143 O conceito solicitação é trabalhado por Abel Barros Baptista em sua obra Autobibliografia, cuja
importância nessa autonomia semântica do texto é fundamental para compreender os efeitos de
sentidos na relação entre texto e leitor. Retomaremos essa discussão, bem como apresentaremos a
definição do conceito de solicitação mais à frente.
144 Essa relação dos leitores com os jornais mostra o caráter significativo das mensagens que
veiculam. Em princípio, um texto escrito é dirigido a um leitor desconhecido e universal. Mas a obra
cria o seu público, alargando o seu círculo de atuação e iniciando novos modos de comunicação. Ao
estabelecer esse contato, o leitor deixa claro que um auditório está sendo formado. O texto abre-se a
um número indefinido de leitores e, por conseguinte, de interpretações, que depednem em grande
parte da forma como é apreendido. o texto impresso pode atingir o leitor no ambiente solitário, longe
da sociabilidade peculiar que a leitura em voz alta permite, ou, transmitido pela voz, indicar a
presença próxima de um outrem que influencia na compreensão daquela mensagem. O que é lido, é,
muitas vezes, oralmente, transmitido a outros. E, mais uma vez, indiretamente, alarga-se o número de
leitores, através da oralidade. O texto transmitido pelos jornais é, assim, também discurso falado, cuja
força de locução e de compreensão depende não apena dos aspectos articulados do discurso, mas da
mímica, dos gestos, de elementos não articulados, aquilo que alguns autores chamam de prosódia
(Ricoeur, s/d, 38-39) (BARBOSA, 2010, p. 213)
244

telégrafo e do fonógrafo; tal crítica, porém, é feita de forma indireta por meio da ficção
fantástica:

Falei no telégrafo e no fonógrafo ; é ocasião de dizer, que


também eu trabalho em um invento que deitará por terra todos
os anteriores. Provavelmente o leitor já teve notícia do
microfone, um instrumento que dá maior intensidade ao som e
permite ouvir, ao longe, muito longe, até o vôo de um mosquito.
Leram bem: um mosquito. Não tarda outro que nos faça ouvir o
germinar de uma planta e até o alvorecer de uma ideia. Talvez
cheguemos à perfeição de escutar o silêncio.
Ora bem, o meu invento se o concluir, é tão sutil como esses, e
muito mais útil. Ouvir o vôo do mosquito pode ser uma
recreação aceitável, mas não dá o ínfimo proveito; é indiferente
à moral, e pode ser até que ao progresso científico. O
instrumento da minha invenção serve para a conversação, não
remota, senão próxima; aplica-se ao coração dos outros - dos
amigos, por exemplo, - e ao passo que a gente vai ouvindo as
expressões da língua, o instrumento vai transmitindo as
expressões do músculo. O resultado é muita vez a mais
formidável cacofonia. Um exemplo:
PELA BOCA: - Deixa-te disso; bem sabes que entre ti e o Palha
não posso, nem devo hesitar: seria esquecer a tua velha amizade.
PELO INSTRUMENTO: - Vale tanto um como outro; e bem
tolo fora eu.
PELA BOCA : - Quando quiseres, escreve-me um bilhete, duas
linhas. Vai jantar comigo amanhã,sim? Vai; quero tomar uma
barrigada de riso; lembras-te? Pois é verdade; fia-te em mim. . .
PELO INSTRUMENTO: - E não corras.
PELA BOCA: - Adeus; lembranças à família. Olha lá, vê se te
esqueces agora da carta. .. adeus!
PELO INSTRUMENTO: - Uf!
Dei a ideia do instrumento. Bem aplicado, forra-se um homem a
delongas e desencantos; separa o trigo do joio; vê os que o
amam e os que o empulham; e em relação a estes, faz uma de
duas coisas: ou lança-os de si, o que é ridículo, - ou empulha-os
também, o que é imoral. Choisis, si tu l'oses. Aplicado ao amor,
este instrumento é a última palavra; pode ser também
empregado nos negócios, na propaganda política, em tudo o que
traga relações pessoais. Palpita-me que vou fazer uma
revolução. (ASSIS, 2008e, p. 125)

Ao parodiar a criação do telégrafo e do fonógrafo prometendo inventar uma


tecnologia que permita descobrir a diferença entre intenção e enunciação, o cronista
evidencia a distância que existe entre as palavras e os sentimentos de modo a manifestar
o jogo de máscaras que determina as relações de “seres civilizados”. A analogia entre o
245

discurso e a invenção acentua o caráter ficcional que coloca em questionamento a noção


de verdade nos discursos cotidianos. Esse recurso à ficção fantástica torna-se recorrente
nas crônicas machadianas como meio de demarcar essa ruptura entre linguagem e
referência para estabelecer outra relação com o discurso e com a noção de referência.
Na crônica de 28 de julho de 1878, ao tratar do processo eleitoral no Rio de Janeiro, o
cronista o ambienta em um contexto de guerra, uma vez que, como informa em crônicas
anteriores, são momentos marcados pela violência:

Esta agora é a semana em que se armam os cavaleiros, afiam as


espadas, e juram por Santiago de Compostela ou S. Jorge, que
hão de prostrar o adversário. Sábado que vem, todos se
recolhem ás tendas, para saírem na madrugada de domingo,
lança em riste, fogo no cérebro e esperança no coração. (p. 185)

Conforme já tratamos no capítulo anterior, o termo grego fantástico


() é conceituado no diálogo O Sofista, de Platão, entre o Estrangeiro e
Teeteto. Nesse diálogo, o filósofo grego ficcionaliza a oposição entre o termo
fantástico e o icástico (). O icástico refere-se à cópia fiel como imagem
perfeita, mantendo-se nas proporções de comprimento, largura e profundidade, além das
cores apropriadas a cada parte, do que resulta uma cópia perfeita; o termo fantástico é
definido como a arte da cópia da cópia icástica como desproporção ou deformação
também definidas como simulacro (phantásmata). No diálogo, o estrangeiro diferencia
duas artes de copiar tendo em vista o espectador. A cópia fiel (icástico) transporta do
modelo copiado as suas relações exatas de largura, comprimento e profundidade. A
cópia destinada àqueles que estão em posição desfavorável para vê-la simula o modelo
de modo que seus olhares possam alcançá-la. Para tanto, artificializa essa simulação
por meio de proporções vastas e indefinidas, definidas como fantástico145. João Adolfo

145 Estrangeiro — Vejo primeiro a arte de copiar, que consegue os melhores resultados quando o
original é reproduzido em suas proporções de comprimento, largura e profundidade, [235e] além das
cores apropriadas a cada parte, do que resulta uma cópia perfeita.
Teeteto — Como! Não é isso, justamente, que todos os imitadores procuram fazer?
Estrangeiro — Pelo menos, não é o que se verifica com os que modelam ou pintam obras
monumentais. Pois se quiserem reproduzir as verdadeiras proporções do belo, sabes muito bem que as
partes superiores parecerão menores do que o natural, [236a] e maiores as de baixo, por
contemplarmos umas de longe e outras de perto.
Teeteto — Sem dúvida.
Estrangeiro — E então? E o que dá a impressão de belo, por ser visto de posição desfavorável, mas
que, para quem sabe contemplar essas criações monumentais em nada se assemelha com o modelo que
presume imitar, por que nome designaremos? Não merecerá o de simulacro, por apenas parecer, sem
ser realmente parecido?
246

Hansen, em seu artigo Dom Casmurro: Simulacro & Alegoria, ao tratar sobre o uso
desse procedimento nas narrativas de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom
Casmurro, afirma que o fantástico narra o não-ser e suas ações impossíveis. Apropriado
por Machado de Assis na tradição luciânica, essa forma de narrativa opera ações e
eventos falsos. Com isso, o texto joga com a duplicidade de perspectiva do leitor, pois
"a história não é fácil de crer se for lida por meio da verossimilhança positivista-realista,
mas é totalmente crível se for lida como gênero fantástico, que aplica convenções
críveis para narrar o incrível" (HANSEN, 2008, p. 150). Para o crítico brasileiro, esse
improvável do “não-natural” que marca o gênero fantástico torna-se imprevisível para o
leitor que, portanto, sofre o deslocamento de leitura para um outro esquema retórico,
outro gênero discursivo e, portanto, outra legibilidade.
No caso da crônica acima citada, diante da notícia do processo eleitoral
apresentada pelo cronista em uma ambientação de guerra em que os partidários,
identificados no texto como cavaleiros, se armam, afiando suas espadas e jurando por S.
Jorge ou por Santiago de Compostela; tal enunciação faz com que a imagem da disputa
eleitoral se torne despropocional na crônica e, com isso, permite o leitor enxergar a
animosidade violenta que caracteriza as disputas eleitorais no Rio de Janeiro. Esse
deslocamento de sentido pode ser visto também na crônica de 1º de fevereiro de 1877,
que comenta a notícia de jornal sobre um navio cubano que diziam navegar nas águas
do Império, resultando em uma crise diplomática entre o governo brasileiro e o governo
espanhol:

Não lhes falarei do pirata cubano. O pirata cubano não existe; é


uma página de Walter Scott, que um jornalista transformou em
notícia diversa. Não é outra cousa. Aquele navio capturado
dentro de si próprio, por doze rapazes resoluto, depois do jantar,
parece lenda, romance, conto de carocha. Estou certo de que, se
o fato é real, podem estar certos os rapazes do pirata de que
casarão no primeiro porto inglês em que se demorarem cinco
dias. A mulher britânica é, por natureza, romanesca, e gosta dos

Teeteto — Sem dúvida.


Estrangeiro — E não constitui isso parte considerável tanto da pintura como da arte da imitação em
geral?
Teeteto — Como não?
[236b] Estrangeiro — E a arte que produz simulacros, não imagens, não seria mais acertado
denominá-la ilusória?
Teeteto — Certíssimo.
Estrangeiro — Aí temos, pois, as duas espécies de fabricação de imagens a que me referi: a imitativa e
a ilusória. (PLATÃO, 1972, p. 161) Essa edição foi traduzida por Jorge Paleikat e João Cruz Costa, os
quais traduziram icástico como imitativo e fantástico como ilusória.
247

sujeitos atrevidos. Ora, não são comuns atrevimentos tais. Nem


todos os dias se captura um navio no Oceano, entre a pêra e o
queijo. Mas depressa se apanha um coxo. Um coxo ou uma
constipação. (ASSIS, 2009a, p. 163)

Estabelecendo a leitura por meio da referência intertextual ao romance O Pirata,


de Walter Scott, o cronista coloca em dúvida a credibilidade da matéria noticiada, mas,
aceitando-a como verossímil, estabelece o enredo por meio da ficção fantástica. Desse
modo, o discurso da crônica, estabelecendo a ficção da notícia, alterna-se na
constituição de debreagens e embreagens, cujo registro e seus modos de sucessão são
variados, conforme observa Bertrand, por meio de um enunciador que se instala e
estabelece um universo simultaneamente espacial, temporal e actancial, fazendo com
que a arquitetura enunciativa da crônica se coloque em ação146.
Tais procedimentos fazem com que a crônica intercale a notícia por meio da
ficção e a ficção dada como notícia, conforme vimos, na crônica de 9 de junho de 1878
citada anteriormente, em que não se tratava de incêndio no Paço Municipal de Macacu,
mas de o Paço, disfarçando durante muito tempo sua feminilidade, fugir como Agar ao
deserto para que não se descubra sua gravidez. Em crônica de 24 de março de 1862, o
comentarista critica o alarde feito pelos conservadores da possibilidade de uma reação
dos liberais na inauguração da memória do Rocio. Ele o faz por meio da referência à
obra de Plutarco, Vidas dos homens ilustres:

Reza a história de uns gansos que salvaram por seus grasnos a


integridade da cidade eterna. Também vigiam gansos o nosso
Capitólio? Mas estes, cansados há tanto de espreitar, sem nada
verem chegar, e querendo a todo custo dar testemunho de sua
vigilância, gritam um belo dia por socorro e clamam pela
salvação de Roma. Mas Roma está tranqüila, nenhum inimigo
lhe assoma às portas; César dorme tranqüilo no afeto e na
dedicação da cidade-rainha. Nada acontecerá, mas a suspeita
pôde ficar para o futuro, e os gansos terão feito uns bonitos
papéis. (ASSIS, 2008d, p. 188)

Ao tratar da notícia, que o próprio governo havia alardeado, de que, no dia da

146 O discurso, em sua realização romanesca e fictícia, e também cotidiana e funcional, alterna
constantemente as debreagens e as embreagens, variando seus registros e seus modos de sucessão: o
enunciador instala, por exemplo, uma personagem, que ele coloca num universo ao mesmo tempo
espacial, temporal e actorial (debreagem), ele a faz falar (embreagem interna), Introduz em seu
discurso outras personagens (debreagem de segundo grau), que por sua vez podem tomar a palavra
(embreagem de segundo, grau), etc. Percebemos então a arquitetura enunciativa do discurso que se
põe em ação. (BERTRAND, 2003, p. 94)
248

inauguração da estátua equestre de D. Pedro I, o Sr. Teófilo Ottoni preparava uma


revolução, apreendendo inclusive caixões com armamentos, e que o governo preparava-
se com toda a energia para sufocar a revolta, o cronista a ridiculariza, diante da
constatação dos boatos, estabelecendo paralelo com o texto de Plutarco. Este, ao tratar
sobre a vida de Fúrio Camilo, conta o episódio no qual os gauleses tentaram atacar
Roma, subindo por trás das muralhas, sendo denunciados pelos gansos sagrados do
templo de Juno:

XLVII. Feito o discurso pelo rei, esses gauleses empreenderam


ousadamente a escalada, e cerca de meia-noite começaram a
subir a rocha morro acima, em numerosa fila, no maior silêncio
possível, aderindo como melhor podiam ao declive muito rude
do rochedo, embora mais acessível e fácil todavia, do que
haviam suposto a princípio, até que tendo os primeiros chegado
ao ponto mais alto, estavam já prontos a tomar a muralha,
atacando os guardas que dormiam, porque não houve nem
homem nem cão que os tivesse escutado. Havia porém, ali, os
gansos sagrados, criados no templo de Juno, que, antes,
alimentados abundantemente, eram então tratados muito mal,
ninguém fazendo conta deles, uma vez que só a duras penas, se
conseguiam víveres para os homens, e ainda assim, muito
racionadamente. Ora, esses animais que já de natureza têm o
sentido do ouvido muito agudo, sendo também muito tímidos,
mantinham-se, pela fome que suportavam, ainda mais acordados
e eram mais fáceis de espantar-se. Sentiram eles incontinenti a
suprêsa dos inimigos, e começaram a correr e gritar, de tal
forma, ao encontro deles, que acordaram os do castelo. Vendo-
se os gauleses descobertos não se preocuparam mais em evitar o
barulho e avançaram da maneira mais terrível que puderam.
Ouvindo o alarme, os romanos tomaram cada um o primeiro
bastão que prontamente encontraram à mão e correram
imediatamente em apoio do local de onde ouviram o estrépito,
sendo entre todos o primeiro um certo Mânlio, homem consular
forte e robusto, de grande coração, o qual avançou sobre dois
bárbaros juntos e assim que o primeiro levantou a acha para
golpeá-lo na cabeça, impediu-o, cortando-lhe o punho com sua
espada, ferindo tão rudemente o outro no rosto, com o escudo,
que o fêz cambalear para trás despenhando-se rochedo abaixo.
Com os demais que tinham também acorrido e apareceram
depois a seu lado, na muralha, Mânlio repeliu o resto dos
bárbaros dos quais não eram ainda muitos os que tinham
atingido o cume, nem deram grande prova de audácia.
PLUTARCO, http://www.consciencia.org/furio-camilo-
plutarco-vidas-paralelas acessado em 03 de março de 2012

Conforme encontramos no Jornal do Commercio, no dia 4 de março de 1862 -


249

vinte dias antes da crônica - a discussão sobre uma possível revolução feita pelos
liberais contra a inauguração da estátua de D. Pedro I havia acalorado a imprensa
fluminense. Conforme a matéria desse jornal governista, publicada na parte de
Publicações a Pedido, a acusação contra eles feita pelo jornal Diário do Rio de Janeiro
não passava de boatos provocados pelos próprio liberais. Segue a transcrição do texto:

PUBLICAÇÕES À PEDIDO
Ainda o Diário e as balas.

Parece que ao conhecimento do Diário chegam os boatos de


preparativos bélicos, que por duas ou três vezes tem anunciado
com grande espalhafato. Já se declarou ao Diário que não se
amofinasse com esses carapetões de mal gosto, que bem se
assemelham aos que produz a imaginação enferma do impagável
Scoevola, carapetões de que o público faz tanto caso como de
alguns anúncios charlatânicos que costumam aparecer nos
jornais. Parodiando o Diário dir-lhe-emos: só em época de
carnaval se lembraria alguém que o Sr. Ottoni possa hoje fazer
revoluções: por ora nada há a temer-se do ilustre tribuno e do
seu infant gaté. (Salva sempre uma ponta do mágico lencinho
branco para cobrir a Actualidade; não queremos que haja
ciúmes).
Que porém hão de continuar os exercícios práticos, em que pese
ao Diário, não resta a menor dúvida. É isso indispensável, por
todos os regulamentos e leis militares mandam ensinar aos
soldados a disciplina e o manejo das armas, como deve saber o
Diário; não há nem pode haver a menor ostentação de força
neste fato, que apenas revela o zelo com que o Sr. marquez de
Caxias dirige a repartição a seu cargo. Tranquilize-se pois o
Diário.147

147 Adequamos o texto às normas gramaticais atuais, mas para que se possa verificar não apenas o
conteúdo, mas à forma da escrita, disponibilizamos a imagem da matéria.
250

Título: Publicações a pedido - Jornal do Commercio - 4 de março de 1862

FONTE: Ministério da Cultura - Fundação Nacional pró-leitura Biblioteca Nacional -


251

plano nacional de microfilmagem de periódicos brasileiros


Como se pode ver no trecho copiado e na imagem, a discussão sobre a possível
revolução dos liberais contra o ministério de Caxias tomou forte expressão nos jornais
da época, possibilitando a participação do cronista na polêmica. Contudo,
diferentemente dos ataques diretos que ambos jornais trocaram, o discurso de Machado
de Assis dá-se pela intertextualidade e pela alegoria do tema, ficcionalizando o discurso
dos Conservadores para, por meio dessa ficção, rebaixá-los.
Como observa Bertrand, o uso dos elementos figurativos – intertextualidade,
alegoria, ficção fantástica, metáfora – requer uma forma de racionalidade particular que
é de ordem argumentativa analógica, rompendo com o discurso dedutivo próprio dos
textos objetivos, como o discurso político ou jornalístico, os quais, por meio de uma
relação imediata com a referencialidade do real, estabelecem a noção de verdade. Ao
romper com essa forma discursiva, o cronista coloca ao leitor a questão não apenas dos
temas tratados, mas da própria noção de verdade. De modo que a figuratividade não é
somente uma ornamentação das coisas, mas o ato de deixar entrever uma possibilidade
de além-sentido148. Hansen, em seu artigo citado acima, baseando sua leitura em Gerárd
Genette149, demonstra os três graus de verossimilhança do discurso (HANSEN, 2008,
p. 151). O primeiro é o grau zero no qual o discurso se apresenta de modo totalmente
natural, habitual e normal. O segundo grau é o em que aparecem explicações,
motivando o que é narrado de modo que as explicações particularizam ou generalizam
os motivos da ação. O terceiro grau, visto pelo crítico como característico da narrativa
machadiana, é aquele em que o leitor se defronta com os próprios procedimentos da
constituição do discurso150. Paul Ricoeur, em sua obra Tempo e Narrativa, ao tratar
sobre o conceito ficção, observa as duas acepções que o termo comporta: uma como

148 A figuratividade não é mera ornamentação das coisas; é essa tela do parecer cuja virtude consiste
em entreabrir, em deixar entrever, em razão de sua imperfeição ou por culpa dela, como que uma
possibilidade de além-sentido. Os humores do sujeito reencontram, então, a imanência do sensível
(BERTRAND, 2003, p. 158)
149 Cf. Genette, Gérard. "Verossímil e Motivação". In Barthes, Roland et alii. Literatura e
Semiologia. Seleção de ensaios da revista "Communications". Trad. Célia Neves Dourado. Petrópolis,
Vozes, 1971.
150 O terceiro grau pode ser o mais interessante, no caso desses romances de Machado. O leitor
observa neles, desde o momento em que os autores ficcionais afirmam que sua história não é fácil de
crer, pois num caso é um morto que fala e noutro um desmemoriado que lembra, outros enunciados
sem explicação que vão sendo justapostos a esse núcleo de impossibilidade inicial. Mas, no início
mesmo da história, advertem seus leitores da sua condição de morto e de desmemoriado e, com isso,
motivam ou explicam o arbitrário da falta de explicação ou motivação para suas ações e para o
encadeamento delas. Os formalistas russos do início do século XX chamavam de "procedimento a nu"
a técnica que representa para o leitor o próprio ato que constrói o discurso, ou seja, as decisões do
narrador. HANSEN, 2008, P. 152
252

sinônimo das configurações narrativas e, a outra, como oposta à pretensão da narrativa


histórica de se constituir como narrativa verídica.151 Desse modo, o conceito ficção
designa a configuração narrativa cujo paradigma é a construção da intriga, rompendo
com a pretensão à verdade, dando forma ao que é informe, fornecendo o como se na
condição de artifício literário152. O ato comunicativo do discurso se estabelece a partir
da capacidade de referência, que, conforme Ricoeur, é sempre co-referencial, pois é
dialógica, estabelecendo para o leitor as ilusões referenciais. Contudo, este não é apenas
um efeito de sentido do texto, uma vez que se constitui a partir das modalidades de
veridicção153. A crônica, ao inventar na imanência do texto esse jogo estabelecido por
meio da linguagem, rompe com a ilusão referencial.

151 Percebe-se, em toda a sua riqueza, qual o sentido de mímesis I: imitar ou representar a ação é, em
primeiro lugar, pré-compreender o que é o agir humano: sua semântica, sua simbólica, sua
temporalidade. É nessa pré-compreensão, comum ao poeta e a seu leitor, que se delineia a construção
da intriga e, com ela, a mimética textual e literária. (RICOEUR, 2010, v. 1, p. 112).
152 Por um lado, podemos ficar tentados a dizer que a narrativa põe a consonânica ali onde só há
dissonância. Desse modo, a narrativa dá forma ao que é informe. Nesse caso, contudo, a forma dada
pela narrativa pode ser suspeita de trapaça. Na melhor das hipóteses, fornece o "como se" próprio de
toda ficção, que sabemos não ser mais que ficção, artifício literário. É por isso que consola diante da
morte. (pp. 124-125)
153 As "ilusões referenciais" não são um efeito de sentido qualquer do texto: exigem uma teoria
detalhada das modalidades de veridição. Ora, essas modalidades delineiam-se por sua vez no fundo de
um horizonte de mundo que constitui o mundo do texto. Pode-se certamente incluir a própria noção de
horizonte na imanência do texto e tomar o conceito do mundo do texto por uma excrescência da ilusão
referencial. (RICOEUR, v. 1, p. 135)
253

CAPÍTULO 4 - O CONTRATO ENUNCIATIVO ENTRE CRONISTA E LEITOR

não existe sujeito, mas somente agenciamentos coletivos de


enunciação, sendo a subjetivação apenas um dentre eles, e
designando por isso uma formalização da expressão ou um
regime de signos, não uma condição interior da linguagem.
Tampouco se trata, como diz Althusser, de um movimento que
caracterizaria a ideologia: a subjetivação como regime de signos
ou forma de expressão remete a um agenciamento, isto é, a uma
organização de poder que já funciona plenamente na economia,
e que não vem se superpor a conteúdos ou a relações de
conteúdos determinados como reais em última instância. O
capital é um ponto de subjetivação por excelência.
DELEUZE & GUATTARI, Mil Platôs v. 2, p. 90

Em Os Cegos, o polemista machadiano, ao desenvolver seus argumentos para


marcar seu posicionamento em relação ao mote proposto, o faz como réplica ao
posicionamento de seu opositor, operado por meio de enunciação reportada, conforme
observa Fiorin, citado por Eduardo Calbucci, a qual é entendida como um simulacro da
enunciação154. Essa enunciação reportada simula, no enunciado, a estrutura de
comunicação entre enunciador e enunciatário, operando seu texto como metadiscurso.
Com isso, o enunciador opera o choque de vozes dando alteridade e heterogeneidade à
produção de seu discurso. Essa característica observada por Calbucci é identificada nas
obras maduras de Machado que, em comparação às suas crônicas, manifestam-se de
modo mais elaborado, privilegiando a polêmica velada. Contudo, vemos que, neste
texto de juventude, o modo como Machado de Assis desconstrói o texto de seu
oponente também marca essa enunciação reportada que se manifesta por meio da ironia.
Percebemos a ironia como elemento de discurso, confirmando essa enunciação
reportada quando As, ao referir-se ao texto do outro, no trecho em que afirma que o
cego de nascença fantasia um mundo à sua guisa, qualifica-o também como fantasista,
ao dizer que o outro se identifica com o cego, ao idealizar e colorir as coisas melhores

154 A enunciação reportada, entendida como "um simulacro da enunciação" (Fiorin, 1999, p. 41),
pode ser tomada como exemplo desse "desdobramento. Quando, por meio do diálogo (Courtés, 1991,
p. 249), simula-se, no enunciado, a estrutura de comunicação de enunciador e enunciatário, tem-se a
enunciação reportada. Essa reportação à enunciação possui uma dimensão metadiscursiva, na medida
em que faz pressupor uma relação entre a interlocução dos actantes da enunciação e a dos actantes do
enunciado. Trata-se de uma manifestação de "heterogeneidade enunciativa" (Charaudeau &
Maingueneau, 2004, p. 326), por meio da qual se nota uma enunciação que se coloca "além da"
enunciação concretizada no texto (CALBUCCI, 2007, p. 65).
254

do que elas são ("Continua o mesmo senhor, dizendo que o cego de nascença fantasia
um mundo à sua guisa, e identifica-se com ele, idealizando e colorindo as coisas melhor
do que elas são"), confirmando esse método recorrente em sua escrita madura. Também
quando, ao encerrar seu texto pedindo que seu oponente não se zangue, por não ter tido
a intenção de atacar a ele e sim a seus argumentos, marca essa ressalva de modo irônico
ao parafrasear Buffon: "O estilo é o homem!".
As crônicas machadianas apresentam elementos importantes para a
compreensão dos modos de composição a partir da análise da enunciação elaborada pelo
cronista e da constituição do ponto de vista depreendida nesses textos. Nelas se
confirma a assertiva de Denis Bertrand de que a enunciação deve ser compreendida
como "mediação entre o sistema social da língua e sua assunção por uma pessoa
individual na relação com o outro" (BERTRAND, 2003, p. 89). Na crônica de 12 de
outubro de 1861 da série Comentários da Semana, já citada anteriormente, ao tratar da
forma como a imprensa noticiou o caso de duas videntes de forma negativa, o cronista
se contrapõe à notícia jornalística conhecida de seu leitor, articulando outras
informações que também compõem o sistema cultural, estabelecendo uma análise
crítica:

A vossa avó de Cuma, se hoje vivesse, sem dúvida teria melhor


do que eu apostrofado os blasfemos. O que poderia fazer a
minha linguagem pálida, hoje, que nem é possível falar dos
deuses, nem adubar uma increpação com as singelas, mas
brilhantes, expressões pagãs? Valha a desculpa, se não vale o
canto, como diz o poeta. (ASSIS, 2008d, p. 2003)

A articulação entre a notícia presente, a referência à personagem de Virgílio e ao


poema de Bocage mostra a riqueza composicional do cronista ao romper a noção linear
de história e ler o presente pelo passado na contraposição à lógica iluminista e
positivista da imprensa que, em nome do Século das Luzes e da razão cientificista,
desqualifica as videntes do Império. Conforme anotam os organizadores dessas crônicas
– Lúcia Granja e Jefferson Cano – em nota de rodapé, o Jornal do Comércio dá a seus
leitores a seguinte informação sobre essas videntes:

(...) no Jornal do Comércio (Gazetilha, 24 de setembro de 1861,


p. 2) encontra-se a notícia sobre uma dessas cartomantes: “Mora
na rua do Cotovelo uma mulher que vive da inocente indústria
de fintar em 2$ os papalvos e os simplórios e revelar-lhes o
255

futuro [...] E não só o consultante paga os 2$, pagam-lhe todos


quantos o acompanham, embora se conservem mudos como
peixes; é uma captação imposta a quem penetra no antro da
Sibila. [...] a polícia sabe-o tão bem como outro qualquer, e
contudo tolera-o[...]”. A notícia prossegue longa, questionando a
aplicação das “bruxarias” na revelação de segredos ocultos,
como infidelidades, o que minaria “pela base a felicidade e
tranqüilidade domésticas, solapando os alicerces em que assenta
toda a ordem social [...]”. (p. 56)

O contraponto feito pelo cronista à matéria de jornal sobre a questão das sibilas
por meio da junção intertextual do fato com a poesia de Virgílio e Bocage torna-se
procedimento recorrente da composição machadiana no conjunto de suas crônicas,
como estabelecimento de relações do sistema social da língua na enunciação do
comentarista para seu destinatário, como pontuado por Bertrand, que põem o discurso
em funcionamento pelo ato individual de utilização. Neste, conforme Benveniste, o
enunciador constitui a intersubjetividade como articulação pragmática do discurso. Com
base em Benveniste e Bertrand, definimos o enunciador como aquele que, no
acontecimento de linguagem, projeta fora de si categorias semânticas que elaboram o
universo de sentido. Conforme Bertrand, essa operação consiste em uma cisão criadora
das representações actanciais, espaciais e temporais do enunciado,155, como também
do sujeito, do lugar e do tempo da enunciação.
Na crônica de 14 de janeiro de 1862, ao fazer referência ao texto assinado pelo
pseudônimo Scoevola, editado nas Publicações a Pedido do Jornal do Commercio, o
qual criava polêmica em torno da diplomacia brasileira no Rio da Prata por meio de um
nacionalismo exacerbado que propunha anexar aquela região ao Império brasileiro, o
cronista utiliza-se do mesmo procedimento intertextual, conjugando a polêmica do outro
cronista, sua promessa de relatar sobre o casamento da princesa imperial do Brasil e a
referência histórica desse pseudônimo:

Eu podia, é verdade, entreter o leitor com o imortal Romano da


mão queimada, que jurou aos deuses fundir as repúblicas
confinantes ao sul do império em uma monarquia e dá-la em
presente a um príncipe da família imperial, não esquecendo de

155 O enunciador, no acontecimento de linguagem, projeta fora de si categorias semânticas que vão
instalar o universo do sentido. Essa operação consiste em uma separação, uma cisão, uma pequena
"esquizia" ao mesmo tempo criadora, por um lado, das representações actanciais, espaciais e
temporais do enunciado e, por outro, do sujeito, do lugar e do tempo da enunciação. (BERTRAND,
2003, p. 90)
256

casá-lo com a Sra. D. Leopoldina. O publicista casamenteiro não


é das cousas que menos riso excitam, pelo contrário, é divertido
a mais não poder ser. (p. 156)

Desse modo, esses trechos citados evidenciam a plena liberdade composicional


do cronista ao articular em seus textos conexões entre as informações noticiadas no
jornal e as referências literárias ou históricas sabendo compartilhar de um mesmo
sistema cultural com seu leitor e, portanto, evidenciar sua leitura crítica a partir desses
pressupostos. Conforme pontua Bertrand, essa escrita literária tensiona por meio da
história e do uso das lexicalizações passionais a conservação e a revolução das
formas156. Há o que o autor chama de dialética da práxis por meio da sedimentação e
inovação da espessura cultural do sentido compartilhada no sistema social da língua.
Dessa forma, a enunciação do cronista, ligada ao imenso corpo de enunciações coletivas
que a precederam, por meio do sentido já-dado na memória cultural, opera a atualização
que transforma seu sentido ou, conforme Bertrand, a enunciação, a seu modo, convoca
os produtos do uso que ela atualiza no discurso. Na crônica anteriormente citada, a
palavra sibila utilizada negativamente pelo Jornal do Commercio permite ao cronista
fazer a referência histórica à tradição grega do Oráculo, anunciada nas primeiras linhas
das crônicas – "Eu devia escrever estas linhas em cima de um capitel antigo, ou diante
de um livro de velha poesia grega" – e estabelecer sentido com a personagem da
Eneida, a sibila de Cumas, como forma de questionamento da interpretação positivista
da história que se propõe superior às culturas antigas, iludida com a lógica cientificista
dominante e implícita na matéria do jornal. Na crônica seguinte, ao referir-se à imagem
do bandido italiano Luigi Alonzi e sua luta pela unificação italiana noticiada pelos
jornais do Império, estabelece proximidade entre as sibilas e a possível prática de fé
desse italiano:

156 O impessoal da enunciação rege a enunciação individual e esta às vezes se insurge contra ele. A
fala, "idealizada como livre, [...] se fixa e se cristaliza no uso, dando origem, por redundâncias e
amálgamas sucessivos, a configurações discursivas e estereótipos lexicais que podem ser interpretados
como tantas outras formas de 'socialização' da linguagem. A primazia da práxis enunciativa sobre o
engajamento particular na fala em ato é um primeiro dado: a enunciação, a seu modo, convoca os
produtos do uso que ela atualiza no discurso. Quando os revoga, ela pode transformá-las, dando lugar
a práticas inovadoras, que criam relações semânticas novas e significações inéditas. E, esses
enunciados, por sua vez, se forem assumidos pela práxis 'coletiva, poderão cair no uso, nele se
sedimentando e assim se tornando convocáveis, antes de se desgastarem e serem revogados. A escrita
literária, tensionada entre conservação e revolução das formas, associa estreitamente esses dois
movimentos. A abordagem do componente passional ilustra particularmente o fenômeno: as
lexicalizações passionais, depositadas na língua pela história e pelo uso, oferecem estruturas de
acolhimento para os estados de alma efetivos, conferindo-lhes estatuto, sentido e valor. (BERTRAND,
2003, p. 88)
257

Consultei e encomendei-me às sibilas. Fiz bem, acho eu. Cada


qual na ocasião de cometer uma empresa, encomenda-se à sua
devoção, e o próprio bandido italiano não sai a matar sem ter
queimado duas velas à madona de sua fé. Eu creio nas sibilas,
por isso as preferi. (p. 63)

Ao analisar a enunciação na estrutura composicional de Memórias Póstumas de


Brás Cubas em sua tese de doutorado, Eduardo Calbucci mostra a duplicidade
discursiva que consiste em uma prática e uma representação como comentário sobre a
trama narrada pelo defunto-autor, estabelecendo essa enunciação enunciada157 e esse
enunciado enunciado como um dos pilares do romance. Para o crítico machadiano, o
sujeito da enunciação problematiza sua relação com a construção de sentidos
(CALBUCCI, 2007, p. 167), o que define como supervalorização da metaenunciação.
Nas crônicas aqui analisadas, dá-se o mesmo procedimento, contudo, sem um
destinador-manipulador que controle seus comentários e digressões como ocorre em
Memórias Póstumas de Brás Cubas. Embora haja uma assinatura, há também um
nivelamento entre a opinião do comentarista e as matérias de jornais que tanto o cronista
quanto o leitor acompanham no cotidiano que são, portanto, sujeitas a verificação.
Como observa Pereira, por ser a crônica um gênero construído no movimento das
notícias apresentadas cotidianamente, ela impõe ao cronista uma série de obstáculos,
levando a reatualização de seu intento inicial158. Embora haja esses obstáculos, o
cronista opera esses jogos enunciativos como meio de modificar o estatuto dos

157 Na perspectiva da análise textual, a semiótica se interessa primeiramente pelas figuras da


enunciação manifestadas e operacionalizadas no próprio interior do texto, aquelas que dizem respeito
ao que se chama então “enunciação enunciada”. Esta instala, de maneira simulada, a presença e a
atividade dos sujeitos da fala, as do narrador e as das personagens, no monólogo ou no diálogo por
exemplo, que recebem a totalidade de sua definição dos próprios enunciados. Quanto ao sujeito da
enunciação “real”, o da cena intersubjetiva da comunicação, autor ou locutor, ele é sempre
inevitavelmente relegado a uma posição implícita: ele é visto na cadeia recursiva do “eu digo que
digo, etc.”, e permanece, em si mesmo, inacessível. Ele só se manifesta pelos simulacros lingüísticos
de enunciações enunciadas precedentes (digo, penso, me parece, etc.) que dependerão dos critérios de
análise que permitem apreendê-las. (BERTRAND, D. 2003, P. 83)
158 Ainda que escrevesse em um gênero voltado para a discussão do cotidiano, muitas vezes
associado ao jornalismo, Machado o fazia em perspectiva abertamente literária, utilizando-se de
recursos e artifícios muito distantes da pretensa objetividade de um jornalista. Por mais que não
chegasse ainda a absolutizar o caráter ficcional da narração, na delimitação mais precisa de
personagens narradores como os que marcariam algumas de suas produções posteriores em diversos
gêneros, ficava evidente a tentativa de modificar o estatuto da narração, induzindo o leitor a
desconfiar do que lia (PEREIRA, 2009, p. 51).
258

enunciados presentes nas matérias dos jornais para evidenciar ao leitor a sua produção.
Ao problematizar as matérias de jornais enunciadas em seus textos, o cronista
coloca-se como coparticipante de seu leitor na leitura dos jornais e, portanto, permite-se
comentar as matérias compartilhadas com ele.
Ao conceituar os atos de enunciação para depreender no romance machadiano o
funcionamento desses procedimentos enunciativos, Calbucci faz a distinção entre os três
níveis enunciativos da narrativa: 1º nível: enunciador/enunciatário; 2º nível:
narrador/narratário; 3º nível: interlocutor/interlocutário (CALBUCCI, 2007, p. 32). Ao
aplicar esses níveis enunciativos, mostra a subversão que a narrativa de Brás Cubas
opera nos três, de modo que somente com muito cuidado é possível distinguir o Brás
Cubas enunciador do Brás Cubas narrador e interlocutor. E é exatamente esse o esforço
que o autor empreende para especificar como se opera essa subversão constituída em
inovação da escrita machadiana. Contudo, se, a partir dessa análise de Calbucci, formos
verificar os três níveis enunciativos, assim como em Memórias Póstumas de Brás
Cubas, a voz do texto (o cronista, entendido como o 2º nível enunciativo) o
comentarista também é o enunciador, assinando no final de cada crônica o nome Gil,
Machado de Assis, M .A., Eleazar ou Manassés. Por tratar de temas do cotidiano
conhecidos de seu leitor, esse cronista embaralha os limites ficcionais do texto,
produzindo o que definiremos aqui como campo ilusório no leitor. Isto é, a ilusão a que
o leitor é levado pelo texto de estar diante de alguém com quem estabelece uma
conversa que rompe a distinção do ler e do ouvir e, portanto, também do ver. Conforme
observa Calbucci sobre o romance machadiano, "há uma notável diferença entre a
enunciação de 1º e de 2º grau. Como o enunciador e o narrador não estão sincretizados,
o enunciado produz um efeito de sentido de ficcionalidade." (Idem, p. 131). Nas
crônicas, conforme observaremos abaixo, acontece exatamente o inverso: comentarista
e enunciador estão sincretizados na figura do cronista e, portanto, há um rompimento no
efeito de sentido de ficcionalidade. É importante observar isso: não se trata de ausência
de efeito de sentido de ficcionalidade, o que equivaleria a afirmar que a crônica não é
um texto ficcional; muito pelo contrário, por meio de procedimentos composicionais
abordados anteriormente, o cronista rompe esse efeito de sentido para constituir o
campo ilusório do cotidiano em seu leitor, levando a um grau máximo os efeitos
ficcionais do texto.
O procedimento estético que percebemos ser operado pelo cronista é definido
por Bertrand como embreagem. Esse conceito, emprestado de Greimas, define-se como
259

"operação enunciativa pela qual o sujeito da fala retorna à enunciação, a partir da


debreagem, e identifica o sujeito do enunciado com a instância da enunciação"
(BERTRAND, 2003, p. 418)159. Desse modo, na perspectiva da análise literária, a
embreagem permite dar conta da discursivização, cujas categorias pessoais estão
marcadas pela primeira pessoa, bem como os dêiticos espaciais pelo aqui e temporais,
pelo agora. Conforme observa Bertrand, o eu só pode ser compreendido pelo ele,
integrando a operação de debreagem como "retorno ao enunciador das formas já
debreadas, que servem de suporte à sua manifestação, e sem as quais a atividade de
linguagem não é concebível." (p. 92). Assim, o sujeito da enunciação marca sua
presença no discurso e, ao estabelecer o distanciamento de leitura com seu leitor por
essa marca lingüística, pode constituir proximidade e afinidade de avaliação da notícia
tratada.
Se considerarmos as implicações desse procedimento no aspecto composicional
da prosa do século XIX, a partir das grandes categorias de gênero constituídas pela
embreagem e debreagem observadas por Bertrand, compreenderemos a importância e a
motivação desses procedimentos nas crônicas machadianas. Para o crítico francês, tanto
o teatro, quanto os diálogos e os monólogos líricos da poesia são regidos pelo discurso
embreado; já os romances e a maior parte dos textos narrativos, pelo discurso debreado
(p. 93). Essas estratégias de enunciação estabelecem os parâmetros de ficcionalidade,
podendo alternar-se conforme cada tipologia dos gêneros textuais. Assim, o narrador, ao
estabelecer, por meio do discurso debreado, o distanciamento com suas personagens,
pode, em alguns momentos, permitir a tomada discursiva da personagem por meio das
marcas do discurso embreado, de modo que o leitor consiga distinguir o discurso do
narrador do discurso das personagens. De um modo geral e conforme suas
particularidades, cada gênero literário opera as formas gramaticais que permitem essa
distinção entre os diferentes discursos como simulacro construído pelo escritor:

159 Pela debreagem, o sujeito enunciante cria objetos de sentido diferentes do que ele é fora da
linguagem. Ele projeta no enunciado um não-eu (debreagem actancial), um não-aqui (debreagem
espacial) e um não-agora (debreagem temporal), separados do /eu-aqui-agora/, que fundamentam sua
inerência a si mesmo. A debreagem é a condição primeira para que se manifeste o discurso sensato e
partilhável: ela permite estabelecer, e assim objetivar, o universo do "ele" (para a pessoa), o universo
do "lá" (para o espaço) e o universo do "então" (para o tempo). (...) Num segundo momento, a partir
do horizonte da debreagem, o sujeito enunciador pode retornar á enunciação e realizar a segunda
operação, a embreagem, que instala o discurso em primeira pessoa. Ela consiste então, para o sujeito
da fala, em enunciar as categorias dêiticas que o designam, o “eu”, o “aqui” e o “agora”: sua função é
manifestar e recobrir o “lugar imaginário da enunciação” por meio dos simulacros de presença, que
são eu, aqui e agora. (BERTRAND, 2003, P. 90-91)
260

Quando comandam isotopias figurativas, elas permitem


distinguir as clássicas unidades do discurso: a "narração" se
fundamenta em debreagens ou embreagens actanciais, a
"descrição" em debreagens espaciais e temporais, o "monólogo"
em uma embreagem actancial, o "diálogo" em um jogo alternado
de embreagens e debreagens pessoais, etc. Quando comandam
isotopias abstratas, essas operações instauram as operações
cognitivas que segmentam, por exemplo, o desenvolvimento do
percurso argumentativo. (p. 94)

Desse modo, o discurso ficcional compreendido pelo leitor das crônicas


machadianas como tal está nitidamente marcado por esses procedimentos enunciativos,
de maneira que o leitor do século XIX – e de certo modo até hoje – não entenderia as
crônicas como texto ficcional – por não corresponder a esses procedimentos
encontrados nos gêneros clássicos – e, portanto, não exigiria dela os procedimentos
técnico-estéticos já esperados nos outros discursos ficcionais. Em outras crônicas,
Machado reafirma para seu leitor essa forma despretensiosa da crônica, constituindo o
campo ilusório de que tais textos são apenas conversas corriqueiras entre o cronista e o
leitor. Isto é, conforme observamos anteriormente, o caráter artificialmente
despretensioso das crônicas afirmado pelo cronista torna-se procedimento técnico-
estético como meio de romper os efeitos de sentido de ficcionalidade e, assim,
constituir, para seu leitor, o campo ilusório do cotidiano como não-artifício. Tal
afirmativa confirma-se na crônica de 1º de novembro de 1877 da série Histórias de
Quinze Dias:

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica:


mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das
primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a
merenda, sentaram-se à porta para debicar os sucessos do dia.
Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia
que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais
ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às
plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias
do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e
possível do mundo. Eis a origem da crônica. (ASSIS, 2008d, pp.
253-254)

Um pouco antes, no início desta crônica, afirma ao leitor qual é a forma certa de
iniciar uma crônica:
261

Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É


dizer: que calor!que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as
pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente
sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos
atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da
lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a
Petrópolis; e la glace est rompue; está começada a crônica. (p.
253)

Essa enunciação enunciada no texto cria para o leitor a ilusão despretensiosa


deste gênero que não quer, nem se pretende constituir com a mesma proposta dos outros
gêneros e, portanto, não necessita das mesmas ferramentas composicionais dos gêneros
ficcionais. Contudo, ao fazer isso, o cronista ilude o leitor por meio do discurso
embreado, operando a aproximação entre o enunciador e o leitor.
Na crônica de 5 de fevereiro de 1893 da série A Semana, ao deparar-se com a
expressão quilos mal pesados dita por um açougueiro, o cronista detém-se, chamando a
atenção do leitor para esta expressão, e passa a discorrer sobre seu sentido, até que, em
um determinado momento, é interrompido pelo açougueiro que questiona seus
comentários:

Isso prova, interrompe-me aqui o açougueiro, que o senhor


entende pouco do que escreve. Se realmente tivesse ideias
claras, saberia que não há só os quilos mal pesados, também os
há bem pesados. Mas quem os recebe da segunda classe, não
corre às folhas públicas. Creia-me, isto de filosofia não se faz
com a pena no papel, mas também com o facão na alcatra. Saiba
que o mundo é uma balança, em que se pesam alternadamente
aqueles dois quilos, entre brados de alegria e indignação. Para
mim tenho que o quilo mal pesado foi inventado por Deus e o
bem pesado pelo diabo; mas os meus fregueses pensam o
contrário e daí um povo de cismáticos, uma raça perversa e
corrupta...
- Bem; faça o resto da crônica. (ASSIS, 2008, p. 958)

Conforme analisa Dilson Cruz, em seu livro Estratégias e máscaras de um


fingidor, há neste texto duas inversões fundamentais: a primeira, em que o enunciador
torna-se interlocutor da personagem, deixando de ser senhor do texto, na medida em que
o mesmo é tomado de assalto pelo açougueiro e, por bronca, entrega a este a
responsabilidade de concluir a crônica; a segunda inversão é quanto à opinião
manifestada pelo açougueiro, que se opõe radicalmente à do cronista, marcando o ponto
262

de vista deste como parcial e estabelecendo a polissemia do texto 160. Se, conforme
pontuamos anteriormente, na crônica há a sincretização entre o primeiro e o segundo
nível enunciativo, neste exemplo acontece a sincretização entre os três níveis
enunciativos, reforçando, para o leitor, o campo ilusório da conversa cotidiana. Nesta
crônica, embora o discurso embreado que permite a palavra ao açougueiro seja marcado
textualmente – interrompe-me aqui o açougueiro –, ao passar-lhe a responsabilidade de
fazer o resto da crônica, o cronista reafirma, por meio da aproximação ilusória com o
leitor, o aspecto informal deste gênero e, na medida em que a mesma não se pretende
constituir como um gênero ficcional, consegue iludir o leitor ao confundir a leitura com
uma conversa corriqueira entre cronista, leitor e açougueiro.
Tanto nesta crônica quanto na anterior, essa proximidade que ficcionaliza uma
conversa entre amigos opera-se pela enunciação do corpo presente por meio da
constituição enunciada de imagens visuais. Isto é, ao escrever sobre como se deve
iniciar uma crônica, a transposição entre o escrito e o visto opera-se de modo
interligado, constituindo a imagem visual por meio da enunciação enunciada: "Diz-se
isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a
sobrecasaca." A enunciação opera a proximidade da visão e da audição, entre o ler e o
ouvir: o leitor lê o cronista e, na medida em que o texto se quer e se afirma informal,
permite usar expressões populares de sentido próximo, como escrever e dizer. Na
medida em que o artifício da informalidade da escrita da crônica permite essa
proximidade semântica entre dois sentidos distintos – audição e visão – permite também
a complementação visual por meio da enunciação enunciada: "diz-se isto, agitando as
pontas do lenço." Com o procedimento, apaga-se a escrita na leitura, constituindo-se
como imagem visual autônoma e, portanto, englobando o leitor no campo ilusório do
texto.
Esse procedimento é perceptível também nas crônicas Comentários da Semana.
Na crônica de 1 de novembro de 1861, ao comentar a obra Ensino Praxedes e seu
método fundado na filosofia do A B C, afirma:

160 Atente-se agora para duas inversões geniais: primeira, o enunciador-narrador torna-se
repentinamente interlocutor da personagem que até então não havia tido o direito à palavra. Assim ele
deixa de ser senhor do texto, que é tomado de assalto pelo açougueiro, que se rebela contra o ponto de
vista do narrador. O cronista, reafirmando sua dupla condição de interlocutor e enunciador, se retira,
aparentemente irritado ou sem argumentos, deixando ao seu interlocutor a tarefa de concluir a crônica,
o que sugere que ele passaria à condição de narrador. (...) A intervenção do açougueira suscita duas
questões importantes: primeiro, a dificuldade ou impossibilidade de se chegar à verdade, uma vez que
só existiriam versões sobre um fato; segundo, todo discurso se constrói em oposição a outros
discursos, que acabam por constituí-lo. (CRUZ, 2002, p. 73)
263

Ouço já o meu sôfrego leitor perguntar-me o que é a filosofia do


A B C. Eu ainda não li o precioso livro; mas diz-me um
boticário, que o folheou entre duas receitas, que essa filosofia
cifra-se em demonstrar que não há entre as letras do alfabeto a
diferença que geralmente supõe-se, e que o A e o G se parecem
como duas gotas de água. Talvez o meu leitor não ache muito
clara a identidade; mas é aí que está a sutileza do novo método.
(ASSIS, 2008d, p. 79)

Neste trecho, o cronista enuncia a reação do leitor por meio dos mesmos
procedimentos observados nas crônicas anteriores. Neste exemplo, o cronista rompe o
distanciamento de leitura, pressupondo a curiosidade do leitor sobre o tema tratado,
inserindo-o por meio da enunciação enunciada e tornando-o participante enunciativo do
texto. A continuidade desse campo ilusório dá-se pelo discurso indireto do outro – o
boticário – na medida em que o cronista afirma não conhecer o conteúdo da obra e,
portanto, permitindo-se fazer a referência ao discurso do outro como participante da
enunciação. Na crônica de 12 de outubro de 1861, após tratar da notícia sobre as sibilas
e o contraponto que estabelece em seus comentários com a notícia dos jornais, opera a
enunciação do movimento corporal para mudar o assunto da crônica: "Não podia
melhor encabeçar o meu escrito; mas o que é doloroso é o salto mortal que sou obrigado
a dar do prefácio às ocorrências do dia." (p. 54) Vemos aqui também o enunciador
operar a proximidade entre a escrita e a imagem constituída da movimentação corporal
no salto mortal que dá entre um tema e outro.
Essa proximidade entre cronista e leitor opera-se também por meio do uso das
categorias em primeira pessoa do plural. Isto é, na medida em que o cronista comenta
algumas matérias de jornais e a partir delas tece seus comentários, ele conjuga, por
vezes, os verbos na primeira pessoa do plural, tornando o leitor coparticipante de suas
opiniões ou enunciando a identificação entre ambos. Confirma-se essa afirmativa na
crônica de 25 de novembro de 1861, após tratar dos Anais da sessão legislativa, na qual
faz superficialmente o discurso de um membro do Senado:

Os tipos deste gênero são mais vulgares do que muita gente


pensa: – espíritos medíocres, não podendo abraçar a amplidão
do espaço em que a civilização os lançou, olham saudosos para
os tempos e as cousas que já foram e caluniam, menos por má
vontade que por inépcia, os princípios em nome dos quais se
elevaram. Deixando de parte esses entes passivos que não
264

podem servir de tropeço à marcha das cousas, acho melhor


voltarmos folha nas ocorrências da semana. (ASSIS, 2008d, p.
108)

Nesta crônica, por meio do travessão posto no texto, o cronista insere a opinião
do leitor sobre o senador-diretor e o discurso ao qual fez referência, interrompendo-o
em seguida, para voltar às ocorrências da semana. Na crônica de 1º de novembro de
1861, ao referir a oferta feita ao dramaturgo Pinheiro de Guimarães, autor da peça A
história de uma moça rica, embora o verbo esteja conjugado na terceira pessoa do
singular, estabelece a proximidade de opinião entre o cronista e o leitor:

Afirmo que o leitor, se não é beato, está tão convencido como eu


da justiça daquela oferta. Ela significa, além disso, um
desmentido solene às censuras que, em mal da composição do
novo dramaturgo, haviam levantado os que sentem em si a alma
daquele herói de Molière, que pecava em silêncio e se
acomodava com o céu. (p. 80)

Na crônica de 11 de dezembro de 1861, ao tratar da morte dos dois príncipes de


Portugal e da morte de Manuel Antônio de Almeida, que estava a bordo do navio
Hermes, o qual naufragara a caminho de Campos, inicia a crônica, estabelecendo
proximidade entre si e o leitor:

Quero escrever e a pena se me acanha, vacila-me o espírito, e


não acho uma palavra para começar. Bem errada é essa crença
de que a intencidade do sentimento inspira o escrito, e que a
impressão dá mais vigor à pena.[...] As impressões ainda vivas
dos casos tristes de que se entremeou a tela da semana, atua em
mim, como no leitor, e ambos mal dispostos, nem um escreve,
nem o outro lê, com a atenção e a placidez habituais. (p. 119)

Na crônica de 24 de dezembro de 1861, ao tratar do jornal que atacara o cronista


por conta de seus comentários da semana contra o Ministro do Império, estabelece outra
proximidade com o leitor:

Acha ela que o Sr. Ministro do império, longe de ser vulgar na


tribuna e no gabinete, é uma figura eminentíssima tanto neste
como naquela; acredite quem quiser na sinceridade da gazeta do
lusco-fusco, eu não; sei bem que ela... ia escrevendo um verbo
que ainda não adquiriu direito de cidade; direi por outro modo;
sei que ela faz a corte ao Sr. Ministro. Está no seu direito; mas
265

agora, quere encaracolar os cabelos de S. Ex. à minha custa, isto


que é um pouco duro. Passemos, leitor ao teatro. (p. 135)

Na crônica de 24 de março de 1862, após ridicularizar o ministério do momento


que, por meio dos jornais oficiais, alardeava uma possível revolta popular preparada
pelos chefes liberais para tomar o governo, convida o leitor a mudar de rumo nos
assuntos tratados:

Voltemos, porém, de rumo. Deixemos de vez essas demências


políticas que, por justo título, fazem do nosso país a fábula dos
folhetinistas do resto do mundo. Outra parte nos chama, amigo
leitor, a da mocidade estudiosa, trabalhadeira, esperança de
melhor futuro. (p. 189)

Essa possibilidade de aproximação discursiva que o cronista faz com o leitor


resulta, conforme pontuamos, dessa compreensão do leitor sobre o gênero crônica como
texto informal e leve, e, portanto, livre das exigências formais dos gêneros clássicos.
Certamente, o cronista opera tematicamente – e tecnicamente, por meio desses
elementos técnico-estéticos aqui esboçados – esse campo ilusório, constituindo-o por
meio do nivelamento entre enunciador e leitor operado pelo discurso embreado.
266

CAPÍTULO 5 - DIALOGISMO E DISCURSO POLÊMICO

Natureza dialógica da consciência, natureza dialógica da própria


vida humana. A única forma adeqauda de expressão verbal da
autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso. A vida é
dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo:
interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o
homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os
lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-
se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico
da vida humana, no simpósio universal.
Mikhail Bakhtin, Problemas da Poética de Dostoiévski, 329

Já é lugar comum na crítica machadiana identificar o recurso à intertextualidade


e ao dialogismo, principalmente em seus grandes romances e contos, como forma de
evidenciar a riqueza da escrita machadiana. Se nos detivermos somente no prólogo de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, encontraremos inúmeras referências de sua escrita
que confirmam essas relações intertextuais e dialógicas tanto com as letras clássicas, os
discursos correntes e institucionais de sua época, como também com o leitor implicado.
O crítico Afrânio Coutinho em diferentes ensaios sobre Machado e, principalmente, em
sua obra A filosofia de Machado de Assis, de 1940, apontou a presença da literatura
inglesa na obra machadiana como procedimento estético. Helen Caldwell, em sua obra
O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, de 1960, utiliza-se dessa intertextualidade
para alterar paradigmaticamente a abordagem hermenêutica do romance D. Casmurro.
Gilberto Pinheiro Passos, na mesma linha crítica de Coutinho, mostra a contribuição da
literatura francesa na composição machadiana. Outros críticos têm mostrado a presença
da literatura alemã, italiana, grega e sobretudo da Bíblia como elemento composicional
dessa produção. Por isso, não nos deteremos em especificar essa presença em seus
contos e romances, deixando apenas na bibliografia as referências a esses estudos.
Em Os Cegos, a citação de textos clássicos não é freqüente como costuma ser
em suas obras posteriores. Contudo, não deixa de ser utilizada, conforme vemos no final
do primeiro texto: Aguardamo-lo. Entretanto, fique certo de uma verdade: nós não
ferimos personalidades, mas sim argumentos: mesmo apesar da frase de Buffon – O
estilo é o homem (grifo nosso). Este exemplo torna-se flagrante do modo de operação
que orienta o uso das referências intertextuais nas crônicas, contos e romances do autor.
Ao encerrar o texto por meio do procedimento de afetar benevolência para com seu
adversário, usa a referência a Buffon para ironizá-lo. Desse modo, nega querer ferir seu
267

opositor, estabelecendo uma disjunção entre texto e autor, mas, em seguida, por meio de
uma sutileza retórica, retoma a conjunção entre texto e autor para desferir sua crítica.
Ao citar Buffon, mostra ser improcedente a disjunção, sem, contudo, afirmá-lo. A
referência ao letrado e cientista francês opera-se como discurso de autoridade que se
contrapõe à sua disjunção e com isso cria uma equivocidade de sentido, deixando ao
leitor inferir se há ou não crítica. Para tanto, opera a citação em contexto diferente. A
referência é tirada do livro de Buffon Discurso sobre o Estilo, no qual o autor afirma:

A quantidade dos conhecimentos, a singularidade dos factos, a


própria novidade das descobertas não são garantias seguras da
imortalidade: se as obras que os contêm versarem sobre objectos
minúsculos, se estiverem escritas sem gosto, sem nobreza e sem
gênio, perecerão, porque os conhecimentos, os factos e as
descobertas facilmente se arrebatam, se transportam e lucram até
com ser realizados por mãos mais hábeis. Tais coisas são
exteriores ao homem, o estilo é o próprio homem. O estilo não
pode, pois, nem arrebatar-se, nem transportar-se, nem alterar-se:
se for elevado, nobre, sublime, o autor será igualmente admirado
em todos os tempos; porque só a verdade é duradoura e,
inclusive, eterna. Ora um belo estilo só é tal, de facto, pelo
número infinito das verdades que expõe. Todas as belezas
intelectuais que nele se encontram, todas as relações de que ele é
composto, são outras tantas verdades igualmente úteis, e talvez
mais preciosas para o espírito humano do que aquelas que
podem constituir o fundo do tema. (BUFFON, 2011, p. 12)

Esse procedimento intertextual é identificado por Sebastião Cherubim, em seu


Dicionário de Figura de Linguagem, como aplicação, a qual consiste em adotar um
pensamento de um autor em contexto e sentido diferentes e, às vezes até mesmo opostos
ao que foi composto, embora mantenha alguma semelhança entre a referência e a
citação. No caso, como podemos ver no trecho de Buffon, ele trata do estilo em
oposição ao conhecimento, fatos, descobertas, os quais são exteriores ao homem,
enquanto que o estilo no qual esses elementos se elaboram identifica-se com o próprio
autor; por isso, o estilo é o próprio homem. Fica-nos mais nítida a tensão e, portanto, a
crítica ao seu adversário se lermos mais abaixo a afirmação de que, se o estilo for
elevado, nobre, sublime, o autor será igualmente admirado em todos os tempos, sendo o
contrário também verdadeiro. Desse modo, a crítica se opera por meio da ambiguidade,
pois, ao citar o autor francês como um contra-exemplo, faz a crítica ao opositor sem,
268

contudo, afirmá-la. Em nossa dissertação sobre as crônicas A + B161, havíamos


observado, com base em Linda Hutcheon162, que o procedimento intertextual opera-se
como paródia, principalmente se a entendermos como relações de acordo e de
intimidade entre o texto citado e o texto que o cita. Logo, ao invés de entendermos o
enunciado como crítica ao texto de Buffon, este se torna instrumento de combate e,
portanto, de desqualificação de seu adversário.
Conforme observa Valentin Voloshinov em seu texto Discurso na vida e
Discurso na arte: sobre poética sociólogica, todo enunciado concreto une os
participantes da situação comum como co-participantes que podem conhecer, entender e
avaliar a situação com algumas proximidades ideológicas. (VOLOSHINOV, s.d., p. 6)
Desse modo, o texto de Paula Brito, ao instaurar a polêmica em seu Marmota
Fluminense, busca essa unificação entre seus leitores a partir da situação comum – o
mote sobre Os Cegos – incitando seus leitores a tornarem-se coparticipantes que, por
conhecerem e entenderem, podem elaborar suas avaliações. Como observa Marialva
Barbosa, em sua obra já citada anteriormente, os jornais do Império constituíam-se
como arenas a fomentar polêmicas que se multiplicavam por quase todos os jornais.
Afirma a autora: "Falando uns para os outros, uns contra os outros, a imprensa e os
jornalistas criavam uma espécie de teatralização da política e dos temas cotidianos"
(BARBOSA, 2010, p. 13). Durante o Segundo Reinado, a imprensa era caracterizada
como violenta, criticando seja os Ministérios, seja a oposição, o que revela o fato de ela
se constituir como ator principal das disputas políticas. É também por meio desses
embates polêmicos na imprensa que diferentes grupos da sociedade buscam se fazer
representar como personagens políticos, o que, desde o início de sua participação, o
jovem Machado de Assis não escapa à regra.
Por propor a polêmica, cuidando em não manifestar qualquer posicionamento, o
texto de Paula Brito elabora-se como discurso bivocal, por estar voltado ao debate,

161 SOUSA NETO, Dário Ferreira. Memórias do cotidiano e saberes sujeitados: análise das crônicas A +
B de Machado de Assis, São Paulo, FFLCH – USP, 2008 (Dissertação de Mestrado).
162 No entanto, para em grego também pode significar «ao longo de», e, portanto, existe uma
sugestão de um acordo ou intimidade, em vez de um contraste. É este segundo sentido esquecido do
prefixo que alarga o escopo pragmático da paródia de modo muito útil para as discussões das formas
de arte modernas, como veremos no capítulo seguinte. (...) A paródia é, pois, na sua irônica
«transcontextualização» e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica
entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada
pela ironia. (...) O prazer da ironia da paródia não provém do humor em particular, mas do grau de
empenhamento do leitor no «vaivém» intertextual (bouncing) para utilizar o famoso termo de E. M.
Forster, entre cumplicidade e distanciação. HUTCHEON, 1989, P. 48
269

enquanto expressão e produto da interação social entre três participantes – o falante


(autor Paula Brito), o interlocutor (leitores do periódico Marmota Fluminense
convidados a participar da polêmica), o tópico da fala (o mote sobre Os cegos). Logo,
enquanto discurso na arte, o texto de Paula Brito não está estreitamente dependente do
contexto extraverbal, pois convida seu leitor, ao propor o mote, a manifestar livremente
seu posicionamento sobre o tema, bem como trazer para o periódico outros textos que
tenham tratado dele.
Mikhail Bakhtin, em sua obra Problemas da Poética de Dostoiévski, observa
que, quanto mais o discurso no romance se torna bivocal, o diálogo adentra seu interior,
penetrando cada gesto, cada movimento mímico do herói, o que o constitui como
microdiálogo163. Esse discurso bivocal, observado por Bakhtin, que permite o
dialogismo entre autor e leitor, bem como entre textos, sejam da literatura, da matéria
jornalística ou textos políticos e parlamentares, torna-se procedimento recorrente nas
crônicas machadianas.
Na crônica de 12 de outubro de 1861 da série Comentários da Semana, o
cronista trata da matéria de jornal que relata o caso de duas mulheres, as quais são
criticadas pelos jornais da época. Conforme nota de Lúcia Granja e Jefferson Cano, o
Jornal do Comércio havia noticiado em 24 de setembro de 1861 o caso de uma
cartomante, moradora na rua Cotovelo, questionando a prática de “bruxarias” feita por
ela; em 6 de outubro do mesmo ano, a Semana Illustrada havia feito uma charge da
cartomante como forma de ridicularizá-la. Ao tratar do caso, o cronista faz o seguinte
comentário:

A vossa avó de Cuma, se hoje vivesse, sem dúvida teria melhor


do que eu apostrofado os blasfemos. O que poderia fazer a

163 As relações dialógicas - fenômeno bem mais amplo do que as relações entre as réplicas do diálogo
expresso composicionalmente - são um fenômeno quase universal, que penetra toda a linguagem
humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e
importância. Dostoiévski teve a capacidade de auscultar relações dialógicas em toda a parte, em toda a
parte, em todas as manifestações da vida humana consciente e racional; para ele, onde começa a
consciência começa o diálogo. Apenas as relações puramente mecânicas não são dialógicas, e
Dostoiévski negava-lhes categoricamente importância para a compreensão e a interpretação da vida e
dos atos do homem (sua luta contra o materialismo mecanicista, o fisiologismo em moda e Claude
Bernard, contra a teoria do meio, etc.). Por isso todas as relações entre as partes externas e internas e
os elementos do romance têm nele caráter dialógico; ele construiu o todo romanesco como um
"grande diálogo". No interior desse "grande diálogo" ecoam, iluminando-o e condensando-o, os
diálogos composicionalmente expressos das personagens; por último, o diálogo se adentra no interior,
em cada palavra do romance, tornando-o bivocal, penetrando em cada gesto, em cada movimento
mímico da face do herói, tornando-o intermitente e convulso; isto já é o "microdiálogo", que
determina as particularidades do estilo literário de Dostoievski. (BAKHTIN, 2008, p. 47)
270

minha linguagem pálida, hoje, que nem é possível falar dos


deuses, nem adubar uma increpação com as singelas, mas
brilhantes, expressões pagãs? Valha a desculpa, se não vale o
canto, como diz o poeta. (ASSIS, 2008d, p. 53)

Ao estabelecer a bivocalidade entre o discurso jornalístico e a referência à avó


de Cuma, o cronista parodia-o por meio da citação da sibila de Cumas, guia de Enéias
ao Hades, na obra Eneida, de Virgílio. Essa relação intertextual estabelece uma tensão
com a crítica do texto ao fazer referência às personagens da épica clássica em que as
figuras das profetisas ou adivinhas do futuro são personagens importantes do enredo.
O discurso bivocal é dialógico, seja por meio da paródia, da estilização, da
polêmica clara, como o debate, ou da polêmica velada, como a ironia164. No mesmo
texto, Bakhtin observa a relação entre o discurso convencional e o não convencional em
que este, posto como primário, serve a novos fins, que o dominam de dentro para fora,
tornando-o convencional. Tal procedimento é operado pela estilização do discurso que
completa a fusão de vozes no texto. Os diálogos recorrentes entre cronista e leitor,
embora sejam comuns nos textos de outros cronistas do tempo de Machado, tornam-se
em suas crônicas estilização que determina a composição narrativa de seus romances,
sobretudo, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro,
conforme analisado anteriormente.
Assim, veja-se o exemplo na crônica de 11 de agosto de 1878 da série Notas
Semanais, que trata da notícia sobre a retirada da guarda no município de Paquetá em
pleno processo eleitoral. Estabelecendo o estranhamento dessa decisão do delegado de
polícia, o cronista elabora uma narrativa que “explica” sua razão. Ele o faz por meio da
narrativa fantástica e, por isso, faz, ao término, o seguinte comentário para seu leitor:
"Ri-se o leitor? Espanta-se talvez desta narração, que lhe parece fantástica? Não sei,
entretanto, se poderá explicar de outro modo o fato de ter o subdelegado de Paquetá,
promovido a retirada da força que para lá fora." (ASSIS, 2008e, P. 201). Evidencia-se,
nesse diálogo com o leitor, o que Bakhtin identifica como estilização em que ocorre a
completa fusão das vozes. No caso do texto, o cronista evidencia a voz de descrédito de
seu interlocutor manifestado por meio do riso. A polêmica presente nesta crônica,

164 Como já tivemos oportunidade de observar, a paródia é um elemento inseparável da "sátira


menipéia" e de todos os gêneros carnavalizados. A paródia é organicamente estranha aos gêneros
puros (epopéia, tragédia), sendo, ao contrário, organicamente própria dos gêneros carnavalizados. Na
Antigüidade, a paródia estava indissoluvelmente ligada à cosmovisão carnavalesca. O parodiar é a
criação do duplo destronante, o mesmo "mundo às avessas". Por isto a paródia é ambivalente.
BAKHTIN, 2008, p. 109.
271

diferentemente de seu texto Os Cegos, opera-se de modo velado, agindo no discurso do


outro de dentro para fora. É o que Bakhtin chama de discurso polêmico oculto que
determina sua bivocalidade165. Conforme mostra, diferentemente das formas retóricas
unívocas, o discurso polêmico oculto tende para o bilinguismo como um fim, pois a
bivocalidade no romance determina sua peculiaridade (BAKHTIN, 2010, p. 154). É o
discurso de outrem na linguagem de outrem, servindo para refratar a expressão das
intenções do cronista como característica do plurilinguismo166.
Dilson Ferreira da Cruz, ao analisar as advertências do romance, observa o modo
como elas confirmam o ethos do enunciador polemista ao instaurar de forma explícita
ou sutil o debate, o confronto de opiniões de modo que permita, no caso dos romances,
seus narradores apresentarem de forma livre seu ponto de vista sobre o mundo. À
medida que o enunciador possibilita esse posicionamento do narrador, também aponta a
possibilidade de uma outra via, fazendo com que o discurso polêmico, embora funcione
por meio da coerção na voz do narrador, se manifeste como discurso bivocal por conter
internamente a possibilidade do contraditório, cuja constituição, com base em Bakhtin,
é definida pelo crítico machadiano como polêmica velada. Ou seja, ao lado do sentido
objetivo do discurso, opera-se um segundo sentido orientado para o discurso do outro,
origem da polêmica167. Se em seus primeiros textos analisados no primeiro capítulo,
como também na série de crônicas Comentários da Semana, o autor estabelece a

165 A polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso refutável do outro, que é o seu
objeto. Já a polêmica velada está orientada para um objeto habitual, nomeando-o, representando-o,
enunciando-o, e só indiretamente ataca o discurso do outro, entrando em conflito com ele como que
no próprio objeto. Graças a isto, o discurso do outro começa a influenciar de dentro para fora o
discurso do autor. É por isto que o discurso polêmico oculto é bivocal, embora, neste caso, seja
especial a relação recíproca entre as duas vozes. p. 170
166 O plurilingüismo introduzido no romance (quaisquer que sejam as formas de sua introdução) é o
discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções do
autor. A palavra desse discurso é uma palavra bivocal especial. Ela serve simultaneamente a dois
locutores e exprime ao mesmo tempo duas intenções diferentes: a intenção direta da personagem que
fala e a intenção refrangida do autor”. BAKHTIN, 2010, P. 127
167 Enfim, as advertências presentes nos romances de Machado - e agora se percebe o quanto fazem
jus ao nome - parecem compor com as narrativas uma harmonia admirável, e apontar para um único
sujeito da enunciação, um único éthos. Além de confirmar sua dissimulação, a análise dos vários
níveis enunciativos caracteriza o enunciador como adepto da polêmica, pois sempre a instala de forma
mais ou menos sutil. As advertências revelam que esse enunciador, em vez de optar por uma versão
única dos fatos, prefere debate, o confronto de opiniões, e, assim, deixa que seus narradores
apresentem livremente seu ponto de vista sobre o mundo, o qual constitui a palavra do herói, como
diria Bakhtin. D. F. da Cruz p. 327-328
Surge assim um enunciador contestador que instaura o debate bem nos termos propostos por Bakhtin
(1981), pois, como ocorre com as polêmicas veladas, o discurso do narrador primeiro é construído de
maneira que, além de resguardar seu próprio sentido objetivo, ele possa atacar polemicamente o
discurso do outro (o narrador) sobre o mesmo assunto e afirmação do outro sobre o mesmo objeto
(Bakhtin, op. cit., 169). ( p. 395)
272

polêmica aberta no qual é possível perceber certo posicionamento ideológico defendido,


à medida que amadurece sua escrita, fazendo uso de diversos procedimentos
composicionais, essa polêmica já não se resume a uma ataque a determinadas formações
discursivas de seu tempo, mas, como observa João Adolfo Hansen, em seu artigo Dom
Casmurro: Simulacro e Alegoria, a relativizar e dissolver as unidades naturalizadas de
todos os discursos:

apropriando-se da sua pretendida universalidade para macaqueá-


los e levar às últimas consequências o cinismo deles antes de
dissolvê-los no nada de uma vontade de dominação encenada na
escrita de autores ficcionais "volúveis", para usar o termo usado
por Roberto Schwarz para rebatizar o narrador hipocondríaco de
Sterne. (HANSEN p. 159)

Observamos essa diferença do discurso polêmico na comparação entre um


trecho do texto de Os Cegos, no qual a polêmica se dá de forma aberta com Jq. Sr. e as
crônicas analisadas nesse trabalho:

O Sr. Jq. Sr. diz que, para o cego de nascença a vida começa
sem a aniquilação da melhor parte da vida – a vista – e que
portanto o cego por acidente, sofrendo essa aniquilação, é o
mais digno de lástima. A conseqüência é errada, e está
diametralmente oposta à única conclusão possível do princípio
estabelecido. É pela razão mesma de que o cego de nascença
não sofre a aniquilação da vista, que é o mais desgraçado. Ao
nascer ele esbarra com a noite que o deve cercar durante a sua
vida; esbarra com esse caos para que nunca há de soar um Fiat.
Como não ser desgraçado? Sem tero gozo do cego por desgraça,
que vê em parte pelos olhos do espírito, ele não pode fazer uma
ideia exata dos objetos que lhe apresentais; e conseguintemente
não pode compreender-vos, – gozar um pouco do que gozais –
pelo exercício dos outros sentidos ou faculdades. (ASSIS,
ANEXO 3)168

Nessa polêmica com Jq. Sr., o autor explicita seu posicionamento, refutando o
de seu adversário. Como polêmica aberta a refutação é direta e explícita de modo que se
evidencia qual seja o posicionamento do autor. Procedimento semelhante se dá na
crônica de 16 de dezembro de 1861 da série Comentários da Semana, na qual o cronista
faz referência ao texto de Macedo de Soares publicado no jornal Correio Mercantil,

168 Cabe relembrar que esses textos foram tirados do livro Dispersos de Machado de Assis organizados
por Jean-Michel Massa, mas, para facilitar a leitura, os incluímos nos anexos desta tese.
273

cujo posicionamento tenta provar que o não escapa à lei econômica e que, portanto,
deve ser regido pelas corporações industriais. Tomando posicionamento contrário, o
cronista estabelece seu discurso polêmico evidenciando o posicionamento:

Entretanto, antes que tenha aparecido o trabalho oficial, já uma


opinião se manifestou nas colunas do Correio Mercantil.
Essa opinião, sinto dizê-lo, devia ser a última lembrada, se
merecesse ser lembrada.
A doutrina liberal de concorrência aplicada à espécie prejudica o
ponto essencial da questão, e que se tem em vista atingir.
Criar no teatro uma escola de arte, de língua e de civilização,
não é obra da concorrência, não pode estar sujeita a essas mil
eventualidades que tem tornado, entre nós o teatro uma cousa
difícil e a arte uma profissão incerta.
É na ação governamental, nas garantias oferecidas pelo poder,
na sua investigação imediata, que existem as probabilidades de
uma criação verdadeiramente séria e seriamente verdadeira.
Uma legislação emanada da autoridade, a reunião dos melhores
artistas, a escolha dos mestres de ensino, a criação de escolas
elementares, onde se aprenda arte e língua, duas cousa muitas
vezes ausentes de nossas cenas, a boa remuneração ao trabalho
dos compositores, um júri de julgamento de peças, em boas
bases, ficando extinto o conservatório, tudo isto sem cuidar-se
na flutuação de receitas, tais são os fundamentos, não de um
teatro-escola, mas do teatro, na sua acepção mais abstrata.
Virá o estimulo, os outros aprenderão no primeiro, e a arte
torna-se-á um fato, uma cousa real.
Mas a deixar à luta individual a criação de uma escola nas
condições exigidas, equivale a não criar cousa nenhuma. E se
alguma cousa se fizer há de ser demasia lento.
Não, o teatro não é uma indústria, como diz a opinião a que me
refiro; não nivelemos assim as idéias e as mercadorias. O teatro
não é um bazar, e se é, que estranhas mercadorias são estas,
chamadas Othelo, Athalia, Tartufo, Marion Delorme e Frei Luiz
de Souza, e como devem soar mal nos centros comerciais os
nomes de Shakespeare, Racine, Molière, Victor Hugo e Almeida
Garret! (ASSIS, 2008d, pp. 129-130)

Em 14 de dezembro de 1861, no Correio Mercantil, Macedo de Soares publicou


um artigo nomeado O Teatro, a concorrência e o Governo, no qual critica artigo de um
outro cronista, publicado no Jornal do Commercio, criticando a subvenção dada ao
teatro. Qualificando-a como mesquinha, propõe que o governo deveria levantá-la,
duplicá-la, quadruplicá-la para que o teatro desse bons frutos. Segundo Macedo de
Soares:
274

Esta proposição, tão repugnante com os princípios os mais


comesinhos da economia política, oposta aos interesses da
administração e mais que tudo incompatível com o estado atual
das finanças do país, moveu-me à discussão da liberdade dos
teatros. (...) Pretende-se que ao governo incumbe velar pela
manutenção do gosto público e das tradições da arte. Mas são
porventura de tempera superior à dos os membros do governo?
Foi-lhes infundido pelo Espírito Santo o ideal do gosto em
matéria de arte? Quem foi que confiou-lhes a missão de depurar
e dirigir o gosto da plateia, de atear e vigiar no altar de Vesta o
fogo sagrado da inspiração, de colher, conservar e transmitir as
boas tradições da cena? O resultado da proteção foi sempre, para
servir-me de uma expressão autorizada, o encarecimento
artificial do prazer do espetáculo. (...) o teatro é uma indústria, e
a lei primordial do desenvolvimento das indústrias, qualquer que
ela seja, é a liberdade, é a concorrência. No regime da
concorrência, um teatro fiscaliza o outro e estimula-o a mais e
melhor agradar o público. Este será o juiz soberano de todos
eles, e nessa luta incessante da competência multiplicam-se os
esforços, cada vez mais profícuos, mais fecundos em resultados
brilhantes e animadores. É deste modo que os próprios teatros
contribuirão para aperfeiçoar ou retificar o gosto do público,
dando-lhe em espetáculo bons dramas, e serão os mais enérgicos
veladores das tradições da cena.Do estudo, da meditação das
vigílias depende o bom sucesso de uma obra dramática. Pouco
se estuda; eis a razão por que nada se faz. Será o privilégio que
há de vir atear o ardor das lucubrações? será o monopólio que há
de vir estimular-nos ao estudo? Penso que ninguém se atreverá a
afirmá-lo.

M. S.169

169 Adequamos o texto às normas gramaticais atuais, mas para que se possa verificar não apenas o
conteúdo, mas à forma da escrita, disponibilizamos a imagem da matéria. Também transcrevemos
apenas alguns trechos relacionados à discussão com a crônica machadiana.
275

Título: O Theatro, a concorrência e o Governo

FONTE: Ministério da Cultura - Fundação Nacional pró-leitura Biblioteca Nacional -


plano nacional de microfilmagem de periódicos brasileiros
276

Conforme se pode verificar é sobre o discurso da livre concorrência e da


compreensão do teatro como indústria que o cronista vai se debruçar para estabelecer a
polêmica e refutá-la, afirmando não ser a arte uma mercadoria - não nivelemos as ideias
e as mercadorias - e para isso, o cronista recorre à intertextualidade, operando o
argumento de autoridade em Victor Hugo, ao afirmar no prefácio da Lucrécia Bórgia -
tragédia (peça) baseada no mito de Lucrécia, que foi transformada em libretto por Felice
Romani para a Ópera de Donizetti, Lucrezia Borgia (1824), que foi apresentada pela
primeira vez no Scala de Milão em 26 de dezembro de1834. Quando foi produzida
em Paris, em 1840, Hugo obteve um injunction contra produções adicionais. O libretto,
então, foi reescrito e reintitulado La Rinegata, com os caráteres italianos mudados para
turcos, as apresentações recomeçaram. A primeira produção em língua inglesa foi
em Londres em 30 de dezembro de 1843170:

O teatro é uma tribuna, o teatro é um púlpito. O drama, sem sair


dos limites imparciais da arte, tem uma missão nacional, uma
missão social e uma missão humana. Também o poeta te cargo
d’almas. Cumpre que o povo não saia do teatro sem levar
consigo alguma moralidade austera e profunda. A arte só, a arte
pura, a arte propriamente dita, não exige tudo isso do poeta; mas
no teatro não basta preencher as condições da arte. (ASSIS,
2008d, p. 130)

A crítica feita por Machado de Assis, provoca Macedo Soares, três dias depois,
em 19 de dezembro de 1861, a publicar uma réplica na qual volta a reafirmar os riscos
da intervenção do Estado no teatro, bem como prejuízo da censura que era então
praticada. Curiosamente, seu texto se inicia a partir da mesma base intertextual com o
qual Machado de Assis encerrou sua crônica, isto é, pela referência intertextual a Victor
Hugo. Macedo de Soares inicia relatando a discussão sobre a mesma situação na França
em que o ministro do interior Dufaure, em 1849, também montou uma comissão
composta por diversos nomes importantes da literatura como Theophilo Gautier, Victor
Hugo, Alexandre Dumas, Rolle, Régnier, Prevost, Hostein, entre outros, dos quais,
apenas Hostein defendeu a concorrência livre, de onde Macedo Soares retirou seus
argumentos e, a manutenção de medidas restritivas teve efeitos negativos no teatro
francês.

170 Fonte: Wikipédia http://pt.wikipedia.org/wiki/Lucr%C3%A9cia_B%C3%B3rgia. Consultado em 08


de novembro de 2014
277

Título: O Theatro, a concorrência e o Governo

FONTE: Ministério da Cultura - Fundação Nacional pró-leitura Biblioteca Nacional -


plano nacional de microfilmagem de periódicos brasileiros
278

Na crônica do dia 24 de dezembro de 1861, Machado retorna ao tema, porém, já


anuncia ao seu contendor não querer dar continuidade à polêmica pelo fato de Macedo
Soares não demonstrar como o teatro, na lógica de concorrência, não escaparia à lei
econômica que rege as corporações industriais e, com isso, dá por encerrada a polêmica:

Devia responder agora aos dois artigos que, a respeito do Teatro,


a concorrência e o governo, publicaram no Correio Mercantil o
Sr. Macedo Soares é o verdadeiro nome das iniciais M. . S. ,
com que saiu o primeiro artigo.
Permitirá o meu ilustrado e talentoso contendor que eu fuja ao
debate; por convicção de erro, não; por medo, fora possível, se
eu atendesse só a minha inferioridade pessoal, e não à
consideração de que estou no terreno da verdade.
Mas a que chegaremos nós? O Sr. Macedo Soares, nos seus dois
últimos artigos, não pôde, apesar do seu talento e da sua
ilustração, demonstrar que o teatro não escapa à lei econômica,
que rege as corporações industriais; eu continuo convencido do
contrário. E pelas condições deste escrito não me é dado
estabelecer uma discussão sobre a matéria; com as minhas
espaçadas aparições o debate seria fastidioso.
Tenho uma observação a fazer: quando eu disse que a opinião
do Sr. Macedo Soares devia ser a última lembrada, se merecesse
ser lembrada, não quis de modo algum exprimir um desdém, que
tomaria as proporções do ridículo, partindo de mim para com o
Sr. Macedo Soares. (p. 137)

Como temos observado, desde os Cegos até Comentários Semanais, Machado


de Assis opera a polêmica aberta, evidenciando seus posicionamentos políticos e
ideológicos. A partir do momento em que o cronista opta por tratar do que define como
política amena, a polêmica torna-se velada, operando procedimentos mais ricos e sutis
como o dialogismo, a polifonia e a intertextualidade, não mais para demarcar um
posicionamento, mas para relativizar e dissolver as unidades discursivas e operar nessa
relativização os saberes sujeitados a partir das ideologias do cotidiano, como forma de
evidenciar as arbitrariedades e os abusos e absurdos da política. Em crônica de 1º de
setembro de 1878 da série Notas Semanais, já citada anteriormente - citaremos um
trecho para relembrá-la - evidencia-se esse novo procedimento da polêmica velada
observada nos romances por Cruz, com o qual o cronista relativiza e dissolve essas
unidades naturalizadas do discurso da Câmara:

Porquanto, a dita Câmara Municipal, perguntando-lhe o


procurador se podia mandar fornecer jantar ao Tribunal do Júri,
279

quando as sessões se prolongassem até tarde, respondeu que


não, visto que tal despesa não se acha autorizada em lei.
Teve razão a Câmara, e teve-a duas vezes; a primeira, porque a
lei o veda, e a obediência à lei é a necessidade máxima; a
segunda, porque o jantar é, de certo modo, um agente de
corrupção.
Não me venham com sentenças latinas: primo vivere, deinde
judicare. Não me venham com considerações de ordem
fisiológica, nem com rifões populares, nem com outras razões da
mesma farinha, muito próprias para embair ignorantes ou colher
descuidados, mas sem nenhum valor ou alcance para quem olhar
as coisas de certa altura. A questão é puramente moral; e a
presença do rosbife não lhe diminui nem lhe troca a natureza.
Não me venham também com o jantar na política; porque, em
certos casos, não há incompatibilidade entre o voto e o prato de
lentilhas; e, politicamente falando, o paio é uma necessidade
pública. O caso dos jurados é outra coisa. (ASSIS, 2008e, p.
236-237)

Em um primeiro momento, o cronista parece concordar com o posicionamento


da Câmara que nega fornecer cadeiras para o tribunal do júri, bem como nega jantar ao
seus membros. Contudo, focando-se na segunda negação, o cronista opera o
rebaixamento da discussão, conforme já observamos em análise anterior, reatualiza o
adágio latino e leva às últimas consequências a negação para evidenciar seu cinismo e o
absurdo da negação, estabelecendo o dialogismo como discurso bivocal conforme a
definição de Bakhtin anteriormente apresentada.
À medida que o cronista comenta notícias dos jornais ou algum outro
acontecimento de conhecimento público, opera esse dialogismo com seu leitor. É o caso
da crônica de 28 de julho de 1878 da mesma série, em que, ao tratar da estreia da
Companhia Lírica Ferrari, levada à cena pela empresa do artista Heller, em cartaz no
Teatro Phénix Dramática, com a peça O demi monde, de Alexandre Dumas Filho,
parodia as famílias cariocas, por meio da comparação com a Torre de Babel. Conforme
o texto, as famílias viviam em completa harmonia, não havendo nenhum desacordo
entre os casais. Após a estreia, tornaram-se verdadeiras Torres de Babel, criando
confusão das coisas e de línguas. Posta a confusão, o cronista envolve seu leitor,
conforme o trecho:

Cada casa do Rio de Janeiro é hoje uma redução da Torre de


Babel: confusão e divisão de línguas. (...) Durou esta situação
até há poucos dias, creio que até segunda-feira ou terça, dia em
que deu o começo a confusão de todas as coisas e línguas. O
280

marido desprezou a espadilha; a mulher abriu mão das aventuras


contadas no rodapé das gazetas, e não quer mais saber se a
Luciana casará ou não com Alfredo. Que se casem, que os
levem o demo ou um anjo; que se façam mendigos ou simples
cobradores das rendas públicas –, é o que não importa à leitora.
Quanto ao leitor, se o vejo daqui a roer as unhas, a contar as
tábuas do teto, a receber bilhetinhos noturnos e lacônicos, vejo-o
sobretudo desgraçado, porque nem entende a consorte, nem a
consorte o entende. Tinham uma só língua, um só costume, um
só parecer; unidade que se rompeu, indo as partes componentes
em direções opostas. (p. 180)

Ao mostrar o desinteresse da leitora quanto ao romance das personagens


publicado em um dos jornais da época, o autor o faz por meio do discurso indireto livre,
inserindo o discurso de outrem na linguagem de outrem como forma de refratar as suas
intenções. De modo mais sutil, semelhante ao trecho anteriormente citado, mimetiza as
manifestações corporais do leitor, estabelecendo essa bivocalidade no texto. Essa
mimetização corporal encontramos também na crônica de 21 de julho de 1878 da
mesma série, tratando sobre as touradas que se instalaram no Rio de Janeiro em 9 de
junho do mesmo ano: "Já daqui estou a ver franzidas as sobrancelhas liberais do leitor,
não mais liberais do que as minhas, que o são, e de bom cabelo;" (p. 171). Ou na
crônica de 4 de agosto do mesmo ano, quando ironiza as formas violentas em que se
davam os processos eleitorais no Império. O discurso irônico opera-se pela
contraposição do interesse de alguns políticos em tornar a política obra científica,
suprimindo suas paixões, que inflamavam os processos eleitorais. Afirma: "Vejo que o
leitor começa a cabecear. Este período engravatado tem-lhe ares de mestre-escola." (p.
192). Este exemplo mostra-nos que o texto não é apenas um discurso referencial, mas
ficcionalização do ato de leitura como parte constituinte da composição, na medida em
que o cronista transcreve o movimento negativo da cabeça do leitor, isto é, seu sono
provocado pelo tédio que sente com o texto, não pela matéria tratada, mas pelo estilo
como essa matéria se elabora: "Este período engravatado tem-lhe ares de mestre-
escola."
Como afirma Bakhtin em seu texto supracitado, o dialogismo é um fenômeno
mais amplo do que as composições que utilizam do diálogo como réplica operam, pois
penetra em toda a linguagem humana. Uma vez que as ideias não vivem na consciência
individual isolada, pois desse modo degenera e morre, só podem desenvolver-se e
encontrar sua expressão verbal quando contraem relações dialógicas essenciais com as
281

ideias de outros: somente assim poderão ter objetividade social e gerar novas ideias. O
cronista confirma essa compreensão da existência social das ideias na crônica de 4 de
agosto de 1878, ao definir a sua função como cronista:

Vivemos seis dias a espreitar os sucessos da rua, a ouvir e palpar


o sentimento da cidade, para os denunciar, aplaudir ou patear,
conforme o nosso humor ou a nossa opinião, e quando nos
sentarmos a escrever estas folhas volantes, não o fazemos sem a
certeza (ou a esperança!) de que há muitos olhos em cima de
nós. Cumpre ter ideias, em primeiro lugar; em segundo lugar
expô-las com acerto; vesti-las, ordená-las, a apresentá-las à
expectação pública. A observação há de ser exata, a facécia
pertinente e leve; uns tons mais carrancudos, de longe em longe;
uma mistura de Geronte e de Scapin, um guisado de moral
doméstica e solturas da Rua do Ouvidor... (ASSIS, 2008e, P.
190)

É nesse sentido que Bertrand, em sua obra Caminhos da Semiótica Literária,


desenvolve o conceito de uso em Hjelmslev. Substituindo o conceito saussuriano de fala
por este, demarca a distinção de ambos, uma vez que a fala remete exclusivamente ao
exercício livre e individual da língua, enquanto que o uso remete às práticas que são
sedimentadas pelos hábitos das comunidades linguísticas e culturais ao longo da
história. Assim, Bertrand propõe que a enunciação individual deve ser compreendida no
imenso corpo das enunciações coletivas como determinação dos atos de linguagem 171.
Nas palavras do cronista, as ideias devem ser expostas à expectação pública.
Em crônica de 23 de junho de 1878, trata da invenção da fonografia e sobre o
fato de as companhias musicais não se utilizarem dela para divulgação de suas peças.
Novamente, dramatiza o leitor – agora, ao invés de um leitor genérico, um leitor
especificado por meio do adjetivo diletante:

Talvez algum diletante, do gênero grave, me argua de amparar,


com a autoridade da minha razão, argumentos de ordem
baixamente sensual, e portanto indignos da atenção do sábio e

171 Compreende-se que a enunciação individual não pode ser vista como independente do imenso
corpo das enunciações coletivas que a precederam e que a tornam possível. A sedimentação das
estruturas significantes, resultante da 'história, determina todo ato de linguagem. Há sentido "já-dado",
depositado na memória cultural, arquivado na língua e nas significações lexicais, fixado nos esquemas
discursivos, controlado pelas codificações dos gêneros e das – formas de expressão que o enunciador,
no momento do exercício individual da fala, convoca, atualiza, reitera, repete ou, ao contrário, revoga,
recusa, renova e transforma BERTRAND, D. 2003, P. 87
282

menos atribuíveis a um público ilustrado e superior. Respondo


com duas pedras na mão; e seja a primeira, que ao diletante
sabe-lhe melhor o seu vinho velho em taça de cristal do que em
canjirão de barro; e a segunda, que a música, excetuadas
algumas obras, alguns gênios e alguns amadores, é um prazer
puramente sensual. Que não? Há de ser muito difícil convencer-
me de que uma boa parte da gente vai às óperas para outra coisa
que não seja gozar um espetáculo que dispensa a mentalidade de
cada um, ao passo que permite desabrochar o corte audacioso do
colete. (p. 123)

O dialogismo presente na crônica mimetiza as relações corriqueiras e cotidianas


das conversas informais. Há no trecho citado a distinção de ideias do cronista e de seu
leitor diletante na medida em que ambos divergem da valorização do tema tratado
anteriormente. A informalidade leva o cronista ao limite de mimetizar a agressividade
física, ameaçando o leitor com duas pedras. Embora as lance sobre o leitor, a
discordância permanece no texto por meio do enunciado interrogativo que, pressupondo
o questionamento feito pelo leitor, exige uma contra-resposta do cronista. Esse
procedimento composicional confirma a destruição do discurso monológico romântico
ou realista, como modelos de discurso monológico recorrentes no contexto da crônica,
na medida em que o autor faz convergir duas enunciações orientadas para o mesmo
objeto, no caso o estilo com que o cronista comenta a criação da fonografia. Orientados
para esse mesmo objeto, esses discursos cruzam-se dialogicamente, contradizendo-se e
tensionando o texto da crônica172. Como observa Bakhtin, sendo dois sentidos
materializados, não podem estar lado a lado sem estabelecerem uma relação
significativa. Mais que isso, o discurso do cronista ao incorporar, por meio do discurso
indireto livre – "me argua de amparar, com a autoridade da minha razão, argumentos de
ordem baixamente sensual ou Que não?" – constrói seu discurso de modo abertamente
dialógico. Essas relações de acordo e desacordo, afirmação e complemento, pergunta e
resposta que observamos nesse trecho são puramente dialógicas, não no nível da
palavra, orações ou enunciados, mas como relações entre enunciações completas.

