Estabelecidos e Outsiders Do Pensamento Social Brasileiro
Estabelecidos e Outsiders Do Pensamento Social Brasileiro
Estabelecidos e Outsiders Do Pensamento Social Brasileiro
E79
Livro em PDF
ISBN 978-85-7221-177-2
DOI 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2
CDD: 301
PIMENTA CULTURAL
São Paulo • SP
+55 (11) 96766 2200
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CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO
Doutores e Doutoras
PARTE I
CAPÍTULO 1
Mateus Lôbo
Diálogos modernistas entre Paulo Prado
e Gilberto Freyre.......................................................................................25
CAPÍTULO 2
Bárbara Luisa Fernandes Pires
Luã Ferreira Leal
As herdeiras e a tradição modernista:
Oneyda Alvarenga, Gilda de Mello e Souza
e o legado de Mário de Andrade...........................................................................45
CAPÍTULO 3
Bárbara Vital de Matos Oliveira
O engenheiro Itamar Franco,
entre a tradição e o moderno...............................................................65
CAPÍTULO 4
Victor Coutinho Lage
Amefricanidade e pretuguês:
a fala do lixo da lógica........................................................................................93
CAPÍTULO 5
Rafael Gomes N. Pereira
Darcy Ribeiro e a Antropologia:
breves notas biográficas acerca de uma escolha................................................. 123
CAPÍTULO 6
Vânia Noeli Ferreira de Assunção
Apontamentos sobre a percepção
da formação do capitalismo brasileiro
como “via prussiana” em Carlos Nelson
Coutinho e sua crítica por J. Chasin................................................. 148
PARTE II
RELEITURAS DO PENSAMENTO
SOCIAL BRASILEIRO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
CAPÍTULO 7
Marcos Abraão Ribeiro
Roberto Dutra
Maro Lara Martins
Para além do atraso e da singularidade:
a atualidade do pensamento social e político brasileiro......................................... 170
CAPÍTULO 8
Ana Rodrigues Cavalcanti Alves
Lucas Amaral de Oliveira
Redimensionando Guerreiro Ramos:
um exercício de releitura da sociologia brasileira................................................. 197
CAPÍTULO 9
Nikolas Pallisser Silva
Alan Caldas
A recepção e a crítica do conceito
de “sobrevivências africanas”
no pensamento de Guerreiro Ramos (1948–1955).......................... 225
CAPÍTULO 10
Diogo Valença de Azevedo Costa
Florestan Fernandes
e o estilo lumpen de pensamento:
uma sociologia marginal na periferia do capitalismo............................................ 244
CAPÍTULO 11
Lucas Trindade
Um Florestan para além
da “tese da singularidade brasileira”.............................................. 271
CAPÍTULO 12
Matheus de Carvalho Barros
O significado do protesto negro:
colonialismo, capitalismo dependente
e questão racial em Florestan Fernandes............................................................. 311
CAPÍTULO 13
Marcelo Sevaybricker Moreira
Um esboço de interpretação sobre
o pensamento social de Chico de Oliveira:
do radicalismo de classe média ao marxismo..................................................... 328
SUMÁRIO 11
fornece-lhes novos empuxos interpretativos e revigora as interpreta-
ções sobre a realidade sócio-histórica que primeiro nos convocou,
a nós e às/aos nossas/os clássicas/os. As abordagens que lá foram
desenvolvidas revelavam que as/os autoras/es e suas respectivas
obras podem ser rejuvenescidas/os à medida que envelhecem
somente se não as/os abandonamos. Para ousar um neologismo
que remete a outro autor - desta vez da literatura - que não se deve
voltear, Guimarães Rosa, diríamos que se sentar à mesa junto de
nossas/os clássicas/os é a melhor maneira de fazê-los “rejuvelhecer”.
SUMÁRIO 12
É preciso enfatizar que uma de nossas preocupações era (e con-
tinua a ser) justamente estimular a diversidade étnico-racial,
de gênero e regional do encontro e das demais atividades que
porventura realizemos.
SUMÁRIO 13
em outras palavras, trabalhos que retornassem às/aos clássicas/os
(ortodoxia) imbuídos das questões ou interpelações advindas das
margens (heterodoxia) do pensamento; 3) trabalhos que tensionas-
sem a separação entre “teoria” e “pensamento” a partir das proble-
máticas postas pelo Pensamento Social Brasileiro, tomando, nesse
sentido, o pensamento como o “outsider” da teoria “estabelecida”, em
consideração ao estatuto teórico (ou não) do primeiro, obrigando a
rediscutir os critérios definidores da teoria social.
SUMÁRIO 14
A floração daquele nosso primeiro empreendimento, em 2021,
foi rápida e os frutos não pararam – e oxalá não cessem – de crescer.
Por conseguinte, a colheita se renova a cada ano, como é o caso deste
livro que, agora, o/a leitor/a tem em mãos. Esperamos que sua leitura
seja tão prazerosa e satisfatória como tem sido o nosso trabalho.
SUMÁRIO 15
reconhecimentos como intérpretes do modernismo brasileiro. Pires e
Leal mostram que as relações Mário-Oneyda e Mário-Gilda foram da
subordinação própria à condição de discípulas à autonomia relativa.
A estratégia teórico-metodológica adotada por Bárbara Pires e Luã
Leal, fundamentada nas orientações de Pierre Bourdieu, de atenção à
ilusão biográfica, produz excelentes rendimentos. Oneyda e Gilda são
analisadas tendo suas trajetórias cruzadas, revelando os impactos dos
marcadores sociais de gênero, de região e de geração em percursos
intelectuais. O texto de Bárbara Pires e Luã Leal contribuem para o
entendimento das condições sociais da produção e para as formas de
legitimação e de reconhecimento das intelectuais no Brasil.
SUMÁRIO 16
de Lélia González, para inserir-se criticamente nos debates em torno
da relação entre interseccionalidade (de raça, etnia, gênero, classe,
sexualidade, entre outros) e agência de subjetividades “não ociden-
tais” (para além da resistência ou silenciamento), em particular na
teoria política, na teoria sociológica e na teoria das relações interna-
cionais. Para Lage, González contribui para esse debate na medida
em que propõe uma teorização sobre a agência que articula: uma
abordagem interseccional dos marcadores sociais de discriminação;
um olhar indisciplinar (herético em relação às fronteiras disciplina-
res) quando observa a heterogeneidade das formas de agência que
constituem a formação brasileira; uma perspectiva internacional,
que relaciona a agência com a dinâmica, passada e presente, das
relações coloniais. Ao longo do texto, o autor propõe frutíferas inter-
locuções entre a obra de González e o trabalho de autoras/es como
W.E.B Du Bois (a relação entre modernidade e linha de cor em nível
global) e Gayatri Spivak (e sua problematização sobre a im/possibi-
lidade da fala subalterna).
SUMÁRIO 17
pesquisador do órgão. Pereira defende que a passagem de Darcy
pelo SPI conferiu-lhe condições de sistematizar suas pesquisas por
meio da experiência de campo e da consolidação de uma tradição de
estudos acerca do indigenismo, que mobilizaram seu pensamento
por décadas seguintes na busca das raízes da brasilidade.
SUMÁRIO 18
os elementos gerais do pensamento social e político brasileiro, por
meio de sua definição, exposição e crítica das teses do atraso e
da singularidade realizadas por Jessé Souza, Sérgio Costa, Sergio
Tavolaro e Christian Lynch. As leituras criticadas são responsáveis
por interpretar o Brasil como realidade social e política essencial-
mente inferior às sociedades centrais. Os autores do capítulo defen-
dem a necessidade de ruptura com as teses supracitadas para que
a produção das ciências sociais brasileiras se afaste da posição de
subalternidade estrutural na geopolítica do conhecimento. A partir
das teorias de Jessé Souza, José Maurício Domingues e Wanderley
Guilherme dos Santos, eles contestam a distinção entre teoria social
e política geral e pensamento social e político particular, isto é, o
monopólio dos autores cêntricos na definição e produção de teoria. A
partir da teoria da sociedade mundial de Niklas Luhmann, que trans-
cende a diferença colonial entre centro/periferia, os autores defen-
dem que a atualidade da produção brasileira está em caracterizá-la
como teoria social e política. Assim, haverá condições de estabelecer
diálogos mais horizontais com as/os teóricas/os dos países centrais,
pois a tarefa principal é caracterizar o pensamento social e político
brasileiro como um campo de produção do conhecimento que ofe-
rece conceitos e inovações teóricas que possibilitam condições de
estabelecer novas formas de compreensão sobre a modernidade
social e política amplamente concebida.
