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Estabelecidos e Outsiders Do Pensamento Social Brasileiro

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

E79

Estabelecidos e Outsiders do Pensamento Social Brasileiro


/ Organização Ana Rodrigues Cavalcanti Alves... [et al.]. –
São Paulo: Pimenta Cultural, 2024.

Demais organizadores: Christiane Jalles, Enio Passiani,


Helga Gahyva, Lucas Trindade, Marcos Abraão Ribeiro,
Maro Lara Martins, Sergio B. F. Tavolaro.

Livro em PDF

ISBN 978-85-7221-177-2
DOI 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2

1. Pensamento Social Brasileiro. 2. Teoria Social.


3. Sociologia dos Intelectuais. 4. Sociologia da Cultura.
5. História das Ciências Sociais. I. Alves, Ana Rodrigues
Cavalcanti (Org.). II. Jalles, Christiane (Org.). III. Passiani, Enio
(Org.). IV. Gahyva, Helga (Org.). V. Trindade, Lucas (Org.).
VI. Ribeiro, Marcos Abraão (Org.). VII. Martins, Maro Lara (Org.).
VIII. Tavolaro, Sergio B. F. (Org.). IX. Título.

CDD: 301

Índice para catálogo sistemático:


I. Ciências Sociais – História
Simone Sales • Bibliotecária • CRB ES-000814/O
Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados.

Copyright do texto © 2024 os autores e as autoras.

Copyright da edição © 2024 Pimenta Cultural.

Esta obra é licenciada por uma Licença Creative Commons:


Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional - (CC BY-NC-ND 4.0).
Os termos desta licença estão disponíveis em:
<https://creativecommons.org/licenses/>.
Direitos para esta edição cedidos à Pimenta Cultural.
O conteúdo publicado não representa a posição oficial da Pimenta Cultural.

Direção editorial Patricia Bieging


Raul Inácio Busarello
Editora executiva Patricia Bieging
Coordenadora editorial Landressa Rita Schiefelbein
Assistente editorial Júlia Marra Torres
Diretor de criação Raul Inácio Busarello
Assistente de arte Naiara Von Groll
Editoração eletrônica Andressa Karina Voltolini
Milena Pereira Mota
Imagens da capa Freepik, rawpixel.com,
yanademenishin - Freepik.com
Tipografias Acumin, Gobold Extra2, Open Sans
Revisão Os autores e os organizadores
Organizadores Ana Rodrigues Cavalcanti Alves
Christiane Jalles
Enio Passiani
Helga Gahyva
Lucas Trindade
Marcos Abraão Ribeiro
Maro Lara Martins
Sergio B. F. Tavolaro

PIMENTA CULTURAL
São Paulo • SP
+55 (11) 96766 2200
[email protected]
www.pimentacultural.com 2 0 2 4
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO
Doutores e Doutoras

Adilson Cristiano Habowski Ary Albuquerque Cavalcanti Junior


Universidade La Salle, Brasil Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Adriana Flávia Neu Asterlindo Bandeira de Oliveira Júnior
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil
Adriana Regina Vettorazzi Schmitt Bárbara Amaral da Silva
Instituto Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Aguimario Pimentel Silva Bernadétte Beber
Instituto Federal de Alagoas, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Alaim Passos Bispo Bruna Carolina de Lima Siqueira dos Santos
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Universidade do Vale do Itajaí, Brasil
Alaim Souza Neto Bruno Rafael Silva Nogueira Barbosa
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Alessandra Knoll Caio Cesar Portella Santos
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Instituto Municipal de Ensino Superior de São Manuel, Brasil
Alessandra Regina Müller Germani Carla Wanessa do Amaral Caffagni
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Aline Corso Carlos Adriano Martins
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil
Aline Wendpap Nunes de Siqueira Carlos Jordan Lapa Alves
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil
Ana Rosangela Colares Lavand Caroline Chioquetta Lorenset
Universidade Federal do Pará, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
André Gobbo Cássio Michel dos Santos Camargo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul-Faced, Brasil
Andressa Wiebusch Christiano Martino Otero Avila
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal de Pelotas, Brasil
Andreza Regina Lopes da Silva Cláudia Samuel Kessler
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Angela Maria Farah Cristiana Barcelos da Silva.
Universidade de São Paulo, Brasil Universidade do Estado de Minas Gerais, Brasil
Anísio Batista Pereira Cristiane Silva Fontes
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Antonio Edson Alves da Silva Daniela Susana Segre Guertzenstein
Universidade Estadual do Ceará, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Antonio Henrique Coutelo de Moraes Daniele Cristine Rodrigues
Universidade Federal de Rondonópolis, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Arthur Vianna Ferreira Dayse Centurion da Silva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Universidade Anhanguera, Brasil
Dayse Sampaio Lopes Borges Humberto Costa
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil Universidade Federal do Paraná, Brasil
Diego Pizarro Igor Alexandre Barcelos Graciano Borges
Instituto Federal de Brasília, Brasil Universidade de Brasília, Brasil
Dorama de Miranda Carvalho Inara Antunes Vieira Willerding
Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Edson da Silva Jaziel Vasconcelos Dorneles
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Brasil Universidade de Coimbra, Portugal
Elena Maria Mallmann Jean Carlos Gonçalves
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal do Paraná, Brasil
Eleonora das Neves Simões Jocimara Rodrigues de Sousa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Eliane Silva Souza Joelson Alves Onofre
Universidade do Estado da Bahia, Brasil Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil
Elvira Rodrigues de Santana Jónata Ferreira de Moura
Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade São Francisco, Brasil
Éverly Pegoraro Jorge Eschriqui Vieira Pinto
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil
Fábio Santos de Andrade Jorge Luís de Oliveira Pinto Filho
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Fabrícia Lopes Pinheiro Juliana de Oliveira Vicentini
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Felipe Henrique Monteiro Oliveira Julierme Sebastião Morais Souza
Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Federal de Uberlândia, Brasil
Fernando Vieira da Cruz Junior César Ferreira de Castro
Universidade Estadual de Campinas, Brasil Universidade de Brasília, Brasil
Gabriella Eldereti Machado Katia Bruginski Mulik
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Germano Ehlert Pollnow Laionel Vieira da Silva
Universidade Federal de Pelotas, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Geymeesson Brito da Silva Leonardo Pinheiro Mozdzenski
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Giovanna Ofretorio de Oliveira Martin Franchi Lucila Romano Tragtenberg
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
Handherson Leyltton Costa Damasceno Lucimara Rett
Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Metodista de São Paulo, Brasil
Hebert Elias Lobo Sosa Manoel Augusto Polastreli Barbosa
Universidad de Los Andes, Venezuela Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Helciclever Barros da Silva Sales Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho
Instituto Nacional de Estudos Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, Brasil Marcio Bernardino Sirino
Helena Azevedo Paulo de Almeida Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil Marcos Pereira dos Santos
Hendy Barbosa Santos Universidad Internacional Iberoamericana del Mexico, México
Faculdade de Artes do Paraná, Brasil Marcos Uzel Pereira da Silva
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Maria Aparecida da Silva Santandel Sebastião Silva Soares
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil Universidade Federal do Tocantins, Brasil
Maria Cristina Giorgi Silmar José Spinardi Franchi
Centro Federal de Educação Tecnológica Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Celso Suckow da Fonseca, Brasil Simone Alves de Carvalho
Maria Edith Maroca de Avelar Universidade de São Paulo, Brasil
Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil Simoni Urnau Bonfiglio
Marina Bezerra da Silva Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Instituto Federal do Piauí, Brasil Stela Maris Vaucher Farias
Mauricio José de Souza Neto Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Universidade Federal da Bahia, Brasil Tadeu João Ribeiro Baptista
Michele Marcelo Silva Bortolai Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Universidade de São Paulo, Brasil Taiane Aparecida Ribeiro Nepomoceno
Mônica Tavares Orsini Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Taíza da Silva Gama
Nara Oliveira Salles Universidade de São Paulo, Brasil
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Tania Micheline Miorando
Neli Maria Mengalli Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil Tarcísio Vanzin
Patricia Bieging Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Universidade de São Paulo, Brasil Tascieli Feltrin
Patricia Flavia Mota Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Tayson Ribeiro Teles
Raul Inácio Busarello Universidade Federal do Acre, Brasil
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Thiago Barbosa Soares
Raymundo Carlos Machado Ferreira Filho Universidade Federal do Tocantins, Brasil
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Thiago Camargo Iwamoto
Roberta Rodrigues Ponciano Universidade Estadual de Goiás, Brasil
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Thiago Medeiros Barros
Robson Teles Gomes Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Universidade Católica de Pernambuco, Brasil Tiago Mendes de Oliveira
Rodiney Marcelo Braga dos Santos Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Brasil
Universidade Federal de Roraima, Brasil Vanessa Elisabete Raue Rodrigues
Rodrigo Amancio de Assis Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Vania Ribas Ulbricht
Rodrigo Sarruge Molina Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Wellington Furtado Ramos
Rogério Rauber Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil Wellton da Silva de Fatima
Rosane de Fatima Antunes Obregon Instituto Federal de Alagoas, Brasil
Universidade Federal do Maranhão, Brasil Yan Masetto Nicolai
Samuel André Pompeo Universidade Federal de São Carlos, Brasil
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil
PARECERISTAS
E REVISORES(AS) POR PARES
Avaliadores e avaliadoras Ad-Hoc

Alessandra Figueiró Thornton Jacqueline de Castro Rimá


Universidade Luterana do Brasil, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Alexandre João Appio Lucimar Romeu Fernandes
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Instituto Politécnico de Bragança, Brasil
Bianka de Abreu Severo Marcos de Souza Machado
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil
Carlos Eduardo Damian Leite Michele de Oliveira Sampaio
Universidade de São Paulo, Brasil Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Catarina Prestes de Carvalho Pedro Augusto Paula do Carmo
Instituto Federal Sul-Rio-Grandense, Brasil Universidade Paulista, Brasil
Elisiene Borges Leal Samara Castro da Silva
Universidade Federal do Piauí, Brasil Universidade de Caxias do Sul, Brasil
Elizabete de Paula Pacheco Thais Karina Souza do Nascimento
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Instituto de Ciências das Artes, Brasil
Elton Simomukay Viviane Gil da Silva Oliveira
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Universidade Federal do Amazonas, Brasil
Francisco Geová Goveia Silva Júnior Weyber Rodrigues de Souza
Universidade Potiguar, Brasil Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil
Indiamaris Pereira William Roslindo Paranhos
Universidade do Vale do Itajaí, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Parecer e revisão por pares

Os textos que compõem esta


obra foram submetidos para
avaliação do Conselho Editorial
da Pimenta Cultural, bem como
revisados por pares, sendo
indicados para a publicação.
SUMÁRIO
Apresentação............................................................................................. 11

PARTE I

MODERNISMOS E INVENÇÕES DO BRASIL. . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

CAPÍTULO 1
Mateus Lôbo
Diálogos modernistas entre Paulo Prado
e Gilberto Freyre.......................................................................................25

CAPÍTULO 2
Bárbara Luisa Fernandes Pires
Luã Ferreira Leal
As herdeiras e a tradição modernista:
Oneyda Alvarenga, Gilda de Mello e Souza
e o legado de Mário de Andrade...........................................................................45

CAPÍTULO 3
Bárbara Vital de Matos Oliveira
O engenheiro Itamar Franco,
entre a tradição e o moderno...............................................................65

CAPÍTULO 4
Victor Coutinho Lage
Amefricanidade e pretuguês:
a fala do lixo da lógica........................................................................................93
CAPÍTULO 5
Rafael Gomes N. Pereira
Darcy Ribeiro e a Antropologia:
breves notas biográficas acerca de uma escolha................................................. 123

CAPÍTULO 6
Vânia Noeli Ferreira de Assunção
Apontamentos sobre a percepção
da formação do capitalismo brasileiro
como “via prussiana” em Carlos Nelson
Coutinho e sua crítica por J. Chasin................................................. 148

PARTE II

RELEITURAS DO PENSAMENTO
SOCIAL BRASILEIRO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

CAPÍTULO 7
Marcos Abraão Ribeiro
Roberto Dutra
Maro Lara Martins
Para além do atraso e da singularidade:
a atualidade do pensamento social e político brasileiro......................................... 170

CAPÍTULO 8
Ana Rodrigues Cavalcanti Alves
Lucas Amaral de Oliveira
Redimensionando Guerreiro Ramos:
um exercício de releitura da sociologia brasileira................................................. 197

CAPÍTULO 9
Nikolas Pallisser Silva
Alan Caldas
A recepção e a crítica do conceito
de “sobrevivências africanas”
no pensamento de Guerreiro Ramos (1948–1955).......................... 225
CAPÍTULO 10
Diogo Valença de Azevedo Costa
Florestan Fernandes
e o estilo lumpen de pensamento:
uma sociologia marginal na periferia do capitalismo............................................ 244

CAPÍTULO 11
Lucas Trindade
Um Florestan para além
da “tese da singularidade brasileira”.............................................. 271

CAPÍTULO 12
Matheus de Carvalho Barros
O significado do protesto negro:
colonialismo, capitalismo dependente
e questão racial em Florestan Fernandes............................................................. 311

CAPÍTULO 13
Marcelo Sevaybricker Moreira
Um esboço de interpretação sobre
o pensamento social de Chico de Oliveira:
do radicalismo de classe média ao marxismo..................................................... 328

Sobre os organizadores e as organizadoras................................. 352

Sobre os autores e as autoras........................................................... 355

Índice remissivo..................................................................................... 360


APRESENTAÇÃO
Este livro começou a ser semeado há três anos, por ocasião
do 45º Encontro Anual da Anpocs. Àquela altura, os professores
Sergio Tavolaro (UnB) e Enio Passiani (UFRGS) propuseram a Mesa
Redonda (Re)Leituras e usos dos clássicos do Pensamento Social
Brasileiro, que contou com a participação, como expositoras/es, de
Eliane Veras (UFPE), Helga Gahyva (UFRJ), do próprio Sergio e de
Christiane Jalles (UFJF) como debatedora.

Tínhamos como fio condutor a ideia de que as/os Clássicas/


os, segundo a definição igualmente clássica de Ítalo Calvino, são
aqueles livros e autoras/es que nunca são apenas lidas/os, mas
relidas/os, pois se dispõem a novas descobertas. As/os clássicas/os
são incontornáveis, o que não quer dizer que constituam unanimida-
des incontestáveis. Ao contrário, são só assim denominados porque
sujeitas/os à controvérsia e ao debate, fazendo avançar a produção
do conhecimento. Se voltamos a elas/es, é com o intuito de iniciar
novos diálogos ou resgatar antigas conversas inacabadas, prestan-
do-se à sua atualização, à sua ressignificação ou, até mesmo, à sua
superação – que não se concretizaria se a elas/es não retornássemos.

Nesse sentido, o nosso objetivo era retomar a obras do


Pensamento Social Brasileiro a partir de outras e novas chaves analíti-
cas, garantindo uma pluralidade de abordagens capaz de renovar não
apenas a sua leitura, senão o campo das ciências sociais de forma mais
abrangente e, por conseguinte, as interpretações sobre o próprio país.

Os três trabalhos que constituíam aquela Mesa revisitaram


autoras/es e obras nucleares do Pensamento Social Brasileiro por-
que, em boa medida, a própria realidade social e histórica onde hoje
nos encontramos necessita de sua releitura que, na mesma tacada,

SUMÁRIO 11
fornece-lhes novos empuxos interpretativos e revigora as interpreta-
ções sobre a realidade sócio-histórica que primeiro nos convocou,
a nós e às/aos nossas/os clássicas/os. As abordagens que lá foram
desenvolvidas revelavam que as/os autoras/es e suas respectivas
obras podem ser rejuvenescidas/os à medida que envelhecem
somente se não as/os abandonamos. Para ousar um neologismo
que remete a outro autor - desta vez da literatura - que não se deve
voltear, Guimarães Rosa, diríamos que se sentar à mesa junto de
nossas/os clássicas/os é a melhor maneira de fazê-los “rejuvelhecer”.

Realizado sob o formato remoto em função da pandemia que


castigava o país, a Mesa contou, ao nosso juízo, com uma impres-
sionante acolhida. Tal audiência irrigou nossas expectativas e esti-
mulou todas/os as/os participantes da Mesa a continuar. A Profa.
Eliane Veras, em virtude de sua aposentadoria, informou sua saída
do grupo, mas indicou para o seu lugar outro craque, o Prof. Lucas
Trindade da Silva (UFRN). O grupo, assim, naquele momento, com-
punha-se pelos seguintes nomes: Christiane Jalles, Enio Passiani,
Helga Gahyva, Lucas Trindade e Sergio Tavolaro.

Fiel ao espírito da supracitada Mesa realizada no Congresso


da Anpocs de 2021, no ano seguinte organizamos o I Colóquio (Re)
leituras desde o Pensamento Social Brasileiro: um balanço crítico.
Embora a pandemia da Covid-19 tenha arrefecido graças à vacina-
ção ampla e aos cuidados assumidos pelas pessoas, como o uso
de máscaras - a despeito da demorada resposta governamental e
do comportamento temerário de inúmeras/os políticas/os, avaliação
esta extensiva à chefia do Executivo -, seus efeitos, somados à pos-
tura do mesmo governo em relação ao financiamento da ciência e
das universidades públicas federais, se faziam sentir e eram brutais,
entre eles a falta de recursos para o financiamento de encontros aca-
dêmico-científicos e para as viagens de pesquisadoras/es. Por isso,
o Colóquio foi realizado no formato remoto, com a participação à dis-
tância de docentes e alunas/os de mestrado e doutorado de várias
universidades, especialmente das regiões Norte e Nordeste do país.

SUMÁRIO 12
É preciso enfatizar que uma de nossas preocupações era (e con-
tinua a ser) justamente estimular a diversidade étnico-racial,
de gênero e regional do encontro e das demais atividades que
porventura realizemos.

O evento tomava as efemérides comemoradas em 2022


– o bicentenário da Independência, os centenários da Semana
de Arte Moderna e do nascimento de Darcy Ribeiro – como um
momento propício para retornar em profundidade a temas e obras
do Pensamento Social Brasileiro. Buscava-se reler o campo em dois
principais sentidos: 1) como inventário de trabalhos e ideias fun-
damentais para entender o país, por seu impacto prático e por sua
atualidade e fecundidade heurística; e 2) como área de investigação
interdisciplinar com inegável consolidação no âmbito das ciências
sociais brasileiras. Assim orientado, o Colóquio estruturava-se em
quatro mesas, realizadas virtualmente nas manhãs e tardes dos dias
29 e 30 de agosto: 1) Invenções do Brasil, 2) Modernismos no Brasil,
3) (Re)leituras do pensamento social brasileiro; 4) Estabelecidos e
outsiders do/no pensamento social brasileiro.

Em 2023, desabrochava o Grupo de Trabalho Estabelecidos


e Outsiders do Pensamento Social Brasileiro, organizado pelos pro-
fessores Lucas Trindade da Silva e Marcos Abraão Ribeiro (Instituto
Federal Fluminense), no âmbito do 3º Seminário de Pensamento
Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia.

O GT Estabelecidos e Outsiders do Pensamento Social


Brasileiro inspirava-se no binário consagrado na obra de Norbert
Elias para reler o chamado Pensamento Social Brasileiro em alguns
dos principais sentidos, acolhendo propostas que enveredavam
nas seguintes reflexões: 1) trabalhos que procurassem questionar e
reconfigurar o cânone do campo, demonstrando a importância e a
fecundidade de autoras/es institucional e conceitualmente margi-
nalizados(as); 2) trabalhos que relessem obras consagradas a partir
das provocações emergentes dessa “insurreição dos saberes” ou,

SUMÁRIO 13
em outras palavras, trabalhos que retornassem às/aos clássicas/os
(ortodoxia) imbuídos das questões ou interpelações advindas das
margens (heterodoxia) do pensamento; 3) trabalhos que tensionas-
sem a separação entre “teoria” e “pensamento” a partir das proble-
máticas postas pelo Pensamento Social Brasileiro, tomando, nesse
sentido, o pensamento como o “outsider” da teoria “estabelecida”, em
consideração ao estatuto teórico (ou não) do primeiro, obrigando a
rediscutir os critérios definidores da teoria social.

Geralmente, reuniões acadêmicas produzem - pelo menos


é o que esperamos - a troca de ideias e um diálogo rico e crítico e,
eventualmente, encontros e parcerias intelectuais, que, a rigor, deve-
riam ser mais frequentes. É forçoso reconhecer, no entanto, que este
não é um desdobramento corriqueiro. Afortunadamente, tem sido
outro o destino de nossa experiência: a cada empreitada, o grupo
cresce um pouquinho com a entrada de novas/os integrantes, disso
se seguindo resultados cada vez mais interessantes e promissores.

Depois do I Colóquio (Re)leituras desde o Pensamento


Social Brasileiro, uma de suas participantes, a Profa. Ana Rodrigues
Cavalcanti Alves (UFBA), juntou-se a nós. A realização do GT
Estabelecidos e Outsiders do Pensamento Social Brasileiro, ao
colocar Lucas Trindade e Marcos Abraão em contato, permitiu a
integração deste último ao nosso coletivo, que encorpava mais um
bocado. Esse trabalho conjunto possibilitou, ainda, a aproximação
do Prof. Maro Lara Martins (UFES), que também se filiou ao grupo,
ora registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq com o
nome de Laboratório de Pesquisa e Estudos em Pensamento Social
no Brasil (LAPES-Br).

Os eventos de 2022 e 2023, embora tenham sido realiza-


dos na modalidade on-line, contaram cada qual com uma sede, a
Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN) e a Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES), respectivamente, que abrigaram
os encontros e forneceram todo o amparo e auxílio técnico e humano
necessários para a execução e sucesso de reuniões dessa natureza.

SUMÁRIO 14
A floração daquele nosso primeiro empreendimento, em 2021,
foi rápida e os frutos não pararam – e oxalá não cessem – de crescer.
Por conseguinte, a colheita se renova a cada ano, como é o caso deste
livro que, agora, o/a leitor/a tem em mãos. Esperamos que sua leitura
seja tão prazerosa e satisfatória como tem sido o nosso trabalho.

O livro está organizado em duas grandes partes, inspiradas


nos temas e linhas de reflexão acumulados ao longo dos encontros
organizados pelo grupo e naquilo que percebemos como aspectos
transversais aos textos aqui publicados. A primeira parte, Modernismos
e Invenções do Brasil, agrupa os capítulos 1 ao 6. A segunda parte,
Releituras do Pensamento Social Brasileiro, abarca do capítulo 7 ao
13. A afinidade dos capítulos com as partes em que foram inseridos é
evidenciada, a seguir, na apresentação sintética de cada um.

Em Diálogos modernistas entre Paulo Prado e Gilberto Freyre,


primeiro capítulo, Matheus Lôbo destaca como os dois autores, infor-
mados pelo caldo de cultura modernista, produziram reflexões sobre
a formação nacional brasileira que, não obstante certas semelhanças,
atribuíram sentidos diversos tanto à miscigenação quanto ao impacto
das populações de origem africana na constituição do país. Ao compa-
rar Retrato do Brasil a Casa-Grande & Senzala, Lôbo interpreta a obra
inaugural de Freyre desde seu contexto de origem, ou seja, a partir de
interrogações próprias ao ambiente intelectual característico da virada
dos anos 1920 para o decênio seguinte, permitindo ao leitor problema-
tizar versões contemporâneas que, anacronicamente, reduzem a obra
do autor à questionável defesa da “democracia racial”.

No segundo capítulo, As herdeiras e a tradição modernista:


Oneyda Alvarenga, Gilda de Mello e Souza e o legado de Mário de
Andrade, Bárbara Pires e Luã Leal analisam as trajetórias de Oneyda
Alvarenga (1911–1984) e Gilda de Mello e Souza (1919–2005). O argu-
mento é que a condição social de guardiães da memória da obra
de Mário de Andrade orientou as trajetórias intelectuais de Oneyda
e Gilda, definindo seus interesses intelectuais, a circulação e os seus

SUMÁRIO 15
reconhecimentos como intérpretes do modernismo brasileiro. Pires e
Leal mostram que as relações Mário-Oneyda e Mário-Gilda foram da
subordinação própria à condição de discípulas à autonomia relativa.
A estratégia teórico-metodológica adotada por Bárbara Pires e Luã
Leal, fundamentada nas orientações de Pierre Bourdieu, de atenção à
ilusão biográfica, produz excelentes rendimentos. Oneyda e Gilda são
analisadas tendo suas trajetórias cruzadas, revelando os impactos dos
marcadores sociais de gênero, de região e de geração em percursos
intelectuais. O texto de Bárbara Pires e Luã Leal contribuem para o
entendimento das condições sociais da produção e para as formas de
legitimação e de reconhecimento das intelectuais no Brasil.

O terceiro capítulo apresenta a contribuição de Bárbara Vital


de Matos Oliveira em relação à articulação entre tradição e moderni-
dade, uma das chaves para compreender o Brasil. Em O engenheiro
Itamar Franco: tradição e moderno, Bárbara Oliveira apresenta algu-
mas pistas interessantes sobre como as ideias de tradição e moder-
nidade foram aplicadas no projeto de modernização brasileira. Dada
a ideia de que a modernização no Brasil foi um projeto ambíguo,
Bárbara Oliveira analisa ideias em ação. O objetivo é analisar a ação
de um político e suas práticas de governo que criaram uma imagem
pública que oscilava entre o moderno e o tradicional. Itamar Franco,
ao longo da sua trajetória política, desde o cargo de prefeito de Juiz
de Fora (MG) até o cargo de presidente da República (1992–1995),
uniu uma perspectiva moderna, fundamentada na formação em
engenharia, com valores de uma tradição política mineira. O artigo
demonstra como a tradição e o moderno são amalgamados pelos
indivíduos, formando identidades políticas. Bárbara Oliveira apre-
senta, claramente, a ligação entre ação política e pensamento social
brasileiro, demonstrando como as noções de tradição e modernidade
moldam as visões do Brasil.

No quarto capítulo, Amefricanidade e pretuguês: a fala do


lixo da lógica, Victor Coutinho Lage mobiliza a reinvenção do Brasil
operada pelas categorias de “pretuguês” e “amefricanidade”, na obra

SUMÁRIO 16
de Lélia González, para inserir-se criticamente nos debates em torno
da relação entre interseccionalidade (de raça, etnia, gênero, classe,
sexualidade, entre outros) e agência de subjetividades “não ociden-
tais” (para além da resistência ou silenciamento), em particular na
teoria política, na teoria sociológica e na teoria das relações interna-
cionais. Para Lage, González contribui para esse debate na medida
em que propõe uma teorização sobre a agência que articula: uma
abordagem interseccional dos marcadores sociais de discriminação;
um olhar indisciplinar (herético em relação às fronteiras disciplina-
res) quando observa a heterogeneidade das formas de agência que
constituem a formação brasileira; uma perspectiva internacional,
que relaciona a agência com a dinâmica, passada e presente, das
relações coloniais. Ao longo do texto, o autor propõe frutíferas inter-
locuções entre a obra de González e o trabalho de autoras/es como
W.E.B Du Bois (a relação entre modernidade e linha de cor em nível
global) e Gayatri Spivak (e sua problematização sobre a im/possibi-
lidade da fala subalterna).

No capítulo cinco, Darcy Ribeiro e a Antropologia: breves


notas biográficas acerca de uma escolha, Rafael Gomes N. Pereira
aborda os primeiros anos da formação acadêmica do autor para, a
partir de seus textos autobiográficos e do ambiente intelectual no
qual estava inserido, compreender como ele se formou e, conjunta-
mente, a maneira pela qual procurou construir uma justificativa para
a trajetória que tomou na Antropologia. Para tanto, Pereira divide sua
abordagem em dois momentos. No primeiro, versa sobre os primeiros
contatos de Darcy com as letras, de modo a enfocar sua inclinação
para o mundo literário. Também discorre sobre a ida dele para São
Paulo após o abandono dos estudos médicos, em Belo Horizonte,
sua formação no bacharelado na Escola Livre de Sociologia e Política
- ELSP e sua opção pelos estudos etnológicos com a orientação de
Hebert Baldus. No segundo, discorre sobre a atuação do antropó-
logo à frente do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e os seus pri-
meiros estudos etnográficos durante o período em que esteve como

SUMÁRIO 17
pesquisador do órgão. Pereira defende que a passagem de Darcy
pelo SPI conferiu-lhe condições de sistematizar suas pesquisas por
meio da experiência de campo e da consolidação de uma tradição de
estudos acerca do indigenismo, que mobilizaram seu pensamento
por décadas seguintes na busca das raízes da brasilidade.

No capítulo Apontamentos sobre a percepção da formação


do capitalismo brasileiro como “via prussiana” em Carlos Nelson
Coutinho e sua crítica por J. Chasin, Vânia Noeli Ferreira de Assunção
debruça-se sobre uma categoria chave do pensamento marxista,
elaborada à luz de trajetórias não-convencionais em direção à ordem
capitalista. Conforme demonstra a autora, mobilizada por Coutinho
em seu anseio de apreender aspectos que lhe pareciam distintivos
da modernização brasileira, a noção de “via prussiana” serviu-lhe
para retratar um quadro societário internamente fraturado, destaque
feito à fragilidade perene de sua classe burguesa, impossibilitada de
promover mudanças conducentes à autonomia nacional, e à ausên-
cia de protagonismo popular nos principais processos decisórios do
país. Na acepção do intérprete, dessa condição especial resultaria
uma sociedade sufocada por um aparato estatal impositivo, no mais
das vezes divorciado das necessidades mais gerais da população, e
caracterizada pela frequente acomodação do passado nas dinâmicas
do presente. Importa também a Assunção investigar as críticas que
José Chasin dirige às formulações de Coutinho, chamando atenção
para a inadequação da ideia de “via prussiana” frente às inúmeras
particularidades de um país que jamais conseguiu superar por inteiro
os efeitos de seu passado colonial. Ao abordar uma problemática
que continua a encontrar expressivo interesse sociológico, o texto da
autora nos instiga a refletir sobre quais parâmetros analíticos podem
ser úteis aos esforços de compreensão da condição do Brasil no
cenário capitalista mundial.

No capítulo 7, Para além do atraso e da singularidade: a atu-


alidade do pensamento social e político brasileiro, Marcos Abraão
Ribeiro, Roberto Dutra e Maro Lara Martins têm como objetivo expor

SUMÁRIO 18
os elementos gerais do pensamento social e político brasileiro, por
meio de sua definição, exposição e crítica das teses do atraso e
da singularidade realizadas por Jessé Souza, Sérgio Costa, Sergio
Tavolaro e Christian Lynch. As leituras criticadas são responsáveis
por interpretar o Brasil como realidade social e política essencial-
mente inferior às sociedades centrais. Os autores do capítulo defen-
dem a necessidade de ruptura com as teses supracitadas para que
a produção das ciências sociais brasileiras se afaste da posição de
subalternidade estrutural na geopolítica do conhecimento. A partir
das teorias de Jessé Souza, José Maurício Domingues e Wanderley
Guilherme dos Santos, eles contestam a distinção entre teoria social
e política geral e pensamento social e político particular, isto é, o
monopólio dos autores cêntricos na definição e produção de teoria. A
partir da teoria da sociedade mundial de Niklas Luhmann, que trans-
cende a diferença colonial entre centro/periferia, os autores defen-
dem que a atualidade da produção brasileira está em caracterizá-la
como teoria social e política. Assim, haverá condições de estabelecer
diálogos mais horizontais com as/os teóricas/os dos países centrais,
pois a tarefa principal é caracterizar o pensamento social e político
brasileiro como um campo de produção do conhecimento que ofe-
rece conceitos e inovações teóricas que possibilitam condições de
estabelecer novas formas de compreensão sobre a modernidade
social e política amplamente concebida.

O capítulo Redimensionando Guerreiro Ramos: um exercício


de releitura da sociologia brasileira, de Ana Rodrigues Cavalcanti
Alves e Lucas Amaral de Oliveira, soma-se aos recentes esforços de
resgate da trajetória e obra de Guerreiro Ramos, destacando suas
convergências com o pensamento pós-colonial desde os anos 1950.
A inserção nesse debate é realizada por meio de uma análise da
redução sociológica, proposta pelo autor, como uma alternativa
teórico-metodológica para o fortalecimento das epistemologias pós-
-coloniais. Alves e Oliveira inscrevem o sociólogo baiano dentro de
uma heterogênea vertente crítica da sociologia brasileira, marcada
historicamente pela discussão sobre o estatuto da disciplina em

SUMÁRIO 19
contextos periféricos e pelo combate ao eurocentrismo e ao colo-
nialismo que informam as ciências sociais. Embora essa discussão
seja mobilizada no texto como uma possibilidade de aproximação
com abordagens pós-coloniais, os autores também destacam as
diferenças em relação às posições mais radicais que advogam uma
ruptura com teorias e ideais normativos produzidos no Atlântico
Norte. A redução sociológica – definida por Guerreiro Ramos como
um método crítico-assimilativo de repertórios teóricos de fora, adap-
tados localmente – é percebida como registro epistemológico dessa
preocupação no contexto nacional. Nesse sentido, a releitura empre-
endida da redução sociológica expressa não somente a atualidade
do autor, mas também o potencial de um diálogo cruzado entre a
sociologia brasileira e o pensamento pós-colonial.

No capítulo nove, A recepção e a crítica do conceito de “sobre-


vivências africanas” no pensamento de Guerreiro Ramos (1948–1955),
Nikolas Pallisser Silva e Alan Caldas abordam a circulação e recep-
ção das ideias formuladas nos países centrais em contexto periférico.
Para tanto, os autores estabelecem, na primeira parte, breve historici-
zação e revisão bibliográfica do conceito de “sobrevivência africana”
elaborado por Melville Jean Herskovits, que foi usado nas ciências
sociais para pensar as relações entre América e África. Eles também
analisam as relações tecidas pela rede de intelectuais que, direta ou
indiretamente, influenciaram ou foram influenciados pela categoria
de Herskovits. Em seguida, Palissier e Caldas abordam a maneira
como Guerreiro Ramos, quando era militante do Teatro Experimental
do Negro - TEN, entre 1948 e 1950, recepcionou o conceito. Por fim,
os autores enfocam as críticas realizadas pelo sociólogo brasileiro, a
partir de 1953, à categoria de Herskovits. Os autores defendem que
a crítica de Ramos possui duas dimensões. A primeira é inverter o
conceito de sobrevivências para pensar práticas descontextualiza-
das vindas do Ocidente, sobretudo, o culto à brancura ou o racismo.
A segunda dimensão consiste em um abandono crítico do conceito,
que não é mais mobilizado para interpretar as conexões dos povos
de origem africana com a América.

SUMÁRIO 20
Os capítulos dez, onze e doze convergem por realizarem, a
partir de diferentes perspectivas, e salientado temas diversos, relei-
turas do pensamento de Florestan Fernandes.

O primeiro deles, intitulado Florestan Fernandes e o estilo


lumpen de pensamento: uma sociologia marginal na periferia do capi-
talismo, escrito por Diogo Valença de Azevedo Costa, aborda dois
aspectos nada ou pouco explorados pela fortuna crítica em torno
da obra do sociólogo paulista: primeiramente, propõe, inspirado
na sociologia do conhecimento de Karl Mannheim, a noção “estilo
lumpen de pensamento” como chave para compreender a trajetória
intelectual e política de Florestan, caracterizada por um radicalismo
crítico crescente e atravessada pelo compromisso teórico, ético e
prático com as classes subalternizadas; em segundo lugar, o texto
reconstrói em linhas gerais a inserção latino-americana da obra do
autor. Ao longo do texto, vê-se o esforço de exprimir a articulação
entre esses dois aspectos, salientando como, por um lado, em suas
principais obras, de modo mais ou menos explícito, Florestan nunca
perde de vista a América Latina; por outro lado, revela-se como a
sua formulação e explicação originais dos dilemas brasileiros e lati-
no-americanos enraíza-se em seu estilo de pensamento lumpen.
Busca-se, assim, outro modo de ler as interlocuções do sociólogo
paulista com o pensamento social brasileiro, latino-americano e com
a teoria social de maneira mais ampla.

No capítulo onze, Lucas Trindade, também em um exer-


cício de releitura, apresenta-nos, como o próprio título do capítulo
informa, Um Florestan para além da “tese da singularidade brasileira”,
tese formalizada e escrutinada no trabalho de Tavolaro. Em uma
primeira seção, busca-se, sintetizando o argumento de Tavolaro,
salientar a forma como este enquadra Florestan no interior daquela
tese. Em uma ampla segunda seção, após reforçar aspectos da lei-
tura feita por Tavolaro, o esforço consiste em apresentar elementos
da obra do sociólogo paulista que sugerem possibilidades de ir
além da grade cognitiva que enquadra a formação social brasileira

SUMÁRIO 21
como uma experiência de modernidade inautêntica, desviante e sin-
gular. Três são os momentos da obra de Florestan salientados ao
longo do texto: a) um primeiro, de pleno enquadramento no interior
da tese que concebe o Brasil como uma singularidade inautêntica e
desviante; b) um segundo momento no qual o diagnóstico da sin-
gular modernidade brasileira (feito em contraste com modelos clás-
sicos) se desatrela do imaginário do desvio e do inautêntico; c) um
terceiro momento que tensiona e vai além do próprio imaginário da
singularidade brasileira.

O significado do protesto negro: colonialismo, capitalismo


dependente e questão racial em Florestan Fernandes, escrito por
Matheus de Carvalho Barros, baseia-se em releituras recentes da
obra de Florestan para analisar a articulação entre raça e classe em
seu pensamento. Para o autor, a reflexão do sociólogo paulista sobre
as desigualdades raciais no Brasil deve necessariamente ser pen-
sada em conjunto com os dilemas históricos do subdesenvolvimento,
do capitalismo dependente e da revolução burguesa no Brasil e na
América Latina. O texto tem o mérito de apresentar-nos o caráter
descolonizador da obra de Florestan e como o seu radicalismo socia-
lista está fundamentalmente vinculado a um radicalismo antirracista.

Em Um esboço de interpretação sobre o pensamento social


de Chico de Oliveira: do radicalismo de classe média ao marxismo,
Marcelo Sevaybricker Moreira realiza uma análise do riquíssimo iti-
nerário intelectual do autor de Crítica à razão dualista e de outras
obras que marcaram época no debate sociológico brasileiro. Com
efeito, conforme Sevaybricker dá a entender, seria estéril querer dis-
cernir, na fatura de Francisco de Oliveira, um conjunto por demais
coeso de ideias, tampouco afirmações peremptórias ou imutáveis
acerca da realidade nacional. Longe disso, ao revisitar trabalhos
produzidos ao longo de vários anos de efervescente atividade pro-
fissional (vale frisar, dentro e fora da academia), percebe-se um pen-
sador a um só tempo sofisticado e engenhoso, sempre em busca da
identificação dos percalços e perspectivas da sociedade brasileira.

SUMÁRIO 22
Sem perder de vista a recorrência de agendas de reflexão que atra-
vessam parte considerável de sua vasta produção, a opção anun-
ciada é pelo exame dos distintos momentos do percurso intelectual
percorrido por Chico de Oliveira, atento às viradas teóricas e às alte-
rações de percepção a propósito do cenário político e econômico
contemporâneo. Como outros textos do volume ora apresentado, o
capítulo em tela constitui uma ótima oportunidade não apenas para
se estimar a atualidade de obras de interpretação do Brasil, mas tam-
bém para fazê-las dialogar e, por que não dizer, polemizar com os
“cânones” da teoria sociológica.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de


Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes) – 107/2024
- P: 2024-F1SQB - através do Edital Fapes nº 20/2023 - organização
de eventos técnico-científicos - 1ª chamada.

As/os Organizadoras/es

SUMÁRIO 23
Par te

MODERNISMOS
I
E INVENÇÕES
DO BRASIL
1
Mateus Lôbo

DIÁLOGOS MODERNISTAS
ENTRE PAULO PRADO
E GILBERTO FREYRE

DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.1
INTRODUÇÃO
O percurso modernista de Paulo Prado abarca o mecenato de
artistas do movimento e a organização da Semana de Arte Moderna
de 1922. Natural de São Paulo, é de sua autoria Retrato do Brasil,
obra de impacto quando publicada em 1928. Poucos anos mais
tarde, em dezembro de 1933, o sociólogo pernambucano Gilberto
Freyre apresentou ao público Casa-grande & senzala, ensaio que
comunga o ideário do movimento, segundo o qual era preciso pen-
sar a sociedade brasileira a partir de sua originalidade cultural. Este
trabalho tem como objetivo analisar e comparar essas duas obras.
Na primeira parte, serão exploradas as conexões de Prado com o
modernismo em São Paulo. Em seguida, discutiremos a premissa,
desenvolvida em Retrato do Brasil, que aponta para certa “tristeza”
definidora do povo brasileiro. Na terceira parte, será examinada a
trajetória intelectual de Freyre nos anos 1920 e seus diálogos com
o modernismo. Por fim, na última seção, veremos que os ensaios
Retrato do Brasil e Casa-grande & senzala estão mais distantes do
que próximos em suas conclusões, apesar de surgirem de preocupa-
ções sociais similares.

PAULO PRADO:
MECENAS DO MODERNISMO
Embalada pelo fim da Primeira Guerra Mundial, a segunda
década do século XX foi um período de acontecimentos que consoli-
daram, no Brasil, constata Milton Lahuerta (1997), um “páthos de rup-
tura” com a Primeira República. No campo cultural, a Semana de Arte
Moderna de 1922 é um evento crucial da época, que tem como ponto
culminante a chamada “Revolução de 1930”. Não só pela Semana em si,

SUMÁRIO 26
mas pelas preocupações posteriores que ela potencializou em torno
da originalidade da cultura brasileira e de sua relação com a Europa
(cf. DUARTE, 2014). Prado, paulista proveniente da abastada família
cafeicultora, desempenhou um papel crucial no patrocínio do encon-
tro e no movimento modernista.

Ao longo da década de 1920, ele igualmente financiou diver-


sas revistas e artistas ligados ao movimento. De acordo com Thaís
Waldman (2010), seu acervo incluía esculturas de Brecheret, várias
obras de Portinari, os icônicos quadros “São Paulo” e “O Ovo”, de
Tarsila do Amaral, assim como a famosa tela “A Onda” de Anita
Malfatti, adquirida na exposição que resultou na crítica controversa
de Monteiro Lobato à artista. Além disso, Prado foi pioneiro ao com-
prar e introduzir, no Brasil, uma tela cubista, um quadro de Fernand
Léger, e possuía obras dos vanguardistas Brancusi, Braque, Gris,
Lhote, Matisse, Modigliani e Picasso, informa Felipe Chaimovich
(2022). Seu mecenato também se estendeu ao pagamento da visita
ao Brasil do renomado arquiteto modernista Le Corbusier1em como
no financiamento de viagens ao Brasil do poeta precursor da poesia
modernista na França, Blaise Cendrars. Este último, em meio a uma
observação jocosa sobre o mencionado quadro de Léger, testemu-
nhou o seguinte sobre Prado:
Felizmente para mim o modernismo paulista era patroci-
nado por Paulo Prado, que se tornou meu amigo íntimo e
com quem me mantive sempre em contato até sua morte,
ocorrida em 1943. (...) Paulo Prado era vinte anos mais
velho do que eu, (...), quase tão rico quanto o herói de
Valéry Larbaud, só que muito mais distinto, fino, letrado,
culto como é de tradição num patrício de uma cidade tão
famosa como São Paulo na História e formação do Brasil,

1 Considerado um dos mais influentes arquitetos do século XX, Le Corbusier desenhou uma casa
para Prado, o projeto está sob a guarda da Fondation Le Corbusier. Disponível em: https://www.
fondationlecorbusier.fr/oeuvre-architecture/projets-villa-paulo-prado-sao-paulo-bresil-1929/
Acesso em: 31 de jan. de 2024.

SUMÁRIO 27
(...), se ele patrocinava de maneira tão ativa os fogosos
modernistas paulistas, chegando até a jogar azeite sobre
o seu fogo de alegria, era para descansar da preocupação
pelos negócios ele se ocupava de café, de finanças inter-
nacionais, de plantações muito mais do que para fazer
escândalo. Mas havia também amadorismo no seu caso.
Assim, foi ele quem trouxe o primeiro quadro cubista para
o Brasil, uma tela de Fernand Léger, que ele pendurou de
cabeça para baixo no seu salão!... o que transtornou seus
sobrinhos e revolucionou mais do que qualquer coisa no
mundo o mau gosto bem conhecido dos milionários da
cidade (CENDRARS, 1976, p. 109).

Ilustram a proximidade de Prado com o modernismo em


São Paulo seu prefácio ao Manifesto Pau-Brasil (1924), de Oswald de
Andrade, e a dedicatória de Mário de Andrade a ele, em Macunaíma
(1928). Líderes do movimento, tanto Mário quanto Oswald, fizeram
questão de realçar a centralidade de seu mecenas2. De modo que
foi como um reconhecido agente promotor das novas expres-
sões culturais ensejadas pelos modernistas que Retrato do Brasil
foi publicado em 1928.

2 Em um balanço de 1942, vinte anos depois da Semana, Mário de Andrade escreveria as seguintes
palavras a respeito do papel de Prado para que o evento ocorresse: “Quem teve a ideia da Semana?
Por mim não sei quem foi, só posso garantir que não fui eu. O mais importante era decidir e poder
realizar a ideia. E o autor verdadeiro da Semana de Arte Moderna foi Paulo Prado. E só mesmo
uma figura como ele e uma cidade como São Paulo, poderiam fazer o movimento modernista e
objetivá-lo na Semana. (ANDRADE, M, 1942). Já em 1954, Oswald de Andrade destacaria, no artigo “O
modernismo”, o espaço privilegiado que Prado cedia, em sua residência, para as tertúlias moder-
nistas: “Nunca será demais exaltar uma figura central do movimento modernista. Foi Paulo Prado.
(...). Sem a inteligência e a compreensão de Paulo Prado, nada teria sido possível. (...). Paulo Prado
abriu-nos sua casa em Higienópolis. Recebia magnificamente. Os seus almoços dos domingos
eram faustosos. Além de se comer e beber dentro duma grande tradição civilizada, ali se debatiam
os problemas candentes da transformação das letras e das artes. Pode se dizer que, depois da
pobreza de minha garçonnière na Praça da República, foi a casa de Paulo Prado o centro ativo
onde se elaborou o Modernismo.” (ANDRADE, O., 1954)

SUMÁRIO 28
UM RETRATO TRISTE DO BRASIL
Retrato do Brasil obteve significativa repercussão desde
sua primeira edição, em 1928, sendo reimpresso duas vezes no ano
seguinte (CALIL, 2012). Apenas entre 1928 e 1929, mais de 60 artigos
foram publicados em jornais brasileiros discutindo a obra, especial-
mente no Rio de Janeiro e em São Paulo3. Outra marca de triunfo
do livro consiste no fato de ter sido escolhido pelos Departamento
Nacional de Ensino, órgão que normatizava a educação no Brasil no
período, para ser traduzido para divulgação no exterior. No livro, Prado
propõe “esboçar uma visão panorâmica do povoamento e evolução
da terra brasileira”, como afirmado na nota da 4ª edição do ensaio.

O primeiro capítulo começa com a seguinte sentença: “Numa


terra radiosa vive um povo triste”. A construção textual delineia a
tese que tornou o texto famoso, isto é, apesar de habitar uma terra
de vastas possibilidades, o brasileiro carrega uma melancolia que
o incapacita para as necessidades do país. Para o autor paulista, a
tristeza nacional era uma consequência intrínseca da eterna busca
desenfreada pelo enriquecimento fácil em uma terra fértil, somada
à “libertinagem” que permeava as relações sociais pátrias desde
as interações entre senhores e escravos nos primeiros séculos
de formação nacional.

Passada a condição colonial, o Brasil independente do século


XIX foi descrito por Prado como quase sem avanços, sendo um
“corpo amorfo, de mera vida vegetativa, mantendo-se apenas pelos
laços tênues da língua e do culto” (Ibidem, p. 110). Para piorar, de
acordo com ele, o romantismo teria exacerbado, no oitocentos, uma
sociabilidade debilitada e atrasada vinda da época colonial, pois o
movimento, tanto na literatura quanto na política, teria sido conduzido

3 Contagem realizada a partir de levantamento feito por Calil (2012) a respeito da fortuna crítica de
Retrato do Brasil até sua 3º edição lançada em 1931.

SUMÁRIO 29
sem uma “solidez de pensamento e estudo” (Ibidem, p. 123) capaz
de promover transformações sociais significativas. Conforme Prado,
os líderes políticos da época praticaram um “liberalismo palavroso”,
promulgando leis sem uma efetiva intervenção capaz de impulsionar
o progresso do Brasil.

A partir desse passado, pradianamente, os brasileiros, de


geração em geração, apenas empregavam sua energia criativa
em dois comportamentos ricos de consequências: a busca inces-
sante por riquezas fáceis e em um comportamento sexualmente
descontrolado, herança dos fundadores da nação. Em suma,
segundo o autor:
(...) sem outro ideal, nem religioso, nem estético, sem
nenhuma preocupação política, intelectual ou artística
— criava-se pelo decurso dos séculos uma raça triste. A
melancolia dos abusos venéreos e a melancolia dos que
vivem na ideia fixa do enriquecimento — no absorto sem
finalidade dessas paixões insaciáveis — são vincos fun-
dos na nossa psique racial, paixões que não conhecem
exceções no limitado viver instintivo do homem, mas aqui
se desenvolveram de uma origem patogênica provocada
sem dúvida pela ausência de sentimentos afetivos de
ordem superior. Foi na exaltação desses instintos que
se formou a atmosfera especial em que nasceu, viveu e
proliferou o habitante da colônia. Do enfraquecimento
da energia física, da ausência ou diminuição da atividade
mental, um dos resultados característicos nos homens e
nas coletividades é, sem dúvida, o desenvolvimento da
propensão melancólica (Ibidem, p. 97).

Prado reforça essa perspectiva ao escolher como epígrafe de


Retrato do Brasil um trecho de uma carta do historiador Capistrano
de Abreu onde o Brasil é comparado à ave jaburu, imponente, porém
apática. A epígrafe diz: “[O jaburu...] a ave que para mim simboliza a
nossa terra. Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas e
passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, daquela
austera e vil tristeza”. As fontes que embasam as inferências do

SUMÁRIO 30
ensaio incluem as Ordenações do Santo Ofício, documentos oficiais
e relatos de religiosos, como os de Frei Vicente de Salvador e os dos
padres Anchieta e Antônio Vieira. Além disso, ele utilizou crônicas de
autores como Francisco Coreal, Gabriel Soares de Sousa, Jean Léry,
Pêro de Magalhães Gândavo e Saint-Hilaire.

O livro está repleto de referências a esses registros concen-


trados nos três primeiros séculos de colonização. É a partir deles
que o mecenas modernista identifica a sociedade nacional como
permeada por desvios ético-morais de toda ordem, transformando o
Brasil em uma terra “de todos os vícios e todos os crimes” (PRADO,
2012, p. 55). Prado, inclusive, subsidiou a publicação de processos
oriundos da Santa Inquisição no Brasil e de relatos de viajantes que
estiveram no país4. Sua conclusão de que o Brasil foi forjado em um
meio ambiente de “dissolução e aberração” (Ibidem, p. 56), onde as
paixões dominantes no colonizador eram a “luxúria” e a “cobiça”,
encontra respaldo na citação desses documentos. É com eles em
mente que o paulista assegura que a “lascívia” sem freios e a cobiça
insaciável do colono português encontraram, no ambiente tropical
e nas mulheres escravizadas, uma suposta “sensualidade” que cor-
rompeu a sociedade nacional. Na síntese do próprio Prado:
Dominavam-no [o colonizador do Brasil] dois sentimen-
tos tirânicos: sensualismo e paixão do ouro. A história do
Brasil é o desenvolvimento desordenado dessas obses-
sões subjugando o espírito e o corpo de suas vítimas.
Para o erotismo exagerado contribuíam como cúmplices
(...) três fatores: o clima, a terra, a mulher indígena ou a
escrava africana. Na terra virgem tudo incitava ao culto

4 Segundo Carlos Augusto Berriel (1994), Paulo Prado patrocinou no Brasil a impressão das seguin-
tes obras: 1) Diário da navegação de Pero Lopes de Sousa, 1530-1532; 2) Histoire De La Mission Des
Peres Capucins En L'Isle De Maragnan Et Terres Ciconvoisines do religioso Claude d'Abbeville; 3)
Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça,
Capelão fidalgo Del rei nosso senhor e do seu Desembargo, deputado do Santo ofício. Confissões
da Bahia, 1591-1592; 4) Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor
Furtado de Mendonça, Capelão fidalgo Del rei nosso senhor e do seu Desembargo, deputado do
Santo ofício. Denunciações da Bahia, 1591-1593.

SUMÁRIO 31
do vício sexual. Ao findar o século das descobertas,
o que sabemos do embrião de sociedade então existente
é um testemunho dos desvarios da preocupação eró-
tica. (...). Os fenômenos de esgotamento não se limitam
às funções sensoriais e vegetativas; estendem-se até o
domínio da inteligência e dos sentimentos. Produzem no
organismo perturbações somáticas e psíquicas, acom-
panhadas de uma profunda fadiga, que facilmente toma
aspectos patológicos, indo do nojo até o ódio. Por outro
lado, como derivativo dessa paixão, outro sentimento sur-
gia na alma do conquistador e povoador, outro sentimento
extenuante na sua esterilidade materialista: a fascinação
do ouro, exclusiva como uma mania (Ibidem, p. 96).

Assim, para o mecenas modernista, eivado de determinismos


geográficos e raciais, as mulheres, feitas escravas, foram colabora-
doras de uma atmosfera de licenciosidade que teria produzido uma
sociabilidade sexualizada e constantemente esgotada pelo sexo
desbragado. Nesse sentido, como ele sublinha no trecho abaixo,
já as uniões entre os colonizadores e as mulheres indígenas foram
de “pura animalidade”:
Tudo favorecia a exaltação do (...) prazer [do colonizador]:
os impulsos da raça, a molícia do ambiente físico, a con-
tínua primavera, a ligeireza do vestuário, a cumplicidade
do deserto e, sobretudo, a submissão fácil e admirativa
da mulher indígena, mais sensual do que o homem
como em todos os povos primitivos. Procurava e impor-
tunava os brancos nas redes em que dormiam, escrevia
Anchieta. Era uma simples máquina de gozo e trabalho
no agreste gineceu colonial. Não parece que nenhuma
afeição idealizasse semelhantes uniões de pura animali-
dade (Ibidem, p. 61-62).

Em Retrato do Brasil podem ainda ser encontradas diversas


passagens onde o paulista atribui aos indígenas e africanos escravi-
zados uma disposição cooperativa com o colonizador português para
corromper a vida societal brasileira, tornando-a triste, esgotada e fati-
gada. Um exemplo disso é quando ele descreve o habitante original

SUMÁRIO 32
como “um animal lascivo, vivendo sem nenhum constrangimento na
satisfação de seus desejos carnais” (Ibidem, p. 53). E é também o
caso de quando o africano é descrito como “envenenando” a forma-
ção da nacionalidade, “não tanto pela mistura de seu sangue como
pelo relaxamento dos costumes e pela dissolução do caráter social,
de consequências ainda incalculáveis” (Ibidem, p. 103).

Esse mesmo entendimento o leva a atribuir à mulher africana


uma “passividade” que “veio facilitar e desenvolver a superexcitação
erótica em que vivia o conquistador e povoador” (Ibidem, p. 63). Um
diagnóstico que não enfatiza as violências dos senhores contra os
escravos, e que ele repete ao apontar o papel “corruptor” da criança
africana na vida familiar patriarcal, como na seguinte passagem:
Os escravos eram terríveis elementos de corrupção no
seio das famílias. As negras e mulatas viviam na prática
de todos os vícios. Desde crianças (...) começavam a cor-
romper os senhores moços e meninas dando-lhes as pri-
meiras lições de libertinagem. Os mulatinhos e crias eram
perniciosíssimos. Transformavam as casas, segundo a
expressão consagrada e justa, em verdadeiros antros de
depravação (Ibidem, p. 106).

O último capítulo de Retrato do Brasil chama-se “Post-


Scriptum”, em referência ao recurso utilizado ao fim de documentos
para complementar uma ideia pendente ou enunciar algo novo. É
justamente o que faz Prado quando conclui o livro com um diagnós-
tico ainda não emitido no ensaio: o Brasil poderia romper com seu
passado depauperado, triste, e construir um futuro de prosperidade.
Para ele, o país alcançaria a redenção se recorresse a uma “guerra”
ou a uma “revolução”, pois apenas elas refundariam a nação e impe-
diriam “o desmembramento do país e a sua desaparição como um
todo uno criado pelas circunstâncias históricas” (Ibidem, p. 142).

SUMÁRIO 33
GILBERTO FREYRE E O MODERNISMO
Gilberto Freyre não foi um espectador privilegiado do movi-
mento modernista em São Paulo. Quando ocorreu a Semana de 22,
ele estava nos Estados Unidos desde 1918, onde fez a graduação em
Baylor e o mestrado em Columbia, ambos os cursos em ciências
sociais. Após uma temporada no continente europeu, ele voltou ao
Brasil, em 1923, para fixar residência no seu Recife natal. Contudo,
apesar de distante das discussões que imperavam no modernismo
feito em São Paulo, a produção de Freyre, na década de 1920, deriva
de um ambiente social no qual o modernismo está aflorando nacio-
nal e internacionalmente - o que transborda em seu interesse pelo
Brasil, segundo Gilda de Mello e Souza (2000), a partir de sua vivên-
cia regional como nordestino.-; e, para Larreta e Giucci (2007), na
identidade de um moderno aficionado pelo Nordeste e pelo seu país.

Nesta época, o pernambucano participou da fundação, em


1924, do Centro Regionalista do Nordeste e, em 1926, organizou o 1º
Congresso Regionalista do Nordeste, além de ter coordenado, em
1925, a publicação do Livro do Nordeste, obra comemorativa dos
100 anos do Diário de Pernambuco5. Também em 1924, proferiu a
conferência Apologia pro Generatione Sua, na Paraíba. Na oportu-
nidade, Freyre reprovou o descolamento social dos indivíduos de
sua geração da realidade brasileira e os chamou a “um programa de
pensamento e acção” (FREYRE, 1941, p. 75), através de um “inquerito
profundo ás condições sociaes e intellectuaes” (Ibidem, p. 76). Anos
depois, na narrativa de Casa-grande & senzala, ele aplica tal pro-
grama de ação, retornando ao passado pátrio em busca de encontrar
as particularidades do país e de sua formação.

5 Eduardo Dimitrov (2013) indica que o Freyre da década de 1920 foi muito mais preocupado com
os hábitos e os costumes das elites patriarcais a serem conservados e representados, enquanto
o das etapas seguintes passou a reivindicar a arte como devendo retratar o “povo” e suas coisas.
Como chama atenção Antônio Barboni (2021), apesar de o Manifesto Regionalista fazer a defesa da
cultura popular, ele foi publicado somente em 1952 e com suspeitas de não ser com o mesmo texto
lido no 1º Congresso Regionalista do Nordeste.

SUMÁRIO 34
Curiosamente, ainda que provenientes de ambientes intelec-
tuais diversos, Prado e Freyre travaram amizade ao longo dos anos
que se seguem à Semana de 22. No seu diário de memórias, em pas-
sagem datada de 1926, em meio a especulações de que poderia se
fixar em São Paulo, o pernambucano anotou que, entre os paulistas,
preferia a gente “paulista velha”, tal como Paulo Prado e seus parentes:
Gente com quem me entendo bem, a paulista, isto é, a
paulista velha como os Prado. Ótimo, Paulo Prado. Talvez
Oliveira Lima tenha razão: a vir fixar-me no Brasil, eu
deveria arranchar-me em São Paulo. Repugnam-me,
entretanto, essas transferências. Creio que cada um deve
ficar o mais possível no lugar onde nasceu. Nada de muita
emenda ao soneto da vida: ou do destino, que é o mesmo.
Cidade feia mas simpática, São Paulo. Talvez se pudesse
dizer com exatidão da capital paulista: feia e forte. Como
o Recife, metrópole regional. Sente-se que domina uma
região e não apenas um Estado. Breve dominará o Brasil
(FREYRE, 2006b, p. 267).

Em Casa-grande & senzala, ele ressalta, no prefácio, que


Prado o ciceroneou por fazendas antigas do Rio e de São Paulo. E
que foi o paulista quem lhe sugeriu fazer uma viagem exploratória de
rebocador pelo litoral da mesma região:
Meus agradecimentos a Paulo Prado, que me proporcio-
nou tão interessante excursão pela antiga zona escra-
vocrata que se estende do Estado do Rio a São Paulo,
hospedando-me depois, ele e Luís Prado, na fazenda
de café de São Martinho. Agradeço-lhe também o con-
selho de regressar de São Paulo ao Rio por mar, em
vapor pequeno, parando nos velhos portos coloniais (...)
(FREYRE, 2006a, p. 53).

Em 1943, por ocasião da morte de Prado, Freyre novamente


rememorou sua viagem pela costa brasileira, por sugestão do mece-
nas paulista, e traçou um perfil psicológico do amigo morto. Ali, o
pernambucano fala de Prado como um cosmopolita que, em Paris,
frequentava a alta sociedade, chegando a conhecer Oscar Wilde,

SUMÁRIO 35
mas que podia perfeitamente falar com fazendeiros sobre peculiarida-
des agrícolas e sobre o preço do café. Para Freyre, o autor de Retrato
do Brasil foi, em vida, um “homem contraditório”, um caso curioso de
personalidade dividida entre os tipos dr. Jekyll e mr. Hyde6. Segundo ele,
Quem daqui a meio século estudar a personalidade e a
vida de Paulo Prado se espantará decerto ao ver o nome
associado ao mesmo tempo ao “movimento modernista”
e ao Departamento Nacional do Café. É que Paulo Prado
foi realmente um dos casos mais curiosos do dr. Jekyll
e mr. Hyde que já houve no Brasil ou que ocorreram no
mundo (FREYRE, 2012, p. 246).

Cabe também destacar que foi Prado quem doou a Freyre


o diário íntimo do engenheiro Louis Léger Vauthier, profissional que
desempenhou papel significativo no Recife, em meados do século
XIX, na realização de várias melhorias urbanas. Esse documento
representa a principal fonte do pernambucano em Um engenheiro
francês no Brasil, livro de 1940 dedicado a Prado e ao historiador
Affonso de Taunay. Todavia, mesmo compartilhando com o paulista
uma relação de amizade, Freyre divergia da sua visão do passado
pátrio, pois não o enxergava como triste e degenerado. Para ele, o
país não deveria se desvincular do que era positivo em sua formação,
a começar por sua herança africana e pela miscigenação.

A ÁFRICA E A MISCIGENAÇÃO
EM PRADO E EM FREYRE
Prado, como vimos, percebeu a criança africana escravi-
zada como um agente de “corrupção” no interior da família brasi-
leira. Freyre, ao contrário, descreve a mesma criança antes como

6 Dr. Jekyll e mr. Hyde são as duas personalidades conflitantes do protagonista de O médico e o
monstro, novela do fim do século XIX na qual o escritor inglês Robert Louis Stevenson quis retratar
a luta entre o bem e o mal no interior de um mesmo indivíduo.

SUMÁRIO 36
vítima, e não como agente de qualquer tipo de perversão. Para o
pernambucano, a hierarquia e a subordinação foram marcas cons-
titutivas da interação do menino branco com menino escravizado,
sendo este “escolhido para companheiro do menino aristocrata:
espécie de vítima, ao mesmo tempo que camarada de brinquedos,
em que se exerciam os ‘premiers élansgénésiques’ do filho-família”
(FREYRE, 2006a, p. 113).

De mais a mais, em Casa-grande & senzala, o autor é reitera-


tivo a respeito de ser impossível culpar a pessoa negra pelo que não
foi obra sua, nem dos indígenas, “mas do sistema social e econômico
em que funcionaram passiva e mecanicamente” (FREYRE, 2006a, p.
399). Na verdade, o pernambucano ressalta que o africano esteve a
reboque de uma estrutura patriarcal que o violava e que ensejava sua
corrupção sexual - raciocínio transparente neste fragmento da obra:
Não era o negro, portanto, o libertino: mas o escravo a
serviço do interesse econômico e da ociosidade volup-
tuosa dos senhores. Não era a “raça inferior” a fonte de
corrupção, mas o abuso de uma raça por outra. Abuso
que implicava conformar-se a servil com os apetites da
todo-poderosa. E esses apetites estimulados pelo ócio.
(...). Nada nos autoriza a concluir ter sido o negro quem
trouxe para o Brasil a pegajenta luxúria em que nos
sentimos todos prender, mal atingida a adolescência. A
precoce voluptuosidade, a fome de mulher que aos treze
ou quatorze anos faz de todo brasileiro um don-juan não
vem do contágio ou do sangue da “raça inferior” mas
do sistema econômico e social da nossa formação (...)
(Ibidem, p. 402-403).

Para Freyre, portanto, não foram os africanos nem seus des-


cendentes que criaram um ambiente de licenciosidade no Brasil. Ele
assinala que uma das consequências do comportamento sexualmente
abusivo dos senhores patriarcais contra as mulheres escravizadas
foi a constante contaminação delas pela sífilis, infecção sexualmente
transmissível de alta incidência no país, relatada em comunicações
oficiais antes mesmo da Independência (cf. CARRARA, 1996; 2004).

SUMÁRIO 37
Em Casa-grande & senzala, a sífilis resulta não da “luxúria” impu-
tada ao africano, como em Prado, mas é o resultado social de uma
sociedade apoiada em um regime de escravidão que forçava as
mulheres escravas a múltiplos parceiros. Como Freyre sintetizou na
seguinte sequência:
(...) é preciso notar que o negro se sifilizou no Brasil. Um
ou outro viria já contaminado. A contaminação em massa
verificou-se nas senzalas coloniais. A “raça inferior”, a que
se atribui tudo que é handicap no brasileiro, adquiriu da
“superior” o grande mal venéreo que desde os primeiros
tempos de colonização nos degrada e diminui. Foram os
senhores das casas-grandes que contaminaram de lues
as negras das senzalas. Negras tantas vezes entregues
virgens, ainda molecas de doze e treze anos, a rapazes
brancos já podres da sífilis das cidades. Porque por muito
tempo dominou no Brasil a crença de que para o sifilítico
não há melhor depurativo que uma negrinha virgem. O
Dr. João Álvares de Azevedo Macedo Júnior registrou,
em 1869, o estranho costume, vindo, ao que parece, dos
tempos coloniais: e de que ainda se encontram traços nas
áreas pernambucana e fluminense dos velhos engenhos
de açúcar. Segundo o Dr. Macedo seriam os blenorrági-
cos que o “bárbaro prejuízo” considerava curados se con-
seguissem intercurso com mulher púbere: “a inoculaçâo
deste vírus em uma mulher púbere é o meio seguro de o
extinguir em si” (FREYRE, 2006a, p. 401).

Antes de serem corruptores, os africanos foram, para ele, o


“óleo mediador” no plano cultural entre o europeu e o indígena, per-
mitindo à sociedade brasileira ter se processado como mestiça e não
de todo europeia - aspecto resumido deste modo:
Uma circunstância significativa resta-nos destacar na
formação brasileira: a de não se ter processado no puro
sentido da europeização. Em vez de dura e seca, ran-
gendo no esforço de adaptar-se a condições inteiramente
estranhas, a cultura europeia se pôs em contato com a
língua indígena, amaciada pelo óleo da mediação afri-
cana (Ibidem, p. 115).

SUMÁRIO 38
Essa mediação se manifestou também, segundo Freyre, na
culinária, onde “várias comidas portuguesas ou indígenas foram no
Brasil modificadas pela condimentação ou pela técnica culinária do
negro, alguns dos pratos mais caracteristicamente brasileiros são de
técnica africana: a farofa, o quibebe, o vatapá.” (Ibidem, p. 542). E não
só. A África foi formidavelmente importante para o Brasil, pois “na ter-
nura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nos-
sos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino
pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase
todos a marca da influência negra.” (Ibidem, p. 367).

O pioneirismo de Freyre em relação a Prado não se restringe


a tais constatações da importância ativa e fecunda do africano no
cotidiano nacional. São autores distantes também na consideração
do papel miscigenação para formação nacional. Para o paulista, o
mestiço do encontro entre o branco e o indígena mostrou-se, nas
primeiras descendências, um tipo “notável”. Porém, com o passar do
tempo, ao “se desenrolarem gerações e gerações desse cruzamento”
(PRADO, 2012, p.131), esse encontro teria engendrado “o caboclo
miserável – pálido epígono (...). ” (Ibidem). Já o mestiço de branco
com africano era uma incógnita para o mecenas modernista, como
resta evidente nesta passagem de Retrato do Brasil:
A mestiçagem do branco e do africano ainda não está
definitivamente estudada. No Brasil, não temos ainda
perspectiva suficiente para um juízo imparcial. A arianiza-
ção aparente eliminou as diferenças somáticas e psíqui-
cas: já não se sabe mais quem é branco e quem é preto
(Ibidem, p. 131- 132).

E, no parágrafo imediatamente posterior a esse trecho, Prado


continuaria tergiversando sobre o mestiço:
O mestiço brasileiro tem fornecido indubitavelmente à
comunidade exemplares notáveis de inteligência, de cul-
tura, de valor moral. Por outro lado, as populações ofere-
cem tal fraqueza física, organismos tão indefesos contra

SUMÁRIO 39
a doença e os vícios, que é uma interrogação natural
indagar se esse estado de coisas não provém do intenso
cruzamento das raças e sub-raças (Ibidem, p. 132).

A bem da verdade, a dúvida sobre a “viabilidade” do mestiço


não era apenas sua, estando presente nas elites brasileiras de seu
tempo, num caldo cultural que envolvia hierarquias raciais criadas
por uma sociedade escravocrata, argumentos de viajantes, tão cita-
dos por ele, e estudiosos guiados pelo racismo-científico (cf. RAMOS
& MAIO, 2010), não sendo incomum que o mecenas da Semana
de 22 tenha compreendido o branqueamento, a “arianização” da
população, como uma forma de afastar quaisquer temores quanto
à robustez da sociedade brasileira. Para ele, o sangue negro iria
desaparecer “no cruzamento contínuo de nossa vida, desde a época
colonial, (...), dissolvendo-se até a falsa aparência de ariano puro”
(PRADO, 2012, p. 131).

Freyre não poderia estar mais distante de Prado nessas con-


siderações. Em Casa-grande & senzala, ele entende o Brasil a partir
de suas tradições e estruturas cotidianas, e não pelo enfoque racial
(BASTOS, 2006; CARDOSO, 2013; DAMATTA, 1987). O recifense não
tinha dúvidas a respeito do processo de miscigenação como uma
característica positiva para o Brasil. Afinal, a mistura teria sido um
fenômeno que transcendeu o intercurso sexual e se expandiu para a
cultura brasileira como um redutor de distâncias sociais entre dife-
rentes grupos étnicos, tal como enfatizado abaixo:
A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu
a distância social que de outro modo se teria conservado
enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a
casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifun-
diária e escravocrata realizou no sentido de aristocrati-
zação, extremando a sociedade brasileira em senhores
e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de
gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos,
foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da
miscigenação (FREYRE, 2006a, p. 33).

SUMÁRIO 40
Ou seja, à diferença do paulista Prado, o pernambucano
negava haver estágios de evolução até uma “raça ariana”. Isso por-
que, na explicação consagrada por Ricardo Benzaquen de Araújo
(2005), a mestiçagem, segundo Freyre, não é uma busca por homo-
geneidade na qual uma síntese de opostos antagônicos se unem
para constituir um todo coeso com predominância dos caracteres
brancos. Freyre, demonstra Araújo, articula o sentimento de coletivi-
dade nacional a partir de um “equilíbrio de antagonismos”, expressão
utilizada em Casa-grande sempre com a função de indicar que a
experiência societal brasileira não se construiu em polos estanques,
mas por meio da interpenetração de experiências culturais diversas.
É o que ele deixa evidente quando narra o desenvolvimento da lín-
gua portuguesa no Brasil:
Sucedeu, porém, que a língua portuguesa nem se entre-
gou de todo à corrupção das senzalas, no sentido de
maior espontaneidade de expressão, nem se conservou
acalafetada nas salas de aula das casas-grandes sob o
olhar duro dos padres-mestres. A nossa língua nacio-
nal resulta da interpenetração das duas tendências. (...)
A força, ou antes, a potencialidade da cultura brasileira
parece-nos residir toda na riqueza de antagonismos equi-
librados (FREYRE, 2006a, p. 417-418).

Tal elogio da interpenetração cultural permaneceu como


um aspecto inalterado nos trabalhos de Freyre posteriores a Casa-
grande & senzala; para ele, a miscigenação seria sempre a recorda-
ção de que a comunidade imaginada nacional não se originou da
ausência de intercomunicação entre seus grupos antagônicos. Para
o sociólogo recifense, ao miscigenar-se, o Brasil, como ele declarou
em uma entrevista nos anos ‘970, quebrou “os tabus que tendem a
bitolar todas as relações sociais à base não só de classes como de
raças” (FREYRE, 2010 [1979], p. 155).

SUMÁRIO 41
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho, foi levada a efeito uma compara-
ção entre Paulo Prado e Gilberto Freyre a partir da análise das obras
Retrato do Brasil e Casa-grande & senzala. Ambos são autores con-
temporâneos e que travaram amizade, com seus livros situados no
contexto de emergência do modernismo no Brasil. Contudo, como
demonstrado, apesar de compartilharem uma atmosfera de preocu-
pações sociais semelhantes, seus ensaios apresentam prognósticos
mais distantes do que próximos a respeito do país. Prado retratou o
africano escravizado como um agente de corrupção da sociedade
brasileira, enquanto Freyre o enxergou como uma vítima do sistema
escravocrata que, ainda assim, contribuiu positivamente para a cul-
tura nacional. Prado questionou a viabilidade do mestiço, temendo a
fusão de “raças”, ao passo que Freyre elogiou a miscigenação como
um fator positivo para a cultura nacional, pois promotora da interpe-
netração cultural e da quebra de tabus sociais. Em resumo, a visão
de Prado sobre o Brasil foi marcada pela crença de que a sociedade
era estagnada, fato resultante da busca pelo enriquecimento fácil e
da “libertinagem” presentes na vida social brasileira desde a colo-
nização. Por outro lado, Gilberto Freyre destacou a África e a mis-
cigenação como elementos fundamentais para a formação de uma
identidade brasileira.

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SUMÁRIO 44
2
Bárbara Luisa Fernandes Pires
Luã Ferreira Leal

AS HERDEIRAS E A
TRADIÇÃO MODERNISTA:
ONEYDA ALVARENGA, GILDA DE MELLO E
SOUZA E O LEGADO DE MÁRIO DE ANDRADE

DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.2
AS HERDEIRAS NO PANTEÃO
MODERNISTA
As trajetórias de Oneyda Alvarenga (1911-1984) e Gilda de
Mello e Souza (1919-2005) explicitam como ambas se legitimaram
como herdeiras de Mário de Andrade, prógono do modernismo,
poeta e construtor de instituições. Como ponto de partida, pergunta-
-se de que modo o falecimento, em 1945, desse criador de tradições
interpretativas sobre o Brasil originou disputas em torno dos senti-
dos de memória e herança. Segundo a hipótese, essas duas autoras,
com seus esforços de sistematização das correspondências ou das
proposições teóricas do autor, rotinizaram o estilo vanguardista do
modernismo em São Paulo. Ou seja, após a morte do intelectual,
inseriram a obra de Mário em novos contextos, ampliando os deba-
tes teóricos sobre suas ideias.

As condições sociais da produção intelectual de mulheres,


especialmente na sociedade paulistana a partir da década de 1930,
foram alteradas por processos sociais e mudanças nas relações de
gênero, possibilitando que elas participassem da confecção de um tipo
de atividade intelectual institucionalizada. Na trama de relações entre
Mário-Oneyda e Mário-Gilda, apreciam-se dois momentos distintos,
ocorridos antes e depois da morte do escritor modernista. No primeiro
momento, na condição de discípulas, consideramos, portanto, o perí-
odo em que Oneyda foi aluna de Mário no Conservatório Dramático
e Musical de São Paulo (entre 1931 e 1934) e que Gilda morou com
o primo na casa da Rua Lopes Chaves (entre 1931 e 1943). A partir
de relatos memorialísticos e da epistolografia, analisaremos como as
legatárias de Mário construíram relações afetivas e profissionais que
expressavam as diferenças de geração, de gênero e de circulação das
ideias entre interior e um centro cultural, bem como ambas se empe-
nharam em construir em relação a ele uma autonomia relativa e, vale
acentuar, um “renome próprio” (CORRÊA, 2003; PONTES, 2010).

SUMÁRIO 46
Em um segundo momento, após o falecimento de Mário, as
herdeiras intelectuais cujas carreiras já estavam consolidadas, ao
pensarem a sociedade a partir de suas expressões culturais, adota-
ram como objeto e problema de suas respectivas reflexões a música
e o folclore, no que concerne à atividade de Oneyda, e a estética e
a literatura, no caso de Gilda. Propomos, neste texto, uma reflexão
sobre o modo de ambas as autoras retomarem algumas problemá-
ticas presentes nos textos de Mário de Andrade. Desse modo, ana-
lisaremos os trabalhos publicados por elas que, segundo a nossa
hipótese, tornaram possível a “atualização”, ou adaptação em con-
textos para além do original, da produção do intelectual paulistano.
Frustrado pelo insucesso de muitas das suas iniciativas institucio-
nais, Mário, um intelectual assistemático e polígrafo, de produção
volumosa, mas descontínua, atuou como mentor das duas jovens do
interior que foram orientadas pelas concepções estéticas do autor
desde quando almejavam carreira literária.

Assim, nos perguntamos quais foram as condições sociais


de produção intelectual dessas duas protagonistas no contexto pau-
listano de atividade intelectual? A partir das dinâmicas que organi-
zam as disputas pela memória, atravessadas por marcadores como
gênero, geração e região, buscamos entender como a relação entre
quem consagra e o autor consagrado orientou a seleção de textos
e de cartas. Ou seja, como o vínculo entre as herdeiras e a obra do
autor “fundador” criou um viés para definir as leituras adequadas
para a construção de uma tradição intelectual.

TRAJETÓRIAS CRUZADAS
Ao construir um relato biográfico, deve haver um rigor para
evitar que o autor do enunciado seja a única testemunha dos proces-
sos vividos. Quando as trajetórias se cruzam, entretanto, perde-se

SUMÁRIO 47
a ilusão de que há somente um percurso possível e que apenas as
opções escolhidas pelo biografado eram factíveis naquele contexto
(BOURDIEU, 2010b). Buscamos, portanto, criar interconexões entre
trajetórias pessoais e experiências coletivas, com o objetivo de apre-
ender dinâmicas mais amplas dos cruzamentos entre gênero, cul-
tura e vida intelectual.

Gilda e Oneyda nasceram em cidades do interior, Araraquara


e Varginha, respectivamente, mas se deslocaram para São Paulo. Aos
doze anos, com o objetivo de prosseguir os estudos na capital, Gilda
mudou-se de Araraquara para a cidade de São Paulo, onde passou a
viver em companhia da tia-avó e madrinha Maria Luísa Leite Moraes
de Andrade (1859-1948), a “Vovó Iaiá”, mãe de Mário de Andrade. Na
companhia do escritor e de sua família, ela residiu na casa da Rua
Lopes Chaves, no bairro da Barra Funda, de 1931 até 1943. Oneyda
Alvarenga, assim como Gilda, se mudou para a capital paulista a fim
de estender o período de estudos e tornou-se promissora artista
das letras. Ambas, no entanto, não granjearam reconhecimento na
literatura, apesar de terem se tornado especialistas em temáticas
atinentes às expressões culturais.

Os deslocamentos das duas jovens mulheres tiveram como


destino São Paulo, uma cidade em processo de transformação como
centro intelectual ainda na década de 1930. Tal deslocamento, figura
nas narrativas pessoais de Gilda e Oneyda, publicadas quando
elas já haviam se consagrado como intelectuais de prestígio, como
fator determinante para suas respectivas projeções no universo
intelectual paulistano.

Oneyda esteve vinculada ao grupo autodenominado “Irmãos


Pequenos” de Mário, segundo sua listagem era formado por Luís
Saia, José Bento Faria Ferraz, Fernando Mendes de Almeida, Paulo
Ribeiro de Magalhães e Sylvio Alvarenga. O casamento dela com
Sylvio, ambos portadores do sobrenome Alvarenga, revela uma lógica
de união entre casais formados por primos. Ele era advogado da

SUMÁRIO 48
Justiça Militar, ela, filha de um funcionário público e em sua linhagem
materna vinculava-se a Francisco Paoliello, deputado estadual (1907-
1912) e deputado federal por Minas Gerais (1912-1920). Para além do
mero registro de detalhes biográficos, interessa a esta proposta de
pesquisa entender como os dilemas geracionais se expressam insti-
tucionalmente, pois evidenciam-se as regras que regem um mesmo
horizonte intelectual na constituição de organizações culturais.