172 O debilitamento ou a destruição do contexto monológico só ocorre quando convergem duas


enunciações iguais e diretamente orientadas para o objeto. Duas palavras iguais e diretamente
orientadas para o objeto não podem encontrar-se lado a lado nos limites de um contexto sem se
cruzarem dialogicamente, não importa que se confirme uma à outra ou se completem mutuamente ou,
ao contrário, estejam em contradição ou em quaisquer outras relações dialógicas (por exemplo, na
relação entre pergunta e resposta). Duas palavras de igual peso sobre o mesmo tema, desde que
estejam juntas, devem orientar inevitavelmente uma à outra. Dois sentidos materializados não podem
estar lado a lado como dois objetos: devem tocar-se internamente, ou seja, entrar em relação
significativa. BAKHTIN, 2008, P. 164
283

Outro procedimento que marca o dialogismo nas crônicas é o uso da


intertextualidade. Conforme a definição de intertextualidade dada por Julia Kristeva em
sua obra Introdução à Semanálise, todo texto se constrói como mosaico de citações, isto
é, explicita ou implicitamente, o texto absorve e transforma outros textos 173.
Considerando os diversos estudos que tratam da intertextualidade na obra machadiana
citados anteriormente, não pretendemos tratar desse procedimento em específico, mas
pressupondo as discussões feitas sobre ele, entender seus efeitos pragmáticos no texto.
Conforme Genette define, a função testemunhal funciona como orientação do
enunciador a si próprio tomando a forma de um simples testemunho, grau de precisão
de suas memórias, sentimentos que determinado enunciado desperta em si ou indicação
da fonte de onde tirou sua informação. Sendo a indicação da fonte feita pelo enunciador
sobre determinada informação uma das características da função testemunhal, ao
identificar sua fonte, o enunciador produz efeitos de subjetividade em si mesmo à
medida que compartilha com seu leitor o papel de leitor da obra citada, isto é, à medida
que se constitui como sujeito de leitura e no leitor, à medida que, ao compartilhar o
mesmo referencial de informação, o torna coparticipante do texto. Obviamente, a
citação pretende também estabelecer o ethos no discurso, visto que ao referenciar
determinado autor ou texto, o faz a partir do conceito de autoridade, isto é, o enunciador
faz referência intertextual a textos e outros autores com cuja autoridade no assunto
tratado autor e leitor concordam. Christian Plantin, em sua obra A Argumentação, define
a intertextualidade como redução do papel do locutor o qual passa a desempenhar o
papel de reformulação de discursos ocorridos alhures e que dizem mais do que o locutor
poderia dizer, isto é, ao invés de operar entimemas que estabeleçam a base da
argumentação ou contra-argumentação, o locutor reformula os discursos ditos por
outros e conhecidos por seu interlocutor para estabelecer a polifonia dos textos 174.
Aproveitando-se desse pacto de leitura entre autor e leitor, Machado de Assis

173 “(...) todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de
um outro texto. Em lugar da noção da intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade, e a
linguagem poética lê-se pelo menos como dupla. Assim, o estatuto da palavra como unidade minimal
do texto revela-se como o mediador que liga o modelo estrutural ao ambiente cultural (histórico),
assim como o regulador da mutação da diacronia em sincronia (em estrutura literária)”. KRISTEVA,
2005, P. 68
174 Na versão de Ducrot, "o locutor polifônico" vê reconhecida a si certa atividade, a de um
"encenador" que pode escolher suas identificações. Com relação a essa concepção, a noção de
intertextualidade abaixa o papel do locutor, que passa a ser apenas uma instância de reformulação de
discursos já ocorridos alhures, que o dizem mais do que ele os diz. No caso da argumentação, a noção
de roteiro argumentativo (cf. infra, § 8) permite levar especificamente em conta essas relações de
intertextualidade (PLANTIN, 2008, p. 66).
284

utiliza-se desse procedimento como forma de desconstrução de certos discursos. Em


outras palavras, diante de algum enunciado com o qual estabelece discordância, o autor
recorre a outros autores, cujos enunciados permitem acentuar e evidenciar a contradição
do enunciado com o qual discorda. Dessa forma, ao estabelecer a intertextualidade
como procedimento característico da função testemunhal, o autor como cronista ou
narrador produz no leitor o jogo de perspectivas entre a suposta verdade do enunciado e
a possibilidade de outros pontos de vista a relativizar e diluir as unidades naturalizadas
dos discursos que se pretendiam verdadeiros. A intertextualidade, portanto, na obra
machadiana participa do discurso polêmico à medida que o autor contrapõe as unidades
naturalizadas dos discursos dominantes por meio da referência a outros discursos que os
relativizam. Tal procedimento, à medida que se torna recorrente em suas crônicas,
desenvolve o aprimoramento de sua escrita. Em termos deleuzianos, se o enunciado
naturalizado como verdade se impõe sobre os leitores de forma monológica, a máquina
artística como maquina esquizoanalítica o devêm peça entre outras peças para
estabelecer o ponto de fuga ativa, estabelecendo, por meio da intertextualidade, o estado
de dispersão à medida que o texto citado se opera como peça a remeter a uma peça da
máquina-texto completamente distinta, estabelecendo portanto o dialogismo.175
A crônica jornalística necessariamente se constrói por esse procedimento. Ou,
conforme observa Telê Ancona Lopez, a crônica jornalística trata de assuntos já
noticiados nos jornais e, como não tem compromisso em noticiá-los, dá-lhes as costas
para elaborar a sua ficcionalidade176. Ao considerarmos esse procedimento
determinante do gênero, vemos que a intertextualidade torna-se procedimento inerente à
crônica. Desse modo, pelo simples fato de tratar de notícias de outros textos, ela já se
estabelece como um texto explicitamente de citação. Porém, vemos que na pena do
cronista o procedimento intertextual vai mais além. Na crônica acima citada de 4 de
agosto, o cronista apresenta esse procedimento como característica do gênero: "uma

175 É nesse ponto da fuga ativa que a máquina revolucionária, a máquina artística, a máquina
científica, a máquina (esquizo)analítica devêm peças e pedaços umas das outras. (DELEUZE E
GUATTARI, 2010, p. 426)
176 O cronista do passado quer simplesmente “pondo em crônica”, isto é, organizando
cronologicamente histórias existentes, quer oferecendo com arte seu enfoque dos fatos – Fernão Lopes
– tem a responsabilidade de escrever para ficar, a responsabilidade de fixar aquilo que, um dia, foi
presente. O cronista moderno, cronista de jornal, possui uma responsabilidade bem mais leve, mas,
apenas quanto à necessidade de permanecer, de guardar o fato ou a notícia que lhe serve de base. Pode
voltar, sem cerimônia, as costas parta a notícia, pois não vai informar”. LOPEZ, Telê Porto Ancona. A
crônica de Mário de Andrade: impressões que historiam. Org. Antonio Candido. Campinas: Editora da
Unicamp, 1992. P. 165-166
285

mistura de Geronte e de Scapin, um guisado de moral doméstica e solturas da Rua do


Ouvidor..." (ASSIS, 2008e, p. 190). Isto é, ao citar as personagens de Molière da peça
As Artimanhas de Scarpin, define o gênero crônica como discurso às vezes autoritário,
avarento e tolo - referência à personagem Geronte - e às vezes esperto e cheio de
artimanhas - referência à personagem Scarpin.
Embora seja recorrente o uso explícito da citação, é muito comum em suas
crônicas a citação implícita, como no caso da crônica de 28 de junho – também acima
citada – ao comparar as casas do Rio de Janeiro com a Torre de Babel, fazendo
referência implícita ao livro do Gênesis. Nele, Nemrod resolve levantar uma grande
torre para alcançar os céus e, vendo Jeová o orgulho desmedido dessa construção,
confunde os homens construtores, diversificando suas línguas para que não se
comuniquem, o que impede que terminem a obra. A mesma passa a ser conhecida como
Torre de Babel (Gênesis, 11, versículos 1 ao 8). É o mesmo procedimento que opera na
crônica do dia 25 de agosto de 1878: ao falar do atleta Battaglia, lutador de boxe,
utiliza-se da mitologia grega, referindo-se ao semideus Héracles – ou Hércules:

Efetivamente, esse nosso hóspede não é um alfenim; é um


descendente de Hércules, um seu rival pelo menos. Tinha
confiança nas suas forças. Com o fim de no-las mostrar meteu-
se num paquete, atravessou o oceano, desembarcou, apresentou-
se ao empresário de patinação. Dali deitou um cartel ao mundo
fluminense; ofereceu uma quantia grossa a quem fosse tão rijo
que o derrubasse. Surgem-lhe sete competidores. Battaglia ri-se,
contempla-os com uma polidez sarcástica, aperta-lhes as mãos,
dispõe-se a cobri-los de vergonha. Poucos minutos depois, jazia
estatelado no chão. (p. 227)

Em crônica do dia 12 de outubro de 1861, ao falar do modo negativo como a


imprensa tratou as duas cartomantes, o cronista manifesta descontentamento com o
modo com que são tratadas – "O tom com que a imprensa tratou as pobres sibilas calou-
me profunda mágoa no coração" – e, dirigindo-se a elas, pede-lhes que façam uma
previsão da sorte de seus comentários. Mediante o resultado que poderia decorrer dessa
previsão, compara-se ao personagem Aquiles da obra de Homero, Ilíada:

Por direito de nascimento pertenço à vossa clientela; e o fim


particular que levo nas linhas que aí ficam escritas é pedir-vos
que, com o auxílio de vossa poderosa lente moral, me designeis
qual a sorte desses comentários que vou fazer aos
286

acontecimentos da semana. Se for boa a predição, tornar-me-ei


forte; se contrária me for, quebrarei a pena e me recolherei à
tenda, como o velho guerreiro, sem me queixar de ninguém.
(ASSIS, 2008d, p. 54)

Poderíamos citar outros exemplos nas crônicas machadianas que comprovam


esses procedimentos, mas correríamos o risco da extensão sem acréscimo. O que nos
vale nesta análise é observar duas coisas: a primeira é que os procedimentos dialógicos
percebidos pela crítica machadiana em seus contos e romances já se apresentam em sua
composição desde os textos abertamente polêmicos, determinando o modo de
composição das crônicas; a segunda é perceber como o polemista de dezoito anos
aprimora sua pena, passando da polêmica aberta na qual seus posicionamentos político
ideológicos se evidenciam e, aos poucos, antes mesmo de escrever seu primeiro
romance, aprimora os procedimentos dialógicos, transformando-os naquilo que Hansen
e Cruz observam em seus romances, isto é, uma polêmica velada, cujo objetivo já não é
mais atacar determinadas formações discursivas, mas relativizá-las e dissolvê-las no
nada para evidenciar seu cinismo e seu lugar de poder nos discursos.
287

CAPÍTULO 6 - O EU NO MUNDO E O EU NO TEXTO.

Antes, tenho em mente algo mais próximo das teorias de Iohn


Frow, que, a partir de considerações psicanalíticas e semióticas,
chega a afirmar que a descontinuidade linguística, ao abrir um
campo de pressuposição, representa a condição para que o leitor
se inscreva no texto como sujeito unificado da leitura.
Catherine Gallagher, Ficção, p. 655

Zumthor, em seu texto Performatividade, recepção, leitura, afirma que a voz


viva tem necessidade vital de revanche, a necessidade de tomar a palavra. Na cultura
ocidental, essa voz, mimetizada na escrita, estabelece diálogo com o outro provocando
respostas e colocando-se como respostas à fala do outro. Nesse sentido, a voz torna-se
expansão, mesmo pela escrita, do peso, do calor, do volume real do corpo como
escritura que evidencia procedimentos técnico-estéticos característicos, onde o sujeito
embreado – “eu” – se aloca e demarca seu espaço na oralidade. Desse modo, o corpo se
marca pela singularidade do “eu” como perspectiva diferenciadora na escritura que,
como meio de expressão do sujeito, dá-se a ver a outrem, estabelecendo o dialogismo.
O “eu” da crônica machadiana permite o deslocamento temporal na movimentação
temática da abordagem jornalística como método de enunciação daquilo que já está
presente nos jornais e do qual seu texto irá tratar. Esse deslocamento como atividade
individual do “eu” denota o encontro que aproxima e diferencia o eu do mundo.
Na crônica, essa demarcação torna-se nítida pelo deslocamento temporal, pela
movimentação temática e pela abordagem em perspectiva do cronista diante da gama de
informações que traz consigo e com as quais se depara no cotidiano:

Eu devia escrever estas linhas em cima de um capitel antigo, ou


diante de um livro de velha poesia grega. Pedem-mo o assunto e
a disposição de meu espírito, que, ingênuo, se volta para as
singelas crenças antigas, enjoado da filosofia deste século
desabusado. (ASSIS, 2008,p. 53)

A indignação do cronista diante do tratamento dispensado pela imprensa às duas


sibilas transforma-se em diferenciação estética entre ele, seu leitor, a imprensa e as
sacerdotisas tratadas no texto como forma de posicionamento que lhe permite explorar o
tema abordado:
288

Há dias falou a imprensa de duas mulheres, que existem nesta


corte, e cuja profissão é adivinhar os sucessos do futuro. O tom
com que a imprensa tratou as pobres sibilas calou-me profunda
mágoa no coração.

Esse ponto de vista marcado no texto pelo pronome “eu” – calou-me profunda
mágoa no coração – estabelece a tensão com um “ele” – Há dias falou a imprensa –, na
qual pressupõe um eco latente do “eu” com uma segunda pessoa, isto é, com o
destinatário a quem se dirige, o qual se interpõe na tensão como outro sujeito cujo
resultado dá-se na movimentação de perspectiva nas crônicas. Na medida em que
consideramos as “instâncias do fato literário” em que encontramos o contexto, o autor, o
texto e o leitor e, como afirma Zumthor, que esse texto só existe na medida em que há
leitores, entendendo o leitor como operador da ação de ler, podemos considerar a
constituição da crônica como o ato de leitura operado pelo cronista, criando um campo
virtual de ilusão para seu leitor entender seus textos como conversa que se trava em
qualquer lugar e não como simples ato decodificador. Em outras palavras, na medida
em que o cronista opera elementos técnico-estéticos em seu texto como ato de leitura
que faz do contexto, cujo espaço compartilha com seu leitor, ele cria um campo ilusório
por meio do que Mikel Dufrenne, citado por Zumthor, define como virtual, isto é, a
acumulação memorial marcada no corpo como imaginário imanente daquilo que é
percebido.
Conforme pontua, o pressentido não é necessariamente uma imagem, mas tem
possibilidade de produzir imagem. Essa percepção não opera somente no corpo
individual, mas a individualidade da percepção aloca o “eu” em seu grupo determinado
com o qual compartilha grande parte desse imaginário imanente. Desse modo, ao operar
alguns elementos técnico-estéticos em seus textos, o cronista o faz considerando esse
imaginário o qual sabe compartilhar com seu leitor e, portanto, identificando-se com
ele, algumas vezes, até confundir propositalmente sua opinião com a do leitor.
Na crônica de 26 de outubro de 1861 da série Comentários da Semana, ao tratar
da polêmica entre Joaquim Manuel de Macedo com o Jornal do Commercio, por conta
de o Jornal ter atribuído ao escritor trechos que não eram de sua autoria, o cronista tece
o seguinte comentário: "Sem descer à refutação desta censura, porque fora duvidar da
sensatez do leitor, que sem dúvida se riu dela (...)." (ASSIS, 2008d, p. 71) O cronista,
conhecedor do autor a quem se atribuía a autoria do texto, sabe bem que Macedo jamais
poderia escrever amenidades contra jovens escritores, conforme quis o Jornal do
289

Commércio fazer acreditar; também sabe do respeito que esse autor compartilhava com
os leitores da Corte e, portanto, confunde sua opinião com a do seu leitor, ao dizer que
este se rira da mentira daquele jornal. Na crônica de 1º de novembro de 1861, ao tratar
da exposição da nova obra Ensino Praxedes e a filosofia do A B C, diz: "Ouço já o meu
sôfrego leitor perguntar-me o que é a filosofia do A B C" (p. 79). O cronista atribui
textualmente a pergunta a seu leitor, pressupondo sua curiosidade sobre o tema e
permitindo-se antecipá-lo e atribuindo a ele seu pressuposto. Com isso inventa o campo
ilusório que lhe permite inserir o seu leitor no texto, como se o mesmo tomasse a
palavra do cronista e determinasse um diálogo entre eles. Tal constituição textual reduz
a força do texto como escritura que se distancia do leitor e o corporifica como voz
presente ao leitor.
Paul Ricoeur chama a atenção para a necessidade de o texto compartilhar com o
leitor um repertório do familiar177. Aristóteles diz que o orador, o poeta e o historiador
falam e escrevem de modo verossímil, imitando os endoxa, as boas opiniões dos sábios
ou da maioria deles, que são tidas por verdadeiras. O familiar de que fala Ricoeur é
repetido na diferença verossímil. A escritura tem a coerência estrutural determinada
pelo seu gênero, do conhecimento comum do tema a ser tratado e da situação em que o
texto se produz para poder estabelecer o que o filósofo francês chama de estratégias de
desfamiliarização das normas que a leitura possa reconhecer. Porque é texto
jornalístico, a crônica tem como pressuposto tratar de temas noticiados nos jornais.
Desde que os assuntos da crônica sejam localizáveis no texto do jornal, para o leitor não
importa necessariamente a ordem. No jornal, as matérias são justapostas e, na maioria
das vezes, não relacionadas, por isso tal veículo constrói-se para a leitura muito mais
como ordenação espacial do que temporal. Desse modo, as interrelações operadas pelo
cronista mantêm-se como repertório familiar desde que parte considerável de seus
temas seja reconhecida pelo leitor.
O cronista opera seu texto a partir desse pressuposto, como podemos ver na
crônica de 18 de agosto de 1878, na qual, ao tratar do processo de revolução na
Argentina, faz o seguinte comentário: "Sabe o leitor, se leu os jornais, que a província
argentina de Corrientes fez uma revolução e aclamou um governador provisório, o
cidadão Pampin." (ASSIS, 2008e, p. 216). Ao partir desse repertório familiar em que

177 Só atinge seu leitor se, por um lado, compartilhar com ele um repertório familiar, quanto ao gênero
literário, ao tema, ao contexto social, ou mesmo histórico; e se, por outro, praticar uma estratégia de
desfamiliarização com relação a todas as normas que a leitura crê poder facilmente reconhecer e
adotar. (RICOEUR, v. 3, p. 290)
290

autor e leitor estão a par das tensões políticas na Argentina, o comentarista pode fazer a
exigência de que seu leitor só poderá entender seu comentário se de fato tiver lido a
matéria sobre o assunto. Com isso, o cronista opera o que Ricoeur chama de leitor
implicado, isto é, o papel atribuído ao leitor real pelas instruções do texto178. Esse leitor
é determinado tanto pelo gênero – no caso da crônica, o leitor real implicado no texto é
o leitor de jornais – como pelo contexto social. No caso das crônicas "Comentários da
Semana", "O Futuro", "Ao Acaso", "História de Quinze Dias", "História de Trinta Dias"
e "Notas Semanais", o leitor identifica-se ideologicamente com os jornais em que essas
crônicas são publicadas, de vertente politicamente liberal. Portanto, como observa
Olivier Reboul, o seu leitor – o auditório179 – não é um leitor universal e, por isso, pode
ser implicado no texto. Logo, sabendo quem é seu leitor e por compartilhar com ele
posicionamentos ideológicos semelhantes, pode operar estratégias de desfamiliarização
por meio de diferentes procedimentos composicionais, como as metáforas, os enigmas,
os ritmos, a polissemia, o dialogismo, a alegoria e mesmo as narrativas fantásticas que
provocam o deslocamento da perspectiva do leitor. Esses recursos composicionais
contribuem também para prender a atenção do leitor e combater tanto o esquecimento,
quanto a desatenção180 - no caso do texto escrito, provocam o interesse.
Conforme observação de Ricoeur, o texto é um conjunto de instruções
executadas pelo leitor de modo passivo ou criativo. Logo, o texto se completa na
interação com seu leitor. Porém, essa leitura não é subjetiva e independente do autor. Há
o que o crítico francês denomina como estratégias de persuasão181. Citando Wayne

178 À primeira , vista, parece se estabelecer uma simetria entre autor implicado e leitor implicado, cada
um deles, com suas marcas no texto. Por leitor implicado, deve-se então entender o papel atribuído ao
leitor real pelas instruções do texto. Autor implicado e leitor implicado tornam-se assim categorias
literárias compatíveis com a autonomia semântica do texto. Construídos no texto, ambos são
correlatos ficcionalizados de seres reais: o autor implicado se identifica com o estilo singular da obra,
o leitor implicado com o destinatário a que se dirige o destinador da obra. (291-292)
179 Sempre se argumenta diante de alguém. Esse alguém, que pode ser um indivíduo ou um grupo ou
uma multidão, chama-se auditório, termo que se aplica até aos leitores. Um auditório é, por definição
particular, diferente de outros auditórios. Primeiro pela competência, depois pelas crenças e
finalmente pelas emoções. Em outras palavras, sempre há um ponto de vista, com tudo o que esse
termo comporta de relativo, limitado, parcial. REBOUL, O., 2000, P. 92-93
180 Uma argumentação oral deve combater dois inimigos mortais: desatenção e esquecimento; e só
pode fazer isso por meio de procedimentos oratórios. As chamadas culturas "orais" confirmarn isso; é
certo que argumentam e ensinam, mas por repetições, aliterações, ritmos, metáforas, alegorias,
enigmas, que desenvolvem a função poética em detrimento da função crítica, como se observa ainda
em nossos provérbios. REBOUL, O., 2000, P. 95
181 Com efeito, é do autor que parte a estratégia de persuasão que tem o leitor como alvo. É a essa
estratégia de persuasão que o leitor responde acompanhando a configuração e se apropriando da
proposição de mundo do texto. RICOUER, P., 2010, V. 3, P. 270
291

Booth, ao tratar da literatura moderna, observa que essa literatura, considerada por
Booth e outros críticos como literatura venenosa, exige um leitor que responda (p. 278-
279). Embora identificando esse tipo de leitor como produzido pela literatura moderna,
vemos com Reboul que a Retórica aristotélica já presumia esse jogo interpretativo entre
texto e leitor ativo. É próprio de todo texto dialógico estabelecer a réplica do diálogo
como ativa compreensão responsiva (BAKHTIN, 2006, 279) e, portanto, estar disposta
à resposta do leitor, pois, como afirma o crítico russo, a obra é um elo na cadeia da
comunicação discursiva.
Uma das características determinantes na retórica para que o orador possa
inspirar em seu auditório confiança é o ethos: o comentarista deve ser sensato, sincero e
simpático182. Na definição de Maingueneau, o enunciador deve legitimar seu dizer, isto
é, em seu discurso ele se atribui uma posição institucional e marca a sua relação com
um saber. No entanto, ele não se manifesta somente como um papel e um estatuto, pois
também se deixa apreender como uma voz e um corpo. O ethos se traduz também na
elocução, que se relaciona tanto ao escrito quanto ao falado, e que se apoia em uma
"dupla figura do enunciador, aquela de um caráter e de uma corporeidade"
(MAINGUENEAU, 1984, p. 100) No início das crônicas Notas Semanais, o
comentarista opera o exórdio da primeira crônica como forma de angariar a
benevolência do leitor:

Há heranças onerosas. Eleazar substituiu SIC, cuja pena, aliás,


lhe não deram, e conseguintemente não lhe deram os lavores de
estilo, a graça ática, e aquele pico e sabor, que são a alma da
crônica. A crônica não se contenta da boa vontade; não se
contenta sequer do talento; é-lhe precisa uma aptidão especial e
rara, que ninguém melhor possui, nem em maior grau, do que o
meu eminente antecessor. Onerosa e perigosa é a herança; mas
eu cedo à necessidade da ocasião. Resta que me torne digno, não
direi do aplauso, mas da tolerância dos leitores. (ASSIS, 2008e,
p. 87)

Ao fazer uso da modéstia afetada no processo comparativo com seu antecessor,


o cronista reclama para seu texto, se não o aplauso, pelo menos a tolerância dos leitores
como forma de se fazer aceito. Essa aceitação se opera na distinção entre o eu – Eleazar

182 Mas, em todo caso, ele deve preencher as condições mínimas de credibilidade, mostrar-se sensato,
sincero e simpático. Sensato: capaz de dar conselhos razoáveis e pertinentes. Sincero: não dissimular o
que pensa nem o que sabe. Simpático: disposto a ajudar seu auditório (cf. 11,1,1377 b e também 1366
a). (REBOUL, 2000, p. 48).
292

– o ele – SIC e o tu – o leitor. Nessa distinção, pode tornar manifestos tanto sua voz
quanto seu corpo mimetizado.
Para proceder a persuasão, conforme definição de Reboul, o comentarista pode
operar dois tipos de estruturas argumentativas: os exemplos, que partem do particular
para o geral e, portanto, se constituem como procedimento indutivo, e o silogismo, que
parte do geral para o particular e, portanto, opera como procedimento dedutivo. Na
crônica de 25 de agosto de 1878 da série Notas Semanais, ao falar sobre o caso do atleta
Bataglia que, após desafiar um adversário, oferecendo uma grossa quantia a quem o
derrubasse, comenta sua queda alguns minutos depois e o modo como o atleta tenta se
justificar:

Explicou-se o atleta com um adágio; disse que escorregar não é


cair; adágio falso, como muitos outros, e em todo o caso sem
aplicação. É falso o adágio, porque escorregão é eufemismo de
queda. Não foi outra cousa o escorregão de Helena, nem outra
cousa o de Eva. Escorrega o cavalheiro, quando corrige o seu
orçamento pessoal com um descrédito extraordinário ou
somente suplementar; escorrega a dama quando recruta um
soldado mais do que lhe permite a sua lei de forças. Esses
escorregões são quedas, umas vezes mortais, outras vezes vitais;
mas são quedas. Em todo caso, errou o atleta em aplicar o rifão
ao seu desastre; e a menos que não prove a presença de uma
casca de banana, no terreno do combate, a verdade é que
legitimamente caiu. (p. 227)

Ao comentar o argumento do atleta que tenta diferençar queda de escorregão e,


portanto, não cai, apenas escorrega, o comentarista cita dois exemplos para refutar essa
divisão e afirmar que o atleta legitimamente caiu: na mitologia grega, o escorregão de
Helena que foge com Páris para Tróia e se torna motivo da guerra entre gregos e
troianos e, na mitologia judaico-cristã, o escorregão de Eva que, seduzida pela serpente,
come e induz Adão a comer o fruto da árvore do conhecimento, o que lhes causa a
expulsão do Paraíso.
Diferentemente do exemplo, o silogismo retórico opera por meio de
entimemas183, que estabelecem proposições geralmente admitidas, conhecidas como

183 A palavra entimema, emprestada do grego, pertence à teoria da argumentação retórica e é empregada
em dois sentidos diferentes para designar duas formas particulares de discursos silogísticos. Por um
lado, o entimema é definidocomo um silogismo fundado sobre premissas não seguras, mas somente
prováveis: “As mães comumente amam seus filhos, Maria é a mãe de Paula, então, Maria ama Paula”.
Na sistemática aristotélica, em que se considera que as exigências do discurso retórico são
293

endoxa. Os entimemas – silogismos do verossímil – são geralmente abreviados,


apresentando apenas as premissas necessárias184: Aquiles é um leão (=O leão é forte;
Aquiles é forte, logo, Aquiles é um leão). Em crônica do dia 1º de setembro de 1878, ao
tratar da manifestação da Câmara Municipal a respeito de uma consulta feita sobre a
possibilidade de fornecer jantar ao Tribunal do Júri, na qual a Câmara responde
negativamente, por razão de a lei não prever tal despesa, o cronista reafirma a
manifestação como legítima com o seguinte silogismo:

Cotejem agora as inconveniências do jantar com as vantagens do


jejum. O jejum, um estado de graça espiritual, é uma das formas
adotadas para macerar a carne e seus maus instintos. A
satisfação da carne torce a condição humana, igualando-a à das
bestas; ao passo que a privação amortece a condição bestial e
apura a outra; fortifica, portanto, o ser inteligível, aclara as
ideias, afina e eleva a concepção da justiça. A sopa tem suas
vantagens; o assado não é, em si mesmo, uma abominação;
pode-se almoçar e querer bem; não há incompatibilidade
absoluta entre a virtude e a couve-flor. A justiça, porém, requer
alguma cousa menos precária, mais certa; não se pode fiar de
hipóteses, de casualidades, de temperamentos. O que me admira,
neste caso, não é a decisão da Câmara, que aplaudo, desde que é
fundada em lei, e o respeito da lei é a primeira expressão da
liberdade. O que me admira é que só agora reclame o júri um
bocado de pão. Pois nunca pediu o júri uma verbazinha para os
seus pastéis? Só agora há estômagos naquele tribunal? Só agora
há processos longos e juízes famintos? Tanto pior; se esperaram
tantos anos, podem esperar alguns mais. (ASSIS,2008e, p. 238)

Ao fazer a distinção entre os inconvenientes do jantar e o jejum, afirma que este,


como estado de graça espiritual, macera a carne e seus maus instintos, tornando o
sujeito em ser inteligível, o que aclara as ideias, afina e eleva a concepção de justiça. O

incompatíveis com o exercício da inferência científica, essa última é substituída pela inferência
retórica. À dedução silogística corresponde o entimema, e à indução, o exemplo. Em um outro
sentido, que não é aristotélico, o entimema foi definido como um silogismo em que é omitida uma
premissa (“Os homens são falíveis, e você é um homem!”). O entimema como silogismo truncado
conviria à retórica, uma vez que seria menos pedante que o silogismo completo. Sua utilização supõe
que a premissa omitida seja facilmente recuperada. Outra razão é igualmente proposta: o entimema
seria utilizado porque o auditório ordinário é composto por espíritos frágeis, incapazes de acompanhar
um encadeamento silogístico em todo seu rigo. Essa segunda justificativa supõe que a premissa
omitida é muito difícil de ser recuperada. Vê-se que essas duas justificativas são
incompatíveis.CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2008, p. 192-193
184 O silogismo utilizado pela argumentação cotidiana chama-se entimema; emprega-se esse termo
para distingui-lo do silogismo demonstrativo. As premissas do entimema não são proposições
evidentes, mas nem por isso são arbitrárias; elas são endoxa, proposições geralmente admitidas,
portanto verossímeis. (REBOUL, 2000, p. 155)
294

silogismo opera-se de modo truncado em que se têm as premissas explícitas – "o jejum
é o estado de graça espiritual e a justiça é feita por seres inteligíveis" – e as premissas
implícitas – "o jejum torna os seres inteligíveis" – a conclusão, portanto, também
implícita, é que os membros do júri devem dedicar-se ao jejum para fazer um bom
julgamento. Em ambas as formas de argumentos feitas pelo cronista, o sentido é levado
à forma do absurdo. No primeiro caso – o exemplo – o absurdo é operado por meio da
antanáclase, isto é, o escorregão do atleta aparece em sentido literal, enquanto que o
escorregão de Helena e de Eva aparece em sentido figurado. No segundo caso – o
silogismo – opera a partir da premissa cristã em que o jejum é o modo de operar a
espiritualidade e alcançar o divino e, portanto, nada mais justo do que a justiça divina.
Desse modo, o leitor é convocado ativamente à interpretação desses procedimentos
irônicos sem a qual poderá cair na armadilha da literalidade e tornar-se alvo da ironia do
cronista.
Outra forma de operação retórica em seus textos como método persuasivo são os
dois tipos de provas definidos por Reboul como atekhnai – as provas extrínsecas,
atécnicas, que são constituídas por testemunhas, confissões, leis, contratos, etc.; e as
entekhnai – provas intrínsecas, inventadas pelo orador e, portanto, dependentes de seu
método e de seu talento pessoal. A intertextualidade pode ser considerada como prova
extrínseca, na medida em que o comentarista invoca outros textos que não fazem parte
da matéria jornalística em análise para confirmá-la ou refutá-la. No caso das provas
intrínsecas, podemos considerar as narrativas alegóricas ou fantásticas em que, ao se
deparar com uma determinada notícia, na maioria das vezes, o comentarista a refuta
levando seu sentido ao absurdo. Novamente, é a leitura ativa do leitor que permite a
compreensão crítica feita pelo comentarista. Na crônica de 23 de junho de 1878, o
cronista comenta a notícia publicada em O Cruzeiro a respeito do fenômeno Sr. Watson,
grande celebridade na arte de natação e, por isso, alcunhado de homem-peixe. Ele veio
de navio para o Rio de Janeiro e o comentarista literaliza a alcunha, desacreditando-o
por meio da intertextualidade:

Mas o cavalo foi, e ficou o homem-peixe - um cavalheiro, que


se propõe a entrar na água, como Jonas no ventre da baleia, ou
como o vilão por casa de seu sogro, isto é, sem pedir licença
nem misericórdia. Ao contrário dos neutros da política, que não
são peixe nem carne, o nosso hóspede possui uma e outra
natureza: condição esta que, se o não faz neutro, pode fazê-lo
outra coisa, também política, como se disséssemos - pau para
295

toda a obra, paletó de duas vistas, hipopótamo ou simples


morcego; principalmente morcego, animal que alarga as asas ou
os pés, à feição do meio em que se ache:
Je suis oiseau: voyez mes ailes!
Je suis souris: vivent les rats! (p. 120)

A referência ao texto bíblico do livro de Jonas que, por não querer profetizar ao
povo de Nínive, foi obrigado a viajar no ventre de um grande peixe; a citação de um
provérbio que, segundo Caldas Aulete, significa ter modos descomedidos e insolentes,
orgulhoso e enfatuado, com soberba e a referência à fábula de La Fontaine, O morcego
e as duas doninhas, em que o morcego, para livrar-se de ser devorado por doninhas, usa
sua dupla condição de rato voador servem como provas para refutar a credibilidade do
homem-peixe que, por vir de navio e não a nado pelo oceano, coloca em dúvida sua
qualidade de grande nadador. Em crônica de 21 de julho de 1878, ao escrever sobre
diversos casos de desaparecimento de dinheiro dos cofres públicos, trata de um caso em
específico de Juiz de Fora. Conforme nota de Rodapé feito por Granja e Gledson, a
matéria do Jornal do Commércio de 20 de julho trazia a seguinte informação:

Ainda desfalque: Informam-nos que o coletor da cidade de Juiz


de Fora remeteu para esta corte, a uma casa da rua de S. Bento, a
quantia de 23 contos e tanto para ser entregue ao Tesouro. O
chefe da casa, que recebeu o dinheiro, encarregou um
empregado de sua confiança de o levar ao destino conveniente.
Não tendo aparecido mais o empregado, o chefe da casa
desconfiou e, mandando verificar soube que aquele nada
entregara, sendo obrigado a entrar com a referida quantia do seu
bolso.185

Diante do absurdo da história proposta como justificativa do sumiço do valor, o


cronista refuta a informação, elaborando uma narrativa fantástica em que as notas são
personificadas e tornam-se sujeitos da ação do sumiço:

Quanto a esta noticia, é incompleta. O negociante, estando


ontem a almoçar, recebeu vinte cartões de visita; eram os 20
contos que voltavam por seu pé. Um dos contos referia-lhe então
que o caixeiro, ao chegar à rua, os convidara a entrar no tesouro,
ao que se opuseram 5 contos, e logo depois os restantes. Não
querendo acompanhar o empregado, apesar dos mais incríveis

185 Trecho do jornal tirado da nota de rodapé nº 16 feita por Lúcia Granja e John Gledson em ASSIS,
2008, p. 176.
296

esforços, este os deixou sozinhos, no meio de uma rua, que


supõem ser a ladeira do Escorrega, sítio nefasto aos contos.
Então um deles propôs que voltassem para casa; teve a proposta
15 contos a favor e 5 contos contra, os mesmos 5 que primeiro
se tinham oposto à entrada no tesouro, os quais declararam que
eram livres, em face dos princípios da revolução de 89. O
comerciante ouviu comovido esta narração dos acontecimentos,
apertou as mãos de todos os contos e protestou sua adesão aos
princípios de 89; acrescentando que, se haviam procedido mal,
recusando entrar no tesouro, tinham expiado a culpa,
regressando voluntariamente ao casal paterno, donde, aliás,
deviam seguir amanhã para o primeiro destino.
- Nunca! bradou um dos contos.
E sacando uma pistola, suicidou-se. Foi sepultado ontem
mesmo. Um regimento de quatrocentos mil-réis a cavalo prestou
as últimas horas ao infeliz suicida. (ASSIS, 2008e, p. 171)

Desse modo, como afirma Ricoeur, a estruturação da narrativa, ou no caso da


crônica, a estrutura operada como método persuasivo do cronista, só se completa na
participação ativa do leitor. Com base na Poética de Aristóteles, mostra como a
atividade estruturante, perceptível nos procedimentos composicionais da intriga, faz
com que sua esquematização torne-se categoria da interação entre a operatividade da
escritura e da leitura, de modo que o ato de ler se torna parte configuradora do texto e
atualiza seu sentido como ato de leitura186.
Para garantir a intercalação de suas avaliações da notícia com uma notícia e
outra, o cronista escreve mantendo a isotopia do discurso. Bertrand, a partir da
linguística estrutural, aponta-a como continuum semântico que "tece uma ligação entre
cada figura, pela recorrência de uma categoria significante (ou de uma rede de
categorias) no decorrer do desenvolvimento discursivo." (BERTRAND, 2003, p. 38).
Ricoeur observa um princípio de seleção no ato da leitura pelo qual o leitor reduz
progressivamente as amplitudes de conotações possíveis, até reter o sentido que permite
entender a palavra em seu contexto, seguido de um segundo princípio definido como
princípio de plenitude, em que as conotações ajustam-se ao restante do contexto para

186 A linha que pretendo seguir é esta: a Poética não fala de estrutura, mas de estruturação; ora, a
estruturação é uma atividade orientada que só termina no espectador ou no leitor. Desde o começo, o
termo poiésis imprime a marca de seu dinamismo a todos os conceitos da Poética e faz deles
conceitos de operação: a mímesis é uma atividade representativa, a sýstasis (ou sýnthesis) é a operação
de dispor os fatos em sistema e não o sistema em si mesmo. Além disso, o dinamismo (dýnamis) da
poíesis é visado desde as primeiras linhas da Poética como exigência de remate perfeito (47 a 8-10); é
ele que pede, no capítulo VI, que a ação seja levada a termo (téleios). É certo que esse remate perfeito
é o da obra, de seu mythos. só é comprovado, porém, pelo "prazer próprio" (53 b 11) à tragédia, que
Aristóteles denomina seu érgon (52 b 30), seu "efeito próprio".(RICOEUR, 2010, v. 1, p. 86)
297

atribuir o sentido do texto. Diferentemente do que ocorre em um texto técnico ou


científico, o texto poético não está condicionado a restrições do sentido da palavra ou da
frase. No discurso poético ou ficcional, as ambiguidades, muitas vezes, operam-se como
formas de lacunas que exigem a compreensão ativa do leitor no texto (RICOEUR, 2005,
p. 151).
As isotopias estabelecem elos anafóricos que permitem um primeiro nível de
leitura. Dizem respeito à espacialização, seja de verticalidade paradigmática ou
associativa ou horizontalidade sintagmática ou encadeadora, à temporalização, que
marca a sucessividade dos atos de leitura e o encadeamento das orações, como também
os actantes, que permitem a ação do texto 187. Conforme observa o semioticista, essas
isotopias se constroem a partir da competência discursiva do leitor que preenche as
lacunas do texto. Evidencia-se a operação conjunta entre autor e leitor na elaboração de
sentido do texto. No caso da crônica acima citada, ao comentar sobre o ocorrido na casa
da rua S. Bento, em cuja notícia os jornais alegavam que o funcionário da casa sumira
com o dinheiro, o cronista informa o leitor de que a notícia está incompleta e, com isso,
cria a expectativa de que vai dar uma informação verídica sobre o acontecido. Contudo,
ao indicar na narrativa contada que os sujeitos que chegam a pé no lugar onde o
negociante almoçava eram os 20 contos de réis, cria um desnível semântico que leva o
leitor a interpretar a narrativa como simulacro. Na crônica anterior em que trata sobre o
homem-peixe, a isotopia estabelecida pelo texto que permite o leitor ligar as referências
intertextuais entre o texto bíblico, o ditado popular e a fábula de La Fontaine com o
sujeito é a disjunção entre sua alcunha e o oceano, constituindo uma equivocidade de
sentido da alcunha do nadador, de modo que faz coexistir o sentido figurado e o literal.
A relação que poderia ser entendida como inverossímil inverte o sentido, fazendo com
que a inverossimilhança se desloque e recaia sobre a notícia de jornal. Essas elipses
predicativas criadas no texto são construídas pela competência discursiva do leitor. O
ato de ler se junta ao jogo da inovação e da sedimentação dos paradigmas semânticos
que esquematizam a composição da intriga. Desse modo, por meio dos sentidos
figurados, criam-se os desvios, operando o combate entre o verdadeiro e o verossímil e,

187 Essas isotopias, no caso, de ordem figurativa, estabelecem um primeiro nível de leitura. Elas dizem
respeito à espacialização (“muralha”, “janela”, “barras”, “lençóis”, “bosques”, “árvores”: podemos
notar as duas isotopias sucessivas, da verticalidade e da horizontalidade), à temporalização (“a “noite”
no plano da temporalidade enunciada, mas também o “agora” que, relacionado à enunciação, marca,
ao mesmo tempo, a sucessividade dos atos e o encadeamento das orações) e à actorialização
(“homem”). As isotopias, com seus elos anafóricos, garantem a continuidade da leitura do sentido.
(BERTRAND, 2003, p. 38).
298

dando sentido ao sentido, também efetuando o que Roland Barthes define como “o
prazer do texto”188.
A teoria do desvio apresentada por Reboul considera a figura como dupla
operação, evidenciando a construção de sentido conjunta entre autor e leitor: o cronista
constrói o enunciado operando o desvio, o leitor o descodifica retornando-o à norma,
permitindo a ficcionalidade do discurso como operação positiva que implica a condição
do enunciado figurado dizer mais do que o determinado pelo uso corrente. Nessa
operação, o leitor é posto diante das lacunas do texto que, para Ingarden, citado por
Ricoeur, fazem com que o texto seja inacabado uma primeira vez. A atividade de
construção de sentido convoca o leitor para concretizar a atividade imagética nesses
lugares de indeterminação que tornam o texto suscetível de diferentes execuções189.
Essas zonas de indeterminação desafiam a capacidade do leitor em configurar ele
mesmo a obra que o autor desfigurou, tornando-se o que Ricoeur define como drama de
concordância-discordante uma vez que essas zonas de indeterminação decorrem de
procedimentos retóricos incorporados ao próprio texto. Esses procedimentos retóricos
permitem o movimento entre o repertório do familiar e as estratégias de
desfamiliarização em que o leitor, convocado a atuar sobre o sentido do texto e,
portanto, colocado em pé de igualdade com a obra, acaba sendo envolvido pelos efeitos
de ilusão no sentido de acreditar-ver. Diferentemente do leitor que se envolve nas
malhas ilusionistas da narrativa, o leitor crítico é aquele em que a "ilusão se torna
alternadamente irresistível e insustentável" (RICOEUR, 2010, v. 3, p. 290).
Tais procedimentos retóricos nos colocam diante da questão a ser tratada
posteriormente sobre a diferença intencional de composição entre os cronistas aqui
colocados em análise e os narradores dos romances machadianos. Ricoeur chama a

188 Mas se creio, ao contrário, que o prazer e a fruição são forças paralelas, que elas não podem
encontrar-se e que entre elas há mais do que um combate: uma incomunicação, então me cumpre na
verdade pensar que a história, nossa história, não é pacífica, nem mesmo pode ser inteligente, que o
texto de fruição surge sempre aí à maneira de um escândalo (de uma claudicação), que ele é sempre o
traço de um corte, de uma afirmação (e não de um florescimento) e que o sujeito dessa história (esse
sujeito histórico que eu sou entre outros), longe de poder acalmar-se levando em conjunto o gosto
pelas obras passadas e a defesa das obras modernas num belo movimento dialético de síntese, nunca é
mais do que uma contradição viva : um sujeito clivado, que frui ao mesmo tempo, através do texto, da
consistência de seu ego e de sua queda. (BARTHES, 2010, p. 28)
189 Para Ingarden, um texto é inacabado uma primeira vez no sentido de que oferece diferentes
“visões esquemáticas” que o leitor é chamado a “concretizar”; por esse termo, deve-se entender a
atividade imagética mediante a qual o leitor se esforça para figurar para si os personagens e os
acontecimentos narrados pelo texto; é com relação a essa concretização imagética que a obra
apresenta lacunas “lugares de indeterminação”; por mais articuladas que sejam as “visões
esquemáticas” disponíveis para execução, o texto é como uma partitura musical, suscetível de
diferentes execuções. (RICOUER, P., 2010, V. 3, P. 286-287)
299

atenção para a definição do narrador não digno de confiança, uma vez que sua
constituição na narrativa torna-se uma peça da estratégia de ruptura que a formação de
ilusão exige na qualidade de antídoto. "Essa estratégia é uma das mais aptas para
estimular uma leitura ativa, uma leitura que permite dizer que algo acontece; esse jogo
em que o que se ganha é proporcional ao que se perde". (Idem, ibid.)
300

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA

Dário Ferreira Sousa Neto

A Pena do Cronista:

A presença das crônicas nos romances


machadianos.

v. 2

São Paulo
2015
301

Dário Ferreira Sousa Neto

A Pena do Cronista:

A presença das crônicas nos romances


machadianos.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Literatura Brasileira do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, para a obtenção do título de Doutor em
Letras.

Orientador: Prof. Dr. João Adolfo Hansen

v. 2

São Paulo
2015
302

SUMÁRIO
VOLUME 1

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 16

PRIMEIRA PARTE - A PROSA MACHADIANA: DA RETÓRICA À FICÇÃO

Capítulo 1 - Os primeiros textos em prosa.................................................................... 23


Capítulo 2 - A Estrutura Narrativa dos romances de Machado de Assis...................... 36
I - O Método....................................................................................................... 38
II - Cena.............................................................................................................. 40
III - O jogo de cena nos quatro primeiros romances........................................... 41
a) Diégese e Mimese............................................................................... 41
b) Discurso Indireto Livre e Monólogo Interior..................................... 44
IV - Quincas Borba: A retórica da loucura......................................................... 88
V - O Sumário estruturante de Dom Casmurro................................................ 105
VI - Metalepses................................................................................................. 119
a) Metalepse como modelo contratual.................................................. 125
b) Metalepse como modelo disciplinar................................................. 132
c) Metalepse como modelo arbitrário................................................... 156

SEGUNDA PARTE - CRÔNICA: A POLÍTICA AMENA E O MODELO


DESCONTÍNUO
Capítulo 1 - A crônica e o modelo descontínuo.......................................................... 180
Capítulo 2 - Cronista: Narrador ou comentarista?....................................................... 218
Capítulo 3 - O discurso cotidiano das crônicas........................................................... 235
Capítulo 4 - O contrato enunciativo entre cronista e leitor......................................... 253
Capítulo 5 - Dialogismo e discurso polêmico............................................................. 266
Capítulo 6 - O Eu no mundo e o Eu no texto.............................................................. 287
303

VOLUME 2

TERCEIRA PARTE: PRODUÇÃO DISCURSIVA, VERDADE E RELAÇÕES


DE PODER.

Capítulo 1 - A intencionalidade inventiva................................................................... 305


I) A polêmica da intencionalidade na crítica machadiana................................ 306
II) Os leitores do conto "Pílades e Oreste"....................................................... 308
III) Os vazios do texto literário......................................................................... 313
Capítulo 2 - Boato: o ente invisível............................................................................. 322
I) O mercado clandestino da informação.......................................................... 322
II) O Boato como matéria e objeto da crônica.................................................. 340
III) Dom Casmurro e a estética do boato.......................................................... 349
a) O boato como fruto da memória de Bento Santiago......................... 352
b) O boato como procedimento do romance Dom Casmurro............... 359
c) O boato como efeito de leitura na história da recepção de Dom
Casmurro...................................................................................................................... 365
Capítulo 3 - Performatividade como ato de leitura..................................................... 384
I) Perspectivismo e Genealogia........................................................................ 388
II) Multiplicidades de perspectivas................................................................... 393
III) Habitus e Proveniência............................................................................... 396
Capítulo 4 - As anti-metáforas machadianas............................................................... 404
Capítulo 5 - Espacialidade e Arqueologia nas crônicas.............................................. 431
I) Temporalidades cronológicas e linguísticas no espessamento da escrita
cronística....................................................................................................................... 431
II) A crônica como produção arqueológica...................................................... 440
Capítulo 6 - Linguagem, Verdade e Relações de Poder.............................................. 450
I - Multiplicidades rizomáticas e multiplicidades arborescentes.................... 487
II - A Esquizoanálise e o significante despótico............................................... 504
III - A esquizodesmistificação em Machado de Assis..................................... 518
Considerações Finais.................................................................................................... 528
Anexos.......................................................................................................................... 531
Referência Bibliográfica............................................................................................... 549
304

TERCEIRA PARTE:

PRODUÇÃO DISCURSIVA,

VERDADE

E RELAÇÕES DE PODER

Mas, como ia dizendo, no banquete da vida... Leve-me o diabo


se sei a que é que vinha este banquete. Talvez para notar que a
distribuição dos lugares põe a gente, às vezes, ao pé de maus
vizinhos, em cujo caso não há mais poderoso remédio que
descansar do paradoxo da esquerda na banalidade da direita, e
vice-versa. Se a idéia não foi essa, então foi dizer que a crônica
é prato de pouca ou nenhuma resistência, simples molho branco.
Idéia velha, mas antes velha que nada. Uns fazem a história pela
ação pessoal e coletiva, outros a contam ou cantam pela tuba
canora e belicosa... Tuba canora e belicosa é expressão de poeta
— de Camões, creio. A crônica é frauta rude ou agreste avena
do mesmo poeta. Vivam os poetas! Não me acode outra gente
para coroar este ano que nasce.
Machado de Assis, A Semana, 1 de janeiro de 1894.
305

CAPÍTULO 1 - A INTENCIONALIDADE INVENTIVA

No plano ético, o texto pode-se definir como uma unidade


semântica dotada de uma determinada intencionalidade
pragmática que se realiza, numa concreta situação comunicativa,
mediante um enunciado ou, quase sempre, mediante uma
sequência finita e ordenada de enunciados.
Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, p. 565

Esses procedimentos retóricos operados pelo autor no texto que convocam o


leitor a uma leitura ativa e, portanto, responsiva, colocam-nos diante de um problema
que tem sido o ponto nevrálgico da crítica machadiana: o problema da intencionalidade.
Partindo da observação de Bertrand, a enunciação operada no texto como ato orientado
define-se no enunciado como função intencional dos procedimentos composicionais190.
Essa função promovida na realização do ato da escrita faz com que o leitor, após
percorrido todo o texto, refaça a leitura de trás para a frente e perceba as transformações
dos estados de coisas que ela provocou. Ricoeur, citando Stephen Ullman, identifica
atos individuais e, portanto, intencionais as inovações operadas por meio de
modificações semânticas sobretudo pelas metáforas, definindo tais procedimentos como
intenção criadora191.

190 Já que a enunciação é considerada como um ato entre outros, porque como todo ato é orientada,
voltada para um objetivo e uma “visão de mundo”, ela pode ser considerada como um enunciado cuja
função é a “intencionalidade”. Essa intencionalidade se deduz da realização do ato de fala, assim
como a intencionalidade de uma personagem da narrativa se lê, posteriormente, seguindo de trás pra
frente as transformações dos estados de coisas que ela provocou. (BERTRAND, 2003, p. 96-97)
191 É verdade que as mudanças de sentido são, enquanto tais, inovações, isto é, fenômenos de fala, e
muito freqüentemente essas inovações são individuais, e mesmo intencionais: à diferença das
mudanças fonéticas, geralmente pouco conscientes, "as modificações semânticas são muitas vezes a
obra de uma intenção criadora" (p. 238). P. 181 (RICOEUR, 2005 p. 238) Cabe aqui observar que,
conforme pode-se verificar nos capítulos seguintes, faremos uso de diversos termos técnicos
desenvolvidos, analisados ou apropriados de outros autores por Paul Ricoeur. Contudo, devido às
escolhas hermenêuticas e conceituais desenvolvidas por Ricoeur, as quais se distanciam e muitas
vezes se contradizem aos conceitos de Michel Foucault e Deleuze e Guattari, nos limitaremos apenas
aos termos de forma metodológica, mas não conceitual e, à medida em que se evidenciar contradições
com estes outros autores, faremos as devidas adequações com base em suas teorias. Nesse sentido,
embora Ricoeur fale em intenção criadora, optamos pela readequação ao termo intenção inventiva,
pois como observa Deleuze e Guattari o conceito de criação é transhistórico e remete sempre a uma
origem, negando o devir das máquinas desejantes e remetendo-se a uma unidade principal como
origem de toda imitação: "As criações são como linhas abstratas mutantes que se livraram da
incumbência de representar um mundo, precisamente porque elas agenciam um novo tipo de realidade
que a história só pode recuperar ou recolocar nos sistemas pontuais". (DELEUZE & GUATTARI,
2012, volume 4, p. 100). Desse modo, propomos o entendimento da intencionalidade como inventiva
como forma de agenciar o processo da enunciação definido por Deleuze e Guattari como estilo não
como uma criação psicológica individual, mas como um agenciamento de enunciação (volume 2, p.
89)
306

São essas inovações por meio de modificações semânticas que garantem a


polissemia do texto, visto pelo crítico como saúde da linguagem, cuja falta violaria o
princípio de economia que levaria o vocabulário ao infinito. Em Tempo e Narrativa,
volta a esse ponto ao tratar dos procedimentos persuasivos do texto escrito que colocam
em jogo a presença do autor. Para tanto, refuta a ideia de que convocar o autor ao texto
seria retornar a uma psicografia ultrapassada e pontua que as estratégias de persuasão
postas entre parênteses são válidas apenas em uma análise estritamente estrutural. Uma
análise que se propõe para além dos elementos estruturais precisa necessariamente
romper esses parênteses. Ao fazer isso, a análise discursiva deve escapar da confusão
com uma psicologia do autor – o que Ricoeur identifica como recaída na intentional
fallacy – e dirigir-se ao próprio texto, colocando ênfase não no processo de criação da
obra, "mas nas técnicas mediante as quais uma obra se torna comunicável." (RICOEUR,
2010, v. 3, p. 272) Uma dessas técnicas observada por ele é o apagamento do autor o
qual faz "parte da panóplia de disfarces e máscaras de que o autor real faz uso para se
transformar em autor implicado" (p. 273) É à problemática da comunicação que a noção
de autor implicado pertence, uma vez que determina os procedimentos de persuasão.
Mais à frente, faz a distinção entre o narrador digno de confiança, isto é, aquele que fala
e age de acordo com as normas da obra e, portanto, assegura seu leitor de que não
empreenderá uma leitura com viagens vãs e falsas crenças e, no outro pólo, o narrador
indigno de confiança, o qual dissolve essas expectativas, criando no leitor a incerteza de
saber aonde o texto vai chegar192. Característica do romance moderno, tal narrador
questiona a moral convencional por meio da provocação e do insulto.

I) A polêmica da intencionalidade na crítica machadiana.

É conhecido o debate entre críticos machadianos sobre a intencionalidade do


escritor Machado de Assis nos efeitos de sentido de suas obras. Para que possamos
diferenciar o sentido de intencionalidade do texto tratado anteriormente com base em

192 Diferentemente do narrador digno de confiança, que assegura a seu leitor que ele não
empreenderá a viagem da leitura com esperanças vãs e falsas crenças no que concerne não só aos fatos
relatados; mas às avaliações explícitas ou implícitas dos personagens, o narrador indigno de confiança
bagunça essas expectativas' deixando o leitor na incerteza quanto a saber aonde ele quer finalmente
chegar. Assim, o romance moderno exercerá tanto melhor sua função de crítica da moral
convencional, eventualmente sua função de provocação e de insulto, quanto mais o narrador for
suspeito e o autor apagado, esses dois recursos da retórica de dissimulação reforçando-se mutuamente.
(RICOEUR, 2010, p. 278)
307

Paul Ricoeur e essa discussão da crítica machadiana, abordaremos com base no conto
“Pílades e Orestes” de Machado de Assis, tal problemática neste capítulo.
Roberto Schwarz, em sua obra Machado de Assis: um mestre na Periferia do
Capitalismo, com base na afirmativa de Augusto Meyer sobre a forma de procedimento
narrativo em Memórias Póstumas de Brás Cubas, define o autor defunto como
narrador volúvel:

Digamos então que no curso de sua afirmação a versatilidade do


narrador faz pouco de todos os conteúdos e formas que
aparecem nas Memórias, e os subordina, o que lhe proporciona
uma espécie de fruição. Neste sentido a volubilidade é, como
propusemos no início destas páginas, o princípio formal do
livro. (SCHWARZ, 1990, p. 31)

Na esteira da leitura de Hellen Caldwell, cuja obra – O Otelo Brasileiro de


Machado de Assis – propõe-se a analisar o discurso de Bento Santiago, em Dom
Casmurro, dando enfoque à importância do discurso em primeira pessoa e
identificando-o como narrador não-confiável para inocentar Capitu da culpa de
adultério, Schwarz, Silviano Santiago e John Gledson investem nessa abordagem para
desenvolver diferentes interpretações dessas duas obras. Posteriormente, o crítico
português Abel Barros Baptista, em suas obras Autobibliografias, que faz a análise de
Dom Casmurro e Em nome do apelo do nome: duas interrogações sobre Machado de
Assis, que analisa Memórias Póstumas de Brás Cubas, questiona essa tradição,
identificando-a, em seu ensaio O legado de Caldwell ou Paradigma do Pé Atrás, como
paradigma do pé atrás. Em uma resenha publicada na revista Colóquio/Letras, em
1993, com o título “Machado de Assis: os vários nomes”, sobre o livro Em nome do
apelo do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis, de Abel Barros Baptista,
publicado em 1991, John Gledson convida o crítico português a se definir em relação ao
ponto de vista da crítica machadiana, sobretudo a sua e a de Roberto Schwarz193. Em

193 A referência repetida à obra de Roberto Schwarz leva-me a um último ponto, que é o da relação deste
livro com a tradição crítica machadiana. Para mim, é claro que tal tradição evoluiu muito nos últimos
anos, sobretudo devido aos trabalhos de Schwarz, que, por razões compreensíveis, o presente livro
trata só de passagem, apesar de os considerar ‘extremamente interessantes, embora numa direcção
diferente da que aqui se segue’. (p. 202) Uma das virtudes desta nova linha, quer seja minha; de
Schwarz ou de Raymundo Faoro, é que mostra (em contraste com a crítica mais tradicional, a qual
Barros Baptista ataca, com toda razão) um Machado coerente, consciente, construtor de projeto
artístico, em consonância com o seu tempo, o seu país, e (principalmente no caso de Schwarz)
também com as exigências da arte. Seria sobremaneira interessante – e espero tal não pareça
pretensioso – que Abel Barros Baptista se definisse em relação também ao nosso, ou aos nosso,
308

resposta ao convite de Gledson, Baptista publica o ensaio intitulado “O Legado


Caldwell ou o paradigma do pé atrás”, atacando a leitura que pressupõe a
intencionalidade do autor nos diferentes narradores a partir de Memórias Póstumas de
Brás Cubas e identificando Gledson como intencionalista confesso por este acreditar
que pode revelar a intenção de Machado, cujo método se estabelece a partir da
proliferação do par de lunetas (BAPTISTA, 1994, p. 168).
Em resposta ao posicionamento do crítico português, Gledson publica o texto
“Dom Casmurro: realismo e intencionalismo revisitado”, no qual refuta a noção de
romance moderno para reafirmá-lo como sucessor e continuador da tradição realista. A
releitura de sua obra anterior – Machado de Assis: Impostura e Realismo – reafirma a
defesa da intencionalidade de Machado de Assis, que seria observável em sinais,
alusões e pistas ambivalentes como forma de "testar o leitor para ver o quanto ele
questionará a verdade de Bento, e de suspeitar de que ele será guiado mais pela
convenção e pela emoção do que pela dedução." (GLEDSON, 2003, p. 289). No final de
seu texto, o crítico inglês ressalta o final do ensaio do crítico português, cujo ponto de
vista aposta num manto de ambigüidade de sentido que cobre o trabalho romanesco do
escritor brasileiro. Ao observar a conclusão do ensaio de Baptista, Gledson aponta para
certa intencionalidade do autor carioca, mesmo que esta seja coberta por um manto de
ambigüidade. Contudo, e essa leitura Gledson, em seu segundo texto, afirma não
abordar, a obra de maior vulto publicada por Baptista – Autobibliografias –, o crítico
português desenvolve com mais propriedade o que pretende refutar nos críticos
“herdeiros” do legado Caldwell. Trata-se do conceito de solicitação como procedimento
de leitura "que desarticula a exigência de resposta no processo da interrogação crítica: a
solicitação é da ordem do nome, do apelo, da interpelação." (BAPTISTA, 2003, P. 12).

II) Os leitores do conto "Pílades e Oreste".

Para abordar a diferenciação entre a discussão de intencionalidade do autor


defendida por Gledson e a de solicitação defendida por Baptista, e o conceito de
intencionalidade inventiva defendida tanto por Bertrand quanto por Ricoeur, vale-nos a
leitura do conto “Pílades e Orestes”, publicado inicialmente no Almanaque Brasileiro
Garnier, em janeiro de 1903, e, posteriormente, na obra Relíquias da Casa Velha, em

pontos de vista. GLEDSON, 1993, p, 250


309

1906. Posto não ser o mais famoso dos contos dessa obra da qual faz parte o conto Pai
contra Mãe, traz tanto no texto quanto na sua recepção algumas questões intrigantes,
que certamente contribuirão para perceber esses procedimentos.
A história de Quintanilha e Gonçalves, dois advogados do Império, não passa
despercebida ao leitor do século XXI, na medida em que, no desenvolver da narrativa,
tende a provocar uma pergunta nova sobre a temática abordada: teria o autor carioca
tratado de uma relação homossexual ou se trataria apenas de relações interesseiras de
amizade?
Em um ensaio publicado na internet, com o título “Entre Bento e Flora: A muda
cautela de Quintanilha em “Pílades e Orestes”, André Luiz Barros da Silva analisa o
conto em diálogo com o romance Esaú e Jacó, a partir do triângulo amoroso entre
Quintanilha, Gonçalves e Camila e Pedro, Paulo e Flora, respectivamente. A abordagem
central do texto dá-se em torno do dizer calado194, que determina a relação entre as
personagens masculinas, bem como marca o desenvolvimento da narrativa. A referência
a um possível relacionamento afetivo e sexual entre as duas personagens é dada como
refutação de exageros de carinhos por parte de Quintanilha195.
No XI Congresso Internacional da ABRALIC, em 2008, Edilson Santos
apresentou um ensaio sobre o conto com o título “O clássico na tessitura de Pílades e
Orestes de Machado de Assis: uma breve leitura”, cujo ponto principal é compreender
as relações intertextuais, com base nas teorias de Julia Kristeva, entre o conto

194 O termo é tirado da seguinte passagem do Memorial de Aires: “Não falamos de coisas velhas,
nem de coisas novas, mas só das futuras. No fim da noite adverti que falávamos todos, menos o casal
recente; esse, depois de algumas palavras mal atadas, entrou a dizer de si mesmo, um dizer calado,
espraiado e fundido”. A cena magistral traduz a contenção dos dois recém-casados que já decidiram ir
viver em Portugal mas não podem ou não querem revelá-lo. (ASSIS, 1975 [1908], p. 213).
195 Em “Pílades e Orestes”, a aparente simetria entre os amigos acaba se mostrando uma dessimetria
pronunciada, pendendo para o lado de Gonçalves. Arrisquemos uma comparação: o sutil olhar do
narrador do conto corresponderia ao do Conselheiro, narrador dos dois romances subseqüentes de
Machado, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Como o Conselheiro, o narrador do conto vai captando
mudanças quase imperceptíveis nas brechas do cotidiano dos personagens ao redor, como um “oráculo
em tempo real”, que acompanhasse as minúcias dos acontecimentos individuais e coletivos, amorosos
e políticos. Se no romance o narrador se centrará, primeiro, nos irmãos e, em seguida, em Flora, no
conto ele se concentra exclusivamente nas “cautelas e pensamentos” de Quintanilha, que acaba
exagerando nos “carinhos” para com o outro – a ponto de levantar suspeitas de homossexualidade: “A
união dos dous era tal que uma senhora chamava-lhes os ‘casadinhos de fresco’, e um letrado, Pílades
e Orestes” (ASSIS, 1997 [1903], p. 125). O que vai ficando claro é que Quintanilha se anula diante de
Gonçalves – da mesma forma que Pílades foi sempre conhecido como o amigo mudo de Orestes na
Electra de Sófocles. “Cautelas e pensamentos”, em seu caso, significam um zelo desproporcional, que
trai sua infelicidade individual, posto que o indivíduo nele parece querer se anular. Em outras
palavras, é Quintanilha e sua subjetividade o eixo da narrativa; e ela se define por uma carinhosa
submissão ao amigo, que ele não percebe e de que o leitor só vai se inteirando aos poucos. (SILVA, s.
d., p. 3)
310

machadiano e as peças gregas de Sófocles, Eurípedes e Ésquilo. Compreendendo o


conto como uma paródia da tragédia grega, o autor depreende do texto um perfil
oportunista de Gonçalves por querer se apoderar da herança do amigo e um perfil
ingênuo de Quintanilha, que não se dá conta do interesse perverso do amigo e se
submete a uma servidão voluntária. Para o autor, Gonçalves torna-se um monstro pela
sua aproximação interesseira e traição sem remorsos do amigo leal e submisso,
Quintanilha. A relação afetivo-sexual é ressaltada com juízo moralista da sociedade.
Embora, no início do texto, observe que essa amizade tem importância fundamental na
trama do conto, entende-a apenas como efeitos de relações de interesse financeiro.
Nessa mesma vertente de leitura, segue o ensaio de Moacir Dalla Palma,
publicado na Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades da UNIGRANRIO, em
2007, com o título “O trágico como revelação da violência nas relações pessoais do
século XIX”. Em contraste com a diferença econômica entre Quintanilha e Gonçalves, o
ensaísta ressalta a diferença racial, entendendo-a como motivadora da submissão
daquele a este. A referência da relação de amizade entre os dois, neste ensaio,
adjetivados como casadinhos de fresco, aparece apenas para marcar a proximidade entre
as duas personagens, não fazendo qualquer alusão a uma possível relação homoafetiva
entre eles.
Destoando dessas leituras, elabora-se o texto de Jessé dos Santos Maciel que, em
2006, na Revista Urutágua, publicou um ensaio com o título “Pílades e Orestes: A
sedução das faces mudas”, cujo foco principal é a análise da relação homoafetiva entre
o rico herdeiro Quintanilha e o advogado Gonçalves, sugerindo uma possível paixão
nutrida por aquele possivelmente correspondida como amizade por este ou , talvez, por
interesse na herança recebida. Com base nos trabalhos de Michel Foucault e Thomas
Laqueur, o ensaísta põe em primeiro plano a possível relação afetivo-sexual das duas
personagens. Conforme afirma no final do texto:

Neste ponto gostaria de enfatizar que se não há no conto a


afirmação de um relacionamento de natureza homoerótica, ao
menos é possível defendê-lo de forma consistente como o
desenrolar de um jogo de desejos de natureza homoerótica, que
é sugerido pela opinião implícita do narrador e reforçado pela
maledicência da senhora que os chamava de “casadinhos de
fresco” (p. 711). É visando vencer as resistências à ascensão
profissional do amigo que Quintanilha se afasta, e procura o
casamento que o reconciliaria com a família. Mas, tão falso é
este amor repentino que termina mais subitamente do que
311

começou, com a renúncia em favor do mais necessitado de


camuflagem matrimonial, Gonçalves. (MACIEL, 2006, p. 6)

Se, para os outros ensaístas, o enredo principal foca a ingenuidade de


Quintanilha e o interesse financeiro de Gonçalves, resultando em tragédia para o
primeiro, segundo Maciel, embora marque essa questão no início de seu ensaio,
subordina-se a uma leitura da possível relação homoerótica entre as personagens. Há em
comum nessas leituras uma perspectiva supostamente intencionalista de Machado de
Assis. Os quatro críticos comungam da mesma visão de que o texto retrata a realidade
da sociedade do século XIX, seja nas diferenças das relações raciais, como pretende a
leitura de Palma, seja na composição do caráter interesseiro de Gonçalves em se
beneficiar do amigo, conforme propõem Santos e Silva ou, ainda, na impossibilidade da
realização afetiva sexual, conforme ressalta a análise de Maciel.
Nesse sentido, os efeitos de sentido do conto Pílades e Orestes permitem que as
interpretações desses diferentes críticos literários se diversifiquem em pelo menos duas
abordagens distintas: as relações de infidelidade na amizade por razões financeiras e a
impossibilidade da vivência homoafetiva, sendo que a primeira se desdobra em outras
duas: uma motivação determinada por razão social-econômica e uma motivação
determinada por diferenças raciais. Diferentes leitores desdobram-se em diferentes
leituras que confirmam a intencionalidade inventiva do texto afirmada por Bertrand e
Ricouer.
O repertório familiar elaborado no conto permite movimentações de sentidos
distintas entre leitores em que as estratégias de desfamiliarização são decodificadas de
modo distinto e, muitas vezes, oposto. Ou, conforme observa Jauss: “A experiência
estética não se inicia pela compreensão e interpretação do significado de uma obra;
menos ainda, pela reconstrução da intenção de seu autor. A experiência primária de uma
obra de arte realiza-se na sintonia com seu efeito estético, i. e., na compreensão fruidora
e na fruição compreensiva”. (JAUSS, 2001, p. 46). Em outras palavras, o processo de
compreensão definidas como intencionalidade inventiva do texto deve-se mais aos
modos de decodificação do leitor em relação com o texto do que propriamente a uma
intencionalidade absoluta e fechada do autor. Com isso, percebemos que a
compreensão do conto leva em conta a experiência prática e cotidiana do leitor – mesmo
o crítico literário – que, ao analisar um texto, o faz a partir do pano de fundo de sua
experiência cultural particular. No caso deste conto e de suas diferentes leituras, a
312

importância de uma possível relação homoafetiva entre Quintanilha e Gonçalves toma


relevo para Maciel a partir da sua relação acadêmica com a temática196. Essa
experiência que os leitores trazem na leitura de um texto é posta por Jauss nos seguintes
termos:

Assim como em toda experiência real, também na experiência


literária que dá a conhecer pela primeira vez uma obra até então
desconhecida há um ‘saber prévio, ele próprio um momento
dessa experiência, com base no qual o novo de que tomamos
conhecimento faz-se experenciável, ou seja, legível, por assim
dizer, num contexto experencial. Ademais, a obra que surge não
se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas,
por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços
familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para
recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a
lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a
‘meio e fim’, conduz o leitor a determinada postura emocional e,
com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão
vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso –, colocar a
questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos
diversos leitores ou camadas de leitores. (JAUSS, 1994, P. 28)

Segundo a proposta da estética da recepção, a intencionalidade inventiva do


texto que permite diferentes leituras aproxima-se do que Wolfgang Iser define como
objeto intencional197. Na medida em que o crítico alemão diferencia, com base em
Ingarden, a obra de arte dos objetos reais e ideais, ela não é nem universalmente
determinada, nem possuidora de autonomia, faltando-lhe determinação total. Esses
objetos intencionais funcionam como linhas de orientação que levam a uma produção
esquemática por meio de uma objetividade representada. O texto é marcado por
diversos pontos de indeterminação a serem preenchidos pelo complemento de novas
qualidades que permitem sua objetividade e determinação. Ao simular uma
determinação semelhante à do objeto real, permite sua compreensão por parte do leitor.

196 No mesmo ano de publicação do seu artigo sobre o conto, Maciel publicou na Revista Terra Roxa
e outras terras, um ensaio com o título Momentos do Homoerotismo. A atualidade: homocultura e
escrita pós-identitária, cujo texto apresenta alguns momentos do homoerotismo na Literatura
Brasileira, com intuito de desenhar um percurso relevante nas representações da temática que vai
desde a desqualificação e ao silenciamento até o reconhecimento do caráter fluido das posições de
identidade.

197 A obra de arte se diferencia destes dois tipos de objetos à medida que não é nem universalmente
determinada, nem possuidora de autonomia, mas sim um objeto intencional. Aos objetos intecionais
falta a determinação total, pois as sentenças no texto funcionam como linha de orientação que levam
a uma produção esquemática (schematisches Gebilde), por Ingarden descrita como a objetividade
representada da obra de arte. (ISER, 2001, p. 92)
313

A interação diádica entre diferentes locutores esboçada por Iser com base na teoria da
interação da psicologia social difere do ato da leitura, pois a relação entre o texto e o
leitor não permite as réplicas próprias das interações face-a-face e o leitor "nunca
retirará do texto a certeza explícita de que a sua compreensão é justa" (ISER, 2001, p.
87). Diferentemente do conceito de intencionalidade inventiva, a intencionalidade do
autor comparada com o conceito de objeto intencional de Iser é apenas superficial, pois
a proposta de Gledson ignora a simulação observada por Iser, pressupondo nessa
intencionalidade uma interação diádica entre autor e leitor.

III) Os vazios do texto literário.

Conforme observa Baptista, o texto não responde a qualquer pergunta e,


portanto, não estabelece réplicas com seus diferentes leitores. A relação estabelecida
entre leitor e texto é assimétrica, na medida em que o leitor preenche os vazios criados
pelo não-dito do texto:

O texto é um sistema de tais combinações e assim deve haver


também um lugar dentro do sistema para aquele a quem cabe
realizar a combinação. Este lugar é dado pelos vazios
(Leerstellen) no texto, que assim se oferecem para a ocupação
pelo leitor. Como eles não podem ser preenchidos pelo próprio
sistema, só o podem ser por meio doutro sistema. (...)Um outro
lugar reservado pelo texto para esta interação é constituído pelos
diversos tipos de negação, que se formam pelas supressões no
texto. Os vazios e as negações contribuem de diversos modos
para o processo de comunicação que se desenrola, mas, em
conjunto, têm como efeito final aparecerem como instâncias de
controle. (ISER, 2001, P. 91)

No conto em análise, o narrador não dá nome à relação entre Quintanilha e


Gonçalves. É da ordem do interesse? É uma relação afetivo-sexual? O que se cala no
texto torna-se por si mesmo expressivo, conforme observa Iser. No momento em que os
parentes tentam aproximar-se de Quintanilha e este é alertado por Gonçalves de que
estariam interessados em tirar proveito dele, tanto Santos quanto Palma depreendem
desse conselho o perfil interesseiro de Gonçalves. Para Maciel, esse afastamento dos
parentes e a proximidade entre os dois marcam a afetividade homoerótica deles. Ao não
afirmar nem negar tal motivação no conselho de Gonçalves, o texto cria uma
indeterminação que pode ser preenchida pelo leitor, conforme estes o fazem.
314

Outro exemplo interessante de diferentes preenchimentos de sentido por parte


dos leitores dá-se quanto à constituição do retrato dos dois. No conto, durante a volta de
Petrópolis, os protagonistas conversam sobre pintura, o que dá a ideia a Quintanilha de
encomendar um retrato pintado dos dois, conforme podemos ler a seguir:

Na volta, serra abaixo, como falassem de pintura, Quintanilha


advertiu que não tinham ainda uma tela com o retrato dos dois, e
mandou fazê-la. Quando a levou ao amigo, este não pôde deixar
de lhe dizer que não prestava para nada. Quintanilha ficou sem
voz.
- É uma porcaria, insistiu Gonçalves.
- Pois o pintor disse-me...
- Você não entende de pintura, Quintanilha, e o pintor
aproveitou a ocasião para meter a espiga. Pois isto é cara
decente? Eu tenho este braço torto?
- Que ladrão!
- Não, ele não tem culpa, fez o seu negócio; você é que não tem
o sentimento da arte, nem prática, e espichou-se redondamente.
A intenção foi boa, creio...
- Sim, a intenção foi boa.
- E aposto que já pagou?
- Já.
Gonçalves abanou a cabeça, chamou-lhe ignorante e acabou
rindo. A vida tem muitas de tais pagas. (ASSIS, 2008, v. 2, PP.
678-679)

Silva faz o seguinte comentário dessa passagem, como exemplificação da


anulação do Pílades brasileiro:

Em outras palavras, é Quintanilha e sua subjetividade o eixo da


narrativa; e ela se define por uma carinhosa submissão ao
amigo, que ele não percebe e de que o leitor só vai se inteirando
aos poucos. A seqüência de fatos que torna isso patente inclui a
bronca que recebe ao mostrar o quadro com o retrato dos dois
amigos, que encomendara e a aceitação do pagamento de juros
relacionados ao empréstimo ao amigo, quando este o constrange
a tal. (SILVA, s. d., p. 3)

O comentário negativo à pintura é entendido por Silva como repreensão dada ao


amigo que exemplifica a assimetria na relação da amizade, submetendo-o aos caprichos
de Gonçalves. Para Palmas, esse momento expressa a grosseria e insensibilidade de
Gonçalves com seu amigo:

Na volta da viagem, Quintanilha teve a ideia de mandar fazer


315

um quadro de ambos, para que ficasse registrada a amizade que


considerava recíproca. Recebeu do amigo uma bronca, além do
sarcasmo, é claro. Gonçalves não só não gostou do quadro como
o chamou de ignorante, por não perceber a má qualidade do
desenho. Novamente é o próprio narrador que diz do mau
caráter de Gonçalves com uma frase curta e esclarecedora: “a
vida tem muitas de tais pagas” (ASSIS, 1998, p. 451). Quais são
estas pagas? Ora, Quintanilha fez tudo com muito boa vontade,
o objetivo era agradar o amigo e este simplesmente retribuiu
com o sarcasmo e a ofensa. Nada mais agressivo para um
espírito sensível como o de Quintanilha, do que uma reação
como a de Gonçalves, que além de mal-agradecido, ainda por
cima foi grosseiro e insensível. Mas, Quintanilha preferiu
atribuir a culpa ao pintor do que se ofender com as palavras de
Gonçalves, pois para ele o amigo sempre dizia as coisas certas,
estava sempre com a razão. (PALMAS, 2007, p. 124)

A imagem de Gonçalves, na leitura de Palmas, ressalta violenta e de mau caráter


como exemplificação assimétrica dessa relação. Na leitura de Maciel, esse trecho é o
motivador de uma crise entre as duas personagens:

A proximidade entre ambos somente diminui após a execução


de uma ideia nascida no retorno das férias, que compartilharam
em Petrópolis, a confecção de um quadro em que ambos
aparecem lado a lado, supostamente abraçados e tendo um deles
a cabeça pendendo sobre o ombro do outro. Na exibição do
quadro que retratava os amigos desencadeia-se uma violenta
reação de Gonçalves, supostamente dirigida contra as
habilidades do pintor e o gosto do amigo, conflito que é
resolvido com a destruição da obra e a ridicularização do
suposto culpado, o pintor. (MACIEL, 2006, p. 4)

Para uma mesma passagem, três leituras distintas. Enquanto para Silva tal
passagem reforça o anulamento individual de Quintanilha por meio de uma carinhosa
submissão ao amigo, para Palmas é a comprovação do mau caráter de Gonçalves. Na
leitura de Maciel, a personagem reage violentamente contra o quadro como se a peça
denunciasse a relação reprimida entre os dois. Não se considera, por exemplo, que a
crítica feita por Gonçalves poderia resultar do desagrado quanto à falta de qualidade do
pintor, da possibilidade de deformação das imagens pintadas e da franqueza pressuposta
nessa relação de amizade. Confirma-se o que Iser define como “atividade de
constituição, pela qual tais vazios funcionam como um comutador central da interação
do texto com o leitor”. (ISER, 2001, p. 91)
316

É inegável que o texto explora uma tensão constante na relação entre


Quintanilha e Gonçalves. Percebemos essas tensões pelo estranhamento da relação que
difere de outros contos da mesma obra. O conto “Um capitão de Voluntários” apresenta-
nos um triângulo amoroso entre Simão, Emílio e Maria. O narrador conta que Simão,
após a proclamação da República e antes de embarcar para a Europa, entrega a um
amigo uma narrativa que é contada a seguir. Trata-se da amizade que estabelece com
Emílio, um homem de quarenta anos, que produzia naquele, um rapaz de vinte e quatro,
uma grande admiração:

Tudo em X... me dominava. A figura primeiro. Ele robusto, eu


franzino; a minha graça feminina, débil, desaparecia ao pé do
garbo varonil dele, dos seus ombros largos, cadeiras largas,
jarrete forte e o pé sólido que, andando, batia rijo no chão. Daí-
me um bigode escasso e fino; vede nele as suíças longas,
espessas e encaracoladas, e um dos seus gestos habituais,
pensando ou escutando, era passar os dedos por elas,
encaracolando-as sempre. Os olhos completavam a figura, não
só por serem grandes e belos, mas porque riam mais e melhor
que a boca. (ASSIS, 2008, v. 2, p. 657)

Tanto neste, como em vários outros contos, a relação de amizade entre homens é
bem marcada no texto, sem a tensão presente no conto “Pílades e Orestes”. A relação
entre Simão e Emílio é marcada pela traição que leva este a se alistar na Guerra do
Paraguai ao descobrir que seu amigo Simão passara a ter relacionamento amoroso com
sua mulher Maria. Se neste conto evidencia ao leitor a paixão doentia que Simão nutre
por Maria e a relação sexual que ambos acabam mantendo, em “Pílades e Orestes”
Camila é uma personagem secundária, cuja presença na narrativa provoca o afastamento
das duas personagens. Ao relatar a afetividade não nomeada de Quintanilha por
Gonçalves, o narrador diz:

A vida que viviam os dois, era a mais unida do mundo.


Quintanilha acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter com
ele. Jantavam juntos, faziam alguma visita, passeavam ou
acabavam a noite no teatro. Se Gonçalves tinha algum trabalho
que fazer à noite, Quintanilha ia ajudá-lo como obrigação; dava
busca aos textos de lei, marcava-os, copiava-os, carregava os
livros. Gonçalves esquecia com facilidade, ora um recado, ora
uma carta, sapatos, charutos, papéis. Quintanilha supria-lhe a
memória. Às vezes, na rua do Ouvidor, vendo passar as moças,
Gonçalves lembrava-se de uns autos que deixara no escritório.
Quintanilha voava a buscá-los e tornava com eles, tão contente
317

que não se podia saber se eram autos, se a sorte grande;


procurava-o ansiosamente com os olhos, corria, sorria, morria de
fadiga. (, p. 678)

É possível contrastar essa imagem não nomeada com outro momento do conto
em que o afeto de Quintanilha por Camila pode ser nominado: "Quintanilha descobriu
um dia de manhã que sonhara com ela a noite toda, e à noite que pensara nela todo o
dia, e concluiu da descoberta que a amava e era amado" (Idem, ibidem). O que leva
Quintanilha a nomear o sentimento nutrido pela prima é o fato de descobrir que sonhara
com ela à noite e passara pensando nela todo o dia. Ao compararmos a disposição
emocional dele tanto a Gonçalves quanto à prima, o que os diferencia é a
impossibilidade de nomeação. Em 26 de abril de 1895, no seu primeiro julgamento sob
acusação de manter relações sexuais com outros homens, Oscar Wilde define o amor
como a afeição que não pode dizer o nome 198. Os afetos inominados tanto no processo
de Oscar Wilde como no conto de Machado parecem tematicamente próximos, na
medida em que podemos ler na narrativa a facilidade com que Quintanilha denomina o
afeto pela prima contrastado ao afeto inominado dedicado a Gonçalves Além disso, no
início do conto, Quintanilha refere-se ao amigo como seu Gonçalves e, mais à frente, ao
referir-se a Camila como nossa alemãzinha, o narrador afirma que pronomes
possessivos dão intimidade. Somam-se a isso as duas expressões acima citadas, uma por
uma senhora vizinha que se refere aos dois como casadinhos de fresco e outra pelo
narrador, ao dizer que "A vida que viviam os dois, era a mais unida do mundo". Vale
observar também que, ao ser questionado sobre a validade da relação amorosa entre
Quintanilha e Camila, Gonçalves opta por não manifestar opinião, embora expresse
comportamento entendido pelo amigo como desaprovação. A certeza de que pudesse

198 “O amor que não ousa dizer o nome’ nesse século é a grande afeição de um homem mais velho
por um homem mais jovem como aquela que houve entre Davi e Jonatas, é aquele amor que Platão
tornou a base de sua filosofia, é o amor que você pode achar nos sonetos de Michelangelo e
Shakespeare. É aquela afeição profunda, espiritual que é tão pura quanto perfeita. Ele dita e preenche
grandes obras de arte como as de Shakespeare e Michelangelo, e aquelas minhas duas cartas, tal como
são. Esse amor é mal entendido nesse século, tão mal entendido que pode ser descrito como o `Amor
que não ousa dizer o nome’ e por causa disso estou onde estou agora. Ele é bonito, é bom, é a mais
nobre forma de afeição. Não há nada que não seja natural nele. Ele é intelectual e repetidamente existe
entre um homem mais velho e um homem mais novo, quando o mais velho tem o intelecto e o mais
jovem tem toda a alegria, a esperança e o brilho da vida à sua frente. Que as coisas deveriam ser assim
o mundo não entende. O mundo zomba desse amor e às vezes expõe alguém ao ridículo por causa
dele.”
(Essas foram as palavras do literato em seu primeiro julgamento, em 26 de abril de 1895.) Acesso em:
http://brgaudencio.wordpress.com/2007/07/31/o-homem-das-frases-celebres-oscar-wilde/
318

haver um sentimento entre Gonçalves e a prima não resulta de uma traição ou de um


flagrante.
No romance Ressurreição, cuja narrativa estabelece um pseudo-triângulo
amoroso entre Félix, João Batista e Lívia, o impedimento do casamento entre Félix e a
viúva é causado por uma carta anônima que fora escrita pelo próprio João Batista; no
conto “A cartomante”, o triângulo amoroso entre Vilela, Camilo e Rita é dado no início
da narrativa; assim como também o autor-defunto de Memórias Póstumas de Brás
Cubas nos conta do triângulo amoroso entre Lobo Neves, Brás Cubas e Virgília; em
Dom Casmurro, a suspeita de um possível triângulo amoroso entre Bentinho, Escobar e
Capitu surge na narrativa durante o velório, quando o advogado observa o modo como
Capitu olha o defunto e reforça a suspeita pela suposta semelhança de seu filho Ezequiel
com o amigo falecido; só para citar alguns. Diferentemente, em “Pílades e Orestes”, a
certeza de que o silêncio de Gonçalves seja decorrência de este amar a prima ocorre por
meio do sonho. Em momento algum Gonçalves afirma ou nega amar Camila. Esses
elementos textuais contribuem para a tensão do texto e, se não afirmam a relação
homoafetiva, também não permitem negá-la, mantendo a abertura semântica do texto e
servindo como – para usar a expressão de Iser – pontos de indeterminação. Conforme o
crítico alemão observa:

Como o não-dito é constitutivo para o que diz o texto, a sua


"formulação" pelo leitor provoca uma reação quanto às posições
manifestadas pelo texto, que, por via de regra, apresentam
realidades simuladas. O fato de que a "formulação" do não-dito
se transforma na reação do leitor quanto ao mundo representado
significa, portanto, que a ficção sempre transcende o mundo a
que se refere. (ISER, 2001, P. 105)

Esse não-dito do texto resulta da função comunicativa realizada por meio das
determinações formuladas por ele, acionando a interação entre texto e leitor como forma
de regulação.
Ao tratar sobre as formas de operação dos discursos sobre a sexualidade na
sociedade burguesa do século XIX, Michel Foucault observa que nossa sociedade não
fala menos do sexo, mas fala de outra maneira. Essas outras maneiras de falar
estabelecem quem fala, a partir de quais pontos de vista, surtindo outros efeitos. A
compreensão dos códigos discursivos sobre a sexualidade não se estabelece por uma
divisão binária entre o dito e o não-dito, pois há diversas formas de não-dizer, bem
319

como diferentes locutores que podem dizer e tipos de discurso autorizados. Nesse
sentido, o filósofo francês considera que o mutismo:

(...) aquilo que se recusa dizer ou que proíbe mencionar, a


discrição exigida entre certos locutores não constitui
propriamente o limite absoluto do discurso, ou seja, a outra face
de que estaria além de uma fronteira rigorosa mas, sobretudo, os
elementos que funcionam ao lado de (com e em relação a) coisas
ditas nas estratégias de conjunto. (FOUCAULT, 2001, p. 30)

De modo semelhante à teoria de Iser, há para Foucault muitos silêncios em torno


da sexualidade como parte integrante das estratégias que apóiam e atravessam os
discursos. Desse modo, o texto pode explorar esses não-ditos por meio de tensões que
criam vazios, os quais exigem do leitor que processe atos de projeção de sentido.
Conforme observa Iser, esses vazios, ao romperem com as conexões entre os segmentos
do texto, apelam para um conhecimento existente do leitor, sendo então o objeto
intencionado, representado.
Essa presença do leitor na experiência estética do texto aproxima-se do conceito
de solicitação desenvolvido por Abel Barros Baptista, na medida em que a
ambivalência do termo determina um agente e um destinatário, o qual também se torna
agente. Conforme exposto acima, na solicitação do texto não há comunicação, mas
interpelação. Na medida em que o texto resiste a qualquer interrogação, a solicitação
não procura quebrar essa resistência, mas incorpora o silêncio do texto, acolhendo-o
como uma das condições do esclarecimento que procura199. Desse modo, não se trata de

199 A solicitação é ou deve ser atenta, minuciosa, morosa e paciente: os pontos críticos em que o livro
se solicita são lugares mínimos noutros lugares mínimos, obscuros ou obscurecidos, marginais ou
marginalizados, mas tudo depende deles: tudo, quer dizer, não a nossa capacidade de destruir o
edifício, mas a possibilidade de o próprio edifício se edificar. Se se quiser, o pequeno, e por isso não
se põe aqui a questão do minimalismo, arrasta a ruína do grande. A metáfora do edifício - que é
também uma das metáforas do livro, ou uma das metáforas da completude do livro como construção
sujeita a uma técnica, governada por um projeto e orientada por uma utilidade - mereceria um
trabalho que aqui não realizarei. Aliás, Dom Casmurro seria uma excelente oportunidade, dada a
importância da casa, da edificação, da demolição e da reconstrução da casa: mas serei levado a tratar
esse tema concluindo, de forma talvez deceptiva, que por força da casa, mas não só dela, o livro de
Dom Casmurro resultará uma ruína de um edifício que nunca chegou a existir. Isso mesmo, de resto,
faz desse romance o paradigma da ficção do livro e da ação da ficção sobre o livro. Eu gostaria de
afirmar a dimensão afirmativa dessa ruína, e gostaria de mostrar que Ia solicitação é um processo de
esclarecimento e não de destruição, de aprendizagem e não de relativismo estéril, ainda que com
riscos, ou com o risco da perda, do desvio, do descaminho, da desfiguração. Suponho, porém, que não
há aprendizagem sem risco, e por isso falo de experiência e de experiência da solicitação. No
essencial, o risco maior nunca se elimina, porque é inerente à própria atividade da leitura: chamar um
texto a confirmar análises e argumentações, sabendo de antemão que nunca as confirmará. A
320

questionar sobre o tipo de relacionamento que se estabelece entre Quintanilha e


Gonçalves (“namoro ou amizade”, para lembrar as perguntas das brincadeiras infantis),
mas de compreender o elemento significativo desse não-dizer como constitutivo do
texto. É esse dizer calado – para usar uma expressão machadiana – que se torna
determinante na relação entre leitor e texto, de modo que esse não-dizer é contínuo
porque os procedimentos dissolvem toda possibilidade de veridicção dos enunciados.
Baptista ainda observa um elemento importante do conceito de solicitação:

A experiência da solicitação enfrenta, por isso, o momento mais


difícil quando, ao cabo de análises, leituras, demonstrações ou
argumentações, ao cabo de um fio linear de raciocínio ou no
curso e recurso de elaborações tortuosas, encontra nada mais ou
nada menos do que o silêncio de uma assinatura. Creio que esse
é verdadeiramente o momento em que a leitura se cumpre como
leitura e o leitor se vê chamado a uma responsabilidade em que
ninguém o poderá substituir, ou seja, chamado a responder pela
sua leitura e pelo que dela resulta, ou ainda, chamado a inscrever
a sua assinatura na solidão afetada pelo silêncio da assinatura do
outro. Isto, parece-me, é muito diverso de dizer que os livros
persistem sempre dizendo o mesmo ou que nunca respondem às
perguntas que lhes fazemos. (Idem, P. 14)

Nessa perspectiva, o enfoque acima dado à mesma argumentação feita pelo texto
de Maciel, em relação aos outros três, não pretende defender a existência de uma
relação afetivo-sexual entre Quintanilha e Gonçalves, mas marcar o silêncio que se
opera na solicitação feita nessas leituras, que optam por enfatizar o perfil interesseiro do
advogado pobre em detrimento de um possível sentimento afetivo reprimido
socialmente. Se o texto opera a indeterminação de sentido na relação afetiva das duas
personagens, apresenta-se a pergunta do porquê de a leitura em torno das questões
econômicas tornar-se dominante na recepção desse conto. Tratar-se-ia de uma
incompatibilidade temática a ser abordada no conjunto da obra de Machado Assis ou de
uma tendência heteronormativa na recepção de seus leitores quanto à identificação das
relações afetivas entre seus personagens? Como observa Maciel:

Passada a tormenta suscitada pela herança, é em Gonçalves que


Quintanilha encontra um substituto para os parentes com os

solicitação é um procedimento de leitura que conhece este risco, que não o ilude e que, sobretudo,
exulta com indisfarçável entusiasmo na momento em que se revela inexorável. (BAPTISTA, 2003, p.
13)
321

quais se indispôs e a quem despreza com sendo apenas simples


interesseiros. Esta proximidade entre os dois jovens solteiros
atrai a atenção de algumas que os chamam de ‘casadinhos de
novo’, uma vez que é impossível para Quintanilha disfarçar a
atração e a fascinação que nutre pelo amigo, expressa pela
atenção exagerada que dispensa, pelos presentes dispendiosos e
pelos empréstimos desinteressados. (MACIEL, 2006, p. 4)

Neste conto nos deparamos com um significativo flagrante da presença do leitor


como agente, operando o sentido do texto por meio da sua experiência estética.
Conforme afirma Jauss,

(...) a qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam


nem das condições históricas ou biográficas de seu nascimento,
nem tão-somente de seu posicionamento no contexto sucessório
do desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da
recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à
posteridade, critérios estes de mais difícil apreensão”. (JAUSS,
1994, p. 7)

Nesse sentido, não se trata de negar as leituras sociológicas que marcam as


leituras dominantes das obras machadianas, mas inseri-las nesses efeitos da relação
entre texto e leitor, como leituras perspectivadas, as quais, diante dos pontos de
indeterminação dos textos ficcionais, preenchem seus vazios pela generalização da
perspectiva de mundo do crítico. Há intencionalidade, se compreendermos com Ricoeur
o termo como uma intencionalidade inventiva em que os procedimentos estéticos do
texto como procedimentos persuasivos do autor implicado produzem indeterminações
cobrindo sua narrativa ou seus comentários com o manto de ambiguidade de sentido.
Desse modo, tais indeterminações comuns nas crônicas e narrativas machadianas
solicitam uma leitura ativa que somente o leitor poderá fazer como ato individual de
leitura.
322

CAPÍTULO 2 - BOATO: O ENTE INVISÍVEL

Ora, um boato é uma espécie de enjeitadinho que aparece à


soleira duma porta, num canto de muro ou mesmo no meio
duma rua ou duma calçada, ali abandonado não se sabe por
quem; em suma, um recém-nascido de genitores ignorados. Um
popular acha-o engraçadinho ou monstruoso, toma-o nos braços,
nina-o, passa-o depois ao primeiro conhecido que encontra, o
qual por sua vez entrega o inocente ao cuidado de outro ou de
outros, e assim o bastardinho vai sendo amamentado de seio em
seio ou, melhor, de imaginação em imaginação, e em poucos
minutos cresce, fica adulto - tão substancial e dramático é o leite
da fantasia popular - começa a caminhar pelas próprias pernas, a
falar com a própria voz e, perdida a inocência, a pensar com a
própria cabeça desvairada, e há um momento em que se
transforma num gigante, maior que os mais altos edifícios da
cidade, causando temores e às vezes até pânico entre a
população, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente
o gerou.
Érico Veríssimo, Incidente em Antares, p. 81

I - O mercado clandestino da informação.