SUMÁRIO 19
contextos periféricos e pelo combate ao eurocentrismo e ao colo-
nialismo que informam as ciências sociais. Embora essa discussão
seja mobilizada no texto como uma possibilidade de aproximação
com abordagens pós-coloniais, os autores também destacam as
diferenças em relação às posições mais radicais que advogam uma
ruptura com teorias e ideais normativos produzidos no Atlântico
Norte. A redução sociológica – definida por Guerreiro Ramos como
um método crítico-assimilativo de repertórios teóricos de fora, adap-
tados localmente – é percebida como registro epistemológico dessa
preocupação no contexto nacional. Nesse sentido, a releitura empre-
endida da redução sociológica expressa não somente a atualidade
do autor, mas também o potencial de um diálogo cruzado entre a
sociologia brasileira e o pensamento pós-colonial.
SUMÁRIO 20
Os capítulos dez, onze e doze convergem por realizarem, a
partir de diferentes perspectivas, e salientado temas diversos, relei-
turas do pensamento de Florestan Fernandes.
SUMÁRIO 21
como uma experiência de modernidade inautêntica, desviante e sin-
gular. Três são os momentos da obra de Florestan salientados ao
longo do texto: a) um primeiro, de pleno enquadramento no interior
da tese que concebe o Brasil como uma singularidade inautêntica e
desviante; b) um segundo momento no qual o diagnóstico da sin-
gular modernidade brasileira (feito em contraste com modelos clás-
sicos) se desatrela do imaginário do desvio e do inautêntico; c) um
terceiro momento que tensiona e vai além do próprio imaginário da
singularidade brasileira.
SUMÁRIO 22
Sem perder de vista a recorrência de agendas de reflexão que atra-
vessam parte considerável de sua vasta produção, a opção anun-
ciada é pelo exame dos distintos momentos do percurso intelectual
percorrido por Chico de Oliveira, atento às viradas teóricas e às alte-
rações de percepção a propósito do cenário político e econômico
contemporâneo. Como outros textos do volume ora apresentado, o
capítulo em tela constitui uma ótima oportunidade não apenas para
se estimar a atualidade de obras de interpretação do Brasil, mas tam-
bém para fazê-las dialogar e, por que não dizer, polemizar com os
“cânones” da teoria sociológica.
As/os Organizadoras/es
SUMÁRIO 23
Par te
MODERNISMOS
I
E INVENÇÕES
DO BRASIL
1
Mateus Lôbo
DIÁLOGOS MODERNISTAS
ENTRE PAULO PRADO
E GILBERTO FREYRE
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.1
INTRODUÇÃO
O percurso modernista de Paulo Prado abarca o mecenato de
artistas do movimento e a organização da Semana de Arte Moderna
de 1922. Natural de São Paulo, é de sua autoria Retrato do Brasil,
obra de impacto quando publicada em 1928. Poucos anos mais
tarde, em dezembro de 1933, o sociólogo pernambucano Gilberto
Freyre apresentou ao público Casa-grande & senzala, ensaio que
comunga o ideário do movimento, segundo o qual era preciso pen-
sar a sociedade brasileira a partir de sua originalidade cultural. Este
trabalho tem como objetivo analisar e comparar essas duas obras.
Na primeira parte, serão exploradas as conexões de Prado com o
modernismo em São Paulo. Em seguida, discutiremos a premissa,
desenvolvida em Retrato do Brasil, que aponta para certa “tristeza”
definidora do povo brasileiro. Na terceira parte, será examinada a
trajetória intelectual de Freyre nos anos 1920 e seus diálogos com
o modernismo. Por fim, na última seção, veremos que os ensaios
Retrato do Brasil e Casa-grande & senzala estão mais distantes do
que próximos em suas conclusões, apesar de surgirem de preocupa-
ções sociais similares.
PAULO PRADO:
MECENAS DO MODERNISMO
Embalada pelo fim da Primeira Guerra Mundial, a segunda
década do século XX foi um período de acontecimentos que consoli-
daram, no Brasil, constata Milton Lahuerta (1997), um “páthos de rup-
tura” com a Primeira República. No campo cultural, a Semana de Arte
Moderna de 1922 é um evento crucial da época, que tem como ponto
culminante a chamada “Revolução de 1930”. Não só pela Semana em si,
SUMÁRIO 26
mas pelas preocupações posteriores que ela potencializou em torno
da originalidade da cultura brasileira e de sua relação com a Europa
(cf. DUARTE, 2014). Prado, paulista proveniente da abastada família
cafeicultora, desempenhou um papel crucial no patrocínio do encon-
tro e no movimento modernista.
1 Considerado um dos mais influentes arquitetos do século XX, Le Corbusier desenhou uma casa
para Prado, o projeto está sob a guarda da Fondation Le Corbusier. Disponível em: https://www.
fondationlecorbusier.fr/oeuvre-architecture/projets-villa-paulo-prado-sao-paulo-bresil-1929/
Acesso em: 31 de jan. de 2024.
SUMÁRIO 27
(...), se ele patrocinava de maneira tão ativa os fogosos
modernistas paulistas, chegando até a jogar azeite sobre
o seu fogo de alegria, era para descansar da preocupação
pelos negócios ele se ocupava de café, de finanças inter-
nacionais, de plantações muito mais do que para fazer
escândalo. Mas havia também amadorismo no seu caso.
Assim, foi ele quem trouxe o primeiro quadro cubista para
o Brasil, uma tela de Fernand Léger, que ele pendurou de
cabeça para baixo no seu salão!... o que transtornou seus
sobrinhos e revolucionou mais do que qualquer coisa no
mundo o mau gosto bem conhecido dos milionários da
cidade (CENDRARS, 1976, p. 109).
2 Em um balanço de 1942, vinte anos depois da Semana, Mário de Andrade escreveria as seguintes
palavras a respeito do papel de Prado para que o evento ocorresse: “Quem teve a ideia da Semana?
Por mim não sei quem foi, só posso garantir que não fui eu. O mais importante era decidir e poder
realizar a ideia. E o autor verdadeiro da Semana de Arte Moderna foi Paulo Prado. E só mesmo
uma figura como ele e uma cidade como São Paulo, poderiam fazer o movimento modernista e
objetivá-lo na Semana. (ANDRADE, M, 1942). Já em 1954, Oswald de Andrade destacaria, no artigo “O
modernismo”, o espaço privilegiado que Prado cedia, em sua residência, para as tertúlias moder-
nistas: “Nunca será demais exaltar uma figura central do movimento modernista. Foi Paulo Prado.
(...). Sem a inteligência e a compreensão de Paulo Prado, nada teria sido possível. (...). Paulo Prado
abriu-nos sua casa em Higienópolis. Recebia magnificamente. Os seus almoços dos domingos
eram faustosos. Além de se comer e beber dentro duma grande tradição civilizada, ali se debatiam
os problemas candentes da transformação das letras e das artes. Pode se dizer que, depois da
pobreza de minha garçonnière na Praça da República, foi a casa de Paulo Prado o centro ativo
onde se elaborou o Modernismo.” (ANDRADE, O., 1954)
SUMÁRIO 28
UM RETRATO TRISTE DO BRASIL
Retrato do Brasil obteve significativa repercussão desde
sua primeira edição, em 1928, sendo reimpresso duas vezes no ano
seguinte (CALIL, 2012). Apenas entre 1928 e 1929, mais de 60 artigos
foram publicados em jornais brasileiros discutindo a obra, especial-
mente no Rio de Janeiro e em São Paulo3. Outra marca de triunfo
do livro consiste no fato de ter sido escolhido pelos Departamento
Nacional de Ensino, órgão que normatizava a educação no Brasil no
período, para ser traduzido para divulgação no exterior. No livro, Prado
propõe “esboçar uma visão panorâmica do povoamento e evolução
da terra brasileira”, como afirmado na nota da 4ª edição do ensaio.