Para entender as relações da tríade formada por Mário, Gilda


e Oneyda, a análise de suas obras abrange as diferenças de gênero
e de geração, escolaridade e fração de classe, cidade de origem e
proficiência linguística, posição social e posicionamento. Se Gilda
assumiu o posto de assistente de Roger Bastide na USP em 1943, a
partir de 1954 passou a lecionar no curso de Estética, a carreira da
Oneyda sempre esteve vinculada à Discoteca Pública, onde atuou
como organizadora da instituição e sua mais importante diretora.
Nesse sentido, é um procedimento anódino e anacrônico aferir o
prestígio de cada intelectual, ou almejar comparações de itinerários,
pois varia de acordo com cada contexto e o papel desempenhado
na esfera pública ou no campo acadêmico. Mesmo sem inserção
universitária e sem ocupar o papel de docente, Oneyda Alvarenga
teve notável participação em diversas organizações dedicadas aos
debates sobre folclore e cultura popular. Enquanto Gilda atrelou sua
carreira às funções de docência e de orientação de pesquisas, dedi-
cando especial atenção à estética e à crítica cultural, Oneyda, por
sua vez, assumiu funções da “burocracia” do movimento folclorista
brasileiro, estabelecendo conexões e articulando alianças com inter-
locutores como Renato Almeida e Rossini Tavares de Lima.

São Paulo, a metrópole prismática da poesia de Mário,


durante a década de 1950, especialmente por causa dos festejos do
IV Centenário de fundação, testemunhou múltiplos processos de sua
transformação em centro artístico e intelectual. A cidade já era bem
distinta da vivenciada durante a Semana de Arte Moderna de 1922,
pois a “institucionalização da vida universitária” alterou “o estilo de

SUMÁRIO 49
reflexão, assim como a constituição das organizações culturais, os
museus, os teatros, o cinema, conferiram o lastro material à divul-
gação de obras produzidas no exterior, adensando o processo de
trocas culturais” (ARRUDA, 2001, p. 20).

A cidade que Gilda e Oneyda conheceram na década


de 1930 se transformou em um ambiente urbano bastante dife-
rente quando elas iniciaram na vida profissional. Em 1940, quando
tinham, respectivamente, 21 e 29 anos, a população da cidade de
São Paulo era de 1.326.261 habitantes, sendo 705.089 na faixa entre
20 e 59 anos (53,2%). E, do total divulgado nesse recenseamento
do IBGE, 285.469 eram estrangeiros residentes na capital paulista
(IBGE, 1947). Em sua acepção sobre as divisões sociais legitimadas
mediante a construção de uma ideia de região e de identidade regio-
nal, Bourdieu (2010a) destacou a posição dos intelectuais, incluindo
os operadores do simbólico situados nas províncias, na classificação
que separa o centro e a periferia. As “fronteiras” sancionam o lugar
de origem e as divisões sociais legitimadas para a constituição da
unidade e da identidade de um grupo social proveniente de certa
“região”. Componente central da luta por classificações, pela defi-
nição de categorias de pensamento e pela representação de iden-
tidades, a região nasce como espaço estigmatizado, por causa do
sotaque, das vestimentas ou do estilo de vida, uma província definida
por sua distância em relação ao “centro”.

Em contraponto ao historiador da arte Kenneth Clarke,


Ginzburg argumentou que a tênue linha que separa a periferia e o
centro de um sistema cultural explicita a relação de complementari-
dade dessa alegoria espacial, um par de categorias que pode sofrer
alteração de posição de acordo com processos políticos e econômi-
cos. Afastada do centro, um polo irradiador, de difusão da inovação,
a periferia de um sistema cultural é constituída pelas cidades do inte-
rior e suas elites locais com mais escolaridade. Logo, a periferia não
é apenas uma alegoria espacializada para repercutir o “atraso”, em
comparação com o dinamismo dos centros econômicos e políticos,

SUMÁRIO 50
mas, explicita a dominação simbólica e o conflito decorrente da
hegemonia dos grupos sediados nas metrópoles (GINZBURG,
1989, p.7). A categoria “região” depende de regionalistas elaborarem
agendas de pesquisa para a defesa das suas particularidades em
face da tendência dos intelectuais situados nos centros econômicos
nacionalizarem os seus valores culturais, definindo-os como padrão
para a identidade nacional (BOURDIEU, 2010a). Uma imagem poli-
cêntrica do campo intelectual, com trocas entre capital e interior,
substitui a crença na existência de um centro inconteste, cuja impo-
sição de hegemonia artística e intelectual seria extensão da força
política e econômica para irradiação de modelos no universo cultural
(GINZBURG, 1989, p.14).

Escritoras nascidas em cidades do interior, Gilda e Oneyda


foram testemunhas oculares das transformações demográficas,
institucionais e tecnológicas a partir da década de 1930, quando
se mudaram para a capital paulista. Evidentemente, os exemplos
abordados por Ginzburg, disputas entre escolas italianas de pintura
da parte centro setentrional e da meridional da península, e por
Bourdieu, intelectuais regionalistas da Occitânia, estão distantes da
conjuntura histórica desta análise. Entretanto, noções centrais de
ambos os textos elucidam as condições sociais de ambas as autoras
tendo em vista o policentrismo da vida cultural.

No mercado nacional de bens simbólicos, a posição dos


defensores do regional é menos concorrida, afinal há menos inte-
lectuais nas cidades do interior. Por outro lado, nascidos nas pro-
víncias aproveitam a condição para reverter a sua estigmatização e
valorizar a especificidade do seu conhecimento (BOURDIEU, 2010a,
p.131), afastando-se assim da marca de origem “caipira”. Pode ser
encontrada na análise da organização do mercado de produção e
de consumo de bens culturais, a explicação sobre os motivos de
certos centros artísticos florescerem em um período histórico e
não outros, sobretudo com grande número de produtores (artistas
e intelectuais) e consumidores das obras (GINZBURG, 198, p.26).

SUMÁRIO 51
Também é indispensável a existência de instituições de tutela, forma-
ção e promoção de artistas e de intelectuais, além de dinâmicas para
distribuir suas obras em galerias de arte, museus, livrarias e outros
espaços de consagração (Ibidem, p.32). Por esse motivo, e para se
afastar do estigma do provincianismo, o intelectual de província, ou
qualquer literato nascido no interior, precisa criar laços com mento-
res ou mecenas no centro de inovação.

O primeiro encontro entre Oneyda e Mário ocorreu em feve-


reiro de 1931. Ao se deslocar de Varginha para São Paulo, ela foi
morar na casa de conterrâneos residentes na capital paulista, pois a
família Rebello era amiga da família Alvarenga. O professor fazia “lar-
gamente” a “propaganda” dos talentos da Oneyda no Conservatório.
Ela tinha lições de piano duas vezes por semana no Conservatório
e duas vezes por mês na casa do Mário (ALVARENGA, 1983, p. 9).
Quando regressou a Varginha, foi o mestre quem avisou a discí-
pula dos prazos para os exames gerais. Foi Mário quem solicitou ao
diretor do Conservatório, Samuel Archanjo, professor de solfejo da
Oneyda, para que ela fizesse os exames fora da data agendada, sem
pagar taxas adicionais. Em carta de julho de 1934, Mário de Andrade
informa à discípula, uma “mineirinha poeta a valer”, que comentou os
poemas dela com Manuel Bandeira, pois teve “o gostinho de anun-
ciar para alguns amigos, especialmente mineiros” (ALVARENGA,
1983, p. 63). Durante 1934, Mário enviou conselhos por carta para
sua aluna, então residente em Varginha. Quando Oneyda recebeu o
convite para colaborar com o Diário de Minas, o professor ensinou
que ela deveria então aceitar: “se firme em Minas, o que será de
grande importância para sua vida prática”. Na mesma carta, escrita
em 26 de dezembro de 1934, Mário resumiu:
Saiba fazer do mundo um objeto de contemplação,
naquilo em que essa maneira de ser não prejudique a sua
atividade e enriqueça vocês de experiências humanas. E
você está em Minas, comendo, dormindo e sofrendo em
Minas, como é a minha doutrina. Sua pátria agora é Minas.

SUMÁRIO 52
Não no sentido vulgar, burguês e sentimental de pátria,
que isso só prejudica e diminui o indivíduo, mas no
sentido daquilo em que você vive e em que você é útil
(ALVARENGA, 1983, p. 71).

O retorno da discípula a São Paulo seria costurado por Mário


a partir da comunicação sobre a nomeação dele para o cargo de
diretor do Departamento de Cultura. Na carta de 6 de maio de 1935,
ele informou que o Prefeito Fábio Prado havia fornecido condições
para a montagem da instituição. Mário perguntou a Oneyda se ela
aceitaria o convite: uma vaga para “um emprego público aí duns
700$000 talvez, você aceitava?” (ALVARENGA, 1983, p. 104). Na
mesma correspondência, ele informa que ficaria “contentíssimo”
com o retorno dela, mas entenderia, pois, o “o ordenado é pequeno
e o trabalho bastante”, por esse motivo que havia imaginado “pedir
para você em Belo Horizonte ou Rio”, com a mediação do Ministro da
Educação e Saúde Gustavo Capanema.

Se a amizade de Oneyda com Mário nasceu como uma relação


entre professor e aluna, caminhando, em seguida, para uma “relação
íntima entre uma jovem intelectual com um pensador-artista atormen-
tado” (IONTA, 2013, p.146), a relação de Gilda com Mário, por sua vez,
foi balizada pelos laços de parentesco. O retrato memorialístico que a
intelectual preservou de seu primo é composto por três imagens dis-
tintas: a da infância, quando ele passava as férias do Conservatório na
cidade de Araraquara (SP), dividindo-se em duas estadias, na fazenda
Santa Isabel (dos pais de Gilda) e na Chácara Sapucaia (de Zulmira
e Pio Lourenço Corrêa); a da adolescência, no período ginasial em
que ela se muda para São Paulo, na Rua Lopes Chaves; e, por último,
quando ingressa na universidade e têm suas primeiras incursões
literárias, ocasião em que Mário se torna seu conselheiro e, até certa
altura, seu confidente (SOUZA; CANDIDO, 1994, p.9).

Na primeira imagem, Mário é um parente da cidade que, ao


passar as férias na fazenda da família, rompia com a rotina da vida iso-
lada no interior. Na segunda imagem, Gilda tinha 12 anos quando, na
companhia de sua irmã mais velha, partiu de Araraquara em direção

SUMÁRIO 53
à São Paulo e foi morar na casa da “vovó Iaiá”, mãe de Mário, sua tia-avó
paterna. Nesta segunda lembrança de seu período de convivência com
o escritor, a figura de Mário se transforma, ele deixa de ser o tio dispo-
nível das férias na fazenda e se torna o “homem ocupado, um escritor
conhecido cujo nome saía nos jornais” (SOUZA; CANDIDO, 1994, p.11).

A atmosfera da casa em que viveram juntos na Lopes Chaves


era ordenada por um duplo: de um lado, os hábitos interioranos
mantidos pelos mais velhos e ainda vivos na rotina doméstica, de
outro, a presença renovadora de Mário de Andrade. Ficava claro
o contraste entre o mundo rural e o urbano, e a disputa simbólica
entre ambos, isto é, o antigo estilo patriarcal e a emergência de
novos regimes de sociabilidade que reverberam em novas relações
entre o feminino e o masculino. No âmbito da divisão operada pelo
marcador de gênero, o primeiro andar da casa era caracterizado por
um ambiente preponderantemente feminino, ocupado pelas funções
domésticas e por sermões familiares acompanhados do bordado e
do tricô. Já no segundo andar começava outra realidade; o espaço
habitado por Mário, era o polo masculino que Gilda (1994) conside-
rava ser distinto porque contava com a biblioteca do escritor, obras
de arte modernistas e decorações marajoaras que ele havia trazido
da Amazônia. A divisão estava simbolizada, portanto, entre o “mundo
do aprendizado doméstico feminino” e o “mundo extraordinário dos
livros”, associado ao universo masculino.

Apesar de nunca ter integrado o corpo docente da USP, Mário


esteve próximo da instituição, como influência nos estudos e pesqui-
sas produzidas na então recente universidade ou atuando à frente do
Departamento de Cultura do Município de São Paulo. Ele foi convi-
dado pelos jovens universitários da revista Clima a escrever o artigo
de abertura da revista, “Elegia de Abril”, onde saudou a nova geração
de críticos que, por sua vez, a despeito de assumirem uma perspec-
tiva mais sociológica, associada a um rigor acadêmico e científico,
faziam questão de explicitar o débito em relação ao projeto estético
do modernismo paulista de 1922 (PONTES, 1998, p. 74-75).

SUMÁRIO 54
Gilda foi a principal responsável por estabelecer a aproxi-
mação entre o modernista e os membros da revista. É no contexto
de encontro entre as duas gerações que Mário escreve um poema
em que ela e seus colegas são mencionados. A ensaísta aparece
retratada no seguinte quarteto: “O arreliquim de Tintagiles, Gilda, /
Me esconde tudo, neblina. / A hera deu flor... A saudades / Lilá ri
das inquietações.” (ANDRADE, 1987, p. 368). Para Gilda (1994, p. 24),
a estrofe condensa “a trajetória da menina que ele vira crescer, aju-
dara a se encontrar e agora se afastava, sem remorso, em busca do
seu próprio destino”. Vale lembrar que, naquela ocasião, Gilda tinha
acabado de se casar com o colega de faculdade e de Clima, o crítico
literário Antonio Candido. Segundo as memórias da própria autora,
Mário temia que ela tivesse um destino “mais parecido com o de
toda mulher”, abandonando as vocações intelectuais para se dedicar
exclusivamente ao casamento.

Após deixar a Rua Lopes Chaves, Gilda começou a endere-


çar cartas ao Rio de Janeiro, período em que o escritor se transferiu
para lecionar na cátedra de história e filosofia da arte do Instituto de
Artes da então Universidade do Distrito Federal. As cartas deixam
vestígios da construção de uma formação intelectual e da influência
do escritor sobre ela (os títulos dos livros lidos, a forma de leitura e as
dúvidas relatadas). Nas correspondências, Gilda comenta o cotidiano
e as dificuldades que enfrentava na faculdade; informava Mário das
atividades que realizava no Grupo de Teatro Universitário (GUT) -
do qual só participava como tradutora, pois os pais não a deixavam
subir no palco com medo que ela “tomasse gosto”; fala do “problema
com as mães” ocasionado pela participação de mulheres no grupo
de teatro, ainda mais por serem moças vindas do interior; conta dos
encaminhamentos de sua pesquisa e de sua atuação no curso de
Roger Bastide sobre sociologia religiosa, aproveitando o espaço para
solicitar a Mário dicas para a escrita do trabalho (em uma das cartas,
após avaliar as opções dadas pelo primo, escolhe como tema:
“o culto aos espíritos maus no povo brasileiro”).

SUMÁRIO 55
Ao retomar a influência de Mário para sua geração Gilda tece
o seguinte comentário:
Foi a partir deles [de Mário de Andrade e de Gilberto
Freyre] que a geração de moços, que entre 1935 e 1940,
ainda não marcada pela especialização, começou a
avaliar o conceito de cultura, de identidade nacional, a
discutir com isenção o problema da mestiçagem e os
rumos que a arte brasileira devia tomar. As conquistas
obtidas eram em geral provisórias e não se apoiavam na
segurança racional dos sistemas. Mas naquele momento
de transição entre o sonho das vanguardas e a chegada
vitoriosa dos especialistas, delineavam à nossa frente um
recorte novo da realidade. Talvez uma invenção da reali-
dade, tal como de tempos em tempos a arte efetua, para
renovar o sentimento da divindade, do homem ou, mais
humildemente, da paisagem (SOUZA, 2005, p.69-70).

MÁRIO EM NOVOS CONTEXTOS


Em 1955, 10 anos após o falecimento de Mário, o Correio
da Manhã publicou uma entrevista do jornalista Francisco de Assis
Barbosa com Carlos de Morais Andrade, irmão do poeta, advogado,
político, filiado ao Partido Democrático, ao Partido Constitucionalista
de São Paulo (a partir de 1934) e à UDN (a partir da fundação do
partido em 1945). No primeiro texto da série “Mário de Andrade em
família”, é informado ao público que “Oneyda Alvarenga e Gilda de
Melo Sousa (sobrinha do escritor e esposa de Antônio Cândido)
estão organizando tudo que ficou inédito ou apenas publicado
em jornais e revistas - gavetas e mais gavetas de recortes”. Assis
Barbosa, ao comentar sobre a casa na rua Lopes Chaves, avalia
que “é a mesma”, pois “tudo está como Mário de Andrade deixou”,
talvez a família estivesse esperando um novo uso para o local, p.
o Museu Mário de Andrade, “uma ideia vaga, bailando no ar”.

SUMÁRIO 56
Também em 1955, Ruy Santos, fotógrafo e cineasta ligado ao PCB,
produziu o curta-metragem A Casa de Mário de Andrade, cujo roteiro
foi escrito por Gilda de Mello e Souza.

Na terceira reportagem da série, Assis Barbosa busca enten-


der o “absenteísmo” do Mário pela ótica do irmão Carlos. Logo no
início do texto há um resumo da vida doméstica: “quando a família
se mudou para a Barra Funda, Mário de Andrade tornou-se o senhor
absoluto em Lopes Chaves, 106”. Na casa, o escritor morava com a
empregada doméstica Sebastiana, a madrinha e tia Nhanhã, a mãe
Maria Luísa e a irmã Lourdes, secretária dele até se casar em 1936.
Em relato para esse especial do Correio da Manhã, Oneyda relembra
que pretendia morar em São Paulo para estudar, então “Mário não
teve dúvida”: ‘ofereceu-me a casa, dizendo: ‘se é por falta do carinho
de mãe e parentes, você aqui terá outra mãe e outra tia’”. Para Carlos,
o seu irmão preconizava a “revolução estética”, pois era absenteísta,
indiferente aos fatos políticos, “não era apenas apartidário, mas apo-
lítico”. Mesmo assim, Mário visitou o irmão quando esteve preso, em
1930 e em 1937. Foi com o golpe do Estado Novo, na interpretação
do irmão Carlos, que o intelectual compreendeu o seu papel na vida
política. Afinal, o “Departamento fora ideia sua”, porém, do “dia da
democracia para noite da ditadura viria esboroar-se todo o seu tra-
balho, construído sabe Deus como, com que sacrifícios”.

De que maneira o renitente tema das vanguardas nacionais


habilitou Mário e as duas intérpretes de sua obra como personagens
imprescindíveis para analisar a Semana de 1922? A extensão para
novos contextos promoveu um padrão interpretativo para analisar
temas modernistas como a relação entre estética e consciência
nacional, a vinculação entre tradição e modernidade, as frontei-
ras porosas do urbano e do rural, a escolha pela transgressão da
vanguarda ou pela conservação do academicismo. O modernismo,
termo polissêmico, e a participação de Mário na Semana de 1922,
ganharam novos contornos após o falecimento do escritor. Nas duas
tabelas abaixo, listamos os principais trabalhos que organizaram a

SUMÁRIO 57
obra de Mário de Andrade em novos contextos, sobretudo com a
publicação das Obras Completas pela Livraria Martins Editora. Em
1944, quando Mário já contava mais de 50 anos, a editora publicou na
série de Obras Completas a terceira edição de Macunaíma e Pequena
História da Música, cuja primeira edição foi lançada em 1942.

Quadro 1 – Produção intelectual da Oneyda sobre o legado


Título Ano Editora Cidade Observações
Livraria Martins
Danças Dramáticas do Brasil 1959 São Paulo Vol. XVIII das Obras Completas
Editora
Livraria Martins
Música de Feitiçaria no Brasil 1963 São Paulo Vol. XIII das Obras Completas
Editora
Financiamento da Secretaria
Mário de Andrade, um pouco 1974 José Olympio Rio de Janeiro de Cultura, Esportes e
Turismo de São Paulo
Mário de Andrade, Oneyda
1983 Duas Cidades São Paulo
Alvarenga: cartas
Livraria Duas Edição comemorativa do 90º
Os Cocos 1984 São Paulo/DF
Cidades/INL aniversário de nascimento
Livraria Duas
As melodias do boi e outras peças 1987 São Paulo/DF
Cidades/INL
Fonte: elaboração da autora e do autor.

Em 1961, durante campanha promovida por Andrade Muricy,


então crítico musical do Jornal do Commercio, esse periódico do Rio
de Janeiro publicou a galeria dos membros efetivos da Academia
Brasileira de Música7. Iniciada em 8 de janeiro com o perfil-ficha de

7 João Baptista Julião, na sessão de fundação da Academia Brasileira de Música em 1945, as-
sumiu a função de procurador e recolheu as assinaturas dos membros residentes em São
Paulo: Arthur Pereira, Furio Franceschini, Francisco Casabona, João da Cunha Caldeira Filho,
João Gomes Júnior, João de Souza Lima, Martin Braunwieser, Mozart Camargo Guarnieri, Samuel
Archanjo dos Santos, Paulo Florence, Savino de Benedictis e Oneyda Alvarenga. Esses funda-
dores, que não participaram dos atos de organização administrativa da ABM no Rio de Janeiro,
reuniram-se no Instituto Musical São Paulo, instituição fundada por João Baptista Julião, para a
assinatura dos documentos de procuração.

SUMÁRIO 58
Heitor Villa-Lobos, fundador e primeiro presidente até seu faleci-
mento em 1959, a relação até novembro de 1961 tinha apresentado
ao público resumo das biografias de 41 membros. Cada acadêmico
deveria enviar o curriculum vitae e lista de suas obras. O vigésimo
perfil foi o de Oneyda Alvarenga, em 28 de maio de 1961, com infor-
mações biográficas (data e local de nascimento), além da lista de
“Obras principais”. Organizado em quatro seções, o arrolamento
consistia em obras “publicadas”, “escritas para a Discoteca Pública
Municipal de S. Paulo”, “obras organizadas, com introduções e notas,
de documentos e estudos de folclore musical deixados por Mário
de Andrade” e “obras inéditas”. Além da ABM, Oneyda também
integrou organizações como o Conselho Nacional de Folclore, o
International Folk Music Council e a Association Internationale des
Bibliothéques Musicales.

Sobre a trajetória intelectual de Oneyda, o perfil biobibliográ-


fico comenta que “foi decisiva para a formação de sua cultura e para
a sua orientação vocacional o influxo direto recebido de Mário de
Andrade, de quem foi a principal e fidelíssima assessora na maioria
dos seus multiformes empreendimentos”. No “empreendimento” de
construção da Discoteca, entidade “modelar em nosso país”, Oneyda
“organizou com notável eficiência, de acordo com plenamente atua-
lizado rigor técnico e inteligente adequação à sua funcionalidade de
instrumento de trabalho”. A autora então era a legatária dos comen-
tários sobre música e folclore, pois
tem gerido dedicada, inteligentemente o precioso espólio
dos inéditos e dispersos de Mário de Andrade, no ter-
reno folclórico, devendo-se-lhe a ordenação, adaptação,
e por fim, a respectiva publicação, sempre precedida
de significativas introduções [...] os seus livros e as suas
numerosas monografias, quase sempre versando sobre
folclore fizeram de sua autora acatadíssima autoridade,
das maiores que possuímos nessa ciência social, e, como
ocorre também com Helza Camêu, forrada de sólida base
musical e musicográfica (ACADEMIA BRASILEIRA DE
MÚSICA, 1961, p. 3).

SUMÁRIO 59
Quadro 2 – Produção intelectual da Gilda sobre o legado
Título Ano Editora Cidade Observações
O tupi e o alaúde: uma
1979 Duas Cidades São Paulo
interpretação de Macunaíma
Obra Escogida, de Biblioteca Prólogo: “El Tupi y el Laúd”;
1979 Caracas
Mario de Andrade. Ayacucho v. 56 da Biblioteca Ayacucho
Os melhores poemas de Seleção e apresentação do
1988 Global São Paulo
Mário de Andrade. texto.
Introdução do livro Coleção
“O colecionador e a Coleção” 1988 Edusp São Paulo Mário de Andrade: Artes
Plásticas
Orelha de O banquete, de
“Sobre o banquete” 1989 Duas Cidades São Paulo
Mário de Andrade
O arcaico e o moderno. A
Ouro Sobre Azul São Paulo e Introdução do livro Pio &
amizade epistolar entre Mário de 2009
- SESC-SP Rio de Janeiro Mário: diálogo da vida inteira
Andrade e Pio Lourenço Corrêa.
Fonte: elaboração da autora e do autor.

O movimento de ideias de Gilda sobre Mário de Andrade


retoma quase todos os períodos de produção e atuação do escritor
nos campos cultural e político brasileiro. Sua leitura aproximada e
íntima visa captar as múltiplas imagens deixadas por ele, desde o
ano da publicação de Há uma gota de sangue em cada poema, em
1917, até sua morte, em 1945, esquadrinhando, assim, todas as suas
facetas: literatura, poesia, música, etnografia, folclore, arquitetura,
artes plásticas, fotografia, crítica literária, políticas culturais.

Apesar do amplo recorte temporal e temático de seus escri-


tos sobre Mário, o exercício de ligação entre texto e contexto permite
à ensaísta captar as transformações e mudanças sociais ocorridas na
primeira metade do século XX, assim como, os grupos, tradições inte-
lectuais e artistas próximos da rede estabelecida pelo intelectual moder-
nista, auxiliando-a a explicar a estrutura da obra e o teor de suas ideias.

SUMÁRIO 60
Para Gilda (2005, p. 10), foi no contexto de transformações radicais do
Brasil que Mário viveu “o drama do artista contemporâneo, ao mesmo
tempo artista e homem que não quer abandonar nem os direitos desin-
teressados da arte pura, nem as intenções interessadas da arte social”.

Mário de Andrade é, portanto, um grande tema de sua


interpretação. Nos ensaios sobre o escritor, Gilda condensa anali-
ticamente elementos e episódios pessoais da vida de Mário aos
problemas centrais de sua obra. Diante disso, como apontou Wisnik
(2007, p. 211), ela demonstra uma “visão totalizante do escritor”, pois
consegue manter, simultaneamente, uma distância metodológica
necessária à análise científica (que empreendeu na universidade) e
uma “uma proximidade subjetiva inevitável”, inerente à relação con-
sanguínea e afetiva estabelecida entre eles.

Por fim, sublinhamos o destaque conferido por Gilda às per-


sonagens ligadas ao núcleo familiar de ambos, sobretudo a figura
do patriarca da família - e avô de Mário - Joaquim de Almeida Leite
Morais (1835- 1895), com o objetivo de captar o processo mais amplo
no qual se insere a vida-obra andradina em seus aspectos contra-
ditórios e conflituosos. Além disso, como mostra a Tabela 2, ela foi
responsável por uma série de publicações e coletâneas dedicadas à
obra de Mário. Com isso, a partir de notas, introduções, orelhas de
livro, comentários críticos, prólogos e textos dispersos, ela construiu
sua interpretação, ainda que dispersa, sobre ele, consagrando-se,
desse modo, como sua herdeira intelectual.

CONDIÇÕES SOCIAIS DE PRODUÇÃO


INTELECTUAL DAS HERDEIRAS
Se intelectuais podem se vincular a diferentes tradições
intelectuais devido a intercâmbios acadêmicos, exílio voluntário
ou forçado, publicação e tradução de livros em diferentes idiomas,

SUMÁRIO 61
variadas formas de divulgação de artigos, participação em eventos
internacionais, há então uma possibilidade de alteração na confor-
mação das agendas em um contexto nacional. Além de partir das
tradições já conhecidas em seu contexto intelectual de origem, cada
intelectual passa a enfrentar novos desafios de interpretação da rea-
lidade social, sobretudo quando está fora do seu lugar de origem. A
força do sobrenome é um indício que revela as relações sociais que
contribuem, por laços matrimoniais, familiares, de amizade e de vici-
nalidade, na construção de prestígio. No contexto analisado, sobre-
nomes relevantes para o meio intelectual paulistano, como Prado,
Penteado e Matarazzo, aparecem em cena com papéis no mecenato
ou na ocupação de posições prestigiadas.

Mário de Andrade, em seu vasto conjunto de correspondên-


cias, construiu e fortaleceu redes de intelectuais, incluindo em seus
debates algumas interlocutoras como Gilda e Oneyda. Essas legatárias
de uma tradição intelectual, em suas respectivas atividades, fomen-
taram a constituição de um estatuto de clássico a um conjunto de
publicações. As duas autoras, portanto, contribuíram para a formação
de linhas interpretativas a respeito do papel de Mário no movimento
modernista e organizaram algumas das ideias do autor a respeito de
questões estéticas. Com seus esforços de sistematização das corres-
pondências ou das proposições teóricas, as herdeiras rotinizaram o
estilo vanguardista do modernismo em São Paulo. Os vínculos familia-
res e de amizade entrelaçaram as trajetórias de Mário, Gilda e Oneyda,
porém, como efeito nos processos de constituição de geração de
intelectuais, as jovens interlocutoras seguiram o mentor na construção
póstuma dos modos de ler a obra polissêmica do escritor paulistano.
Aliás, nos espaços de sociabilidade, que aproximam os indivíduos, são
criados pertencimentos grupais mediados por “pais fundadores” de
uma tradição, por esse motivo no ambiente intelectual
os processos de transmissão cultural são essenciais;
um intelectual se define sempre por referência a uma
herança, como legatário ou como filho pródigo: quer haja
um fenômeno de intermediação ou, ao contrário, ocorra

SUMÁRIO 62
uma ruptura e uma tentação de fazer tábua rasa, o patri-
mônio dos mais velhos é, portanto, elemento de referên-
cia explícita ou implícita (SIRINELLI, 2003, p. 254-255).

A relevância contemporânea das obras dessas duas guardiãs


da memória, aliás, pode ser comparada pela bibliografia dedicada às
suas respectivas obras. As redes ao redor da Gilda, tanto na revista
Clima como na vida universitária institucionalizada da USP, formaram
laços perenes, possibilitando continuidade entre o pensamento da
autora com o de seu grupo de orientandos, intérpretes dos textos
e sucessores. Ela tornou-se uma das professoras universitárias que
tiveram biblioteca ou documentação preservadas em instituições
arquivísticas8. Oneyda, por sua vez, ocupou posições similares a
outras mulheres organizadoras de instituições, consultoras ou asses-
soras de órgãos estatais, função distante de prestigiosos cargos de
catedráticos ou de formulação teórica.

Nas políticas recentes de preservação da memória institu-


cional da ciência no Brasil, inclusive das Ciências Sociais, perderam
espaço as pesquisas cujos temas, como o folclore musical, tiveram
seu prestígio diminuído ou se tornaram periféricos nos arranjos uni-
versitários. Distante de uma proposta embasada exclusivamente na
história das ideias, nosso texto buscou cartografar a rede de relações
e suas implicações no ambiente intelectual, sobretudo no mercado
editorial. As duas autoras, na condição de guardiãs da memória do
Mário, expandiram para a comunidade de especialistas, especial-
mente das Ciências Humanas, e para um público mais amplo, suas
interpretações sobre a influência de Mário de Andrade, estendendo
as linhas de força das suas ideias modernistas para outros contextos.

8 O acervo de Gilda de Mello e Souza e de seu marido, Antonio Candido, foi doado pela família ao
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) em 2018.

SUMÁRIO 63
REFERÊNCIAS
ACADEMIA BRASILEIRA DE MÚSICA. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 28 de maio de
1961, 2° Caderno, p.3.
ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo meio de século.
Bauru: Edusc, 2001.
BARBOSA, Francisco de Assis. Senhor absoluto em Lopes Chaves. Correio da Manhã,
Rio de Janeiro, 1º caderno, 26 de março de 1955, p. 8.
BARBOSA, Francisco de Assis. A grande lição: o golpe de 37. Correio da Manhã, Rio de
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SUMÁRIO 64
3
Bárbara Vital de Matos Oliveira

O ENGENHEIRO
ITAMAR FRANCO,
ENTRE A TRADIÇÃO
E O MODERNO

DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.3
INTRODUÇÃO
O caminho para o moderno, pelo qual o Brasil passou entre
os séculos XIX e XX, foi marcado pela presença, nas arenas políti-
cas decisórias, de atores que não pertenciam à ordem política tra-
dicionalmente estabelecida pelos oligarcas das elites regionais. É
preciso duas ressalvas sobre este contexto antes de prosseguirmos.
Em primeiro plano, falamos em “caminho para o moderno” porque
a modernidade é projeto desenvolvido por um longo processo de
alterações institucionais, o qual não propôs grandes rupturas com
instituições e poderes já estabelecidos na sociedade brasileira. E,
em segundo lugar, como parte desse espírito que evitava grandes
rupturas sociopolíticas, seus atores não pertenciam à ordem política
tradicional naquele momento, mas sim à vida social e ao contexto
dessas oligarquias.

A modernidade como projeto se vinculava ao desejo de


urbanizar o país e impessoalizar processos da administração pública
segundo ideais republicanos utilizando parâmetros científicos e
racionais. Escolas técnicas, universidades e outros círculos inte-
lectuais cumpriam o papel de formação profissional e política dos
“bacharéis” como classe política. Os bacharéis foram a síntese das
alterações sem ruptura que marcaram a modernidade no Brasil, uma
vez que eram oriundos das famílias de elite do país. Eles renovaram
o poder da autoridade tradicional dessas elites ao se legitimarem
no campo político pela posse do diploma, considerado um sinal
social de autoridade sobre os saberes necessários à modernização.
Diferente dos coronéis e do clero, os bacharéis frequentemente se
posicionavam no campo político legitimados pelo conhecimento téc-
nico-científico e a disposição para o “dever” de pensar um modelo
civilizatório para o Brasil, apoiado na urbanização, no desenvolvi-
mento de infraestrutura e da tecnologia, além de eficiente controle
social, como veremos mais adiante.

SUMÁRIO 66
Por não se tratar de um período ou eventos delimitados,
neste artigo, definimos modernidade por meio de características
abordadas por Domingues (1998, p. 213), sendo um processo no qual
instituições historicamente contingentes surgem ou se transformam
segundo demandas individuais e/ou coletivas orientadas pelo apreço
racionalista e cientificista. Este processo também abarca as conse-
quências não-intencionais advindas dos projetos dessas institucio-
nalidades. Esta definição serve de contexto à perspectiva debatida
ao longo deste texto, na qual o diploma de bacharel funcionava como
um marcador de distinção social da elite ao mesmo tempo em que
era um sinal de adaptação das oligarquias a um modelo de Estado
paulatinamente mais burocrático e pretensamente impessoal.

O título acadêmico era a liminaridade entre a tradição e a


modernidade na arena política, espaço em que os tradicionais oligar-
cas e outras forças políticas de classes populares ou revolucionárias
não poderiam ocupar. Este espaço preenchido pelos bacharéis no
imaginário social se estabeleceu a partir da crença difundida de que
funções políticas deveriam se apoiar em parâmetros técnicos que o
bacharel era possuidor, sobretudo para pensar um projeto de país
orientado para a urbanização, infraestrutura e forte controle social.
O bacharelado para os filhos das elites regionais mostrava tanto
uma certa dotação natural quanto habilidades necessárias ao fazer
político. Socialmente, a aquisição desses saberes se dava por via do
exercício intelectual durante a formação e no processo de exercício
profissional do bacharel (CODATO; COSTA; MASSIMO, 2014).

A demanda por racionalização da administração pública


para o Brasil “alcançar” a modernidade – associada frequentemente
à urbanização e ao controle social – colocou a figura do bacha-
rel no centro da política nacional. Raymundo Faoro (2021) fala de
“bacharéis reformistas” que integravam as forças políticas liberais no
Brasil junto aos militares e aos revolucionários. Nesses setores da
sociedade brasileira, as ideias circulavam via discussões que busca-
vam a cientificidade e a racionalidade como critério para legitimar

SUMÁRIO 67
a aplicação de suas proposições no tecido social. Estas aplicações,
por vezes, eram estranhas aos métodos das forças políticas tradicio-
nais que tentavam manter o controle político centralizado nas elites
regionais; entretanto, os dispositivos de organização e o controle
social sugeridos pela “racionalidade” técnico-científica dos bacha-
réis eram úteis também ao poder tradicional. Embora o diploma de
bacharel não garantisse acesso à arena política, ele foi amplamente
utilizado por políticos como sinal de distinção social entre aqueles
que podiam pensar e administrar a sociedade e os que deveriam ser
tutelados e controlados.
Se é verdade que o chamado “bacharelismo”, empapando
a inteligência brasileira, marcava com seu sinete todas
as manifestações dessa inteligência, ao ponto de nem as
ciências médicas discreparem da regra – o fato é que as
reações mais fecundas contra essa influência partiram
exatamente daqueles pioneiros dos estudos sociais, cujos
esforços se coroaram com a criação desses cursos em
nível superior, prepostos a formar pessoas habilitadas a
pensar de modo científico, e não somente formal e nor-
mativo, sobre a realidade social (PINTO, 2012, p. 280).

A legitimidade é conceito central para compreensão de como


o título de bacharel foi importante para a presença desses indivíduos
no campo político moderno. Ela se manifestava no reconhecimento
coletivo de que o título profissional certificava quais indivíduos
possuíam os saberes necessários para alcançar a ordem social e
os valores compartilhados pela sociedade daquela época. Sobre a
legitimidade, Almeida e Adorno comentam que
O sistema cultural formado por esses valores comparti-
lhados seria ancorado nos sistemas de ação, por um lado,
pelo processo de internalização no sistema de persona-
lidade e, por outro, pelo processo de institucionalização
no sistema social. Nesse sentido, para Parsons, a legiti-
midade seria um aspecto importante da integração dos
elementos motivacionais e culturais/normativos da ação
(ALMEIDA; ADORNO, 2021, p. 8).

SUMÁRIO 68
A modernidade no Brasil foi fortemente marcada pela tec-
nocracia, na qual engenheiros e especialistas apresentariam solu-
ções científicas a toda sorte de problemas sociais. Ferreira Jr. e Bittar
(2008) definem os tecnocratas como
[...] os experts (técnicos) responsáveis pela aplicação das
novas tecnologias na administração do poder de Estado,
ou seja, das técnicas empregadas no âmbito das ações
governamentais com o objetivo de se alcançar a eficiência
na racionalização dos recursos financeiros aplicados nos
vários setores das políticas estatais. “O governo dos tec-
nocratas” é denominado pela ciência política de “tecno-
cracia”. A expressão tecnocracia foi “lançada nos Estados
Unidos quando da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
para designar governo dos técnicos, difundindo-se na
época do New Deal”. Em síntese: os tecnocratas são os
“managers ou técnicos de categoria superior, colocados
à frente de grandes empresas ou de departamentos ofi-
ciais do Estado” (Sousa et al., 1998, p. 515-516). Já Bresser
Pereira (1982, p. 86) afirma que “o conceito de tecnoburo-
cracia decorre do de técnico. Tecnoburocracia é o governo
dos técnicos. É o sistema em que o poder está nas mãos
dos técnicos, sejam eles economistas, engenheiros, admi-
nistradores públicos e privados ou militares profissionais.
Colocada nesses termos, tecnocracia seria um tipo de oli-
garquia: a oligarquia dos técnicos. Opõem-se, portanto, a
outros sistemas políticos, particularmente à democracia”
(FERREIRA JR.; BITTAR, 2008, p. 351-352).

Apesar do desejo republicano de impessoalidade da admi-


nistração pública, o ideal tecnocrático sempre conviveu com o patri-
monialismo e a pessoalidade da administração pública brasileira, a
começar pela origem familiar tradicional dos bacharéis. A tecnocra-
cia no Brasil não foi oposição à política tradicional, mas, antes de
tudo, resultado dela.

O objetivo deste texto é examinar a ambiguidade entre tra-


dição e moderno na imaginação e práxis política na modernidade
no Brasil, através da atuação dos bacharéis na política. Para isso,

SUMÁRIO 69
apresenta-se dividido em duas sessões. A primeira é “A engenharia,
entre o saber e o poder”, que aborda a relação entre a Engenharia
e a Política, tensionando questões como legitimidade, modernidade
e ação política em torno dos bacharéis em Engenharia. Nessa ses-
são, há um breve aprofundando no caso do estado de Minas Gerais,
dada sua centralidade histórica, política e econômica no cenário
nacional desde o período imperial, o que permitiu que políticos
locais alcançassem postos relevantes nas diferentes formatações
das Assembleias Legislativas, do Congresso Nacional, do Senado e,
desde a Proclamação da República, da presidência do país. A rele-
vância de Minas Gerais na política nacional é o contexto pelo qual a
segunda sessão, “O mineiro por Itamar, entre o bonde e o fusca”, se
desenvolverá. Nessa parte, é abordada a atuação de Itamar Franco,
ex-presidente do Brasil e uma das figuras mais emblemáticas da
política nacional desde a época dos bacharéis. A trajetória de Itamar
nos ilumina sobre o papel social e político dos engenheiros, bem
como o entrelaçamento entre ação e imaginação para compreender-
mos o Brasil moderno.

Este artigo é um recorte da pesquisa desenvolvida pela tese


de doutorado defendida pela autora em agosto de 2022, intitulada
Entre lembranças, esquecimentos e silenciamentos: trajetória e legado
de Itamar Franco (OLIVEIRA, 2022), que investiga e analisa os esfor-
ços de preservação da memória e do legado da persona política de
Itamar Franco na cidade de Juiz de Fora (MG), e se debruça sobre os
principais lugares de memória9 (NORA, 1993) deste homem público
e de sua mineiridade.

9 Sendo estes, centralmente, a sua biografia autorizada (YAZBECK, 2011), o Memorial da República
Presidente Itamar Franco, o Instituto Itamar Franco e a Medalha Itamar Franco. A tese, além da aná-
minha cabeça lise documental, tem como norte e escopo os enquadramentos da memória (POLLAK,
1992) e os movimentos de memória/esquecimento (HUYSSEN, 2014) envolvidos nesse processo.

SUMÁRIO 70
A ENGENHARIA, ENTRE
O SABER E O PODER
A engenharia é um dos marcos da passagem à modernidade
no Brasil. Junto aos bacharéis em Direito e Medicina, os bacharéis
em Engenharia foram responsáveis por um projeto de país que
visava o desenvolvimento urbano e o aprimoramento técnico e
estrutural dos processos de produção, sob uma forte ética voltada
para a racionalização, burocratização institucional e o trabalho a
serviço da sociedade10. O projeto de futuro nacional moderno dos
bacharéis conviveu com estruturas intrínsecas da sociedade brasi-
leira como o patrimonialismo e a centralização do poder pelas elites
regionais. Os processos de centralização ou descentralização do
poder dizem respeito à política, mais marcadamente às questões de
governo decididas por aqueles que podem ingressar nesta arena,
conforme veremos adiante.

A presença dos bacharéis na política nacional foi mais ampla


do que a atuação dos políticos-bacharéis. Integrados às estruturas
administrativas, os diplomados incentivaram e conduziram o pro-
cesso de burocratização do Estado, sendo a burocratização enten-
dida como racionalização da administração. Política e burocracia se
relacionam intimamente, mas se legitimam por meios e interesses
distintos (PAIVA, 2009).

A partir da discussão sobre como operava a legitimidade dos


bacharéis no campo da política, é possível ter a dimensão da impor-
tância dos processos de sociabilidade estabelecidos nas Faculdades
de Engenharia. Os cursos de Engenharia, tal como os de Medicina
e de Direito, eram espaços de formação profundamente marcados
pela hereditariedade da posição social dos aspirantes a bacharéis.

10 Referências importantes para compreensão e desenvolvimento desse tema: Habermas (2014)


e Weber (2011).

SUMÁRIO 71
A posse do diploma dizia respeito à dimensão simbólica de poder,
um sinal público de legitimidade que permitia o acesso dos bacha-
réis em Engenharia às discussões sobre a administração pública,
enquanto a posição econômica e os títulos herdados da família eram
fundamentais para a ascensão na carreira política.
O capital político é, em grande medida, uma espécie
de capital simbólico: o reconhecimento da legitimidade
daquele indivíduo para agir na política. Ele baseia-se em
porções de capital cultural (treinamento cognitivo para a
ação política), capital social (redes de relações estabele-
cidas) e capital econômico (que dispõe do ócio necessá-
rio à prática política) (MIGUEL, 2003, p. 121).

A dimensão simbólica na qual o bacharelismo se sustentou


no Brasil será abordada segundo os conceitos de dominação simbó-
lica e capital político de Pierre Bourdieu (2010). O conceito de capital
se relaciona à dimensão simbólica, nas quais tanto as forças políticas
quanto a opinião pública validam ou não a presença de um indivíduo
nos espaços de poder. Os símbolos de poder que os bacharéis car-
regavam se manifestavam também em experiência palpável pelos
indivíduos. Os engenheiros, por exemplo, alteravam a paisagem e
a relação física das pessoas com o espaço. As ideias tecnicistas
circulavam em diferentes setores da sociedade e encontravam nas
habilidades atribuídas aos bacharéis sua manifestação concreta, na
qual o diploma marca a posição objetiva dos indivíduos que o pos-
suíam, enquanto subjetivamente afetava a percepção e apreciação
necessárias do mundo experimentado pelas pessoas. A experiência
subjetiva deste contexto foi intrínseca à circulação de ideias políticas,
jurídicas e sociais abordadas em espaços como jornais, tribunais e
instituições político-partidárias. Do acesso público às ideias técni-
cas se estabeleceu a legitimidade política dos técnicos e bacharéis
(GONÇALVES e NOGUEIRA, 2018).

A capacidade de elaborar e difundir ideias de modernização


da administração pública e dos mecanismos de controle social via

SUMÁRIO 72
habilidades retóricas é frequentemente associada aos bacharéis em
Direito e Juristas. Contudo, além das habilidades retóricas e origem
social, os bacharéis em Engenharia alcançaram relevância política
ao aplicar a expertise técnica aos cargos políticos que assumiram,
transformando as cidades. Ser engenheiro no Brasil era considerado
um marcador de classe desde que esta foi considerada uma das
profissões imperiais do país, junto ao Direito e à Medicina. Gilberto
Freyre, um dos mais reconhecidos intérpretes do Brasil, para além
da obra Casa Grande e Senzala, escreveu um livro sobre o tema,
chamado Homens, engenheiros e rumos sociais, no qual demonstra
de que modo essa relação se dá na sociedade brasileira, a partir do
significado da palavra engenharia:
Engenhar, dizem os dicionários, é inventar, engendrar,
maquinar. Vem de engenho: faculdade universitária. Da
mesma origem é engenharia: arte de aplicar conheci-
mentos científicos ou empíricos à criação de estruturas a
serviço do homem” (FREYRE, 1987, p. 23).

A engenharia também era conhecida como “ocupação


letrada” (CARVALHO, 1996; 2010; CODATO; COSTA; MASSIMO,
2014). No Brasil, engenheiros exercem função política importante
desde o século XIX e, dentro do grupo dos profissionais liberais,
eram os que apresentavam “melhor condição de constituir a base
para uma opinião pública independente” e que, desde aquela época,
eram “missionários do progresso, saídos das escolas técnicas (medi-
cina, engenheira, militares), combateram o atraso nas cidades e no
interior” (CARVALHO, 2003, p. 101-102). A legitimidade dos enge-
nheiros para pensar a sociedade vinha, sobretudo, do fato de sua
habilitação técnica se voltar para elaboração e execução dos pro-
jetos de modernização das cidades, sendo “modernização” usual-
mente entendida como sinônimo de urbanização e industrialização
(CARVALHO, 1996; 2003).

SUMÁRIO 73
[...] o técnico [...] há de ser um especialista no assunto
da pasta que é chamado a dirigir (economista para a
Fazenda, engenheiro para Transportes ou para Energia,
eletrônico para Telecomunicações, etc.), o gênero inte-
lectual abrange várias espécies. Ninguém negaria, por
exemplo, aos membros da Academia Brasileira de Letras
o diploma de intelectuais, mas também ninguém, em
seu juízo perfeito, lhes entregaria postos de governo,
salvo honrosíssimas exceções (GUDIN, 1978, p. 145 apud
FERREIRA JR.; BITTAR, 2008, p. 341).

Engenheiros se comunicavam tanto simbólica quanto con-


cretamente ao desejo coletivo de alcançar na urbanização as aspi-
rações de controle social e civilização. Para Bourdieu (1998), a classe
também serve à formação de grupos em sociedades complexas,
dada a natureza relacional dos indivíduos que a compõem. Ou seja,
das condições homogêneas de existência de indivíduos em uma
classe, adquire-se certa homogeneidade nos condicionamentos
e práticas, identificando-os. É possível verificar a correlação desta
teoria com os engenheiros abordados aqui. Da origem social comum
entre estes indivíduos correspondia aos laços hereditários, econô-
micos e simbólicos orientados para o interesse pelos dispositivos de
controle social; da vivência nos ambientes de formação se estabe-
lece a orientação para o “ideal” de construção do país por meio de
ação concreta na sociedade.
Numa sociedade avançada, esse trabalho de manipula-
ção simbólica tende a ser monopolizado por especialistas
em representação — sindicalistas, políticos, administra-
dores públicos, especialistas em pesquisas de opinião,
jornalistas e intelectuais —, que competem pela direção
das “operações sociais de nomeação e os ritos das insti-
tuições”, através dos quais a descontinuidade social é pro-
duzida a partir da continuidade e categorias enraizadas
nas divisões objetivas do espaço social emergem como
entidades ativas (WACQUANT, 2013, p. 90).

SUMÁRIO 74
Mario Grynszpan (1999) contribui para esta pesquisa ao tra-
zer a associação entre universidade e mobilidade social. Segundo
o pesquisador, há relação entre o peso da escolaridade e o acesso
ao prestígio e recursos ascensionais entre grupos médios e superio-
res. Ele ressalta em seu estudo que, paulatinamente, “a propriedade
vinha perdendo força como princípio básico de distinção, enquanto
as chamadas profissões — a Advocacia, a Medicina e a Engenharia
— ganhavam um progressivo reconhecimento” (GRYNSZPAN, 1999,
p. 72-73). Logo, o capital social das relações pessoais permite não
apenas o ingresso na carreira universitária, como confere aos forma-
dos acesso a uma bem-sucedida trajetória política, na mesma medida.

Algumas figuras históricas mostram como os engenheiros


integravam o projeto nacional de modernidade e progresso. Maria
Alice Carvalho (1998) desenvolve estudo sobre a trajetória do enge-
nheiro e intelectual André Rebouças (1838-1898). A partir da análise
dos valores, ideias e relações com a tradição ibérica de Rebouças,
Carvalho expõe a Engenharia como ideologia profissional envolta à
questão da burocracia profissional e a iniciativa empresarial, centrais
nas concepções de civilização e modernidade do século XIX. Outro
trabalho relevante é o de Salgueiro (1997) sobre o engenheiro Aarão
Reis (1853-1936)11, que aborda como as noções de progresso vão se
sobrepondo ao trabalho deste engenheiro. Neste trabalho, Salgueiro
(1997, p. 143) destaca que “a busca por racionalidade administrativa,
precisão técnica e a organização dos canteiros de obras caracterizam
o trabalho de sua geração, que deixou um vasto material iconográfico
aberto à pesquisa” [grifo nosso].

A relação entre Engenharia, poder e modernidade se esta-


belece de forma consistente entre os séculos XIX e XX, sobretudo
em estados centrais para a política e economia do Brasil. Minas
Gerais tem sua história política diretamente afetada pelas tensões

11 Engenheiro responsável pelo planejamento urbano de Belo Horizonte no século XIX, a então nova
capital mineira.

SUMÁRIO 75
e conversões de interesses dos políticos tradicionais e do protago-
nismo político dos bacharéis afeitos ao projeto desenvolvimentista.
Diferentes trabalhos de historiadores detalham como espaços jurídi-
cos, educacionais e setores produtivos atuavam integrados ao poder
centralizado das elites políticas, ao mesmo tempo que seguiam um
processo de burocratização administrativa das instituições públicas
e racionalização de métodos e meios de controle produtivo e social,
sobretudo nas áreas do Direito, Educação e Engenharia12, do século
XIX ao auge do bacharelismo. Especificamente no caso dos enge-
nheiros, eles definiram com frequência os parâmetros de urbaniza-
ção e projetos de futuro das cidades e, apoiados pela opinião pública,
ocuparam cargos burocráticos centrais na administração pública e
cargos políticos, sendo o ex-presidente Itamar Franco (1930-2011) a
epítome do prestígio político que os engenheiros alcançaram.

Os êxitos dos bacharéis de Minas Gerais na política nacional


foram fomentados pela relevância econômica do estado que, ao fim
do Império (1822-1889), tinha a maior população escravizada do país
e, junto a São Paulo, concentrava a produção cafeeira e o domínio
das decisões políticas nacionais em negociação e tensão constante
com as outras províncias politicamente estabelecidas13. A tradição
política coronelista, personalista e patrimonialista das elites minei-
ras foi mantida mesmo quando os coronéis estenderam seu poder
local por meio de legitimação e patrocínio de políticos na Primeira
República (1889-1930) (FAORO, 2001; VISCARDI, 2012; FERREIRA

12 As Academias de Direito, posteriormente Faculdades de Direito, buscavam na criminologia positi-


vista meios de hierarquizar sujeitos em bases biológicas para definir perfis que se enquadravam
em determinadas atividades laborais, bem como os que deveriam retirados da sociedade em
prisões e asilamentos (PINTO, 2010); na Educação, problemas republicanos como analfabetismo,
métodos de ensino e inspeção escolar eram o foco da formação de professores e da criação de
Liceus voltados para educar moralmente e para o trabalho pessoas com “tendências à degenera-
ção” (CARVALHO; NETO; CARVALHO, 2016); e, anterior ao período republicano, o setor de engenharia
já movimentava o uso do poder e da economia para a racionalização em direção à alta eficiência
da extração de minérios escoamento da produção agrícola e mineradora em um sistema integrado
de transportes, além de pensar a urbanização (GODOY; BARBOSA, 2008; FISCHER, 2014).
13 Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco.

SUMÁRIO 76
e PINTO, 2017). Havia pouca disposição para rupturas institucionais
mesmo após o fim da Primeira República, embora as elites mineiras
assumissem como orientação político-administrativa o desenvol-
vimentismo – cujo auge se deu à época do governo de Juscelino
Kubitschek (1956-1961).

Para Dulci (1984), as elites mineiras dispuseram de tempo e


condições para elas mesmas promoverem as mudanças, porém sem
rupturas (caráter de conservação). Havia alto grau de homogeneidade,
comunhão de perspectivas e objetivos essenciais. O crescimento e
a diferenciação da economia mineira, portanto, pressupunham certo
nível de coesão que permitiu uma marcante continuidade de ações
desenvolvimentistas entre governos que se opunham em relação às
plataformas políticas. A opção pelo desenvolvimentismo através da
urbanização privilegiava novas tecnologias de transporte e constru-
ção civil, o que deu aos engenheiros vinculados às elites mineiras
capital político, autoridade e legitimidade para ingressar na política
nacional. Salgueiro (1997), por exemplo, descreve essa dinâmica em
seu estudo e nos ajuda a refletir sobre os engenheiros mineiros e sua
atuação política em termos de planejamento urbano:
Aarão Reis, porta-voz de uma engenharia urbana nascente
[final do século XIX], encarna a figura do “funcionário” no
momento em que a gestão de obras públicas é imprescin-
dível à modernização da cidade; seu papel é o de um repu-
blicano convicto “a serviço da nação”, que procura, porém,
não tomar partido político (SALGUEIRO, 1997, p. 131-132).

A figura política de Itamar Franco é forjada nessas condições


sócio-históricas. Sua história nos conduz por elementos como a
origem social, a escolha profissional e o posicionamento no campo
político; tratados até aqui de modo mais amplo, foram se transfor-
mando em capital político na trajetória do indivíduo.

SUMÁRIO 77
O MINEIRO POR ITAMAR,
ENTRE O BONDE E O FUSCA
Itamar Franco ficou conhecido em sua vida pública pela
imagem peculiar de seu topete caricatural, por polêmicas das quais
os políticos populares costumam se afastar14 e, obviamente, como
presidente da República (1992-1995), principal cargo político por ele
ocupado. O auge de sua vida pública é resultado de uma trajetó-
ria política nacional como senador (1975 a 1989) e vice-presidente
(1990-1992), além de décadas na vida política local na cidade de
Juiz de Fora (MG), iniciada ainda nos corredores da Faculdade de
Engenharia da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Como
homem público, Itamar atravessa momentos ditatoriais, democrá-
ticos e diversos planos de desenvolvimentos nacionais ocupando
posição privilegiada no campo político. A carreira política extensa de
Itamar até a presidência da República não é fruto do acaso ou um
passo natural de um político em ascensão, mas uma conjugação de
origem, profissão, leitura histórica e vínculos sociais, tudo isso cons-
tituindo um dos capitais políticos mais poderosos do Brasil no último
século. Antes de abordarmos a relação entre Engenharia e Política
na carreira de Itamar, é necessária uma breve contextualização da
vida de nosso personagem.

Itamar Augusto Cautiero Franco nasce a bordo de um navio,


no litoral da Bahia, no ano de 1930, mas cresce e forma seus laços de
sociabilidade em Juiz de Fora, no estado de Minas Gerais. Sua vida
política começa a se desenvolver ainda na Escola de Engenharia de
Juiz de Fora, por meio das suas atividades extracurriculares ligadas
aos esportes. Ele foi presidente da Liga Universitária Juiz-forana de

14 Como o Carnaval de 1994 e o episódio com a modelo Lilian Ramos. Para saber mais, ver reportagem
“Como Itamar Franco lidou com o escândalo de Carnaval de 1994: 'Ninguém avisou'” (FERRARI, 2023).

SUMÁRIO 78
Esportes, em 1951 e, posteriormente, foi eleito presidente do Diretório
Acadêmico da Engenharia Clorindo Bournier.

Em sua formatura do curso de Engenharia e Eletrotécnica, no


ano de 1954, temos o exemplo de como Itamar era capaz de articular
sua posição, influência e retórica desde sua juventude, quando foi
escolhido entre 43 alunos para ser o porta-voz dos formandos. Itamar
usa esta posição para além do rito cerimonial, uma vez que seu dis-
curso foi um posicionamento contra as famílias tradicionais das elites.
Ele também exprimiu seu alinhamento com o desenvolvimentismo
ao discursar sobre a relação entre os engenheiros como classe pro-
fissional e a política na modernidade. É preciso pontuar que o curso
de Engenharia ainda era dominado pelos filhos das elites, tendo o
próprio Itamar “herdado” a profissão do pai e, com ela, os instrumen-
tos e livros deixados por ele e guardados pela mãe (YAZBECK, 2011).
Ou seja, não só o diploma, mas os instrumentos de trabalho legitima-
vam Itamar como um sujeito “autorizado” pela “tradição” a frequentar
sua classe profissional e falar por ela. Paralelo à atuação de Itamar
Franco, a Escola de Engenharia já estava permeada por indivíduos
ligados à política. O paraninfo da turma de Itamar, por exemplo, foi
o Deputado Federal José Bonifácio Lafayette de Andrada (da UDN15,
opositor de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek).

Após a formatura, Itamar ingressou na política dos partidos


filiando-se ao Partido Trabalhista Brasileiro – PTB. Nesta agremia-
ção, ele se candidatou para a Câmara Municipal de Juiz de Fora em
1958, e concorreu à vice-prefeitura da cidade em 1962, não obtendo
êxito. Mesmo com a entrada do Regime Militar (1964-1985), marcado
pelo autoritarismo e supressão das liberdades políticas, da liber-
dade de expressão e das atividades partidárias, Itamar ingressa no
Movimento Democrático Brasileiro – MDB (oposição institucionali-
zada16), se elegendo prefeito de Juiz de Fora em 1966, elegeu seu

15 Sobre os bacharéis e a UDN cf. Chaloub (2019).


16 Cf. Kinzo (1988).

SUMÁRIO 79
sucessor em 1970 e se reelege em 1972. Assim, Itamar se estabelece
como liderança responsável pela hegemonia emedebista na cidade,
sendo considerado um “nó” de uma rede em Minas Gerais que tam-
bém congregou nomes da Aliança Renovadora Nacional – ARENA
(partido de sustentação do Regime), segundo Reis (1979).

Com trânsito na oposição e no próprio partido, Itamar Franco


conquistou a cadeira de senador da República por Minas Gerais
em 1974, ainda na metade de seu segundo mandato como prefeito,
sendo reeleito para o cargo nacional em 1982. Na primeira eleição
presidencial após fim do regime autoritário, em 1989, ele integrou a
candidatura vitoriosa encabeçada por Fernando Collor de Mello, na
condição de vice-presidente da República. Assumiu a presidência da
República em 1992, após o impeachment de Collor, atingindo o auge
de sua carreira pública. Seu governo foi marcado pelo lançamento do
Plano Real e pelo “Plebiscito de 1993”, que deliberou sobre o tipo de
regime e sistema de governo nacional.

Itamar concluiu seu mandato em 1995, quando passou a


faixa de presidente para Fernando Henrique Cardoso, e continua
sua vida política no novo governo como embaixador em Portugal e
na Organização dos Estados Americanos - OEA. Em 1998, é eleito
governador do estado de Minas Gerais (1999-2002), cargo que,
segundo a sua biografia autorizada, era o que mais almejava con-
quistar, o que demonstra como a política estadual mineira é uma
fonte peculiar de poder e prestígio. Em 2003, no governo de Luís
Inácio Lula da Silva (2003-2006), foi nomeado embaixador na Itália e,
ao deixar essa função, ocupou cargos na administração indireta até
que, em 2008, concorre mais uma vez ao Senado Federal. Foi eleito
pela terceira vez e faleceu em pleno exercício do mandato, em 2011.
Os ritos fúnebres, com honras de presidente da República, ocorrem
em Juiz de Fora: o velório acontece nas dependências da Câmara
Municipal e o sepultamento foi no Cemitério Municipal, no túmulo da
família materna, conforme sua vontade.

SUMÁRIO 80
Esse breve resumo da trajetória pública e dos cargos ocupa-
dos por Itamar ao longo da vida mostra a sua relevância no cenário
brasileiro e justifica um estudo sobre essa personagem política. Sua
carreira fez com que vivesse e participasse de diferentes processos
e momentos históricos, ocupando cargos locais, estaduais e federais
na administração pública, no poder Legislativo e no poder Executivo.

A associação entre universidade e mobilidade social é interes-


sante para pensar o período de formação de Itamar. O capital social,
estabelecido a partir de suas relações pessoais, permitiu o ingresso
na carreira universitária e, como consequência, o acesso a uma bem-
-sucedida trajetória política. Um exemplo dessas relações pessoais
que legitimaram Itamar como homem público foi o modo como ele
acumulou funções de administrador paralelamente a sua construção
como político. Em 1956, Itamar entra para o Departamento Nacional
de Obras e Saneamento - DNOS, sendo posteriormente nomeado
como funcionário do Serviço Social da Indústria - SESI, por influência
de um vereador amigo da família, cujo nome Yazbeck (2011) não cita,
passando de desenhista a chefe do serviço de Engenharia. O trân-
sito que Itamar Franco estabeleceu também entre seus adversários
políticos o permitiu acessar cargos na administração pública, como
a nomeação para diretor do Departamento de Água e Esgoto de Juiz
de Fora – DAE, entre 1963 e 1964, cuja indicação foi feita pelo seu
adversário político, Ademar Rezende de Andrade (YAZBECK, 2011).

Através da sociedade com o advogado Nilson Bohns Martins,


que seria seu futuro padrinho de casamento, e o engenheiro André
Hallack, Itamar assume a coordenação de obras importantes na
cidade17, como a Faculdade de Medicina, no bairro Santa Catarina,
marcando o início de uma longa relação com a UFJF. Sua empresa
de construção civil era conhecida pela sigla ITEC e, oficialmente, sig-
nificava Instalações Técnicas. Mas, para os amigos, a sigla significava

17 Para mais detalhes sobre as obras da ITEC, cf. Yazbeck (2011).

SUMÁRIO 81
Itamar Engenharia e Construções18, dando dimensão da sua rele-
vância pessoal nos negócios. A partir da ITEC, Itamar estende sua
atuação em projetos de prédios imobiliários e comerciais em Vitória,
no Espírito Santo (YAZBECK, 2011).

Ao longo de uma década, Itamar Franco se construiu publica-


mente como habilidoso político e administrador bem-sucedido. Esta
imagem foi trabalhada em sua primeira campanha para prefeitura de
Juiz de Fora, articulando juventude e espírito desenvolvimentista. O
programa político de sua primeira administração foi sustentado pelo
fato de ser o mais jovem eleito para o cargo na cidade, e sua juven-
tude era contrastada pelo currículo carregado de obras de infraestru-
tura. Quando governante, promoveu modificações na paisagem e no
cotidiano da cidade, conforme as promessas estabelecidas em sua
campanha. Nesse momento, Juiz de Fora, assim como várias cida-
des brasileiras impulsionadas pelo desenvolvimentismo, passava por
uma mudança em seu perfil, período marcado pelo êxodo rural e
pelo crescimento urbano intenso. A cidade passou de cerca de 128
mil habitantes na área urbana, no início da década de 1960, para 220
mil habitantes no início da década de 1970 (MOREIRA, 2012).
Isso significou um crescimento rápido e expressivo da
população urbana, em um período de crise na economia da
cidade, com pouca geração de emprego e renda, quando
ainda se iniciavam os investimentos em infraestrutura.
Este pode ser considerado um dos principais fatores para
os problemas de urbanização enfrentados pela população
de Juiz de Fora até pelo menos a década de 1980. O contin-
gente vindo do campo passou a ocupar zonas periféricas
da cidade sem que houvesse o planejamento necessário,
já que não contava com projetos de ocupação do solo.

18 Uma informação que não aparece na biografia de Yazbeck (2011) e no Memorial é o fato de Itamar
ter trabalhado no Curtume Krambeck como engenheiro. Como o próprio nome indica, o estabe-
lecimento pertencia à família de Anna Elisa Krambeck Surerus, com quem Itamar se casa em
1968. Acredito que essa informação é esquecida nas fontes oficiais por essa relação matrimonial.
Informações do Atlas da FGV e do Jornal do Brasil, disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/
dicionarios/verbete-biografico/itamar-augusto-cautiero-franco. Acesso em: 20 jan. 2018.

SUMÁRIO 82
Ruas eram abertas com a ajuda de máquinas e então pro-
cedia-se à construção das moradias sem que tivessem
sido implantadas redes de água ou esgoto, sem instalação
de redes de iluminação pública e sem disponibilização de
transporte adequado (MOREIRA, 2012, p. 65).

A primeira administração de Itamar proporcionou o projeto


de expansão da cidade por meio de incentivos às grandes empre-
sas e reequipamento da infraestrutura que buscava impulsionar o
desenvolvimento industrial. Entre as medidas estavam a implantação
do Distrito Industrial em Benfica, do sistema de Telecomunicações -
Telemusa, do sistema de abastecimento de água, a criação da UFJF,
a instalação de siderúrgicas e a reforma e ampliação de sua malha
viária, estimulando a vinda de novos moradores para o município
(MOREIRA, 2012). Na arena política, todas essas transformações
infraestruturais corresponderam a cerca de um terço das normas
aprovadas na cidade, o que mostra que a urbanização da cidade era
a pauta pública do momento. Tais projetos e leis diziam respeito às
transformações e ao crescimento urbano e populacional da cidade,
sendo referentes às áreas de água e esgoto, pavimentação, criação
de novos logradouros, bairros e ruas, desapropriação e doação de
imóveis, estabelecimento e regulamentação de novos serviços e
empresas (OLIVEIRA, 2015).

No cenário político nacional, apesar de compor o quadro


de oposição ao Regime, Itamar Franco correspondia ao modelo
tecnocrático de gestão fomentado pelos militares. Ele foi reconhe-
cido como o prefeito das obras19, o que mostra seu sucesso polí-
tico. Sendo bacharel em Engenharia e com os contatos políticos e
sociais, Itamar estava alinhado ao espírito de seu tempo, uma vez
que houve aumento do número de engenheiros e economistas na
Câmara e no Senado na esteira da ascensão do discurso tecno-
crático (CARVALHO, 2005). A esta altura, Itamar era maior do que

19 Sobre construção civil e empresas nacionais de construção pesada no período da ditadura, cf.
Campos (2012).

SUMÁRIO 83
seus feitos e plataformas de gestão. Ele estabeleceu uma identidade
política que o acompanharia nas décadas seguintes de vida pública,
sendo político-engenheiro e empresário do ramo, um resumo seu
caráter articulador, desenvolvimentista, tecnicista e burocrata.

Os feitos de Itamar em seu primeiro mandato na Prefeitura


de Juiz de Fora mostravam o apreço de diferentes setores da socie-
dade pelas novas maneiras de administrar voltadas para a busca de
eficácia e racionalização. E, dentro desse modelo, também havia a
questão da integração:
A integração de Minas ao “modelo brasileiro”, consumada
pelos governos dos anos 70, baseou-se no abandono da
identidade regional e particularmente na crítica da con-
ciliação. Buscava-se uma renovação acelerada, no com-
passo do regime, que incluía a mudança da concepção
ideológica das elites. O Diagnóstico da Economia Mineira,
polêmico estudo elaborado pela tecnocracia emergente
na segunda metade dos anos 60, fornecia um roteiro para
essa mudança, ao acentuar entre os fatores críticos, do
subdesenvolvimento estadual o comportamento dos polí-
ticos e a incapacidade dos empresários mineiros. Essa
postura refletia mais que uma rejeição tecnocrática da
irracionalidade que presidira aos arranjos políticos ante-
riores. Correspondia também à visão do empresariado
ajustado ao modelo brasileiro pós-64. Para esse setor
– secundado pela tecnocracia e pelos governos indica-
dos por Brasília – o ponto de referência deixava de ser
regional para tornar-se nacional e mesmo internacional.
O efêmero, porém significativo, crescimento industrial de
Minas na década de 70 deu-se dentro dessas coorde-
nadas. Seu êxito parecia confirmar o acerto da crítica às
concepções e métodos tradicionais das elites mineiras.
Contudo, a sedimentação dessa nova ideologia seria per-
turbada pelo processo de abertura política, uma de cujas
consequências tem sido a restauração do regional na
cena política (DULCI, 1984, p. 28).

SUMÁRIO 84
Isso é tratado claramente na biografia de Yazbeck (2011),
de maneira que
Itamar Franco não deixou passar batido o tema da inte-
gração – expressão dita e repetida pela Arena, a bandeira
fora por ele levantada bem antes, quando Juiz de Fora se
tornou a primeira cidade do interior de Minas Gerais, líder
da Zona da Mata, a reunir centenas de prefeitos, inde-
pendente de partidarismos, nos seminários realizados
em sua administração anterior. A lembrança dos nomes
ilustres que prestigiaram os eventos, como os do prefeito
paulistano Faria Lima, do ministro dos Transportes Mário
Andreazza e até do vice-presidente Augusto Rademaker,
além dos governadores Israel Pinheiro e Magalhães Pinto,
está aí para comprovar que “integração” era com ele
mesmo (YAZBECK, 2011, p. 127-128).

A trajetória política de Itamar Franco é composta por dicoto-


mias semelhantes àquelas que definiram o processo de moderniza-
ção brasileiro: tradição e moderno, velho e novo, progresso e atraso,
conservação e mudança (WERNECK VIANNA, 1996), em um con-
texto de modernização capitalista incentivado pelo regime autoritá-
rio (DINIZ, 1994). Sua marca política era tão forte que foi reconhecida
pelo público fora do ambiente político, sendo pessoa de interesse da
imprensa. O jornal britânico The Economist, por exemplo, publicou
uma matéria sobre Itamar neste período, referindo-se ao político
mineiro como “O maquinista que colocou o Brasil nos trilhos”20. Essa
metáfora pode ser relacionada ao fato de que a memória coletiva que
se tem e se pretende conservar através do Memorial da República
Presidente Itamar Franco (MRPIF) é a de Itamar como o “maqui-
nista” que recuperou o carro popular, ainda que custasse a saída dos
bondes de Juiz de Fora de circulação – um episódio controverso de
seu primeiro mandato como prefeito.

20 Yazbeck (2011) cita o jornal, mas ainda não foi possível encontrar o original.

SUMÁRIO 85
O episódio da retirada de circulação dos bondes em Juiz de
Fora mostra a deferência com a qual Itamar foi retratado na imprensa
desde sua juventude. O Diário Mercantil, de 10 de abril de 1969, anun-
ciava que os bondes fariam sua última viagem naquele mesmo dia,
às nove horas da noite, depois de 88 anos em funcionamento pres-
tando serviços à população e “ter dado expressiva colaboração para
o progresso da cidade”. A programação do dia foi elaborada pelo
Gabinete do então prefeito Itamar e pelo Departamento Autônomo
de Turismo, com direito a cortejo com os últimos bondes saindo do
Parque Halfeld, parque central da cidade, até o fim da linha no bairro
São Mateus. Houve, na ocasião, bonde infantil e bonde com baterias
de escolas de Samba, blocos e grupos, além de foguetório e outras
atrações, colocando fim àquele tipo de transporte (coletivo e público).
A reportagem também aborda um pouco a explicação da medida,
que visava o asfaltamento das ruas para a passagem de carros:
A necessidade de asfaltamento de ruas, deslocamento
dos postes centrais e melhor escoamento de tráfego, fez
com que a Municipalidade, aos poucos, fosse eliminando
trechos e linhas inteiras. Fábrica e Poço Rico foram as
primeiras a desaparecer. Depois, Vitorino Braga, Costa
Carvalho, Bonfim, Santa Terezinha, Passos e Mariano
Procópio desapareceram, permanecendo apenas a de
São Mateus, que hoje também desaparece para que
a Prefeitura possa dar sequência à “nova Rio Branco”21
e proceder ao asfaltamento da Rua São Mateus (Diário
Mercantil, 10 de abril de 1969).22

21 A Avenida Rio Branco tinha belos casarões que acabaram sendo derrubados para o progresso
passar. Outra coisa retirada para obras de infraestrutura foram as árvores que existiam em tal
avenida, como informa Zaguetto (2012).
22 Ainda não consigo visualizar o que é a cidade de Juiz de Fora nesse momento, em termos de
bairros. Mas acredito que as linhas de bonde serviam, principalmente, à região central e a alguns
bairros próximos a ela, não incluindo a Zona Norte (já existente) e os bairros mais afastados da
Zona Leste. Assim, é necessário pensar qual noção de progresso era essa e para qual lugar estava
sendo levada, onde estavam sendo feitas as obras, em geral, e que Juiz de Fora estava sendo
contemplada, levando em conta também o binômio centro urbano-periferia.

SUMÁRIO 86
Uma foto do prefeito no bonde contém a seguinte legenda:
Itamar Franco, ao lado de José Cesário, diretor do DAT
(Departamento Autônomo de Turismo), e do secretário
Mauro Durante, em primeiro plano, embarca na última
viagem dos bondes: o transporte urbano que dava a Juiz
de Fora um charme especial, desde o início do século
20, sai de cena em 11 de abril de 1969, abrindo espaço à
modernidade (YAZBECK, 2011, p. 123).

O fim do bonde exemplifica as dicotomias comentadas


anteriormente. Havia apego à história daquele meio de transporte,
explícita no saudosismo por parte dos mais velhos, enquanto as “exi-
gências” do progresso e da modernidade, representados na ocasião
pelo asfalto e pelo carro popular, dotaram a ocasião de romantismo
e charme. Itamar Franco sabia construir sua identidade política nes-
ses episódios históricos. Ele também comemorou oportunamente o
tricampeonato mundial da Seleção Brasileira de Futebol na Avenida
Rio Branco, principal avenida da cidade. O trecho foi tomado de
carros Volkswagen, como Fuscas e Kombis, entre outros, símbo-
los do chamado “milagre econômico” da classe média brasileira
(YAZBECK, 2011, p. 124).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente texto analisa como o bacharelismo e, mais espe-
cificamente, o prestígio político que os bacharéis em Engenharia
alcançaram na esteira do projeto de modernização do Brasil. Neste
cenário, a situação de Minas Gerais era particularmente ressaltada
devido a sua importância econômica e política no cenário nacional.
Internamente, o estado tinha um projeto de modernização paralelo
às ocorrências do governo central da República. Outro aspecto
abordado é que o processo de modernização no século XX foi
marcado pelo desenvolvimento de capital político dos bacharéis,

SUMÁRIO 87
com destaque para os engenheiros que encarnavam em seus proje-
tos de urbanismo os anseios de modernização e controle social por
parte das elites e da classe média.

Neste contexto, mostramos como esses elementos se arti-


culam na construção da identidade e carreira política de Itamar
Franco. A passagem do capital social em capital político, o con-
traste dos projetos democráticos e modernos em comparação ao
autoritarismo e tradicionalismo da política nacional, algumas obras
de urbanização e infraestrutura que comunicavam aos anseios de
seus eleitores, adversários e aliados políticos. Ressalto que o mais
importante capital político de Itamar foi sua formação de enge-
nheiro, o primeiro elemento de legitimidade que capacitava o jovem
recém-formado a desempenhar funções públicas e avançar politica-
mente em sua carreira (MIGUEL, 2003), construindo suas redes de
relações sociais através e em função do projeto desenvolvimentista
proposto pelos militares. A Engenharia levou Itamar ao Senado, casa
legislativa paulatinamente ocupada por colegas de formação, na
qual ele se projeta como a “voz de Minas”, cuja mineiridade com-
portava as dicotomias abordadas no pensamento social brasileiro
(ARRUDA, 1990; DULCI, 1984).

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SUMÁRIO 92
4
Victor Coutinho Lage

AMEFRICANIDADE
E PRETUGUÊS:
A FALA DO LIXO DA LÓGICA23

23 A escrita deste texto contou com a assistência da estudante Ana Muniz, financiada pelo Edital
PIBIC/UFBA 2018-2019. Versões preliminares foram apresentadas em três ocasiões: na XV Semana
de Relações Internacionais da PUC-SP, ocorrida em 2017; em palestra na Escola de Belas Artes
da UFBA, em 2019; e no Colóquio (Re)leituras desde o pensamento social brasileiro – um balanço
crítico, realizado em 2022. Agradeço, respectivamente, a Natália Félix, Fábio Gatti e Sergio Tavolaro,
o convite para cada um desses eventos, nos quais recebi importantes comentários sobre algumas
das ideias expostas aqui. Dedico o texto ao Sindicato de Trabalhadores(as) Domésticos(as) do
Estado da Bahia (Sindoméstico-BA), sem o qual certamente eu não teria compreendido uma
parte importante da força da interpretação do Brasil (e do mundo moderno) de Lélia González.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.4
“O lixo vai falar”.
Lélia Gonzalez

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O debate acerca do conceito de “agência”, na teoria política
(incluindo o que se denomina como teoria política internacional)
e na teoria sociológica, vem conferindo uma atenção mais intensa
nas últimas décadas aos aspectos históricos e contemporâneos que
ligam a formação da modernidade aos processos de colonização.
Tem sido destacada, ainda, a importância de se repensar a agência
como algo heterogêneo e atravessado pela interseccionalidade de
marcadores de discriminação, tais como raça, etnia, gênero, classe,
sexualidade, entre outros.

Nesse sentido, de acordo com John Hobson e Alina Sajed


(2017), mostra-se fundamental problematizar concepções de agên-
cia que incorram na negação ou na simplificação de “perspectivas,
atores e mundos não ocidentais” (p. 548). Em suas palavras, o “não-
-Ocidente” por vezes é retratado como vítima silenciosa, “incapaz de
escapar do poder esmagador de hiper agência [hyper-agential] do
Ocidente” (p. 548), ao passo que, em outros casos, ele é associado
a formas grandiosas, heroicas ou românticas de desafio ou resistên-
cia, porém com “pouco ou nenhum impacto na política global” (p.
548). Isso não significa dizer que processos de silenciamento e resis-
tência não sejam identificados no chamado “mundo não ociden-
tal”. Aponta-se, no entanto, para a necessidade de se evitar que as
complexidades desse mundo (e de sua relação com outros mundos)
sejam reduzidas apenas a esses termos, de modo a tornar a capaci-
dade e a efetividade da agência de subjetividades “não ocidentais”
compreensíveis unicamente como “resistência” ou “silenciamento”.

SUMÁRIO 94
Para não perder de vista essas complexidades, Hobson e Sajed (2017)
apontam para o modo como essa agência opera de maneiras varia-
das, abarcando, por exemplo, estratégias cotidianas, a reconstituição
de certas cosmologias e a mobilização de variados nacionalismos.
Assim, tratar a agência por prismas dicotômicos, como reforma/
revolução ou cooptação/transformação, mostra-se insuficiente ou
até contraproducente – tanto teórica quanto politicamente.