O cronista inicia a crônica de 14 de novembro de 1864, da série Ao Acaso, o


noticiando um desmentido sobre algo extraordinário que aconteceria no dia dez desse
mês. Tal desmentido o leva à definição sobre o conceito do boato:

O boato recebeu esta semana um desmentido solene. O dia 10,


que se antolhava tempestuoso à imaginação pública, correu
calmo e indiferente, como os mais dias. A cidade amanheceu em
pé e de pé se conservou até hoje. O obituário foi regular; só a
doença (e a medicina, acrescentaria Bocage) ceifou algumas
espigas na seara humana.
Pobre boato!
Em compensação, senão acertou em uma coisa, afirma-se que
acertará em outra — perde à banca, mas ganha ao voltarete.
Passo em silêncio essas outras coisas em que dizem que o boato
acertará.
“Teoria do boato” é o título de um livro que ainda se não
escreveu e que eu indico ao primeiro escritor em
disponibilidade. O assunto vale a pena de alguma meditação.
É que o boato — não me refiro ao boato das simples notícias
que envolvem caráter público e interesse comum — é uma das
mais cômodas invenções humanas, porque encerra todas as
323

vantagens da maledicência, sem os inconvenientes da


responsabilidade.
A verdade tem uma telegrafia mantida pelo Estado.
O boato é a telegrafia da mentira. Algumas vezes esta acerta e
aquela mente, mas é por exceção.
Quando um homem, por motivo de ódio, ou por simples
pretexto de amizade, quer fazer correr a respeito de outro uma
calúnia, começa por comunicá-la ao primeiro amigo que
encontre, acrescentando tê-la já ouvido de outrem. O meio é
infalível; dentro de uma hora o segredo tem corrido cem bocas,
e está convertido em boato. Alguns simplórios têm mesmo o
preconceito de que nada corre em público que não tenha um
fundamento de verdade, — preconceito que determina no
espírito de alguns jurados a condenação de todos os que são
acusados perante a justiça.
É sabido que a notícia de uma boa ação nunca passa de meia
dúzia de ouvidos, isto por duas razões, a saber: a primeira, é
que, como ordinariamente é o próprio autor quem a revela, com
as devidas precauções da modéstia, o espírito revolta-se contra
essa maneira de levantar uma estátua no coração do público; a
segunda, é que uma boa ação nunca aparece ornada dos
singulares atrativos de que se atavia uma ação escandalosa, nem
possui aquele sabor apimentado que dá vontade de provar e dar
a provar.
Deste modo as boas ações que praticamos não passam da nossa
rua, mas as más ações que nos atribuem vão de um extremo a
outro da nossa cidade. Esta é a regra, — a exceção é o contrário.
Tudo isso graças a essa coisa misteriosa, cômoda, impalpável,
veloz como o raio, como ele fulminante, a que se dá o nome de
boato.
Neste ponto o leitor interrompe o folhetim e dispõe-se a saltar
alguns períodos, se o folhetim continuar ainda neste assunto de
boatos, a propósito do boato do dia 10.
Terá razão o leitor: quer uma revista da semana e não uma
revista dos séculos. É à conta da pena que deve lançar estas
divagações, que — uma vez escritas — não podem ser riscadas,
sob pena de se perder tempo e papel.
O papel é nada, mas o tempo...
Quando os americanos inventaram este provérbio característico,
mas infeliz — time is money — quiseram, entre outras coisas,
avisar os leitores e os escritores de folhetim. Um provérbio
indiano fará remate às reflexões acerca do boato: — O fogo
tisna aquilo que não pode destruir, diz o provérbio, que mais
tarde foi convertido em expressão célebre de um célebre
político.
Em política é este provérbio uma das melhores armas, com a
diferença de ter por apêndice outra arma tão valiosa, e que eu
defino deste modo: — O carmim enfeita o que não pode
aformosear. (ASSIS, 2008, v. 4, pp. 221-222)
324

Ao propor que algum escritor pudesse escrever um livro tratando do boato, o


cronista aponta algumas definições fundamentais para compreender a importância dessa
forma na composição das crônicas. A primeira definição é a distinção entre o boato de
caráter comum, isto é, a repetição cotidiana de notícias de interesse público e o boato
como arma de maledicência. Identifica o caráter anônimo da segunda, que tem a
vantagem da maledicência sem a inconveniência da responsabilidade. Para tanto, joga
de forma irônica com os conceitos de verdade e mentira: a verdade é a telegrafia
mantida pelo Estado, enquanto que o boato é a telegrafia da mentira. A ironia consiste
sobretudo no fato de ele definir a verdade como um instrumento sob controle do Estado,
considerando as inúmeras críticas dirigidas ao poder imperial, principalmente aos
ministérios, em crônicas anteriores. Conforme informa o site do Museu Imperial sobre o
telégrafo, este foi inventado pelo estadunidense Samuel Morse, na década de 1830. No
Brasil o telégrafo foi implantado em 1857. A partir de então, o Imperador d. Pedro II
investiu significativamente para garantir sua expansão em todo o território nacional.
Além disso, investiu para possibilitar a ligação entre o Brasil e outras países, sobretudo,
países europeus e os Estados Unidos. A primeira linha telegráfica brasileira ligou o Rio
de Janeiro a Petrópolis e possuía 50 km de extensão. Em 23 de dezembro de 1873, foi
realizada a ligação entre o Rio de Janeiro e as cidades de Belém (PA), Recife (PE) e
Salvador (BA). A primeira linha foi criada, portanto, sete anos antes dessa crônica e a
ligação entre os Estados, seis anos depois. D. Pedro II estava presente na praia de
Copacabana e assistiu à chegada do cabo e à finalização da sua ligação:

Estabelecida a conexão, enviou cabogramas (mensagens


telegráficas enviadas por cabo submarino) aos presidentes das
três províncias. A primeira ligação por telégrafo entre o Brasil e
outro país se deu em 22 de junho de 1874, com Portugal, graças
à iniciativa de Irineu Evangelista de Souza, então visconde de
Mauá. Os esforços tiveram início dois anos antes, com o
Decreto nº 5.058, de 16 de agosto de 1872, que “Autoriza o
barão de Mauá a estabelecer e explorar um cabo telegraphico
submarino entre o Imperio do Brasil e o reino de Portugal e suas
possessões”. A linha ligou as estações de Recife e
de Carcavelos (Portugal), via Cabo Verde e Ilha da Madeira. Na
ocasião, o imperador mandou passar cabogramas ao presidente
da Brazilian Submarine Telegraph Company (depois Western
Telegraph Co. Ltd.) e aos monarcas de Portugal, da Inglaterra e
da Áustria. 200

200 http://www.museuimperial.gov.br/exposicoes-virtuais/3025.html. consultado em 10 de novembro


325

Na crônica de 15 de agosto de 1877 da série Histórias de Quinze Dias, o cronista


comenta sobre o telégrafo - já então em funcionamento - fazendo referência a um
desmentido publicado no Jornal do Commercio em relação a uma notícia recebida por
meio de um telegrama da agência de Havas, no qual anunciava que o governo inglês
daria ajuda de quatro mil libras para ajudas as vítimas da seca no Ceará. O desmentido
afirma que tal notícia não foi sequer discutido no parlamento inglês201. Esse
desmentido leva o cronista a afirmar que o logro é a vocação do telégrafo:

A vocação do telégrafo é um logro. Ele pode acertar muitas


vezes ou aproximar-se da verdade; mas o logro é a sua vocação.
Esta quinzena foi a das 4.000 libras do parlamento inglês.
Quando a agência Havas nos disse gravemente que o governo da
Inglaterra propusera 4.000 libras para o Ceará, houve pasmo e
agradecimento nas fisionomias. O caso era novo; mas os
desastres do Ceará são vulgares? Toda a gente fiou-se na palavra
da agência, cuja gravidade, veracidade e universalidade são
conhecidas.
Vai se não quando descobre-se que não houve pedido inglês, de
libras inglesas ao parlamento inglês. Era o inverso do nosso
adágio. O telegrama era só para brasileiro ver. É certo que a
agência Havas não se explicou ainda a este respeito; mas
devemos acreditar que, se nós pasmamos com a afirmação, ela
deve ter pasmado com a retificação, e o efeito nela deve ser
maior.
Criminar a agência é um erro. A culpa é da eletricidade. Este
substituto dos correios está destinado a perturbar muita vez os
cérebros humanos. Seu mérito é a rapidez; seu defeito é a
concisão e a confusão. Tem obrigação de dizer as cousas por
meias palavras, às vezes por sombras de palavra: e o resultado é
dizer muitas vezes outra cousa.
Seja como for, estou agora de pé atrás com as notícias
telegráficas da Europa. As do norte do Império sempre são
exatas porque são de graça. Um telégrafo gratuito não pode errar
porque não come metade do recado; diz-se tudo o que é preciso.
Mas o telégrafo retribuído é outra cousa, e o transatlântico é
retribuído, como se sabe.
Suponhamos que de Londres nos mandem dizer que a Suíça foi
invadida e perdeu a independência. Para abreviar e pagar menos
escrevem de lá: - Suíça) independência) perdeu - As palavras
correm o oceano, são traduzidas nesta corte e publicadas deste
modo: "O Independência perdeu as suíças". Pasmo geral! Ninfas

de 2014.
201 Informação tirada da nota de rodapé número 1 feita por Leonardo Affonso de Miranda Pereira
(ASSIS, 2009, p. 232)
326

minhas, pois não bastava que tamanhos trabalhos cercassem o


infeliz couraçado? Um ou outro aventurar-se-ia a perguntar o
que eram as suíças; mas a certeza de que este nome exprimiria
alguma cousa de tecnologia naval facilitava a resposta.
Portanto, não me fio mais em telegramas. Quero ver as notícias
em boa e esparramada prosa, como no tempo em que os
paquetes nos traziam os acontecimentos, novos em folha e nas
folhas. Pode a agência contar-me o que lhe parecer. Quisera
acreditar nas vitórias dos turcos; mas como, depois das libras
inglesas? Melhor é apelar do telégrafo para o vapor; com isto
não ofendo o progresso: ambos são seus filhos. (ASSIS, 2009a,
pp. 229-230)

Este caso evidencia a brincadeira que o cronista faz entre verdade e discursos
oficiais produzidos por meio do telégrafo. Em crônica de 13 de setembro de 1896 da
série A Semana, o cronista retoma essa discussão sobre a veracidade noticiada pelo
telégrafo, ao referir-se à notícia de que na Bahia havia surgido um emissário de Jesus
Cristo, chamado Manuel de Benta Hora. Novamente, estabelece esse jogo entre verdade
e mentira ao dizer que não afirmará se tal notícia é verdade ou mentira, podendo ser as
duas coisas, visto que a verdade confine na ilusão e a mentira na boa fé. O que interessa
ao cronista é o modo como a imprensa da Bahia noticia o caso:

Daí a minha admiração ao ler que a imprensa da Bahia


aconselha ao governo faça recolher Benta Hora à cadeia. Note-
se de passagem: a notícia, posto que telegráfica, exprime-se
deste modo: “a imprensa pede ao governo mandar quanto antes
que faça Benta Hora apresentar as divinas credenciais na
cadeia...” Este gosto de fazer estilo, embora pelo fio telegráfico,
é talvez mais extraordinário que a própria missão do regente
apóstolo. O telégrafo é uma invenção econômica, deve ser
conciso e até obscuro. O estilo faz-se por extenso em livros e
papéis públicos, e às vezes nem aí. Mas nós amamos os ricos
vestuários do pensamento, e o telegrama vulgar é como a tanga,
mais parece despir que vestir. Assim explico aquele modo faceto
de noticiar que querem meter o homem na cadeia. (ASSIS,
2008, v. 4, p. 1316)

O estilo telegráfico da notícia é o foco da discussão provocada pelo cronista,


visto que, sendo o telégrafo uma invenção econômica, tem de ser conciso e obscuro e,
portanto, o estilo da notícia não condiz com a sua função. Nesses dois exemplos, vemos
que para o cronista, o telégrafo é apenas uma mídia que transmite discursos oficiais
sobre os fatos, não sendo, necessariamente produtor da verdade. O que nos permite
perceber que na definição do boato, ao afirmar que a verdade é mantida pelo Estado, o
327

enunciado é irônico, porque consiste em evidenciar a relação de poder sobre os


discursos que define socialmente o que é verdade ou mentira. Desse modo, a concepção
de boato ao associá-lo à mentira é a de que ele é um discurso não-oficial e, portanto,
escapa ao controle dos poderes oficiais. Além disso, na crônica de 5 de junho de 1864,
dessa mesma série, ele define a crônica como o boato que se espalha:

Resumi o programa no título. O folhetim não é outra coisa mais


do que o acaso, o vago, o indeterminado; é o acontecimento que
há de haver, o lucro que se há de imprimir, o sarau que se há de
dar; é o dito que escapa, a anedota que circula, o boato que se
espalha; é o capricho do tempo, o capricho da pena, o capricho
da fantasia; é a chuva e o sol, a elegia e o cântico; o folhetim
reside no dia seguinte, vive do futuro, sai do ventre de todas as
semanas, às vezes Minerva armada, às vezes ridiculus mus. (p.
117)

Portanto, a definição do boato como telegrafia da mentira e a verdade como


telegrafia mantida pelo Estado evidencia a concepção do boato como discurso sobre o
qual não se pode ter quaisquer controles e, desse modo, associado à opinião pública
anônima. Mais à frente, acentua a ironia ao estabelecer o paradoxo de que a verdade
pode mentir, mas como um ato de exceção.
A concepção sobre o boato apresentada pelo cronista não se prende a um aspecto
positivo ou negativo, isto é, o boato pode ser usado para caluniar alguém, motivado pelo
ódio ou por simples pretexto de amizade, resolve lhe fazer uma calúnia, comunica-a ao
primeiro que encontra, afirmando tê-la ouvido de outrem. Desse modo, apresenta o
boato como um comentário marcado pelo anonimato e pela repetição. Conforme vai
dizer à frente, o boato é veloz como um raio, impalpável, misterioso, cômodo e
fulminante. Esses adjetivos não se devem apenas ao fato de a notícia comunicada pelo
boato ser negativa ou maledicente, mas, como afirma, primeiro porque quando a notícia
é positiva, geralmente é comunicada pelo próprio autor - portanto perde o anonimato - e
segundo, porque, comunicada pelo próprio autor, é marcada pela modéstia e, por isso,
perde os singulares atrativos que orna uma ação escandalosa - ou seja, a boa notícia
dificilmente sofre efeitos de alterações hiperbólicas como a má notícia. E termina a
definição com um provérbio indiano, associando o boato ao fogo que tisna o que não
pode destruir.
Em sua obra BOATOS: O mais antigo mídia do mundo, Jean-Noël Kapferer
apresenta-nos algumas definições muito próximas dessas que identificamos na crônica
328

anteriormente citada. Uma das observações é de que o boato é uma proposição que une
uma característica a uma pessoa, servindo tanto para construir quanto para desmentir
um determinado fato202. Desse modo, a função do boato pretende a construção ou
negação de um determinado ethos atribuído a alguém, ao que o cronista define como
calúnia, que pode ser tanto a afirmação de algo sobre alguém quanto a sua negação.
Essa movimentação discursiva do boato faz dele, como afirma o pesquisador francês,
um tipo de informação que o poder não pode controlar203 - portanto, a sua essência é a
de ser uma palavra à margem da palavra oficial. Essa afirmação faz com que Kapferer
defina o boato como um contra-poder, pois ele prolifera no âmbito da conquista e da
gestão do poder204. O boato nos faz lembrar que o conceito de verdade é resultado de
convenções e atribuições que, uma vez repetidas por instâncias do poder, são
naturalizadas e transformadas em fatos reais205. Como afirma Kapferer, "o boato é
simultaneamente um processo de dispersão da informação e um processo de
interpretação e de comentário. Shibutani considera o boato como uma ação coletiva que
pretende dar um significado a fatos inexplicados." (p. 10). Essas características do boato
- anônimo, repetido, marcado pelo exagero, discursos não oficiais - fazem dele matéria
dos saberes sujeitados conceituados por Michel Foucault. Isto é, os boatos são saberes
desqualificados como saberes não oficiais, tratados pelas instâncias de poder como
saberes ingênuos e hierarquicamente inferiores, porém, o reaparecimento desses saberes
estabelece o que Foucault define como a reviravolta dos saberes206. Cabe aqui fazer

202 Todo boato é uma proposição que une uma característica a uma pessoa ou a um objeto. Algumas
dessas proposições se prestam facilmente ao desmentido dos fatos, porque elas se apresentam sob uma
forma que as torna verificáveis, isto é, capazes de serem submetidas a um teste. (KAPFERER, 1993,
p. 225)
203 Os boatos não incomodam só porque são "falsos": se fosse assim ninguém se importaria.
Acredita-se neles justamente porque têm um fundo de verdade; fato comprovado pelos "vazamentos
de informação" e segredos políticos divulgados. Os boatos incomodam porque são um tipo de
informação que o poder não pode controlar. Diante da versão oficial, surgem outras verdades: a cada
um a sua. p. 9
204 A essência do boato, nós já demonstramos, é de ser uma palavra à margem da palavra oficial. Ela
é um contrapoder. É natural, portanto, que os boatos proliferem no âmbito da conquista e da gestão do
poder. p. 196
205 Já dissemos que o critério da verdade é, nesse caso, puramente social: é verdadeiro aquilo que o
consenso considera como tal. Falar é se engajar num processo de discussão, de elaboração, a partir da
notícia, com o objetivo de se chegar a uma definição coletiva da realidade. p. 48
206 Essa crítica local se efetuou, parece-me, por aquilo, através daquilo que se poderia chamar de
"reviravolta de saber". Por "reviravoltas de saber", quero dizer o seguinte: se é verdade que, nesses
anos que acabaram de passar, era comum encontrar, pelo menos num nível superficial, toda uma
temática (...) parece-me que debaixo de toda essa temática, através dela nessa mesma temática, o que
se viu acontecer foi o que se poderia chamar de insurreição dos "saberes sujeitados". E, por ‘saber
sujeitado’, entendo duas coisas. De uma parte, quero designar, em suma, conteúdos históricos que
329

uma ressalva à conceituação dos saberes sujeitados feita pelo filósofo francês e a
concepção do boato, sobretudo na perspectiva do cronista. O que Michel Foucault
reviravolta dos saberes deu-se em um determinado momento da crítica francesa em
torno de dez a quinze anos antes dessas aulas ministradas no Collège de France no
período de janeiro a março de 1976, isto é, no período da década de 1960 e 1970.
Portanto essa reviravolta está associada a uma corrente teórica na França conhecida
como Estruturalismo, cujo início tornou possível dar status de conhecimento a esses
saberes cotidianos, os quais, até aquele momento, eram deliberadamente ignorados
pelas Instituições Acadêmicas. A enunciação de saberes sujeitados por meio do boato é
cotidiana e antiga de modo que o boato nunca dependeu de um reconhecimento
institucional para fazer essa reviravolta, muito pelo contrário, o seu anonimato permite
que se espalhe rapidamente, promovendo a dispersão das informações e obrigando os
saberes oficiais a se posicionarem. Obviamente essa tensão que o boato estabelece com
os poderes oficiais, faz com que esses se atualizem de modo que possam estabelecer
uma contensão e apropriação dele, dinâmica identificada por Mikhail Bakhtin como
ideologia do cotidiano. Também, é preciso observar que o boato é transfuncional, isto é,
se questiona os poderes instituídos estabelecendo com ele uma oposição, também pode
ser usado como forma de antecipação a outros boatos por esses mesmos poderes.
O cronista, na crônica de 14 de novembro de 1864, anteriormente citada, afirma
que a força do boato consiste no fato de que "alguns simplórios têm mesmo o
preconceito de que nada corre em público que não tenha um fundamento de verdade, —
preconceito que determina no espírito de alguns jurados a condenação de todos os que
são acusados perante a justiça". Isto é, não se trata de saber se o boato é verdadeiro ou
falso, mas de perceber que ele joga com esse contrato social da verdade, a qual, para ser
oficialmente reconhecida como verdade, precisa ser mantida pelo Estado. Essa relação
de poder produz ambiguidades, isto é, se a verdade oficial depende da vontade do
Estado, ela está intrinsecamente ligada ao segredo. A relação entre verdade e segredo
associados ao poder produz a dúvida como efeito de sentido, pois, não sendo

foram sepultados, mascarados em coerência funcionais ou me sistematizações formais. (...)Portanto,


os ‘saberes sujeitados’ são blocos de saberes históricos que estavam presentes e disfarçados no interior
dos conjuntos funcionais e sistemáticos, e que a crítica pôde fazer reaparecer pelos meios, é claro, da
erudição. Em segundo lugar, por "saberes sujeitados" (...) eu entendo igualmente toda uma série de
saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente
elaborados (...) esse saber que denominarei, se quiserem, o ‘saber das pessoas’ (e que não é de modo
algum um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber particular, um saber local,
regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas à contundência
que opõe a todos aqueles que o rodeiam). (FOUCAULT, 2002, pp. 11-12)
330

convincente, cria fraturas nas informações oficiais, causando suspeitas no espírito


público de que os poderes oficiais querem manter certas informações escondidas da
sociedade. É nessa fratura que o boato opera, pois na medida em que certas informações
oficiais sobre um determinado acontecimento não são satisfatórias, gera incertezas e
suspeitas. A ambiguidade estrutural de um determinado acontecimento marcado por
incertezas e dúvidas tem como efeito de sentido a produção de boatos, pois essas
fraturas informacionais precisam ser preenchidas e, portanto, permitem a circulação de
informações não oficiais. Como afirma Kapferer:

Os boatos nos lembram a evidência/o óbvio: nós não


acreditamos em nossos conhecimentos porque eles são
verdadeiros, fundamentados ou provados. Guardadas as
proporções, o que acontece é o inverso: eles são verdadeiros
porque nós acreditamos que sejam. O boato redemonstra, se é
necessário, que todas as certezas são sociais: é verdadeiro aquilo
que o grupo social a que pertencemos considera como tal. O
saber social repousa sobre a fé e não sobre a prova. Esta
afirmação não deveria nos surpreender: o mais belo exemplo de
rumor não é a religião? Não é ela a propagação de uma palavra
atribuída a uma Grande Testemunha inicial? E significativo que,
no cristianismo, esta fonte original se chame Verbo. Assim
como o boato, a religião é uma fé contagiosa: espera-se que o
fiel acredite na palavra, que ele adira à verdade revelada. Não é
a prova da existência de Deus que cria a fé, mas o inverso. Por
isso as íntimas convicções que movem os povos baseiam-se,
frequentemente, em palavras. (KAPFERER, 1993, p. 242)

Em crônica do dia 7 de janeiro de 1862 da série Comentários da Semana, o


cronista, ao comparar a opinião pública à serpente-deus dos antigos mexicanos207,

207 Conforme analisa Alexandre Guida Navarro, em seu artigo "Kulkucán como metáfora de la
guerra", essa serpente a qual o cronista faz referência foi uma importante divindade dos maias,
associada a diversas manifestações culturais, no qual se destaca o poder político, a guerra e a religião.
Também conhecida como serpente emplumada, é representada pela ave quetzal como símbolo do céu
e pela serpente como símbolo da terra, ambos geradores da vida. Conforme relata Navarro: "La
primera mención escrita de la presencia de Kukulcán entre los mayas la registra el clérigo Francisco
Fernández, quien en 1545 informó al obispo de Chiapas, Bartolomé de las Casas, que en Campeche
los indígenas afirmaban “que antiguamente vinieron a aquella tierra veinte hombres [de los cuales]
el principal de ellos se llamaba Cocolcan [y] a éste llamaron dios de las fiebres o de las
calenturas” (Las Casas, 1967: 121).El primer o bispo de Yucatán, Fray Diego de Landa, describió en
1566 en la Relación de las Cosas de Yucatán, algunos de los edificios que componen la Gran
Nivelación de Chichén Itzá. En la obra, dice: “Que es opinión entre los indios que con los yzaes que
poblaron Chicheniza, reinó un gran señor llamado Cuculcan, y que muestra ser esto verdad el
edificio principal que se llama Cuculcan…” (Landa, 2003: 94). Para el fraile, Kukulcán era un dios,
y considera en su relato que:Dicen que entró [a Yucatán] por la parte del poniente y que difieren en
si entró antes o después de los yzaes o con ellos, y dicen que fue bien dispuesto y que no tenía mujer
no hijos; y que después de su vuelta fue tenido en México por uno de sus dioses y llamado Cezalcuati
331

define a necessidade "digestiva" da opinião pública por novas notícias, aludindo à


necessidade do boato como forma de alimentação. Assim como a entidade divina, à qual
faz referência, precisa constantemente se alimentar de novas notícias que sejam boas e
fartas, evidenciando a relação da opinião pública com a notícia pela sua contundência e
riqueza de informação. Não à toa, tal como o faz Kapferer na relação entre o boato e a
crença, o cronista estabelece a comparação da opinião pública com uma entidade
mitológica, evidenciando a relação do mito como forma de produção e consumo das
notícias:

Bem se podia comparar o público àquela serpente — deus dos


antigos mexicanos — que, depois de devorar um alentado
mamífero, prostra-se até que a ação digestiva lhe tenha
esvaziado o estômago; então o flagelo das matas corre em busca
de novo repasto, emborca novo animal pela garganta abaixo e
cai em nova e profunda modorra de digestão.
Esquisita que pareça a comparação, o público é assim. Precisa
de uma novidade e de uma grande novidade; quando lhe aparece
alguma, digere-a com placidez e calma, até que desfeita ela,
outra lhe fica ao alcance e lhe satisfaz a necessidade imperiosa.
Como o réptil monstro de que falei, o público não se contenta
com os manjares simples e as quantidades exíguas; é-lhe preciso
bom e farto mantimento. Nada de notável havia ocorrido
ultimamente que satisfizesse esta boa coletiva que tudo devora.
Os comunicantes do Jornal do Comércio é que faziam as
despesas da curiosidade pública; mas facilmente se compreende
quanto isso era mesquinho para ocorrer às necessidades daquele
estômago voraz. (ASSIS, 2008, p. 149)

A partir dessa compreensão do boato como necessidade digestiva da opinião


pública com as notícias - e conforme observamos anteriormente - vemos o boato
funcionar como movimento da ideologia do cotidiano208, isto é, na medida em que não
esteja fixado a nenhum sistema e opera de modo anônimo e repetitivo, o boato,
operando nos níveis superiores da ideologia do cotidiano estabelece uma relação de
criatividade com os sistemas ideológicos, efetuando as revisões parciais ou completas
desses sistemas até invadir a arena da ideologia oficial constituída. Como observa
Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem, essa luta estabelecida entre a
instância superior da ideologia do cotidiano e as instituições ideológicas dá-se de forma

y que en Yucatán también lo tuvieron por dios por ser gran republicano, y que esto se vio en el
asiento que puso en Yucatán después de la muerte de los señores para mitigar la disensión que sus
muertes causaron en la tierra (LANDA, 2003: 94)."
208 Ver nota 136, na qual explicamos o uso do conceito ideologia do cotidiano.
332

que "as ideologias do cotidiano, por mais revolucionárias que sejam, submetem-se à
influência dos sistemas ideológicos estabelecidos e assimilam as formas, práticas e
abordagens ideológicas neles acumulados" (BAKHTIN, 1999, p. 121).
O boato, portanto, tem como efeito obrigar as autoridades a falar, pois coloca em
cheque o estatuto de única fonte autorizada a falar dos discursos oficiais, ou como diz o
cronista, se a verdade é a tipografia mantida pelo Estado, o boato é a tipografia da
mentira. Ao colocar em cheque a tipografia do Estado, o boato constitui-se como uma
tipografia não-oficial que escapa ao controle do Estado como palavra de oposição209 - o
que define o boato como um contra-poder.
Em crônica de 7 de janeiro de 1862, ao tratar sobre o expediente do Ministério
do Império, publicado no dia anterior na folha oficial, o cronista questiona o fato de o
ministro ter oficiado o seu colega da Fazenda, afirmando que o "conselheiro Candido
Borges Monteiro, jubilado em uma das cadeiras da faculdade de medicina desta cidade,
tem direito ao ordenado por inteiro, por ter mais de 25 anos de serviço efetivo" (ASSIS,
2008d, p. 151). Diante dessa contradição que o cronista identifica como equívoco
aritmético, exige que tal fato possa ser elucidado pelo ministro, visto que o silêncio
poderia propagar certos boatos. O cronista atribui sua propagação a um ente anônimo e,
portanto, afirma:

Parece estranho isto. A que vem esta declaração? Deve-se supor


que se pôs dúvida em fazer efetiva a determinação dos
respectivos estatutos. Não consta, porém, que o tesouro caísse
em equívoco aritmético. Onde está a chave deste enigma?
Uma declaração mais franca e mais sincera teria obstado a
propagação de certos boatos que não fazem a apologia do
governo. Deus ponha longe de meu espírito a ideia de crer em
tais coisas, mas o vulgo quer os pontos nos ii.
Não falta quem dê à língua e diga que o lente, a que se refere o
ofício do Sr. Ministro do Império, tendo sido aposentado antes
da abertura das câmaras, não completou os 25 anos, que só se
terminaram depois de fechado o parlamento. Como não podia
acumular os dois lugares, lente e senador, é ainda o boato que
fala, julgou-se que se satisfazia o direito e a conveniência
antecipando-se a jubilação.

209 Ora, o boato é uma relação com autoridade: desvendando segredos, sugerindo hipóteses, ele obriga
as autoridades a falar. Além disso, ele põe em cheque o estatuto de única fonte autorizada a falar. O
boato é um discurso espontâneo, sem ter sido pedido. Ele é, frequentemente, uma palavra de
oposição: os desmentidos oficiais não o convencem, como se o oficial e o crível não fossem
correspondentes. O boato procede a um questionamento das autoridades, de "quem tem o direito de
falar sobre algo. Informação paralela e, algumas vezes, oposta à informação oficial, o boato é um
contra-poder. p. 16
333

Vê o governo quanto isto tem de grave? Em resumo o lente


acumulou.
O boato é um ente invisível e impalpável, que fala como um
homem está em toda a parte e em nenhuma, que ninguém vê
onde surge, nem onde se esconde, que traz consigo a célebre
lanterna dos contos arábicos, a favor da qual se avantaja em
poder e prestígio, a tudo o que é prestigioso e poderoso.
Trate o governo de desfazer as suspeitas do boato,
restabelecendo a verdade. (p. 152)

O questionamento acentua a ironia do cronista à medida que reafirma a


"natureza" do boato. Alguém poderia propagar informações caluniosas sobre o
Ministério por tomar determinada iniciativa; logo, afirmando crer na idoneidade do
ministro, o papel do cronista é alertá-lo para esse risco - "Deus ponha longe de meu
espírito a ideia de crer em tais coisas, mas o vulgo quer os pontos nos ii". Para tanto,
conceitua o boato como um ente invisível e impalpável, estando em lugar nenhum, mas,
trazendo consigo a lanterna dos contos arábicos e, desse modo, ilumina aquilo que o
poder oficial tenta esconder. O comentário torna-se irônico pelo fato de ser o próprio
cronista quem evidencia a contradição do expediente do Ministério do Império.
Em artigo anônimo publicado no Jornal do Commercio, no dia 9 de janeiro,
intitulado As grandes questões da oposição, a resposta é dada à critica feita pelo
cronista conforme vemos a seguir:

Se o Diário não tivesse ficado cego com o felicíssimo achado


oposicionista, e se antes de aproveitá-lo tivesse procurado
inteirar-se daquilo que ia falar, teria sabido que sobre o
ordenado não havia a menor dúvida, não se suscitava, nem se
podia suscitar a menor questão; a questão única era acerca da
gratificação; teria sabido que a tal respeito o governo consultou
os seus conselheiros fiscais, que houve divergência de opiniões,
sendo a opinião mais aceita a que, não dando ao Sr. Dr. Candido
Borges metade da gratificação que por lei lhe caberia se tivesse
trinta anos de serviço, dava-lhe todavia dessa gratificação uma
parte proporcional ao tempo que provava ter servido. E por fim
saberia que o ministro não concordou com essa opinião, e nesse
sentido decidiu a questão contra os interesses do Sr. Dr. Candido
Borges, nosso amigo, que pedia o que julgava de direito, e por
isso não ficou mal com o governo. É uma questiúncula
administrativa sem valor, pois não queremos do espírito da
economia, do zelo pela literal inteligência da lei que ditaram ao
ministro a sua decisão, fazer tema de louvores; mas porque
havia o Diário, na ignorância de tudo, ajeitar aí uma ocasião de
censuras e de odiosidades? Por que, se o não fizesse, não teria o
334

que escrever, e é necessário não perder de todo o costume.210

Há nessa resposta aquilo que Kapferer observa como forma para se tentar acabar
com o boato: o fator temporal. Como afirma o pesquisador francês, "em matéria de
prevenção o fator temporal é fundamental. É preciso agir logo, enquanto o boato está
circunscrito a um plano geográfico" (p. 239). Dessa forma, o governo, de modo
anônimo, ao ter sua ação questionada por um jornal da oposição, procura responder,
dois dias depois. Contudo, o cronista tira proveito da resposta para fundamentar a
verdade do boato como podemos ver, na crônica seguinte, do dia 14 de janeiro:

O Sr. Candido Borges reclama agora a minha atenção.


Veio o governo em respostas ao dizer do boato, que eu
denunciei nos últimos Comentários, e declarou o Diário em
completa ignorância dos fatos a que aludi.
Devo observar que apenas fui eco de um boato, e que foi com
uma franqueza e uma singeleza talvez proverbiais que transferi
para letra redonda o que andava na praça pública, pedindo ao
governo uma explicação que restabelecesse a verdade.
O comunicante oficial declarou desconhecer a importância da
censura que corria pela boca pequena em detrimento do crédito
do governo. Sem dúvida que não é problema social ou político,
não se trata da questão da escravidão ou de qualquer outra de
máximo alcance; mas presumo que a acusação surda ao governo
de uma infração da lei não é lá tão ínfima assim que mereça
escárnio e o pouco caso da imprensa.
Dizia-se isto; a imprensa pergunta ao governo se isto é verdade.
Creio que é a coisa mais curial do mundo.
Explicou-se o governo, ainda bem. Da explicação se conclui que
o boato não era tão inteiramente infundado como se quis fazer
supor; houve de fato uma pequena acumulação, ou antes,
pretendeu-se realizá-la.
O ato do Sr. Ministro do Império não merece louvor, como bem
diz o comunicante, porquanto, proporcionar a gratificação aos
dois anos e meio que servira o lente além dos vinte e cinco da
jubilação com ordenado somente, quando a lei diz que o que se
jubilar aos trinta anos é que tem direito à metade da gratificação,
seria um sofisma flagrante e de fazer arrepiar ao mais desiludido
deste mundo.
Felizmente, segundo diz o comunicante, a decisão do governo,
sendo contrária ao Sr. Candido Borges, não fez com que este
senhor conselheiro lhe retirasse a sua amizade.
Suponho que há nisto motivo para alegrarem-se os ânimos e
expandirem-se os corações. Este fato não perturbou o remanso e

210 Esse texto resposta foi tirado da nota de rodapé feita Lúcia Granja e John Gledson. (ASSIS, 2008, p.
14, nota 6)
335

a paz da igreja d’Elvas. Ambos conformes, o bispo e o deão,


continuarão a dar e a receber o santo hyssope.
Para alguma coisa há de servir a amizade política, e ninguém se
lembraria de pensar que, por uma questão de vinténs, o partido
conservador sofresse amputação em um de seus membros; e que
membro! Eloqüente quando fala, e eloqüente quando não fala!
(pp. 157-158)

Primeiro, o cronista reafirma o conceito do boato ao observar que, por publicá-


lo, seu papel foi apenas de eco de um boato que andava na praça pública. Essa esquiva
não se refere a uma tentativa de não se responsabilizar pela acusação, mas de manter a
condição anônima sob a qual reside a força do boato, uma vez que a resposta anônima à
acusação atribuiu ao Diário do Rio de Janeiro a responsabilidade da acusação, como
forma de tentar acabar com o boato. Em outras palavras, a identificação de autoria é
uma forma de desmentir e se prevenir contra a acusação do boato, isto é, se se confirma
que a crítica teve como origem o Diário e o cronista, poderia se atribuir interesses
políticos partidários na acusação. Como forma de refutação dessa tentativa de
desmentido, o cronista alega ser apenas eco do que se comenta na praça pública.
Reafirma a tese do anonimato, ao dizer que a censura corria pela boca pequena e, a
partir disso, contra-ataca a tentativa da resposta em tentar diminuir a importância do
boato. Após agradecer a explicação feita pelo Governo, o cronista reinstaura a força do
boato ao dizer que a explicação evidencia uma certa verdade do boato, isto é, que ele
não era tão inteiramente infundado como o ataque quis supor. Além disso, cabe
observar o jogo enunciativo que o cronista opera: a explicação é feita por meio de um
artigo anônimo, porém, o cronista, à medida que desautoriza sua responsabilidade pela
acusação, afirma a autoria da resposta anônima como sendo uma resposta do Governo.
Outro procedimento operado pelo cronista é o uso da antanáclase que, segundo a
definição feita por Sebastião Cherubim, é a figura de linguagem que "consiste em usar
palavra igual ou semelhante no som, mas diferente e oposta no sentido" (CHERUBIM,
1989, p. 13). Na resposta publicada no Jornal do Commercio, o autor anônimo utiliza a
palavra louvor, referindo-se à ação do Ministro, em sentido de importância. Não fazer
tema de louvores, no contexto da resposta, significa não dar tanta importância quanto
merecida, não aplaudir a ação do ministro, embora, pelo contexto, tal ação mereça
louvor. Por sua vez, o cronista opera o enunciado não merece louvor como sinônimo de
censura, visto que a ação do ministro é um sofisma flagrante. Ao fazer esse
deslocamento da significação por meio da antanáclase, o cronista atribui esse novo
336

sentido à autoria do comunicante como se o mesmo tivesse dito que tal ação deveria ser
censurada. Para fechar sua análise, utiliza-se da ironia, ao dizer que a ação do ministro,
contrário ao Conselheiro beneficiado, não comprometeu a amizade de ambos, bem
como essa amizade política, uma vez não comprometida, não faria com que o Partido
Conservador fosse amputado em um de seus membros: membro eloquente quando fala
e quando não fala! Nesse outro comentário, a ironia se dá pela ambiguidade do verbo
amputar, isto é, em sentido figurado, significa o Partido Conservador perder um
componente, mas em sentido literal, a amputação significa o Partido se tornar aleijado,
operando a corporalidade em seu comentário irônico. Além disso, faz uso da
intertextualidade, ao citar um trecho do poema heróicômico O Hissope de Antonio
Dinis da Cruz e Silva, cujo trecho citado faz referência ao momento anterior do litígio
entre o Bispo e o Deão:

Canto II

Reinava a doce paz na santa Igreja;


O Bispo, e o Deão, ambos conformes
Em dar, e receber o bento Hissope,
A vida em ócio santo consumiam.
O bom vinho de Málaga, o presunto
Da célebre Montache, as Galinholas,
As Perdizes, a Rola, o tenro Pombo,
O grão Chá de Pequim, e lá da Meca
O cheiroso Café, em lautas mesas,
Do tempo a maior parte lhes levavam;
E o restante, jogando exemplarmente,
Ou dormindo, passavam, sem senti-lo. (CRUZ E SILVA,
1817)211

Evidencia-se nesse trecho da crônica que, para mimetizar o boato como matéria
da crônica, o cronista faz uso de diferentes procedimentos como o discurso polêmico, as
figuras de linguagem, a intertextualidade, o rebaixamento, operando por meio desses
procedimentos a ficcionalidade dos discursos.
Como observa Kapferer, o boato é a mídia do não-dito, fazendo com que
cheguem a conhecimento público informações que determinada tradição política proíbe

211 Este texto foi retirado do site http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0006-02949.html


organizado pelo Programa de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina,
consultado no dia 10 de novembro de 2014.
337

que se mencionem de forma aberta212. Subentendendo-se como uma verdade oculta e


que escapou acidentalmente contra a vontade dos poderes oficiais, o boato proporciona
ao grupo meios de compartilhar opiniões, de se exprimir coletivamente, mesmo que à
custa de um "bode expiatório", o qual pode ser um indivíduo daquele mesmo grupo, um
outro grupo ou, sobretudo quando o assunto é política, os poderes oficiais213. Dessa
forma, o boato tem um efeito coletivo e de compartilhamento em um determinado
espaço geográfico. Em crônica do dia 9 de junho de 1878 da série Notas Semanais, ao
comentar sobre o incêndio Paço Municipal de Macacu, à medida em que as
informações oficiais se mostravam insuficientes para explicar a causa do incêndio, o
cronista inventa uma narrativa fantástica, na qual alega que o Paço - másculo na
aparência - era uma bela quadragenária e que, ao descobrir-se grávida, para não sofrer
uma execração universal, resolve fugir da cidade. O cronista afirma que o Paço fugiu
para a Rua do Ouvidor e, indiretamente, ironiza a prática comum dos boatos nessa rua,
por meio da negação:

Como se aproximasse o termo da gestação, urgia buscar um sítio


ermo, secreto, remoto, sem curiosidades nem murmúrios, onde a
criança pudesse nascer tranqüilamente. Com tais requisitos, o
mais próprio lugar era a nossa rua do Ouvidor. Esta rua chega a
irritar" Um homem pelo excesso de descuriosidade. Nenhum
dos seus transeuntes quer saber nada de nenhuma outra criatura
humana; nunca ali circula o mínimo boato; e quando se inventa
alguma coisa é sempre um rasgo de virtude. Tem acontecido
dizer-se de dois cônjuges separados, que são o mais unido casal
do mundo, e de um gatuno, que é cópia fiel de S. Francisco de
Sales. Os olhos andam pregados no chão; ninguém perscruta."
os pés das moças e suas imediações. O todo da rua dá idéia de
um corredor de convento. (ASSIS, 2008e, p. 99 - grifo nosso)

Em crônica do dia 23 de abril de 1893 da série A Semana, o cronista ao referir-se


à tragédia de Shakespeare Hamlet, propõe traduzir em língua puramente carioca a

212 A essência do boato, nós já demonstramos, é de ser uma palavra à margem da palavra oficial. Ela
é um contrapoder. É natural, portanto, que os boatos proliferem no âmbito da conquista e da gestão do
poder. Dessa maneira, o francês se incomoda, em geral, com problemas de saúde: é um assunto tabu,
que não se deve abordar publicamente. Por isso é um tema frequente de boatos: ele lança a dúvida
sobre a perenidade do homem e sua capacidade de governas de modo lúcido e sereno. O boato é o
mídia do não-dito; ele permite levar ao conhecimento público assuntos que a tradição política proíbe
que se mencionem abertamente. (KAPFERER, 1993, p. 196)
213 Aderir a um boato é manifestar sua solidariedade à voz do grupo, à opinião coletiva. O boato
proporciona ao grupo a ocasião de compartilhar opiniões, de se exprimir: isso acontece, em geral: às
custas de outro grupo, de algum bode expiatório. A identidade se constrói facilmente pela designação
unânime do inimigo comum. p. 96
338

célebre resposta do príncipe Hamlet ao seu lord camarista Polônio, como: boatos,
boatos, boatos! Essa localização geográfica na proposta da tradução, ressalva a
dinâmica do espaço público e privado como habitat natural do boato, conforme afirma o
cronista:

Eu, se tivesse de dar Hamlet em língua puramente carioca,


traduziria a célebre resposta do príncipe da Dinamarca: Words,
words, words, por esta: Boatos, boatos, boatos. Com efeito, não
há outra que melhor diga o sentido do grande melancólico.
Palavras, boatos, poeira, nada, coisa nenhuma.
Toda a semana finda viveu disso, salvo a parte que não veio por
boatos, mas por fatos, como o caso do coreto da Praça
Tiradentes. Ninguém boquejou nada sobre aquela construção;
por isso mesmo deu de si uma porção de conseqüências graves.
Os boatos, porém, andavam a rodo, os rumores iam de ouvido
em ouvido, nas lojas, corredores, em casa, entre a pêra e o
queijo, entre o basto e a espadilha. Conspirações, dissensões,
explosões. Uns davam à distribuição dos boatos a forma
interrogativa, que é ainda a melhor de todas. Homem, será certo
que X furtou um lenço? O ouvinte, que nada sabe, nada afirma;
mas aqui está como ele transmite a notícia: — Parece que X
furtou um lenço. Um lenço de seda? Provavelmente; não valeria
a pena furtar um lenço de algodão. A notícia chega à Tijuca com
esta forma definitiva: X furtou dois lenços, um de seda, e, o que
é mais nojento, outro de algodão, na Rua dos Ourives. (ASSIS,
2008, v. 4, p. 978)

Vemos nessa crônica a insistência do cronista em delimitar não apenas o espaço


do boato como também sua característica, entre elas, a que considera a melhor de todas
feita por meio do enunciado interrogativo e o efeito hiperbólico que ela tem de seu
ponto inicial até o final. Kapferer observa que o exagero é recorrente no boato como
consequência lógica da comunicação:

O exagero é comum nos boatos. Não se trata de um fenômeno


patológico ou aberrante, mas de uma consequência lógica da
comunicação. Ele também se encontra nas páginas dos jornais e
na maior parte dos filmes-catástrofes. Todo redator ou chefe de
redação sabe que, para manter o interesse dos leitores em
relação a um fato, é preciso fornecer-lhe sempre algo de novo,
gratificante. Assim que o efeito de surpresa termina, o interesse
diminui e se torna necessário um suplemento excitante. Quando
o rumor defende uma tese, ele reorganiza o mundo: o menor fato
é um índice, o menor índice é uma prova. (KAPFERER, 1993 p.
98)
339

Na crônica do dia 13 de agosto de 1893 da mesma série, ao convidar o leitor


para ir à Rua do Ouvidor214, o cronista a justifica como rua própria dos boatos por ela
ser estreita, tendo um aspecto de intimidade, aconchego e contiguidade:

Vamos à rua do Ouvidor; é um passo. Desta rua ao Diário de


Notícias é ainda menos. Ora, foi no Diário de Notícias que eu li
uma defesa do alargamento da dita rua do Ouvidor, — coisa que
eu combateria aqui, se tivesse tempo e espaço. Vós que tendes a
cargo o aformoseamento da cidade alargai outras ruas, todas as
ruas, mas deixai a do Ouvidor assim mesma — uma viela, como
lhe chama o Diário, — um canudo, como lhe chamava Pedro
Luiz. Há nela, assim estreitinha, um aspecto e uma sensação de
intimidade. É a rua própria do boato. Vá lá correr um boato por
avenidas amplas e lavadas de ar. O boato precisa do aconchego,
da contigüidade, do ouvido à boca para murmurar depressa e
baixinho, e saltar de um lado para outro. Na rua do Ouvidor, um
homem, que está à porta do Laemmert, aperta a mão do outro
que fica à porta do Crashley, sem perder o equilíbrio. Pode-se
comer um sandwich no Castelões e tomar um cálix de Madeira
no Deroché, quase sem sair de casa. O característico desta rua é
ser uma espécie de loja única, variada, estreita e comprida.
Depois, é mister contar com a nossa indolência. Se a rua ficar
assaz larga para dar passagem a carros, ninguém irá de uma
calçada a outra, para ver a senhora que passa, — nem a cor dos
seus olhos, nem o bico dos seus sapatos, e onde ficará em tal
caso “o culto do belo sexo”, se lhe escassearem os sacerdotes.
(ASSIS, 2008, v. 4, p. 1007-1008)

Desse modo, além de determinar o boato como anônimo, marcado pela

214 Conforme o estudo feito por Marcela Maciel em seu artigo Rua do Ouvidor, primeiro cenário do
Brasil moderno: A Rua do Ouvidor começou a ganhar importância com a vinda da família real para o
Brasil, por conta da abertura dos portos, em 1808. Comerciantes desembarcavam da Europa e se
instalavam naquela área. Por volta de 1821, chegaram as famosas modistas francesas. Até Dona
Leopoldina, primeira imperatriz do Brasil, fazia compras na Ouvidor. Ela freqüentava o ateliê de
Madame Josephine, uma das primeiras profissionais a se instalar no local. O auge da Rua do Ouvidor,
porém, foi durante o final do século XIX. Alberto Cohen, autor do livro "Ouvidor, uma rua do Rio",
confirma a fala de Machado de Assis.- Era a principal artéria do centro do Rio de Janeiro. E tudo que
acontecia aqui, irradiava para o resto do país. Muitas inovações chegaram primeiro à Rua do Ouvidor.
Lá foi instalado o primeiro telefone, e surgiram a primeira vitrine, o primeiro cinema, a primeira linha
de bonde regular da cidade e até o primeiro motel. Primeira rua de pedestres do Rio, a via também foi
a primeira a ter obras de calçamento, em 1857, e a receber iluminação elétrica, em 1891. A história do
próprio Machado de Assis se confunde com a da rua. Na Ouvidor foi fundada a Academia Brasileira
de Letras, em 1896. E grande parte dos livros do escritor foi publicada pela Livraria Garnier, uma das
mais importantes da época e que funcionava ali. http://puc-riodigital.com.puc-
rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1873&sid=55#.VGEKMPnF92Q. Consultado em 10 de
novembro de 2014
340

repetição, pelo exagero e pela velocidade com que corre à boca pequena, evidencia a rua
como o lugar próprio dos boatos. Marcando essas características, o cronista evidencia o
boato como, conforme a definição de Kapferer, o mercado clandestino da informação.

II - O Boato como matéria e objeto da crônica.

Kapferer afirma haver duas formas enunciativas que determinam a linguagem do


boato: a primeira é o uso do verbo acompanhado da partícula "SE" como índice de
indeterminação do sujeito, remetendo o boato ao grupo e, portanto, tendo como sujeito a
coletividade. Essa forma tem como efeito de sentido a maior adesão por parte do
ouvinte, pois, sendo os outros que falam, o ouvinte é induzido a compactuar como
forma de se sentir parte da comunidade. Portanto, aderir ao boato enunciado com sujeito
indeterminado é se fazer pertencente à comunidade.215
Na crônica do dia 18 de outubro de 1861 da série Comentários da Semana, ao
comentar sobre as notícias da recusa do ofício fúnebre do conde de Cavour, responsável
pelo processo de unificação italiana e, por isso, considerado como inimigo da Igreja, o
cronista trata a matéria como fruto do boato:

A pressão dos beatos é grande, mas eu acho que maior é a força


das cousas. Ah! Os beatos!É ainda deles que vou falar. Conta-se
que foi negada aos italianos a licença para celebrar um ofício
fúnebre ao conde de Cavour. É bonito isto?Pode ser, eu acho
que não serve a igreja nem ao pontífice, nem ao império.
Querermos passar por civilizados e tolerantes, e darmos destas
amostras de fanatismo e atraso, é colocar uma montanha no
caminho que pretendemos atravessar (ASSIS, 2008d, p. 66 -
grifo nosso)

Na crônica de 15 de abril de 1877 da série História de Quinze Dias, ao tratar


sobre a notícia de falsificação de letras de câmbio, o cronista aponta o boato como
característico da curiosidade do leitor desocupado ou do filósofo:

215 Existem, na verdade, duas linguagens de boato. Este se apresenta ora como um "diz-se", ora como
"segundo fonte bem informada". No primeiro caso, o "diz-se" remete ao grupo, à coletividade: são os
outros que falam, isto é, a comunidade a que nós pertencemos, do mesmo modo que o circuito do
boato. O "diz-se" é um chamado discreto, um pedido de adesão ao consenso que está em vias de se
realizar. Como não há a presença de um expert, de uma fonte original, o "diz-se" não conta com uma
adesão racional: ele joga com o desejo de posse, de se reunir a um grupo, de participar, de se fundir
ele mesmo neste "se", nessa unanimidade nascente. O "diz-se" é um apelo à comunhão social. p. 61
341

CHUMBO E LETRAS: tal é, em resumo, a história destes


quinze dias.
O caso das letras ainda hoje excita a curiosidade do leitor
desocupado ou filósofo. Não é para menos: cinqüenta contos,
que qualquer de nós diria serem cinqüenta realidades! É de fazer
tremer a passarinha.
Negociante conheço eu (e não só um) que, logo depois da
primeira notícia dos jornais, correu a examinar todas as letras
que possuía, a saber se alguma tinha por onde lhe pegasse a... Ia
dizer — a polícia, mas agora me lembro que a polícia nem lhes
pegou, nem sequer as viu.
Este caso de letras falsificadas, que não existem, que o fogo
lambeu, creio que tira ao processo todo o seu natural efeito. Há
uma confissão, alguns depoimentos, mas o documento do
crime? Esse documento, já agora introuvable, tornou-se uma
simples concepção metafísica.
Outro reparo. Afirma-se que a pessoa acusada gozava de todo o
crédito, e podia com seu próprio nome obter o valor das letras.
Sendo assim, e não há razão para contestá-lo, o ato praticado é
um desses fenômenos morais inexplicáveis que um filósofo
moderno explica pela inconsciência, e que a Igreja explica pela
tentação do mal. Quê! ter todas as vantagens da honestidade, da
santa honestidade, e atirar-se cegamente do parapeito abaixo! Há
nisto um transtorno moral um caso psicológico. Ou há outra
coisa, um efeito do que o Globo, com razão, chama —
necessidades supérfluas da sociedade. (ASSIS, 2009a, p. 187 -
grifo nosso)

Vê-se que a notícia, embora tenha sido dada pelo Jornal do Commercio em 12
de abril do mesmo ano, é tratada a partir dos boatos e como boato por meio da
referência de comentários que não constam da matéria do jornal e pelo marcador da
partícula "se" como índice de indeterminação do sujeito.
A segunda forma enunciativa é a afirmação de que dada informação origina-se
de uma fonte bem informada. Ao buscar uma paternidade para a informação, o boato
tem efeito de verossimilhança operando a confiabilidade no que é contado, tornando a
informação segura e, portanto, compartilhável. Quem o enuncia, dificilmente teve
contato com a fonte a que se refere, mas apenas repete de alguém que por sua vez
conhece o expert que tudo sabe.216
Na crônica de 1º de julho de 1877, o cronista trata sobre o conflito entre a artista

216 Assim, em busca de uma paternidade verossímil e segura, através de poucas palavras, desejo de
convencer, ou simplesmente repetição do que o circuito precedente havia lhe confirmado, aquele que
transmite um boato se diz quase sempre muito próximo da origem. Certamente ele nem mesmo
encontrou aquele que está na origem dos fatos, este expert fundamental que tudo viu, e que tudo sabe.
Em compensação ele conhece aquele ou aquela que tiveram acesso a este importante expert. p. 62
342

Mlle Lafoucarde e um empregado do Teatro Alcazar. Saindo a artista carregando uma


roupa acompanhada de sua criada foi interceptada pelo funcionário, o qual alegou que
não lhe era permitido levar a sua roupa por ordem da administração. O caso ganhou
repercussão e foi noticiado no jornal A Gazeta de Notícias, envolvendo a polícia e
transformando o assunto em comentários da semana. O cronista, ao tratar do caso, refere
ter colhido as informações por meio de um informante:

Primeiramente, o caso de Mlle. Lafourcade é o prenúncio de


episódios nunca vistos. Esta cantora apareceu outro dia em cena
com as suas malas pedindo a proteção do público, contra o
empresário, o qual, parece, estava disposto a lançar mão
daqueles interessantes objetos. Há dúvida sobre se era uma só
mala ou mais de uma: ponto histórico deixado aos
investigadores futuros.
O importante é o que havia na mala.
Feito o speech, o público bradou contra o empresário (versão n.
1) ou contra a cantora (versão n. 2), mas parece que contra
alguém manifestou o seu desagrado. A Sra. Lafourcade deitou a
mala (ou as malas) para uma bagnoire, e foi atrás dela (ou
delas). Nesse ponto cessam as minhas informações.
A mala Lafourcade é um prenúncio, como ficou dito, e vai
alterar profundamente a ordem dos espetáculos. Conheço um
ator que recusa as carícias de uma colega, e anda meditando
acolher-se sob as asas do público. Não trará a mala, mas a
fotografia da implacável Medéia. "Meus senhores, dirá esse
Jasão mal apinhoado; minha situação é ainda mais cruel do que
o ladrão do velocino. Vejam, senhores; está além do sacrifício
humano". (p. 215 - grifo nosso)

O caso é noticiado a partir de fontes que o artista diz conhecer, assim como o
outro caso seguinte que envolve um ator conhecido do cronista. Na crônica de 14 de
julho de 1878 da série Notas Semanais, ao comentar sobre o caso de oitenta russos que
tiveram sua viagem embargada pela polícia do Rio Grande do Sul, o cronista afirma
algo diferente do que os jornais diziam, declarando ter outra fonte:

No meio disto, sabe-se aqui que uns oitenta russos,


comprometidos com a província do Rio Grande, por motivo de
algumas quantias que lhe devem, trataram de fazer uma retirada
honrosa, e sobretudo noturna, para o Estado Oriental. Já
pisavam terra nova, quando a autoridade de cá obteve que a
autoridade de lá os repassasse - o que prontamente se fez.
Segundo estou informado, o que aconteceu foi justamente o
contrário daquilo. Estes russos pertencem a uma seita, a qual
tem um decálogo, no qual há um mandamento, que diz que as
343

dívidas se devem pagar, ainda à custa de sangue. Cansados de


perseguir o presidente da província, para lhes receber o dinheiro,
resolveram compeli-lo a isso, armaram-se de rebenques e foram
à noite cercar o palácio. O presidente, acordado pelo ajudante de
ordens, viu que o mais decoroso era a fuga, e saiu da capital para
Jaguarão, com os russos atrás de si, porque estes o pressentiram
e não o deixaram mais. Dali passou à vila de Artigas; mas os
russos, a quem o desespero da honra deu forças novas, foram
arrancá-lo de lá, e apresentaram-lhe aos peitos um bom par de
contos de réis. O presidente rendeu-se e passou recibo; os russos
queimaram, em efígie, o pecado do calote.
Era tempo. (ASSIS, 2008e, pp. 161-162 - grifo nosso)

Esses exemplos tanto do primeiro procedimento quanto do segundo aqui


apresentados são apenas alguns exemplos dos variados comentários que preenchem as
crônicas machadianas, transformando-a em eco do boato. Conforme observa Kapferer,
no primeiro caso, a adesão ao boato não é racional, mas afetiva, isto é, o ouvinte adere à
informação como forma de se fazer pertencer a esse coletivo responsável pela produção
e circulação do boato. Já no segundo caso, o convencimento se dá de forma racional,
isto é, a verossimilhança da notícia é garantida pela lendária figura do expert amigo de
um amigo de um amigo... O cronista, portanto, faz uso desses procedimentos para
compor o material da sua crônica. Na crônica do dia 4 de agosto de 1878 da série Notas
Semanais, ao tratar da função da crônica, ele estabelece essa relação entre o gênero e o
boato:

Consolemo-nos; é isto mesmo a vida de uma cidade, ora tétrica,


ora frívola, hoje lúgubre, amanhã jovial, quando não é todas as
coisas juntas. Sobretudo, aproveitemos a ocasião, que é única;
deixemos hoje as unturas do estilo; demos a engomar os punhos
literários; falemos à fresca, de paletó branco e chinelas de
tapete.
Que ele há de levar umas férias para nós outros, beneditinos da
história mínima e cavouqueiros da expressão oportuna. Vivemos
seis dias a espreitar os sucessos da rua, a ouvir e palpar o
sentimento da cidade, para os denunciar, aplaudir ou patear,
conforme o nosso humor ou a nossa opinião, e quando nos
sentarmos a escrever estas folhas volantes, não o fazemos sem a
certeza (ou a esperança!) de que há muitos olhos em cima de
nós. Cumpre ter idéias, em primeiro lugar; em segundo lugar
expô-las com acerto; vesti-las, ordená-las, a apresentá-las à
expectação pública. A observação há de ser exata, a facécia
pertinente e leve; uns tons mais carrancudos, de longe em longe;
uma mistura de Geronte e de Scapin, um guisado de moral
doméstica e solturas da Rua do Ouvidor... (p. 189)
344

O papel do cronista é ficar à espreita dos sucessos da rua, a partir dessa relação
entre a sua subjetividade - conforme nosso humor ou a nossa opinião/um guisado de
moral doméstica - e a subjetividade coletiva - ouvir e palpar o sentimento da
cidade/solturas do Rua do Ouvidor. Conforme vimos anteriormente, a Rua do Ouvidor
é esse espaço geográfico onde há nela, assim estreitinha, um aspecto e uma sensação de
intimidade. "É a rua própria do boato. Vá lá correr um boato por avenidas amplas e
lavadas de ar. O boato precisa do aconchego, da contigüidade, do ouvido à boca para
murmurar depressa e baixinho, e saltar de um lado para outro" (ASSIS, 2008, v. 4, p.
1007). É por meio desses boatos que o cronista se propõe a falar das coisas mais triviais,
leves, às vezes, um tom mais carrancudo, fazendo dessa mistura algo semelhante ao
autoritarismo e tolice de Geronte e a malandragem de Scapin - personagens de Molière.
Ao se propor tratar da política amena, a produção da notícia na crônica dá-se a
partir dessa mistura, isto é, tomar algo grave como por exemplo o incêndio causado no
Paço Municipal de Macacu e operar o rebaixamento, a personificação e a alegoria
quando afirma que o incêndio foi causado porque o Paço Municipal tinha o costume de
dormir tarde e fumar na cama ou que a razão toda não foi nenhum incêndio, mas o fato
de o Paço, sendo uma mulher, descobrir que estava grávida e, para não ser julgada pelos
munícipes, resolveu fugir para a Rua do Ouvidor. Diante de um acontecimento grave - o
incêndio no Paço Municipal de Macacu - e da exígua informação dada pelo poder
público - o incêndio foi causado por combustão espontânea - produzindo incertezas,
dúvidas e questionamentos, o papel do cronista é preencher essas fraturas/vazios do
discurso oficial com o boato produzido por meio dos procedimentos como o
rebaixamento, a alegoria, a intertextualidade, a personificação, entre outros e
transformar a notícia em discurso polêmico aberto ou velado. Como observa Bakhtin, a
polêmica orienta-se para o discurso refutável do outro, tendo-o como seu objeto, já a
polêmica velada estabelece uma relação indireta com o discurso do outro, visto ser seu
objeto o objeto nomeado, representado, enunciado, entrando em conflito com o discurso
do outro por meio do objeto e fazendo do seu discurso um discurso bivocal (BAKHTIN,
2008, p. 170).
Como observa Kapferer, cada ouvinte torna-se intermediário do boato por livre e
espontânea vontade. Sendo atingido pela mensagem, seu papel é repassá-la como modo
de compartilhar seus sentimentos. Dessa maneira, não se trata apenas de repetir o que
ouviu, mas convencer seu interlocutor, fazendo uso do exagero como arma de
345

convencimento. A mensagem não é apenas repassada, mas o locutor e o interlocutor


estabelecem uma troca em que ambos discutem, reagindo, elaborando e respondendo,
como forma de levantar novas questões sobre a notícia. É a partir desse processo que o
novo receptor modifica a mensagem e repassa uma nova versão do boato 217.
Além desse funcionamento do boato como procedimento que organiza as
crônicas machadianas, ele é também objeto de análise e tensão tratado nesses textos.
Conforme observa Kapferer, uma das características do boato é antecipar a notícia, isto
é, falar para saber218. À medida que se pressente qualquer perigo seja físico ou
simbólico, o boato funciona como sinal de alerta. Como já observamos, o boato é
transfuncional, isto é, serve tanto como oposição ao poder instituído como também
pode estar a serviço da sua manutenção. Na crônica do dia 24 de março de 1862 da série
Comentários da Semana, o cronista trata do boato supostamente criado pelo governo de
que, na inauguração da estátua em homenagem a D. Pedro I, aconteceria uma revolução.
Diz o cronista:

Já não pratico assim com o boato da revolução. Devo investigar


se o ministério com estas precauções que toma, e com estes
boatos que assoalha, tende à parvoíce ou à esperteza. É difícil o
problema. Existem ambos os elementos no gabinete, e decidir
qual deles prepondera na questão, é um trabalho de minuciosa
análise.
Por onde descobriria o ministério que o dia 25 seria
ensangüentado pelos dentes do tigre popular? Onde encontrou
sintomas denunciantes? Na imprensa? Não. Nunca ela foi mais
moderada, nem mais sóbria no apontar os erros administrativos.
Nenhuma doutrina que cheire a subversão tem sido alardeada e
proclamada nas folhas liberais. Nos clubes? Onde existem eles?
Onde se reúnem? Ninguém os conhece. O ministério
compreende bem que uma revolução, no sentido literal da
palavra, pede o concurso da maioria, e que esse concurso não
deve ser eventual e filho do momento.

217 Numa situação natural, cada receptor decide ser receptor. Ninguém o obriga a servir de
intermediário para o boato: ele faz por sua livre e espontânea vontade, porque se sente atingido pela
mensagem e porque quer dividir seus sentimentos. Nesse caso, ele não conta o que a pessoa antes dele
falou: ele tenta convencer seu interlocutor. Além do mais, a divulgação do boato é uma troca: a cada
transmissão, as duas pessoas discutem entre elas. O receptor não permanece mudo, contentando-se em
registrar em silêncio (como nas simulações de laboratório): ele reage, elabora, responde, coloca
questões ao receptor. Após essa discussão bastante significativa, o próprio receptor pôde modificar
sua versão inicial do boato. (KAPFERER, 1993, p. 125)
218 Em todos os casos, o boato corre porque haveria perigo, físico ou simbólico, de se desconhecer a
notícia, mesmo que essa seja verdadeira ou falsa. Precisamente, além de sua função de alerta, o boato
decide também o destino que deve se dar à notícia, o que se deve pensar dela. Aí reside uma segunda
função da repetição: falar para saber. (p. 47)
346

Pouco depois das eleições o ministro do império do gabinete


Ferraz exigiu mudança de política de reação, em vista da
situação que, na opinião dele, tendia à anarquia. Esta exigência,
que era simplesmente uma pose do ministro novato, tinha uma
razão de ser; acabava-se de uma eleição altamente pleiteada, e o
nobre ministro, depois do que havia presenciado, concluiu que o
país estava fora dos eixos. Aproveitou a circunstância e quis
fazer figura. E fez.
Hoje, porém, que a situação está calma, ou para me servir do
vocabulário do Sr. Ministro da Marinha está em calmaria podre,
será admissível, sem querer passar por tolo, a suspeita de uma
revolução?
Não suponho que o ministério ande de boa fé nestes sustos e
temores de revolução; creio em outros motivos menos inocentes,
mas por ventura menos humilhantes.
Reza a história de uns gansos que salvaram por seus grasnos a
integridade da cidade eterna. Também vigiam gansos o nosso
Capitólio? Mas estes, cansados há tanto de espreitar, sem nada
verem chegar, e querendo a todo custo dar testemunho de sua
vigilância, gritam um belo dia por socorro e clamam pela
salvação de Roma. Mas Roma está tranqüila, nenhum inimigo
lhe assoma às portas; César dorme tranqüilo no afeto e na
dedicação da cidade-rainha. Nada acontecerá, mas a suspeita
pôde ficar para o futuro, e os gansos terão feito uns bonitos
papéis.
Que tal? O meio é seguro para ganhar conceito em ânimos
augustos. É assim que estes piolhos se metem pelas costuras.
Mas os príncipes devem ser versados e sabedores das coisas
passadas. Foi a respeito desses tais enliçadores que Sá de
Miranda escreveu estes versos na sua carta a D. João III:

Senhor, hei-vos de falar


(Vossa mansidão me esforça)
Claro o que posso alcançar;
Andam para vos tomar
Por manhas, que não por força.

Alguns fatos poderiam demover-me da opinião em que estou de


que o ministério quer provar amores assoalhando calculadas
fantasias. Tal é, por exemplo, o da apreensão de alguns barris de
pólvora em várias casas.
Mas a Atualidade explica a origem desta apreensão que tanto
alarma causou, e com as quais quer o ministério afetar que
descobriu os conspiradores. Foi apenas uma denúncia de
proprietário incomodado pela vizinhança de fabricantes de
fósforos.
Demais, fazem-se durante o ano tantas apreensões de pólvora,
que estas não devem por modo merecer o mais leve reparo.
Insisto na minha apreciação; o ministério estéril, tacanho,
ramerraneiro, como é, busca a confiança imperial na prevenção
347

de revoltas imaginárias.
E o jogo é bonito e fino. Passando, como há de passar, o dia 25
sem demonstração alguma, é ao terror das medidas
anteriormente tomadas que se atribuirá a tranqüilidade da festa.
(ASSIS, 2008d, pp. 187-188)

Esse exemplo evidencia que mesmo a oposição pode ser alvo de boato,
reafirmando-se seu caráter transfuncional. Em situações como essa, o papel do cronista
torna-se o de prevenir seus leitores e desmentir o boato. Para tanto, o cronista faz uso da
intertextualidade - comparando os conservadores aos gansos que salvaram com seu
grasnar a cidade de Roma - do rebaixamento - a comparação aos gansos e a diferença do
motivo e do resultado com a história romana, isto é, se os gansos do templo da deusa
Juno no Monte Capitolino salvaram Roma da invasão gaulesa, alertando a cidade do
ataque iminente com seus grasnos, ou se os gansos do Império, cansados de espreitar
um ataque, inventam um com seus gritos apenas para ganhar conceito nos ânimos
augustos.
Conforme nota de Lúcia Granja e Jefferson Cano, no dia 3 de março, foi
publicado um artigo no editorial do Diário do Rio de Janeiro comentando sobre esse
boato criado pelos conservadores:

Há poucos dias o governo teve a bondade de explicar, ainda que


capciosamente, os motivos por que está embalando cartuxame e
afiando espadas. Já antes dessa explicação oficial o público fora
surpreendido por alguns rumores evidentemente propalados
oficiosamente, rumores esses que chegaram até algumas
províncias, antes de serem aqui percebidos. Por essas novelas de
meia-noite constava o seguinte: que o Sr. T. Ottoni achava-se
em Minas promovendo uma revolução e que até tinham sido
apreendidos alguns caixões com armamentos; que a 25 de
março, ao inaugurar a estátua equestre do primeiro imperador,
igual movimento devia rebentar aqui; finalmente, que o governo
preparava-se com toda a energia para sufocar a revolta. Se não
estivéssemos no carnaval, não nos arriscaríamos a dar conta
desses manejos ridículos.

Como resposta a esse artigo, no dia 4 de março, o Jornal do Commercio


publicou um outro artigo intitulado Ainda o Diário e as balas, acusando os liberais e,
mais especificamente, o Diário do Rio de Janeiro, conforme já citamos no capítulo
anterior.
Cabe observar que a crônica, como texto escrito, mimetiza a produção do boato.
Para tanto, as funções definidas por Genette têm relevância determinante como
348

procedimentos na elaboração desse processo: a função narrativa é o canal pelo qual o


boato é transmitido; a função testemunhal estabelece o filtro do humor e da opinião do
cronista sobre a notícia, assim como a intertextualidade, como parte da função
testemunhal, funciona como a segunda forma enunciativa do boato, observada por
Kapferer, à medida que, ao citar uma fonte real ou imaginada, serve como forma de
estabelecer a paternidade do boato, ou, pelo menos, de torná-lo verossímil; a função de
regência é o procedimento pelo qual o ato enunciativo opera a metalinguagem e se foca
no próprio canal; por fim, a função de comunicação é por sua vez, a mimetização do
diálogo entre cronista e leitor, estabelecendo a troca, a reação, a elaboração das questões
e respostas, mimetizando a conversa informal entre cronista e leitor. Operando esses
procedimentos nas crônicas, o boato resulta do que chamamos de modelo descontínuo
característico desse gênero.
Conforme vimos no capítulo sobre os romances, o modelo contratual, ao
assumir a não onisciência do narrador e a transparência dos procedimentos narrativos
para o leitor, estabelece um novo contrato com ele, à medida que, reconhecendo o
discurso narrativo como discurso marcado pela incerteza do juízo, o narrador faz com
que o leitor acredite ser coparticipante na construção do processo narrativo; por sua vez
o modelo disciplinar reconhece a não onisciência do narrador, mas evidencia a
incapacidade interpretativa do leitor e, desse modo, não se trata mais de um novo
contrato a ser estabelecido entre narrador e leitor na construção do ato narrativo, mas da
redução do papel do narrador como informante e do papel do leitor como espectador do
ato enunciativo, fazendo com que a narrativa funcione sozinha; o modelo arbitrário,
como vimos, tal qual os anteriores, busca restabelecer a coesão e coerência da narrativa
e, como o segundo, opera o jogo da sedução e coerção, mas, diferentemente do segundo,
o tom é marcado por um diálogo agressivo com o leitor, impondo seu modo de
interpretação do mundo de forma que seu discurso torna-se autoritário, evidenciando,
bem mais que os anteriores, a ficcionalidade da incoerência textual. Nas crônicas, por
meio da mimetização do boato como material e objeto de análise do discurso cronístico,
a relação entre cronista e leitor opera-se por meio da troca de informação como imitação
das conversas cotidianas - cabe lembrar a crônica anteriormente citada na qual o
cronista define o gênero como conversa entre duas vizinhas, bem como a imagem do
colibri que metaforiza o papel do cronista como o de pular de notícia a notícia,
escolhendo o que melhor lhe parecer. Outra imagem apresentada pelo cronista como
definição desse gênero é o botequim, conforme apresenta na crônica de 14 de julho de
349

1878:

A crônica é como a poesia: ça ne tire pas à consequence. Quem


passa por uma igreja, descobre-se; quem passa por um botequim
não se dá esse trabalho; entra a beber uma xícara de café ou um
grog; pede duas lérias aos amigos, quer ouvir morder na pele do
próximo; exige cócegas, pelo menos. É assim a crônica. Que
sabes tu, frívola dama, dos problemas sociais, das teses políticas,
do regimen das coisas deste mundo? Nada; e tanto pior se
soubesses alguma coisa, porque tu não és, não foste, nunca serás
o jantar suculento e farto; tu és a castanha gelada, a laranja, o
cálix de chartreuse, uma coisa leve para adoçar a boca e rebater
o jantar. (ASSIS, 2008e, p. 156)

A crônica, comparada a um botequim, não se relaciona com notícias graves ou


sacras; o leitor entra nela para beber uma xícara de café ou uma bebida alcoólica,
estabelece uma conversa com o cronista sobre os assuntos cotidianos. É por meio desses
procedimentos colhidos do cotidiano e mimetizados nas crônicas que a pena do cronista
transformou o boato como procedimento estético do romance Dom Casmurro, conforme
veremos a seguir.

III - Dom Casmurro e a estética do Boato.

O romance Dom Casmurro é uma narrativa em primeira pessoa, cujo autor-


narrador apresenta um depoimento. Como romance autobiográfico, a narrativa é movida
pelo desejo do autobiografado querer dizer a verdade, conforme observa Abel Barros
Baptista219. A história de um aspecto de sua vida (o amor por Capitu) narrada por Bento
Santiago é um depoimento resultado não de fatos, mas da interpretação que o narrador-
personagem tem deles, como já tem observado grande parte da crítica machadiana que
se deteve nesse romance. Dilson Cruz afirma que é a falta de evidência material que
leva o narrador a desenvolver sua argumentação para comprovar ao leitor a ocorrência
do adultério entre Capitu e Escobar220. Além disso, e seguindo a leitura de Baptista, o
romance autobiográfico joga constantemente com a memória e a ficção. A

219 de um modo geral, a autobiografia é movida pelo desejo de dizer a verdade sobre o autobiógrafo
e, através dela, se a narrativa autobiográfica se insinua alegórica, a verdade sobre o sentido da vida ou
do mundo. (BAPTISTA, 2003, p. 183)
220 Em outro campo, é a falta de evidência material que levou Bento Santiago a desenvolver sua
argumentação para tentar provar a ocorrência de um adultério. (CRUZ, 2008, p. 405)
350

ficcionalidade da autobiografia, como observa Stefano Calabrese em seu texto


Wertherfieber: bovarismo e outras patologias da leitura romanesca, à medida que
enuncia a gênese do eu, estabelecendo a sua autonomização, ultrapassa os limites do
cotidiano no jogo entre o verdadeiro histórico e o diegético ficcional, faz com que o
leitor se mova da linguagem à realidade, da representação ao representado, por meio de
um conjunto de memórias dispersas, estabelecendo a ficcionalidade da coerência textual
e semântica como mecanismo ilusionista sob o rígido controle estético 221. Conforme a
observação de José Luiz Passos, a narrativa que se insinua ao leitor não é a afirmativa
da culpa ou da inocência de Capitu, mas o que chama de hipótese adversa que procura
sugerir a origem da malícia, isto é, a autobiografia busca esclarecer se Capitu é culpada:

porque possui inerentemente a capacidade para a dissimulação e


a motivação do arrivismo social, ou seja, "a Capitu da praia da
Glória já estava dentro da de Matacavalos"; mas ela também
pode ser culpada por outro motivo, porque aprende a malícia e a
dissimulação de terceiros, das suas circunstâncias no trato com
outros, inclusive - e possivelmente - do seu próprio esposo ou
amante, ou seja, Capitu "foi mudada [...] por efeito de algum
caso incidente". (PASSOS, 2007, p. 230)

Portanto, o esforço memorialístico empreendido pela narrativa autobiográfica de


Dom Casmurro é um exercício hipotético que, tendo como premissa a desconfiança da
traição, busca desvendar através da memória se esses sinais já estavam presentes na
Capitu menina ou se foram aprendidos durante os anos. Dessa forma, trata-se de um
exercício interpretativo diante de um vazio de informação, ou melhor, diante de fraturas
na informação, que busca reconstruir as peças esparsas do quebra-cabeça para dar-lhe
uma coerência que prove a tese inicial. Como dissemos anteriormente, o narrador de
Dom Casmurro é menos um autor, no sentido romântico do palavra e mais um
informante que apresenta ao leitor, posto como espectador da narrativa, peças com as
quais possam ambos juntarem para alcançar o denominador comum anunciado no final
do romance:

221 Retraçados os limites epistemológicos do verdadeiro histórico e do diegético ficcional, ultrapassado o


umbral do cronotopo cotidiano, o leitor in/uso achar-se-ia em contato com signos que lhe permitiriam
mover-se do representante ao representado, da linguagem à realidade: e tudo isso, explicam hoje
alguns estudiosos, com a finalidade de restabelecer na moderna sociedade segmentada uma condição
primária de indivisibilidade. Quanto mais se assiste à gênese do eu e à sua progressiva autonomização,
mais a ilusão estética deseja, por um lado, representá-la por meio de uma torrente de memórias,
diários, correspondências e autobiografias, por outro, compensá-la por meio de mecanismos
ilusionistas sob rígido controle estético. (CALABRESE, 2009, p. 703)
351

O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da


de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de
algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos
meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1:
"Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a
enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu creio que
não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu
menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra,
como a fruta dentro da casca.
E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma
das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira
amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão
queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e
enganando-me... A terra lhes seja leve! (ASSIS, 2008b, pp. 276-
277)

Kapferer observa que, quando a informação é rara, ela engendra o boato e não
necessariamente a informação que o boato faz circular é verdadeira ou falsa, mas
interpretativa, isto é, à medida em que as fraturas de uma determinada informação são
muitas de modo que nem todas as peças se encaixem, o informante opera um exercício
interpretativo que lhe permita dar unidade ao relato contado de forma que pareça o mais
verossímil possível. É, portanto, na chave da verossimilhança que o boato opera e passa
dar sentido às informações isoladas. Ler o romance Dom Casmurro pela chave do boato
não é propor que seu discurso seja verdadeiro ou falso, mas entender esse discurso
memorialístico como um exercício de interpretação, marcado pela ambiguidade, cujo
procedimento transforma essa ficção autobiográfica em uma estética do boato, pois
como observa Kapferer:

O boato é a mobilização da atenção do grupo: devido a


mudanças sucessivas, o grupo tenta reconstruir o puzzle
constituído pelas peças esparsas que lhe foram relatadas. Quanto
mais faltarem peças, mais o inconsciente vai determinar a
interpretação. No entanto, quanto mais peças existirem, mais a
interpretação estará próxima ao real. É essa interpretação
escolhida como a melhor que circula e ficará para a posteridade:
as pessoas se lembrarão exclusivamente dela. (KAPFERER,
1993, p. 29)

A partir dessa proposta de abordagem de leitura neste trabalho - a estética do


boato em Dom Casmurro - podemos depreender três diferentes formas manifesta nesse
romance: a primeira refere-se ao exercício hermenêutico operado pelo narrador-
352

personagem ao reconstituir por meio da memória o seu passado com base na premissa
da traição de Capitu; a segunda, refere-se ao procedimento composicional da narrativa
marcado pela ambiguidade e pelos vazios textuais como efeito do esforço interpretativo
de suas memórias; a terceira, por fim, refere-se ao modo de recepção na história da
crítica literária machadiana e de outras leituras como efeito desse jogo composicional e
interpretativo. Em outras palavras, o boato se manifesta no esforço memorialístico do
narrador, na forma composicional do romance e na sua recepção por diferentes leitores
anônimos ou conhecidos. A personalidade de Bento Santiago resulta dessa malha
memorialística como experiência cotidiana por meio de um fluxo incessante de
pensamentos, sentimentos e sensações e só por meio do contato com essa malha
memorialística, segundo observação de Ian Watt em sua obra A Ascensão do Romance,
que o leitor pode participar inteiramente da vida desse eu que se enuncia na
autobiografia ficcional222.

a) O boato como fruto da memória de Bento Santiago.

Ao justificar o motivo da narrativa, o narrador Dom Casmurro afirma como


objetivo principal da escrita autobiográfica, já manifesto na reconstrução de sua casa
atual segundo o modelo da casa da infância, o querer atar as duas pontas da vida,
restaurando na velhice a adolescência:

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar


na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor
o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a
fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um
homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas
falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal
comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos
cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz
nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me
desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como
todos os documentos falsos, mas não a mim. (ASSIS, 2008b, p.
41)

222 O principal problema ao retratar-se a vida interior é a escala temporal. A experiência cotidiana do
indivíduo compõe-se de um fluxo incessante de pensamentos, sentimentos e sensações; contudo a
maioria das formas literárias - por exemplo, a biografia e até a autobiografia - tendem a ser uma malha
temporal muito aberta para conseguir reter sua atualidade; e assim também a memória em geral. No
entanto é esse conteúdo de consciência minuto a minuto que constitui a verdadeira personalidade do
indivíduo e determina seu relacionamento com os outros: só através do contato com essa consciência
o leitor pode participar inteiramente da vida de uma personagem de ficção. (WATT, 2010, p. 202)
353

A proposta inicial que movimenta a escrita desse romance memorialístico, como


vemos na citação, é reconstituir-se como ser no mundo a partir de suas lembranças, o
que pressuporia tratar de vários acontecimentos e pessoas que participaram desses
momentos. Contudo, a narrativa memorialística desse romance inicia-se pela tarde em
que José Dias denuncia à família e ao Bentinho seu amor por Capitu. Como observa
José Luiz Passos, Dom Casmurro é um caso clássico de autobiografia confessional,
visto que o narrador se empenha na rememoração da sua formação sentimental para
compreender os motivos de sua queda tendo como premissa de culpa Capitu223.
Desse modo, o desenvolvimento temático desse romance se estabelece não por
uma abordagem geral da sua vida, mas tem como isotopia que estrutura todo o romance
sua vida sentimental e, mais especificamente, o sentimento por Capitu. Ainda que faça
referência a alguns outros acontecimentos que não necessariamente esteja diretamente
relacionados ao tema central, eles servem para contextualizar e determinar as
circunstâncias contextuais desse tema. Desse modo, o narrador, funcionando menos
como autor e mais como informante no relato de suas memórias, busca a todo momento
relatar situações isoladas que sirvam como peças que se encaixem nesse projeto
narrativo. Como observa Kapferer na citação apresentada anteriormente, o boato
funciona como mobilizador da opinião do grupo, o qual, diante das peças que lhes são
relatadas, tenta reconstruir esse puzzle, peças as quais quanto mais consideradas
verossímeis em relação às outras, ficam para a posteridade, pois os leitores se lembrarão
exclusivamente delas.
É por essa razão que o narrador inicia a narrativa, relatando a tarde em que,
como diz, "a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A
mim é que ele me denunciou" (ASSIS, 2008b, p. 56). Em outras palavras, o ponto de
partida do ato narrativo reafirma o seu tema central: o amor por Capitu e todos os
desdobramentos que resultam disso. Entre a denúncia e essa afirmação decorrem cinco
capítulos, nos quais, o narrador estabelece a digressão informacional - à medida que

223 Quase todos os romances anteriores, principalmente após as Memórias Póstumas de Brás Cubas,
têm um foco mais restrito, pois se concentram no desenvolvimento e na crise de um único indivíduo.
Brás Cubas nos conta a sua vida (é certo que com os poderes de um biógrafo onisciente, já que nos
fala do além); em Quincas Borba a vida de Pedro Rubião de Alvarenga ocupa a narração da primeira à
última página do romance, e temos um narrador impessoal, mas opinativo. Em Dom Casmurro há um
caso clássico de autobiografia confessional; Bento Santiago reimagina a sua formação sentimental a
fim de compreender as razões da sua própria queda, cuja culpa ele atribui a Capitu. (PASSOS, 2007,
p. 239)
354

apresenta as personagens que se encontram naquela sala - e alegórica, quando narra a


conversa com seu amigo tenor Marcolini, o qual desenvolve a teoria de que a existência
humana é uma grande opera escrita por Deus e desenvolvida pelo diabo. Ao final dessa
digressão alegórica, assume sua aplicabilidade para a cena principal narrada da denúncia
feita por José Dias:

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só


pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas
porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo
terníssismo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não
adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que
já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi
dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou. (p.
56)

Kapferer, citando o texto Rumores de Durandin, observa que o depoimento,


produtor de ambiguidades que o boato faz ressoar, dificilmente tende a ser exato, pois
os critérios que o discurso do depoimento se utiliza para definir o que é verdadeiro ou
falso são os mesmos, isto é, sempre exigindo a ação de boa-fé do interlocutor, bem
como a declaração feita no depoimento reflete algumas vezes os estereótipos mentais do
declarante sobre o fato que diz ter vivenciado e, por fim, mesmo quando eles coincidem
na avaliação de uma terceira pessoa chamada como testemunha não significa
necessariamente um índice de verdade dado o fato de a testemunha, sendo próxima do
declarante, compartilhar dos mesmos estereótipos, percebendo os acontecimentos a
partir da mesma referência224. Em Dom Casmurro, o narrador relata a impressão feita
por José Dias sobre o olhar de Capitu ao associá-lo a olhos de cigana oblíqua e
dissimulada o que o leva a pedir para fitar os olhos da amiga:

—Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.


Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos

224 Durandin, um dos especialistas do estudo da mentira, resume dessa forma os resultados dessas
diversas experiências [45]:
- um depoimento totalmente exato é excepcional;
- os depoimentos declaram serem as informações verdadeiras ou falsas segundo o mesmo critério, isto
é, sempre agindo de boa-fé;
- o que nós declaramos reflete algumas vezes mais nossos estereótipos mentais do que aquilo que nós
vimos realmente;
- em consequência, se vários depoimentos coincidem, isto não significa necessariamente um índice de
verdade nestas declarações. Isso pode significar que várias pessoas, dividindo os mesmos estereótipos
e os mesmos clichês mentais, percebem os fatos de uma maneira idêntica, todavia errados.
(KAPFERER, 1993, p. 31)
355

de cigana oblíqua e dissimulada." Eu não sabia o que era


obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar
assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o
que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a
doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação
creio que lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era
um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos
longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem
a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética
para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode
imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o
que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca.
É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que
fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para
dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.
Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às
orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas
tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e
tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os
relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A
eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca
deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios.
Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a
soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus
inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão
gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos
condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino
Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para
contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me
definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos
(ASSIS, 2008b, p. 97)

Esse trecho evidencia o procedimento narrativo desenvolvido não apenas aqui,


mas em todo o romance. Para garantir a coerência narrativa, cada relato, o qual não
necessariamente liga-se aos anteriores, é intercalado com o seguinte por meio das
metalepses testemunhais, de regência, de comentário e de comunicação. Tal observação
nos permite entender o esforço interpretativo para garantir a coerência textual e com
isso a manutenção da ficcionalidade narrativa. Conforme a observação de Kapferer, a
interpretação determina a ligação entre as peças para que o boato possa ter pertinência
verossímil e efeitos de verdade. É o que observamos no capítulo LXII, intitulado Uma
ponta de Iago. Nele, o narrador após receber a visita de José Dias no Seminário,
pergunta-lhe sobre Capitu, José Dias responde que ela anda alegre e sugere a Bentinho
que em breve acabará se casando com algum peralta da vizinhança. Tal afirmação
356

provoca ciúme no rapaz a ponto de sua imaginação percorrer todo o caminho do


Seminário à casa de Capitu para contemplar a cena de Capitu se enamorando de um
vizinho peralta, esse a ir falar-lhe à janela, levar-lhe flores e... a cena imaginária é
interrompida para estabelecer diálogo com o leitor por meio da metalepse de
comunicação. O leitor é cobrado pelo narrador a dar sequência à imaginação, pois, caso
não o faça, não entenderá o conjunto da obra:

Estou que empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo


corpo todo. A notícia de que ela vivia alegre, quando eu chorava
todas as noites, produziu-me aquele efeito, acompanhado de um
bater de coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvi-lo. Há
alguma exageração nisto; mas o discurso humano é assim
mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas,
que se compensam, ajustando-se. Por outro lado, se entendermos
que a audiência aqui não é das orelhas, senão da memória,
chegaremos à exata verdade. A minha memória ouve ainda
agora as pancadas do coração naquele instante. Não esqueças
que era a emoção do primeiro amor. Estive quase a perguntar a
José Dias que me explicasse a alegria de Capitu, o que é que ela
fazia, se vivia rindo, cantando ou pulando, mas retive-me a
tempo, e depois outra ideia...
Outra ideia, não,—um sentimento cruel e desconhecido, o puro
ciúme, leitor das minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu, ao
repetir comigo as palavras de José Dias: "Algum peralta da
vizinhança." Em verdade, nunca pensara em tal desastre. Vivia
tão nela, dela e para ela, que a intervenção de um peralta era
como uma noção sem realidade; nunca me acudiu que havia
peraltas na vizinhança, vária idade e feitio, grandes passeadores
das tardes. Agora lembrava-me que alguns olhavam para
Capitu,—e tão senhor me sentia dela que era como se olhassem
para mim, um simples dever de admiração e de inveja.
Separados um do outro pelo espaço e pelo destino, o mal
aparecia-me agora, não só possível mas certo. E a alegria de
Capitu confirmava a suspeita; se ela vivia alegre é que já
namorava a outro, acompanhá-lo-ia com os olhos na rua, falar-
lhe-ia à janela, às avemarias, trocariam flores e...
E... quê? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti
mesmo, escusado é ler o resto do Capítulo e do livro, não
acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da
etimologia. Mas se o achaste, compreenderás que eu, depois de
estremecer, tivesse um ímpeto de atirar-me pelo portão fora,
descer o resto dai ladeira, correr, chegar à casa do Pádua, agarrar
Capitu e intimar-lhe que me confessasse quantos, quantos,
quantos já lhe dera o peralta da vizinhança. (pp. 151-152)

Essa lacuna enunciada no diálogo com o leitor evidencia o método hermenêutico


357

que o narrador estabelece como orientação de leitura para o leitor de modo que se
garanta as ligações que passam sempre e a partir do modo como o narrador escolhe e
organiza suas memórias como forma de tentar resolver a questão final, isto é, se a
Capitu da Glória já estava na de Matacavalos ou se essa foi mudando com o tempo.
Outro exemplo encontramos no capítulo LXXII, ao propor uma reforma dramática à
medida que o destino, como o dramaturgo, não revela o desfecho da narrativa:

Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta
história poderia responder mais, tão certo é que o destino, como
todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o
desfecho. Eles chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-
se as luzes, e os espectadores vão dormir. Nesse gênero há
porventura alguma coisa que reformar, e eu proporia, como
ensaio, que as peças começassem pelo fim. Otelo mataria a si e a
Desdêmona no primeiro ato, os três seguintes seriam dados à
ação lenta e decrescente do ciúme, e o último ficaria só com as
cenas iniciais da ameaça dos turcos, as explicações de Otelo e
Desdêmona, e o bom conselho do fino Iago: "Mete dinheiro na
bolsa." Desta maneira, o espectador, por um lado, acharia no
teatro a charada habitual que os periódicos lhe dão, por que os
últimos atos explicam o desfecho do primeiro, espécie de:
conceito, e, por outro lado, ia para a cama com uma boa
impressão de ternura e de amor:

Ela amou o que me afligira,


Eu amei a piedade dela. (p. 169)

Ou no capítulo CXXVII, quando, após o enterro de Escobar, resolve andar a


esmo para sossegar a alma, pára em um barbeiro perto de sua casa e fica ouvi-lo tocar a
rabeca. Ao fundo, enquanto o barbeiro toca, vê apontar sua esposa e supõe que, o
contemplador, ao invés de ir-se embora após o término da apresentação, como ele o faz,
ficasse a namorar-lhe a mulher. Outros exemplos, como o capítulo CXXIII que narra a
cena do velório, intitulado Olhos de Ressaca - o segundo capítulo com esse título -
interpreta o olhar que Capitu lança para o cadáver, enquanto acode a amiga Sancha,
como apaixonadamente fixo. Esses e outros exemplos deságuam no principal deles, o
capítulo CXXXI, intitulado Anterior ao Anterior, no qual em conversa com o marido no
começo do ano de 1872, Capitu, ao observar a expressão esquisita do olhar de Ezequiel,
o compara ao olhar de Escobar, comparação que resulta, no capítulo seguinte, na
extensão de toda feição do menino ao amigo morto:
358

Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a


pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram como um
debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos
poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até
que a família pendura o quadro na parede, em memória do que
foi e já não pode ser. Aqui podia ser e era. O costume valeu
muito contra o efeito da mudança; mas a mudança fez-se, não à
maneira de teatro, fez-se como a manhã que aponta vagarosa,
primeiro que se possa ler uma carta, depois lê-se a carta na rua,
em casa, no gabinete, sem abrir as janelas; a luz coada pelas
persianas basta a distinguir as letras. Li a carta, mal a princípio e
não toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é certo, metia o
papel no bolso, corria a casa, fechava-me, não abria as vidraças,
chegava a fechar os olhos. Quando novamente abria os olhos e a
carta, a letra era clara e a notícia claríssima.
Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do
Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada,
beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção
do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e
praticava-as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo.
Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a
mim, que vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem
mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e
eu jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para
dividir pelo tempo da morte todos os minutos da vida embaçada
e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no alto da
escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado
e diferia o castigo de um dia para outro. (pp. 254-255)

O relato desses exemplos apresentados e de vários outros presentes no romance


é acompanhado das metalepses que funcionam como procedimentos interpretativos para
estabelecer a ligação isotópica do tema central do romance: a narrativa sentimental do
narrador por Capitu que vai desde a admiração ao ciúme doentio produtor da certeza do
adultério da esposa com o amigo. Não se trata de negar a hipótese inicial do narrador
em querer recuperar a si mesmo por meio das memórias, mesmo considerando que no
final do romance o motivo já não é mais a reconstituição de si mesmo que falta, mas a
hipótese do adultério. A análise de funcionamento da narrativa é sempre tentadora a nos
provocar o desejo de nos posicionarmos sobre a clássica discussão - saber se Capitu
traiu ou se a hipótese da traição é apenas fruto da mente ciumenta e doentia de Dom
Casmurro; ao analisarmos os procedimentos que fazem funcionar a ficcionalidade
memorialística nesse romance, não se trata de saber se houve traição ou se o narrador
não é confiável, mas perceber que o discurso memorialístico nesse romance funciona
muitas vezes de modo involuntário ao buscar conectar peças esparsas por meio do ato
359

narrativo que prove a hipótese. Portanto, o narrador, independentemente de fazê-lo de


modo consciente, opera no modo de produção das informações a estética do boato que,
conforme observa Kapferer, nasce frequentemente do malentendido na referência de um
testemunho, o qual muitas vezes, elimina a diferença entre o que foi dito e o que foi
codificado225. Desse modo, após o acontecimento identificado como ambíguo, surgem
numerosas interpretações, os quais passam a coexistir e se enriquecer umas às outras.
No percurso narrativo, algumas delas são abandonadas em benefício das outras criando
um tronco comum, o qual se constitui como o conteúdo do boato. Desse modo, a
narrativa passa a funcionar por meio daquilo que Abel Barros Baptista em O legado
Caldwell,ou o paradigma do pé atrás definiu como um manto de ambiguidade de
sentido. Funcionamento que analisaremos no ponto seguinte.

b) O boato como procedimento do romance Dom Casmurro.