3 Contagem realizada a partir de levantamento feito por Calil (2012) a respeito da fortuna crítica de
Retrato do Brasil até sua 3º edição lançada em 1931.
SUMÁRIO 29
sem uma “solidez de pensamento e estudo” (Ibidem, p. 123) capaz
de promover transformações sociais significativas. Conforme Prado,
os líderes políticos da época praticaram um “liberalismo palavroso”,
promulgando leis sem uma efetiva intervenção capaz de impulsionar
o progresso do Brasil.
SUMÁRIO 30
ensaio incluem as Ordenações do Santo Ofício, documentos oficiais
e relatos de religiosos, como os de Frei Vicente de Salvador e os dos
padres Anchieta e Antônio Vieira. Além disso, ele utilizou crônicas de
autores como Francisco Coreal, Gabriel Soares de Sousa, Jean Léry,
Pêro de Magalhães Gândavo e Saint-Hilaire.
4 Segundo Carlos Augusto Berriel (1994), Paulo Prado patrocinou no Brasil a impressão das seguin-
tes obras: 1) Diário da navegação de Pero Lopes de Sousa, 1530-1532; 2) Histoire De La Mission Des
Peres Capucins En L'Isle De Maragnan Et Terres Ciconvoisines do religioso Claude d'Abbeville; 3)
Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça,
Capelão fidalgo Del rei nosso senhor e do seu Desembargo, deputado do Santo ofício. Confissões
da Bahia, 1591-1592; 4) Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor
Furtado de Mendonça, Capelão fidalgo Del rei nosso senhor e do seu Desembargo, deputado do
Santo ofício. Denunciações da Bahia, 1591-1593.
SUMÁRIO 31
do vício sexual. Ao findar o século das descobertas,
o que sabemos do embrião de sociedade então existente
é um testemunho dos desvarios da preocupação eró-
tica. (...). Os fenômenos de esgotamento não se limitam
às funções sensoriais e vegetativas; estendem-se até o
domínio da inteligência e dos sentimentos. Produzem no
organismo perturbações somáticas e psíquicas, acom-
panhadas de uma profunda fadiga, que facilmente toma
aspectos patológicos, indo do nojo até o ódio. Por outro
lado, como derivativo dessa paixão, outro sentimento sur-
gia na alma do conquistador e povoador, outro sentimento
extenuante na sua esterilidade materialista: a fascinação
do ouro, exclusiva como uma mania (Ibidem, p. 96).
SUMÁRIO 32
como “um animal lascivo, vivendo sem nenhum constrangimento na
satisfação de seus desejos carnais” (Ibidem, p. 53). E é também o
caso de quando o africano é descrito como “envenenando” a forma-
ção da nacionalidade, “não tanto pela mistura de seu sangue como
pelo relaxamento dos costumes e pela dissolução do caráter social,
de consequências ainda incalculáveis” (Ibidem, p. 103).
SUMÁRIO 33
GILBERTO FREYRE E O MODERNISMO
Gilberto Freyre não foi um espectador privilegiado do movi-
mento modernista em São Paulo. Quando ocorreu a Semana de 22,
ele estava nos Estados Unidos desde 1918, onde fez a graduação em
Baylor e o mestrado em Columbia, ambos os cursos em ciências
sociais. Após uma temporada no continente europeu, ele voltou ao
Brasil, em 1923, para fixar residência no seu Recife natal. Contudo,
apesar de distante das discussões que imperavam no modernismo
feito em São Paulo, a produção de Freyre, na década de 1920, deriva
de um ambiente social no qual o modernismo está aflorando nacio-
nal e internacionalmente - o que transborda em seu interesse pelo
Brasil, segundo Gilda de Mello e Souza (2000), a partir de sua vivên-
cia regional como nordestino.-; e, para Larreta e Giucci (2007), na
identidade de um moderno aficionado pelo Nordeste e pelo seu país.
5 Eduardo Dimitrov (2013) indica que o Freyre da década de 1920 foi muito mais preocupado com
os hábitos e os costumes das elites patriarcais a serem conservados e representados, enquanto
o das etapas seguintes passou a reivindicar a arte como devendo retratar o “povo” e suas coisas.
Como chama atenção Antônio Barboni (2021), apesar de o Manifesto Regionalista fazer a defesa da
cultura popular, ele foi publicado somente em 1952 e com suspeitas de não ser com o mesmo texto
lido no 1º Congresso Regionalista do Nordeste.
SUMÁRIO 34
Curiosamente, ainda que provenientes de ambientes intelec-
tuais diversos, Prado e Freyre travaram amizade ao longo dos anos
que se seguem à Semana de 22. No seu diário de memórias, em pas-
sagem datada de 1926, em meio a especulações de que poderia se
fixar em São Paulo, o pernambucano anotou que, entre os paulistas,
preferia a gente “paulista velha”, tal como Paulo Prado e seus parentes:
Gente com quem me entendo bem, a paulista, isto é, a
paulista velha como os Prado. Ótimo, Paulo Prado. Talvez
Oliveira Lima tenha razão: a vir fixar-me no Brasil, eu
deveria arranchar-me em São Paulo. Repugnam-me,
entretanto, essas transferências. Creio que cada um deve
ficar o mais possível no lugar onde nasceu. Nada de muita
emenda ao soneto da vida: ou do destino, que é o mesmo.
Cidade feia mas simpática, São Paulo. Talvez se pudesse
dizer com exatidão da capital paulista: feia e forte. Como
o Recife, metrópole regional. Sente-se que domina uma
região e não apenas um Estado. Breve dominará o Brasil
(FREYRE, 2006b, p. 267).
SUMÁRIO 35
mas que podia perfeitamente falar com fazendeiros sobre peculiarida-
des agrícolas e sobre o preço do café. Para Freyre, o autor de Retrato
do Brasil foi, em vida, um “homem contraditório”, um caso curioso de
personalidade dividida entre os tipos dr. Jekyll e mr. Hyde6. Segundo ele,
Quem daqui a meio século estudar a personalidade e a
vida de Paulo Prado se espantará decerto ao ver o nome
associado ao mesmo tempo ao “movimento modernista”
e ao Departamento Nacional do Café. É que Paulo Prado
foi realmente um dos casos mais curiosos do dr. Jekyll
e mr. Hyde que já houve no Brasil ou que ocorreram no
mundo (FREYRE, 2012, p. 246).
A ÁFRICA E A MISCIGENAÇÃO
EM PRADO E EM FREYRE
Prado, como vimos, percebeu a criança africana escravi-
zada como um agente de “corrupção” no interior da família brasi-
leira. Freyre, ao contrário, descreve a mesma criança antes como
6 Dr. Jekyll e mr. Hyde são as duas personalidades conflitantes do protagonista de O médico e o
monstro, novela do fim do século XIX na qual o escritor inglês Robert Louis Stevenson quis retratar
a luta entre o bem e o mal no interior de um mesmo indivíduo.
SUMÁRIO 36
vítima, e não como agente de qualquer tipo de perversão. Para o
pernambucano, a hierarquia e a subordinação foram marcas cons-
titutivas da interação do menino branco com menino escravizado,
sendo este “escolhido para companheiro do menino aristocrata:
espécie de vítima, ao mesmo tempo que camarada de brinquedos,
em que se exerciam os ‘premiers élansgénésiques’ do filho-família”
(FREYRE, 2006a, p. 113).