Neste texto, não pretendo abordar diretamente os debates


teóricos em torno das questões apontadas acima. Ao invés disso,
pretendo fazê-las ressoar por meio de uma interação com algumas
das contribuições conceituais de Lélia Gonzalez, com destaque para
suas categorias de “pretuguês” e “amefricanidade”. Ao situar a forma-
ção brasileira na dinâmica internacional do colonialismo e do imperia-
lismo, o pensamento de Lélia, como pretendo deixar claro, incide de
maneira complexa e produtiva na discussão contemporânea acerca
da relação entre interseccionalidade e agência “não ocidental”. Meu
argumento, mais precisamente, é o de que as categorias mencio-
nadas acima compõem uma teorização sobre a agência que é ao
mesmo tempo interseccional, indisciplinar e internacional, expondo,
dessa forma, a relação que colonialismo, imperialismo, língua, territo-
rialidade, capitalismo, racismo, sexismo, entre outros aspectos, esta-
belecem entre si na (re)produção de marcadores de discriminação.

AMEFRICANIDADE
Lélia definiu “amefricanidade” como uma “categoria político-
-cultural”, formulando-a por meio de uma interpretação da formação
brasileira, assim como de suas interações com movimentos negros
no Brasil e com “manifestações culturais negras de outros países
do continente americano” (GONZALEZ, 1988, p. 70). Identificando
a marca indelével, porém política e historicamente silenciada,

SUMÁRIO 95
da agência negra no continente, Lélia disse ter sentido a necessidade
de pensar uma “categoria que não se restringisse apenas ao caso
brasileiro e que, efetuando uma abordagem mais ampla, levasse em
consideração as exigências da interdisciplinaridade” (GONZALEZ,
1988, p. 71). Mais do que interdisciplinar, esta categoria, eu diria, con-
voca a uma perspectiva “indisciplinar”.

Indisciplinar em dois sentidos. Por um lado, ela rompe com a


compartimentalização disciplinar ao trazer à tona aspectos multidi-
mensionais da agência interpretada24. A fluidez com que Lélia tran-
sita por psicanálise, filosofia, geografia, antropologia, artes, política,
história, linguística, economia política e sociologia parece ser mais
bem compreendida, caso não se avancem avaliações concentradas
em seu suposto uso “exato” ou "fiel” de fundamentos e conceitos
disciplinares. Ao invés disso, a maior força de sua perspectiva reside
na interpretação construída a partir da mobilização dos conceitos,
e não de sua mera aplicação. Por outro lado, a categoria em tela
ressalta como as agências amefricanas se conectam de formas
variadas a padrões interseccionais de discriminação, convocando
a uma reflexão sobre as múltiplas modalidades indisciplinares por
meio das quais processos de subalternização têm sido enfrentados
na formação do Brasil e do mundo moderno.

Talvez o principal exemplo dessa indisciplinaridade, no pri-


meiro sentido acima, esteja na mobilização que Lélia faz da psica-
nálise25. O racismo é retratado, em sua abordagem, como “a sinto-
mática que caracteriza a neurose cultural brasileira” (GONZALEZ,
1983, p. 224) e que, articulado ao sexismo, carrega efeitos violentos
e silenciadores, em especial para as mulheres negras. Esses efeitos

24 Nesse primeiro sentido, aproprio-me livremente da definição que Jacques Rancière conferiu a seu
próprio pensamento como sendo “indisciplinar” (ver BARONIAN; ROSELLO, 2008).
25 Note, no entanto, que os dois sentidos de "indisciplinaridade" estão conectados, uma vez que, por
exemplo, é através deste tipo de engajamento com a psicanálise que Lélia é capaz de lançar luz
sobre (a multifacetada) agência indisciplinar amefricana.

SUMÁRIO 96
são interpretados como um modo de "ocultação” ou "esquecimento",
ato constitutivo daquela neurose e benéfico à pessoa neurótica –
ou, pode-se dizer, à pessoa que, ao endossar o mito da democracia
racial no Brasil, é por ele privilegiada, a despeito deste ser um pro-
cesso consciente ou não26.

Ao comparar Brasil, África do Sul e Estados Unidos, Lélia


recorre à categoria psicanalítica da “denegação” para nomear a ope-
ração do racismo à brasileira (GONZALEZ, 1988, p. 72)27. A mobili-
zação da categoria freudiana “Verneinung” é mediada pela definição
que lhe é dada por J. Laplanche e J.-B. Pontalis: “processo pelo qual o
indivíduo, embora formulando um de seus desejos, pensamentos ou
sentimentos, até aí recalcado, continua a defender-se dele, negando
que lhe pertença” (LAPLANCHE E PONTALIS, 1970 apud GONZALEZ,
1988, p. 69)28. Ou seja, é por meio da afirmação contínua de que o país
é definido por uma democracia racial, e por se falar persistentemente
na contribuição da cultura africana, especialmente por intermédio
das mulheres negras, para a cultura brasileira, que a pessoa neurótica
nega e dissimula o racismo existente no país (e o seu próprio). Como
argumentam Carla Rodrigues e Juliana do Moraes Monteiro (2020),

26 Esse argumento se liga a uma crítica de Lélia àquelas correntes de pensamento de esquerda e
marxistas, suas contemporâneas, que se concentram exclusivamente nas relações de classe ou
que a essas relações atribuem precedência sobre as demais. A diluição das questões racial e de
gênero na luta de classes significa para Lélia que “certas posições de esquerda nada mais fazem
do que reproduzir o mito da democracia racial, criado pelo liberalismo paternalista que eles dizem
combater” (GONZALEZ, 1982, p.54). Ver também Bairros (2000).
27 Sobre o contraste entre os racismos no Brasil, nos Estados Unidos e na África do Sul, ver, por exem-
plo, Kabengele Munanga (2017, p.33-38). Recorrente no debate nacional e internacional sobre as
relações raciais, essa comparação por vezes é sustentada pela afirmação de que, ao contrário do
que ocorreu nos dois últimos países, aqui não teria havido uma codificação legal de segregação
racial. No entanto, ver Thula Pires (2016), que fornece um estudo detalhado sobre a relação histó-
rica entre racismo e direito no Brasil. Vale notar, ainda, que esse mesmo contraste foi retomado,
principalmente por intelectuais negras(os) no Brasil, como Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento,
exatamente para a crítica ao racismo por “denegação” (Lélia) ou “mascarado” (Abdias) que marca
as relações raciais no país.
28 Lélia cita o livro Vocabulário da Psicanálise (Santos: Livraria Martins Fontes, 1970), de J. Laplanche
e J.-B. Pontalis.

SUMÁRIO 97
“[a]o insistirmos no mito da democracia racial e na tese de que ‘não
existe racismo no Brasil’, a ênfase na negação acaba por delatar o
caráter denegatório do conteúdo” (p. 100). Dito de outro modo, essa
ênfase faz com que se tome consciência, precisamente por meio do
discurso denegatório, daquilo que se pretendia ocultar: o racismo
estruturante da sociedade brasileira. Por isso, seguem, “pensar o
racismo como Verneinung pode ser uma possível reinscrição ética
para nossa subjetividade tão difusa e uma forma de aliviar nosso
sofrimento com os fantasmas da colônia” (p. 102)29. A categoria da
amefricanidade busca explicitar o racismo, tirando-o do modo dene-
gatório, e ainda conceber outra maneira de se pensar as relações
sociais (inclusive raciais e de gênero) na Améfrica.

O engajamento indisciplinar com a psicanálise ainda possui


outro ângulo. A partir da leitura de Jacques-Alain Miller, segundo a
qual a linguagem recebeu uma abordagem diferente com Sigmund
Freud e Jacques Lacan, Lélia nota, no texto sobre racismo e sexismo
na cultura brasileira (GONZALEZ, 1983), como a psicanálise fez seu
caminho procurando aquilo que a lógica joga fora como erros ou
desvios do uso padrão da norma. Apontando uma série de instân-
cias, nas práticas cotidianas e históricas brasileiras, nas quais as
pessoas negras, em particular as mulheres, foram silenciadas, Lélia
associa o lixo produzido pela lógica predominante às posições que
são atribuídas a essas pessoas no enquadramento hegemônico

29 Rodrigues e Monteiro (2020), Ambra (2019; 2021) e Silveira (2022) exploraram de maneiras
muito profícuas a relação do pensamento de Lélia com a psicanálise. Por outra via,
baseando-se na teoria do reconhecimento de Axel Honneth, Ricardo Fabrino Mendonça e
Nathália França Figuerêdo Porto (2017) argumentam que o alegado valor positivo atribuído à
figura da pessoa negra na formação brasileira a construiu como “mero corpo em movimento
(no trabalho, no sexo, na dança, no esporte) ou fomentou o “mito de uma sociedade
harmônica que não necessita de mudanças estruturais e de políticas raciais” (p.164). Nessa
linha, a noção de "democracia racial" articula um "reconhecimento como ideologia" que está
intrinsecamente ligado ao "racismo por denegação”.

SUMÁRIO 98
da sociedade brasileira e, de maneira mais geral, da forma-
ção do mundo moderno30.

A problematização da relação entre lixo e lógica leva Lélia a


afirmar o seguinte:
E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com
todas as implicações. Exatamente porque temos sido
falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala
própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, por-
que falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos
nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa
(GONZALEZ, 1983, p. 225).

Esse lixo tem sido historicamente constitutivo, por meio do


ato denegatório, da lógica racista e sexista hegemônica da socie-
dade brasileira. Assim, ao se abrir ao que a lógica torna lixo, o ato
de falar expõe-se como aquilo que é irredutível à afirmação de uma
identidade, ainda que se valha dela. Continuarei a desdobrar esse
ponto nas seções seguintes.

30 De acordo com Luiza Bairros (2000) e Bianca Vieira (2015, p. 216), o engajamento de Lélia com a
psicanálise, bem como com o candomblé, foi crucial para sua autoidentificação como mulher ne-
gra. Conforme destaca Pedro Ambra (2021), a psicanálise, em sua abordagem, contribui para que,
junto com a dimensão material da violência e da distribuição desigual de direitos e privilégios, se
chame a atenção para o modo como o “indivíduo branco” nem sempre sustenta seu lugar de poder
por ações “pautadas por uma lógica da consciência”. (O texto de Ambra (2021) não está paginado
e pode ser acessado através do link a seguir: https://revistarosa.com/3/as-pedras-de-exu. Acesso
em: 7 dez. 2022). Vale ressaltar que a interação com a psicanálise trouxe, na década de 1980, outro
notável estudo sobre o racismo no Brasil: o livro de Neusa Santos Souza (1983), Tornar-se negro:
ou as vicissitudes da identidade do negro brasileira em ascensão social. Antes disso, Virgínia Leone
Bicudo (2010), que viria a se tornar uma das protagonistas da institucionalização da psicanálise
no país, recorreu à psicologia social e à psicanálise, entre outros campos de conhecimento, em
seu estudo sobre as atitudes raciais no estado de São Paulo, apresentado em 1945 à Escola Livre
de Sociologia e Política de São Paulo, com o título Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São
Paulo. Agradeço à Vitailma Santos, cuja pesquisa sobre Virgínia Bicudo me fez estar atento à sua
importância para a interpretação das relações raciais no Brasil. Luiza Nasciutti (2022) publicou
recentemente uma excelente resenha do livro de Neusa, por ocasião de sua reedição em 2021,
e vem conduzindo uma pesquisa de doutorado com enorme potencial de contribuição para os
estudos sobre Neusa.

SUMÁRIO 99
(Há muitas maneiras pelas quais o "lixo” fala através da
atuação de Lélia dentro e fora dos contextos acadêmicos. Aqui,
vou destacar apenas uma entre as muitas linhas de força abertas
por sua perspectiva.)

CATEGORIA INTERSECCIONAL E SISTEMA


DE REFERÊNCIA INTERNACIONAL
Como visto acima, o engajamento de Lélia com a psicanálise
aponta para determinado lugar – o lixo – atribuído à subjetividade
genderizada e racializada da mulher negra na lógica da formação
brasileira. Para que essa fala – a fala do lixo – seja compreendida,
entretanto, a abordagem elaborada se mostra radicalmente sensível
à interseccionalidade da operação dos marcadores de discrimina-
ção. Mais precisamente, é por meio de sua fala que a subalternidade
colocada no lixo pela lógica hegemônica brasileira, cuja formação
é indissociável da construção internacional do mundo moderno,
irrompe de modo interseccional. Antes de retornar a isso, uma rápida
digressão sobre o conceito de interseccionalidade me parece útil.

(Não pretendo sugerir que o pensamento de Lélia teria “ante-


cipado” a discussão sobre interseccionalidade, tampouco é meu
objetivo “aplicar” a ele a teorização contemporânea sobre a intersec-
cionalidade. O que me interessa é cultivar um diálogo, de modo que
os dois lados se fortaleçam mutuamente)31.

31 Devo esta observação a um comentário feito por Marta Fernández na defesa de dissertação de
Fernanda Cardoso Fonseca, intitulada “Nossa Améfrica Ladina: o pensamento (decolonial) de Lélia
Gonzalez”, defendida, em 2021, no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da
Universidade Federal da Bahia. O trabalho de Fonseca (2021) desenvolve um profícuo diálogo entre
Lélia e o pensamento decolonial.

SUMÁRIO 100
"Interseccionalidade", em uma de suas primeiras formula-
ções, busca ressaltar a importância de se tratar das diferenças inter-
nas a grupos feministas e antirracistas e, portanto, das identidades
situadas nos "padrões de intersecção do racismo e do sexismo”
(CRENSHAW, 1991, p. 1243; ver também CRENSHAW, 2002).
Crenshaw (1991, 2002), por quem o conceito se tornou conhecido
nos contextos acadêmicos, relaciona-o a múltiplas dimensões: às
posições estruturais que as subjetividades marginalizadas ocupam;
à ação dos movimentos feminista e antirracista; e à construção cul-
tural daquelas subjetividades32.

Essa multiplicidade não é entendida como se os marcadores


pudessem, a princípio, ser isolados uns dos outros, mas sim por meio
de uma abordagem relacional atenta ao modo como sua intersecção
opera nos atos de (re)produção de desigualdades materiais e não
materiais, assim como nas heterogêneas modalidades de enfrenta-
mento dessas diferenças. Assim, a interseccionalidade nos impele,
por um lado, a rejeitar qualquer predefinição estanque no que diz
respeito aos marcadores de discriminação que se deva considerar
relevantes no ato de interpretação do mundo. Por outro, ela nos
leva a interagir com esse mundo sempre tendo esses marcadores
(raça, etnia, classe, gênero, sexualidade, nacionalidade, capacidade,
religiosidade, territorialidade...) em mente, ainda que o efetivo ato
de interpretação venha a colocar a necessidade de contemplarmos

32 Não estou dizendo que, antes do conceito ter sido cunhado em um texto acadêmico, não haviam
sido levadas adiante intervenções preocupadas com a interseccionalidade dos marcadores de
discriminação. Segundo Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2016), o artigo de 1991 de Crenshaw é
“um documento fundamental para marcar a tradução de entendimentos de interseccionalidade
que emanam do feminismo negro e de projetos similares de justiça social, e entendimentos de
interseccionalidade dentro da academia”; além disso, esse artigo “mostra não apenas a crescente
aceitação da interseccionalidade na academia, mas também como essa aceitação posteriormente
reconfigurou a interseccionalidade como uma forma de investigação e prática crítica” (p. 81). Hill
Collins (2015) considera “interseccionalidade” um "projeto de conhecimento de base ampla" (p. 3),
com três conjuntos de preocupações: como campo de estudo, como uma estratégia analítica e
como práxis crítica. Para alguns debates em torno do conceito, ver Davis (2008), Bilge (2013), Cho,
Crenshaw e McCall (2013), Hill Collins e Bilge (2016) e Akotirene (2018).

SUMÁRIO 101
um conjunto diferente e não antevisto dos mesmos. O ponto central
reside em mobilizar o conceito para a problematização de processos
de subalternização, sempre historicamente situados.

Por outro ângulo, pode-se dizer que a mobilização do con-


ceito deve estar atenta à prática dos movimentos sociais e às rela-
ções de poder que os atravessam, a fim de que seu propósito crítico
não seja esvaziado. Ao mesmo tempo, não se pode reduzir o con-
ceito a preocupações práticas e relações de poder já estabelecidas,
caso contrário corre-se o risco de perder de vista a reconfiguração
incessante da dimensão interseccional dos marcadores de discri-
minação. Dessa maneira, a interseccionalidade exige uma teoria/
prática permanentemente (auto-)crítica que, a um só tempo, seja
sensível à diferenciação interminável de modos de subalternização
e à possibilidade – à inevitabilidade, talvez – de reprodução de cer-
tos modos de subalternização por parte mesmo de quem luta por
combatê-los. Em suma, colocar o conceito em movimento passa por
questionar uma noção dicotômica de teoria e prática, sem com isso
fundir uma à outra.

Vale notar, por fim, que a proliferação de abordagens inter-


seccionais nos anos 2000 – o que Hill Collins e Bilge (2016, p. 88-113)
nomearam como sua “difusão” ou “dispersão global” [global disper-
sion] – ensejou uma ampla gama de interações com o conceito, por
vezes antagônicas. Isso reforça a importância de se entender sua
relação histórica com feministas negras (sobretudo nos Estados
Unidos) e com projetos de justiça social colocados em marcha fora
dos circuitos acadêmicos. Não se trata, com isso, de defender uma
definição do conceito que seria “mais autêntica” ou “genuína”, menos
ainda de reforçar apenas a sua dimensão “prática”. O ponto é, de um
lado, estar vigilante quanto às suas mobilizações despolitizantes e
embranquecedoras, dentro e fora dos circuitos acadêmicos (como
alertou, por exemplo, BILGE, 2013), e, cada vez mais, por empresas
privadas; e, de outro lado, não negligenciar o fato de que esses pro-
cessos de embranquecimento e despolitização fazem parte apenas

SUMÁRIO 102
de uma das dimensões de sua história, o que não invalida, de maneira
alguma, a força interpretativa que o conceito carrega quando mobi-
lizado em direções permanentemente sensíveis às reconfigurações
dos processos de subalternização ligados a classe, raça, etnia,
gênero, sexualidade, entre outros marcadores33.

Dito isso, volto a Lélia. A categoria de amefricanidade está


associada ao seu "feminismo afro-latino-americano” (GONZALEZ,
2011 [1988]; RIBEIRO, 2017, p. 25; RIOS E LIMA, 2020), atento às rela-
ções entre colonialismo, imperialismo e capitalismo, bem como às
intersecções de classe, gênero, sexo, patriarcado e raça34. Na cons-
trução teórica e política desse feminismo, Lélia interagiu mais inten-
samente com movimentos feministas e antirracistas, no Brasil e no
mundo, mas também esteve próxima a debates protagonizados por
movimentos indígenas e que hoje chamaríamos de LGBTQIAP+.35
De acordo com sua perspectiva, a desigualdade é tanto material
quanto subjetiva; e as subjetividades colonizadas, incluindo as pes-
soas negras, por vezes internalizam e, assim, reproduzem relações
coloniais (ver GONZALEZ, 1982, p. 54). Para entender como isso
ocorre, os marcadores de discriminação são discutidos, na sua abor-
dagem, em suas múltiplas dimensões: política, econômica, socioló-
gica, antropológica, histórica, psicológica. Remetendo-me ao que foi
dito anteriormente acerca da proposta de Crenshaw (1991, 2002), a

33 Em outro texto, ainda não concluído, estou levando adiante algumas das reflexões sinalizadas
nesses dois últimos parágrafos sobre a relação entre o pensamento de Lélia e os debates em torno
dos conceitos de “interseccionalidade” e “imbricação”. Aproveito para destacar os trabalhos de
Flavia Rios e Márcia Lima (GONZALEZ, 2020) e da União dos Coletivos Pan-Africanistas (GONZALEZ,
2018), que organizaram grande parte da produção de Lélia em duas excelentes coletâneas.
34 Lélia usa o conceito de “sexo” em um sentido que, posteriormente, viria a ser associado a “gênero”.
Sobre como a noção de “sexo” foi gradualmente ressignificada pela noção de “gênero”, ver, por
exemplo, Butler (2019) e Wilson (2021).
35 Ver, por exemplo, Gonzalez e Hasenbalg (1982) e Gonzalez (1991; 2011[1988]). Lélia expôs em várias
ocasiões a forma como os movimentos feministas brancos obliteravam a questão racial (e indí-
gena) e as dificuldades que ela mesma enfrentou interagindo com esses movimentos. Ver Luiza
Bairros (2000) e Alex Ratts (2022).

SUMÁRIO 103
abordagem de Lélia conecta ângulos estruturais da subalternização
à construção cultural de subjetividades subalternizadas, bem como à
ação dos movimentos sociais, em particular feministas e antirracistas.

A amefricanidade foi pensada, ainda, como uma forma de


lidar com uma contradição fundamental a ser enfrentada por “formas
político-ideológicas de luta e de resistência negra no Novo Mundo”
(GONZALEZ, 1988, p. 75), qual seja, a passividade em relação ao
imperialismo dos Estados Unidos. Lélia afirma que os termos "afro-
-americano” e "africano-americano", como utilizados por coletivida-
des negras estadunidenses, partem da premissa de que o país pode
ser tomado como equivalente à “América”, o que acaba por vezes
reproduzido passivamente em outros lugares. Nesse sentido, “[a]
s implicações políticas e culturais da categoria de Amefricanidade
(‘Amefricanity’) são, de fato, democráticas” (p. 76), na medida em que
permitem superar “as limitações de caráter territorial, linguístico e
ideológico” (p. 76), abrindo novas possibilidades não-homogenei-
zantes de compreensão das "Américas” como um todo.

Insisto no seguinte. O pensamento de Lélia não deve ser


visto como algo que homogeneíza os processos históricos e con-
temporâneos ligados seja à subalternização de subjetividades, seja
ao enfrentamento dessa subalternização. Tampouco estão em jogo
a romantização ou a heroicização da agência amefricana ou, ainda,
a noção de uma hiper-agência ocidental irresistível. Em vez disso,
aponta-se não apenas para os diferentes tipos de agência de resis-
tência e de luta que podem ser encontrados em variadas condições
históricas e geográficas (volto a esse ponto adiante), mas também
para a necessidade de uma atenção permanente aos mecanismos
por meio dos quais as desigualdades podem ser reproduzidas em
lugares previamente colonizados e pelas próprias subjetividades
subalternizadas. Isto se percebe de maneira nítida no engajamento
de Lélia com as feministas brancas, com movimentos negros pre-
dominantemente masculinos e, como visto acima, com a noção de
Afro-Americanidade.

SUMÁRIO 104
Ademais, seu pensamento contribui para certos debates
teóricos contemporâneos ao destacar a dimensão colonial e interna-
cional na construção de marcadores de discriminação. Por exemplo,
David Roediger (2015) salientou que os esforços dedicados ao estudo
de "Império e racialização fora da Europa” são fundamentais para a
"transformação das [Relações Internacionais]” (p. 199). Ampliando
a afirmação, tem-se que esses esforços são igualmente cruciais
para a teoria sociológica36. Charles Mills (2015, p. 206-208), por sua
vez, enfatizou a necessidade de se ir mais longe na investigação
de diferentes tipos de racismo na história e em diferentes lugares,
incluindo a sua reprodução entre os chamados povos "não-brancos".
Um dos exemplos que Mills menciona é o da América Latina, onde
os movimentos nacionais de independência não representavam
uma “libertação racial de indo- e afro-latinos(as), cujas desigual-
dades raciais sistemáticas sob a bandeira ilusória de 'democracias
raciais' continuam até hoje” (p. 208). Nesse sentido, a categoria de
amefricanidade não apenas oferece um caminho possível para o
entendimento daquilo que Roediger e Mills estão destacando, como
também contribui para que os debates sobre interseccionalidade
se atentem à dimensão internacional que atravessa a operação dos
marcadores de discriminação37.

Amefricanidade engloba uma intensa e variada dimensão


cultural e histórica "afrocentrada", incluindo diferentes modalidades
de interação, ou seja, heterogêneas formas de agência, tais como
“adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas”

36 Destaco, entre as muitas contribuições que já vêm sendo feitas nesse sentido na teoria socio-
lógica, o trabalho de Gurminder Bhambra. Sergio Tavolaro, por sua vez, vem explorando, nos
últimos anos, por vários ângulos, a relação entre interpretações do Brasil e teorias sociológicas
críticas da modernidade.
37 A coletânea de Persaud e Sajed (2018) reúne vários capítulos que buscam pensar esses marcado-
res em perspectiva global.

SUMÁRIO 105
(GONZALEZ, 1988, p. 76)38. "Améfrica", de acordo com Lélia, é um
“sistema etnogeográfico de referência”, uma criação de articulações
constantes entre referências negras presentes e passadas, perspec-
tivas "americanas” e "africanas” (p. 77)39. Esse sistema – que, como
se percebe, é internacionalizado – proporciona às pessoas negras
potencialidades para a articulação coletiva de arranjos sociais e
políticos alternativos. Recordando Hobson e Sajed (2017), com quem
abri este texto, a agência amefricana, na perspectiva de Lélia, não se
refere a vítimas silenciosas, tampouco a formas heroicas, românticas
ou grandiosas de resistência que não teriam, no entanto, impacto
relevante na política global. Também não se trata de atavismo ou
de uma utopia regressiva. A amefricanidade decreta a superação de
qualquer concepção “idealizada, imaginária ou mitificada da África”,
ao mesmo tempo em que permite se voltar à “realidade em que
vivem todos os amefricanos do continente” (GONZALEZ, 1988, p. 78,
ênfase no original).

Voltar-se à realidade vivida por todas(os) amefricanas(os) do


continente não implica negligenciar o modo como processos inter-
seccionais de subalternização e de seu enfretamento são sempre
situados. O fundamental é que se cultive uma perspectiva sensível
às modalidades pelas quais esses processos são internacionalmente
articulados. Valendo-me dos termos propostos por Geeta Chowdhry
e Sheila Nair (2002), em suas demandas por estudos interseccio-
nais na teoria das relações internacionais, é plausível afirmar que

38 Em um texto anterior, Lélia já havia enfatizado que “nós negros não constituímos um bloco mono-
lítico, de caraterísticas rígidas e imutáveis” (GONZALEZ E HASENBALG, 1982, p. 18). Assim, para falar
"do Movimento Negro”, não se pode apagar as diferenças e divergências em torno do “significante
negro” (p. 19, ênfase no original). Lélia relaciona amefricanidade, como lembra Luiza Bairros (2000),
a “propostas alternativas de organização social: os quilombos, no caso do Brasil, e, em outras
partes das Américas, organizações similares designadas como cimarrones, cumbes, palenques e
maroon societies” (p. 11). Ver também Cardoso (2014, p. 982-984).
39 Como se pode notar, a agência amefricana, na perspectiva de Lélia, já pode ser vista na escravidão,
exposta em revoltas, em estratégias de resistência cultural, em movimentos de organização livre,
entre outras modalidades de indisciplinaridade.

SUMÁRIO 106
a abordagem de Lélia desafia “noções de sororidade [sisterhood]
pautadas na universalidade de opressões compartilhadas e similares”
e, assim, contribui para situar “lutas e críticas feministas em lugares
históricos, geográficos e culturais específicos” (p. 14). Essa aborda-
gem também convoca a esforços que se engajem em “questões con-
cernentes à política do ‘silêncio subalterno’” e às possibilidades de
recuperação de sua voz (p. 26) – aspecto ao qual voltarei adiante40.

A Améfrica – entendida como um sistema etnogeográfico


internacional de referência – pode ser lida como um “confronto com a
linha de cor global”. O “problema da linha de cor”, nas palavras de W.E.B.
Du Bois, retomadas por Alexander Anievas, Nivi Manchanda e Robbie
Shilliam, refere-se à “relação das raças mais escuras de homens [men]
com as mais claras na Ásia e na África, na América e nas ilhas do mar”
(W.E.B. DU BOIS apud ANIEVAS, MANCHANDA E SHILLIAM, 2015,
p. 4). Trata-se de uma linha de cor constituída “através de múltiplas
dimensões – geográficas, políticas, econômicas, psicológicas, espiri-
tuais e sociais – e seu desmantelamento teria de corresponder a essa
multidimensionalidade” (ANIEVAS, MANCHANDA E SHILLIAM, 2015,
p. 6). A agenda de pesquisa proposta a partir dessa releitura de Du
Bois chama a atenção para a forma como múltiplos marcadores de
discriminação, além da raça, são interseccionados por intermédio das
relações de poder internacionalmente tecidas.

A amefricanidade, como salientei, é uma categoria multidi-


mensional e interseccional que Lélia articula como forma de interpre-
tar a relação entre sexo, gênero e raça na formação do Brasil. Além
disso, ela situa a história do país no âmbito da história colonial das
Américas, destacando, ao mesmo tempo, a necessidade de não se
homogeneizar experiências históricas e contemporâneas em dife-
rentes configurações coloniais. Dessa forma, seu pensamento expõe
aquilo que Randolph Persaud e Alina Sajed (2018) consideram cruciais

40 A expressão "silêncio subalterno" é uma citação de Chowdhry e Nair a partir de A. Loomba,


Colonialism/Postcolonialism (Nova York e Londres, 1998), p. 239.

SUMÁRIO 107
para a teorização das relações internacionais – e que, vale acrescentar,
igualmente o é para as teorias política e sociológica –, isto é, uma pro-
blematização de como "o sistema mundial atual é construído em várias
camadas de instituições, experiências, práticas e, o que é mais impor-
tante, memórias dessas experiências e práticas do passado” (p. 14).

Antes de concluir esta seção, quero acrescentar observa-


ção sobre como a abordagem de Lélia faz avançar a concepção de
interseccionalidade nos dois sentidos identificados por Sumi Cho,
Kimberlé Crenshaw e Leslie McCall (2015). Segundo essa análise,
há um processo centrífugo que faz com que a interseccionalidade
viaje e interaja com outros campos de conhecimento e em diferentes
países e continentes. Simultaneamente, há um processo centrípeto,
cujas protagonistas são "menos devotas a convenções disciplinares”
(p. 793). A insistência de Lélia nas especificidades da formação bra-
sileira, incluindo a (re)produção do racismo e do sexismo no Brasil,
auxilia na ampliação das interpretações sobre a operação intersec-
cional dos marcadores de discriminação para além dos mundos
estadunidense e europeu, sem negligenciar, contudo, os nexos
daquela formação com esses mesmos mundos. Ao mesmo tempo,
sua indisciplinaridade diante das convenções disciplinares e teóricas
aprofunda produtivamente os aspectos centrípetos que fazem com
que a própria dinâmica da produção do conhecimento seja proble-
matizada. Essa indisciplinaridade abarca tanto o questionamento
da divisão internacional do trabalho intelectual, de acordo com a
qual teorias “centrais” são importadas para lugares “periféricos”,
quanto o apagamento ou a negligência, demasiadamente comuns,
dos conhecimentos produzidos para além do ambiente acadêmico.
Desta forma, sua abordagem maximiza potencialmente “a interface
entre os processos centrífugos e centrípetos” (CHO, CRENSHAW
E MCCALL, 2015, p. 797). Uma das articulações mais significativas
dessa interface no pensamento de Lélia se encontra na noção de
pretuguês, a ser discutida na próxima seção.

(Vale lembrar: “o lixo vai falar, e numa boa”.)

SUMÁRIO 108
PRETUGUÊS
Antes de prosseguir, retomo o que foi dito até o momento.
Tenho insistido em que a “categoria político-cultural” da amefricani-
dade é interseccional, indisciplinar e internacional. Sua relação com
o conceito de agência, como vimos, se estabelece por meio de um
pensamento indisciplinar, marcado também pelos engajamentos de
Lélia com movimentos sociais, em particular antirracistas e feminis-
tas, no Brasil e em outros lugares do mundo. Assim, a categoria não
só atravessa várias disciplinas, como também apresenta certo enten-
dimento acerca da heterogeneidade da agência de subjetividades
subalternizadas, com destaque para as mulheres negras, ao longo
da formação brasileira e de seus nexos como a formação do mundo
moderno. Uma importante abertura para esse movimento indisci-
plinar, conforme exposto acima, é perceptível em seu engajamento
com a psicanálise, a partir do qual se coloca em questão a atribui-
ção às mulheres negras do lugar de lixo pela lógica dominante no
processo formativo brasileiro. Diante disso, uma das maneiras pelas
quais a subalternidade fala – e, com isso, confronta a linha global e
multidimensional de cor – é exposta pelas noções de amefricanidade
(discutida acima) e pretuguês (a ser abordada logo a seguir)41.

Lélia insistiu, em muitas ocasiões, que a língua brasileira não é


o português, e sim o pretuguês. Combinando "preto” com "português",
propõe-se, mais do que uma palavra, um conceito por meio do qual
a língua nacional é reinterpretada por uma perspectiva interseccional
e internacional, mais precisamente diaspórica. O pretuguês enfatiza
a diversidade de linguagens provenientes de países africanos que
tiveram uma marca indelével, porém silenciada, na formação brasileira
– marca associada, em particular, à agência de mulheres negras. Ao
mesmo tempo, o conceito expõe a interseccionalidade e a internacio-
nalidade dos marcadores de raça e gênero no capitalismo moderno.

41 Como será visto abaixo, a noção de “fala” não se refere, de forma alguma, a uma concepção restrita
de “voz”, em detrimento de outras formas de ação.

SUMÁRIO 109
Nesse sentido, seria plausível afirmar que a noção de pre-
tuguês destaca o que, em outra discussão, Debra Thompson
(2015) abordou em termos de "transnacionalismo racial". Com essa
expressão, entende-se a raça como uma ideia “global”, levando em
consideração que sua articulação é inseparável do domínio transna-
cional do império e do capitalismo. Esse traço, sigo com Thompson
(2015, p. 49-51), requer de estudiosas(os) da política internacional e
comparada (e, podemos aduzir, das teorias políticas e sociológicas)
uma abordagem que não reproduza o enfoque exclusivo no esta-
do-nação – ou o nacionalismo metodológico – em estudos sobre
relações raciais. O pretuguês expõe esse tipo de transnacionalismo,
uma vez que capta a forma como a agência das mulheres negras se
liga aos nexos globais que a colonização estabelece com o processo
formativo do Brasil.

O pretuguês se refere, por exemplo, à formação da língua


que hoje entendemos como nacional por intermédio da agência das
mulheres amefricanas que foram colocadas na posição da “mãe
preta” das crianças brancas privilegiadas (GONZALEZ, 1983, p. 234-
6). Nas palavras de Lélia, a “mãe preta também desenvolveu as suas
formas de resistência (...) cuja importância foi fundamental na forma-
ção dos valores e das crenças do nosso povo”; assim, “[c]onsciente-
mente ou não, ela passou para o brasileiro branco as categorias das
culturas negro-africanas de que era representante. Foi por aí que ela
africanizou o português falado no Brasil (transformando-o em ‘pretu-
guês´) e, consequentemente, a cultura brasileira” (GONZALEZ apud
BAIRROS, 2000, p. 14)42. Em suma, o pretuguês é uma (não a única)
língua – ou linguagem – por meio da qual a subjetividade subalterni-
zada, jogada no lixo da lógica hegemônica da formação brasileira e
do mundo moderno, fala.

42 Note-se que essa perspectiva abre outra interpretação não só para a dinâmica cotidiana da colo-
nização e da escravização, mas também para a configuração mais recente do trabalho doméstico
no Brasil, ainda predominantemente feito por mulheres negras e empobrecidas.

SUMÁRIO 110
Para desdobrar essa formulação, recorro ao famoso ensaio
de Gayatri Spivak. Primeiro, vale lembrar que a pergunta "pode a
subalterna falar?” foi formulada nesse texto da seguinte maneira: "do
outro lado da divisão internacional do trabalho do capital socializado,
dentro e fora do circuito da violência epistêmica da lei e educação
imperialistas, suplementando um texto econômico anterior, pode a
subalterna falar?” (SPIVAK, 1988, p. 283, ênfase no original; e SPIVAK,
1999, p. 269, ênfase no original)43. Por questão de espaço, não farei
justiça à complexidade da discussão em tela. Quero notar, todavia,
que a “subalterna não pode falar” se a linguagem através da qual
ela é abordada não for sensível ou aberta aos limites postos pela
representação nos marcos de uma linguagem dominante. Estando
do “outro lado da divisão internacional do trabalho”, “dentro e fora do
circuito de violência epistêmica”, as subjetividades subalternizadas
permanecem silenciadas caso as dinâmicas que conectam o impe-
rialismo e a produção do conhecimento não sejam problematizadas.
Dizer isso não significa que essa problematização implicaria um
contato direto ou imediato com essas subjetividades ou com sua
suposta realidade concreta. O crucial é cultivar uma atitude crítica
permanente face à (im)possibilidade de compreender a alteridade
“em si mesma”. Nas palavras de Spivak, “[t]oda fala, até a aparente-
mente mais imediata, implica uma decifração à distância por um(a)
outro(a) [by another], que é, na melhor das hipóteses, uma intercep-
tação. Isto é o que é a fala” (1999, p. 309).

Recordando os termos com que tenho trabalhado aqui,


pode-se articular a questão da seguinte maneira: a subalterna fala
se, e somente se, os processos de sua subalternização são proble-
matizados a partir de uma perspectiva interseccional, internacional e
indisciplinar. Ou seja, com a condição de se estar aberto(a) ao enten-
dimento de como esses processos são (re)produzidos por intermé-
dio de relações históricas e contemporâneas do mundo moderno

43 Ao traduzir “subaltern” por “subalterna”, estou seguindo a sugestão de Grada Kilomba (2019, p. 20-1).

SUMÁRIO 111
com práticas coloniais. No entanto, a fala (da) subalternizada nunca
é total ou imediatamente acessível, uma vez que se localiza e/ou é
localizada, por definição, às margens da linguagem dominante.

Sendo assim, voltando à pergunta de Spivak, talvez a res-


posta mais precisa, ainda que ambígua – ou melhor, mais precisa
exatamente por ser ambígua –, seja: sim, a subalterna pode falar, mas
em nenhuma circunstância sua fala será totalmente reconhecível
ao(à) outro(a). E: não, a subalterna não pode falar, mas sua voz pode
ser de alguma forma decifrada à distância por meio de intercepta-
ções sensíveis à alteridade.

Diante disso, o que significa dizer que, por meio do pretuguês,


a subjetividade subalternizada, jogada no lixo da lógica dominante,
fala? Em primeiro lugar, que o pretuguês é colocado em movimento
por intermédio da prática de outra linguagem, a qual é tanto desafia-
dora quanto constitutiva da própria linguagem hegemônica. Ou seja,
trata-se de uma maneira de falar que é subalternizada, porém não
totalmente externa ou excluída da lógica que sustenta as relações
de poder hegemônicas. Em segundo lugar, o pretuguês coloca-se
como uma espécie de voz recessiva – uma voz jogada no lixo da
lógica – que se deve, de alguma forma, decifrar à distância, na tenta-
tiva de problematizar as articulações internacionais da modernidade
com a colonização, que têm atravessado, há séculos – e sempre em
mutação –, a formação brasileira. O pretuguês fala sobre subjetivi-
dades subalternizadas e é falado por elas, ligando-se a dinâmicas
interseccionais dos marcadores de discriminação. Como é o caso de
qualquer linguagem, o pretuguês está sempre sujeito a uma tensão
entre continuidade e mudança. E, como não há a subalternidade
“em si mesma”, isto é, fora de uma dinâmica político-cultural, então o
pretuguês se torna a marca de uma luta persistente diante da inter-
seccionalidade da discriminação44.

44 Destaco a contribuição que Thula Pires (por exemplo, PIRES, 2017) vem oferecendo para a reflexão
sobre os “direitos humanos” em pretuguês.

SUMÁRIO 112
Colocando de outra maneira, o pretuguês é tão historica-
mente situado quanto a própria relação entre lógica e lixo. Spivak
pode ajudar novamente nesse aspecto. Em uma leitura dos Estudos
Subalternos feita “de dentro, mas a contrapelo”, Spivak (1987) sugeriu
que a recuperação da subjetividade subalterna poderia ser compre-
endida em termos de um “uso estratégico do essencialismo positi-
vista em um interesse político escrupulosamente visível” (p. 205) e,
adiante, afirmou que essa subjetividade “é necessariamente o limite
absoluto do lugar onde a história é narrativizada na lógica” (p. 207,
ênfase adicionada).

Com isso em mente, consideremos agora, por exemplo, a


resposta de Lélia à pergunta sobre se seria possível falar em “o movi-
mento negro” (no singular). Depois de destacar a heterogeneidade
cultural e histórica dos povos africanos, bem como de sua configura-
ção no Brasil, lemos o seguinte:
É claro que, se a gente adota a perspectiva acima deline-
ada, não dá [para falar do movimento negro]. Como não
daria para falar do Movimento de Mulheres, por exemplo.
No entanto, a gente fala. Exatamente porque está apon-
tando para aquilo que os diferencia de todos os outros
movimentos; ou seja, a sua especificidade (GONZALEZ,
1982, p. 19, ênfase no original).

Em seguida, Lélia apresenta uma série de perguntas que


recebe respostas variadas de diferentes movimentos negros em
relação à forma como a especificidade do “significante negro”
deve ser articulada. Como há “movimentos negros... no Movimento
Negro”, continua Lélia, “este texto reflete uma escolha”, isto é, falar
do movimento negro (p.19), mesmo quando se está explicitando
“a perspectiva de um movimento negro: o Movimento Negro
Unificado (MNU)” (p. 19-20).

A meu ver, a noção de “essencialismo estratégico” aproxima-se


não somente do que Lélia articula no trecho acima, como também,
de maneira mais ampla, daquilo que seu pensamento coloca em

SUMÁRIO 113
movimento quando tece a relação entre pretuguês e amefricanidade
na decifração de como o lixo fala – isto é, de como a subalternidade,
jogada no lixo da lógica dominante no Brasil e do mundo moderno,
fala. Como afirma Thula Pires (2017), a experiência amefricana que
Lélia traz para o primeiro plano é um “centramento” que “não essen-
cializa identidades” e não “romantiza elementos constitutivos dos
valores africanos”, estando todos eles “sujeitos a debate”, sem que
haja “sistemas fechados” (p. 7). Assim, a amefricanidade carrega um
“sentido positivo, ‘da explosão criadora’, da reinvenção afrocentrada
da vida na diáspora” (p. 7).45

A imagem estrategicamente essencializada da “mãe preta”,


por exemplo, vai muito além da figura estigmatizada de uma subjeti-
vidade passiva diante da subalternização. Ela se torna, como salienta
Cláudia Cardoso (2014), um “sujeito político” (p. 976). Ou melhor, uma
subjetividade política que fala a partir de diferentes temporalidades e
espacialidades, respondendo ativamente a elas. Trata-se de uma sub-
jetividade marcada por descontinuidades e continuidades ao longo da
transição da “escravidão” para o “trabalho livre” e do “Brasil colonial”
para o “Brasil independente”, e que deixa constantemente sua marca
nessas (des)continuidades. A fala amefricana, sendo parte do povo e
da nação entendidos como “brasileiros”, expõe uma fratura de ambos
– povo e nação. Mobilizando para meu propósito os termos de Homi K.
Bhabha (1994), a agência amefricana remete-se tanto à relação entre
a nação e as outras nações do mundo moderno, construída também
por processos de colonização, quanto à “divisão da nação dentro dela
mesma, articulando a heterogeneidade de sua população” (p. 148).

Ao expor uma tensão entre a lógica da nação e suas diferen-


ciações internas, bem como entre essas hierarquizações internas e
a lógica internacionalmente articulada da modernidade, o pretuguês

45 Se recordarmos que Lélia interagiu com movimentos feministas, gays, negros e indígenas, no Brasil e
em outros lugares, e que sempre apontou as especificidades da formação histórica brasileira, torna-se
ainda mais plausível entender o pretuguês como algo distante de uma interpretação essencialista.

SUMÁRIO 114
se situa a partir de outro passado, outra história. Com Pedro Ambra
(2019), podemos dizer que, no pensamento de Lélia, “assumir a fala
não é sinônimo apenas de tomar a voz ou ocupar lugares de poder
que historicamente são ocupados por brancos” (p. 98, ênfase adicio-
nada).46 Enfatizo, na citação, que não se trata apenas de tomar essa
voz e ocupar esses lugares, com o intuito de deixar claro que se trata
também disso. Nesse aspecto, considero crucial a observação de Léa
Silveira (2022, p. 9-10), feita em diálogo com o texto de Ambra (2019):
Se, por um lado, o lugar epistemológico do qual parte
Gonzalez em Racismo e sexismo... implica, efetivamente,
como defende Ambra [2019], a incidência da ilusão e da
divisão subjetiva na fala, de modo que, do ‘lugar de fala’,
não decorre a consciência do sujeito a respeito desse
lugar; por outro lado, a autora não elimina a questão da
identidade porque marca o fato de que fala ‘enquanto
mulher negra’ (GONZALEZ, 198[3], p. 225) (SILVEIRA,
2022, p. 9-10, nota suprimida).

Como indiquei anteriormente, a fala do lixo da lógica expõe algo


que é irredutível à afirmação de uma identidade, ainda que se valha
dela. Endossando a observação de Silveira, retorno a Ambra (2019)
uma vez mais, a fim de notar como está em jogo, nessa irredutibilidade,
(...) uma proposta ainda mais radical: assumir a fala é
assumir nosso modo de falar, assumir nosso pretuguês,
assumir que aquilo que se mostra como mais estrangeiro
às instâncias (psíquicas e sociais) dominantes, na ver-
dade, as constitui inexoravelmente (AMBRA, 2019, p. 98,
ênfase no original).

Essa radicalidade convoca-nos a um pensamento que, para


além da identificação e da ressignificação de lugares historicamente
silenciados, conceba, como seu horizonte, uma coexistência pautada
na dissolução daquelas identidades construídas por meio da inter-
secção hierarquizante dos marcadores de discriminação.

46 Creio que Ambra (2019) não endossaria a aproximação que propus, neste texto, entre o pensamen-
to de Lélia e o conceito de “interseccionalidade”, porém não é possível abordar essa questão aqui.

SUMÁRIO 115
Essa dissolução talvez seja, no limite, impossível. Em todo
caso, em vez de uma lógica modernizante falada em português (de
Portugal, da Europa), postulando uma história linear e progressista da
escravidão e da colonização em direção a uma condição moderna de
suposta liberdade e igualdade, a subjetividade subalternizada jogada
no lixo fala pretuguês: uma linguagem que oferece um recurso ines-
gotável para uma problematização amefricana, diaspórica da moder-
nidade. Com isso, retomando as palavras da própria Lélia acerca da
categoria da amefricanidade, abrem-se rotas, por meio de agências
amefricanas, cujas implicações políticas e culturais são realmente
democráticas. Uma democracia por vir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio de um diálogo entre as concepções de agência e
interseccionalidade com o pensamento de Lélia Gonzalez, busquei
indicar uma das rotas possíveis para a problematização da relação do
processo formativo brasileiro com algumas das dimensões interna-
cionalmente articuladas que atravessam os processos de produção
de subjetividades subalternizadas. Para isso, interagi com a “catego-
ria político-cultural” da amefricanidade e com a noção de pretuguês.

A abordagem de Lélia chama a atenção para a interseccio-


nalidade dos marcadores de discriminação; para as heterogêneas
e indisciplinares modalidades de agência que marcam a formação
do Brasil; e para a forma como essa agência não pode ser com-
preendida à parte de uma dinâmica, histórica e contemporânea, do
colonialismo e da construção do mundo moderno que é internacio-
nal. Ao reivindicar a fala para certa subjetividade jogada na lata do
lixo da lógica hegemônica no Brasil, indissociável, por sua vez, da
formação do mundo moderno, a relação entre amefricanidade e pre-
tuguês expõe especificidades de uma trajetória histórica, enquanto

SUMÁRIO 116
também se refere às atuais condições de vida daquela subjetividade
e aponta para efetivas e potenciais articulações de enfretamento aos
processos vigentes de subalternização.

Spivak (1999) escreveu, certa vez, que “é importante reco-


nhecer nossa cumplicidade no silenciamento [da subalterna], a fim,
precisamente, de ser mais efetivo a longo prazo” (p. 309). A “incerta
decifração [moot decipherment] por um outro em uma instituição
acadêmica (goste-se ou não, uma fábrica de produção de conheci-
mento) muitos anos depois não deve ser tão rapidamente identificada
com a 'fala' da subalterna” (p. 309). A “fratura epistêmica” (expressão
de Spivak) que se situa entre a subalternização e a incerta decifração
deve conduzir à problematização das condições de (im)possibilidade
da fala da subjetividade subalternizada em determinados ambientes,
incluindo os acadêmicos. Nesse aspecto, Lélia explorou ao máximo
os limites em jogo, tendo o seu pensamento ampliado, como pou-
cas(os) o fizeram, as possibilidades daquela decifração. Para ela, na
condição de mulher amefricana, falar sobre a subalternidade jogada
no lixo da lógica brasileira e moderna hegemônica significa, em
importante medida, falar como uma subalterna, confrontando, ela
própria, em pretuguês, a linha internacional e multidimensional de
cor no mundo acadêmico e no mundo dos movimentos sociais.

Os conceitos de Lélia com os quais dialoguei neste texto


expõem tanto os processos de subalternização quanto a própria
fala de certas subjetividades subalternizadas. Em outras palavras, o
pretuguês e a amefricanidade não são apenas marcas de políticas
de silenciamento, mas também rotas pelas quais a subalterna pode
falar. Aliás, sempre falou e tem falado.

SUMÁRIO 117
NOTA SUPLEMENTAR
A mobilização de amefricanidade e pretuguês está ligada
a uma problematização fundamental da divisão internacional do
trabalho intelectual e de sua relação com as assimetrias políticas,
econômicas, sociais e culturais globalmente articuladas. As pala-
vras de Lélia são explícitas quanto a isso: “enquanto mulher negra,
sentimos a necessidade de aprofundar nessa reflexão, ao invés
de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos
eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais”
(GONZALEZ, 1983, p. 225)47. Além disso, Lélia rejeitou “a depen-
dência cultural” e o “eurocentrismo” de movimentos de mulheres no
Brasil, onde “intelectuais e ativistas tendem a reproduzir a postura do
feminismo europeu e norte-americano ao minimizar, ou até mesmo
deixar de reconhecer, a especificidade da natureza da experiência
do patriarcalismo por parte de mulheres negras, indígenas e de paí-
ses antes colonizados” (GONZALEZ apud CARDOSO, 2014, p. 979).
Como observa, por exemplo, Ribeiro (2017, p.24-5), Lélia reconheceu
a íntima relação entre a classificação racial da população e a hierar-
quia produzida entre diferentes saberes.

A “amefricanização” do feminismo levada adiante em sua


teorização, indissociável de sua atuação em movimentos sociais,
tornou-se, desde então, fundamental para a criação ou a reconfigu-
ração desses movimentos, dentro e fora dos circuitos acadêmicos.
Operando no interstício de teoria e prática, seu pensamento tem
fomentado uma crítica permanente aos modos de se entender a
formação do mundo moderno em relação aos processos de colo-
nização, e tem sido mobilizado na articulação entre ambientes
acadêmicos e movimentos sociais ligados, em especial, a questões

47 Como Cardoso (2014), Ribeiro (2017) e Ratts (2022) observam, esse desafio a modelos hegemô-
nicos é exposto também em textos que Lélia escreve sem seguir as regras convencionais da
linguagem acadêmica.

SUMÁRIO 118
de raça, sexualidade, classe e gênero. Nesse sentido, o pretuguês
permanece sendo uma linguagem inesgotável para uma problema-
tização amefricana da modernidade, por meio da qual a subalterna
fala, cultivando a possibilidade de uma democracia radical por vir.

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SUMÁRIO 122
5
Rafael Gomes N. Pereira

DARCY RIBEIRO
E A ANTROPOLOGIA:
BREVES NOTAS BIOGRÁFICAS
ACERCA DE UMA ESCOLHA48

48 Uma primeira versão deste ensaio foi publicada como capítulo de minha dissertação de mestrado,
intitulada “Uma teoria da modernização em Darcy Ribeiro: traços de uma filosofia da história?”, e mo-
dificada para a apresentação no “I Colóquio (Re)Leituras desde o pensamento social brasileiro: um
balanço crítico”. Para esta versão final, foram considerados comentários e sugestões da professora
Dra. Christiane Jalles e do professor Dr. Enio Passiani, a quem agradecemos – bem como a todos os
membros do colóquio – pelas valiosas sugestões que auxiliaram no aprimoramento do argumento.

DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.5
INTRODUÇÃO
Em um fascinante texto, Alcida Rita Ramos (2010, p. 43)
lançou a seguinte pergunta: “Por que alguém escolhe ser antropó-
logo?”. A questão é fundamental, diríamos, para todos aqueles que se
dedicam aos estudos dos fenômenos humanos e culturais. De modo
similar, Darcy Ribeiro (1922-1997) defrontou-se com essa questão
desde o momento no qual, ao abandonar os estudos no campo da
medicina, teve que apresentar uma justificativa à família para poder
se transferir para São Paulo e, ali, iniciar seus estudos no campo das
ciências sociais, antes mesmo de tomar a prática antropológica como
seu ofício por excelência. Quando nos atentamos a alguns de seus
escritos autobiográficos, encontramos passagens instigantes nas
quais o autor argumentava seu profundo interesse por fenômenos
humanos vivos, observáveis e capazes de permitir melhor compre-
ensão sobre o tempo presente. Inspirado pelo movimento feito por
Ramos, o presente texto tem por objetivo perpassar alguns elemen-
tos constitutivos do processo de formação de Darcy no campo da
antropologia, reforçando dois momentos fundamentais: de início, sua
ida para a Escola Livre de Sociologia e Política – ELSP, após o aban-
dono dos estudos médicos em Belo Horizonte, e, em um segundo
momento, sua passagem pelo Serviço de Proteção aos Índios e seus
primeiros estudos sistemáticos em campo. Nossa trilha argumenta-
tiva pretende atravessar os anos iniciais de sua formação a partir do
enfrentamento de seus textos autobiográficos e do ambiente intelec-
tual no qual o autor se inseria, contrapondo determinados elementos
para tentar, ao fim e ao cabo, compreender indícios de como ele se
formou e, claro, tentou construir uma justificativa sobre o caminho
que traçou na antropologia.

Para tanto, o texto foi dividido em duas partes. A pri-


meira delas remonta aos passos iniciais de Darcy nas primeiras
letras, tentando esboçar sua inclinação para o mundo literário

SUMÁRIO 124
– que reapareceu durante os estudos universitários e foi aprofun-
dado pelo contato com o ambiente intelectual paulista –, bem como
os anos de seu bacharelado na ELSP. Inicialmente, tentaremos
desenhar certa trajetória histórica – diga-se, nem um pouco linear
– até a conclusão dos estudos de Darcy e sua opção pelos estudos
etnológicos, sob a orientação de Herbert Baldus. Na segunda parte
do texto, iremos nos concentrar na sua atuação à frente do Serviço
de Proteção aos Índios e na construção de suas primeiras pesquisas
etnográficas nos anos em que participou como pesquisador do órgão.

DE MINAS GERAIS A SÃO PAULO:


A PASSAGEM DE DARCY RIBEIRO PELA
ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA
Ao mudar-se para Belo Horizonte49, em 1939, com objetivo
principal iniciar seus estudos na medicina, Darcy já detinha um inte-
lectualismo juvenil, fruto de suas primeiras leituras e dos estudos na
biblioteca do seu tio e médico Plínio Ribeiro50. Todavia, ao frequentar o
curso preparatório para ingressar na faculdade, ele teve contato com
os estudantes e professores das áreas de filosofia e direito. Como era
aberta a possibilidade de que o estudante frequentasse cursos e dis-
ciplinas em outras áreas, ele passou mais tempo assistindo aulas em
outras faculdades do que se preparando para os exames e provas
médicas. Gastava mais tempo em diálogos e debates com os amigos

49 Cabe lembrar que Darcy Ribeiro é de Montes Claros (MG).


50 Sobre a figura de Plínio Ribeiro, André Lopes Mattos (2007, p. 22) assim registrou: “Mas, sobre
o contato com o mundo ‘exterior’, é preciso, ainda, destacar, em sua retrospectiva, a presença
de seu tio, Plínio Ribeiro, médico, ‘principal intelectual da cidade’, cuja influência contribuiu para
Darcy tornar-se, de fato, intelectual, livrando-se da possibilidade de tornar-se herdeiro de terras da
família paterna, destino promissor para um descendente de importantes fazendeiros da região”.

SUMÁRIO 125
que fez na capital, principalmente aqueles construídos nas pensões
pelas quais passou, do que estudando anatomia e psicologia. Sobre
isso, ele registrou:
Na nova pensão, vivi envolvido num outro grupo de
amigos, poucos da medicina, os mais eram estudantes
de direito e filosofia. Passava minhas tardes olhando
para a rua e o colégio Arnaldo, que ficava na frente. Mais
horas passava no quintal, vendo correr um riachinho que
milagrosamente aflorava ali, no meio de um bananal.
Eu meditava triste sobre o meu destino, sabendo já que
não seria médico, mas procurando um novo caminho
(RIBEIRO, 2010b, p. 68).

O desânimo com a carreira médica e as ricas leituras feitas


por Darcy inclinaram-no para outras ambições que a cidade de Belo
Horizonte já não poderia lhe fornecer. Isso ficou ainda mais claro
no ano de 1942, quando ele tomou contato com um exemplar de A
origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Friedrich
Engels. O encontro com a obra foi propiciado pela figura de Chico
Campos, livreiro que, na época do Estado Novo, importava livros
em língua espanhola e alimentava um conjunto de jovens intelec-
tuais interessados em bibliografias marxistas. Não por menos, como
veremos mais adiante, Darcy sempre associou a leitura de Engels
à publicação de seu primeiro livro teórico, O Processo Civilizatório,
lançado, em 1968, como uma reescrita do texto do pensador alemão
a partir de uma base fornecida por uma nova perspectiva no campo
da teoria da história (RIBEIRO, 2010b, p. 46).

A leitura daquela obra não caminhou só. Somando-se a outra


quantidade de livros fornecidos pelos comunistas (RIBEIRO, 1997,
p. 161), sua participação no Diretório Central dos Estudantes – DCE
– mineiro e o vínculo com o Partido Comunista Brasileiro – PCB -
renderam-lhe contato com Donald Pierson que, após uma série de
viagens ao seu lado, ofereceu-lhe uma bolsa de estudos na recém-
-fundada ELSP. Darcy descreveu assim a mudança de ares:

SUMÁRIO 126
Num certo momento, eu deixo Minas, convidado a ir para
São Paulo, pelo Donald Pierson, da Escola de Sociologia
e Política, que me daria uma bolsa de estudos. Foi um
conflito com a minha família, e eu estava fazendo 21 anos
e ia entrar em posse de um dinheiro de herança. Eles
acharam que era pura boêmica. Mas o fato é que eu tinha
esgotado o que Belo Horizonte poderia me dar, tendo em
vista o rumo que eu estava (RIBEIRO, 1997, p. 162).

Mais interessantes que a explicação para si mesmo foram


os argumentos dados à família para justificar uma drástica mudança
de curso. Como uma forma de escape de justificativas mais elabo-
radas, argumentou à mãe e ao tio que a “medicina é ruim porque
trata com doente, e doente fede muito”; que desejava estudar “o
homem são, e que a antropologia estuda o homem são” (RIBEIRO,
1997, p. 162). O que nos interessa, a partir daqui, é compreender
algumas especificidades da ELSP, para dimensionar o encontro do
autor com a antropologia.

Inaugurada em 1933, a ELSP foi criada com o objetivo de


“enfrentar os problemas de uma sociedade em fase de industrializa-
ção com uma elite academicamente preparada”, tendo a sociologia
um “papel de destaque” (MATTOS, 2007, p. 50). Como gostava de
lembrar, Darcy integrou a primeira geração profissional de sociólogos
formados em uma universidade brasileira e, sobretudo, encontrou
um aporte em seus professores e na instituição dirigida por Pierson:
Eu vivia em São Paulo como estudante da Escola de
Sociologia, com uma bolsa e com a renda que vinha da
família. Então eu tinha uma vida mais ou menos frouxa, e
fui profundamente influenciado pela Escola de Sociologia
e Política, que não só me fez ler e conhecer a sociologia
norte-americana, as correntes novas das Ciências Sociais,
como fugir daquilo que eu chamava de erudição vadia, a
enfermidade principal do espírito do brasileiro em geral e
do mineiro, em particular, que é essa atitude de tomar a
cultura como alguma coisa fluida. Durante o curso fui me
identificando mais com uns professores do que com outros.

SUMÁRIO 127
Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, para mim, foi
um acontecimento: ele vinha da Alemanha e trazia uma
visão de mundo diferente (RIBEIRO, 1997, p. 163).

A ELSP lhe permitiu aprofundar-se numa gama de leituras


e reflexões que já vinham se acumulando desde sua militância no
PCB, ainda em Belo Horizonte. O ponto instigante em seu relato é o
reconhecimento da alta qualificação do corpo docente da Escola e
de todo o incentivo para o desenvolvimento de pesquisas empíricas
na área de Ciências Sociais. Entre os ilustres que por ali passaram,
Darcy apontou nomes como Radcliffe-Brown, Emílio Willems e
Claude Lévi-Strauss51, que fizeram da instituição “o melhor núcleo
do mundo em Ciências Sociais, porque tinha gente da melhor quali-
dade, e gente capaz de questionar” (RIBEIRO, 1997, p. 1997). Apesar
das fortes influências buarquianas, a figura intelectual que possivel-
mente mais o impulsionou para a antropologia foi Baldus, etnólogo
alemão da Escola de Thurnwald. Sua influência sobre Darcy pode ser
descrita em um duplo movimento: primeiramente, a contribuição de
Baldus na definição do objeto de estudos do antropólogo brasileiro
e, em segundo lugar, a indicação do professor alemão, o que levou
Darcy Ribeiro até o Serviço de Proteção aos Índios - SPI. Como tra-
taremos de forma mais detalhada do SPI na próxima seção, aqui nos
restringiremos a analisar a construção do objeto de estudo darcy-
niano por ocasião dos seminários ministrados por aquele professor,
frequentados durante os três anos de seu bacharelado.

De início, os encontros foram uma via de acesso para Darcy


Ribeiro “estudar os índios como testemunhas da formação humana”,
mas isso deveria ser feito a partir de observações diretas, por meio
da pesquisa de campo e da prática empírica (RIBEIRO, 1997, p. 164).
Esse talvez tenha sido um dos maiores diferenciais da ELSP, pois
os pioneiros que ali lecionaram tinham uma dedicação acentuada
a problemas de ordem prática. Os pesquisadores que integraram a

51 Além do próprio Sérgio Buarque de Holanda.

SUMÁRIO 128
Escola tinham como marcas principais a valorização da pesquisa
etnográfica e uma análise empírica dos fatos, balizando-os por meio
de forte rigor teórico52. Acompanhando esse cenário, os seminários
de Baldus contavam com uma profunda reflexão teórica, como pode-
mos identificar na passagem abaixo:
O melhor professor que tive foi Herbet Baldus, poeta prus-
siano e etnólogo apaixonado de nossos índios. Frequentei
por três anos seu seminário pós-graduado de etnologia
brasileira. Tanto falavam ele como os mestrandos que
estavam escrevendo dissertações. Ouvi ali e discuti toda
a excelente monografia de Egon Schaden sobre a mitolo-
gia heroica dos Guarani e o ensaio fantástico de Florestan
Fernandes sobre a organização social dos tupinambás.
Aprendi muito com Baldus (RIBEIRO, 2012, p. 112).

O caminho aberto pelo alemão convergiu para outros ele-


mentos. Dialogando com Mércio Pereira Gomes (2000, p. 24-25),
devemos dimensionar que a opção pela etnologia significava maiores
chances de sucesso no mundo acadêmico, pois era um tema de inte-
resse internacional que atraiu a atenção de diversos pesquisadores
estrangeiros, como Pierson e Baldus. Além disso, merece menção o
fato de que a realidade brasileira tinha se tornado um laboratório de
estudos etnológicos, “como exemplo vivo de um passado da huma-
nidade que estava por acabar” (GOMES, 2000, p. 27). Se o intuito de
era estudar os fenômenos humanos in loco, o caminho da prática
etnológica poderia possibilitá-lo atingir seus anseios. Suas primei-
ras pesquisas de campo, por exemplo, foram modeladas por forte
carga de leitura que antecipou suas primeiras idas às etnias Terenas
e Guarani (RIBEIRO, 1997, p. 166-167). Agora, como relacionar seu
direcionamento no campo etnológico à sua trajetória na antropolo-
gia? Para responder à questão, devemos nos lembrar, como susci-
tado por Mariza Peirano (1992), que a antropologia, em sua origem

52 Devemos aqui recordar que a organização da ELSP e seu modelo de estudos empíricos devia-se,
em grande medida, à figura de Pierson e sua relação com a chamada Escola de Chicago. Para mais
detalhes, sugerimos a leitura de Mattos (2007, p. 57).

SUMÁRIO 129
histórica, foi atraída pelo Exótico. No caso brasileiro, o “Outro” estava
“dentro das fronteiras nacionais”, fazendo de nossa antropologia um
exercício que se concentrou no desvendar de nossas próprias singu-
laridades (PEIRANO, 1992, p. 7). “Se por muito tempo a antropologia
foi definida pelo exotismo do seu objeto de estudo”, então o Brasil
constituiu-se, no início da institucionalização das Ciências Sociais, na
década de 1930, como um “caso etnográfico privilegiado” (PEIRANO,
2006, p. 53). Isso explicaria como a relação de Darcy com a antropo-
logia se deu pelas pesquisas etnológicas, já que as etnias indígenas
se tornaram um dos primeiros e mais fundamentais objetos de uma
antropologia do e no Brasil (PEIRANO, 1997; 2006). Pedimos licença
ao leitor para citarmos uma breve passagem de nosso autor, já por
ocasião dos trabalhos desenvolvidos no Museu do Índio, como forma
de corroborar nosso argumento:
O Museu do Índio foi que acolheu o primeiro curso pós-
-graduado de formação de antropólogos que se realizou
no Brasil, concretizado com a ajuda da CAPES. Ali for-
mamos turmas de melhores antropólogos de campo que,
além de preparados teoricamente pelos cursos, obtinham
recursos para realizar um ano de pesquisa de observação
direta (RIBEIRO, 2012, p. 177).

O Curso de Aperfeiçoamento em Antropologia Cultural -


CAAC , inaugurado nas dependências do Museu do Índio, em 1955,
53

tinha por objetivo formar antropólogos com forte carga teórica e


destinados à observação direta em campo. Por conseguinte, Darcy
tomou a formação em antropologia como algo necessariamente vin-
culado à etnologia e que, além das leituras prévias, deveria estabele-
cer uma observação direta dos fenômenos humanos. É interessante
perceber que, para ele, a prática da antropologia deveria ser atraves-
sada pela constituição de uma teoria do parentesco:

53 Na segunda parte deste ensaio, desenvolveremos de forma mais detalhada as atividades realiza-
das por ocasião do CAAC.

SUMÁRIO 130
A primeira coisa que publiquei como etnólogo é o que
todo antropólogo sério deve publicar: uma terminologia
de parentesco. Na verdade, eu era obrigado a fazer isso
porque a antropologia fundamental era parentesco, tinha
que saber, tinha que estudar parentesco, era uma espé-
cie de prova. O interessante é que, uns trinta anos mais
tarde, saiu um livro sobre parentesco nos Estados Unidos
que trazia aquele meu artigo como um dos melhores
(RIBEIRO, 1997, p. 171).

Darcy assume uma postura lévi-straussniana, como ele


mesmo lembrou (1997, p. 177-178), que deveria levar o pesquisador
em direção à apreensão das relações de parentesco e das concep-
ções mitológicas que estruturavam as relações das etnias indíge-
nas a partir de suas funções integradoras. Em uma curiosa passa-
gem, ele assim afirmou:
Ainda tentei ser sociólogo, mas vi que não dava. Procurei
o Baldus, que me apoiou também. Eu tinha feito os cursos
e os seminários do Baldus, e fui fazer Etnologia Indígena.
Fui fazer a coisa que eu menos queria. Nunca pensei que
fosse ser etnólogo, estudar índio. Eu queria fazer estudo,
Ciência Social, no sentido de desenvolver a capacidade
de observação e de leitura na realidade social, queria
fazer de mim um instrumento de saber, mas queria fazer
isto sobre a sociedade nacional. Bom, mas o emprego foi
aquele, e por acaso, então, é que resultou que eu fui ser
antropólogo, e antropólogo dentro do escaninho que é a
Etnologia, e, dentro desse, no escaninho que é Etnologia
Indígena (RIBEIRO, 1979, p. 11).

Uma antropologia de escrivaninha que tomou a etnologia


como seu objeto por excelência foi o que abriu o caminho de Darcy
para a prática do olhar antropológico. Mais do que isso, um tipo
de antropologia fundada em observação direta, mediada por pro-
funda carga de reflexão teórica, que orientava a ida do pesquisador
a campo para promover sua observação participante. Tudo isso,
argumentou Peirano (1992), em um momento histórico em que se
voltar para o Outro, no Brasil, era voltar-se para nós mesmos a partir

SUMÁRIO 131
de parâmetros fornecidos pelo nation-building, o que demandava,
àquela altura, compreender o entrechoque dos povos originários
e do avanço da chamada civilização moderna. Se “Os cientistas
sociais, como outros intelectuais no país, são orientados por parâ-
metros cívicos e políticos”, Darcy orientou sua reflexão teórica inicial
para a compreensão de um passado humano que precisava ser
preservado para o entendimento das demandas do tempo presente
(PEIRANO, 1992, p. 11-12).

Isso fica ainda mais nítido quando nos lembramos da atua-


ção de Darcy à frente do Museu do Índio, em 1953, ao criar o primeiro
CAAC, que seria ministrado na Seção de Estudos do Serviço de
Proteção aos Índios. Interpelado pelo ambiente intelectual da ELSP
e sua convivência com Baldus, os estudos realizados no CAAC orga-
nizavam-se como descreveremos a seguir.

O Curso de Aperfeiçoamento foi estruturado em cinco blo-


cos temáticos. O primeiro, intitulado “Introdução à Antropologia
Geral”, versava sobre o método, os conceitos e as etapas do desen-
volvimento da pesquisa antropológica. Foi oferecido pelo próprio
Darcy. O segundo bloco, chamado de “Introdução à Antropologia
Biológica”, contou com aulas do professor Castro Faria, que tratava
de problemas como a mestiçagem, a paleontologia e a classificação
das populações brasileiras. O terceiro tema foi dividido entre Darcy,
Eduardo Galvão, Luís da Costa Pinto, Kalervo Oberg e Mattoso
Câmara. Foi composto de uma introdução à antropologia cultural,
tratando de temas como raça, classificação cultural e organização
social indígena. Posteriormente, contou com uma análise das apli-
cações práticas da antropologia e, por último, uma discussão acerca
dos debates de teoria da cultura. O quarto bloco temático, denomi-
nado “Introdução à Antropologia Brasileira”, contou com uma aná-
lise sistemática da formação do povo brasileiro. O último, “Estudos
Brasileiros de Antropologia”, concentrou-se no estudo dos objetos

SUMÁRIO 132
e métodos dos campos de estudo da antropologia54. Notamos aqui
mais um possível ponto de intersecção entre Baldus e a ELSP: o
trabalho etnográfico como fundamental para a compreensão de um
passado que precisava ser preservado em suas múltiplas perspec-
tivas. Em estimulante artigo, Sílvio Correa (2022, p. 268) esboçou
como Baldus – bem como outros intérpretes da etnologia alemã55
–, desenvolveu um tipo de etnologia que se pautava em uma pers-
pectiva de salvamento de um passado humano que precisava ser
conservado. Isso, como veremos a partir de agora, ganhou fôlego
na produção teórica marcadamente salvacionista. Passemos para
considerações mais precisas sobre os anos iniciais da atividade de
Darcy como antropólogo.

APÓS A ELSP:
A PASSAGEM PELO SERVIÇO PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS
Após três anos na ELSP, Darcy concluiu sua formação como
cientista social, com ênfase em etnologia, no ano de 1946, sob orien-
tação de Baldus. O espectro de consciência que orientou seus estu-
dos etnológicos estava vinculado a um imaginário coletivo do pas-
sado brasileiro (GOMES, 2000, p. 26). Desde o romantismo literário,
em autores como Gonçalves Dias e José de Alencar, o índio passou
a ser um legado histórico e arqueológico que deveria ser preservado.
Como já faziam os antropólogos americanos desde o século XIX, os
“povos ancestrais” deveriam ser mapeados antes que ocorresse sua
dizimação completa, recolhendo sobre eles o máximo de informa-
ções possíveis para a preservação de suas memórias. Vejamos:

54 Como não intencionamos estudar detalhadamente o CAAC, sugerimos, para leitores interessados
no tema, o trabalho de Mattos (2007). Lá está em minúcias a análise do corpo docente, dos alunos
e das aulas ministradas nos anos de atuação do curso.
55 Correa (2022) trabalhou o caso Curt Nimuendajú em perspectiva comparada a Herbert Baldus.

SUMÁRIO 133
O índio interessava, também, como exemplo vivo de um
passado da humanidade que estava por acabar. Assim,
desde o fim do século XIX, a Antropologia americana
vinha buscando documentar os costumes dos índios
americanos que estavam sendo esquecidos ou aban-
donados. Havia uma urgência em se mapear as culturas
que ainda restavam do processo de dizimação que estava
ocorrendo na frente de todos. Com efeito, todo etnólogo
que ia estudar um povo indígena estava imbuído de um
sentimento trágico, de que ele, provavelmente, seria o
último a fazê-lo (GOMES, 2000, p. 27).

Darcy Ribeiro construiu uma narrativa trágica sobre uma


utopia indígena perdida a partir do trauma colonial. Os índios, habi-
tantes do Éden terrestre (RIBEIRO, 2010a, p. 52), foram aniquilados
pela expansão civilizacional do Ocidente e destronados de seu pró-
prio paraíso. Como observou Ramos (2018), o antropólogo mineiro
construiu uma narrativa calcada na inevitabilidade do progresso
civilizacional europeu e na plena assimilação dos núcleos indígenas
pelo Estado nacional. O tom nostálgico no pensamento darcyniano
partia de uma vertente romântica, que idealizava o “índio” a partir
das tradições europeias (PEREIRA, 1997, p. 7). Com o apagamento
das individualidades e das idiossincrasias dos povos que aqui habi-
tavam antes da chegada dos europeus, Darcy articulou uma história
de oposição entre nós, modernos, e o “outro”, os índios, em busca
de uma narrativa inventiva sobre a formação brasileira. Muito disso,
defendemos, estava associado à instituição de pesquisa a qual era
vinculado nos anos em que esteve em campo pesquisando: o SPI.
Os dez anos que passou como etnólogo nessa instituição o levaram
a formular um discurso que apagou a subjetividade dos povos indí-
genas e os analisava à luz de um humanismo heroico que, ciente
da destruição inevitável do modus vivendis nativo, deveria atuar
como redutor dos impactos negativos da expansão civilizacional do
Estado brasileiro. Segundo Ramos (2018, p. 108), Darcy e, de modo
geral, toda a geração de pesquisadores do SPI, foram tomados por
um heroísmo salvacionista que defendia a proteção dos índios por

SUMÁRIO 134
meio de um processo de pacificação que os tornasse menos hostis
à pátria e os permitisse uma transição gradual para o convívio na
sociedade nacional. A antropologia esteve, no início do século XX,
vinculada à produção de um discurso científico sobre a formação do
Brasil que defendia a integração territorial por meio da desvaloriza-
ção das alteridades locais e regionais56. Contudo, para avançarmos
no pensamento de Darcy precisamos avaliar mais detalhadamente
as condições institucionais e ideológicas do SPI.

A sua ida para a instituição foi possibilitada por uma indica-


ção de Baldus. Em 1947, o mineiro foi contratado como integrante da
recém-fundada Seção de Estudos - SE, órgão interno do SPI com a
função de realizar pesquisas científicas acerca da condição e dos
modos de vida dos povos indígenas. A SE foi criada durante uma
reformulação da instituição, nos anos de 1940, com o intuito de incor-
porar uma “ideologia científica” nos trabalhos desenvolvidos por seus
pesquisadores, garantindo uma base para fundamentar políticas
públicas referentes às etnias indígenas. A chance de trabalhar no SPI
era a mais oportuna encontrada por Darcy àquela altura, pois era um
dos poucos caminhos que o permitiria a continuidade dos estudos
científicos sobre os índios. A carta de recomendação de Baldus che-
gou até o Marechal Cândido Rondon, diretor da instituição na época:
O que me restava, como forma de fazer pesquisas de
observação direta, era a carta do professor Baldus ao
marechal Rondon, recomendando-me para o cargo de
etnólogo do Conselho Nacional de Proteção aos Índios.
O SPI já contava com uma seção de estudos que vinha
realizando importante documentação fotográfica e cine-
matográfica da vida indígena. Não tinham, porém, um
etnólogo. Fui o primeiro. (RIBEIRO, 2012, p. 129).

Fundado em 1910, sob o nome de Serviço de Proteção aos


Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais - SPILTN, o SPI,

56 Sobre o desenvolvimento do campo antropológico no Brasil, sugerimos a leitura de Mônica


Pechincha (2006).

SUMÁRIO 135
como seria chamado a partir de 1918, detinha uma concepção de que
os índios, situados em degraus evolutivos inferiores, deveriam ser
integrados e geridos pela força de um Estado tutelar. Como apontou
João Pacheco de Oliveira (2016, p. 223), as políticas indigenistas do
início do século XX foram marcadas pela tentativa de construir uma
ordem pública que engendrasse uma “intervenção tutelar que, por
meio de procedimentos disciplinadores, viesse a hierarquizar e orga-
nizar as diferenças culturais e religiosas”. O SPI, como órgão oficial
de Estado, trabalhou pela formação da unidade nacional a partir do
apagamento das diversidades étnico-culturais dos povos indígenas
que aqui viviam. Darcy, funcionário da instituição naquela ocasião,
“foi quem montou um projeto para explicar a política indigenista”, de
modo a ter defendido a ideologia rondoniana como aquela que seria
responsável por salvar os índios do avanço civilizacional (CUNHA,
2016, p. 44). A atuação profissional no SPI57 reforçou sua atenção
intelectual para o problema da integração do índio na sociedade à luz
do humanismo positivista de Rondon. Como definiu Ramos (2018, p.
109), essa ideologia era caracterizada pela tentativa de salvar a vida
das populações indígenas do progresso civilizacional iminente, mas
às custas de uma abordagem minimalista naquilo que concernia aos
reais impactos da expansão das fronteiras nacionais. Tal perspectiva,
que marcou boa parte da política indigenista no início do século XX,
além de estar diretamente associada a certo ufanismo estatal, tinha
como grande problema partir de uma visão estritamente eurocêntrica
e incapaz de descrever as iracundas políticas públicas que, camufla-
das por um discurso heroico de proteção dos nossos antepassados,

57 Junto à sua atuação no SPI, Darcy trabalhou como pesquisador da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO, nos anos de 1950, em projeto que
buscou desenvolver um conjunto sistemático de estudos sobre as relações étnico-raciais no
Brasil. A Divisão de Estudos, departamento interno desse órgão internacional, fez uma pro-
posta para que ele realizasse um trabalho sobre a política indigenista no Brasil. Aceitando a
empreitada, Darcy iniciou uma série de estudos sobre a relação dos povos indígenas com a
sociedade moderna e o Estado Nacional brasileiro. A tarefa foi cumprida entre os anos de 1952
e 1953, convertendo-se em um relatório para a UNESCO e, mais adiante, na constituição de seu
importante livro Os índios e a Civilização.

SUMÁRIO 136
ignoravam a violência física e simbólica que as etnias indígenas
vinham sofrendo desde os tempos coloniais. O SPI, sob a liderança
de Rondon, adotou uma política de proteção e preservação da vida
dos índios brasileiros por meio de um processo de pacificação das
populações nativas, mas que, na verdade, consistia em uma elabo-
ração discursiva que desejou “contornar obstáculos indigestos ao
poder político e, principalmente, econômico” (RAMOS, 2018, p. 109).
O indianismo oficial do Estado brasileiro atuava com base em uma
abordagem tutelar que considerava os índios como sujeitos inferiores
e atrasados. Calcada no evolucionismo social, a política positivista do
SPI colocou os índios nos degraus mais baixos do desenvolvimento
humano e a formação nacional nos patamares mais avançados, de
tal modo que, no confronto entre essas duas realidades, aquela que
estivesse em um nível evolutivo mais avançado levaria vantagem
sobre as composições sociais mais arcaicas. Vejamos:
Deste modo, promoveram-se novas cartografias sociais
e fortes transformações territoriais. Pela primeira vez era
formulada uma circunferência territorial na administração
republicana que homenageava um brasileiro: trata-se de
Cândido Mariano da Silva Rondon. Da proposta inicial
de Roquette-Pinto até a criação do Território Federal de
Guaporé (1943), o SPI protagonizou políticas indutoras de
mudanças na gestão de territórios e promoveu amálga-
mas entre as políticas tutelares e as ciências com pers-
pectivas positivistas formularam categorizações às socie-
dades indígenas dentro de escalas do evolucionismo
social (CUNHA, 2016, p. 37).