Esse movimento interpretativo empreendido pelo narrador como característica


do boato é fruto dos procedimentos enunciativos e tem efeitos significativos no modo de
produção do romance. Como observa Alfredo Bosi em sua obra O Enigma do Olhar, o
fato de ser Dom Casmurro o segundo romance homodiegético, não torna o narrador
uma réplica de Brás Cubas, pois nesse:

Machado timbrou em reconstruir, aprofundar e tonalizar a


história interna da voz narrativa, o que dá um Bentinho
vacilante, vulnerável, temeroso, se não tímido, desde o início
das suas relações familiares, impressionável ao extremo e, por
longo tempo, apaixonado pela mocinha de origem modesta com
quem deseja casar e de fato se casa desfrutando alguns anos de
felicidade conjugal. Trata-se de uma história de amor, suspeita,
ciúmes, e desejos de vingança, e não de uma crônica de casos
sensuais e saciedade entremeada de comentários cínicos como a
de Brás Cubas (BOSI, 1999, p.41)

Como já havíamos observado, o funcionamento das metalepses nesses dois


romances dá-se de modo bastante diferente: em Memórias Póstumas de Brás Cubas,
funciona como modelo arbitrário e em Dom Casmurro, como modelo disciplinar. Esse

225 Os boatos nascem frequentemente de um erro de interpretação da mensagem. O mal-entendido


faz referência a um testemunho de testemunho e a uma diferença entre o que foi dito e o que foi
decodificado. (KAPFERER, 1993, p. 37)
360

modo de reconstruir, aprofundar e tonalizar essa voz narrativa interna constitui um


narrador que fala a partir de seus sentimentos, sejam eles a culpa, o remorso, o ciúme, a
vingança, a dúvida e a incerteza. Em sua obra, Os Leitores de Machado de Assis, Hélio
Seixa Guimarães chama a atenção para a ambiguidade com que essa narrativa é
construída, permitindo com que os leitores, atentando-se ao que o texto diz e
distorcendo o mínimo, depreendam do sentido do texto as suas próprias simpatias e
visões do mundo que determinam as interpretações e julgamentos conforme a simpatia
por esta ou aquela personagem. Isto é, o romance é repleto de lacunas de modo a
permitir que os leitores possam projetar no texto as suas subjetividades operando as
interpretações condizentes com sua percepção de mundo226.
Como observa Kapferer, o boato é uma comunicação ao nível da emoção, isto é,
o boato faz com que o locutor fale a partir de comentários morais, opiniões pessoais e
reações emotivas227. Desse modo, a composição da voz narrativa nesse romance
determina um narrador que elabora seus relatos por meio da emoção o que torna seus
comentários marcados pela interpretação. Logo, o modo de composição em Dom
Casmurro produz uma voz afetada por sentimentos, fazendo com que os relatos se
confundam com a tese inicial, justificando-a por meio de hipóteses e determinações
axiológicas desse narrador. Por outro lado, esse narrador movido pela emoção
determina a estrutura do romance que, como define Dilson Cruz, na citação feita
anteriormente, diante da falta de evidências materiais que comprovem o adultério,
desenvolve argumentos que possam prová-lo. Assim, o narrador produz o boato na
estrutura do romance à medida que lhe faltam informações suficientes para justificar sua
crença de traição.

226 Aqui importa atentar para a ambiguidade com que o relato é construído, possibilitando que os
leitores empíricos, baseados no que o próprio texto diz e distorcendo o mínimo, projetem suas
simpatias e visão de mundo neste ou naquele personagem, acreditando mais ou menos no que diz o
narrador e formulando até mesmo interpretações e julgamentos opostos sobre as personagens e suas
motivações. A narração se apresenta com lacunas suficientes de modo a permitir que os leitores, como
faz o próprio Bento Santiago, tenham espaço suficiente para projetar sua própria subjetividade,
indentificando-se e desidentificando-se com personagens e diferentes interpretações dos fatos
narrados. (GUIMARÃES, 2004, p. 234)
227 Mas o boato é também um convite (jogo). Falar, quer dizer, falar junto, em coletividade.
G.Bateson demonstrou que toda conversação é, de certa forma, a proposição de um certo tipo de
relação entre os dois interlocutores. Contar um boato a alguém é convidá-lo a "boatar", é dizer-lhe de
modo implícito: "Você e eu não vamos nos deter nos assuntos mundanos ou na meteorologia, e sim
conversar sobre os boatos". Ora, o boato é uma comunicação ao nível da emoção: ele incita os
comentários morais, as opiniões pessoais e as reações emotivas. Contar um boato significa que se quer
iniciar ou prosseguir uma relação mais íntima com o interlocutor, em que cada um possa se expor um
pouco mais, desnudar os sentimentos, os valores, sem precisar falar de si próprio. Em resumo, o boato
fornece a ocasião de trocar não a informação, mas a expressão. (KAPFERER, 1993, p. 54)
361

Affonso Romano de Sant'Anna, em sua obra Análise Estrutural dos Romances


Brasileiros, observa que a narrativa machadiana se desenvolve por meio da exploração
da duplicidade que medeia um jogo de oposições228. Em Dom Casmurro, a presença de
informações opostas e, muitas vezes, paradoxais, produz constantes ambiguidades,
impossibilitando qualquer certeza a ser depreendida desse romance. Como exemplo, no
capítulo LXXXIII ao ir a casa do pai de Sancha visitá-los e rever Capitu que lá
desempenhava o papel de enfermeira à amiga doente, Gurgel chama a atenção de
Bentinho para o retrato da esposa, observando o quanto Capitu parecia com ela -
afirmação que Bentinho confirmou menos por concordância e mais por conveniência:

Gurgel, voltando-se para a parede da sala, onde pendia um


retrato de moça, perguntou-me se Capitu era parecida com o
retrato.
Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a
opinião provável do meu interlocutor, desde que a matéria não
me agrava, aborrece ou impõe. Antes de examinar se
efetivamente Capitu era parecida com o retrato, fui respondendo
que sim. Então ele disse que era o retrato da mulher dele, e que
as pessoas que a conheceram diziam a mesma coisa. Também
achava que as feições eram semelhantes, a testa principalmente
e os olhos. Quanto ao gênio, era um, pareciam irmãs.
— Finalmente, até a amizade que ela tem a Sanchinha- a mãe
não era mais amiga dela... Na vida há dessas semelhanças assim
esquisitas. (ASSIS, 2008b, p. 184)

Essa informação é retomada no capítulo CXL, no qual Capitu, para refutar a


prova da semelhança entre Ezequiel e Escobar, lembra a Bentinho as palavras de Gurgel
a respeito dessa semelhança entre a mãe de Sancha e ela:

No intervalo, evocara as palavras do finado Gurgel, quando me


mostrou em casa dele o retrato da mulher, parecido com Capitu.
Hás de lembrar-te delas; se não, relê o capítulo, cujo número não
ponho aqui, por não me lembrar já qual seja, mas não fica longe.
Reduzem-se a dizer que há tais semelhanças inexplicáveis... (p.
266)

228 a) A narrativa machadiana desenvolve-se sistematicamente explorando a duplicidade por


intermédio de um jogo de oposições. b) Os elementos, apesar de opostos, não surgem de forma
simétrica se complementando. Têm características ambíguas e bivalentes, sem que se possa prescindir
de um deles ou se consiga separar um do outro com precisão, pois formam um composto de elementos
solidários e inseparáveis. c) À duplicidade e à ambiguidade soma-se um terceiro estágio que dá
sentido aos anteriores na medida em que conjuga e integra os elementos do sistema dentro de uma
ideia de complementaridade. As oposições e ambiguidades deixam de ser sistemáticas para se
tornarem sistêmicas. (SANT'ANNA, 2012, p. 198)
362

Obviamente, para o leitor que defende a inocência de Capitu e o ciúme doentio


de Bentinho, essa informação serve como prova do embuste argumentativo do narrador,
o qual, como procedimento retórico, antecipa a possível prova para neutralizá-la e
eliminá-la. Contudo, o leitor que defende a traição, pode alegar a honestidade do
narrador, à medida que não esconde nada que pudesse inocentar Capitu, vendo nesse
trecho apenas uma prova insuficiente de sua inocência. Essas possibilidades de leitura
resultam do paradoxo que esse trecho faz funcionar: à medida que preserva em si a
possibilidade de duas leituras, evidencia seu caráter ambíguo que, como observa Bosi,
preserva "o senso de ambiguidade dramática que sai das páginas do romance" (BOSI,
1999, p. 30).
Outro exemplo é a sequência de capítulos que se inicia no capítulo CXVIII
intitulado A Mão de Sancha, o qual narra o jantar em casa de Escobar e Sancha, até o
capítulo CXXI, intitulado A Catástrofe, no qual um escravo de Sancha vem avisar
Bentinho da morte de Escobar. No capítulo CXVIII, Sancha e Bentinho trocam olhares
e, na hora de se despedir ambos apertam a mão de forma mais demorada do que o de
costume:

Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A


mão dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que de
costume.
A modéstia pedia então, como agora, que eu visse naquele gesto
de Sancha uma sanção ao projeto do marido e um
agradecimento. Assim devia ser, mas o fluido particular que me
correu todo o corpo desviou de mim a conclusão que deixo
escrita. Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando
uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado. Passou
depressa no relógio do tempo; quando cheguei o relógio ao
ouvido, trabalhavam só os minutos da virtude e da razão.
—... Uma senhora deliciosíssima, concluiu José Dias um
discurso que vinha fazendo.
—Deliciosíssima! repeti com algum ardor, que moderei logo,
emendando-me: Realmente, uma bela noite! (ASSIS, 2008b, p.
240)

Esse acontecimento leva Bentinho a uma luta interior entre o desejo e a culpa,
em que os instantes do diabo intercalavam-se nos minutos de Deus. Sentindo se mal
pela atração que sentira pela esposa do amigo, busca fugir do desejo e, na manhã
seguinte, narrado no capítulo CXX, embora já tenha fugido, ainda aparece como
363

sombra; segue, por fim o capítulo que narra o anúncio da morte de Escobar. Essa
sequência continua até o capítulo CXXIII intitulado Olhos de Ressaca, momento
narrativo em que Bentinho supõe a traição. Essa sequencialidade dos acontecimentos
permite a leitura em defesa de Capitu ao depreender dela a projeção de culpa nascida e
recalcada em Bentinho nos capítulos anteriores e, posteriormente projetado em sua
esposa229. Contudo, para os defensores da traição, o simples fato de o narrador relatar
esse momento, é prova cabal da honestidade de Bento Santiago.
Leituras mais refinadas e detalhadas como as feita por Helen Caldwell, Roberto
Schwarz, Silviano Santiago, Gilberto Pinheiros Passos, entre muitos outros críticos
machadianos buscam nas formas de produção da narrativa de Dom Casmurro,
elementos que evidenciem a paranoia de Bentinho e inocentem Capitu. Como afirma
Caldwell em sua obra O Otelo Brasileiro de Machado de Assis:

O núcleo do meu estudo consiste em responder duas questões


suscitadas diretamente do próprio Dom Casmurro, uma
subsidiária à outra. A questão principal é: "A heroína é culpada
de adultério?"; a subsidiária, "por que o romance é escrito de tal
forma a deixar a questão da culpa ou inocência da heroína para
decisão do leitor?" (CALDWELL, 2002, p. 13)

Apenas para citar mais um exemplo, em seu texto A Lógica da Substituição,


Marta de Senna interpreta o capítulo 93 - Um amigo por um defunto - e o capítulo 96 -
Um substituto - como duas premissas perigosas a apontar para a conclusão de que
Escobar tenha substituído Bentinho pelo fato de este não conseguir ter um filho com
Capitu:

A conclusão dessas duas premissas é perigosa: Escobar substitui


Manduca. Bentinho é substituído por um mocinho órfão. Logo,
Escobar é capaz de substituir e Bentinho é passível de ser
substituído. O leitor não percebe, mas está sendo sub-
repticiamente condicionado a aceitar a idéia de que, diante do
próximo impasse no desenrolar da trama - a esterilidade do

229 Freud define a projeção como um mecanismo de defesa psicológico no qual o indivíduo projeta
seus pensamentos, motivações, desejos e sentimentos recalcados em uma outra pessoa. Peter Gay
define a projeção como uma operação no qual o indivíduo ao invés de lidar com certos pensamentos
de modo consciente, sobretudo, os de infidelidade, projeta no parceiro ou parceira e passa a acreditar
que o outro é quem tem tais pensamentos. ( Shepard Simon. "Basic Psychological Mechanisms:
Neurosis and Projection". The Heretical Press. In: http://www.heretical.com/sexsci/bpsychol.html.
Acessado em 15 de novembro de 2014.)
364

casamento de Bentinho e Capim -, a solução seja uma


substituição. (SENA, 2008, p. 107)

Não se trata aqui de colocar em questionamento essas leituras possíveis do modo


de organização do romance, mas evidenciar como o romance se produz de modo que os
seus mínimos detalhes estruturais produzem a dinâmica do boato, uma vez que, como já
observamos exaustivamente citando Kapferer, a ambiguidade que estrutura o romance
por meio de suas oposições e paradoxos provoca os leitores especialistas ou comuns a
tomarem uma determinada posição e, por meio dessas estruturas narrativas,
argumentarem favorável ou contrariamente à hipótese de traição. Como observa
Sant'Anna, os elementos opostos não surgem de forma simétrica, mas ambíguas e
bivalentes, formando um composto de elementos solidários e inseparáveis e, à medida
que integram os elementos do sistema dentro de uma ideia de complementaridade, essas
oposições e ambiguidades deixam de ser sistemáticas para se tornarem sistêmicas 230.
Esse modo de produção narrativa determinada e determinante no romance
evidencia um narrador desconfiado que, seguindo a análise de Cruz, se generaliza e faz
com que o boato plasme a estrutura do romance231. Como observa Kapferer, o boato, à
medida que satisfaz as duas condições de confiança - poder crer e querer crer -, faz
circular suas informações no corpo social em que é engendrado, fazendo com que seja
constantemente repetido tanto pela afirmação que estabelece sua condição de veracidade
como pelos desmentidos que tentam neutralizá-lo. À medida que o boato movimenta as
opiniões, tanto as que o repetem, quanto as que buscam desmenti-lo, ele resiste ao
tempo, pois encontra a cada ocasião um novo público que o descobre pela primeira vez
como se estivesse a apoderar-se de uma informação super-recente e certificada232.
Confirma-se essa análise do pesquisador francês, a definição do boato apresentada pelo

230 a) A narrativa machadiana desenvolve-se sistematicamente explorando a duplicidade por


intermédio de um jogo de oposições. b) Os elementos, apesar de opostos, não surgem de forma
simétrica se complementando. Têm características ambíguas e bivalentes, sem que se possa prescindir
de um deles ou se consiga separar um do outro com precisão, pois formam um composto de elementos
solidários e inseparáveis. c) À duplicidade e à ambiguidade soma-se um terceiro estágio que dá
sentido aos anteriores na medida em que conjuga e integra os elementos do sistema dentro de uma
ideia de complementaridade. As oposições e ambiguidades deixam de ser sistemáticas para se
tornarem sistêmicas. (Sant'Anna, 2012, p. 198)
231 Dilson Cruz fala em conteúdo do livro que é plasmado na forma romance. Kapferer, em citação já
apresentada nesse trabalho, observa que as interpretações de um fato ambíguo constituem o tronco
comum como conteúdo do boato. A partir dessa afirmação, é que traduzimos o termo conteúdo feito
por Cruz como boato.
232 Entretanto, alguns boatos parecem resistir ao tempo. Esse fenômeno é explicável: o boato
encontra a cada ocasião um novo público que o descobre pela primeira vez, convencido de estar se
apoderando de uma informação super-recente e certificada. (KAPFERER, 1993, p. 100)
365

cronista na crônica de 7 de janeiro de 1862 da série Comentários da Semana, já citada


anteriormente: "O boato é um ente invisível e impalpável, que fala como um homem,
que está em toda a parte e em nenhuma, que ninguém vê onde surge, nem onde se
esconde, que traz consigo a célebre lanterna dos contos arábicos, a favor da qual se
avantaja em poder e prestígio, a tudo o que é prestigioso e poderoso" (ASSIS, 2008d, p.
152). Cabe agora analisar as diferentes formas de recepção do boato produzido no
romance Dom Casmurro.

c) O boato como efeito de leitura na história da recepção de Dom Casmurro.

Paulo Franchetti, na apresentação do romance Dom Casmurro, editado pela


Ateliê Editorial em 2008, oferece ao leitor um panorama da recepção crítica desse
romance. Segundo o crítico, na primeira edição de 1899, embora tenha tido uma
recepção boa, esgotando rapidamente os seus dois mil exemplares, teve uma reação
muito discreta da crítica literária - apenas três resenhas: Arthur Azevedo, Medeiros de
Albuquerque e José Veríssimo, o qual identificou esse romance como irmão gêmeo de
Brás Cubas. No decorrer dos anos, Dom Casmurro passou a ser o livro machadiano a
despertar maior interesse da crítica, tanto no Brasil quanto no Exterior. Francetti propõe
dividir a história da recepção crítica em duas fases: a primeira que vai do lançamento a
1960 e a segunda, de 1960 até os dias de hoje, tendo como divisor de águas, a obra já
citada de Helen Caldwell.
Como observa Franchetti, essa primeira fase foi dominada pelo enigma de
Capitu. Desde o texto de Veríssimo, o que ficou desse romance sob a mira da crítica foi
a personagem Capitu, qualificada por Veríssimo como dissimulada e pérfida, bem como
"delicioso de afetuosidade felina, de reflexão e de inconsciência ou desplante, de
animalidade inteligente e perspicácia feminil, de jeito, feitiçaria e graça":
366

Capitu, a dissimulada, a pérfida, é deliciosa de afetuosidade


felina, de reflexão e de inconsistência ou desplante, de
animalidade inteligente e perspicácia feminil, de jeito, feitiçaria
e graça, e, com isto tudo, viva, real, exata. Dom Casmurro a
descreve, aliás, com amor e com ódio, o que pode torná-lo
suspeito. Ele procura cuidadosamente esconder estes
sentimentos, sem talvez consegui-lo de todo. Ao cabo das suas
memórias sente-se-lhe uma emoção, que ele se empenha em
refugar. (VERÍSSIMO, 1977, p. 30)

Como observa Hélio Seixas Guimarães, em sua obra já citada, os


questionamentos sobre os efeitos de sentido desse ponto de vista tão particular sobre a
narração dos fatos têm a mesma idade da obra, pois Veríssimo aponta nesse ensaio que
não só Dom Casmurro, mas tudo o que é narrado nesse romance o coloca sob o olhar
suspeito do leitor233.
Medeiros de Albuquerque, tal como Veríssimo, também chama a atenção para
esse ponto de vista particular da narrativa, quando, comentando sobre Escobar observa
que a similaridade percebida entre o caráter do amigo e da esposa é compreensível pelo
fato de que quem narra o romance inteiro ser Dom Casmurro. Contudo e tal qual
Veríssimo, foca em sua crítica os fatos apresentados como perfeitamente lógicos e
concatenados:

A revelação terrível para Dom Casmurro é longa e


maravilhosamente bem preparada. A expressão de olhos do
menino, a semelhança crescente como o amigo do pai; antes
disso, a frieza da sogra, mãe de Dom Casmurro, com a nora e
principalmente o neto; a volta inesperada do teatro, com a
surpresa de encontrar Escobar em casa e Capitu boa; aquela
noite das dez libras esterlinas; a irritação excessiva da moça,
quando José Dias falando ao modo bíblico, chamava o pequeno
Ezequiel "o filho do homem"; tudo são indícios, semeados aqui
e ali, com a naturalidade que devem ter na vida, e que, quando
vem o momento do desfecho, fazem com que este nos apareça
perfeitamente lógico. No nosso espírito, como no do narrador -
sem que este, entretanto, nos chame para aí a atenção -, esses
antecedentes se concatenam. (ALBUQUERQUE, 2003, p. 231)

233 Ao final do texto, não é só o Dom Casmurro que está sob suspeita, mas tudo o que é narrado,
incluindo-se aí a maneira como o narrador se refere a Bentinho e a Bento Santiago. Para Veríssimo, é
o amor e o ódio por Capitu, que o narrador tenta mas não consegue esconder, que o tornariam suspeito
diante dos olhos do leitor. Como se pode notar, os questionamentos sobre as consequências de um
ponto de vista tão particular sobre a narração dos fatos têm a mesma idade do romance, que desde as
páginas iniciais apresenta a recepção como problema (GUIMARÃES, 2004, p. 237).
367

Alfredo Pujol, em uma das sete conferências dadas na Sociedade de Cultura


Artística de São Paulo entre 29 de novembro de 1915 a 16 de março de 1917 - logo em
seguida publicadas em livro - ao tratar sobre Dom Casmurro, inicia com a seguinte
afirmação:

Passemos agora a Dom Casmurro. É um livro cruel. Bento


Santiago, alma cândida e boa, submissa e confiante, feita para o
sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa
vizinha, Capitolina, - Capitu, como lhe chamavam em família.
Esta Capitu é uma das mais belas e fortes criações de Machado
de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de
sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por
assim dizer, instintiva e talvez inconsciente. Bento Santiago, que
a mãe queria fosse padre, consegue escapar ao destino que lhe
preparavam, forma-se em direito e casa com a companheira de
infância. Capitu engana-o com o seu melhor amigo, seu
companheiro no seminário, Escobar, e Bento Santiago vem a
saber que é seu o filho que presumia do casal. A traição da
mulher torna-o cético e quase mau. Os vizinhos o alcunham de
Dom Casmurro, por seus hábitos reclusos e calados, desde que
perdeu a alegria de viver... (PUJOL, 2007, pp. 209-210)

Vê-se por esse trecho o pressuposto da traição que determina a leitura de Pujol,
levando a fazer um julgamento ácido do caráter de Capitu. Menos ácida que Pujol, mas
tendo o mesmo pressuposto, é a leitura de Lúcia Miguel Pereira, em sua obra Machado
De Assis: Estudo Crítico e Biográfico publicada em 1936 - dezenove anos depois da
obra de Pujol. A autora afirma: "No Dom Casmurro vai mais uma vez, por meios muito
diversos, abordar a questão da responsabilidade. Capitu, se traiu o marido, foi culpada -
ou obedeceu a impulsos e hereditariedades ingovernáveis? é a pergunta que resume o
livro" (PEREIRA, 1988, p. 237). De modo menos incisivo que o de Pujol, o foco de
leitura de Lúcia Miguel Pereira acentua uma condicional que possibilita a dúvida.
Contudo, o foco de sua leitura continua a ser Capitu. Ao pontuar a diferença entre
Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, Pereira observa o tom
sentimental que marca esse romance e afirma que se Brás Cubas pensou, Bentinho
viveu, como a diferença fundamental entre os dois livros. Mais à frente chama a atenção
para o estilo e a ideia central da possível traição de Capitu: "Ligando-o a estes, há o
estilo, e há a ideia de saber se Capitu foi uma hipócrita, ou uma vítima de impulsos
instintivos. Em outras palavras, se pode ser responsabilizada; e por aí entra na galeria
machadiana das criaturas dirigidas por fatalidades poderosas e desconhecidas" (p. 239).
368

Fechando essa primeira fase, Franchetti apresenta a leitura de Augusto Meyer


que, tal qual Pujol, é bastante contundente na condenação de Capitu:

Porque não tenho mais dúvida quanto a isso, Dom Casmurro é o


livro de Capitu, embora o seu perfil apareça aos olhos do leitor
indiretamente, coado e transfigurado pelo ângulo visual
retrospectivo de Bentinho. (...) É que a sedução de Capitu não
provém de uma beleza epidérmica, não é apenas a sedução
superficial da mulher tranquilamente bela, sem profundidade
perturbadora na sua graça um tanto vegetativa. Vem, pelo
contrário, de um não sei quê felino e profundo, com todo esse
mistério de presença envolvente que irradia das personalidades
fortes. ‘Capitu era Capitu, confessa Bentinho, isto é, uma
criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem’. Aí
está, contida nessa frase, não só a chave do seu temperamento,
como também a explicação da sua ascendência sobre o
companheiro”. Ela é profundamente mulher, sem dúvida, mas é
sobretudo profundamente viril pela energia intorcível, pela
audácia pertinaz, pelo senso da ação, por saber ser em tudo o
"conquistador" e não a "conquistada". O conquistado, quase que
digo: "a conquistada" é Bentinho, o polo feminino. (...) Capitu
mente como transpira, por necessidade orgânica. E aqui
recaímos na constatação de certa forma de inocência que pode
coexistir ao pé da astúcia ou da dissimulação. (MEYER, 1947,
pp. 141-147)

Embora Meyer chame a atenção para o foco narrativo, diferentemente de Pujol,


sua caracterização de Capitu tem a mesma contundência. Cabe observar que, embora
usemos a expressão condenar, não se trata obviamente de desqualificar o modo de
produção narrativa dessa personagem, pelo contrário, a condenação dá-se ao nível da
compreensão do enredo, porém, fica evidente que essa leitura condenatória resulta da
forma como os três críticos evidenciam o encantamento pela construção rica e complexa
que o romance faz de Capitu. Meyer inclusive afirma que Dom Casmurro é o romance
de Capitu. A figura de Capitu, tornada um dos principais arquétipos da Literatura
Brasileira, determina significativamente as diferentes leituras da crítica, mesmo as que
se posicionam em defesa dela.
Seguindo o panorama apresentado por Franchetti, é a partir da obra de Helen
Caldwell que muda a hermenêutica crítica do romance.234 Lendo-o por meio da

234 Publicado em 1960 nos Estados Unidos com o título The Brazilian Othello of Machado de Assis:
A Study of "Dom Casmurro", sua primeira tradução brasileira aconteceu apenas quarenta e dois anos
369

intertextualidade com a peça Otelo de Shakespeare - obra citada diversas vezes no


romance - a crítica estadunidense põe como primeiro plano o foco narrativo do
romance, pelo qual passa a tratar não mais o adultério - hipótese a ser refutada - mas o
ciúme de Bentinho. No capítulo seis, a autora propõe uma espécie de Cold Case235: "E
o veredicto? Como Santiago observa profeticamente no início do capítulo XCVIII,
"Venceu a Razão"; isto é, venceu o argumento legal. Praticamente três gerações - pelo
menos de críticos - julgaram Capitu culpada. Permitam-nos reabrir o caso."
(CALDWELL, 2002, p. 100). O livro se divide em duas partes: a primeira, lendo-o por
meio da presença da peça de Shakespeare, a autora busca identificar os argumentos de
Bento Santiago à sua profissão e, portanto, evidenciar o discurso jurídico que domina a
narrativa; a segunda parte, Caldwell desenvolve a defesa de Capitu, desmontando os
argumentos de Bentinho e propondo uma forma correta de interpretação de cada relato
narrado ao leitor. Para a crítica estadunidense, a leitura do romance deve ser feita a
partir do que define como par de lunetas, de modo a identificar o autor Machado de
Assis, escrevendo a contrapelo de Bento Santiago, isto é, para ela, Machado semeou
diversas pistas para que o leitor lesse desconfiando do narrador.236 Com Helen
Caldwell dá-se início ao que Abel Barros Baptista identificou como O paradigma do pé
atrás, isto é, a leitura dos romances homodiegéticos devem ser feitas contra seus
autores.
Dando consequência a essa nova abordagem hermenêutica, em 1989, o crítico
inglês John Gledson publica seu primeiro trabalho sobre Machado de Assis -
especificamente sobre esse romance - cujo título é The deceptive realism of Machado de
Assis: A dissenting interpretation of "Dom Casmurro" 237. Partindo do pressuposto de
que há um verdadeiro enredo do romance, oposto ao que Bento imagina e portanto,

depois
235 Cold Case foi um seriado estadunidense sobre uma divisão policial especializada em investigar
crimes ocorridos em outras épocas, até então não elucidados. A série decorre na cidade
de Filadélfia, Pensilvânia. Estreou em setembro de 2003, na CBS e foi uma das séries mais vistas ao
estrear naquele ano. No Brasil, o SBT exibe a série de forma descontínua, de acordo com o interesse
da emissora em completar eventuais lacunas na sua grade de programação. Também foi exibida
pelo Warner Channel.
236 Como o objetivo neste trabalho é apenas apresentar as diferentes recepções das leituras de Dom
Casmurro, deixamos na bibliografia as referências tanto da obra de Helen Caldwell, como a
apresentação de Paulo Franchetti, caso se queira conhecer mais detalhadamente as análises de ambos
os trabalhos.
237 O livro foi traduzido para o português três anos depois com o título Machado de Assis: Impostura
e Realismo - Uma Reiterpretação de Dom Casmurro.
370

apontando indícios que possam contrapor a versão de Bento, Gledson propõe uma
leitura alegórica como interpretação ficcional do país:

Este livro tem por objetivo apresentar ao leitor uma nova


interpretação de uma das obras mais célebres da língua
portuguesa: Dom Casmurro, de Machado de Assis. (...) De
modo semelhante, embora menos obviamente radical, este livro
almeja mudar a perspectiva do leitor, e revelar Dom Casmurro
como romance realista na concepção e no detalhe, cujo objetivo
é nos proporcionar um panorama da sociedade brasileira do
século XIX. Não se trata de uma proposição "acadêmica" sobre
a natureza de Dom Casmurro, sobre o movimento literário a que
se filia: antes, julgo que, expondo de maneira engenhosa e
consistente, e em quantos pormenores o romance revela verdade
de todos os tipos acerca de dinheiro, religião, sexo, família,
classe, política, relações pessoais, sobre o uso da linguagem, da
imagem, da metáfora, e assim por diante, Dom Casmurro,
exemplifica muito mais do que se pensa, o princípio realista de
que só podemos alcançar as verdades gerais se estivermos
dispostos a nos empenhar por inteiro no particular (GLEDSON,
2005, p. 7)

A leitura alegórica ampliada por Gledson da sequência à análise de outro crítico,


o brasileiro Silviano Santiago, o qual em seu texto A Retórica da Verossimilhança,
propõe levar a compreensão e discussão do romance para a intenção de Machado em
promover a crítica da ideologia senhorial encenada no modo de produção narrativa de
Bento Santiago. Diz ele:

Machado de Assis - podemos concluir - quis com Dom


Casmurro desmascarar certos hábitos de raciocínio, certos
mecanismos de pensamento, certa benevolência retórica -
hábitos, mecanismos e benevolência que estão para sempre
enraizados na cultura brasileira, na medida em que foi ela
balizada pelo "bacharelismo", que nada mais é, segundo
Fernando Azevedo, do que "um mecanismo de pensamento a
que nos acostumara a forma retórica e livresca do ensino
colonial", e pelo ensino religioso. Como intelectual consciente e
probo, espírito crítico dos mais afilados, perscrutador impiedoso
da alma cultural brasileira, Machado de Assis assinala
ironicamente nossos defeitos. Mas este é um engajamento bem
mais profundo e responsável do que o que se pediu
arbitrariamente a Machado de Assis. (SANTIAGO, 2008, pp.
138-139)

Em A poesia envenenada de Dom Casmurro - texto apresentado como aula de


371

concurso na UNICAMP em 1990 e publicado em 1994 - Roberto Schwartz, seguindo a


leitura de Silviano Santiago e John Gledson, lê o romance como tendo algo de
armadilha na qual a crítica machadiana ficou presa durante 60 anos. Sua análise, dando
sequência ao método empreendido em suas duas obras - Ao Vencedor as batatas e Um
Mestre na Periferia do Capitalismo, o crítico austríaco foca sua leitura no status social
do narrador-personagem. Entendendo com Gledson, o romance como modelo reduzido
da sociedade brasileira, evidencia as relações de dependência que permeiam o romance
de uma ponta a outra, sobretudo na relação de Capitu com a casa de D. Glória. Desse
modo, sua crítica detém-se na voz narrativa que, dando voz ao proprietário, evidencia o
sarcasmo de Machado de Assis. Dando consequência à nossa leitura desse romance ao
identificarmos o boato como método interpretativo do narrador e produto da base
estrutural do romance o que, obviamente, acarreta os efeitos de sentido reproduzirem os
boatos, essa nova leitura desenvolvida a partir de Helen Caldwell funciona como
desmentido do boato produzido por Bento Santiago. Como observa Kapferer, o
desmentido é uma espécie de desmancha-prazeres, pois desativa o imaginário para
mergulhar na banalidade do real. Contudo, o desmentido apresenta um paradoxo
fundamental: assim como a crença do boato, a crença no desmentido obedece a mesma
lógica, pois, em ambos os casos, trata-se de acreditar nas informações, o que demanda a
crença em um emissor confiável, tanto na produção do boato, quanto em seu
desmentido238. É desse modo que tanto na análise do crítico português Abel Barros
Baptista, sobretudo em Autobibliografias, quanto a do crítico brasileiro Alfredo Bosi,
em sua obra já citada O Enigma do Olhar, que essa leitura hegemônica, identificada por
Baptista como o Legado de Caldwell, é submetida a uma crítica radical.
Sem entrar em maiores detalhes sobre o modo como Baptista e Bosi operam
essa crítica, o ponto central para o crítico português, a impossibilidade de se saber se a
heroína é culpada de adultério?, questão apresentada por Caldwell, é o núcleo do
romance, tal como ele é composto. Por sua vez, Alfredo Bosi destaca duas observações:
a primeira diz respeito à interpretação de Capitu como alegoria do Iluminismo ou da
democracia; a segunda, refere-se ao que denomina como dissociação autor-narrador -
base do mecanismo de leitura e interpretação desse paradigma do pé-atrás. Bosi

238 Somos levados portanto a reconhecer este paradoxo fundamental: a crença no desmentido
obedece à mesma 1ógica da crença no boato, propriamente dito. Nos dois casos, trata-se de acreditar
nas informações. O problema da extinção de um boato é antes de mais nada uma questão pessoal: o
"que acreditar?" depende do "quem fala?". Sem um emissor confiável, o combate antiboato está
propenso ao fracasso. (KAPFERER, 1993, p. 226)
372

defende o respeito à lógica de funcionamento da obra, cujo efeito, isto é, ler Dom
Casmurro como proprietário e narrador-impostor tenderia a torná-lo uma figura
mecânica. Franchetti, por sua vez, e dando fechamento a apresentação, observa que se o
romance se constitui como armadilha, ao evidenciá-la, já estaria desarmada e, por isso,
qual a razão de lê-lo? Como observa Franchetti:

A crítica, como observamos, se divide em dois momentos e duas


atitudes afetivas: o da adesão ao ponto de vista de Bento e o da
recusa, que leva ao desígnio de desmascaramento das suas
supostas intenções reais, na ficção jurídica da condenação de
Capitu aos olhos do leitor.
Ambas as atitudes são tributos à persuasão exercida pelo
controle do ponto de vista pelo autor fictício, pois - no quadro de
leitura realista em que se situam - ambas deveriam ser mitigadas
ironicamente, desde o primeiro capítulo. (FRANCHETTI, 2008,
p. 77)

Desse modo, tanto a adesão quanto a recusa, dão desdobramentos para que o
boato produzido por Bento Santiago resista ao tempo, fazendo com que um novo grupo
o descubra e apodere-se dele das formas mais inusitadas e apaixonadas dos modos de
leitura do romance. Há nesse movimento, independentemente da adesão ou recusa, o
que Kapferer identifica como mobilização de grupo. Nessa mobilização, sempre
aparecem alguns papéis possíveis: o instigador - aquele cuja liderança foi ameaçada
pela modificação ocorrida na cidade (no caso, Capitu, para quem adere ao discurso do
narrador, para quem recusa o ponto de vista da narrativa, Bentinho); o intérprete -
responsável por propor uma explicação coerente e convincente (a crítica literária,
professores de literatura, amantes do romance que conseguem citar trechos inteiros de
cor); os apóstolos - pessoas que aderem determinada posição (seja a adesão ou a
refutação) e se responsabilizam por reproduzi-las (citando fontes tanto do romance,
quanto das leituras dos intérpretes); o recuperador - pessoa que, independentemente de
aderir ou recusar, atua como uma espécie de advogado do diabo, isto é, reproduz o
ponto de vista com menor adesão para simplesmente fomentar o boato. Esses
recuperadores são apresentados por Kapferer de modo mais detalhado, podendo ser: o
oportunista que recupera o boato como forma de reafirmar sua autoridade moral; o
galanteador: não acredita no boato, mas se delicia em brincar com ele para criar um
clima de perturbação no auditório; os receptores passivos - pessoas que não militam a
favor nem contra o boato, mas estão sempre questionando à sua volta para saber das
373

opiniões sobre o tema; e os resistentes - estão sobretudo no grupo do antiboatos, isto é,


contrários à crença geral, seja contra a adesão quando essa domina, seja contra a
refutação, quando essa domina.
Podemos ver alguns efeitos desses boatos, sobretudo em tempos de Internet e
redes sociais como o facebook. Recorrentemente, professores de Ensino Médio ou
Universitário propõem a uma determinada turma a encenação do julgamento de Capitu.
Os estudantes se dividem no papel de réu e vítima, advogado de defesa, advogado de
acusação, juiz, júri e, em alguns casos, as testemunhas são as personagens do romance,
sobretudo D. Glória, mãe de Bentinho, e até Machado de Assis. Vejamos alguns
exemplos: Em 2 de maio de 2010, a turma do 2º ano do Ensino Médio da Escola
Objetivo Júnior encenou o julgamento de Capitu na Câmara Municipal de São Gonçalo
de Sapucaí no interior de Minas Gerais. O site não diz qual foi o resultado da
sentença.239 Na periferia de Porto Velho - RO, em dezembro de 2012, estudantes do
Ensino Médio da Escola Estadual Marcos de Barros Freire fizeram na própria escola a
encenação do julgamento, tendo como testemunhas D. Glória, Prima Justina, Bentinho,
Ezequiel e José Dias. Conforme o site:

Elaboramos um Julgamento na qual foi decidido se Maria


Capitolina Santiago, esposa de Bentinho, cometeu o crime de
adultério contra seu marido. Os estudantes do 2º ano de Ensino
Médio da E.E.E.F.M. Marcos de Barros Freire trabalharam em
torno da elaboração de cenário, figurino e personagens. O
julgamento durou em torno de duas horas, o Promotor fez a
introdução do caso, a defesa proferiu suas palavras na busca de
provas que deixasse clara a inocência de Capitu. As testemunhas
foram ouvidas e interrogadas pela defesa e promotoria, sendo
elas: D. Glória, Prima Justina, Bentinho, Ezequiel e José Dias. A
decisão foi tomada por cinco jurados. A sentença foi dada, por 4
votos a 1, a ré Maria Capitolina Santiago foi declarada
inocente.240

Dessas encenações de julgamentos organizados por estudantes de Ensino Médio,

239 http://blog.brasilmetropole.com.br/2011/05/o-julgamento-de-capitu-representado.html. Consultado


em 15 de novembro de 2014.
240 http://escolamarcosfreirepvhro.blogspot.com.br/2012/12/julgamento-de-capitu-dom-casmurro.html.
Consultado em 15 de novembro de 2014.
374

o mais divertido foi o organizado no Rio de Janeiro no Instituto Nossa Senhora


Auxiliadora, em 13 de agosto de 2012, no qual, uma aluna, interpretado o papel de uma
médium, Madame Bárbara, incorporou o espírito da personagem Quincas Borba:

Vários pontos de vista foram apresentados. A aluna Caroline


Nogueira defendeu de modo sincero a sua visão de Capitu, com
uma presença forte e comovente. Já a estudante Carolina
Loureira deu um depoimento surpreendente na pele da
personagem Dona Glória. Outros momentos memoráveis foram
a fala do “advogado de acusação”, Rafael Tiradentes, que citou
Erasmo de Rotterdam no seu discurso, e o Freud encenado pelo
aluno Fabrício Lamothe, que deu sua versão para o suposto
comportamento transgressor de Capitu. Houve ainda uma
caracterização do próprio Machado de Assis, feita pelo aluno
Wallace Moura, e um momento intertextual apresentado pela
aluna Tamires Moreira, como Madame Bárbara, recebendo o
espírito do ousado Quincas Borba. O grupo de avaliadores
também elogiou os desenhos feitos na hora do julgamento por
Hiago Freitas e a encenação da reportagem sobre o caso
conduzida por Nayara Gomes e Lucas Chaves. 241

O mais famoso dessas encenações foi o julgamento realizado pela Folha de São
Paulo, em junho de 1999, que teve como juiz o jurista José Paulo Sepúlveda Pertence,
então ministro do Supremo Tribunal Federal; como advogado de acusação o ex-ministro
da Justiça do governo Lula Márcio Thomas Bastos e como advogada de defesa, a
procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo Luiza Nagib Eluf.
Como testemunhas de acusação foram convidados o escritor Carlos Heitor Cony e
Marcelo Rubens Paiva e como testemunhas de defesa, o historiador Boris Fausto e a
escritora Rosiska Darcy de Oliveira. Situação curiosa foram os testemunhos feitos tanto
por Cony quanto por Paiva, os quais, embora insistissem na ocorrência do adultério,
defenderam a inocência de Capitu, pois, para Cony, o adultério era defensável, pois
Bentinho era um marido "chato" e Paiva afirmou que Bentinho tinha tendências
homossexuais:

Thomaz Bastos pediu a condenação com base num conjunto de


indícios que daria verossimilhança à tese do adultério.
À defesa, coube tentar demonstrar, com um previsível acento
feminista, que o marido, já não apenas um chato com pendores

241 http://www.rse.org.br/rse-informa/noticia/literatura-alunos-simulam-o-julgamento-de-capitu.
Consultado em 15 de novembro de 2014.
375

homossexuais, era um espírito inseguro, filho único abastado,


incapaz de conviver sem fabulações paranóicas com uma mulher
bela, com personalidade e luz próprias.
O juiz procurou proteger a memória de Bentinho -"tão
vilipendiada nesta audiência"- e também o "gênio" de Machado
de Assis que, em sua opinião, não fornece no romance prova que
possa ser considerada "acima de qualquer dúvida razoável".
Sepúlveda Pertence decidiu levar em consideração a lei da época
em que se deu o fato, mostrando que o Código Penal do Império
previa pena de prisão para a mulher adúltera, deixando o homem
adúltero sujeito a condenação apenas no caso de manter uma
concubina em regime de segundo casamento. Não seria essa
desigualdade no tratamento dispensado ao homem e à mulher
que caracterizaria, por si só, a inconstitucionalidade dos
dispositivos: "É célebre o dito de Aristóteles a que Rui Barbosa
deu expressão extremamente elegante, de que a igualdade não
consiste senão em aquinhoar desigualmente os desiguais na
medida em que se desigualam", disse o juiz. 242

O argumento de Marcelo Rubens Paiva sobre a tendência homossexual de


Bentinho é o boato como efeito de sentido reproduzido pelo antiboato, isto é, à medida
que se busca, por meio do legado de Caldwell, colocar em dúvida a voz narrativa do
romance, buscam-se meios de desautorizar sua autoridade narrativa. Como observa
Kapferer ao tratar dos diferentes temas que produzem o boato, há o famoso três "s" -
sous, santé, sexe (dinheiro, saúde e sexualidade). Tratando mais especificamente das
chamadas sexualidades desviantes, o pesquisador francês observa que, por não serem
toleradas, sobretudo em comunidades com forte teor moral tradicional, diversas
reputações são atacadas com suposto atribuição de homossexualidade 243. Embora
Kapferer alegue que a sexualidade perdeu um pouco de seu interesse como tema de
boatos, recorrentemente, nas mídias brasileiras aparecem boatos acusando alguma
figura pública da música, esportes ou da televisão de ser homossexual como forma de
atacar sua reputação. Na época de Machado de Assis, o caso mais famoso foi a
polêmica entre Olavo Bilac e Luis Murat contra Raul Pompeia. Apesar de o tema da
polêmica serem as questões políticas do começo da República, como afirma Richard
Miskolci em seu texto Raul Pompéia e A Gramática do Desvio, publicado na obra O
desejo da nação, Bilac publicou um artigo no jornal O Combate, acusando Pompeia de

242 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq25069914.htm. Consultado em 15 de novembro de


2014.
243 Um certo tipo de relação amorosa é aceito, em compensação, as sexualidades desviantes não são
toleradas. Nas cidades do interior, as reputações são desfeitas por causa do homossexualismo e ballets
roses. (KAPFERER, 1993, p. 202)
376

masturbador e insinuando uma suposta homossexualidade, acusação que possivelmente


tenha motivado o suicídio de Pompeia (MISKOLCI, 2012, pp. 71-99). Os diversos
trabalhos que exploram a hipótese de uma possível relação homossexual entre Bentinho
e Escobar - embora muitos deles, como o de Richard Miskolci intitulado Segredos de
um casamento em Dom Casmurro, queiram evidenciar um certo tratamento da temática
na Literatura Brasileira canônica - resultam do mesmo tronco comum do legado de
Caldwell que coloca em questionamento a credibilidade do narrador, isto é, direta e
indiretamente, alega-se a homossexualidade de Bentinho para descredenciá-lo como
narrador, visto se tratar de um praticante dessa "sexualidade desviante" e, portanto, um
narrador não confiável como forma de inocentar Capitu.
Outra questão interessante surgida dessa famosa encenação de julgamento de
Capitu promovida pela Folha de São Paulo, foi a hipótese polêmica repetida por Carlos
Heitor Cony, publicada em 4 de agosto de 1999, na Folha de São Paulo com o título O
Amante de Capitu. Segundo o escritor, o caso de Capitu poderia ser confessional, isto é,
baseando-se em testemunhos que tiveram contato com o médico Affonso Mac-Dowell,
o qual atendia vários acadêmicos, entre eles Machado de Assis e Mário de Alencar, bem
como no Diários Secretos de Humberto de Campos, o qual ouviu o boato de Goulart de
Azevedo. Segue um trecho da crônica de Humberto de Campos publicado na famosa
Gossip Magazine Veja em 11 de agosto de 1999 por Roberta Paixão:

Humberto levantou a bola

Havia, realmente, nos dois, traços fisionômicos que corriam


paralelos. E aquela afeição paternal de Machado de Assis, tão
desconfiado nas suas amizades e, no entanto, tão ligado a M. de
A., cuja presença na velhice não dispensava um só dia?
Meses depois, em uma das minhas visitas ao consultório de
Afonso Mac-Dowell, meu médico e amigo, este me recebe
exclamando:
– Se você chega dois minutos antes, encontraria aqui um colega
seu, da Academia.
– Qual deles?
– O M... M. de A.
Sem a menor lembrança, no momento, das palavras de Goulart
de Azevedo, falei-lhe do nervoso do M., o qual não saía à rua
sem companhia de um ou dois filhos.
– Nervoso, só, não – atalhou o médico.
E com ares misteriosos:
– Eu lhe digo aqui com a devida reserva: o M. é epilético.
Essa informação pôs um raio de luz em minha dúvida. J. de A.
jamais sofreu de epilepsia. Machado de Assis morreu dessa
377

moléstia. Como explicar, pois, a epilepsia


de M. de A.?
Mergulhei no oceano desse mistério, tateantes as mãos do meu
pensamento. Dom Casmurro não será uma história verdadeira?
Aquele amigo que trai o amigo, aquele filho que fica de uns
amores clandestinos, não seriam páginas de uma autobiografia?
(Trecho de crônica de Humberto de Campos, em que o autor
insinua que Machado de Assis teve um caso com a mulher de
José de Alencar)

Obviamente, citar essa polêmica aqui não significa endossá-la - dado o seu teor
extra-romance e profundamente imaginativa - mas evidenciar os vários efeitos do boato
como efeito de leitura na história da recepção de Dom Casmurro, boato do qual nem
Machado de Assis escapou.
Vale a pena citar também algumas repercussões compartilhadas no facebook
como forma de leituras desse romance. A primeira delas resulta da relação anacrônica
dessa suspeita de paternidade. Se foi possível a riqueza produzida pela dúvida da
paternidade no final do século XIX, hoje em dia com o desenvolvimento da chamada
genética forense, essa dúvida já não faz mais sentido. 244 A partir dessa questão
elaborou-se uma atualização do romance a partir da Genética Forense como podemos
ver a seguir:

244 A Genética Forense é a área de conhecimento que trata da utilização dos conhecimentos e das
técnicas de genética e de biologia molecular no auxílio à justiça. A Genética Forense é conhecida
como DNA Forense. Apesar de o ramo mais desenvolvido da Genética Forense ser a Identificação
Humana pelo DNA e sua aplicação mais popular ser o Teste de paternidade, a Genética Forense
não se limita a isso, podendo ser aplicada na identificação ou individualização de animais, plantas e
microrganismos. A Genética Forense se iniciou quando foram utilizadas pela primeira vez
características genéticas para a definição de paternidade, ajudando a justiça. A fase moderna da
Genética Forense teve início na década de 1980, quando pesquisadores descobriram regiões altamente
variáveis do DNA, capazes de individualizar uma pessoa. Em 1985, Sir Alec Jeffreys apelidou as
características únicas do DNA de uma pessoa de "impressões digitais do DNA". No decorrer da
década de 1990, com a popularização do exame reação em cadeia da polimerase (PCR, do
inglês polymerase chain reaction), desenvolveram-se técnicas cada vez mais sensíveis, capazes de
identificar a origem de amostras biológicas com muito pouco DNA. A Genética Forense é a área do
conhecimento que trata da utilização dos conhecimentos e das técnicas de genética e de biologia
molecular no auxílio à justiça. A Genética Forense também é conhecida como DNA Forense. Apesar
de o ramo mais desenvolvido da Genética Forense ser a Identificação Humana pelo DNA e sua
aplicação mais popular ser o teste de paternidade, a Genética Forense não se limita a isso, podendo ser
aplicada na identificação ou individualização de animais, plantas e microrganismos. Texto tirado do
site da Wikipédia
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Gen%C3%A9tica_forense) Consultado em 15 de novembro de 2014.
378

FIGURA 1 - Sobre possível solução do enigma de Dom Casmurro

Fonte: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/conteudovisual/literalmente_maio_2009/

Assinado por Marco Jacobsen, a charge propõe encerrar a polêmica da


paternidade e da suposta traição, recomendando ao casal Santiago e ao amigo Escobar a
um exame de DNA para saberem finalmente quem é o pai de Ezequiel e assim resolver
a polêmica da traição. Outra leitura incide no próprio leitor e sua incapacidade de
estabelecer relacionamentos confiáveis:
379

FIGURA 2: Causa do problema afetivo: possível motivo.

Fonte: http://literatortura.com/

Essa imagem retirada do site "Literatortura" e compartilhada no facebook,


propõe uma explicação sobre a vida afetiva do leitor, o qual, devido ao excesso de
leitura de Dom Casmurro, já não consegue mais estabelecer um relacionamento estável,
por estar marcado pela paranoia ciumenta de Bento Santiago.
As outras duas foram criadas no Instagram - aplicativo gratuito que permite aos
usuários tirar fotos, aplicar um filtro e depois compartilhá-las numa variedade de redes
sociais - e compartilhadas no facebook. A primeira é assinada por Machado de Assis e
reafirma a leitura da relação homossexual entre Bentinho e Escobar. A segunda,
assinada por Capitu, traz o tema do adultério em chave de leitura mais atual, isto é, se a
busca da inocência de Capitu a partir da década de 1960 foi identificada como resultado
de uma visão feminista e, portanto, a acusação de Bentinho resulta de uma visão
machista e patriarcal, a segunda figura que ficcionaliza Capitu - até então silenciada
pela narrativa - assumindo o adultério, resulta de novas correntes do feminismo que não
mais se preocupam em defender a honra da personagem inocentando, mas em positivar
380

o adultério como liberdade do corpo e da vida da mulher. O efeito humorístico dessa


figura dá-se exatamente pela ficcionalização de Capitu que não está preocupada com o
juízo moral da traição.

FIGURA 3 - Sobre possivel solução do enigma de Dom Casmurro

Fonte: Autoria anônima. Compartilhada no Facebook


381

FIGURA 4 - Sobre possivel solução do enigma de Dom Casmurro

Fonte: Autoria anônima. Compartilhada no Facebook

Por fim - e para conclusão deste capítulo - cabe aqui fazer referência a algumas
narrativas que reescreveram a história de Bento Santiago e Capitu, ficcionalizando as
variadas leituras da crítica machadiana. A primeira delas refere-se a uma atualização de
Lúcio Manfredi que propõe a leitura de Dom Casmurro por meio da chamada ficção
científica:

Com o título Dom Casmurro e os Discos Voadores, o livro foi


publicado pela editora Lua de Papel, em 2010. Conforme a
descrição do livro, trata-se de um romance em que o mistério
por trás dos olhos de Capitu vai além, está diretamente ligado ao
mar. Essa trama romântica sofre a interferência de seres
alienígenas e androides, disfarçados sob os personagens
originais de Machado, cabendo ao leitor identificar quem é
quem. Nessa reatualização do romance, Bentinho não está
apenas envolvido no triângulo amoroso, nas numa disputa
intergalácticas. Um combate entre as evoluídas civilizações
reptiliana e aquática, que habitam o planeta Terra há milhões de
anos. Como no livro original, o ciúme de Bentinho continua
presente. Porém agora, existe mais um motivo para sua
desconfiança: a ligação entre a amada Capitu e seu melhor
amigo Escobar não é mesmo deste mundo.245

245 Texto tirado da contracapa desse livro.


382

FIGURA 5 - Capa do romance Dom Casmurro e os Discos Voadores adaptado por


Lucio Manfredi
383

Outro livro que busca reescrever a história de Dom Casmurro é o livro


organizado por Alberto Schprejer com o título Quem é Capitu? Esse livro escrito em
comemoração do centenário de morte de Machado de Assis reuniu textos de diferentes
gêneros e escritos por vários autores conhecidos como Luís Fernando Veríssimo, Lya
Luft, Millôr Fernandes, Luiz Fernando Carvalho, Lygia Fagundes Telles, Mary Depl
Priore, Fernanda Montenegro, Silviano Santiago, John Gledson, Roberto DaMatta,
Gustavo Bernardo, Luiz Alberto P. de Freitas, Daniel Piza, Otto Lara Resende e Carla
Rodrigues para responder a pergunta: quem é Capitu?
Daremos destaque à versão de Luiz Fernando Veríssimo, cujo título A Verdade,
desenvolve uma narrativa também em primeira pessoa, cujo narrador-testemunha é um
investigador-amador e amigo de Bentinho e Escobar. Desmentindo a narrativa de
Bentinho sobre ter iniciado a suspeita da traição no velório de Escobar, o narrador conta
ter sido contratado por Bentinho para descobrir sobre a traição da qual já havia
desconfiado bem antes da morte do amigo. Após um tempo, o narrador confessa ao
amigo que a mulher o estava traindo com Escobar. Bentinho então marca com o
narrador para ambos se encontrarem na praia do Flamengo para confrontar Escobar.
Quando chega à praia, o investigador se depara com uma cena que não esperava:
Bentinho tem uma crise de ciúme não por conta de Capitu, mas de Escobar, acusando-o
de tê-lo traído; Escobar dá as costas a Bentinho e entra no mar, este o segue. O
investigador vê Bentinho pulando em cima de Escobar, os dois desaparecem e, após
alguns minutos, Bentinho volta sozinho. No outro dia, o narrador lê no jornal a notícia
da morte de Escobar.
Esse panorama nos evidencia antes de tudo os efeitos do romance no "blablabla"
dos leitores. Como mostramos no início, o tema do boato interessa ao cronista desde
sempre, a ponto de fazê-lo desenvolver algumas teorias, muito próximas do que a teoria
moderna do Boato tem definido. Como já tem reconhecido a crítica, a narrativa movida
pela emoção e pela ambiguidade é a característica que particulariza esse romance e que,
portanto, nos permite entendê-lo como romance produzido por meio da ficcionalização
do boato, tanto como procedimento estético, quanto como efeitos de sentido que o
mantém atual até os nossos dias.
384

CAPÍTULO 3 - PERFORMATIVIDADE COMO ATO DE LEITURA.

Observai, igualmente, os navios que, sendo tão grandes e


batidos de rijos ventos, por um pequeníssimo leme são dirigidos
para onde queira o impulso do timoneiro. Ora, a língua é fogo; é
mundo de iniquidade; a língua está situa entre os membros de
nosso corpo, e contamina o corpo inteiro, e não só põe em
chamas toda a carreira da existência humana, como também é
posta ela mesma em chamas pelo inferno.
Tiago, capítulo 3, versículos 4-6

Ao tratar do conceito de performatividade como ato de leitura, Paul Zumthor o


define como sendo da ordem do desejo, na qual se constata uma forte implicação da
presença do corpo. Como observam Deleuze e Guattari, o desejo é da ordem da
produção e não da falta e, se produz, produz algo real 246. Focado sobretudo no texto da
poesia, pontua alguns elementos importantes para que o leitor o identifique como
literatura e, com isso, permita-se tal operação. Esses elementos correspondem à
identificação de um grupo de produtores do texto que fabricam objetos textuais que
possam ser identificados como poéticos. Esses produtores devem ser reconhecidos por
seus leitores como competentes nessa produção; os textos devem ser aceitos como tendo
valor poético em si e tendo leitores que os recebam como literários: "Em cada um
desses pontos articula-se um elemento ritual: textos identificados como tais, produtores
assim identificados, público iniciado" (ZUMTHOR, 2007, p. 47).
Associado à ordem do sagrado, o rito se manifesta na escrita, dirigindo-se não ao
divino, mas à comunidade do seu presente. Articulando cada um desses elementos
rituais, o texto estabelece o contrato de verdade entre o escritor e o leitor, de modo que
alguns pressupostos determinam que o texto seja aceito como tal. No caso do texto
poético, é preciso que a comunidade o reconheça como tal, bem como reconheça seu
produtor como apto a produzi-lo. No caso das crônicas, o cronista explora a não
expectativa de seu leitor que não pressupõe regras definidas para o gênero, pois, no

246 Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de
realidade. O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e
os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é o resultado das
sínteses passivas do desejo como autoprodução do inconsciente. Nada falta ao desejo, não lhe falta o
seu objeto. É o sujeito, sobretudo que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há
sujeito fixo pela repressão. O desejo e o seu objeto constituem uma só e mesma coisa: a máquina,
enquanto máquina de máquina. O desejo é máquina, o objeto do desejo é também máquina conectada,
de modo que o produto é extraído do produzir e algo se destaca do produzir passando ao produto e
dando um resto ao sujeito nômade e vagabundo (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 43)
385

tempo de Machado, a crônica não era entendida como texto literário. Certamente esse
não reconhecimento da crônica como texto literário facilitava a proximidade entre autor
e leitor, pois, como texto que pretendia tratar das coisas corriqueiras e cotidianas do
Brasil Império, bem como abordar notícias amenas no calor da hora, aparentemente não
exigia a elaboração mais rigidamente formal pressuposta em outros gêneros literários.
No ato da leitura, o leitor lia a crônica sem preocupação estética, pois esse gênero não se
propunha como formal. Desse modo, o campo ficava aberto para a construção imagética
por meio de elementos técnico-estéticos com que o cronista também inovava em sua
produção textual. Com isso, a escrita da crônica torna-se, na pena do cronista,
eficazmente performativa, implicando o reconhecimento do próprio leitor na
decodificação do texto.
A performance, como momento privilegiado da recepção, torna-se produtividade
de leitura por meio de um conjunto de percepções provocadas no leitor pelo cronista.
Conforme Zumthor, esse procedimento aproxima-se da ideia de katharsis proposta por
Aristóteles, pois não consiste apenas em passar uma informação ao leitor, mas provocar
nele um deslocamento interpretativo dos temas tratados. 247 Utilizando-se do conceito
de horizonte de expectativas de Jauss, Zumthor observa o acordo que existe entre texto
e leitura, provocando o surgimento de um sentido apropriável pelo leitor.
Estabelecendo-se como concretização no ato da leitura, a performance, que implica a
percepção dos elementos estéticos e semânticos do texto, provoca transformações no
leitor, que os recebe como "emoção pura, mas que manifestam uma vibração fisiológica,
realizando o não-dito do texto lido, o leitor empenha sua própria palavra às energias
vitais que a mantêm" (p. 53). Performance é termo buscado em John Austin, em que “o
discurso performativo explícito ou implícito como ato de linguagem” é dotado de uma
força ilocucionária ou ilocutória que, ao ser dito, provoca reações no leitor.
Em nossa dissertação, já aqui citada, discutimos essa performatividade como
procedimento composicional nas crônicas “A + B”, mostrando que Austin define como
“proferimento performativo” o enunciado que, não se limitando a constatar algo como
verdadeiro ou falso, não é apenas um dizer, mas um fazer no momento em que elabora o

247 Ela a aproxima, de algum modo, da ideia de catarse, proposta (em um contexto totalmente
diferente) por Aristóteles! Comunicar (não importa o que: com mais forte razão um texto
literário) não consiste somente em fazer passar uma informação; é tentar mudar aquele a quem
se dirige; receber uma comunicação é necessariamente sofrer uma transformação.
ZUMTHOR, 2007, p. 52
386

dizer (AUSTIN, 1990, p. 38). Para definir os critérios dos proferimentos performativos,
Austin considera que deva haver algumas condições necessárias para isso. São elas: A1
– procedimento convencionalmente aceito, que apresenta um determinado efeito
convencional e que inclui o proferimento de certas palavras por certas pessoas e em
certas circunstâncias; A2 – as pessoas que o pronunciam, bem como as circunstâncias
devem ser adequadas; B1 – tal procedimento deve ser executado por todos os
participantes de modo correto; B2 – também deve ser executado de modo completo (p.
31). Desse modo, alguns enunciados são proferidos como constativos, porém efetuam
ações em seu proferimento, tornando-os performativos implícitos. Ducrot observa que
os proferimentos constativos são elaborados como enunciados que buscam descrever
certas imagens reais ou imaginadas que não estão à vista do interlocutor (DUCROT,
1984, p. 439). Além disso, aponta que a distinção entre dizer e fazer é falsa, pois, à
medida que um enunciado é elaborado, ele opera ações sobre o sujeito da enunciação e
o destinatário, considerando que todo ato enunciativo ocorre no quadro de uma
determinada cultura e submete-se a um controle social operado por meio de elementos
convencionais segundo determinados códigos que o sujeito enunciativo domina (p.
457).
No final da crônica de 1º de novembro de 1861, ao comentar sobre as diferenças
culturais entre muçulmanos e cristãos, o cronista diz:

É uma peregrinação imponente. Os romeiros vão de luto orar


pelos que repousam no último jazigo, e derramar à vista de
todos, as lágrimas da saudade e da tristeza. É esta uma das
práticas dos povos cristãos que mais impressionam a alma do
homem verdadeiramente religioso, embora a vaidade humana
macule, como acontece em todas as coisas da vida, a grave e
melancólica cerimônia, com as suas suntuosas distinções. Dizem
os que têm visitado a antiga cidade de Constantino que há uma
grande diferença entre um cemitério turco e um cemitério
cristão. Aquele não inspira o sentimento que se experimenta
quando se entra neste. O turco entrelaça a morte à vida, de modo
que não se passeia com terror ou melancolia entre duas alas de
túmulos. A razão desta diferença parece estar na própria
religião. O que quereis que seja a morte para um povo a quem se
promete na eternidade, a eternidade dos gozos mais voluptuosos
que a imaginação mais viva pode imaginar? Esse povo, que vive
no requinte dos prazeres materiais, só entende o que fala aos
sentidos, e considera bem aventurados os que morreram que já
gozam ou estão perto de gozar os prazeres prometidos pelo
profeta. Mas, filosoficamente, terão razão eles ou nós filhos da
387

igreja cristã? Há razão para ambas as partes (...) (ASSIS, 2008d,


p. 82).

A pergunta seguida de resposta transfere ao leitor a autoria da questão, na


medida em que o cronista coloca-se como autor da resposta. O leitor, formado dentro de
uma cultura católica e, consequentemente, excludente em relação a outras religiões,
estabiliza a vibração do texto, integrando-o naquilo que lhe é próprio, para então vibrar
de corpo e alma devido ao procedimento performativo dos enunciados, conforme
observa Zumthor. O cronista estabelece o contraste entre o cemitério turco e o cristão na
cidade de Constantino. Ao fazer essa distinção, estabelece o tom valorativo de tristeza e
felicidade. Ao associar a felicidade ao modo como os visitantes se comportam no
cemitério turco, fundamenta tal comportamento na motivação religiosa em que a morte
se torna uma dádiva aos fiéis mulçumanos. Com isso, deprecia a fé cristã, ao mostrar
que, embora o fiel católico possa ter garantida a vida após a morte, essa garantia não é
materializada por gozos mais voluptuosos que a imaginação mais viva pode imaginar,
razão por que a morte no cemitério cristão é motivo de tristeza. Diante da materialidade
fundamentada na diferenciação da fé entre essas duas religiões, o leitor tem seu modo
de concepção de mundo contrastado pelo enunciado, o que necessariamente é levado a
uma transformação performativa provocada pelo texto.
Na crônica de 10 de novembro de 1861, ao tratar das associações de caridades
das senhoras cariocas que organizam um concerto vocal e instrumental no salão do
Cassino Fluminense para arrecadar fundos, diz:

Algum filósofo esquisito poderá dizer que um egoísmo que


infecciona os homens faz com que estes só abram a bolsa em
troco de um prazer e que o dinheiro que compra o pão dos
pobres comprou antes o divertimento dos abastados. Guarde
esse as suas moedas de Pompéia, que não têm valor na
circulação; se não quer parecer egoísta, não vá lá; a humanidade
é assim; as abstrações quiméricas não é que a hão de modificar,
responderemos eu e o meu século. (p. 91)

Neste trecho, a suposição valorativa da ação beneficente feita pela associação de


caridade é posta em questionamento pelo cronista que atribui a autoria a outro – o
filósofo suposto – por meio da resposta dada a essa leitura da ação pelo cronista,
operando um distanciamento enunciativo entre si e a opinião do “filósofo” e, depois,
tornando essa resposta não só sua, mas também de seu leitor. Com isso vemos que o
388

texto vibra, conforme Zumthor, e o leitor, ao estabilizar o texto, integrando-o naquilo


que lhe é próprio, é quem vibra248, nas lacunas criadas no texto como campo ilusório
por meio do preenchimento virtual que ressoa como palavra pronunciada no ato da
leitura por meio da performatividade da escrita. Tanto a performance oral como
realidade provada quanto a leitura como ordem do desejo, implicam a presença forte do
corpo, cuja manifestação se opera segundo modalidades superficialmente diferentes. No
caso do texto escrito, seu reconhecimento, para Zumthor, depende do sentimento que o
corpo tem, isto é, mimetizado pelo “eu” na escrita, o corpo demarca a espacialidade
textual que estabelece os signos entre autor e leitor. Seja com advérbios de lugar ou de
tempo, seja com os pronomes que estabelecem a relação textual entre o “eu”, o “tu” e o
“ele”, o texto demarca a percepção do corpo como sujeito de conhecimento.

I – Perspectivismo e Genealogia

Característica da escrita machadiana manifestada desde cedo em suas primeiras


crônicas, a demarcação textual do “eu” como sujeito que ocupa um determinado ponto
de vista e, portanto, demarca-se corporalmente, opõe-se radicalmente à epistemologia
objetivista da cultura ocidental. Ao tratar do método genealógico de Nietzsche em seu
texto Niezstche, a genealogia e a história, Foucault afirma a rejeição que o filósofo
alemão faz do conceito de origem (Ursprung) utilizado pelos historiadores da moral,
porque, conforme Foucault, tal conceito:

(...) se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua


mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente
recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que
é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar
reencontrar "o que era imediatamente", o "aquilo mesmo" de
uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental
todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as
astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para

248 O texto vibra; o leitor o estabiliza, integrando-o àquilo que é ele próprio. Então é ele que vibra,
de corpo e alma. Não há algo que a linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema
completamente fechados; e as lacunas e os brancos que aí necessariamente subsistem constituem
um espaço de liberdade: ilusório pelo fato de que só pode ser ocupado por um instante, por mim,
por ti, leitores nômades por vocação. Também assim, a ilusão é propria da arte. A fixação, o
preenchimento, o gozo da liberdade se produzem na nudez de um face a face. Em presença desse
texto, no qual o sujeito está ali, mesmo quando indiscernível: nele ressoa uma palavra
pronunciada, imprecisa, obscurecida talvez pela dúvida que carrega em si, nós, perturbados
procuramos lhe encontrar um sentido. ZUMTHOR, 2007, p. 53
389

desvelar enfim uma identidade primeira. (FOUCAULT, 2003, p.


17)

Ao tratar de determinado evento, a operação estética da crônica dá-se na tensão


que estabelece entre os elementos contraditórios, acentuando o acaso que motiva cada
acontecimento ou, em leitura foucauldiana, evidencia o quanto a suposta essência das
coisas foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas, expondo a
sua maneira desrazoável de nascimento como puro acaso (p. 18). Para isso, o
procedimento técnico-estético utilizado pelo cronista é a intertextualidade que, em sua
efetivação, rompe com a essência das coisas, isto é, opõe-se à epistemologia objetivista,
pondo em cena outras perspectivas que lêem o presente pelo passado e o passado pelo
presente. A junção entre o sujeito enunciativo que marca seu lugar no texto, isto é, a
presença do corpo como ordem do desejo na escritura, e o modo como elabora as
descontinuidades entre elementos tematicamente e temporalmente distantes,
estabelecendo uma relação perspectivista dos elementos abordados nas crônicas,
permite-nos propor a proximidade dos procedimentos estéticos da crônica machadiana
com o método genealógico de Foucault. Confirma-se tal procedimento no início da
crônica de 10 de novembro de 1861, quando se trata da vacância de uma cadeira no
Senado:

A folha oficial, que toma o seu papel a sério, sem reparar que
encanta mais “par son plumage que par son ramage”, não se
arreceou de comprometer no futuro o queijo do experiente, e
abriu o largo bico para dizer que entre muitos candidatos um
havia que merecia exclusivamente os sufrágios dos eleitores.
(ASSIS, 2008d, 87)

A análise feita pelo cronista da disputa da cadeira senatorial faz referência à


matéria do Jornal do Comercio que alardeia a candidatura do ministro da Fazenda, José
Maria da Silva Paranhos – futuro Visconde do Rio Branco –, a essa vaga. Para tanto,
põe em cena, por meio da intertextualidade, a fábula de La Fontaine sobre a raposa e o
corvo. Nesta fábula, a raposa, querendo pegar o queijo do bico do corvo, elogia-o para
que cante; vaidoso, ao deixar-se levar pelo elogio, perde o queijo. A fórmula par son
plumage que par son ramage, ao referir-se à fábula, prenuncia o que aconteceria com
Paranhos na disputa senatorial. Não resultaria em sua vitória no pleito eleitoral,
entrando lá apenas em 1863. Conforme o cronista, a derrota resultaria da campanha
declarada feita pelo jornal oficial do Império. Ao tratar da lei das condecorações
390

instituída por decreto pelo Ministro do Império, na crônica de 16 de dezembro de 1861


o cronista recorre a Platão, mais especificamente ao diálogo O Banquete:

Dizia um filósofo antigo que as leis eram as coroas das cidades.


Para caracterizá-las assim deve supor-se que leis sejam boas e
sérias. As leis más ou burlescas não podem ser contadas no
número das que tão pitorescamente designa o pensador a que me
refiro. A folha oficial deu a público um decreto que reúne as
duas condições: de abusivo e de ridículo; é o decreto que regula
a concessão de condecorações. A imprensa impugnou o ato
governamental, e à folha oficial foram ter algumas respostas,
com que se procurou tornar a coisa séria. Mas se a coisa era
burlesca e má, má e burlesca ficou; as interpretações dos
sacerdotes não trouxeram outra convicção ao espírito do vulgo.
Devo todavia notar que a má impressão produzida pelo
regulamento das condecorações diminuiria se tivesse atendido
para o nome do ministro que firmou o decreto. Benza-o Deus, o
Sr. Ministro do Império não é, nunca foi, e muito menos espera
ser uma águia. Adeja na sua esfera comum, tem por horizonte a
beira dos telhados da sua secretaria, e deixa as nuvens e os
espaços largos a quem envergar asas de maiores dimensões que
as suas. (p. 127)

Para avaliar a conjuntura política anunciada pela imprensa sobre o decreto que
regula a concessão de condecorações das ordens honoríficas do Império, o cronista
remete o leitor ao texto de Platão, no qual a personagem Agatão, ao discorrer sobre
Eros, afirma que "(...) e quando as partes se põem voluntariamente de acordo, as leis,
rainhas das cidades, declaram que é justo". (PLATÃO, 1980, p. 249) Com isso, por
meio da referência ao texto grego, o cronista compromete a seriedade e põe em
evidência o ridículo que caracteriza a ação ministerial. Ele o faz também polemizando
com o Jornal Oficial, o qual, diante das críticas, tenta justificar a ação do Ministro do
Império. Por meio da metáfora da águia, o cronista opera a redução qualitativa do
Ministro, estabelecendo a coerência entre a qualidade do sujeito e a de suas ações:
burlesca e má. Tanto a lei quanto o Ministro são alvos da crítica pelo negativo: a
metáfora da coroa é improcedente à lei ministerial – portanto, burlesca e má; a metáfora
da águia é improcedente ao Ministro do Império cujo horizonte limita-se à beira dos
telhados da sua secretaria. Ainda mais um exemplo: na crônica de 29 de dezembro de
1861, ao discorrer sobre o decreto que abria um crédito suplementar ao Ministro da
Fazenda, noticiado na folha oficial – Jornal do Commercio – o cronista o faz,
estabelecendo um paralelo comparativo com o governo francês de Napoleão III:
391

Houve ontem muito quem se admirasse ao ler, na folha oficial, o


decreto abrindo um crédito suplementar de setecentos e tantos
contos ao Ministério da Fazenda. Isso prova que a boa fé
patriarcal ainda conta neste mundo, raros e preciosos exemplos.
Admirar-se de que, façam favor? É coisa de admirar que o
governo brasileiro abra créditos extraordinários? Deu-se, é
verdade, um fato. Fould, o ministro das finanças de Luiz
Napoleão, acabava de condenar esse sistema de créditos
suplementares, achando neles a origem da crise por que passa
atualmente a França. Este fato fez com que o imperador
Napoleão declinasse de si a prerrogativa que lhe havia
concedido o ato de 1851. A imprensa fluminense, apreciando
essas coisas, estranhou com razão que um país constitucional,
como o nosso, andasse inteiramente ao avesso do que se acabava
de praticar em um país onde a liberdade não existe. O tom
moderado da apreciação da imprensa não pôde disfarçar o
contraste que resultava do paralelo. O governo devia sentir-se
tocado, pelo acúleo da consciência, e ver que, de fato, a situação
desgraçada a que chegamos procedia também das despesas
inúteis a que havia ocorrido com os créditos suplementares. Se a
causa da doença era a mesma, idêntico devia ser o remédio.
(ASSIS, 2008d, p. 141)

Diferentemente das anteriores, a relação intertextual que propõe a análise da


conjuntura política nesta crônica é feita a partir da aproximação espacial entre dois
impérios por meio de um quiasma entre Império Constitucional versus Império Ditador
e sistema de créditos suplementares versus supressão de créditos suplementares: "A
imprensa fluminense, apreciando essas coisas, estranhou com razão que um país
constitucional, como o nosso, andasse inteiramente ao avesso do que se acabava de
praticar em um país onde a liberdade não existe". Na parte final da análise, o cronista
faz referência à obra de Swift, comparando o Gabinete de 2 de março de 1861, presidido
pelo Duque de Caxias, com o reino de Liliput:

Quereria o governo com o seu ato contrariar o memorial Fould,


fazendo crer que nos créditos suplementares é que está o ideal
financeiro, e que só neles repousam a paz pública e a felicidade
nacional? Aqui hão de me perdoar. De um ato de nosso governo
só a China poderá tirar a lição. Não é desprezo pelo que é nosso,
não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os
melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco.
A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens cabem-nos
perfeitamente. No que respeita à política nada temos a invejar ao
reino de Liliput. (p. 142)
392

Há nesse método composicional da referência intertextual da ficção, guardadas


as devidas proporções, proximidade com o modo como o perspectivismo ameríndio
conhece, conforme observa Viveiros de Castro, "no mito um lugar, geométrico por
assim dizer, onde a diferença entre os pontos de vista é ao mesmo tempo anulada e
exacerbada" (CASTRO, 2002, p. 354). Assim como no mito, o texto ficcional
reenunciado na crônica como possibilidade de perspectiva se reconstitui como “só
sujeito” não da enunciação de seu discurso, mas de seu enunciado, para estabelecer a
tensão com a notícia do cotidiano político do Império. Mas se, conforme observa
Viveiros de Castro, os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados
ou mantidos pelos humanos, isto é, como momento de origem de disjunção entre o
humano e o animal, com a ficção reenunciada nas crônicas a tensão pode se operar pela
aproximação que busca o absurdo pela deformação da conjuntura política da crônica na
comparação e semelhança com a imagem ficcional; ou pelo afastamento que também
resulta em deformação da conjuntura política na comparação da diferença com a
imagem ficcional. Conforme esta crônica, é a aproximação entre o Gabinete do Duque
de Caxias com a narrativa das Viagens de Gulliver que permite o mesmo procedimento
de desconstrução; já na crônica citada acima, é a diferenciação entre o texto platônico e
a notícia do jornal sobre a regulamentação das condecorações que permite a
desconstrução da suposta essência das coisas que o acaso tenta fraudar. Há nesse
método proximidade com o identificado por Foucault ao mostrar como se opera o
procedimento de fazer valer a genealogia dos valores proposta por Niezstche,
demorando-se nas meticulosidades e nos acasos dos começos, prendendo-se na
"escavação dos bas-fond; deixar-lhes o tempo de elevar-se do labirinto onde nenhuma
verdade manteve as derrisórias das máscaras jamais sob sua guarda" (FOUCAULT,
2003, p. 19). Na obra Em Defesa da Sociedade, ao tratar do método genealógico como
ferramenta de pesquisa, afirma não se tratar este método de um empirismo, nem
tampouco de um positivismo, "mas de fazer que intervenham saberes locais,
descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que
pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento
verdadeiro" (FOUCAULT, 2002, p. 13). Essa proximidade do método genealógico
formulado por Foucault nesses textos com o perspectivismo desenvolvido por Viveiros
de Castro a partir de seus trabalhos antropológicos junto a populações ameríndias, que
ora expomos, mostra ser pertinente na abordagem da leitura das crônicas machadianas.
Desse modo, a proximidade entre esses dois métodos de leitura pode ser confirmada no
393

texto Niezstche, a genealogia e a história, quando, a certa altura, Foucault aponta uma
última característica do sentido histórico (wirkliche Historie) niezstchiano de que ele
não teme ser um saber perspectivo249. Se a história tradicional, em sua epistemologia,
esforça-se por apagar o que pode revelar, em seu saber, o lugar de onde os historiadores
olham, o momento em que estão e o partido que tomam, a genealogia sabe que é
perspectiva, não recusando o sistema de sua própria injustiça, pois olha de um
determinado ângulo para assim poder apreciar; conforme Foucault, "em vez de fingir
um discreto aniquilamento diante do que olha, em vez de aí procurar sua lei e a isto
submeter cada um de seus movimentos, é um olhar que sabe tanto de onde olha quanto
o que olha."

II – Multiplicidade de perspectivas.

Em diversos momentos dessas crônicas, a diferenciação entre os pronomes “eu”


e “ele” se manifesta como forma de constituir uma perspectiva como um modo de
conhecer, ou, nas palavras de Viveiros de Castro, certa forma de conhecimento;
conforme o antropólogo, "conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que
deve ser conhecido – daquilo, ou antes, daquele; (...) visa um ‘algo’ que é um ‘alguém’,
outro sujeito ou agente. A forma do Outro é a pessoa."
Na primeira crônica, ao comentar a peça do Sr. Dr. Guimarães – História de uma
moça rica – e os diversos comentários que não compartilha e sobre os quais prefere se
calar, o cronista tece a seguinte observação:

Supondo que meu leitor não comunga com os sentimentos


exagerados que por aí se alardeia contra a “História de uma
moça rica”, aconselho-o que vá hoje verificar com os seus
próprios olhos se a crítica tem razão. (ASSIS, 2008d, p. 56)

Entre a opinião exagerada do “ele”, a opinião discordante do “eu” e a opinião a

249 Finalmente, última característica desta história efetiva: ela não teme ser um saber perspectivo. Os
historiadores procuram, na medida do possível, apagar o que pode revelar, em seu saber, o lugar de
onde eles olham, o momento em que eles estão, o partido que eles tomam - o incontrolável de sua
paixão. O sentido histórico, tal como Nietzsche o entende, sabe que é perspectivo, e não recusa o
sistema de sua própria injustiça. Ele olha de um determinado ângulo, com o propósito deliberado de
apreciar, de dizer sim ou não, de seguir todos os traços do veneno, de encontrar o melhor antídoto. Em
vez de fingir um discreto aniquilamento diante do que ele olha, em vez de aí procurar sua lei e a isto
submeter cada um de seus movimentos, é um olhar que sabe tanto de onde olha quanto o que olha. O
sentimento histórico dá ao saber a possibilidade de fazer, no movimento de seu conhecimento, sua
genealogia. A "Wirkliche Historie" efetua, verticalmente ao lugar em que se encontra, a genealogia da
história. (FOUCAULT, 2002, p. 30)
394

se formar do “tu”, inventada como eco latente à do “eu”, as diferentes perspectivas


constituem-se neste trecho da crônica como processo de conhecimento que se
personifica porque toma o ponto de vista daquilo que quer ser conhecido. Ainda
tratando do caso das sibilas na crônica seguinte, essa diferenciação se reafirma na
composição do texto:

Consultei e encomendei-me às sibilas. Fiz bem, acho eu. Cada


qual na ocasião de cometer uma empresa, encomenda-se à sua
devoção, e o próprio bandido italiano não sai a matar sem ter
queimado duas velas à madona de sua fé. Eu creio nas sibilas,
por isso as preferi. (p. 63)

Conforme observam os organizadores dessas crônicas – Lúcia Granja e Jefferson


Cano – a referência ao bandido italiano, Luigi Alonzi, apelidado Chiavone, que
comandava um grupo de 400 salteadores-guerrilheiros, é tirada dos jornais da corte
brasileira, de modo que a sua utilização na crônica, além de cumprir a função de
diferenciação de ponto de vista sobre a fé – a fé do cronista nas sibilas que se legitima
na diferenciação da fé do bandido italiano em sua madona – também cumpre outra
função característica desse gênero literário, que é a de comentar as notícias tratadas
pelos jornais e já conhecidas de seus leitores.
Na crônica de 26 de outubro de 1861, ao tratar do atrito ocorrido entre o
folhetinista e romancista Joaquim Manuel de Macedo e o Jornal do Commercio, o
cronista encerra o assunto do seguinte modo: "Todo o comentário que eu fizesse mais a
este respeito me levaria, leitor, a considerações em que eu, nem por sombras, quero
pensar." (p. 73)
Na crônica de 1º de novembro de 1861, ao referir uma matéria do jornal oficial –
Jornal do Commercio – que noticiava o método pedagógico do Sr. Dr. J. Praxedes P.
Pacheco, nomeado Ensino Praxedes, cujo objetivo era oferecer algumas amostras
didáticas para aprendizagem das primeiras letras baseada na filosofia do ABC, o
cronista tece o seguinte comentário com o leitor:

Ouço já o meu sôfrego leitor perguntar-me o que é a filosofia do


A B C. Eu ainda não li o precioso livro; mas diz-me um
boticário, que o folheou entre duas receitas, que essa filosofia
cifra-se em demonstrar que não há entre as letras do alfabeto a
diferença que geralmente supõe-se, e que o A e o G se parecem
como duas gotas de água. Talvez o meu leitor não ache muito
clara a identidade; mas é aí que está a sutileza do novo método.
(p. 79)
395

As citações comprovam a multiplicidade de perspectivas que operam no texto


pela demarcação do ponto de vista do cronista, o qual não pretende atingir uma
representação absolutamente objetiva do mundo por meio da redução da
intencionalidade ambiente a zero, conforme observa o antropólogo, mas visa uma
marcação máxima de intencionalidade, por meio da adoção de atitudes próprias da
vivência de seu cotidiano como ponto de vista individual. A demarcação desse ponto de
vista observável nesses trechos opera-se, na definição de Viveiros de Castro, como um
“ver como” daquilo que é percebido próprio dos chefes ou xamãs dos povos ameríndios.
Paul Dixon, ao analisar o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, em sua obra O
Chocalho de Brás Cubas, trata dessa presença xamânica na narrativa machadiana,
definindo-a como subjetividade que é um dos principais projetos de composição na
escrita de Machado de Assis 250. Citando David Abram, o crítico estadunidense
relaciona essa forma composicional machadiana em dois locais: no xamanismo e na
fenomenologia de Husserl e Merleau-Ponty. Conforme observa, em Merleau-Ponty há a
rejeição de um "eu" auto-suficiente ou transcendental, já que a existência desse “eu” se
dá pela relação com o corpo. Isto é, o sujeito percebe os fenômenos, mas como a
percepção só ocorre a partir de um corpo, quem percebe está sempre disponível à
percepção alheia. Uma das comprovações de Dixon dá-se na análise da dedicatória feita
pelo defunto-autor ao primeiro verme que roeu suas frias carnes; na medida em que
dedica as memórias ao verme, marca a diferença entre o “eu” que percebe e o “ele” que
é percebido, tendo como efeito dessa tensão a constituição da segunda pessoa como
outro sujeito diferenciado tanto pelo “eu”, quanto pelo “ele” e leitor dessa dedicatória.
Essa percepção passa por uma mudança de perspectiva que se opera por meio da
constituição do “eu” sujeito que dedica ao “ele”, objeto indireto da dedicatória, mas
também a inversão constituída no mesmo espaço textual, onde o “eu” sujeito é que rói
as frias carnes do “ele” objeto roído251. Com isso, reafirma a antecipação machadiana

250 A reivindicação do subjetivo de Abram já sugere uma compatibilidade com Machado de Assis,
porque esta mesma defesa da subjetividade foi um dos principais projetos dos escritos do autor
brasileiro. Abram encontra abrigos para esta forma de pensamento em dois lugares bem distintos: no
xamanismo das culturas pré-modernas, e na filosofia fenomenológica de Edmund Husserl e Maurice
Merleau-Ponty. (DIXON, 2009, 66)
251 Quando o narrador reconhece e brinda o verme, como o primeiro agente a decompor seu corpo,
está demonstrando precisamente a mesma "reversibilidade" apontada por Abram. Enquanto narrador
que dedica seu livro, Brás é o sujeito e o verme o objeto. Enquanto refeição de "frias carnes", Brás é o
objeto e o verme o sujeito. Como Flávio Loureiro Chaves já reconheceu em seu estudo de Quincas
Borba (54-55), e como sustentei em meu livro sobre os contos, o pensamento de Machado de Assis
396

de muitas das "ideias da filosofia fenomenológica, especialmente no que diz respeito à


rejeição de modelos objetivos em favor de um paradigma de intersubjetividade, ao qual
chama de visão protofenomenológica". Ora, essa alteração de perspectiva na
composição machadiana identificada por Paul Dixon em Memórias Póstumas de Brás
Cubas já funciona em suas crônicas vinte anos antes.

III – Habitus e Proveniência

Ao trazer para o seu discurso os diversos eventos que circulam em seu cotidiano,
longe de querer analisar exaustivamente cada um deles, o cronista os personifica na
busca de alcançar o saber e, com isso, torna cada evento um sujeito incompletamente
interpretado. Tal método de composição textual coloca-se como oposição a qualquer
dogma cosmológico substantivo, pois se estabelece como experiência pessoal e,
portanto, é encorpado por meio da singularização de cada ponto de vista percebido na
ação dos eventos expostos. Confirma-se essa leitura no final da crônica de 1º de
novembro de 1861:

Dizem os que têm visitado a antiga cidade de Constantino que


há uma grande diferença entre um cemitério turco e um
cemitério cristão. Aquele não inspira o sentimento que se
experimenta quando se entra neste. O turco entrelaça a morte à
vida, de modo que não se passeia com terror ou melancolia entre
duas alas de túmulos. A razão desta diferença parece estar na
própria religião. (ASSIS, 2008d, p. 82)

Ao traçar a diferença entre o cemitério turco e o cemitério cristão, por referência


ao dia de Finados, o cronista a especifica como relacionismo (e não relativismo),
propondo que a morte para o muçulmano e a morte para o cristão dão-se por meio de
formas diferentes de perceber o mesmo evento:

O que quereis que seja a morte para um povo a quem se promete


na eternidade a eternidade dos gozos mais voluptuosos que a
imaginação mais viva pode imaginar? Esse povo, que vive no
requinte dos prazeres materiais, só entende o que lhe fala aos
sentidos, e considera bem-aventurados os que morreram, que já
gozam ou estão perto de gozar os prazeres prometidos pelo

antecipa muitas ideias da filosofia fenomenológica, especialmente no que diz respeito à rejeição de
modelos objetivos em favor de um paradigma de intersubjetividade. O tratamento peculiar do mundo
natural em Machado deriva desta visão protofenomenológica. (p. 68)
397

profeta. Mas, filosoficamente, terão razão eles ou nós filhos da


igreja cristã? Há razão para ambas as partes, e cumpre acatar os
sentimentos alheios, para que não desrespeitem os nossos.