SUMÁRIO 37
Em Casa-grande & senzala, a sífilis resulta não da “luxúria” impu-
tada ao africano, como em Prado, mas é o resultado social de uma
sociedade apoiada em um regime de escravidão que forçava as
mulheres escravas a múltiplos parceiros. Como Freyre sintetizou na
seguinte sequência:
(...) é preciso notar que o negro se sifilizou no Brasil. Um
ou outro viria já contaminado. A contaminação em massa
verificou-se nas senzalas coloniais. A “raça inferior”, a que
se atribui tudo que é handicap no brasileiro, adquiriu da
“superior” o grande mal venéreo que desde os primeiros
tempos de colonização nos degrada e diminui. Foram os
senhores das casas-grandes que contaminaram de lues
as negras das senzalas. Negras tantas vezes entregues
virgens, ainda molecas de doze e treze anos, a rapazes
brancos já podres da sífilis das cidades. Porque por muito
tempo dominou no Brasil a crença de que para o sifilítico
não há melhor depurativo que uma negrinha virgem. O
Dr. João Álvares de Azevedo Macedo Júnior registrou,
em 1869, o estranho costume, vindo, ao que parece, dos
tempos coloniais: e de que ainda se encontram traços nas
áreas pernambucana e fluminense dos velhos engenhos
de açúcar. Segundo o Dr. Macedo seriam os blenorrági-
cos que o “bárbaro prejuízo” considerava curados se con-
seguissem intercurso com mulher púbere: “a inoculaçâo
deste vírus em uma mulher púbere é o meio seguro de o
extinguir em si” (FREYRE, 2006a, p. 401).
SUMÁRIO 38
Essa mediação se manifestou também, segundo Freyre, na
culinária, onde “várias comidas portuguesas ou indígenas foram no
Brasil modificadas pela condimentação ou pela técnica culinária do
negro, alguns dos pratos mais caracteristicamente brasileiros são de
técnica africana: a farofa, o quibebe, o vatapá.” (Ibidem, p. 542). E não
só. A África foi formidavelmente importante para o Brasil, pois “na ter-
nura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nos-
sos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino
pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase
todos a marca da influência negra.” (Ibidem, p. 367).
SUMÁRIO 39
a doença e os vícios, que é uma interrogação natural
indagar se esse estado de coisas não provém do intenso
cruzamento das raças e sub-raças (Ibidem, p. 132).
SUMÁRIO 40
Ou seja, à diferença do paulista Prado, o pernambucano
negava haver estágios de evolução até uma “raça ariana”. Isso por-
que, na explicação consagrada por Ricardo Benzaquen de Araújo
(2005), a mestiçagem, segundo Freyre, não é uma busca por homo-
geneidade na qual uma síntese de opostos antagônicos se unem
para constituir um todo coeso com predominância dos caracteres
brancos. Freyre, demonstra Araújo, articula o sentimento de coletivi-
dade nacional a partir de um “equilíbrio de antagonismos”, expressão
utilizada em Casa-grande sempre com a função de indicar que a
experiência societal brasileira não se construiu em polos estanques,
mas por meio da interpenetração de experiências culturais diversas.
É o que ele deixa evidente quando narra o desenvolvimento da lín-
gua portuguesa no Brasil:
Sucedeu, porém, que a língua portuguesa nem se entre-
gou de todo à corrupção das senzalas, no sentido de
maior espontaneidade de expressão, nem se conservou
acalafetada nas salas de aula das casas-grandes sob o
olhar duro dos padres-mestres. A nossa língua nacio-
nal resulta da interpenetração das duas tendências. (...)
A força, ou antes, a potencialidade da cultura brasileira
parece-nos residir toda na riqueza de antagonismos equi-
librados (FREYRE, 2006a, p. 417-418).
SUMÁRIO 41
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho, foi levada a efeito uma compara-
ção entre Paulo Prado e Gilberto Freyre a partir da análise das obras
Retrato do Brasil e Casa-grande & senzala. Ambos são autores con-
temporâneos e que travaram amizade, com seus livros situados no
contexto de emergência do modernismo no Brasil. Contudo, como
demonstrado, apesar de compartilharem uma atmosfera de preocu-
pações sociais semelhantes, seus ensaios apresentam prognósticos
mais distantes do que próximos a respeito do país. Prado retratou o
africano escravizado como um agente de corrupção da sociedade
brasileira, enquanto Freyre o enxergou como uma vítima do sistema
escravocrata que, ainda assim, contribuiu positivamente para a cul-
tura nacional. Prado questionou a viabilidade do mestiço, temendo a
fusão de “raças”, ao passo que Freyre elogiou a miscigenação como
um fator positivo para a cultura nacional, pois promotora da interpe-
netração cultural e da quebra de tabus sociais. Em resumo, a visão
de Prado sobre o Brasil foi marcada pela crença de que a sociedade
era estagnada, fato resultante da busca pelo enriquecimento fácil e
da “libertinagem” presentes na vida social brasileira desde a colo-
nização. Por outro lado, Gilberto Freyre destacou a África e a mis-
cigenação como elementos fundamentais para a formação de uma
identidade brasileira.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário. O Movimento Modernista. Estado de São Paulo, São Paulo, 22 de fev. de 1942.
ANDRADE, Oswald de. O Modernismo. Anhembi, 17 (49), dez. 1954.
DE ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de
Gilberto Freyre nos anos 30. Editora 34, 2005.
SUMÁRIO 42
BARBONI JÚNIOR, Antônio Cecílio. Intelectuais, regionalismo e cultura popular:
as referências regionalistas de Gilberto Freyre. 178f. Dissertação (Mestrado em
Sociologia) — Universidade de Brasília, Brasília, 2021.
BASTOS, Elide Rugai. As criaturas de Prometeu: Gilberto Freyre e a formação da
sociedade brasileira. São Paulo: Global, 2006.
BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. [264]f. Tese
(doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem,
Campinas, São Paulo, 1994.
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ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2012
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SUMÁRIO 44
2
Bárbara Luisa Fernandes Pires
Luã Ferreira Leal
AS HERDEIRAS E A
TRADIÇÃO MODERNISTA:
ONEYDA ALVARENGA, GILDA DE MELLO E
SOUZA E O LEGADO DE MÁRIO DE ANDRADE
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.2
AS HERDEIRAS NO PANTEÃO
MODERNISTA
As trajetórias de Oneyda Alvarenga (1911-1984) e Gilda de
Mello e Souza (1919-2005) explicitam como ambas se legitimaram
como herdeiras de Mário de Andrade, prógono do modernismo,
poeta e construtor de instituições. Como ponto de partida, pergunta-
-se de que modo o falecimento, em 1945, desse criador de tradições
interpretativas sobre o Brasil originou disputas em torno dos senti-
dos de memória e herança. Segundo a hipótese, essas duas autoras,
com seus esforços de sistematização das correspondências ou das
proposições teóricas do autor, rotinizaram o estilo vanguardista do
modernismo em São Paulo. Ou seja, após a morte do intelectual,
inseriram a obra de Mário em novos contextos, ampliando os deba-
tes teóricos sobre suas ideias.
SUMÁRIO 46
Em um segundo momento, após o falecimento de Mário, as
herdeiras intelectuais cujas carreiras já estavam consolidadas, ao
pensarem a sociedade a partir de suas expressões culturais, adota-
ram como objeto e problema de suas respectivas reflexões a música
e o folclore, no que concerne à atividade de Oneyda, e a estética e
a literatura, no caso de Gilda. Propomos, neste texto, uma reflexão
sobre o modo de ambas as autoras retomarem algumas problemá-
ticas presentes nos textos de Mário de Andrade. Desse modo, ana-
lisaremos os trabalhos publicados por elas que, segundo a nossa
hipótese, tornaram possível a “atualização”, ou adaptação em con-
textos para além do original, da produção do intelectual paulistano.