A influência de Rondon no pensamento de Darcy pode ser


localizada no conceito de Transfiguração Étnica, por meio do qual
ele explicava a “assimilação dos índios na sociedade brasileira”, indi-
víduos que se transformavam com o convívio na sociedade nacio-
nal, mas sem necessariamente perder traços fundamentais de suas
manifestações culturais (RIBEIRO, 2012, p. 172). O antropólogo bra-
sileiro foi um forte crítico do conceito de “aculturação”, tão em voga
nas ciências sociais àquela altura. A crítica por ele feita levantava a

SUMÁRIO 137
incapacidade do termo em lidar com a complexidade do que ocorria
com os povos indígenas na prática, pois eles não abandonavam por
completo suas culturas em prol da incorporação aos padrões sociais
modernos, mas eram transfigurados por meio de mecanismos de
resistência. O confronto entre as distintas culturas levou a um pro-
cesso de transformação, não de abandono:
As duas principais características do processo de trans-
figuração étnica das tribos indígenas brasileiras fazem
dele uma sequência natural e necessária de eventos
resultantes do enfrentamento entre ramos distintos e
originalmente isolados da espécie humana e entre socie-
dades evolutivamente defasadas. O processo atua, assim,
em dois níveis. Primeiro, como um enfrentamento entre
populações que, configurando distintas entidades bióti-
cas, ao entrarem em convivência mescla racialmente e se
contagiam reciprocamente (RIBEIRO, 1982, p. 221).

O conceito de Transfiguração Étnica foi alvo de críticas no


cenário antropológico. Como constatou Antônio Carlos de Souza
Lima (2015), mesmo considerando a possibilidade da permanên-
cia de traços culturais indígenas diante da expansão da sociedade
nacional, Darcy formulou sua teoria partindo da inevitabilidade do
progresso social e tecnológico da civilização moderna. Portanto,
caberia às populações nativas se transformarem para sobreviverem,
já que o avanço da sociedade moderna era inevitável. A ideia de
Transfiguração Étnica, desenvolvida na obra Os Índios e a Civilização
(1970), consistiu em um instrumental teórico desenvolvido por ele
para a elaboração de uma grande síntese antropológica que almejou
um discurso uniformizante da formação nacional, possibilitado por
práticas tutelares e pelo apagamento da alteridade. De outra sorte,
os pesquisadores do SPI, dentre os quais estava inserida nossa
personagem, acreditavam serem os verdadeiros especialistas pela
tradução sociocultural dos índios, mas sem considerar a assimetria
de um discurso que falou em nome do “outro”, mas não possibilitou
que o “outro” tivesse sua própria voz. Darcy, como um “especialista

SUMÁRIO 138
da significação”, apresentou as populações indígenas sob a ótica da
comunidade nacional, alienando suas coletividades (SOUZA LIMA,
2015, p. 434). O resultado de suas reflexões antropológicas pode ser
descrito como a tentativa de
[...] rotular genericamente coletividades, vinculando-as
a espaços e práticas supostamente distintas, e inseri-las
num sistema codificado e hierarquizado de atribuições
positivas e negativas — um status, portanto —, parte de
um mecanismo imaginado como de governo no sentido
de Michel Foucault (2004), operado em escala nacio-
nal. Com tal descrição, define-se também um corpo
de especialistas em tal tipo de coletividade (SOUZA
LIMA, 2015, p. 432).

O mineiro integrou o primeiro corpo de especialistas em


etnologia quando atuou na Seção de Estudos e coordenou pesqui-
sas de campo em diversas comunidades indígenas no interior do
país. Todavia, suas ideias eram uma combinação de “dimensões
protetivas e pedagógicas moralmente positivas” que sustentavam
uma abordagem evolucionista acerca dos povos indígenas (SOUZA
LIMA, 2015, p. 433). A construção do Parque Nacional do Xingu (1961)
é um importante exemplo de como o humanismo positivista era
uma política de proteção indígena de caráter tutelar e centralizado
no Estado brasileiro:
Por um lado, com a criação do Parque do Xingu monta-
va-se o que durante muito tempo foi conhecido como a
“vitrine” do indigenismo brasileiro, esse “mundo prístino”
e “intocado pelo branco”, como foi sempre apresentado,
onde os índios poderiam existir segundo um modo de
vida que já não lhes era mais possível nas regiões de
colonização mais antiga, correspondendo à imagem do
índio primitivo, o verdadeiro índio, calcada na imagina-
ção romântica e em si uma forma de reeditar muitos dos
preconceitos: os verdadeiros índios seriam os que se
aproximassem dessa vitrine humana de índios do desco-
brimento (SOUZA LIMA, 2015, p. 437).

SUMÁRIO 139
Darcy foi responsável pela elaboração das justificativas da
criação do Xingu58, ocorrida no governo de Jânio Quadros. Ao fazê-lo,
articulou um conjunto de memórias que desaguou na formulação de
um passado arqueológico sobre os povos indígenas. Como dito por
Carlos Augusto Freire (2005, p. 12), a reserva foi a cristalização da
ideologia do SPI e de um modo de interpretação da história brasileira
assombrada pelos ecos de nosso passado colonial. Assim como os
sertanistas e os jesuítas, os etnólogos e pesquisadores do início do
século XX foram incumbidos da “nobre missão” de proteger aqueles
que não podiam se defender, buscando sedentarizar os povos erran-
tes para seu próprio bem (SOUZA LIMA, 2015, p. 429). Assim Darcy
descreveu sua relação com o Xingu:
Feito meu de que me orgulho muito foi colaborar na cria-
ção do Parque Indígena do Xingu, em colaboração com
os irmãos Orlando e Cláudio Villas Boas, com o doutor
Noel Nutels e com Eduardo Galvão. Os Villas Boas dedi-
caram toda as suas vidas a conduzir os índios xinguanos
do isolamento original em que os encontraram até o cho-
que com as fronteiras da civilização. Aprenderam a res-
peitá-los e perceberam a necessidade imperiosa de lhes
assegurar algum isolamento para que sobrevivessem
(RIBEIRO, 2012, p. 174-175).

O SPI e a criação do Xingu foram feitos seus enquanto agente


oficial do Estado brasileiro. Sua prática de pesquisa foi penetrada pelo
humanismo positivista à medida que argumentava estar protegendo
os índios do mal-estar moderno. Souza Lima (2015, p. 428) levantou a
seguinte crítica: os etnólogos do SPI buscavam inserir as populações
indígenas nos “processos de formação do Estado” em nome dos
interesses políticos nacionais e do interesse econômico de grupos
privados interessados na expropriação da terra. Em sentido oposto,
Gomes (2009, p. 178) reconheceu uma “atitude ética inesperada”

58 Como apontou Gomes (2000, p. 11), o Parque Nacional do Xingu já estava sendo pensado por
Darcy, Rondon e os irmãos Villas-Boas desde 1952. Todo o projeto foi acompanhado, também, do
desenvolvimento do Museu do Índio.

SUMÁRIO 140
por parte do órgão e de Darcy naquilo que concernia à defesa do índio
em relação ao avanço dos “homens brancos” e ao declínio numérico
dessas populações. Nessa interpretação, Gomes reconheceu, no
SPI, importante papel na manutenção das formas de vida indígenas
e no combate ao extermínio das diversas etnias que estavam sendo
dizimadas pelo avanço societário. Apresento, agora, o argumento de
Gomes, seguido pelo apontamento darcyniano acerca do legado do
positivismo rondoniano:
A crítica, portanto, tem procedência, mas as explicações
são igualmente compreensíveis para o contexto da época.
Nesse tempo, em qualquer parte do mundo, os povos
indígenas estavam em processo de queda demográfica
e destituição cultural. No Brasil e nos trópicos do mundo
isso parecia ainda mais verdadeiro. Os antropólogos que
visitavam povos indígenas o faziam na expectativa de
que eles, se não fossem os primeiros, certamente seriam
os últimos a visitá-los em condições étnicas de sobrevi-
vência. Os estudos etnográficos eram feitos no espírito
de salvamento daquilo que podia ser salvo: amostras da
cultura material, a coleta de mitos, a descrição de rituais,
a análise de parentesco e das condições econômicas e
ecológicas de sobrevivência (GOMES, 2009, p. 185).

Citamos, agora, Darcy Ribeiro:


A feição prática e política indigenista se assentou na
experiência pessoal de Rondon, acumulada em vinte anos
de atividades nos sertões do Mato Grosso. Positivista
militante, orientara toda a sua vida de acordo com os
postuladores de Augusto Comte. Oficial recém-formado,
recusara a cátedra na Academia Militar, escolhendo, para
atuar, o setor onde poderia mais eficazmente imprimir à
tropa sob seu comendo uma feição construtiva e pacífica,
tal como Comte propugnara para o advento do Estado
Positivo […] (RIBEIRO, 1982, p. 135).

A etnologia darcyniana e os estudos suscitados pelo SPI


não caminharam na busca do reconhecimento da alteridade socio-
cultural, mas intentaram encontrar um caminho que reduzisse

SUMÁRIO 141
a dizimação dos povos ancestrais no confronto com a civilização
moderna e o declínio da diversidade étnica ocasionado por esse
contato. Segundo Gomes (2009, p. 179), o órgão contribuiu dire-
tamente para a demarcação de terras indígenas, o que permitiu a
algumas etnias reproduzirem seu modo de vida social – caça, pesca
e coleta –, além de ter sido responsável por realizar um profundo
levantamento histórico – no qual Darcy contribuiu diretamente –,
coletando dados estatísticos, relatos orais e indícios arqueológicos
que permitiram a preservação de importante legado cultural. Dito
isso, percebemos que as discussões acerca do SPI se encontram
longe de uma conclusão. Este trabalho não pretende dar resposta a
essas indagações, mas indicar que os debates acerca das políticas
indigenistas do século XX desencadearam posições contrárias, aqui
figuradas pelas abordagens de Souza Lima e Gomes. Já que nosso
objeto de investigação é Darcy, interessa-nos a forma como que ele
se posicionou em relação aos índios e ao SPI. Seguindo o que foi
posto por Elaine Tavares (2018) e Lucas Pinheiro (2012), o antropó-
logo mineiro era um defensor do lema rondoniano: “Morrer talvez,
matar nunca”, assumindo que, naquelas circunstâncias, a defesa
dos índios e a sua preservação física deveria ser feita por meio de
intervenção direta do órgão como forma de protegê-los diante da
dizimação deflagrada pela civilização moderna:
Fundado nos princípios do positivismo de Augusto
Comte, mas superando-os largamente, Rondon e seus
companheiros estabeleceram um corpo de diretrizes que
por décadas orientaram uma política indigenista oficial.
Eles afirmavam que o objetivo não pode ser exterminar ou
transformar o indígena, mas fazer dele um índio melhor,
dando-lhe acesso às ferramentas e a orientação adequada.
O que cumpria fazer em essência era assegurar aquele
mínimo indispensável a cada povo indígena, que é direito
de ser índio, mediante a garantia de um território onde
possam viver sossegados, a salvo de ataques, e recons-
truir sua vida e seus costumes (RIBEIRO, 2015c, p. 110).

SUMÁRIO 142
Para além de sua atuação como pesquisador no SPI,
Darcy ocupou a cátedra de Etnografia Brasileira e Língua Tupi, na
Faculdade Nacional de Filosofia – FNFi, a partir de 1956. Os cursos
por ele ministrados também versavam sobre questões concernen-
tes à integração das populações indígenas à sociedade moderna e
tomavam como base os estudos que havia desenvolvido nos traba-
lhos de campo pelo SPI59:
Havia sido contratado para dar um curso de etnografia
brasileira de língua tupi. Língua tupi nunca ensinei. Sou
ruim para línguas, ainda que muito bom em português.
Minha etnografia era, de fato, uma introdução à antro-
pologia teórica, que eu recheava com exemplificações
tiradas da etnologia indígena. Exemplificava, por exemplo,
o sistema adaptativo com meus estudos sobre os índios
Kaapor (RIBEIRO, 2012, p. 181).

Como pontuou Gomes (2000, p. 29), Darcy sempre defen-


deu, em seu ofício antropológico como pesquisador e professor, a
possibilidade de sobrevivência dos índios em contato com a socie-
dade nacional, desde que “conseguissem alterar sucessivamente
o seu substrato biológico e cultural, bem como sua forma de rela-
cionamento com a sociedade envolvente”. Diante da inevitabilidade
do progresso, as populações nativas deveriam se transfigurar cultu-
ralmente como forma de sobrevivência. Tal transformação não era
um abandono integral de suas práticas sociais anteriores, mas uma
reconfiguração necessária que conservava determinados traços
indenitários. Seguindo o conceito de Transfiguração Étnica, o autor
tentou demonstrar que todas as formações culturais são produzi-
das mediante confronto. A sobrevivência dos índios era possível,

59 Dentre as monografias que produziu na época em que integrou a Seção de Estudos, merece
menção seu escrito sobre os povos Kadiwéu. Darcy desenvolveu um trabalho sobre a religião e a
mitologia dos Kadiwéu, de modo a dar destaque às alterações sofridas por esses povos quando
entraram em contato com os colonizadores. Ele fez várias alterações no texto original para con-
correr à cátedra na FNFi. Além disso, recebeu, por esse trabalho, o prêmio Fábio Prado (1950). Para
mais, ver Gomes (2000) e Ribeiro (2012).

SUMÁRIO 143
pois eles estavam em um processo de reinvenção constante por
meio do choque com a civilização. Em suas palavras,
Foi nessa base de observações diretas e em toda biblio-
grafia pertinente, bem como na vasta documentação que
me foi acessível, que propus o conceito de transfiguração
étnica, ou seja, a compreensão de que as culturas são
imperativamente transformadoras no confronto umas
com as outras. Especificamente no caso dos povos indí-
genas com a civilização (RIBEIRO, 2012, p. 174).

Aquilo que começou como um projeto humanitarista de


salvação dos povos indígenas converteu-se na redenção de toda a
nação brasileira, como argumentou Helena Bomeny (2001). O dis-
curso salvacionista de Darcy expandiu-se das etnias originárias para
o Brasil a partir do momento em que ele começou a ocupar posi-
ções de poder na política nacional. O que, até então, se restringia a
monografias e pesquisas locais, acabou por se converter em uma
análise da invenção da própria nacionalidade. As perguntas feitas
por ele eram: por que nós, descendentes dos primeiros mamelucos,
fomos condenados ao fracasso histórico enquanto forma civilizacio-
nal? O que havia em nosso passado que nos condenou, ao menos
no plano estrutural, a um retrocesso econômico e social? O pensa-
mento darcyniano sofreu um alargamento a partir do momento em
que o autor passou a ocupar espaços institucionais no poder público
brasileiro. Para explicar determinados pontos de mutação em sua
atividade intelectual, vamos descrever, ao menos sumariamente, tra-
ços biográficos e institucionais importantes à nossa argumentação.
A primeira parada de Darcy na vida pública foi o Centro Brasileiro de
Pesquisas Educacionais - CBPE.

SUMÁRIO 144
UM TIPO DE ANTROPOLOGIA:
PEQUENAS NOTAS CONCLUSIVAS
Vejamos um breve trecho de outra instigante reflexão
de Peirano:
Em termos da antropologia que se tomou legítima no
Brasil, há, portanto, pelo menos dois tipos de manifesta-
ção a considerar: até os anos 60, pelo rótulo de antro-
pologia entendia-se de forma dominante (se não exclu-
siva) o estudo hoje considerado canônico ou clássico
de sociedades tribais ou primitivas, como era comum
nos grandes centros europeus e norte-americanos
(PEIRANO, 2000, p. 220).

Tomando o trecho acima como um referencial, podemos


pensar a etnologia de Darcy como fundamento de sua prática antro-
pológica e alicerce de uma geração que se formou no Museu do
Índio. Se iniciamos esse ensaio com a pergunta de Ramos, pode-
mos, ao menos preliminarmente, oferecer balizas para uma possí-
vel resposta. A escolha darcyniana pela antropologia perpassou
uma formação humanística iniciada na infância e aprofundada nos
tempos em que viveu na capital mineira para realização do curso
preparatório para medicina. Os rumos mudaram, contudo, a partir
do encontro com Pierson e a possibilidade de cursar ciências sociais
na ELSP. Dali em diante, Darcy foi percorrendo uma trajetória que,
intermediada por Baldus e Rondon, o levou à prática de uma etno-
logia que, na dinâmica do seu pensamento, tornou-se sinônimo do
que era – ou, ao menos, do que deveria ser – a antropologia naquelas
circunstâncias históricas.

O movimento seguinte no SPI permitiu-lhe sistematizar suas


pesquisas a partir da experiência de campo e da consolidação de
uma tradição de estudos na área do indigenismo. Caberia ressaltar,
ainda, que as pesquisas acerca das etnias indígenas mobilizaram

SUMÁRIO 145
o pensamento darcyniano pelas décadas seguintes, em sua busca
pelas raízes da brasilidade. Já no final da década de 1940, ele pro-
curou “um grupo o mais parecido possível com os Tupinambá de
1500, pois foram eles que fizeram a forma básica da cultura brasileira”
(RIBEIRO, 1997, p. 172), e, no encontro com o colonizador, buscou
determinar nossas próprias linhas históricas, como, por exemplo, sua
construção narrativa em O Povo Brasileiro (RIBEIRO, 2015c).

REFERÊNCIAS
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SUMÁRIO 147
6
Vânia Noeli Ferreira de Assunção

APONTAMENTOS SOBRE
A PERCEPÇÃO DA FORMAÇÃO
DO CAPITALISMO BRASILEIRO
COMO “VIA PRUSSIANA”
EM CARLOS NELSON COUTINHO
E SUA CRÍTICA POR J. CHASIN
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.6
Este texto tem o modesto objetivo de inventariar os caracteres
centrais da noção de via prussiana segundo Carlos Nelson Coutinho,
principal autor que dela se valeu para entender e transformar a reali-
dade brasileira, e J. Chasin, que a criticou como inadequada à espe-
cificidade do país, que, segundo ele, objetivou o capitalismo pela via
colonial. Trata-se de um momento inicial da pesquisa, para, numa
segunda etapa, analisar mais demoradamente a categoria, demons-
trando as suas possibilidades e limites em uma comparação crítica
com a de via colonial.

CARLOS NELSON COUTINHO


E A NOÇÃO DE “VIA PRUSSIANA”
Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) foi um importante mar-
xista brasileiro que, inicialmente no interior da crítica literária, utilizou
de maneira instigante a categoria de “via prussiana” como forma de
entender o processo de modernização da nossa sociedade.

Para o filósofo, o Brasil era, até por volta dos anos 1930, “uma
sociedade semicolonial em crise”, com “uma economia semifeudal”
(termo posteriormente substituído por outros, como “pré-capitalista”)
cujas capacidades se esgotaram devido a não ter engendrado uma
economia e uma sociedade modernas, dada a inexistência de uma
renovação radical. Nos seus termos:
A ausência de uma economia integrada – estruturada
em torno de um mercado interno único – era causa e
efeito da inexistência de uma classe burguesa orgânica,
que estivesse em condições de promover uma autêntica
revolução democrática. Assim, o total fracionamento de
nossa sociedade – típico de uma economia pré-capita-
lista – impedia a formação de uma verdadeira comuni-
dade humana, de uma vida pública democrática, afas-
tando o povo de qualquer participação criadora em nossa

SUMÁRIO 149
história. A estagnação social condenava os homens a
uma vida medíocre, ao cárcere de um “pequeno mundo”
restrito e sem perspectivas, separado da autêntica vida
social e comunitária por paredes bastante espessas.
(COUTINHO, 1967, p. 140-1)

O autor salientaria posteriormente que “a transição do Brasil


para o capitalismo (e de cada fase do capitalismo para a fase sub-
sequente) não se deu apenas no quadro da reprodução ampliada
da dependência (...), se processou também segundo o modelo da
‘modernização conservadora prussiana’” conceituado por Moore Jr.
(COUTINHO, 1984, p. 133). Isso porque as transformações “pelo alto”
implicaram a constante tentativa de impedir uma participação ativa
das massas populares na vida social em geral, e em especial nos
processos decisórios sobre as grandes questões políticas nacionais.
Durante toda a República Velha, os direitos constitucionais foram
mantidos em suspensão; não havia sociedade civil desenvolvida nem
partidos políticos ideologicamente estruturados e organizados em
nível nacional; o parlamento funcionava como extensão do Executivo;
a repressão mantinha controladas as manifestações do proletariado
nascente e das camadas médias urbanas (COUTINHO, 2003, p. 213;
2020, p. 231). E assim, concluía, “o país ingressava na era capitalista
(que já atingira no plano universal a fase imperialista, a fase das guer-
ras e revoluções em escala mundial) sem ter resolvido os impasses
históricos decorrentes da ‘via prussiana’” (COUTINHO, 1974, p. 18-9).

Nesse processo, a classe dominante, que havia sido “imposta


ao povo de cima para baixo ou mesmo de fora para dentro e, por-
tanto, não possuía uma efetiva identificação com as questões popu-
lares, com as questões nacionais”, pôs-se desde logo distanciada do
povo e de seus movimentos, abrindo mão do anseio de ser também
classe dirigente, e por isso “o estado moderno brasileiro foi quase
sempre uma ‘ditadura sem hegemonia’” (COUTINHO, 2020, p. 232).
Coutinho advertia que a burguesia brasileira “se ligou organica-
mente à mesquinhez da sociedade semifeudal” e “renunciou, talvez

SUMÁRIO 150
definitivamente, aos princípios democráticos e humanistas do seu
período de ascensão revolucionária nos países hoje desenvolvidos”
(COUTINHO, 1967, p. 156). No bojo desta renúncia, nem mesmo os
“os mais consequentes entre os nossos burgueses, os que encarnam
a mais alta possibilidade de ambição e de progresso contida em sua
classe”, viam além das frestas do “cárcere do ‘pequeno mundo’” em
que viviam, com o qual conciliavam, e às quais limitavam seus hori-
zontes, sem “abrir-se para uma vida comunitária e autenticamente
humana” (COUTINHO, 1967, p. 156-7).

As classes médias urbanas e o campesinato, por sua vez, não


chegavam a expressar “um ponto de vista global, universal, sobre a
realidade brasileira, já que estavam interessadas apenas em transfor-
mações parciais, em reformas” (COUTINHO, 1967, p. 184). Do campe-
sinato dizia que “formas semifeudais de remuneração do trabalho –
bem como, na maioria esmagadora dos casos, o caráter não-proprie-
tário do camponês – fazem deste um nômade” (COUTINHO, 1967,
p. 172). Estava também ele destinado “ao restrito ‘pequeno mundo’
da solidão, o qual, neste caso, não possui nem mesmo os ‘refina-
dos atrativos’ do seu equivalente nas classes dirigentes”, pois estava
apartado “do ‘grande mundo’ da história, da participação criadora
na vida pública” (COUTINHO, 1967, p. 175). A grande reivindicação
do campesinato era o acesso à pequena propriedade, resultante de
uma reforma agrária de viés capitalista, o que o impedia de assu-
mir uma posição socialista. Já “o proletariado ainda era, entre nós,
uma classe inteiramente desorgânica, impotente e marginalizada”
(COUTINHO, 1967, p. 184).

Nosso autor constatava, dessa forma, a “inexistência, na


sociedade brasileira de então, das classes sociais que tornariam pos-
sível, se não o estabelecimento, pelo menos a possibilidade concreta
da criação imediata de uma nova sociedade, de um ‘grande mundo’
humanista e democrático” (COUTINHO, 1967, p. 158). Ausentes as
classes sociais historicamente responsáveis por sua efetivação,

SUMÁRIO 151
as perspectivas revolucionárias nunca vicejaram: “As esperanças de
renovação democrática da sociedade eram violentamente cortadas:
a ausência de uma classe social efetivamente (e não apenas poten-
cialmente) revolucionária condenava os que pretendiam lutar por
uma nova comunidade à solidão e à incompreensão.” (COUTINHO,
1967, p. 140) Ademais, sem as condições para “autênticas revoluções”
levadas a cabo por amplos movimentos populares, com a participa-
ção ativa e estimuladora das massas, as mudanças que ocorreram
no Brasil se deram pela conciliação entre as classes economica-
mente dominantes, sob a forma política de “reformas ‘pelo alto’”
(COUTINHO, 1984, p. 132).

Após fazer apontamentos sobre a história brasileira dos


séculos XIX e XX, Coutinho sintetizou que os seus principais acon-
tecimentos foram conciliações pelo alto entre o historicamente novo
e o historicamente velho (como dissera Lênin em outro contexto). O
teórico asseverava que todas as possibilidades concretas no interior
das transformações políticas, bem como a modernização econômi-
co-social “(desde a independência política ao golpe de 1964, pas-
sando pela Proclamação da República e pela Revolução de 1930),
encontraram uma solução ‘pelo alto’, ou seja, elitista e antipopular”
(COUTINHO, 2003, p. 196). Com medidas realizadas de cima para
baixo, conservaram-se os principais elementos das relações de pro-
dução atrasadas (como o latifúndio) e, ao mesmo tempo, reprodu-
ziu-se ampliadamente a dependência ao capital estrangeiro. A este
processo ele designou, na esteira de Gramsci, “revolução passiva”.

Para Coutinho, o capitalismo brasileiro passou por uma


modernização “sem por isso ser obrigado a realizar uma ‘revolu-
ção democrático-burguesa’ ou de ‘libertação nacional’ segundo
o modelo jacobino: o latifúndio pré-capitalista e a dependência
em face do imperialismo não se revelaram obstáculos insupe-
ráveis ao completo desenvolvimento capitalista do país”. Assim,
foi possível, de forma paulatina e “pelo alto”, a transformação da
grande propriedade latifundiária em empresa capitalista agrária.

SUMÁRIO 152
Como à “decadência de nossa estrutura agrária semifeudal” não se
seguiu uma transformação capitalista do campo, “o latifúndio – o
monopólio da terra – torna-se a causa da exploração e da miséria no
campo brasileiro” (COUTINHO, 1967, p. 172-3).

O teórico apontava a existência de um “desenvolvimento desi-


gual e duplamente contraditório do nosso capitalismo” (COUTINHO,
1967, p. 160), opondo “uma sociedade semicolonial em decadência”
ao desenvolvimento de elementos capitalistas que, por sua vez – “por
força da especificidade de nossa formação histórica e da natureza
geral do próprio capitalismo – revelavam desde logo a sua interior
ambiguidade e contraditoriedade” (COUTINHO, 1967, p. 171). Assim,
no Brasil, o capitalismo teve características muito próprias, em face
da simultânea e conflitante convivência de estágios de desenvolvi-
mento diferentes. As contraditórias repercussões desta situação às
vezes penetravam a antiga ordem estancada, alojando-se nela, às
vezes davam um empurrão em direção ao avanço, e outras vezes,
ainda, permitiam o aparecimento de canais que poderiam, em tese,
desembocar numa sociedade socialista. Ele concluía, por isso, que,
de forma contraditória e limitada, “o capitalismo não deixou de trazer
elementos novos para o quadro de nossa realidade” (COUTINHO,
1967, p. 143). De fato, conforme Coutinho, o capitalismo nascente
impulsionou de forma progressista a saída da situação estagnada
anteriormente existente, mas, devido à sua fraqueza e sua incapaci-
dade de adjudicar organicidade ao complexo societário da perspec-
tiva totalizante moderna, foi levado à conciliação com o antigo, termi-
nando por apresentar empecilhos às forças de fato renovadoras. “Em
suma, o capitalismo brasileiro, desde o seu surgimento, já apresenta
manifestações de crise estrutural, condicionando a abertura de pers-
pectivas que lhe transcendem.” (COUTINHO, 1967, p. 156)

Uma das novidades trazidas pelo processo de industriali-


zação e urbanização foi o agravamento da “dependência brasileira
ao imperialismo”, bem como as lutas de classes modernas: a par-
tir de então, tornavam-se mais evidentes as contradições sociais,

SUMÁRIO 153
em vista das modificações que “fazem com que o capitalismo se torne
o modo de produção predominante no Brasil” (COUTINHO, 2003, p.
214). Nesse processo, o mercado interno brasileiro se internacionalizou
e o capital estrangeiro reforçou as modificações que tornaram o Brasil
um país industrial, urbanizado e com uma estrutura social complexa.

O caráter tendencialmente prussiano do enfrentamento


das mazelas da formação sócio-histórica brasileira teve como sua
contraface o fortalecimento do Estado, o que se evidenciou já no
processo da Independência, quando, segundo Coutinho, não havia
ainda uma nação, mas já se constituíra um Estado unificado. No seu
entender, a nação só viria a ser conformada posteriormente e com
muitas diferenças regionais, do que concluía “que a nação brasileira
foi construída a partir do estado e não a partir da ação das mas-
sas populares” (COUTINHO, 2020, p. 232). O Estado (a “sociedade
política”, em termos gramscianos) foi um órgão fundamental para a
conciliação de classes constante na história brasileira, expandindo
seus poderes, especialmente os repressivos, em contraposição à
sociedade civil, na qual estão os aparelhos privados de hegemonia
(COUTINHO, 1984, p. 134). Tratava-se de um Estado “autoritário” e
“centralizador”, a partir do qual a “supremacia da classe no poder
se dava por meio da dominação (ou da ditadura) e não da direção
político-ideológica (ou da hegemonia)” (COUTINHO, 2020, p. 240).
Seus aparelhos repressivos e de intervenção econômica foram uti-
lizados recorrentemente numa transformação capitalista resultante
do acordo entre segmentos das classes dominantes, em vez de ser
produto de um processo dirigido por uma burguesia revolucionária
na liderança de massas camponesas e trabalhadores urbanos.

Desta maneira, conforme o filósofo (com a exceção do perí-


odo conhecido como “populista”, no qual teria ocorrido uma “hege-
monia seletiva”), o Estado brasileiro estava desde sempre a serviço de
interesses privados, acentuando exageradamente esta característica
dos Estados capitalistas em geral, tendo em vista que no Brasil não
havia negociações ou concessões das classes dominantes às classes

SUMÁRIO 154
sociais subordinadas. No país, a subsunção do Estado aos “interesses
privados se manifestava com sua tomada como propriedade privada
dos seus ocupantes, donde seu acentuado caráter patrimonialista –
cujo objetivo era, antes de tudo, promover as melhores condições
para a expansão do capital privado” (COUTINHO, 2020, p. 242-3).

Vemos que já desde os primeiros escritos (mesmo sem men-


ção explícita ao termo “via prussiana”) Coutinho buscava entender o
processo ocorrido no Brasil, como sintetizado neste trecho:
Aqui, a burguesia se ligou às antigas classes dominantes,
operou no interior da economia retrógrada e fragmentada.
Quando as transformações políticas se tornavam neces-
sárias, elas eram feitas “pelo alto”, através de conciliações
e concessões mútuas, sem que o povo participasse das
decisões e impusesse organicamente a sua vontade cole-
tiva. Em suma, o capitalismo brasileiro, ao invés de pro-
mover uma transformação social revolucionária – o que
implicaria, pelo menos momentaneamente, na criação de
um “grande mundo” democrático – contribuiu, em muitos
casos, para acentuar o isolamento e a solidão, a restrição
dos homens ao pequeno mundo de uma mesquinha vida
privada (COUTINHO, 1967, p. 142).

O autor lembrava que, mesmo que a ideologia humanista


burguesa (“o máximo de consciência possível do gênero humano
em dada etapa de sua evolução histórica” [COUTINHO, 1967, p.
183]), tenha se revelado uma ilusão, a sua própria existência impul-
sionou as revoluções burguesas europeias e contribuiu para alargar
os horizontes das formações sociais emergentes. No Brasil, nada
nessa direção existiu efetivamente. O capitalismo aqui se objeti-
vou sem ter tido seu terreno preparado “por uma época de ilusões
humanistas e de tentativas – mesmo utópicas – de realizar na
prática o ‘cidadão’ e a comunidade democrática. Os movimentos
neste sentido, ocorridos no século passado e no início deste século
[XX], forma sempre agitações superficiais, sem nenhum caráter
verdadeiramente nacional e popular” (COUTINHO, 1967, p. 142).

SUMÁRIO 155
Aqui, o capitalismo se desenvolveu “no interior da economia semifeu-
dal e dependente” e que não compartilhava os ideais revolucionários
que haviam existido na Europa Ocidental. Seu caráter conciliador
o impedia de atacar os preconceitos e privilégios pré-capitalistas,
antes os fortalecia, bem como era inabilitado para efetivar uma revo-
lução democrática. Donde, no Brasil, o capitalismo não apresentava
nenhuma inclinação e nem tinha um baluarte para um movimento
revolucionário conforme havido nos países clássicos, nunca se pôs
como projeto a criação do cidadão – indivíduo síntese da vida pública
com a vida privada – nem da autêntica comunidade humana, “na
qual os interesses individuais e os interesses coletivos formam uma
totalidade orgânica” (COUTINHO, 1967, p. 141).

Ainda nos anos 1970, ele reforçou algumas características


e agregou outras, desta vez recorrendo explicitamente à noção
de via prussiana:
O caminho do povo brasileiro para o progresso social –
um caminho lento e irregular – ocorreu sempre no quadro
de uma conciliação com o atraso, seguindo aquilo que
Lênin chamou de “via prussiana” para o capitalismo. Ao
invés das velhas forças e relações sociais serem extirpa-
das através de amplos movimentos populares de massa,
como é característico da “via francesa” ou da “via russa”,
a alteração social se faz mediante conciliações entre o
novo e o velho, ou seja, tendo-se em conta o plano ime-
diatamente político, mediante um reformismo “pelo alto”
que exclui inteiramente a participação popular. Como
consequência desse “modelo” de evolução, difunde-se
a impressão de que a mudança social assemelha-se a
um “destino fatal”, inteiramente independente da ação
humana; e, como contrapartida desse fatalismo, ganha
força em outras áreas a suposição – igualmente equivo-
cada – de que aquela mudança resulta tão somente da
ação singular de “indivíduos excepcionais”. No quadro
desse profundo divórcio entre o povo e a nação, torna-se
assim particularmente difícil o surgimento de uma autên-
tica consciência democrática (COUTINHO, 1974, p. 3).

SUMÁRIO 156
O processo de análise dos textos coutinianos revelou a recor-
rência a “três fontes” explicativas do processo de modernização do
Brasil, “paradigmas” paulatinamente incorporados a seu raciocínio
e que, dizia, facultavam “captar algumas determinações decisivas
da formação do estado que se gestou em nosso país” (COUTINHO,
2020, p. 231). Trata-se da via prussiana de Lênin e G. Lukács, com
as quais trabalhou desde 1972; da revolução passiva de Gramsci e
da modernização conservadora de Barrington Moore Jr., agregadas
num segundo momento ao seu pensamento:
Há três paradigmas que nos ajudam a pensar essa moda-
lidade peculiar pela qual o Brasil transitou para a moder-
nidade e enfrentou os grandes desafios históricos de sua
evolução política, praticamente desde a Independência.
O primeiro desses paradigmas é o conceito de “via prus-
siana”, elaborado por Lênin. (...) Conceito análogo aparece
em Gramsci, ou seja, o conceito de “revolução passiva”.
(...) Finalmente, há um conceito mais “acadêmico”, ou seja,
com melhor trânsito na universidade, que também ajuda
a pensar o caso brasileiro: o conceito de “modernização
conservadora”, elaborado pelo sociólogo norte-americano
Barrington Moore Jr. (COUTINHO, 2020, p. 230-1).

No período final de sua produção teórica, o filósofo baiano


trabalhava com esses conceitos como se fossem idênticos ou, pelo
menos, como complementares, já que iluminariam aspectos diferen-
tes do mesmo processo – inobstante as filiações teóricas bastante
distintas dos autores que os elaboraram.

J. CHASIN E A CRÍTICA
DA IDENTIFICAÇÃO DO CAMINHO
BRASILEIRO COMO “VIA PRUSSIANA”
J. Chasin (1937-98) foi um filósofo e professor universitário
marxista paulistano. Embora muito pouco conhecido, trata-se de um
pensador fundamental para a compreensão do Brasil e crítico do uso
de “via prussiana” para a objetivação do capitalismo no país.

SUMÁRIO 157
Em sua tentativa de desvelar a especificidade do Brasil no
rol dos países capitalistas, o teórico faz um movimento de retorno a
Marx, tendo em vista que este estudou constantemente as formas
particulares de objetivação do capitalismo, ao abordar questões
relativas a países como Inglaterra, França e Estados Unidos, de um
lado, e Alemanha, de outro. Chasin lembra que, segundo Marx, os
primeiros países seguiram uma via clássica ao capitalismo, nos quais
a burguesia assumira a representação dos interesses universais das
demais classes oprimidas pelo feudalismo e realizara uma revolu-
ção cuja vitória resultara na inauguração de todo um novo sistema
social, estabelecendo uma dominação econômica e política “na
identidade formal da soberania popular” (CHASIN, 2000, p. 158). Nos
países de via clássica (na Inglaterra, ainda no século XVII, portanto
de forma precoce; na França, no século XVIII), a burguesia dera cabo
de tarefas históricas próprias, resultando delas a efetivação de uma
economia capitalista e de uma sociedade burguesa interdependen-
tes, estruturadas de forma orgânica e integral e interdeterminadas
(CHASIN, 2000, p. 216).

Coisa diversa ocorrera em países retardatários, como


Alemanha, Itália e Japão, que objetivaram o capitalismo pela via
prussiana. Chasin se baseia especialmente na análise marxiana da
Alemanha, cujas contradições foram sintetizadas pelo próprio filó-
sofo alemão na expressão miséria alemã. O teórico paulistano recorre
ainda a Lênin e a Engels para destacar os elementos contraditórios
desse desenvolvimento tardio, bem como a Lukács, que pôde acom-
panhar os desdobramentos daquela situação de que Marx, Engels e
Lênin só viram um primeiro momento e que se dedicou a investigar
o caso alemão de forma constante, profunda e sistemática.

A industrialização alemã era atrasada em relação aos países


clássicos, já que se iniciara em meados do século XIX, ganhando
velocidade e intensidade apenas a partir da unificação, em 1871.
Esse processo se caracterizara, ademais do atraso, pela ausência de
revoluções, tendo ocorrido por meio de conciliações com a antiga

SUMÁRIO 158
ordem, produzindo uma combinação de novos e velhos problemas,
de retrocessos e avanços. De fato, ainda que com um atraso secu-
lar, houvera um desenvolvimento significativo, veloz e completo em
determinadas regiões da Alemanha no final daquele século. Como
resultado das especificidades históricas e conjunturais de sua situ-
ação, a burguesia prussiana se impusera a toda a Alemanha sem
um processo revolucionário; a burguesia alemã renunciara ao poder
político, instituindo sua dominação por meio de concessões e com-
binações com as classes dominantes remanescentes do feudalismo,
suprimindo a participação das grandes massas populares, subjuga-
das pela repressão e pela força da ideologia. Nos limites dessa forma
de dominação, na qual abrira mão do poder político, a burguesia ao
menos cumprira suas tarefas econômicas, mormente a industrializa-
ção, que solidificara com uma indústria de base de porte significativo.

Chasin sintetiza as principais características da via prussiana,


segundo os autores clássicos, da seguinte forma: desenvolvimento
do capitalismo tardio, lento, resistente ao progresso, ocorrida por
meio da conciliação entre as classes dominantes da nova e da antiga
ordem, sem revolução e com a exclusão das categorias sociais domi-
nadas, de forma a gerar um compósito perverso de diversas formas
de dominação. Nos seus termos:
Sinteticamente, a via prussiana do desenvolvimento capi-
talista aponta para uma modalidade particular desse pro-
cesso, que se põe de forma retardada e retardatária, tendo
por eixo a conciliação entre o novo emergente e o modo
de existência social em fase de perecimento. Inexistindo,
portanto, a ruptura superadora que de forma difundida
abrange, interessa e modifica todas as demais categorias
sociais subalternas. Implica um desenvolvimento mais
lento das forças produtivas, expressamente tolhe e refreia
a industrialização, que só paulatinamente vai extraindo do
seio da conciliação as condições de sua existência e pro-
gressão. Nesta transformação “pelo alto” o universo político
e social contrasta com os casos clássicos, negando-se de
igual modo ao progresso, gestando, assim, formas híbridas
de dominação, onde se “reúnem os pecados de todas as
formas de estado” (CHASIN, 1999, p. 571-2).

SUMÁRIO 159
O teórico em tela concorda que havia semelhanças com o
caso brasileiro. E, “no afã de tracejar um contorno interpretativo geral
do caso brasileiro”, aquele caminho prussiano para “se constituir e
ser capitalismo” “tem para nós importância teórica básica” (CHASIN,
2000, p. 15). Isto porque, no processo de transição para o capitalismo,
(...) tanto no Brasil quanto na Alemanha, a grande pro-
priedade rural é presença decisiva; de igual modo, o
“reformismo pelo alto” caracterizou os processos de
modernização de ambos, impondo-se, desde logo, uma
solução conciliadora no plano político imediato, que
exclui as rupturas superadoras, nas quais as classes
subordinadas influiriam, fazendo valer seu peso espe-
cífico, o que abriria a possibilidade de alterações mais
harmônicas entre as distintas partes do social. Também
nos dois casos o desenvolvimento das forças produtivas é
mais lento e a implantação e progressão da indústria, isto
é, do “verdadeiro capitalismo”, como distinguia Marx, do
modo de produção especificamente capitalista, é retar-
datária, tardia, sofrendo obstaculizações e refreamentos
decorrentes da resistência de forças contrárias e adversas
(CHASIN, 1999, p. 573).

Saliente-se, contudo, que, mesmo concordando que há impor-


tantes traços comuns entre as formações sócio-históricas que obje-
tivaram o capitalismo pela via prussiana e o Brasil, Chasin pondera
que aquela via não poderia ser vista como modelo, apenas como um
caminho histórico concreto que discrepava dos clássicos, como o brasi-
leiro. Efetivamente, avalia que havia muitas diferenças que separavam
drasticamente a via prussiana do caminho brasileiro, contrapondo-
-se à qualificação deste como prussiano. Para ele, as características
comuns a ambos os caminhos são, na verdade, abstrações razoáveis,
que permitem uma aproximação dos objetos de estudo, destacando
e fixando elementos comuns, mas que estão longe de dar conta da
sua complexidade. As formações sociais são “um conjunto complexo,
um conjunto de determinações diferentes e divergentes”, “síntese de
várias determinações”, e sua apreensão completa só é possível se se
compreende a maneira específica pela qual se singularizam.

SUMÁRIO 160
Neste caminho, em contraponto à ampliação indevida de “via
prussiana” para o caso brasileiro, Chasin destaca que as desseme-
lhanças eram tão grandes que mais os distanciavam dos clássicos
do que os aproximavam entre si. Arrola como uma primeira e funda-
mental diferença a gênese da grande propriedade, que na Alemanha
era o latifúndio feudal, enquanto no Brasil, de economia mercantil,
era a empresa colonial. Também o perfil tardio da industrialização em
comparação aos países clássicos – que, a um primeiro olhar, aproxi-
mava Brasil e Alemanha – na verdade demonstrava diferenças abis-
sais: a industrialização alemã é do século XIX, foi extremamente veloz
e completou seu perfil, possibilitando àquela nação situar-se entre
os países imperialistas; no Brasil, deu-se de forma tardia em relação
à própria Alemanha, já adiantado o século XX (a partir de 1930) e em
plena era das guerras imperialistas e do capital monopolista. Uma
terceira grande diferença é o fato de que a burguesia prussiana, con-
quanto que antidemocrática, nunca tenha sido subserviente a uma
burguesia estrangeira, “realiza um caminho econômico autônomo,
centrado e dinamizado pelos seus próprios interesses” (CHASIN,
2000, p. 104). Já no Brasil a burguesia sempre foi subserviente ao
capital estrangeiro. Donde Chasin conclui ser absolutamente incor-
reto tomar como idênticos os caminhos de países como Alemanha,
Itália e Japão – “elos débeis da cadeia imperialista, portanto fenôme-
nos do capitalismo altamente avançado, entidades da fase superior
do capitalismo” – e o Brasil, que era objeto da disputa interimperia-
lista (CHASIN, 2000, p. 58). Por fim, o teórico paulistano contrapõe a
diferença do tipo de encargo que o ingresso no capitalismo – tardio,
no caso da Alemanha; hipertardio, no do Brasil – havia legado a
ambos os países, no seu intermitente e irregular processo de objeti-
vação do capitalismo, herança que os punha, como mencionado, em
patamares históricos distintos:
Enquanto a industrialização tardia se efetiva num quadro
histórico em que o proletariado já travou suas primeiras
batalhas teóricas e práticas, e a estruturação dos impérios
coloniais já se configurou, a industrialização hipertardia se

SUMÁRIO 161
realiza já no quadro da acumulação monopolista avan-
çada, no tempo em que guerras imperialistas já foram
travadas, e numa configuração mundial em que a pers-
pectiva do trabalho já se materializou na ocupação do
poder de estado em parcela das unidades nacionais que
compõem o conjunto internacional. Ainda mais, a indus-
trialização tardia, apesar de retardatária, é autônoma,
enquanto a hipertardia, além de seu atraso no tempo,
dando-se em países de extração colonial, é realizada sem
que estes tenham deixado de ser subordinados das eco-
nomias centrais (CHASIN, 2000, p. 34).

O que Chasin quer destacar é a necessidade de se com-


preender a especificidade da objetivação do capitalismo nos países
subordinados, sem partir de tipos ideais ou de modelos exteriores,
especialmente em se tratando de países que se puseram em gra-
dientes contrários no que tange à dominação.
Na medida em que um país de economia subordinada
não é distinto dos países subordinantes simplesmente
em grau; na medida em que sua estrutura e seu processo
histórico são de natureza apropriada e decorrente à sua
condição de subordinado, seus fenômenos particulares
não podem ser simplesmente igualizados aos fenômenos
de aspecto semelhante que se verificam nos países domi-
nantes (CHASIN, 1977a, p. 134).

Das diferenças substanciais entre os países de via prussiana


e o Brasil Chasin depreende a necessidade de reconhecer não ape-
nas uma, mas pelo menos duas formas particulares não-clássicas
de objetivação do capitalismo, a via prussiana e a brasileira, que ele
designa via ou caminho colonial. Embora não tenha demonstrado
apego, nos primeiros textos, à nomenclatura, ressalta que lhe parece
adequada por combinar as dimensões histórico-genética (das ori-
gens) e categorial da formação social brasileira, em suas intercone-
xões e interdeterminações, e esclarece que o adjetivo “colonial” se
refere à subsunção no âmbito da esfera produtiva, e não à indepen-
dência política ou cultural. Frisa que a expressão objetiva se referir a

SUMÁRIO 162
um caminho particular ao capitalismo, enquanto mediação objetiva
entre universal capitalista e sua efetivação singular, distanciando-se
da “‘criação’ de novos universais, tal como se dá quando, a colonial,
se antepõe modo de produção” (CHASIN, 2000, p. 17).

Em poucas palavras, a via colonial (em processo até a che-


gada da globalização)
(...) particulariza formações sociais economicamente
subordinadas, socialmente inconsistentes e desastrosas,
politicamente instáveis em sua natureza autocrática e
culturalmente incapacitadas de olhar para si com os pró-
prios olhos e traçar um horizonte para seus dilemas espe-
cíficos na universalidade dos impasses mundiais. Sob os
influxos e refluxos do capital metropolitano, produzem
e reproduzem a miséria de sua incontemporaneidade,
armada sobre a incompletude de seu capital incomple-
tável e, por isto, sobre a natureza invertebrada de suas
categorias sociais dominantes e, por decorrência, sobre
a inorganicidade de suas categorias sociais subalternas
(CHASIN, 2000, p. 212).

Temos, pois, que via colonial de objetivação do capitalismo é


a forma como Chasin chama a objetivação da economia capitalista e
da sociedade burguesa no Brasil, que ocorreu sem o impulso de um
processo revolucionário. Caracterizada pela grande propriedade rural
de caráter empresarial, de origem colonial, demonstrou-se resistente
ao progresso e à industrialização; esta, por fim, se deu após fracas-
sos e recomeços, mas hipertardiamente, de forma subordinada ao
capital estrangeiro, promovida pelo Estado e inacabada. Para ele,
o capital aqui existente é atrófico, pois incompleto e incompletável,
e que suas personae foram incapazes de dar uma solução às mais
elementares questões estruturais, além de nunca terem desejado ou
promovido a própria autonomia.

Sem revolução burguesa, a formação social brasileira dis-


sociava evolução nacional e progresso social, de forma que houve
mudança e modernização, mas não ruptura. A classe dominante

SUMÁRIO 163
nunca desempenhou a função de representante universal dos inte-
resses das classes dominadas, que, pelo contrário, foram reprimidas,
marginalizadas e excluídas dos processos mais significativos. O pro-
gresso se pôs parcialmente, já que contemporizado com a conser-
vação do atraso via acertos e acomodações com os representantes
da ordem agroexportadora. Assim, o reformismo pelo alto marcou
a sociedade brasileira e impediu a existência de uma hegemonia
burguesa liberal-democrática, reforçando o perfil excludente da via
colonial. Por isso o fenômeno da exclusão social – com destaque
para a extraordinária desigualdade e para a dominação autocrática
(institucionalizada ou bonapartista) – era constituinte da forma de
ser e ir sendo de um capital personificado numa classe contrarre-
volucionária, inapta para o cumprimento de suas tarefas históricas e
mansamente obediente às burguesias dos países centrais. Imersa na
realização de seus interesses mesquinhos, subordinada às classes
dominantes estrangeiras, feroz com as classes dominadas, a burgue-
sia brasileira só poderia fazer a estas pequenas concessões, de má
vontade, quando não houvesse no horizonte nenhuma ameaça – e
não hesitava em reprimi-la com violência aberrante quando ousasse
reivindicar seu lugar na história. Este quadro histórico se manteve,
no geral, até a globalização, que impôs modificações de fora para
dentro, as quais seria necessário investigar em outra pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deste breve estudo, evidenciou-se a existência de diversas
semelhanças entre as teorias de Coutinho e de Chasin, mas também
de algumas diferenças fundamentais.

Vimos que, desde o início da análise coutiniana, os elemen-


tos do “prussianismo” estavam dados, ainda que o autor não se uti-
lizasse de tal designação. Já no texto de 1967 estavam apontadas a

SUMÁRIO 164
inexistência de revolução democrático-burguesa, a permanência do
latifúndio (tido primeiro como “(semi)feudal”, “semicolonial”, depois
“pré-capitalista”), a subordinação às burguesias estrangeiras, as
negociações e transições “pelo alto”, excluída a participação popu-
lar, complementadas com a atuação do Estado tanto na repressão
quanto na intervenção econômica direta.

Desta forma, para o autor, não havendo no Brasil uma base


econômica orgânica e estruturada, não se criou uma burguesia
capaz de cumprir um papel revolucionário. Desarticulada, inorgânica
e seccionada, a classe dominante brasileira não intentou realizar –
nem mesmo idealmente – a comunidade humana ou sua hegemonia
democrática, mantendo o povo apartado da construção da nação
e sujeito à mediocridade e à inautenticidade. Ainda assim, o capi-
talismo modificou aquela antiga ordem semicolonial decadente e
instituiu novas relações, também elas contraditórias, num processo
de modernização conservadora de tipo prussiano.

Por fim, vimos que Coutinho recorre a correntes teóricas dis-


tintas (Lênin e Lukács, marxistas de vertentes distintas, e Barrington
Moore Jr., liberal) para explicar a realidade brasileira, tratando como
idênticas ou complementares as teorias desses autores. Vale-se,
ainda, de termos como “patrimonialismo”, conceito de origem webe-
riana, para adjetivar o Estado brasileiro.

Para Chasin, por sua vez, a entificação do capitalismo no


Brasil se deu sem revolução burguesa, resultando em mudanças e
progresso parcial, mas não em transformação. As mudanças foram
efetivadas por meio de conciliações com o “historicamente velho”,
conservando elementos importantes da antiga ordem. Ele assevera
que o capitalismo brasileiro, na sua forma propriamente industrial,
é hiper-retardatário, concretizando-se em condições históricas
nas quais as lutas de classes estavam adiantadas e o imperialismo
dominava o cenário internacional. Também aponta que, diferen-
temente da industrialização alemã, que se pôs tardia mas rápida

SUMÁRIO 165
e completamente, a brasileira nunca se completou, e assim o capital
também jamais pôde nem poderia se integralizar e articular organica-
mente no país. As classes dominantes brasileiras, ineptas e inaptas,
sempre foram subordinadas aos centros hegemônicos, outra especi-
ficidade em relação à alemã. Assim, adverte sobre a impropriedade
de se chamar pelo mesmo nome dois percursos tão distintos, que
levaram a estatutos socioeconômicos tão diferentes.

O filósofo paulistano vale-se exclusivamente, em sua aná-


lise, de fontes teóricas no campo do marxismo (suas citações de
Barrington Moore Jr. não se apropriam dos conceitos analíticos
dele), especialmente dos clássicos, além de autores brasileiros.
Pareceu-nos, também, que Chasin tem maior preocupação com a
saturação da categoria de via colonial com características da reali-
dade nacional, de modo que ela é mais desenvolvida e aprofundada
que a de via prussiana em Coutinho, precursor do seu uso para o
Brasil, o que deve ser posteriormente confirmado ou desmentido em
pesquisa mais apurada.

Evidenciou-se uma não definição clara de Coutinho sobre


o que havia no Brasil pré-industrial, que ora era qualificado como
(semi)feudal, ora semicolonial, ora como escravagista, ora mera-
mente como pré-capitalista. Já Chasin salienta o caráter mercantil
daquela economia, tornando-se claro que o “velho” de cuja perma-
nência ambos falavam não era idêntico. Possivelmente, uma das
chaves para entender a utilização da noção de “via prussiana” por
Coutinho para o caso brasileiro possa estar no trato descuidado com
o modo de produção existente no país até o século XVIII, o que uma
pesquisa mais ampla poderá abonar ou rechaçar.

SUMÁRIO 166
REFERÊNCIAS
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ao capitalismo brasileiro? Uma análise das teses de José Chasin e Hélgio Trindade.
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SUMÁRIO 167
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Carlos Nelson Coutinho: transposição ajustada ou decalque? Dissertação (Mestrado)
–Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2012.

SUMÁRIO 168
Par te
II
RELEITURAS
DO PENSAMENTO
SOCIAL BRASILEIRO
7
Marcos Abraão Ribeiro
Roberto Dutra
Maro Lara Martins

PARA ALÉM DO ATRASO


E DA SINGULARIDADE:
A ATUALIDADE DO PENSAMENTO
SOCIAL E POLÍTICO BRASILEIRO

DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.7
INTRODUÇÃO
Depois de 20 anos de ditadura civil-militar, o Brasil retomou
o regime democrático representativo com a instituição da Nova
República, que foi simbolizada pela Constituição de 1988 e pelas elei-
ções diretas para presidente da República no ano seguinte. Depois
da promulgação da Constituição Cidadã e da retomada das eleições
diretas para presidente, consolidamos a democracia no país60.

Contudo, a partir de 2013, com as jornadas de junho, iniciou-


-se uma crise que culminou no golpe parlamentar (SANTOS, 2017)
que retirou a presidente Dilma Rousseff do poder em 31 de agosto de
2016. Por meio de mais um golpe na história republicana brasileira, o
autoritarismo voltou a figurar como tema central, cuja relevância foi
reforçada com a eleição do primeiro presidente reconhecidamente
de extrema direita, o capitão reformado do Exército e ex-deputado
federal Jair Messias Bolsonaro.

Essa mudança política radical não apenas expôs a fragilidade


da Constituição e da democracia no Brasil. Ela também indicou que
mudanças sociais e culturais alteram as condições de possibilidade
da política, pois a crise política parece estar associada a uma crise
mais ampla na sociedade. Isto exige explicações capazes de conectar
análise da política com análise da sociedade. Nesse sentido, alguns
questionamentos precisam ser respondidos: 1) o que mudou na
sociedade e na cultura? 2) Como essas mudanças afetam a política?

A partir da complexa conjuntura atual, que enseja as questões


supracitadas, e do papel central que as interpretações do Brasil pos-
suem na academia e no debate público, temos como objetivo discutir a
atualidade do pensamento social e político brasileiro. A riqueza e a varie-
dade das interpretações sobre a vida social e política sugerem direções

60 Este texto foi publicado previamente como apresentação do dossiê a Atualidade do pensamento
social e político brasileiro, na Terceiro Milênio: revista crítica de sociologia e política, vol.18, n.01, 2022.

SUMÁRIO 171
muito distintas para compreender a crise brasileira em diálogo com
teorias e abordagens mais recentes. Categorias clássicas como perso-
nalismo, patrimonialismo, populismo, autocracia burguesa são capazes
de compreender nossos dilemas? O Brasil contemporâneo possui pro-
blemas essencialmente seus ou trata-se de dilemas mais gerais viven-
ciados por muitos outros países, mesmo que em intensidades distintas?
Qual é o potencial heurístico do pensamento social e político brasileiro?
Nesse texto introdutório, nosso objetivo é apresentar traços gerais do
pensamento social e político brasileiro, algumas críticas aos seus pres-
supostos e teorias sociais e políticas brasileiras que são decisivas para
a necessária ruptura com as leituras dos dilemas brasileiros que os cir-
cunscrevem como atraso e singularidades sociais e políticas.

O PENSAMENTO SOCIAL
E POLÍTICO BRASILEIRO
A expressão pensamento social e político brasileiro61 comporta
diversos significados62, como etapa da história das ciências sociais,
como imaginação social ou como campo de estudos disciplinar.

61 Sobre o pensamento político brasileiro, Lynch (2016, p.80) oferece a seguinte definição: “No
sentido estrito, a expressão PPB se refere a um círculo mais reduzido de obras que, dotadas
de maior fôlego e sistematicidade, pretenderam descrever nossa realidade política com maior
fidedignidade e como tal passaram a integrar uma espécie de cânone dos ‘clássicos’ do PPB.
Encara-se o PPB então como uma teoria política e/ou a ‘velha’ ciência política, elaborada antes
da institucionalização universitária”.
62 Sobre a pluralidade de significados, Schwarcz e Botelho (2011, p.11) argumentam nos trazem um
importante argumento ao analisarem o campo do pensamento social brasileiro: Nos últimos trinta
anos, pesquisas sobre as tradições intelectual, cultural, social e política brasileiras, ao se identifica-
rem e serem identificadas como “pensamento social brasileiro”, contribuíram para dar forma a esta
área de pesquisa que, hoje, tem apresentado uma dinâmica muito particular e amplas condições de
afirmação no âmbito das ciências sociais praticadas no Brasil. Condições, porém, que não tornam
autoevidentes as fronteiras entre o pensamento social e outras áreas de pesquisa, ou mesmo outros
campos do conhecimento nas ciências humanas. Longe de ser uma limitação, tal aspecto parece,
antes, constituir vantagem em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea.”

SUMÁRIO 172
Nos últimos anos, tem se destacado aquele que concebe o pensa-
mento social e político brasileiro como um campo de análise multidis-
ciplinar, com características, objetos e métodos próprios, instituciona-
lizado na prática científica brasileira, seja através de criação de grupos
de pesquisa, publicações, congressos e presença na pós-graduação.

Recentemente, pesquisas sobre as tradições intelectual, cultu-


ral, social e política brasileiras, ao se identificarem e serem identifica-
das como pensamento social e político brasileiro, contribuíram para dar
forma a essa área de pesquisa que, hoje, tem apresentado dinâmica
particular e amplas condições de afirmação no âmbito das ciências
sociais praticadas no Brasil. A área de pensamento social e político
brasileiro compreende pesquisas sobre a produção intelectual e artís-
tica do país de modo a permitir a percepção de distintas narrativas
e quadros epistemológicos através dos quais a experiência brasileira
tem sido codificada e construída no decorrer do tempo. Além de pos-
sibilitar o diálogo entre campos distintos como a história intelectual
e a sociologia dos intelectuais, a história dos conceitos e a história
social dos discursos políticos, a história da historiografia e a história
das ciências sociais, a sociologia do conhecimento, a história cultural
e a sociologia da cultura, a história política e a sociologia política.

Do ponto de vista do desenvolvimento das ciências sociais


no país, os estudos sobre o pensamento social e político brasileiro
permitiram que fossem retomados os debates realizados pelos
intérpretes do Brasil, avaliados suas abrangências e limites, além
de constatar seus efeitos na sociedade brasileira. Permitiram, ainda,
analisar o papel dos intelectuais e das ideias na formação da socie-
dade brasileira e na invenção desta comunidade imaginada, suas
linguagens políticas e seu ideário social.

De modo geral, as obras do pensamento social e político


brasileiro tiveram como elemento principal diagnosticar nosso
atraso e singularidade (BASTOS, 2013, LYNCH, 2016, TAVOLARO,
2014), bem como apontar os caminhos que deveriam ser trilhados

SUMÁRIO 173
para superá-los. Devido ao caráter atrasado e singular da realidade
brasileira, nossos intelectuais teriam que produzir pensamento para
compreender os dilemas que seriam essencialmente nacionais,
deixando para os pesquisadores dos países centrais a tarefa de
formular teoria com validade universal (LYNCH, 2013). Sobre a cen-
tralidade da perspectiva do atraso no pensamento social brasileiro
(PSB), Bastos argumenta:
Creio que simplificando a resposta podemos dizer que
a grande indagação presente nos vários momentos de
desenvolvimento do pensamento social brasileiro diz res-
peito à questão do atraso. Por que uso a palavra atraso?
Não só porque esse termo aparece explicitamente em mui-
tas das abordagens dos autores, como porque está implí-
cito em quase a totalidade dos textos, mesmo com outra
denominação. As temáticas da modernização, os debates
sobre o subdesenvolvimento, mas também as mais gerais
como a pobreza, o analfabetismo, as diferenças regionais,
ilustram bem a questão. (BASTOS, 2013, p.288-289).

Lynch (2016) defende que a perspectiva do atraso é central


também para os intérpretes clássicos da vida política brasileira, uma
vez que o pensamento político brasileiro (PPB) possui um estilo de
redação próprio que o leva a enfocar a realidade nacional atrasada
em relação à modernidade cêntrica:
Em decorrência disso, o eixo temático do PPB gira basi-
camente em torno do diagnóstico do atraso, da barbá-
rie, do retardo ou do subdesenvolvimento nacional e do
imperativo do progresso, da civilização, da evolução ou
do desenvolvimento, meios conducentes à transformação
das estruturas herdadas da colonização para alcançar a
modernidade cêntrica. A esse imperativo modernizador
subordinaram-se quase sempre três tópicos maiores da
teoria política, relativos ao problema da organização da
ordem pública, da liberdade individual e da igualdade
social (LYNCH, 2016, p.83).

SUMÁRIO 174
As interpretações do pensamento político brasileiro incor-
poraram de modo acrítico a filosofia eurocêntrica da história e a
representação da produção periférica como essencialmente inferior
(LYNCH, 2013). Como consequência da internalização e naturaliza-
ção do atraso e da subalternidade (LYNCH, 2016), as intepretações
com validade nacional foram formuladas tendo como contraponto e
referência de teoria os trabalhos produzidos na Europa e nos Estados
Unidos. A ênfase no tema do atraso fez com que conceitos como
personalismo, populismo e patrimonialismo fossem alçados a semân-
ticas capazes de explicar nossos dilemas e, consequentemente, e
de nos fazer compreender de forma sistemática os entraves que nos
impediriam de construir sociedades que se assemelhassem àquelas
(supostamente) existentes nos países centrais.

Chaloub e Lima (2018) sustentam a relevância do pensa-


mento social e político brasileiro63 através da apresentação de
continuidades veladas nos trabalhos formulados por autores con-
temporâneos, que poderiam ser visualizadas, por exemplo, através
da persistência da argumentação dualista em três dimensões: 1) na
distinção estrita entre Estado e sociedade; 2) na contraposição entre
arcaico e moderno; 3) na separação estrita entre interno e externo.

Sobre a separação estrita entre Estado e sociedade, que


também representa a contraposição entre arcaico e moderno, os
autores argumentam sobre a centralidade conferida ao conceito de
patrimonialismo para a compreensão da corrupção estatal brasileira,
tão alardeada pela grande mídia durante os governos do Partido
dos Trabalhadores (PT):
Tornou-se moeda corrente na esfera pública brasileira de
tempos recentes o uso do termo patrimonialismo para se

63 Sobre a questão, os autores argumentam: “A escolha por reivindicar a atualidade das interpre-
tações não implica, contudo, nenhuma recusa por novos métodos e técnicas de pesquisa, mas
sim busca compreendê-las em chave não antagônica a um acúmulo de ideias sobre a sociedade
brasileira” (CHALOUB; LIMA, 2018, p.19).

SUMÁRIO 175
referir à estrutura institucional em que a norma seriam
os desvios de dinheiro público para fins privados. No
patrimonialismo grassa, portanto, a corrupção — e, nesse
discurso difuso de notável ressonância talvez já consoli-
dado em senso comum, o problema residiria quase que
exclusivamente no Estado e em seus agentes, obstáculos
para que um moderno regime de competição econômica
se instaurasse entre nós (CHALOUB; LIMA, 2018, p.28-9).

Além de sua utilização para compreensão da corrupção con-


temporânea, o conceito de patrimonialismo, somado aos conceitos
de personalismo e populismo, teria papel decisivo para a explicação
de mais um golpe na vida política brasileira. Precisamente, as tra-
dicionais interpretações do pensamento social e político brasileiro
possuiriam o potencial heurístico para explicar o golpe de 2016 e o
subjacente autoritarismo contemporâneo.

Como exemplo, Roberto DaMatta (2020) reproduz as teses


que o consagraram como um dos intérpretes mais importantes do
Brasil, com a publicação de Carnavais, malandros e heróis, em 1979
(1997). Assim, a compreensão do autoritarismo contemporâneo
deveria ser buscada através do tradicional rito autoritário Você sabe
com quem está falando?, que representaria o reforço da hierarquia e
a repressão dos valores republicanos, isto é, o esqueleto hierarqui-
zante da sociedade brasileira (DAMATTA, 2020, p. 9). A partir desse
rito autoritário, seria possível compreender como o Brasil se constitui
como uma sociedade desigual que se estrutura a partir de uma dua-
lidade pautada pela contradição entre um Brasil formal igualitário e
um Brasil profundo, desigual e hierárquico. Para DaMatta, portanto,
o autoritarismo contemporâneo se constitui como uma irredutível
singularidade social e política brasileira, cujo passado ibérico, escra-
vista, agrário e tradicional teria papel decisivo para explicá-lo64.

64 Ribeiro (2022) formulou uma crítica detalhada à intepretação damattina sobre o fenômeno do
autoritarismo como uma irredutível singularidade social e política brasileira.

SUMÁRIO 176
A antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, por sua vez, segue
o caminho de reforço e síntese das interpretações culturalistas do
pensamento social e político (RIBEIRO, 2020) ao construir uma leitura
multidimensional do autoritarismo brasileiro que tem como núcleo
explicativo o passado escravista e a herança ibérica patrimonialista:
Apesar da síntese analítica e dos novos elementos trazidos
à explicação, a autora segue a perspectiva culturalista, par-
ticularista e essencialista que analisa o autoritarismo como
fenômeno estritamente brasileiro, ou seja, que demarca
o fenômeno como fruto exclusivo do processo histórico
nacional. Schwarcz, portanto, reitera as clássicas imagens
culturalistas sobre o Brasil. (RIBEIRO, 2020, p.367).

As intepretações supracitadas fazem uma associação redu-


cionista entre modernidade política e as democracias liberais do
Atlântico Norte (DUTRA; RIBEIRO, 2021). Além da leitura reducionista
da modernidade política, as leituras têm como ponto comum interpre-
tar o presente pelo passado, bem como uma interpretação de base
culturalista e essencialista, que idealiza a modernidade, e a moderni-
dade política, em particular (DUTRA; RIBEIRO, 2021). A incorporação
acrítica do discurso sobre a modernidade (TAVOLARO, 2014) é ponto
central para a construção de um irredutível autoritarismo brasileiro,
visto que nossos dilemas sociais e políticos seriam frutos de um
processo de modernização incompleto e desviante frente àqueles
autênticos que teriam sido experienciados pelos países centrais.

ATRASO E SINGULARIDADE:
ENTRAVES DO PENSAMENTO SOCIAL
E POLÍTICO BRASILEIRO
As interpretações do pensamento social e político brasileiro,
apesar de ainda serem reproduzidas de forma acrítica, como nas
interpretações supracitadas, também foram alvos de importantes

SUMÁRIO 177
e contundentes críticas em torno dos pressupostos que conformam
as imagens do atraso e da singularidade, e que são responsáveis pela
leitura do Brasil como realidade social e política essencialmente infe-
rior às sociedades centrais. As críticas também são cruciais para sus-
tentarmos nosso argumento sobre a necessidade de ruptura com as
narrativas do atraso e da singularidade social e política caso queira-
mos nos afastar de uma posição de subordinação estrutural na geo-
política do conhecimento, de modo a termos condições de estabele-
cer diálogos mais horizontais com os teóricos dos países centrais65.

Por exemplo, as interpretações culturalistas que defendem


que sejamos fruto da herança ibérica patrimonialista e personalista e
que reproduzem integralmente os pressupostos em torno da inferio-
ridade estrutural do Brasil frente aos países centrais foram sistemati-
camente criticadas por Souza (2000). O sociólogo sustenta que elas
reproduzem um culturalismo atávico e que representam, fundamen-
talmente, uma sociologia da inautenticidade ao negarem o caráter
autenticamente moderno da experiência brasileira. A partir das críti-
cas de Souza, outros importantes trabalhos surgiram para explicitar
os pressupostos que estruturam as leituras do pensamento social e
político brasileiro que têm no atraso e na singularidade seus com-
ponentes decisivos. Nesse sentido, Costa (2006) delimita três pres-
supostos que nos auxiliam a sustentar as limitações das tradições
interpretações dos Brasil: 1) interpretação eurocêntrica da moderni-
dade; 2) concepção formalista (idealizada) da política; 3) concepção
essencialista do sujeito moderno. Esses três pilares são instituídos a
partir da idealização da experiência europeia e de suas instituições:

65 Ao enfocar o pensamento social brasileiro, Maia (2011, p.72-3) sustenta que é necessário inseri-lo
em um cenário mais amplo através de um momento de descentramento teórico: “A ideia defendida
é razoavelmente simples: sustento que o processo de descentramento teórico que vem ocorrendo
ao longo das últimas décadas na sociologia fornece aos estudos de pensamento social brasileiro
um instigante enquadramento analítico. Esse descentramento refere-se ao conjunto de textos e
trabalhos que questionam o fundamento eurocêntrico da sociologia e afirmam a necessidade de
se levar em conta lugares de discurso intelectual tidos como alternativos e/ou ‘periféricos’”.

SUMÁRIO 178
Isto é, as histórias nacionais de países não europeus se
apresentam como narrativas de construção de institui-
ções — cidadania, sociedade civil etc. —, que só encerram
sentido se projetadas no espelho de uma “Europa hiper-
real”, na medida em que ignoram as experiências efetivas
das populações de tais países. Nessas histórias nacionais,
a Europa imaginada é a morada do verdadeiro sujeito
moderno, do qual mesmo os socialistas e nacionalistas
mais combativos buscam construir, pela imitação, uma
similar nacional (COSTA, 2006, p.121).

Em consonância com Costa, Tavolaro (2014) sustenta que


nossa singularidade foi construída tendo como elemento compara-
tivo um discurso sociológico sobre a modernidade reproduzido como
se fosse efetivamente verdade. Assim, teríamos uma especificidade
em nossa vida local que nos fez constituir uma realidade pautada
pelo desvio, incompletude e falta quando comparada às sociedades
modernas, pois não teríamos de forma plena os componentes cen-
trais que existiriam integralmente nos países centrais: diferenciação/
complexificação social; secularização; separação entre os domí-
nios público e privado; subjetividade autocentrada e divórcio entre
sociedade e natureza (TAVOLARO, 2014 p.645). Como as caracterís-
ticas supracitadas funcionam como fatores distintivos da chamada
modernidade originária, nossa singularidade seria demarcada, preci-
samente, pela ausência desses elementos:
A esses aspectos, tratados em obras “clássicas” de inter-
pretação do Brasil como pertinentes à sociedade brasi-
leira, o discurso sociológico hegemônico da modernidade
reserva um estatuto teórico assaz conhecido: na maior
parte das vezes, des-diferenciação social, não-seculari-
zação, porosidade entre público/privado, subjetividade
descentrada, não-linearidade espaço-temporal e fluidez
entre sociedade/natureza são apontados como evidên-
cias de uma experiência moderna incompleta, ou ainda,
como manifestações de um padrão de sociabilidade per-
meado por elementos estranhos ao ordenamento social
moderno (TAVOLARO, 2017, p.128).

SUMÁRIO 179
A tese da singularidade brasileira, portanto, tem como ele-
mento implícito a incorporação da modernidade como enunciação
e discurso de dominação (TAVOLARO, 2014). O hiato em relação ao
núcleo dinâmico da modernidade ocorre porque não teríamos supe-
rado as estruturas pré-modernas, o que nos impossibilita universa-
lizar racionalização, complexificação social e, consequentemente, a
separação entre público e privado no Estado.

Sobre o pensamento político brasileiro, Lynch (2013) sustenta


que a internalização do atraso é o elemento decisivo para que as
clássicas interpretações da vida política brasileira sejam caracte-
rizadas como pensamento e não teoria, que seria uma designação
exclusiva das obras produzidas nos países centrais:
Dependentes dos modelos culturais dos países cêntricos,
que distribuíam os lugares e os papéis das nações no
mundo, elas internalizaram o pressuposto de sua inferio-
ridade neles inscrito. As diferenças quantitativas entre as
nações do “centro” e da “periferia”, medidas objetivamente
em termos de tecnologia ou poder militar, se converte-
ram em diferenças qualitativas no plano da existência:
aquilo que era apenas um juízo de fato (assimetria militar
e econômica) se transformou, no plano das representa-
ções sociais, num juízo de valor (inferioridade no plano da
existência e da cultura). (LYNCH, 2013, p.734).

As críticas de Souza, Costa, Tavolaro e Lynch ao pensamento


social e político brasileiro são fundamentais para que possamos, na
próxima seção, defender a necessidade de ruptura com as narrativas do
atraso e da singularidade. A ruptura é primordial para que possamos uti-
lizar nossas tradicionais interpretações como mecanismos para formu-
larmos teoria social e política a partir da periferia e termos, reiteramos,
uma relação menos assimétrica com a produção dos países cêntricos.

Nosso objetivo, portanto, não é o descarte do pensamento


social e político brasileiro, mas, a partir da crítica aos pressupostos
que conformam as autoimagens do atraso e da singularidade, inserir
as clássicas interpretações do Brasil em um contexto mais amplo de

SUMÁRIO 180
modo a relativizar os limites estritamente nacionais que os conformam
(MAIA, 2011, p.72). Assim, nossas produções poderão ser utilizadas,
por exemplo, para a construção de um discurso contra-hegemônico66
sobre a modernidade (TAVOLARO, 2017, p.119). Sobre o questionamento
do discurso hegemônico acerca da modernidade, Tavolaro argumenta:
Nesse sentido, longe de adstritas à realidade nacional, obras
“clássicas” do pensamento brasileiro auxiliam a ampliar e
diversificar os horizontes de compreensão e codificação
da própria experiência moderna. Dito de outro modo,
ainda que de maneira residual e não necessariamente em
conformidade com suas motivações e planos originais, ao
menos algumas das mais celebradas obras de interpreta-
ção do Brasil oferecem retratos, noções, categorias e ideias
que contribuem para um imaginário contra-hegemônico
da modernidade (TAVOLARO, 2017, p.136).

A crítica à tese da singularidade brasileira e a utilização


das clássicas interpretações do Brasil para a produção de um dis-
curso contra-hegemônico sobre a modernidade são decisivas para
que possamos questionar o caráter universal das teorias que são
incorporadas pela academia brasileira67 e, consequentemente,

66 Bastos também defende o potencial heurístico e a atualidade do PSB: “Ou seja, a problemática da
emancipação, do direito à diferença, dos limites à liberdade, da definição da dignidade como pro-
jeto social, do reconhecimento, da exclusão/excludência, foi objeto recorrente dos estudos sobre a
formação nacional. Nos últimos anos o retorno dos estudos sobre o pensamento social brasileiro
e sua história permitiu que fossem retomados os debates, avaliados o seu alcance e limites, além
de constatar seus efeitos. Ora, as transformações mundiais colocam hoje aquelas questões sob
outra ótica e conduzem à produção de diferentes categorias teóricas que buscam apreender os
fenômenos, mas não podem desconhecer os caminhos trilhados pelas interpretações anteriores.
É a partir dessa situação que a reflexão brasileira se insere, necessariamente, no debate interna-
cional. Para ilustrar a hipótese levantada, pretendo apontar, (...) como algumas reflexões dos anos
1950 e 1960 — brasileiras e latino-americanas — antecipam questões atuais, mesmo sem terem
tido desdobramento teórico sistemático”. (BASTOS, 2011, p. 52).
67 Sobre essa questão, Maia (2011) apresenta um argumento fundamental para que possamos ques-
tionar a universalidade das interpretações reproduzidas como teorias com validade universal pela
no Brasil: “Ora, se a teoria social é constituída hermeneuticamente por intermédio das releituras de
clássicos e se cada fabulação traz consigo um mundo imaginado que relaciona enunciados teó-
ricos abstratos a objetos e a qualidades de espaços sociais delimitados, torna-se absolutamente
crucial discutir a universalidade das teorias que consumimos.” (MAIA, 2011, p.75).

SUMÁRIO 181
para caracterizarmos as produções nacionais também como teoria
social e política. Na próxima seção, apresentaremos algumas teo-
rias sociais e políticas produzidas no Brasil contemporâneo que nos
auxiliam a sustentar o que consideramos ser a atualidade do pensa-
mento social e político brasileiro.

TEORIA SOCIAL E POLÍTICA


A PARTIR DA PERIFERIA
Além das críticas aos pressupostos que perfazem as inter-
pretações do pensamento social e político brasileiro, algumas teori-
zações produzidas no Brasil contemporâneo são fundamentais para
sustentarmos que é possível a construção de uma narrativa moderna
da sociedade brasileira e, conjuntamente, a produção de teoria social
e política a partir da periferia. Na sociologia brasileira contemporâ-
nea, temos, por exemplo, as obras dos sociólogos Jessé Souza e José
Maurício Domingues, que produzem teoria a partir do Brasil.

Além de criticar o que denominou de sociologia da inautenti-


cidade, Jessé Souza também formulou uma teorização sobre o pro-
cesso de modernização brasileiro (SOUZA, 2000) e acerca da repro-
dução da abissal desigualdade existente no país (SOUZA, 2006).
O autor também possui teorizações originais sobre o imperialismo
informal (SOUZA, 2020) e o racismo multidimensional (SOUZA,
2021) que, apesar de terem o Brasil como unidade de análise, não se
restringem às fronteiras do país. O sociólogo estabelece um diálogo
horizontal e criativo com teóricos do centro como Charles Taylor e
Pierre Bourdieu para compreender os dilemas brasileiros modernos
e para sustentar que não existe diferença ontológica entre as socie-
dades centrais e as periféricas.

SUMÁRIO 182
José Maurício Domingues, por sua vez, tem se dedicado a
produzir teoria social e política a partir do Brasil, tendo a moder-
nidade como questão primordial. Além de estabelecer a crítica aos
pressupostos presentes nas interpretações clássicas sobre o atraso
brasileiro e latino-americano, o sociólogo tem construído uma narra-
tiva moderna do país, como integrante da modernidade global.

Domingues (2011) defende que as ciências sociais brasileiras


têm como desafio superar suas análises circunscritas à realidade
nacional, combatendo a visão de que apenas os europeus e esta-
dunidenses produzem teoria com validade universal, desafio enfren-
tado com o êxito pelo sociólogo68:
Uma visão ampla do mundo pode contribuir exatamente
nessa direção, deixando para trás a equação em que
europeus e estadunidenses produzem teorias gerais e os
outros no chamado “Sul” as aplicam, desenvolvimento
autonomamente no máximo interpretações de seus pró-
prios países (DOMINGUES, 2011, p.9).