Desse modo, a experiência manifesta nesse trecho marcada pelo ponto de vista
do cronista se opera como uma experiência corporal identificada por Viveiros de Castro
como habitus ou feixes de afecções e capacidades enquanto origem das perspectivas,
identificados pelo antropólogo como maneirismo corporal. Essa experiência marcada
como habitus pelo cronista permite que identifique seu lugar cultural ao ler a cultura do
outro sem com isso submetê-la aos valores de sua cultura; certamente, como trata
Viveiros de Castro no final de seu texto, os dois pontos de vista cosmológicos aqui
contrastados (...) são, do nosso ponto de vista, incompossíveis. Longe de buscar a
distinção entre a cultura mulçumana e a cristã, para proceder a uma relação hierárquica
de valores e de méritos, o cronista marca as diferentes formas de compreender o mesmo
evento como acidente que constitui um habitus e que pressupõe, em termos
nietzschianos, a proveniência (Herkfunt) como tronco de uma raça, pertencimento de
grupo – "do sangue, da tradição, de ligação entre aqueles da mesma altura ou da mesma
baixeza" (FOUCAULT, 2002, p. 20). Conforme observa, essa análise de proveniência
permite a dissociação do “eu” e faz pulular nos lugares e recantos de sua síntese vazia,
bem como reencontrar, sob o aspecto único, a proliferação dos acontecimentos para
mostrar a heterogeneidade daquilo que parecia estar em conformidade consigo mesmo
(p. 21). Novamente, observa-se a proximidade entre genealogia e perspectivismo, na
medida em que, se o perspectivismo ameríndio, como aponta o antropólogo, se dá pelas
diferenças dos corpos em suas afecções, afetos ou capacidades que singularizam cada
espécie de corpo, constituindo um saber para o outro em sua alteridade apreendida como
tal, na proveniência, sua inscrição dá-se no corpo, no sistema nervoso, no humor, no
aparelho digestivo, pois, como afirma o filósofo francês, o corpo traz consigo, em sua
vida e em sua morte, em sua força e em sua fraqueza, a sanção de todo erro e de toda
verdade, assim como traz consigo também e inversamente sua proveniência (p. 22).
Nesse corpo, encontra-se "o estigma dos acontecimentos passados, do mesmo modo que
dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles se atam e de
repente se exprimem, mas nele também eles se desatam, entram em luta, se apagam uns
aos outros e continuam seu insuperável conflito. Em suma: o corpo é a superfície de
inscrição dos acontecimentos e a genealogia está no ponto de articulação do corpo com
a história como análise de proveniência." Há nisso o que Zumthor identifica como
398

teatralidade, o laço que liga, por meio do corpo, a performatividade ao espaço em que
se opera. Isto é, na medida em que o acontecimento é, por meio das intertextualidades,
ficcionalizado pelo cronista por meio do deslocamento dos signos, o leitor, tornado
espectador, modifica seu olhar, vendo como espetacular aquilo que antes via como
acontecimento. Na crônica de 7 de janeiro de 1862, ao noticiar uma guerra iminente
entre os Estados Unidos e a Inglaterra, o cronista apropria-se desse acontecimento e o
transforma em espetáculo:

O paquete trouxe com que dar que fazer ao espírito público; a


notícia de uma guerra iminente, entre duas grandes potências,
caiu como uma bomba no meio das nossas inocentes e ligeiras
preocupações. Era uma notícia cheia, como se quer; uma guerra
homérica que fará acordar os tritões adormecidos nas suas
cavernas seculares desde os últimos poetas das Arcádias. Nem
mais nem menos. Dous rivais em face; dois dragões marinhos,
que, depois de haverem refeito as forças, cada um na sua região,
se encontram afinal, no meio do oceano, para uma luta de morte.
Há assunto para inspirar as liras dos Homeros. (ASSIS, 2008d,
p. 150)

No final da crônica de 16 de dezembro de 1861, ao referir-se à morte do rei e do


príncipe de Portugal, já tratada na crônica anterior, o cronista tece o seguinte
comentário: "Folgo por ver que nestas homenagens prestadas à majestade morta, fala
menos o ânimo dos vassalos que o coração dos amigos e admiradores das virtudes
daquele ilustre soberano."
O sarcasmo produzido nesse trecho ao tratar do modo como ocorrem as
inúmeras homenagens ao rei morto recupera a proveniência dos autores na história
medieval, com todas as práticas de submissão, adulação e subserviência que o vassalo
deveria prestar ao senhor feudal, cuja tradição supostamente foi destituída pelo Século
das Luzes e das revoluções. A ironia operada pelo cronista reconstitui a motivação atual
desses corpos que homenageiam, pela tradição supostamente extinta, corpos que
inscrevem relações afetivas modernas de habitus – o coração dos amigos e admiradores
das virtudes daquele ilustre soberano. Na dissociação desses corpos homenageadores,
pululam os mil acontecimentos agora perdidos. Em outras palavras, se na superfície dos
acontecimentos registrados como notícia de jornal a relação entre o defunto e os amigos
se manifesta de modo horizontal, na medida em que o cronista, por meio da ironia,
evidencia a condição social do defunto – a majestade morta –, faz pulular outras
399

possíveis motivações das homenagens que se perdem na notícia. Desse modo, a leitura
perspectivista do cronista marca o conjunto de maneiras ou modos de ser na imagem
reenunciada em seu texto, de modo que os constitui como habitus. Isto é, como origem
das perspectivas ou análise de proveniência que demarcam os acidentes em seus ínfimos
desvios – na crônica, a aparência moderna que motiva as homenagens e a tradição da
homenagem que se apaga nessa aparência, mas que o cronista evidencia por meio do
sarcasmo – e, com isso, agita o que pretende ser imóvel e fragmenta o que se quer
unido, alcançando o ponto de articulação do corpo com a história. Tal movimento
evidencia na imagem constituída na crônica esses corpos inteiramente marcados de
história e a história arruinando o corpo, isto é, os filhos das Luzes e das tradições
burguesas denunciando, em seus maneirismos corporais , a velha prática de submissão
e adulação de vassalos a suseranos.
Esse modo de evidenciar as motivações individuais mascaradas por
comportamentos triviais que o cronista adota, utilizando-se do sarcasmo, manifesta-se
também em algumas crônicas na polêmica que trava com outro cronista identificado
como Scaevola. Este, em diversos momentos e a partir de qualquer assunto, acentua em
seus textos o sentimento patriótico de dominação do Império Brasileiro sobre os países
do Rio da Prata. Na crônica de 14 de janeiro de 1862, o cronista afirma:

Eu podia, é verdade, entreter o leitor com o imortal Romano da


mão queimada, que jurou aos deuses fundir as repúblicas
confinantes ao sul do império em uma monarquia e dá-la em
presente a um príncipe da família imperial, não esquecendo de
casá-lo com a Sra. D. Leopoldina. (...) Já declarou que não quer
ser mordomo do novo rei, nem aspira a ser senador no Estado
criado por ele próprio; mas já me parece generosidade de mais,
isto de fazer monarquias pelo simples e honestíssimo prazer de
ver a realeza aliada à liberdade. (...) Assim, cheguei a pensar que
Scaevola queria tirar desta solicitude pelas augustas princesas e
pelos Estados do Prata as vantagens a que visam todos aqueles
que só vêem este mundo pelo ponto de vista das armarias
heráldicas. A declaração em contrário de Scaevola em seu
último escrito avulta tanto como um caracol. Scaevola, pelos
modos, pertence a certo partido político que não tem sacrificado
muito à sinceridade, e tem como regra de diplomata que a
palavra foi dada ao homem para esconder os conceitos e as
convicções. Terá ele lido no futuro que a forma monárquica há
de vir a estabelecer-se no Rio da Prata, e quererá desde já
mostrar-se o propugnador extremoso dessa ideia, que considera
a única salvadora daquelas repúblicas? A sua vaidade far-lhe-á
ver-se desde já vazado em bronze a figurar no meio de uma
400

praça do novo reino? Este meio de perpetuidade alcança longe e


alto demais para supô-lo no espírito de Scaevola. Opto pela
primeira impressão. Já o governo fez ver, em comunicado, ao
publicista oficioso quanto têm de inconvenientes os seus escritos
a respeito das repúblicas do sul. Realmente não me parece
patriotismo de boa índole a enunciação de projetos que
significam apenas desejos muito individuais, e que não
respondem à opinião feita do país. (ASSIS, 2008d, p. 156)

Diferentemente do exemplo anterior, neste o corpo é enunciado textualmente. É


na constituição estética desse enunciado que o cronista machadiano faz a articulação
desse corpo mimetizado com a história. Primeiramente, busca a proveniência no
pseudônimo do outro cronista e sua recorrência histórica, sua origem. Mucius Scaevola,
conforme registram em nota os organizadores das crônicas, é um jovem romano que
intenta contra Porsenna, rei da Etrúria, no engano que leva à morte o secretário deste.
Aprisionado, Scaevola põe a mão direita sobre um braseiro e deixa-a queimar para
mostrar sua firmeza de romano ao rei estruco. O cronista junta o romano ao articulista
como um só e evidencia a intencionalidade dele na defesa da diplomacia brasileira no
Rio da Prata. O romano e o articulista se fundem sob o pseudônimo que manifesta o
interesse de transformar as repúblicas do Rio da Prata em uma monarquia e dá-la de
presente ao pretendente da Princesa imperial do Brasil. A referência ao casamento havia
sido feita na crônica de 7 de janeiro de 1862 sobre uma série de artigos de Scaevola
referentes ao casamento da Princesa imperial:

Um dia antes Scaevola havia começado uma série de artigos


sobre o casamento da princesa imperial, prometendo discorrer
para diante acerca da conveniência de diversos partidos de
casamento, que se possam oferecer à herdeira da coroa
brasileira. Até agora nada. Pois é pena! Estava divertido com os
seus protestos de queimar a mão, e com as mesuras repetidas
que fazia diante do augusto assunto que tratava. A mim se me
afigurou ver o cabeçalho de um Manual de civilidade cortesã.
(p. 150)

A referência do cronista deve-se ao texto publicado no Jornal do Commércio, no


dia 3 de janeiro de 1862, intitulado "Questões políticas: o casamento da princesa
imperial do Brasil – I". Na medida em que discorre sobre as questões do Império,
mesmo que o tema tratado não esteja relacionado diretamente com as tensões no Rio da
Prata, Scaevola busca sempre estabelecer essa proximidade entre o tema e seu
patriotismo exacerbado, dando material suficiente para o cronista identificar na sua
401

enunciação as motivações reais que orientam a sua produção monotemática: anexar a


região do Rio da Prata ao Império Brasileiro. Para o cronista, essa insistência
monotemática aponta outros interesses que, embora sejam negados por Scaevola, dão-se
apenas como denegação que reafirma o interesse negado. Com isso, observa-se que,
como superfície de inscrição de acontecimentos, esse corpo verbal, longe de ser
diferenças de fisiologia, conforme observa Viveiros de Castro, ou de anatomia
característica, "é um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus"
(CASTRO, 2002, p. 380). Em Scaevola, o habitus que determina suas composições
flagradas pelo cronista machadiano identifica sua proveniência e permite, portanto,
estabelecê-lo como pertencente a um grupo: "Scaevola, pelos modos, pertence a certo
partido político que não tem sacrificado muito à sinceridade, e tem como regra de
diplomata que a palavra foi dada ao homem para esconder os conceitos e as
convicções." Como pontua Zumthor, o corpo, não apenas como corpo biológico, mas
como um ser-estar no mundo, é o peso sentido na experiência que se faz dos textos:
"Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que
determina minha relação com o mundo" (CASTRO, 2002, p. 23). Na crônica, esse
corpo dá-se de duas formas: o corpo que lê e o corpo que é lido, o corpo do leitor-
cronista que lê as notícias da imprensa carioca, o corpo do leitor das crônicas que
também lê essas notícias, o corpo de ambos que, ao se fundirem nessa leitura, são lidos.
Com isso, na proveniência se expõe a emergência (Entestehung) que coloca o ponto de
surgimento e o princípio e a lei singular de um aparecimento252. Por meio dessa
emergência, a genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão como jogo
casual das dominações. Nesse exemplo citado do discurso de Scaevola, a proveniência
que marca seu lugar discursivo permite perceber a emergência interna que coloca em
tensão o que é dito e o que se afirma no não-dito; a entrada em cena das forças que
colocam a interrupção identificada por Nietzsche como Entestehungsherd, sendo espaço
de disputa entre as diversas forças, como lugar de afrontamento enquanto “não-lugar”
produzido no interstício253.

252 Entestehung designa de preferência a emergência, o ponto de surgimento. E o princípio e a lei


singular de um aparecimento. Do mesmo modo que se tenta muito freqüentemente procurar a
proveniência em uma continuidade sem interrupção, também seria errado dar conta da emergência
pelo termo final. (FOUCAULT, 2002, p. 23)
253 Enquanto que a proveniência designa a qualidade de um instinto, seu grau ou seu desfalecimento,
e a marca que ele deixa em um corpo, a emergência designa um lugar de afrontamento; é preciso
ainda se impedir de imaginá−la como um campo fechado onde se desencadeara uma luta, um plano
onde os adversários estariam em igualdade; é de preferência − o exemplo dos bons e dos malvados o
402

O texto torna-se o lugar simbólico por excelência da voz, como uma articulação
entre o autor e o leitor e entre os sujeitos (leitor e autor) e o objeto. Com isso, a voz
restabelece no texto uma relação de alteridade que funda a palavra do leitor-autor,
mesmo quando essa voz é, por meio da leitura isolada, interiorizada. Com isso,
conforme observa Paul Zumthor, essa voz atravessa o limite do corpo sem rompê-lo,
significando o lugar do sujeito não reduzido a uma localização pessoal 254. Por meio das
lacunas que as crônicas estabelecem no ato de leitura, por meio da ilusão virtual que
produzem no leitor a partir dos elementos técnico-estéticos aqui abordados, as crônicas
tornam-se o espaço virtual por excelência que, por meio da performatividade, convida o
leitor a reorganizar saberes que se apresentam para ele no conjunto de leituras que é
forçado a fazer, juntamente com o cronista, sobre seu momento histórico, traçados nas
relações corriqueiras do cotidiano. Convidado a proceder a uma leitura perspectivista e
genealógica na reelaboração das informações que se reenunciam não pela tematização
enunciada que esconde a trama epistêmica que as motiva, mas por uma reconstituição
de sua proveniência, percebe as emergências que criam tensões entre campos e saberes
muitas vezes paradoxais. Essa forma de procedimento composicional, conforme
buscamos mostrar em nossa análise, seguida de aperfeiçoamentos da prática de escrita
machadiana, determina sua composição e reelabora uma nova relação do leitor com o
texto.
Esses procedimentos composicionais da crônica machadiana ao proporem o
dialogismo com o leitor, convocando-o a participar do processo de significação dos
textos de modo que se torne parte integrante dos efeitos de sentido por meio da

prova− um "não−lugar", uma pura distância, o fato que os adversários não pertencem ao mesmo
espaço. (p. 24)
254 Primeira tese: a voz é o lugar simbólico por excelência; mas um lugar que não pode ser
definido de outra forma que por uma relação, uma distância, uma articulação entre o sujeito e
o objeto, entre o objeto e o outro. A voz é pois inobjetivável. Segunda tese: a voz, quando a
percebemos, estabelece ou restabelece uma relação de alteridade, que funda a palavra do
sujeito. Terceira tese: todo objeto adquire uma dimensão simbólica quando é vocalizado.
Concebem-se as implicações dessa tese para a poesia; tanto mais ela permanece plenamente
verdadeira quanto mais a voz é interiorizada, e não se produz percepção auditiva registrável
por aparelhos. Quarta tese (ela também se referindo diretamente ao poético): a voz é uma
subversão ou uma ruptura da c1ausura do corpo. Mas ela atravessa o limite do corpo sem
rompê-lo; ela significa o lugar de um sujeito que não se reduz à localização pessoal. Nesse
sentido, a voz desaloja o homem do seu corpo. Enquanto falo, minha voz me faz habitar a
minha linguagem. Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele. Quinta tese: a voz
não é especular; a voz não tem espelho. Narciso se vê na fonte. Se ele ouve sua voz, isto não é
absolutamente um reflexo, mas a própria realidade. Sexta tese: escutar um outro é ouvir, no
silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa voz, dirigindo-se a mim, exige de
mim uma atenção que se torna meu lugar, pelo tempo dessa escuta. Essas palavras não
definiriam igualmente bem o fato poético? (ZUMTHOR, 2007, p. 97)
403

interpretação, estabelecem um movimento de deslocamento na zona de conforto que o


leitor tem da compreensão de mundo e o faz ressignificar essa compreensão a partir
dessa leitura ativa. Como observa Ricoeur, toda figura retórica implica o deslocamento
de forma que provoque uma transformação do leitor por meio da mudança de ordem
semântica do texto255. Em sua obra Tempo e Narrativa, o autor define como violência
interpretativa, na medida em que o leitor se depara de modo equívoco com a dialética
concordância e discordância operada pelo texto no ato da leitura. Com isso, com a
tensão cuja dialética é sempre de aporia, isto é, não busca uma solução, a menos que se
entenda como solução a própria tensão que provoca tais deslocamentos. De qualquer
modo, é depois de ter enfrentado a violência da interpretação que há o processo
inverso, identificado por Ricoeur como redundância interpretativa256. Contudo, há que
observar que essa movimentação opera-se necessariamente entre texto e leitura, pois os
deslocamentos da zona de conforto do leitor provocados pela crônica e também pelos
romances e contos operam-se por meio da relação entre metáforas e ambiguidade.
Como construção de sentido, a metáfora estabelece relações de poder. Na medida em
que a análise se desenvolve como desconstrução das metáforas mortas, o cronista opera
tal desconstrução na dialética entre o ser e o não-ser da metáfora.

255 Max Black não se limita a opor uma teoria da interação a uma da substituição. Ele acrescenta a
esta uma teoria da comparação na qual vê um caso particular da anterior. Não é, contudo, desta
maneira que ela é introduzida, mas a partir de uma reflexão geral sobre a noção de linguagem
"figurativa": toda figura implica um deslocamento, uma transformação, uma mudança de ordem
semântica, que faz da expressão figurada uma função "no sentido algébrico" de uma expressão literal
preliminar. (RICOEUR, 2005, p. 137)
256 Depois de ter enfrentado a violência da interpretação, temos de encarar a possibilidade inversa, a
de uma redundância da interpretação. (RICOEUR, 2010, v. 1, p. 127)
404

CAPÍTULO 4 - AS ANTI-METÁFORAS MACHADIANAS

Se não há história mais que pela linguagem e a linguagem é


elementarmente metafórica, Borges tem razão: ‘Talvez a história
universal não seja mais que a história de algumas metáforas’.
Dessas poucas metáforas fundamentais, a luz não é mais que um
exemplo, mas que exemplo! Quem poderá dominá-la, quem dirá
alguma vez seu sentido sem deixar-se primeiro dizer por este?
Que linguagem escapará alguma vez dela?
Jacques Derrida, A Escritura e a Diferença, p.125

Após o estudo de alguns teóricos do campo da linguagem que trabalham


especificamente com definições da metáfora e suas diversas formas de uso, como Paul
Ricoeur, Paul de Man, Ted Cohen, Fiorin, entre outros, ficaram-nos duas observações
feitas por Donald Davidson em palestra intitulada "O que as metáforas significam" feita
no Simpósio Metáfora: o Salto Conceitual, patrocinado pelos Cursos de Extensão da
Universidade de Chicago, em fevereiro de 1978 e, posteriormente, publicado em livro.
A primeira observação é a de que a metáfora pertence à esfera do uso, isto é, embora
aplicada à palavra, a metáfora depende dos significados comuns no contexto em que a
palavra é semanticamente construída; assim, tentar explicar a metáfora em abstrato, isto
é, enquanto conceito que se utiliza de exemplos específicos, tende à generalização e
perde sua aplicação contextual. O autor afirma que, geralmente, os exemplos utilizados
pelos teóricos da metáfora são sempre os mesmos, não contribuindo muito para a
compreensão da riqueza desse tropo. Desse modo, o que define a metáfora – e aqui
segue sua segunda observação – é o significado específico que a palavra tem num uso
determinado. De certo modo, e de uma perspectiva bakhtiniana, a palavra não existe
isolada das relações enunciativas, mas no contexto que determina sua funcionalidade e
aplicabilidade na busca de sentido que pressupõe comunidades, ideologias, dialogismos,
polifonias etc.
Junto a essa consideração sobre a metáfora feita por Donald Davidson, cabe aqui
retomar a definição dada por Linda Hutcheon em sua obra Teoria e Política da Ironia,
onde, ao conceituar ironia, observa o seu caráter transideológico, evidenciando que ela
pode funcionar taticamente a serviço de uma vasta gama de posições políticas,
legitimando ou solapando uma grande variedade de interesses. (HUTCHEON, 2000).
Na mesma linha analítica de Hutcheon, consideraremos a metáfora, mas definindo-a
como transfuncional, visto que o termo transideológica pode criar outras complicações
405

teóricas por conta de toda a discussão sobre o conceito ideologia. Entendendo portanto,
que os diferentes usos da metáfora são determinados e que ela pode ser usada tanto para
colocar em questionamento os discursos dominantes como também para reafirmá-los
(em concordância com a análise de Hutcheon sobre a ironia), trataremos a metáfora
como transfuncional. Essa transfuncionalidade da metáfora confirma a observação de
Donald Davidson, cuja compreensão de sentido da metáfora só é possível a partir da
análise dos textos onde ela é utilizada.
Partindo desse pressuposto, a análise que pretendemos fazer nas crônicas de
Machado de Assis busca não uma definição conceitual abstrata da metáfora, mas a
compreensão da função atribuída a ela pelo escritor como recurso discursivo da
construção de seus textos. Desse modo, partimos do entendimento da palavra como
elemento integrante do enunciado, o qual se constrói como respostas a enunciados
anteriores e futuros. A elaboração da palavra como discurso estabelece diálogos em seu
contexto de uso, devendo-se considerar os sujeitos envolvidos no ato da enunciação.
Posto isso, ao tratarmos da metáfora nos textos machadianos, mais
especificamente em suas crônicas, devemos considerar alguns pontos importantes:
- Tanto a linguagem poética quanto a linguagem cotidiana são marcadas por
palavras metafóricas, independentemente da funcionalidade que lhes é dada pelo
enunciador;
- A metáfora pode estar consolidada de tal modo na linguagem corrente que seu
sentido figurado não é mais percebido como tal, tornando-se literal pelo uso – o que os
teóricos identificam como a “metáfora morta” ou catacrese;
- Disso decorre que o sentido figurado, sem sofrer alteração semântica, torna-se
literal no uso corrente, perdendo seu sentido usual anterior ou mantendo concomitância
com ele;
Nesse sentido, não consideraremos todos os usos metafóricos presentes nos
textos machadianos, mas nos ateremos a um uso particular da metáfora como
procedimento de desconstrução de valores e sentidos que determinam sua semântica.
Considerando esses apontamentos anteriores – a recorrência da metáfora tanto no
discurso cotidiano quanto no discurso poético, bem como a presença de catacreses como
metáfora morta – pretendemos observar essa particularidade na produção machadiana, a
qual se utiliza de metáforas mortas (as catacreses) e opera nelas, seja em trechos do
texto ou no todo, um processo de desconstrução do sentido já consolidado pela
literalização da metáfora.
406

Dirce Cortês Riedel, em sua obra Metáfora: O Espelho de Machado de Assis, faz
uma análise minuciosa do uso das metáforas nos romances da segunda fase machadiana,
definindo o procedimento de uso como metáfora paródica257. Com base nos trabalhos
de Bakhtin, a autora afirma que esse parodiar produz um duplo descoroamento, isto é,
coloca o próprio mundo às avessas. Desse modo, entende os textos que analisa como
textos construídos pela recorrência da paródia, uma vez que o narrador equívoco
parodia ao mesmo tempo que negaceia o conflito das duas vozes, estabelecendo uma
ambivalência entre a paródia e a estilização. Ao analisar o romance Quincas Borba, a
autora mostra como os enredos e as personagens, na recorrência da paródia e da
estilização, se estabelecem a partir dos contrastes entre alto e baixo, grandeza e queda,
nobreza e abjeção, estabelecendo o tragicômico da situação carnavalesca com que o
narrador apresenta seus defeitos e vícios258.
A primeira metáfora paródica observada por Riedel é o nome dado à filosofia de
Quincas Borba: o Humanitismo. Referência ao Positivismo de Augusto Comte, essa
filosofia se propõe princípio das coisas na mesma chave do sistema filosófico genético
do positivismo como base da religião da Humanidade "com a qual o filósofo de
Montpellier completou o seu sistema" (RIEDEL, 1974, p. 4). É como paródia do
Positivismo, portanto, que Quincas Borba desenvolve a filosofia do Humanitismo:

— Humanitas, dizia ele, o princípio das coisas, não é outro


senão o mesmo homem repartido por todos os homens. Conta
três fases Humanitas: a estática, anterior a toda a criação; a
expansiva, começo das coisas; a dispersiva, aparecimento do
homem; e contará mais uma, a contrativa, absorção do homem e
das coisas. A expansão, iniciando o universo, sugeriu a
Humanitas o desejo de o gozar, e daí a dispersão, que não é mais
do que a multiplicação personificada da substância original.

257 Apesar de utilizarmos o mesmo conceito de Riedel para os modos de uso da metáfora em
Machado de Assis, preferimos o termo anti-metáfora a metáfora paródica, pois identificar esse uso
como metafórico não torna possível evidenciar seus efeitos de desvio provocados no ato da leitura,
uma vez que a metáfora não é propriamente desvio, mas redução de desvio para que o sentido que ela
evoca possa ser compreendido pelo leitor. Só haverá desvio se a palavra metafórica for tomada em
sentido literal. É justamente esse o procedimento que Machado utiliza para desarticular a metáfora
tornada como catacrese e, assim, acentuar não a similaridade, mas as diferenças entre o sentido
corrente da palavra e o sentido que o contexto lhe dá por meio da figurativização. (RICOEUR, 2005,
p. 236)
258 O que caracteriza os opostos que trocam de postos, no coroamento-descoroamento dos
personagens é o conceito espacial “alto/baixo”, conceito que constrói modelos culturais sem nenhum
conteúdo espacial, tomando, no sistema interno do texto, os sentidos de –
“coroamento/descoroamento”, “grandeza/humilhação”, “loucura/razão”, “não-senso/senso-comum”,
“impassibilidade/subserviência”, “domínio/desorientação”, “auto-domínio/insegurança”, “realidade
intangível/realidade tangível”, “delírio poético/realidade palpável”. RIEDEL, 1974, p. 26-27
407

Como me não aparecesse assaz clara esta exposição, Quincas


Borba desenvolveu-a de um modo profundo, fazendo notar as
grandes linhas do sistema. Explicou-me que, por um lado, o
Humanitismo ligava-se ao Bramanismo, a saber, na distribuição
dos homens pelas diferentes partes do corpo de Humanitas; mas
aquilo que na religião indiana tinha apenas uma estreita
significação teológica e política, era no Humanitismo a grande
lei do valor pessoal. Assim, descender do peito ou dos rins de
Humanitas, isto é, ser um forte, não era o mesmo que descender
dos cabelos ou da ponta do nariz. Daí a necessidade de cultivar e
temperar o músculo. Hércules ou não foi senão um símbolo
antecipado do Humanitismo. Neste ponto o Quincas Borba
ponderou que o paganismo poderia ter chegado à verdade, se
senão houvesse amesquinhado com a parte galante dos seus
mitos. Nada disso acontecerá com o Humanitismo. Nesta igreja
nova não há aventuras fáceis, nem quedas, nem tristezas, nem
alegrias pueris. O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a
reprodução um ritual. Como a vida é o maior benefício do
universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte (o
que é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a
transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a
hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente
há só uma desgraça: é não nascer (ASSIS, 2008a, p. 218-219)

Como se observa nesse trecho do capítulo CXVII do romance Memórias


Póstumas de Brás Cubas, ao definir as fases do princípio de humanitas, Quincas Borba
faz referência aos três Estados apresentados por Augusto Comte: a estática - anterior à
criação; a expansiva - começo das coisas; a dispersiva - aparecimento do homem.
Comte, no Curso de Filosofia Positiva de 1830 a 1842, apresenta a sua célebre lei dos
três estados, segundo a qual todas as ciências e o espírito humano desenvolvem-se
através de três fases distintas: a teológica, a metafísica e a positiva. Afirma o filósofo
francês em sua primeira lição:

Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência


humana em suas diversas esferas de atividade, desde seu
primeiro vôo mais simples até nossos dias, creio ter descoberto
uma grande lei fundamental, a que se sujeita por uma
necessidade invariável, e que me parece poder ser solidamente
estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo
conhecimento de nossa organização, quer na base de
verificações históricas resultantes dum exame atento do passado.
Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções
principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa
sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado
teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado
408

científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por


sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas
investigações, três métodos de filosofar, cujo caráter é
essencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto:
primeiro, o método teológico, em seguida, o método metafísico,
finalmente, o método positivo. Daí três sortes de filosofia, ou de
sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos,
que se excluem mutuamente: a primeira é o ponto de partida
necessário da inteligência humana; a terceira, seu estado fixo e
definitivo; a segunda, unicamente destinada a servir de
transição. (COMTE, 1978, pp. 3-4)

A paródia refere-se à repetição dessa definição teológica, mas se dá no momento


em que Quincas Borba a desdobra em uma quarta fase: e contará mais uma, a
contrativa, absorção do homem e das coisas. Ao defini-las, a personagem machadiana
as apresenta não mais como três ou quatro, mas como duas, isto é, sem tratar da
estática, define a expansiva como início do universo que sugere a Humanitas o desejo
de o gozar, para então definir a dispersiva como multiplicação personificada da
substância original. Desse modo, a metáfora paródica opera-se primeiro no
desdobramento da lei dos três estados, apresentando uma quarta e, em seguida, a
redução dessas quatro em duas: a expansiva e a dispersiva. Não sendo compreendido
por Brás Cubas, o filósofo Quincas Borba desenvolve as grandes linhas do sistema. Para
tanto, reproduz a concepção da sua filosofia tal qual Augusto Comte, definindo-a como
a religião. Augusto Comte afirma mais à frente das suas lições:

O dogma fundamental da religião universal consiste, portanto,


na existência constatada de uma ordem imutável a que estão
sujeitos os acontecimentos de todo gênero. Esta ordem é, ao
mesmo tempo, objetiva e subjetiva: por outras palavras, diz
igualmente respeito ao objeto contemplado e ao sujeito
contemplador. Leis físicas supõem, com efeito, leis lógicas, e
reciprocamente. Se o nosso entendimento não seguisse
espontaneamente regra alguma, não poderia ele nunca apreciar a
harmonia exterior. Sendo o mundo mais simples e mais
poderoso que o homem, a regularidade deste seria ainda menos
conciliável com a desordem daquele. Toda fé positiva assenta,
pois, nesta dupla harmonia entre o objeto e o sujeito.
Semelhante ordem apenas pode ser constatada, e nunca
explicada. Ela fornece, pelo contrário, a única fonte possível de
toda explicação razoável, que consiste sempre em fazer entrar
nas leis gerais cada evento particular, desde logo suscetível de
uma previsão sistemática, único fim característico da verdadeira
ciência. Por isso também a ordem universal foi durante muito
tempo desconhecida, enquanto prevaleceram as vontades
409

arbitrárias a que se teve primeiro que atribuir os principais


fenômenos de toda sorte. Mas uma experiência, amiúde
reiterada e nunca desmentida, fez enfim reconhecer essa ordem,
apesar das opiniões contrárias, em relação aos acontecimentos
mais simples, donde a mesma apreciação estendeu-se
gradualmente até os mais complexos. Foi só em nossos dias que
esta extensão penetrou em seu último domínio, representando
também os fenômenos mais eminentes da inteligência e da
sociabilidade como sujeitos sempre a leis invariáveis, que ainda
negam muitos espíritos cultivados. O positivismo resultou
diretamente desta descoberta final, que, completando nossa
longa iniciação científica, terminou necessariamente o regime
preliminar da razão humana. (pp. 143-144)

Se, como vimos nessa citação, a preocupação do filósofo francês é definir sua
filosofia como dogma que estabelece a ordem entre o objeto contemplado e o sujeito
contemplador e, para tanto, estabelece sua crítica ao protestantismo, religião dominante
do seu meio social, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba estabelece a
definição religiosa de sua filosofia, primeiro pela crítica a uma religião estranha ao
Brasil no século XIX. Isto é, se seu Humanitismo liga-se ao bramanismo - religião
indiana - ao estabelecer a concepção de castas no corpo social, a diferença com essa
religião dá-se pela individualização e pelo rebaixamento por meio da corporalidade. No
Bramanismo, a organização social repousa na divisão em castas hereditárias, assim
como também no hinduísmo, de forma que essa organização social é expressa pela
metáfora do corpo humano. No Humanitismo, o que o filósofo define como uma estreita
significação teológica e política do bramanismo, torna-se a grande lei do valor pessoal.
Desse modo, há um processo de literalização da metáfora "corpo" por meio da
individualização, de modo que a diferença não se dá mais por castas, mas pelas partes
do corpo de que cada pessoa descende: "Assim, descender do peito ou dos rins de
Humanitas, isto é, ser um forte, não era o mesmo que descender dos cabelos ou da ponta
do nariz. Daí a necessidade de cultivar e temperar o músculo." Desse modo, a metáfora
paródica dá-se por meio da literalização e do rebaixamento, e, portanto, da
desautomatização do corpo metafórico - termo muito em voga na filosofia e sociologia
da época - para um retorno do corpo biológico tratado como conceito filosófico. Essa
metáfora paródica evidenciada por Riedel produz o que chamamos de anti-metáfora,
isto é, o processo de desautomatização da catacrese (metáfora morta) que é enunciada
como metáfora viva, para então, retomar outros aspectos apagados do sentido figurativo
da metáfora. Em outras palavras, como observa Foucault em As Palavras e As Coisas
410

ao tratar das quatro similitudes no século XVI, a segunda forma da trama semântica, a
aemulatio, apresenta-se sob a forma de um simples reflexo e que, ao se transportar por
meio da metáfora, faz com que as duas figuras se apossem uma da outra, de modo que o
semelhante envolve o semelhante e cercam-se até se envolverem por uma duplicação
que tem o poder de prosseguir ao infinito, estabelecendo-se como círculos concêntricos,
refletidos e rivais259.
Ao discutir sobre o significante despótico em sua obra O Anti-Édipo, , Deleuze e
Guattari observam que, como representação recalcante, o significante sobrecodifica a
cadeia territorial por meio das famosas metáforas e metonímias e induz o significado à
sua constituição de máquina despótica sobrecodificante e desterritorializada, mantendo-
nos presos à questão "o que isso quer dizer?" de modo que todas as respostas se tornem
insuficientes ao remetê-la ao nível de um simples significado260. No exemplo de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, o Humanitismo é definido como corpo, porém,
diferentemente do bramanismo - e das ciências sociológicas e filosóficas do século XIX
- há um processo de literalização dessa metáfora. Como observa Susanne Lüdermann no
vocábulo corpo, organimo, no Dicionário de Metáforas Filosóficas:

Especialmente na doutrina jurídica do Estado do século XIX e


na respectiva sociologia, a metáfora foi reformulada num
conceito, de modo que, em muitos casos, não é possível
diferenciar precisamente uso metafórico e uso conceitual.
Particularmente no campo conceitual corpo-organismo e em seu
potencial de formação de modelo, evidencia-se que, de qualquer
forma, conceitos muitas vezes nada mais são que metáforas
institucionalizadas cuja metaforicidade não é mais percebida.
Como já Hans Blumenberg mostrou, metáforas podem adquirir

259 A emulação apresenta-se de início sob a forma de um simples reflexo, furtivo, longínquo;
percorre em silêncio os espaços do mundo. Mas a distância que ela transpõe não é anulada por sua
sutil metáfora; permanece aberta para a visibilidade. E, neste duelo, as duas figuras afrontadas se
apossam uma da outra. O semelhante envolve o semelhante, que, por sua vez, o cerca e, talvez, será
novamente envolvido por uma duplicação que tem o poder de prosseguir ao infinito. Os elos da
emulação não formam uma cadeia como os elementos da conveniência: mas, antes, círculos
concêntricos, refletidos e rivais. (FOUCAULT, 2002, p. 28-29)
260 O significante, terrível arcaísmo do déspota em que ainda se procura o túmulo vazio, o pai morto
e o mistério do nome. E talvez seja isto que anima hoje a cólera de certos linguistas contra Lacan,
assim como o entusiasmo dos adeptos: a força e a serenidade com que Lacan reconduz o significante à
sua origem, à sua verdadeira origem, a idade despótica, e monta uma máquina infernal que solda o
desejo à lei, porque refletindo bem, pensa ele, é certamente sob esta forma que o significanete convém
ao inconsciente e aí produz efeitos de significado. O significante como representação recalcante, e o
novo representado deslocado que ele induz, as famosas metáforas e metonímias - tudo isso constitui a
máquina despótica sobrecodificante e desterritorializada. O significante despótico tem por efeito
sobrecodificar a cadeia territorial. O significado é precisamente o efeito do significante (não o que ele
representa ou designa). (DELEUZE & GUATTARI, 2011, pp. 276-277)
411

o status de conceitos (portanto, ser "esquecidas" enquanto


metáforas) e perdê-lo novamente se as condições gerais
discursivas ou institucionais de seu uso se modificarem. Desse
modo, a designação do Estado e da sociedade como organismo
ou mecanismo é decifrada hoje, na maioria dos casos, facilmente
como metafórica, enquanto isso de modo algum se aplicava
ainda ao século XIX. (LÜDERMANN, 2012, p. 73)

Como vemos na definição apresentada por Lüdermann, a metáfora corpo com


sentido de agrupamento social funciona como conceito e, no século XIX, tem o seu
sentido automatizado como metáfora morta. Na definição do Humanitismo, seu sentido
emulado é desautomatizado e passa a funcionar em seu sentido literal sem com isso
perder a sua função de conceito. Como conceito literal, evidencia a lógica naturalista
das relações em que certos indivíduos ocupam o lugar privilegiado ao descenderem do
peito ou dos rins, enquanto outros descendem dos cabelos e da ponta do nariz, sendo a
sua única desgraça o não nascimento. Evidencia-se com isso o conceito de metáfora
paródica feito por Riedel e seu modo de funcionamento como anti-metáfora.
Em crônica do dia do 25 de julho de 1864 da série Ao Acaso, o cronista comenta
sobre a definição do que é ser um bom católico feita pelo jornal católico A Cruz. A
definição é feita por meio do acontecimento em Argel noticiado por esse jornal. Um
bispo de Argel administrou os últimos sacramentos na véspera da morte do general
Pélissier. Após discutir o modo simplório com que o jornal tenta mostrar o que é ser um
bom católico, o cronista, afirma ter descoberto qual a utilidade daquele jornal, visto
estar evidente a seus leitores que ele não serve aos interesses da religião:

Não me demoro em outras preciosidades da Cruz. Direi,


contudo, que já descobri a utilidade desta folha, e estou longe de
pensar com os que entendem que uma imprensa deste gênero
não serve aos interesses legítimos da religião.
Serve de muito.
O modo, porém, é engenhoso, e adivinha-se até no titulo da
gazeta. A Cruz é realmente cruz: serve para experimentar a fé
dos católicos; se, no fim de um mês de leitura, o católico não
tem perdido a fé em que vive, — está livre de tornar-se herege...
Isto é o que acontece nas outras partes, com os outros jornais do
mesmo gênero, quer se chamem o Universo, a Nação ou a Grita.
(ASSIS, 2008, p. 150)

Para revelar ao leitor a utilidade do jornal, o cronista apropria-se do nome - A


Cruz - e opera a desautomatização do símbolo, evidenciando o sentido de punição e
412

castigo para o qual servia esse objeto no tempo de Cristo. Conforme a análise de
Fernanda Maria Matos da Costa, em sua dissertação de mestrado A morte e o morrer em
Juiz de Fora, observa que a cruz como símbolo tem seu significado associado a
questões de natureza transcendental em diferentes sociedades, cuja apropriação do
cristianismo a enriquece como símbolo, condensando nela a história da salvação e a
paixão do Salvador como possibilidade de ressurreição.261 Vemos que, como símbolo
do cristianismo, a cruz substitui a analogia de proporção por uma analogia de
proporcionalidade que, como observa Deleuze e Guattari citado anteriormente, opera
um processo de sobrecodificação e desterritorialização, isto é, se a cruz em diferentes
culturas tem diferentes funções e significados, sua apropriação pelo cristianismo e seu
condicionamento como símbolo da fé cristã opera o despotismo do significante que
barra de antemão a significação como estoque transcendente e distribui a falta a todos os
elementos da cadeia. É essa barragem e controle pela falta que o cronista faz evidenciar
ao retornar o sentido literal da cruz não ao sacrifício para o qual seu símbolo funciona,
mas ao castigo, isto é, "se, no fim de um mês de leitura, o católico não tem perdido a fé
em que vive, — está livre de tornar-se herege..." Essa crítica evidencia a forma como a
matéria do jornal pretende apresentar o general como um bom católico segundo critérios
políticos e não religiosos. Em crônica do dia 7 de agosto do mesmo ano, o cronista volta
à mesma crítica, sobretudo pelo jornal seguinte ter apresentado o general como modelo
a ser seguido por outros generais:

A Cruz continua a ver no general Pélissier um modelo de


homem católico, coisa que eu não tenho a pretensão de
contestar, mas que me serve para dizer à Cruz que, na qualidade
de gazeta religiosa, ela não deve fazer seleções desta natureza.
Às razões já apresentadas, apresenta a Cruz mais uma, no
número que se distribuiu ontem.

261 A cruz , como símbolo, teve seu significado comumente associado a questões de natureza
transcendental, em diferentes sociedade. Exercendo variadas funções (síntese, medida, ponte, pólo do
mundo, entre outros, a cruz exerce um papel mediador entre o mundo terrestre imanente e o mundo
supratemporal transcendente, através de seus dois eixos cruzados. Dessa forma, o simbolismo da cruz
foi apropriado pelo cristianismo, enriquecendo e condensando nessa iagem a história da salvação e a
paixão do Salvador, significando também a possibilidade da ressurreíção. "A cruz simboliza o
Crucificado, o Cristo, o Salvador, o Verbo, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Ela é mais que
uma figura de Jesus, ela se identifica com sua história humana, com sua pessoa". Segundo um
dicionário de 1858, a cruz é "signal venerável" para os cristãos, porque nela padeceu Jesus Cristo; a
associação com a morte e o morrer é inevitável: "Instrumento formado de duas hasteas que se
atravessam ordinariamente em angullos recots, ou com pequena differença, e sobre o qual antigamente
se pregavam, ou atavam os criminosos, do modo que se vê nos crucifixo, para os fazer morrer; entre
os Christão é signal veneral, porque nella padeceu Jesus Christo. Era também insígnia do ídolo
Serapis, do Egypto" (MATOS, 2007, p. 82)
413

Tratava-se da guerra da Criméia; marcou-se o assalto de


Sebastopol para o dia 8 de setembro.
Houve quem objetasse que alguns anti-papistas podiam ver a
escolha do dia como um excesso de devoção; então o general
Pélissier insistiu dizendo que, exatamente por ser aquele o dia da
Virgem, é que se devia dar o assalto, confiando-se na proteção
da mãe de Deus, pensassem os anti-papistas o que lhes
parecesse. — E Sebastopol, diz a Cruz, foi tomada no dia 8 de
setembro!
Ora, como para mim é ponto de fé que a Virgem não intervém
por forma alguma nesta coisa iníqua, ridícula, bárbara e
grotesca, que se chama — “Guerra”, — acho que era este o caso
de dizer ao finado duque de Malakoff: — Fia-te na Virgem e
não corras!
A força e a perícia dos aliados é que venceram na batalha; o dia
não produziu a vitória, como a benção do papa não legitimou o
império mexicano (com perdão do Sr. Lopes Netto).
Depois de citar mais três atos praticados pelo finado duque — o
oferecimento de uma cruz tomada em Sebastopol a uma igreja, o
oferecimento dos seus serviços ao papa, e por último, ter
morrido abraçado com uma cruz do Santo Sepulcro, a Cruz
acrescenta:
“Ah! se os nossos homens de guerra pensassem como este
valente general, quanto seríamos felizes e o país conosco!”
Dispenso-me do trabalho de desviar dos nossos generais a
censura da Cruz. Esta insistência da Cruz faz-me lembrar
uma célebre discussão havida este ano no senado, em que
tomaram parte alguns ministros, — sobre se o governo
acreditava ou não na Providência, — o que, seja dito entre
parênteses, não fez crescer mais um bago de café, nem melhorou
as condições da liberdade individual. (pp. 157-158)

Esse modo de produção da anti-metáfora na crônica diferencia-se


significativamente do modo como a faz funcionar nos romances. Nas crônicas,
conforme veremos em outros exemplos, o cronista opera por meio desse procedimento a
desconstrução dos discursos dominantes como o exemplo anteriormente citado, o
discurso de um jornal católico, produzido pela Igreja Católica no Brasil Império. No
romance, por sua vez, a anti-metáfora não é um procedimento de desconstrução, mas
procedimento hiperbólico que leva o sentido figurado das palavras às suas últimas
consequências, evidenciando na enunciação o absurdo já presente nos significados
figurados dessas metáforas. No sentido dado à metáfora corpo por Quincas Borba não
se evidencia um processo de desconstrução do uso metafórico feito pela filosofia, mas
uma distorção da figura que coloca em cena elementos apagados por essa metáfora. Em
termos foucaldianos, há uma "superemulação" na metáfora corpo o que resulta na sua
414

desconstrução. Já nas crônicas a desconstrução se opera de modo proposital,


evidenciando aquilo que a metáfora busca apagar.
Outro exemplo de anti-metáfora operada pelo cronista em metáforas usadas pelo
jornal é a que encontramos na crônica de 1º de agosto de 1864 da mesma série. Nessa
crônica, o cronista faz referência a um jornal do Norte, cuja matéria traz o seguinte
título: Quis antes tiro que gaiola. Diante desse título, o cronista supõe referir-se a algum
caso de um passarinho que, fugido de uma gaiola, foi abatido pelo caçador seu dono:

Não há muito tempo, li numa folha do Norte uma notícia cujo


título era:
“Quis antes tiro que gaiola”.
Não tive tempo de refletir na elegância da frase; confrangeu-se-
me o coração com a idéia de que o noticiarista, a propósito de
algum passarinho, escapo da gaiola do caçador e morto com
uma carga de chumbo, se lembrasse de ser engraçado e fazer rir
os leitores.
Pobre passarinho! — dizia comigo — fizeste um esforço,
aproveitaste a porta aberta e abriste as asas no espaço, ao ar
livre, no reino infinito da liberdade em que nasceste. Teu dono
estimava-te, mas estimava-te como os tiranos estimam os povos
que dominam — ao saber que fugiras enraiveceu-se, espumou,
gritou, travou de uma arma carregada, correu ao campo; viu-te
sobre uma árvore, a cantar de alegria, disparou o tiro, e deitou-te
ao chão!
E como se isso já não bastasse, a única necrologia que tiveste foi
um chasco do noticiarista — quando, fugindo à gaiola, tu não
fizeste mais do que fazemos nós outros, aves de Platão.
Fiz outras considerações antes de continuar a ler a notícia; mas
não sei com que palavras refira o meu espanto, quando, em vez
da fuga e da morte de um pássaro, li a narração da fuga e da
morte de um homem!
Era um acusado que estava na cadeia, fazia-se o processo, e a
justiça não tinha ainda pronunciado a última palavra; o réu tinha,
pois, a presunção de inocência. Mas um dia achou facilidade de
fugir e fugiu.
Perseguido pelos soldados, o réu deitou a correr por montes e
vales; enfim, depois de alguma luta, um soldado, não sei se para
intimidar, não sei se para defender-se, disparou a espingarda, e o
fugitivo caiu fulminado.
Este fato, cheio de circunstâncias tão lúgubres, despertou o
espírito do noticiarista em questão. A cadeia chamou gaiola,
comparou o tiro do soldado ao tiro do caçador que vai distrair-se
ao mato; misturou e fez uma notícia. (p. 152)

O uso metafórico da palavra gaiola é literalizado por meio de uma narrativa


415

alegórica, na qual o cronista evidencia as afetações estilísticas utilizadas pela imprensa,


demonstrando que o discurso publicitário da imprensa é meio de atrair a atenção do
leitor para vender-lhe seu produto. A crítica dirigida à imprensa e seu discurso
publicitário sensacionalista exemplifica na crônica o modo como os discursos
parlamentares são afetados pelo uso figurativo, bem como esse uso evidencia o
esvaziamento funcional e propositivo dos discurso políticos do Império
Na crônica A + B, de 16 de setembro de 1886, por meio do diálogo entre as
personagens A e B, o cronista recupera a metáfora platônica maiêutica utilizada por
Sócrates em Teeteto, conforme podemos ver a seguir:

A - Vou dizer-lhe uma coisa incrível, mas verdadeira. Tenho


uma ideia...
B - Guarde-a, guarde-a... Uma ideia, amigo! É encafuá-la; é
mete-la nos cafundós do espírito.
A - Pois sim, mas não há inconveniente em confiá-la a um
amigo discreto; não é seguramente botá-la ao meio da rua. Você
sabe que as ideias dos homens são como os filhos das mulheres;
lá vem a hora... A minha completou agora mesmo os seus nove
minutos... Vamos, apare-a nos braços. (ASSIS, 1956, 25)

No diálogo socrático, o filósofo explica ao seu interlocutor como se dá o


conhecimento por meio da metaforização do parto, envolvendo desde a fecundação até
o ato de dar à luz. A metáfora opera-se a partir do momento em que Sócrates identifica a
ideia que Teeteto não consegue afastar de si como dores de parto:

Sócrates – São dores de parto, meu caro Teeteto. Não está vazio;
algo em tua alma deseja vir à luz.(...)
Sócrates – E nunca ouviste falar, meu gracejador, que eu sou
filho de uma parteira famosa e imponente, Fanerete?
Teeteto – Sim, já ouvi.
Sócrates – Então, já te contaram também que eu exerço essa
mesma arte? (PLATÃO, 2001, p. 45) 262

Ao propor o sentido figurado da palavra o filósofo insere na


metáfora criada os seguintes pressupostos: quando afirma para Teeteto que, assim como
sua mãe, ele também domina a arte do parto, o filósofo observa que, para dominar essa
arte, é necessário ser estéril. Fazendo então referência à deusa Ártemis, que recebeu a

262 Na edição bilingüe Grego-Italiano, organizado por Luca Antonelli de 1994, o termo em grego é
, traduzido para o italiano como arte maieutica; na tradução brasileira feita por Carlos
Alberto Nunes de 2001 – tradução que utilizamos neste trabalho – aparece como arte obstétrica.
416

missão de presidir aos partos por nunca ter dado à luz, tem por pressuposto sua
superioridade, decorrente de não precisar ser fecundado por outro sábio. Sócrates
considera também que o artista da seja dotado de conhecimento para
discernir se o fruto da concepção é bom ou ruim, de modo que possa "levar a bom termo
partos difíceis ou expulsar o produto da concepção quando não se acha muito
desenvolvido" (p. 46); também, é necessário que o parteiro seja bom casamenteiro,
podendo conhecer qual a mulher mais indicada para esse ou aquele varão, com objetivo
de terem filhos perfeitos; por fim, após estabelecer as semelhanças entre a arte da mãe e
a sua, o filósofo distancia-se dela, inferiorizando-a em relação a si, por ela tratar de
corpos e, por isso, não poder definir se o fruto da concepção é falso ou verdadeiro. A
arte socrática trata de almas e, portanto, não parteja mulheres, mas homens, podendo
definir se o fruto é falso ou verdadeiro. No trecho da crônica machadiana, como
veremos mais à frente, a referência à maiêutica socrática é direta. Contudo, se no texto
de Platão a metáfora é viva, em Machado e no século XIX esse sentido figurado
atribuído ao termo está tão consolidado que a palavra se tornou uma catacrese, isto é,
qualquer filósofo, intelectual ou político que se defrontassem com esse termo
imediatamente o associariam ao sentido filosófico socrático. Embora nos dicionários de
Língua Portuguesa de 1871 e de 1913 que pesquisamos não apareça o termo maiêutica,
no Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie ,de André Lalande, cuja
primeira edição se deu em 1902263, o termo é definido como:

Maïeutique, G (Platon, Théétète, 161 E); D.


Maieutik, E. Maieutics; I. Maieutica. Platon, dans le Théétète,
met en scène Socrate, dèclarant qu’en sa qualité de fils d’une
sage-femme et lui-même expert en accouchements
“ ”, il accouche les esprits
des pensées qu’ils contiennent sans le savoir (149 A et suiv.)
Platon le représente mettant en pratique cette méthode dans
plusieurs dialogues, notamment dans le Ménon. Ce terme est
resté usuel pour désigner, souvent avec un nuance d’ironie, l’art
que Socrate disait pratiquer. (LALANDE, 1960)

Desse modo, consideramos a possibilidade de esta metáfora ser no século XIX


uma catacrese e, portanto, o sentido figurado dela ser de conhecimento corrente. Na
crônica machadiana, ao fazer referência a esse termo, o cronista opera por meio do

263 A edição que consultamos é de 1960, isto é, a 8ª edição, revista pelos membros e correspondentes
da Sociedade Francesa de Filosofia
417

sentido literal da palavra, mas sem referi-la diretamente no texto. A referência ao


conceito socrático opera-se por meio do tratamento comparativo da ideia com a imagem
– as ideias dos homens são como os filhos das mulheres, lá vem a hora... a minha acaba
de completar seus nove minutos – seguido da metáfora em si. Para tanto, como o
cronista se depara com uma catacrese, ele recupera o sentido figurado por meio da
comparação, desconstruindo o sentido literal da metáfora morta - as ideias dos homens
são como os filhos das mulheres -, para em seguida constituir a catacrese em metáfora
propriamente por meio de uma outra metáfora próxima a essa - a minha acaba de
completar seus nove minutos. Desse modo, o leitor se depara com a desconstrução da
catacrese maiêutica, na medida em que o cronista, ao operar por meio da oposição
ideias dos homens/filhos das mulheres264, remonta o leitor à referência ao parto
aplicada por Sócrates. Essa desconstrução torna a palavra à sua condição de metáfora;
em seguida, o cronista a literaliza por meio de outra expressão metafórica – a minha
acaba de completar seus nove minutos – estabelecendo equivalências entre a sua
metáfora e a do filósofo grego. Dito de outro modo, a referência ao tempo do parto –
nove meses/nove minutos – parece ao leitor a própria tradução do termo  o
que provoca riso pelo rebaixamento do termo tão caro à filosofia ocidental 265. Contudo,
ao analisarmos, por meio das equivalências, os métodos que o filósofo grego propõe
para se ter o conhecimento e o modo como a personagem A tem sua ideia, deparamo-
nos com uma ruptura de sentido por meio do questionamento implícito, isto é,
deparamo-nos com a anti-metáfora machadiana.
Em crônica do dia 24 de dezembro de 1861 da série Comentários da Semana, o

264 É importante observar que a oposição só é percebida, se considerarmos o contexto social das
relações entre homens e mulheres no Brasil do século XIX. Em setembro de 1791, Olympe de Gouges
lança sua “Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne” como forma de desafiar a conduta
injusta da autoridade masculina e da lógica patriarcal expressa nas “Declarations des droits de
l’homme et du citoyen”. Em 1790, na Inglaterra, Mary Wollstonecraft publicou seu livro A
Vindication of the Rights of woman, onde estão lançadas as bases do feminismo moderno. Em 1832,
Nísia Floresta publicou sua tradução livre da obra de Mary, com o título Direito das mulheres e a
injustiça dos homens, cuja terceira edição foi lançada no Rio de Janeiro, em 1839 (a segunda foi em
Porto Alegre em 1833). Além de Nísia Floresta, diversas outras mulheres participavam ativamente da
vida política e cultural na capital do Império. Obviamente, isso não tornava a sociedade carioca e
brasileira menos machista, muito pelo contrário. Conforme mostram diversas estudiosas, como
Constância Lima Duarte, biógrafa de Nísia Floresta, eram recorrentes os ataques que essas mulheres
sofriam na imprensa carioca por conta de seu ativismo feminista, mas, apesar disso, tiveram
significativa influência em vários escritores, como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e
Machado de Assis.
265 Vale observar que, apesar da diferença estabelecida pelo filósofo entre a sua arte e a da parteira –
o filósofo trata de homens e a parteira de mulheres –, tal distinção não pode ser compreendida como
desigualdade entre os sexos no contexto de Platão por ser a condição inferior atribuída à mulher em
relação ao homem um elemento dado como norma entre os gregos.
418

cronista retoma a discussão feita na crônica anterior do dia 16 de dezembro, sobre o ato
do ministro do Império que, por meio do decreto nº 2.858 de 7 de dezembro de 1861,
regulava a concessão de condecorações das ordens honoríficas do Império. Na crônica
do dia 16, o cronista afirma que tal ato foi feito como tentativa do Ministro em reunir
retalhos e fazer seu manto de glória. Na crônica do dia 24 de dezembro, opera a anti-
metáfora da maiêutica ao afirmar que o decreto de concessão às condecorações era um
parto moral, deixando o ministro em convalescença, mas que o pequeno passava bem:
"O Sr. Ministro do Império, esse, depois do longo e laborioso trabalho da parturição
moral, relativamente ao regulamento das condecorações, ficou abatido; a crise foi
tremenda; as conseqüências não podiam ser menos. Acha-se em convalescença; o
pequeno está bom." (ASSIS, 2008d, p. 135)
Ricoeur, baseando-se em Derrida, problematiza a tensão entre o conceito
filosófico e a metáfora morta. Essa tensão tende a se diluir na medida em que a metáfora
alcança a sua eficácia para, uma vez tornada catacrese, estabelecer um movimento de
ascendência que constitui a formação do conceito.266 Desse modo, a superação do
termo elevada à condição de conceito dá-se pelo que o autor identifica como usura da
metáfora. Esse movimento da metáfora, que passa do figurado para seu apagamento
conotativo é um movimento de idealização. O autor observa que esse movimento de
idealização – no exemplo citado acima, o movimento da palavra que deixa de denotar a
prática da mãe de Sócrates até tornar-se o conceito filosófico socrático – "põe em ação
todas as oposições características da metafísica: natureza/espírito, natureza/história,
natureza/liberdade, assim como sensível/espiritual, sensível/inteligível,
sensível/sentido." (p. 441)
A manutenção do termo maiêutica como procedimento para se obter
conhecimento, no século XIX, tempo em que a participação da mulher nas ciências, na
política, na educação, no comércio e em diversas outras áreas era mais comum em
relação à cultura grega, reforça a misoginia e, portanto, a desigualdade entre os sexos.

266 Uma simples inspeção do discurso segundo sua intenção explícita, uma simples interpretação pelo
jogo da pergunta e da resposta não bastam mais. À desconstrução heideggeriana deve doravante
acrescentar-se a genealogia nietzschiana, a psicanálise freudiana, a crítica marxista da ideologia, isto
é, as armas da hermenêutica da suspeita. Assim armada, a crítica está à altura de desmascarar a
conjunção impensada da metafísica dissimulada e da metáfora usada. Mas a eficácia da metáfora
morta só toma seu sentido completo quando se estabelece a equação entre a usura que afeta a
metáfora movimento de ascendência que constitui a formação do conceito. e o rn a da metáfora se
dissimula na "superação" do conceito. Por “superação”, J. Derrida traduz com muita felicidade a
Aufhebung hegeliana. Desde então, reviver a metáfora é desmascarar o conceito. (RICOEUR, p. 2005,
p. 440)
419

Além disso, o termo determina que o conhecimento só acontece por meio de


transmissão racional, isto é, estabelece uma relação hierárquica entre o sábio e o néscio,
justificando as desigualdades econômicas e sociais na sociedade escravocrata do século
XIX. Considerando esses elementos, vemos que o cronista, ao referir-se à metáfora
socrática, o faz por meio da inversão. A personagem A não é fecundada por nenhum
sábio, como acontece com Teeteto (o qual é fecundado por Teodoro), muito menos
necessita de um parteiro para, por meio da fricção socrática, isto é, por meio de
perguntas, dar à luz ao seu conhecimento. Conforme vemos no texto, o cronista produz
uma anti-metáfora ao operar a literalização da metáfora, resultando na ironia do
pressuposto socrático que distingue hierarquicamente sábio e néscio, homem e mulher.
Conforme observa Riedel, no uso desses procedimentos Machado escarnece da escritura
de um mundo que se supõe estável; para isso, confirma as metáforas como metáforas
para, depois, esvaziar suas significações, e, com isso, deslocar os valores fixos numa
literatura de significado267.
Em uma outra crônica da série “A + B”, a personagem opera o mesmo
procedimento com a metáfora platônica . No diálogo platônico República,
Sócrates e Glauco dialogam sobre como se poderia considerar uma cidade perfeita. Por
meio de seu método maiêutico, Sócrates afirma que a  ideal é a que esteja
conformada com o sentido de justiça pautada nas categorias de divisão da alma humana,
isto é, a cidade perfeita é aquela em que os cidadãos respeitam a condição natural de
cada um dividida em três virtudes: a sabedoria, a ambição e o interesse. A sabedoria é a
virtude correspondente ao filósofo; a ambição é a virtude correspondente ao guerreiro e,
o interesse, a virtude correspondente ao comerciante:

Sócrates — E também não é verdade que nas almas existe este


elemento que governa ou um dos outros dois, conforme o caso?
Glauco — Sim, é verdade.
Sócrates — Por isso é que dizíamos que há três classes
principais de homens: o filósofo, o ambicioso e o interesseiro.
(PLATÃO, 2000, p. 199)

Desse modo, o homem que deve governar a pólis é o filósofo, pois, enquanto o
guerreiro defende a cidade e o comerciante a sustenta, o filósofo é quem pode dar bom

267 Machado escarnece, pelo humor, confirmando-a e esvaziando-a, a escritura de um mundo que se
supõe estável, que se acomoda em valores fixos, numa literatura de significado, que privilegia o
sentido consignado no dicionário como sentido primeiro - a denotação. (RIEDEL, 1974, p. 29)
420

termo a ela, por ser um homem dotado de justiça, virtude própria do conhecimento. A
república, isto é, a coisa (res) pública deve estar sob o cuidado de homens sábios:

Sócrates – Logo, é graças à classe menos numerosa e à menor


porção de si mesma e ao conhecimento que nela existe, a saber:
a classe dos presidentes e governantes, que no seu todo é sábia a
cidade constituída segundo a natureza. Tudo indica que essa
classe, naturalmente pouco numerosa, é que detém o único
conhecimento digno de ser denominado sabedoria. (PLATÃO,
2000, 199)

No Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, Lalande dá duas


definições à palavra république: uma delas é em sentido contemporâneo; a outra, de
sentido etimológico:

République. Sens primitif: État, res publica. “...Une diligente


attention aux moindres besoins de la république est une partie
essentielle au bon gouvernement, trop négligée à la vérité dans
le derniers temps par les rois ou par les ministres...” La
Bruyère, Caractères, ch. X: “Du souverain ou de la république”
– Par métaphore, grand corps social: “On distingue la
république des lettres en plusieurs classes: les savants, qu’on
appelle aussi érudits, etc.”Duclos, Considérations sur les
Moeurs, ch. XI.
Ce sens a vieilli, et ne s’emploie plus guère que sous cette forme
métaphorique ou en style d’apparat. Cependant, il reste
consacré comme traduction titre de Platon, ., L.
Respublica. (LALANDE, 1960)

Oriunda do latim respublica, isto é, coisa pública, a palavra é usada como


tradução do termo grego , usado por Platão em sua obra com o mesmo título.
Conforme observa Lalande, o uso platônico tem sentido metafórico enquanto corpo
social, forma de organização dos cidadãos de uma determinada pólis para cuidado do
bem público. Desse modo, a metáfora platônica é citada indiretamente na crônica do dia
16 de setembro e diretamente na crônica de 24 de outubro, como veremos mais à frente.
Na primeira crônica, a personagem A opera a desconstrução da metáfora república pela
sua inversão. A ideia da personagem A que acabara de completar seus nove minutos
tratava da comparação estabelecida entre os desfalques acontecidos tanto no English
Bank, quanto na Tesouraria de Pernambuco e o modo como são compostas as cabeças
dos governantes brasileiros. Os desfalques resultaram de maços com uma nota graúda
por cima e muitas notas miúdas por baixo, sendo o valor real muito inferior ao que era
421

anunciado. Do mesmo modo, eram os governantes, sejam ministros, deputados ou


senadores do Império Brasileiro, uma nota graúda por fora e outras miúdas por dentro,
resumidamente, a cidade brasileira era governada por contos de réis de caçoada. Se a
metáfora república no texto de Platão se sustenta pela relação hierárquica determinada
pelo mérito – o homem sábio governa, o guerreiro protege e o trabalhador produz – na
crônica de Machado, a desconstrução inverte o valor dos homens que governam a
“república” no Brasil. Se em Platão a essência do homem sábio é condição para ser
governante da pólis, em Machado é a aparência, como jogo de imagens que não
corresponde à realidade.
Na crônica do dia 24 de outubro de 1886, o cronista, por meio da personagem A,
desconstrói a estrutura hierárquica que sustenta a metáfora platônica república:

A – Não, homem de Deus, suprimia os postos; nem coronéis


nem generais. Eu faria decretar que todos os filhos de república
fossem cabeleireiros. Cabeleireiro, como se sabe, é o mais
pacato dos cidadãos de um Estado. Outros que o solapem, que
deitem fogo às instituições; o cabeleireiro compõe as cabeças, e,
quando muito, abre uma espécie de estrada da liberdade, que
alegra a vista, sem alteração da ordem... (ASSIS, 1956, p. 48)

Se na crônica anterior a desconstrução opera-se por meio da inversão de valores,


nesta é operada também por meio da inversão, mas não de valores definidores de
mérito, mas como inversão hierárquica de poder. Para Sócrates, o comerciante, homem
interesseiro, deve responder pelo trabalho da cidade e, por isso, desempenha função
inferior aos outros dois, pois sua virtude é de caráter inferior às outras virtudes. Na
crônica, a personagem A sugere uma república em que seus filhos fossem todos
cabeleireiros, isto é, comerciantes. Contudo, a virtude desses cabeleireiros tende a ser
superior às outras, pois enquanto os outros solapam as instituições em busca de títulos e
postos, o cabeleireiro, sendo o mais pacato dos cidadãos, compõe as cabeças, alegrando
a vista sem alterar a ordem. Para isso, o cronista opera a anti-metáfora da palavra
república socrática por meio da inversão dos valores e hierarquias pressupostas nessa
metáfora platônica. Além disso, há também um processo de inversão da maiêutica
socrática, pois, sendo a cabeça o lugar onde se gestam as ideias, o filósofo preocupa-se
com seu interior para garantir que possa produzir bons frutos. Nessa crônica, a
preocupação do cabeleireiro não é com o interior, mas com o exterior: "o cabeleireiro
compõe as cabeças, e, quando muito, abre uma espécie de estrada da liberdade, que
422

alegra a vista, sem alteração da ordem."


Em crônica do dia 30 de junho de 1878 da série Notas Semanais, o cronista
comenta sobre o caso do Capitão Porfírio, ex-delegado de Macaúbas que, conforme nota
de John Gledson e Lúcia Granja, junto com alguns seguidores conservadores atacaram a
Vila de Macaúbas, libertando os presos e abrindo fogo contra os chefes liberais, o que
resultou em mortes e ferimentos. O cronista ironiza as formas de notícias feitas pela
imprensa ao brincar, por meio da desautomatização da metáfora, com os títulos que
noticiavam o caso:

Lastimei as desgraças de Chique-Chique: não me atrevo a


lastimar a 2ª edição das de Macaúbas. Começo a suspeitar que a
luta travada nessas duas vilas é uma simples metáfora de
estudantes de retórica. É sabido que, em geral, quando um
correspondente escreve estas solenes palavras: "a província está
ardendo," - quer dizer simplesmente que foram demitidos dois
subdelegados; e quando diz: "o povo dorme tranqüilo à sombra
da paz" anuncia, de um modo poético, a nomeação de outros
dois.
A "tribuna parlamentar", que é uma simples poltrona de mogno,
deve abrir-nos os olhos. A metáfora é um abscesso nas
organizações políticas; convém rasgá-lo ou resolvê-lo, e
voltarmos à frase sadia e nua: pão, pão; queijo, queijo. (ASSIS,
2008e, p. 137)

Na primeira das crônicas Bons Dias! do dia 5 de abril de 1888, o cronista


apresenta-se produzindo outra anti-metáfora:

Mas aqui está o que é; eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado


de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora,
descri do ofício. A única explicação dos relógios era serem
iguaizinhos, sem discrepância; desde que discrepam, fica-se sem
saber nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do
meu barbeiro. (...) Foi por essas e outras que descri do ofício; e,
na alternativa de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo
alvitre; é mais fácil e vexa menos. (ASSIS, 1956, p. 55)

A metáfora relojoeiro, como referência ao Deus cristão, tem origem em Isaac


Newton, que compara o Universo a um grande relógio e afirma que o mesmo não
poderia existir sem um grande relojoeiro. Como deísta, Newton acreditava que o
universo funcionava sozinho, mas a partir da criação de um ser – Deus – que comparou
a um relojoeiro. Voltaire, também deísta, faz uso da mesma metáfora em uma frase
423

célebre: “Este mundo me espanta e não posso imaginar que este relógio exista e não
tenha relojoeiro”. Em 1802, Wiliam Paley define o universo como uma grande
arquitetura que tem por trás de si o seu arquiteto, sendo esse arquiteto um grande
relojoeiro. A metáfora relojoeiro associada a Deus pelos iluministas deístas tornou-se
comum no século XIX, literalizando-se, embora esse sentido estabelecesse
concomitância com a definição semântica de quem exerce a profissão de relojoeiro.
É importante observar que, para esses iluministas, a metáfora relojoeiro
pressupõe uma ordem lógica no universo e uma concordância com a ideia de um
criador, embora divergissem dos teístas, por não acreditarem que esse criador
controlasse a criação. A ideia pressuposta nessa metáfora morta e, portanto, consolidada
por seu uso corrente, é a de que o Universo funciona numa lógica coerente e causal,
como também a afirmação da existência de um ser perfeito que tenha dado organicidade
e funcionalidade à vida.
Na crônica, ao se apresentar como um relojoeiro, o cronista indiretamente se
equipara a Deus – assim como Brás Cubas se equipara a Moisés. Contudo, a anti-
metáfora opera-se pelo destronamento desse Deus Relojoeiro; para os iluministas
citados anteriormente, a comparação de Deus ao relojoeiro deve-se ao poder de criar o
relógio – o Universo – que funciona segundo uma lógica coerente; na crônica
machadiana, o relojoeiro exerce o ofício pela crença nessa lógica; contudo, sente-se
frustrado por descobrir que há discrepância entre os relógios, podendo estar certo o dele,
como o do barbeiro. O cronista, ao referir a metáfora iluminista que remete ao Deus
cristão, opera a anti-metáfora, que torna a catacrese relojoeiro à sua condição de
metáfora para, a partir de outras características, desconstruir o sentido metafórico
cristalizado nessa catacrese. Embora a palavra relojoeiro seja utilizada em sentido
metafórico, a ação desse relojoeiro é literalizada, pois sua descrença no ofício deve-se
ao fato de não poder controlá-lo conforme pressupõe a metáfora iluminista. Aqui vemos
que a norma é restabelecida às avessas, isto é, o código não é negado, apenas os valores
se permutam de modo opositivo, permitindo, conforme observa Riedel, que a
dissonância centre a leitura das oposições machadianas, de modo que, ao deslocar os
postos por seus opostos, produza uma descentralização como oposições fixas.
Essa oposição é percebida na sequência do texto onde, mais à frente, o relojoeiro
descrente tem como alternativa ir à fava ou tornar-se escritor, isto é, cronista.
Novamente, o cronista recupera outro termo metafórico também associado ao tempo,
mas que remete ao deus pagão Chronos. Há, nesse processo desconstrucionista, um
424

movimento ironicamente teológico que parte do Deus cristão pela referência da


metáfora relojoeiro e segue para o deus greco-romano, citado pela metáfora crônica
(embora textualmente apareça como escritor e não como cronista). A partir da
referência tanto a Chronos (deus do tempo) como ao Deus cristão (associado ao tempo
pela metáfora relojoeiro), sugere outro movimento desconstrucionista da ideia
positivista que entende a história da humanidade como um tempo sequencial e evolutivo
que, obviamente, definia a sociedade capitalista cristã como mais evoluída que a
sociedade pagã greco-romana. No texto, a desconstrução temporal que resulta do
cansaço do escritor dá-se por essa inversão de ordem em que deixa de ser relojoeiro
(metáfora do Deus cristão) para ser cronista (metáfora do deus pagão). A concretização
dessa desconstrução da história positivista é percebida por meio das metáforas tomadas
como metonímias das duas culturas, isto é, a metáfora relojoeiro não se limita à noção
do Deus cristão, mas como parte de um todo que é a cultura cristã capitalista; do mesmo
modo, a metáfora cronista que, a partir do deus Chronos remete-nos à cultura greco-
romana. A partir disso, o movimento do texto é de desconstrução da crença cientificista
do positivismo que acredita em uma história da humanidade sequencial e
evolucionista268.
Conforme sugere John Gledson, o tema que norteia as crônicas Bons Dias! é o
processo da Abolição, que a Monarquia já tentara efetivar em outros momentos e que
em 1888, com a saída do Ministério de Cotegipe e a nomeação do Senador João
Alfredo, do Partido Conservador, foi executada no dia 13 de maio desse ano. Assim, na
crônica do dia 11 de maio, o cronista aborda o tema da escravidão por meio dos
discursos iluministas que tanto a justificam quanto a condenam com os mesmo
argumentos: liberdade e propriedade. Na iminência da aprovação da lei abolicionista,
inicia-se um processo de alforria em massa como forma de pressão da lei da abolição.
Desse modo, o cronista explica como se processam os atos de alforria como forma de
forçar a lei da abolição:

Não é novidade para ninguém, que os escravos fugidos, em


Campos, eram alugados. Em Ouro Preto fez-se a memsa coisa,
mas por um modo mais particular. Estavam ali muitos escravos
fugidos. Escravos, isto é, indivíduos que, pela legislação em

268 Essas inversões caracterizam uma literatura carnavalizada, penetrada do sentimento das
mudanças e das conversões e dos contrastes carnavalescos na sucessão de coroamentos –
descoroamentos, e da lógica carnavalesca na ascensão por impostura e demagogia. RIEDEL, 1974,
p. 42
425

vigor, eram obrigados a servir a uma pessoa; e fugidos, isto é,


que se haviam subtraído ao poder do senhor, contra as
disposições legais. (ASSIS, 1956, p. 80, grifo nosso)

Suspendendo a explicação de como se dava o processo das alforrias, o cronista


dá à palavra escravo e fugido um sentido figurado segundo uma concepção jurídica,
esvaziando o sentido moral dos termos. A palavra escravo é um termo eslavo que
provavelmente entrou nas línguas ocidentais modernas a partir do inglês slave. É, no
contexto do século XIX, uma catacrese, cujo primeiro sentido já está completamente
perdido; da mesma forma, o verbo adjetivado fugido origina-se do latim – fugere – que
designa literalmente escapar, colocar-se a salvo. Ambas as palavras, se considerarmos
seu sentido etimológico, são metáforas que se tornaram catacrese. O cronista permite-se
ressignificá-las segundo o conceito iluminista e liberal das ciências de sua época. Para
isso, esvazia o sentido moral das palavras e aplica-lhes um sentido puramente jurídico.
Contudo, a aplicação conceitual não corresponde à realidade vivenciada pelo leitor,
criando incongruência entre a imagem a que a palavra remete e o sentido dado pelo
discurso na crônica. Essa incongruência entre imagem e conceito opera a anti-metáfora
por meio da ironia. Nesse mesmo sentido, afirma Riedel, a realização intelectual de
Machado se manifesta no plano analógico, cuja crueldade característica do humor
atravessa a logicidade racionalizante de sua época como forma de denúncia que "enterra
com exéquias dignas do “décor” da época" (RIEDEL, 1974, p. 33)
Ainda, referindo-se ao processo das alforrias, o cronista apresenta na crônica do
dia 19 de maio do mesmo ano o método utilizado para garantir a liberdade do escravo
por meio da alforria como forma de pressionar a aprovação da lei abolicionista. A
crônica do dia 19 de maio é como um todo a anti-metáfora da palavra “alforria”.
Conforme encontramos no Grande Diccionario Portuguez ou Thesouro da Língua
Portugueza do Dr. Frei Domingos Vieira, publicado pelos editores Ernesto Chardron e
Bartholomeu H. de Moraes em 1871, a origem etimológica da palavra alforria é o árabe
al horriâh. Conforme Vieira:

Alforria: s. f. (do árabe al horriâh; do verbo barra, libertar, dar


carta de liberdade) Liberdade, remissão, resgate concedido ao
escravo pelo senhor. Loc. Carta de alforria, documento que o
escravo apresentava como prova de liberdade concedida pelo
seu senhor. Hoje emprega-se no sentido figurado – dar carta de
alforria, emancipar, dar plena liberdade a algum menor, para
fazer o que bem quiser. (VIEIRA, 1871)
426

O sentido da palavra em árabe é o de liberdade e, conforme observa Vieira, a


palavra foi aportuguesada em uso figurado para designar a carta que o senhor dá ao seu
escravo, garantindo-lhe a liberdade. Como podemos observar, o fato de, logo no início
da explicação do significado da palavra, Vieira já associá-lo ao ato de libertação por
meio de carta dada ao escravo pelo seu senhor, significa que o sentido já está associado
de modo que a metáfora se tornara catacrese. Moraes e Silva, em Diccionario de Lingua
Portuguesa, publicado pela Officinas da S. A. Filho – Tipographia Fluminense, em
1913, no Rio de Janeiro, dá o mesmo significado que Vieira à palavra alforria,
permitindo-nos afirmar que essa palavra emprestada do árabe é, na época em que
Machado publica as crônicas Bons Dias!, uma catacrese.
A crônica do dia 19 de maio é uma narrativa em que o personagem , diante da
inevitável lei da Abolição, seis dias antes, resolvera dar a carta de alforria ao seu
escravo Pancrácio:

Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta
lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-
feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote
que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-
lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e
quinhentos, e dei um jantar. Neste jantar, a que os meus amigos
deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni
umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três
(anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
(ASSIS, 1956, p. 83)

Conforme verificamos na narrativa, o cronista está muito mais preocupado com


o efeito da ação do que com o sentido que o leva a dar a carta de alforria. Certamente,
como confirmamos nos dicionários, tanto no do português Vieira, quanto no do
brasileiro Moraes e Silva, a palavra alforria é apropriada no texto machadiano em
sentido figurado; contudo, a metáfora alforria pressupõe uma ação benevolente do
senhor ao escravo. Conforme observa Monique Canto-Sperber em seu Dicionário de
Ética e Filosofia Moral, a escravidão do século XIX está particularmente vinculada à
expansão territorial da Europa e, embora fosse combatida no continente europeu, era
justificada nos países colonizados por meio da delimitação geográfica e racial. A autora
observa que:
427

A diferença entre a Antigüidade e a modernidade é essencial. De


um ponto de vista moral, a escravidão repousa agora sobre bases
precárias. No mundo, os países do norte-oeste da Europa
asseguram o desenvolvimento da escravidão estabelecendo uma
clivagem geográfica. Na Europa, a ideia de que a escravidão é
moralmente degradante e historicamente anacrônica se fortalece
no momento mesmo em que a escravidão se desenvolve no
estrangeiro. A escravidão não se baseia mais no princípio
comumente aceito de universalidade e de centralismo, mas na
diferença e no afastamento geoclimático (SPERBER, 2003, p.
557).

Desse modo, a relação de superioridade entre senhor e escravo era mais que
moral, era geopolítica pela clivagem geográfica e racial determinada entre colonizador
(Europa) e colonizado (Brasil). Conforme a autora observa em outra parte de sua obra, a
escravidão tinha também um valor moral religioso associado à resignação e submissão
que impunha sobre o escravizado uma carga positiva para torná-lo escravo fiel
(SPERBER, 556). Nessa perspectiva da moral cristã, o senhor, ao dar ao escravo a carta
de alforria, transformava o direito em favor, positivando com a moral cristã a sua
imagem de bom senhor. A metáfora alforria invoca não apenas o ato em si, mas o
contexto de valores que determinam as posturas dos senhores escravocratas diante da
sociedade. Nesse sentido, a ação do cronista é invertida, pois, ao invés de sua ação ser
determinada pelos valores da moral cristã que o tornariam um homem bom, ele se
movimenta para essa imagem, mas, ao fazê-lo de modo calculado, mostra a real
intenção que determina a ação de dar a carta de alforria ao jovem Pancrácio. Ao fazer
isso, o cronista mostra ao leitor a metáfora pelo seu inverso ou avesso, produzindo a
anti-metáfora da palavra alforria:

O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que


mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de
abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava
um escravo, ato que comoveu a toda gente que dele teve notícia:
que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar,
(simples suposição) é então professor de filosofia no Rio das
Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente
políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se
antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam
os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes
de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu. (ASSIS,
1956, pp. 86-87)
428

Longe de simbolizar uma ação determinada por um sentimento cristão, a anti-


metáfora mostra que a ação, diante do inevitável da Abolição, é motivada pelo interesse
de ele não sair perdendo, ou se perder, perder muito pouco, de modo que possa alcançar
algum proveito. Mais que isso, a carta, longe de garantir a liberdade de Pancrácio,
apenas dá outro nome – trabalhador livre – para o mesmo papel social que o rapaz
continuará exercendo:

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no


dia seguinte, por me não escovar as botas; efeitos da liberdade.
Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural,
não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe
dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados
naturais, quase divinos. (ASSIS, 1956, pp. 85-86 )

Evidencia-se nesse discurso do cronista a falácia biográfica que Riedel ressalta


na narrativa de Dom Casmurro, isto é, aqui, como lá, faz coincidir o centro afetivo do
texto com o centro afetivo de uma suposta existência empírica. Esse querer ser
deputado a partir da falácia da ação que é puro discurso, não se confirmando na prática,
revela o cronista tal como ele se cria no texto e não como tenha existido antes do
discurso. É o discurso que organiza o real em vários níveis: o primeiro nível, o do leitor,
o segundo nível, o das personagens organizadas pelo primeiro nível, fazendo a realidade
existir como fato linguístico. Conforme propõe Riedel, a literatura tem a realidade não
por trás de si, mas diante de si, pois o ato estético, o romance lá, a crônica aqui, "é um
fato social, uma vez que ele explica aquilo que o explica" (RIEDEL, 1974, p. 78).
Na crônica do dia 20-21 de maio de 1888, o cronista parodia o primeiro capítulo
do Evangelho de São João, para relatar como se deu todo o processo abolicionista. Se a
crônica anterior produz a anti-metáfora da palavra alforria, esta pode ser entendida
como a anti-metáfora da palavra abolição. Conforme afirma Vieira, a palavra abolição,
originada da língua celta – abolissa –, significa extinção, anulação, supressão,
acabamento. Certamente, no sentido utilizado no século XIX como uma medida legal
do Império para extinção da escravatura no Brasil, a palavra passa a ter um uso
metafórico. Em sentido metafórico, a palavra pressupõe a ação benévola do Estado
Imperial que, por meio da assinatura da lei de 13 de maio, extinguira e, com isso,
apagara essa vergonha nacional denunciada por diversos políticos e poetas, como Castro
Alves, em o “Navio Negreiro”. A metáfora abolição tem como função perpetuar na
História do Brasil a imagem positiva do Imperador D. Pedro II e de sua filha Regente
429

Princesa Isabel, como a libertadora dos escravos. Dessa forma, apaga as diversas
tensões dos processos políticos que determinaram a lei de 13 de maio, tornando a
história do país um belo conto de fadas. Contudo, na crônica do dia 20-21, Machado,
por meio da paródia do Evangelho de São João, opera a desconstrução da metáfora
Abolição. Agora o faz não pela aplicação literal do sentido etimológico da palavra, mas
por meio do paralelo paródico estabelecido entre o seu contexto e o contexto do
evangelista, transformando a anti-metáfora numa alegoria, como anti-metáfora
continuada:

1. No princípio era Cotegipe, e Cotegipe estava com a Regente


e Cotegipe era a Regente.
2. Nele estava a vida, com ele viviam a Câmara e o Senado.
3. Houve então um homem de São Paulo, chamado Antônio
Prado, o qual veio por testemunha do que tinha de ser
enviado no ano seguinte. (ASSIS, 1997, p. 65)

Nesse texto, a paródia contextualiza o debate e o ato da Abolição na perspectiva


da religiosidade cristã, na qual a escravidão de negros é identificada como a escravidão
do pecado promulgado pela moral cristã. Desse modo, o ato Constitucional é tratado
como a intervenção do próprio Deus que, para libertar a humanidade da escravidão do
pecado, deu seu próprio filho para morrer na cruz. Na paródia, Deus é a Regente e o
ministério Cotegipe; o filho é, ao mesmo tempo, João Alfredo, em cujo ministério será
promulgada a lei da abolição, e o trono, que é sacrificado por amor dos escravos:

5. E, ouvindo isto, saíram alguns sacerdotes e levitas e


perguntaram-lhe: Quem é tu?
6. És tu, Rio Branco? E ele respondeu: Não o sou. És tu
profeta? E ele respondeu: Não. Disseram-lhe então: Quem és
tu logo, para que possamos dar resposta aos chefes que nos
enviaram?
7. Disse-lhes: Eu sou a voz do que clama no deserto. Endireitai
o caminho do poder, porque aí vem o João Alfredo.
8. Estas coisas passaram-se no Senado, da banda de além do
Campo da Aclamação, esquina do Areal.
9. No dia seguinte, viu Antônio Prado a João Alfredo, que
vinha para ele, depois de guardar o chapéu no cabide dos
senadores, e disse: Eis aqui o que há de tirar os escravos do
mundo. Este é o mesmo de quem eu disse: Depois de mim
virá um homem que me será preferido, porque era antes de
mim. (ASSIS, 1997, pp. 65-66)
430

Conforme vemos nesse trecho, a anti-metáfora operada por Machado com a


palavra abolição, diferentemente das anteriores, resulta do deslocamento de sentido do
campo jurídico para o campo teológico. Neste exemplo, o cronista não literaliza o
sentido da palavra, como vemos nos exemplos citados anteriormente, mas opera esse
deslocamento por meio das similitudes que a narrativa bíblica permite operar como
ironia. Desse modo, podemos reafirmar com Davidson que a compreensão das figuras
de linguagem, em especial a metáfora, neste trabalho, só é possível a partir dos usos que
nos permitem estabelecer o contexto em que determinada palavra é aplicada, a
movimentação de sentido operada no ato locucionário, bem como o ato ilocucionário
que determina, a partir de seus efeitos de sentido, o ato perlocucionário do texto. A
semantização não se opera de modo casual nesses textos, pois essas anti-metáforas não
são ditadas apenas pelo caráter específico das relações internas do texto artístico, isto é,
"metáforas conclusivas enfeixam um encadeamento lógico de outras metáforas , que são
conclusões parciais. O real imaginário simula uma organização lógica que, por sua vez,
organiza, racionalmente, o real “real” (RIEDEL, 1974, p. 30).
431

CAPÍTULO 5 - ESPACIALIDADE E ARQUEOLOGIA NAS


CRÔNICAS

Velha imaginação, onde vais tu, pelos caminhos do sonho?


Deixa os camelos e a sua carga, deixa o Egito, fecha as asas,
abre os olhos, desce; esta é a Rua do Ouvidor, onde não se mata
José nem chefia; mas unicamente o tempo, esse bom e mau
amigo, que não tem pai, nem mãe, nem irmãos, e domina todo
este mundo, desde antes de Jacó até Deus sabe quando. Para
crônica, é pouco; mas para matar o tempo, sobra.
Machado de Assis, A Semana, 12 de março de 1893, p. 968

I - Temporalidades cronológicas e linguísticas no espessamento da


escrita cronística.

Os procedimentos intertextuais e dialógicos, sendo inerentes como técnicas


composicionais das crônicas, colocam-nos diante de um questionamento fundamental
para a compreensão estrutural da produção machadiana: o tempo. O cronista, além de
tratar do tempo como tema, desenvolve também, por meio da intertextualidade, do
dialogismo e da polifonia, o cruzamento temporal entre os temas atuais lidos a partir de
referências intertextuais de textos anteriores ao tema tratado. Por outras palavras, para
compreender determinados temas, ele faz referência a textos de autores como Platão,
Dante Alighieri, Shakespeare entre tantos outros, de modo que o tempo aparece tanto
como tema, quanto como procedimento intertextual que avaliam e confrontam com
temas presentes tirados dos jornais de sua época. Portanto, a questão que se coloca é:
que tempo é esse em que passado, presente e futuro se intercalam por meio da polifonia
do texto como método de releitura das matérias abordadas pelo cronista? Se
considerarmos, a partir de Jean-Claude Coquet, citado por Bertrand, que o tempo
cronológico se subordina ao tempo linguístico, podemos considerar que a crônica como
texto produzido, corresponde ao tempo linguístico do presente que opera em si os
tempos cronológicos por meio dos elementos estéticos e semânticos, desconstruindo a
ilusão referencial de tempo própria dos textos monológicos. Conforme o semioticista,
"esse presente é a presença no mundo que somente o ato de enunciação torna possível
reconstruir pelo imaginário gramatical em que a coerência e homogeneidade do tempo
cronológico é apenas aparente" (BERTRAND, 2003, p. 104).
432

Dirce Cortes Riedel, em sua obra Tempo e Metáfora de Machado de Assis269,


observa citando Aldous Huxley que essa noção de tempo objetivo, tempo cronológico, é
uma invenção recente, fruto do industrialismo ocidental e de modo tão entranhado que
nos horrorizamos com a "falta de pontualidade" das culturas orientais 270. Com base nas
discussões filosóficas sobre o tempo, principalmente em Kant, Bergson e nas teorias
literárias de Hans Meyerhoff e A. Mendilow, Riedel afirma que a arbitrariedade na
construção dos romances machadianos em primeira pessoa resulta de uma estrutura em
dois planos - o plano do narrador e o plano da narrativa - os quais, por não serem
narrados à maneira épica, fazem imperar a descontinuidade desse tempo interior 271, de
modo que, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a interrupção da sequência tem
como efeito tornar os fatos narrados em contos soltos intercalados pela intervenção do
defunto autor que precisa analisar e explicar ao leitor sua própria técnica, conforme
podemos ver no capítulo XXII:

269 Os importantes trabalhos de Dirce Cortes Riedel sobre as metáforas machadianas (aos quais
faremos referência no capítulo sobre as anti-metáforas em Machado de Assis) e sobre o tempo no
romance machadiano foram reunidos pela EDUERJ com esse título em 2008. Conforme a editora
afirma na contracapa da obra, essa compilação das duas obras em uma é resultado de duas
homenagens: "Por um lado, homenageia o Ano do Centenário de Machado de Assis, instituído pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Por outro, a memória daquela que foi formadora de
gerações, professora emérita da universidade, participante ativa do processo do ensino universitário de
literatura no Brasil - Dirce Cortes Riedel. O presente volume reúne os dois livros que Dirce Cortes
Riedel escreveu sobre o escritor brasileiro por quem nutria maior paixão. Com base nessa paixão, ela
construiu sua inigualável persona de educadora. Ao escrever, ensina a ler o incontornável Machado de
Assis.Republicados em ordem cronológica inversa, O tempo no romance machadiano (1959) e
Metáfora: o espelho de Machado de Assis (1974) confirmam que podem ser de interesse para o
estudioso de Machado e da Literatura Brasileira. Baseado em tese defendida em 1957, O tempo no
romance machadiano nos resgata uma Dirce de vanguarda. Já Metáfora: o espelho de Machado de
Assis nos revive a Dirce plenamente mestra, dona de uma metodologia própria de análise literária".
(EDUERJ, 2008) Cabe ainda observar que uma das grandes contribuições de Riedel para a crítica
machadiana foi a introdução das teorias de Bakhtin como instrumental teórico de análise das obras
machadianas.
270 Para Aldous Huxley (O tempo e a máquina), o tempo objetivo, como o conhecemos, é invenção
muito recente. O moderno sentido de tempo é quase tão novo quanto os Estados Unidos, um
subproduto do industrialismo, um tirano. A consciência que temos do tempo atingiu tal intensidade,
que nos horrorizamos com a falta de pontualidade do Oriente, com a resignação com que um hindu
aceita as horas vazias. Nossa noção do tempo, considerada uma coleção de minutos, dos quais cada
um é preenchido por alguma ocupação, é totalmente estranha ao oriental. Num mundo pré-industrial,
não há a consciência da existência dos minutos. E, examinando o paradoxo a que chegamos, conclui
Huxley que, possuindo a mais viva consciência das mínimas parcelas constitutivas do tempo, perdeu o
homem industrializado a antiga consciência do tempo nas suas mais profundas divisões. Conhecemos
o tempo artificial das máquinas, mas perdemos a consciência do tempo natural, do majestoso tempo
cósmico, medido pelo sol e pela lua. (RIEDEL, 2008, p. 166)
271 Na construção dos três romances estudados, a arbitrariedade na disposição dos capítulos,
inarticulados, muitas vezes, é causada pela estrutura em dois planos, e não vertical. Há o plano do
narrador e o plano da narrativa, mas, como aquele é parte desta, a descontinuidade do seu tempo
interior, da sua durée é que impera. As cenas nunca são narradas de fora, à maneira épica, mas
parecem representadas à maneira dramática, como continuam vivas no narrador (p. 216)
433

Jumento de uma figa, cortaste-me o fio às reflexões. Já agora


não digo o que pensei dali até Lisboa, nem o que fiz em Lisboa,
na península e em outros lugares da Europa, da velha Europa,
que nesse tempo parecia remoçar. Não, não direi que assisti às
alvoradas do romantismo, que também eu fui fazer poesia
efetiva no regaço da Itália; não direi coisa nenhuma.Teria de
escrever um diário de viagem e não umas memórias, como estas
são, nas quais só entra a substância da vida. (ASSIS, 2008a, p.
91)

Na mesma linha argumentativa de Riedel sobre a fragmentação estrutural do


romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, Affonso Romano de Sant'Anna afirma
que Machado de Assis é o responsável por trabalhar insistentemente no espaço do
discurso a desarticulação da linearidade e da cronologia, embaralhando espaços
fantásticos do delírio e da loucura por meio da invenção do espaço branco e a
reinvenção do espaço preto das letras de modo que rearticula na decomposição do antes
e do depois o tempo da vida e da morte de modo aleatório. Conforme o crítico, por meio
dessas desarticulações e rearticulações temporais, Machado contesta a ideologia literária
e a ideologia da comunidade; essa contestação é definida por Sant'Anna como narrativa
opaca em três níveis: o da narração, o da personagem e o da linguagem, identificando
essa forma de produção ficcional como narrativa contraideológica dentro da série
literária272. Essa produção narrativa contraideológica nas obras machadianas
observada por Sant'Anna enuncia dois movimentos que Alfredo Bosi, em sua obra
Machado de Assis: O Enigma do Olhar, identifica como aquém das reações agônicas
presentes nas obras de Raul Pompeia, Euclides da Cunha e Cruz e Souza, isto é, aquém
devido ao fato de evidenciar nas obras machadianas uma indiferença à modernização
ideológica a prometer mais do que poderia cumprir; e como que além dessas reações

272 A tarefa de verificação da opacidade de uma obra, conquanto possa ser orientada empírica e
intuitivamente, é de difícil execução. Há que conceber a obra como um todo divisível em alguns
níveis que se articulam. Esses níveis podem variar com a argúcia do analista. Geralmente a dividimos
nos níveis de narração/personagem/lingua(gem). O estudo desses níveis indicará a complexidade das
obras, complexidade que aqui aparece como sinônimo de espessamento da escrita. Poder-se-ia dizer
que aqui é que se realiza melhor o espaço simbólico das heterotopias a que se referia Foucault. Em
nossa literatura parece ter sido Machado de Assis, na ficção, quem primeiro trabalhou insistentemente
no espaço do simbólico, privilegiando antes os signos que a realidade empírica. Tome-se o exemplo
máximo em Memórias póstumas de Brás Cubas: a invenção do espaço em branco e a reinvenção do
espaço preto das letras, a desarticulação da linearidade e da cronologia embaralhando espaços
fantásticos do delírio e da loucura, a decomposição da causalidade do antes e do depois rearticulando
o tempo da vida e da morte aleatoriamente; tudo aí mostra que Machado, no nível da narração,
principalmente, trabalhou sobre a opacidade dentro e fora da série literária. Por isso é que os críticos
nunca conseguiram colocá-lo numa única escola. Seus vínculos eram com um universo simbólico
bastante individualizado por meio do qual ele contestava a ideologia literária e a ideologia da
comunidade. (SANT'ANNA, 2012, p. 66)
434

agônicas, isto é, ao lermos as obras de Machado de Assis, somos obrigados a uma


releitura crítica do conceito fetichizado de modernidade do século XX como um século
liberto das injustiças, violências e imposturas que marcaram o século XIX273.
Leonardo Affonso de Miranda Pereira, em sua introdução às Histórias de Quinze
Dias, observa esse procedimento composicional de avaliação dos temas presentes pelo
cronista, estabelecendo relações com o passado. Conforme o crítico, se essas avaliações,
em termos literários, relacionavam-se por meio de reflexões e questionamentos de
caráter atemporal, "estavam também profundamente emaranhadas ao tempo e ao lugar
nos quais se situava o escritor naquele momento" (PEREIRA, 2009, p. 24). É o que
podemos observar na crônica de 15 de julho de 1876 da série História de Quinze Dias,
que trata do banquete oferecido pela diplomacia dos Estados Unidos no Rio de Janeiro
em comemoração ao centenário de Independência desse país:

"Também eu fui ao banquete com que os americanos residentes


nesta corte, tendo à frente seu ilustrado ministro, festejaram o
centenário da liberdade. E confesso que tive inveja aos
brasileiros que em 1922 devem fazer igual festa em New York
ou Washington. Se pudesse estar nela!" (ASSIS, 2009a, p. 72)

Estabelecendo a similaridade temática da festa do centenário de Independência


dos Estados Unidos da América em 1876 e da festa do centenário do Brasil em 1922, o
cronista joga com a espacialidade e a temporalidade, marcando-as com os verbos no
pretérito perfeito do indicativo - tive - e no pretérito imperfeito do subjuntivo - pudesse -
subordinados ao presente do indicativo - confesso - determinados pela adjunto adverbial
de lugar: em New York ou Washington, de modo que a impossibilidade de poder estar
presente é marcada pela conjunção subordinativa condicional "se" que pode se referir
tanto à impossibilidade temporal - em 1922 - quanto à impossibilidade espacial - em
New York ou Washington. Na pena do cronista, não há fronteiras entre passado,
presente, e futuro. O eu que se constitui na crônica não vê limites que impeçam a
projeção do tempo cronológico, por meio do linguístico, para afetar-se e, assim, afetar

273 A razão do alienista Dr. Simão Bacamarte é fantasia de obcecado que tem poderes para exercê-la.
A filosofia de Quincas Borba é caricatura de razões darwinianas e jargão positivista. Descrendo da
evolução linear e satirizando os prodígios das novas ciências, o universalismo moral de Machado
situa-se às vezes aquém das reações agônicas de Pompéia, Euclides e Cruz e Souza, mas às vezes
parece ir além delas. Aquém: é a sua indiferença à modernização ideológica que já então prometia
mais do que cumpriria; daí o efeito de contrapelo conservador que produziu em alguns leitores a sua
reserva ou isenção em face das utopias do tempo. Mas além: o século que passou e que nos separa de
Machado nos obriga a rever criticamente o próprio conceito fetichizado de modernidade como fatal
liberação das amarras da injustiça, da violência e da impostura. (BOSI, 1999, pp. 157-158)
435

seu leitor de acontecimentos futuros percebidos a partir dos acontecimentos passados.