Frustrado pelo insucesso de muitas das suas iniciativas institucio-
nais, Mário, um intelectual assistemático e polígrafo, de produção
volumosa, mas descontínua, atuou como mentor das duas jovens do
interior que foram orientadas pelas concepções estéticas do autor
desde quando almejavam carreira literária.
TRAJETÓRIAS CRUZADAS
Ao construir um relato biográfico, deve haver um rigor para
evitar que o autor do enunciado seja a única testemunha dos proces-
sos vividos. Quando as trajetórias se cruzam, entretanto, perde-se
SUMÁRIO 47
a ilusão de que há somente um percurso possível e que apenas as
opções escolhidas pelo biografado eram factíveis naquele contexto
(BOURDIEU, 2010b). Buscamos, portanto, criar interconexões entre
trajetórias pessoais e experiências coletivas, com o objetivo de apre-
ender dinâmicas mais amplas dos cruzamentos entre gênero, cul-
tura e vida intelectual.
SUMÁRIO 48
Justiça Militar, ela, filha de um funcionário público e em sua linhagem
materna vinculava-se a Francisco Paoliello, deputado estadual (1907-
1912) e deputado federal por Minas Gerais (1912-1920). Para além do
mero registro de detalhes biográficos, interessa a esta proposta de
pesquisa entender como os dilemas geracionais se expressam insti-
tucionalmente, pois evidenciam-se as regras que regem um mesmo
horizonte intelectual na constituição de organizações culturais.
SUMÁRIO 49
reflexão, assim como a constituição das organizações culturais, os
museus, os teatros, o cinema, conferiram o lastro material à divul-
gação de obras produzidas no exterior, adensando o processo de
trocas culturais” (ARRUDA, 2001, p. 20).
SUMÁRIO 50
mas, explicita a dominação simbólica e o conflito decorrente da
hegemonia dos grupos sediados nas metrópoles (GINZBURG,
1989, p.7). A categoria “região” depende de regionalistas elaborarem
agendas de pesquisa para a defesa das suas particularidades em
face da tendência dos intelectuais situados nos centros econômicos
nacionalizarem os seus valores culturais, definindo-os como padrão
para a identidade nacional (BOURDIEU, 2010a). Uma imagem poli-
cêntrica do campo intelectual, com trocas entre capital e interior,
substitui a crença na existência de um centro inconteste, cuja impo-
sição de hegemonia artística e intelectual seria extensão da força
política e econômica para irradiação de modelos no universo cultural
(GINZBURG, 1989, p.14).
SUMÁRIO 51
Também é indispensável a existência de instituições de tutela, forma-
ção e promoção de artistas e de intelectuais, além de dinâmicas para
distribuir suas obras em galerias de arte, museus, livrarias e outros
espaços de consagração (Ibidem, p.32). Por esse motivo, e para se
afastar do estigma do provincianismo, o intelectual de província, ou
qualquer literato nascido no interior, precisa criar laços com mento-
res ou mecenas no centro de inovação.
SUMÁRIO 52
Não no sentido vulgar, burguês e sentimental de pátria,
que isso só prejudica e diminui o indivíduo, mas no
sentido daquilo em que você vive e em que você é útil
(ALVARENGA, 1983, p. 71).
SUMÁRIO 53
à São Paulo e foi morar na casa da “vovó Iaiá”, mãe de Mário, sua tia-avó
paterna. Nesta segunda lembrança de seu período de convivência com
o escritor, a figura de Mário se transforma, ele deixa de ser o tio dispo-
nível das férias na fazenda e se torna o “homem ocupado, um escritor
conhecido cujo nome saía nos jornais” (SOUZA; CANDIDO, 1994, p.11).
SUMÁRIO 54
Gilda foi a principal responsável por estabelecer a aproxi-
mação entre o modernista e os membros da revista. É no contexto
de encontro entre as duas gerações que Mário escreve um poema
em que ela e seus colegas são mencionados. A ensaísta aparece
retratada no seguinte quarteto: “O arreliquim de Tintagiles, Gilda, /
Me esconde tudo, neblina. / A hera deu flor... A saudades / Lilá ri
das inquietações.” (ANDRADE, 1987, p. 368). Para Gilda (1994, p. 24),
a estrofe condensa “a trajetória da menina que ele vira crescer, aju-
dara a se encontrar e agora se afastava, sem remorso, em busca do
seu próprio destino”. Vale lembrar que, naquela ocasião, Gilda tinha
acabado de se casar com o colega de faculdade e de Clima, o crítico
literário Antonio Candido. Segundo as memórias da própria autora,
Mário temia que ela tivesse um destino “mais parecido com o de
toda mulher”, abandonando as vocações intelectuais para se dedicar
exclusivamente ao casamento.
SUMÁRIO 55
Ao retomar a influência de Mário para sua geração Gilda tece
o seguinte comentário:
Foi a partir deles [de Mário de Andrade e de Gilberto
Freyre] que a geração de moços, que entre 1935 e 1940,
ainda não marcada pela especialização, começou a
avaliar o conceito de cultura, de identidade nacional, a
discutir com isenção o problema da mestiçagem e os
rumos que a arte brasileira devia tomar. As conquistas
obtidas eram em geral provisórias e não se apoiavam na
segurança racional dos sistemas. Mas naquele momento
de transição entre o sonho das vanguardas e a chegada
vitoriosa dos especialistas, delineavam à nossa frente um
recorte novo da realidade. Talvez uma invenção da reali-
dade, tal como de tempos em tempos a arte efetua, para
renovar o sentimento da divindade, do homem ou, mais
humildemente, da paisagem (SOUZA, 2005, p.69-70).
SUMÁRIO 56
Também em 1955, Ruy Santos, fotógrafo e cineasta ligado ao PCB,
produziu o curta-metragem A Casa de Mário de Andrade, cujo roteiro
foi escrito por Gilda de Mello e Souza.
SUMÁRIO 57
obra de Mário de Andrade em novos contextos, sobretudo com a
publicação das Obras Completas pela Livraria Martins Editora. Em
1944, quando Mário já contava mais de 50 anos, a editora publicou na
série de Obras Completas a terceira edição de Macunaíma e Pequena
História da Música, cuja primeira edição foi lançada em 1942.
7 João Baptista Julião, na sessão de fundação da Academia Brasileira de Música em 1945, as-
sumiu a função de procurador e recolheu as assinaturas dos membros residentes em São
Paulo: Arthur Pereira, Furio Franceschini, Francisco Casabona, João da Cunha Caldeira Filho,
João Gomes Júnior, João de Souza Lima, Martin Braunwieser, Mozart Camargo Guarnieri, Samuel
Archanjo dos Santos, Paulo Florence, Savino de Benedictis e Oneyda Alvarenga. Esses funda-
dores, que não participaram dos atos de organização administrativa da ABM no Rio de Janeiro,
reuniram-se no Instituto Musical São Paulo, instituição fundada por João Baptista Julião, para a
assinatura dos documentos de procuração.
SUMÁRIO 58
Heitor Villa-Lobos, fundador e primeiro presidente até seu faleci-
mento em 1959, a relação até novembro de 1961 tinha apresentado
ao público resumo das biografias de 41 membros. Cada acadêmico
deveria enviar o curriculum vitae e lista de suas obras. O vigésimo
perfil foi o de Oneyda Alvarenga, em 28 de maio de 1961, com infor-
mações biográficas (data e local de nascimento), além da lista de
“Obras principais”. Organizado em quatro seções, o arrolamento
consistia em obras “publicadas”, “escritas para a Discoteca Pública
Municipal de S. Paulo”, “obras organizadas, com introduções e notas,
de documentos e estudos de folclore musical deixados por Mário
de Andrade” e “obras inéditas”. Além da ABM, Oneyda também
integrou organizações como o Conselho Nacional de Folclore, o
International Folk Music Council e a Association Internationale des
Bibliothéques Musicales.