A proposta de Domingues (2013) de teorizar a modernidade


a partir do enfoque no Sul global tem como objetivo central descen-
trar a teoria social que se concentra com exclusividade na Europa e
nos Estados Unidos. Suas teorizações sobre a modernidade global
(DOMINGUES, 2013) e modernidade política (DOMINGUES, 2021)
possuem intuito de produzir em pé de igualdade em relação aos teó-
ricos dos países centrais (PERLATTO, 2013). Para tanto, Domingues
propõe uma ambiciosa análise multidimensional do imaginário e das
instituições da modernidade, nos planos conceitual e empírico. A teoria
social e política de Domingues rompe, efetivamente, com a subalterni-
dade estrutural subjacente às nossas clássicas interpretações do país.

68 A partir de características do PPB demarcadas por Lynch (2016), Ribeiro apresenta de forma
comparada as teorias de Jessé Souza e José Maurício Domingues com o objetivo de averiguar
se os autores efetivamente se afastaram das tradicionais leituras da vida política brasileira e dos
pressupostos que as conformam. Como sustentado pelo autor, Domingues rompe de modo efetivo
com as narrativas do atraso e da singularidade (RIBEIRO, 2017).

SUMÁRIO 183
No campo da teoria política, temos o trabalho de Wanderley
Guilherme dos Santos (2017), que produz teoria a partir da periferia
quando analisa o impedimento da presidente Dilma Rousseff, em
2016, como golpe parlamentar. Assim, o cientista político não inter-
preta o golpe através de gramáticas políticas, em tese, particulares
à realidade brasileira, como patrimonialismo ou populismo, que
demonstrariam como mais uma ruptura democrática no país seria
a demonstração inequívoca de nossa singularidade política. Sobre a
negação das perspectivas do atraso e a singularidade na teoria polí-
tica de WGS, Lynch argumenta:
Em terceiro lugar, e talvez mais importante, encontra-se
o fato de que, como cientista político, WGS se via prima-
riamente como um teórico que recorria à empiria para
testar suas hipóteses. Inclemente crítico do complexo de
inferioridade que rebaixa sistematicamente a ambição
teórica dos intelectuais brasileiros, WGS desenvolveu
uma ciência política abrangente, capaz de ser demons-
trada de forma sistemática e aplicável a qualquer país.
Não obstante a maioria de suas reflexões tenha por ori-
gem os problemas empíricos da construção democrática
brasileira, ele sempre evitou tomá-los como “jabuticabas”,
evitando simultaneamente o paroquialismo etnocêntrico,
disfarçado de universalismo, de boa parte dos intelectuais
europeus e norte-americanos (LYNCH, 2020, p.3).

Nesse sentido, Santos recusa as clássicas interpretações


do pensamento social e político porque eles possuem um papel
de impedimento para a construção de uma explicação teórica de
alcance global sobre mais uma ruptura democrática na histórica
brasileira, pois reproduzem a visão etnocêntrica de que o golpe
parlamentar seria demonstração de um reiterado autoritarismo que
marcaria atavicamente o sistema político brasileiro. Santos interpreta
o Brasil, portanto, a partir dos dilemas contemporâneos, modernos
e de alcance global.

SUMÁRIO 184
Santos formulou uma teorização inovadora e original sobre o
golpe parlamentar, ao sustentar que ele é elemento moderno e intrín-
seco ao sistema democrático representativo instituído dentro do sis-
tema capitalista. Dessa forma, WGS teoriza o sistema representativo
em dimensão global, pois o caso brasileiro seria uma unidade de
análise para interpretar um dilema de consequências globais. A teo-
ria política de WGS rompe, portanto, com o estilo periférico de pro-
dução intelectual que singulariza o PPB em contraste com as obras
cosmopolitas e canônicas da teoria política europeia (LYNCH, 2016,
p.83). E demonstra também que é possível produzir teoria original a
partir da periferia, e não apenas por adição (COSTA, 2010).

Nesse sentido, a produção de teoria a partir da periferia pre-


cisa refletir sobre suas condições de possibilidade, assim como a
produção teórica feita a partir de qualquer contexto geográfico. Na
geopolítica do conhecimento persiste a distinção entre teoria social
e política geral e pensamento social e político particular. Segundo
esta distinção, a teoria, embora seja um trabalho atribuído ao centro
(CONNEL, 2012), não teria marcador geográfico. A pretensão de uni-
versalidade do trabalho teórico do centro estaria diretamente ligada
à premissa de que esse trabalho possua validade e capacidade de
abstração que transcendam seu contexto geográfico de surgimento.
Colocado em posição hierarquicamente inferior, o pensamento social
e político seria menos sistemático e formalizado que a teoria, e seus
conceitos seriam orientados por baixa capacidade de abstração e
grande influência de questões e problemas do contexto geográfico.
O pressuposto não tematizado dessa geopolítica do conhecimento
é que apenas o chamado centro da modernidade, e não a periferia,
proporcionaria um lugar de enunciação científica com capacidade
de inovação conceitual abstrata e universalizante (teoria). O centro,
ao pensar sobre si, teorizaria sobre o mundo; a periferia só seria habi-
litada a pensar sua própria particularidade.

Por mais forte que essa distinção entre teoria geral e pensa-
mento particular possa parecer, ela não possui o caráter totalizante

SUMÁRIO 185
e necessário assumido inclusive por muitos de seus críticos. Em
balanço sobre a produção de teoria social feita por brasileiros entre
2010 e 2019, Rosa e Ribeiro (2021) fazem um diagnóstico pessimista,
apontando nossa baixa capacidade de inovação teórica, mas sem
indicar caminho para desestabilizar e transcender a hierarquia geo-
política entre teoria e pensamento social que nos coloca na condição
de incompetentes para o trabalho teórico. Segundo eles, o debate
sociológico sobre teoria no Brasil concentra-se em: “1) produções
engajadas na reconsagração de autores; 2) produções engajadas
em descrever movimentos teóricos; 3) produções inovadoras, porém
não apropriadas localmente” (ROSA; RIBEIRO, 2021, p. 3).

As principais razões para essa situação de baixa produção


teórica dos brasileiros seriam 1) a identificação da teoria com gran-
des nomes euroamericanos e o que Costa (2010) havia chamado de
2) teoria por adição: a prática de estender modelos consagrados para
pensar o caso do Brasil. A identificação da teoria com indivíduos auto-
res bloquearia a inovação teórica, pois os autores euroamericanos
tendem a ser tratados como entidades transcendentais
que nos guiam e condicionam nossa vida terrena acadê-
mica. Por opção epor força da geopolítica da disciplina
e do mercado editorial, em muitos casos assumimos o
papel de meros intermediários que recebem e transmi-
tem teorias e métodos para aqueles não iniciados (ROSA;
RIBEIRO, 2021, p. 10).

Essa associação entre recepção de indivíduos autores e falta


de inovação teórica nos parece bastante questionável. A não ser a
suspeita implícita e infundada de que o mero uso de autores do norte
bloquearia a criatividade teórica dos autores do sul, não há nada que
sustente esse diagnóstico. Basta olharmos a recepção de autores
como Karl Marx, Max Weber, Pierre Bourdieu e Niklas Luhmann para
constatarmos que o reconhecimento da autoria individual de teo-
rias não implica necessariamente engajamento para reconsagrar na
periferia nomes que gozam de prestígio no centro. O diálogo que

SUMÁRIO 186
muitos cientistas sociais brasileiros mantêm com esses e outros
autores é marcado por esforços bem-sucedidos de inovação teórica,
como apresentamos acima. Portanto, não são apenas esforços de
adição, mas também elaborações conceituais capazes de corrigir e
substituir premissas e afirmações sobre a sociedade moderna a par-
tir de um trabalho teórico engajado na compreensão não somente da
modernidade periférica, mas da modernidade como um todo a partir
da chamada periferia.

Em comum, as duas razões apontadas por Rosa e Ribeiro


(2021) para explicar a suposta falta de inovação teórica no Brasil par-
tem do pressuposto não tematizado de que há uma fronteira episte-
mológica rígida entre o trabalho teórico feito no Norte e aquele que
deveria ser feito no Sul. O esforço de corrigir e substituir teses euro-
cêntricas contidas nas teorias do Norte não seria propriamente um
trabalho teórico autônomo no Sul. É como se o contexto geográfico
de surgimento das teorias determinasse plenamente seu conteúdo,
inviabilizando qualquer pretensão de universalidade. Rosa e Ribeiro
adotam, implicitamente, na contramão da sua intenção, uma concep-
ção essencialista da diferença entre centro e periferia para analisar
a geopolítica do conhecimento científico social. Como remédio para
o universalismo ingênuo das teorias do Norte, que frequentemente
negam seu caráter contextual e provinciano, resta apenas o contextu-
alismo geográfico radical que abandona qualquer pretensão universal.

Essa concepção implicitamente essencialista da diferença


entre centro e periferia não se restringe à dimensão epistemológica.
Abarca também a dimensão da própria compreensão sociológica da
sociedade moderna em que vivemos. Nessa compreensão, centro e
periferia são percebidos como referências geográficas totalizantes
que englobam não apenas o fazer científico, mas todas as esferas da
vida social. A experiência social da periferia é definida em termos de
uma diferença absoluta em relação ao centro da modernidade, de
modo que não haveria práticas, valores e instituições sociais comuns
entre os dois polos da diferença.

SUMÁRIO 187
No entanto, uma crítica consequente da assimetria geopolítica
entre teorias gerais e pensamento social e político particular só é pos-
sível quando se afirma a existência de uma vida social comum entre
centro e periferia. Não se trata de ignorar fenômenos de periferização
e centralização na esfera da ciência ou em qualquer outra esfera, mas
sim de considerar que existem camadas de sentido e práticas sociais
mais abrangentes do que a diferença entre centro e periferia.

Portanto, para criticar e transcender a assimetria geopolí-


tica entre teoria geral e pensamento particular é preciso dispor de
uma teoria da sociedade que situe essa crítica em dimensões que
superam a diferença centro/periferia, ou seja, de uma teoria que trate
centro e periferia como partes de uma realidade social mais ampla e
generalizada em ambos os polos da diferença. Isto significa que essa
teoria da sociedade precisa recusar a tese de que vivemos em uma
sociedade estruturada primariamente pela diferença colonial entre
centro e periferia. Esse não é o caso do diagnóstico de Rosa e Ribeiro
(2021), que assume a premissa decolonial de que a assimetria entre
Norte e Sul — uma variante conceitualmente degradada da dife-
rença entre centro e periferia — constitui a estrutura mais importante
da sociedade global.

Como alternativa a essa concepção decolonial que define a


sociedade mundial a partir do primado da diferença colonial entre
centro e periferia, propomos uma leitura da teoria sistêmica da socie-
dade de Niklas Luhmann (DUTRA, 2021). Nessa teoria, a sociedade
mundial não é definida pelo primado da diferença colonial entre
povos, nações, raças etc., mas sim pelo primado da diferenciação
entre sistemas funcionais como economia, política, direito e ciência.
Com a constituição de sistemas funcionais globais e diferenciados,
as assimetrias neocoloniais, do mesmo modo que as desigualdades
de classe, gênero e etnia, perdem seu caráter necessário do ponto
de vista de sua estruturação e legitimação, sendo recolocadas em
um horizonte interno de críticas e alternativas. O unitarismo estru-
tural característico do colonialismo, com sua relação entre centro e

SUMÁRIO 188
periferia válida em todas as dimensões, é rompido pela diferenciação
funcional, que impõe uma fragmentação da oposição centro/perife-
ria em múltiplas diferenças entre “centros” e “periferias” no interior
dos distintos sistemas funcionais. O primado da diferença colonial,
definidor do colonialismo, implicava a existência global de uma epis-
teme unitária que classifica e hierarquiza raças e povos:
A ideia de raça ou pureza de sangue, tal como expressa no
século XVI, tornou-se o princípio básico para classificar e
ranquear povos por todo o planeta, redefinindo identidades
e justificando o trabalho escravo (MIGNOLO, 2002, p. 83).

A teoria sistêmica da sociedade admite que a sociedade em


que vivemos produz e reproduz desigualdades neocoloniais entre
centro e periferia. Mas nem essa nem qualquer outra forma de desi-
gualdade social define a sociedade enquanto sua forma primária e
mais abrangente de diferenciação interna. A sociedade mundial con-
temporânea transcende a diferença colonial entre centro/periferia.
Transcender aqui não significa evidentemente eliminar essas estrutu-
ras sociais, mas sim alterar sua condição e seu lugar na ordem social:
elas deixam de ser necessárias para se tornarem contingentes.

A diferenciação funcional, ao fragmentar e romper com o pri-


mado da colonialidade, também produz o horizonte e as condições
de possibilidade de crítica e transformação semântica e estrutural das
assimetrias neocoloniais dentro e fora da ciência. A crítica decolonial
descuida de sua autorreflexão ao pressupor que faz uma crítica externa
da colonialidade, como se o horizonte normativo de uma “humanidade
compartilhada”, que orienta em última instância essa crítica decolonial
(MIGNOLO, 2002, p. 72), não dependesse de uma formação societária
na qual a colonialidade não é a forma primária, necessária e naturali-
zada de constituição de relações e unidades sociais.

Ao eleger uma fonte única de produção e reprodução das


desigualdades neocoloniais — a dependência epistêmica —, ess0a
crítica acaba pressupondo um primado da diferença colonial sobre

SUMÁRIO 189
a constituição e funcionamento de todas as instituições e sistemas
da sociedade global. O déficit de reflexividade reside precisamente
nesse pressuposto, pois na vigência do primado da diferença colo-
nial a crítica da colonialidade do poder não seria possível enquanto
saber do social sobre o social. O lugar de enunciação da crítica deco-
lonial não se sustenta enquanto exterioridade (MIGNOLO, 2002, p.
62): ou ele está internamente implicado na própria diferença colonial,
o que representaria uma impossibilidade disfarçada com a busca de
um lugar híbrido de enunciação, ou ele é uma construção interna de
formas de sociabilidade que transcendem a diferença colonial.

Transcender a diferença colonial e a colonialidade do poder


significa a constituição de um patamar global de complexidade
social, no qual se torna impraticável uma mesma hierarquia colo-
nial ou neocolonial estruturar o funcionamento de desigualdades
em todas as esferas e dimensões da vida social. Em outros termos:
significa que as assimetrias neocoloniais, cuja emergência e estabili-
zação o próprio Luhmann (1995) identificou como constitutivas para
as identidades nacionais europeias no século XIX e XX, não pode-
riam jamais ser desestabilizadas na evolução dos distintos sistemas
funcionais da sociedade global.

Ora, mas é justamente essa desestabilização que podemos


identificar em quase situação de coexistência com a semântica
neocolonial. Em diferentes sistemas funcionais, mas sobretudo na
própria política de importantes Estados nacionais, o século XX dá
testemunho do surgimento não só de críticas sociais e políticas de
neocolonialismo, como também da efetiva constituição de estruturas
e processos anticoloniais, desenvolvimentistas e anti-imperialistas
que lograram alterar significativamente, em diferentes momentos, as
estruturas globais de poder.

A reflexividade que cobramos da crítica decolonial da


geopolítica do conhecimento tem o objetivo de situar sua própria
semântica crítica no interior de estruturas e processos anticoloniais,

SUMÁRIO 190
cuja existência pressupõe uma sociedade global em que a diferença
primária não é uma diferença colonial unitária e vigente em todas as
esferas sociais, mas sim uma sociedade formada por um conjunto
diferenciado de esferas nas quais diferentes estruturas neocoloniais
ou anticoloniais se desenvolvem de modo não necessariamente
relacionado. O problema teórico fundamental é, portanto, se as dife-
renças regionais — sejam elas neocoloniais ou não — devem ser
explicadas a partir do primado da diferença colonial ou do primado
da diferenciação funcional.

Do nosso ponto de vista, ao adotar implicitamente a tese do


primado da diferença colonial, o diagnóstico de Rosa e Ribeiro sobre
a ausência de inovação teórica no Brasil (2021) reafirma a própria
geopolítica do conhecimento que os autores pretendem criticar.
Apesar da intenção crítica, os autores não propõem uma definição de
teoria capaz de superar a noção implícita e falsamente universalista
de que teoria é o que centro faz. Seu déficit de reflexividade acaba
por cobrar esse preço, que fica explícito na afirmação de que produ-
zir teoria é participar dos debates das revistas internacionais de teo-
ria social, ou seja, das revistas do chamado centro (ROSA; RIBEIRO,
2021, p. 11). Tomar as revistas sediadas no Norte como sinônimos de
revistas internacionais, e com isso considerar as revistas brasileiras
apenas como nacionais, é reproduzir a premissa de que a construção
de teorias é um trabalho que se realiza no centro.

A teoria sistêmica da sociedade entende que processos de


periferização e centralização de práticas sociais como o trabalho teó-
rico na ciência às vezes obedecem a fronteiras territoriais, nacionais
ou regionais, mas não o fazem sempre e nunca de modo necessário.
Sua localização territorial é contingente. Nos países periféricos há,
por exemplo, processos de centralização na ciência (NEVES, 2009),
assim como há processos de periferização em países centrais.

A localização geográfica do trabalho conceitual não necessa-


riamente implica sua periferização, ou seja, seu não reconhecimento

SUMÁRIO 191
enquanto um trabalho de teoria. É preciso relativizar a localização
geográfica do conhecimento para transcender a assimetria geopolí-
tica entre teoria geral e pensamento particular. É conveniente e pos-
sível implodir essa assimetria geopolítica. Para isso, o mais impor-
tante é questionar a própria autocompreensão do que se chama de
pensamento social e político brasileiro, que adota frequentemente
um estilo periférico, aceitando a inferioridade que lhe é atribuída
em contraste com as teorias cosmopolitas vistas como trabalho
exclusivo do centro.

A tarefa principal é compreender o chamado pensamento


social e político brasileiro como um trabalho que oferece conceitos
e inovações teóricas capazes de reconstruir a compreensão sobre a
modernidade social e política. Para isso é necessário desestabilizar
também a divisão do trabalho entre teoria e empiria que embasa a
geopolítica do conhecimento: ao se ocupar de problemas empíricos,
questões sociais e políticas nacionais, o chamado pensamento social
e político é identificado como um tipo de trabalho de menor grau de
abstração e baixa capacidade de generalização conceitual. Mas essa
oposição entre teoria e empiria não fornece uma definição adequada
do que é a própria teoria. Essa é uma definição geopolítica da teoria
que precisamos substituir por uma definição, por assim dizer, teórica
da teoria. O que define um trabalho de teoria social e política não é
sua oposição em relação ao trabalho empírico. O trabalho teórico
pode e deve ser feito em constante contato com a pesquisa empírica
especializada. O que define um trabalho teórico é o fato de ele se
ocupar predominantemente do problema da construção dos pró-
prios objetos de estudo (NASSEHI, 2021, p. 22). Teoria é a atividade
científica que reflete e orienta a construção de objetos de estudo
tomando esta construção como matéria de decisões conceituais.

Decisões conceituais são realizadas em todo tipo de ciência,


mesmo quando não são percebidas como tais. Instrumentos de medi-
ção e agregação de dados sobre um determinado objeto já portam
decisões teóricas sobre esse objeto. No entanto, como toda decisão,

SUMÁRIO 192
as decisões conceituais sobre um objeto também são contingentes:
sempre poderiam ou podem ser de outro modo. E é comum que mui-
tas dessas decisões sejam reiteradas sem um trabalho concomitante
de reflexão sobre elas, de modo que acabam sendo reproduzidas
como pressupostos e asserções implícitas sobre os objetos de pes-
quisa. As diferentes tradições do pensamento social e político brasi-
leiro produziram e produzem trabalhos de decisão conceitual sobre
objetos de estudo que dizem respeito não apenas ao Brasil, mas à
modernidade como um todo. Teoria não é o trabalho que se realiza no
centro. Teoria é o trabalho de decisão conceitual realizado em qual-
quer lugar, tenha ele o nome de teoria, pensamento ou qualquer outro.

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SUMÁRIO 196
8
Ana Rodrigues Cavalcanti Alves
Lucas Amaral de Oliveira

REDIMENSIONANDO
GUERREIRO RAMOS:
UM EXERCÍCIO DE RELEITURA
DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA69

69 Este trabalho é fruto de uma pesquisa de maior fôlego dos(as) autores(as) sobre releituras da
sociologia brasileira. Uma versão ampliada do texto foi publicada na revista Sociedade & Estado
(vol. 38, n. 1, 2023, p. 243-274), em português e inglês. Uma variação da reflexão também saiu
na coletânea Teoria Social e Desafios Pós-Coloniais, organizada por Ricardo Pagliuso Regatieri e
Lucas Amaral de Oliveira (Salvador: EDUFBA, 2024, p. 181-204).

DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.8
INTRODUÇÃO
Desde o início do século XX, a história intelectual e das ideias
no país tem sido caracterizada por um imaginário modernista de infle-
xão crítica em relação às matrizes teóricas e metodológicas estran-
geiras. Isso se manifesta através de certa orientação antropofágica
de apropriação seletiva e, por vezes, criativa de diferentes tradições
no processo de amadurecimento intelectual do país (SANTIAGO,
1978). O projeto da “redução sociológica” de Alberto Guerreiro
Ramos (1915-1982) exemplifica essa postura no campo sociológico
brasileiro, ao sistematizar o procedimento “crítico-assimilativo” de
esquemas explicativos estrangeiros, sem, contudo, anunciar a rup-
tura total com as “teorias alienígenas” do Atlântico Norte (RAMOS,
1996), mas sim redimensionando os enquadramentos e as técnicas
às circunstâncias locais. Gostaríamos de propor, neste capítulo, um
breve exercício de “releitura” desse autor baiano, o que nos parece
um caminho produtivo de aproximação entre uma tradição crítica da
teoria sociológica brasileira e os tensionamentos mais recentes tra-
zidos pelo pensamento pós-colonial. Esse exercício de releitura nos
permitirá discutir mais ao final a relevância e atualidade da sociolo-
gia de Guerreiro Ramos.

O processo de institucionalização das ciências sociais no


Brasil, tal como ocorreu pelo menos desde os anos 1940, foi atraves-
sado por debates teóricos, metodológicos e políticos intensos, além
da concorrência interna entre campos específicos. Essa tendência
de falta de consenso foi observada na sociologia em nível global,
com questionamentos em relação às dimensões ontológicas, episte-
mológicas e metodológicas da teoria social (ALEXANDER, 1999; GO,
2016; MCLENNAN, 2010, SEIDMAN, 1994), bem como pela existên-
cia de uma pluralidade de escolas, correntes, abordagens e paradig-
mas que, por vezes, se entrecruzam e se influenciam mutuamente
(CONNELL, 2007; GIDDENS & TURNER, 1999; PATEL, 2010).

SUMÁRIO 198
Mesmo se considerarmos a constituição interna de tais
campos, é possível observar que os mesmos não se fundamentam
em interpretações unívocas ou em qualquer monolitismo teórico ou
político. Essas discussões, em última instância, sintetizam o desafio
de abordar a sociologia brasileira de modo mais abrangente, espe-
cialmente ao se concentrar nos enfoques voltados à crítica da colo-
nialidade e do eurocentrismo, presentes em nosso campo intelectual.

Essas críticas não se concentram em uma única vertente teó-


rica; pelo contrário, nota-se sua expressão em autores que defendiam
propostas epistemicamente divergentes para os rumos da sociologia
nacional, como é o caso de Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes,
que protagonizaram uma emblemática contenda sobre as formas
de conceber o “fazer-sociológico” nos anos 1950 (BARIANI, 2006;
FERNANDES, 1977; RAMOS, 1996). Por essa razão, nosso esforço
de sistematização das comunalidades e diferenças teóricas entre a
sociologia brasileira e as teorias pós-coloniais (OLIVEIRA & ALVES,
2023) tem considerado, de modo geral, as vertentes mais críticas da
tradição sociológica no país no que tange à abordagem da persistên-
cia do colonialismo e do eurocentrismo na construção do conheci-
mento sociológico nacional.

A tradição pós-colonial, por sua vez, apresenta uma comple-


xidade igualmente notável. Apesar das diversas acepções do termo,
das variações sofridas nos últimos anos, dos redimensionamentos
contemporâneos, das disputas internas dentro de um campo hete-
rogêneo e das divergências teóricas entre autores(as) proeminentes
(OLIVEIRA, 2020), Sérgio Costa (2006) defende que o pensamento
pós-colonial partilha agendas intelectuais e políticas comuns. Essas
agendas visam romper com o império das histórias únicas, baseadas
em metanarrativas ocidentais, superar ideologias de progresso e
modernização singulares, elaborar críticas às matrizes de dominação
colonial e aos "processos civilizatórios" etnocêntricos, e desconstruir
essencialismos baseados em classe, raça, etnia, gênero e nação.

SUMÁRIO 199
Poderíamos, então, dizer que uma convergência entre socio-
logia brasileira e teorias pós-coloniais diria respeito, mais substan-
cialmente, à preocupação teórico-metodológica com o estatuto da
sociologia em contextos periféricos. Tal discussão é crucial para
o debate pós-colonial e atravessa de modos variados o campo
sociológico nacional.

Como em outros contextos intelectuais periféricos, a influ-


ência da sociologia euro-norte-americana na formação do campo
sociológico brasileiro e na constituição de seu cânone é inegável70.
Contudo, a história da sociologia brasileira é marcada por um intenso
debate sobre os limites da implementação de esquemas analíticos
e ideais normativos provenientes no Atlântico Norte à realidade
social do país e, ao mesmo tempo, sobre como essa prática deve ser
acompanhada por uma crítica aos fundamentos eurocêntricos que
informam as ciências sociais.

Nesse sentido, é possível observar uma constante preocupa-


ção com o estatuto periférico da sociologia brasileira em diferentes
momentos da história da disciplina. Cabe mencionar novamente
o debate entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes, nos anos
1950, em relação aos rumos da sociologia e da sociedade brasileira,
em um momento de institucionalização das ciências sociais no país
(BARIANI, 2006; FERNANDES, 1977; OLIVEIRA, 2001; RAMOS, 1996).
Esse debate, que teve início no II Congresso Latino-Americano de
Sociologia, realizado no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 1953,
explicitou divergências com relação ao modo de conceber o trabalho

70 Vale lembrar que a chamada Geração de 1930-45 – que constitui uma espécie de “cânone sociológico
nacional”, como destacou Mariana Chaguri em sua reflexão no Colóquio que ensejou este livro – será
consagrada no campo intelectual brasileiro não somente em virtude de suas interpretações origi-
nais sobre formação nacional, mas também pela introdução pioneira de enfoques antropológicos
e sociológicos estrangeiros. E aqui poderíamos citar exemplos clássicos: Gilberto Freyre, por meio
da introdução da perspectiva culturalista em sua reinterpretação do problema da miscigenação no
processo de formação da família patriarcal; Sérgio Buarque de Holanda pela introdução de conceitos
weberianos em sua análise da cordialidade e do patrimonialismo; e Caio Prado Jr. por meio da análise
de nossa formação econômico-social fundamentada no materialismo histórico (CÂNDIDO, 2006).

SUMÁRIO 200
sociológico, suas preocupações teóricas, metodológicas e políticas,
bem como as condições de pesquisa e desenvolvimento no Brasil.
Segundo Edson Bariani (2006) as divergências entre Guerreiro
Ramos e Florestan Fernandes exprimiam diferentes projetos para o
campo acadêmico brasileiro e para a nação.

Nas propostas apresentadas no Congresso – e, posterior-


mente, nas obras Cartilha Brasileira do Aprendiz de Sociólogo, de
1954, e A Redução Sociológica, de 1958 –, Guerreiro Ramos criticou a
transplantação de medidas adotadas nos países “desenvolvidos” para
os problemas nacionais, cujas soluções deveriam ser buscadas nas
condições efetivas de suas estruturas nacionais e regionais. Sobre
as condições ideais da pesquisa científica, o sociólogo baiano acre-
ditava que elas deveriam se adequar ao caráter “subdesenvolvido”
da sociedade brasileira, priorizando a formulação de interpretações
gerais sobre a estrutura social – em detrimento dos estudos sobre
“minudências da vida social” –, capazes de orientar a implementação
de políticas de caráter planificador, com vistas ao desenvolvimento
da nação via industrialização (BARIANI, 2006, p. 152; OLIVEIRA,
1995; RAMOS, 1996). Guerreiro Ramos, conferindo uma orientação
salvacionista ao pensamento sociológico, acreditava que o ensino
da sociologia – mesmo como uma disciplina escolar – constituiria
o melhor “modo de difundir uma consciência crítica dos problemas
nacionais e promover a emancipação em relação ao colonialismo
cultural” (BARIANI, 2006, p. 154).

Florestan Fernandes, por sua vez, contrapõe-se a Guerreiro


Ramos em sua análise sobre o padrão de trabalho científico que
deveria ser adotado pela sociologia brasileira. Em texto publicado
originalmente em 1958, “Padrão de trabalho científico dos sociólo-
gos brasileiros”, Fernandes destaca que o fazer-sociológico não deve
se orientar pelo sistema de interesses e valores da nação, mas pelo
sistema de normas e valores do saber científico; do contrário, não
seria possível colocar a ciência a serviço da comunidade. A defesa
da autonomia do campo científico é encarada pelo autor como forma

SUMÁRIO 201
de fazer frente a influências externas, que pesam sobre o sociólogo
em diversos níveis, sobretudo em um contexto marcado pela persis-
tência de relações arcaicas e autoritárias. Com isso, ele defende o
rigor metodológico na condução da pesquisa sociológica – que não
deveria ser subordinada às condições materiais de subdesenvolvi-
mento da nação – e o caráter universal do conhecimento científico,
passível de ser absorvido dos grandes centros acadêmicos. A incor-
poração dos estudos de comunidade – rejeitada veementemente por
Guerreiro Ramos –, quando combinada à análise histórico-estrutural,
permitiria, segundo Fernandes (1977), distanciar-se dos ensaísmos
de interpretação do Brasil e apreender de forma mais metódica e
cientificamente informada as variações do desenvolvimento interno,
econômico e sociocultural, que caracterizariam as diversas regi-
ões do país em meados do século XX. Ou seja, a própria ciência
deveria ser explorada como fator de desenvolvimento (BARIANI,
2006; FERNANDES, 1977).

Embora extrapole o escopo deste trabalho reconstruir as múl-


tiplas significações e posteriores interpretações assumidas por esse
debate, cabe destacar a centralidade das preocupações de ambos os
autores com o papel da sociologia nacional no momento de sua auto-
nomização71. Tais preocupações estavam voltadas tanto para a reflexão
sobre a natureza das relações a serem estabelecidas com os centros
de produção científica, quanto para os limites e as possibilidades do
pensamento sociológico em promover o desenvolvimento do país.

71 Embora o debate entre Fernandes e Ramos tenha sido analisado de modo competente por di-
versos(as) autores(as), a relação entre os dois se coloca para além das divergências citadas no
referido debate, sendo marcada também pelo reconhecimento mútuo, respeito e admiração no
que tange à contribuição de cada um para a história da sociologia no Brasil. Pelo menos é isso
o que sugere as correspondências de Guerreiro Ramos encontradas na biblioteca de Florestan
Fernandes, disponíveis nas Coleções Especiais da UFSCar. Infelizmente, para este trabalho, não foi
possível recuperar as cartas enviadas por Fernandes ao sociólogo baiano. É possível, no entanto,
que uma análise mais pormenorizada desse material ajude a reconstruir as nuances inscritas
nessa relação, marcada por importantes debates acadêmicos, assim como as influências mútuas
entre os autores em seus esforços de construção de uma sociologia autêntica, autônoma e enga-
jada no enfrentamento dos dilemas nacionais.

SUMÁRIO 202
Tais questionamentos nos conduzem à discussão sobre as
principais divergências teóricas entre a linhagem crítica encontrada
no campo intelectual brasileiro e uma vertente mais radical das dis-
cussões pós-coloniais, em especial acerca da relação com o cânone
sociológico euro-norte-americano. A hipótese que temos explorado
é que, na sociologia brasileira, parece haver, de um modo geral,
maior disposição a dialogar criticamente com esse cânone, mesmo
que apontando seus limites. E isso se explica fundamentalmente
de três formas: 1) seja porque reconhecem nele uma gramática
que possibilita o diálogo entrecruzado; 2) seja porque reivindicam
a utilização de repertórios metodológicos considerados úteis para
a análise dos fenômenos sociais; 3) ou, ainda, porque defendem a
existência de elementos de resistência e emancipação no imaginário
moderno, com os quais não seria desejável romper integralmente
(OLIVEIRA & ALVES, 2023).

Essa reflexão sobre comunalidades e diferenças teóricas entre


sociologia brasileira e epistemologias pós-coloniais tem nos levado
a considerar a forma como o diálogo entre uma vertente crítica da
teoria sociológica brasileira e os tensionamentos recentes trazidos
pelas teorias pós-coloniais pode operar como via de mão dupla, mar-
cada por contribuições recíprocas que possibilitam tanto avançar em
aportes teóricos mais descentrados em relação ao cânone socioló-
gico, quanto na construção de repertórios apropriados para a análise
das mais diversas realidades locais. É a partir dessa hipótese que
propomos um exercício de “releitura” da sociologia brasileira a partir
do redimensionamento de uma das principais obras de Guerreiro
Ramos, A Redução Sociológica, de 1958, que nos permite destacar
a recorrente preocupação de parte do nosso campo intelectual com
questões teórico-metodológicas e respostas criativas ao desafio de
lidar com a tradição sociológica hegemônica.

SUMÁRIO 203
O EXERCÍCIO CRÍTICO DA RELEITURA
Já faz alguns anos que, no Brasil, agendas de pesquisa têm
procurado destacar a relevância de intelectuais como “precurso-
res(as)” de perspectivas pós-coloniais. Sob vieses distintos, pesqui-
sadores(as) têm alçado a trajetória e a obra de Guerreiro Ramos como
esforços se não vanguardistas, pelo menos inovadores na tentativa
de constituir um projeto teórico-metodológico descentrado e uma
agenda de pesquisa crítica ao eurocentrismo, pensando a sociologia
a partir das idiossincrasias do contexto nacional (BARBOSA, 2006;
BARIANI, 2011; BRINGEL, LYNCH & MAIO, 2015; FIGUEIREDO &
GROSFOGUEL, 2007; FILGUEIRAS, 2012; LYNCH, 2015; MAIA, 2012;
2015; OLIVEIRA, 1995; REZENDE, 2006). Buscando inserção nessa
fortuna crítica, o objetivo aqui é evidenciar a proposta de redução
sociológica de Guerreiro Ramos como uma alternativa teórico-me-
todológica para o incremento das epistemologias pós-coloniais. Tal
discussão permite explorar a hipótese das “releituras” da sociologia
brasileira – foco deste livro e de nossa agenda conjunta de pesquisa.

Nosso argumento parte de uma constatação e uma aposta.


Acreditamos que “viradas” epistemológicas na teoria social contempo-
rânea, como a pós-colonial, reformataram a maneira de analisar nossa
própria história intelectual. Dessa constatação, emerge uma aposta:
programas de pesquisas como a “redução sociológica”, de Ramos,
constituem procedimentos originais em termos metodológicos que
podem ser retomados, cultivados e exercitados, não só na sociologia
brasileira atual, mas na sociologia contemporânea a nível global.

Antes de tudo, uma releitura de Guerreiro Ramos à luz da


crítica pós-colonial nos ajuda a enfrentar o que o autor chamou à
época de “centripetismo”, que é a tendência de algumas tradições
intelectuais periféricas de sempre voltar-se para fora – em especial,
para os centros hegemônicos – em busca de respostas prontas
e modelares para a resolução de nossos problemas. Essa tendência,

SUMÁRIO 204
de acordo com a crítica do próprio sociólogo baiano, não é algo que
atinge somente o campo acadêmico; ela incide em todos os níveis
de nossa vida, estabelecendo uma tensão entre os anacronismos do
país, a potencialidade de suas “estruturas em geração” e as dificulda-
des de suscitar soluções efetivas:
Em termos superestruturais, essa tensão traduz um conflito
de duas perspectivas, a do país velho e a do país novo, da
mentalidade colonial ou reflexa e da mentalidade autentica-
mente nacional. No domínio das ciências sociais, essa ten-
são também se verifica. Até agora, considerável parcela de
estudiosos se conduziu sem se dar conta dos pressupostos
históricos e ideológicos do seu trabalho científico. Sua con-
duta era reflexa e se submetia passiva e mecanicamente a
critérios oriundos de países desenvolvidos [...]. À assimilação
literal e passiva dos produtos científicos importados, ter-
-se-á de opor a assimilação crítica desses produtos. Por isso,
propõe-se aqui o termo redução sociológica para designar
o procedimento metódico que procura tornar sistemática a
assimilação crítica (RAMOS, 1996, p. 68).

A “redução” de que fala Guerreiro Ramos exprime, entre


outras coisas, uma preocupação em refletir metódica e sistematica-
mente os pressupostos históricos, teóricos e ideológicos que con-
formam as ciências sociais no país. Já em O problema do negro na
sociologia brasileira – publicado originalmente na revista Cadernos
do nosso tempo, em 1954, e que também compõe sua Cartilha do
aprendiz do sociólogo brasileiro, publicada naquele mesmo ano –, o
autor destaca o viés ideológico – para ele, imperialista, colonialista e
etnocêntrico – de conceitos fundamentais da sociologia e da antro-
pologia europeias e norte-americanas, tais como o de “aculturação”
e de “mudança social”, os quais constituiriam uma “racionalização ou
despistamento da espoliação colonial” (RAMOS, 1981, p. 3).

À medida que esses e outros conceitos – como o de “estrutura


social” – são apropriados de modo acrítico por estudiosos provenientes
de países periféricos, a partir de um processo mimético (CAMPBELL,
2014), eles passam a atuar como um “poderoso fator de alienação”,

SUMÁRIO 205
contribuindo para a consolidação de uma “concepção quietista de
sociedade”, que favorece a “ocultação da terapêutica decisiva dos
problemas humanos em países subdesenvolvidos” (RAMOS, 1981, p.
3). É interessante notar que embora Ramos proponha, no texto, um
balanço dos estudos sobre o negro no Brasil, a crítica direcionada
a diversos autores brasileiros se orienta não tanto pela concepção
de raça adotada – racista e, de todo modo, datada do ponto de vista
científico –, mas pela atitude assumida frente ao repertório teórico-
-metodológico estrangeiro. Em suas palavras:
[...] a partir de uma posição científica, de caráter funcional,
isto é, proporcionadora da autoconsciência ou do autodo-
mínio da sociedade brasileira, importa, antes de estudar a
situação do negro tal como é efetivamente vivida, exami-
nar aquela literatura, tendo em vista desmascarar os seus
equívocos, as suas ficelles e, além disso, denunciar a sua
alienação (RAMOS, 1981, p. 1-2).

Desse modo, o autor destaca, de um lado, a transplantação lite-


ral de conceitos e atitudes pré-fabricados, desvinculada do propósito
de “autodeterminação da sociedade brasileira”, da qual Nina Rodrigues,
Arthur Ramos e Gilberto Freyre seriam os principais artífices – enquanto
representantes de uma “corrente monográfica” nos estudos sobre
o negro no Brasil. De outro, Ramos aponta o esboço de uma atitude
crítico-assimilativa em face da ciência social produzida e difundida a
partir de contextos euro-norte-americanos – que embasaria posterior-
mente sua proposta de redução sociológica –, representada por nomes
tão diversos como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e
Oliveira Viana, considerados representantes de uma “corrente autono-
mista de nosso pensamento sociológico”72 (RAMOS, 1981, p. 15).

72 Segundo o autor, o que permite reunir autores tão distintos é o esforço expresso por todos eles
em formular uma teoria do “tipo étnico brasileiro”, o que permite aproximar o negro dos outros
contingentes populacionais, em vez de destacar suas particularidades, mediante uma abordagem
exotizante que sugere ainda seu caráter de antepassado histórico. Para Ramos (1981), a análise
das relações raciais no Brasil deveria superar a chave do exotismo, comprometendo-se com a
transformação da condição humana do negro na sociedade brasileira. Em sua perspectiva, o negro
deve ser encarado como agente histórico em devir, que se consubstanciaria no brasileiro.

SUMÁRIO 206
Nesse primeiro momento de sua reflexão, a atitude crítico-
-assimilativa seria marcada por certo distanciamento em relação a
teorias e conceitos estrangeiros, considerados inadequados à análise
dos problemas característicos da realidade brasileira. Afinal, nosso
autor lembra que, “embora os princípios gerais de conhecimento
positivo sejam universais [...], os problemas científicos radicam-se em
situações historicamente concretas” (RAMOS, 1981, p. 2). Portanto, é
possível inferir de sua sistematização crítica um esboço do que seria
a proposta de redução sociológica alguns anos depois, que exprime
preocupações metodológicas e políticas consideradas essenciais
para assegurar o fazer-sociológico em contextos periféricos.

É nesse sentido que acreditamos que Ramos converge com


os enfoques pós-coloniais em sua crítica ao viés colonial inerente às
teorias sociológicas hegemônicas. No entanto, ao nosso ver, o soci-
ólogo baiano avança na tentativa de propor alternativas teórico-me-
todológicas para lidar com esse legado, respondendo a um anseio
que marca o campo acadêmico nacional da época, e que ainda pode
ser sentido nas críticas de teóricos(as) brasileiros(as) contemporâne-
os(as) endereçadas aos enfoques pós-coloniais, conforme discutido
na seção anterior. Segundo Ramos (1996), a redução sociológica,
seja ela praticada no domínio teórico-compreensivo, seja no domí-
nio das operações empíricas, consiste na eliminação de tudo aquilo
que, pelo seu caráter ideológico, acessório ou secundário, perturba o
esforço de compreensão e a obtenção do essencial de um fato social.

Em termos epistemológicos, revisitar a “redução”, de


Guerreiro Ramos, implica investir em um enquadramento que, por
um lado, reflete uma perspectiva descentrada sobre a teoria socioló-
gica brasileira e, por outro, pode trazer contribuições significativas da
sociologia crítica brasileira para o incremento da crítica pós-colonial.
No entanto, antes de prosseguir com essa discussão, é importante
elucidar a noção de “releitura” e explorar algumas de suas possi-
bilidades analíticas.

SUMÁRIO 207
A ideia de “releitura” deve ser compreendida como uma
categoria analítica. Reler pressupõe retrospecto; implica ler de
modo diferente, deslocado, heterotópico. Não se trata de “redefinir”
certa tradição histórica a partir de seus fundamentos – com auto-
res(as), ideias, projetos, contextos, disputas –, enquadrando-os em
movimentos contemporâneos, de modo atemporal, como se esse
conjunto de fatores anunciasse, profeticamente, o futuro; ou como
se expressasse antecipações vanguardistas de novas descobertas
epistemológicas. Por “releitura” sociológica compreendemos um
deslocamento e um descentramento epistêmico, um novo prisma
através do qual a tradição sociológica no Brasil pode ser redesco-
berta, reavaliada e ressignificada de modo crítico – afinal, foi este
o principal tensionamento que paradigmas pós-coloniais exerceram
sobre a sociologia nacional e em nível global.

Esse tensionamento implica explorar novas nuances tanto


dentro da mesma tradição quanto fora dela. A perspectiva analítica
da “releitura” que propomos – que retorna e retoma o passado em
suas sinuosidades, reapropriando-se criticamente dele – é distinta,
inclusiva e capaz de aplicar os "corretivos necessários" na tradição
(ALATAS & SINHA, 2017; CONNELL, 2007), que tende a ser negli-
gente em razão de suas determinações históricas. Seguindo esse
raciocínio, podemos identificar três conjuntos importantes de relei-
turas possíveis na teoria social.

O primeiro tipo de releitura constitui um procedimento de res-


gate analítico para a realização de corretivos temporais necessários,
capazes de deslindar elementos da tradição sobre os quais, a seu
tempo, pouco ou nada foi dito. Esse procedimento é análogo ao que
Alatas e Sinha (2017) empreenderam em relação aos clássicos socio-
lógicos europeus (Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim). Os(as)
autores(as) demonstram as qualidades metodológicas atemporais
dos clássicos – que permanecem úteis, a despeito de diferentes
contextos locais – e, paralelamente, acusam seus limites conceituais,
metodológicos, políticos e ideológicos, à vista de novos deslocamen-
tos possibilitados pelas viradas epistemológicas da teoria social.

SUMÁRIO 208
No caso brasileiro, um exemplo seria a crítica ao racismo
culturalista inerente às interpretações da geração de ensaístas de
1930 – conforme destaca Jessé Souza (2017) acerca dos conceitos
de cordialidade e patrimonialismo elaborados por Sérgio Buarque de
Holanda. Mesmo Caio Prado Jr., que parte do paradigma materia-
lista, é criticado pelo racismo cultural constitutivo de sua proposta
de modernização do país, ancorada na elevação dos padrões cul-
turais (aggiornamento) de nossas matrizes coloniais – ameríndia e
africana (MELO, 2019).

O segundo tipo possibilita redescobrir intelectuais que foram


marginalizados(as) pela produção hegemônica do conhecimento no
país, ou que habitaram tradições silenciadas, não reconhecidas ou
esquecidas. Os exemplos são muitos: Alex Ratts (2007), com Beatriz
Nascimento; Érika Mesquita (2003) com a sociologia da práxis de
Clóvis Moura; Sandra Siqueira (2020) que analisa o ostracismo de
teóricas da “corrente radical” da Teoria da Dependência, como Vânia
Bambirra; e Flávia Rios (2019) com a trajetória de Lélia Gonzalez.

Uma terceira forma possível de releitura é a que estamos pro-


pondo neste artigo, que implica desenterrar elementos e vieses desde
dentro das frestas da história intelectual e das ideias sociológicas no
Brasil. Trata-se de reorientar o foco para questões que foram deixa-
das em segundo plano ou então interpretadas como contingentes,
quando comparado ao que foi, de fato, valorizado epistemologica-
mente à época. Trata-se, para dizer de outra maneira, de resgatar
autores(as), conceitos e projetos teórico-metodológicos do limbo
intelectual e da secundariedade a que eventualmente foram jogados,
conferindo-lhes maior relevância e reconhecimento, o que favorece
uma agenda de ampliação do cânone das ciências sociais (ALATAS
& SINHA, 2017). Por outro lado, a releitura tal como proposta, aqui,
difere da linha “presentista” (PYYHTINEN, 2010), haja vista que não
retoma “os clássicos” da sociologia para atualizá-los em vista de
problemas e temas hodiernos, mas retira aqueles(as) que foram des-
valorizados pela tradição de seu papel secundário, redimensionando

SUMÁRIO 209
e requalificando suas contribuições à luz de novas possibilidades
teóricas e metodológicas abertas pelas viradas epistêmicas na teoria
social contemporânea.

Exemplos são os reexames críticos que Mário Augusto


Medeiros da Silva (2018) empreende de sociólogos(as) e intelec-
tuais negros(as) em São Paulo entre os anos 1950 e 1970, como
Virginia Bicudo, Eduardo de Oliveira e Oliveira, entre outros(as); que
Muryatan Barbosa (2006) faz ao reler a ideia de “personalismo negro”
de Guerreiro Ramos a partir de seu ativismo no Teatro Experimental
do Negro, e em debate com teóricos da negritude; e que Adélia
Miglievich-Ribeiro (2014; 2018) faz ao retomar Darcy Ribeiro e Paulo
Freire a partir de suas relações com intelectuais de outros países
latino-americanos e africanos.

Essas três modulações possíveis de “releitura” nos levam


a sistematizar tanto o impacto de enfoques pós-coloniais sobre o
campo sociológico no Brasil, pensado retrospectivamente, quanto os
influxos que a sociologia no país, revista desde uma visada trans-
nacional e “desprovincializada”, pode exercer sobre as abordagens
pós-coloniais. Se as “releituras” têm sido possíveis graças a tensio-
namentos trazidos por “viradas” contemporâneas na teoria social,
notadamente pelas epistemologias pós-coloniais, ao mesmo tempo,
essas “releituras” de tradições sociológicas como a brasileira – em
sua vertente mais crítica – podem oferecer contribuições relevantes
para os aportes pós-coloniais. Para avançar nesse argumento, pro-
pomos o exercício de releitura do “diagnóstico do contexto intelec-
tual” e as propostas teórico-metodológicas, presentes em A Redução
Sociológica, de Guerreiro Ramos, de 1958.

SUMÁRIO 210
A “REDUÇÃO SOCIOLÓGICA” CONTRA
A MENTALIDADE COLONIAL
Conforme aventado anteriormente, Guerreiro Ramos per-
cebia, no trabalho sociológico no Brasil dos anos 1940 e 1950, um
reflexo de “dependência acadêmica e intelectual”, representado na
forma de “alienação” científica e de “servidão conceitual” – tema
que será desenvolvido em Mito e Verdade da Revolução Brasileira
(RAMOS, 1963). O autor acusava parte da sociologia nacional de sua
época de fazer uso impreciso da produção estrangeira, “alienígena”,
aplicada ao Brasil de modo mecânico, servil, automático, sem atentar
para os “pressupostos históricos e ideológicos do trabalho científico”
em um país na periferia do capitalismo (RAMOS, 1996, p. 68).

De um lado, há uma crítica ácida voltada à altivez de alguns


autores que compunham a tradição sociológica dominante no Brasil,
segundo ele, expressão ambígua de um vira-latismo que reflete a
“condição de copista e repetidor” da elite intelectual nacional em
relação a hábitos europeus (RAMOS, 1996, p. 106). De outro, uma
apreensão com a “dependência acadêmica” e os desafios para a
produção de uma sociologia autônoma, pautados no abandono dos
laços umbilicais que tornam o campo sociológico do país secundário
e, portanto, inexpressivo em relação à proposição de “instrumentos
de autoconhecimento e desenvolvimento das estruturas nacionais e
regionais”73 (RAMOS, 1995, p. 107).

Guerreiro Ramos (1996) propõe algumas empreitadas para


combater nossa dependência acadêmica: a liquidação da “menta-
lidade colonial”74 e seus efeitos no plano da cultura, das ideias e da

73 A preocupação com a autonomia científica figurava em outros campos sociológicos do Sul


Global da época, a exemplo de Alatas (1977), na Malásia, Casanova (1969), no México, e Abdel-
Malek (1972), no Egito.
74 A crítica à “mentalidade colonial” se aproxima do fenômeno da “mente cativa”, que Alatas acusava
de ser persistente em tradições científicas periféricas. Sobre Alatas e Ramos, ver: Maia (2011; 2014).

SUMÁRIO 211
política; e a apresentação dos seus fundamentos históricos e ideo-
lógicos para a reivindicação e aquisição de uma “nova consciência
crítica da realidade brasileira”, capaz de lidar com seus reveses estru-
turais e estruturantes. Essa consciência embasaria uma sociologia
autônoma, autêntica, menos alienada, livre dos “grilhões imperiais”,
produtora de teorias e métodos científicos mais ajustados às deman-
das da realidade nacional (RAMOS, 1966), pavimentando o caminho
para a emergência de um “sujeito epistêmico” ou do que Ramos
denominava “homem parentético”.

Sobre a consciência crítica e parentética, Ramos defendia


um tipo de “readestramento” ou “treino sistemático” do olhar que
pudesse habilitar os cidadãos “a transcender [...] condicionantes cir-
cunstanciais que conspiram contra sua expressão livre e autônoma”
(RAMOS, 1996, p. 11), levando-nos a uma maior disposição para
entender, enquadrar e analisar os problemas nacionais em busca
de soluções efetivas. A “cultura sociológica” despontaria, nesse
contexto, como um componente qualitativo de resistência contra
“a robotização da conduta pelas pressões sociais organizadas”
(RAMOS, 1996, p. 11).

Contudo, na contramão desse processo, o autor acusava


nossa tradição de figurar uma sociologia “enlatada” (RAMOS, 1995, p.
120) e “consular” (RAMOS, 1996, p. 127). Tanto em a Cartilha Brasileira
de Aprendiz de Sociólogo quanto em A Redução Sociológica, o inte-
lectual baiano afirma que, no Brasil, não se formavam quadros de
sociólogos(as) capazes de fazer um “uso sociológico da sociologia”.
Com tal diagnóstico, nos anos 1950, Ramos afirma que o soció-
logo brasileiro convencional se habituou a incorporar a produção
estrangeira de modo mecânico, sacrificando seu senso crítico pelo
prestígio que poderia angariar perante o público leigo em razão do
emprego de conceitos e técnicas importadas – de onde se produz
a “melhor sociologia” –, mas que não se mostravam eficazes diante
dos obstáculos históricos na nação (RAMOS, 1966, p. 9).

SUMÁRIO 212
Cumpre observar que A Redução Sociológica é uma obra em
que Ramos responde às críticas feitas a ele no II Congresso Latino-
Americano de Sociologia, em 1953, reformulando e aprofundando
algumas das propostas apresentadas naquela ocasião, dentre elas
o seu próprio posicionamento com relação a demandas metodológi-
cas – o que permite destacar, novamente, a constante preocupação
do campo sociológico brasileiro com a questão do método.

No “Prefácio à Segunda Edição”, ele afirma que muitos


“expoentes da sociologia convencional no país” recusavam-se a
“ajustar” técnicas estrangeiras de pesquisa às condições mate-
riais da sociedade brasileira, temendo que pudessem alterar o teor
metodológico da contribuição e dificultar o trabalho teórico. Ramos
(1996, p. 26) também ataca o “purismo provinciano” que constituiria
parte dessa sociologia nacional, advogando que o fazer-sociológico
precisa implicar, sempre, uma modulação de técnicas e métodos
científicos, bem como de conceitos e modelos analíticos, que devem
ser adaptados a realidades situadas e consubstanciais a toda inda-
gação sociológica autêntica – cuja autenticidade se mede em razão
do grau de vinculação que têm com os problemas reais da vida
social. A discussão sobre “sociologia autêntica” já havia sido aven-
tada em “Sociologia Enlatada versus Sociologia Dinâmica”, apresen-
tado naquele Congresso:
A essência de sociologia autêntica é, direta e indireta-
mente, um propósito salvador de reconstrução social.
Por isso, inspira-se ela em uma experiência comunitária
vivida pelo sociólogo, em função da qual adquire sentido.
[...] Quem diz vida diz problema. A essência da vida é sua
problematicidade incessante. Daí que na medida em que
o sociólogo exercita vitalmente a sua disciplina é forçosa-
mente levado a entrelaçar o seu pensamento com a sua
circunstância nacional ou regional (RAMOS, 1995, p. 79).

Ele também acusava a chamada “sociologia consular” do


país de ser “bovarista”, ou seja, de deturpar a realidade empírica para
que coubesse no enquadramento teórico-metodológico importado,

SUMÁRIO 213
incorrendo em grande falácia ao vislumbrar uma distância intrans-
ponível entre o “mundo dos sociólogos” e o “mundo dos leigos”
(RAMOS, 1996, p. 27). Para tanto, ele faz uma analogia dos “soció-
logos convencionais” com os “puritanos” em matéria de gramática,
que buscam uma vernaculidade linguística do português do século
XVI não só inalcançável como inexistente. Guerreiro diz que a “hiper-
correção em sociologia” é uma contradição em termos, “porque há
muito pouco de sociologia e muito de consciência mistificada e alie-
nada”. O que nos coloca em simetria em relação a “colegas estran-
geiros não é o conhecimento decorado de suas produções, mas sim
o domínio do raciocínio que implicam, e que habilita os sociólogos
a fazer coisas diferentes em circunstâncias diferentes’’, “sem prejuízo
da objetividade científica” (RAMOS, 1996, p. 20).

Como contraponto, Ramos advogava uma substituição do


“centripetismo”, que é a atitude purista de importação de teorias
euro-norte-americanas – que ele chamava de “assimilação lite-
ral e passiva dos produtos científicos importados” (RAMOS, 1996,
p. 68) –, por uma atitude “crítico-assimilativa”. Isso conduziria ao
“uso sociológico da sociologia”75, alicerce da redução socioló-
gica. Ele constrói o método da redução a partir da fenomenologia
de Husserl e da sociologia do conhecimento de Gurvitch; porém,
alerta que a ideia de redução é estranha aos intelectuais europeus,
uma vez que eles não viveram o desafio da “descolonialização do
labor sociológico”76 (RAMOS, 1996, p. 35) e, portanto, não precisam
lidar com aquilo que Cheik Anta Diop (2012) denunciou, certa feita,

75 Décadas depois, a questão aparecerá no centro da análise de sociólogos(as) preocupados(as)


com a reflexividade na sociologia, como Alberto Melucci (2005) e Pierre Bourdieu (2012), que en-
fatizaram a necessidade de conhecer os pressupostos do conhecimento sociológico e os efeitos
sociais que pesam sobre a produção desse conhecimento.
76 A redução sociológica “é algo diverso de uma ciência eidética do social. O que tomamos de Husserl
foi menos o conteúdo filosófico do seu método do que um fragmento de sua terminologia. Além
disso, jamais passou pela cabeça de Gurvitch a ideia da redução sociológica como concebida e
exposta neste livro. Essa ideia é estranha a Gurvitch, que não vive o problema da descolonialização
do trabalho sociológico” (RAMOS, 1996, p. 35).

SUMÁRIO 214
como sendo um processo de falsificação da história, que reflete o fato
de que a história de sociedades periféricas tem sido escrita apenas
“do ponto de vista europeu” (RAMOS, 1996, p. 49).

É nesse sentido que a redução emerge como um método de


“assimilação crítica”, seletiva e antropofágica do patrimônio socioló-
gico que vem de fora. Contudo, é importante salientar que o proce-
dimento não constitui uma aversão às influências teóricas interna-
cionais, e por isso não é possível dizer que Guerreiro Ramos rompa,
radicalmente, com as epistemes do Norte Global. Ele mesmo diz:
“É esdrúxulo advogar ou condenar a importação de conhecimentos.
Todos os países são importadores de ciência. O que se trata – no
caso – é de como importar [...]; é a substituição da ‘atitude hipercor-
reta’ em face de tal produto pela atitude crítico-assimilativa” (RAMOS,
1996, p. 20). Na verdade, trata-se de um caminho metodológico de
superação do que ele acusava de “imperialismo mimético” (RAMOS,
1953) e, com efeito, de viabilização da “sociologia autônoma e autên-
tica” (RAMOS, 1995). Redução, portanto, não é a mera transposição
de conhecimentos de um contexto social e histórico a outro; mas a
própria quintessência do fazer-sociológico: uma revisitação crítica do
real em suas várias expressões situadas (RAMOS, 1996).

Guerreiro Ramos salienta três sentidos da sua “redução


sociológica”: 1) é um método de “assimilação crítica” da produção
estrangeira ajustada situacionalmente; 2) é uma atitude “parentética”,
orientada por um reajuste das nossas perspectivas analíticas, ou seja,
uma disposição para “pôr entre parênteses” os fatos sociais em busca
dos problemas essenciais, descolando-os dos possíveis vieses ideo-
lógicos das nossas lentes teóricas e conceituais, a partir de um treino
sistemático do olhar – o que permitiria perceber o mundo a partir de
outra posição epistêmica; 3) é um caminho de superação sociológica
em sua dimensão institucional e meramente academicista, que leva
em conta o potencial da sociologia como ciência do fazer e por se
fazer, projeto inacabado de “elaboração de um novo saber” (RAMOS,
1996, p. 11), cujos elementos estão postos no social concreto.

SUMÁRIO 215
A proposta de Ramos (1996) converge com os procedimen-
tos analíticos destacados por Maia (2011), na medida em que a redu-
ção sociológica convida tanto à crítica conceitual a partir de outros
lugares de enunciação quanto à proposição de novas abordagens
analíticas para fenômenos específicos. Ademais, a releitura da sua
obra – em especial, de sua proposta de redução sociológica – pode
render contribuições inventivas à fortuna crítica das epistemologias
pós-coloniais, na medida em que adentra a seara das discussões
sobre os desafios metodológicos colocados ao fazer-sociológico em
contextos periféricos.

Adrián Scribano (2012) salienta que a construção de um cor-


pus teórico envolve o cruzamento de cinco formas de apreensão do
social: o epistemológico, o ontológico, o crítico, o teórico e o meto-
dológico. Segundo o sociólogo argentino, os aportes pós-coloniais
dão ênfase sobretudo aos quatro primeiros domínios, mas pouca
sistematização tem sido produzida a respeito de questões metodo-
lógicas. Talvez esse seja um indício de que a sociologia não tem tido
muito impacto nas epistemologias “anti, pós e decoloniais”, o que nos
leva a concordar com algumas críticas levantadas por Gurminder
Bhambra (2007) e Julian Go (2016), para quem o pensamento pós-
-colonial periga ser mais uma “revolução perdida” da sociologia.

Guerreiro Ramos não foge ao desafio intelectual de refletir


sobre questões metodológicas. Nesse sentido, destacamos alguns
elementos da sua “redução sociológica”. É uma atitude, ainda que
indutiva, sistematicamente metódica, na medida em que se exime
de apreender a realidade social da forma como ela se mostra ime-
diatamente aos nossos olhos, sem que sejam avaliados os seus
fundamentos e pressupostos teóricos, ideológicos e estruturais, as
suas condições de possibilidades e as suas conexões de sentido. É,
também, perspectivista e situada, porquanto postula uma noção de
mundo em que indivíduos e objetos se encontram em uma infinita e
complicada “trama de referências”, a partir da qual eles mutuamente
se constituem – logo, se deslocarmos o foco analítico para outra

SUMÁRIO 216
perspectiva, tanto os problemas formulados inicialmente quanto
os objetos analisados deixam de ser o que eram. Em decorrência
dessa variabilidade, um problema sociológico não pode ser enfren-
tado como “desligado de um contexto historicamente determinado”.
A redução sociológica, mesmo pressupondo um suporte coletivo
(as vivências populares e a experiência da formação nacional) – o
que sugere que a sociologia, em sentido genérico, não é um “ato de
lucidez individual”, mas fundamenta-se em uma espécie de “lógica
material imanente à sociedade” –, é altamente rigorosa e elaborada
em termos metodológicos, apropriando-se do conhecimento histó-
rico, do estudo sistemático dos fatos sociais e do raciocínio cien-
tificamente embasado.

Por fim, a redução constitui um “procedimento crítico-assimi-


lativo” e “seletivo” de influências estrangeiras, o que não implica “iso-
lacionismo” científico e desconexão com o que é produzido a nível
global, tampouco exaltação romântica de tradições endógenas. Pelo
contrário: orienta-se pela “aspiração ao universal” mediatizada pela
força das circunstâncias locais, regionais e nacionais, modulando o
método analítico a partir do tensionamento dos problemas reais à
medida que esses problemas nos são oferecidos, sem “deformá-los”
para que melhor se enquadrem ao repertório teórico adotado. Desse
modo, Ramos parece advogar por certa flexibilidade dos conceitos
e da própria teoria à luz da realidade empírica e dos interesses prag-
máticos da sociologia nacional.

Criticando os “fascismos filosóficos” (RAMOS, 1996, p. 13) que


emergem no modo chauvinista de reivindicar nacionalismos meto-
dológicos, ele distinguia “ciência em ato” de “ciência em hábito”. Esta
última pressupõe uma imaginação fictícia acerca das relações entre
teoria e prática no domínio do trabalho intelectual, e por isso mesmo
tende a “hipostasiar” a disciplina sociológica, tornando-a um conhe-
cimento superprivilegiado e restrito a poucos(as). Nesse sentido, a
sociologia seria ideológica e informacional, mais um legado europeu.

SUMÁRIO 217
Já a “ciência sociológica em ato” refletiria uma atitude metó-
dica diante da realidade concreta. Em virtude de seu lastro social,
a “sociologia em ato” erige seu método e modula seus conceitos a
partir do que encontra na realidade, na dinâmica das vivências. Por
isso, seu futuro é deixar de ser conhecimento de especialistas, para
tornar-se conhecimento prático dos cidadãos e cidadãs. No “Prefácio
à Segunda Edição” de A Redução Sociológica, escrito em meados
de 1963, Ramos (1996, p. 27) preconiza um tipo-ideal de sociologia
pública e militante como horizonte de expectativa. Segundo ele, “a
vocação da sociologia [no Brasil], aliás, é tornar-se um saber vulga-
rizado. A sociologia se volatizará no próprio processo social global”.

Esses elementos nos mostram o virtuosismo da redução


sociológica, um programa de pesquisa rigoroso e criativo que per-
mite a apropriação antropofágica de teorias sociais, de conceitos,
de experiências intelectuais e de ideais normativos produzidos nos
países do Norte Global, mas sempre orientada para a construção de
um conhecimento sociológico autônomo, autoconsciente, reflexivo,
crítico e preocupado com o enfrentamento de problemas sociais
concretos, com vistas à conquista da autodeterminação política e
intelectual de sociedades periféricas. Portanto, entendemos que a
“redução” converge e complementa projetos mais radicais de des-
colonização do saber encontrados nas epistemologias pós-coloniais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, discutimos em que medida as teorias socio-
lógicas produzidas no campo acadêmico brasileiro podem ser corre-
lacionadas com um movimento intelectual mais abrangente e ainda
heterogêneo de crítica à colonialidade e aos pilares eurocêntricos
das ciências sociais, que têm ganhado destaque e reconhecimento
nas últimas décadas.

SUMÁRIO 218
Tentamos enfrentar esse problema de duas maneiras.
Primeiro, redimensionando as contribuições de Guerreiro Ramos na
história das ideias sociológicas brasileiras, no sentido de discutir a
pertinência de se considerar o autor baiano com “inspirações pós-
-coloniais”. Isso se fundamentou tanto em suas crítica (negativa) ao
eurocentrismo acadêmico, à mentalidade colonial e à dependência
intelectual, quanto em sua proposição (positiva) de uma abordagem
epistemológica e metodológica que lidou de maneira criativa com
o desafio da apropriação de conceitos, teorias, métodos e técni-
cas desenvolvidas em outros contextos pela sociologia brasileira.
Segundo, explorando os predicados epistemológicos de uma dessas
agendas, que corresponde à proposta de releitura da teoria socio-
lógica brasileira à luz dos tensionamentos provocados pelo pensa-
mento pós-colonial na teoria social contemporânea em escala global.

Esse exercício foi elaborado a partir da análise do potencial


heurístico da redução sociológica, concebida como método críti-
co-assimilativo de repertórios teórico-metodológicos estrangeiros,
cuja relevância pode apontar para uma via de mão dupla na rela-
ção entre sociologia brasileira e crítica pós-colonial: um olhar des-
centrado sobre nossa tradição sociológica, mas que também pode
implicar contribuições dessa tradição para o futuro das epistemo-
logias pós-coloniais.

Reler a sociologia brasileira implica revisitar diversas tradi-


ções – algumas consolidadas, outras veladas – e lançar olhares reno-
vados sobre elas. Contudo, conforme sugerimos neste capítulo, não
se trata apenas de operar um reencaixe de autores(as) do passado
em dinâmicas epistemológicas contemporâneas, próprio de uma
postura presentista; tampouco de atribuir a eles(as) preocupações
que não eram suas, o que se caracterizaria como uma abordagem
anacrônica. Ainda que Guerreiro Ramos mencione em seus traba-
lhos intelectuais como Frantz Fanon, Cheik Anta Diop, Aimé Césaire,
Abdoulaye Ly, dentre outros, não nos caberia situá-lo como autor
afiliado a certo movimento pós-colonial, especialmente porque ele

SUMÁRIO 219
operacionaliza categorias que são objetos de crítica desse movi-
mento77. Todavia, isso não nos impede de conjecturá-lo enquanto
um autor com inspirações pós-coloniais e, mais que isso, como um
teórico genuinamente anticolonial e anti-eurocentrista que, cada vez
mais, constitui referência obrigatória para debates contemporâneos
e que pode contribuir para o incremento das epistemologias pós-co-
loniais em nível global.

Nossa proposta neste capítulo foi apresentar uma releitura


possível e mais arqueológica de Guerreiro Ramos, sugerindo que
seus aportes devem ser pensados não só como objeto de estudo
da história intelectual e das ideias no Brasil, mas como fonte de ins-
piração teórica e metodológica para os desafios contemporâneos.
Defendemos que sua proposta de “redução” deve ser tida como con-
tribuição fundamental da teoria sociológica brasileira para as episte-
mologias pós-coloniais. Guerreiro Ramos, como um teórico rigoroso
e polêmico, demarcou os temas cruciais da sociologia de seu tempo,
propôs um método de investigação inovador para examinar socie-
dades periféricas (que ele taxava de “semicoloniais”) e ofereceu uma
crítica contundente às formas de dominação, servidão, imperialismo,
neocolonialismo e dependência. O fazer-sociológico, para Ramos,
não é mera especulação filosófica; é um trabalho de “mangas de
camisa”, uma práxis, já que tem lastro e impactos empíricos e práticos.

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77 Como “evolução social”, “história moderna”, “desenvolvimentismo”, “homem universal”, “natureza


humana”, “progresso”, termos de seu tempo e das circunstâncias presentes no debate intelectual e
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SUMÁRIO 224
9
Nikolas Pallisser Silva
Alan Caldas

A RECEPÇÃO
E A CRÍTICA DO CONCEITO
DE “SOBREVIVÊNCIAS
AFRICANAS” NO PENSAMENTO
DE GUERREIRO RAMOS
(1948–1955)
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.9
INTRODUÇÃO
Este ensaio tem dois objetivos: primeiro, apresentar o con-
texto e as notas fundamentais do conceito de “sobrevivência africana”,
elaborado por Melville Jean Herskovits; segundo, mostrar a recepção
do conceito feita por Alberto Guerreiro Ramos e, posteriormente, a
crítica que esse sociólogo fez dessa noção.

Para tanto, na primeira parte, iniciamos com uma breve


historicização e revisão bibliográfica do conceito de sobrevivências
africanas. Além de explorar o contexto de surgimento, analisamos as
relações estabelecidas pela rede de intelectuais que, direta ou indire-
tamente, o influenciaram ou foram por ele influenciados. Em seguida,
examinamos como Guerreiro Ramos, enquanto militante do Teatro
Experimental do Negro, entre 1948 e 1950, recepcionou o conceito
de sobrevivências. Por fim, trazemos a crítica que o autor começou a
desenvolver a partir de 1953 acerca dessa noção sociológica.

A categoria de sobrevivência (survival) têm sua origem no


pensamento evolucionista de E. B. Tylor e servia para pensar tra-
ços de um período histórico que continuavam presente em outro,
ainda que perdendo muito de sua funcionalidade. Já categoria de
“sobrevivências africanas”, elaborada por M. Herskovits, foi muito
usada nas ciências sociais para pensar as relações entre América e
África. Ela procura compreender quais culturas africanas sobrevivem
na América e de que forma essa sobrevivência acontece. No entanto,
como mostraremos mais adiante, ela termina por imobilizar e desis-
toricizar um conjunto de práticas tidas como de origem africana.

Deste modo, demonstramos como, em sua primeira ela-


boração, o conceito era permeado por certa deshistoricização das
práticas culturais de origem africana, isto é, não se problematizava
a trajetória anterior de formação das diversas práticas trazidas pelos
descendentes de africanos, nem seus sentidos e suas funções na

SUMÁRIO 226
configuração social presente do dito “Novo Mundo”. Em última análise,
as sobrevivências seriam restos imemoriais da África que não exercem
nenhum efeito no processo de aculturação e assimilação que supos-
tamente esses povos passavam nas diferentes sociedades nacionais.

Na recepção de Guerreiro Ramos, o conceito é usado para


problematizar a subjetividade negra, ressaltando suas tensões e
ambivalências, decorrentes da socialização em práticas culturais dis-
tintas, como criadoras de novos modos de vida que podem, inclusive,
revitalizar o cansaço resultante do desencantamento histórico do
Ocidente. Argumentamos que a crítica de Ramos tem duas dimen-
sões. A primeira é inverter o conceito de sobrevivências para pensar
práticas descontextualizadas vindas do Ocidente, em especial, o
culto à brancura ou o racismo. Essa prática, para ele, embora viva,
era arcaica e descontextualizada do mundo novo que surgia.

A segunda dimensão consiste em um abandono crítico do


conceito, que não será mais usado para pensar as conexões dos
povos de origem africana com a América, uma vez que ele descon-
textualiza práticas e identidades. Aqui, ele retoma a historicidade viva
dos movimentos de luta coloniais para afirmar que a agência negra
está sempre em movimento e não pode ser limitada pelas teorias
racistas das ciências sociais. Isso deu na medida em que ele adota
uma teoria inspirada nas lutas anticoloniais como paradigma para
pensar as relações entre África e América.

MELVILLE HERSKOVITS E O CONCEITO


DE “SOBREVIVÊNCIAS AFRICANAS”
Melville Jean Herskovits foi um importante antropólogo nor-
te-americano, nascido em 1885 em Bellefontaine, Ohio, filho de uma
família de imigrantes judeus. Herskovits bacharelou-se em Filosofia

SUMÁRIO 227
na Universidade de Chicago e, posteriormente, fez mestrado e dou-
torado em Antropologia na Universidade de Columbia, em Nova
York, sob a orientação do também antropólogo judeu Franz Boas.
Herskovits fez sua carreira como antropólogo na Northwestern
University, onde trabalhou de 1927 até sua morte, em 1963.

Herskovits ficou conhecido por suas pesquisas sobre organi-


zação familiar dos africanos e descendentes nas Américas, por estu-
dos de contato cultural e processos de aculturação78. Entre os locais
em que ele realizou pesquisa de campo estão o atual Suriname, antiga
Guiana Holandesa, entre 1928 e 1929; o Haiti em 1934; Trinidad e
Tobago em 1939, bem como o Brasil (especificamente, a Bahia), entre
1941 e 1942, e a África Ocidental com passagens em 1931, 1953 e 1962.

Segundo Mintz (1964), após a abolição formal do tráfico de


pessoas africanas por meio do oceano atlântico, as questões envol-
vendo esses povos são vistas como “resolvidas”, mesmo que elas não
estivessem. Forma-se, no seio do pensamento sociológico estadu-
nidense um mito de que o povo negro vivendo no chamado “Novo
Mundo” não possuía um passado anterior ao processo de escraviza-
ção. O autor leva em consideração três intelectuais que foram precur-
sores no estudo da escravização de pessoas africanas: José Antonio
Saco, historiador cubano que publicou Historia de la Esclavitud, em
1879; o sociólogo estadunidense W. E. B. Du Bois, que publicou
sua tese de doutorado em Harvard, intitulada The Suppression of
the African Slave Trade to the United Stades of America, em 1894;
e, o oficial britânico Sir Harry H. Johnston, autor de The Negro in
the New World de 1910, que influenciou significativamente a política
colonial britânica.

78 O conceito de aculturação é bastante problemático, para compreender seus limites teóricos e po-
líticos, pois, em geral, ele quase sempre supõe que a aculturação é a absorção dos mais variados
grupos étnicos dentro da cultura ocidental. Para compreender essa crítica que Ramos faz a esse
conceito, cf. (CALDAS; PALLISSER SILVA, 2024).

SUMÁRIO 228
Todavia, somente a publicação de Herskovits The Myth of the
Negro Past, de 1941, reelabora a importância da presença dos des-
cendentes de africanos no “Novo Mundo”, tornando-se questão cen-
tral o lugar destes povos e abrindo uma nova agenda de pesquisa79.
Esse livro é paradigmático em relação a seus antecessores, pois ele
combate, com estudos comparativos sistemáticos, a ideia de que o
povo negro não teria passado, tratando da questão das origens do
negro escravizado, buscando situar as culturas de onde vem. W.E.B.
Du Bois (1942, p. 115), em resenha desse livro, afirmou que: “O The
Myth of the Negro Past do Dr. Herskovits está marcando época no
sentido de que ninguém daqui em diante, escrevendo sobre as reali-
zações culturais do negro americano, pode-se dar ao luxo de ignorar
seu conteúdo e conclusões”.

Particularmente sobre o trabalho de Du Bois, Mintz comenta


que toda a raiva do sociólogo americano será vista somente em tra-
balhos posteriores. A tese em questão trata-se de uma retrospectiva
fria e "correta", com a preocupação centrada nos Estados Unidos
enquanto os demais países do chamado Novo Mundo eram pouco
debatidos. Todavia, a relação entre W. E. B. Du Bois e Herskovits
parece ter sido mais complexa do que nos apresenta Mintz (1964).
Du Bois era um grande amigo de Frantz Boas, ao ponto de, em 1906,
o sociólogo afro-americano convidá-lo para proferir uma palestra na
Universidade de Atlanta, em que lecionava. Boas orientou Herskovits
em sua tese de doutorado na Universidade de Columbia, intitulada
The Cattle Complex in East Africa (1926); o trabalho, trata-se de "um
estudo bibliográfico sobre áreas culturais e a importância do gado na
região Leste da África" (YELINGTON, 2016, p. 346). Entre as fontes
utilizadas para construção da tese, Herskovits valeu-se da biblioteca

79 É valido mencionar que o referido trabalho de Herskovits, The Myth of the Negro Past, foi produzido
em cerca de um ano, com o apoio se sua esposa Frances S. Herskovits, por encomenda de Gunnar
Myrdal. Myrdal havia sido contratado por Frederick P. Keppel, presidente da Carnegie Corporation,
para coordenar um estudo sobre o negro estadunidense, por sua vez, o economista sueco contra-
tou trinta e um pesquisadores para escrever memorandos sobre o assunto, que resultaram no livro
An American Dilemma, de 1944 (YELVINGTON, 2007).

SUMÁRIO 229
pessoal de Du Bois. Posteriormente, quando Du Bois foi para Chicago,
Herskovits o convidou para participar do Clube dos Professores da
Northwestern. Tal gesto tratava-se de um "ato de muita coragem,
pois convidar um negro para o clube de uma universidade não era
comum naquela época", além disto, "o próprio Herskovits era ape-
nas o segundo judeu do corpo docente da Northwestern e também
sofria discriminação" (YELINGTON, 2016, p. 350). Contudo, ainda
que Herskovits tenha "herdado" de Franz Boas a relação com Du
Bois e à tenha mantido, em seu esforço por demarcar o campo de
estudos sobre o negro nas Américas, o antropólogo se engajou de
forma secreta em uma campanha para minar o projeto de Du Bois de
uma "Enciclopédia do Negro"80. Ao ser consultado pelas instituições
de financiamento as quais Du Bois solicitava recursos, o antropólogo
judeu não o recomendava, alegando dúvidas sobre a cientificidade
da pesquisa a ser realizada, "ainda que Du Bois fosse um grande
pesquisador, receava que o projeto se tornasse obra de propaganda"
(YELINGTON, 2016, p. 350).

Retornando ao ponto central de nosso trabalho, é valido des-


tacar que a preocupação de Herskovits era com a sobrevivência de
africanismos no comportamento cultural de negros no novo mundo.
Segundo o autor, era possível, com base no conhecimento daquela
época (década de 1940), fazer um gráfico indicando até que ponto
os descendentes de africanos detiveram tais africanismos em seu
comportamento (MINTZ, 1964). Arthur Ramos e outros pesquisa-
dores — como Jean Prince-Mars, Fernando Ortiz e Gonzalo Aguirre
Beltrán — serão responsáveis pela mudança de rumo nas pesquisas
de Herskovits, antes preocupado com a assimilação de afro-america-
nos nos Estados Unidos e, posteriormente, centrado em documentar
as sobrevivências africanas no Novo Mundo (YELVINGTON, 2007).

80 Du Bois sonhava com "a edição de um compêndio do conhecimento "científico" sobre a história,
culturas e instituições sociais de pessoas de ascendência africana, isto é, daqueles que foram
construídos como negros no Velho e no Novo Mundo" (SILVÉRIO; SANTOS; COSTA, 2020, p. 340).

SUMÁRIO 230
Tal perspectiva teórico-metodológica será muito influente no
Brasil pela presença do próprio autor em diversas atividades no país,
sobretudo na Bahia, não só realizando pesquisa, mas também como
palestrante. Além disso, também será influente pela proximidade que
Herskovits construiu com Arthur Ramos. Tal influência também se
fará presente nos rumos do Projeto UNESCO no Brasil, dos anos
1950, bem como em outras declarações públicas da agência interna-
cional (MAIO, 1997; YELVINGTON, 2007).

No entanto, tão significativo quanto delinear o escopo de influ-


ência de Herskovits no Brasil é termos em mente que a metáfora das
“sobrevivências” levanta a questão de para onde olhar e de que modo.
De acordo com Matory (2020), o conceito de sobrevivências foi estabe-
lecido originalmente pelo antropólogo evolucionista E. B. Tylor, no início
do século XX. Para Tylor, as sobrevivências dizem respeito a resquícios
culturais dos estágios primários da evolução humana, ou seja, a res-
tos culturais que forneciam evidências de que as sociedades haviam
atravessado determinado fase antes de atingir o estágio de desenvolvi-
mento atual. O conceito permaneceu em Herskovits da mesma maneira
que estava em Tylor, ou seja, como um descritor de práticas africanas
antigas presentes nas populações negras do Novo Mundo.