Há, portanto, nesse jogo da produção discursiva o que Sant'Anna, citando Foucault,
chama de espessamento da escrita como espaço simbólico das heterotopias.
Cabe observar que Sant'Anna comparando as obras de Machado de Assis às de
Oswald de Andrade - especificamente Memórias Sentimentais de João Miramar e
Serafim Ponte Grande, observa que Oswald levou adiante esse espessamento da escrita,
atingindo níveis de desarticulação da narrativa que Machado não atingiu 274. E o que é
esse espessamento da escrita? Conforme Sant'Anna, é fazer com que o espaço literário
não seja apenas mais um espaço linguístico ao lado de outros tipos de linguagem
(jornal, teatro, direito, medicina, etc.), mas um cruzamento de todas as outras
linguagens: a fala da classe média, cartas de negócios, linguagem jornalística, cartões
postais, linguagem jurídica etc, no qual estabelece uma crítica de linguagem dentro e
fora da série literária. Referindo-se ao Guimarães Rosa de Tutaméia, ele observa que o
escritor mineiro dilatou as propostas de Machado e Oswald, na medida em que levou
esse espessamento da escrita ao limite da ficção e não ficção como fusão entre ficção e
crítica (p. 67). Obviamente, Sant'Anna propõe uma leitura do Machado contista e,
principalmente, romancista, não levando em consideração esse texto considerado
"menor" e híbrido chamado crônica. Contudo, conforme nossa proposta de leitura do
romancista consagrado pela crítica machadiana a partir da Pena do Cronista, podemos
perceber que Machado, mesmo nos romances levou esse espessamento para além da
escrita como produto literário.
A escrita em Machado é esse lugar de desarticulação do tempo cronometrado
produtor de ilusão referencial. Contudo, o modo de produção no romance e nas crônicas
dá-se de formas distintas, conforme já temos observado: a crônica é o cruzamento
dessas diferentes linguagens que são desarticuladas e rearticuladas por meio dos
procedimentos técnicos e estéticos, os quais analisamos detidamente nos capítulos
anteriores. Por meio das anti-metáforas, do discurso polêmico, do boato, do
rebaixamento, da polifonia, da intertextualidade, das funções de comunicação, de

274 Oswald de Andrade, em Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, leva
mais adiante o espessamento da escrita. Ao assinar o prefácio de Memórias sentimentais de João
Miramar por meio do personagem Machado Penumbra mostra a natureza parodística de sua escrita e
incrementa a complexidade dentro de nosso espaço ficcional. Oswald leva adiante o espessamento da
escrita. Investe contra a ideologia social e literária de modo mais agressivo. Atinge outros níveis de
desarticulação da narrativa que Machado não atingiu: instaura o texto como produto
(des)compromissado com a prosa e a poesia. Não se trata de retomar o romance poético de Alencar. A
experiência, reflexo dos procedimentos futuristas europeus, traz o texto para um novo espaço de
libertação. O texto se produz alheio às convenções do que se chama gênero literário (p. 66)
436

regência, testemunhal e narrativa, o cronista opera os deslocamentos de sentido


produzidos pelos discursos oficiais produtores de verdades, desestabilizando-os e
evidenciando-os como discursos de poder. Afinal, para o comentarista, a monotonia
sequencial do tempo cronológico pertence ao correr do dia a dia próprio da história e,
desse modo, trata-se apenas de uma ilusão referencial produzida por esses discursos
oficiais. A crônica, ao deslocar esse tempo cronológico que se produz como ilusão
referencial para o tempo como produto linguístico, evidencia os modos de produção do
tempo cronológico operados pelo tempo linguístico, como podemos ver na crônica de
15 de agosto de 1876 da mesma série: "Estou convencido de que esse amigo não foi às
corridas. Não foi ou não vai? Na hora em que escrevo – não vai; naquela em que o leitor
pode ler estas linhas – não foi. Eu não sei combinar estes tempos da crônica" (p. 84). O
jogo temporal entre o presente e o passado no verbo ir evidencia a produção discursiva
como escrita e como leitura, dissociando-as e rompendo com a ilusão referencial de
temporalidade produzida pelo discurso. O mesmo procedimento pode ser identificado
na crônica de 26 de janeiro de 1862 da série Comentários da Semana. Para poder passar
do assunto da morte de dois príncipes a outro mais recente - a portaria do Presidente da
província do Rio de Janeiro - o cronista, por meio da função de regência, anuncia a sua
não submissão ao tempo cronológico dos fatos: "Transtornarei a ordem cronológica dos
fatos e tomarei agora um que, de fresco, acaba de ser comunicado à curiosidade
pública." (ASSIS, 2008d, p. 163); ou na crônica de 1º de novembro de 1876, ao
comentar a notícia do Jornal do Commercio sobre a invasão de uma nuvem de
gafanhotos275, o cronista inicia a crônica comentando a notícia por meio da referência
ao mito hebraico da libertação do povo de Israel do Egito e estabelece a diferenciação
temporal entre o ato de escrita e o ato de leitura, rompendo com a ilusão referencial de
temporalidade produzido pela escrita:

Guardadas as devidas proporções, e sem quebra do preciso


respeito, eu não sei se leio uma página das Escrituras, se uma
notícia de qualquer dos nossos jornais. Tirem-lhe os nomes do
Egito e Moisés, e fica o que estamos vendo:
um vento oriental que trouxe gafanhotos, que os espalhou por
todas as terras do país, cuja erva comeram e comerão.

275 Conforme nota de rodapé feita por Leonardo Affonso de Miranda Pereira, o Rio de Janeiro era
invadido, na ocasião, por diversas nuvens de gafanhotos - como aquela noticiada no Jornal do
Commercio do dia 10 de outubro de 1876 sob o título "Ainda gafanhotos": "Ontem, pouco depois do
meio-dia, nas proximidades da estação de Entre Rios foi avistada uma nunvem de gafanhotos
seguindo o rumo norte". Nota de rodapé nº 2 p. 126
437

Nunca pensei que eles se lembravam de vir até esta corte.


Primeiramente, há pouca erva entre nós; depois, não há pecados.
Esta cidade se não é o seio de Abraão, é o paraíso de Maomé.
Sem culpas nem erva, não atino com o que podia trazer até cá os
gafanhotos.
Dizem ainda as sagradas letras que, logo depois de retirados os
gafanhotos, cobriram o Egito grossas trevas durante três dias,
trevas tais que nenhum homem podia ver ao outro.
Aplicando el cuento há nisto uma alusão eleitoral. Os
gafanhotos foram-se; aí chegam os três dias de completa
escuridão. Ninguém vê nada; todos se esbarram uns com os
outros; nuvens de candidatos cobrem o céu. No momento em
que o leitor me lê começa a soprar um vento que dissipará as
nuvens, e nos restituirá a luz; por enquanto, há só trevas.
(ASSIS, 2009a, p. 123-124: grifo nosso)

Ou ainda na crônica de 15 de maio de 1877 da mesma série, quando ao tratar


sobre as atrações artísticas programadas para o mês de maio, estabelece esse jogo
temporal linguístico na reprodução da notícia sobre a chegada da companhia teatral de
Furtado Coelho:

Este mês de maio, que é o mês das flores, vai ser o mês das
artes, que são as flores do espírito. Bonita idéia! Não é sublime,
mas tem a vantagem de ser chocha. Dou-a de graça, ao primeiro
poeta aux abois.
Mas, dizia eu, que vai ser o mês das artes, como já é o mês dos
malasartes; haja vista o roubo ao general Osório. Furtado
Coelho, à hora em que escrevo, está a chegar; talvez haja
chegado à hora em que o leitor verá estas linhas. (p. 197; grifo
nosso)

Ao tratar do conceito de tempo na obra de Santo Agostinho, Ricoeur observa o


trânsito entre passado, presente e futuro a ser buscado na multiplicidade e no
dilaceramento do presente, o que, na leitura de Santo Agostinho, demarca o conceito de
triplo presente276. Por meio da definição do tempo como triplo presente, isto é, um
presente das coisas futuras, um presente das coisas passadas e um presente das coisas
presentes, os quais estabelecem entre si uma sequência de tensões e distensões, esse
triplo presente transforma-se em uma aporia que se resolve, na medida em que o que se

276 Para dar esse último passo, Agostinho retoma uma asserção anterior (16, 21 e 21,27), que não só
ficou em suspenso como apareceu engolida pelo assalto cético, qual seja, a de que é quando o tempo
passa que o medimos; não o futuro que não é, não o passado que já não é, nem o presente que não tem
extensão, mas "os tempos que passam". É na própria passagem, no trânsito, que se deve buscar
concomitantemente a multiplicidade do presente e seu dilaceramento (RICOEUR, 2010, volume 1, p.
32).
438

mede não é o passado nem o futuro, mas expectativas e lembranças como produtos do
presente277. Ao demarcar na linguagem a noção de temporalidade, isto é, por meio do
uso de advérbios, locuções adverbiais e as conjugações verbais 278, a análise de Ricoeur
confirma a afirmativa de Coquet de que o tempo cronológico se subordina ao tempo
linguístico.
O cronista, ao tratar de temas do presente e evidenciar o modo como a noção do
tempo cronológico se naturaliza nos discursos, promovendo a ilusão de sequencialidade
temporal em seus contemporâneos, segundo uma perspectiva positivista, opera em seus
textos a desconstrução dessas sequências, fazendo com que, por meio do dialogismo e
da intertextualidade, passado, presente e futuro se conjuguem e, por meio dessas
conjunções, desconstruam a ilusão de sequencialidade temporal.
Na crônica de 28 de agosto de 1878 da série Notas Semanais, ao tratar sobre as
diversas atividades culturais ocorrendo na corte imperial e, entre elas, algumas
atividades esportivas, como o Skating-rink e a corrida de gâmbias279, lê essas atividades
a partir da intertextualidade, fazendo referência a fatos históricos e mitos da cultura
grega antiga:

Renascem a Grécia e uma parte dos jogos olímpicos. Alvoroça-


me a ideia de que vou encontrar Hesíodo ou Péricles, aí na
primeira esquina; que a mulher que passa, às tardes, pela minha
rua, guiando um carro descoberto, é uma hetaira de Mileto,
trazida por um mercador de Naxos; que o que chamamos
Alcazar é simplesmente o jardim dos peripatéticos. Verdade seja
que as nossas ridículas calças... (ASSIS, 2008e, p. 229)

De modo que passado e presente se fundem e se ressignificam no texto por meio


das referências intertextuais: a mulher que passa pode ser uma cortesã de Mileto, a

277 A aporia do tempo longo ou breve está resolvida? Está, se admitirmos: 1) que o que medimos não
são as coisas futuras ou passadas, mas sua expectativa e sua lembrança; 2) que estas são afecções que
possuem uma espacialidade mensurável de um gênero único; 3) que essas afecções são como o avesso
da atividade do espírito que avança e avança; finalmente 4) que essa ação é ela mesma tripla e por isso
se distende na medida em que se estende(p. 38-39).
278 Ao dizer que não há um tempo futuro, um tempo passado e um tempo presente, mas um triplo
presente, um presente das coisas futuras, um presente das coisas passadas e um presente das coisas
presentes, Agostinho nos pôs na pista de uma investigação da estrutura temporal mais primitiva da
ação. É fácil reescrever cada uma das três estruturas temporais da ação nos termos do triplo presente.
Presente do futuro? Daqui por diante, ou seja, a partir de agora, comprometo-me a fazer isso amanhã.
Presente do passado? Tenho agora a intenção de fazer isso por que acabei de pensar que... Presente do
presente? Agora faço isso porque agora posso fazê-lo: o presente afetivo do fazer atesta o presente
potencial da capacidade de fazer e se constitui em presente do presente. (p. 106)
279 Segundo o Novo Dicionário de Língua Portuguesa, de António Cândido de Figueiredo, 1913,
Gâmbia significa pessoa muito alta. Há também um ditado popular em Portugal dar às gâmbias que
significa por-se a correr.
439

possibilidade de encontrar pela rua o poeta grego Hesíodo e o político ateniense


Péricles ou, ainda, o teatro Alcazar Lírico, famoso pelas suas inúmeras apresentações na
corte imperial, ser o lugar em que Platão dava aulas de filosofia. A junção temporal –
passado e presente – e a espacial – Grécia antiga e Brasil – permitem a desconstrução da
sequencialidade temporal por meio da linguagem na medida em que o cronista, por
meio da palavra jogo, pode intercalar culturalmente contextos que parecem distantes. O
efeito é manifesto no final do texto, em que a vestimenta moderna é ridicularizada. Por
meio dessa ridicularização, coloca-se em questionamento tanto a ideia de
sequencialidade como também de evolução social defendida pelo pensamento
positivista. Desse modo, o cronista opera o espessamento da escrita ao tornar as
crônicas esse lugar de cruzamento das diferentes linguagens onde se chega aos limites
da ficção e da não ficção como fusão que Sant'Anna chama de ficção crítica 280.
Ao iniciar a crônica de 18 de agosto de 1878, o cronista trata da notícia de um
delegado de polícia – capitão Porfírio – da cidade de Macaúbas, o qual perdera o
emprego devido à mudança do gabinete ministerial. Conforme a nota de Granja e
Gledson, o capitão Porfírio era conservador e fora demitido após a escolha do presidente
do Conselho Liberal pelo Imperador. Conforme as notícias nos jornais que serão
tratadas na crônica, o capitão, que até então cumpria a função de manter a ordem na
cidade, passou a provocar atentados em companhia de um grupo que liderava. Para
tratar dessa matéria, o cronista utiliza a intertextualidade ao estabelecer uma distensão
entre o caso de Macaúbas e as peças de Shakespeare e o livro de Jó:

A vida humana oferece singulares mutações à vista. Não há


imaginação de dramaturgo nem arte de maquinista que as faça
mais súbitas nem mais complexas. O grande mestre é exímio
nesses saltos violentos; passa de uma tenda na Síria à galera de
Pompeu, e do jardim de Capuleto à cela do pio frade. Não é ela
o asno ordeiro e regrado, que obedece às posturas e ao chicote; é
o cavalo de Jó, impetuoso como o vento. Pois nem Shakespeare
era capaz de imaginar coisa análoga ao caso de Macaúbas. (p.
211)

Diferentemente do trecho anterior, neste, o cronista estabelece uma

280 Cabe insistir que Sant'Anna atribui essa produção da ficção crítica a Guimarães Rosa, o qual
dilata as propostas de Machado e de Oswald, levando além o espessamento da escrita identificada
nesses dois autores. Contudo, insistimos novamente que a leitura de Sant'Anna está restrita aos contos
e romances de Machado de Assis; lendo a produção machadiana a partir das crônicas, diremos que
Guimarães Rosa produz uma ficção crítica diferente da de Machado, mas não além como o quer
Sant'Anna.
440

diferenciação entre o caso de Macaúbas e as personagens de Shakespeare, subordinando


o tempo cronológico ao tempo linguístico. Ao fazer isso, estabelece a verossimilhança
entre eles e ficcionaliza o fato relatado pelos jornais. Explica o caso do ex-delegado por
meio da alegoria da notícia: "Tem-se visto naufrágios de virtudes; mas o caso do
capitão Porfírio é diferente de um naufrágio; é o pescador que passa a fazer ofício de
tubarão." Conforme observa Ricoeur ao tratar sobre a intriga em Aristóteles, a tradução
de um texto a partir de outro contexto é o modo como se opera a alegoria, isto é, ao
ligar o procedimento da alegorização à kátharsis, torna a aplicação literária uma réplica
mais aproximada da apreensão analogizante do passado na dialética do vis-à-vis e da
dívida281, estabelecendo a comunicabilidade pela qual a obra ensina.282

II A crônica como produção arqueológica.

Na dissertação de mestrado já citada – Memórias do Cotidiano e saberes


sujeitados: análise das crônicas A + B de Machado de Assis -, ao tratar sobre os saberes
cotidianos operados pela crônica, observamos a utilização de outros saberes como
procedimento similar ao que Foucault define, em Arqueologia do Saber, como “método
arqueológico”283, isto é, uma análise de discursos dispersos articulados por meio de

281 A kátharsis constitui portanto um momento distinto da aísthesis, concebida como pura
receptividade, ou seja, o momento de comunicabilidade da compreensão percepcionante. A aísthesis
libera o leitor do cotidiano, a kátharsis o torna livre para novas avaliações da realidade que tomarão
forma na releitura. Há um efeito ainda mais sutil ligado à kátharsis: por meio da clarificação que ela
exerce, a kátharsis enceta um processo de transposição, não só afetiva mas também cognitiva, que
pode ser relacionada com a allegorese, cuja história remonta à exegese cristã e pagã. Há alegorização
sempre que nos pomos a "traduzir o sentido de um texto de seu primeiro contexto para um outro
contexto, o que euqivale a dizer: dar-lhe uma nova significação que extrapola o horizonte do sentido
delimitado pela intencionalidade do texto no seu contexto originário". É finalmente essa capacidade
de alegorização, ligada à kátharsis, que faz da aplicação literária a réplica mais aproximada da
apreensão analogizante do passado na dialetica do vis-à-vis e da dívida (RICOEUR, 2010, volume 3,
p. 304).
282 Podemos acrescentar agora que é no ato de recontar, mais do que no de contar, que essa função
estrutural do fechamento pode ser discernida. A partir do momento em que uma história é bastante
conhecida - e é esse o caso da maioria das narrativas tradicionais ou populares, bem como o das
crônicas nacionais que relatam os acontecimentos fundadores de uma comunidade -, acompanhar a
história é menos encerrar as surpresas ou as descobertas no reconhecimento do sentido vinculado à
história tomada como um todo do que apreender os próprios episódios bem conhecidos como
conduzindo a esse fim. (Volume 1, P. 117-118)
283 Ao aplicarmos essa metodologia nas crônicas A+B, evidenciou-se uma reorganização de saberes
feita pelo cronista semelhante ao que Foucault define como arqueologia. Na articulação das formações
discursivas desde História da loucura, Foucault estabeleceu essas articulações com o político, o social,
o econômico, os quais, em diferentes graus, manifestaram-se em suas obras posteriores. Justificando
essa metodologia arqueológica, Foucault observa que a descrição dos discursos não deve prender-se
unicamente ao discurso em si, mas articular-se com outras formas não-discursivas para explicitar o
441

relações, formando o que define como regras de formação produtoras de uma


regularidade, as quais estabelecem uma unidade de sentido como discurso. Na medida
em que essa unidade se constrói por meio de enunciados, conceitos e temas, o método
arqueológico pode inverter essa formação como meio de compreender a sua dispersão e
determinar as regras que tornam possível a existência desses discursos.
O uso recorrente de alegorias, metáforas, intertextualidade e dialogismos nas
crônicas desarticula as informações estabelecidas pelos jornais como verdadeiras para
colocar em questionamento o conceito de verdade. Esse deslocamento do presente para
o passado explicita a repetição que rompe com a noção de originalidade, tão defendida
por românticos idealistas e realistas positivistas.
Havíamos observado também que, para compreender essa proximidade
metodológica entre Machado de Assis e Michel Foucault, é importante distinguir os
diferentes modos de produção:

Enquanto que a análise de Foucault e os textos analisados são


teóricos e elaborados dentro de um sistema de saber
comprometido, portanto, com uma regularidade de sistema
discursivo, as crônicas machadianas são textos ficcionais que
operam por meio de metáforas o verossímil como categoria de
sentido. Como textos literários, neles os elementos estéticos são
determinantes para a compreensão de sentido. Posta essa
distinção, nosso trabalho busca entender os saberes nessas
crônicas não apenas pelos temas abordados e pelos conteúdos
discutidos entre as personagens, mas, principalmente, pelos
procedimentos técnico-estéticos que identificaremos daqui por
diante como procedimentos retóricos. (p. 17)

Em outras palavras, a proximidade do conceito de arqueologia de Michel


Foucault ao modo de produção ficcional das crônicas machadianas deve ser feita como
hipótese retrospectiva e por um jogo de semelhanças semânticas e de analogias formais,
visto que o conceito é posterior às crônicas e se evidencia como método de análise
teórica. Posto isso, fica evidente nas leituras dessas crônicas um procedimento
composicional similar ao método arqueológico conceituado pelo filósofo francês. Tais

conjunto de relações entre as ciências em suas regras de formação, entendendo suas compatibilidades
e incompatibilidades. Conforme observa Roberto Machado, a arqueologia é “uma análise do discurso,
das formações discursivas, que pretende determinar as regras de formação dos objetos, das
modalidades enunciativas, dos conceitos e dos temas e teorias” (Ibid., p. 159). Desse modo, ao
observarmos os procedimentos retóricos estruturais e não-estruturais nessas crônicas, vemos que
Machado opera por meio deles diversos saberes em torno de uma temática: a política. (SOUSA
NETO, 2008, p. 16)
442

procedimentos não buscam estabelecer conhecimentos segundo uma noção de


progresso em direção a uma finalidade futura. Na medida em que os fatos presentes
relatados nas matérias de jornais ou nas atas parlamentares são lidos a partir de outros
conhecimentos de campos diferentes de saber, e, sobretudo, a partir dos discursos
cotidianos produzidos pela recepção dessas notícias, a crônica evidencia as
descontinuidades, fragmentando a unicidade delas.
Assim como o método arqueológico, as crônicas não estabelecem uma ordem
em busca de uma interpretação teleológica dos fatos, como também não busca a gênese,
a continuidade e a totalização. Não há para essas crônicas uma transição contínua no
discurso do que antecede e do que se segue, como também não trata os documentos
postos em análise como signos de outra coisa. A crônica descreve os discursos e suas
elaborações em notícias como práticas específicas que pretendem estabelecer saberes.
Sua análise individualiza e descreve formações discursivas à medida que compara uma
às outras, opondo-as, distinguindo-as e relacionando-as no que podem ter de específico
nos contextos que as envolvem e as determinam.284 Ao fazer tal descrição, ela acentua
as descontinuidades como fragmentos que marcam as rupturas dessas produções.
Na crônica de 2 de junho de 1878, trata da publicação de um livro de receitas
anunciado pelo jornal O Cruzeiro por meio da intertextualidade com a batalha de
Pompeu:

Há certa ordem de fatos na vida dos povos, cujo princípio


gerador está antes na lei histórica do que na deliberação do
indivíduo. Aparentemente, é largo o abismo, entre um
Confeiteiro Portátil e a última batalha de Pompeu, mas estudai
em suas origens os dois produtos, e vereis que, se César desloca
a base do poder político, põe por obra uma evolução da
sociedade romana, — e se o nosso confeiteiro publica as suas
trezentas páginas de receitas, obedece à necessidade de restaurar
o princípio social do manuê285. Naquele caso, a queda da
república; neste, a proscrição do bife sangrento. Diferente meio;
ação diversa; lei idêntica, análogo fenômeno; resultado igual.
(ASSIS, 2008e, p. 91)

284 O horizonte ao qual se dirige a arqueologia não é, pois, uma ciência, uma racionalidade, uma
mentalidade, uma cultura; é um emaranhado de interpositividades cujos limites e pontos de
cruzamentos não podem ser fixados de imediato. A arqueologia: uma análise comparativa que não se
destina a reduzir a diversidade dos discursos nem a delinear a unidade que deve totalizá-los, mas sim a
repartir sua diversidade em figuras diferentes. A comparação arqueológica não tem um efeito
unificador, mas multiplicador. FOUCAULT, 2007, p. 180
285 Bolo feito de fubá de milho e mel, entre outros ingredientes. Também conhecido como "manauê" - a
palavra é de provável origem africana. (Nota de Rodapé de John Gledson e Lúcia Granja, p. 95)
443

O método comparativo das ações de César e a publicação de um livro de receita


diminui as diferenças e põe em realce o que há de mais comum. Entre a queda da
república e a proscrição do bife sangrento apenas o meio e a ação são postos como
diferença, mas a proximidade justifica-se pela mesma lei, pelo fenômeno análogo e o
resultado igual. Se César conquista o Império com seu exército, o confeiteiro conquista
o Império com sua receita. Há nessa relação intertextual dois procedimentos: o
rebaixamento e a hipérbole. O rebaixamento permite ler a batalha de Pompeu pelas
receitas coligidas em trezentas páginas, isto é, o deslocamento da base do poder
político feito por César é análogo ao capricho individual do confeiteiro que propõe a
publicação de um novo manual de confeitaria. A hipérbole permite ler a publicação de
um novo manual de confeitaria como análogo ao processo político feito por César que
resultou na queda da república. Como afirma o cronista, ambos correspondem a
restauração do princípio social.
Na crônica seguinte – 9 de junho – utiliza-se dos acontecimentos em uma cidade
do interior da Bahia para evidenciar o mesmo procedimento:

Chique-Chique! Desta vez desapareces da face da terra. Após


largos séculos de intervalo, reproduz o caso de Tróia, sem um
Homero que o cante para deleitação dos vindouros; mas em todo
o caso um intrépido Bezout. O Bezout de quem trato, aliás
anônimo, possui o gênio da aritmética, além de grande
tranqüilidade de ânimo. No meio do combate levado à pobre vila
(dizem) por um bacharel e gente armada, no meio do fogo, da
assolação, do terror, do sangue derramado, das imprecações e
dos clamores, esse gélido calculista contava os tiros trocados, e
afiança que foram mais de 15.000. vejam bem: 15.000, nem um
tiro menos. Nenhuma paixão política, nenhuma afeição
doméstica, nada pôde perturbar o consciente narrador. (p. 101)

O processo eleitoral que resulta na disputa sangrenta entre os dois candidatos é


ficcionalizado por meio da proximidade com a Ilíada, de Homero. Sem questionar a
veracidade da notícia, o cronista desloca-se da matéria central tratada para ressaltar a
incongruência da informação quanto à quantidade de tiros trocados durante o evento.
Tais procedimentos permitem que o cronista possa evidenciar as produções discursivas
como construções de verdade e denotar os fragmentos por meio das rupturas que elas
tentam ignorar. A problematização desses procedimentos orienta-nos o questionamento
sobre os mesmos usos em seus romances posteriores. Diferentemente das crônicas, a
444

assinatura que identifica o sujeito discursivo em Memórias Póstumas de Brás Cubas e


Dom Casmurro legitima o discurso como verdade e articula um tempo assumidamente
fragmentado, mas constituindo a ilusão de sequencialidade temporal. Importa-nos
observar como os procedimentos das crônicas são elaborados nos romances na
construção de saber e no estabelecimento de verdades.
O uso desses procedimentos também é frequente nos romances machadianos,
contudo, a intertextualidade, as figuras de linguagem e o diálogo com o leitor não
provocam uma dispersão como vimos nas crônicas, pelo contrário, esses procedimentos
funcionam como forma de justificar a narrativa dos autores ficcionais. Em Dom
Casmurro, no capítulo XXXIII, após o autor ficcional narrar o seu primeiro beijo em
Capitu, ele justifica a sua timidez, operando a intertextualidade ao citar o romance
Manon Lescaut de Abade Prévost:

Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu


recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os
olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os
seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse,
faltava-me língua. Preso. atordoado, não achava gesto nem
ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil
palavras cálidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos,
leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des
Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos. (ASSIS,
2008, p. 100)

O trecho ao qual o autor ficcional faz referência é do romance de Prévost,


correspondendo ao momento em que o narrador dá a voz a personagem Des Grieux para
contar-lhe os infortúnios de seu amor por Manon Lescaut. No começo, a personagem
afirma:

Apearam-se algumas mulheres, que se retiraram imediatamente;


mas uma ficou, muito nova, que esperava no pátio da estalagem
que um homem de idade avançada, e que parecia servir-lhe de
guia, fizesse descarregar a sua bagagem. Pareceu-me tão linda,
tão encantadora, que eu, que até então nunca tinha pensado nem
na diferença dos sexos e muito menos olhado para uma mulher
com mais atenção do que para qualquer outra criatura, eu,cuja
inocência era por todos admirada, encontrei-me de repente
inflamado até o arrebatamento. Até então tinha o defeito de ser
demasiadamente tímido e fácil de me desconcertar; mas, nesse
momento, longe de me intimidar por essa fraqueza, dirigi-me
resolutamente para aquela que já considerava senhora absoluta
445

de meu coração. (PREVOST, 1981, p. 14)

A referência intertextual a Dex Grieux estabelece o ethos da inocência de Bento


Santiago, de modo que, longe de provocar uma dispersão no discurso com o qual o
autor-ficcional se investe para se autocaracterizar, esse procedimento é usado como
meio para estabelecer a credibilidade do menino diante de Capitu caracterizada pelo
autor ficcional com personagem mais ativa do que ele, com ideias atrevidas e dona de
suas atitudes. Essa discrepância entre Bentinho e Capitu é legitimada pela
intertextualidade. Como observa Gilberto Pinheiro Passos em sua obra Capitu e a
Mulher fatal, "essa referência a textos estrangeiro não se constitui algo fortuito, até
mesmo porque é vezo do narrador machadiano a busca constante de grandes momentos
da literatura ocidental, no intento de conferir maior amplitude a conflitos de proporções
reduzidas e pessoais" (PASSOS, 2003, p. 19)286.
Desde seu primeiro romance, Machado de Assis desarticula a noção romântico-
realista do tempo. Ao iniciar a narrativa em Ressurreição o narrador afirma: Naquele
dia, - já lá vão dez anos! (ASSIS, 2008, v. 1, p. 236), operando o tempo pelo que
Gerard Genette identifica como analepse completa em um sentido inteiramente
diferente, no qual a narrativa primeira, após interrompida é retomada em seu próprio
ponto287. Desse modo, no último capítulo, o narrador retorna ao tempo anunciado no
primeiro capítulo: "Dez anos volveram sobre os acontecimentos deste livro, longos e
enfastiados para uns, ligeiros e felizes para outros, que é a lei uniforme desta mofina
sociedade humana." (p. 312). Esse procedimento é retomado nos romances
homodiegéticos - Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro - em que a
narrativa primeira torna-se apenas base referencial para estabelecer a ilusão de
referencialidade temporal da narrativa principal. Além disso, como vemos nessa

286 Não será acaso, por conseguinte, encontrarmos consignadas passagens de Goethe, Shakespeare,
Prévost, Homero, Walter Scott, Ariosto, Dante, Luciano, Montaigne, Camões, Victor Hugo, Platão,
Plutarco, além da Bíblia, constituindo-se uma sugestiva galeria de leituras, a mostrar que a circulação
literária não podia passar despercebida por Machado de Assis, o qual intentava lograr a reorientação
de sentidos, efetuando a mescla em que o nacional se corporificava sem localismos excessivos e com
parte de sua legibilidade ligada à presença da literatura estrangeira a que o Brasil estava
indissoluvelmente preso (PASSOS, 2003, p. 20). Interessa-nos essa citação não pela interpretação que
Gilberto Pinheiro Passos faz dos efeitos alegóricos e simbólicos desse romance, mas, como um dos
principais estudiosos de Machado de Assis, evidenciando a presença da Literatura Francesa sobretudo
nessa obra, serve-nos como endosso do modo de funcionamento da intertextualidade.
287 Mas uma analepse ‹‹mista››, como a narrativa de Des Grieux, pode ser dita completa num sentido
inteiramente outro, pois, como já notamos, vai apanhar a narrativa primeira, não no seu início, mas no
próprio ponto (o encontro em Calais) em que esta se tinha interrompido para lhe dar lugar: quer dizer,
a sua amplitude é rigorosamente igual ao seu alcance, e o movimento narrativo realiza uma perfeita
ida-e-volta. (GENETTE, 1995, p. 61)
446

segunda citação, já em seu primeiro romance, Machado de Assis subordina o tempo


cronológico - dez anos - ao tempo subjetivo das personagens, evidenciando que os
diferentes acontecimentos na vida das personagens tornaram esse tempo cronológico em
longo ou ligeiro e feliz. Como observa Riedel, há em Machado de Assis uma variedade
de recursos que "se não chegam a levá-lo à técnica surpreendente do romance
contemporâneo, fazem-no abrir caminho para este" (RIEDEL, 2008, p. 189). Desse
modo, como já observamos, ao invés de funcionar como procedimento de dispersão tal
qual nas crônicas, a intertextualidade nos romances, operada pelo autor-ficcional,
funciona como procedimento que legitima a unidade de sentido buscada pela narrativa.
Contudo, podemos perceber outro modo de dispersão produzido por Machado de Assis
ao parodiar o modo de funcionamento dos discursos dominantes no romance. Cedendo
não apenas a narração, mas a autoria da obra ao advogado Bento Santiago, Machado
coloca como objeto de análise os modos de funcionamentos discursivos produtores de
verdade e de realidade. A dispersão produzida no romance opera-se como paródia
desses discursos.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o defunto-autor usa recorrentemente da
intertextualidade, do rebaixamento e do dialogismo para operar a unidade de sentido de
seu discurso, como podemos ver no capítulo XLIX, intitulado "A Ponta do Nariz", no
qual o defunto-autor, citando Voltaire, desenvolve a teoria do nariz para justificar sua
disputa com o primo de Virgília, Luís Dutra:

Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida...


Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A
explicação do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso
dos óculos, — e tal explicação confesso que até certo tempo me
pareceu definitiva; mas veio um dia, em que, estando a ruminar
esse e outros pontos obscuros de filosofia,atinei com a única,
verdadeira e definitiva explicação.
Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o
leitor que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do
nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca os
olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas externas,
embeleza-se no invisível, apreende o impalpável, desvincula-se
da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela
ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a
faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é universal.
Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu
próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação,
cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente,
constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se
447

contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero


humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as
primeiras tribos.
Ouço daqui uma objeção do leitor: — Como pode ser assim, diz
ele, se nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a
contemplar o seu próprio nariz?
Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um
chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus; é a
loja de um rival, que a abriu há dois anos; tinha então duas
portas, hoje tem quatro; promete ter seis e oito. Nas vidraças
ostentam-se os chapéus do rival; pelas portas entram os
fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua,
que é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com
os seus, menos buscados, ainda que de igual preço.
Mortifica-se naturalmente; mas vai andando, concentrado, com
os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da
prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele
chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro
chapeleiro... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do
nariz.
A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor,
que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo.
Procriação, equilíbrio. (ASSIS, 2008a, pp. 129-130)

A releitura do romance Cândido ou o Otimismo de Voltaire feita pelo defunto-


autor, torna literal a crítica irônica de Voltaire à filosofia do otimismo que estabelece a
lei de causa e efeito e a hiperboliza como meio de justificar seu capricho individual em
querer fazer com que seu amigo e rival de poesias Luís Dutra duvidasse de si mesmo
para desanimá-lo e até eliminá-lo. Observemos como funciona o texto: primeiro o
defunto-autor personifica o nariz - nariz, consciência sem remorso, tu me valeste muito
na vida... - segundo, torna literal o trecho em que Pangloss define o nariz pela tese de
causa e efeito de Leibniz:

Pangloss ensinava metafísico-teólogo-cosmolonigologia.


Provava admiravelmente que não há efeito sem causa e que,
neste que é o melhor possível dos mundos, o castelo do senhor
barão era o mais belo possível dos castelos e a senhora a melhor
das baronesas possíveis.
Está demonstrado, dizia ele, que as coisas não podem ser de
outra maneira: pois, como tudo foi feito para um fim, tudo está
necessariamente destinado ao melhor fim. Queiram notar que os
narizes foram feitos para usar óculos, e por isso nós temos
óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para as calças,
e por isso temos calças. As pedras foram feitas para serem
talhadas e edificar castelos, e por isso Monsenhor tem um lindo
448

castelo; o mais considerável barão da província deve ser o mais


bem alojado; e, como os porcos foram feitos para serem
comidos, nós comemos porco o ano inteiro: por conseguinte,
aqueles que asseveravam que tudo está bem disseram uma
tolice; deviam era dizer que tudo está o melhor possível.
(VOLTAIRE, 1998, p. 8)

Como observa Valéria Moura Venturella em seu texto Voltaire e a Crítica da


Razão Otimista288, o romance filosófico de Voltaire contrapõe ingenuidade e esperteza,
desprendimento e ganância, caridade e egoísmo, delicadeza e violência, amor e ódio,
mesclado em discussões filosóficas sobre causas e efeitos, razão suficiente e ética,
operando por meio do sarcasmo, a crítica à filosofia do otimismo de Leibniz, no qual,
fazendo de Pangloss uma espécie de caricatura de Leibniz, critica a sua crença da
"harmonia pré-estabelecida" entre a matéria e o espírito, reconciliando a existência da
matéria com a existência de Deus289. Desse modo, quando o defunto-autor afirma - "A
explicação do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, — e tal
explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva;" - ele apaga toda o
sarcasmo de Voltaire à filosofia do otimismo e torna literal a afirmativa de Pangloss
como verdade definitiva; terceiro, a partir da literalização, Brás Cubas a hiperboliza:

288 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Sociedade, Cultura e
Educação, ministrada pela Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos no Mestrado do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre –
de março a julho de 2004. Tirado do site: http://pt.scribd.com/doc/27119110/Voltaire-e-a-Critica-Da-
Razao-Otimista. Consultado no dia 08 de dezembro de 2014.
289 Mas o escárnio mais direto que Voltaire tece em Cândido – através do personagem Pangloss.– é
o ataque à chamada “filosofia do otimismo”, segundo a qual nós vivemos no melhor dos mundos
possíveis e cujo maior defensor foi Gottfried Wilhelm von Leibniz.Considerado um dos maiores
pensadores do século XVII, Leibniz acreditava em uma harmonia pré- estabelecida” entre a matéria e
o espírito, e concebeu uma filosofia racionalista que reconciliava a existência da matéria com a
existência de Deus (LEIBNIZ,1987).Ele defendia a doutrina de que um Deus bom, poderoso e perfeito
criou o mundo, e que tudo no mundo é, em última instância, perfeito como o Criador. Ao ser
questionado sobre como Deus, sendo perfeito, havia criado o mal no mundo, Leibniz replicou que,
dentre todas as possibilidades, Deus havia criado a melhor dos mundos possíveis, do qual o malfaz
parte. E aquilo que os seres humanos percebem como imperfeições faz parte de um plano maior de
Deus que, devido a nossas limitações, não podemos compreender. “Se pudéssemos compreender a
ordem do universo suficientemente bem, descobriríamos que ela ultrapassa todos os desejos do mais
sábio de nós, e que é impossível que ela seja melhor do que é [...] ” (LEIBNIZ, 1987, p. 37). Voltaire
fez de Pangloss uma espécie de caricatura de Leibniz, um personagem patético e obcecado por suas
crenças, que não é capaz de rever suas posições em face às evidências, continuando a advogar o
otimismo mesmo enquanto vivencia os maiores horrores. Pangloss, cujo nome pode ser traduzido por
“bufão” - uma pessoa que bravateia mas permanece na inação – prega uma filosofia que conduz a uma
atitude passiva e condescendente em relação ao sofrimento e às mazelas ao seu redor. Afinal, se
vivemos no melhor dos mundos possíveis, não há nada que possamos fazer para mudar o que
percebemos como errado ou ruim. (VENTURELLA, 2004, p. 4)
449

mas veio um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos


obscuros de filosofia,atinei com a única, verdadeira e definitiva
explicação.Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir.
Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta
do nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca
os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas
externas, embeleza-se no invisível, apreende o impalpável,
desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação
do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do
espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir
somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder de
contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e
tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um
nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os
narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o
gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se
com as primeiras tribos.

para criar sua única, verdadeira e definitiva explicação; quarto, estabelece a polêmica
aberta com o leitor. inventando a voz do leitor na narrativa - "Ouço daqui uma objeção
do leitor: — Como pode ser assim, diz ele, se nunca jamais ninguém não viu estarem os
homens a contemplar o seu próprio nariz? Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste
no cérebro de um chapeleiro;" por fim, inventa a narrativa alegórica sobre o chapeleiro
que olha para a ponta do nariz com o objetivo de entender "a causa da prosperidade do
outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o
outro chapeleiro... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz." Vemos
nesse exemplo os procedimentos funcionarem de modo distinto ao funcionamento
identificados na crônicas. Se nas crônicas, esses procedimentos operam a dispersão dos
discursos oficiais da política, da imprensa ou da religião, evidenciando o modo de
funcionamento desses discursos como discursos produtores de verdade, nos romances e,
principalmente, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, esses procedimentos
funcionam de modos diferentes a partir das duas assinaturas: pela assinatura do autor
ficcional, esses procedimentos funcionam como produtores de verdade; pela assinatura
de Machado de Assis, esses procedimentos evidenciam o modo de funcionamento dos
discursos produtores de verdade, isto é, à medida em que o leitor percebe a
incongruência de seus funcionamentos quando comparados com os textos a qual fazem
referência, evidencia-se uma outra forma de dispersão que é a paródia desses discursos.
450

CAPÍTULO 6 - LINGUAGEM, VERDADE E RELAÇÕES DE


PODER

Eu, a verdade, falo, mas não a fiz dizer, por exemplo: Eu, a
verdade, falo para me dizer como verdade, nem para lhes dizer a
verdade. O fato dela falar não significa que ela diga a verdade. É
a verdade, e ela fala. Quanto ao que ela diz, vocês é que têm de
se haver com isso.
Jacques Lacan, Seminário 16: de um Outro ao outro, p. 169

O jogo operado pelo discurso das crônicas, como discurso de potência, evidencia
os valores de verdade operados pelos discursos de poder (sobretudo das instâncias
políticas, religiosas ou midiáticas ligadas aos partidos políticos) em um percurso que
mobiliza e entrecruza as modalidades veridictórias, as modalidades epistêmicas e as
modalidades aléticas. Segundo Bertrand, as modalidades aléticas articulam o necessário
(/dever ser/) e o contingente (/dever não ser/), o impossível (/não dever ser/) e possível
(/não dever não ser/), centrados nas condições de existência do objeto e no enunciado
das relações entre as coisas, independentemente de qualquer sujeito, pois válidos a
todos; as epistêmicas exprimem a relação entre o que se julga certo (/crer ser/) ou
improvável (/crer não ser/)/ provável (/não crer não ser/) ou incerto (/não crer ser) como
modos de assunção do saber pelo sujeito, o qual mantém sob a forma de juízo com seu
objeto de conhecimento; as modalidades veridictórias referem-se ao saber
compartilhado ou não, estabelecendo a relação entre sujeitos e objetos de modo
intersubjetivo, contratual ou polêmico290. O semioticista francês observa que o discurso
científico consiste em apagar a veridicção para afirmar o alético, fundamentando a
verdade nas coisas em si e colocando-as como necessidade, como evidência ou como
produto de um cálculo291. Para Bertrand, esse percurso operado pelo discurso científico

290 As modalidades aléticas, de início, articulam o necessário (/dever ser/) e o contingente (/dever não
ser/), o impossível (/não dever ser/) e o possível (/não dever não ser/). Estão centradas exclusivamente
nas condições de existência do objeto e no enunciado das relações entre as coisas, independentemente
de qualquer sujeito, e válidas para todos, Designam a objetivação do saber. As modalidades
epistêmicas, em seguida, exprimem a relação que o sujeito cognitivo mantém com seu objeto de
conhecimento, sob a forma do juízo que faz a respeito dele, e a força de seu engajamento no
enunciado. Ele o julga certo (/crer ser/) ou improvável (/crer não ser/), provável (/não crer não ser/) ou
incerto (/não crer ser/). Tais modalidades marcam os modos de assunção do saber pelo sujeito.
(BERTRAND, 2003, P. 317)
291 Vemos assim que, da alética à epistêmica, e da epistêmica à veridictória, é um verdadeiro percurso
que se delineia. O do discurso científico consiste em apagar a veridicção para afirmar o alético, que é
451

não passa de uma estratégia persuasiva por meio do enquadramento nas estratégias de
veridicção. Há todo um processo de figurativização nesse percurso que confere
orientação espacial aos conceitos e valores. Assim, os exemplos que o semioticista nos
dá são os do jogo entre felicidade e tristeza, consciência e inconsciência, saúde e
doença, virtude e vício, o racional e o passional, de modo que a própria corporeidade é
regida por essas representações axiológicas:

Assim, essa racionalidade figurativa, inscrita na fraseologia


consagrada da língua, confere orientação espacial aos conceitos
e valores. Ela põe a felicidade no alto ("estar no sétimo céu") e a
tristeza embaixo ("cair em depressão profunda"), o consciente
no alto ("a consciência emerge"') e o inconsciente embaixo ("ele
caiu num sono profundo"), a saúde e a vida no alto ("ele está no
auge de sua forma"), a doença embaixo (“ele caiu de cama"), a
virtude no alto ("ele está acima de qualquer suspeita") e o vício
embaixo ("não cometerei essa baixeza"), o racional no alto ("um
alto nível intelectual") e o passional embaixo ("dominar suas
emoções"), etc. Enraizada na experiência corporal, a
figuratividade espacial rege assim de forma extraordinariamente
extensa as representações axiológicas, sejam elas, valores éticos,
morais, racionais, socioculturais, físicos ou outros. (p. 217)

Em crônica do dia 30 de novembro de 1862 da série O Futuro, o cronista trata


desse jogo veridictório ao relatar o caso em que se afirmava na imprensa se ter
encontrado os restos mortais de Estácio de Sá - um dos fundadores do Rio de Janeiro -
em uma sepultura da antiga Igreja de São Sebastião no Morro do Castelo em 16 de
novembro de 1862. A imprensa oficial afirmava contundentemente tratar-se dos ossos
de Estácio de Sá, sobretudo porque no ato de exumação estivera presente o Imperador
D. Pedro II. Por outro lado, os laudos do exame feito pelo Departamento de Medicina
Legal da Faculdade de Medicina do Império não davam tanta certeza 292. Diante dessas
afirmações e dúvidas na imprensa, o cronista brinca com o conceito de verdade como

o único que fundamenta a verdade nas coisas em si, impondo-as como necessidade, como evidência,
ou como produto de um cálculo. A ciência, tornando-se sujeito, parece fazer-se por si mesma. Mas
trata-se na verdade de uma estratégia persuasiva, que convida a reconhecer, a contrario, a
"preeminência dos julgamentos epistêmicos sobre os julgamentos aléticos'" e, mais amplamente, o
enquadramento deles pelas estratégias e motivações da veridicção. (p. 318)
292 No extremo oposto, é conhecido o resultado do exame osteológico feito em seus restos mortais
exumados da sepultura em que jaziam na antiga Igreja de São Sebastião, do Morro do Castelo, em 16
de novembro de 1862, e a ela depois restituídos. D. Pedro II, presente ao ato, registrou em seu Diário
que o Dr. Bernardo de Sousa Fontes, futuro Visconde de Sousa Fontes, professor de Anatomia da
Faculdade de Medicina, lhe dissera na ocasião, tratar-se de ossos de um homem com menos de 40
anos. O laudo final do exame, assinado também pelo Dr. Francisco Ferreira de Abreu, depois Barão de
Teresópolis, professor de Medicina Legal do mesmo estabelecimento de ensino, estimou a idade entre
os limites de 35 e 50 anos. (BELCHIOR, 2008, pp. 80-81)
452

um dever crer, isto é, entre o jogo das modalidades aléticas e epistêmicas produzidas
tanto pela Medicina quanto pela imprensa:

Mas, a não dizer mais alguma coisa sobre a questão, como


encher o espaço que me resta? Ir ao Castelo assistir à exumação
dos ossos de Estácio de Sá? Melhor sorte me dê Deus! Dispenso
o leitor dessa viagem, e com isso me dispenso a mim mesmo.
Direi, já que falo nos ossos do fundador da cidade, que
quaisquer que fossem os inconvenientes do modo por que se
procedeu à exumação, e os houve, ainda assim aquela empresa
revela que entre nós já se quer cuidar de certas coisas que até
hoje pareciam não merecer séria atenção. Ainda bem. Segundo
se acha anunciado, efetua-se no dia 1º o ato de inumação dos
restos de Estácio de Sá, convenientemente arranjados e
entregues aos cuidados de pessoas vigilantes.
Para alguns é duvidosa a autenticidade dos ossos achados na
sepultura do Castelo; devo dizer que esta dúvida só a ouvi
articular a pessoas que duvidam de tudo, pela razão de terem
sido enganadas muitas vezes, o que é um procedimento
acertado. Eu não sei se a dúvida tem lugar, mas louvo-me na
opinião geral e na dos professores que dirigiram a exumação,
para a qual não faltaram, segundo nos disse a imprensa, todas as
instruções arqueológicas.
Lembra-me agora que Méry, estando em Roma, encontrara um
dia alguns sujeitos a cavar em certo lugar, animados por dois
lords que, de quando em quando, atiravam uma moeda aos
trabalhadores. Méry, apaixonado pelas ruínas, parou e assistiu à
exumação do que quer que fosse. Finalmente apareceram uns
fragmentos de estátua, a cujo aspecto um olhar experimentado
não daria menos de mil anos.
Grande contentamento dos ingleses, que fizeram conduzir até o
carro as preciosidades encontradas no solo romano. Méry pediu
humildemente para ajudar a carregar parte daqueles preciosos
achados, e com toda a veneração foi depositar a sua carga no
carro dos patrícios de lord Palmerston.
Compreendo a satisfação que deve ter um homem apaixonado
pela antiguidade, ao ver diante de si os restos de uma obra que
supõe haver encantado os olhos de todo o patriciado romano.
E compreendo também o desgosto que havia de ter o autor da
Florida, quando, à noite, em uma reunião de pessoas distintas,
depois de haver contado o fato da manhã, soube que os restos
achados eram de véspera preparados de modo a parecer que
datavam de longe, acrescentando o carrasco das suas ilusões que
o Museu de Londres esta cheio destas tais antiguidades, coisa
que eu creio um pouco dura.
Não presuma o leitor malicioso que eu trouxe este conto para
diminuir a idade aos ossos encontrados na sepultura de Estácio
de Sá. Creio que são autênticos, e na verdade é isso que
devemos crer todos, porque não podemos crer noutra coisa.
453

Compensa isso à fadiga dos que lá foram ao Castelo assistir ao


ato. (ASSIS, 2008, v. 4, p. 79-80)

Para tanto, o cronista transfere a dúvida ao boato, ironicamente refutando-o por


meio da qualificação de que os que o produzem são pessoas que duvidam de tudo, pela
razão de terem sido enganadas. Mais que isso, ilustrando o caso com o relato de um
homem chamado Méry e apaixonado por arqueologia, o qual acompanhou a extração de
uns fragmentos de estátua em Roma, para mais tarde saber que os restos achados na
escavação foram plantados lá na véspera, o cronista identifica esses duvidosos como
carrascos de ilusões. Por fim observa ao leitor malicioso que o conto não pretendia
diminuir a veracidade do que a imprensa dizia sobre os ossos de Estácio de Sá. A crença
afirmada pelo cronista resulta de um dever crer, visto não poderem crer em outra coisa.
Ao final da notícia e comentário, o cronista afirma que, sendo verdade ou não, o que
vale é a intenção, a qual certamente era aprovada pela alma de Estácio de Sá a
contemplar no além-vida aquele acontecimento que mobilizara toda a imprensa:

Eu não fui, e creio que fiz mal. De mais, se é verdade, como eu


creio, que além desta vida há uma vida melhor, e que, portanto
Estácio de Sá está nos olhando talvez por um destes óculos do
céu que nós chamamos estrelas e dumas faíscas dos pés do
Onipotente; se é verdade isto, sejam ou não aqueles os ossos
autênticos, uma vez que a intenção é boa, Estácio ficará
agradecido e aceitará lá de cima a fé, a intenção, se não puder
aceitar os ossos. (p. 80)

Se a modalidade alética nessa crônica é posta sob suspensão por meio do boato e
da narrativa alegórica para evidenciar o processo de produção dos conjuntos modais que
se entrecruzam e apagam as instâncias de enunciação como forma de fundamentar a
verdade nas coisas em si, impondo como necessidade ou evidência, não é o que
acontece no trecho a seguir de um dos capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas,
quando o defunto-autor, narrando a causa da sua morte por meio da metalepse de
comunicação, impõe o discurso ao leitor como verdade independentemente da crença do
leitor:

Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a


pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha
morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade.
Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
454

(ASSIS, 2008a, p. 43)

Como vemos, ainda que, diferentemente do que observa Bertrand, o ato


enunciativo evidencie a embreagem actancial, o modelo arbitrário característico das
metalepses desse romance impõe a evidência como verdade em si, cabendo ao leitor o
papel de julgar aquilo que já está previamente estabelecido como verdade. Esse modo
de evidenciar a verdade por meio da franqueza estrutura todo discurso do defunto autor,
visto afirmar que, como morto, a franqueza lhe é sua primeira virtude, pois na morte,
conforme diz no capítulo XXIV, não há plateia que o obrigue a calar os trapos velhos, o
que há é apenas o desdém dos finados:

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e


realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a
primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o
contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a
calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a
não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o
melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros,
embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se
o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um
vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo!
que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao
fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se,
confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em
suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem
conhecidos, nem estranhos; não há plateia. O olhar da opinião,
esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o
território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e
nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do
exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão
incomensurável como o desdém dos finados. (p. 95)

Dessa forma, se nos discursos políticos, científicos e religiosos, a debreagem


actancial permite a camuflagem do sujeito da enunciação, como afirma Greimas, no
romance, a morte é o lugar, não do apagamento do eu enunciativo, mas de legitimação
da verdade. Uma vez que o eu enunciativo não está submetido ao juízo da recepção, não
está submetido ao esforço da construção de um ethos que conquiste a plateia, de modo
que o defunto-autor pode na morte estabelecer o dever-ser, a modalidade alética de seu
discurso.
Na crônica seguinte, do dia 15 de dezembro de 1862, para tratar do modo como
se deu a discussão sobre o orçamento no Parlamento, o cronista convida o leitor a um
455

jogo de suposição de que esteja em uma Assembleia Legislativa, assistindo à discussão


sobre o orçamento. Ao invés de assistir á discussão sobre o tema, o que o leitor vê são
invectivas pessoais, inventário parcial do passado, conjeturas arbitrárias do futuro,
oradores se cansando, se elevando, lutando, fazendo prodígios da língua, menos
discutindo o tema em pauta:

Suponha o leitor, queria eu dizer, que está em uma assembleia


legislativa. Discute-se o orçamento da receita e despesa, matéria
de máxima importância, como se vê logo pela designação. Há
grande alvoroço: pedem a palavra, sobem à tribuna os melhores
oradores, a lógica e a retórica andam em pleno exercício; e a
palavra humana torna-se nesse momento, para usar da expressão
de Montalembert, o tipo supremo da beleza, a arma irresistível
da verdade. Sobre que se discute? Sobre o orçamento? Não,
senhor: os oradores cansam-se, elevam-se, lutam, fazem
prodígios da língua, sobre tudo, menos o objeto da discussão. As
questões de política especulativa, as recriminações dos partidos,
as invectivas pessoais, o inventário parcial do passado, as
conjecturas arbitrárias do futuro, tudo o que pode ser alheio ao
orçamento entra em pleno serviço; o orçamento, esse ouve falar
em seu nome por duas outras vozes mais moderadas, que,
entrando no terreno prático, desdenham o palavreado estéril e
procuram utilizar o tempo malbaratado.
A imagem diminuída, mas aproximada deste fato anual, queria
eu acrescentar, acha-se nesta palestra de hoje com os meus
leitores, na qual poderemos tratar de tudo, menos do objeto
principal que nos reúne. Vê o leitor que, apesar de usado por
boas autoridades, isto é um lugar-comum perfeitamente comum.
Tive razão em retrair a pena. Afinal de contas, o leitor não tem
culpa que o Rio de Janeiro ande a competir com a chuva em
aborrecimento e que mesmo lhe leve a palma. Em míngua de
notícias forja-se, ou enche-se papel com qualquer coisa. (p. 81-
82)

Explicitamente, a imagem a que o cronista convida o leitor a contemplar não se


refere à qualquer crítica política, mas apenas à explicação do método de produção da
crônica. O jogo entre o explícito e o implícito, entre a produção e a leitura, entre a
exposição e a crítica operada pelo cronista nesse trecho evidencia as estratégias
persuasivas por meio do enquadramento nas estratégias de veridicção. O que na
imprensa, sobretudo a oficial, aparece como modalidade alética, criando sentidos de
ilusão da vida política, na crônica é posta como estratégias que colocam em suspensão a
noção de verdade para evidenciar as relações de poder do jogo político. Esses exemplos
mostram como nas crônicas o cronista opera por meio dos procedimentos já analisados
456

nos capítulos anteriores para colocar como objeto de análise tanto essas estratégias
discursivas de produção da verdade como também as instituições que as produzem,
fazendo evidenciar a relação entre verdade e poder.
Um desses procedimentos é a recorrência do rebaixamento, que se torna
determinante como forma de questionamento dos lugares de verdade, constantemente
invertendo os axiomas e pondo a nu a constituição desses jogos discursivos. Na crônica
de 25 de agosto de 1878 da série Notas Semanais, o cronista comenta a eleição para
escolha dos candidatos que seriam eleitos no dia 5 de setembro para a deputação
provincial. Estabelecendo o pleito a partir de axiomas bélicos, o cronista opera esses
rebaixamentos:

A intenção do candidato é, decerto, reta e pura; revela um


sentimento econômico; mostra que ele desdenha o vil metal;
mas em suma, trabalhar de graça não é uma ideia, ou é uma
triste ideia. Um deputado pode ser excelente, sem ser gratuito.
Creio até que as leis saiam mais perfeitas quando o legislador
não tenha de pensar no jantar do dia seguinte. Vou mais longe;
uma boa audição musical, um bom almoço no Hotel da Europa,
fortalecendo o organismo, dão melhor direção ao voto
parlamentar; o que aliás não aconteceria, se o deputado tivesse
de recorrer, nos intervalos, a alguma escrituração mercantil para
ir almoçar ao Hotel de Santo Antônio. Imaginemos o suplício de
uma Câmara, que, votando a isenção de direitos sobre a graxa,
olhasse para os seus sapatos desengraxados. Seria uma Câmara
de Tântalos. E daí, pode ser que a ideia do candidato seja
alcançar indiretamente a conciliação dos partidos. Na Câmara
dos comuns, quando os deputados saem para a sala de jantar,
formam uma cousa a que chamam casais, isto é, ajustam-se
um whig e um tory, obrigando-se um e outro a não voltar
sozinho à sala das sessões. Talvez a ideia do candidato seja
obter a formação dos mesmos casais, e até de quatro e cinco
juntos, para o fim de comer baratinho; fim este que levaria a
outro, ao da aliança dos pareceres, pela simples razão de que o
piquenique é a tríplice fusão das algibeiras, dos estômagos e dos
corações. Dize-me com quem comes, dir-te-ei com quem votas.
(ASSIS, 2008e, p. 226)

Entre os candidatos à deputação provincial, um havia soltado uma circular,


publicada na seção Publicações a pedido do Jornal do Comércio, prometendo, caso
eleito, abdicaria do subsídio oferecido. Os axiomas operados no texto estabelecem o
rebaixamento por meio dos contrastes: leis/jantar – creio até que as leis saiam mais
perfeitas quando o legislador não tenha de pensar no jantar do dia seguinte; isenção de
direitos/sapatos engraxados - ...votando a isenção de direitos sobre a graxa, olhasse
457

para os seus sapatos desengraxados; alianças políticas/comida barata - ...para o fim de


comer baratinho; fim este que levaria a outro, ao da aliança dos pareceres; e encerra,
atualizando, por meio do rebaixamento política/comida, o ditado popular: diga-me com
quem tu andas, que direi quem tu és, por dize-me com quem comes, dir-te-ei com quem
votas. Essas inversões figurativas e axiomáticas nas crônicas, ao desconstruírem o
estatuto de veridicção dos textos com os quais dialogam, confirmam o jogo operado
pela linguagem que coloca o leitor diante do próprio ato enunciativo. Como afirma
Nietzsche, "a verdade é somente um exército de metáforas, metonímias,
antropomorfismos, um compósito de correlações humanas poética e retoricamente
amplificadas, transpostas, ornamentadas, e que, ao cabo de muito uso, apresentam-se
aos olhos de um povo como canônicas e obrigatórias" (NIETZSCHE, 1977, p. 14-15).
Para Bertrand, a função da verdade é ocultar o divórcio entre as palavras e as coisas,
forçando a passagem do particular ao geral e transformando impressões singulares em
generalizações conceituais293.
Os procedimentos até aqui apresentados orientam-nos para esse jogo de
linguagem que, operado nas crônicas, coloca em questão o estatuto da verdade
constituído pelo pensamento realista-positivista que domina as ciências no tempo de
Machado. Os procedimentos retóricos do dialogismo, da intertextualidade, das figuras
de linguagem, da anti-metáfora, do boato, do rebaixamento etc. contribuem para pôr em
evidência o próprio estatuto do discurso e, com isso, questionar o racionalismo
positivista que impera na sociedade ocidental do século XIX. Na medida em que
provocam esses questionamentos, evidenciam as relações de poder que permeiam os
discursos políticos, científicos e religiosos.
Em crônica do dia 9 de junho de 1878 da série Notas Semanais, o cronista
comenta o suicídio de João Coelho Gomes, jovem de 24 anos, noticiado no Jornal do
Comercio, onde fora publicada a carta de despedida do jovem, conforme nota feita por
Lúcia Granja e John Gledson:

Partidário como sou de Buckner, autor de Força e Matéria, por

293 A verdade é, por consequência, subordinada à "legislação da linguagem", que oculta o divórcio
entre as palavras e as coisas, forçando a passagem do particular ao geral, transformando a
irredutibilidade das impressões singulares em generalizações conceituais. Operando por meio de tais
transferências, os conceitos nada são além de figuras: "Afinal, o que é a verdade? Um exército móvel
de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, um compósito de correlações humanas poética e
retoricamente amplificadas, transpostas, ornamentadas, e que, ao cabo de muito uso, apresentam-se
aos olhos de um povo como canônicas e obrigatórias. (BERTRAND, 2003, p. 218)
458

conseguinte, materialista, mato-me. E por que? Por desejar mais


breve do que devia ser saber o que se passa lá por cima. Quem
terá razão? O panteísta ou o materialista? Vamos ver. (ASSIS,
2008e, p. 105, nota de rodapé nº 1)

O caso, tratado pelo cronista, põe em questionamento os efeitos desse


pensamento cientificista, traduzido no texto como retalho da ciência:

Aquele pobre Gomes que se confessa materialista e se mata para


ir saber “o que aquilo é”, não é mais do que um produto fatal do
retalho da ciência. Imaginação impressível, verdura de anos,
também ali as houve; mas o funesto retalho foi que o levou ao
uso dessa triste liberdade de morrer, que a natureza só ao
homem conferiu, e que, aliás, o elegante Garção dizia ser a mais
perfeita e inviolável. Retalho de ciência, retalho de arte, retalho
de literatura, retalho de política, eis o perigo de uma juventude
mais cobiçosa de devassar do que paciente em discernir. O
pouco mais ou menos é um triste mal. Pobre Gomes! Foste pedir
à ciência alguma coisa que supunhas superior ou melhor do que
as crenças de tua meninice; e em vez da vida, em vez da
consolação que elas te deram, achaste o desvario e a morte. É
isto a razão humana: uma luz melindrosa, que resiste muita vez
ao vendaval de um século, e se apaga ao sopro de um livro. (p.
97)

Situação semelhante o cronista relata na crônica do dia 30 de junho de 1878 da


mesma série, não mais motivado pela ciência, mas por razões políticas. O autor do
atentado contra o imperador Guilherme da Alemanha, após ser preso, suicidou-se com
um tiro no ouvido direito:

De outra parte, não é a morte, é a filosofia de um doutor de


trinta anos, que não encontra no arsenal da liberdade melhor
arma do que um revólver. Parecia que esse velho recurso do
fanatismo político estava para sempre embotado e inútil; e
jamais podíamos contar que ele nos saísse agora de uma
universidade alemã. Pois saiu; e, nem por ser mais científico, se
tornou mais sensato... nem mais útil. Pobre filosofia! pobre
filosofia! (P. 138-139)

Característica do tempo moderno, os fundamentalismos, sejam políticos ou


científicos, com seus efeitos trágicos ocupavam as notícias do jornal da época. Tais
efeitos de verdade são apontados pelo cronista como "uma luz melindrosa da razão
humana que resiste ao vendaval de um século e se apaga ao sopro de um livro". Não
somente efeitos de tragicidade, mas também a ânsia pela verdade da sociedade de seu
459

tempo provocam efeitos de comicidade que não escapam à pena do cronista. Em crônica
do dia 14 de julho de 1878, comenta o surgimento de um jornal das vítimas da seca,
acentuando a contradição entre o não ter pão e água, mas poder lançar um jornal:

Outra cousa não menos espantosa é o jornal cearense que tenho


diante de mim: O RETIRANTE, órgão das vítimas da seca. A
primeira necessidade de uma vítima da seca parece que é pão é
água; seu principal órgão é naturalmente o estômago. Quando eu
lhes disser que há na quarta página da folha um anúncio de "dois
delirantes bailes para distrair da seca", com a cláusula de que
"As gentis teodósias terão entrada grátis e os cavalheiros
lascarão dois bodes", - terei dado ideia da urbanidade e do zelo
do nosso colega. (p. 162)

Conforme a nota de Lúcia Granja e John Gledson, o jornal foi criado para
denunciar os horrores da seca e, com isso, criticar o Imperador. Obviamente, o que está
em questionamento não é propriamente a veracidade da seca ou a existência das vítimas,
mas o uso político que permeia e usa a situação de pessoas em condição de miséria para
benefício de um determinado grupo contra o Império. Outro fato comentado pelo
cronista na crônica do dia 16 de junho de 1878 dessa mesma série, é o caso da prisão de
um casal de estelionatários que agiam no Rio de Janeiro, abrindo um consultório,
prometendo curar todas as moléstias e adivinhar outras coisas por meio do magnetismo:

Não é melro quem quer. O primeiro daqueles merece dois dedos


de admiração. Sucessivamente médico, domador de feras,
volatim, mestre de dança,e ultimamente adivinho, não se pode
dizer que seja homem vulgar; é um fura-vidas, que se atira à
struggle for life com unhas e dentes, sobretudo com unhas. De
unhas dadas com a dama Locatelli, fundou uma Delfos na Rua
do Espírito Santo, e entrou a predizer as coisas futuras, a
descobrir as coisas perdidas, e a farejar as coisas vedadas. O
processo era o sonambulismo ou o espiritismo. Os crédulos, que
já no tempo da Escritura eram a maioria do gênero humano,
acudiram às lições de tão ilustre par, até que a polícia o
convidou a ir meditar nos destinos de Galileu e outras vítimas da
autoridade pública. Pior que tudo é que, se a polícia os castiga
neste mundo, o demo os castigará no outro; e aqui chamo eu a
atenção do leitor para a estrita realidade da poesia. O famoso
casal ficou neste mundo de cara à banda, como há de ficar no
outro, segundo a versão dantesca; lá aos adivinhos como Miroli,
torcem o nariz para trás, e os olhos choram-lhes pelas costas:
........... che'l pianto degli occhi
Le natiche bagnava per lo ferro. (p. 114)

Citando as qualidades de Miroli, utiliza-se da antanáclase para dar-lhe o adjetivo


460

devido, isto é, ao dizer para a leitora que o casal preso não era de dois cantores, brinca
com a metáfora musical dois canários, operando uma literalização, para associar por
meio da antanáclase, isto é, não era essa espécie de pássaro, mas de outra espécie: o
casal eram dois melros e, com isso, retorna ao sentido figurado, em que o adjetivo
também significa indivíduo cheio de manha e de esperteza. Para justificar que não se
tratava de um homem vulgar, utiliza-se da expressão darwinista struggle for life. Após
anunciar a prisão dos dois pela polícia, utiliza-se da referência à Divina Comédia para
anunciar-lhes um maior castigo reservado aos adivinhos como Miroli294.
A veridicção posta em realce nessas crônicas instala, como observa Bertrand, um
hiato na produção e interpretação dos valores de verdade. Bertrand estabelece o estatuto
do discurso veridictório a partir da oposição ser/parecer, estabelecendo um quadrado
semiótico para definir a combinação dos valores de ser e de parecer, bem como as suas
negações. Desse modo, afirma que a coincidência entre ser e parecer (relação de
contrariedade) estabelece a noção de verdade; a coincidência entre parecer e não-ser
(relação de complementaridade negativa) estabelece a noção de mentira; a do não
parecer e ser (relação de complementaridade positiva) estabelece a noção de segredo e
a relação entre não-parecer e não-ser (relação de subcontrariedade) define a
falsidade295. A partir desse contrato de veridicção e com base em Fontanille, Bertrand
nos apresenta quatro tipos diferentes de verdades: a evidência, a falsidade, a
dissimulação ou segredo, a simulação ou mentira.
Michel Foucault, com base em Nietzsche, ao propor uma história da verdade,
questiona-se sobre os diferentes modos da relação entre a verdade e o discurso. Para
tanto, distingue duas histórias da verdade: uma interna, na qual a verdade se corrige a
partir de seus próprios princípios de regulação e outra externa que parte das regras de
jogo que fazem nascer determinadas formas de subjetividade, determinados tipos de
saber:

294 Conforme nota de Lúcia Granja e John Gledson: Dante, Divina Comédia, vol 1 - Inferno, canto XX,
vv. 23-4. No quarto compartimento, os impostores que se dedicam à arte divinatória são punidos.
Eles têm o rosto eo pescoço voltados para as costas, pelo que são obrigados a caminhar ao reverso:
Leitor a que Deus dá proveito/do que escutas agora, dize, então/se eu podia manter sereno o peito/
ante a trágica e cruel aberração/vendo que aos olhos lhes manava/pelas nádegas correr-lhes à
junção (trad. de Cristiano Martins) nota 19, p. 118.
295 O quadrado da veridicção se apresenta como uma combinação dos valores de ser e parecer, e de
suas negações: a combinação define os termos de "segunda geração". Assim, quando há coincidência
do parecer e do ser num universo de discurso, há "verdade"; a coincidência do parecer e do não-ser
define a "mentira"; a do não-parecer e do ser define o "segredo"; enfim, a coincidência do não-parecer
e do não-ser define a "falsidade". D. Bertrand P. 241
461

Certamente, se nos situamos no nível de uma proposição, no


interior de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso
não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem
violenta. Mas se nos situamos em outra escala, se levantamos a
questão de saber qual foi, qual é constantemente, através de
nossos discursos, essa vontade de verdade que atravessou tantos
séculos de nossa história, ou qual é, em sua forma muito geral, o
tipo de separação que rege nossa vontade de saber, então é
talvez algo como um sistema de exclusão (sistema histórico,
institucionalmente constrangedor) que vemos desenhar-se.
(FOUCAULT, 2010, p. 14)

A partir dessa proposta de separação entre o verdadeiro e o falso situado em uma


escala histórica, Foucault se propõe à investigação das diferentes formas de
manifestação dessa vontade de verdade para determinar, desde os gregos, as diferentes
modificações e manifestações da verdade. Em suas aulas de 1984, compiladas na obra A
Coragem da Verdade, partindo da discussão do termo parresía como modalidade do
dizer-a-verdade, para perceber o jogo implicado, observa três modalidades do dizer a
verdade definidas a partir da Antiguidade que se distinguem da parresía: a primeira é a
verdade da profecia, no qual o profeta se situa em postura de mediação, pois não fala
em seu nome, isto é, fala por uma outra voz. Essa intermediação se opera na medida em
que o profeta esclarece o que está escondido aos homens, mas não o desvela sem ser
obscuro, fazendo-o muitas vezes por meio do enigma. Diferentemente do profeta, o
parresiasta não faz a mediação, não fala por uma outra voz, não revela e desvela o que a
cegueira dos homens não pode perceber, pois fala daquilo que existe, por fim,
diferentemente do profeta, o parresiasta não fala por enigmas, diz as coisas de modo o
mais direto possível. A segunda modalidade é identificada como a verdade do sábio e,
como tal, sua verdade é dita muitas vezes pelo silêncio, de modo que, diferentemente da
primeira, a verdade do sábio não se opera por meio da forma de um conselho ligado a
uma conjuntura, mas na forma de um princípio geral de conduta. O parresiasta se
diferencia do sábio por não ser alguém que se mantém fundamentalmente reservado, ao
contrário, sua obrigação é falar. A terceira é a verdade do mestre, o dizer a verdade do
técnico, para o qual essa verdade é a transmissão de um conhecimento específico a ser
comunicado por outros e, por fim, a parresía, que consiste na verdade dita de modo
claro pela coragem de dizê-la a despeito de qualquer conseqüência que o dizer a verdade
do parresiasta possa provocar (FOUCAULT, 2011, p. 12-19). A parresía - do grego
462

liberdade de falar, franqueza, desvergonha, em sentido figurativo liberdade,


confiança) e falar com liberdade, ter valor)296 - consiste na atividade
de dizer tudo. Ela pode ser empregada com dois valores: segundo o valor pejorativo que
significa dizer qualquer coisa, o parresiasta é tratado como um tagarela impenitente que
não sabe se conter e que não é capaz de indexar seu discurso a um princípio de
racionalidade e de verdade; com valor positivo, "a parresía consiste dizer a verdade
sem dissimulação nem reserva, nem cláusula de estilo nem ornamento retórico que
possa cifrá-la ou mascará-la" (p. 11). Foucault observa que, para falar em parresía, é
preciso como regra dizer tudo, dizer a verdade, haver correspondência entre o que se diz
e o que se pensa, é preciso também, para dizer a verdade, assumir o risco, isto é, como
característica da parresía é precisa uma certa forma de coragem para arriscar a vida de
quem diz-a-verdade297.
Em resumo, a verdade da profecia, a verdade do sábio, a verdade do ensino e a
parresía são modalidades fundamentais do dizer a verdade; essas quatro modalidades do
dizer-a-verdade possibilitam perceber na análise do discurso como se dá a constituição
do sujeito que diz a verdade. Propondo a compreensão dessas quatros modalidades na
época moderna e de forma hipotética, Foucault observa os três modos de produção
dessas formas do dizer a verdade no discurso revolucionário, no discurso filosófico e no
discurso científico. O discurso revolucionário, ao falar em nome do outro para dizer um
futuro como forma de destino, reproduz a verdade profética; o discurso filosófico, ao
produzir dizer sobre o ser das coisas, reproduz a modalidade ontológica desse dizer-a-
verdade do sábio; por fim, esse complexo constituído pelas instituições de ciências,
pesquisa e ensino reproduz a modalidade tecnicista do dizer-a-verdade. Para o filósofo
francês, a modalidade parresiástica parece ter desaparecido como produção
independente, manifestando-se de forma enxertada em uma dessas três outras
modalidades, isto é, quando o discurso revolucionário assume a forma de uma crítica à
sociedade existente, quando o discurso filosófico produz uma análise, reflexão e crítica
sobre a finitude humana, quando o discurso científico se desenvolve como crítica dos

296 verbetes tirados do Dicionário Grego-Português e Português Grego de S.J. Isidro Pereira, p. 441
297 E é assim que se estabelecerá o verdadeiro jogo da parresía, a partir dessa espécie de pacto que faz
que, se o parresiasta mostra a sua coragem dizendo a verdade contra tudo e contra todos, aquele a que
essa parresía é endereçada deverá mostrar sua grandeza de alma aceitando que lhe digam a verdade.
Essa espécie de pacto, entre aquele que assume o risco de dizer a verdade e aquele que aceita ouvi-la,
está no cerne do que se poderia chamar de jogo parresiástico. A parresía é, portanto, em duas
palavras, a coragem da verdade naquele que fala e assume o risco de dizer, a despeito de tudo, toda a
verdade que pensa, mas é também a coragem do interlocutor que aceita receber como verdadeira a
verdade ferina que ouve. (FOUCAULT, 2011, p. 13)
463

preconceitos, dos saberes existentes, das instituições dominantes298.


Com base nessas quatro modalidades do dizer-a-verdade definidas por Foucault,
ao analisarmos as crônicas machadianas, podemos depreender algumas dessas
manifestações de produção discursiva do dizer-a-verdade. Podemos partir da análise de
como o cronista se refere ao primeiro delas: a verdade profética. É conhecida a presença
desse saber profético em duas narrativas: o conto A Cartomante e o romance Esaú e
Jacó. Ao analisarmos esse conto a partir da perspectiva tragicômica no artigo A
Cartomante: Uma tragicomédia machadiana, observamos, em comparação à tragédia
de Sófocles Édipo-Rei, como Machado de Assis reinscreve essa verdade do oráculo no
contexto positivista do século XIX:

Eis a reinscrição que suspende não apenas a narrativa, mas o


leitor, no final do texto. Se, em Édipo Rei, a profecia cria
angústia e inconsequência em Laio e em Édipo, os quais
desafiam o destino, e por isso acabam confirmando-o, em "A
cartomante", a profecia cria tranquilidade e negação de si
mesma, na confirmação da suposição racional que já deduzira
Camilo ao receber o bilhete. A atualização do trágico em
Machado, na releitura do papel que desempenha o oráculo, gera
a dúvida não apenas quanto ao papel da cartomante, mas quanto
ao significado do misticismo no cotidiano burguês e seu papel
na tragédia antiga. (...)Essa operação processa-se por meio da
simetria incongruente observada por Villaça: as personagens da
tragédia dão espaço aos melodramáticos Rita e Camilo; a frase
de Hamlet para explicar a Horácio a aparição do fantasma
traduz-se na vulgar explicação "por outras palavras" da visita de
Rita à cartomante e para justificar a mobilidade de Camilo entre
desinteresse e o "desejo de crer nas lições das cartas"; a caleça
de praça "vale o carro de Apolo"; o templo de Delfos reduz-se a
um imundo cômodo com pouca luz no fundo de uma casa na rua
da Guarda Velha; a profecia do destino cercada pelos rituais do

298 Na sociedade moderna, o discurso revolucionário, como todo o discurso profético, fala em nome do
outro, fala para dizer um futuro, futuro que já tem, até certo ponto, a forma do destino. Quanto à
modalidade ontológica do dizer-a-verdade que diz o ser das coisas, ela se encontraria sem dúvida
numa modalidade de discurso filosófico. A modalidade tecnicista do dizer-a-verdade se organiza
muito mais em torno da ciência do que do ensino, ou em todo o caso em torno de um complexo
constituído pelas instituições de ciência e de pesquisa e as instituições de ensino. E a modalidade
parresiástica, creio que justamente ela, como tal, desapareceu e não a encontramos mais, a não ser
enxertada e apoiando-se numa dessas três modalidades. O discurso revolucionário, quando assume a
forma de uma crítica da sociedade existente, desempenha o papel de discurso parresiástico. O discurso
filosófico, como análise, reflexão sobre a finitude humana, e crítica de tudo o que pode, seja na ordem
do saber, seja na ordem da moral, extravasar os limites da finitude humana, desempenha um pouco o
papel da parresía. Quanto ao discurso científico, quando ele se desenrola - e não pode deixar de fazê-
lo, em seu desenvolvimento mesmo - como crítica dos preconceitos, dos saberes existentes, das
instituições dominantes, das maneiras de fazer atuais, desempenha justamente esse papel parresiástico.
(FOUCALT, 2011, p. 29)
464

sagrado, cujo cumprimento nada pode impedir e ao qual o herói


está fadado, resume-se a uma adivinha estimulada por uma nota
de dez mil réis, cujas palavras levam o herói a sucumbir,
confirmando o oposto da profecia. Essas (as-)simetrias
estabelecem a incongruência e sua atualização no drama carioca,
criando um desequilíbrio "em favor do silencioso e do não
dito". Na relação entre dito e não dito, a ironia opera-se por
meio das "sobretônicas contextuais", que aumentam a
compreensão de seus elementos cognitivos a partir das relações
sociais extratextuais. Ao representar o drama de Camilo e Rita,
o narrador o reinscreve entre os vários textos que tratam da
temática do adultério, muito em voga no século XIX. (SOUSA
NETO, 2008)

Nessa narrativa, portanto, por meio do rebaixamento tragicômico, o narrador


esvazia a verdade da profecia e a desloca da tragédia grega para o drama burguês
carioca, no qual a profecia resulta de uma transação comercial, tendo como efeito a
negação da sua verdade. Em Esaú e Jacó, Natividade e Perpétua vão ao Morro do
Castelo visitar uma cabocla e, já na porta da casa dela, se deparam com a negação e a
afirmação dessa verdade profética, quando um dos dois sujeitos, saindo da casa, e ao
perguntar-lhes se iam visitar a adivinha lhes diz: "Perdem o seu tempo, conclui furioso,
e hão de ouvir muito disparate;" ao que o outro retruca: "É mentira dele, emendou o
outro rindo, a cabocla sabe muito bem onde tem o nariz." Diante dessa dupla
abordagem, ambas hesitam para logo se advertirem que "as palavras do primeiro eram
sinal certo da vidência e da franqueza da adivinha; nem todos teriam a mesma sorte
alegre" (ASSIS, 2008, v. 1, p. 1075). O narrador do romance, diferentemente do
narrador do conto, opera um jogo curioso entre a manipulação profética feita por
Natividade e o conflito da cabocla. Aquela elogia a cabocla em voz baixa para a irmã,
mas de modo que possa ser ouvida para manipular a predição do futuro para os filhos;
essa, embora prediga um futuro glorioso, questiona Natividade se os meninos brigaram
durante a gestação, para depois amenizar a predição dizendo que cá fora se briga
também. Como diz o narrador no capítulo seguinte:

Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se.


Natividade acabou entendendo a cabocla, apesar de lhe não
ouvir mais nada; bastou saber que as coisas futuras seriam
bonitas, e os filhos grandes e gloriosos para ficar alegre e tirar
da bolsa uma nota de cinqüenta mil-réis. Era cinco vezes o preço
do costume, e valia tanto ou mais que as ricas dádivas de Creso
à Pítia. Arrecadou os retratos e os cabelos, e as duas saíram,
465

enquanto a cabocla ia para os fundos, à espera de outros. (p.


1078)

Com base nesse trecho, pode-se depreender que o esvaziamento da profecia,


tanto no romance quanto no conto resulta menos de uma crítica machadiana a esses
costumes ritualísticos e mais de uma contextualização dessa prática no Brasil do século
XIX, em que a perversidade da profecia se efetua como engodo de personagens pobres
para arrancar uma gratificação "gorda" de seus clientes ricos, como acontece tanto com
Camilo quanto com Natividade. Conforme já vimos no capítulo sobre as crônicas, na
crônica do dia 12 de outubro de 1861 da série Comentários da Semana, o cronista faz
referência à notícia nos jornais que fizeram comentários depreciativos sobre duas
adivinhas:

Há dias falou a imprensa de duas mulheres, que existem nesta


corte, e cuja profissão é adivinhar os sucessos do futuro. O tom
com que a imprensa tratou as pobres sibilas calou-me profunda
mágoa no coração. Pobres sibilas, profetisas do que há de vir,
não vos compreenderam, e escarneceram de vossa inspiração!
Eu que professo a crença do maravilhoso, e que não duvido da
capacidade humana, no tocante a devassar o futuro, zombei dos
jornais e do século, e orei comigo mesmo pelas pobres vítimas.
A vossa avó de Cuma, se hoje vivesse, sem duvida teria melhor
do que eu apostrofado os blasfemos. O que poderia fazer a
minha linguagem pálida, hoje, que nem é possível falar dos
deuses, nem adubar uma increpação com singelas, mas
brilhantes, expressões pagãs? Valha a desculpa, se não vale o
canto, como diz o poeta.
Por direito de nascimento pertenço à vossa clientela e o fim
particular que levo nas linhas que aí ficam escritas é pedir-vos
que, com o auxílio da vossa poderosa lente moral, me designeis
qual a sorte desses comentários que vou fazer aos
acontecimentos da semana. Se for boa a predição, tornar-me-ei
forte; se contrária me for, quebrarei a pena e me recolherei á
tenda, como o velho guerreiro, sem me queixar de ninguém.
(ASSIS, 2008d, p. 53-54)

Conforme nota de Lúcia Granja e Jefferson Cano, a notícia a que o cronista se


refere é uma crítica feita pelo Jornal do Commercio, questionando a aplicação das
bruxarias, as quais, comprometendo a felicidade e tranquilidade domésticas, estariam
solapando os alicerces em que se assenta a ordem social. Em defesa das cartomantes, o
cronista reivindica a filiação e zomba da matéria fazendo referência à Ilíada de Homero.
Outra manifestação sobre o tema aparece na crônica de 10 de março de 1895 da
466

série A Semana, no relato sobre duas feiticeiras e uma cartomante que foram presas pela
polícia:

Não se diga que a feitiçaria é ilusão das pessoas crédulas. Sou


indigno de criticar um código, mas deixem-me perguntar ao
autor do nosso: Que sabeis disso? Que é ilusão? Conheceis Poe?
Não é jurisconsulto, posto desse um bom juiz formador da
culpa. Ora, Poe escreveu a respeito do povo: “O nariz do povo é
a sua imaginação; por ele é que a gente pode levá-lo, em
qualquer tempo, aonde quiser”. O que chamais ilusão é a
imaginação do povo, isto é, o seu próprio nariz. Como fazeis
crime a feitiçaria de o puxar até o fim da rua, se nós podemos
puxá-lo até o fim da paróquia, do distrito ou até do mundo?
(ASSIS, 2008, v. 4, p. 1154)

Sem entrar no mérito da discussão sobre as prisões, o cronista volta-se para a


discussão feita na imprensa que insiste em tratar essa forma de religiosidade como
crendices populares e, portanto, como produtora de ilusão das pessoas crédulas. Para
tanto cita um frase atribuída a Poe por Charles Baudelaire no prefácio de Contos de
Imaginação e Mistério a qual diz que "O nariz da ralé é a imaginação; é pelo nariz que
sempre se poderá guiá-la com facilidade"299. Conforme a análise de Baudelaire, o
contexto da frase evidencia o desprezo com que Poe, aristocrata, se referia ao povo, bem
como o desprezo que tinha pelos fabricantes de religião:

Aristocrata por natureza mais que por nascimento, o virginiano,


o homem do sul, o Byron perdido em um mundo ruim sempre
manteve sua impassibilidade filosófica, e, seja definindo o nariz
da ralé, zombando dos fabricantes de religiões ou desprezando
as bibliotecas, resta aquele que foi e será sempre o verdadeiro
poeta – uma verdade vestida de forma bizarra, um paradoxo
aparente, alguém que não quer ser acotovelado em meio à
multidão e que corre ao Extremo Oriente quando os fogos de
artifício vão rumo ao poente. (BAUDELAIRE, sem data, p. 5)

Comparada à citação do cronista, vemos uma outra contextualização e


deslocamento de sentido, pois na crônica, a citação funciona como meio para equiparar
a feitiçaria à religiosidade católica conforme o cronista vai dizer a seguir:

299 O prefácio de Charles Baudelaire foi tirado da obra Nouvelles histoires extraordinaires traduzida
para o francês em 1857 por Charles Baudelaire. A obra Contos de Imaginação e Mistério foi
publicada em português pela Editora Tordesilhas, sem identificação do tradutor e do ano de
publicação. O acesso a essa obra foi feita pelo site
:http://minhateca.com.br/Jessica.Maria.Gomes/Documentos/livros+em+pdf/livros/Edgar+Allan+Poe/
Contos+de+Imaginacao+e+Misterio+-+Edgar+Allan+Poe,5756375.pdf. Consultado em 23 de
novembro de 2014.
467

No nosso ano terrível, vimos esse nariz chegar mais que ao fim
do mundo, chegar ao céu. Ninguém fez disso crime, alguns
fizeram virtude, e ainda os há virtuosos e credores. Realmente,
prometer com um palmo de papel um palácio de mármore é o
mesmo que dar um verdadeiro amor com dois pés de galinha. A
feiticeira fecha o corpo às moléstias com uma das suas
bugigangas, talvez a ceroula velha, — e há facultativo (não digo
competente) que faz a mesma coisa, levando a ceroula nova.
Que razão há para fazer de um ato malefício, e benefício de
outro?

Sendo o nariz a imaginação que puxa o povo à paróquia, para o cronista, não há
diferença entre crer em palácio de mármore ou receber um verdadeiro amor com dois
pés de galinha. Mais que isso, se a feiticeira fecha o corpo às moléstias usando uma das
suas bugigangas encontradas pela polícia, há religiosos que fazem a mesma coisa,
subtraindo a ceroula nova do fiel. Desse modo, o questionamento feito pelo cronista é o
tratamento diferenciado dos que criticam as feiticeiras, sem com isso, criticar o pároco,
E continua:

O código, como não crê na feitiçaria, faz dela um crime, mas


quem diz ao código que a feiticeira não é sincera, não crê
realmente nas drogas que aplica e nos bens que espalha? A
psicologia do código é curiosa. Para ele, os homens só crêem
aquilo que ele mesmo crê; fora dele, não havendo verdade, não
há quem creia outras verdades, — como se a verdade fosse uma
só e tivesse trocos miúdos para a circulação moral dos homens.
Tudo isto, porém, me levaria longe; limitemo-nos ao que fica; e
não falemos da cartomante, em quem se não achou dinheiro,
provavelmente porque o tem na caixa econômica. Relativamente
às cartomantes, confesso que não as considero como as
feiticeiras. A cartomancia nasceu com a civilização, isto é, com
a corrupção, pela doutrina de Rousseau. A feitiçaria é natural do
homem; vede as tribos primitivas. Que também o é da mulher,
confessá-lo-á o leitor. Se não for pessoa extremamente grave, já
há de ter chamado feiticeira a alguma moça. Vão meter na
cadeia uma senhora só porque fecha o corpo alheio com os seus
olhos, que valem mais ainda que cabeças de frangos ou pés de
galinha. Ou pés de galinha!
Podia dizer de muitas outras feitiçarias, mas seria necessário
indagar o ponto de semelhança, e não estou de alma inclinada à
demonstração. Nem à simples narração, Deus dos enfermos! Isto
vai saindo ao sabor da pena e tinta. E por estar doente, e com
grandes desejos de acudir à feitiçaria, é que me dói (sempre o
interesse pessoal!) a prisão das duas mulheres. Talvez a moeda
de dez réis me desse saúde, não digo uma só moeda, mas um
milhão delas.
468

Sim, eu creio na feitiçaria, como creio nos bichos de Vila Isabel,


outra feitiçaria, sem sacos de feijão. São sistemas. Cada sistema
tem os seus meios curativos e os seus emblemas particulares. Os
bichos de Vila Isabel, mansos ou bravios, fazem ganhar dinheiro
depressa, e sem trabalho, tanto como fazem perdê-lo, igualmente
depressa e sem trabalho, tudo sem trabalho, não contando a
viagem de bond, que é longa, vária e alegre. Ganha-se mais do
que se perde, e tal é o segredo que esses bons animais trouxeram
da natureza, que os homens, com toda a civilização antiga e
moderna, ainda não alcançaram. Não sei se a feitiçaria dos
bichos dá mais dos quatrocentos e treze mil-réis da Umbelina;
talvez dê mais, o que prova que é melhor.
Além dessas, temos muitas outras feitiçarias; mas já disse, não
vou adiante. A pena cai-me. Não trato sequer da política, aliás
assunto que dá saúde. Há quem creia que ela é uma bela
feitiçaria, e não falta quem acrescente que nesta, como na outra,
o povo não pode nem anda desnarigado; é horrendo e incômodo.
Também não cito o júri, instituição feiticeira, dizem muitos. Ser-
me-ia preciso examinar este ponto, longamente, profundamente,
independentemente, e não há em mim agora profundeza, nem
independência, nem me sobra tempo para tais estudos. Eu
aprecio esta instituição que exprime a grande ideia do
julgamento pelos pares; examina-se o fato sem prevenção de
magistrados, nem câmara própria de ofício, sem nenhuma
atenção à pena. O crime existe? Existe; eis tudo. Não existe; eis
ainda mais. Depois, é para mim instituição velha, e eu gosto
particularmente dos meus velhos sapatos; os novos apertam os
pés, enquanto que um bom par de sapatos folgados é como os
dos próprios anjos guerreiros, Miguel, etc., etc., etc.

Estabelecendo a diferença entre a cartomancia - que, para o cronista, resulta da


corrupção da sociedade - e a feitiçaria, o cronista evidencia as crendices populares como
o júri ou as drogarias com a diferença de que a feitiçaria é uma instituição velha, não
justificando a prisão das duas mulheres. Em crônica do dia 21 de dezembro de 1886 da
série Gazetas de Holanda - crônicas todas compostas em verso - o cronista narra o
diálogo com o diabo no qual esse pergunta ao cronista o que ele quer ser na vida:

E disse o Diabo: - "Fala,


Que querer ser nesta vida?
Antonino ou Caracala?
Capucho ou jardins de Armida?

"Escolhe, e serás, Malvólio,


Tudo o que quiseres; pede
Um sólio, e terás um sólio,
Pede um culto, e és Mafamede". (ASSIS, 2008, v. 4, pp. 691-
692)
469

Ao que o cronista responde ao diabo:

E eu, respondendo-lhe, disse


Que nem tronos nem altares;
Que, na minha mandriice,
Tinha sonhos singulares.
(...)
Sabes tu o que eu quisera?
Quisera ser cartomante,
Dizer que espere ao que espera,
E dizer que ame ao amante.

Saber de cousas perdidas,


Saber de cousas futuras,
De verdades não sabidas,
De verdades não maduras.

Se uma senhora é amada,


Ou se há lá na costa mouras;
Se a costureira - casada -
Chega a depor as tesouras (p. 693)

Nas duas crônicas anteriores, o cronista sai a público em defesa das


sibilas/feiticeiras, colocando em questão o código legal que prescreve à população o
que deve ou não deve crer. Em ambas, o cronista reivindica a filiação e a crença nas
adivinhas e manifesta tristeza e desprezo pelo modo como a imprensa desqualifica essas
feiticeiras. Não se trata, obviamente, da produção do dizer-a-verdade profético, mas de
uma validação ou mesmo denúncia das contradições do sistema jurídico vigente que
legitima certas crenças e condena e pune outras. Nessa crônica-poema, o cronista
Malvólio inventa uma conversa com o diabo - figura negativa no cenário cristão-
católico de crendices - o qual lhe oferece torná-lo em qualquer coisa que ele queira.
Malvólio então responde pela negativa, isto é, por tudo aquilo que não quer ser. Em um
total de oito estrofes, Malvólio enumera tudo o que refuta, elencando valores vistos
como positivos pela sociedade de seu tempo: não quer altares, nem tronos, nem a coroa
do Egito ou da Bulgária, nem moças de Goa, nem beijos da Icária, nem dormir o dia
inteiro em tapetes persianos, nem ter damas formosas, nem comer em pratos de ouro,
nem possuir as estrelas. O que o cronista quer é poder dizer-a-verdade da profecia, isto
é, saber das coisas perdidas ou futuras, ter o falar dobrado e tudo o que a cartomante
sabe, conta e não escreve. Portanto, e de forma diferente das crônicas anteriores, o
470

cronista reafirma esse poder da profecia característico das filhas de Cuma.


Ao mesmo tempo que reafirma esse saber profético das adivinhas, em outros
momentos, o cronista ridiculariza o Espiritismo. Em crônica do dia 1º de setembro de
1876 da série História de Quinze Dias, o cronista comenta sobre o Espiritismo como
uma invenção moderna:

Estes quinze dias valem por um trimestre da história romana. E


note-se que a história romana não conhecia muitas cousas que
nós tivemos o prazer de inventar, entre outras, a vermelhinha. A
vermelhinha, o espiritismo, as mutações turcas e as barracas do
campo são usos que nem o império de Augusto nem a república
de Catão tiveram o gosto de conhecer. Não é à-toa que os
séculos andam (ASSIS, 2009a, p. 89)

Na crônica de 16 de julho de 1878 da série Notas Semanais, já citada


anteriormente neste capítulo, o cronista comenta sobre dois estelionatários presos pela
polícia por terem criado uma casa onde faziam consultas, utilizando-se do espiritismo.
O cronista os qualifica como "fura-vidas, que se atira à strugh for life com unhas e
dentes, sobretudo com unhas, por quererem predizer as coisas futuras, a descobrir as
coisas perdidas, e a farejar as coisas vedadas." Para o cronista, esses dois estelionatários
serão castigados em vida pela polícia e na morte pelo demo. A principal crítica ao
espiritismo feita pelo cronista é o fato de essa religião ter a pretensão científica e
condenar as religiões passadas como podemos verificar na crônica do dia 5 de outubro
de 1885 da série Balas de Estalo:

Lá não vi ninguém, mas é certo que a sala estava cheia de


espíritos, repimpados em cadeiras abstratas. O presidente, por
meio de uma campainha teórica, chamou a atenção de todos e
declarou abertos os trabalhos. O conferente subiu à tribuna,
traste puramente racional, levantaram-lhe um copo d’água
hipotético, e começou o discurso.
Não ponho aqui o discurso, mas um só argumento. O orador
combateu as religiões do passado, que têm de ser substituídas
todas pelo espiritismo, e mostrou que as concepções delas não
podem mais ser admitidas, por não permiti-lo a instrução do
homem; tal é, por exemplo, a existência do diabo. Quando ouvi
isto, acreditei deveras. Mandei o diabo ao diabo, e aceitei a
doutrina nova, como a última e definitiva. (ASSIS, 1998, p. 306-
307)

Embora afirme ter-se convertido ao espiritismo, a afirmação é irônica, visto que


471

no começo da crônica, quando afirma ter ido à Federação Espírita Brasileira, conta isso
como algo espantoso. O episódio a que refere o trecho citado foi acompanhado pelo
cronista Lélio apenas depois de ele ter saído do corpo e ido à Federação apenas em
espírito e na volta descobre que um outro espírito habitava em seu corpo, quando o viu
sentado e rindo: "Vi o meu corpo sentado e rindo. Parei, recuei, avancei e disse-lhe que
era meu, que, se estava ocupado por alguém, esse alguém que saísse e mo restituísse. E
vi que a minha cara ria, que as minhas pernas cruzavam-se". Depois de alguma conversa
com o espírito que havia invadido seu corpo, Lélio descobre que era o diabo e que
estava ali para o servir. Como havia dito ter mandado o diabo ao diabo, visto que o
orador havia provado que esse não existia, espanta-se ao descobrir que o espírito a
ocupar seu corpo era o próprio diabo, ao que o diabo retruca afirmando que existia, mas
que essas novas religiões no poder lhe haviam tirado o emprego dele:

Aqui, o diabo sorriu tristemente com a minha boca, levantou-se


e foi à mesa, onde estavam as folhas do dia. Tirou uma e
mostrou-me o anúncio de um medicamento novo, o rábano
iodado, com esta declaração no alto, em letras grandes: “Não
mais óleo de fígado de bacalhau”. E leu-me que o rábano curava
todas as doenças que o óleo de fígado já não podia curar —
pretensão de todo medicamento novo. Talvez quisesse fazer
nisto alguma alusão ao espiritismo.