SUMÁRIO 59
Quadro 2 – Produção intelectual da Gilda sobre o legado
Título Ano Editora Cidade Observações
O tupi e o alaúde: uma
1979 Duas Cidades São Paulo
interpretação de Macunaíma
Obra Escogida, de Biblioteca Prólogo: “El Tupi y el Laúd”;
1979 Caracas
Mario de Andrade. Ayacucho v. 56 da Biblioteca Ayacucho
Os melhores poemas de Seleção e apresentação do
1988 Global São Paulo
Mário de Andrade. texto.
Introdução do livro Coleção
“O colecionador e a Coleção” 1988 Edusp São Paulo Mário de Andrade: Artes
Plásticas
Orelha de O banquete, de
“Sobre o banquete” 1989 Duas Cidades São Paulo
Mário de Andrade
O arcaico e o moderno. A
Ouro Sobre Azul São Paulo e Introdução do livro Pio &
amizade epistolar entre Mário de 2009
- SESC-SP Rio de Janeiro Mário: diálogo da vida inteira
Andrade e Pio Lourenço Corrêa.
Fonte: elaboração da autora e do autor.
SUMÁRIO 60
Para Gilda (2005, p. 10), foi no contexto de transformações radicais do
Brasil que Mário viveu “o drama do artista contemporâneo, ao mesmo
tempo artista e homem que não quer abandonar nem os direitos desin-
teressados da arte pura, nem as intenções interessadas da arte social”.
SUMÁRIO 61
variadas formas de divulgação de artigos, participação em eventos
internacionais, há então uma possibilidade de alteração na confor-
mação das agendas em um contexto nacional. Além de partir das
tradições já conhecidas em seu contexto intelectual de origem, cada
intelectual passa a enfrentar novos desafios de interpretação da rea-
lidade social, sobretudo quando está fora do seu lugar de origem. A
força do sobrenome é um indício que revela as relações sociais que
contribuem, por laços matrimoniais, familiares, de amizade e de vici-
nalidade, na construção de prestígio. No contexto analisado, sobre-
nomes relevantes para o meio intelectual paulistano, como Prado,
Penteado e Matarazzo, aparecem em cena com papéis no mecenato
ou na ocupação de posições prestigiadas.
SUMÁRIO 62
uma ruptura e uma tentação de fazer tábua rasa, o patri-
mônio dos mais velhos é, portanto, elemento de referên-
cia explícita ou implícita (SIRINELLI, 2003, p. 254-255).
8 O acervo de Gilda de Mello e Souza e de seu marido, Antonio Candido, foi doado pela família ao
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) em 2018.
SUMÁRIO 63
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SUMÁRIO 64
3
Bárbara Vital de Matos Oliveira
O ENGENHEIRO
ITAMAR FRANCO,
ENTRE A TRADIÇÃO
E O MODERNO
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.3
INTRODUÇÃO
O caminho para o moderno, pelo qual o Brasil passou entre
os séculos XIX e XX, foi marcado pela presença, nas arenas políti-
cas decisórias, de atores que não pertenciam à ordem política tra-
dicionalmente estabelecida pelos oligarcas das elites regionais. É
preciso duas ressalvas sobre este contexto antes de prosseguirmos.
Em primeiro plano, falamos em “caminho para o moderno” porque
a modernidade é projeto desenvolvido por um longo processo de
alterações institucionais, o qual não propôs grandes rupturas com
instituições e poderes já estabelecidos na sociedade brasileira. E,
em segundo lugar, como parte desse espírito que evitava grandes
rupturas sociopolíticas, seus atores não pertenciam à ordem política
tradicional naquele momento, mas sim à vida social e ao contexto
dessas oligarquias.
SUMÁRIO 66
Por não se tratar de um período ou eventos delimitados,
neste artigo, definimos modernidade por meio de características
abordadas por Domingues (1998, p. 213), sendo um processo no qual
instituições historicamente contingentes surgem ou se transformam
segundo demandas individuais e/ou coletivas orientadas pelo apreço
racionalista e cientificista. Este processo também abarca as conse-
quências não-intencionais advindas dos projetos dessas institucio-
nalidades. Esta definição serve de contexto à perspectiva debatida
ao longo deste texto, na qual o diploma de bacharel funcionava como
um marcador de distinção social da elite ao mesmo tempo em que
era um sinal de adaptação das oligarquias a um modelo de Estado
paulatinamente mais burocrático e pretensamente impessoal.
SUMÁRIO 67
a aplicação de suas proposições no tecido social. Estas aplicações,
por vezes, eram estranhas aos métodos das forças políticas tradicio-
nais que tentavam manter o controle político centralizado nas elites
regionais; entretanto, os dispositivos de organização e o controle
social sugeridos pela “racionalidade” técnico-científica dos bacha-
réis eram úteis também ao poder tradicional. Embora o diploma de
bacharel não garantisse acesso à arena política, ele foi amplamente
utilizado por políticos como sinal de distinção social entre aqueles
que podiam pensar e administrar a sociedade e os que deveriam ser
tutelados e controlados.
Se é verdade que o chamado “bacharelismo”, empapando
a inteligência brasileira, marcava com seu sinete todas
as manifestações dessa inteligência, ao ponto de nem as
ciências médicas discreparem da regra – o fato é que as
reações mais fecundas contra essa influência partiram
exatamente daqueles pioneiros dos estudos sociais, cujos
esforços se coroaram com a criação desses cursos em
nível superior, prepostos a formar pessoas habilitadas a
pensar de modo científico, e não somente formal e nor-
mativo, sobre a realidade social (PINTO, 2012, p. 280).
SUMÁRIO 68
A modernidade no Brasil foi fortemente marcada pela tec-
nocracia, na qual engenheiros e especialistas apresentariam solu-
ções científicas a toda sorte de problemas sociais. Ferreira Jr. e Bittar
(2008) definem os tecnocratas como
[...] os experts (técnicos) responsáveis pela aplicação das
novas tecnologias na administração do poder de Estado,
ou seja, das técnicas empregadas no âmbito das ações
governamentais com o objetivo de se alcançar a eficiência
na racionalização dos recursos financeiros aplicados nos
vários setores das políticas estatais. “O governo dos tec-
nocratas” é denominado pela ciência política de “tecno-
cracia”. A expressão tecnocracia foi “lançada nos Estados
Unidos quando da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
para designar governo dos técnicos, difundindo-se na
época do New Deal”. Em síntese: os tecnocratas são os
“managers ou técnicos de categoria superior, colocados
à frente de grandes empresas ou de departamentos ofi-
ciais do Estado” (Sousa et al., 1998, p. 515-516). Já Bresser
Pereira (1982, p. 86) afirma que “o conceito de tecnoburo-
cracia decorre do de técnico. Tecnoburocracia é o governo
dos técnicos. É o sistema em que o poder está nas mãos
dos técnicos, sejam eles economistas, engenheiros, admi-
nistradores públicos e privados ou militares profissionais.
Colocada nesses termos, tecnocracia seria um tipo de oli-
garquia: a oligarquia dos técnicos. Opõem-se, portanto, a
outros sistemas políticos, particularmente à democracia”
(FERREIRA JR.; BITTAR, 2008, p. 351-352).
SUMÁRIO 69
apresenta-se dividido em duas sessões. A primeira é “A engenharia,
entre o saber e o poder”, que aborda a relação entre a Engenharia
e a Política, tensionando questões como legitimidade, modernidade
e ação política em torno dos bacharéis em Engenharia. Nessa ses-
são, há um breve aprofundando no caso do estado de Minas Gerais,
dada sua centralidade histórica, política e econômica no cenário
nacional desde o período imperial, o que permitiu que políticos
locais alcançassem postos relevantes nas diferentes formatações
das Assembleias Legislativas, do Congresso Nacional, do Senado e,
desde a Proclamação da República, da presidência do país. A rele-
vância de Minas Gerais na política nacional é o contexto pelo qual a
segunda sessão, “O mineiro por Itamar, entre o bonde e o fusca”, se
desenvolverá. Nessa parte, é abordada a atuação de Itamar Franco,
ex-presidente do Brasil e uma das figuras mais emblemáticas da
política nacional desde a época dos bacharéis. A trajetória de Itamar
nos ilumina sobre o papel social e político dos engenheiros, bem
como o entrelaçamento entre ação e imaginação para compreender-
mos o Brasil moderno.