Herskovits supõem a existência de “atemporais práticas afri-


canas que remanescem — em qualquer população negra do Novo
Mundo — após a aculturação na cultura euro-americana dominante”
(MATORY, 2020, p. 974). Acerca das práticas culturais que "sobram"
na vida cotidiana das pessoas descendentes de seres humanos
escravizadas no novo mundo, é válido observarmos as palavras do
autor. Vejamos dois casos. No primeiro deles Herskovits está deba-
tendo sobre como a liberdade das pessoas escravizadas era relativa,
podendo se reunir para fazer suas danças e contar suas histórias,
mas não podendo se organizar de uma forma política. Ocorre que
essas práticas, aparentemente inofensivas (cantar, dançar, contar
histórias) aos olhos dos senhores, era uma forma de organização
política e, Herskovits visualiza que elas persistem no novo mundo:

SUMÁRIO 231
A calma com que as histórias são contadas, mais o seu
apelo aos brancos como histórias para crianças, tornaram
a retenção deste elemento da cultura africana tão omni-
presente como é no Novo Mundo. Os tipos de dança e
canto africanos eram permitidos quando não interfe-
riam no trabalho ou eram apresentados em feriados [...].
(HERSKOVITS, 1941, p. 138, grifo nosso)81.

Na passagem a seguir, o autor está discutindo sobre o desa-


parecimento de um estilo de arte africana, a escultura em madeira.
Herskovits então pondera que o seu desaparecimento ocorre por
uma questão econômica, isto é, em razão da distinção entre a esté-
tica europeia e a africana, não se construiu um mercado em torno
das esculturas. Além disso, o autor pondera também que, como a
pessoa escravizada era comprada para o trabalho braçal, não lhe
era facultado tempo para dedicar-se a essa questão. Porém, a
'sobrevivência' desse tipo de arte no Brasil lhe chama a atenção.
Vejamos o segundo exemplo:
Por que um estilo especial de escultura africana teria
sobrevivido em uma parte do Novo Mundo, e somente
lá, não sabemos, mas as circunstâncias especiais sob
as quais a escultura iorubana sobreviveu no Brasil, caso
estas fossem descobertas, esclarecerão por que sobre-
vivências semelhantes não são encontradas em outros
lugares (HERSKOVITS, 1941, p. 138-139)82.

Nessa perspectiva, a África aparece como um objeto imu-


tável, transcendente à história, que se incorpora inconscientemente
nos afro-americanos e nas afro-americanas. Porém, essas lógicas

81 Tradução livre de: "The quiet with which tales are told, plus their appeal to the whites as stories
for children, made the retention of this element of African culture as ubiquitous as it is in the New
World. African types of dancing and singing were allowed when they did not interfere with work or
were performed on holidays".
82 Tradução livre de: "Why one special style of African carving should have survived in one part of
the New World, and there alone, we do not know, but the special circumstances under which
Yoruban carving survived in Brazil, should these ever be discovered, will throw light on why similar
survivals are not found elsewhere".

SUMÁRIO 232
inscritas no corpo e na mente, herdadas de um passado africano,
raramente exercem mudança estruturais nas pessoas que as pos-
suem, na medida em que estas continuam vivendo como pessoas que
assimilaram a cultura dominante euro-americana (MATORY, 2020).

A RECEPÇÃO DO CONCEITO
DE “SOBREVIVÊNCIA AFRICANA”
POR GUERREIRO RAMOS
Aproximadamente entre 1943 e 1953, no começo de sua car-
reira como sociólogo, Alberto Guerreiro Ramos esteve muito próximo
da sociologia estadunidense, em especial, da sociologia da Escola de
Chicago, em virtude da importância de Donald Pierson, discípulo de
Robert Park, para o debate sobre relações raciais no país (CALDAS;
PALLISSER SILVA, 2024). Em 1946, em uma entrevista concedida
a Abdias Nascimento acerca da questão racial no Brasil, Guerreiro
Ramos (1946) cita, entre outros autores, Herskovits como um daque-
les que contribuíram para desacreditar o racismo científico.

O problema da relação do povo negro, de um lado, com a


história europeia e, de outro, com a história africana começa a surgir
no final da década de 1940, quando Ramos se aproxima do Teatro
Experimental do Negro, liderado por Abdias Nascimento. É nesse
momento, no qual Ramos produz enunciações acerca das relações
raciais, muito embebido pela sociologia da Escola de Chicago, que
o conceito de sobrevivência surge pela primeira vez. O que é bas-
tante singular no manejo que Guerreiro Ramos faz desse conceito
é direcioná-lo para a dimensão subjetiva, pensando a mencionada
dupla historicidade como um problema de ambiguidade psicológica,
guardando certa semelhança com o conceito de “dupla consciência”
de Du Bois. Guerreiro Ramos afirma o seguinte:

SUMÁRIO 233
O homem de côr viveu sempre tutelado no Ocidente.
Introduziram-lhe ai e lhe deram alguns papéis para repre-
sentar e até recentemente em tôda parte do Ocidente,
êle permaneceu segregado em grandes aglomerados,
imerso em sua mentalidade pré-lógica. Tendo êle pró-
prio assimilado os padrões culturais do homem branco
passou a ver-se a si mesmo inclusive e à sua herança
cultural através dos padrões culturais do homem branco.
Assim, o homem de côr, especialmente o pouco instru-
ído, é vítima de uma profunda ambivalência psicológica
que o faz hesitar entre as sobrevivências africanas e os
traços culturais representativos do Ocidente (RAMOS;
NASCIMENTO, 1950, p. 4).

Nessa utilização que Ramos faz do conceito há certos ten-


sionamentos dignos de nota. O primeiro deles é a tematização do
poder, já que essas duas historicidades (a dos povos africanos e a
dos povos europeus) se cruzam na subjetividade do afro-americano
e da afro-americana através do processo colonial. O segundo ten-
sionamento, que fica mais perceptível no fragmento abaixo, é pensar
os efeitos presentes dessa historicidade africana. Ou seja, enquanto
Herskovits pensava uma África fora da história e, portanto, incapaz
de influenciar os destinos futuros, Ramos vê nos africanismos possi-
bilidades de reinvenção do Ocidente:
[...] esta ambivalência, embora dolorosa, é a matéria-prima
da subjetividade negra. Ela tem sido para o homem de
côr o aguilhão que o mantém vivo, esperto e criador. As
fôrças da alma negra longamente represadas constituem
atualmente a maior reserva de vitalidade de nossa civili-
zação. Quando tudo nesta civilização, quasi inteiramente
construída pelo esfôrço do branco, parece gasto, quando
o impulso anímico desta civilização parece totalmente
objetivado, quando tôda a cultura já se transformou em
civilização ou em burocracia, reponta uma esperança de
salvação, descobre-se neste mundo uma mina inusitada,
a alma negra, a subjetividade negra. Esta é a hora do
homem de côr (RAMOS; NASCIMENTO, 1950, p. 41).

SUMÁRIO 234
A ambivalência da subjetividade negra decorreria do fato de
ela ser obrigada a se expressar entre diversas culturas, a Ocidental
e as de origem africana. Esses múltiplos processos de socialização
resultariam numa subjetividade singular, capaz de compreender e
ir além dos limites do mundo moderno, uma subjetividade que, ao
mesmo tempo, é parte constituinte do mundo moderno e aponta
para fora dele. Desse modo, as “forças da alma negra” constituem
uma contranarrativa da modernidade, um repositório de práticas,
afetos, sentimentos e linguagens com uma força primordial para a
reconstrução do mundo humano. Nesse momento, início de 1950,
mais do que os movimentos de descolonização que varreram o
mundo nos anos posteriores, Guerreiro Ramos tinha como para-
digma desse processo o Movimento de Negritude francófano, que
usou a literatura para expressar essas “forças da alma negra”. Este
tema da ambivalência psicológica da pessoa negra não aparecerá
mais da mesma forma nos trabalhos posteriores de Ramos. Mais
abaixo mostraremos como ele se modificará para pensar o racismo
numa sociedade colonizada por pessoas brancas.

CRÍTICA E SUPERAÇÃO DO PARADIGMA


Até o I Congresso do Negro, realizado em 1950, a intelligentsia
do TEN procurou manter alianças com a intelectualidade acadêmica
que estudava o então chamado “problema do negro”. Porém, uma
série de acontecimentos, entre eles a recepção das teorias da negri-
tude por parte de militantes do TEN, desencadeou a ruptura entre os
dois grupos. Nesse Congresso, o militante Ironides Rodrigues pro-
pôs para discussão uma tese intitulada 'Uma estética da negritude'.
Os cientistas sociais presentes no evento, Edson Carneiro e Costa
Pinto, sobretudo, interpretaram que tal tese defendia uma tendên-
cia inata do negro para a sensibilidade e para as artes. Por outro
lado, os militantes a interpretaram como uma forma de valorizar a

SUMÁRIO 235
estética e a subjetividade negra, bem como reeducar o branco para
esses elementos. No último dia, esses cientistas sociais produziram
um documento que sugeria um “racismo às avessas” por parte dos
militantes do TEN e fazia uma declaração de fé à distinção entre
natureza e cultura. Guerreiro Ramos tentou uma política conciliatória
assinando tanto a Declaração dos Cientistas quanto a Declaração
Final do Congresso feita pelos militantes. Mais tarde, de modo radi-
cal, ele tomará partido da posição dos militantes do TEN (BARBOSA,
2004). Após esse período, o modo de teorização de Guerreiro Ramos
também mudará radicalmente, ele abandonará os pressupostos da
Escola de Chicago e sua teoria das relações raciais e irá assumir
para si o modo weberiano de teorizar sobre o conflito de racionali-
dades (CALDAS, 2021).

A partir de uma revisão crítica dos trabalhos sobre relações


raciais escritos no Brasil, ele demarcou uma vasta crítica aos fun-
damentos das teorias das relações raciais, sobretudo aquelas ins-
piradas pela Escola de Chicago e pelo culturalismo estadunidense
(CALDAS; PALLISSER SILVA, 2024). Ramos acusava essas teorias
sociais de terem abandonado a história em favor de uma perspectiva
estática das relações sociais, perspectiva esta que se torna cúmplice
do imperialismo, mumificando o passado, o presente e o futuro da
população negra, de modo a tornar esse povo mero tema acadêmico.
O elemento negro se torna “assunto”, tema de especia-
listas, cujos estudos pormenorizados promoveram, entre
nós, movimento de atenção de uma parcela de cidadãos
para os chamados afro-brasileiros. Interessava-lhes o
passado da gente de cor ou as sobrevivências daquele no
presente. Enquanto a primeira corrente [a progressista]
viu o elemento de cor preponderantemente em devenir,
em processo, a última inclinava-se a adotar ponto de
vista estático, acentuando minuciosamente o que na
gente de cor a particularizava em comparação com os
restantes contingentes étnicos da comunidade nacional
(RAMOS, 1995, p. 169).

SUMÁRIO 236
Adotando um paradigma historicista radical, Ramos dá uma
guinada no uso do conceito de sobrevivência. Embora ainda man-
tenha a ideia de que a sobrevivência é uma reminiscência de outra
totalidade histórica que não a presente, o autor sugere que o que
está fora de seu tempo não é a subjetividade negra, mas o racismo.
Afinal, o racismo seria fruto de um momento histórico em que o
branco imperava, algo que já não mais acontecia.
O ideal da brancura, tal como o ilustramos anteriormente,
nas condições atuais, é uma sobrevivência que emba-
raça o processo de maturidade psicológica do brasileiro,
e, além disso, contribui para enfraquecer a integração
social dos elementos constitutivos da sociedade nacional
(RAMOS, 1995, p. 231).

A partir da segunda metade dos anos 1950, Ramos não utiliza


mais o conceito de sobrevivência para pensar as relações raciais.
Porém, ele não deixa de pensar o problema do cruzamento da histo-
ricidade africana com a historicidade europeia. Para isso, ele voltará
para a história viva da África, para a história que se fazia no tempo
presente, mais designadamente, para a história das lutas antico-
loniais. De certo modo, ele acreditava que essas lutas mostrariam
como as historicidades seriam amarradas dali para frente. E essas
historicidades constituem algo que o conceito de sobrevivência,
com seus elementos transhistóricos, jamais daria conta de abarcar.
O autor aponta como os agentes desse processo de descoloniza-
ção, assim como ele fez com diversos conceitos como assimilação
e sobrevivência, aumentam a desconfiança com as categorias do
humanismo europeu e mostram como elas falsificam a história.
Nesse sentido, ele elogia a obra de um grande intelectual africano
por desvelar esse processo:
Numa delas, Nations nêgres et culture, Cheik Anta Diop
denuncia o que chama de “falsificação da história”, devida,
em grande parte, ao fato de que tem sido escrita do ponto
de vista europeu. Seu livro, tentativa de rever um aspecto
da história universal (as origens da civilização egípcia)

SUMÁRIO 237
à luz do ponto de vista da África Negra, se inscreve na
reação de autodefesa do “povo africano”, tendente a “eli-
minar o mal cotidiano que nos causam as terríveis armas
culturais a serviço do ocupante” (RAMOS, 1996, p. 49).

A sociologia crítica de Guerreiro Ramos foi aos poucos cons-


tatando que muitas das categorias da sociologia euro-norte-ameri-
cana retiravam a agência da pessoa negra. Todo seu trabalho foi no
sentido de mostrar que o destino do povo negro não pode ser enqua-
drado dentro de nenhuma teoria que imobilize a história, retendo as
relações de poder ao momento de hegemonia dos povos brancos.
Em sentido contrário, para ele a história deve guardar sempre algo
de um devir indeterminado, característica essencial de toda a luta:
O negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imo-
bilizar; é despistador, protéico, multiforme, do qual,
na verdade, não pode dar versão definitiva, pois é hoje
o que não era ontem e será amanha o que não é hoje.
Malformuladas as retratações verbais do negro no Brasil,
elas já estão caducas ou já se revelam falsas, porque o
negro-vida é como o rio de que fala Heráclito, em que não
se entra duas vezes. Eis por que toda atitude de formaliza-
ção diante do negro conduz a apreciações ilusórias, ina-
dequadas, enganosas. E é uma atitude de formalização
que está na raiz da quase totalidade dos estudos sobre o
negro no Brasil, (RAMOS, 1995, p. 215-216).

Desta perspectiva, enquanto sujeitos da luta anticolonial,


Ramos vê os povos negros sentando-se à mesa para repensar a
cultura universal, uma conversa onde não interessam as escalas de
pureza dos costumes, mas o diálogo e a hibridização de tradições. Isso
fica evidente na passagem abaixo, com a qual fechamos esta seção:
Nas sociedades coloniais apareceram hoje quadros
novos, empenhados num esforço de repensar a cultura
universal na perspectiva da auto-afirmação dos seus res-
pectivos povos. Não é um comportamento romântico que
levaria esses povos ao enclausuramento, a se apegarem
aos seus costumes sob a alegação realmente suicida, de

SUMÁRIO 238
preservá-los em sua pureza; é antes uma atitude que não
exclui o diálogo, pois contém a consciência de que, para
ser historicamente válida, a auto-afirmação dos povos
deve confluir para o estuário de todas as altas culturas da
humanidade (RAMOS, 1996, p. 49).

O conceito de “sobrevivência africana” é forjado por


Herskovits para pensar o passado dos povos negros como algo rico,
diverso, ainda presente na vida dos povos da diáspora. Os rumos
mudaram, contudo, a partir do encontro com Pierson e a possibili-
dade de cursar ciências sociais na ELSP. Dali em diante, Darcy foi
percorrendo uma trajetória que, intermediada por Baldus e Rondon,
o levou à prática de uma etnologia que, na dinâmica do seu pen-
samento, tornou-se sinônimo do que era – ou, ao menos, do que
deveria ser – a antropologia naquelas circunstâncias históricas.

O movimento seguinte no SPI permitiu-lhe sistematizar suas


pesquisas a partir da experiência de campo e da consolidação de
uma tradição de estudos na área do indigenismo. Caberia ressaltar,
ainda, que as pesquisas acerca das etnias indígenas mobilizaram
o pensamento darcyniano pelas décadas seguintes, em sua busca
pelas raízes da brasilidade. , essas sobrevivências não são produtoras
de futuro, de descolonização e de uma nova humanidade. Guerreiro
Ramos inicialmente mostra como a subjetividade negra pode ter
recursos para superar o processo de instrumentalização da vida
característico da história da civilização Ocidental. Posteriormente,
ele radicaliza essa perspectiva, mostrando como os povos negros
podem ajudar a ressignificar o que é ser humano. Para repensar esse
devir, muitas vezes é preciso olhar para elementos políticos e sociais,
e não para alguns poucos costumes de origem africana que são fos-
silizados pela análise das ciências sociais.

SUMÁRIO 239
CONCLUSÃO
Em trabalho anterior, mostramos em que medida noções
chaves da sociologia da Escola de Chicago, como, por exemplo,
assimilação e aculturação, tendiam a retirar a agência da população
negra, apontando o quanto faltava de cultura euro-norte-americana
para ela assimilar e se integrar com igualdade nas sociedades da
diáspora. Neste capítulo, concluímos que:
Enquanto a visão de Park e seus discípulos de que os
descendentes de africanos nada traziam de culturalmente
valioso, conduzia ao argumento de que esses povos deve-
riam assimilar a cultura de origem europeia para se civili-
zarem, intelectuais negros e negras da diáspora como W.
E. B. Du Bois, Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento
e muitos outros e outras, apostaram na capacidade dos
descendentes de africanos reinventarem suas vidas a
partir de sua herança cultural e, assim, darem grandes
contribuições para a humanidade. Desse modo, as cul-
turas negras não seriam dissolvidas na cultura europeia,
mas, como argumentou Guerreiro Ramos, revitalizariam
essa cultura com novos modos de ser e viver (CALDAS;
PALLISSER, 2024, p. 27).

Como o conceito de sobrevivências aponta para práticas cul-


turais de origem africana que estariam presentes no Novo Mundo,
supostamente, esse conceito permitiria reforçar a agência daquelas
pessoas envolvidas nessas práticas. No entanto, ao empreender
um olhar mumificado sobre tais práticas culturais, o conceito leva,
de fato, ao enclausuramento do negro a um passado idealizado,
servindo unicamente como um registro histórico da evolução da
humanidade e para a criação de peças de museus. Matory (2020,
p. 974) explica que
para Herskovits, o termo sobrevivência descrevia as anti-
gas e atemporais práticas africanas que remanescem –
em qualquer população negra do Novo Mundo – após a

SUMÁRIO 240
aculturação na cultura euro-americana dominante. Esta
metáfora implica (e as investigações de Herskovits pres-
supõem) que a África é o passado do presente americano.
O pressuposto é que a África é imutável e está [...] iso-
lada do resto do mundo.

Desse modo, ao transformar a África num transcendental


que é condição de possibilidade das práticas de origem africanas
na América, Herskovists produz um enclausuramento dessas prá-
ticas já que, como transcendentais, elas estão fora do tempo e do
espaço. A África se torna uma entidade mítica pensada fora dos
processos históricos.

A elaboração empreendida por Guerreiro Ramos do con-


ceito, antes de abandoná-lo, representou uma tentativa de pensar
a subjetividade negra em movimento e as tradições africanas como
um meio de criação de novos mundos. Porém, diante dos movimen-
tos de descolonização, Ramos viu a necessidade de abandonar esse
(e outros) conceitos. Nesse instante, o autor observou a necessidade
de reformular novos conceitos capazes de repensar a relação entre
os povos de origem europeia e os diversos outros povos antes colo-
nizados. Um dos conceitos centrais dessa nova fase é o de “redução
sociológica”, que constitui todo um instrumental que ele desenvolve
para explicar o processo de apropriação crítica, depurando os aspec-
tos etnocêntricos, das tecnologias e conceitos.

Foi essa redução sociológica que Ramos fez de conceitos


como o de aculturação, assimilação e sobrevivências africanas.
Nesses casos, o aspecto ideológico, etnocêntrico e racista estava na
essência lógica do próprio conceito. E por isso ele não viu outros
meios senão descartá-los.

SUMÁRIO 241
REFERÊNCIAS
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SUMÁRIO 242
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SUMÁRIO 243
10
Diogo Valença de Azevedo Costa

FLORESTAN FERNANDES
E O ESTILO LUMPEN
DE PENSAMENTO:
UMA SOCIOLOGIA MARGINAL
NA PERIFERIA DO CAPITALISMO83
83 Versão ampliada do texto apresentado na mesa-redonda (Re)leituras do Pensamento Social
Brasileiro, no dia 30 de agosto de 2022, durante o I Colóquio (Re)leituras desde o Pensamento
Social Brasileiro: um balanço crítico, transmitido on-line pelo Instituto Humanitas de Estudos
Integrados da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O presente trabalho foi
produzido no âmbito do projeto de pesquisa “O artesanato intelectual de Florestan Fernandes:
uma perspectiva latino-americana sobre o desenvolvimento”, financiado com recursos do Edital
Universal 2021 do CNPq (Processo 4200043/2021-7).

DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.10
INTRODUÇÃO
Propor uma (re)leitura do pensamento social brasileiro a partir
do estudo sociológico da obra de Florestan Fernandes, o que tentarei
fazer muito brevemente neste artigo, é uma das tarefas mais comple-
xas e desafiadoras. A fortuna crítica sobre o autor já se apresenta bas-
tante extensa, diversa e plural. Assim, minhas afirmações constituem
um diálogo com parte significativa dessas reflexões anteriores. Mas
deixarei implícitas as referências a elas, pois meu objetivo consiste
em afirmar novos caminhos possíveis de interpretação da trajetória
acadêmica e política de Florestan, bem como da importância de sua
obra sociológica para o debate teórico e o enfrentamento prático dos
dilemas contemporâneos das sociedades periféricas de capitalismo
dependente na América Latina e, especificamente, no Brasil.

O resgate da noção mannheimiana de estilo de pensamento,


tal como foi elaborada na sua tese sobre o conservadorismo alemão
do século XIX e nas suas considerações sobre as mentalidades utó-
picas em Ideologia e utopia (MANNHEIM, 1986), nos ajuda a combi-
nar interpretativamente a análise interna da obra e a explicação dos
determinantes sociológicos da produção cultural. Pouca ou quase
nenhuma atenção tem sido dada aqui, no Brasil, a essa potenciali-
dade metodológica da sociologia mannheimiana do conhecimento.
O pressuposto desse tipo de investigação é o de que as maneiras
específicas de amarração lógica das categorias de pensamento
revelam configurações ideológicas e políticas particulares. Já na pró-
pria leitura interna da obra é possível, por isso, se valer de critérios de
análise especificamente sociológicos, os quais deverão ser combina-
dos ao exame das mediações institucionais e culturais.

No caso de Florestan, muita tinta tem sido gasta para locali-


zar sua posição no campo acadêmico das ciências sociais brasilei-
ras, tecendo-se, com isso, ilações apressadas na caracterização de
seus horizontes teóricos, metodológicos, políticos e epistemológicos.

SUMÁRIO 245
Assim, por exemplo, ao opor-se ao estilo ensaísta, beletrista, bacha-
relesco, escolástico e “pré-científico”84, a sua sociologia passa a ser
vista como a encarnação de uma linguagem cientificista, positi-
vista, sociologista e presa à concepção da autonomia intelectual do
especialista - que agiria politicamente na sociedade, mas, situado
num patamar acima das perspectivas das diferentes classes, falaria
somente em nome de sua profissão. Florestan, como exemplo do
intelectual moderno bourdieusiano, seria o produto mais acabado
das missões estrangeiras que fundaram a Universidade de São Paulo
(USP) e suas inovações advêm apenas do aperfeiçoamento do padrão
de trabalho científico e acadêmico que foi para cá transplantado. O
sociólogo paulistano faria parte de um mito de origem da própria
USP e seu nome expressaria a continuidade, numa espécie de reflexo
invertido da realidade, do projeto científico e acadêmico original.

Essa leitura esquece as suas críticas precoces ao naturalismo


nas ciências sociais, sua incorporação atenta do pensamento de
Mannheim já a partir de 1942 e seu contato com a crítica ideológica
marxista, estruturante das posições teóricas elaboradas na sua intro-
dução de A crítica da economia política, de 1946, e na sua polêmica
com o sociólogo baiano radicado no Rio de Janeiro, Luiz Aguiar da
Costa Pinto, num seminal ensaio de 1947 intitulado O problema do
método na investigação sociológica85. Aliás, Florestan nunca conside-
rou que o intelectual pudesse estar acima das classes e, talvez, como
alguns críticos marxistas sugerem, nem o próprio Mannheim, para
quem a intelligentsia constituiria uma camada intersticial, “relativa-
mente livre e flutuante” (relativ freischwebende Intelligenz), situada
“entre as classes”, e não acima delas. No trabalho de aproveitamento
acadêmico para a disciplina de Emílio Willems, na Escola Livre de
Sociologia e Política, escrito em 1946, sobre a política como ciência

84 Utilizo o termo pré-científico porque Florestan o utiliza para caracterizar a produção sociológica
localizada em fins do século XIX até a década de 1930.
85 Todos esses trabalhos podem ser consultados em Fernandes (1974; 1976).

SUMÁRIO 246
em Karl Mannheim, as ideias de Florestan são muito diferentes do
reducionismo cientificista e positivista que encontramos em algumas
das interpretações de sua fase marcadamente acadêmica – estabe-
lecida, em geral, a partir de seu ingresso como estudante na USP, em
1941, até sua aposentadoria compulsória em decorrência da ditadura
civil-militar e do AI-5 em 1969 – nas ciências sociais.

Nos ensaios contidos em A sociologia numa era de revolução


social (FERNANDES, 1963), livro representativo de seu pensamento
durante início da década de 1960, também não encontramos a noção
ilusória de um intelectual situado acima dos conflitos de grupos, cate-
gorias sociais e classes. Muito pelo contrário, o sociólogo Florestan
estava diretamente imerso nesses conflitos, falando a partir da pers-
pectiva particular de sua especialidade acadêmica, mas, ao mesmo
tempo, assumindo uma posição política que julgava corresponder à
defesa democrática dos interesses da maioria do Povo. Embora não
vinculasse suas formulações sociológicas a nenhuma classe em par-
ticular, não entendia estar situado sobre os conflitos, mas em meio
aos tensionamentos sociais. Assim, julgando extrair das correlações
de forças políticas um equilíbrio provisório, instável, propunha solu-
ções reformistas como ponto de partida para mudanças futuras de
estrutura mais radicais na superação dos dilemas históricos, sociais
e culturais brasileiros. Enquanto as diferentes camadas sociais acei-
tassem as premissas do desenvolvimento social, embora cada uma
interpretasse e pretendesse aproveitar os benefícios desse desen-
volvimento de acordo com suas aspirações subjetivas e interesses
sempre limitados pelas possibilidades objetivas, a situação de equi-
líbrio instável, provisório e precário permitiria avanços democráticos
e de participação ampliada. Essa foi a situação das experiências
populistas da vida republicana brasileira, período no qual Florestan
trilhou maior parte da sua carreira de professor universitário.

O reformismo radical de Florestan será substituído por uma


perspectiva revolucionária na década de 1970, mas esse processo
não ocorreu de maneira abrupta, da noite para o dia. Porém, a ruptura

SUMÁRIO 247
entre um momento e outro se dá na continuidade de seu estilo
lumpen de pensamento. O que caracteriza o estilo social de pen-
samento seria, sobretudo, a representação do tempo histórico e as
formas particulares de combinação entre presente, passado e futuro.
O pensamento conservador se volta para o passado, percebendo o
presente e o futuro como uma reatualização desse passado histó-
rico e utópico; já o pensamento liberal se direciona para o eterno
presente, encarando o passado e o futuro como polos simétricos
que se anulam; por fim, o estilo socialista de pensamento percebe
o presente em suas potencialidades futuras e o passado como um
elemento fundamental para compreender o tempo histórico presente
como um campo de conflitos. Chamo atenção para o estilo lumpen
na reflexão sociológica de Florestan Fernandes, pois, dada sua ori-
gem social precária e plebeia, os elementos de tensionamento que
apontam para um futuro de transformações radicais, na perspec-
tiva socialista, não admitem conciliações. Essa perspectiva radical,
que não suporta a conciliação pelo alto, é um dos motivos do seu
entusiasmo pela leitura de Os condenados da terra, de Frantz Fanon
(1961), um elemento fundamental do processo de teorização política
de suas categorias histórico-estruturais de capitalismo dependente e
autocracia burguesa.

Esse conjunto de circunstâncias sintetiza-se numa pala-


vra recorrente nos escritos sociológicos de Florestan, que sempre
remete à saturação histórica dos seus conceitos e categorias de
análise. Ele não se interessava diretamente por se projetar como um
grande teórico no campo da sociologia sistemática ou formal, uma
das seis subdivisões da sociologia que propôs durante certo período.
Foi voltando-se para o cultivo das sociologias comparada, descritiva
e diferencial ou histórica (esta última com muito mais intensidade),
que iria reconstruir a formação social brasileira no plano de suas
especificidades histórico-concretas e particulares, mas, ao mesmo
tempo, propondo o seu modelo de capitalismo dependente como
um tipo extremo, noção sociológica que irá desenvolver a partir das

SUMÁRIO 248
sugestões metodológicas de Karl Marx, em Fundamentos empíricos
da explicação sociológica (FERNANDES, 1978). Não é certo que
Florestan tenha abandonado a ambição teórica de trazer grandes
contribuições para a sociologia sistemática, deixando esse campo de
trabalho livre para os colegas sociólogos das nações de capitalismo
central. A grande teoria, se lembrarmos o termo irônico cunhado por
Wright Mills para se referir à teorização parsoniana, não deveria ape-
nas ser produzida nos centros para ser aplicada nas periferias.

Na verdade, ele compreendeu que sua posição marginal –


no sentido social, graças à sua origem lumpen, e geopolítica, devido
à sua perspectiva de um sociólogo situado numa das periferias do
sistema capitalista mundial – seria relevante para formular críticas
às teorias gerais do desenvolvimento capitalista forjadas nos cen-
tros imperialistas a partir do caso concreto que se propôs a analisar
e, num movimento de retorno, quando se apropriou da “síntese de
múltiplas determinações”, avançar numa proposta teórica mais com-
preensiva, abarcadora e inclusiva de diferentes formações sociais.
Assim, sua noção de capitalismo dependente não diz respeito apenas
ao Brasil e à América Latina, mas apanha, também, os dinamismos
mais globais do capitalismo em escala mundial. Há uma dialética
entre o universal e o particular na interpretação de Florestan sobre
o capitalismo dependente que precisa ser enfatizada. Com isso,
quero dizer que não podemos compreender o capitalismo contem-
porâneo sem passar pela leitura atenta de sua obra sociológica e de
outras vertentes, como a chamada teoria marxista da dependência
na América Latina. Sem dúvida, serão necessários novos esforços
de mediação histórica e reatualizações de seu pensamento, pois há
processos que o sociólogo brasileiro não poderia jamais ter imagi-
nado, e seus trabalhos estão vinculados às circunstâncias históricas
de sua época. Porém, devemos ficar atentos às breves sugestões de
seus últimos escritos sobre as possibilidades de regressão neocolo-
nial, as constituições de periferias internas nos centros imperialistas
e, portanto, a exacerbação e a generalização de características do
capitalismo dependente.

SUMÁRIO 249
A maioria dos trabalhos sobre o autor vincula sua produção
sociológica à história das ciências sociais brasileiras, e pouco falam
de sua inserção latino-americana. Acredito que isso acarreta certo
viés na compreensão exata do significado e da importância de sua
obra. É desconhecida, por exemplo, sua troca de correspondência
com Sergio Bagú, intelectual argentino radicado no México que ele
considerou ser um pioneiro, ao lado de José Carlos Mariátegui e
Caio Prado Jr., na compreensão das especificidades das formações
coloniais latino-americanas e da transição para o capitalismo depen-
dente. Ao mesmo tempo, nosso autor foi considerado por Aldo Solari
(sociólogo uruguaio que projetou um estudo sociológico comparado
das universidades na América Latina, buscando a colaboração de
seu colega brasileiro, Florestan) e dois de seus colaboradores, no
livro Teoría, acción social y desarrollo en América Latina (SOLARI et
al., 1976), um dos representantes da sociologia científica na América
Latina, ao lado de José Medina Echavarría e Gino Germani. Nesse
sentido, uma (re)leitura atual da obra de Florestan e de sua inser-
ção no pensamento social brasileiro deve questionar o seu lugar na
América Latina. Nas páginas a seguir, abordarei, em linhas gerais,
seu estilo lumpen de pensamento e sua inserção latino-americana,
como uma forma de (re)pensar suas contribuições ao pensa-
mento social brasileiro.

O ESTILO LUMPEN DE PENSAMENTO


Nascido em 22 de julho de 1920, filho de Dona Maria
Fernandes, uma imigrante portuguesa, lavadeira e empregada
doméstica analfabeta, Florestan viveu os anos iniciais de sua infân-
cia na casa da família Bresser de Lima, onde sua mãe trabalhava.
A escolha de seu nome se deve a uma homenagem ao motorista
dos Bresser, um alemão chamado Florestan, que ajudara Dona Maria
a enfrentar algumas dificuldades durante a gestação, em especial

SUMÁRIO 250
cedendo seu café da manhã para que a colega grávida pudesse se
alimentar em condições melhores. O choffeur, então, procurava tomar
sua primeira refeição do dia numa padaria próxima ao emprego.

O elemento biográfico que mais nos interessa quanto à esco-


lha do nome Florestan, no singelo reconhecimento de sua mãe a
seu colega de trabalho pela ajuda solidária, diz respeito a uma situ-
ação existencial compartilhada pelas camadas populares brasileiras.
Quase quatrocentos anos de violência colonial e neocolonial direta,
depois mais de um século de vida republicana sem a universalização
de direitos sociais e de cidadania, reforçaram uma objetificação e
despersonalização das pessoas que representam o povo brasileiro, o
negro, o indígena, a mulher, o trabalhador do campo e da cidade, os
despossuídos e condenados do Terceiro Mundo. Antes de se afirma-
rem politicamente, “os de baixo”, como costumava falar nosso autor,
precisavam lutar pelo direito a serem identificados pelo próprio nome.
Nas lutas antirracistas, os militantes dos movimentos negros brasi-
leiros se recusam a serem chamados de “este negro” ou “este preto”
e afirmam possuir nome e sobrenome. Numa postura mais radical de
reapropriação de sua herança cultural, assumem nomes africanos.

A madrinha do menino, Dona Hermínia Bresser de Lima,


considerava que seu nome não seria adequado para alguém com
suas origens sociais e o chamava de Vicente. Florestan-Vicente
vivencia sua primeira infância no confronto entre dois mundos: de
um lado, o da opulência, no qual conhece a cultura ilustrada e de imi-
tação dos padrões europeus, típica das elites econômicas brasileiras
representadas pela família de sua madrinha; de outro, o da pobreza,
proveniente de uma história de deslocamento, desenraizamento e
desagregação familiar, característica das condições de mobilidade
espacial, itinerância e migração das camadas populares. Serão as
confrontações entre esses dois mundos, complementares, mas, ao
mesmo tempo, antagônicos, os elementos constituintes das expe-
riências pré-teóricas do sociólogo paulistano. As marcas profundas
que lhe foram aí impressas irão estar presentes no seu modo poste-
rior de praticar e pensar as ciências sociais.

SUMÁRIO 251
Os choques entre as realidades da mãe e da madrinha tal-
vez tenham alcançado o ponto máximo quando Hermínia propôs
a Dona Maria que ela lhe desse seu filho. É possível que os con-
flitos cotidianos entre o universo camponês, popular, comunitário
e de trabalhadora doméstica, de sua mãe, e o aristocrático, elitista,
individualista de uma das famílias quatrocentonas de ex-senhores
de escravos, em São Paulo, explique o afastamento do afilhado da
casa de seus padrinhos. O menino Florestan continuará a manter
contato com os Bresser de Lima, mas a firmeza e dignidade de Dona
Maria, bem como sua ética e visão de mundo tão particular, de raiz
popular, alimentavam como valor um apego aos laços de sangue e
ao compartilhar da convivência humana. Estava inteiramente fora
de cogitação que seu filho fosse criado por outra família. O menino
Florestan-Vicente, vivendo com sua mãe nos cortiços de São Paulo,
passa a trabalhar aos seis anos de idade, ganhando a vida em servi-
ços típicos das camadas subalternas.

O contraste entre os dois mundos, os da riqueza e da pobreza,


pululava na sua imaginação. De um lado, as agruras, durezas e decep-
ções de uma criança ingressa precocemente no mundo adulto do
trabalho e, de outro, a solidariedade de diferentes pessoas dos dois
mundos que conhecera durante sua infância, adolescência e juven-
tude. Essas pessoas iriam lhe ajudar a superar a condição subalterna,
lumpen, e conquistar a situação de classe média. O dilema político e
existencial de Florestan será, contudo, o de sempre se manter fiel ao
seu grupo social de origem. Mesmo o socialismo marxista, que depois
irá incorporar, não deixará de lado essa marca lumpen, pois não procu-
rava imitar e copiar o padrão da análise de classes sociais tipicamente
europeu. Ele pensou as possibilidades de uma transformação socia-
lista no Brasil sempre incluindo as grandes massas, o povo negro, o
indígena, e não apenas as classes trabalhadoras no sentido clássico.

Os percalços cotidianos de uma criança precocemente


jogada no mundo laboral dos adultos e as redes de relações cons-
truídas nos vários empregos pelos quais passou, a partir das quais

SUMÁRIO 252
se começou a estruturar sua consciência social lumpen proletária,
representam a sua primeira grande fonte de aprendizagem socioló-
gica. Essa sociologia recebida das duras lições da vida iria manter
vivo, dentro de si, o menino Vicente, um alter ego que simbolizava sua
origem social. Não há dúvidas de que o próprio Florestan assumiu o
seu lado Vicente como parte de seus horizontes éticos. Assim, numa
entrevista, em 1984, ao programa televisivo Vox Populi, irá responder
à pergunta do seu filho, o jornalista Florestan Fernandes Jr.:
[...] Vicente era meu nome quando criança. Meu nome
de batismo é Florestan. Então existia uma dualidade de
nomes e Vicente é uma figura que me acompanha até um
certo momento da minha vida, porque, para os familiares
e para conhecidos, eu não era Florestan. E passei a ser
conhecido como Florestan depois que, na carreira intelec-
tual, o nome pegou e ninguém me chamava de Vicente,
porque, naturalmente, ninguém conhecia esse apelido. É
claro que, como Vicente, eu tive uma vida sofrida, vida
de criança de origem muito pobre, praticamente lumpen,
que começa a trabalhar com seis anos, que conhece
junto com sua mãe as piores privações, que sofria frustra-
ções e ansiedades típicas das crianças pobres. Portanto,
o Vicente sofreu muito e teve de abrir o seu caminho
com muita dificuldade. Entretanto, o Florestan também
encontrou um caminho difícil. Eu não saberia dizer qual
das figuras foi mais difícil para mim ao longo da vida. É
claro que às vezes as privações são terríveis de enfren-
tar. Não é agradável ser uma criança de seis anos e estar
ansiosa esperando, quem sabe, se a madrinha me traz
um presente no fim do ano. De outro lado, era desagra-
dável vestir um paletó velho, de adulto, e andar com ele
da Rua Major Diogo até a Rua José Bonifácio, esquina
com a Quintino Bocaiúva. Era realmente ridículo, trágico...
[Pergunta do apresentador do programa Vox Populi:
“E qual foi exatamente a influência do Vicente nas ideias
socialistas de Florestan?]. O Vicente não teve influência
no plano das ideias, teve influência no plano do caráter.
Eu nunca deixei de ser Vicente nesse plano. Quer dizer,
o que há de bom em mim é o Vicente que não morreu.

SUMÁRIO 253
Embora eu não tenha um duplo, eu não tenha um
desdobramento de personalidade, eu não tenha o pro-
blema que muitos apresentam de uma dupla personali-
dade. Mas, na medida em que eu sou uma pessoa que
foi apresentada aqui como um rebelde [no começo do
programa, o apresentador caracteriza o entrevistado como
um intelectual rebelde], esse rebelde nasce do passado
que eu enfrentei. E eu sou leal a ele quando me identi-
fico com o socialismo revolucionário e com o marxismo.
De modo que, para resumir, eu diria que o Florestan
sofreu decepções mais graves e profundas, que não
vinham dele, vinham das impossibilidades da sociedade
brasileira e que não afetam propriamente a mim, porque
depois eu me tornei um professor, uma pessoa de classe
média que tem muito mais do que deveria ter. É vergo-
nhoso que alguém tenha coisas demais. Então, realmente
me pesa o fato de que acabei adquirindo uma posição
diversa. Mas o que pesa, o que é difícil para mim, é a situ-
ação média: o fato de haver tanta miséria no Brasil e de
não termos saída, de não conseguirmos criar uma situa-
ção na qual os que são privados de meios de sobrevivên-
cia, de subsistência, de educação, logrem transformar a
sociedade e criar para si próprio condições de felicidade
humana (FERNANDES, 1984)86.

Os tensionamentos conceituais internos de sua obra socioló-


gica refletem aspirações profundas de transformações coletivas das
pessoas de origem popular. Essas tensões construtivas passam a se
traduzir numa autoexigência intensiva, no plano ético da formação da
personalidade, constitutivas das análises sociológicas de Florestan.
Suas categorias de pensamento não só estavam eivadas do ponto de
vista dos grupos colonizados, subalternizados e despossuídos, mas
profundamente imbuídas de um sentido histórico voltado ao futuro.
Assim, ao examinar os conflitos das forças sociais do tempo pre-
sente, a partir da análise dos impasses das lutas políticas passadas

86 A entrevista se encontra disponível no youtube. A parte transcrita se inicia aos seis minutos e oito
segundos (6:08) e termina aos dez minutos e dezoito segundos (10:18). Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=0u_x-6m_mQI. Acesso em: 21 de julho de 2022.

SUMÁRIO 254
e das possibilidades atuais de transformação, Florestan enxerga os
dilemas das nossas sociedades como caminhos alternativos, poten-
cialmente realizáveis no futuro, mas nunca determinações impassi-
velmente fatalistas ou inexoráveis.

Quem almeja incansavelmente por mudanças sociais pro-


fundas, radicais e estruturais, em sua própria sociedade, compreen-
dida em termos de incorporação dos mais pobres e construção de
horizontes mais justos e igualitários para as classes trabalhadoras,
não se contenta com soluções paliativas e provisórias, mas enxerga o
futuro como possibilidades em transformação. A institucionalização
do ensino e da pesquisa das ciências sociais em São Paulo, fruto
das missões estrangeiras, em particular francesa, que fundaram a
USP, não encontrarão, por isso, em Florestan, apenas o seu produto
mais acabado. A ciência que irá praticar não será simplesmente uma
reprodução ou cópia, como mera aplicação da linguagem e dos cri-
térios acadêmicos, transplantados para o Brasil.

A linguagem científica – que tanto diferencia nosso autor dos


estilos beletristas, bacharelescos e ensaístas da tradicional cultura
colonizada das elites brasileiras – também supera seus horizontes
culturais originários, pois irá realizar sínteses próprias das tradições
clássicas e modernas das ciências sociais europeias e norte-ameri-
canas, em face das tentativas precedentes (mais ou menos situadas
entre fins do século XIX e os anos 1930) de elaborar novas inter-
pretações da realidade brasileira. No seu processo de construção
intelectual autônoma, em que passa a ressignificar as matrizes de
pensamento ocidental num contexto ideológico bastante diverso, a
perspectiva lumpen de futuro irá orientar, em primeiro lugar, sua auto-
exigência sociológica de uma interpretação fundamentada empírica
e teoricamente. Em segundo, sua reaproximação com o estilo ensa-
ísta, numa reconstrução histórica de larga duração, mas que não o
vincula de maneira provinciana à sua sociedade nacional, indo além,
numa tentativa de abarcar as formações sociais latino-americanas.

SUMÁRIO 255
O livro A revolução burguesa no Brasil (1975), não por acaso visto pelo
autor como um ensaio de interpretação sociológica, representa uma
reapropriação política original do velho ensaísmo histórico brasileiro,
mas, agora, sob a ótica do lumpen como camada social potencial-
mente produtora de conhecimentos.

Abordarei a visão conjunta de Brasil e América Latina de


Florestan como uma tentativa de sinalizar para novos rumos de
interpretação de sua obra sociológica, para além das nossas fron-
teiras nacionais e mais atentos ao contexto latino-americano de sua
produção intelectual. Por fim, procuro vincular a síntese teórica do
autor sobre Brasil e América Latina a seu estilo de pensamento lum-
pen, radical-popular e socialista.

O BRASIL EM PERSPECTIVA
LATINO-AMERICANA
Três livros sintetizam a visão teórica de Florestan sobre Brasil
e a América Latina: A integração do negro na sociedade de clas-
ses (1964), A revolução burguesa no Brasil (1975) e Da guerrilha ao
socialismo: a revolução cubana (1979)87. Esses trabalhos revelam um
esforço de compreensão conjunta, desvelando as raízes do passado
que atuam no presente em ebulição e sinalizam alternativas futuras.

Não seria possível abordar todo o conteúdo de cada um dos


livros, por isso me dedicarei a apresentar os elementos essenciais
que os tornam trabalhos entre si solidários na construção de uma
imagem do Brasil e da América Latina.

87 Os anos correspondem às datas originais de publicação das obras. As referências efetivamente


consultadas no presente trabalho, exceto a última, não coincidem com as respectivas primeiras
edições. De agora em diante, os títulos serão referidos, simplificadamente, como A integração do
negro, A revolução burguesa e Da guerrilha ao socialismo.

SUMÁRIO 256
A categoria dilema racial, que emerge em A integração do
negro, assume um sentido latino-americano compreensivo. Não ape-
nas o Brasil, mas outros países se deparam com o racismo na con-
solidação do modo de produção capitalista. A exploração econômica
sempre foi acompanhada de combinações históricas dos sistemas
de estratificação por castas e estamentos, com forte conteúdo racial.
Assim, formas de exploração e dominação por classes se misturam
com o racismo. Um marxismo desvinculado dessa determinação
histórico-concreta alimenta uma visão eurocêntrica dos países lati-
no-americanos, sem considerar que essa visão homogeneizadora,
em termos do passado europeu, também seria ilusória. O internacio-
nalismo proletário sempre sofreu a oposição das diferenciações étni-
cas e nacionais, se julgarmos pela cisão de 1914, causada pelo apoio
do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), de Karl Kautsky,
à concessão dos créditos de guerra para ingresso da Alemanha no
conflito mundial. A partir de fins do século XIX, ao se espraiar para
países semifeudais como a Rússia e o Terceiro Mundo colonizado,
o marxismo deparou-se ainda mais intensamente com as questões
nacionais, étnicas e raciais associadas à expansão imperialista.

Nos países da América Latina, como Bolívia, Peru, Equador,


Colômbia, Chile, Argentina e México, dentre outros, o racismo con-
figura-se como uma prática histórica genocida contra os povos ori-
ginários, que representam contingentes expressivos, mas, também,
contra a população minoritária afrodescendente. Nesse sentido,
podemos dizer que a análise do dilema racial brasileiro possui uma
dimensão latino-americana.

Tomando o exemplo concreto de São Paulo, “uma das comuni-


dades industriais em que o regime de classes sociais se desenvolveu
de modo mais intenso e homogêneo no Brasil”, afirma Florestan que o
dilema racial “se caracteriza pela forma fragmentária, unilateral e incom-
pleta com que esse regime consegue abranger, coordenar e regula-
mentar as relações raciais”. Tais relações “não são totalmente absor-
vidas e neutralizadas, desaparecendo atrás das relações de classes”.

SUMÁRIO 257
As relações raciais irão se sobrepor a estas últimas, as relações de
classes, “mesmo onde e quando as contrariam, como se o sistema
de ajustamentos e de controles sociais da sociedade de classes
não contivesse recursos para absorvê-las e regulá-las socialmente”
(FERNANDES, 2008, p. 571). O dilema racial se define como um “fenô-
meno estrutural de natureza dinâmica”, em que o atraso cultural de
relações raciais assimétricas será constantemente recomposto no
contexto da modernidade capitalista. A situação ambígua apontada
por ele é a de que, a partir dos valores sagrados da ordem social com-
petitiva, todos os indivíduos deveriam dispor de certa igualdade de
oportunidades ou que essas disparidades não fossem, pelo menos,
das mais perversas. Contudo, os padrões assimétricos de relações
raciais – herdados do antigo regime senhorial, que se prolongaram
no Brasil Império e nas primeiras décadas da República - permanece-
ram quase intactos, sofrendo algumas impulsões igualitárias apenas
em meados do século XX, quando o negro consegue se classificar
no sistema de classes, ainda que nas posições menos prestigiadas.
Aqueles padrões, portanto, não entram em colapso - como suposta-
mente deveriam entrar, se a história se realizasse num plano ideal -
com a emergência do capitalismo. Esse círculo vicioso só poderia ser
quebrado por um amplo e autêntico movimento antirracista, para além
das linhas divisórias da estratificação racial entre negros e brancos.

As reflexões de Florestan sobre o dilema racial constituem o


ponto de partida para sua análise do Brasil como um caso extremo de
capitalismo dependente. Nos termos de sua sociologia diferencial ou
histórica, o caso ou tipo extremo se aproximaria da construção de um
modelo analítico capaz de caracterizar determinada estrutura social
nas suas etapas mais integradas e diferenciadas de desenvolvimento.
Por exemplo, a Inglaterra, como forma mais avançada de capitalismo,
utilizada como modelo, por Marx, em O capital (1867). A comparação
implícita com outros países da América Latina está presente na
noção de caso extremo, pois o Brasil sinalizaria os dilemas históricos
futuros de outras formações sociais de origem colonial, periféricas,
dependentes e submetidas à dominação imperialista.

SUMÁRIO 258
Nos textos de Florestan escritos após A integração do negro,
as conexões de sentido entre dilema racial, subdesenvolvimento,
capitalismo dependente, contrarrevolução e autocracia burguesas se
tornarão mais explícitas. O dilema racial atua não apenas como fun-
damento do subdesenvolvimento dependente, pois os tipos de explo-
ração e dominação associados ao racismo permitem a constituição
de uma “massa marginal” funcional à extração extra de mais-valia
(nas formas absoluta e relativa) das classes trabalhadoras; mas, tam-
bém, como efeito de reforço ao aprofundamento dos nexos coloniais,
neocoloniais e imperialistas externos. A dinâmica interna das classes
sociais nas sociedades brasileira e latino-americanas pauta-se pela
dialética das contradições de classe no plano internacional, externo.
Esses foram os primeiros passos da formulação de Florestan de suas
contribuições mais específicas ao debate sociológico sobre a depen-
dência. Alguns dos trabalhos reunidos em O negro no mundo dos
brancos, livro publicado em 1972, sugerem sua compreensão teórica
da retroalimentação entre dilema racial e capitalismo dependente.
No ensaio Os aspectos políticos do dilema racial brasileiro, diz:
[...] embora não exista, para a estrutura econômica da
sociedade de classes brasileira, qualquer interesse em
evoluir para o padrão sistemático de preconceito e de
discriminação raciais (como o que existe nos Estados
Unidos ou na África do Sul), o tipo de capitalismo depen-
dente e subdesenvolvido imperante não pode prescindir
da concentração racial da renda e do poder (e, em conse-
quência, das formas pré ou subcapitalistas de exploração
e de expropriação econômicas e de dominação política
que ela envolve). (FERNANDES, 2007, p. 305)

A formação social brasileira combina, de modo historica-


mente particular, relações de exploração especificamente capitalis-
tas com formas não capitalistas, emergentes do passado colonial,
mas recompostas em novas configurações, assemelhadas ao tra-
balho escravo e a outras modalidades personalistas e semi-servis.
Ao invés de serem incompatíveis com o capitalismo dependente,

SUMÁRIO 259
essas formas extremamente perversas de exploração e dominação
das forças de trabalho representam uma dimensão normal do tipo de
desenvolvimento capitalista estabelecido nas periferias do sistema
mundial. Nesse sentido, foi a problemática da questão racial que
conduziu Florestan ao questionamento das revoluções burguesas
em países de origem colonial e das etapas históricas do capitalismo
dependente, com o qual passou a refletir comparativamente em ter-
mos mais amplos latino-americanos.

O processo de descolonização no Brasil e em outros países


da América Latina teria sido interrompido nos mais diversos níveis da
política, cultura e economia. Tais revoluções inconclusas não seriam
exceções, mas a regra geral sob o capitalismo dependente.

Os tempos históricos das revoluções interrompidas são entre


si dissociados, dado que a aceleração da modernização econômica
não corresponde a correlatas democratização política e sociali-
zação da esfera cultural. Assim, os fenômenos de demora cultural
não seriam passageiros, mas histórica e estruturalmente reversíveis,
criando situações de reconfiguração permanente de desigualdades
sociais incompatíveis com padrões de desenvolvimento capitalista
autônomo. A ruptura com a situação de dependência, fosse ela de
tipo colonial, neocolonial ou capitalista dependente, seria a condi-
ção sine qua non para superar os dilemas do subdesenvolvimento.
Florestan irá formular essa síntese teórica de explicação do Brasil e
da América Latina de uma maneira mais completa em A revolução
burguesa. Não é à toa que seus intérpretes consideram esse tra-
balho sua maior obra, mas o livro provavelmente jamais teria sido
escrito sem que ele tivesse se dedicado anteriormente a interpretar
o sentido histórico das relações raciais inseridas na emergência e na
consolidação da sociedade de classes no Brasil.

As circunstâncias políticas que fizeram eclodir o golpe civil-


-militar de 1964 são os motivos mais imediatos para a redação de
A revolução burguesa, mas a interpretação nele contida não se limita

SUMÁRIO 260
a aspectos conjunturais. As categorias de capitalismo dependente
e autocracia burguesa assumem uma dimensão histórico-estrutu-
ral, com variações específicas adequadas à diversidade latino-a-
mericana. Como argumentado anteriormente, a caracterização da
revolução burguesa no Brasil como um caso extremo de capitalismo
dependente, capaz de expressar os traços essenciais de um tipo his-
tórico particular de estrutura social, com seus padrões próprios de
desenvolvimento e dinâmicas singulares, implica uma comparação
implícita com outros países latino-americanos.

A teorização contida em A revolução burguesa vai além do


Brasil, assim como em Da guerrilha ao socialismo o exemplo cubano
foi interpretado como uma possibilidade de ruptura revolucionária
também potencial em outras nações da América Latina. O repre-
samento das tensões neocoloniais e do capitalismo dependente
– intensificado pela interação dialética entre a dominação das bur-
guesias internas, o capital financeiro internacional e o imperialismo
das nações capitalistas centrais e sua superpotência, os Estados
Unidos – vincularia as “revoluções dentro da ordem” em direção a
um desenvolvimento nacional autônomo que, graças à resistência
sociopática das forças conservadoras e reacionárias das elites das
classes dominantes, terminaria por conduzir a uma “revolução con-
tra a ordem”, nos marcos da transição socialista. Assim, em termos
aproximativos A integração do negro corresponde ao passado lati-
no-americano, A revolução burguesa ao presente e Da guerrilha ao
socialismo a uma alternativa histórica futura. A concretização de uma
ou outra via societária (capitalismo dependente, capitalismo nacional
autônomo de Estado, socialismo e outras soluções intermediárias)
dependeria, contudo, das correlações de força entre as classes, do
contexto internacional e da capacidade de organização popular.

A posição débil da burguesia brasileira como sócia menor


das grandes burguesias internacionais, representantes das frações
financeiras do capital imperialista, dissociou os tempos históricos
da modernização econômica de suas transformações políticas

SUMÁRIO 261
e culturais correlatas. O regime democrático representativo nos
países de capitalismo dependente corresponde a uma “democracia
restrita” às classes burguesas e seus funcionários subalternos dos
setores médios, isto é, a uma sociedade civil fechada para uma par-
ticipação ampliada das classes trabalhadoras e das camadas popu-
lares. O pacto populista de conciliação de classes, anterior ao golpe
civil-militar de 1964, representava espécie de manipulação demagó-
gica das aspirações dos grupos subalternos, cujo equilíbrio precário
iria se esfacelar pela incorporação do Brasil aos dinamismos interna-
cionais do capitalismo monopolista e consequente internalização da
dependência nos níveis econômico, político, cultural e social. Mesmo
com todos os seus limites históricos, o populismo instilava nas mas-
sas o desejo de aprofundar as reformas estruturais de base, e isso
representava sério risco para as posições de poder da burguesia, seu
autoprivilegiamento quase estamental, seu monopólio cultural, seu
controle ideológico da educação e, por fim, sua ultraconcentração
de riquezas. As elites da grande burguesia brasileira negociaram
a soberania nacional pela manutenção de sua vantajosa inserção
internacional no cenário do capitalismo monopolista.

O padrão de acumulação de capital sob o capitalismo


dependente seria constantemente solapado pelo seu mecanismo
histórico de expropriação dual, com uma parte do excedente eco-
nômico sendo drenado para o exterior e a outra retida pelas bur-
guesias internas, cujo discurso nacionalista seria meramente retó-
rico. No entanto, os vínculos de dependência não permaneceram
sempre os mesmos, havendo diferenças históricas marcantes entre
as etapas de evolução da sociedade brasileira. Florestan divide
o processo de emergência da sociedade capitalista de classes no
Brasil entre as seguintes fases: a) “emergência e expansão de um
mercado capitalista especificamente moderno”, correspondente
ao período de controle neocolonial indireto (indirect rule) pela
Inglaterra, que vai da Independência, em 1822, até os anos 60 do
século XIX; b) “formação e expansão do capitalismo competitivo”,

SUMÁRIO 262
caracterizada pela “consolidação da economia urbano-comercial” e
pelo primeiro impulso industrial mais significativo no Brasil, a exem-
plo das fábricas têxteis, indo até meados do século XX; c) “irrupção do
capitalismo monopolista”, cujo marco seria a “reorganização do mer-
cado e do sistema de produção por meio das operações comerciais,
financeiras e industriais da ‘grande corporação’ (predominantemente
estrangeira, mas também estatal ou mista)”, com início na década
de 1950, mas consolidando-se após o golpe de 1964 (FERNANDES,
2006, p. 264). Os nexos heteronômicos e de dependência entre o
Brasil, as nações capitalistas hegemônicas e a superpotência impe-
rialista mantiveram-se intactos, porém intensificaram sua capacidade
tentacular de interferir nas diversas esferas sociais, econômicas,
políticas, culturais, militares e ideológicas dos países de capitalismo
dependente. Aqui, despontam as principais contribuições teóricas de
Florestan para o refinamento das teses marxistas da lei do desen-
volvimento desigual e combinado, a partir do ponto de vista de um
cientista social situado num país de capitalismo dependente.

No final de A revolução burguesa, ele sintetiza as caracterís-


ticas históricas específicas da dominação política nos países de ori-
gem colonial, subdesenvolvidos, periféricos e dependentes. A noção
de autocracia confunde-se com a “contrarrevolução preventiva” acio-
nada pelas frações hegemônicas das burguesias internas e externas,
sob a forma de um golpe civil-militar. Florestan caracteriza a ditadura
ao mesmo tempo como civil e militar justamente para designar sua
sustentação pelas classes burguesas e grandes grupos empresariais,
nacionais e estrangeiros. Nas circunstâncias históricas do conflito
mundial de vida ou morte entre capitalismo e socialismo, o golpe
preventivo foi a solução encontrada para manter o Brasil submetido
ao arco de influência econômica, política, ideológica e militar dos
Estados Unidos. O mesmo processo se reproduziu em outros países
do Cone Sul, como Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai. A estru-
tura autocrática de dominação política assume o papel de garantir a
expropriação dual do excedente econômico, via formas extensivas e
intensivas de superexploração dos trabalhadores do Terceiro Mundo,

SUMÁRIO 263
no momento de consolidação do capitalismo monopolista em escala
internacional. Essa estrutura não se limita, por isso, ao âmbito nacio-
nal das burguesias internas e suas tecnoburocracias estatais, civis
e militares, mas se estende em direção às frações imperialistas das
burguesias externas. Os grandes conglomerados internacionais
passam a assumir influências diretas nas decisões de rumos das
políticas econômicas dos países subdesenvolvidos e dependentes.
Tal situação acarreta não apenas uma alta dose de manipulação de
massas, mas um Estado capaz de agir de maneira ultraviolenta nos
momentos de crise hegemônica.

Nesse sentido, as ditaduras militares na América Latina


passam a receber um constante apoio técnico, logístico, econô-
mico, político, militar e ideológico da superpotência capitalista, os
Estados Unidos, e de outras nações imperialistas. A imagem do
Estado Behemoth, evocada por Franz Neumann (1943) em sua clás-
sica análise da ascensão do nazismo na Alemanha, foi aproveitada
por Florestan para caracterizar o poder burguês sob o capitalismo
dependente. Essa face violenta não se vincula a uma conjuntura par-
ticular. Antecipando os primeiros sinais de esgotamento político da
ditadura, o sociólogo brasileiro desvela as raízes históricas e estrutu-
rais da autocracia burguesa nos fundamentos oligárquicos e restritos
de uma democracia limitada às classes situadas no tope da socie-
dade civil ou, no máximo, a seus estratos intermediários subalternos.
A democracia restrita ou de cooptação convive harmonicamente
com graus extremos de violência política institucionalizada, voltada
localizadamente contra as camadas populares – negros, povos origi-
nários, trabalhadores do campo e da cidade, sem-teto, sem-terra etc.,
enfim, a totalidade dos “condenados do sistema” – nos momentos de
aparente normalidade, mas que se torna generalizada nos momen-
tos das crises de recomposição do poder burguês.

A autocracia burguesa, como sistema de dominação de


classe, não seria exclusiva das áreas periféricas do capitalismo
mundial. Mas talvez na periferia a face autocrática do poder burguês

SUMÁRIO 264
se revele com maior violência devido à imbricação entre formas de
exploração e dominação capitalistas e a reatualização dos mecanis-
mos de opressão política e espoliação econômica do passado colonial
e neocolonial. No ensaio A sociedade escravista no Brasil, de 1976, um
escrito que completa análises inacabadas contidas em A revolução
burguesa, Florestan demonstra como o “escravismo colonial” atuou
como plataforma econômica, social, política e cultural para a emer-
gência, formação e consolidação da sociedade capitalista brasileira,
alimentando seu processo de “acumulação primitiva” como uma ver-
dadeira espoliação das populações negras escravizadas traficadas
da África e dos povos originários anteriores à conquista portuguesa
(FERNANDES, 2010, p. 37-95). O capitalismo que resulta de todas
essas transformações históricas só poderia ser, nas palavras do pró-
prio autor, um capitalismo selvagem. A violência com que tal modelo
autocrático de transformação capitalista se reproduziu de maneira
generalizada nos países da América Latina explica a eclosão história
da Revolução Cubana.

Não podemos, por isso, dissociar a explicação sociológica de


Florestan Fernandes da transição socialista em Cuba sem nos refe-
rirmos a suas teorizações anteriores sobre o capitalismo dependente
e sua correspondente autocracia burguesa.

O livro Da guerrilha ao socialismo sistematiza anotações de


aulas ministradas pelo nosso autor em 1979. Apesar de ter sido ela-
borada com uma finalidade didática, a obra constitui um dos seus
trabalhos mais densos política e teoricamente, encerrando sua trilo-
gia de interpretação das formações sociais brasileira e latino-ame-
ricanas. Cuba representaria, a seu ver, as possibilidades futuras de
uma América Latina liberada da dominação imperialista. Irei me ater
apenas à primeira parte do livro, Introdução ao estudo de Cuba socia-
lista, pois nela encontramos a caracterização da Revolução Cubana
como um caso extremo da transição de processos de “revolução den-
tro da ordem” para uma “revolução contra a ordem” nas formações
sociais de capitalismo dependente da América Latina. Ao explicitar

SUMÁRIO 265
as contradições e dilemas da revolução cubana, a perspectiva socio-
lógica de futuro de Florestan se expressa como um exercício rigoroso
de reflexão da história do tempo presente ou, como costumava dizer,
da “história em processo”, in flux:
Diante de revoluções burguesas em atraso, a revolução
em avanço procede do socialismo, o que quer dizer que
temos de estudar Cuba se pretendemos desvendar o
futuro e conhecer a história de ritmos fortes, que se abre
para frente e assinala uma “nova época de civilização” no
solo histórico da América Latina (FERNANDES, 1979, p. 3).

Como o meu trabalho principal se voltava para o estudo


sistemático da contrarrevolução burguesa no Brasil
[referência direta do autor a seu livro A revolução bur-
guesa], a revolução in flux, em escala latino-americana,
configurava-se historicamente em termos de Cuba ou
de movimentos socialistas que pareciam em ascensão
(como o do Chile e os que se vinculavam à guerrilha).
A revolução cubana aparecia-me, finalmente, à luz dos
contrastes fortes que fazem dela um marco político
crucial, o único ponto de referência que possuímos para
embasar historicamente o pensamento socialista revolu-
cionário na América Latina (FERNANDES, 1979, p. 5-6).

Os horizontes utópicos socialistas, em sentido mannhei-


miano, orientam as análises sociológicas de Florestan como alterna-
tivas históricas que poderão ou não se concretizar, a depender das
correlações de força entre classes sociais, frações de classe e con-
junturas político-econômicas internacionais. Os dinamismos inter-
nos da sociedade cubana são analisados em suas relações dialéticas
com os conflitos antagônicos entre os blocos capitalista e socialista
então existentes. Ao contrário de muitos enfoques reducionistas,
Cuba não é percebida como uma simplificação do modelo burocrá-
tico e centralista de tipo stalinista, mas investigada nas condições
históricas reais e concretas de sociedades latino-americanas que
lutam contra o subdesenvolvimento. A opção socialista só se rea-
liza efetivamente depois que os interesses imperialistas dos Estados
Unidos e de outras nações centrais, aliados aos setores burgueses

SUMÁRIO 266
internos, opuseram limites ao processo de descolonização em Cuba
e procuraram barrar uma revolução que se propôs inicialmente
objetivos de autonomização nacional. O socialismo foi uma imposi-
ção da história latino-americana e não uma exportação do modelo
soviético. Assim, as contradições do processo revolucionário cubano
são analisadas em seu caráter histórico aberto (FERNANDES, 1979,
p. 10) de uma tentativa original de construção do socialismo numa
sociedade latino-americana, partindo de duras condições neocolo-
niais. A primeira parte do livro foi utilizada por Florestan como uma
necessária limpeza de terreno contra os preconceitos ideológicos no
estudo da Revolução Cubana, os quais se baseiam no modelo único
da democracia ocidental. As novas formas de poder popular sinaliza-
vam a institucionalização de práticas democráticas de participação
direta, atuantes na sociedade cubana, que em diversos momentos
funcionariam como fatores corretivos dos excessos de centralismo
burocrático e do Estado planificado. A “análise concreta de situações
concretas” não é substituída ideologicamente por conceitos formais.

No estudo do passado colonial e neocolonial, ele desvenda os


fatores sociológicos explicativos da eclosão revolucionária em Cuba:
a dissolução do pacto colonial com a Espanha resultou – ao contrário
do que pretendiam as forças anticoloniais e suas lideranças políticas
e militares – na frustração dos sonhos de libertação nacional dos
setores sociais mais radicalizados, de origem popular, vinculados às
guerras de Independência de 1868 a 1878 e de 1895 a 1898, dada a
intervenção direta da superpotência imperialista então nascente, os
Estados Unidos. A contemporização dos estratos sociais retrógra-
dos, comprometidos com a expropriação colonial do excedente eco-
nômico e com os interesses imperialistas estadunidenses, teve como
consequência inevitável o prolongamento indefinido do desenvolvi-
mento capitalista, agora sob condições neocoloniais.

Esse desfecho desastroso das históricas Guerras de


Independência, em Cuba, intensificou de tal forma a íntima imbrica-
ção entre a aceleração do crescimento capitalista e a ordem social

SUMÁRIO 267
neocolonial, com todos seus efeitos nefastos como desemprego,
fome, miséria, analfabetismo, doenças, corrupção, violência poli-
cial colonialista etc., que uma revolução inicialmente de libertação
nacional, democrática e anti-imperialista, desembocaria quase natu-
ralmente numa revolução anticapitalista e socialista. Na América
Latina, dadas as características do capitalismo dependente e seu
passado neocolonial, o desencadeamento de autênticas “revoluções
dentro da ordem” pode conduzir a novos e mais avançados pata-
mares históricos de “revoluções socialistas contra a ordem”. Assim,
Florestan não explica de maneira reducionista a Revolução Cubana
por fatores impositivos externos, mas, sem desprezar as determi-
nações históricas internacionais, a partir de sua interpretação das
formações sociais capitalistas da América Latina.

À GUISA DE CONCLUSÃO:
NOVOS CAMINHOS DE INTERPRETAÇÃO
DA OBRA DE FLORESTAN FERNANDES
A grande maioria dos intérpretes da obra sociológica de
Florestan situa seus trabalhos no plano específico da história das
ciências sociais no Brasil. Os estudos assim delimitados trouxeram
contribuições imprescindíveis e devem ser utilizados como pontos de
partida para o conhecimento de sua produção acadêmica e política.
No entanto, já se encontram em andamento pesquisas que vinculam
o pensamento do sociólogo paulistano à história mais geral das ciên-
cias sociais latino-americanas. O presente trabalho limita-se a propor
aqui, nos marcos de uma perspectiva latino-americana e não apenas
brasileira, o início de uma reinterpretação de livros fundamentais de
Florestan, a serem analisados em suas possíveis conexões históricas,
políticas, conceituais, teóricas e epistemológicas.

SUMÁRIO 268
Assim, os três livros mencionados – A integração do negro, A
revolução burguesa e Da guerrilha ao socialismo – representam, em
conjunto, os traços essenciais de uma nova interpretação do Brasil
e América Latina. Essa interpretação não pode ser dissociada da
visão de mundo lumpen, radical-popular e socialista de Florestan. A
originalidade da teoria social da América Latina construída pelo soci-
ólogo brasileiro se deve justamente a seu esforço político de partir da
perspectiva social dos sujeitos subalternos, os povos originários, o
negro, o imigrante, os trabalhadores do campo e da cidade, as mas-
sas despossuídas e, como disse certa vez, de todos os “condenados
do sistema” em geral.

A integração do negro focaliza a emergência do “povo” na his-


tória brasileira, desvelando como as relações capitalistas incorporaram
e ressignificaram as formas de dominação baseadas na estratificação
racial, por castas e estamentos, uma situação que seria comum aos
demais países latino-americanos de origem colonial e dependentes.

A revolução burguesa analisa tais processos de outro ângulo,


abordando as configurações das classes dominantes e argumen-
tando pelo caráter selvagem do poder burguês sob o capitalismo
dependente, de modo que os tempos históricos para uma ampla
participação democrática das classes trabalhadoras e camadas
populares se tornam restritos ou mesmo fechados em algumas cir-
cunstâncias políticas, como nos casos das ditaduras militares.

Por fim, Da guerrilha ao socialismo revela como a história nunca


se fecha e o represamento das pressões populares por uma “cidadania
igualitária” são capazes de encadear processos de “revolução dentro
da ordem” com a “revolução contra a ordem”. Essa é uma alternativa
histórica inscrita nas contradições internas das sociedades latino-a-
mericanas. Sem desprezar as alianças com os setores explorados dos
países desenvolvidos, Florestan Fernandes produz uma teoria social
comprometida com as lutas das classes trabalhadoras e das massas
despossuídas do Brasil, da América Latina e do Terceiro Mundo.

SUMÁRIO 269
REFERÊNCIAS
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FERNANDES, Florestan. A sociologia numa era de revolução social. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1963.
______. Elementos de sociologia teórica. 2ª Ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1974.
______. Ensaios de sociologia geral e aplicada. 3ª Ed. São Paulo: Pioneira, 1976.
______. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. 3ª Ed. Rio de
Janeiro: LTC, 1978.
______. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1979.
______. Entrevista ao programa televisivo Vox Populi da TV Cultura. Vox Populi,
1984. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0u_x-6m_mQI. Acesso em:
22 mar. 2024
______. O negro no mundo dos brancos. 2ª Ed. São Paulo: Global, 2007.
______. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5ª
Ed. São Paulo: Globo, 2006.
______. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. 2. 5ª Ed. São Paulo:
Globo, 2008.
______. Circuito fechado. São Paulo: Globo, 2010.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
NEUMANN, Franz. Behemoth: pensamiento y acción en el nacionalsocialismo. México:
Fondo de Cultura Económica, 1943.
SOLARI, Aldo et al. Teoría, acción social y desarrollo en América Latina. México-DF:
Siglo XXI, 1976.

SUMÁRIO 270
11
Lucas Trindade

UM FLORESTAN
PARA ALÉM DA “TESE
DA SINGULARIDADE
BRASILEIRA”88
88 Texto publicado pela primeira vez em Terceiro Milênio: Revista Crítica de Sociologia e Política, v. 18,
n. 01, 2022, integrado ao dossiê “A atualidade do pensamento social e político brasileiro”, organizado
por Marcos Abraão Ribeiro, Roberto Dutra e Maro Lara Martins. Nesta publicação, o texto passou por
mínimas alterações de forma, sem qualquer mudança em seu conteúdo e principais argumentos.

DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.11
INTRODUÇÃO
Pretendo aqui elaborar de forma sistemática uma questão
que levantei em artigo anterior (ver SILVA, 2020), a saber: refletir
sobre a obra de Florestan Fernandes, em particular sua interpreta-
ção sobre os padrões e dilemas (COHN, 1986) brasileiros, pelo crivo
da tese da singularidade brasileira, chave de leitura formalizada por
Sergio Tavolaro para a análise crítica de amplamente reconhecidos
intérpretes do Brasil.

Primeiramente, buscarei sintetizar a leitura de Tavolaro do


pensamento social brasileiro pelo prisma da tese da singularidade
brasileira. Darei ênfase, por um lado, à relação intrínseca entre essa
tese e o discurso sociológico hegemônico sobre a modernidade; por
outro lado, à forma como Tavolaro aponta tanto os limites (concei-
tuais e metodológicos) como as potencialidades (quando lidas pelas
lentes dos debates contemporâneos em teoria social) dos autores
enquadrados naquela tese. No sentido preciso de exprimir fragilida-
des e potencialidades, buscarei apontar em quais termos específicos
Florestan é tomado como um pensador da singularidade brasileira.

Em uma segunda seção, reforçarei, em parte, o argumento


de Tavolaro, defendendo a plausibilidade de pensar um período
significativo da obra de Florestan como uma reflexão sobre a sin-
gularidade brasileira como desviante e inautêntica frente a modelos
“plenos” de capitalismo e modernidade, sobretudo quando tomamos
como material de análise os seus textos dos anos 1950 e início dos
anos 1960. Diferentemente de Tavolaro, argumentarei que nos tex-
tos mais amplamente citados por este — Sociedade de Classes e
Subdesenvolvimento (1968) e A Revolução Burguesa no Brasil (1975)
—, são perceptíveis importantes deslocamentos: por um lado, a sin-
gularidade brasileira (como situação heteronômica ou capitalismo
dependente) se desatrela do imaginário do desvio e da inautenti-
cidade; por outro lado, a segunda obra, ao tempo que endossa

SUMÁRIO 272
e formaliza a singularidade brasileira (modelo autocrático-burguês
em contraste com o modelo democrático-burguês), também sugere
elementos conceituais e heurísticos para além da singularidade, prin-
cipalmente quando identifica tendências de generalização global
das formas autocráticas de dominação burguesa. Tais tendências
ganham notoriedade e reflexão sistemática em Apontamentos sobre
a “Teoria do Autoritarismo”, publicação original de 1979 a partir de um
curso oferecido em 1977.

Concluirei sintetizando os principais resultados alcançados


e apontando, rapidamente, como há em Florestan aspectos que dia-
logam com as ricas proposições de Tavolaro (2005, 2014) para irmos
além dos impasses essencializantes de um pensamento organizado
a partir dos dualismos universalidade/singularidade, autenticidade/
inautenticidade, norma/desvio.

A TESE DA SINGULARIDADE BRASILEIRA


Em 2005, Sergio Tavolaro publica na Revista Brasileira de
Ciências Sociais o artigo Existe uma modernidade brasileira? Reflexões
em torno de um dilema sociológico brasileiro. Nele, Tavolaro realiza
um trabalho notável de sistematização de atributos transversais à
heterogeneidade de abordagens e resultados teórico-conceituais
do chamado pensamento social brasileiro. Um trabalho inspirado na
arqueologia foucaultiana de fazer salientes regularidades dispersivas
ou a episteme (no léxico de As palavras e as coisas problematizado
em A arqueologia do saber) que transpassa consagrados intérpre-
tes do Brasil, alcunhados assim sobretudo pela sina em conferir
inteligibilidade aos caminhos particulares da (não, semi ou parcial)
modernidade brasileira.

SUMÁRIO 273
Como será uma tônica até os seus trabalhos mais recentes, a
busca de demarcação das regularidades dispersivas que traçam os
limites do pensamento social brasileiro, tomado como uma episteme
ou formação discursiva, é feita em um rigoroso trabalho simultâneo
de demarcação do discurso sociológico hegemônico sobre a moder-
nidade em autores e obras de indiscutível relevância na teoria socio-
lógica clássica e contemporânea.

Em seus textos, vê-se de forma cada vez mais enriquecida


esse trabalho de formalização pari passu do discurso sociológico
hegemônico, de um lado, e de atributos transversais ao pensamento
social brasileiro, de outro. Em geral, aponta-se como aquilo que é
afirmação naquele — a proposição de um conjunto de característi-
cas típicas da modernidade ou dos processos de modernização —
aparece como negação ou aparição parcial, tímida, canhestra neste
— a ausência ou falta de vigor daquelas características ao pensar
a singular modernidade brasileira. “A sociologia clássica e a nossa
sociologia da inautenticidade operam, então, como profecias que se
autorrealizam: ao tentar explicar o ‘centro’, confirma a ‘margem’ como
um desvio do primeiro e vice-versa, sem qualquer espaço para ques-
tionamentos”, escreve Tavolaro (2005, p. 12-3).

Em alguns dos seus trabalhos (TAVOLARO, 2005, 2007,


2011a), o discurso sociológico hegemônico sobre a modernidade é
pensado em uma tríade de atributos: (1) diferenciação/complexifi-
cação social; (2) secularização/racionalização societal; (3) separa-
ção entre público e privado. Em trabalhos posteriores (TAVOLARO,
2011b, 2013, 2014, 2017a, 2017b), esse conjunto de atributos vai sendo
gradativamente ampliado, incorporando (TAVOLARO, 2017a, p.
120-2, grifos do autor): (4) uma concepção específica de “agencia-
mento”, na qual “o agente exemplar da modernidade” aparece como
“dotado” de uma “estabilidade subjetiva” que garante “não apenas
capacidade de autocontrole e domínio emocional sobre si mesmo
como também condições de possibilidade para a adoção de um
padrão de conduta metódico e racional, seja em sua vida social,

SUMÁRIO 274
seja em relação ao mundo objetivo a seu redor”; (5) “a imagem de
ruptura radical entre a cultura e a natureza”, fundamento para o domí-
nio técnico sobre a natureza externa e interna; e (6) uma “estrutura
espaço-temporal igualmente singular”, na qual, de forma crescente,
“o espaço é imunizado de condicionamentos contextuais” e o tempo,
homogêneo e abstrato, ganha uma “conotação predominantemente
linear e progressiva”.

Por certo, à ampliação da grade hegemônica que põe a


modernidade em discurso segue-se uma complexificação das
nuances de caracterização do pensamento social brasileiro, com-
preendido como um discurso sobre a singularidade brasileira que
a concebe amplamente como uma modernidade faltosa, parcial ou
distorcida no que diz respeito ao conjunto de atributos acima indi-
cados. Discurso este que se desdobra em concepções da cidadania
entre nós como desviante (TAVOLARO e TAVOLARO, 2010) ou como
uma excepcional “cidadania à brasileira” (TAVOLARO, 2009).

Muito além dessa dupla e produtiva arqueologia de forma-


ções discursivas desigualmente reconhecidas na comunidade das
ciências sociais — não fortuitamente o discurso sociológico hege-
mônico é pensado como “teoria” e o pensamento social brasileiro
mantém-se como “pensamento” —, Tavolaro também aponta, a partir
de uma ampla apropriação dos debates globais contemporâneos
em teoria social e sociológica, para as fragilidades das tendências
essencializantes de ambas as formações discursivas — hegemôni-
cas ou não. Nesse intento, o autor busca, me parece, levar ao limite
a crítica aos hábitos dualistas de pensar a modernidade, exigindo
uma reflexão fundamentalmente agonística, antiessencialista, con-
tingente e histórica dos processos globais interconectados de
modernização, contra todo traço de nacionalismo metodológico.
Em outro flanco de reflexão, igualmente ousado, Tavolaro escava —
como tem feito em profundidade com a obra de Freyre (TAVOLARO,
2016, 2017b) e Holanda (TAVOLARO, 2020) — as potencialida-
des heurísticas e conceituais presentes no que chama de retratos

SUMÁRIO 275
não-hegemônicos ou não-modelares da modernidade, a exemplo
das tensões com a temporalidade moderna presentes nos intérpretes
do Brasil (TAVOLARO, 2021).