O serviço a que o diabo afirma prestar a Lélio é mostrar-lhe que, assim como a
pretensão publicitária de todo remédio novo é a de prometer fazer o que o antigo não
fazia, assim também o espiritismo operava um discurso publicitário para se mostrar
melhor que as religiões antigas. Em outras palavras, o diabo veio livrar Lélio de sua
crendice no espiritismo. Essa crítica ao espiritismo, conforme já dissemos, deve-se ao
fato de esse dizer-a-verdade profético característico das religiões pagãs estar sendo
apagado pela modalidade científica do dizer-a-verdade que o espiritismo busca se
atribuir. É, portanto, a negação do elemento mágico da profecia que faz com que o
cronista ironize e ridicularize o espiritismo.
Diferentemente do dizer-a-verdade profético, o modo da sabedoria é um falar em
seu próprio nome, de modo que o sábio está presente naquilo que diz. Tal qual a
verdade da profecia, a crônica faz referências a essa verdade do sábio. Em crônica do
dia 14 de janeiro de 1862 da série Comentários da Semana, o cronista faz referência ao
costume que Diógenes tinha de sair com a lanterna na mão a procurar pela rua um
homem. A referência estabelece o paralelo para comunicar ao leitor a falta de notícias
472

de modo que o cronista, tal como Diógenes, sai à cata não de homens, mas de notícias e,
ao invés de percorrer as ruas, percorre os dias das semanas:

Os atenienses riram-se muito um dia ao ver que Diógenes, um


doido que vivia em um tonel, saíra com uma lanterna na mão, à
cata de um homem. Era para rir. E aquele povo não deu o
cavaco, porque via no ato do velho filósofo com visos de
desdém pelos contemporâneos.
Rir-se-ão os Fluminenses se me virem atravessar (perdoa-me, ó
Diógenes!), não as ruas da cidade, mas os dias da semana, com
uma lanterna na mão à cata de notícia?
Aqui a coisa é inteiramente diversa. (ASSIS, 2008d, p. 155)

Essa mesma referência a Diógenes repete-se na crônica de 11 de setembro de


1864 para tratar da indiferença da população carioca e, sobretudo, da imprensa em
relação à festa da Independência, a falta de manifestação e regozijo públicos:

Não vos direi daqui, ó fluminenses, aquilo que dizia o cínico


Diógenes, no dia em que se lembrou de clamar em plena rua de
Atenas:
— Ó homens! ó homens!
E como os atenienses que passavam se reuniam em torno do
filósofo, e lhe perguntavam o que queria, ele lhes respondeu
com a mordacidade do costume:
— Não é a vocês que eu chamo; eu chamo os homens.
Não vos direi isso, ó fluminenses, mas confesso que nos
primeiros dias da semana tive vontade de dizê-lo, nu e cru, na
verdadeira expressão de consciência. Eu via aproximar-se o
dia nacional, sem que se anunciasse, nem nas folhas nem nas
conversações, uma festa, uma manifestação de regozijo público.
(ASSIS, 2008, v. 4, p. 183)

E na crônica do dia 15 de junho de 1877 reproduz essa referência à Diógenes


para noticiar o caso do anônimo que doou vinte contos de réis para a Santa Casa:

Achei um homem; vou apagar a lanterna. Lá nos Campos Elísios


do teu paganismo, enforca-te, Diógenes, filósofo sem préstimo
nem fortuna, arruador caipora, procurador de impossíveis. Eu,
sim, eu achei um homem. E sabes por que, desastrado filósofo?
Porque o não procurava, porque estava a tomar tranquilamente a
minha xícara de café, à janela, a dividir os olhos entre as folhas
do dia e o sol que se desembuçava. Quando menos esperava, ei-
lo ante mim.
E quando digo que o achei, digo pouco, todos nós o achamos,
473

não dei com ele sozinho, mas todos, a cidade em peso, se é que a
cidade em peso não tem coisa mais séria em que cuidar, (os
touros, por exemplo, o voltarete, o cosmorama) o que de todo
não é impossível.
E quando digo que o achei, erro; porque não o achei, não o vi,
não o conheço, achei-o sem achar. Parece um enigma e é decerto
enigma, mas dos que eu quisera ver-te fazer, leitor, se tens
queda por tais ocupações.
Suponho no leitor uma alta dose de penetração, não me canso
em explicar-lhe que o homem de que se trata é o incógnito
benfeitor das órfãs da Santa Casa, o que deu 20:000$000, sem
dar o seu nome.
Sem dar o seu nome! Este simples fato conquista a nossa
admiração Não que ela esteja acima das forças humanas, é essa
justamente a condição da caridade evangélica, em nome da qual
os filhos do Evangelho inventaram a caridade nas gazetilhas.
Mas, na realidade, o caso é raro. Vinte contos dados assim, com
simplicidade sem uma notícia nas folhas públicas, sem duas
barretadas, sem uma ode, sem nada; vinte contos que caem da
algibeira do benfeitor para as mãos dos beneficiados, sem passar
pelos prelos, os bentos prelos, os adoráveis prelos, que tudo
contam, até as ações mais recônditas? A ação é cristã; mas é tão
rara, como as pérolas.
Por isso digo: achei um homem. O anônimo da Santa Casa é o
homem do Evangelho. Imagino-o com dois traços principais: o
espírito de caridade, que deve ser e é anônimo, e um certo
desdém para com os clarins da Fama, os rufos de tambor, os
pífanos da publicidade. Pois bem, esses dois traços
característicos são duas forças. Quem as tem possui já de si uma
grande riqueza. (ASSIS, 2009a, pp. 209-210)

A referência a Diógenes, tal qual a referência às sibilas, é uma invenção textual


dessa verdade do sábio. No caso específico de Diógenes, o cínico, Foucault comenta
sobre o paradoxo do cinismo, no qual desempenha o papel de espelho quebrado para a
filosofia antiga, pois, como espelho, todo filósofo pode e deve se reconhecer nele, ao
mesmo tempo em que, percebe como que uma careta, uma deformação violenta, feia,
sem graça, na qual ele não poderia em hipótese alguma se reconhecer nem reconhecer a
filosofia300. De modo que o cinismo é uma banalidade escandalosa da filosofia. Nessas

300 Assim, ao mesmo tempo que se reconhecem tão facilmente no cinismo, os filósofos se demarcam
dele violentamente com uma caricatura repulsiva. Eles [o] apresentam como uma espécie de alteração
inaceitável da filosofia. O cinismo desempenharia, de certo modo, o papel de espelho quebrado para a
filosofia antiga. Espelho quebrado em que todo filósofo pode e deve se reconhecer, no qual ela é e do
que ela devia ser, o reflexo do que ele próprio é e do que ele próprio gostaria de ser. E ao mesmo
tempo, nesse espelho, ele percebe como que uma careta, uma deformação violenta, feia, sem graça, na
qual ele não poderia em hipótese alguma se reconhecer nem reconhecer a filosofia. Tudo isso para
dizer, simplesmente, que o cinismo foi percebido, creio, como a banalidade da filosofia, mas uma
banalidade escandalosa. Da filosofia tomada, praticada, vestida em sua banalidade, ele fez um
474

três referências feitas pelo cronista vemos o deslocamento que faz da filosofia cínica
quando o cronista busca não homens mas notícias e, para isso, percorre com sua
lanterna não as ruas, mas os dias da semana nos jornais. Também, na última, a negação
irônica da busca de Diógenes que caça um homem honesto na Grécia. O cronista afirma
ter encontrado um homem honesto - o doador anônimo de vinte contos de réis - e,
portanto, sugere que Diógenes se enforque como forma de acentuar a incompetência do
filósofo grego. A paródia, para o qual usa a citação de Diógenes, funciona como crítica
ao costume da época em que os benfeitores costumavam alardear na imprensa suas boas
ações. Esse tema será retomado em dois momentos nos romances machadianos: em
Quincas Borba, quando, no capítulo LXVII, Rubião, tendo contado ao Camacho no dia
anterior um evento em que salvara um menino de ser atropelado por um tílburi, vê a
notícia no jornal publicado pelo amigo. Em um primeiro momento, Rubião fica irritado
e se sente traído, mas aos poucos se conforma, acostuma-se até começar a gostar e se
sentir lisonjeado pelo modo como a notícia foi escrita; em Memórias Póstumas de Brás
Cubas, no capítulo CXXIII, o defunto-autor, ao justificar o cunhado Cotrim, aponta
como defeito o costume dele de mandar para os jornais a notícia de um ou outro
benefício que praticava, desculpando-se ao dizer que as boas ações eram contagiosas,
quando públicas, conforme veremos de modo mais detalhado mais à frente.
Outra referência à verdade da filosofia como paródia encontramos na primeira
crônica do dia 05 de junho de 1864 da série Ao Acaso, quando o cronista convida o
leitor a comparar o folhetim à trípode de ouro encontrada por pescadores de Mileto:

Suponham os leitores que o folhetim é uma trípode de ouro, e


ouçam atentamente a história que lhes vou contar.
Os pescadores de Mileto, andando ao mar um dia, acharam uma
trípode de ouro. Consultada a pítia, eis o que o oráculo ditou:
"Filho de Mileto, tu interrogas Febo acerca do destino que se
deve dar à trípode de ouro? Procura o primeiro em sabedoria
dentre os homens, a trípode caberá a esse".
Era difícil a conjectura. Tão difícil que, a ser verdade o que
Diodoro escreve, a trípode acendeu a guerra na Iônia.
O mais sábio! - o mais sábio sou eu, e não o meu vizinho da
esquerda, o qual pretende igualmente ser mais sábio que o meu
vizinho da direita. Sou eu, e não o vizinho fronteiro, que
acredita-se ainda mais sábio que todos nós, nem o vizinho da
esquina que se reputa mais sábio que o vizinho fronteiro, nem o
da rua próxima que se supõe mais sábio que o vizinho da

escândalo. (FOUCAULT, 2011, p. 204)


475

esquina!
Se a pítia, em vez de designar o mais sábio, houvesse designado
o menos instruído, o menos apto, o menos capaz, a trípode
corria o risco de não pertencer a ninguém, mas com certeza não
haveria a guerra da Iônia.
Não houve guerra no nosso caso, ó leitores, nem a trípode correu
o risco de ficar abandonada; aceitou-a o menos apto: sou eu.
(ASSIS, 2008, v. 4, p. 117)

A paródia se dá pela inversão, à medida que a pítia determina que a trípode


deveria ser entregue ao mais sábio dos homens. Tal determinação, segundo o cronista
citando Diodoro, provocou a guerra na Iônia301. Na sociedade do cronista, essa
determinação criaria o mesmo conflito visto que cada um se acharia mais sábio que o
seu vizinho. Para evitar o conflito, o cronista sugere que se designe o menos capaz para
possuí-la, ficando ele mesmo com essa função.
Outra referência feita pelo cronista à filosofia grega é a da personagem de
Sócrates. Na crônica de 24 de dezembro de 1861 da série Comentários da Semana, o
cronista, ao comentar sobre a retratação feita pelo Ministro da Justiça, cita do trecho de
Fédon de Platão o momento em que Sócrates livre dos ferros que lhe prendiam as
pernas, coça-as:

Dizia não sei que homem de Estado que é de boa política fazer o
mal, porque depois toda a concessão é considerada um bem de
valor real. Este preceito não foi mal compreendido pelo atual
chefe da nação francesa, que depois de arrecadar todas as
liberdades públicas, vai agora concedendo, hoje uma largueza à
imprensa, amanhã, outra ao parlamento, e depois outra no
sentido da autonomia provincial, e a cada pedaço que larga à
nação faminta, esta aceita agradecida e tece louvores ao seu
protetor.
Também por cá se dá o mesmo. Preceito tão salutar não podia
deixar de ser observado neste país. Semelhante à dos correios,
houve ultimamente uma do Sr. Ministro da Justiça, que acaba de
restabelecer por um aviso as prisões que competem aos oficiais
da guarda nacional.

301 Encontramos a referência à trípode de ouro em um site sobre Os Sete sábios da Grécia de autoria de
W. A. Ribeiro Jr. Segundo Ribeiro Jr., a lenda da trípode de ouro foi contada por Diógenes Laércio:
Diógenes Laércio (D.L. 1.1.27-8) conservou as diversas versões da lenda que agrupou esses homens.
Uma delas conta que, certo dia, alguns pescadores de Mileto encontraram uma trípode de ouro.
Interrogado o oráculos de Delfos, ele ordenou que a entregassem ao mais sábio dos homens. O povo
de Mileto entregou-a a Tales, que declinou da honra afirmando que havia outros mais sábios que ele.
A trípode passou então por todos os homens da lista, mas todos tiveram a mesma atitude. Sólon (ou
Bias), finalmente o sétimo a recebê-la, ofereceu a trípode a Apolo, dizendo que o deus era o mais
sábio. http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0210 Consultado em 24 de novembro de 2014.
476

Como sempre acontece, a reparação foi considerada um


benefício extremo; a guarda nacional agradeceu ao ministério o
seu ato, e choveram os louvores.
Isto provaria contra o país, se não fosse fato observado em
outros países. Por conhecerem da eficácia do sistema, é que os
políticos o empregam; lembremo-nos de que, já na Antigüidade,
Sócrates sentia prazer em coçar a perna depois do arrocho.
A este respeito, os nossos ministros são de boa massa. (ASSIS,
2008d, pp. 134-135)

Lúcia Granja, em sua obra Machado de Assis Escritor em Formação, ao tratar


dessa referência comenta que:

A relação mais direta que se coloca entre o discurso de Platão e


a crônica de Machado é a própria questão da retratação
(palinódia). Sócrates retrata-se pelo discurso de valor perigoso,
como os governos brasileiro e francês em relação aos seus atos
nulos. Esse ato, a retratação, na atualidade política, cria a
novidade das ações. Mas a evocação dos discursos socráticos
tem ainda um sentido mais profundo na crônica: como no
diálogo platônico, o fulcro da questão tratada não é a que se
apresenta na superfície, o amor ou as mudanças de
procedimento dos governos, mas a própria natureza do discurso
(GRANJA, 2000, p. 54).

Desse modo, estabelecendo o paralelo entre o governo brasileiro e a imagem de


Sócrates, o cronista chama a atenção para esse jogo discursivo, no qual, no caso do
governo brasileiro, a retratação, ao invés de evidenciar um compromisso com a verdade,
evidencia o jogo político dessa pretensa produção de verdade.
A referência mais recorrente feita pelo cronista é a associação do burro à
filosofia, tratando como um animal filosófico. Na crônica de 15 de agosto de 1876 da
série História de Quinze Dias, o cronista, fazendo a diferença entre o cavalo e o burro,
observa que, se o coice no cavalo é uma perversidade, no burro é um argumento:

Vejam o burro. Que mansidão! Que filantropia! Esse puxa a


carroça que nos traz água, faz andar a nora, e muitas vezes o
genro, carrega fruta, carvão e hortaliças, _ puxa o bond, coisas
todas úteis e necessárias. No meio de tudo isso apanha e não se
volta contra quem lhe dá. Dizem que é teimoso. Pode ser; algum
defeito é natural que tenha um animal de tantos e tão variados
méritos. Mas ser teimoso é algum pecado mortal? Além de
teimoso, escoiceia alguma vez; mas o coice, que no cavalo é
uma perversidade, no burro é um argumento, ultima ratio.
477

(ASSIS, 2009a, p. 85)

Acentuando o comportamento de mansidão e filantropia como característica do


burro, observa que, se alguma vez escoceia, o faz como ultima ratio, isto é, como
último recurso ou último instrumento a ser usado. Em crônica de 15 de março de 1877,
ao tratar da inauguração dos bonds de Santa Teresa inventa um diálogo entre os burros,
no qual evidencia sua qualidade filosófica e humanitária:

Alguns burros, afeitos à subida e descida do outeiro, estavam


ontem lastimando este novo passo do progresso. Um deles,
filósofo, humanitário e ambicioso, murmurava:
— Dizem: les dieux s'en vont. Que ironia! Não; não são os
deuses somos nós. Les ânes s'en vont, meus colegas, les ânes
s'en vont.
E esse interessante quadrúpede olhava para o bond com um
olhar cheio de saudade e humilhação. Talvez rememorava a
queda lenta do burro, expelido de toda a parte pelo vapor, como
o vapor o há de ser pelo balão, e o balão pela eletricidade, a
eletricidade por uma força nova, que levará de vez este grande
trem do mundo até à estação terminal. (p. 177)

Em crônica de 5 de novembro de 1886, Malvólio comenta a conversa que teve


com um burro e o apresenta nos seguintes termos:

Então lembrei-me de um burro,


Sujeito de algum valor,
Nem grosseiro nem casmurro,
Menos burro que o senhor.

E pensei: “Naturalmente
Traz toda a historia sabida;
É burro, há de ter presente
A proteção recebida”
(...)
Ele, burro circunspecto,
Asno de boa feição,
Tirou de fino intelecto
Esta profunda razão:

— Se eu estivesse ali junto


Com outros da minha banda,
Você não tinha este assunto
Para a “Gazeta de Holanda”. (ASSIS, 2008, v. 4, p. 676)
478

Essa referência ao burro como animal ruminante e filosófico, em detrimento do


cavalo, conforme vimos, estabelece a crítica alegórica que o cronista faz em vários
momentos do conceito de filosofia e de verdade do século XIX. A alegoria se estabelece
sobretudo na oposição ao novo sistema tecnológico de transporte que substituiu o uso da
tração de animais. Há nessa alegoria a flagrante tensão entre a verdade da ciência (a
tékhne) e a verdade do sábio associado ao burro. Essa associação estabelece o
deslocamento dos valores como forma de denúncia da inversão entre o belo e o sábio
ou, em termos alegóricos, o cavalo, como alegoria retórica frequente nos discursos
políticos e midiáticos e o burro, como alegoria da sabedoria desprezada. Há também,
sobretudo em várias crônicas da série A Semana, a alegoria do burro referida ao sistema
escravocrata e ao processo de abolição. Elisangela Aparecida Lopes, em artigo
"Reflexões de dois burros falantes: qual é a moral da história nessa crônica fabular de
Machado de Assis?", observa que:

Tanto a crônica, quanto o conto, revelam o lado prático da


ordem escravista: a inutilização de um escravo eqüivalia à
inutilização de um bem. Sendo assim, tanto pagar pelas sovas
dadas aos burros, quanto ter um cativo impossibilitado de
exercer o trabalho são prejuízos que vão de encontro à lógica
comercial. Faz-se necessário destacar, apesar de evidente, que a
aproximação entre o burro e o escravo, nas duas crônicas
referidas, não está calcada em um tom pejorativo capaz de
desvalorizar o negro; ao contrário do que ocorria no senso
comum, nos discursos favoráveis à escravidão e na literatura de
tese, produzida à época. Ao aproximar o burro e o escravo,
Machado de Assis reveste aquele de aspectos positivos: o
domínio da linguagem, a capacidade de análise, a reflexão social
e política, o dom da oratória, a sabedoria – características
humanas que confirmam a uma das características da fábula: a
personificação. Ao construir a alegoria dos escravos na figura
dos burros, o escritor proporciona que o sistema escravocrata
seja desvelado pela voz do cativo. (LOPES, 2009, pp. 1-14)

Os deslocamentos percebidos nessas crônicas, tanto na referência à filosofia


grega, quanto na associação do burro como animal filosófico, evidenciam a crítica
machadiana ao sistema filosófico positivista que, baseado na ideia de evolução natural e
social, o homem do século XIX, conforme o positivismo de Augusto Comte, é a
expressão última dessa evolução. Em Machado, há um processo de inversão desses
valores, isto é, ao citar a mitologia e a filosofia gregas, evidencia a ignorância e
479

estupidez do homem moderno e, ao tratar o burro como animal filosófico mais


inteligente do que o leitor conforme afirma Malvólio, nega a pretensa superioridade
evolutiva das espécies que sustenta o pensamento positivista. Como afirma na crônica
de 1º de outubro de 1876: "A verdade fala pela boca dos pequeninos".
A terceira modalidade é a verdade do técnico, cujo conhecimento implica não
somente um conhecimento teórico, mas um exercício. Esse saber está ligado a uma
tradicionalidade, pois só se mantém na transmissão do mestre ao discípulo. Na crônica
do dia 2 de junho de 1878 da série Notas Semanais, o cronista evidencia essa verdade na
constituição de si como cronista:

Há heranças onerosas. Eleazar substituiu SIC, cuja pena, aliás,


lhe não deram, e conseguintemente não lhe deram os lavores de
estilo, a graça ática, e aquele pico e sabor, que são a alma da
crônica.
A crônica não se contenta da boa vontade; não se contenta
sequer do talento; é-lhe precisa uma aptidão especial e rara, que
ninguém melhor possui, nem em maior grau, do que o meu
eminente antecessor. Onerosa e perigosa é a herança; mas eu
cedo à necessidade da ocasião.
Resta que me torne digno, não direi do aplauso, mas da
tolerância dos leitores. (ASSIS, 2008e, p. 87)

Definindo a crônica como um conhecimento técnico, o cronista Eleazar assume


esse lugar de tradição e transmissão, reconhecendo-o como heranças onerosas,
substituindo SIC, pseudônimo de Carlos de Laet. Outra forma de reconhecimento dessa
tradição técnica, não somente das crônicas, mas da maior parte - senão toda - de seus
escritos é o uso da intertextualidade. Como já discutimos, a intertextualidade tem como
efeito a proximidade e identificação entre autor e leitor, na qual evidencia um
conhecimento comum a ambos. Mas também, a intertextualidade é uma forma de
diálogo que o texto estabelece com a tradição: reconhecimento de textos que o
antecederam e evidência da emulação do texto citado no texto que cita.
Como Foucault observa no trecho já citado anteriormente, na época moderna,
essa modalidade do dizer-a-verdade do técnico se organiza muito mais em torno da
ciência do que do ensino. Conforme observa Bertrand em trecho também citado neste
capítulo, o discurso científico manifesta a ausência da presença da veridicção, à medida
que apaga por meio da debreagem actancial, camuflando o sujeito da enunciação:
480

A identificação ilusória dos participantes da comunicação


científica (enunciador e destinatário) "explica o aparecimento
primeiro de um 'nós', subsumindo as duas instâncias da
comunicação, que passa facilmente a um 'se', exprimindo
qualquer sujeito do discurso, para culminar no desparecimento
do sujeito com os 'é verdade' e 'é preciso'"302. Essa operação,
que garante a "transmissibilidade generalizada" do discurso
científico, realiza-se segundo um percurso modal que mobiliza e
entrecruza as modalidades veridictórias, as modalidades
epistêmicas e as modalidades aléticas. A questão do saber,
encarada em suas relações predicativas, reencontra assim esses
três conjuntos modais, por meio dos quais ela se regula.
(BERTRAND, 2003, p. 317)

Entendendo esta outra acepção apresentada por Foucault do dizer-a-verdade do


técnico na época moderna - em nossa análise, no século XIX - como característico do
discurso científico e observando o modo de funcionamento da veridicção desse discurso
seguindo a observação de Bertrand, podemos identificar uma outra manifestação dessa
modalidade nas crônicas. Em diversos momentos delas, o cronista refere-se a notícias de
jornais que divulgam ou noticiam eventos ou produtos científicos. Essas divulgações e
notícias na imprensa estão misturadas com o discurso publicitário de forma que não se
trata apenas de transmissão de um saber, mas de divulgação voltada para o consumo. É
sobre este modo no qual se opera o saber científico que o cronista em vários momentos
o torna em objeto de análise e de crítica.
Na crônica do dia 25 de novembro de 1861 da série Comentários da Semana, o
cronista Gil comenta o discurso feito pelo diretor da Faculdade de Medicina, o senador
José Martins Cruz Jobim, proferido na colação de grau dos alunos de medicina,
formados na mesma semana, no qual, segundo o cronista, o senador havia preterido o
saber da ciência em favor do empirismo. Citando uma frase de Molière, o cronista o
satiriza dizendo: Où la direction d'une académie va-t-elle se nicher! (Onde a direção de
uma academia vai se esconder)303:

302 O trecho entre aspas é a citação que o autor faz de GREIMAS, Semiótica e ciências sociais, p. 28.
303 Conforme nota de Lúcia Granja e Jefferson Cano: A fonte de Machado para esta expressão é
Voltaire, que, contando a vida de Molière, diz que o escritor teatral, depois de dar uma esmola a um
mendigo, foi chamado por ele, que lhe disse "Senhor, talvez não tivesse a intenção de me dar um luís
de ouro: venho devolvê-lo". Molière teria dado ainda um outro luís de ouro ao mendigo e exclamado
"Où la vertu va-t-elle se nicher", ou "Onde a virtude vai se esconder!". Voltaire "Vie de Molière avec
des petits sommaires de ses pièces (1739)", in OEuvres complètes de Voltaire. Paris: Garnier, 1879,
vol. 23, p. 95 (ASSIS, 2008, p. 110, nota 11)
481

Outro tanto pudesse eu opor à negação da ciência em favor do


empirismo, que no meio de uma corporação fez o diretor da
Academia de Medicina. Ouvi bem, ó vindouros, o diretor de
uma Academia de Medicina!”Où la direction d'une académie va-
t-elle se nicher!”
Mas não pasmemos, leitor amigo. Negar a ciência é negar a
esposa, com que se contraiu, depois de longo estudo, o
consórcio íntimo do espírito e dos princípios. Mas negar a
publicidade, negar a discussão, que são a alma do sistema
representativo, equivale a negar a liberdade, a negar a própria
mãe.
Ora, se o leitor recorrer aos “Anais” da sessão legislativa deste
ou do ano passado, há de ler no discurso de um membro da
câmara vitalícia a mais extravagante proposta, onde se
suprimiam ou restringiam profundamente aquelas duas
condições de um sistema livre. Depois disto há que admirar?
Lembra-me aquele quimérico de Jules Sandeau, que vendo a
causa da queda dos governos nos próprios governos, suprimia-
os, para acabar com este inconveniente, bem como suprimia as
leis, afim de se não atentar mais contra elas...
Felizmente o senso comum faz ouvidos de mercador, e o
senador diretor prega debalde aos peixinhos.
Os tipos deste gênero são mais vulgares do que muita gente
pensa: — espíritos medíocres, não podendo abraçar a amplidão
do espaço em que a civilização os lançou, olham saudosos para
os tempos e as coisas que já forma, e caluniam, menos por má
vontade que por inépcia, os princípios em nome dos quais se
elevaram (ASSIS, 2008d, pp. 107-108)

A crítica feita ao discurso do senador não se refere propriamente à


hierarquização estabelecida entre o saber teórico e a experiência, mas, conforme a
paródia da frase de Molière, ao discurso publicitário no qual o médico senador se
esconde como forma de constituir um ethos. Essa crítica se evidencia no comentário
irônico que negar a ciência é negar a esposa, mas negar a publicidade é negar a própria
mãe. Na crônica seguinte, do dia 1º de dezembro de 1861, o cronista volta a esse
assunto corrigindo o nome da instituição e novamente critica o senador Jobim por ter
repetido em seu discurso a palavra cloaca, reafirmando a citação da frase de Molière
com nova alteração: Où la science et la pairie vont-elles se nicher! ou Onde a ciência e
a honraria vão se esconder.
Em crônica do dia 5 de junho de 1864 da série Ao Acaso, o cronista comenta
sobre um anúncio que havia lido em um jornal estrangeiro a respeito de umas escovas
volta-elétricas do Dr. Hoffmann. Sem questionar o produto em si, o que chama a sua
atenção e riso é o modo como o produto é apresentado - último progresso da ciência:
482

PARENTHESIS. A propósito de ciência abro um parênteses. Li


em um jornal estrangeiro o anúncio de umas escovas volta-
elétricas do dr. Hoffmann (de Berlim).
Parece que realmente as tais escovas são maravilhosas; mas, o
que me fez rir foi a declaração de que esse invento era o último
progresso da ciência.
É um anúncio esse que compromete singularmente a gravidade e
a sisudez que eu suponho no dr. Hoffmann (de Berlim). É por-
lhe na boca, pouco mais ou menos, estas palavras:
_ Meus senhores, chegamos ao derradeiro limite. Eu sou as
colunas de Hércules da ciência. Daqui para diante, mares
tenebrosos, regiões escuras, o caos. A ciência, depois de correr
tantos séculos, conta hoje dois grandes focos de luz, dois pontos
capitais, o alpha e o omega, o princípio e o fim, Hipócrates e o
dr. Hoffmann (de Berlim).
Este é que é o último progresso do puff.
Fecho parênteses. (ASSIS, 2008, v. 4, p. 120)

Novamente, a crítica não se refere ao saber científico em si, mas à mistura com o
discurso publicitário. Para tanto, o cronista opera a hipérbole na notícia como
procedimento que evidencia o absurdo da campanha publicitária de forma que se
Hipócrates é o alfa da ciência, o Dr. Hoffmann se auto-intitula o ômega.
Outra crítica feita nessa mesma série é a da propagação de um curso de música
chamado Música a Vapor, anunciando um novo ensino musical, no qual os professores
Carlos Hermann e Rahn garantem o aprendizado de modo que o aluno possa compor
uma música como se escrevesse uma carta. A crítica é feita por meio de uma suposição
alegórica na qual o leitor, interessado em aprender música tentara diversas
possibilidades sem sucesso, mas encontraria naquele método a solução de seus
problemas:

O folhetim aplaude os progressos sérios; mas ri dos progressos e


dos melhoramentos ridículos. Há-os assim.
Uma hipótese:
O leitor foi aluno do conservatório de música; lá esteve muito
tempo e de lá saiu como entrou; nunca pôde entender o
abecedário musical; a semifusa era uma esfinge que o leitor não
pôde desencantar, como Édipo, mas que também não o devorou,
por felicidade nossa; em resumo, o leitor perdeu alguns anos de
vida, e achou-se um dia condenado a lançar mão de outra
profissão qualquer.
Mas como? O leitor é fanático por música; frequenta o teatro
lírico, e não perde uma récita que seja; é o primeiro que entra e o
483

último que sai; assiste à afinação dos instrumentos, acompanha


de cabeça todos os andantes e allegros. Quando sai do teatro está
desvairado. Atira-se ao piano inútil que tem em casa, a ver se
pode, mesmo sem o auxílio das regras, reproduzir as harmonias
que sente em si.
Mas nada consegue, faz um ruído infernal, atordoa os vizinhos,
perde uma noite de sono, e é obrigado a passar o dia seguinte de
cama.
Desengana-se por fim: é para a música um ente nulo. Mas quem
pode deixar facilmente a primeira ilusão que acalentou no peito?
O leitor hesita, estremece, consulta o céu, arranca um punhado
de cabelos, até que um dia de manhã, segunda-feira passada, vai
ter-lhe às mãos o Jornal do Comércio, e o leitor vê aí a seguinte
notícia:
“Música a vapor. — Segundo o “Jornal dos Debates “, devia
haver na rua Neuve Bossuet, em Paris, uma sessão pública e
gratuita, dada pelos Srs. Carlos Hermann e Rahn, para se poder
apreciar toda a importância de um novo ensino musical, em que
o professor Rahn pensa há muito tempo e que vem a ser a
resolução do seguinte problema: habilitar qualquer indivíduo a
compor um trecho de música, a improvisar em um piano com
tanta presteza como se escreve uma carta e se improvisa uma
conversação”.
Deixo em claro o monólogo de satisfação que o leitor
naturalmente há de produzir depois de ter lido as linhas que aí
ficam transcritas.
Graças aos Srs. Rahn e Carlos Hermann, o leitor, até então
completamente leigo na arte de Euterpe, pode vir a ser um
músico notável e preencher a missão de que se supõe investido.
Antes não poderia fazê-lo; a música era então um monopólio
dos gênios e dos talentos que Deus criava e o estudo instruía.
Hoje, a música democratize-se; não só Mozart pode ser músico,
como pode sê-lo qualquer indivíduo, o leitor ou eu, sem precisar
nem de talento nem de estudo.
Mais. O estudo e o talento tirariam ao sistema dos Srs. Rahn e
Carlos Hermann o maior mérito que eu lhes vejo, que é a
supressão daquelas duas condições.
Tínhamos até aqui as máquinas de moer música, na expressão de
um escritor ilustre; agora temos máquinas para fazer música, o
que é — em que pese aos fósseis — o supremo progresso do
mundo e a suprema consolação das vocações negativas.
Daqui em diante todas as famílias serão obrigadas a ter em casa
uma máquina de fazer café e uma máquina de fazer música —
para digerir o jantar.
Além da vantagem de vulgarizar a arte, o novo sistema é útil
pela economia de tempo. O tempo é dinheiro. Achar um sistema
que habilite a gente a compor uma sinfonia enquanto fuma um
cigarro de Sorocaba, é realmente descobrir a pedra filosofal.
Três vezes salve, rei Improviso!
Que vales tu agora, velha Inspiração? Os tempos te enrugaram
484

as faces, e te amorteceram os olhos. Tens os cabelos brancos,


vê-se que a tua realeza chega ao termo; é preciso abdicar.
Sôfregos de viver e de produzir, queremos em teu lugar um rei
ativo, sôfrego, pimpão, um rei capaz de nos satisfazer, como o
não fazes tu que já andas trôpega de velhice.
Tudo isto que acabo de dizer, diria naturalmente o leitor, se
acaso estivesse na hipótese que figurei.

Esses três exemplos são apenas alguns dos vários produzidos pelo cronista que
mostram o modo como ele denuncia por meio do rebaixamento, da intertextualidade, da
sátira e da alegoria, essa junção de ciência e publicidade que domina a época moderna
como modalidade do dizer-a-verdade técnico. A crença cega no discurso realista-
positivista possibilitou que cada vez mais, sabendo da crença popular na ciência,
diversas instituições científicas, cientistas e empresas transformassem o saber técnico
em produto de consumo, abandonando o compromisso com esse saber para torná-lo
produto publicitário nos jornais da época. Daí o investimento crítico por meio dos
procedimentos analisados nos capítulos anteriores que o cronista faz como forma de
ridicularizar esse costume. Essa denúncia transforma-se em procedimento estético no
romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando o defunto-autor narra sua
tentativa de inventar um remédio para curar a melancolia da humanidade.
A quarta modalidade, a que Foucault dedicou todo um curso, é a parresía,
segundo o qual o parresiasta tem como regra dizer tudo, dizer a verdade, estabelecendo
correspondência entre o que diz e o que pensa e assumindo o risco de dizer tudo, isto é,
tendo coragem para arriscar a vida dizendo a verdade. Conforme Foucault assume mais
a frente, na época moderna, essa modalidade do dizer a verdade aparece apenas
enxertada e apoiando-se em uma das três modalidades anteriores. No capítulo XXIV do
romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, já citado aqui, o defunto autor, ao falar do
tipo de formação acadêmica que obtivera, diz ao leitor que, por mais que possa espantá-
lo o modo como realça a sua mediocridade, tem o compromisso de falar com franqueza,
isto é, o defunto-autor assume sua verdade discursiva como a de um parresiasta.
Assumindo, portanto, produzir a parresía, o defunto-autor confirma a correspondência
necessária entre o que diz e o que pensa. Contudo, um quiasma marca o seu lugar de
autoria: ele não é autor defunto, autor que por conta do que diz, coloca a vida em risco,
mas defunto autor que faz com que a autoria perca a sua condição de ente real para se
tornar um adjetivo. A morte toma o lugar do ente real como produção discursiva. Em
outras palavras, a morte não é efeito da autoria do parresiasta que coloca a vida em risco
485

como produção da coragem de verdade; pelo contrário, é na condição de morto que diz
poder falar a verdade. Estabelece, portanto, nessa inversão e na justificativa desse
desdém dos finados a crítica aos modos de produção da verdade na sociedade brasileira
do século XIX, ao evidenciar a impossibilidade da franqueza, visto o autor/orador estar
sujeito ao olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças, que obrigam a
calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as
revelações que se fazem à consciência. Portanto, à força de embaçar os outros, o
autor/orador embaça-se a si mesmo como forma de evitar o vexame, a sensação penosa
e o vício hediondo. Confirma-se, portanto, a afirmação de Foucault ao dizer da
impossibilidade da parresía na época moderna.
Ao analisar a transformação na história da parresía, Foucault observa que nos
textos do século V e, sobretudo no século IV, ela se torna uma prática perigosa e,
portanto, existe a recomendação de certas precauções e limites. Uma das críticas feitas é
a da parresía democrática vista primeiro como liberdade de qualquer um falar e não
como privilégio estatutário dos que são capazes, por seu nascimento, seu estatuto, sua
posição. Sobretudo Platão em A República e Isócrates no início do Discurso sobre a paz
vão criticar essa forma de parresía, visto que ela permite a qualquer um falar e,
portanto, falam igualmente os bêbados e pessoas que não estão em posse de sua razão,
produzindo discursos falsos, opiniões nefastas ou nocivas, perigosas para a cidade.
Segundo, vendo a parresía como perigosa, na medida em que requer de quem fala uma
coragem de correr o risco de desagradar, a atenção do povo, sujeita a discursos
sedutores, faz com que os que falam o que é verdadeiro e bom não sejam ouvidos, não
agradem, podendo provocar reações negativas, expondo quem fala à vingança e à
punição304.
Conforme vimos no capítulo sobre as anti-metáforas, na crônica de 24 de
outubro de 1886 da série A + B, o cronista opera a desconstrução do conceito de
República formulado por Platão ao tratar da parresía, quando propõe que sejam
suprimidos todos os postos e os filhos da República sejam cabeleireiros: "Eu faria
decretar que todos os filhos de república fossem cabeleireiros. Cabeleireiro, como se

304 Vocês veem, portanto, a noção de parresía se dissociar. De um lado, ela aparece como a latitude
perigosa, dada a todo o mundo e a qualquer um, de dizer tudo e qualquer coisa. E, depois, há a boa
parresía, a parresía corajosa, e essa parresía corajosa (a do homem que generosamente diz a verdade,
inclusive a verdade que desagrada) é perigosa para o indivíduo que dela faz uso e não há lugar para
ela na democracia. Ou a democracia abre espaço para a parresía, e isso é necessariamente uma
liberdade perigosa para a cidade; ou a parresía é de fato uma atitude corajosa que consiste em
empreender dizer a verdade, e então não tem espaço na democracia. (FOUCAULT, 2011, p. 35)
486

sabe, é o mais pacato dos cidadãos de um Estado. Outros que o solapem, que deitem
fogo às instituições; o cabeleireiro compõe as cabeças, e, quando muito, abre uma
espécie de estrada da liberdade, que alegra a vista, sem alteração da ordem..." (ASSIS,
1956, p. 48).
Sem aprofundar muito a discussão feita por Foucault sobre a parresía
democrática nas obras de Platão, Isócrates e Aristóteles, evidencia-se a crise dela no
pensamento grego do século IV a. C, colocando como problema principal a
diferenciação ética dessa coragem da verdade.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a fala franca do defunto-autor só é
possível pela sua condição de morto e como produção da verdade de si. Conforme o
trecho visto, a franqueza é evidenciada em seu discurso pelo fato de ele falar
abertamente de seus fracassos conforme afirma no capítulo "Das negativas" ao dizer
que: "Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não
conheci o casamento". A sua incompetência de realização é compensada pelo que define
como positivo, isto é: "Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de
não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida,
nem a semidemência do Quincas Borba". O fato de, pela sua boa fortuna, não ter de
comprar o pão com o suor do seu rosto, ao invés de compensar sua incompetência, a
potencia, à medida que evidencia as condições para ter alcançado as suas realizações. A
compensação se dá no nível discursivo em que a convenção simbólica na qual a obra se
insere é exatamente a falta de convenção simbólica como definição do arbitrário, de
modo que há na estrutura do romance uma consciência teórica em que a construção da
ficção narrativa se opera pela autodestruição do defunto-autor como efeito do ethos.
Desse modo, podemos ver que à medida que o cronista opera a desconstrução
das pretensas verdades, sejam elas proféticas, filosóficas ou científicas, constrói a
verdade da derrisão. Se nas crônicas, os discursos dominantes e institucionais são
objetos da derrisão do cronista, nos romances e, sobretudo, em Memórias Póstumas de
Brás Cubas, a derrisão entranha-se no ato enunciativo de modo que não se pode dizer
com certeza quem fala, se Brás Cubas, Dom Casmurro, Conselheiro Aires ou Machado
de Assis. Essa derrisão, como observa Georges Minois em sua obra História do Riso e
do Escárnio, é característica da figura do bobo do rei, o qual encarna o papel ambíguo,
de poder expressar a verdade pelo riso e pela derrisão:

Seu papel é expressar a verdade pelo riso, pela derrisão,


487

chamando as coisas por seu nome, ou seja, chamando as


sublimes "razões de Estado" pelo que elas são na verdade:
vulgares cálculos de interesse. Com a afirmação do absolutismo,
o rei, cercado de conselheiros-cortesãos, tende a perder o
contato com a realidade e, sobretudo, com os aspectos
desagradáveis do real. Somente o pseudobobo pode,
impunemente, desmistificar, desvelar as quimeras e os falsos
saberes. Com a condição de desempenhar bem seu papel,
eminentemente ambíguo: quem pode conhecer a psicologia
exata desses seres híbridos, meio sábios, meio loucos? Em que
proporção eles são atores e se identificam com seus
personagens? (MINOIS, 2003, p. 285)

Portanto, fazendo esse papel ambíguo em que, no texto, narrador, autor e


enunciador, confundem-se, os textos machadianos, seja nos romances ou nas crônicas,
fazem surgir a razão da loucura que, como afirma Minois, "quanto mais bobo, mais ri e
mais faz rir, mais se é sábio".
Sem esgotar essa discussão em torno dos jogos discursivos que fundam o
conceito de verdade, interessa-nos aqui lançar essa questão para apontar o interesse em
compreender os jogos discursivos por meio dos procedimentos composicionais que
constituem as crônicas machadianas e que – esta é nossa hipótese – determinam a
escrita romanesca, principalmente em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nesse
sentido, as análises do contrato veridictório apresentadas por Denis Bertrand e as quatro
modalidades de verdade apresentadas por Michel Foucault podem ser aproximadas e
contribuir para a compreensão desses jogos discursivos das crônicas machadianas.
Analisando os jogos discursivos das crônicas e dos romances por meio dessa
proximidade, seria possível evidenciar as diferenças na construção do enunciador
inaugurado no sujeito actancial de um defunto-autor em Memórias Póstumas de Brás
Cubas. Qual a relação entre saber e poder que se mostra na construção desse sujeito
enunciativo? São questões que se apresentam desde o início para compreender o que
está em questionamento nesses jogos de indeterminação. Afinal, como afirma o
cronista: "No fim de uma coisa que acaba, há outra que começa, e a morte paga com a
vida: eterna ideia e velha verdade. Que monta? Ao cabo, só há verdades velhas, caiadas
de novo". (ASSIS, 2008, p. 91-92)

I - Multiplicidades rizomáticas e multiplicidades arborescentes.

Os modos de produção dos discursos nas crônicas e nos romances, conforme


488

mostramos nos capítulos anteriores, estabelecem-se por estratégias distintas com o


mesmo objetivo: evidenciar as regras de produção discursiva como relações de poder e,
por meio dessas relações de poder, evidenciar os jogos de verdade. Após analisarmos
como se dão os modos de automatização do discurso como produção da verdade,
podemos evidenciar o processo pelo qual a pena do cronista nas crônicas e nos
romances opera a desautomatização dessa produção. Para tanto, pretendemos agora
analisar estruturalmente o modo de organização textual que determina as crônicas como
procedimento de conjunto e estabelecer a diferença com o modo de organização que
determina os romances. Servindo-nos do instrumental teórico de Deleuze e Guattari,
propomos identificar o modo de desautomatização dos discursos da crônica como
método da esquizoanálise e o modo de constituição do eu enunciativo dos romances
pelo significante despótico. Para podermos aplicar de modo mais elucidativo essas duas
diferentes formas na escrita machadiana é preciso tratar de alguns conceitos que os
autores franceses trabalham a começar pelo que definem como multiplicidades
rizomáticas e multiplicidades arborescentes.
No primeiro texto de Mil Platôs volume 1, intitulado Introdução:Rizoma, Gilles
Deleuze e Félix Guattari definem o livro como formado por diferentes matérias, datas e
velocidades, de modo que o livro é um agenciamento inatribuível e, como tal, opera
pela multiplicidade. Contudo, essa multiplicidade pode implicar um agenciamento
maquínico direcionado para os estratos305 que fazem dele uma espécie de organismo
voltado para uma totalidade significante, isto é, voltado para uma unidade principal: o
que o torna em multiplicidade arborescente nomeado como livro-raiz;306 ou pode

305 O conceito de estrato é apresentado pelos autores como fenômenos de espessamento no Corpo da
Terra ao mesmo tempo molares e moleculares. O estrato apresenta três dimensões diferentes que nos
amarram diretamente à cultura estabelecida: a dimensão do organismo, a qual pretende que sejamos
organizados de modo hierarquizado e com função determinada dentro de um corpo articulado; a
dimensão da significância que nos condiciona à relação de significante e significado, intérpretes e
interpretados; e a dimensão da subjetivação, na qual devemos estar fixados como sujeitos às
representações transcendentes que organizam o modo dominante de produção de subjetividades.
Qualquer indivíduo que não esteja organizado é tratado como marginal depravado e cópia imperfeita
de modelos normatizados. A estratificação é como a criação do mundo a partir do caos, uma criação
contínua, renovada, e os estratos constituem o Juízo de Deus. O artista clássico é como Deus, ao
organizar as formas e as substâncias, os códigos e os meios, e os ritmos, ele cria o mundo.
(DELEUZE & GUATTARI, 2012, p. 230-231)
306 Um agenciamento maquínico é direcionado para os estratos que fazem dele, sem dúvida, uma
espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem uma determinação atribuível a um
sujeito, mas ele não é menos direcionado para um corpo sem órgãos, que não pára de desfazer o
organismo, de fazer passar e circular partículas a-significantes, intensidades puras, e não pára de
atribuir-se os sujeitos aos quais não deixa senão um nome como rastro de uma intensidade. (2011,
volume 1, p. 18)
489

implicar para um corpo sem órgãos307 voltado a desfazer o organismo, fazendo passar
e circular partículas assignificantes, intensidades puras, e não para de atribuir-se os

307 Deleuze e Guattari definem o Corpo sem Órgãos como um corpo povoado de multiplicidades. O CsO
é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo: ali onde o desejo se
define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria
torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo (DELEUZE & GUATTARI, 2004, volume 3, p. 15) O CsO
não é de modo algum contrário aos órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. O inimigo é o
organismo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama
organismo. O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, isto é, um fenômeno de
acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações,
dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil. O CsO oscila
entre dois pólos: de um lado, as superfícies de estratificação sobre as quais ele é rebaixado e
submetido ao juízo, e, por outro lado, o plano de consistência no qual ele se desenrola e se abre à
experimentação (p. 21). Os três grandes estratos que nos amarram diretamente: a superfície do
organismo (você será organizado, você será o organismo, articulará seu corpo, senão você será
depravado), o ângulo de significância e de interpretação (você será significante ou significado,
intérprete e interpretado, senão será desviante) e o ponto de subjetivação ou de sujeição (você será
sujeito e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado, senão você
será apenas um vagabundo). O CsO opõe a desarticulação a esse conjunto de estratos (ou as n
articulações) como propriedade do plano de consistência, a experimentação como operação sobre este
plano (não interprete, experimente), o nomadismo como movimento. Desarticular o organismo nunca
foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções,
superposições, passagens e distribuições de intensidades, territórios e desterritorializações. Como
fazer para arrancar a consciência do sujeito, arrancar o inconsciente da significância e da interpretação
para fazer dele uma verdadeira produção, arrancar o corpo do organismo? A prudência é a arte comum
dos três (p. 22); é necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada
aurora; conservar pequenas provisões de significância e de interpretação para opô-las a seu próprio
sistema; conservar pequenas rações de subjetividade para poder responder à realidade dominante -
imitar os estratos - não se atinge os CsO e seu plano de consistência desestratificando grosseiramente
O pior não é permanecer estratificado (organizado, significado, sujeitado) mas precipitar numa queda
suicida ou demente. (p. 23). Deve-se instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que
ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de
fugas possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por
segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. O CsO é
tudo isto: necessariamente um Lugar, necessariamente um Plano, necessariamente um Coletivo
(agenciando elementos, coisas, vegetais, animais, utensílios, homens, potências, fragmentos de tudo
isto, porque não existe "meu" corpo sem órgãos, mas "eu" sobre ele, o que resta de mim, inalterável e
cambiante de forma, transpondo limiares) (p. 24). Encontra-se CsO já nos estratos não menos do que
sobre o plano de consistência desestratificado, mas de uma maneira completamente diferente (p. 25).
Há dois tipos de CsO: um que se opõe à organização dos órgãos, que se opõe ao organismo; o outro
que pertence ao organismo. No estrato do organismo, é o tecido canceroso, a quem o organismo
reconduz à sua regra; no estrato da significância: um corpo brotando do déspota que bloqueia toda
circulação dos signos; no estrato da subjetivação: um corpo asfixiante que não deixa subsistir uma
distinção entre os sujeitos. O CsO do dinheiro - a inflação; Se os estratos dizem respeito à coagulação,
à sedimentação, basta uma velocidade de sedimentação precipitada num estrato para que ele perca sua
figura e suas articulações , e forme seu tumor específico nele mesmo, ou em tal formação, em tal
aparelho (p. 26). O CsO é desejo, é ele e por ele que se deseja, podendo ser tanto o plano de
consistência ou campo de imanência do desejo, mas também na proliferação do estrato canceroso:
desejo de dinheiro, desejo de exército, desejo de polícia e de Estado, desejo-fascista. Há desejos toda
vez que há constituição de um CsO numa relação ou outra. (p. 28) O problema material de uma
esquizo-análise é o de saber se possuímos os meios de realizar a seleção, de separar o CsO de seus
duplos (corpos vítreos vazios, corpos cancerosos, totalitários e fascistas) (p. 29) Por mais que as
máquinas-órgãos se enganchem sobre o CsO, este permanece sem órgãos e nem volta a ser organismo
no sentido usual da palavra. Ele guarda seu caráter fluido e deslizante (p. 29 v. 6) Sobre o CsO que
tudo se passa e se registra, mesmo as cópulas dos agentes, as divisões de Deus, as genealogias
esquadrinhadoras e as suas permutações. Tudo está sobre esse corpo incriado, como os piolhos na juba
do leão. (p. 30 v. 6)
490

sujeitos aos quais não deixam senão um nome como rastro de uma intensidade.
(DELEUZE & GUATTARI, 2011, pp. 18-20).
Para definir o conceito de rizoma, os autores o estabelecem como oposto a raiz.
A raiz é a imagem da árvore-mundo que se desenvolve pelo binarismo. Desenvolvendo-
se pela binaridade, a árvore/raiz necessita de uma forte unidade principal, unidade
necessária para chegar a duas, três, quatro ou cinco, até produzir a multiplicidade
arborescente, desde que se sustente em uma forte unidade principal. Essa binaridade faz
com que uma ponta da raiz opere no objeto e a outra no sujeito:

Voltemos a esta história de multiplicidade, porque foi um


momento muito importante quando foi criado tal substantivo,
precisamente para escapar da oposição abstrata entre o múltiplo
e o uno, para escapar da dialética, para chegar a pensar o
múltiplo em estado puro, para deixar de fazer dele o fragmento
numérico de uma Unidade ou Totalidade perdidas ou, ao
contrário, o elemento orgânico de uma unidade ou totalidade por
vir — e, sobretudo, para distinguir tipos de multiplicidade. (...)
Nós fazemos aproximadamente a mesma coisa, distinguindo
multiplicidades arborescentes e multiplicidades rizomáticas.
Macro e micromultiplicidades. De um lado, as multiplicidades
extensivas, divisíveis e molares; unificáveis, totalizáveis,
organizáveis; conscientes ou pré-conscientes — e, de outro, as
multiplicidades libidinais inconscientes, moleculares, intensivas,
constituídas de partículas que não se dividem sem mudar de
natureza, distâncias que não variam sem entrar em outra
multiplicidade, que não param de fazer-se e desfazer-se,
comunicando, passando umas nas outras no interior de um
limiar, ou além ou aquém. Os elementos destas últimas
multiplicidades são partículas; suas correlações são distâncias;
seus movimentos são brownóides; sua quantidade são
intensidades, são diferenças de intensidade. (DELEUZE &
GUATTARI, 2011, pp. 59-60)

Diferentemente, o rizoma se processa pelo múltiplo à medida que não superpõe


dimensão superior, mas, ao contrário, de maneira simples, se subtrai como uno
pertencente à multiplicidade, isto é, na multiplicidade rizomática, a embreagem
enunciativa se enuncia menos como verdade e mais como modalidade veridictória. Por
sua vez, na multiplicidade arborescente, a embreagem ou debreagem enunciativa se
enunciam como verdade que remete à unidade principal da instância autoral.
Podemos ver o exemplo do trecho já citado, na apresentação que o cronista faz
na abertura da série Bons Dias em 5 de abril de 1888:
491

Se lhes disser desde já, que não tenho papas na língua, não me
tomem por homem despachado, que vem dizer coisas amargas
aos outros. Não, senhor; não tenho papas na língua, e é para vir
a tê-las que escrevo. Se as tivesse, engolia-as e estava acabado.
Mas aqui está o que é; eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado
de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora,
descri do ofício. A única explicação dos relógios era serem
iguaizinhos, sem discrepância; desde que discrepam, fica-se sem
saber nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do
meu barbeiro. (...)Foi por essas e outras que descri do oficio; e,
na alternativa de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo
alvitre; é mais fácil e vexa menos. (ASSIS, 2008, v. 4, p. 801-
802)

Na abertura das crônicas Bons Dias, o cronista como instância enunciativa se


assume como um pobre relojoeiro desacreditado do ofício e, portanto, desacreditado da
verdade do mundo e, para voltar a ter papas na língua, resolve escrever. A escrita da
crônica como rizoma, portanto, se opõe à instância da crença da verdade legitimada por
uma unidade principal. No começo dessa crônica, afirma não apresentar programa,
dizendo que o que tem de fazer o fará calado. Portanto, a produção da crônica, como
característica do gênero, se dá ao sabor das notícias ou, como já apresentado, as
metáforas associadas a crônica como o colibri que pula de notícia em notícia, as duas
vizinhas que emendam os assuntos ao sabor da hora e do jantar e o botequim em que,
diferentemente da igreja, se entra, pede-se uma bebida e se trocam dois dedos de prosa
com o vizinho do balcão. Logo, e como já demonstramos na análise de organização das
crônicas, os procedimentos retóricos são os responsáveis por estabelecer relações entre
os temas de modo que a crônica não tem um começo nem um fim e o papel do cronista
é acoplar uma notícia a outra conforme o sabor do momento.
Os romances, diferentemente das crônicas, estabelecem um programa narrativo
interposto pelo eu enunciativo como unidade principal. Desse modo, em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, quando no primeiro capítulo é discutida a forma do livro, o
defunto-autor afirma:
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo
princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu
nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja
começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a
adotar diferente método: a primeira é que eu não sou
propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para
quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria
assim mais galante e mais novo. (ASSIS, 2008a, p. 41)
492

Vemos portanto que o defunto autor, ao conjugar o nascimento e a morte como


princípio e fim que estabelecem o limite de suas memórias, faz da sua condição de
morto que escreve e não de escritor que morre a unidade principal que organiza a
multiplicidade arborescente do romance. Ao tratarem da palavra de ordem como
unidade elementar da linguagem, Deleuze e Guattari observam que a palavra de ordem é
sentença de morte, mesmo atenuada, simbólica, iniciática e temporária e desse modo:

Ora, se consideramos o primeiro aspecto da palavra de ordem,


isto é, a morte como expresso do enunciado, percebemos que
corresponde às exigências precedentes: a morte tenta concernir
essencialmente aos corpos, se atribuir aos corpos, deve à sua
imediatidade, à sua instantaneidade, o caráter autêntico de uma
transformação incorpórea. O que a precede e o que a ela se
segue pode ser um longo sistema de ações e de paixões, um
lento trabalho dos corpos; em si mesma, ela não é nem ação nem
paixão, mas puro ato, pura transformação que a enunciação junta
ao enunciado, sentença. (DELEUZE & GUATTARI, 2011,
volume 2, p. 58)

Desse modo, a morte, como lugar de organização e enunciação da ficção


romanesca, estabelece o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas como livro-raiz
se produzindo como multiplicidade arborescente em que o defunto-autor se constitui
como unidade principal. Em outras palavras, ao estabelecer o princípio e o fim de suas
memórias na condição de defunto autor, Brás Cubas preenche simbolicamente o nada da
morte, tornando-a unidade principal da produção de sentido de suas memórias.
Conforme vimos no capítulo 2 "A Estrutura Narrativa machadiana", com base na
narratologia de Gerard Genette, se organizam com base no funcionamento das
metalepses, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, as metalepses funcionam como
modelo arbitrário despótico: as metalepses subordinam a narrativa (história) à narração
de modo que a intervenção do defunto autor na narrativa dá-se por meio do diálogo
agressivo com o leitor, impondo seu modo de interpretação do mundo de forma que seu
discurso torna-se autoritário. Essa imposição evidencia a ficcionalidade da incoerência
textual, tendo de recorrer constantemente à instância da enunciação - o defunto autor -
para garantir a ligação sequencial entre os diversos fragmentos de capítulos.
Diferentemente, em Quincas Borba e Dom Casmurro, as metalepses funcionam como
modelo disciplinar: os autores assumem seus limites como narradores, mas
desautorizam a possível coparticipação do narratário na narrativa de modo que a
narração funciona sozinha. Confirmando essas diferenciações entre o modelo arbitrário
493

despótico e o modelo disciplinar, podemos perceber outro modo de funcionamento das


multiplicidades arborescentes observado por Deleuze e Guattari: Quincas Borba e Dom
Casmurro organizam-se como sistema-radícula, isto é, como segunda figura do livro,
cujo sistema a raiz principal abortou, destruindo-se em sua extremidade, isto é, enxerta-
se nela uma multiplicidade imediata em que qualquer raiz secundária deflagra seu
desenvolvimento. Como observam os autores, nesse sistema-radícula opera-se a
dobradura de um texto sobre outro. No caso de Quincas Borba, a dobra se dá sobre as
memórias do defunto-autor, cuja presença nesse romance se reduz ao mínimo e, no caso
de Dom Casmurro, a dobra se dá na memória desmemoriada do autor suposto. Contudo,
essa dimensão suplementar da dobra faz com que a unidade continue seu trabalho, de
modo que a obra pode também ser apresentada como Obra total ou o Grande Opus308.
Conforme observa os autores, esse sistema-radícula não rompe verdadeiramente com o
dualismo, com a complementaridade de um sujeito e um objeto, pois, se a unidade não
para de ser contrariada e impedida no objeto, um novo tipo de unidade triunfa no
sujeito (p. 21). Desse modo e a partir dessa distinção, iremos nos centrar na análise de
Memórias Póstumas de Brás Cubas como ponto divisor de uma nova forma
composicional romanesca em Machado de Assis.
Cabe aqui estabelecer a distinção entre as duas assinaturas que, conforme
observa Abel Barros Baptista em sua obra A Formação do Nome, estabelece as duas
autorias, a de Machado de Assis, cuja assinatura lembra o leitor que o jogo com o nome
próprio constitui-se em ficção e a do autor suposto - Brás Cubas, Dom Casmurro ou
Conselheiro Aires - consiste na exposição ficcional do próprio processo de assinatura do
autor. Como afirma Baptista, esse traço distintivo do autor suposto "reproduz a fronteira

308 O sistema-radícula, ou raiz fasciculada, é a segunda figura do livro, da qual nossa modernidade se
vale de bom grado. Desta vez a raiz principal abortou, ou se destruiu em sua extremidade: vem se
enxertar nela uma multiplicidade imediata e qualquer de raízes secundárias que deflagram um grande
desenvolvimento. Desta vez, a realidade natural aparece no aborto da raiz principal, mas sua unidade
subsiste ainda como passada ou por vir, como possível. Deve-se perguntar se a realidade espiritual e
refletida não compensa este estado de coisas, manifestando, por sua vez, a exigência de uma unidade
secreta ainda mais compreensiva, ou de uma totalidade mais extensiva. Seja o método do cut-up de
Burroughs: a dobragem de um texto sobre outro, constitutiva de raízes múltiplas e mesmo adventícias
(dir-se-ia uma estaca), implica uma dimensão suplementar à dos textos considerados. É nesta
dimensão suplementar da dobragem que a unidade continua seu trabalho espiritual. É neste sentido
que a obra mais deliberadamente parcelar pode também ser apresentada como Obra total ou o Grande
Opus. A maior parte dos métodos modernos para fazer proliferar séries ou para fazer crescer uma
multiplicidade valem perfeitamente numa direção, por exemplo, linear, enquanto que uma unidade de
totalização se afirma tanto mais numa outra dimensão, a de um círculo ou de um ciclo. Toda vez que
uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução
das leis de combinação. Os abortadores da unidade são aqui fazedores de anjos, doctores angelici,
posto que eles afirmam uma unidade propriamente angélica e superior. (volume 1, pp. 20-21)
494

que separa o interior do exterior do texto, e nessa medida legisla inapelavelmente sobre
o texto atribuído, mas reprodu-la no interior da ficção, e nessa medida sofre, por sua
vez, a ação legisladora de uma outra assinatura que necessariamente se apresentou antes
da assinatura ficcional" (BAPTISTA, 2003, p. 151). Como assinatura ficcional,
portanto, o defunto-autor reproduz seus discursos, organizações, seleções, memórias e
interpretações como unidade principal que remete ao significante despótico. Por sua
vez, o romance lido a partir da assinatura do autor Machado de Assis opera a paródia
desse significante despótico ao evidenciar a produção da verdade que se sustenta nessa
unidade principal.
Retomando à conceituação do rizoma como sistema de funcionamento das
crônicas, ele se constitui por formas diversas e se estende de forma ramificada. O
rizoma se estabelece pelos princípios de conexão e de heterogeneidade. Qualquer ponto
de um rizoma se conecta a qualquer outro, diferentemente da árvore ou da raiz que
fixam um ponto, uma ordem. Desse modo, estabelecendo-se por princípio de
heterogeneidade, a crônica possibilita o hibridismo como sua forma estrutural.
Conforme vimos em alguns trechos das crônicas Gazeta de Holanda, elas se organizam
como crônica-poesia, as crônicas A+B se organizam como diálogos e, de formas mais
dispersas, as outras crônicas tomam a forma de epístola, como é o caso da crônica de
20-21 de maio de 1888 ou a crônica de 04 de setembro de 1892. Das cento e trinta e três
crônicas analisadas, pudemos verificar cinquenta e quatro ocorrências de hibridismo,
seja por meio da narrativa alegórica, por meio de cartas, epístolas, diálogos, receitas de
cozinha, as crônicas se metamorfoseiam, fazendo com que os gêneros se entrecruzem e
estabeleçam a multiplicidade rizomática.
Os princípios de conexão entre uma notícia e outra são estabelecidos por
passagens abruptas, tipografadas ou pela antanáclase como ferramentas pelas quais a
crônica faz conectar notícias às mais diversas, como por exemplo, na crônica de 15 de
outubro de 1877 da série História de Quinze Dias. Nela, a notícia da contratação de dois
cantores líricos - a soprano espanhola Adelina Patti e o tenor italiano Ernesto Nicolini -
feita pelo Jornal do Commercio e a notícia de um indivíduo preso no mês anterior
acusado de falsificar dinheiro é feita pelo duplo sentido da palavra nota:

No meio das notas verdadeiras com que se distraem as séries A


e B, do teatro lírico, apareceram algumas notas falsas de 20$,
que desde logo caíram nas mãos da polícia".
A florescência de notas falsas que se tem manifestado nestes
495

últimos tempos, faz crer que a indústria continua a seduzir


alguns impacientes; e que não há código, nem cadeia, nem
polícia, que meta medo a um aspirante a milionário.
Notas ao sul, ao norte, a leste e a oeste: é uma chuva de papel,
que, se cai muita vez no pedregulho policial, cai também, e em
alta escala, em terra fecunda, onde produz, sabe Deus que bons
prédios e que boníssimas apólices. (ASSIS, 2009a, p. 249)

Ou na crônica de 12 de outubro de 1861 da série Comentários da Semana, após


comentar sobre as duas sibilas que foram censuradas pela imprensa por conta da sua
crença, para poder tratar da companhia francesa de ópera cômica que estreava no teatro
lírico, a passagem se dá de modo abrupto operado pela função de regência: "Não podia
melhor encabeçar o meu escrito; mas o que é doloroso é o salto mortal que sou obrigado
a dar do prefácio às ocorrências do dia. Escolherei a menos prosaica, e direi mesmo a
mais poética;" (ASSIS, 2008, p. 54). Ou ainda na crônica de 1º de dezembro de 1861 da
mesma série, quando, ao usar o pontilhado para separar uma notícia e outra, opera
novamente a função de regência para explicar ao leitor o sentido tipográfico:

.......................................................................................................

Esta linha de pontinhos indica que vou passar a assuntos de


outro gênero, para os quais não achei uma transição capaz.
A franqueza não será das minhas menores virtudes. (p. 115)

Esses princípios de conexão confirmam a heterogeneidade da crônica já


anunciada em 30 de outubro de 1859 da série Aquarelas em que compara o folhetinista
ao colibri:

O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera


vegetal: salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre
todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas.
Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política.
Assim aquinhoado pode dizer-se que não há entidade mais feliz
neste mundo, exceções feitas. Tem a sociedade diante de sua
pena, o público para lê-lo, os ociosos para admirá-lo, e as bas-
bleus para aplaudi-lo. (ASSIS, 2009b, p. 56)

Conforme já observamos sobre a intertextualidade, o dialogismo e a


corporalidade, esses procedimentos fazem com que a crônica opere como multiplicidade
rizomática conexões entre assuntos distantes ou polêmicos, inventando novas formas de
496

análise e produção de sentido. Conforme observam Deleuze e Guattari, à medida que


esse múltiplo é tratado como substantivo, não tendo mais nenhuma relação com o uno
como sujeito e objeto, essas multiplicidades rizomáticas denunciam as
pseudomultiplicidades arborescentes309. Temos como exemplo, nas crônicas-diálogos A
+ B, em que a personagem B se utiliza de uma expressão de Shakespeare da peça Otelo
para desconstruir o discurso positivista de Herbert Spencer e evidenciar a prática de
corrupção na política brasileira:

B - O Belisário já provou que esta velha chapa não merece


atenção de homem sério. Nem o país é riquíssimo, nem riqueza
escondida vale grande coisa. Toda a questão é ir buscá-la. A
mais rica pérola do mundo, escondida aos olhos do homem, vale
menos que este níquel de duzentos reis. Finalmente, li há pouco,
agora mesmo, uma velha verdade da ciência moderna. Você crê
na luta pela vida?
A - Como não crer, se é verdade pura?
B - Bem: na luta pela vida tem de vencer o mais forte ou o mais
hábil. Você é forte?
A - Sou um banana.
B - Pois seja hábil. Make money; é o conselho de Iago 310. Mete
dinheiro no bolso. (ASSIS, 1956, p. 24)

Conforme tratamos em nossa dissertação de Mestrado, a pergunta feita pela


personagem B faz referência indireta ao famoso adágio de Herbert Spencer, considerado
"pai" do darwinismo social, cuja obra Principles of Sociology de 1877, define a
sociedade como organismo, reforçada pela teoria evolucionista de Charles Darwin. Em
outra obra - The Man versus the State de 1884 - Spencer considera que a intervenção do
Estado nas atividades dos cidadãos se torna um obstáculo à evolução natural desse
processo orgânico, pois tal interferência impõe limitações recíprocas. É dele, portanto, a
famosa expressão the survival of the fittest. Ao reproduzi-la como velha verdade da
ciência moderna, a personagem a desloca de seu contexto teórico para a realidade dos

309 3º - Princípio de multiplicidade: é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como


substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como
objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são
rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. Inexistência, pois, de unidade que
sirva de pivô no objeto ou que se divida no sujeito. Inexistência de unidade ainda que fosse para
abortar no objeto e para "voltar" no sujeito. Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas
somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as
leis de combinação crescem então com a multiplicidade) (p. 23)
310 Observamos que, na crônica, o cronista atribui a fala a Cássio e não a Iago por um lapso de citação,
mas na peça Otelo a fala é de Iago.
497

desvios de dinheiro noticiados na imprensa. Diante da pergunta, a personagem A


responde acreditar por ser verdade pura. Ao que a personagem B acrescenta à palavra
forte a palavra hábil. Diante da afirmação da personagem A de que não é forte, mas um
banana, a personagem B cita a frase de Iago: mete dinheiro na bolsa. A intertextualidade
nessa crônica funciona como procedimento de desterritorialização do enunciado
positivista e do enunciado ficcional, reterritorializando esses dois enunciados no
contexto da política brasileira, estabelecendo uma relação de equivalência pela qual
opera a linha de fuga ao desconstruir a assertiva positivista de que, na luta pela vida,
vence o mais forte.
Retomando a análise de Abel Barros Baptista, a assinatura opera-se em uma
eficácia dupla: de um lado, indica e reivindica a origem, a paternidade e a
responsabilidade e, de outro, a possibilidade de curso próprio que se liberta da origem e
se coloca fora do alcance da paternidade.311 No caso de Memórias Póstumas de Brás
Cubas, como já vimos, dá-se essa assinatura dupla, isto é, "o livro do defunto autor é
rigorosamente o livro em que o nome conta a sua própria história depois de se ter
libertado em definitivo do portador" (BAPTISTA, 2003, p. 12). Portanto, Machado faz
do recurso ao autor suposto uma ficção de livro e uma ficção de autores, ou como diz
Baptista, "ficção em volta do nome que opera a mudança decisiva da relação de
Machado com o seu nome e a sua assinatura de romancista" (p. 15). Com base nessa
análise de Baptista, consideramos que a ficção de autores é a ficção da enunciação, na
qual, os discursos que agenciam valores, regras e verdades presentes nas instituições
políticas, religiosas, midiáticas, nas crônicas são objetos de deslocamentos e
desterritorializações com que esse gênero opera a sua multiplicidade rizomática. Nos
três romances - Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro -
a multiplicidade arborescente remete à unidade principal do significante despótico tanto
pelo modelo arbitrário despótico, cuja presença do defunto autor na narração se dá de
forma agressiva, quanto pelo modelo disciplinar, cuja narração funciona sozinha.
Nas crônicas, as assinaturas não representam a vontade una de um artista ou de
um operador, mas, como observam Deleuze e Guattari, formam como fios de marionete
uma trama, cuja "multiplicidade de fibras nervosas formam por sua vez uma outra
marionete seguindo outras dimensões conectadas às primeiras" (DELEUZE &

311 Assinar significa inscrever na obra o nome próprio - em princípio o nome civil, mas não
necessariamente -, numa operação de eficácia dupla: por um lado, indicação e reivindicação de
origem, de paternidade, de responsabilidade; por outro, possibilidade de curso próprio libertado da
origem e fora do alcance da paternidade. (BAPTISTA, 2003, p. 10).
498

GUATTARI, 2011, pp. 23-24). No caso das crônicas A + B, o cronista Machado de


Assis inventa a assinatura João das Regras que por sua vez inventa as personagens A e B
para estabelecerem diálogos e tensões com os discursos políticos e midiáticos. É,
portanto, um agenciamento que estabelece seu crescimento das dimensões numa
multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que aumenta suas
conexões. Portanto, o papel desempenhado pelo cronista não é o de uma unidade
principal, mas a de um tecelão cuja atividade estabelece o jogo de subtração desse "eu"
uno que reafirma o múltiplo.
Outro exemplo é a crônica do dia 5 de fevereiro de 1893 da série A Semana, na
qual o cronista relata ao leitor sobre matéria de jornal a qual noticiava o caso de um
açougueiro, diante de um freguês que não queria pagar pelo quilo da carne preço
superior ao taxado pela prefeitura, diz que cobraria o valor taxado, mas que o quilo
seria mal pesado. Prendendo-se a essa expressão do açougueiro, o cronista discorre por
todo o texto a discutir sobre o significado desse enunciado até que em um determinado
momento é interrompido pelo próprio açougueiro que passa a disputar com o cronista a
enunciação da crônica:

Saiam donde for, basta que enfeitem a moça andaluza. Não lhe
faltarão guitarras nem guitarreiros, que levantem até a lua os
seus méritos, ainda que eles sejam mal pesados. Que valem
cinquenta ou cem gramas de menos a um merecimento, se lhe
não tiram este nome? Tudo está no nome. Vi estadistas que
tinham de ciência política um quilo muito mal pesado, e nunca
os vi gritar contra o açougueiro; alguns acabaram crendo que o
peso era justo, outros que até traziam um pedaço de quebra...
— Isto prova, interrompe-me aqui o açougueiro, que o senhor
entende pouco do que escreve. Se realmente tivesse ideias claras
saberia que não há só quilos mal pesados; também os há bem
pesados. Mas quem os recebe da segunda classe, não corre às
folhas públicas. Creia-me, isto de filosofia não se faz só com a
pena no papel, mas também com o facão na alcatra. Saiba que o
mundo é uma balança, em que se pesam alternadamente aqueles
dois quilos, entre brados de alegria e de indignação. Para mim,
tenho que o quilo mal pesado foi inventado por Deus, e o bem
pesado pelo Diabo; mas os meus fregueses pensam o contrário, e
daí um povo de cismáticos, uma raça perversa e corrupta...
— Bem; faça o resto da crônica. (ASSIS, 2008, v. 4, p. 958)

Não se trata aqui de uma mimetização da voz do açougueiro feita pelo cronista
(obviamente, considerando o nível ficcional), mas uma tomada de voz, na qual o
499

cronista é interrompido e censurado pelo açougueiro, a tal ponto que o cronista


abandona a escrita e manda o açougueiro concluir a crônica. Como observa Dilson Cruz
em sua obra Estratégias e Máscaras de um Fingidor: A crônica de Machado de Assis, o
enunciador torna-se repentinamente interlocutor da personagem tema da crônica,
deixando de ser senhor do texto, enquanto que a personagem tratada toma de assalto e
se rebela contra o ponto de vista do narrador e, por fim, o cronista, sem argumentos a
refutar o açougueiro, retira-se, entregando a esse a tarefa de concluir a crônica312. Essa
inversão enunciativa em que o objeto temático do texto toma de assalto o ato
enunciativo e opera outros sentidos, evidencia a multiplicidade rizomática, fazendo com
que essa nova conexão mude a natureza do tema.
No rizoma existem somente linhas e não pontos ou posições como se encontra
numa árvore. O rizoma faz proliferar o conjunto. Daí, o efeito de boato produzido e
reproduzido pelo cronista como ferramenta de embate e desconstrução dos discursos
dominantes. Como afirma Kapferer sobre o boato, ele é um processo de dispersão da
informação a evidenciar que a verdade da informação oficial resulta de uma série de
convenções e de atribuições, lembrando-nos que a realidade é eminentemente social313.
Desse modo, à medida que o cronista faz uso do boato, contrapondo-se ao silêncio do
poder ou a uma determinada informação oficial, ele opera a dispersão pela
multiplicidade, permitindo que a natureza da notícia que o boato faz circular mude e
estabeleça novas conexões. Do mesmo modo, o boato na pena do cronista planifica as

312 Atente-se agora para duas inversões geniais: primeira, o enunciador-narrador torna-se repentinamente
interlocutor da personagem que até então não havia tido o direito à palavra. Assim ele deixa de ser
senhor do texto, que é tomado de assalto pelo açougueiro, que se rebela contra o ponto de vista do
narrador. O cronista, reafirmando sua dupla condição de interlocutor e enunciador, se retira,
aparentemente irritado ou sem argumentos, deixando ao seu interlocutor a tarefa de concluir a crônica,
o que sugere que ele passaria à condição de narrador. Mas a inversão de instâncias não teria a mesma
graça se não fosse acompanhada pela introdução do ponto de vista do açougueiro, que afirma, em
oposição ao narrador, que há quilos de todas as espécies, defendendo, evidentemente, aquele que
atende aos seus interesses e lhe permite um lucro maior. A intervenção do açougueiro suscita duas
questões importantes: primeiro, a dificuldade ou impossibilidade de se chegar à verdade, uma vez que
só existiriam versões sobre um fato; segundo, todo o discurso se constrói em oposição a outros
discursos, que acabam por constituí-lo.(CRUZ, 2002, pp. 72-73)
313 Os boatos nos lembram a evidência o óbvio: nós não acreditamos em nossos conhecimentos porque
eles são verdadeiros, fundamentados ou provados. Guardadas as proporções, o que acontece é o
inverso: eles são verdadeiros porque nós acreditamos que sejam. O boato redemonstra, se é
necessário, que todas as certezas são sociais: é verdadeiro aquilo que o grupo social a que
pertencemos considera como tal. O saber social repousa sobre a fé e não sobre a prova. Esta afirmação
não deveria nos surpreender: o mais belo exemplo de rumor não é a religião? Não é ela a propagação
de uma palavra atribuída a uma Grande Testemunha inicial? E significativo que, no cristianismo, esta
fonte original se chame Verbo. Assim como o boato, a religião é uma fé contagiosa: espera-se que o
fiel acredite na palavra, que ele adira à verdade revelada. Não é a prova da existência de Deus que cria
a fé, mas o inverso. Por isso as íntimas convicções que movem os povos baseiam-se, frequentemente,
em palavras. (KAPFERER, 1993, p. 242)
500

informações oficiais e extraoficiais como plano de consistência das multiplicidades,


estabelecendo como rotas de fuga que desterritorializam e reterritorializam, como
afirmam Deleuze e Guattari:

As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata,


linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas
mudam de natureza ao se conectarem às outras. O plano de
consistência (grade) é o fora de todas as multiplicidades. A linha
de fuga marca, ao mesmo tempo: a realidade de um número de
dimensões finitas que a multiplicidade preenche efetivamente; a
impossibilidade de toda dimensão suplementar, sem que a
multiplicidade se transforme segundo esta linha; a possibilidade
e a necessidade de achatar todas estas multiplicidades sobre um
mesmo plano de consistência ou de exterioridade, sejam quais
forem suas dimensões. O ideal de um livro seria expor toda
coisa sobre um tal plano de exterioridade, sobre uma única
página, sobre uma mesma paragem: acontecimentos vividos,
determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos,
grupos e formações sociais. (DELEUZE & GUATTARI, 2011,
volume 1, p. 25)

Na crônica, portanto, como multiplicidade rizomática, não há unidades de


medida, mas somente multiplicidades ou variedades de medidas. A noção de unidade
aparece unicamente quando se produz numa multiplicidade uma tomada de poder pelo
significante ou um processo correspondente de subjetivação. A linha de fuga marca a
realidade de um número de dimensões finitas que a multiplicidade preenche
efetivamente de modo que o texto expõe todas as coisas em uma mesma sobre uma
mesma página, isto é, expõe acontecimentos vividos, determinações históricas,
conceitos pensados, indivíduos, grupos, formações sociais, opondo-se, como observam
Deleuze e Guattari, de todos os pontos de vista ao modelo clássico e romântico, cuja
constituição desses modelos ao qual a crônica se opõe dá-se pela interioridade da
substância ou de um sujeito.
A escrita machadiana, tanto nos romances como processo de desconstrução
paródica do significante despótico, quanto nas crônicas como procedimento rizomático,
se opõe de todos os pontos de vista ao livro clássico e romântico, constituído pela
interioridade de uma substância ou de um sujeito: é o livro-máquina de guerra contra o
livro-aparelho de Estado. Como afirma o cronista em crônica do dia 14 de novembro de
1864 da série Ao Acaso: "A verdade tem uma telegrafia mantida pelo Estado. O boato é
a telegrafia da mentira. Algumas vezes esta acerta e aquela mente, mas é por exceção."
501

(ASSIS, 2008, v. 4, p. 221). Essa verdade mantida pelo Estado, portanto, se constitui
como o significante despótico desterritorializado da matéria do jornal e reterritorializado
no corpo da crônica como forma de denúncia da sua pseudomultiplicidade arborescente.
Outra característica importante é que o rizoma pode ser rompido, quebrado em
lugar qualquer contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas ou
que atravessam uma estrutura. Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade
segunda as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído,
mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar.
Há um processo de desterritorialização produzido pela pena do cronista no jogo entre o
discurso jornalístico e o discurso ficcional: a matéria jornalística se desterritorializa,
formando uma imagem da ficção e a ficção se reterritorializa nessa imagem; também a
ficção se desterritorializa devindo ela mesma uma peça na reprodução do discurso
jornalístico, que reterritorializa ao deslocar o seu discurso pretensamente real.
Comumente se diria que o discurso ficcional mimetiza o discurso jornalístico ao
reproduzi-lo de maneira significante. Contudo, como observam Deleuze e Guattari, não
se trata de imitação, mas de captura do código como devir, isto é, o devir-ficção do
jornal e o devir-jornalístico da ficção, operando uma explosão de discursos
heterogêneos na linha de fuga composta de um rizoma comum que não pode mais ser
atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante 314. Ou, como afirma o
cronista na crônica de 5 de junho de 1864:

O folhetim não é outra coisa mais do que o acaso, o vago, o


indeterminado; é o acontecimento que há de haver, o lucro que
se há de imprimir, o sarau que se há de dar; é o dito que escapa,
a anedota que circula, o boato que se espalha; é o capricho do
tempo, o capricho da pena, o capricho da fantasia; é a chuva e o
sol, a elegia e o cântico; o folhetim reside no dia seguinte, vive
do futuro, sai do ventre de todas as semanas, às vezes Minerva
armada, às vezes ridiculus mus. (ASSIS, 2008, v. 4, p. 117)

Obviamente, não se trata de entender esse devir-ficcional do discurso jornalístico

314 Ao mesmo tempo trata-se de algo completamente diferente: não mais imitação, mas captura de
código, mais-valia de código, aumento de valência, verdadeiro devir, devir-vespa da orquídea, devir-
orquídea da vespa, cada um destes devires assegurando a desterritorialização de um dos termos e a
reterritorialização do outro, os dois devires se encadeando e se revezando segundo uma circulação de
intensidades que empurra a desterritorialização cada vez mais longe. Não há imitação nem
semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha de fuga composta de um rizoma
comum que não pode mais ser atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante.
(DELEUZE & GUATTARI, 2011, volume 1, p. 26)
502

signifique que o discurso jornalístico "faça como" o discurso ficcional, mas que o efeito
desse jogo rizomático entre o discurso jornalístico e o discurso ficcional é o modo como
o cronista evidencia a ficcionalidade do discurso jornalístico que se pretende como real
e a realidade do discurso ficcional ao evidenciar o modo de produção de poder nesses
discursos. Como observam Deleuze Guattari:

É a mesma coisa quanto ao livro e ao mundo: o livro não é a


imagem do mundo segundo uma crença enraizada. Ele faz
rizoma com o mundo, há evolução a-paralela do livro e do
mundo, o livro assegura a desterritorialização do mundo, mas o
mundo opera uma reterritorialização do livro, que se
desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo (se ele é
disto capaz e se ele pode). O mimetismo é um conceito muito
ruim, dependente de uma lógica binária, para fenômenos de
natureza inteiramente diferente. (DELEUZE E GUATTARI,
volume 1, p. 28)

O rizoma opera o princípio de cartografia como mapa não como reprodução de


um inconsciente fechado em si mesmo, mas construindo a conexão dos campos para
desbloquear os corpos sem órgão como abertura máxima desse plano de consistência,
isto é, estabelece conexões diversas por meio de dimensões crescentes que são
preenchidas por essas multiplicidades rizomáticas. Na crônica, essas dimensões
crescentes dão-se pelo discurso polêmico, pela polifonia, pelo dialogismo, pelas
intertextualidades, cujas conexões entre discurso jornalístico, boato e obras literárias
desbloqueiam o fechamento com o qual o significante despótico opera sobre os
discursos para produção da verdade. Como mapa, o rizoma é aberto, podendo-se
conectar, desmontar-se, reverter-se em todas as suas dimensões, recebendo
modificações constantemente. Organizando-se como mapa, essas crônicas rizomáticas
podem ter inúmeras entradas, sendo concebidas como ação política, obra de arte,
meditação. Desse modo, a crônica é performática pois recusa qualquer instância de
legitimação como fatalidade decalcada, seja essa instância divina, anagógica, histórica,
econômica, estrutural, hereditária ou sintagmática.
Ao mesmo tempo, o significante despótico pode traduzir a crônica como
imagem, transformando seus procedimentos rizomáticos em raízes e neutralizando suas
multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação. Contudo, a crônica
opera a ligação desses decalques a seus mapas, evidenciando o modo de funcionamento
desses significantes despóticos à medida em que ressitua os impasses do significante
503

despótico sobre seu mapa. É o caso do trecho das crônicas já citadas de 7 e 14 de janeiro
de 1862 da série Comentários da Semana, quando o cronista questiona o fato de o
expediente do Ministério do Império ter oficiado o conselheiro Borges Monteiro,
jubilado em duas cadeiras da Faculdade de Medicina, a ter direito a um ordenado por
inteiro por ter prestado 25 anos de serviços efetivos. O cronista, usando do expediente
do boato, questiona a legitimidade ao identificar o que chama de equívoco aritmético,
exigindo que o fato seja elucidado pelo ministro, antes que reforce o boato. Em
resposta, um artigo anônimo publicado no Jornal do Commercio no dia 9 de janeiro
atribui a autoria do boato ao cronista e ao Diário do Rio de Janeiro, onde a crônica foi
publicada. Essa atribuição se dá como esforço do significante despótico de transformar
o boato da crônica em imagem, constituindo-o em raiz ao atribuir sua origem e, com
isso, neutralizando suas multiplicidades segundo eixos de significância e subjetivação.
Contudo, na crônica seguinte, o cronista refuta essa tentativa de "paternidade" do boato,
dizendo ser apenas eco desse boato e passa a evidenciar o modo de funcionamento dessa
resposta ao identificar o sujeito anônimo como sendo o Governo, bem como alterando o
sentido da palavra "louvor", usada na resposta, não como mérito, mas como censura,
conforme analisamos anteriormente, como forma de ressituar, operando nessa resposta
linhas de fugas possíveis, explodindo seus estratos, rompendo as raízes e operando
novas conexões. Em resumo, o rizoma, diferentemente das árvores/raízes, conecta um
ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete
necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito
diferentes, inclusive estados de não signos.
A espacialidade opera-se como procedimento recorrente nas crônicas,
determinando o modo como o cronista opera essas multiplicidades. Vemos por
exemplo, na crônica do dia 14 de janeiro de 1862 da série Comentários da Semana, ao
evidenciar o seu modo de produção: "Rir-se-ão os Fluminenses se me virem atravessar
(perdoa-me, ó Diógenes!), não as ruas da cidade, mas os dias da semana, com uma
lanterna na mão à cata de notícia?" (ASSIS, 2008d, p. 156). Ou na sequência dessa
mesma crônica, estabelecendo a comparação da crônica com um campo de plantação:
"Um elegante folhetinista dos nossos, achando-se nas mesmas circunstâncias que eu,
encabeçou o seu escrito hebdomadário com esta expressão do gordo Sancho: “Diz-me o
que semeaste, dir-te-ei o que colherás”. Aproveito a lembrança , e pergunto se alguma
coisa se pode colher deste terreno que se chamou – a semana passada, - onde nada foi
semeado?". Em crônica do dia 4 de dezembro de 1892 da série A Semana, o cronista,
504

por meio da função regência, define a crônica como esse topos em que as notícias se
entrecruzam e fazendo do papel do cronista esse tecelão que se movimenta entre elas:

Os acontecimentos parecem-se com os homens. São


melindrosos, ambiciosos, impacientes, o mais pífio quer
aparecer antes do mais idôneo, atropelam tudo, sem justiça nem
modéstia... E quando todos são graves? Então é que é ver um
miserável cronista, sem saber em qual pegue primeiro. Se vai ao
que lhe parece mais grave de todos, ouve clamar outro que lhe
não parece menos grave, e hesita, escolhe, torna a escolher,
larga, pega, começa e recomeça, acaba e não acaba... (ASSIS,
2008, v. 4, p. 940)

Imagem semelhante dessa espacialidade como mapa é a definição do cronista


como um simples e honesto mironi, na crônica de 25 de agosto de 1878 da série Notas
Semanais:

Há outro ponto em que o cronista se parece com os turcos: é em


fumar quietamente o cachimbo do seu fatalismo. O cronista não
tem cargo d'almas, não evangeliza, não adverte, não endireita os
tortos do mundo; é um mero espectador, as mais das vezes
pacato, cuja bonomia tem o passo tardo dos senhores do harém.
Debruça-se, cada domingo, à janela deste palacete, e contempla
as águas do Bósforo, a ver os caíques que se cruzam, a
acompanhar de longe a labutação dos outros.
Isto quer dizer, em bom português, que o cronista não pleiteou
candidatura, não se mediu com o Battaglia, nem pretende figurar
na regata de Botafogo; fica alheio a todas as lutas, ou sejam de
força, ou de destreza, ou de ambas as coisas juntas. Simples e
honesto mironi. A semana foi militante; mas o cronista foi
expectante; seja dito por amor da rima. Claro é que não lutou
nem luta na questão dos chalés da Praça do Mercado, essa fênix
renascida de um incêndio, mandado talvez pela Providência para
exterminá-la de todo; o que não conseguiu; não restando agora
mais do que a esperança de um terremoto. (ASSIS, 2008e, p.
223)

II - A Esquizoanálise e o significante despótico.

Em O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia e Mil Platôs, Gilles Deleuze e


Félix Guattari desenvolveram o conceito de esquizoanálise como reação à psicanálise e
crítica ao conceito de inconsciente desenvolvido por Freud, bem como a interpretação
505

freudiana do conceito do desejo como falta. Entendendo o desejo como da ordem da


produção e, portanto, sendo toda produção desejante e social, os autores definem a tese
da esquizoanálise compreendendo o desejo como agenciamento maquínico e, desse
modo, definindo o esquizoanalista como um mecânico e a esquizoanálise prática
funcional. Nesse sentido, o inconsciente produtivo é responsável pelo desejo como
intensidade que produz realidade. Opondo-se à conceituação de Freud que entende o
desejo como falta a ser preenchida, os autores reinventam o conceito de inconsciente
como produção desejante, propondo uma nova abordagem da prática psicanalítica que
implica uma abordagem política e militante do indivíduo. Nessa concepção da
esquizoanálise, o esquizofrênico é aquele que resiste à edipianização, devolvendo Édipo
à sua condição de mito:

A esquizoanálise não se propõe a resolver Édipo, não pretende


resolvê-lo melhor do que a psicanálise edipiana. Ela se propõe
desidipianizar o inconsciente para chegar aos verdadeiros
problemas. Ela se propõe atingir essas regiões do inconsciente
órfão, precisamente "para além de toda lei", ali onde o problema
nem mesmo pode ser levantado. Consequentemente, não
compartilhamos o pessimismo que consiste em crer que essa
mudança e essa libertação só possam ocorrer fora da psicanálise.
Ao contrário, acreditamos na possibilidade de uma subversão
interna que faça da máquina analítica uma peça indispensável do
aparelho revolucionário. (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p.
113)

Desse modo, invertendo a tese freudiana da família como constituinte do campo


social, a esquizoanálise se propõe a afirmar que o social se rebate dentro da família, pois
todo delírio é social. Essa crítica ao processo capitalista que recalca a produção
desejante por meio do complexo de Édipo, evidencia a impossibilidade de se constituir
novos modos de vida, uma vez que o desejo, por meio de transferência e identificações,
é impedido de se reinventar, limitado ao triângulo familiar do mito de Édipo. Como
observam Marcella Cassiano e Reinaldo Furlan, em seu artigo "O Processo de
Subjetivação segundo a Esquizoanálise", Deleuze e Guattari afirmam a nossa formação
subjetiva por três tipos de linha: as linhas duras que nos compõem por meio de
estabelecimento de dualidades sociais, nos estratificando, em sentido forte do termo; as
linhas maleáveis que possibilitam variações, ocasionando desestratificações relativas; e
as de fuga que resultam em desestratificações absolutas, à medida que rompem
506

totalmente com os limites das estratificações estabelecidas315.