9 Sendo estes, centralmente, a sua biografia autorizada (YAZBECK, 2011), o Memorial da República
Presidente Itamar Franco, o Instituto Itamar Franco e a Medalha Itamar Franco. A tese, além da aná-
minha cabeça lise documental, tem como norte e escopo os enquadramentos da memória (POLLAK,
1992) e os movimentos de memória/esquecimento (HUYSSEN, 2014) envolvidos nesse processo.
SUMÁRIO 70
A ENGENHARIA, ENTRE
O SABER E O PODER
A engenharia é um dos marcos da passagem à modernidade
no Brasil. Junto aos bacharéis em Direito e Medicina, os bacharéis
em Engenharia foram responsáveis por um projeto de país que
visava o desenvolvimento urbano e o aprimoramento técnico e
estrutural dos processos de produção, sob uma forte ética voltada
para a racionalização, burocratização institucional e o trabalho a
serviço da sociedade10. O projeto de futuro nacional moderno dos
bacharéis conviveu com estruturas intrínsecas da sociedade brasi-
leira como o patrimonialismo e a centralização do poder pelas elites
regionais. Os processos de centralização ou descentralização do
poder dizem respeito à política, mais marcadamente às questões de
governo decididas por aqueles que podem ingressar nesta arena,
conforme veremos adiante.
SUMÁRIO 71
A posse do diploma dizia respeito à dimensão simbólica de poder,
um sinal público de legitimidade que permitia o acesso dos bacha-
réis em Engenharia às discussões sobre a administração pública,
enquanto a posição econômica e os títulos herdados da família eram
fundamentais para a ascensão na carreira política.
O capital político é, em grande medida, uma espécie
de capital simbólico: o reconhecimento da legitimidade
daquele indivíduo para agir na política. Ele baseia-se em
porções de capital cultural (treinamento cognitivo para a
ação política), capital social (redes de relações estabele-
cidas) e capital econômico (que dispõe do ócio necessá-
rio à prática política) (MIGUEL, 2003, p. 121).
SUMÁRIO 72
habilidades retóricas é frequentemente associada aos bacharéis em
Direito e Juristas. Contudo, além das habilidades retóricas e origem
social, os bacharéis em Engenharia alcançaram relevância política
ao aplicar a expertise técnica aos cargos políticos que assumiram,
transformando as cidades. Ser engenheiro no Brasil era considerado
um marcador de classe desde que esta foi considerada uma das
profissões imperiais do país, junto ao Direito e à Medicina. Gilberto
Freyre, um dos mais reconhecidos intérpretes do Brasil, para além
da obra Casa Grande e Senzala, escreveu um livro sobre o tema,
chamado Homens, engenheiros e rumos sociais, no qual demonstra
de que modo essa relação se dá na sociedade brasileira, a partir do
significado da palavra engenharia:
Engenhar, dizem os dicionários, é inventar, engendrar,
maquinar. Vem de engenho: faculdade universitária. Da
mesma origem é engenharia: arte de aplicar conheci-
mentos científicos ou empíricos à criação de estruturas a
serviço do homem” (FREYRE, 1987, p. 23).
SUMÁRIO 73
[...] o técnico [...] há de ser um especialista no assunto
da pasta que é chamado a dirigir (economista para a
Fazenda, engenheiro para Transportes ou para Energia,
eletrônico para Telecomunicações, etc.), o gênero inte-
lectual abrange várias espécies. Ninguém negaria, por
exemplo, aos membros da Academia Brasileira de Letras
o diploma de intelectuais, mas também ninguém, em
seu juízo perfeito, lhes entregaria postos de governo,
salvo honrosíssimas exceções (GUDIN, 1978, p. 145 apud
FERREIRA JR.; BITTAR, 2008, p. 341).
SUMÁRIO 74
Mario Grynszpan (1999) contribui para esta pesquisa ao tra-
zer a associação entre universidade e mobilidade social. Segundo
o pesquisador, há relação entre o peso da escolaridade e o acesso
ao prestígio e recursos ascensionais entre grupos médios e superio-
res. Ele ressalta em seu estudo que, paulatinamente, “a propriedade
vinha perdendo força como princípio básico de distinção, enquanto
as chamadas profissões — a Advocacia, a Medicina e a Engenharia
— ganhavam um progressivo reconhecimento” (GRYNSZPAN, 1999,
p. 72-73). Logo, o capital social das relações pessoais permite não
apenas o ingresso na carreira universitária, como confere aos forma-
dos acesso a uma bem-sucedida trajetória política, na mesma medida.
11 Engenheiro responsável pelo planejamento urbano de Belo Horizonte no século XIX, a então nova
capital mineira.
SUMÁRIO 75
e conversões de interesses dos políticos tradicionais e do protago-
nismo político dos bacharéis afeitos ao projeto desenvolvimentista.
Diferentes trabalhos de historiadores detalham como espaços jurídi-
cos, educacionais e setores produtivos atuavam integrados ao poder
centralizado das elites políticas, ao mesmo tempo que seguiam um
processo de burocratização administrativa das instituições públicas
e racionalização de métodos e meios de controle produtivo e social,
sobretudo nas áreas do Direito, Educação e Engenharia12, do século
XIX ao auge do bacharelismo. Especificamente no caso dos enge-
nheiros, eles definiram com frequência os parâmetros de urbaniza-
ção e projetos de futuro das cidades e, apoiados pela opinião pública,
ocuparam cargos burocráticos centrais na administração pública e
cargos políticos, sendo o ex-presidente Itamar Franco (1930-2011) a
epítome do prestígio político que os engenheiros alcançaram.
SUMÁRIO 76
e PINTO, 2017). Havia pouca disposição para rupturas institucionais
mesmo após o fim da Primeira República, embora as elites mineiras
assumissem como orientação político-administrativa o desenvol-
vimentismo – cujo auge se deu à época do governo de Juscelino
Kubitschek (1956-1961).
SUMÁRIO 77
O MINEIRO POR ITAMAR,
ENTRE O BONDE E O FUSCA
Itamar Franco ficou conhecido em sua vida pública pela
imagem peculiar de seu topete caricatural, por polêmicas das quais
os políticos populares costumam se afastar14 e, obviamente, como
presidente da República (1992-1995), principal cargo político por ele
ocupado. O auge de sua vida pública é resultado de uma trajetó-
ria política nacional como senador (1975 a 1989) e vice-presidente
(1990-1992), além de décadas na vida política local na cidade de
Juiz de Fora (MG), iniciada ainda nos corredores da Faculdade de
Engenharia da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Como
homem público, Itamar atravessa momentos ditatoriais, democrá-
ticos e diversos planos de desenvolvimentos nacionais ocupando
posição privilegiada no campo político. A carreira política extensa de
Itamar até a presidência da República não é fruto do acaso ou um
passo natural de um político em ascensão, mas uma conjugação de
origem, profissão, leitura histórica e vínculos sociais, tudo isso cons-
tituindo um dos capitais políticos mais poderosos do Brasil no último
século. Antes de abordarmos a relação entre Engenharia e Política
na carreira de Itamar, é necessária uma breve contextualização da
vida de nosso personagem.
14 Como o Carnaval de 1994 e o episódio com a modelo Lilian Ramos. Para saber mais, ver reportagem
“Como Itamar Franco lidou com o escândalo de Carnaval de 1994: 'Ninguém avisou'” (FERRARI, 2023).