Como se evidencia da discussão precedente, é perceptível


como, ao lado da arqueologia de inspiração foucaultiana, Tavolaro
se inspira na crítica de Jessé Souza (2000) à sociologia brasileira da
inautenticidade, embora acertadamente, a meu ver, aponte como
Souza, ao pensar a modernização seletiva, se mantém enredado nas
armadilhas do mesmo tipo de sociologia que critica. Se no capítulo
sétimo de A Modernização Seletiva, Souza (2000) critica um ima-
ginário da modernidade inautêntica perpassando os trabalhos de
autores como Freyre, Holanda, Faoro e DaMatta, pensadores das
continuidades ibérico-luso-brasileiras e do vigor de forças pré-mo-
dernas (personalistas, patriarcais, patrimonialistas) em nossa for-
mação, Tavolaro aponta para a operação de uma lógica discursiva
semelhante em uma tradição que explicitamente buscava superar
os limites daquela abordagem culturalista ou, mais rigorosamente,
de uma “sociologia da herança patriarcal-patrimonial” (TAVOLARO,
2005, p. 5, grifo do autor).

Autores de uma “sociologia da dependência” como Caio Prado


Jr., Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni
— embora evidentemente a partir de pressupostos, métodos e fins
distintos — não estariam tão distantes daqueles quando se trata de
pensar o Brasil como uma modernidade faltosa e de certa essencia-
lização das características que definiriam as experiências originárias
ou centrais e as experiências tardias ou periféricas de modernidade.
Como traços comuns portanto às duas sociologias — da herança
patriarcal-patrimonial e da dependência —, “uma notável resistência
em equiparar a sociedade brasileira contemporânea e as chamadas
‘sociedades modernas centrais’” e, no que se refere à primeira, a
“mesma imagem de ‘desvio’” (TAVOLARO, 2005, p. 7).

SUMÁRIO 276
Como já anunciado na introdução, é do interesse deste
artigo reconstruir os traços principais do enquadramento da sociolo-
gia da dependência, mais particularmente do trabalho de Florestan
Fernandes, no interior de uma sociologia da inautenticidade, do des-
vio e da singularidade brasileira, uma sociologia que revelaria “forte
suspeição quanto à equidade entre Brasil e as chamadas ‘sociedades
modernas centrais’” (TAVOLARO, 2005, p.8). Em Prado Jr.89, Tavolaro
aponta principalmente o argumento perpassado pela marcada distin-
ção ou dicotomia entre as experiências de colonização estadunidense
e brasileira, aquela assentando as bases para uma modernidade
capitalista plena e hegemônica, esta, como sabemos, exprimindo uma
contínua reconfiguração do seu sentido originário de colônia.

Em Ianni90, Tavolaro (2005, p. 9) aponta o vínculo entre a


persistência da “dependência estrutural” e a não prevalência, no
caso brasileiro, das “mesmas condições que permitiram aos países
capitalistas centrais consolidarem instituições e valores burgueses e
estendê-los para a maior parte da população”. De modo semelhante,
também Cardoso91 salientaria os laços entre as formas de articula-
ção da dependência ao longo da história brasileira e a dificuldade de
consolidação, por aqui, da “democracia representativa, grupos civis e
demais formas de sociabilidade vivenciadas plenamente pelas socie-
dades capitalistas centrais” (TAVOLARO, 2005, p. 9).

Enfim, o que mais nos interessa aqui, em Florestan92,


Tavolaro (2005, p. 8-9) aponta os seguintes aspectos principais que

89 História econômica do Brasil, The colonial background of modern Brazil e Evolução política do Brasil
são citados por Tavolaro (2005).
90 Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970) e O colapso do populismo no Brasil são
citados por Tavolaro (2005).
91 O modelo político brasileiro, As ideias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento
e, em coautoria com Faletto, Dependency and development in Latin American são citados por
Tavolaro (2005).
92 Sociedade de classes e subdesenvolvimento e A revolução burguesa no Brasil são citados por
Tavolaro (2005).

SUMÁRIO 277
enquadrariam a sua sociologia em uma compreensão do Brasil por
sua inautêntica e singular modernidade: (a) em contraste com o
“continente europeu”, a vitalidade de traços estamentais em nossa
“configuração social” devido ao peso da “combinação inicial de
grande lavoura, escravidão e expropriação colonial”; (b) uma incor-
poração superficial, “em suas linhas mais gerais”, dos “padrões
sociais, políticos e econômicos vivenciados pelas sociedades capi-
talistas hegemônicas”; e (c) a “condição de dependência estrutural”,
caracterizada pela articulação entre “setores econômicos modernos
e supermodernos” e “setores arcaicos”, como “razão pela qual uma
porção significativa da população brasileira permaneceu alheia à
universalização legal do trabalho-livre” e como fundamento explica-
tivo para o fato de que, aqui, “certas instituições políticas vivenciadas
pelas sociedades capitalistas centrais não conseguiram vingar”.

Logo, a modernização brasileira — Tavolaro cita diretamente


o Florestan de A revolução burguesa no Brasil —, “‘dissociada do
modelo de civilização operante nas nações hegemônicas’”, seria
marcada pela negligência ou secundarização dos “‘(...) requisitos
igualitários, democráticos e cívico-humanitários da ordem social
competitiva’” (FERNANDES, 1976, p. 256 apud TAVOLARO, 2005, p.
9). No caso brasileiro, em claro contraste com as “‘nações hegemô-
nicas e centrais’”, a transição para o capitalismo monopolista seria
singularmente marcada por um grau elevado de selvageria e pela
impossibilidade de “‘qualquer conciliação concreta, aparentemente a
curto e longo prazo, entre democracia, capitalismo e autodetermina-
ção’” (FERNANDES, 1976, p. 256 apud TAVOLARO, 2005, p. 9).

Na sociologia da herança patriarcal-patrimonial de Freyre,


Holanda, Faoro e DaMatta, é essa exata herança que funciona como
“variável independente” para pintar “a imagem da sociedade brasi-
leira” como um tipo que, “a despeito de ter passado por processos de
complexificação e modernização (...), jamais atingiu o grau e a exten-
são da diferenciação social, da secularização e da separação entre
público e privado observados nas ‘sociedades modernas centrais’”,

SUMÁRIO 278
o que explicaria “o status semimoderno da sociedade brasileira con-
temporânea” (TAVOLARO, 2005, p. 10, grifos do autor).

Diferentemente, embora com resultados afins, na sociologia


da dependência de Prado Jr., Fernandes, Cardoso e Ianni, é “a insu-
perada condição de dependência estrutural, marcando a economia
brasileira desde os momentos primeiros de sua formação, que acaba
por assumir o papel de ‘variável independente’, supostamente capaz
de explicar a pretensa particularidade do padrão de sociabilidade
que se consolidou entre nós” (TAVOLARO, 2005, p. 10). É a depen-
dência estrutural o fator explicativo fundamental para compreender
a singularidade inautêntica da “nossa” modernidade em comparação
com os processos de modernização típicos dos “‘países centrais’”,
tais como França, Estados Unidos e Inglaterra.

Enquanto a sociologia da herança patriarcal-patrimonial con-


formaria a imagem do Brasil contemporâneo como “semimoderno”, a
sociologia da dependência cristalizaria a imagem da modernidade
brasileira como “uma modernidade periférica” (TAVOLARO, 2005, p.
11, grifo do autor). Embora faça questão de salientar essa importante
diferença, a Tavolaro importa sobretudo, como já vimos, apontar para
as semelhanças subjacentes às nuances:
Ora, quando consideradas do ponto de vista da episteme
do discurso sociológico hegemônico da modernidade, as
duas abordagens comumente tidas como diametralmente
opostas chegam a um diagnóstico bastante similar, ainda
que partam de perspectivas bastante diferentes: diferen-
ciação social, racionalização da normatividade e separação
entre o público e privado — os três pilares da sociabilidade
moderna, de acordo com esse discurso — não teriam se
consolidado no Brasil tal e qual o fizeram nos chamados
“países modernos centrais”. No interior desse terreno cog-
nitivo, pois, nossa condição moderna não seria outra senão
uma espécie de desvio em relação às ditas “sociedades
centrais da modernidade”. Mantendo-se intocada a epis-
teme daquele discurso sociológico hegemônico, não parece
restar outra alternativa interpretativa para além de “semi-” e
“periférica” (TAVOLARO, 2005, p. 11, grifos do autor).

SUMÁRIO 279
Ao revisitar a “tese de singularidade brasileira”, “ideia-força
mais poderosa e penetrante do nosso pensamento social” que, em
nossos dias, “parece permanecer irresistivelmente hegemônica”,
Tavolaro (2014, p. 633-4, grifo do autor) reitera as balizas de sua
abordagem: não é possível falar da tese da singularidade brasileira
sem pensá-la como uma enunciação que parte de um imaginário
hegemônico sobre a modernidade; é a partir desta norma discursiva
que casos singulares e desviantes são indicados.

A desestabilização e interpelação crítica deve ser, portanto,


dupla: ao que se concebe, no interior e a partir de um discurso hege-
mônico, como modelo e como desvio da modernidade. Remetendo
diretamente ao trabalho de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1976), o
“interesse prioritário” da arqueologia crítica da tese da singularidade
brasileira é questionar o “‘pressuposto de uma diferença essencial’
entre ‘nações metropolitanas’ e ‘povos coloniais’” ou, nas suas pró-
prias palavras, “entre o Brasil e outros contextos ditos ‘centrais’ da
experiência moderna” (TAVOLARO, 2014, p. 642, grifo do autor).

No texto de 2014 é explicitado um elemento marcante da


produção intelectual de Sergio Tavolaro: a ideia de que “é possível
identificar nas mais célebres obras interpretativas da ‘peculiaridade
brasileira’ — as mesmas que esposam elementos centrais daquela
tese — antecipações a críticas contemporâneas ao discurso da
modernidade” (TAVOLARO, 2014, p. 635). Após uma sucinta apre-
sentação das “críticas contemporâneas ao discurso da modernidade”
— em particular as perspectivas das modernidades múltiplas, da glo-
balização e da modernidade global, de um lado, e as perspectivas
pós-colonial e decolonial, de outro —, Tavolaro (2014, p. 654, grifo do
autor) questiona: “como é que a tese da singularidade brasileira se
posta diante dos desafios àquele discurso da modernidade lançados
por essas elaborações teóricas contemporâneas?”.

Para Tavolaro (2014, p.656), “ao versar sobre uma reali-


dade classificada como ‘não modelar’” pelos critérios do discurso
sociológico hegemônico, os intérpretes da singularidade brasileira

SUMÁRIO 280
puderam trazer “à luz aspectos da própria ‘realidade modelar’ que
escaparam ao campo de visão daquele quadro de referência hege-
mônico”. Esse ângulo de abordagem — que mais nitidamente busca
indicar tanto os limites como as potencialidades da tese da singula-
ridade brasileira — permite adicionar importantes nuances à leitura
dos pensadores enquadrados nesta tese.

No que se refere ao objeto deste artigo, isso permite salientar


na obra de Florestan Fernandes: (a) a sensibilidade, em trabalhos
como Sociedade de classes e subdesenvolvimento e A revolução
burguesa no Brasil, para a “coexistência de temporalidades distintas
— arcaicas e modernas” (TAVOLARO, 2014, p. 657); (b) em contraste
com o imaginário hegemônico sobre a racionalização e o agencia-
mento modernos, a alusão em A integração do negro na sociedade de
classes “à existência de hiatos de natureza psicodinâmica que teriam
dificultado sobremaneira a plena integração de certos segmentos
marginalizados à ordem social racional-competitiva” (TAVOLARO,
2014, p. 657); (c) também a “resiliência de relações de produção
dadas por extintas nas ditas ‘sociedades centrais’” (TAVOLARO, 2014,
p. 657), apontada por Prado Jr. e Fernandes, ofereceria subsídios para
um questionamento da suposta separação entre público e privado e
de uma plena autonomização das esferas sociais no discurso socio-
lógico hegemônico sobre a modernidade; (d) citando Sociedade de
classes e subdesenvolvimento, Tavolaro (2014, p. 659-660) enfatiza a
exigência de Fernandes quanto a uma necessária revisão e “adequa-
ção” dos instrumentos teórico-conceituais da sociologia, genetica-
mente ligados aos contextos europeu e norte-americano, para dar
conta das situações de subdesenvolvimento.

Elementos como esses, se endossam o enquadramento de


Fernandes na tese da singularidade brasileira (inautêntica e des-
viante em relação a um modelo de modernidade), também podem
ser “revisitados”, reitera Tavolaro (2014, p. 660), “à luz dos debates
contemporâneos” “como desafios que lugares de enunciação não
hegemônicos suscitam” ao discurso sociológico hegemônico da
modernidade, “flagrando-o em seus próprios limites e fragilidades”.

SUMÁRIO 281
Elaborada esta síntese da tese da singularidade brasileira e
de como Fernandes é nela enquadrado, tenho elementos para um
retorno direto ao trabalho do saudoso sociólogo uspiano. Ao longo
do texto buscarei demonstrar como Fernandes apresenta aspectos
tanto de endosso da tese da singularidade brasileira como de supe-
ração, numa dinâmica de tensão e ambivalência, desse imaginário:
primeiro ao desatrelar a ideia de singularidade das imagens de des-
vio e inautenticidade; depois, ao realizar um consistente movimento
para além da singularidade, em particular ao pensar as relações
entre capitalismo e autocracia.

FLORESTAN FERNANDES E A TESE


DA SINGULARIDADE BRASILEIRA:
COM ELA E PARA ALÉM

BRASIL: SINGULAR, INAUTÊNTICO E DESVIANTE


Não são escassos nem pontuais os indícios que permitem
enquadrar Florestan no interior de uma sociologia da inautenticidade
(Jessé Souza), do desvio e da singularidade (Sergio Tavolaro) quando
o Brasil é pensado em contraste com um determinado modelo de
capitalismo e de modernidade. Há, inclusive, elementos ainda mais
flagrantes do que aqueles apontados textualmente por Tavolaro (2005,
2014). É sobretudo em textos escritos por Florestan nos anos 1950 e
início dos anos 1960 que, a meu ver, podemos encontrar de maneira
transparente o imbricamento das imagens da inautenticidade, do
desvio e da singularidade para pensar a formação social brasileira.

Em Existe uma crise da democracia no Brasil?, conferência rea-


lizada em junho de 1954, encontramos um Florestan particularmente

SUMÁRIO 282
influenciado pela hipótese da demora cultural (BRASIL JR., 2013;
PORTELA JR., 2013; SILVA, 2021) e que, por isso, responde àquela
pergunta da seguinte forma: “o que parece a muitos uma ‘crise’ da
democracia no Brasil é, antes, efeito da lentidão com que se vem
operando a substituição dos antigos hábitos e práticas (além do
mais, deformados) de vida política, por outros novos, ajustados à
ordem legal democrática em elaboração” (Fernandes, 2008a, p. 100).
O núcleo do problema não seria, portanto, uma democracia em crise
(como se um dia tivesse existido de maneira plena), mas condições
sociológicas que favorecem a “perpetuação” daqueles “antigos hábi-
tos e práticas (além do mais, deformados)” e a prevalência, “ao longo
da moderna evolução política do país”, dos “móveis egoístas das eli-
tes dirigentes” “sobre necessidades muito mais urgentes e graves”
(FERNANDES, 2008a, p. 100).

Haveria, assim, entre nós, um “desequilíbrio variável” no


desenvolvimento e integração das “esferas culturais e institucionais”
(FERNANDES, 2008a, p. 101). Uma “inércia cultural” (FERNANDES,
2008a, p. 102) coexistiria com a inegável transformação do “sistema
econômico” e do sistema político, ao menos em seus marcos for-
mais. Em clara assimetria com esse quadro estariam as “experi-
ências bem-sucedidas de países europeus e dos Estados Unidos”
(FERNANDES, 2008a, p. 102) e a presença, nestes, de uma “maior
harmonia entre a organização política e as condições nacionais de
existência social” (FERNANDES, 2008a, p. 103).

Em texto de 1959 — Relações culturais entre o Brasil, o


Ocidente e o Oriente —, o contraste é ainda mais categórico. Ao rea-
lizar uma síntese dos “traços da dinâmica da civilização ocidental
do Brasil”, Fernandes (2008b, p. 172) escreve que essa dinâmica se
caracteriza, por um lado, pela “seleção de modelos ideais de com-
portamento, de nível de vida, de organização das instituições, de
aspirações intelectuais ou morais e de reforma social de países como
a França, a Inglaterra, os Estados Unidos, a Alemanha, a Itália etc.”.

SUMÁRIO 283
No entanto, percebe-se “a realização quase sempre parcial, incom-
pleta ou deformada desses modelos, em virtude de as bases econô-
micas, sociais ou culturais de vida não oferecerem, no meio brasi-
leiro, as principais condições requeridas pelo pleno desenvolvimento
normal daqueles modelos” (FERNANDES, 2008b, p. 172).

O mesmo contraste encontra uma formulação lapidar em


1962, nas Reflexões sobre a mudança social no Brasil: “Nós nos
modernizamos por fora e com frequência nem o verniz aguenta o
menor arranhão. É uma modernidade postiça, que se torna temível
porque nos leva a ignorar que os sentimentos e os comportamentos
profundos da quase totalidade das ‘pessoas cultas’ se voltam contra
a modernização” (FERNANDES, 1976, p. 205, grifo do autor).

Como se vê, o uso de palavras e expressões como “dese-


quilíbrio”, “parcialidade”, “incompletude”, “deformação”, “modernidade
postiça” exprime, repetidamente, uma elaboração conceitual que
se faz em contraste com referenciais cognitivos de experiências de
modernidade harmônicas, plenas, completas e bem formadas. O
cristalino enquadramento daquelas passagens no interior da tese da
singular modernidade brasileira implica, também, concebê-la como
uma modernidade inautêntica e desviante (repitamos: deformada),
que assim perdura no tempo em razão da persistência das condi-
ções que permitem a perpetuação de hábitos, disposições, práticas
e representações incongruentes com certos requisitos (teóricos e
normativos) do que seria uma experiência moderna normal.

De modo semelhante, em A integração do negro na socie-


dade de classes (doravante INSC), de 1964, o instrumento analítico
“demora cultural” continua recorrente; constantemente Florestan
nos fala de uma “ordem social competitiva” que não alcançou a
“plena vigência na motivação, na coordenação e no controle” das
“relações raciais” (FERNANDES, 2021, p. 826), de um “desenvolvi-
mento” daquela ordem que “encontrou um obstáculo, está sendo
barrado e sofre deformações estruturais na esfera das relações

SUMÁRIO 284
raciais” (FERNANDES, 2021, p. 827). Trata-se de algo considerado
como uma “anomalia” (FERNANDES, 2021, p. 827) com consequên-
cias dramáticas para negros e negras, mas, de modo amplo, “para
o próprio equilíbrio do sistema, ou seja, para a normalidade do fun-
cionamento e do desenvolvimento da ordem social como um todo”
(FERNANDES, 2021, p. 827).

Ao lado desses aspectos indicadores da operação de uma


concepção linear, ascendente e homogênea de mudança social, que
permite falar em “demora”, ausência de “plena vigência”, “deforma-
ção” e “anomalia”, a INSC também sugere argumentos nos quais a
marca do antigo no novo começa a ser pensada, numa agonística
interna ao pensamento do autor, não só como um sôfrego processo
transitório de ruptura com um passado que insiste em permanecer,
mas como uma articulação possível do presente tendente ao futuro.
Uma das últimas passagens da INSC sugere essa coexistência de
duas lógicas de concepção do tempo histórico-social, uma progres-
siva e homogeneizante e outra, digamos, sobredeterminada e irredu-
tivelmente heterogênea. Frente ao “fato de a desigualdade racial ser
percebida, explicada e aceita socialmente como algo natural, justo
e inevitável”, Florestan escreve, nas mesmas páginas finais da INSC
acima citadas, que a
única fonte dinâmica de influência corretiva irrefreável
vem a ser, portanto, a própria expansão da ordem social
competitiva. Mas isso faz com que a homogeneização do
sistema social dependa de influxos espontâneos que são,
por sua própria natureza, demasiado lentos e instáveis.
Acresce que há um risco evidente e, por isso, previsível.
As tendências descobertas não excluem a possibilidade de
uma conciliação entre as formas de desigualdade inerente
à sociedade de classes e os padrões herdados de desi-
gualdade racial (FERNANDES, 2021, p. 827, grifo do autor).

Na passagem são perceptíveis elementos que tanto reforçam o


imaginário que entrelaça singularidade, inautenticidade e desvio, como
apontam para uma outra forma de pensar a singularidade brasileira.

SUMÁRIO 285
Esta é colocada nos mesmos termos contrastivos: é a partir de um
modelo de “ordem social competitiva” — modelo elaborado como
uma organização conceitual de experiências históricas concretas,
os contextos “originais” de emergência daquela ordem — que é
possível analisar os impasses de uma formação social em transi-
ção como a brasileira.

Formação na qual a ordem social competitiva se expande e


se intensifica, mas em ritmo lento, sem sobressaltos disruptivos e
revolucionários, fortemente marcada por práticas e representações
típicas de um Antigo Regime estamental-escravocrata, de modo que,
na dialética entre contínuo e descontínuo nos processos de mudança
social, o primeiro termo tende a firmar-se como momento prepon-
derante. No entanto, nesse quadro, não estaríamos apenas frente à
persistência do arcaico como desvio inautêntico e da consequente
esperança de que algum dia o caminho certo da modernização seja
(re)encontrado, mas diante de uma forma de conciliação particular
entre os dois tipos (estamental-escravocrata e competitivo, raça e
classe)93 no interior de uma formação social refratária a rupturas
e mudanças drásticas.

UMA SINGULARIDADE PARA ALÉM


DO DESVIO E DA INAUTENTICIDADE
É essa outra forma de pensar a singularidade brasileira que,
a meu ver, se consolida em um texto como Sociedade de classes
e subdesenvolvimento (doravante SCS), original de 1967, no qual, a
partir dos conceitos de dupla polarização, capitalismo dependente e
situação heteronômica, elabora-se uma “teoria sociológica do subde-
senvolvimento econômico” (FERNANDES, 1976, p. 377) fortemente

93 Para um aprofundamento ver “Florestan Fernandes e o dilema racial brasileiro” (COSTA et al., 2021).

SUMÁRIO 286
antieconomicista94 e antiteleológica, dado que o subdesenvolvimento
é compreendido não como etapa, desvio ou anomalia do desenvolvi-
mento, mas como possibilidade normal de formação no interior das
dinâmicas globais do capitalismo.

Pouco se altera no raciocínio contrastivo. O modelo “clássico”


de desenvolvimento autônomo é sobretudo os Estados Unidos da
América. Lá, as forças engendradas pela emancipação política e a
tendência à universalização dos “princípios capitalistas de organi-
zação do comportamento econômico” (FERNANDES, 2008c, p. 34)
levaram à “neutralização e a superação definitiva das estruturas
coloniais pela ordem social competitiva emergente” (FERNANDES,
2008c, p. 35). Aqui, os processos de descolonização e incorporação
do espírito capitalista
se revelaram insuficientes para promover o mesmo efeito,
o que redundou na formação de uma economia nacional
duplamente polarizada: um setor de exportação de pro-
dutos primários, no qual a vigência dos princípios capi-
talistas só é plena, em regra, no nível da comercialização
e no qual se concretiza ao máximo a dependência em
relação ao exterior; e um setor interno de produção, cir-
culação e consumo de bens, ainda sujeito a fortes influxos
externos, mas impulsionado por tendências irreversíveis
de consolidação da economia de mercado capitalista
existente (FERNANDES, 2008c, p. 35).

Não há dúvidas de que se trata do moderno capitalismo:


“uma sociedade subdesenvolvida, que se encontre no estágio do
capitalismo dependente, não só possui uma economia de mercado
capitalista, no sentido moderno. A sua própria ordem econômica
é capitalista” (FERNANDES, 2008c, p. 36); no entanto, “destituída
de autossuficiência e possuidora, no máximo, de uma autonomia
limitada” (FERNANDES, 2008c, p. 36). Isso “suscita uma realidade

94 O capitalismo é entendido como “uma complexa realidade sociocultural, em cuja formação e


evolução histórica concorreram vários fatores extraeconômicos (do direito e do Estado nacional à
filosofia, à religião, à ciência e à tecnologia)” (FERNANDES, 2008c, p. 23).

SUMÁRIO 287
histórica nova e inconfundível” (FERNANDES, 2008c, p. 36): “uma
economia de mercado capitalista que, ao crescer, corre o risco de se
tornar ainda mais dependente” (FERNANDES, 2008c, p. 37).

Logo após tal enunciação exemplar da tese da singularidade


brasileira, Florestan escreve: “Vistos à luz do modelo original”, ou seja,
dos modelos clássicos de gênese e desenvolvimento do capitalismo,
esses fatores (estruturas e dinamismos condicionados
pela situação heteronômica das economias nacionais
dependentes) podem parecer “distorções”, “carências” ou
“deficiências”. Encarados em função dos dados, de fato,
porém, eles traduzem exatamente o que as coisas são e
devem ser: fenômenos normais, que nascem da conjuga-
ção do ‘capitalismo moderno’ com o ‘mercado mundial’ a
que ele deu origem (FERNANDES, 2008c, p. 37).

O mesmo ponto é reforçado páginas à frente:


a sociedade capitalista subdesenvolvida não é uma
redução patológica daquele tipo social [avançado, desen-
volvido], considerado em determinado estágio do seu
desenvolvimento. Ao contrário, ela constitui, através de
suas diversas variantes, o que se poderia entender como
manifestação normal daquele tipo, nas condições que
deram origem e mantiveram o capitalismo dependente
(FERNANDES, 2008c, p. 51).

Tal compreensão do capitalismo dependente ou heteronô-


mico como um fenômeno normal — quando pensado a partir das
dinâmicas globais do capitalismo e das diferenças e assimetrias
produzidas e mantidas em seu bojo — leva também, como ampla-
mente salientado pela fortuna crítica, a uma outra forma de pensar
a relação entre o antigo e o novo que, como vimos, já começava a
ser sugerida na INSC: diferente de uma deformação ou uma anoma-
lia, a presença e persistência de atributos e relações ditos pré-mo-
dernos ou pré-capitalistas passa a ser visto sob o prisma de seus
papéis no interior da reprodução do próprio capitalismo dependente.
A passagem é consagrada:

SUMÁRIO 288
o arcaico e o moderno nem sempre entram em choque
decisivo, que termine com a eliminação das estrutu-
ras repudiadas; estabelecem-se várias espécies de
fusões e de composições, que traduzem os diferentes
graus de identificação dos homens com a herança tra-
dicional e com a modernização (FERNANDES, 2008c,
p. 53, grifos do autor).

Os trechos acima evidenciam uma inflexão importante no


pensamento de Florestan Fernandes no que diz respeito ao problema
deste artigo: se a singularidade brasileira (e de alguns países latino-
-americanos) continua a ser pensada a partir de um contraste com
modelos “clássicos” de capitalismo e modernização, tal contraste
não é mais exatamente concebido como norma e desvio, autêntico
e inautêntico. A rigor, há elementos nessa obra que apontam para a
compreensão da “modernidade central” como tão singular como a
“modernidade periférica”, sendo cada uma dessas singularidades tão
“normal” quanto a outra e uma existindo em uma relação fundamen-
tal com a outra. O que se depreende do texto são as dinâmicas de
uma modernidade capitalista global com padrões estruturais distin-
tos e hierarquizados.

Evidentemente, é um certo modelo de autonomia que é


utilizado para definir a heteronomia, mas esse dualismo não é mais
concebido à maneira de desvio, inautenticidade e falta. A razão dua-
lista (OLIVEIRA, 2013), que deixa de operar ao pensar a relação entre
antigo e novo, arcaico e moderno, no interior de uma formação social
específica como a brasileira, é projetada para pensar dinâmicas glo-
bais — não mais o arcaico/moderno no Brasil, mas centro/periferia,
autonomia/dependência no globo. No entanto, esses dois últimos
dualismos não são articulados nos termos do primeiro (pois o capita-
lismo heteronômico e periférico é tão moderno quando o capitalismo
desenvolvido dos países centrais), nem são pensados como boa
formação/deformação, plenitude/ausência, normalidade/anomalia.

SUMÁRIO 289
Sem de modo algum pretender reduzir a riqueza e as ino-
vações trazidas por uma obra como A revolução burguesa no Brasil
(doravante RBB), eu diria que os aspectos teóricos acima salien-
tados se mantêm e ganham maior amplitude investigativa: não se
trata apenas de pensar os atributos do capitalismo dependente e
subdesenvolvido em um permanente contraste com um modelo de
capitalismo autônomo e desenvolvido (a razão dualista projetada
em nível global), mas de contrapor explicitamente, aprofundando
os interesses de uma sociologia histórico-comparativa, um “modelo
democrático-burguês” (FERNANDES, 2006, p. 340), “liberal-demo-
crático” ou “clássico” (FERNANDES, 2006, p. 380, grifo do autor), que
refletiria os processos históricos inglês, francês e estadunidense,
ao “modelo autocrático-burguês” (FERNANDES, 2006, p. 337, p.
374, p. 424), formulado a partir da experiência brasileira. Este, como
“reflexo invertido” (FERNANDES, 2006, p. 382) do primeiro modelo,
se caracterizaria pela “forte dissociação pragmática entre desenvol-
vimento capitalista e democracia” ou, em fórmula positiva, pela “forte
associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia”
(FERNANDES, 2006, p. 340, grifos do autor).

No modelo democrático-burguês conforma-se um modelo


de transformação capitalista que se mostra capaz de incorporar a
mudança social e as pressões das classes subalternas à sua dinâmica
intrínseca e aos marcos institucionais, permitindo certa universali-
zação de direitos, liberdades e serviços, e normalizando o dissenso
e o conflito entre correntes ideológicas amplamente heterogêneas
nos marcos consensuais do jogo plural e democrático. No modelo
autocrático-burguês, temos, conforme a síntese de Gabriel Cohn, um
modelo de transformação capitalista caracterizado pela “concentra-
ção exclusiva e privatista do poder”, um
regime... marcado pela concentração de poder numa
classe, que no limite converte ‘o Estado nacional e demo-
crático em instrumento puro e simples de uma ditadura
de classe preventiva’ após tê-lo desvinculado da ‘clássica

SUMÁRIO 290
democracia burguesa’ e atrelado a uma ‘versão tecnocrá-
tica da democracia restrita’ que funciona como uma ‘demo-
cracia de cooptação’ (COHN, 2004, p. 404, grifos do autor).

De modo semelhante à chamada dupla polarização em SCS,


a conformação do capitalismo dependente e do modelo autocrático-
-burguês repousa, em última instância, na posição específica que o
Brasil vai assumindo nas dinâmicas e fases do capitalismo global. Mais
precisamente, o capitalismo dependente é um capitalismo duplamente
articulado: com as “economias capitalistas centrais” por meio da espe-
cialização primário-exportadora e internamente pela “articulação do
setor arcaico ao setor moderno” (FERNANDES, 2006, p. 283).

Logo, a articulação interna entre arcaico e moderno é pensada


como a outra face da articulação à economia global mais “avançada”.
Não se trata definitivamente de uma modernidade capitalista faltosa
ou parcial, anômala ou deformada, inautêntica ou desviante. Como
em SCS, o capitalismo dependente e o modelo autocrático-burguês
são tomados como um padrão normal de “desenvolvimento” capita-
lista no interior de um sistema global que, por fundamento, produz
padrões diferenciados e hierarquizados de interrelação entre setores
(econômicos, regionais e nacionais).

Tomando em conjunto SCS e RBB, uma implicação funda-


mental da compreensão do subdesenvolvimento, da dependência e
do modelo autocrático-burguês como manifestações normais no inte-
rior do capitalismo como sistema global é, ecoando Rosa Luxemburgo,
a intelecção teórica, desde a periferia, de que o capitalismo não sobre-
vive sem “acumulação originária” ou, falando com Harvey (2005), sem
expropriação e despossessão, sem ampliar continuamente o seu cir-
cuito de contradições através de práticas espoliativas e de pilhagem.
Implica também, na contramão das experiências de “capitalismo demo-
crático” (STREECK, 2011) e de “compromisso keynesiano” nos países
centrais, apontar como padrões autocráticos e violentos, diretamente
coercitivos de expropriação e exploração, são meios típicos e normais
do capitalismo, para além do seu contexto genético ou primitivo.

SUMÁRIO 291
Ainda sobre SCS e RBB, gostaria de chamar atenção não
só para a amplamente enfatizada superação da razão dualista, ao
conceber arcaico e moderno não como um dualismo, mas como
uma articulação estrutural; parece-me que Fernandes sugere silen-
ciosamente mais do que isso. Sugere, eu diria, uma detida reflexão
sobre se a própria terminologia do “arcaico” e do “moderno” é útil;
se o uso desses termos ainda não ressoa pressupostos teleológicos,
lineares, progressivos, etapistas de temporalidade histórico-social.
Afinal, como pode ser arcaico aquilo que é central na estruturação
e ativação de processos sociais presentes e tendentes a permane-
cer? Se estamos tratando da “contemporaneidade” de elementos da
realidade que têm uma emergência histórica heterogênea, por que
continuamos a chamar essa “contemporaneidade” em termos que
evocam uma concepção linear de tempo?95

Há um amplo programa de pesquisa em torno do que


Florestan (2015, p. 37) chama, em texto original de março de 1971,
de “contemporaneidade de situações históricas não coetâneas”. Algo
que, me parece, nos permitiria ir além da terminologia e do imaginá-
rio da “persistência do passado”, do “peso do atraso” etc.

UM FLORESTAN PARA ALÉM DA TESE


DA SINGULARIDADE BRASILEIRA
Como propus acima, tanto em SCS como em RBB a crítica
da razão dualista de um ponto de vista interno à formação social bra-
sileira é feita através de uma projeção do dualismo ao nível global:

95 Sugestão que também atravessa o clássico ensaio de Francisco de Oliveira publicado em 1972:
“o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o
chamado ‘moderno’ cresce e se alimenta da existência do ‘atrasado’, se se quer manter a termino-
logia” (OLIVEIRA, 2013, p. 32).

SUMÁRIO 292
centro/periferia, autonomia/heteronomia, modelo democrático/
modelo autocrático são dualismos complementares para pensar
experiências sociais que se configuram relacionalmente na constitui-
ção do mercado mundial, mas que são conceitualizadas como uma
assimetria, como em um “reflexo invertido”, para utilizar novamente a
plástica expressão de Fernandes (2006, p. 382).

Ao mesmo tempo que exemplifica a hipótese de uma crítica


interna da razão dualista através de sua projeção no cenário global, a
RBB também traz elementos que tensionam e relativizam tal dualiza-
ção do mundo. Se a mão de ferro da ditadura empresarial-militar foi
utilizada em 1964 para consolidar o capitalismo monopolista no Brasil
sem o “perigo” da pressão popular e da demanda por reformas “clás-
sicas” vindas de um ensaio natimorto de social-democracia ao sul do
Equador, os anos 1970 (mais particularmente 1973, quando Florestan
escreve os capítulos finais da RBB) já apontavam como a autocracia
burguesa não era uma degradante peculiaridade periférica.
Não estamos na era das ‘burguesias conquistadoras’.
Tanto as burguesias nacionais da periferia quanto as
burguesias das nações capitalistas centrais e hegemô-
nicas possuem interesses e orientações que vão noutra
direção. Elas querem: manter a ordem, salvar e fortalecer
o capitalismo, impedir que a dominação burguesa e o
controle burguês sobre o Estado nacional se deteriorem.
Semelhante reciprocidade de interesses e de orientações
faz com que o caráter político do capitalismo dependente
tenha duas faces, na verdade interdependentes. E, ainda,
com que a Revolução Burguesa ‘atrasada’, da periferia,
seja fortalecida por dinamismos especiais do capitalismo
mundial e leve, de modo quase sistemático e universal,
a ações políticas de classe profundamente reacionárias,
pelas quais se revela a essência autocrática da domina-
ção burguesa e sua propensão a salvar-se mediante a
aceitação de formas abertas e sistemáticas de ditadura
de classe (FERNANDES, 2006, p. 343, grifo do autor).

SUMÁRIO 293
Logo, se Florestan sustenta o dualismo entre “modelo demo-
crático-burguês” e “modelo autocrático-burguês” para analisar a
longa duração que é o desenvolvimento desigual e combinado do
capitalismo no colossal palco do mercado mundial, a passagem
indica um cessar daquela assimetria cognitiva que perpassa toda
a RBB. Assim, não se trata mais, naquele contexto, de um “reflexo
invertido” ou de um dualismo que opõe modelos de transformação
capitalista segundo qualidades ou essências irredutíveis.

Após ser preso e compulsoriamente aposentado como


desdobramento do Golpe de 1964, após a experiência de exílio no
Canadá e escrevendo sobre o Brasil da primeira metade dos anos
1970, Fernandes sugere uma tendência de generalização global das
formas autocráticas de dominação. A autocracia burguesa no Brasil,
e sua explícita manifestação como uma ditadura de classe susten-
tada pela caserna, não mais aparece como o avesso da democra-
cia burguesa nos países centrais (como uma diferença qualitativa
essencial), mas como um “a mais”, como uma sobreposição autori-
tária presente em uma burguesia que visa não só “consolidar vanta-
gens de classe relativas” ou “manter privilégios de classe”, mas que
“luta, simultaneamente, por sua sobrevivência e pela sobrevivência
do capitalismo” (FERNANDES, 2006, p. 345).

Assim, se SCS e RBB desatrelam a singularidade brasileira


(que continua a ser pensada a partir de dualismos projetados em nível
global) do imaginário da inautenticidade e do desvio, a última obra
apresenta elementos que permitem um movimento teórico para além
da própria tese da singularidade brasileira. Isso é feito quando é apon-
tada, na conjuntura dos anos 1970, uma tendência de generalização
global das formas autocráticas de dominação burguesa. O que é uma
sugestão pontual, e um tanto intempestiva, no interior de uma obra
que opera continuamente com o contraste entre modelos de revolu-
ção burguesa (democrático-burguês e autocrático-burguês), ganha
um caráter sistemático e central em Apontamentos sobre a “Teoria do
Autoritarismo”, “opúsculo” das “anotações de um curso sobre a ‘Teoria
do Autoritarismo’” oferecido na PUC-SP “em parte do último trimestre
de 1977” (FERNANDES, 2019, p. 33) e publicado originalmente em 1979.

SUMÁRIO 294
O próprio mote do curso, e do livro, é a crítica a um tipo de
razão dualista que saturava a ciência política de então96. Mais pre-
cisamente, certa compulsão a enquadrar a realidade a partir de
uma “tipologia dicotômica”, plena de “inconsistências”, que opõe
“sistemas autoritários” e “sistemas democráticos”, “democracia
(liberal)” e “democracia (autoritária)”, “democracia” e “totalitarismo”
(FERNANDES, 2019, p. 44-45)97. Um conceito de autoritarismo que
se baseie em tal tipologia dicotômica “circunscreve o horizonte inte-
lectual do analista político”, pois rejeita, a priori, premissas básicas: a
compreensão de que “a democracia típica da sociedade capitalista é
uma democracia burguesa, ou seja, uma democracia na qual a repre-
sentação se faz tendo como base o regime eleitoral, os partidos, o
parlamentarismo e o Estado constitucional”; de que a esta demo-
cracia burguesa “é inerente forte desigualdade econômica, social e
cultural com uma alta monopolização do poder pelas classes pos-
suidoras-dominantes e por suas elites”; de que nesta democracia a
“liberdade e a igualdade são meramente formais, o que exige, na teo-
ria e na prática, que o elemento autoritário seja intrinsecamente um
componente estrutural e dinâmico da preservação, do fortalecimento
e da expansão do ‘sistema democrático capitalista.’” (FERNANDES,
2019, p. 45, grifos do autor).

96 Embora o arsenal crítico também se volte para um passado mais distante (E. Cassirer; V. Pareto,
Ortega y Gasset, H. Rickert, R. Michels, entre outros), os alvos de Florestan são sobretudo autores e
obras dos anos 1950, 1960 e 1970: Totalitarian dictatorship and totalitarianism, de Carl J. Friedrich e
Zbigniew K. Brzezinskí; The case of Spain, de J. Linz, incluído na coleção Regimes and oppositions,
organizada por R. Dahl; Uma teoria de política comparada, de G. A. Almond e C. Bingham Powell Jr.;
Power and society: a framework for political inquiry, de Harold D. Lasswell e Abraham Kaplan; Uma
teoria da análise política, de David Easton. A contundente crítica ao trabalho de Gabriel A. Almond
(e Powell Jr.) sugere um profundo incômodo de Florestan com a chamada teoria da cultura política,
que se baseia em um “modelo liberal democrático de cidadania” (RENNÓ, 1998, p. 73) para analisar/
tipificar os sistemas políticos e as ditas transições para a democracia. Teoria essa que tem como
marco fundador a obra The civic culture, de G. Almond e Sidney Verba, publicada em 1963 (para um
balanço, ver RENNÓ, 1998).
97 Para um esforço recente — inspirado na teoria dos sistemas sociais e em diálogo com o trabalho
de Sergio Tavolaro — de pensar o autoritarismo como constitutivo da modernidade política global,
ver Dutra e Ribeiro (2021).

SUMÁRIO 295
Sob citada influência dos trabalhos de Georg Lukács, Franz
Neumann, Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Max Horkheimer e em
polêmica frontal com uma ciência política que sob a bata da cienti-
ficidade “confere um caráter racional, definitivo e eterno ao modelo
de democracia que resultou do capitalismo” e condena toda “demo-
cracia popular” como “intrinsecamente aberrante e corrompida”,
Florestan (2019, p. 48-9, grifos do autor), do seu modo, aponta como
os regimes democrático-liberais são não só saturados, mas sustenta-
dos por formas de sociabilidade e marcos institucionais autoritários.

A crítica ao dualismo entre sistemas autoritários (toda e


qualquer experiência social distinta da democracia liberal) e siste-
mas democráticos (cujos fundamentos autoritários, hierarquizantes
e desiguais são tosca ou sutilmente borrados) implica, a meu ver,
uma não explicitada mas significativa (auto)crítica em relação ao
dualismo dos modelos de transformação capitalista presente na RBB
(democrático-burguês no centro e autocrático-burguês na periferia).
Do micro ao macro, a sociedade capitalista contém toda
uma rede de relações autoritárias, normalmente incorpo-
radas às instituições, estruturas, ideologias e processos
sociais, e potencialmente aptas a oscilar em função de alte-
rações do contexto (ou, mesmo, de conjunturas adversas),
tendendo a exacerbar-se como uma forma de autodefesa
dos interesses econômicos, sociais e políticos das classes
possuidoras e dominantes (ao nível institucional ou ao nível
global) (FERNANDES, 2019, p. 51-52, grifos do autor).

No contínuo do argumento, Fernandes (2019, p. 52-53, grifos


do autor) salienta “dois aspectos que incrustam o autoritarismo na
normalidade da vida burguesa e em suas crises”: não há domina-
ção burguesa sem “uma mão de ferro para impor a obediência nas
‘condições normais da ordem’ e, em especial, para dar labilidade
ao Estado capitalista, que não pode enfrentar as ‘condições de
emergência’ sem um enrijecimento rápido e crescente”. É sobre-
tudo em tais condições de emergência que a latência autoritária
da dominação burguesa, garantida por meio do Estado capitalista,

SUMÁRIO 296
se manifesta, revelando “que ao monopólio da dominação burguesa
corresponde um monopólio do poder político estatal: sem nenhuma
mágica, o Estado de exceção brota do Estado democrático, em que
está embutido” (FERNANDES, 2019, p. 52-53). Tal oscilação entre
latência e manifestação de tendências autoritárias intrínsecas ou o
“contraste entre autoritarismo e democracia”, porém, não se vincula
de modo algum “à pressão burguesa”, enfatiza Fernandes (2019, 53),
para quem a expansão do “elemento democrático” se ampara, pelo
contrário, “nos interesses e situações de classe da maioria”, quando
“as forças antiburguesas ganham saliência”.

Enfatizar, com um martelo, a normalidade do autoritarismo


em qualquer quadrante onde há capitalismo e dominação burguesa,
não faz o Florestan de fins dos anos 1970 abandonar uma caracteriza-
ção das periferias, em especial na América Latina, como uma forma
exacerbada de autoritarismo. O “subproduto essencial” da “revolução
burguesa em atraso”, escreve Florestan (2019, p. 82-83, grifo do autor),
é “uma ditadura de classes aberta e um Estado autocrático-burguês
(o qual não é apenas uma imagem invertida do Estado democrático-
-burguês, porém a forma que ele deve assumir como instrumento de
dominação externa e de um despotismo burguês reacionário)”.

Essa passagem é de particular importância, quando lida a


partir da crítica à tipologia dicotômica entre sistemas autoritários e
sistemas democráticos, pois revela não só que formas autocráticas e
democráticas de dominação burguesa se constituem em relação no
nível global, algo amplamente enfatizado na literatura sobre impe-
rialismo e dependência, mas também revela que a autocracia bur-
guesa, como venho argumentando, não é uma qualidade essencial,
ou melhor, uma singularidade irredutível das revoluções burguesas
periféricas ou da revolução burguesa no Brasil, mas a manifestação
de tendências latentes à própria ordem social capitalista.

O que gostaria de enfatizar é que, em fins dos anos 1970, Florestan


revê de forma incisiva a sua caracterização mais acentuadamente
dualista das formações modernas/capitalistas do centro e da periferia.

SUMÁRIO 297
A partir de uma crítica da ciência política, o seu interesse é de, pelo
contrário, acentuar as tendências autoritárias intrínsecas à dominação
burguesa (formalmente democrática ou não) e, como já vinha fazendo
desde a RBB, apontar uma tendência de escancaramento ou generali-
zação de um padrão autocrático de dominação a nível global.

Como bem se sabe, a virada dos anos 1970 para os anos


1980 é fortemente marcada pela Guerra Fria, pela crítica dos apa-
ratos burocráticos do Estado-Providência, pelos ecos das lutas
anticoloniais, de 1968, da contracultura, pela ressaca e ampla crí-
tica à carnificina fracassada dos EUA no Vietnã e pela persistência
de ditaduras militares ao Sul. É também ao olhar aquela virada de
décadas que, alguns bons anos depois, autores como Duménil e
Lévy, Chesnais e David Harvey vão indicar um ponto de inflexão
de uma perspectiva global. Para o último, os anos 1978-1980 —
entenda-se Paul Volcker no FED ainda no governo Carter, Margaret
Thatcher como primeira-ministra do Reino Unido e Ronald Reagan
eleito presidente nos EUA — podem ser pensados “como um ponto
de ruptura revolucionário na história social e econômica do mundo”
(HARVEY, 2008, p. 11).

Tamanha importância é dada a tal virada porque é nesse


período que o chamado neoliberalismo, que já vinha de longe acu-
mulando forças teóricas, ideológicas e práticas, conforma-se, frente à
crise do Welfare State e o declínio acelerado do socialismo realmente
existente, como forma hegemônica de regulamentação e discipli-
namento de organismos internacionais, Estados, empresas e indiví-
duos ou, a partir do marco foucaultiano, como nova razão do mundo
(DARDOT e LAVAL, 2016).

E, brevemente, como esses autores concebem o neolibera-


lismo? “Pode-se definir o neoliberalismo como uma configuração de
poder particular dentro do capitalismo, no qual o poder e a renda
da classe capitalista foram restabelecidos depois de um período
de retrocesso” (DUMÉNIL e LÉVY, 2007, p. 2, grifo dos autores).

SUMÁRIO 298
Para Harvey (2008, p. 26), “a neoliberalização foi desde o começo um
projeto voltado para restaurar o poder de classe”, “os dados sugerem
vigorosamente que a virada neoliberal está de alguma maneira e em
algum grau associada à restauração ou reconstrução do poder das
elites econômicas”. “Nascida da liberalização e da desregulamenta-
ção, a mundialização liberou... todas as tendências à polarização e à
desigualdade que haviam sido contidas, com dificuldades, no decor-
rer da fase precedente” (CHESNAIS, 2001, p. 12).

Ao ler a literatura crítica sobre o neoliberalismo escrita a par-


tir da Europa e dos Estados Unidos, é perceptível um significativo
consenso ao concebê-lo como um projeto econômico, político, ide-
ológico e estratégico que busca desatrelar os processos de valoriza-
ção e de geração de lucro de qualquer restrição material (por meio
da financeirização), social (por meio do desmonte das organizações
do trabalho) e política (por meio do ataque às regulamentações de
corte keynesiano). O neoliberalismo aparece simultaneamente como
reação contra as restrições e os “custos” do Welfare e como afirma-
ção de processos diversos que favorecem processos de privatização,
monopolização, elevação da taxa de lucros (catapultados por meio
da desregulamentação, ampliação e intensificação das dinâmicas de
valorização do capital portador de juros e fictício) e extrema concen-
tração de riquezas nas mãos de poucos.

Tal reação afirmativa encontraria uma boa definição — e


não creio que os críticos do neoliberalismo a isto se oporiam —
nas fórmulas do modelo autocrático-burguês: “forte dissociação
pragmática entre desenvolvimento capitalista e democracia”, “forte
associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocra-
cia” (FERNANDES, 2006, p. 340, grifos do autor), “concentração
exclusiva e privatista do poder” (COHN, 2004, p. 404). O conhecido
Relatório da Comissão Trilateral de 1975, The crisis of democracy,
não é precisamente um manifesto sobre a intolerância do capitalismo
em relação à democracia engendrada pelo liberalismo embutido?98

98 Para uma excelente análise crítica do Relatório The crisis of democracy, ver especialmente o capí-
tulo sexto de A sociedade ingovernável (CHAMAYOU, 2020).

SUMÁRIO 299
Também me parece plausível afirmar que o neoliberalismo
se enquadraria bem no que Florestan chama, ao falar do Brasil sob
botas a partir de 1964, de “reação societária às pressões dentro da
ordem” motivada por “uma forma ultravulnerável de temor de classe”
(FERNANDES, 2006, p. 383). No caso brasileiro, aquela “reação
societária” se deu visando garantir a consolidação do capitalismo
monopolista industrial sufocando, precoce e preventivamente, os
descontroles possíveis da organização popular e um ensaio de
keynesianismo nos nossos tristes trópicos. No chamado “neoli-
beralismo”, que segundo Duménil e Lévy (2007, p. 3) foi “um golpe
político cujo objetivo era a restauração” dos “privilégios” políticos e
econômicos da classe capitalista, a “reação societária” teve que de
fato atacar uma experiência de quase 30 anos de efetivo poder, em
limites nacionais, das classes trabalhadoras por meio de sindicatos,
partidos social-democratas, socialistas, trabalhistas, comunistas e no
interior do próprio Estado. Em outras palavras, a autocracia neoli-
beral teve que efetivamente desvirtuar e suprimir as estruturas do
“capitalismo democrático” (STREECK, 2011), enquanto a autocracia
burguesa brasileira conceituada por Florestan é, em primeiro plano,
uma aborteira de pulsões democráticas.

Ao apontar afinidades e diferenças entre autocracia e neo-


liberalismo, não se trata apenas, mais uma vez, de colocar o dedo
na “fratura brasileira do mundo” (ARANTES, 2004) e defender a
acuidade dos conceitos de Fernandes para ler o tempo presente,
mas de indicar como o próprio Fernandes estava atento para aquela
transição epocal, o que o leva a superar o que podemos chamar de
razão welfarista99, operante quando a singularidade autocrática do
capitalismo dependente era pensada em um contraste decisivo e
assimétrico com o modelo democrático-burguês. Em síntese, entre a
RBB e os Apontamentos, Florestan deixa de ver o padrão autocrático
de dominação capitalista como uma excepcionalidade.

99 A crítica da razão welfarista é um mote central das inquietações compartilhadas e das conversas
com os queridos amigos Alexandre Pimenta e Edemílson Paraná.

SUMÁRIO 300
É digno de nota que certa idealização do capitalismo hege-
mônico/desenvolvido ou do modelo democrático-burguês (a partir
do qual é desenhado o reflexo invertido do capitalismo dependente
e da autocracia burguesa) se faça presente principalmente em tex-
tos dos anos 1950, 1960 e início dos 1970. Exatamente os anos em
que o Welfare State e um significativo desenvolvimento da tríade de
direitos civis, políticos e sociais (MARSHALL, 1967) mostravam-se
consolidados como um caminho de controle das forças socialmente
desagregadores dos mercados, se deixados à própria sorte.

Trata-se de um desafiador problema de sociologia do


conhecimento compreender como uma experiência social parti-
cularmente excepcional de um ponto de vista temporal (na longa
duração do capitalismo) e espacial (restrita a um conjunto exíguo
de países, sobretudo europeus, se comparado à população e à
diversidade de estados-nação ao redor do globo) pôde converter-
-se em marco cognitivo e mesmo em modelo teórico para pen-
sar padrões de desenvolvimento do capitalismo e das formas de
sociabilidade modernas.

Aquém dessa ampla agenda de pesquisa, o que se busca


enfatizar em específico neste artigo é que, na obra de Florestan, a
sua localização no interior da “tese da singularidade brasileira” e
o seu ir além desta envolve, ao longo dos anos 1970, uma consci-
ência aguda do elemento autoritário intrínseco à dominação bur-
guesa e da generalização das tendências autocráticas imanentes
— latentes ou manifestas — ao capitalismo. Isso implica o correlato
abandono de qualquer traço de idealização do padrão de transfor-
mação capitalista nos países de revolução burguesa “originária”.

Inclusive os frágeis fundamentos do Welfare State e sua


possível derrocada são explicitamente trabalhados por Florestan
em Apontamentos. Isso aparece em um momento do texto em que
se discute um endurecimento generalizado da dominação bur-
guesa ameaçada por si mesma — “ao atingir o máximo de poderio,

SUMÁRIO 301
condena-se à extinção” (FERNANDES, 2019, p. 98) — e por forças
anticapitalistas. O império do capital acossado é o império da “con-
trarrevolução em escala mundial”, o que faz com que “os mecanismos
de defesa da ordem” tornem-se “igualmente repressivos e opressivos
— ao nível da empresa, da sociedade global e das relações interna-
cionais entre nações capitalistas desiguais” (FERNANDES, 2019, p.
98-99, grifo do autor). Florestan então escreve, como quem responde
a uma possível objeção:
Ao que parece, o chamado “pluralismo” é possível no
centro e permite conciliar a democracia constitucional,
representativa e parlamentar com o “emburguesamento”,
a cooptação institucionalizada direta e indireta das
demais classes. Essa corrupção organizada e profunda
possui limites e eles se acham no próprio eixo elementar
da propriedade privada e do capitalismo privado. Uma
oscilação maior na direção do Welfare State e das fun-
ções de legitimação do Estado capitalista forçará, sem
dúvida, um desequilíbrio fatal entre os dois tipos de fun-
ção (FERNANDES, 2019, p. 99, grifo do autor).

Tamanha lucidez novamente dá ensejo a um cotejamento


com a literatura crítica do neoliberalismo, para a qual este novo
regime de acumulação, que emerge a partir da completa ruptura e
esgarçamento do chamado pacto capital-trabalho em seletos paí-
ses do Norte, significa algo muito próximo da predominância vio-
lenta do “eixo elementar da propriedade privada e do capitalismo
privado”, e a reorientação radical dos Estados a partir do mesmo.
A citação também é suficientemente clara para ilustrar uma tomada
de consciência aguda, no trabalho de Florestan, de que não se pode
tomar o capitalismo democrático (modelo democrático-burguês,
em suas palavras) como norma (histórica ou conjuntural) a partir da
qual seria possível traçar exceções. Em última análise, a partir de
um recorte mais compreensivo (temporal e espacial) da história do
capitalismo, os laços entre capitalismo e autocracia mostram-se bem
mais recorrentes e nada excepcionais.

SUMÁRIO 302
CONCLUSÃO
Quando lido através das lentes da “tese da singulari-
dade brasileira”, pode-se dizer que Fernandes passa por três
momentos fundamentais:

I) Um primeiro momento compreende textos dos anos 1950


e início dos 1960, nos quais uma terminologia do “desequilíbrio”, da
“parcialidade”, da “incompletude”, da “deformação” e da “anomalia”
para caracterizar a “modernidade postiça” brasileira indica um pleno
enquadramento no imaginário que compreende o Brasil como uma
singularidade inautêntica e desviante, quando comparada a modelos
originários e plenos de modernidade.

II) Um segundo momento, que tem A integração do negro na


sociedade de classes como uma obra de transição e que se conso-
lida em Sociedade de classes e subdesenvolvimento e A revolução
burguesa no Brasil, é caracterizado tanto por uma forma peculiar de
pensar a singularidade brasileira como por tensões e sugestões para
além da singularidade.

Por um lado, a formulação dos conceitos de capitalismo depen-


dente, de situação heteronômica, de dupla polarização/articulação
e de modelo autocrático-burguês continuam a exprimir esforços de
demarcar a singularidade do capitalismo e da modernidade no Brasil.
Essa singularidade, em um significativo deslocamento, deixa, con-
tudo, de ser pensada a partir de uma semântica da falta, da inau-
tenticidade e do desvio, mas como um padrão de transformação
capitalista no interior de um sistema global produtor de diferenças,
assimetrias e hierarquias setoriais, nacionais e regionais: subdesen-
volvimento e desenvolvimento, autonomia e heteronomia, hegemo-
nia e dependência são pares complementares, e a articulação entre
“arcaico” e “moderno” no interior de situações heteronômicas nada
mais é do que a outra face, interna, de uma integração subordinada
ao mercado mundial. No entanto, como se vê, a busca de superar
a “razão dualista” para pensar os dilemas nacionais (e regionais)

SUMÁRIO 303
é realizada através de uma projeção do dualismo para o contexto
global, consolidando certo léxico binário da dependência/autono-
mia, modelo autocrático/modelo democrático, periferia/centro.

Por outro lado, notavelmente em A revolução burguesa no


Brasil, Florestan sugere, pensando o mundo nos anos 1970, uma
tendência de generalização de formas autocráticas de dominação
burguesa no centro e na periferia.

III) Em Apontamentos sobre a “Teoria do Autoritarismo”,


aquela sugestão converte-se em mote central e objeto de detida
reflexão. Em um estreito diálogo com a teoria crítica, mas também
com pensadores radicais como Frantz Fanon, Florestan se con-
centra em demonstrar, a partir de uma crítica da ciência política do
seu tempo, como o autoritarismo é um elemento intrínseco a toda e
qualquer dominação burguesa, que se retrai a um estado de latên-
cia quando o elemento democrático ganha expansão por meio da
organização e pressão de forças antiburguesas, e que se manifesta
em toda a brutalidade como reação a essa pressão e em momen-
tos de crise. Escrevendo em fins dos anos 1970, é principalmente a
manifestação das formas autocráticas de dominação burguesa em
todo o globo que são salientadas por Florestan, que inclusive aponta
para uma possível derrocada dos arranjos históricos que permitiram
a configuração de um capitalismo democrático de Welfare em países
da Europa e, de forma mitigada, nos Estados Unidos.

Nesse terceiro momento, são lançados elementos não só de


crítica aos dualismos (internos e globais), mas também de crítica do
que chamamos acima de razão welfarista, aquela que permite elevar
à forma de modelo teórico a excepcionalidade do compromisso entre
capitalismo e democracia nas experiências de Estado de bem-estar
social na Inglaterra e França e de New Deal nos Estados Unidos100 —
não por acaso, a tríade de países que Florestan, e não só ele, pensava
como modelos clássicos de revolução democrático-burguesa.

100 “Modelos” de democracia que em plenos “anos dourados” mantinham domínios coloniais e, no
caso estadunidense, a segregação racial garantida por lei.

SUMÁRIO 304
Sugeri ainda, sem pretensão exaustiva, que o movimento
para além da singularidade em Florestan parece guardar íntima rela-
ção com as mudanças do capitalismo nos anos 1970. Em fins dessa
década, os fortes indícios de crise do regime de acumulação keyne-
siano-fordista em seletos países da Europa Ocidental e nos EUA e o
ascenso dos processos globais da chamada neoliberalização fizeram
ruir qualquer possibilidade de identificação estável, pelo pensamento
crítico, entre capitalismo e democracia como uma norma — ou um
a priori analítico — a partir da qual seria possível apontar processos
históricos e estruturais desviantes.

A tendência à generalização global de formas autocráticas


de dominação apontada por Florestan em fins dos anos 1970 sugere
importantes afinidades com os atributos do regime de acumulação com
dominância financeira (CHESNAIS, 2002), da acumulação via espoliação
(HARVEY, 2005) ou simplesmente neoliberalismo (DUMÉNIL e LÉVY,
2004), o que, a meu ver, parece atestar — em uma via distinta à proposta
por Tavolaro — a potencialidade heurística da obra de Florestan. Ao
longo do texto, reforçando argumentos presentes em Tavolaro (2014) e
Cohn (2015)101, também pontuei como podemos encontrar em Florestan
nuances diversas que permitem problematizar certos enunciados do
discurso sociológico hegemônico ou modelar sobre a modernidade.
Em especial, entre aquelas nuances, uma compreensão sofisticada do
tempo social e a sensibilidade para captar a “contemporaneidade de
situações históricas não coetâneas” (FERNANDES, 2015, p. 37).

Após ter defendido, no curso do texto, que há em Florestan uma


progressiva crítica aos hábitos dualistas e essencialistas de pensar a
modernidade (primeiro a crítica do dualismo interno entre “arcaico” e
“moderno”, depois a crítica da “tipologia dicotômica” que opõe “demo-

101 Gabriel Cohn, a partir de outro ângulo, capta da seguinte forma a sofisticação do tempo social
para Florestan: “o passado aparece como complexo de oportunidades (ganhas ou perdidas), o
presente se configura como campo de forças e o futuro como conjunto de alternativas a serem
(seletivamente) ‘dinamizadas’. O passado não é um jogo de memória (como em Gilberto Freyre),
mas um inventário de desafios e obstáculos” (COHN, 2015, p. 16).

SUMÁRIO 305
cracia” e “autoritarismo” em nível global), gostaria de enfatizar, reto-
mando o diálogo com as proposições de Tavolaro (2005, 2014) para
pensar além da singularidade, como Florestan oferece significativos
elementos para uma concepção agonística, contingente e fundamen-
talmente histórica dos processos globais de modernização capitalista.

De modo amplo e sugestivo, o argumento aqui se direciona


no sentido de apontar como proposições conceituais como “capita-
lismo dependente”, “dupla articulação”, “modelo autocrático-burguês”
etc. não necessariamente implicam um enrijecimento essencia-
lizante. Salientando a importância da perspectiva global (portanto
relacional e avessa ao nacionalismo metodológico inerente a tais
conceitos) e, principalmente, a importância atribuída às lutas sociais
(em Florestan, os dilemas sociais de classe e raciais são focaliza-
dos102), às desigualdades e assimetrias de recursos entre os agentes
coletivos e ainda às vitórias e derrotas nos processos de consolida-
ção de padrões e estruturas específicos de determinadas situações
(regionais e nacionais), aquelas contribuições podem ser utilizadas
em favor de uma perspectiva que valorize a contingência dos acon-
tecimentos, eventos e processos sócio-históricos.

No entanto, da perspectiva da “sociologia da dependência”


de Fernandes, a não identificação entre contingência e aleatoriedade
(TAVOLARO, 2005) passa pela solução presente na velha tradição
em teoria social que pensa a ação, individual e coletiva, a partir do
imenso peso constrangedor das camadas históricas. Peso esse que,
da perspectiva da história global do capitalismo e da sua violência
originária (constantemente presentificada, conforme OLIVEIRA,
2013; HARVEY, 2005; FEDERICI, 2019; VERGÈS, 2020), parece par-
ticularmente sufocante e espesso — e o real é uma estratificação de
espessuras, como o Capibaribe ensinou a João Cabral — para países
marcados pela colonialidade (QUIJANO, 1992).

102 Para um aprofundamento das nuances e complexidade do conceito de classe social em Florestan
Fernandes, ver Alves (2020).

SUMÁRIO 306
Como se vê, diferente de negar a importância da tese da
singularidade brasileira como chave analítica para pensar o pensa-
mento social brasileiro em suas fragilidades e potencialidades, bus-
quei aqui demonstrar, pelo contrário, a sua força e pertinência. Neste
artigo, foi a formalização crítica da tese da singularidade brasileira
que permitiu um esforço de releitura de um autor como Florestan
Fernandes, buscando salientar, em sua ampla contribuição intelec-
tual, os aspectos que vão além de formas rígidas e dualistas, nas
quais ele mesmo por vezes se enredou, de pensar a modernidade e
o capitalismo no Brasil e no mundo.

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SUMÁRIO 310
12
Matheus de Carvalho Barros

O SIGNIFICADO DO
PROTESTO NEGRO:
COLONIALISMO, CAPITALISMO
DEPENDENTE E QUESTÃO RACIAL
EM FLORESTAN FERNANDES

DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.12
INTRODUÇÃO
O objetivo do presente trabalho é analisar a articulação entre
raça e classe no pensamento de Florestan Fernandes. A intenção é
examinar a forma como o sociólogo paulistano relaciona a questão
racial aos dilemas históricos do subdesenvolvimento, do capita-
lismo dependente e da revolução burguesa. Ou seja, pretendemos
demonstrar como Fernandes relaciona raça e classe, não apenas
como uma chave interpretativa da realidade latino-americana, mas
também como um imperativo fundamental para se pensar os pro-
cessos emancipatórios.

É importante deixar claro que toda a dimensão sócio-histó-


rica do “dilema racial brasileiro” não se resume a um único texto ou
obra de Florestan Fernandes103. Todavia, nos limites desse trabalho,
baseamos algumas de nossas conclusões nos seguintes textos: O
dilema racial brasileiro, do último capítulo de A Integração do Negro;
A persistência do passado e o já citado Aspectos políticos do dilema
racial brasileiro, publicados em O negro no mundo dos brancos
(1972); a obra Capitalismo dependente e classes sociais na América
Latina (1973) e, por fim, alguns ensaios reunidos em O Significado
do Protesto Negro (1989). Acreditamos que através desses textos
podemos ter um panorama geral das construções teóricas e políti-
cas mais densas de Florestan sobre a relação entre questão racial e
capitalismo no Brasil.

103 Como nos apontam os autores do texto Florestan Fernandes e o dilema racial brasileiro, para se
atingir uma visão compreensiva desse dilema, seria necessário reler passo a passo toda obra
pertinente do sociólogo paulistano sobre o assunto. Um trabalho dessa envergadura demandaria
uma releitura diacrônica e de reconstituição cronológica do conjunto de sua produção sobre
o negro, desde a Pesquisa Unesco, passando pela Integração do Negro, até chegar nas suas
conclusões mais “maduras” das décadas de 1970 e 1980, para demonstrar como seus conceitos
foram sendo formulados, redefinidos e ressignificados (COSTA; ALVES; PORTELA JR; SOARES; SILVA;
MUTZENBERG, 2021).

SUMÁRIO 312
Todavia, é necessário enfatizar também que nem sempre os
vínculos conceituais entre racismo e as caracterizações sociológi-
cas sobre o subdesenvolvimento e o capitalismo dependente estão
devidamente estabelecidos em todos os trabalhos de Florestan que
versam sobre as classes sociais. A articulação entre essas categorias
se intensifica na medida em que a posição política e sociológica de
Florestan assume uma postura mais radicalizada e aprofunda sua
relação com a teoria marxista.

Se em A Integração do Negro (1965) já é possível localizar


a ideia de que o racismo poderia se tornar uma realidade estrutural
e permanente da ordem social competitiva estabelecida no Brasil,
em O Negro no Mundo dos Brancos (1972) Florestan já visualiza os
nexos intrínsecos entre racismo, capitalismo dependente e subde-
senvolvimento. Entretanto, será em O Significado Protesto Negro,
publicado originalmente em 1989, que Florestan apresentará suas
conclusões mais radicalizadas sobre a questão racial no âmbito
político. Na coletânea de artigos Fernandes apresenta, numa pers-
pectiva dialética e marxista, a imbricação entre dominação racial e
exploração capitalista.

Portanto, objetivamos demonstrar como Fernandes passa


a conceber a interação dialética entre racismo/colonialismo e capi-
talismo dependente. Consideramos que, ao compreender – através
de uma perspectiva marxista – o racismo como uma característica
intrínseca e indissociável da realização do capitalismo na periferia, a
noção de “dilema racial” assume novas dimensões e sentido qualita-
tivamente novos em sua obra.

Entretanto, antes deste empreendimento, consideramos


fundamental examinarmos o modo pelo qual Fernandes constrói o
conceito de “capitalismo dependente” e analisa as particularidades
da revolução burguesa brasileira. Acreditamos que esse movimento
se configura como uma etapa imprescindível para compreendermos
como o sociólogo marxista passa a conceber o racismo como um
elemento estrutural e intrínseco do capitalismo periférico.

SUMÁRIO 313
CAPITALISMO DEPENDENTE
E REVOLUÇÃO BURGUESA
NO BRASIL
Analisando as particularidades da transformação capitalista
na periferia, em 1975, Florestan Fernandes publica umas de suas
obras mais importantes que, segundo Carlos Nelson Coutinho
(2000), é o primeiro texto onde o marxismo é assumido explicita-
mente como ponto de vista metodológico pelo sociólogo paulistano.
Refiro-me aqui à obra A Revolução Burguesa no Brasil.

Para José de Souza Martins (2006), o livro em formato de


ensaio ganha sentido no ambiente intelectual do debate brasileiro
sobre o tipo de sociedade capitalista que estava se desenvolvendo
no Brasil. Desta forma, A Revolução Burguesa poderia ser visto como
o último grande estudo do ciclo de reflexões históricas e sociológicas
abrangentes sobre o destino histórico do Brasil.

Segundo Martins (2006), A Revolução Burguesa no Brasil


equivale, em certo sentido, ao O Desenvolvimento do Capitalismo na
Rússia de Lenin, um marco nos estudos sobre o desenvolvimento
do capitalismo em sociedades diferentes da Europa Ocidental.
Martins (2006) argumenta que a interpretação de Florestan sobre
o processo da lenta e complicada revolução burguesa no Brasil
tem como um dos seus aspectos mais positivos o distanciamento
de um marxismo determinista e engessado. Em outras palavras, o
marxismo de Florestan Fernandes se contrapôs a todo de tipo de
vulgarização da tradição oriunda de Marx que propõe uma concep-
ção de história regida por “etapas inexoráveis, segundo um modelo
abstrato de processo histórico” (MARTINS, 2006, p. 18). Modelo esse
que corresponderia a um etapismo mecanicista e a uma visão anti-
dialética da realidade.

SUMÁRIO 314
Entretanto, em meados dos anos de 1960, ou seja, antes
mesmo da publicação de A Revolução Burguesa, já era possível visu-
alizar algumas alterações fundamentais na forma com que Florestan
concebia o desenvolvimento sócio-histórico brasileiro. Uma dessas
mudanças pode ser visualizada na maneira como Fernandes passa a
relacionar os termos “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento”,
a partir da construção do conceito de “Capitalismo Dependente”.

Segundo Antônio Brasil Jr. (2013), ao passar a conceber uma


conjunção crônica entre “sociedade de classes” e “subdesenvolvi-
mento” a partir do construto “capitalismo dependente”, Florestan
Fernandes realiza uma verdadeira guinada em sua análise socio-
lógica em pelo menos três aspectos. O primeiro aspecto seria a
necessidade de articular elementos “internos” e “externos” às socie-
dades, com ênfase nos dinamismos socioeconômicos. Essa articu-
lação específica também levaria a uma imbricação entre elementos
ditos “arcaicos” com elementos “modernos”. Em um segundo plano
estaria a requalificação da atuação limitada da burguesia brasileira
diante das condições do “capitalismo dependente”. Por fim, estaria a
caracterização da natureza autocrática da transformação capitalista
engendrada pelas condições de dependência.

A despeito de já utilizar a noção de “dependência” em seus


textos desde a década de 1950, como nos aponta Brasil Jr. (2013), ela
só assume real importância na obra de Florestan a partir do artigo
Sociedade de Classes e subdesenvolvimento, escrito no final de 1967.
Chamando a atenção para a importância deste artigo, Felipe Demier
(2008) destaca que Fernandes foi o intelectual acadêmico que inau-
gurou as pesquisas científicas referentes à realidade brasileira nitida-
mente estruturadas pela “lei do desenvolvimento desigual e combi-
nado”. Para o historiador, Florestan teria sido o principal combatente
do dogmatismo stalinista nas ciências sociais do país.

No ensaio de 1967 Fernandes afirma que:

SUMÁRIO 315
A natureza e os ritmos da transformação capitalista sob
as grandes corporações “multinacionais” criaram a rea-
lidade histórica de nossa época. Os países retardatários
são comensais desprezíveis ou simples repasto para os
demais. Não há como fazer coincidir os tempos da histó-
ria: as estruturas sócio-econômicas, culturais e políticas
dos países capitalistas hegemônicos absorvem estru-
turas dos países subcapitalistas, semicapitalistas ou de
capitalismo dependente, submetendo-as a seus próprios
ritmos e subordinando-as aos interesses que lhe são
próprios (...) O capitalismo selvagem (a forma assumida
pelo capitalismo nos países dependentes) não reproduz o
passado; e se nele há lugar para a “revolução burguesa”,
esta se apresenta de outra forma e com outros objetivos
fundamentais. Sem dúvida, o desenvolvimento capitalista
pressupõe muitos mecanismos econômicos, sócio-cul-
turais e políticos que se repetem. Mas eles se repetem
em tais condições e sob tais fundamentos, que apontam
para uma realidade econômica, sócio-cultural e política
específica, típica de uma situação histórica e de uma
condição inexorável de dependência tecnoeconômica
(FERNANDES, 1968, p. 64-65).

Demier (2008) aponta que a partir deste trecho, é possível


observar como a noção de “desenvolvimento combinado” orientou a
interpretação de Florestan Fernandes acerca da estrutura sócio-eco-
nômica brasileira. Nessa perspectiva, o “arcaico” não aparece como
resquício de outra temporalidade que entrava o desenvolvimento do
capital. Pelo contrário, para o sociólogo paulistano, seria justamente
a presença de elementos “anticapitalistas” e “semicapitalistas” que
produziria funcionalidade ao capitalismo na periferia. Portanto, “o
arcaico não seria antípoda do moderno, e sim seu complemento his-
tórico e necessário” (DEMIER, 2008, p. 74).

Para Brasil Jr. (2013), a partir do ensaio de 1967, há uma maior


sistematização entre os elementos “internos” e “externos” nas aná-
lises de Florestan. Desta forma, passa a se impor uma necessidade
de articular num mesmo andamento explicativo as condições locais
e globais, com o objetivo de avaliar o peso dessa articulação para o
dinamismo do sistema social.

SUMÁRIO 316
Florestan começa o sétimo capítulo de A Revolução Burguesa
no Brasil ressaltando que a relação entre a modernização capitalista
e dominação burguesa é altamente variável. Nesse sentido, o soci-
ólogo paulistano está se contrapondo a uma visão eurocêntrica que
supõe a existência de um único modelo básico de transformação
capitalista. Fernandes (2020) argumenta que as maiorias das inter-
pretações teóricas só aceitam como revolução burguesa as mani-
festações que se aproximavam dos “casos clássicos”, caracterizadas
por uma associação entre desenvolvimento capitalista e conquistas
democráticas. Entretanto, essas análises partiam de uma
posição unilateral, que perdia de vista o significado empí-
rico, teórico e históricos dos “casos comuns”, nos quais
a revolução burguesa aparece vinculada a alterações
estruturais e dinâmicas condicionadas pela irradiação
externa do capitalismo maduro, ou dos “casos atípicos”,
nos quais a revolução burguesa apresenta um encade-
amento bem diverso daquele que se pode inferir através
do estudo de sua eclosão na Inglaterra, França e nos EUA
(FERNANDES, 2020, p. 288).

Sendo assim, o objetivo central de Florestan no capítulo sete


de sua obra é investigar, do ponto de vista teórico, a relação entre trans-
formação capitalista e dominação burguesa nos países de economia
dependente. Segundo Fernandes (2020), na periferia do capitalismo a
revolução burguesa constitui uma realidade histórica peculiar. Aqui não
há possibilidade da “repetição da história” ou do desencadeamento
automático dos pré-requisitos do modelo democrático-burguês dos
países hegemônicos. Muito pelo contrário. Para Florestan (2020), o
que se visualiza na periferia é, na verdade, uma forte dissociação entre
desenvolvimento capitalista e democracia; “ou, usando-se uma nota-
ção sociológica positiva: uma forte associação racional entre desen-
volvimento capitalista e autocracia” (FERNANDES, 2020, p. 290).

Nesse contexto, Florestan Fernandes argumenta que a


extração dual do mais-valor – de um lado pela burguesia nacio-
nal e de outro pelas burguesias estrangeiras – acaba provocando
uma “hipertrofia” dos fatores políticos da dominação burguesa.

SUMÁRIO 317
A condição de dependência faz com que o capitalismo na periferia
seja “selvagem e difícil, cuja viabilidade se decide, com frequência,
por meios políticos e no terreno político” (FERNANDES, 2020, p. 291).

Fernandes está apontando para uma aparente contradição.


A falta de autonomia da burguesia nacional em relação ao capital
estrangeiro, não implica necessariamente em uma “fraqueza” dessa
classe no plano interno. Ao contrário, Florestan (2020) argumenta
que quanto mais se aprofunda o desenvolvimento capitalista, mais
as nações hegemônicas precisam de “aliados sólidos” na periferia
dependente. Ou seja, é necessário que as burguesias nacionais sejam
fortes e capazes de saturar as funções repressivas da dominação
burguesa, reprimindo brutalmente até as mais leves manifestações
de insatisfação dos trabalhadores.

Florestan está chamando a atenção para a característica


profundamente reacionária da dominação burguesa no Brasil e sua
propensão “a salvar-se mediante a aceitação de formas abertas e
sistemáticas de ditadura de classe” (FERNANDES, 2020, p. 292).
Ou seja, na periferia do capitalismo todo ideal burguês de caráter
emancipatório foi posto de lado. O que nos coloca diante do poder
burguês mais extremo e brutal, onde o Estado é convertido em um
“instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva”
(FERNANDES, 2020, p. 294).

CAPITALISMO DEPENDENTE,
SUBDSENVOLVIMENTO
E QUESTÃO RACIAL
Analisando os nexos entre a questão racial e os dilemas do
subdesenvolvimento e do capitalismo dependente, em uma impor-
tante passagem do texto Aspectos políticos do dilema racial brasileiro,

SUMÁRIO 318
escrito provavelmente entre 1971 e 1972 – e publicado em O negro
no mundo dos brancos104 –, o sociólogo paulistano deixa clara a
vinculação entre a “questão do negro” e os dilemas do capitalismo
periférico. Segundo Fernandes,
Embora não exista, para a estrutura econômica da socie-
dade de classes brasileira, qualquer interesse em evoluir
para o padrão sistemático de preconceito e de descri-
minação raciais (como o que existe no Estados Unidos
ou na África do Sul), o tipo de capitalismo dependente
e subdesenvolvido imperante não pode prescindir da
concentração racial da renda e do poder (e, em consequ-
ência, das formas pré ou subcapitalistas de exploração e
de expropriação econômicas e de dominação política que
ela envolve) (FERNANDES, 2007, p. 305).

Esse pequeno trecho demonstra a compreensão teórica da


estruturação racista do capitalismo periférico e dependente brasileiro,
cuja particularidade sócio-histórica foi ordenada pelo amálgama entre
as formas de exploração tipicamente capitalistas baseadas na extração
do mais-valor relativo, com as formas de exploração arcaicas ligadas à
reatualização dos padrões colonialistas de poder (COSTA et al, 2021).

Em O dilema racial brasileiro – seção do último capítulo de


A Integração do Negro na sociedade de classes – o sociólogo pau-
listano vai definir o dilema racial como um fenômeno dinâmico e de
natureza sociopática:
Ele [o dilema racial] se produz, de forma recorrente, porque
o “negro” sofre persistentes e profundas pressões assimi-
lacionistas e , apesar de responder a elas através de aspira-
ções integracionistas ainda mais profundas e persistentes,
não encontra vias adequadas de acesso às posições e aos
papéis sociais do sistema societário global. Para que suce-
desse o contrário, seria preciso que ambas as pressões
se combinassem, pelo menos, a uma equiparação social

104 Esse ensaio foi escrito originalmente para um volume coletivo que seria publicado na França, em
homenagem a Roger Bastide (FERNANDES, 2007).