Antes de continuarmos com a esta hipótese literato-analítica, cabe-nos algumas
ressalvas para evitar qualquer equívoco interpretativo e anacrônico. Ao analisarmos as
crônicas e os romances machadianos pelo instrumental teórico da esquizoanálise e do
significante despótico, não queremos engessar nossa leitura com nenhum pressuposto
analítico, mas potencializar a abordagem crítica que nos permita evidenciar o modo de
funcionamento desses textos. Como dissemos no início desse subcapítulo, Deleuze e
Guattari desenvolvem esses conceitos como crítica à Psicanálise e ao conceito do
complexo de Édipo de Freud e, portanto, a teorias posteriores às obras machadianas.
Além de serem posteriores, são de áreas distintas: Machado de Assis produz literatura e,
portanto, sua produção é da ordem dos procedimentos técnicos-estéticos e não de
conceitos, enquanto que Deleuze e Guattari desenvolvem um trabalho analítico-teórico
no campo da filosofia e da psicanálise. O que é ponto em comum entre eles é a forma
como, em áreas distintas e, portanto, por procedimentos distintos, evidenciam o modos
de funcionamento e de produção discursiva pós-iluminista e como desenvolvem leituras
dessas relações discursivas como produção de realidade e de verdade. Além disso, ao
utilizarmos esses conceitos não pretendemos limitar os textos machadianos a nenhum
método ou nem queremos validar qualquer teoria com base neles ou, nas palavras de
Abel Barros Baptista:

Nesse ponto, entretanto, cumpre advertir o leitor que agora toma


contato com este trabalho de que não coube nunca no respectivo
propósito submeter os textos de Machado por via de aplicação
de algum método, nem sequer chamá-los a comprovar a
validade universal de alguma teoria (do nome ou da assinatura,
por exemplo). Bem pelo contrário, e é isso que chamo responder
ao apelo do nome, trata-se antes de submeter a leitura ao texto
de Machado, de a conduzir de acordo com a sua lei e o seu
idioma: o genuíno leitor forma-se - surge e educa-se - nessa
submissão ao texto que o precede, de que aceita a lei, o apelo, a
singularidade, mas apenas o faz responsavelmente se empenhar
nessa aceitação a sua própria singularidade (BAPTISTA, 2003,

315 Deleuze e Guattari apontam três tipos de linhas que compõem nossas relações: as de
segmentaridade dura, características dos grandes conjuntos molares ou estratos, como as classes
sociais e os gêneros; as de segmentaridade maleável, caracterizadas por relações moleculares de
desestratificações relativas, com velocidades acima ou abaixo dos limites da percepção, e que, ao
contrário dos grandes movimentos e cortes que definem os estratos, compõem-se de elementos
rizomáticos, esquizos, sempre em devir, fluxos sempre em movimento que retiram o homem da
rigidez dos estratos; e as linhas de fuga, que se caracterizam por uma ruptura com os estratos ou sua
desestratificação absoluta. (CASSIANO & FURLAN, 2013, p. 372)
507

p. 11)

Em crônica do dia de 26 de junho de 1864 da série Ao Acaso, ao discutir sobre o


caso de um ladrão que furtou uma casaca, uma calça e um capote de inverno, deixando
sobre a mesa um relógio, uma corrente e um anel de brilhante, o cronista chama a
atenção para o acontecimento, evidenciando a possibilidade de junção entre termos
contraditórios - ladrão honesto - definindo como um ato de dar uma mão a Deus e a
outra mão ao diabo. O assunto o leva à discussão sobre o desacordo entre as coisas e os
nomes, sugerindo, inclusive, que algum autor pudesse escrever um livro tratando sobre
esse desacordo entre as palavras e as coisas:

Eis o que é são João na cidade; um são João desfalcado,


desenxabido, nostalgiado, policiado e multado.
Na roça ou na cidade, porém, são João não perde as suas santas
virtudes; cá ou lá, pode o solitário da Judéia fazer os seus
milagres, e eu sei particularmente de um, sucedido na cidade,
tão espantoso e singular que nos obriga à ligação absurda de
duas palavras antipáticas: ladrão honesto.
Todavia, ser a um tempo, ladrão e honesto, dar uma mão a Deus,
a outra ao diabo, como aquele frade de que reza um conto
popular, que atravessava uma ponte invocando alternadamente o
princípio do mal e o princípio do bem, é um absurdo moral, mas
não tem grande aparência de novidade na ordem dos fatos.
O ladrão de que se trata teve a honestidade de furtar apenas uma
casaca, uma calça e um capote de inverno, respeitando um
relógio, uma corrente e um anel de brilhantes, que se achavam
sobre aquele fato, e que ele cuidadosamente depositou sobre
uma mesa. É o caso de agradecer a um larápio tão íntegro o mal
que podia fazer, e que, por virtude de um bom sentimento,
resolveu não fazer, limitando-se a deixar os vestígios da sua
passagem, e portanto, da sua magnanimidade.
Se isto lhes parece estranho, leitores, peço que observem um
pouco o resto da sociedade humana, e hão de ver mais de um
exemplo daquela magnânima ladroeira.
De ordinário não se dá a coisas tais o nome tão repugnante e
antipático que eu dei ao caso em questão; faz-se algumas vezes
mais, dá-se o nome de virtude pura e simples, isto é, se o ladrão
de que falei tivesse furtado a casaca, a calça e o capote para dar
a um homem que tiritasse de frio no meio de rua, o ladrão
tornava-se, para muitos, um homem simpático e virtuoso.
O fim tinha justificado o meio.
Este desacordo entre as coisas e os nomes dá lugar a um livro,
que eu não sei se já está escrito, mas que, à semelhança de que
fiz em um dos meus folhetins passados, indico a algum escritor
à cata de assunto; livro que pode ser intitulado - Dos nomes e
508

das coisas - e onde pode entrar uma apreciação de todas as


coisas ridículas, desonestas e tolas que se designam por nomes
sérios, honestos e sensatos. (ASSIS, 2008, v. 4, pp. 130-131)

Ao fazer a discussão sobre o caso, com base na nomenclatura paradoxal que o


acontecimento permite formular, o cronista opera a desautomatização da linguagem,
evidenciando-a como produtora de realidade, isto é, segundo uma concepção
naturalizada da língua, o substantivo ladrão não permite supor o adjetivo honesto, visto
serem termos contraditórios. Contudo, entendendo a linguagem como produção de
realidade, os fatos escapam dela, obrigando-a a se rearticular. Com base nisso, ele
hiperboliza o fato, supondo que, se o furto fosse feito com o objetivo de dar os objetos
furtados a um homem que sofresse com o frio, não seria apenas honesto, mas simpático
e virtuoso e evidencia que a nomenclatura não tem grande aparência de novidade na
ordem dos fatos. Em crônica do dia 10 de julho de 1864, o cronista noticia uma matéria
de uma folha católica francesa - Le Monde - a qual critica a punição feita pelo Governo
Francês aos condenados com o uso da guilhotina e propondo que, sendo essa forma de
punição herança da Revolução Francesa, fosse feita a substituição por outro gênero de
suplício:

A este respeito não posso deixar de transmitir aos leitores as


palavras de uma folha católica de Paris, “Le Monde”, digno
irmão e modelo da “Cruz”, desta corte.
Este número do “Monde” chegou de fresco no último paquete.
Aqui vai o pedacinho que vale ouro:
“Hão de acusar-nos, diz o “Monde”, de prezar a guilhotina; não,
não prezamos a guilhotina, que é um dos benefícios da
revolução, e não pedimos outra coisa que não seja substituí-la
por “outro gênero de suplício”.
(...)
A “Cruz” de Paris não quer a guilhotina por ser invento
revolucionário, quer outro suplício de invento católico. A
fogueira, por exemplo?
Quando leio estas e outras coisas, no século em que estamos, o
qual, segundo se diz, é o século magno — hesito em crer nos
meus olhos e desconfio de mim mesmo.
A “Cruz” de Paris entende que é impiedade matar com a
guilhotina; o que ela quer é que se mate mais catolicamente,
mais piedosamente, com um instrumento das tradições clericais,
e não com um instrumento das tradições revolucionárias. Para
ela a questão é simplesmente de forma; o fundo deve ficar
mantido e respeitado. (p. 139)
509

A matéria enseja a crítica não ao caso em si, mas à proposta que o jornal católico
Le Monde apresenta como meio para substituir o que considera como impiedade. A
impiedade não está no ato de matar alguém, mas no fato de o fazerem com um
instrumento herdado da Revolução Francesa; portanto, como observa o cronista, a
crítica feita pela folha católica é uma questão simplesmente de forma, cujo fundo é
mantido e respeitado. Na concepção desse jornal, ser piedoso é matar os condenados
catolicamente. Nessa mesma crônica, o cronista rebate uma crítica feita pelo Deputado
Lopes Netto à imprensa por esta ter dito que ele, em outra sessão da Câmara, havia
glorificado o México. Na crônica do dia 20 de junho de 1864 da mesma série, o cronista
havia dito sobre o discurso desse deputado o qual, ao tratar sobre a dotação
orçamentária das princesas, aproveitou o ensejo para glorificar o México:

Que houve então no parlamento brasileiro, à luz do sol, no ano


da graça de 1864?
— A Glorificação da Invasão do México.
Este acontecimento não podia deixar de entrar nestas páginas, a
título de política amena.
E desde já declaro que o tom de gracejo com que me exprimo
resulta da natureza do folhetim e da natureza do milagre. A
intenção e a pessoa do representante da nação, autor do discurso
pró México, ficam respeitadas.
Estava o México em debate? Não; o que se debatia era a dotação
das augustas princesas, cujo casamento se há de efetuar este ano,
segundo anunciou Sua Majestade ao parlamento, e que o país
espera com a mais simpática ansiedade.
O Sr. Lopes Netto orava contra a elevação do dote e desfiava as
razões que tinha para isso. Um aparte anônimo desviou o orador,
e deixando de parte a dotação de Suas Altezas, entrou S. Excia.
a dizer o que pensava a respeito do México.
Pensa S. Excia:
Que o novo império não é o resultado da invasão francesa, mas
apenas uma obra da grande maioria do país;
Que a nova monarquia é uma monarquia constitucional;
Que o império do México é em tudo igual ao império do Brasil;
Que o México vai entrar em uma era de paz e de prosperidade;
Que o século não é de conquistas, — e portanto — o México
não é uma conquista francesa.
S. Excia. pensa ainda outras coisinhas que eu não posso
reproduzir, a fim de não alongar as proporções do folhetim. (p.
126)

Diante dessa crítica ao seu discurso, o deputado, em sessão seguinte, negou ter
feito qualquer elogio ao México e o cronista, rebatendo o discurso do deputado,
510

aproveita a ocasião para evidenciar o jogo discursivo que se opera na Câmara:

Não tenho apontamento algum sobre política amena a não ser


um aparte do Sr. Lopes Netto, deputado por Sergipe,
respondendo a um orador que o acusava de ter glorificado a
invasão do México.
S. Excia. declarou que não fizera semelhante glorificação.
Ora, como eu, já antes do deputado argumentar, tinha feito a
mesma censura (censura de folhetim) recorri ao número do
“Jornal do Comércio” em que veio o discurso do Sr. Lopes
Netto, para ver de novo o que S. Excia. havia dito.
Reconheci que S. Excia. havia dito aquilo mesmo que no
parlamento lhe foi apontado, e que eu — muito antes — apontei,
considerando até o fato como milagre.
Há, porém, na ordem política umas tais retortas e alambiques,
onde se apuram as palavras e as ideias, de modo tal que as
tornam inteiramente diversas daquilo que significam na ordem
comum.
É possível que, a favor deste meio, S. Excia. nos explique o
sentido do seu discurso. Antes disso, continuo a pensar que S.
Excia. fez uma glorificação da invasão napoleônica. (pp. 139-
140)

Tratando ainda dessa discrepância entre as palavras e as ideias e como elas são
ditas nas tribunas do Parlamento e publicadas na imprensa, em crônica do dia 28 de
agosto de 1864 da mesma série, o cronista critica essa prática comum dos parlamentares
em suprimir seus discursos nos jornais e nos anais, visto que o Parlamento não é uma
academia onde se mostre uma fala com elegância, mas o lugar em que a sociedade deve
saber o que pensam e o que falam seus representantes sobre os mais variados assuntos:

Tenho pressa em ver-me desde já livre dos assuntos da política


amena.
Já reparei que alguns membros do parlamento costumam várias
vezes suprimir os discursos nos jornais e nos anais, substituindo-
os por estas palavras: “O Sr. F... fez algumas observações”.
Qualquer que seja a insignificância das observações e a
modéstia dos referidos membros do parlamento, como o
parlamento não é uma academia onde se vão recitar períodos
arredondados e sonantes, o país tem o direito de saber de tudo o
que aí se diz, mesmo as observações insignificantes.
Porquanto, o fato da publicação dos discursos por extenso ou em
resumo não tem por objeto mostrar que tal ou tal representante
fala com elegância e propriedade, mas sim dar à nação o
conhecimento da opinião que o dito representante manifestou e
o modo por que a manifestou.
Isto quanto à razão de ser da publicação. (p. 175)
511

Esses exemplos e variados outros tratados como política amena mostram como o
interesse do cronista, sobretudo no que se refere às questões políticas, voltam-se cada
vez mais para as produções discursivas como produções de verdades e de realidade. Ao
ressaltá-las, evidenciando o seu jogo e a distância com a vida cotidiana, o cronista opera
a desautomatização da linguagem, criando rotas de fuga no interior desses discursos
para evidenciar os discursos políticos como jogos de poder.
Desse modo, entendendo os discursos produzidos seja pela instituição religiosa
ou pela instituição política como discursos performáticos que produzem realidades com
base em interesses individuais ou de grupos, naturalizados como discursos de verdade, o
cronista, ao evidenciar seu modo de funcionamento e acentuar as contradições internas
dessas formas de produção discursiva, esquizofreniza esses significantes despóticos -
essas palavra de ordem - operando por dentro deles rotas de fuga que permitam os
leitores perceberem os seus modos de produção. Em outras palavras, à medida em que o
cronista evidencia o limite da linguagem na sua relação com realidade - o paradoxo do
ladrão honesto - ressaltando que a realidade escapa a qualquer linguagem e que, muitas
vezes, coisas ridículas, desonestas e tolas são designadas por nomes sérios, honestos e
sensatos; ou que os discursos políticos alteram-se conforme os interesses individuais ou
de grupo, como o faz o Deputado Lopez Netto; ou ainda, quando a preocupação de uma
instituição religiosa sobre a pena de morte dá-se não pelo ato de matar, mas pela forma
como é feito, ele desloca os termos e faz evidenciar os sentidos para os quais funcionam
esses discursos e, com isso, cria rotas de fuga, operando a desautomatização da
linguagem e evidenciando a suas relações de poder.
A palavra, vista como palavra de ordem, sobretudo da política é evidenciada
pelo cronista como marcada por "retortas e alambiques, onde se apuram as palavras e as
ideias, de modo tal que as tornam inteiramente diversas daquilo que significam na
ordem comum". Como observam Deleuze e Guattari, a linguagem não é feita para que
se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer316. Diferentemente, e fazendo da
crônica um instrumento de desautomatização dessa palavra de ordem, o papel da
crônica é o "de atirar semanalmente aos leitores um punhado de rosas.. . sem quebrar-

316 A unidade elementar da linguagem — o enunciado — é a palavra de ordem. Mais do que o senso
comum, faculdade que centralizaria as informações, é preciso definir uma faculdade abominável que
consiste em emitir, receber e transmitir as palavras de ordem. A linguagem não é mesmo feita para
que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer. (DELEUZE & GUATTARI, 2011, volume
2, p. 12)
512

lhes os espinhos." (ASSIS, 2008, p. 138). Ou, conforme apresenta no início das crônicas
Ao Acaso:

O folhetim não é outra coisa mais do que o acaso, o vago, o


indeterminado; é o acontecimento que há de haver, o lucro que
se há de imprimir, o sarau que se há de dar; é o dito que escapa,
a anedota que circula, o boato que se espalha; é o capricho do
tempo, o capricho da pena, o capricho da fantasia; é a chuva e o
sol, a elegia e o cântico; o folhetim reside no dia seguinte, vive
do futuro, sai do ventre de todas as semanas, às vezes Minerva
armada, às vezes ridiculus mus. (p. 117)

A crônica é definida como esse constante devir (o folhetim reside no dia


seguinte), cuja temática escapa à qualquer palavra de ordem (é o dito que escapa) e que,
portanto, foge à qualquer formatação (sai do ventre de todas as semanas, às vezes
Minerva armada, às vezes ridiculus mus). Como definem Deleuze e Guattari, a
esquizoanálise faz rizoma, mesmo não sabendo com o que se pode fazer o rizoma, visto
serem da ordem do devir e, portanto, da ordem da experimentação317.
O significante despótico é o signo que substituiu o signo territorial e que,
atravessando o limiar de desterritorialização, tornou-se o próprio signo
desterritorializado. Como afirmam Deleuze e Guattari, ele é uma representação
recalcante, na qual as metáforas e metonímias como novos representados deslocados
que o significante despótico induz constituem a máquina despótica sobrecodificante e
desterritorializada, isto é, o significante despótico reconstitui a máquina primitiva em
"novas bases ou novas condições dadas no corpo pleno desterritorializado do próprio
déspota" (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 278). Podemos ver esse processo de
desterritorialização do signo pelo significante despótico em um trecho de Memórias
Póstumas de Brás Cubas, bem como a rota de fuga de tema semelhante em uma das
crônicas. No capítulo CXXIII desse romance, o defunto-autor comenta sobre o possível
casamento entre ele e Nhã-Loló com seu cunhado Cotrim. Após a conversa entre dois, o
defunto-autor compõe uma elogio ao cunhado nos seguintes termos:

317 A esquizoanálise ou a pragmática não tem outro sentido: faça rizoma, mas você não sabe com o
que você pode fazer rizoma, que haste subterrânea irá fazer efetivamente rizoma, ou fazer devir, fazer
população no teu deserto. Experimente. (DELEUZE & GUATTARI, 2012, volume 4, p. 36).
513

Não era perfeito, decerto; tinha, por exemplo, o sestro de


mandar para os jornais a notícia de um ou outro beneficio que
praticava, — sestro repreensível ou não louvável, concordo; mas
ele desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas,
quando públicas; razão a que se não pode negar algum peso.
Creio mesmo (e nisto faço o seu maior elogio) que ele não
praticava, de quando em quando, esses benefícios senão com o
fim de espertar a filantropia dos outros; e se tal era o intuito,
força é confessar que a publicidade tornava-se uma condição
sine qua non. (ASSIS, 2008a, p. 228)

A habilidade discursiva do defunto-autor nesse trecho está em deslocar o que


apresenta como defeito de caráter do cunhado para torná-lo em seu maior elogio, isto é,
ao afirmar que não era perfeito, exemplifica a imperfeição ao citar o costume do
cunhado em fazer publicar na imprensa notícias de seus atos benevolentes; em seguida,
apresenta a justificativa dada pelo próprio Cotrim a esse costume: a de que a divulgação
das boas ações contagiavam quando publicadas, justificativa com a qual Brás Cubas
concorda; da concordância passa à crença de que de fato o que dizia correspondia à
realidade, isto é, acreditar que não só a divulgação, mas o próprio ato de benevolência
tinha como fim despertar a filantropia dos outros e, logo, a publicidade era condição
sine qua non. O deslocamento do ato censurável para se tornar o maior elogio feito pelo
defunto-autor ao cunhado exemplifica esse processo de desterritorialização do signo
recalcado - a vaidade, nomeada como filantropia - pelo significante despótico, isto é, o
defunto-autor, como déspota do romance, reconstitui a máquina primitiva da vaidade
recalcada em novas bases ou condições dadas, fazendo-a mudar de sentido por meio da
sobrecodificação com sua nova significação deslocada.
Em crônica de 25 de julho de 1864 da série Ao Acaso, censurando a publicação
dos serviços feitos pela fiscalização, o cronista relata ao leitor um caso semelhante por
uma outra chave de leitura, conforme vemos a seguir:

Acho inocentíssima a ideia a que atribuo essas publicações, em


comparação com outra ideia e outras publicações, de que não
são raros os exemplos.
Citarei um fato:
Era um leilão de escravos. Na fileira dos infelizes que estavam
ali de mistura com os móveis, havia uma pobre criancinha
abrindo olhos espantados e ignorantes para todos. Todos foram
atraídos pela tenra idade e triste singeleza da pequena. Entre
outros, notei um indivíduo que, mais curioso que compadecido,
conjeturava a meia voz o preço por que se venderia aquele
514

semovente.
Travamos conversa e fizemos conhecimento; quando ele soube
que eu manejava a enxadinha com que agora revolvo estas terras
do folhetim, deixou escapar dos lábios uma exclamação:
— “Ah!”
Estava longe de conhecer o que havia neste — Ah! — tão
misterioso e tão significativo.
Minutos depois começou o pregão da pequena. O meu indivíduo
cobria os lanços, com incrível desespero, a ponto de por fora de
combate todos os pretendentes, exceto um que lutou ainda por
algum tempo, mas que afinal teve de ceder.
O preço definitivo da desgraçadinha era fabuloso. Só o amor à
humanidade podia explicar aquela luta da parte do meu novo
conhecimento; não perdi de vista o comprador, convencido de
que iria disfarçadamente ao leiloeiro dizer-lhe que a quantia
lançada era aplicada à liberdade da infeliz. Pus-me à espreita da
virtude.
O comprador não me desiludiu, porque, apenas começava a
espreitá-lo, ouvi-lhe dizer alto e bom som:
— “É para a liberdade!”
O último combatente do leilão foi ao filantropo, apertou-lhe as
mãos e disse-lhe:
— “Eu tinha a mesma intenção”.
O filantropo voltou-se para mim e pronunciou baixinho as
seguintes palavras, acompanhadas de um sorriso:
— “Não vá agora dizer lá na folha que eu pratiquei este ato de
caridade”.
Satisfiz religiosamente o dito do filantropo, mas nem assim me
furtei à honra de ver o caso publicado e comentado nos outros
jornais.
Deixo ao leitor a apreciação daquele airoso duelo de filantropia.

De forma irônica, o cronista evidencia uma prática comum na imprensa em que


os filantropos faziam questão de ver noticiados os seus atos de benevolência. No
exemplo citado, o filantropo, curioso por ver uma criança negra sendo vendida como
escrava e conjeturando o preço que lhe pediriam por ela, trava conversa com o cronista
até descobrir que ele o era, descoberta que o motiva à disputa pela compra da escrava. O
misterioso e significativo "ah" do filantropo, enunciado pelo cronista, esquizofreniza o
"amor à humanidade" que explicava aquela luta para vencer seus adversários e
conseguir comprar a criança para, segundo diz, garantir-lhe a liberdade; a modéstia do
filantropo acentua-se pelo pedido feito por ele ao cronista para que não divulgue o ato
de caridade, pedido que o cronista atendeu religiosamente. Essa sede de nomeada de
ver o nome estampado nos jornais é acentuada também no espírito de Rubião quando,
após ter salvo Deolindo, uma criança de três anos, de ser atropelado por um carro, viu
515

estampada a notícia no jornal publicado pelo Dr. Camacho, no capítulo LXVII. A


primeira reação de Rubião foi de sobressalto e aborrecimento em ver seu nome
impresso e multiplicado no jornal O Atalaia. Contudo, à medida que o tempo passa,
Rubião acostuma-se com a publicidade a ponto de se sentir orgulhoso por ver seu ato
heroico estampado no jornal, a ponto de comprar alguns exemplares para enviar a seus
amigos de Barbacena e, a conselho do Freitas, reimprimir a notícia no a pedidos do
Jornal do Commercio:

Rubião interrompeu as reflexões para ler ainda a notícia.


Que era bem escrita, era. Trechos havia que releu com muita
satisfação. O diabo do homem parecia ter assistido à cena.
Que narração! que viveza de estilo! Alguns pontos estavam
acrescentados, — confusão de memória, — mas o acréscimo
não ficava mal. E certo orgulho que lhe notou ao repetir-lhe
o nome? “O nosso amigo, o nosso distintíssimo amigo, o
nosso valente amigo...”
Ao almoço, riu-se de si mesmo; achou-se mortificado em
demasia. Afinal, que tinha que o outro desse aos seus leitores
uma notícia que era verdadeira, que era interessante,
dramática, — e seguramente, — não vulgar? Saindo, recebeu
alguns cumprimentos; Freitas chamou-lhe S. Vicente de
Paula. E o nosso amigo sorria, agradecia, diminuía-se, não
era nada...
— Nada? replicou alguém. Dê-me muitos desses nadas.
Salvar uma criança com risco da própria vida.
Rubião ia concordando, ouvindo, sorrindo; contava a cena a
alguns curiosos, que a queriam da própria boca do autor.
Certos ouvintes respondiam com proezas suas — um que
salvara uma vez um homem, outro uma menina, prestes a
afogar-se no boqueirão do Passeio, estando a tomar banho.
Vinham também suicídios malogrados, por intervenção do
ouvinte, que tomou a pistola ao infeliz, e fê-lo jurar... Cada
gloriazinha oculta picava o ovo, e punha a cabeça de fora,
olho aberto, sem penas, em volta da glória máxima do
Rubião. Também teve invejosos, alguns que nem o
conheciam, só por ouvi-lo louvar em voz alta. Rubião foi
agradecer a notícia ao Camacho, não sem alguma censura
pelo abuso de confiança, mas uma censura mole, ao canto da
boca... Dali foi comprar uns tantos exemplares da folha para
os amigos de Barbacena. Nenhuma outra transcreveu a
notícia; ele, a conselho do Freitas, fê-la reimprimir nos a
pedidos do Jornal do Commercio, interlinhada. (ASSIS,
2008c, pp. 142-143)

Desse modo, os exemplos citados mostram dois funcionamentos distintos: o


516

primeiro, exemplificado pelo trecho da crônica, evidencia o modo como o cronista


esquizofreniza a modéstia afetada dos filantropos de quererem fazer com que jornalistas
publiquem seus atos de caridade. Ao noticiar o ocorrido, o cronista não enfatiza o ato
em si, mas o modo como a vaidade nomeada como filantropia é produzida com o fim
sine qua non da publicidade. Ao optar por narrar o fato, evidenciando suas motivações e
procedimentos, o cronista põe em cena essa distância entre os nomes e as coisas,
fazendo com que a natureza do acontecimento seja percebida por meio de seu processo
de produção. Como afirmam Deleuze e Guattari:

O "ou...ou" esquizofrênico reveza com o "e depois":


considerando dois órgãos quaisquer, a maneira como estão
enganchados no corpo sem órgãos deve ser tal que todas as
sínteses disjuntivas entre os dois venham a dar no mesmo sobre
a superfície deslizante. Enquanto o "ou então" [como indicador
de exclusão] pretende marcar escolhas decisivas entre termos
não permutáveis (alternativa), o "ou" [inclusivo] designa um
sistema de permutações possíveis entre diferenças que sempre
retornam ao mesmo, deslocando-se, deslizando (DELEUZE &
GUATTARI, 2011, p. 25).

No exemplo citado da crônica, o enunciado negativo do filantropo - “Não vá


agora dizer lá na folha que eu pratiquei este ato de caridade” - opera-se como indicador
de exclusão para que seu sentido possa ser percebido o contrário do que diz, buscando
esvaziar na publicidade desejada qualquer motivação interesseira do ato de caridade
desse filantropo. Contudo, no discurso do cronista, a própria enunciação desse pedido
excludente opera o deslizamento de sentido como indicador inclusivo, fazendo com que
as sínteses contraditórias entre o dito e a intenção do dito excludentes se enunciem na
superfície deslizante do esquizofrênico, isto é, a enunciação do pedido feito ao cronista
pelo filantropo faz com que o sistema de permutações discursivas entre o dizer e a
intenção retornem ao mesmo por meio desse deslocamento.
Nos dois exemplos do romance, a mesma situação é enunciada como censura
para, em seguida, transformar-se em elogio e louvor. No comportamento de Cotrim, o
que é censurável passa pela justificativa de modo que se torne não mais uma
imperfeição, mas o maior elogio que o defunto-autor pode fazer ao cunhado. No caso de
Rubião, a notícia que causa sobressalto e aborrecimento, aos poucos, passa a ser
justificada e, o que na primeira leitura pareceu exagero, passa a determinar o
acontecimento em si - "O diabo do homem parecia ter assistido à cena. Que
517

narração! que viveza de estilo! Alguns pontos estavam acrescentados, — confusão


de memória, — mas o acréscimo não ficava mal. E certo orgulho que lhe notou ao
repetir-lhe o nome? “O nosso amigo, o nosso distintíssimo amigo, o nosso valente
amigo...” - de modo que o louvor dos vizinhos e dos amigos o encoraja a duplicar a
notícia e o efeito da glória por dois movimentos: comprar alguns exemplares para
enviar aos amigos de Barbacena e replicar a notícia no Jornal do Commercio. Nesses
dois casos, a estilização desses processos de produção publicitária opera-se por
meio da paródia: o relato narrado como testemunho de um comportamento
comum - Memórias Póstumas de Brás Cubas - ou a narrativa de um acontecimento
específico que se enuncia em seus mínimos detalhes, isto é, pela diégese, pela
mimese, pelo discurso indireto livre, pelo monólogo interior, passando de modo
hiperbólico do sobressalto e aborrecimento à necessidade de reduplicar a notícia e
o modo como o procedimento esquizofrênico faz paródia do acontecimento ou,
como afirmam Deleuze e Guattari: "o esquizo dispõe de modos de marcação que
lhe são próprios, pois, primeiramente, dispõe de um código de registro particular
que não coincide como o código social ou que só coincide com ele a fim de parodiá-
lo" (p. 29). Dessa forma, se podemos perceber nas crônicas um movimento similar
ao que Deleuze e Guattari definem como esquizoanálise, de forma que o papel do
cronista é o de esquizofrenizar os discursos dominantes, estabelecendo rotas de
fuga que desautomatizem a linguagem como palavra de ordem, evidenciando-a
como instrumento de produção despótica da verdade e da realidade, nos
romances, sobretudo em Memórias Póstumas de Brás Cubas, há um processo de
esquizofrenização no interior do modelo arbitrário que evidencia, para usar o
conceito de Roberto Schwarz, a volubilidade do defunto autor por meio da paródia,
fazendo com que essas narrativas funcionem como ficções cujo objeto de análise é
o próprio discurso e os meios pelos quais se efetiva a sua instância enunciativa.
Mais do que os outros romances, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, essa
esquizofrenização do modelo arbitrário que evidencia a volubilidade do
pseudoautor é fragmentada a tal ponto que o discurso do defunto-autor se fraciona
constantemente a ponto de responsabilizar o leitor pela sua dificuldade de narrar,
como podemos ver no capítulo LXXI:

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu


518

não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros


capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco
da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz
certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o
maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de
envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e
nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são
como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param,
resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e
caem... (ASSIS, 2008a, pp. 161-162)

III - A esquizodesmistificação em Machado de Assis.

Ao colocar em questionamento o modo como a psicanálise freudiana (e também


a de Jung) operam essa relação entre o inconsciente e o mito, Deleuze e Guattari
evidenciam os dois movimentos em que a teoria psicanalítica freudiana interpreta seja
de maneira anagógica, isto é, em direção ao "alto" ou seja de maneira analítica, em
direção ao baixo, reportando o mito às pulsões. Para eles, a questão fundamental é
ignorada, isto é, por que retornar ao mito? por que o mito deve se mostrar como
modelo? Afastar-se desse questionamento é fazer do mito a medida do inconsciente e
substituir as formações produtivas por simples formas expressivas 318. Desse modo, a
psicanálise desenvolve uma relação ambígua com o mito e a tragédia em que os desfaz
como representações objetivas para encontrar uma libido subjetiva universal, ao mesmo
tempo em que os redescobre e os promove como representações subjetivas, tratando-os
como sonhos e fantasmas do homem privado como dimensão inconsciente da
representação subjetiva no corpo do déspota:

Portanto, a ambiguidade da psicanálise em relação ao mito ou à


tragédia explica-se assim: ela os desfaz como representações
objetivas e descobre neles as figuras de uma libido subjetiva
universal; mas os redescobre e os promove como representações
subjetivas que elevam ao infinito os conteúdos míticos e
trágicos. Trata o mito e a tragédia, mas os trata como os sonhos

318 Assim, a suposta adequação pode ser interpretada de maneira dita anagógica, em direção ao "alto";
ou então, inversamente, de maneira analítica, em direção ao "baixo", reportando o mito às pulsões -
mas, como as pulsões são decalcadas do mito, desfalcadas do mito, levando em conta as
transformações ... Queremos dizer que é a partir do mesmo postulado que Jung é levado a restaurar a
mais difusa, a mais espiritualizada religiosidade, e que Freud se vê confirmado em seu mais rigoroso
ateísmo. Para interpretar a adequação postulada por ambos, Freud tem tanta necessidade de negar a
existência de Deus quanto Jung tem de afirmar a essência do divino (DELEUZE & GUATTARI,
2011, p. 82).
519

e os fantasmas do homem privado, Homo familia - e, com


efeito, o sonho e o fantasma estão para o mito e a tragédia como
a propriedade privada está para a propriedade comum. O que no
mito e na tragédia opera como elemento objetivo é, pois,
retomado e exaltado pela psicanálise, mas como dimensão
inconsciente da representação subjetiva (o mito como sonho da
humanidade). O que opera a título de elemento objetivo e
público - a Terra, o Déspota - é agora retomado, mas como a
expressão de uma reterritorialização subjetiva e privada: Édipo é
o déspota deposto, banido, desterritorializado, mas que é
reterritorializado no complexo de Édipo concebido como o
papai-mamãe-eu do homem qualquer de hoje. A psicanálise e o
complexo de Édipo reúnem todas as crenças, tudo auqilo em que
a humanidade desde sempre acreditou, mas para levá-lo ao
estado de uma denegação que conserva a crença sem nela
acreditar (...) Por toda parte o grande jogo do significante
simbólico que se encarna nos significados do imaginário - Édipo
como metáfora universal (DELEUZE & GUATTARI, 2011, pp.
401-402)

É conhecida pela grande maioria dos leitores machadianos e, sobretudo, pela


crítica machadiana a importância do mito de Otelo na determinação de sentido do
romance Dom Casmurro319. O narrador convoca Shakespeare e sua obra desde o
capítulo IX, no qual seu amigo tenor, ao desenvolver a teoria fantástica do mundo como
uma grande ópera, faz referência à peça Mulheres Patuscas de Windsor. Mas é no
capítulo LXII, intitulado "Uma ponta de Iago", que aparece a primeira referência
explícita à peça Otelo, no qual a personagem Bentinho é mordida pelo ciúme provocado
por um comentário feito por José Dias em relação à Capitu e no qual evidencia a
determinação hermenêutica do narrador ao leitor para o seu propósito de compreensão
da narrativa. No capítulo LXXII, o narrador faz nova referência à peça a propósito de
uma proposta de reforma dramática, na qual as peças teatrais começariam pelo fim,
deixando para o final a explicação do fim tornado em primeiro ato. Curiosamente, em
ambas as referências, o narrador relaciona a peça a seu ciúme: no primeiro caso,
motivado pelo comentário de José Dias e no segundo, afirma que após Otelo matar
Desdêmona e a si mesmo no primeiro ato, "os três seguintes seriam dados à ação lenta
e decrescente do ciúme" (ASSIS, 2008b, p. 169). O narrador, portanto, reconhece que o

319 Como observa Helen Caldwell, o Otelo de Shakespeare aparece no argumento de vinte e oito
narrativas, peças e artigos. Segundo Caldwell, Otelo não foi a única peça de Shakespeare da qual
Machado se serviu: Romeu e Julieta serve de trama para um romance e nove contos; o personagem
Hamlet aparece um pouco por contaminação - mesmo quando se está tratando dos Otelos
(CALDWELL, 2002, p. 19)
520

crime contra Desdêmona foi resultado do crescente ciúme de Otelo. No capítulo


CXXXV, intitulado Otelo, o narrador conta ao leitor ter ido assistir a peça que, por
coincidência, era representada naquela noite. A partir da peça, o narrador passa a
sobrecodificar os últimos acontecimentos pelo sentido que melhor lhe coube:

E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; -- que faria o


público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu?
E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era
preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a
consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao
vento, como eterna extinção...(p. 259)

O mito funciona nesse romance de maneira analítica, no qual o alegórico - a


mentira interesseira de Iago e o ciúme descontrolado de Otelo - é interpretado de
maneira literal como confirmação da culpa de Capitu e Escobar. Como observam
Deleuze e Guattari citando Lacan, um mito não se conserva sem um rito e, assim como
a psicanálise não é o rito da tragédia grega Édipo-Rei, assim também Dom Casmurro
não é o rito da tragédia shakesperiana 320. Mas é por meio da sobrecodificação
desterritorializada do mito que a tragédia shakespeariana passa a determinar o sentido
da traição no ciúme doentio de Bentinho. É somente por meio do significante despótico,
o qual desloca os sentidos e planifica as multiplicidades, que o simbólico e o imaginário
fazem cumprir a sua função. Contudo, conforme já observamos no início, essa
multiplicidade arborescente que determina o sentido da referência ao mito funciona
como paródia desse significante despótico 321. Como observa João Adolfo Hansen, em
artigo já citado Dom Casmurro: Simulacro & Alegoria, os romances Memórias

320 Portanto, seria preciso ouvir as advertências de Lacan sobre o mito freudiano do Édipo, que "não
poderia permanecer indefinidamente em evidência nas formas de sociedade em que se perde cada vez
mais o sentido da tragédia ... : um mito não se preserva se ele não sustenta algum rito, e a psicanálise
não é o rito do Édipo". (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 115)
321 É significativa a leitura que Caldwell faz desse romance ao evidenciar como o mito de Otelo é
articulado por Bento Santiago como forma de confirmar a culpa de Capitu, incriminando-a de
adultério com seu melhor amigo. Contudo, Caldwell não rompe com o mito, pelo contrário, tendo
como pressuposição de que o mito representa esse drama familiar burguês, propõe por meio dele a
defesa de Capitu. Conforme diz a autora: Através de tamanha alquimia psicológica, Machado de
Assis transforma o Mouro de Veneza no Casmurro do Engenho Novo. A semente da paixão de
Santiago encontra-se em Otelo (e Iago); mas, se o ciúme de Santiago é mais inclusivo, também é mais
neurótico - ao extremo da insanidade. Sinal dessa mácula, creio eu, é essa certa dose de ironia
inserida por Machado no autor fictício do livro - através de um nome. (CALDWELL, 2002, p. 186-
187). Portanto, a autora, na ânsia de inocentar Capitu, não se dá conta de que o recurso ao mito
corresponde ao modo de produção de sentido do narrador e que, ao invés de se querer provar
inocência ou culpa, deve-se evidenciar o modo de produção desses discursos que engessam os
acontecimentos à representação do mito e não, como afirma, que o mito deva funcionar como prova
de inocência de Capitu.
521

Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro jogam com o arbitrário de direção narrativa
e, à medida que suprime a familiaridade do princípio de causalidade que legitima a
memória do leitor, "dissolvem a verossimilhança tradicional por meio da estilização e
paródia da mesma como gênero cômico" (HANSEN, 2008, p. 154). Dessa forma, como
afirma Hansen, o uso de autores ficcionais faz a narrativa tradicional desfuncionar.
O que chamamos aqui de esquizodesmistificação é o processo pelo qual a pena
do cronista não se contrapõe a esse uso do mito característico do pensamento
romântico-realista, pelo contrário, opera na crônica a referência explícita ao mito.
Contudo, essa operação nas crônicas dá-se por meio do esvaziamento ou da
hiperbolização na qual o mito passa a não mais cumprir sua função de produtor de
verdade e interpretante da realidade. Esse processo é esquizo, pois cria rotas de fuga
dentro da determinação do significante despótico e essa fuga faz com que o mito retorne
à sua condição de mito perdendo seu efeito simbólico e imaginário.
Vemos por exemplo o processo de hiperbolização do mito como forma de dar
sentido a um determinado acontecimento no caso da crônica já citada do dia 9 de junho
de 1878 da série Notas Semanais. O cronista retoma a discussão sobre o caso de
incêndio do Paço Municipal de Macacu e, diante do posicionamento oficial de que o
incêndio havia sido causado por combustão espontânea, propõe outra explicação: a de
que o Paço não havia pegado fogo, mas fugido, pois escondendo dos munícipes a sua
verdadeira sexualidade, isto é, o Paço - másculo por aparência - tinha conseguido até
então dissimular o sexo, visto que se tratava de uma bela quadragenária. Ao descobrir
que era mãe, ela passou a sentir um misto de júbilo e terror. Para evitar a execração
universal cogitou duas possibilidades: jogar-se no rio ou fugir da cidade. Nessa
informação, o cronista convoca dois mitos distintos: o grego - essa quase Medéia - e o
hebraico - fez-se Agar. Evitando matar o filho como fez Medéia - referência ao mito
grego narrado na obra Argonautica de Apolônio de Rodes - resolve fugir como o fez
Agar (serva de Abraão e Sara, no episódio narrado no Pentateuco hebraico e traduzido
para o Cristianismo no livro de Gênesis) para proteger seu filho. A narrativa de Gênesis
conta que Agar foi expulsa por Abraão a pedido de sua esposa Sara, por esta sentir-se
humilhada pelo fato de a escrava ter dado um filho a seu marido e ela não. O mito
funciona como explicação para o acontecimento do incêndio do Paço Municipal de
Macacu. Contudo, operado por meio da narrativa fantástica, a personificação do Paço e
sua adequação ao mito operam a esquizodesmistificação posto que, ao afirmá-lo, o
cronista o hiperboliza para evidenciar os absurdos discursivos que tentam justificar a
522

causa do incêndio. O argumento que se desenvolve nesse recurso ao mito não é a busca
da representação simbólica como resposta e explicação a um determinado
acontecimento, mas a paródia dos modos de produção discursiva vinculados na
imprensa que tentam justificar o caso criminoso do incêndio.
Em crônica de 7 de julho de 1878 da mesma série, o cronista comenta a notícia
de um caso no interior da Bahia, na cidade de Caravelas, no qual um homem havia dado
à luz uma criança. Segundo a imprensa, o homem sentia dor agudíssima na região
precordial e, com o uso de medicamentos, acabou por expelir pedaços de uma criança.
As notícias na imprensa eram dadas como um acontecimento verdadeiro e sério, mas o
cronista, fazendo recurso ao mito de Baco - gerado na coxa de Júpiter - e Minerva que
saiu armada da cabeça de Júpiter, ironiza o modo como o caso de Caravelas era
noticiado na imprensa:

Não há patinação, não há corridas de cavalos, não há nada que


nestes dias possa dominar o sucesso máximo, o sujeito que em
Caravelas, na Bahia, deu à luz uma criança. Quando eu era
pequeno, ouvia dizer que o galo, chegando à velhice, punha
ovos, como as galinhas; não o averiguei mais tarde, mas já agora
devo crer que o conto não era da carocha, senão pura e real
verdade.
O sujeito de Caravelas é um quadragenário, que tinha cor de
icterícia, e padecia há muito uma forte opressão no peito.
Ultimamente, di-lo o médico, sentiu uma dor agudíssima na
região precordial, movimentos desordenados do coração,
dispnéia, forte edemacia em todo o lado esquerdo. Entrou em
uso de remédios, até que, com geral surpresa, trouxe a este vale
de lágrimas uma criança, que não era exatamente uma criança,
porque eram as tíbias, as omoplatas, as costelas, os fêmures,
trechos soltos da infeliz criatura, que não chegou a viver.
A mitologia deu-nos um Baco meio gerado na coxa de Júpiter; e
da cabeça deste fez nascer Minerva armada. Eram fábulas
naquele tempo; hoje devemos tê-las por simples realidade, e,
quando menos, um prenúncio do nosso patrício. Assim o creio e
proclamo. E porque não suponho que o caso de Caravelas deve
ser o único, acontece-me que não posso ver agora nenhum
amigo, opresso e pálido, sem supor que me vai cair nos braços, a
bradar com um grito angustioso: "Eleazar, sou mãe!". Esta
palavra retine-me aos ouvidos, e gela-me a alma... imaginem o
que será de nós, se tivermos de dar à luz os nossos livros e os
nossos pequenos; gerar herdeiros e conspirações;conceber um
plano de campanha e Bonaparte.
Imaginem... (ASSIS, 2008e, p. 145)
523

O recurso ao mito como forma de esquizofrenizar a notícia do caso é levado ao


absurdo por meio da hipérbole como forma de evidenciar a função discursiva para o
qual a imprensa, na ânsia por vender seus jornais, passa a tratar casos absurdos como se
fossem reais. O comentário do cronista evidencia por meio da paródia, a falta de
seriedade da imprensa. Em crônica do dia 15 de setembro de 1876 da série História de
Quinze Dias, o cronista comenta a notícia de um homem que publicou no Jornal Gazeta
de Notícias uma reclamação de que não houve nenhum grito do Ipiranga e que o que
houve foram algumas palavras ditas por D. Pedro I, mas que as mesmas não foram ditas
perto do Rio Ipiranga. Aproveitando essa matéria, o cronista comenta o modo de
produção da verdade histórica ao se referir ao caso de alguns escritores alemães, cuja
pena, semelhante a uma picareta, desbastou os inventos de dezoito séculos, entre eles, o
de afirmar que Lucrécia e Tarquínio eram pura ficção e conclui do seguinte modo:
"Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo
o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga
e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é
mais sumário, mais bonito e mais genérico". (ASSIS, 2008e, p. 100).
Para concluir, apresentamos mais um exemplo do modo como a pena do cronista
produz a esquizodesmitificação, ao evidenciar a coincidência entre acontecimento e
mito como recurso da ficção. No conto "Noite de Almirante", ao narrar o
relacionamento amoroso de Deolindo Venta-Grande e Genoveva, faz referência
implícita ao mito de Penélope e Odisseu. Tal qual Odisseu, Deolindo seguiu em viagem
de instrução, deixando em terra firme sua amada Genoveva a quem fizera juras de amor.
Passados dez meses de viagem, Deolindo volta para reencontrar a amada e ter a sua
noite de almirante. Contudo, chegando na velha casa tem notícia pela velha Inácia que
Genoveva havia se apaixonado por um mascate, brigado com a velha e ido morar com
seu novo amor na Praia Formosa. Deolindo, cego de ciúme e pensando em vingança, vai
atrás da casa e encontra a moça, tal qual Penélope na janela cosendo. Após o primeiro
susto da moça em rever seu antigo namorado, ela o convida a entrar e, diante das
indagações do moço, assume que o juramento feito antes da viagem era verdadeiro, mas
que vieram outras coisas, apareceu o mascate e ela passara a gostar dele: "Pois, sim,
Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir
com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio
este moço e eu comecei a gostar dele... (ASSIS, 2008, volume 2, p. 421).
O mito grego de Penélope e Odisseu tem origem derivada de narrativas orais
524

muito antigas na Grécia e compilada sob autoria de Homero em sua segunda obra
Odisséia. Conforme a narrativa, após um ano casados, Odisseu teve de se separar da
esposa para participar da Guerra de Tróia, ausentando-se de Ítaca por quinze anos.
Nesse tempo, Penélope fica aguardando o retorno do marido, mas instada pelo pai, vê-se
obrigada a ter de escolher um dos pretendentes à sua mão. Contudo, acreditando no
retorno de Odisseu, Penélope lança mão de vários artifícios para ganhar tempo, entre
esses artifícios, está o de coser um tela para o dossel funerário de Laertes:

Jovens, porque já não vive Odisseu, me quereis como esposa.


Mas não insteis sobre as núpcias, conquanto vos veja
impacientes,
té que termine este pano, não vá tanto fio estragar-se,
para mortalha de Laertes herói, quando a Moira funesta
da Morte assaz dolorosa o colher e fizer extinguir.
Que por qualquer das Aquivas jamais censurada me veja,
por enterrar sem mortalha quem soube viver na opulência.
(HOMERO, p. 44 versos 96-102)

Durante o dia e aos olhos de todos, Penélope cosia, mas a noite desmanchava o
trabalho feito, até que essa artimanha foi descoberta por uma serva que a revelou a
todos. Penélope busca outro artifício: propõe que se casará com o pretendente que
conseguir entesar o arco de Odisseu. Todos tentam, mas sem sucesso, até que um
mendigo se propõe a fazê-lo e, sob riso geral, consegue. Penélope reconhece no
mendigo seu marido. O mito funciona como uma das imagens mais populares de
feminilidade, no qual a mulher espera o retorno do amado e, enquanto espera, tece,
borda, junta os fios e as cores. Conforme observa Célia Gago em seu artigo "Fiar, tecer,
narrar, criar", o trabalho de Penélope é associado à rotina das tarefas domésticas
femininas, cujo trabalho repetitivo é uma estratégia da heroína como forma de parar o
tempo para garantir o retorno do marido. Segundo a psicóloga:

Podemos imaginar que Penélope tenha sido inspirada por Atena,


já que era essa deusa que protegia o retorno de Odisseu
(Ulisses). Porém, o padrão cíclico que estabeleceu, tal qual os
ritmos da natureza, revela, mais do que uma tática racional, uma
profunda conexão com sua essência feminina. A sua tão
decantada fidelidade, é, acima da lealdade ao marido, uma
fidelidade a si mesma, à manutenção da sua autonomia. (...) Do
mesmo modo que os símbolos do inconsciente, que parecem
eclodir num "passe de mágica", a jovem tecelã desperta do
torpor em que se encontra e descobre o caminho de volta. O fio
525

que desmancha é como o do novelo de Ariadne, mostrando a


saída do labirinto. Retoma o controle de sua obra e de sua vida.
Desfaz o que teceu e chega de novo ao ponto de partida, porém
transformada. Penélope é a moça tecelã; ao tecer e desfiar a seu
próprio gosto, mantêm, sob a forma de fio no tear, o controle de
suas vidas conectadas com sua verdade natureza. A natureza
Feminina representada pela Grande Mãe primordial, detentora
dos poderes de criação e destruição, de morte e vida.322

Denise de Carvalho Dumith, em sua tese O Mito de Penélope e sua retomada na


Literatura Brasileira: o caso de Clarice Lispector e Nélida Piñon, comenta que essa
referência ao mito em Machado já aparece em sua peça O Caminho da Porta de 1862,
com comentário bastante transgressor em relação ao mito: "Há Penélopes da virtude e
Penélopes de galanteio. Umas fazem e desmancham teias por terem muito juízo; outras
fazem e desmancham por não terem nenhum" (ASSIS, 2008, volume 3, p. 898).
Segundo a autora, Machado retoma esse mito nos seguintes textos: "A Mulher de
Preto", conto publicado em Contos Fluminenses, em 1868, no romance Helena,
publicado em 1876; no conto "Sereníssima República", publicado em Papéis Avulsos,
em 1882; e neste conto aqui analisado, "Noite de Almirante", publicado em Histórias
sem Data, em 1884. Em resumo, o mito de Penélope representa essa "essência
feminina" que espera como esposa ideal.
Ao verificarmos o funcionamento do mito de Penélope no conto "Noite de
Almirante", vemos que os referenciais arquetípicos se manifestam estabelecendo a
coincidência entre conto e mito. Contudo, o narrador esquizofreniza o mito à medida em
que, presente, não faz com que o enredo narrativo funcione subordinado à tradição
mitológica, isto é, os elementos arquetípicos se manifestam: Deolindo vale Odisseu,
Genoveva vale Penélope e a viagem de instrução vale a guerra de Tróia, o mascate vale
os pretendentes. Nessa validação, as equivalências se contradizem, visto que as duas
personagens não estão casadas, mas apenas fazem uma jura de amor como contrato, a
guerra de Tróia é reduzida à uma viagem de trabalho; o tempo da viagem é reduzido (ao
invés de vinte anos, passam-se dez meses); Deolindo não governa uma cidade, mas
apenas tem como função o de ser marinheiro. Em seu retorno à Ítaca brasileira, os
arquétipos continuam a se manifestar - Deolindo encontra Genoveva à janela cosendo -
mas sem funcionar como símbolo da narrativa, pois Genoveva já se amasiara com o

322 Célia Gago, sem data. Texto tirado do site: http://sbpa-rj.org.br/site/?page_id=470 Consultado no dia
30 de novembro de 2014.
526

Mascate. Em momento algum, poderia se supor um funcionamento do mito pela


negativa visto que o narrador apresenta a justificativa de Genoveva como sincera:

Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se


defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações. O que
dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se
bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com
ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era
do mascate, e cumpria declará-lo. (ASSIS, 2008, volume 2, p.
420)

A sinceridade de Genoveva, sem o peso moral das ações, evidencia não o


questionamento de uma suposta "essência feminina" imposta pela representação do
mito, mas o questionamento dessa representação como símbolo determinante da
realidade. Com isso, Machado faz o mito desfuncionar por meio da
esquizodesmistificação do que se pretende ser o símbolo da esposa fiel pelo mito de
Penélope. O que resta a Deolindo é apenas conformar-se com a situação e mentir para
não ser alvo de deboche dos amigos:

A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte,


alguns dos companheiros bateram-lhe no ombro,
cumprimentando-o pela noite de almirante, e pediram-lhe
notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na
ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e
discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite.
Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir. (p.
423)

Por meio desses procedimentos até aqui apresentados, o cronista estabelece o


jogo entre discurso e ficção como forma de evidenciar as relações de poder que
perpassam e motivam a produção da verdade segundo jogos de interesses, bem como
evidencia por meio da alegoria, do mito, do rebaixamento entre outros as formas como
esses discursos sobretudo na imprensa são efeitos de jogos de interesses, os quais
passam como fatos, acontecimentos e realidades ao leitor desatento. É esta a conclusão
que apresenta na crônica do dia 15 de março de 1877 ao comentar sobre a diferença
entre um contador de história e um historiador:

E repare o leitor como a língua portuguesa é engenhosa. Um


contador de histórias é justamente o contrário de um historiador,
não sendo um historiador, afinal de contas, mais do que um
527

contador de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor,


nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem
culto, letrado, humanista; o contador de histórias foi inventado
pelo povo, que nunca leu Tito Lívio, e entende que contar o que
se passou é só fantasiar.
528

CONSIDERAÇÕES FINAIS

"Mas não se pode exigir tudo; alguma coisa é preciso sacrificar".


Machado de Assis, Helena, p. 424

A análise das obras machadianas - crônicas, poemas, contos, romances - sempre


nos desperta um misto de fascínio e frustração. Fascínio, pois, apesar de tantos outros
leitores já terem analisado essas obras, sempre encontramos novas possibilidades de
sentido que evidenciam a riqueza, a profundidade e a atualidade delas; frustração,
porque saímos dessas obras com a sensação de que muitas coisas percebidas no
percurso da análise ficaram sem ser abordadas e aprofundadas com seu devido
merecimento. Esse misto de sentimentos leva-nos, portanto, à compreensão de que a
análise crítica deve ser feita e desenvolvida de modo aberto para que novos leitores
possam retomá-la, ressignificá-la e dar-lhe a continuidade devida, concordando com o
percurso analítico desenvolvido ou discordando dele. Obviamente, qualquer leitor que
afirma sentidos fechados e acabados de obras nega o modo de produção ficcional do
autor. Desse modo, nosso trabalho, sem ter a intenção de concluir qualquer sentido
unívoco da produção machadiana, conclui a análise, feita como uma a mais nas
inúmeras possibilidades de abordagem e compreensão.
Sem pretender atribuir significados definitivos aos efeitos de sentido que as
crônicas, os contos e os romances aqui trabalhados produzem na leitura, nosso objetivo
foi o de compreender os modos de produção empregados pelo autor. Partindo do
pressuposto de uma mudança significativa no romance com a publicação de Memórias
Póstumas de Brás Cubas, apostamos na hipótese da utilização dos procedimentos
técnico-estéticos das crônicas nesse romance e nos dois posteriores. Por meio dos
conceitos de narratologia desenvolvida por Gerard Genette, dissecamos os sete
romances para especificar a organização interna de cada um deles e estabelecer suas
particularidades. Essa dissecação permitiu-nos perceber que o recurso das metalepses de
regência, de comunicação, testemunhal e de comentário foi utilizado por Machado de
Assis desde seu primeiro romance. Em outras palavras, interromper a narrativa para
ressaltar o ato narrativo e evidenciar suas articulações, conexões e organização interna
(metalepse de regência), orientar-se para si próprio por meio de um simples testemunho,
indicar a fonte de onde tirou determinado enunciado, estabelecer o grau de precisão de
529

suas memórias ou o sentimento que determinado episódio desperta em si (metalepse


testemunhal), intervir de forma direta ou indireta na narrativa por meio de um
comentário autorizado (metalepse de comentário) e, por meio desses recursos,
estabelecer diálogo com o leitor (metalepse de comunicação), caracterizam toda a
produção romanesca de Machado de Assis.
Essa constatação permitiu-nos estabelecer os diferentes modos de uso desses
procedimentos, que definimos como: o modelo contratual característico dos quatro
primeiros romances - Ressurreição, Helena, A Mão e A Luva, Iaiá Garcia - restabelece
a coesão e a coerência, propondo um outro contrato de leitura com o leitor e, portanto,
mascarando o discurso como produtor da relação poder-saber; o modelo disciplinar,
característico de Quincas Borba e Dom Casmurro, reestabelece a coesão e coerência,
contudo, ao invés de propor um contrato de participação do leitor na produção de
sentido, evidencia a incompetência hermenêutica dele, como também esvazia o lugar da
autoria, fazendo com que o discurso narrativo funcione sozinho; o modelo arbitrário,
característico do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, tal qual os anteriores,
busca restabelecer a coesão e coerência da narrativa e, como o segundo, opera o jogo da
sedução e coerção, mas, diferentemente do segundo, o tom é marcado por um diálogo
agressivo com o leitor, impondo seu modo de interpretação do mundo de forma que seu
discurso torna-se autoritário, evidenciando, bem mais que os anteriores, a ficcionalidade
da incoerência textual.
Os recursos à função de regência, de comunicação, testemunhal, conceituados
por Gerard Genette, são utilizados por Machado de Assis desde suas primeiras crônicas,
com a diferença de que, se nos romances, essas funções interrompem a narrativa,
mudando o nível do discurso - o que Genette define como metalepse (mudança de nível)
- nas crônicas essas funções compõem o modo de organização, de maneira que não há
mudança de nível. Essa aproximação entre as crônicas e os romances por meio das
metalepses e das funções nos permitiu observar um quarto modelo característico das
crônicas o qual chamamos de modelo descontínuo, isto é, o modelo que evidencia a
lógica das relações de poder como discurso e, com isso, acirra a incoerência do mundo
e, portanto, potencializa a incerteza no jogo retórico e mostra por meio de
procedimentos descontínuos, os efeitos discursivos como relações de poder.
Com base nessa diferenciação, desenvolvemos a análise dos diferentes
procedimentos operados nas crônicas: o jogo entre debreagem e embreagem, as
instâncias enunciativas, o dialogismo, o discurso polêmico, as anti-metáforas, o boato, a
530

intencionalidade inventiva e a solicitação, os jogos temporais cronológicos e


linguísticos como espessamento da escrita, a performatividade intertextual.
A análise detida desses procedimentos permitiu-nos constatar seus diferentes
modos de uso tanto nas crônicas como nos romances, evidenciando que, para além de
entender as crônicas como laboratório da escrita machadiana, os romances foram
composto de forma cada vez mais elaborada pela pena do cronista.
531

ANEXOS:

ANEXO 1:
OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 925, 12 de fevereiro de 1958.
O cego de nascença e o cego por desgraça.

Bem que muitas e valiosas opiniões se tenham já no mundo pronunciado a este


respeito, submetemos hoje à consideração do público o seguinte mote da nossa
composição, feito de modo que pode ser glosado sem dificuldade alguma.
MOTE
Qual dos dois cegos mais sente
O penoso estado seu:
O que cegou por desgraça,
O que cego já nasceu?
Dizem uns que o cego de nascença é mais feliz, porque vivendo na ignorância de
tudo, não pode ter pesar de não ver, de não comparar aquilo que nunca viu, aquilo que
nunca comparou; e que só aquele que já gozou o mundo, que tudo viu, que tudo
admirou, é que, no estado de cegueira, por desgraça, sente mais a falta da vista.
Dizem outros, porém, que o cego de nascença, sem nada ter visto, sem nada ter
admirado, seria, sim, mais feliz se vivesse na ignorância de tudo, e não uma sociedade
onde a cada instante está ouvindo fazer-se a pintura das coisas, de que ele não pode
formar ideia; entretanto que, o cego por desgraça, forma ideia de qualquer coisa em que
se lhe fala, por isso que, no seu tempo, tudo vira, e a ideia que de tudo ainda tem o
satisfaz comparando o velho com o novo, o feio com o bonito, etc. etc.
Debaixo destes dois pontos de vista podem as pessoas, mais ou menos
habilitadas, mandar-nos suas composições, que em prosa, quer em verso, que as
publicaremos pela ordem em que nos chegarem à mão.
Como existam já muitos escritos a este respeito, aqueles dos nos nossos leitores
que souberem de algum artigo ou artigos, que disso tratem, nos obsequiarão também
remetendo-nos, traduzidos, por traduzir, ou copiadas mesmo de obras em Português,
uma vez que não ocultem o nome do autor, do livro, ou do jornal de que os extraírem.
A questão, bem que muito filosófica, pode ser tratada segundo o sentir de cada
532

um, uma vez que não se apresente edifício sem base.


P. Brito

ANEXO 2:
OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 929, 26 de fevereiro de 1958, p. 1.

Resolução filosófica a Demócrito

O que é mais doloroso, ser-se cego de nascença ou cego por acidente? That is
the question...
Como bem disse o Sr. Redator da Marmota, a questão apresentava-se
essencialmente filosófica, e o grande campo para os sectários da doutrina espiritualista
estava aberto com uma discussão toda metafísica; porém eu por demais amigo de
galhofar, e pouco acostumado a manejar silogismos e espertezas da lógica, resolvi não
entrar nesse debate, empenhado num campo inteiramente cerrado para meus hábitos e
costumes, apesar contudo do desejo que tinha de também dar a minha humilde opinião a
respeito; mas bem razão tinha aquele que disse: vouloir est pouvoir!
A vontade, essa eletricidade intelectual, fez-me lembrar que se eu discutisse
rindo-me, ainda o fazia filosoficamente, pois o riso já foi o característico de uma escola
de pensadores, e, portanto, animado com essa ideia tomei a minha pena ligeira de
folhetinista e comecei o meu raciocínio sobre a questão, desta maneira:
Se a vida é, como diz Bichat, a reunião dos fenômenos que triunfam da morte; se
a vista, como diz Sthall, é a melhor coisa da vida; segue-se concludentemente que a
cegueira, isto é a morte da vista, é a aniquilação da melhor parte da vida.
O cego de nascença começa a vida sem essa aniquilação, isto é, não sofre essa
subtração na sua força vital, portanto este argumento só serve para mostra sofrimento no
cego posterior ao nascimento, que a meu ver é o mais digno de lástima.
Não ver, é uma privação; ter visto e não ver, é um castigo.
O cego de nascença idealiza as coisas colorindo-as melhor do que elas são,
fantasia um mundo à sua guisa, identifica-se com ele, e portanto se visse a realidade,
talvez essa desmerecesse à sua imaginação, e assim amasse mais o seu mundo. O cego
depois tem refletida na alma as cenas que pasmou e quando se recorda dela é sentido a
morte de suas melhores ilusões! Quantos soluços não custariam a Homero e a Milton as
533

pinturas que, em suas cegueiras, fizeram-nas imortais epopéias, de quadros tão belos da
natureza que eles viram, guardaram e não contemplariam jamais?
O cego de nascença tem uma vida toda de espírito; a poesia, essa elasticidade da
alma, como diz Lamartine, povoa o seu mundo de cenas fantásticas, que ele contempla
uma realidade; e que melhor paisagista do que a poesia?
Entre a saudade e o desejo há uma grande diferença; a saudade supõe dor, o
desejo apenas gozo; é o que se dá entre os cegos de nascença e depois de nascença; o
primeiro deseja ver a luz, o segundo tem saudade da
luz...........................................................................
.............................................................................................................................................
.........
Quase faço um sermão de lágrimas, não é verdade, Sr. Redator? Porém
desculpe-me se menti ao meu programa; V. S. deve saber que hoje, o programa
representa a antítese da execução, e portanto já devia esperar isso; mas para finalizar,
sempre direi que acho mais digno de lástima o homem que já não vê, do que aquele que
somente não vê...
Os fiscais e inspetores de quarteirão não são entes infelizes, e todavia são cegos
de nascenças, nunca vêem: ao passo que a nossa constituição é bem digna de dó porque
houve tempo em que já viu, mas agora!... coitada! Deu-lhe a gota serena e fez fiasco...
Todavia eu preferiria antes ser cego do que ter bons olhos e não ver como o
célebre astrônomo Lalande que dizia: J’ai visite toute l’étendue du ciel, ET n’y ai point
vu Dieu!
Razão porque ninguém me tira da cabeça que os pedestres descendem desse
grande matemático... no que diz respeito à pouca vista...
Basta.

Jq. Sr.

ANEXO 3:

OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 931, 5 de março 1958, pp. 1-2.

Esperávamos que alguém agitasse esta questão; e esperávamos na sombra, sem a


534

ninguém comunicar as nossas intenções, os nossos pensamentos. Um artigo publicado


no n. 929 da Marmota, decide-nos; vamos entrar na questão, expender as nossas ideias
com a simplicidade e firmeza, filhas da convicção; certos da atenção e benevolência dos
leitores.
O Sr. Jq. Sr., autor do artigo acima mencionado, à parte alguns absurdos, nada
disse sobre a questão; entretanto, esperávamos o contrário ao começar a ler as primeiras
linhas; ilusão que se desfez ao terminarmos o artigo. O que se diz nele? Nada. Nem
mesmo a razão sobre que o mesmo Sr. funda sua opinião. Isto nem de leve ofende ao
autor do artigo, que não conhecemos, mas de cuja capacidade não duvidamos; notamos
apenas que o Sr. Jq. Sr., no meio de tanta coisa, não chegasse a uma opinião, a uma
conseqüência exata que fosse a base de sua opinião. O artigo apenas faz-nos saber que o
seu autor é de opinião que ocego por acidente é o mais desgraçado. Por quê?
Entretanto a questão apresenta-se clara e filosófica:
- É o cego de nascença ou o cego por desgraça que mais sente o seu estado?
O Sr. Jq. Sr. diz que, para o cego de nascença a vida começa sem a aniquilação
da melhor parte da vida – a vista – e que portanto o cego por acidente, sofrendo essa
aniquilação, é o mais digno de lástima. A conseqüência é errada, e está diametralmente
oposta à única conclusão possível do princípio estabelecido. É pela razão mesma de que
o cego de nascença não sofre a aniquilação da vista, que é o mais desgraçado. Ao
nascer ele esbarra com a noite que o deve cercar durante a sua vida; esbarra com esse
caos para que nunca há de soar um Fiat. Como não ser desgraçado? Sem tero gozo do
cego por desgraça, que vê em parte pelos olhos do espírito, ele não pode fazer uma ideia
exata dos objetos que lhe apresentais; e conseguintemente não pode compreender-vos, –
gozar um pouco do que gozais – pelo exercício dos outros sentidos ou faculdades.
Continua o mesmo senhor, dizendo que o cego de nascença fantasia um mundo à
sua guisa, e identifica-se com ele, idealizando e colorindo as coisas melhor do que elas
são.
Isto importa um erro psicológico. Não é possível ao cego em questão criar esse
mundo à sua guisa: e a razão é esta: – A criação desse mundo espiritual só pode ser
fantasiada pela imaginação e pelo raciocínio. Estas duas faculdades desenvolvem-se no
centro das ideias; as ideias são adquiridas pelos sentidos. Ora, sendo o cego de nascença
totalmente estranho ao mundo físico, não pode receber ideias para povoar o seu mundo
pela ausência do importante órgão da percepção visual: Como idealizar, colorir, e
identificar-se com o seu mundo?
535

Ao cego por desgraça sucede inteiramente o contrário. O seu espírito


conservando ainda as impressões recebidas pelos olhos exteriores, facilmente imagina
tudo quanto lhe narrarem: e pode mesmo criar para si um mundo espiritual com as
pálidas reflexões das suas recordações. Estas recordações, que são como que um
crepúsculo no meio da sua noite, é que faz a grande diferença entre o cego por desgraça
e o cego de nascença.
O cego de nascença, diz também o artigo, tem um gozo, o desejo de ver a luz; e
o cego por desgraça uma dor, a saudade da luz.
Concordamos que haja no cego por acidente essa saudade, modificada porém
pela ciência que ele tem do mundo físico. O que, porém, não aceitamos, é que o desejo
no cego de nascença seja um gozo; nem mesmo em ninguém. O que há no cego de
nascença é uma luta íntima, terrível, sangrenta, que abala o espírito, e fatiga as forças
morais. Vivendo no meio de uma sociedade que a cada momento está fazendo a pintura
de todas as coisas, de todos os objetos, o cego de nascença sente o desejo ardente e
voraz de ver, de conhecer esses objetos e essas coisas. – Quem pode dizer que isto é um
gozo? Dai ao cego de nascença uma rosa, fazei-lhe aspirar o seu perfume; pensais que
isto deve ser para ele um gozo? Não! Aquele perfume suave e delicado, como um
bálsamo filtrado por um dos mais belos poros da natureza, deve inspirar-lhe
ardentemente o desejo de ver a flor que o exala. Deve ser bela, dirá ele, a flor que
contém em seu seio este aroma que me embriaga o espírito e banha-me a alma na mais
suave essência!Porém o coitado não pode ver, nem fazer dela a menor ideia. Como
aquela alma deve estorcer-se naquele desejo, naquela luta!
Há além de todas estas razões, que provam quanto é mais doloroso o estado do
cego de nascença comparado ao cego por desgraça, um fato de muita importância, que
nasce da ignorância total do cego de nascença relativamente ao mundo material.
Uma das provas eloqüentes, mais vivas, por isso que palpável, da existência de
Deus, é o universo, o mundo físico, esta natureza que se desenrola aos olhos do homem,
colorida e perfumada por uma mão suprema. A inteligência humana reconhece que este
desabrochar de flores, este reverdecer de campos, este suceder contínuo de estações,
dias e noites, este existir de átomos, de insetos, que escapam à vista, e que nascem,
vivem, movem-se, agitam-se, para o que é necessário haver músculos, pois sem
músculos não há movimento, este mundo grande e infinitamente pequeno, que se
manifesta no trovão e no imperceptível caminhar dos átomos, este mundo harmônico –
orgânico, majestoso, admirável; tudo isto, dizíamos nós, reconhece a inteligência
536

humana que deve ter uma origem, que não pode estar em si, porque seria um absurdo,
que não pode ser obra do acaso que nada produz, mas que deve nascer de um Ente
Supremo, infinito, eterno. Este reconhecimento que importa um dos pontos capitais da
filosofia, e a base da religião não pode ser operado senão pelas ideias recebidas pelos
sentidos. Pode o cego de nascença sem uma só noção do mundo físico, esta grande
manifestação da existência de Deus, fazer uma ideia exata da Divindade? Não o cremos.
E pois, mais uma vez está provado que é mais doloroso o estado do cego de
nascença comparado ao cego por acidente, pois que este tem uma ideia de tudo o que
existe pelos olhos do espírito e da memória.
Por enquanto é bastante o que acima expendemos; voltaremos à questão, talvez,
e então seremos mais extensos. Estamos certos que o autor do artigo a que nos
referimos há de ficar zangado com as nossas palavras, e talvez volte a falar sobre a
matéria.
Aguardamo-lo. Entretanto, fique certo de uma verdade: nós não ferimos
personalidades, mas sim argumentos: mesmo apesar da frase de Buffon: – O estilo é o
homem.

As.

ANEXO 4:

RÉPLICA AO SR. AS.


A Marmota, Rio de Janeiro, nº 932, 9 de março 1958, p. 2.

Chamado à fala pelo Sr. As. Sobre um artigo, intitulado – Os Cegos – que
discutimos; não podemos resistir ao emprazamento do ilustre cavalheiro, apesar de
repararmos que o mesmo senhor tenha ligado mais importância do que nós mesmos a
esse ligeiro escrito, e que trata com mais interesse, do que apresenta mostrar um artigo
humilde e obscuro como o seu autor. Pela nossa parte declaramos que jamais
refutaríamos ideias que fossem absurdas e que nada provassem; leríamos até ao fim o
artigo que nos tivesse despertado a curiosidade; e vendo que nada havia nele digno de
interesse, murmuraríamos apenas em voz baixa: – que lástima, o que é que isto prova?!
Entretanto, o nobre cavalheiro nem de leve nos ofende, ao contrário, trata-nos
com a urbanidade que o caracteriza, e tem, portanto, toda a razão quando diz: – o estilo
537

é o homem.
Sentimos desenganar ao autor do artigo em questão, que enganou-se quando
disse que nos zangaríamos com os seus argumentos; viemos ao seu chamado para um
combate franco, leal e sem prevenções. Para que armas envenenadas quando não se
combate um ponto de honra, ou que tenha relação com nossa pessoa e brios?! Fora o
combate de D. Quixote e do moinho de vento...
Não viemos sustentar os nossos primeiros argumentos, viemos apenas mostrar a
inconseqüência dos vossos, Snr. As.
- Escutai-nos:
Declarais que o cego de nascença, logo ao primeiro passo na vida, esbarra com a
noite que o deve cercar para sempre, noite eterna e sem a esperança de um Fiat lux, e
portanto, que deve ser muito desgraçado o seu penoso estado: isto não é procedente: vós
colocais o caso em vós mesmos, e avaliais do prejuízo daquele que nascesse sem vista;
repetimos uma vez, que assim não é que deve estabelecer a questão: o pensamento não
funciona nele com a força do raciocínio; quando suas ideias estiverem desenvolvidas, já
ele está acostumado com essa noite eterna, ele não sabe o valor do tesouro que perdeu,
porque nasceu e criou-se sem conhecer esse tesouro; porque, enfim, não fez
comparações, e a comparação mata a unidade, como sabeis!
Quanto ao vosso sistema sobre as ideias serem exclusivamente adquiridas pelos
sentidos, e que apresentais como uma razão de impossibilidade para o cego de nascença
criar um mundo ideal; só vos responderemos que a teoria de ideias inatas é altamente
filosófica, e que neste caso a sua aplicação é muito sensata.
Perguntais ainda se pode o cego de nascença, sem uma só noção do mundo
físico, fazer uma ideia exata da divindade?! Com efeito! É uma contingência muito
mesquinha essa em [que] pondes as provas da existência de Deus!! É acabar com todas
as ideias imateriais e em que se funda a crença dos espiritualistas sobre a divindade! É
reconhecer a Deus, somente em suas obras, e fazer dependente de acontecimentos
físicos, uma ideias toda dependente da alma!!....
Quiséramos ser mais longo; porém não nos faltarão ocasiões logo que o nobre
cavalheiro, com quem discutimos, ou rebater melhor nossas ideias ou der mais vida às
suas... se é que tem poder de ressuscitar Lázaros.

Jq. Sr.
538

ANEXO 5:

QUESTÃO DE CEGUEIRA
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 932, 9 de março 1958, pp. 2-3.

Ilmo. Sr. Paula Brito.


Apesar de ser muito filosófica a questão encetada por V. S.; contudo, peço-lhe
licença para nela também entrar; tanto mais que, sobre filosofia, tenho cá a minha
opinião muito diferente da geral.
Quanto a mim, Sr. Redator, a filosofia não se estuda: a filosofia nasce com o
homem; a filosofia é antes uma faculdade, que uma ciência, ou então seja esta – o modo
porque cada um aprecia as coisas morais e encara as materiais. – Isto dado, entremos
em matéria, esforçando-me eu, para não abusar da bondade de V. S. em ser lacônico.
É a questão de saber qual dos cegos é mais desgraçado, se o de nascença, se o do
acaso?
Ah! Ambos bem infelizes são, mas o último deve sofrer mais. O primeiro tem
curiosidade de ver o que nunca viu; o segundo, saudade do que viu. O primeiro diz: -
Que pesar tenho de não poder ver! – O Segundo: Oh dor! Eu já não poder ver!... – O
primeiro, naturalmente, dotado da imaginação fria ou pouco entusiástica, não pode
sentir com tanta veemência como o segundo, cuja vista foi roubada por qualquer
fatalidade, em uma idade em que, senhor de todas as suas faculdades, de todos os seus
sentidos, tinha podido apreciar e visto as imensas belezas, as imensas magnificências
que por todos os lados nos rodeiam!
- Quem, Sr. Redator, será mais desgraçado: - aquele que perdeu o amor e os
afagos da pessoa amada, ou aquele que nunca gozou tal bem? – Certamente concordará
comigo, que o primeiro: não é assim? Pois quanto a mim, os dois cegos estão no mesmo
caso. O que perdeu a vista é mais infeliz do que o que nunca a teve. Quem nunca gozou,
não pode ter saudades; e a saudade, Sr. Redator, é um dos maiores, senão o maior dos
tormentos da vida! A ventura passada mais nos amargura os sofrimentos presentes!
Quem o negará?
Portanto, Sr. Redator, concluo que o mais desgraçado dos dois cegos, é o cego
do acaso.
Rio, 27 de fevereiro de 1858
Alcipe.
539

ANEXO 6

OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 933, 12 de março de 1958.
Questão proposta na Marmota n. 925, de 12 de fevereiro do corrente ano.

Perguntais amigo Paula Brito, qual mais infeliz – se o cego de nascença ou se o


cego por desgraça?
A resposta é difícil: - ambos são desgraçados.
Eu também vos perguntaria, quem mais infeliz: o pobre que vive sofrendo fome
e frio, ou o desgraçado que existe lutando com uma moléstia medonha?
Mas enfim, a resposta deve ser dada pelo caso da pergunta.
É mais infeliz o cego por desgraça.
O cego de nascença faz ideias dos objetos, formas, imagens das coisas, e julga
que essas ideias, que essas imagens são verdadeiras, que seus pensamentos são certos,
que são a cópia da realidade, e o seu espírito se satisfaz, e se contenta com isso; mas o
homem que nasce vendo o sol com a sua luz tão brilhante, o céu com cores tão lindas, e
com tantas estrelas, a terra com tanta beleza, e com tantas flores, o menino lindo como
um anjo, e a mulher tão formosa, parecendo reunir no semblante todos os encantos do
Criador, esse homem depois cega, se considera que os seus olhos não podem ver mais
as obras divinas da criação, se percebe que vive em uma escuridão contínua, que a luz
está morta para ele; o seu desespero há de ser imenso, julgando que os objetos que viu
se hão tornado mais lindos, que a primavera há de estar sempre sobre a terra, e
entretanto ele privado de ver tudo isso que já uma vez admirou!
Que dor, que desespero não há de ter então o cego por desgraça!
Dizei-me: o homem que nasce pobre não suporta mais facilmente a miséria, do
que aquele que, tendo nascido em palácios dourados, vê-se depois com os andrajos do
mendigo?
O homem que ao nascer traz uma chaga no corpo, não tem mais resignação para
sofrer esse mal, do que aquele que, tendo nascido são, vê depois no seu corpo uma
ferida medonha?
O homem que assim que viesse ao mundo fosse lançado em uma masmorra, não
teria mais paciência para suportar os martírios da prisão, do que aquele, tendo nascido
540

livre, fosse depois arrastado ao calabouço?


Não seria Adão mais feliz se nunca tivesse vivido no Paraíso, do que depois de
ter gozado desse Éden ver-se privado dele?
Pois assim acontece ao cego de nascença: vindo ao mundo com os seus olhos
fechados para a luz, acostumando-se a viver na escuridão, habitua-se a isso, ama por fim
a noite dos seus olhos, pois todos sabem que o hábito modifica o homem, como as
nuvens que rolam no ar modificam a cor do céu; mas o cego por desgraça viu e apreciou
o mundo, e vendo-se depois cego, amaldiçoa esse véu negro que lhe encobre a vista,
aborrece essa escuridão que o circunda.
Como não há de então, o cego por desgraça amaldiçoar essa névoa, que colocada
nos seus olhos apaga a luz?!
Dizei-me mais: o homem pela sua imaginação não pode fazer uma ideia mais
bela de um objeto, do que na realidade ele é?
Quantos, que ainda não viram as Tulherias, pensam que esse belo monumento
não tem defeito algum? Assim o cego de nascença não pode conceber ideias mais
grandiosas, mais lindas dos objetos do que os outros homens?
Um moço, cego de nascença, operado pelo Dr. Cheselden, quando recuperou a
vista, dizia que julgava, que seus pais eram mais formosos do que ninguém.
E essas ideias belas, essas imagens grandiosas que faz o cego de nascença das
coisas, não devem consolá-lo um pouco?
Dizei-me ainda: o homem que nasce cego, que relações pode tomar? Vivendo
sempre com a noite, não pode entrar nos festins do mundo, não pode formar muitas
amizades; ama só o seu Jáo que estende a mão ao povo pedindo uma esmola, e pensa só
no seu cão, que preso a uma corda, lhe vai mostrando o caminho; as suas ideias são
imitadas; quase que não tem recordações, e assim vive no seu pequeno círculo; tem
medo de dar um passo para não morrer nas trevas, e acha sempre boa a habitação que
ocupa; mas o homem que nasce podendo ver as pessoas que o cercam, que torna-se um
conviva das festas do mundo, que espalha as suas amizades, as suas relações, e que
depois cega por desgraça, teme a isolação em que vive, chora pelos seus amigos, tem
recordações tristes do tempo feliz da sua vida!
Que dor, que saudade não há de ter então do mundo o cego por desgraça!
O cego de nascença é como o enjeitado que não conhecendo o seu pai, não tem
saudades dele; assim é o homem que nasce cego não conhecendo o mundo, pouco se
embaraça com ele; o cego por desgraça é como o velho que todo o dia chora pela sua
541

mocidade!

A.

ANEXO 7:
OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 934, 16 de março de 1958, pp. 2-3.

Tréplica ao Sr. Jq. Sr.

Como esperávamos, o Sr. Jq. Sr. voltou ao campo; e desta vez, não para
sustentar os seus argumentos, mas para refutar os nossos. Tensionando não estendermos
com reflexões preliminares, vamos reunir todas as nossas forças para defender as nossas
opiniões e os nossos argumentos.
Entretanto não podemos deixar de declarar que, desde que alguém se apresenta
em público por um qualquer órgão da imprensa, ligamos todo o interesse às suas
palavras, porque o tomamos pelo que ele se apresenta. Isto seja dita em resposta à
censura modesta do Sr. Jq. Sr.
Desde que S. S. publicou o seu primeiro artigo sobre os cegos, decidimo-nos a
refutá-lo. Esta resolução, que não deixava entrever um único motivo de ofensa ao autor
do artigo – tinha por alvo despedaçar os atavios sofísticos de seus argumentos falsos.
Havia nisso um pensamento humanitário; – Receávamos que espíritos menos fortes se
deixassem impressionar por uma linguagem que tão bem soube dourar uma aluvião de
paradoxos. Escrevemos, e adivinhamos logo que S. S. voltaria a falar sobre a matéria. O
que não esperávamos, porém, é que os seus novos argumentos mais inconseqüentes que
os primeiros, deixassem a questão no mesmo pé; e que aqueles que partilham as suas
mesmas ideias, sofressem uma terrível decepção, tanto mais inesperada quanto que a
tradicional capacidade e aptidão de S. S. era um forte baluarte contra todo o desânimo e
fraqueza.
Com efeito! a refutação que S. S. dá aos nossos argumentos em vez de destruí-
los dá-lhes mais força. Não há destruição possível quando o edifício assenta sobre bases
colossais.
Convictos da nossa opinião, fortes em nossos princípios, todos os argumentos
que se nos apresentarem contrariando-nos, serão destruídos com a violência das
542

deduções evidentes, semelhantes às escadas de montanhas do paganismo.


E pois, comecemos a análise do artigo do ilustre adverso.
O cego de nascença, diz S. S., acostumado desde infante com a sua noite, nada
sente ao chegar a idade do raciocínio. Isto não é refutação ao nosso argumento; bem
longe está de destruí-lo. Concedemos que esta argumentação tenha algum valor, mas
apenas para provar o estado feliz e descuidoso do cego de nascença na época do berço,
na época em que para ele o pensamento não funciona com a força do raciocínio,
segunda a frade de S. S. Mas, desde que essa época passa, desde que começam as
narrações da sociedade, este murmúrio para ele, como que de um outro mundo, aí
principia esse desejo, essa luta, essas aspirações atrevidas sobre que reage a venda de
ferro que lhe intercepta a luz, a vista, o mais precioso dos sentidos.
Argumenta o ilustre adverso que a ignorância do cego de nascença relativamente
ao mundo material, é uma vantagem sobre o cego por desgraça, que tem cabal
conhecimento do tesouro que perdeu. Já refutamos isso no nosso p0rimeiro artigo.
Coloque-se o cego de nascença em uma solidão, em um deserto, e nós daremos a mão à
palmatória; exceto os perigos de uma vida errante, nada há aí que o faça desgraçado;
mas a face dos homens, no centro da sociedade, nunca! Ouvindo continuadamente a
descrição de coisas maravilhosas, ainda as mais triviais, das quais não pode fazer a
menor ideia, ele deve sofrer um suplício mais terrível que o de Tântalo, o mais terrível
dos suplícios.
Assim não procede a argumentação de nosso adversário. É verdade que S. S.
pode dizer, para comprovar a sua asserção: o costume faz a lei; mas nós lhe
responderemos, que não há lei possível no caso atual: a natureza é sempre a natureza:
exigente e terrível quando se trata das suas atribuições. Negar isto, é negar todas as
verdades palpáveis, todos os princípios evidentes.
Mais adiante o nosso ilustre adverso fala em ideias inatas. Abstemo-nos de
discutir este princípio de Descartes que não admitimos; concordamos que hajam
princípios e sentimentos inatos – ideias, nunca!
Entretanto, sejamos generosos e concedamos mesmo, apesar de paradoxal a
admissão desse princípio. O que prova ele no caso atual? Absolutamente nada. Não é
pela ação dessas ideias inatas, na verdadeira acepção da palavra, que se deve operar esse
mundo de que fala o Sr. Jq. Sr.: isso pertence à imaginação. Para fantasiá-la e colori-lo,
necessária a presença de ideias sensíveis, de imagens de corpos. Ora, o cego de
nascença se bem que tenha ideias sensíveis do mundo tangível, não tem todavia, pela
543

falta de órgão visual, os corpos e as imagens necessárias para a criação de seu mundo
imaginário; logo não se dá no cego de nascença a idealização de um tal mundo.
Isto é evidentemente lógico; só uma obstinada vontade de dissentir, poderá negá-
lo: estamos certos de que o público sensato há de reconhecer a verdade destas deduções,
verdade que só pode nascer da solidez de princípios certos e evidentes.
Mostremos, porém, como são sólidas as nossas opiniões – e como essa base não
assenta sobre princípios falsos; concedamos que se dá essa hipótese, que o cego de
nascença, contra todas as doutrinas filosóficas, creia esse mundo na sua fantasia: prova
isso por acaso que seja menos penoso o seu estado? – Por ventura seria melhor para ele
idealizar esses panoramas informes, pálidos, hipotéticos, reformados todos os dias; que
gozar, admirar o mundo real, palpável, variado, sublime? A resposta salta aos olhos e da
sua verdade convence-se o mais e obstinado espírito.
O último tópico do artigo do Sr. Jq. Sr. é interessantíssimo. S. S. acusa-nos de
materialista: e para prová-lo lança mão de um dos sofismas mais reprovados; atribui-nos
uma opinião que não temos, dizendo que admitimos e reconhecemos Deus somente nas
suas obras, nós que dissemos que uma das provas mais vivas, por isso que palpável da
existência de Deus, era o mundo físico!
Ora, quem nos ler com atenção há de convencer-se da nossa inocência; assim
como quem ler os artigos de nosso adversário, reconhecerá facilmente no seu autor, uma
veneração fanática pelas doutrinas espiritualistas. Nós não somos nem espiritualistas
puros, nem materialista; harmonizamos as doutrinas de ambas as escolas e seguimos
assim em ecletismo com o qual nos damos às mil maravilhas.
Quanto ao reconhecimento de Deus em suas obras, repetimo-lo, o cego de
nascença não pode conceber uma ideia exata, clara, perfeita da Divindade; isto não quer,
porém, dizer que ele não possa ter dela ideia alguma pois como dissemos acima,
equilibramos com mais perfeita harmonia o espiritualismo e o materialismo.
Assim não acontece, porém, ao nosso adversário. Contra a filosofia de todos os
tempos ele só encontra provas da existência de Deus na ordem metafísica. Isto e a
admissão de ideias inatas são um sacrifício heróico ao espiritualismo que não podemos
deixar de louvar. O que será então da fantasia caprichosa e romanesca dos poetas que
reconhecem a mãe de Deus em todas as suas obras?
Concluamos; cremos ter respondido satisfatoriamente ao Sr. Jq. Sr.; instar a
fazer reviver todos estes pontos que acabamos de destruir seria uma sensaboria muito e
muito desagradável. Confiamos que o Sr. Jq. Sr. para vir de novo falar sobre a matéria
544

procure outras argumentações, senão tão conseqüentes como as nossas, pela facilidade
da opinião que admitiu, ao menos mais sensatas.
Se não respondemos mais em tempo é pela afluência de trabalho que nos pesa;
algumas horas vagas que nos restam, ocupamos na conclusão de alguns trabalhos
literários a que estas questões prejudicam um pouco.
Entretanto, até à vista.

As.

ANEXO 8:

OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, nº 935, 19 de março de 1958, p. 2.
Ainda uma resposta ao Ilmo. Sr. As.
Pela consideração e cavalheirismo que nos merece o Sr. As. Voltamos ainda à
questão – os cegos – para respondermos ao nobre antagonista que nos interpela. Já
dissemos uma vez, e o colega teria lido, que o nosso primeiro artigo, escrito
humoristicamente e num estilo ligeiro, com quanto apresentasse a ideia que nos domina
na presente questão, no ponto em que encarávamos como mais infeliz o cego por
desgraça, era contudo essa ideia revestida de argumentos adequados ao estilo, e não um
verdadeiro estudo metafísico; entretanto mereceu ele as honras de uma refutação, e com
quanto saíssemos a campo para replicar, declaramos imediatamente que o nosso
segundo artigo era uma refutação das ideias do nosso opositor e nada mais, pois com
efeito só tínhamos em vista, destruir as proposições do Sr. As, que se não combinavam
com o nosso modo de pensar; feito esse segundo artigo e tendo ele, sido ainda repelido,
vamos agora fortificar os nossos primeiros argumentos, robustecê-los de razões, pois
não é possível deixá-los sob a sua primeira e ligeira forma, quando temos um adversário
disposto a debater a questão filosoficamente, e com aquela erudição que lhe
conhecemos.
Antes, porém, de passar adiante, devemos uma explicação ao disposto adverso.
O colega é injusto quando nos julga um espírito aferrado à escola espiritualista,
quando as ideias que apresentamos não dão-lhe direito à tal suposição. Se admirarmos
em parte o idealismo de Mallebranche, e o panteísmo de Spinosa, não podemos deixar
de curvarmo-nos à força da voz poderosa de Cousin, esse chefe da escola eclética na
545

França; prezamos a metafísica de agora, que diverge um pouco da antiga, pois trata de
separar a imaginação das percepções abstratas; o nosso reclamo, pois, sobre ideias
inatas que o autor, como que reprovou, não veio senão para mostrar a possibilidade da
criação de um mundo ideal para o cego de nascença, e não como uma profissão de fé
nossa; essa ideia emitimo-la para atuar unicamente sobre quem nos referíamos – o cego
de nascença – finalmente apresentamo-la para provar que ele poderia idear, sem ver, e
como diz Chateaubriand: - que importa saber se recebe ideias pelos sentidos ou não?
Engana-se também o ilustre colega dizendo que o acusamos de materialista; não
o julgamos crente como Xenófanes em que Deus e o mundo é tudo o mesmo: não o
temos nessa escola por certo; quisemos apenas mostrar que a Divindade pode dispensar
provas físicas. Ao contrário de nós, o ilustre colega é que mostrou pelo correr de seu
argumento ter uma ideia falsa dos cegos natos, pois admitido o seu princípio sobre –
influírem muito para a crença em Deus as provas materiais e visíveis – segue-se que
supõe ele terem os cegos de nascença uma ideia pouco segura ou duvidosa de Deus;
pois essas grandes provas que lhes são vedadas, desconhece-as inteiramente. Será,
porém, afirmável essa suposição? Duvidamos muito.
O homem que cegou por acidente, principia por ter sido vítima de uma moléstia,
uma fatalidade, ou um desgosto; é esse o exórdio para os seus padecimentos posteriores,
para a recordação do que gozou, comparações com sua atualidade, e as dores pela perda
do bem que, como muito fielmente chama Camões:
........ aquilo que mais Val
Quanto mais perdido for....
O cego nato não sofreu esse começo doloroso, fisicamente falando: não é o seu
mal uma conseqüência desastrosa e, portanto, tem menos esse espinho nos seus
sentimentos; não teve ele esses dias da transição da luz para as trevas, que deve ser o
mais horrível dos males; não teve, finalmente, esse combate em sua razão para indagar a
causa por que a Providência o tratou assim! Ao contrário disso, o cego de nascença tem
a esperança – essa vida da alma; – pode encarar possível a sua regeneração, o que sem
ao dá com aquele que, vendo o seu órgal vital quebrado e inutilizado em sua forma, não
pode esperar que contra os dados certos e anatômicos, se dê, só para com ele, um
milagre! E são será isto, quando não uma consolação para o cego de nascença, ao menos
um tormento de menos?
Um ente acostumado a ter a luz como coisa de sua economia vital, e que a vê
apagada, não sentirá uma maior coluna de desgosto do que aquele que sem uso desse
546

bem, apenas sofre pela sua ausência, como por mais um gozo o que não desfruta?
Encaremos também que o cego de nascença ou não cura do futuro ou o entrevê,
como, já dissemos, suscetível de melhora; ama ao Senhor e espera em um Deus de
misericórdia. O cego por desgraça, porém, pode tornar-se um espírito descrente e
blasfemo; pois não acha justo o seu estado, embora fizesse por merecê-lo, por isso que o
culpado nunca está convicto de sua culpabilidade, e portanto só crê no Eterno como em
um Deus de vinganças.
E não será mais feliz a vida deslizada entre hinos de amor, do que entre pragas e
maldições?!
O nosso colega poderá resistir às nossas razões, poderá mesmo em consciência
não se achar convencido, pois a questão é toda de sentimento e não de razões; porém
nós julgamos que temos mais companheiros de crença do que ele. Aguardamos a sua
resposta e o saudamos.

Jq. Sr.

ANEXO 9:
OS CEGOS
A Marmota, Rio de Janeiro, n° 937, 26 de março de 1938, pp. 2 -3

Sucedeu o que esperávamos; o nosso adversário recuando passo a passo


encontrou a parede a que levaram os nossos argumentos sensatos e conseqüentes. S. S.
fica, pois, impossibilitado de discutir na questão atual, pelo menos com argumentações
da ordem das que tem posto em prática. Mitos nasceram, e mitos foram parar à tumba,
donde não sairão, nem mesmo na consumação dos séculos! A terra lhes seja leve.
Entretanto, para que nos não alcunhem de pedante, por cantarmos este pequeno
epinício, e este sincero epicédio, filhos ambos do coração, demos a razão disso; razão
que aliás é tão fácil de dar-se, como... proteger um menino bonito, politicamente
falando, nesta nossa boa terra.
Agradecemos em primeiro lugar as palavras lisonjeiras do Sr. Jq. Sr. É para nós
um problema a razão porque merecemos um tratamento, como o que nos dá o S. S. – E
isto é tanto mais difícil de compreender-se, quanto que entre nós o folhetim é da Câmara
dos Lords da literatura, isto é, a arena das maneiras ridículas, e das vaidades
pedantescas.
547

Todavia pode explicar-se dum modo muito natural este fenômeno, queremos
dizer esta ausência total de um orgulho parvo em um homem que como S. S. empunha
com hábil mão a pena ligeira e dourada de folhetinista. É que os corações bons e as
almas simples jamais se conformam como esses prejuízos, com essas fumaças, - com
idiotia perniciosa – que embota o espírito, e mata os verdadeiros talentos. Honra pois
lhe seja feita.
Como dissemos, os argumentos de S. S. estão totalmente inutilizados. Ponto por
ponto os destruímos, e o nosso ilustre adverso nem tratou de os fazer reviver! Parece
isto uma evasiva na falta dos princípios, e de idéias; não é assim? Prove-nos o contrário.
É sensível a diferença que existe entre o segundo artigo do nosso adversário, e o
terceiro. Naquele há calor, a viveza, a coragem; neste há frieza, e o desânimo S. S.
parece estar convencido, senão da falsidade da sua opinião, ao menos da inconseqüência
dos seus argumentos. Assim o ilustre adverso toca de passagem nas suas idéias inatas, e
nem de leve refuta os nossos raciocínios sobre a impossibilidade da creação de um
mundo – colorido pela imaginação do cego de nascença. E na verdade; como refutá-lo?
Como provar que é mais feliz ser-se cego de nascença, que cego por desgraça? Seria
querer provar, conseqüência imediata que o estado de ignorância é melhor que o da
certeza; que o mundo insensível tem vantagem sobre o mundo sensível, e, conseqüência
remota, que o mundo vegetal – impera sobre o animal, a planta sobre o homem; seria
querer provar todos estes absurdos, palpáveis, evidentes; – seria chegar de conseqüência
em conseqüência à destruição de todos os seus princípios. Ora isto seria uma derrota e
uma decepção terríveis para os seus irmãos de crença, e S. S. deixou-nos esse trabalho,
cônscio talvez de que o faríamos com menos impiedade que o seu raciocínio.
Por aqui vê-se que o nobre adverso tinha fortes razões para não tratar da questão
filosoficamente; estava certo de que no fim de seu artigo acharia o contrário do que teria
dito no começo; absteve-se de passar por este desgosto; fez bem.
Todo o artigo é assim. O ilustre antagonista ou divaga ou repete os mesmos
argumentos sediços e insensatos. Para evitar uma repetição fastidiosa enviamos o leitor
e S. S. para os nossos artigos passados onde acharão uma resposta conveniente.
Entretanto não podemos deixar de dizer ainda duas palavras sobre um dos
tópicos do artigo em questão.
S. S. nega que seja um espírito aferrado às doutrinas espiritualistas. Pode-se
prová-lo sem ir muito longe. Dizer que a idéia de Deus e da sua existência é toda
dependente da alma e não tem parte no mundo físico; não é aderir ao espiritualismo
548

mais puro e mais absoluto? Se negar isto, faz-nos crer que será então capaz de negar a
mesma existência de Deus.
O Sr. Jq. Sr., adivinhamos, deve em todas as questões colocar-se no extremo;
tem até gosto nisso. Se não admitisse as idéias inatas de Descartes, admitiria sem
dúvida a táboa rasa de Locke: se não fosse espiritualista puro, seria um materialista
perfeito: é um sistema especial.
Concluamos, e concluamos por uma vez. Depois do último artigo do Sr. Jq. Sr.
não há discussão possível: exceto se tomando aspirações quixotescas tentarmos destruir
o que já por nós se acha aniquilado.
Concluamos pois. O ilustre adversário queira desculpar alguma palavra mais ou
menos ofensiva que tenha escapado no meio da discussão, e sobretudo os erros deste
artigo escrito ao correr da pena.
Voltamos outra vez ao silêncio donde jamais sairemos, exceto se formos
impelido fortemente.

As.
549

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