SUMÁRIO 319
progressiva entre “negros” e brancos”. Isso nos ensina, pois,
algo muito importante. O dilema racial brasileiro constitui
um fenômeno social de natureza sociopática e só poderá
ser corrigido por meio de processos que removam a obs-
trução introduzida na ordem social competitiva pela desi-
gualdade racial (FERNANDES, 2021, p. 826).

Após delinear o dilema racial como um fenômeno sociopático


que estaria obstruindo o desenvolvimento da ordem social competi-
tiva, Fernandes indica que a “única fonte dinâmica de influência corre-
tiva irrefreável” das desigualdades raciais seria “a própria expansão da
ordem social competitiva” (FERNANDES, 2021, p. 827). Ora, olhando
isolamente para esta passagem, poderíamos dizer que, na visão do
nosso autor, o próprio capitalismo eliminaria as desigualdades raciais.
Contudo, logo em seguida, Florestan afirma que tais transformações
espontâneas são extremamente lentas e instáveis e, portanto, podem
ser anuladas. Na esteira desse argumento, o sociólogo paulistano vai
afirmar que existe, na verdade, a possibilidade de uma conciliação
entre as desigualdades raciais e as de classe: “As tendências desco-
bertas não excluem a possibilidade de uma conciliação entre as for-
mas de desigualdade inerente à sociedade de classes e os padrões
herdados de desigualdade racial” (FERNANDES, 2021, p. 827).

Escrevendo sua obra de cátedra às vesperas do golpe empre-


sarial-militar de 1964, Florestan em nenhum momento “apostou suas
fichas” na possibilidade do desenvolvimento espontâneo da ordem
social competitiva eliminar as desigualdades raciais presentes no
Brasil.105 Muito pelo contrário, há, no livro, “uma aposta permanente

105 Existe uma leitura muito recorrente na academia e em determinados setores do movimento negro
que sugere que, na obra publicada em 1965, Florestan teria atestado que a eliminação do racismo
se daria com o avanço e o desenvolvimento espontâneo da sociedade de classes. Concordamos
com os argumentos de Brasil Jr. e Medeiros da Silva (2021), e consideramos equivocada esse tipo
de leitura, principalmente se levarmos em consideração o conjunto da obra de Florestan. Como
demonstra nossos autores, ao que tudo indica, sobretudo no campo de pesquisas sobre relações
raciais no Brasil, é a leitura de Carlos Hasenbalg, em sua importante obra Discriminação e de-
sigualdades raciais no Brasil (1979), que vem modelando grande parte da recepção crítica de A
integração do negro na sociedade de classes.

SUMÁRIO 320
no potencial de uma efetiva democratização da sociedade brasileira,
feita de baixo para cima, através do protagonismo negro” (BRASIL JR;
MEDEIROS DA SILVA, 2021, p. 10).

Dessa forma, a caracterização sociológica do dilema racial o


conduz a uma conclusão política, que será aprofundada com maior
densidade teórica em seus trabalhos posteriores. Entretanto, em
A Integração do Negro essa certeza histórica já estará estabelecida.
Nas próprias palavras de Florestan:
[...] a única força de sentido realmente inovador, e incon-
formista, que opera em consonância com os requisitos de
integração e desenvolvimento da ordem social competi-
tiva, procede da ação coletiva dos “homens de cor”. Desse
lado, a reorganização dos movimentos reivindicatórios
e sua calibração ao presente parece algo fundamental
(FERNANDES, 2021, p. 827).

Nesse contexto, uma hipótese a ser explorada é que, ao se


revestirem de um caráter combatido mais radicalizado e, portanto,
político, a noção de dilema racial ganhará em profundidade e con-
sistência. Pois não se trata mais de um padrão idealmente elaborado
de “ordem social competitiva”, em contraste comparativo com sua
variação patológica, mas seria precisamente o caráter sociopático
das desigualdades raciais, geradas por um racismo estrutural, que
conformam os padrões societários de uma sociedade capitalista
periférica, de origem colonial, subdesenvolvida e dependente.

Acreditamos que esta visão se consolidada nos textos de


Florestan da década de 1980, sobretudo nos ensaios reunidos em
O Significado do Protesto Negro, que serão analisados mais adiante.
Entretanto, acreditamos ser possível observar uma inflexão no
pensamento do sociólogo paulistano nos textos publicados em
O Negro no mundo dos Brancos, nos quais Florestan passa a con-
ceber uma interação dialética entre racismo/colonialismo e capita-
lismo dependente. Consideramos que, ao compreender – através
de uma perspectiva marxista - o racismo como uma característica

SUMÁRIO 321
intrínseca e indissociável da realização do capitalismo na perife-
ria, a noção de “dilema racial” assume novas dimensões e sentido
qualitativamente novos (COSTA; ALVES; PORTELA JR; SOARES;
SILVA; MUTZENBERG, 2021).

Na esteira desse raciocínio, em Capitalismo Dependente


e Classes Sociais na América Latina, publicado em 1973, Florestan
salienta que o amadurecimento do capitalismo não contribuiu para
imprimir ao regime de classes as funções de desagregação social de
vícios, tradições e estruturas pré-capitalistas. Na verdade, o capita-
lismo dependente requiriu o renascimento e a renovação, sob novos
símbolos, de atitudes, valores e formas de opressão e exploração
típicas do “antigo regime”. Em consequência, o capitalismo constitu-
ído na América Latina floresceu da “modernização do arcaico” e da
“arcaização do moderno” (FERNANDES, 1973, p. 41).

Para Florestan Fernandes, as sociedades latino-americanas


são produtos de um “tipo moderno de colonialismo organizado e
sistemático. Esse colonialismo teve seu início com a conquista espa-
nhola e portuguesa e adquiriu uma forma mais complexa após a
emancipação nacional daqueles países (FERNANDES, 1973, p. 11).
Ou seja, os processos de independências formais na América Latina
não representaram o fim do colonialismo, que ao contrário, se “reno-
vou” adquirindo novas configurações.

O “congelamento” do processo de descolonização tornou


possível a permanência de privilégios raciais herdados do colonia-
lismo e do escravismo, e as formas de subalternização cultural, acu-
mulação de capital e de exploração do trabalho que seriam impra-
ticáveis caso a democratização social inerente a esse processo de
descolonização e nacionalização da sociedade tivesse se comple-
tado. Tal fator tornou-se imprescindível para a reprodução do tipo de
capitalismo selvagem que emergiu na América Latina e que envolve,
ao mesmo tempo, “uma ruptura e uma conciliação” com o antigo
regime colonial (FERNANDES, 1973, p.52).

SUMÁRIO 322
Nesse sentido, para Florestan Fernandes, a permanência do
colonialismo e das relações coloniais e racistas atuantes na sociedade
de classes não são meras “sobrevivências” do passado ou “anomalias”,
mas sim elementos estruturantes que se atualizam e se combinam
constantemente para serem funcionais ao capitalismo dependente.

Portanto, a desigualdade racial é uma das desigualdades


estruturais das sociedades latino-americanas e a solução para o pro-
blema racial vai além da solução para o problema das classes, “pois
a igualdade exigida pela situação dos negros e mulatos é ainda mais
profunda do que exigida pela diferença de classes” (FERNANDES,
2017, p.128), uma vez que a dominação imposta a esses grupos seria
dupla, enquanto raça e enquanto classe.

É neste aspecto que o sociólogo marxista defende que a classe


não explica tudo e que, com referência ao negro e ao indígena, era
imprescindível combinar raça e classe, sendo que uma não esgota a
outra e, tampouco, uma se esgota na outra (FERNANDES, 2017). A arti-
culação entre ambas é crucial para compreender e explicar as estrtuturas
de poder, dominação e exploração nas sociedades latino-americanas.

Essa combinação é essencial para pensar qualquer projeto


de transformação social na América Latina. Pois as desigualdades
raciais só podem ser superadas fora dos marcos do capitalismo
dependente, uma vez que este mantém e revitaliza muitas das estru-
turas coloniais imprescindíveis à sua reprodução.

A RAÇA COMO UM FATOR


REVOLUCIONÁRIO
Em 1989 Florestan Fernandes publica O Significado do
Protesto Negro, reunindo o que podemos considerar os escritos mais
radicais do sociólogo paulistano sobre a questão racial.

SUMÁRIO 323
Em termos metodológicos, Florestan entende a convergên-
cia entre raça e classe como crucial para uma tomada de posição
revolucionária e enriquecedora de uma dialética marxista:
[...] existem duas polaridades que não se contrapõem
mas se interpenetram como elementos explosivos – a
classe e a raça. Se a classe tem de ser forçosamente o
componente hegemônico, nem por isso a raça atua como
um dinamismo secundário. A lógica política que resulta
de tal solo histórico é complexa. A fórmula “proletários
de todo o mundo, uni-vos” não exclui ninguém, nem em
termos de nacionalidades nem em termos de etnias ou
de raça [...] Classe e raça se fortalecem recipocramente
e combinam forças centrífugas à ordem existente [...]
(FERNANDES, 2017, p. 84-85).

Na concepção de Fernandes, a América Latina é um ambiente


explosivo e seu potencial revolucionário advém justamente do fato
de que aqui a dominação é dupla e articula métodos de dominação
modernos e coloniais, classe e raça. A articulação entre capitalismo
e as estruturas “arcaicas” de dominação ainda vigentes marca as
desigualdades e iniquidades sociais que condicionam a vida, princi-
palmente da população negra, indígena e camponesa, mas também
delineiam o fato de que, da articulação entre raça e classe na luta
política, pode emergir a emancipação. Sendo assim, na América
Latina, nosso potencial revolucionário advém da combinação recí-
proca da luta de raças e classes.

Para Florestan, o real enfrentamento do problema vivido


pelo negro passa pelo reconhecimento deste agente, de que raça
e classe são categorias complementares uma da outra na realidade
brasileira. Logo, a noção de classe não retira a subjetividade do “ser
negro”. Ao invés disso, a classe integra-o ao sistema de trabalho e
à estrutura social do modo de produção capitalista. O negro pode
ser, então, “duplamente revolucionário – como proletário e como
negro” (FERNANDES, 2017, p. 26). Ele nega duplamente a sociedade
na qual vivemos – na condição racial e na condição de trabalhador.

SUMÁRIO 324
Nesse sentido, Fernandes defende que a interação de raça e classe
existe objetivamente e fornece uma via de transformação social
engendrando uma “sociedade libertária e igualitária sem raça e
sem classe, sem dominação de raça e sem dominação de classe”
(FERNANDES, 2017, 27).

Se o sociólogo paulistano encerra A Integração do Negro


na Sociedade de Classes destacando que o negro se converteu “na
pedra de toque da nossa capacidade de forjar nos trópicos esse
suporte de civilização moderna” (FERNANDES, 2021, p. 829), na cole-
tânea publicada em 1989106 o negro se converte na “pedra de toque
da revolução democrática na sociedade brasileira” (FERNANDES,
2017, p. 41). O negro passa a ser considerado o sujeito histórico da
revolução socialista. Mas por que os negros?
Os negros são testemunhos vivos da persistência de
um colonialismo destrutivo, disfarçado com habilidade
e soterrado por uma opressão inacreditável. O mesmo
ocorre com o indígena, com os párias da terra e com os
trabalhadores semilivres superexplorados das cidades
[...] ele sofreu todas as humilhações e frustrações da
escravidão, de uma Abolição feita como uma revolução
do branco para o branco [...] O negro surgia como um
símbolo, uma esperança e o teste do que deveria ser a
democracia como fusão de igualdade com liberdade
(FERNANDES, 2017, p. 23).

Portanto, o chamado problema do negro vem a ser o próprio


problema da viabilidade do Brasil como Nação (FERNANDES, 2017).
Nesse sentido, não haveria Nação enquanto as sequelas do escra-
vismo, que afetaram os antigos agentes do trabalho escravo e seus
descendentes, não fossem definitivamente superadas e absorvidas.
Contudo, para que esse processo ocorra, na perspectiva revolu-
cionária do nosso autor, o Brasil “precisa tornar-se socialista para
que as raças alcancem um padrão de democracia pelo qual elas se

106 O Significado do Protesto Negro

SUMÁRIO 325
nivelem e o talento deixe de ser recrutado em termos não igualitá-
rios, em termos de concentração racial de renda, cultura e de poder”
(FERNANDES, 2017, p. 115). Para isso, é necessária uma estratégia
de luta política corajosa, “pela qual a fusão de raça e classe regule a
eclosão do Povo na história” (FERNANDES, 2017, p.36).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O nosso passado colonial deita raízes profundas na formação
social brasileira. Ele faz parte da configuração do nosso capitalismo
dependente e alimenta o racismo como uma categoria estruturante
de nossa sociedade. Nesse sentido, a questão do racismo não se
trata de uma mera herança da escravidão, mas de uma situação atual
que estrutura e dinamiza as relações sociais capitalistas no Brasil.
Essa é uma conclusão teórico-política que podemos elaborar a partir
do conjunto da obra de Florestan Fernandes sobre as relações raciais
no Brasil e suas profundas conexões com o capitalismo dependente.

Portanto, após esta breve análise, podemos argumentar que


Florestan Fernandes construiu um pensamento crítico descoloniza-
dor, onde a articulação entre raça e classe não é apenas um impe-
rativo para a compreensão da realidade concreta, mas também é
um empreendimento fundamental para a construção de uma práxis
radical de libertação dos povos oprimidos pela dominação colonial
e imperialista. No processo de amadurecimento de sua obra, o soci-
ólogo paulistano passa a conceber o racismo como um fator estru-
turante do capitalismo periférico, que acaba convertendo os sujeitos
racializados em agentes por excelência da revolução socialista. Sendo
assim, tanto na teoria quanto na prática, a raça e a classe não são
elementos antagônicos, mas sim complementares e inseparáveis.

SUMÁRIO 326
REFERÊNCIAS
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Gino Germani. 1° ed. São Paulo; Buenos Aires: Hucitec; Clacso, 2013.
BRASIL JR, Antônio; SILVA, Mário Augusto. Prefácio: Racismo e limites à democracia
em A Integração do Negro na Sociedade de Classes. In: FERNANDES, Florestan. A
Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021.
COSTA, Diogo Valença de Azevedo; ALVES, Ana Rodrigues Cavalcanti; PORTELA JR.,
Aristeu; SOARES, Eliane Veras; SILVA, Lucas Trindade da; MUTZENBERG, Remo. Florestan
Fernandes e o dilema racial brasileiro. In: Florestan Fernandes: trajetória,
memórias e dilemas do Brasil [Eliane Veras Soares, Diogo Valença Costa org.].
Chapecó, SC: Marxismo21, 2021.
COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e “imagem do Brasil” em Florestan Fernandes.
In: Id., Cultura e sociedade no Brasil. Ensaios sobre ideias e formas. Rio de Janeiro: DP&A,
2000.
DEMIER, Felipe. Do movimento operário para a universidade: Trotsky e os estudos
sobre o populismo brasileiro. Dissertação de mestrado. UFF- 2008.
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro:
Zahar, 1968.
FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América
Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
FERNANDES, Florestan. O Negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: Global, 2007.
FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder
“institucional”. São Paulo: Globo, 2010.
FERNANDES, Florestan. O Significado do Protesto Negro/ Florestan Fernandes – São
Paulo: Expressão Popular, 2017.
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.
FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo:
Editora Contracorrente, 2021.
MARTINS, José de Souza. Prefácio in: A revolução Burguesa no Brasil: ensaio de
interpretação sociológica/ Florestan Fernandes – 5.ed. – São Paulo: Globo, 2006.

SUMÁRIO 327
13
Marcelo Sevaybricker Moreira

UM ESBOÇO
DE INTERPRETAÇÃO SOBRE
O PENSAMENTO SOCIAL
DE CHICO DE OLIVEIRA:
DO RADICALISMO DE CLASSE MÉDIA
AO MARXISMO

DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.13
INTRODUÇÃO
Apresenta-se no corpo deste escrito um esboço de inter-
pretação do pensamento social do intelectual recifense Francisco
Maria Cavalcanti de Oliveira (1933-2019), que esteve envolvido
com importantes iniciativas institucionais na história brasileira,
tanto no âmbito da produção científica, quanto da política, tais
como: o Banco do Nordeste, a Sudene (Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste), a Cepal (Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe), o Cebrap (Centro Brasileiro
de Análise e Planejamento), o Cenedic (Centro de Estudos dos
Direitos da Cidadania - da USP - Universidade de São Paulo) e o
PT (Partido dos Trabalhadores).

Como pondera Marco Perusso (2013), a trajetória de Chico


de Oliveira, como esse autor é usualmente chamado, é bastante
rica e marcada por algumas inflexões, dado que engloba as áreas
da sociologia e da economia, a adesão ao ideário nacional-desen-
volvimentista e, depois, marxista, e se vincula (e se desvincula) a
algumas das diversas instituições antes mencionadas. Ruy Braga
e Fabio Mascaro (2018, p. 7) observam o mesmo traço na trajetória
desse intelectual, afirmando que o seu itinerário "nada tem de linear"
e que dá provas de uma "inquietude crítica pouco comum" no país.

Mas ao falar do pensamento social de Chico de Oliveira,


não estamos assumindo a ideia de que haja um corpus teórico
coerente e sistemático em seus escritos - forma que parecer ter
sido explicitamente recusada por esse autor - como nota Flávio
Mendes (2015). Caracterizado reiteradas vezes por ser um espírito
inventivo e irreverente, Chico de Oliveira pareceu estar mais inte-
ressado em "lançar" ideias ao público, do que em elaborar uma
teoria sistemática para compreender as dinâmicas das socieda-
des capitalistas. Seu jeito irônico, a clara preferência pela escrita
de ensaios (textos curtos em que uma determinada tese é mais,

SUMÁRIO 329
estilística e provocativamente, anunciada, do que propriamente
comprovada) e a ausência de referências bibliográficas e de cita-
ções em seus textos, parece apenas reforçar esse tipo de esco-
lha. Sobre isso, vale a pena transcrever a passagem certeira de
Mendes (2015, p. 2):
Escritos quase sempre na forma de ensaio, os textos do
sociólogo refletem essa postura e transformam em um
grande desafio a análise a que me propus neste trabalho.
Só tomei consciência dessa dificuldade com a pesquisa
já em curso, quando me encarreguei da leitura de docu-
mentos muitas vezes curtos, mas repletos de ironia e con-
teúdo. No espaço de um parágrafo a crítica de Francisco
de Oliveira pode demolir os argumentos básicos de um
pensamento complexo como o da escola da CEPAL, o
que me obrigava a repetir a leitura de inúmeras passagens
até que seu raciocínio fosse apreendido. E não adiantava
buscar amparo em referências bibliográficas ou longas
citações. Elas são, em geral, escassas, o que transmite
a impressão de que os textos do sociólogo prestam-se
mais comumente à crítica demolidora de categorias do
que à construção de argumentos ou conceitos definitivos
a respeito de um determinado objeto. Percebi que muitas
de suas conclusões não almejam o estatuto de verdade,
mas apenas alimentar debates futuros. Distanciam-se,
assim, de algumas regras do mundo acadêmico, com
o qual Francisco de Oliveira se relacionou sempre
de forma conflituosa.

Investigar o pensamento de alguém como Chico de Oliveira,


que valorizou o transitório e se negou a constituir uma doutrina é, por
essa razão, uma empreitada ainda mais difícil. Seguindo a agenda de
pesquisa proposta por Gildo Brandão (2010, p. 160), de identificar as
"famílias intelectuais" em nossa história intelectual brasileira e consi-
derando o conjunto dos escritos de Oliveira, publicados entre o final
dos anos de 1950 e 2019, nos interessa aqui particularmente com-
preender a relação do seu pensamento com as tradições da teoria
política e com as linhagens de pensamento social brasileiro.

SUMÁRIO 330
Cumpre também considerar a relevância desta pesquisa,
dada a carência de estudos mais sistemáticos sobre a obra desse
autor107. Os poucos trabalhos já existentes a seu respeito têm mais
o intento de render uma homenagem ao autor, ou, como dito, bus-
cam mais avaliar a sua trajetória intelectual e institucional (ou ainda,
uma mistura dessas duas abordagens), do que propriamente a sua
relação com as tradições da teoria política e do pensamento social
brasileiro - dimensão privilegiada neste estudo.

Para tal, este texto está estruturado em três seções principais,


que acompanham a divisão proposta neste trabalho do desenvolvi-
mento do pensamento social de Oliveira em três períodos, diferen-
ciados em função do marco teórico e analítico, pelas temáticas e
pela posição política adotadas por ele. Ao final, pontuamos algumas
considerações sobre a relação de seu pensamento com as tradições
teóricas do século XX.

Em uma primeira seção deste capítulo, trata-se de uma pri-


meira fase do pensamento de Chico de Oliveira, iniciada em 1959 e
encerrada em torno de 1964, fase de poucos escritos e intensa atu-
ação em cargos técnicos no Estado brasileiro, à sombra, por assim
dizer, do economista paraibano Celso Furtado, expoente mais impor-
tante do nacional-desenvolvimentismo brasileiro - paradigma teórico
fundamental daquele período. Nesse caso, o pensamento de Oliveira
parece convergir com a obra furtadiana e com certo diagnóstico
de época, segundo o qual o desenvolvimento brasileiro exigia um
planejamento estatal que promovesse crescimento e diversificação
econômica, mas com justiça social e regional.

Uma segunda e longa fase, iniciada após o golpe de 1964 e


terminada já no início do século XXI, e cuja produção fica marcada

107 Além dos já aqui mencionados, cumpre conferir: Rizek e Romão, 2006; Montero e Moura, 2009;
Bello, Rizek, Barros e Silva, 2022. Os trabalhos de Perruso (2013) e Mendes (2015) são, ao contrário
dos anteriores, os que mais procuram, de fato, examinar sistematicamente a trajetória e o pensa-
mento desse autor - contribuições importantes do qual este estudo parte.

SUMÁRIO 331
por um crescente alinhamento desse autor à tradição marxista. São,
grosso modo, os anos de participação de Oliveira no Cebrap e de
redação do conhecido "A economia brasileira: crítica à razão dua-
lista", publicado como artigo em 1972, e, em 1981, como livro; escrito
esse que é uma espécie de "acerto de contas" do próprio autor em
relação aos projetos desenvolvimentistas defendidos por ele ao longo
da República de 1945, bem como uma resposta a certas interpreta-
ções publicadas a essa época, como Autoritarismo e democratização,
de Fernando Henrique Cardoso. Essas polêmicas de Oliveira com o
nacional-desenvolvimentismo reaparecem em uma obra imediata-
mente posterior, de 1977, Elegia para uma re(li)gião, no qual aponta as
limitações do desenvolvimento produzido pela Sudene no Nordeste
- ainda que reconheça a industrialização decorrente dessa iniciativa
furtadiana, da qual ele próprio, como já dito, fez parte. Essa segunda
fase é, ao que parece, marcada pela aposta na formação de uma
social-democracia no Brasil, marcada pela expansão dos direitos
à cidadania, acompanhando, em certa medida, certas expectativas
difusas na sociedade nacional em relação ao processo de redemo-
cratização do país na última quadra do século passado.

Por fim, na última seção deste capítulo, tratamos da terceira


fase do pensamento de Chico de Oliveira, que se inicia nos anos
2002 e termina com a morte do autor, em 2019, caracterizada pela
sua postura cada vez mais desencantada com relação às possibilida-
des de emancipação na sociedade brasileira - já sob a influência do
capitalismo neoliberal - a corroer não apenas as instituições políticas
existentes, mas até mesmo projetos de renovação política, como até
então representado pelo PT e os governos liderados por Lula e Dilma
- duramente criticados por Oliveira.

Nossa principal hipótese de pesquisa é que o pensamento e


a trajetória de Chico de Oliveira podem ser compreendidos como um
caminho que parte do que Antonio Candido (1990) chama de "radi-
calismo de classe média" em direção à formação de um pensamento
marxista, não o “de matriz comunista", ligado ao Partido Comunista

SUMÁRIO 332
Brasileiro (Brandão, 2010, p. 38), mas um marxismo mais “acadêmico”,
ainda que isso não signifique estar alheado das lutas políticas de seu
tempo. Como dito, o marco histórico dessa "guinada à esquerda" se
dá com a Crítica à razão dualista, no contexto de derrota dos seto-
res progressistas frente ao golpe de 64 - caracterizado por Oliveira
como uma contrarrevolução na história nacional. Pode-se dizer que
tal guinada se intensifica, quando no início do século XXI, Chico de
Oliveira polemiza com os governos petistas, caracterizados por ele
como uma forma de regressão política.

Mas essas inflexões não devem, todavia, obscurecer algumas


continuidades importantes ao longo da sua trajetória intelectual. Em
primeiro lugar, uma preocupação com o papel público do cientista.
Nesse sentido, Chico de Oliveira, ao longo de sua vida, engajou-se
em diversos projetos de reforma social e política, a Sudene primei-
ramente, e ainda que posteriormente afastado da burocracia estatal,
stricto sensu, manteve-se conectado com os debates públicos mais
importantes do país - por exemplo, como intelectual orgânico do PT,
até os anos 2000. E, em segundo lugar, como nota Alexandre Barbosa
(2022, p. 27), o pensamento de Oliveira evidencia um modo parti-
cular de lidar com a teoria que emula seus mestres, Furtado, Marx e
Gramsci, segundo o qual "teoria" é "uma prática constante para ver/
transformar a sociedade". Seus trabalhos, portanto, possuem profunda
densidade teórica (em particular, a partir da segunda fase), não como
puro exercício de abstração, mas na medida em que estão informados
pela empiria e são, ao mesmo tempo, desafiados por ela. Sua relação
com os autores que ele mobiliza em seus textos, por outro lado, nunca
foi de mera exegese, mas uma apropriação crítica e criativa dos mes-
mos. Conceitos e expressões cunhadas por ele, ao longo de seus mais
de sessenta anos de vida intelectual e política, como “hegemonias às
avessas” e o "ornitorrinco", por exemplo, evidenciam precisamente
a sua relação livre e quase jocosa com os clássicos da teoria social
e política, na medida em que a trajetória periférica suscitou nele a
necessidade de adaptação dessas teorias à realidade.

SUMÁRIO 333
Talvez possa-se dizer que acompanhar o pensamento e a
trajetória de Chico de Oliveira - e as rupturas e permanências que a
caracterizam - nos permita compreender melhor tanto a ascensão e
a queda do processo de construção de um Brasil mais justo e livre
- dos projetos de desenvolvimento nacional autônomo, dos anos 50
e 60, ao totalitarismo neoliberal, dos anos 2000 - quanto também as
possibilidades e os limites da atuação de um pensador da periferia,
comprometido com a emancipação social e com o espírito crítico.

PRIMEIRA FASE (1959-64):


RADICALISMO DE CLASSE MÉDIA
E NACIONAL DESENVOLVIMENTISMO
Nascido em 1933 em Recife, antigo símbolo da riqueza
açucareira que depois se tornou, como boa parte do Nordeste, sím-
bolo do atraso e da estagnação econômica no país (Mendes, 2015),
Francisco de Oliveira, ingressou, em 1952, no curso de Ciências
Sociais pela Universidade do Recife (posteriormente, transformada
em Universidade Federal de Pernambuco). Conforme comenta
Mendes (2015) de modo bastante detalhado, o cenário acadêmico
no qual esse autor se formou era bastante precário: não havia acesso
à bibliografia básica para um cientista social em formação (mesmo a
textos de Durkheim, Marx e Weber), os docentes responsáveis pelo
curso não tinham formação específica na área (sendo, em geral,
oriundos do Direito), destoando, em linhas gerais, do cenário poste-
rior e especialmente concentrado no Sudeste, de profissionalização
e institucionalização das Ciências Sociais brasileiras. Nesse sentido,
não deixa de ser curioso como Chico de Oliveira - um nordestino for-
mado na periferia do país e das Ciências Sociais nacionais - fez não
apenas do Nordeste, mas da periferia da modernidade capitalista,
em geral, um tema por excelência da sua obra. Sobre esse período,

SUMÁRIO 334
pode-se ler o seguinte depoimento de Oliveira sobre os autores que
estudou na juventude:
Eu vim a estudar, conhecer Maynard Keynes, o maior
economista do século XX, precisamente no curso do
Banco do Nordeste, não na faculdade. A faculdade nem
sabia nem quem era Keynes. Marx, nem de longe, embora
a cidade [Recife] fosse uma cidade de esquerda, com um
partido comunista muito forte e alguns professores com
simpatia pela esquerda. Não davam Marx, não, isso, era
impensável (MONTERO; MOURA, 2009, p. 147).

Mas além de ter sido um centro econômico e cultural do


país por muitos anos, Recife era uma cidade de esquerda, com forte
atuação do PCB - Partido Comunista Brasileiro. Filiado ao Partido
Socialista Brasileiro (PSB) e envolvido com o movimento estudantil
local, Chico de Oliveira começou a trabalhar, ainda muito jovem, no
Banco do Nordeste. Sem perspectiva de atuação como docente e
intelectual de Ciências Sociais, esse autor fez, em seguida, cursos
de especialização em Economia - área para a qual havia grande
demanda por parte dos órgãos públicos; primeiro, no próprio Banco
do Nordeste e, posteriormente, na Cepal, onde conheceu Celso
Furtado. É ligado a esse economista e à Sudene - órgão criado
pelo presidente Juscelino Kubitschek para desenvolver o Nordeste
- que o jovem socialista Chico de Oliveira começa sua trajetória
intelectual e política.

Essa primeira fase do seu pensamento insere-se no contexto


intelectual do nacional-desenvolvimentismo, definido por Ricardo
Bielschowsky (1996) como uma corrente de pensamento econômico,
ligada ao setor público, que defendia a industrialização intensiva
do país e o combate das desigualdades regionais através de refor-
mas realizadas a partir do planejamento estatal. Celso Furtado foi
o grande economista da corrente desenvolvimentista de tendência
nacionalista no Brasil. Coautor das teses estruturalistas, aplicou-as
ao caso brasileiro e divulgou-as no país com grande competência,

SUMÁRIO 335
dando consistência analítica e garantindo unidade mínima ao pen-
samento econômico de parcela significativa dos técnicos gover-
namentais engajados no projeto de industrialização brasileira. Seu
fôlego inesgotável e sua admirável capacidade de combinar criação
intelectual e esforço executivo, assim como sua habilidade e senso
de oportunidade para abrir espaço às tarefas desenvolvimentistas
que propagava, explicam a enorme liderança que exerceu entre os
economistas da época. Tornou-se, indiscutivelmente, uma espécie
de símbolo da esperança desenvolvimentista brasileira dos anos 50
(Bielschowsky, 1996, p. 132). Chico de Oliveira, jovem cientista social e
também nordestino, parece ter encontrado na parceria com Furtado
uma possibilidade de, através do próprio aparato estatal, contribuir
para promover um conjunto de reformas, cientificamente informa-
das, a fim de superar o subdesenvolvimento nacional.

É Antonio Candido (1990) quem nota que, em oposição à


longeva e forte tradição conservadora, existe uma outra linhagem
de pensamento social no país que nasce como reação à primeira,
mas que não opta propriamente por um programa de transforma-
ção revolucionária - ainda que identifique-se com os interesses da
classe trabalhadora e mais pobre - e procure promover mudanças
sociais progressistas.
Pode-se chamar de radicalismo, no Brasil, o conjunto
de idéias [sic] e atitudes formando contrapeso ao movi-
mento conservador que sempre predominou. [...] Digo
que o radicalismo forma contrapeso porque é um modo
progressista de reagir ao estímulo dos problemas sociais
prementes, em oposição ao modo conservador. Gerado
na classe média e em setores esclarecidos das classes
dominantes, ele não é um pensamento revolucionário,
e, embora seja fermento transformador, não se identifica
senão em parte com os interesses específicos das classes
trabalhadoras, que são o segmento potencialmente revo-
lucionário da sociedade. De fato, o radical se opõe aos
interesses de sua classe apenas até certo ponto, mas não
representa os interesses finais do trabalhador. É fácil ver

SUMÁRIO 336
isso observando que ele pensa os problemas na escala
da nação, como um todo, preconizando soluções para a
nação, como um todo. Deste modo, passa por cima do
antagonismo entre as classes; ou por outra, não localiza
devidamente os interesses próprios das classes subal-
ternas, e assim não vê a realidade à luz da tensão entre
essas classes e as dominantes. O resultado é que tende
com freqüência (sic) à harmonização e à conciliação, não
às soluções revolucionárias (CANDIDO, 1990, p. 4-5).

Enquanto os conservadores buscam manter o status quo,


pois estão comprometidos com os privilégios das oligarquias nacio-
nais, os radicais compreendem ser necessário alterar a estrutura da
sociedade brasileira através de reformas, que a tornem mais produ-
tiva, justa, menos desigual etc. Candido ressalta que o radicalismo
representa uma força social que não pode ser menosprezada, dado
que a correlação de forças tende a ser, no Brasil, sempre mais favorá-
vel ao conservadorismo e que o radicalismo pode, por conseguinte,
facilitar a irrupção de um pensamento genuinamente revolucionário,
como ocorreu na Rússia czarista:
No entanto, em países como o Brasil o radical pode ter
papel transformador de relevo, porque é capaz de avan-
çar realmente, embora até certo ponto. Deste modo
pode atenuar o imenso arbítrio das classes dominantes
e, mais ainda, abrir caminho para soluções que, além
de abalar a rija cidadela conservadora, contribuem para
uma eventual ação revolucionária. Isso porque nos países
subdesenvolvidos, marcados pela extrema desigualdade
econômica e social, o nível de consciência política do
povo não corresponde à sua potencialidade revolucio-
nária. Nessas condições o radical pode assumir papel
relevante para suscitar e desenvolver esta consciência
e para definir as medidas progressistas mais avançadas
no que for possível. Digamos que ele pode tornar-se um
agente do possível mais avançado. Portanto, no que tem
de positivo o radical serve à causa das transformações
viáveis em sociedades conservadoras como a nossa,
cheias de sobrevivências oligárquicas, sujeitas ainda
por muito tempo à interferência periódica dos militares.

SUMÁRIO 337
O radicalismo seria um corretivo da tendência predomi-
nante nessas sociedades, que consiste em canalizar as
reivindicações e as reformas, deformando-as por meio de
soluções do tipo populista, isto é, as que manipulam o
dinamismo popular a fim de contrariar os interesses do
povo e manter o máximo possível de privilégios e van-
tagens das camadas dominantes (CANDIDO, 1990, p. 5).

São cientistas comprometidos eticamente tanto com a pro-


dução de um conhecimento da realidade nacional, quanto com sua
transformação. Atuando em órgãos burocráticos em Pernambuco,
Rio de Janeiro e em São Paulo, como membro da nova intelligentsia
nacional, Chico de Oliveira se insere em um contexto no qual inte-
lectuais procuram, através de um planejamento estatal robusto, com-
bater problemas sociais crônicos no país, como a seca no Nordeste,
a fome, as desigualdades regionais, a baixa diversificação e a
dependência da economia nacional frente às potências estrangeiras,
etc.; ideias essas abraçadas pela tradição do nacional-desenvolvi-
mentismo brasileiro e do liberalismo social, de matriz keynesiana.
Grosso modo, o desenvolvimentismo está associado ao diagnóstico
de atraso de certas sociedades, nas quais o capitalismo não se con-
solidou completamente, gerando a noção de “subdesenvolvimento”,
compreendida como o:
(...) resultado das relações históricas que brotaram do
desenho realizado pelo colonialismo, pela expansão
mercantilista, pela arquitetura do comércio internacional
ricardiano e por novas formas de dominação econômica,
que incluíram excluindo mediante a posição subalterna e
complementar (geralmente na fórmula do modelo primá-
rio-exportador) (CEPÊDA, 2012, p. 80, ênfases da autora).

A ideologia do desenvolvimentismo, como caracteriza


Bielschowsky (1996), foi engendrada a partir da ideia de que as teo-
rias econômicas tradicionais, particularmente aquelas que garantem
um funcionamento ótimo da economia de mercado quando ausente
as interferências externas, não podem ser admitidas nem como

SUMÁRIO 338
explicação para o atraso econômico, social e político de alguns paí-
ses e muito menos como solução para a superação desse atraso.
Destarte, o desenvolvimentismo apresenta-se como teoria alterna-
tiva ao cânone na economia clássica, focando nos países que, por
razões históricas, permaneceram à margem do capitalismo em uma
condição de subalternidade, ainda que não mais colonial.

Retomando o argumento, se a atuação de Francisco de


Oliveira em algumas instituições públicas, ao lado de Furtado, evi-
dencia sua convergência com essa orientação ideológica inicial, o
nacional-desenvolvimentismo, poucos são os textos do autor desse
período, quase todos de caráter mais "técnico" ou "econômico", a
expressarem essa ideologia: o livro Problemas de desenvolvimento
econômico de Pernambuco (1959) e alguns artigos: "O Nordeste e a
Cooperação Internacional" (1963), "O plano de ação econômica do
governo Castello Branco: por que não terá êxito?"(1965), "Condições
institucionais do planejamento" (1966), "La industria latinoamericana:
integración y economia de escala" (1967) e "Aspectos metodológicos
do planejamento urbano" (1970).

São, em resumo, escritos nos quais esse autor reitera, em


larga medida, as propostas da corrente nacional-desenvolvimentista
na sua formulação furtadiana e as propostas de transformação social
- no sentido do "radicalismo de classe média", definido por Candido.
A questão do subdesenvolvimento e das desigualdades sociais e
regionais ocupa lugar de destaque no pensamento do então jovem
sociólogo, comprometido em pensar a atuação do Estado no desen-
volvimento nacional. A necessidade de se operar reformas no que
tange ao pacto federativo, à concentração de terras, à dependência
dos cidadãos frente às oligarquias etc. Mas nesses primeiros escri-
tos, Oliveira parece adotar um discurso econômico mais "técnico"
do que "político", voltado para a proposição de soluções concretas
para os problemas decorrentes do subdesenvolvimento - discurso
esse que contrasta fortemente com os seus textos posteriores, nos
quais a economia é pensada na tradição clássica, inclusive marxista,

SUMÁRIO 339
como economia política. Mais do que meramente uma mudança de
forma, os seus textos posteriores evidenciam uma guinada do autor
em relação aos próprios pressupostos da tradição na qual se formou,
isto é, o nacional-desenvolvimentismo e na obra furtadiana. Oliveira
afastar-se-á, a partir de 1964, cada vez mais desse intelectual-téc-
nico, perfil que o caracteriza até esse momento, em direção a um
intelectual-crítico. Como ele próprio depõe:
É paradoxal: 1964 me salvou de ser um burocrata de êxito.
Quer dizer, o que foi ruim para o país, para mim foi bom.
Quer dizer, foi bom vendo em perspectiva, jamais ia adivi-
nhar isso, porque eu estava em carreira ascendente, e isso
felizmente não aconteceu. Mas o impacto foi destrutivo.
Calou fundo no Nordeste, o que até hoje é pouco explo-
rado. Calou fundo ao ponto de que Celso [Furtado] tor-
nou-se um dom Sebastião. Foi uma frustração enorme e,
eu diria, irrecuperável (MONTERO; MOURA, 2009, p. 162).

Rompendo com o nacional-desenvolvimentismo, com o radi-


calismo de classe média e com a própria perspectiva de atuar como
um burocrata do Estado brasileiro, nasce, inclusive, paradoxalmente,
em função do malogro de sua geração frente ao golpe que pôs fim à
jovem e incipiente democracia brasileira, um novo intelectual.

SEGUNDA FASE (1964-2002):


MARXISMO E SOCIAL-DEMOCRACIA
O texto fundamental que rompe com o pensamento da
"primeira fase" é, como dito, Crítica à razão dualista. Nele, Chico de
Oliveira polemiza com várias ideias comungadas pelos intelectuais
desenvolvimentistas que tendiam a operar segundo uma lógica dual,
de acordo com a qual o subdesenvolvimento é uma espécie de ante-
-sala do desenvolvimento (uma etapa anterior), mas desconexa em

SUMÁRIO 340
relação a ele. Mas não só. Contra a tese esposada por seu colega
de Cebrap, Fernando Henrique Cardoso, Oliveira argumenta que
a expansão do capitalismo no Brasil, nos anos 60, se deu por uma
expansão das nossas próprias contradições sociais, mas sem uma
revolução burguesa. O autor evidencia que os setores "atrasados" da
economia nacional (a agricultura, por exemplo) foram e ainda eram
funcionais e fundamentais para a viabilização dos setores "avan-
çados", que dos primeiros dependem, por exemplo, para fornecer
mão-de-obra a um custo ínfimo e rebaixar, com seu enorme exército
de reserva, o custo do trabalho. Sua tese nega o modo tradicional à
época de se conceber o problema do capitalismo nacional, tanto em
sua versão cepalina, isebiana, comunista e mesmo cebrapiana, que
operam - a despeito de suas diferenças - segundo a mesma "razão
dualista". Trata-se, pois, de um escrito não apenas polêmico, como
altamente inovador, como a seguinte passagem revela:
O esforço reinterpretativo que se tenta neste trabalho
suporta-se teórica e metodologicamente em terreno
completamente oposto ao do dual-estrutualismo: não se
trata, em absoluto, de negar o imenso aporte de conhe-
cimentos bebido diretamente ou inspirado no ―modelo
CEPAL, mas exatamente de reconhecer nele o único
interlocutor válido, que ao longo dos últimos decênios
contribuiu para o debate e a criação intelectual sobre a
economia e a sociedade brasileira e a latino-americana.
Mesmo porque a oposição ao ―modelo CEPAL, durante
o período assinalado, não se fez nem se deu em nome
de uma postura teórica mais adequada: os conhecidos
opositores da CEPAL no Brasil e na América Latina
tinham, quase sempre, a mesma filiação teórica margi-
nalista, neoclássica e keynesiana, desvestidos apenas
da paixão reformista e comprometidos com o status
quo econômico, político e social da miséria e do atraso
seculares latino-americanos. Como pobres papagaios,
limitaram-se durante décadas a repetir os esquemas
aprendidos nas universidades anglo-saxônicas sem
nenhuma perspectiva crítica, sendo rigorosamente nulos
seus aportes à teoria da sociedade latino-americana.

SUMÁRIO 341
Assim, ao tentar-se uma ―crítica à razão dualista, reco-
nhece-se a impossibilidade de uma crítica semelhante
aos ―sem razão (OLIVEIRA, 2003a, p. 32).

Como nota Mendes (2015, p. 88), esse trabalho de Oliveira


propõe uma nova forma de compreender a própria realidade brasi-
leira e que incide, inclusive, sobre o contexto da época da ditadura
militar. Contra a utopia nacional-desenvolvimentista que imaginava
ser necessário integrar os setores atrasados da economia ao pro-
cesso de desenvolvimento e contra o projeto autoritário, conservador
e modernizador dos militares que viam esses setores como óbice à
grandeza nacional, Chico de Oliveira evidencia os nexos dialéticos
entre esses setores da economia nacional e os nexos dessa última
com o capitalismo internacional.

Não é o caso aqui de tentar comentar, ainda que en pasant,


os inúmeros textos de Oliveira desse período. Diferentemente da
primeira fase, nesta, Chico de Oliveira, fundamentalmente como
pesquisador no Cebrap (até 1995), foi bastante profícuo em sua pro-
dução bibliográfica. No contexto da crise de legitimidade da ditadura
militar e da subsequente redemocratização do país, além de explorar
as contradições da sociedade periférica brasileira, o autor procurou
investigar as possibilidades de promoção de igualdade e justiça no
Brasil por meio do fortalecimento do poder público. Em um artigo de
1985, "Além da transição, aquém da imaginação", ele afirma:
Um avanço no social, se é menos que saldar um débito, é
mais que uma saída para a "grande crise". Ele é o elemento
determinante para criar uma nova sociabilidade a partir
da qual se estabelecem os termos para a saída da "grande
crise": uma modificação importante na relação salarial,
uma reversão na "privatização" do social e na despoliti-
zação da economia, uma redefinição do público, e uma
outra trama representativa, que expresse as articulações
de interesses no interior do fundo público, e que ganhe um
estatuto constitucional para além da velha representação
de interesses da democracia representativa burguesa,

SUMÁRIO 342
isto é, de proprietários. O que poderá resultar numa arma-
dura institucional que estabeleça regras democráticas na
competição pelo fundo público, elo essencial tanto para
o financiamento da reprodução do capital quanto para o
financiamento do social. Nisto consistirá a instituição de
um pacto de "incertezas previsíveis", mais além do Estado
do Mal-Estar brasileiro, abrindo o passo para a supera-
ção mesma do Estado do Bem-Estar, que transformou o
acesso ao fundo público em campo de luta corporativista
(OLIVEIRA, 1985, p. 7).

Como nota Mendes (2015), após uma estadia de pesquisa


na França, entre 1982 e 1984, Chico de Oliveira volta ao Brasil bas-
tante impactado pelo contato que teve com o Estado de bem-estar
social europeu. Em textos posteriores como O elo perdido (1987) e
Os direitos do antivalor (1998a), Chico de Oliveira, inspirado pela luta
da classe trabalhadora europeia que desembocou no Welfare State,
aposta na regulação estatal em um processo de crescente politiza-
ção da economia, de modo a consolidar o que ele chama de direitos
do antivalor. Em um contexto de crescente mercantilização da vida
social, de um lado, e do malogro da experiência comunista, de outro,
o autor parece buscar encontrar uma via teórico-prática que possa
reavivar - realisticamente - a esperança de uma sociedade melhor.
Essa esperança estava assentada na ideia de que a reprodução
do capitalismo no pós-Guerra se deu mediante um financiamento
público. O controle e o uso desse fundo público constituem o "x" da
disputa política, na qual se opõe concepções antagônicas de Estado
e de sociedade: de um lado, o neoliberalismo, garantindo a submis-
são do Estado aos interesses particulares, e, de outro, a social-de-
mocrata, esposada por ele e que poderia constituir-se na "porta para
o socialismo" (Oliveira, 1998b, 28).

Em síntese, é como intelectual público marxista que Chico


de Oliveira procura compreender tanto os limites dos projetos de
modernização empreendidos pelos governos no pré-64 (Kubitschek
e Jango, especialmente), quanto as possibilidades de emancipação

SUMÁRIO 343
social no Brasil da Nova República. Sob esse ponto, Chico de Oliveira
parece se aproximar do tipo ideal de intelectual prevalecente nos
anos 1950 e 60 e representado pelos membros do Iseb (o Instituto
Superior de Estudos Brasileiros). Sobre isso, Angélica Lovatto (2021)
comenta que o golpe de 1964 operou uma ruptura significativa na
cultura brasileira, na medida em que a figura do intelectual público
foi, a partir daí, substituída pelo intelectual que tem seu trabalho
pautado por critérios mais acadêmicos. Obviamente, trata-se da
construção de dois "tipos ideais" de trabalho intelectual, por assim
dizer, que exageram os traços mais ou menos presentes em diferen-
tes gerações de pensadores: o primeiro tipo de intelectual, marcado
pela sua vocação pública, e o segundo, caracterizado por certo insu-
lamento do intelectual nas universidades, mais preocupado com os
indicadores de produtividade e com uma produção discursiva mais
voltada para um público mais restrito. Assim, apesar de já estar vin-
culado a uma instituição de pesquisa arquetípica das novas ciências
sociais no país, o Cebrap, e que, inclusive, antagonizava com a tradi-
ção nacional-desenvolvimentista do passado (Sorj, 2001) esse autor
parece, todavia, resistir, pela forma como pensa e escreve e pela sua
deliberada vontade de romper com os limites departamentais, à con-
versão a esse novo padrão de trabalho intelectual.

TERCEIRA FASE (2002-2019):


MARXISMO E DESILUSÃO
Quando dos primeiros anos de Lula no poder, Chico de
Oliveira já caracterizava em tons fortes o cenário brasileiro como
um “ornitorrinco”. Vinculado já ao Cenedic e à USP, o sociólogo
pernambucano procura investigar, nesta terceira fase, as recentes
mudanças que inviabilizaram as perspectivas de consolidação da
cidadania no século XXI.

SUMÁRIO 344
Conciliando a princípio aquilo que deveria ser inconciliável
– uma economia industrializada, mas em condição de subordinação
financeira e de forte urbanização e, ao mesmo tempo, domínio polí-
tico do agronegócio – Chico de Oliveira sustenta que o ornitorrinco
brasileiro é um ser híbrido (um mamífero ovíparo, com bico de pato,
que dá à luz a filhotes que mamam), e que desafia, portanto, a ima-
ginação sociológica. Trocando em miúdos, sua tese é que o país se
modernizou ao longo do século XX, mas de um modo “truncado”, isto
é, sem romper com padrões de sociabilidade e de cultura próprias
ao nosso passado colonial e escravista, o que explicaria a coexis-
tência de traços oligárquicos e autoritários e de aspectos avançados
da sociedade nacional. Mais do que isso, e reiterando uma tese sua
formulada no clássico Crítica à razão dualista, os elementos de atraso
são aquilo que, paradoxalmente, viabilizam a modernização do país,
de modo que nosso “subdesenvolvimento” não é uma etapa anterior
do desenvolvimento, nem tampouco um obstáculo ou elemento des-
conexo à ordem capitalista global, mas deve ser compreendido como
uma formação social peculiar aos países perifericamente integrados
ao processo de acumulação de capital. O "atraso" (evidenciado, por
exemplo, por um enorme contingente de pessoas terceirizadas e pre-
carizadas) é um meio para a "modernidade".

Ao final de "O ornitorrinco" (2003a), Oliveira identifica uma


convergência entre PT e PSDB (Partido da Social Democracia
Brasileira). Mais do que simplesmente uma concordância progra-
mática contingente (como por conta de o petista manter, no início
de seu governo, as linhas da política macroeconômica de FHC), ele
avalia que tal fenômeno decorre do surgimento de um novo tipo de
burocracia sindical, levada então à direção do Estado brasileiro, que
passa a administrar fundos de previdência privados e ter, portanto,
interesses muito similares à burguesia. Se, por um lado, o lulismo
promoveu o capitalismo internacional desde seus primeiros meses
de gestão, repetindo o feito de FHC, por outro lado, ele inovou, na
medida em que deu origem a uma nova classe social: não são mais

SUMÁRIO 345
trabalhadores, nem propriamente burgueses, mas uma elite sindi-
cal endinheirada, dado que administradores de enormes somas de
capital controlado pelo Estado brasileiro (Oliveira, 2003a: 147-148).
Essa nova fração de classe, simultaneamente trabalhadora e rentista,
exemplifica o estranho animal no qual o Brasil se converteu.

Em “Hegemonia às avessas” (2007), o sociólogo acentua sua


crítica afirmando que Lula realizou o programa neoliberal de modo
ainda mais radical do que seus antecessores, pois, ao desmobilizar
os movimentos sociais, minando as resistências populares, favo-
receu de modo espetacular a acumulação capitalista e inviabilizou
qualquer possibilidade de democratização do país. Dessa forma,
após a eleição do ex-metalúrgico, o país passou a viver uma con-
dição análoga à África do Sul sob o comando de Nelson Mandela:
“parece que os dominados dominam, pois fornecem a ‘direção
moral’ e, fisicamente, até, estão à testa do Estado” (Oliveira, 2010a:
26-27). Recorrendo criativamente à noção gramsciana de hegemo-
nia, Oliveira avalia que Lula e o PT não apenas negaram o projeto
político original pelo qual foram eleitos, mas, mais do que isso,
realizaram precisamente o seu avesso. O lulismo representaria, pri-
meiramente, uma degradação do PT, formado originalmente com o
propósito de transformar radicalmente a estrutura social brasileira.
Como um fenômeno histórico regressivo, o lulismo criou uma nova
forma de dominação política: “os dominados realizam a ‘revolução
moral’ – derrota do apartheid na África do Sul e eleição de Lula e
Bolsa Família no Brasil – que se transforma, e se deforma, em capi-
tulação ante a exploração desenfreada” (Oliveira, 2010a: 27). Se os
anos 90 foram marcados por intensas mobilizações sociais, a partir
do governo federal petista, o MST (Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra), entre outras forças de esquerda, aquietou-se. Mais
do que apenas “desmobilizador”, a era Lula seria um fenômeno de
cooptação dos movimentos sociais, como já denunciado em “O orni-
torrinco”, ao tratar da burocracia sindical.

SUMÁRIO 346
O ex-presidente, elevado à época à condição de “mito polí-
tico” teria também despolitizado a questão da pobreza e das desi-
gualdades, transformando-as, doravante, em temas de administração
pública. "Ele não tem inimigos de classe", ironiza Chico de Oliveira
(2003a: 144). Mesmo depois de viver décadas de crescimento eco-
nômico, o Brasil continua a ser um dos países mais atrasados do
ponto de vista da distribuição da riqueza. A “solução” dada por Lula,
como por meio do Bolsa Família, não apenas não resolve o problema,
mas, ao contrário, o agrava, pois funciona como o “mais poderoso
narcótico social” (Oliveira, 2003a: 144). Assim, afirma este sociólogo,
estão errados os intelectuais que compreendem essa política social
como um mecanismo de inclusão, pois, na realidade, ela representa
paradigmaticamente o novo modo de dominação, consolidando uma
exploração inédita no país com o consentimento dos dominados -
"anestesiados" pela recém-conquistada capacidade de consumo.

Em “O avesso do avesso”, Oliveira reitera que a era Lula apro-


fundou o ciclo neoliberal no Brasil, iniciado com os governos Collor,
Itamar e FHC. Os “músculos do Estado” já haviam sido destruídos
para realizar as privatizações (que, na sua concepção, consistiram
em uma transferência inédita de gigantesco patrimônio estatal para
agentes do mercado). Com Lula, foram os “músculos da sociedade”
que foram destroçados para garantir a reprodução do capital, sob
condições outrora inaceitáveis, a não ser na periferia do mundo e sob
o comando de um líder popular (Oliveira, 2010b: 375). Novamente,
esse autor assevera ser absolutamente falacioso o argumento de que
Lula teria sido responsável pela redução das desigualdades sociais,
resolvendo parcialmente um problema histórico de nossa formação
sociopolítica. Ao contrário, diz ele, o que Lula realizou foi um limitado
programa de combate à pobreza, mas que não impediu que os ricos
ficassem ainda mais ricos, como sugere o recorrente aparecimento
de milionários brasileiros nas listas da revista Forbes, assim como
indica a discrepância entre o montante gasto com o pagamento de
juros da dívida pública (200 bilhões de reais por ano) e os gastos com
Bolsa Família (10 a 15 bilhões de reais anuais) (Oliveira, 2010b: 374).

SUMÁRIO 347
O lulismo, segundo essa chave de interpretação, seria, na base, uma
nova forma de pacificação social dos conflitos entre capital e trabalho
e, no topo, a integração das cúpulas sindicais aos órgãos do Estado.
Uma forma de dominação social nova no país – a “hegemonia às
avessas” – que pode ser compreendida como um arranjo político
que viabilizou a superexploração do capital na periferia do mundo, o
que só seria possível sob a direção de um líder carismático.

Esses escritos de intervenção do sociólogo recifense eviden-


ciam, por um lado, a sua coerência com sua própria história como
intelectual público e como marxista (desde a segunda fase), e por
outro lado, indicam precisamente uma ruptura com a segunda fase
de seu pensamento, no qual Chico de Oliveira acreditava que - atra-
vés da mobilização social e da limitação através do Estado - seria
possível limitar os apetites do mercado em função do interesse
público, em direção à construção de um Welfare State brasileiro. Do
marxismo esperançoso, que via na social-democracia uma possibi-
lidade factual de construção de uma sociedade socialista no fim do
século XX, ao marxismo desiludido, que viu erodir as possibilidades
de resistência frente à vaga neoliberal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dados os limites deste escrito e da pesquisa que o embasou,
o que se pretendeu aqui foi simplesmente apresentar um esboço
de interpretação, detectando as linhas-mestras do desenvolvimento
do pensamento social de Chico de Oliveira. Para tal, baseamos esta
investigação em trabalhos de outros estudiosos do pensamento
brasileiro, além de alguns textos de autoria do próprio Oliveira.
Buscou-se evidenciar que esse desenvolvimento, ao longo de seis
décadas de trajetória intelectual, aproximadamente, caracteriza-se
pela substituição do radicalismo de classe média, embasado nos

SUMÁRIO 348
preceitos do nacionalismo desenvolvimentismo (primeira fase), por
um marxismo crítico, profundamente atento às condições de forma-
ção de uma sociedade burguesa na periferia capitalista e que aposta
(na segunda fase) no fortalecimento do poder público a fim de cos-
turar um novo pacto classista, social-democrata, para promover os
direitos da cidadania moderna, mas que acaba se desiludindo com
essa perspectiva (terceira fase), na medida em que as condições de
sua realização foram obstadas pela difusão do neoliberalismo, inclu-
sive incorporadas pelos setores de transformação social.

Antes de finalizar, resta, contudo, alguns apontamentos sobre


a relação entre esse pensamento e as tradições da teoria política
mundial e nacional. Em primeiro lugar, pode-se dizer que Chico de
Oliveira, nos escritos da primeira fase, parece conectar-se com as
vertentes que Roberto Guerra (1998) chama de liberalismo social, em
especial na sua chave keynesiana. Mas, como explicado, não se trata
de aplicação mecânica dessas teorias europeias à realidade nacio-
nal. Aplica-se à obra de Oliveira, a mesma sentença sobre a obra de
Furtado, nas palavras de um estudioso da cultura política nacional:
Como compreender, em síntese, o campo analítico-nor-
mativo da reflexão de Celso Furtado? É certo que ele se
formou em contato com a cultura do chamado liberalismo
social do pós-guerra, que tinha na matriz keynesiana o seu
centro configurador. Mas, em Furtado, o diagnóstico das
imperfeições do livre funcionamento do mercado é radica-
lizado para a indicação de suas distorções estruturais na
periferia do capitalismo e, neste contexto, o planejamento
e a intervenção estatal, de remédios anticíclicos, ganham
a importância vital para a própria definição das bases do
dinamismo econômico (GUIMARÃES, 2000, p. 21).

Radicalismo de classe média, nacional-desenvolvimentismo


e liberalismo social: são, portanto, noções que nos ajudam a come-
çar a compreender o pensamento do jovem Chico de Oliveira no pré-
64. Mas, como também já visto, esse pensamento transformou-se
mais algumas vezes ao longo das décadas seguintes. De 64 a 2019,

SUMÁRIO 349
Chico de Oliveira liga-se mais organicamente ao marxismo, o que
não significa dizer que o fez dogmática ou mecanicamente, muito ao
contrário. Marx, Gramsci, Benjamin, Polanyi são alguns dos autores
dessa tradição mobilizados por ele tanto para - naquilo que deno-
minamos aqui de segunda fase - defender a possibilidade de cons-
trução de uma social-democracia no país, quanto - na terceira fase -
para constatar a conversão dessa esperança em desilusão. Sob esse
aspecto, Chico de Oliveira se filia à longa linhagem de pensadores
marxistas do país - evocando nomes como Caio Prado Jr., Florestan
Fernandes, Luiz Werneck Vianna, dentre tantos outros - que - bus-
cando compreender o "lugar" do Brasil no mundo capitalista - tive-
ram o desafio de pensar (e tentar transformar) a política nacional
com as peculiaridades que lhe são próprias: de um país periférico,
ex-colonial, baseado por séculos na escravização negra etc.

REFERÊNCIAS
BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do
desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BRAGA, Ruy. Francisco de Oliveira. Bionotas. Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS).
Disponível em: https://sbsociologia.com.br/project/francisco-de-oliveira/. Acesso em: 25
de ago. 2023.
BRAGA, Ruy; MASCARO, Fábio. Apresentação - Chico de Oliveira e as reviravoltas
da crítica. In: OLIVEIRA, Francisco. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo:
Boitempo, 2018.
BRANDÃO, Gildo. Linhagens do pensamento político brasileiro. 2a ed. São Paulo:
Aderaldo & Rothschild Ed., 2010.
CANDIDO, Antonio. Radicalismos, Estudos Avançados, 4 (8), 1990.
CEPÊDA, Vera. Inclusão, democracia e novo-desenvolvimentismo: um balanço histórico,
Estudos Avançados, 26 (75), 2012.
GUERRA, Roberto. El liberalismo conservador contemporáneo. Universidad de la
Laguna, 1998.
GUIMARÃES, Juarez. A trajetória intelectual de Celso Furtado. In: TAVARES, Maria. Celso
Furtado e o Brasil. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 2000.

SUMÁRIO 350
LESSA, Renato. O campo da Ciência Política no Brasil: uma aproximação construtivista. In:
MARTINS, C. (org.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: ANPOCS, 2010.
LOVATTO, Angélica. Iseb: do nacional-desenvolvimentismo à revolução brasileira. Revista
Princípios, n. 162, jul./out. 2021.
MENDES, Flávio. O ovo do ornitorrinco: a trajetória de Francisco de Oliveira. Tese de
doutorado. Universidade Estadual de Campinas. Campinas: SP, 2015.
MONTERO, Paula; MOURA, Flávio (orgs.). Retrato de grupo: 50 anos do Cebrap. São
Paulo: Cosac Naify, 2009.
OLIVEIRA, Francisco. Além da transição, aquém da imaginação. Novos Estudos Cebrap,
n. 12, julho de 1985.
OLIVEIRA, Francisco. O elo perdido: classe e identidade de classe. São Paulo: Perseu
Abramo, 1987.
OLIVEIRA, Francisco. Os direitos do antivalor. Vozes: Petrópolis, 1998a.
OLIVEIRA, Francisco. O surgimento do antivalor: capital, trabalho e fundo público. Novos
Estudos Cebrap, n. 22, 1998b.
OLIVEIRA, Francisco. Um republicano exemplar. In: BRESSER-PEREIRA, Luiz. A grande
esperança em Celso Furtado: ensaios em homenagem aos seus 80 anos. São Paulo:
Ed. 34, 2001.
OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003a.
OLIVEIRA, Francisco. Nova classe social comanda governo Lula, diz sociólogo. Entrevista
com Francisco de Oliveira. Folha de São Paulo, 22 de setembro de 2003. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2209200313.htm. Acesso em: 26/10/18.
OLIVEIRA, Francisco. Hegemonia às avessas. In: BRAGA, Ruy, OLIVEIRA, Francisco, RIZEK,
Cibele (orgs.) Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão
financeira. São Paulo: Boitempo, 2010a.
OLIVEIRA, Francisco. O avesso do avesso. In: BRAGA, Ruy, OLIVEIRA, Francisco, RIZEK,
Cibele (orgs.) Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão
financeira. São Paulo: Boitempo, 2010b.
PERRUSO, Marco Antonio. Uma trajetória dissonante: Francisco de Oliveira, a SUDENE e o
CEBRAP. Cadernos CRH, v. 26, 67, 2013.
SORJ, Bernardo. A construção intelectual do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001.

SUMÁRIO 351
SOBRE OS ORGANIZADORES
E AS ORGANIZADORAS
Ana Rodrigues Cavalcanti Alves
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Professora Adjunta do Departamento
de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde
integra o PERIFÉRICAS – Núcleo de Estudos em Teorias Sociais, Modernidades e Colonialidades.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6506286038414113
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9121-882X
E-mail: [email protected]

Christiane Jalles
Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ, é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e membro do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCSO-UFJF). É autora do livro O bom combate: Gustavo Corção na
imprensa brasileira (1953-1976), publicado em 2015.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5761320624136237
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8955-5576
E-mail: [email protected]

Enio Passiani
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor do Departamento de Sociologia e dos
Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Segurança Cidadã da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS); editor adjunto do periódico Sociologias e líder do Grupo de Estudos em Cultura, Comunicação e Arte (GECCA-
Sul), registrado no CNPq.
Lattes: https://lattes.cnpq.br/3396333225250833
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9937-4413
E-mail: [email protected]

SUMÁRIO 352
Helga Gahyva
Doutora em Sociologia pelo IUPERJ, é professora associada do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas (IFCS) e docente pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
(PPGSA), ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autora de O inimigo do século: um estudo sobre
Arthur de Gobineau (1816-1882), publicado em 2012.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1502805689051677
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4581-7212
E-mail: [email protected]

Lucas Trindade
Professor Adjunto do Instituto Humanitas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN. Doutor em Sociologia pela UnB. Lidera o Grupo de Pesquisa Social (GPS)
da UFRN e integra os seguintes Grupos de Pesquisa: Periféricas - Núcleo de Estudos em Teorias Sociais, Modernidades
e Colonialidades (UFBA); Laboratório de Pesquisa e Estudos em Pensamento Social no Brasil (LAPES-Br).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0314360149038167
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3390-2046
E-mail: [email protected]

Marcos Abraão Ribeiro


Doutor em Sociologia Política pela UENF, professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Fluminense – IFFluminense. Seus temas de interesse são teoria social, pensamento social e político brasileiro,
relações étnico-raciais, sociologia dos intelectuais, modernização periférica e modernidade global, sociologia da
educação, ações afirmativas, racismo e desigualdade social.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9829894346836139
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6185-2448
E-mail:[email protected]

SUMÁRIO 353
Maro Lara Martins
Possui graduação em História pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestrado em Sociologia pelo Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e doutorado em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-UERJ). É Professor Adjunto do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e coordenador do Núcleo de Teoria Social e Interpretação
do Brasil (Netsib-UFES).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6769360859491465
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5898-6632
E-mail: [email protected]

Sergio B. F. Tavolaro
Professor Associado do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade
de Brasília. É Doutor em Sociologia pela The New School for Social Research e Bolsista Pesquisador do CNPq.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5442207538362236
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2755-3361
E-mail: [email protected]

SUMÁRIO 354
SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS
Alan Caldas
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) (2007), Mestre em Ciências Sociais
pela mesma instituição (2012) e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) (2021). Foi
professor de sociologia na Educação Básica (2011-2019), professor de sociologia do Departamento de Educação da
Universidade Estadual Paulista (2022), praticante de capoeira angola por mais de 20 anos, interessado em ciências
e tecnologias abertas. É membro do grupo Ideias e Intelectuais para o desenvolvimento e a democracia? (CNPq).
Desenvolve pesquisas no campo do pensamento político e social brasileiro e da sociologia da cultura (instituições,
intelectuais, teorias, culturas negras, relações raciais).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7011441525925785
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7049-2106
E-mail: [email protected]

Ana Rodrigues Cavalcanti Alves


Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Professora Adjunta do Departamento
de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde
integra o PERIFÉRICAS – Núcleo de Estudos em Terias Sociais, Modernidades e Colonialidades.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6506286038414113
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9121-882X
E-mail: [email protected]

Bárbara Luisa Fernandes Pires


Doutoranda e mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp. Pesquisadora
convidada na EHESS. Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela Unicamp.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9501197034630390
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0461-2034
E-mail: [email protected]

SUMÁRIO 355
Bárbara Vital de Matos Oliveira
Possui Mestrado (2015) e Doutorado (2022) pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF), tendo defendido a tese intitulada "Entre lembranças, esquecimentos e silenciamentos:
trajetória e legado de Itamar Franco", sob orientação da Professora Doutora Christiane Jalles de Paula.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9320102600097870.
E-mail: [email protected]

Diogo Valença de Azevedo Costa


Professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). É doutor em Sociologia pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). Organizador do livro Florestan Fernandes: trajetória, memórias e dilemas do Brasil
(SOARES, COSTA, 2021) e autor de Florestan Fernandes’ Critical Sociology: a social theory of Brazil and Latin America
(COSTA, SOARES, 2024).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2479674991874027
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5266-9855
E-mail: [email protected]

Luã Ferreira Leal


Bacharel na Escola de Ciências Sociais do CPDOC/FGV. Licenciado em Ciências Sociais pela Unicamp. Mestre e doutor
pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp.
Lattes: https://lattes.cnpq.br/1416767402474092
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4570-2017
E-mail: [email protected]

Lucas Amaral de Oliveira


Pesquisador Visitante na Universidade de Copenhagen (Dinamarca) no âmbito do Programa CAPES-PrInt, Professor
do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA e um dos líderes do
PERIFÉRICAS - Núcleo de Estudos em Teorias Sociais, Modernidades e Colonialidades.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0974813858531390
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1272-4722
E-mail: [email protected]

SUMÁRIO 356
Lucas Trindade
Professor Adjunto do Instituto Humanitas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN. Doutor em Sociologia pela UnB. Lidera o Grupo de Pesquisa Social (GPS)
da UFRN e integra os seguintes Grupos de Pesquisa: Periféricas - Núcleo de Estudos em Teorias Sociais, Modernidades
e Colonialidades (UFBA); Laboratório de Pesquisa e Estudos em Pensamento Social no Brasil (LAPES-Br).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0314360149038167
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3390-2046
E-mail: [email protected]

Marcelo Sevaybricker Moreira


Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas (UFMG) e professor da Universidade Federal de Lavras
(UFLA). Pesquisa temas da teoria política e do pensamento político brasileiro contemporâneos.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6211275704032299
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3255-5532
E-mail: [email protected]

Marcos Abraão Ribeiro


Doutor em Sociologia Política, professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Fluminense – IFFluminense.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9829894346836139
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6185-2448
E-mail: [email protected]

Maro Lara Martins


Doutor em Sociologia, professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do
Espírito Santo (Ufes)
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6769360859491465
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5898-6632
E-mail: [email protected]

SUMÁRIO 357
Mateus Lôbo
Mestre em Ciência Política e doutorando no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1385245458115011
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4139-8046
E-mail: [email protected]

Matheus de Carvalho Barros


Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ). Pesquisador associado ao NEPS
(Núcleo de estudos comparados e pensamento social).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1827391223830793
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3895-3961
E-mail: [email protected]

Nikolas Pallisser Silva


Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos,
com bolsa CAPES. Mestre em Sociologia pelo mesmo programa (2019), com bolsa do CNPq. Graduado em Ciências
Sociais (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Estadual de Londrina (2016). É membro do grupo de estudos
Transnacionalismo Negro e Diáspora Africana e tem atuado principalmente com os seguintes temas: Intelectuais
e Transnacionalismo Negro; Estudos Pós-Coloniais; Ações Afirmativas; Estudos da Diáspora Africana; Pensamento
Social Brasileiro.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5185937737395138
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2637-4097
E-mail: [email protected]

Rafael Gomes N. Pereira


Doutorando em Sociologia (PPGSOL/UnB) e bolsista CNPq.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7837721274081643.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4722-0425.
E-mail: [email protected].

SUMÁRIO 358
Roberto Dutra
Doutor em sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin, professor associado da Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9879768833653743
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7854-1139
E-mail: [email protected]

Vânia Noeli Ferreira de Assunção


Graduada (Cufsa), mestre e doutora (PUC-SP) em ciências sociais, professora do curso de serviço social da
Universidade Federal Fluminense (UFF – Rio das Ostras). Coeditora da Verinotio – Revista on-line de Filosofia e
Ciências Humanas.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9958750868033184
ORCID: 0000-0003-4119-9987
E-mail: [email protected]

Victor Coutinho Lage


Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC) e do Programa
de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI), ambos da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Editor-chefe rotativo do periódico International Political Sociology. Líder do grupo de pesquisa Interpretações
do Brasil e Marcadores de Discriminação em Perspectiva Global. Cofundador do site errante, o Internacional
fora do lugar (errante.blog).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4880243846585232
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0998-3619
E-mail: [email protected]

SUMÁRIO 359
ÍNDICE REMISSIVO
A D
Academia 58, 75, 147 democracia 13, 15, 57, 70, 100, 101, 119, 122, 177, 178, 184, 209,
Amefricanidade 16, 96, 107, 108 282, 284, 287, 300, 301, 306, 313, 314, 316, 317, 318,
319, 320, 323, 325, 328, 329, 330, 332, 333, 345,
Anpocs 11, 12, 124, 207
353, 354
antropologia 17, 64, 93, 129, 136, 138, 140, 152, 153, 239, 241,
diálogo 14, 20, 60, 103, 118, 119, 185, 186, 195, 199, 219, 257, 265,
246, 335
318, 328, 330, 333
autonomia 16, 18, 46, 173, 217, 228, 266, 311, 312, 313, 316,
Discoteca Pública 49, 59
327, 345
discriminação 348
C
diversidade 13, 112, 148, 281, 325
capitalismo 18, 21, 22, 98, 106, 112, 113, 157, 158, 159, 161, 162, 164,
165, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 175, 176, 227, E
260, 264, 265, 268, 269, 270, 278, 279, 280, 281, educação 53, 77, 91, 142
282, 283, 284, 285, 286, 288, 289, 295, 301, 305, ELSP 17, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 138, 139, 151, 257
310, 311, 312, 313, 314, 315, 316, 317, 319, 320, 322,
Escola Livre de Sociologia e Política 17, 102, 130, 266
323, 324, 325, 326, 327, 328, 329, 330, 331, 338,
339, 340, 341, 342, 343, 344, 345, 346, 347, 349, escravidão 38, 109, 117, 119, 301, 353
350, 351, 353, 354 Estabelecidos 13, 14
ciências sociais 43, 63, 91, 92, 124, 133, 134, 136, 152, 206, 207, estética 47, 49, 57, 250, 254
208, 209, 210, 238, 239, 260, 296, 334 etnia 17, 97, 104, 106, 201, 215
classe 17, 18, 22, 49, 67, 74, 75, 80, 88, 89, 97, 100, 104, 106, 122,
158, 159, 160, 161, 163, 173, 174, 201, 215, 267, 272, F
274, 279, 285, 286, 309, 314, 317, 320, 322, 323, folclore 47, 49, 59, 60, 63
330, 331, 333, 339, 345, 347, 350, 351, 352, 353, G
354, 358
gênero 13, 16, 17, 46, 47, 48, 49, 54, 64, 75, 97, 100, 101, 104, 106,
classe social 161, 330, 331, 333 110, 112, 122, 123, 164, 201, 215
CNPq 14, 264 globalização 172, 174, 303
colonialismo 20, 22, 98, 106, 119, 201, 202, 215, 217, 338, 340,
349, 350, 352 H
contradições 162, 167, 279, 286, 287, 290, 315 hegemonia 51, 81, 159, 163, 173, 174, 210, 256, 327, 334
crítica cultural 49 herança 30, 36, 46, 62, 133, 171, 190, 191, 252, 258, 271, 299, 301,
302, 312, 353
cultura nacional 42
heterodoxia 14
cultura popular 34, 43, 49

SUMÁRIO 360
história 31, 44, 55, 63, 64, 76, 78, 88, 89, 91, 99, 106, 108, 110, 116, modernidade 16, 17, 19, 22, 57, 67, 68, 70, 71, 72, 76, 80, 88, 97,
118, 119, 129, 132, 140, 146, 159, 160, 161, 163, 174, 108, 115, 117, 119, 122, 166, 177, 187, 190, 191, 192, 193,
184, 185, 186, 188, 194, 214, 216, 218, 220, 226, 231, 194, 196, 198, 200, 205, 206, 207, 208, 209, 210,
235, 236, 248, 251, 252, 254, 255, 256, 258, 270, 239, 253, 278, 295, 296, 297, 298, 299, 300, 301,
271, 278, 285, 286, 287, 288, 289, 290, 300, 322, 302, 303, 304, 305, 307, 312, 314, 318, 326, 327,
326, 330, 333, 342, 343, 344, 353, 359 329, 331, 334
história do Brasil 31 Modernismo 28, 42
história intelectual 186, 214, 220, 226, 236 movimento modernista 27, 28, 34, 36, 62
história social 64, 186, 322 N
historiografia 186 nacionalidade 33, 104, 150
I nacionalismo 113, 209, 298, 330
identidade 34, 42, 43, 50, 51, 56, 64, 85, 88, 89, 93, 102, 118, O
124, 167
ortodoxia 14
identidade nacional 43, 51, 56
Outsiders 13
ideologia 91, 92, 265, 291
P
integração 14, 69, 85, 86, 141, 142, 149, 255, 276, 277, 279, 281,
289, 291, 304, 306, 307, 327, 333, 348 patriarcado 106
intelectual 15, 17, 21, 22, 23, 26, 30, 46, 47, 48, 49, 51, 52, 53, 55, patrimônio 63, 231
57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 68, 75, 76, 93, 111, Pensamento Social Brasileiro 11, 12, 13, 14, 15, 264
121, 130, 131, 134, 138, 142, 150, 153, 185, 186, 191, produção do conhecimento 11, 19, 111, 114
198, 209, 214, 215, 216, 219, 220, 226, 227, 229, 233,
234, 235, 236, 256, 264, 266, 267, 270, 273, 274, produção intelectual 46, 47, 61, 186, 198, 276, 303
275, 276, 303, 318, 331, 341, 342, 359 R
intelectualidade 253 raça 17, 22, 30, 32, 37, 38, 41, 43, 97, 104, 106, 110, 112, 113, 122,
interdisciplinaridade 99 138, 202, 215, 222, 261, 309, 339, 350, 351, 352,
interpretações 11, 12, 63, 108, 111, 184, 185, 188, 189, 190, 191, 193, 353, 354
194, 195, 196, 197, 209, 215, 216, 217, 218, 225, 267, reconhecimento 16, 48, 69, 73, 76, 101, 124, 125, 134, 147, 194, 199,
275, 344 204, 218, 226, 235, 271, 352
interseccionalidade 17, 97, 98, 103, 104, 105, 106, 108, 111, 112, redução sociológica 19, 20, 214, 220, 221, 222, 223, 231, 232,
115, 118, 119, 122 233, 234, 235, 238, 240, 259, 261
L regionalismo 43
legitimidade 69, 71, 72, 73, 74, 78, 89 relações sociais 29, 41, 62, 89, 101, 165, 254, 353
literatura 12, 29, 47, 48, 60, 177, 222, 253, 321, 322, 326 releitura 11, 19, 20, 21, 110, 213, 214, 219, 220, 224, 225, 226, 227,
232, 235, 236, 331, 339
M religião 149, 310
marxismo 22, 175, 176, 274, 277, 341, 358 representação 50, 64, 75, 114, 167, 188, 268, 318
memória 15, 46, 47, 63, 71, 86, 92, 329 resistência 17, 97, 107, 108, 109, 113, 144, 169, 219, 228, 281, 299
mestiçagem 39, 41, 56, 138 ressignificação 11, 118
Retrato do Brasil 15, 26, 28, 29, 30, 32, 33, 36, 39, 42, 43, 44

SUMÁRIO 361
S subjetividade 101, 103, 113, 115, 116, 117, 119, 120, 140, 192, 245, 252,
Semana de Arte Moderna 13, 26, 28, 43, 44, 49 253, 254, 255, 257, 259, 352
socialismo 178, 272, 274, 276, 281, 283, 285, 286, 287, 289, T
290, 322 teoria crítica 207, 241, 328
sociedade 18, 19, 22, 26, 31, 32, 35, 38, 40, 42, 43, 46, 47, 67, 68, teoria social 14, 19, 21, 193, 194, 195, 196, 198, 199, 204, 205, 206,
69, 72, 73, 74, 75, 77, 82, 85, 101, 102, 133, 137, 141, 209, 214, 220, 224, 225, 226, 227, 235, 260, 289,
142, 143, 144, 149, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 167, 290, 295, 298, 330
173, 184, 186, 188, 189, 192, 195, 200, 201, 202, 203,
teorização 17, 98, 103, 111, 121, 195, 198, 254, 268, 269, 281
204, 216, 217, 222, 223, 229, 233, 253, 255, 266,
274, 275, 276, 278, 279, 280, 282, 284, 285, 286, tradição 15, 16, 18, 27, 28, 44, 45, 47, 57, 62, 66, 68, 70, 76, 77, 80,
287, 291, 299, 301, 302, 304, 307, 308, 310, 311, 318, 86, 91, 151, 214, 215, 219, 224, 225, 226, 227, 229,
319, 323, 325, 327, 331, 332, 333, 341, 342, 346, 236, 257, 299, 330, 341
347, 348, 350, 352, 353, 354 transformação 28, 48, 49, 98, 108, 144, 149, 161, 162, 163, 164,
sociologia 19, 20, 21, 55, 92, 99, 133, 152, 184, 186, 191, 195, 207, 169, 175, 187, 202, 223, 272, 275, 285, 306, 313, 314,
209, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 224, 317, 319, 325, 327, 341, 342, 343, 344, 350, 352
225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, transgressão 57
235, 236, 237, 238, 239, 240, 251, 252, 256, 258,
261, 264, 265, 266, 267, 268, 269, 270, 273, 278, U
290, 297, 299, 300, 301, 302, 304, 305, 313, 324, UFPE 11, 333
330, 332, 334, 359 UFRJ 11, 90, 152, 177, 240, 261
subalternidade 19, 103, 112, 115, 117, 120, 188, 196 USP 49, 54, 63, 64, 90, 91, 266, 267, 275, 359

SUMÁRIO 362

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