SUMÁRIO 78
Esportes, em 1951 e, posteriormente, foi eleito presidente do Diretório
Acadêmico da Engenharia Clorindo Bournier.
SUMÁRIO 79
sucessor em 1970 e se reelege em 1972. Assim, Itamar se estabelece
como liderança responsável pela hegemonia emedebista na cidade,
sendo considerado um “nó” de uma rede em Minas Gerais que tam-
bém congregou nomes da Aliança Renovadora Nacional – ARENA
(partido de sustentação do Regime), segundo Reis (1979).
SUMÁRIO 80
Esse breve resumo da trajetória pública e dos cargos ocupa-
dos por Itamar ao longo da vida mostra a sua relevância no cenário
brasileiro e justifica um estudo sobre essa personagem política. Sua
carreira fez com que vivesse e participasse de diferentes processos
e momentos históricos, ocupando cargos locais, estaduais e federais
na administração pública, no poder Legislativo e no poder Executivo.
SUMÁRIO 81
Itamar Engenharia e Construções18, dando dimensão da sua rele-
vância pessoal nos negócios. A partir da ITEC, Itamar estende sua
atuação em projetos de prédios imobiliários e comerciais em Vitória,
no Espírito Santo (YAZBECK, 2011).
18 Uma informação que não aparece na biografia de Yazbeck (2011) e no Memorial é o fato de Itamar
ter trabalhado no Curtume Krambeck como engenheiro. Como o próprio nome indica, o estabe-
lecimento pertencia à família de Anna Elisa Krambeck Surerus, com quem Itamar se casa em
1968. Acredito que essa informação é esquecida nas fontes oficiais por essa relação matrimonial.
Informações do Atlas da FGV e do Jornal do Brasil, disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/
dicionarios/verbete-biografico/itamar-augusto-cautiero-franco. Acesso em: 20 jan. 2018.
SUMÁRIO 82
Ruas eram abertas com a ajuda de máquinas e então pro-
cedia-se à construção das moradias sem que tivessem
sido implantadas redes de água ou esgoto, sem instalação
de redes de iluminação pública e sem disponibilização de
transporte adequado (MOREIRA, 2012, p. 65).
19 Sobre construção civil e empresas nacionais de construção pesada no período da ditadura, cf.
Campos (2012).
SUMÁRIO 83
seus feitos e plataformas de gestão. Ele estabeleceu uma identidade
política que o acompanharia nas décadas seguintes de vida pública,
sendo político-engenheiro e empresário do ramo, um resumo seu
caráter articulador, desenvolvimentista, tecnicista e burocrata.
SUMÁRIO 84
Isso é tratado claramente na biografia de Yazbeck (2011),
de maneira que
Itamar Franco não deixou passar batido o tema da inte-
gração – expressão dita e repetida pela Arena, a bandeira
fora por ele levantada bem antes, quando Juiz de Fora se
tornou a primeira cidade do interior de Minas Gerais, líder
da Zona da Mata, a reunir centenas de prefeitos, inde-
pendente de partidarismos, nos seminários realizados
em sua administração anterior. A lembrança dos nomes
ilustres que prestigiaram os eventos, como os do prefeito
paulistano Faria Lima, do ministro dos Transportes Mário
Andreazza e até do vice-presidente Augusto Rademaker,
além dos governadores Israel Pinheiro e Magalhães Pinto,
está aí para comprovar que “integração” era com ele
mesmo (YAZBECK, 2011, p. 127-128).
20 Yazbeck (2011) cita o jornal, mas ainda não foi possível encontrar o original.
SUMÁRIO 85
O episódio da retirada de circulação dos bondes em Juiz de
Fora mostra a deferência com a qual Itamar foi retratado na imprensa
desde sua juventude. O Diário Mercantil, de 10 de abril de 1969, anun-
ciava que os bondes fariam sua última viagem naquele mesmo dia,
às nove horas da noite, depois de 88 anos em funcionamento pres-
tando serviços à população e “ter dado expressiva colaboração para
o progresso da cidade”. A programação do dia foi elaborada pelo
Gabinete do então prefeito Itamar e pelo Departamento Autônomo
de Turismo, com direito a cortejo com os últimos bondes saindo do
Parque Halfeld, parque central da cidade, até o fim da linha no bairro
São Mateus. Houve, na ocasião, bonde infantil e bonde com baterias
de escolas de Samba, blocos e grupos, além de foguetório e outras
atrações, colocando fim àquele tipo de transporte (coletivo e público).
A reportagem também aborda um pouco a explicação da medida,
que visava o asfaltamento das ruas para a passagem de carros:
A necessidade de asfaltamento de ruas, deslocamento
dos postes centrais e melhor escoamento de tráfego, fez
com que a Municipalidade, aos poucos, fosse eliminando
trechos e linhas inteiras. Fábrica e Poço Rico foram as
primeiras a desaparecer. Depois, Vitorino Braga, Costa
Carvalho, Bonfim, Santa Terezinha, Passos e Mariano
Procópio desapareceram, permanecendo apenas a de
São Mateus, que hoje também desaparece para que
a Prefeitura possa dar sequência à “nova Rio Branco”21
e proceder ao asfaltamento da Rua São Mateus (Diário
Mercantil, 10 de abril de 1969).22
21 A Avenida Rio Branco tinha belos casarões que acabaram sendo derrubados para o progresso
passar. Outra coisa retirada para obras de infraestrutura foram as árvores que existiam em tal
avenida, como informa Zaguetto (2012).
22 Ainda não consigo visualizar o que é a cidade de Juiz de Fora nesse momento, em termos de
bairros. Mas acredito que as linhas de bonde serviam, principalmente, à região central e a alguns
bairros próximos a ela, não incluindo a Zona Norte (já existente) e os bairros mais afastados da
Zona Leste. Assim, é necessário pensar qual noção de progresso era essa e para qual lugar estava
sendo levada, onde estavam sendo feitas as obras, em geral, e que Juiz de Fora estava sendo
contemplada, levando em conta também o binômio centro urbano-periferia.
SUMÁRIO 86
Uma foto do prefeito no bonde contém a seguinte legenda:
Itamar Franco, ao lado de José Cesário, diretor do DAT
(Departamento Autônomo de Turismo), e do secretário
Mauro Durante, em primeiro plano, embarca na última
viagem dos bondes: o transporte urbano que dava a Juiz
de Fora um charme especial, desde o início do século
20, sai de cena em 11 de abril de 1969, abrindo espaço à
modernidade (YAZBECK, 2011, p. 123).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente texto analisa como o bacharelismo e, mais espe-
cificamente, o prestígio político que os bacharéis em Engenharia
alcançaram na esteira do projeto de modernização do Brasil. Neste
cenário, a situação de Minas Gerais era particularmente ressaltada
devido a sua importância econômica e política no cenário nacional.
Internamente, o estado tinha um projeto de modernização paralelo
às ocorrências do governo central da República. Outro aspecto
abordado é que o processo de modernização no século XX foi
marcado pelo desenvolvimento de capital político dos bacharéis,
SUMÁRIO 87
com destaque para os engenheiros que encarnavam em seus proje-
tos de urbanismo os anseios de modernização e controle social por
parte das elites e da classe média.
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SUMÁRIO 92
4
Victor Coutinho Lage
AMEFRICANIDADE
E PRETUGUÊS:
A FALA DO LIXO DA LÓGICA23
23 A escrita deste texto contou com a assistência da estudante Ana Muniz, financiada pelo Edital
PIBIC/UFBA 2018-2019. Versões preliminares foram apresentadas em três ocasiões: na XV Semana
de Relações Internacionais da PUC-SP, ocorrida em 2017; em palestra na Escola de Belas Artes
da UFBA, em 2019; e no Colóquio (Re)leituras desde o pensamento social brasileiro – um balanço
crítico, realizado em 2022. Agradeço, respectivamente, a Natália Félix, Fábio Gatti e Sergio Tavolaro,
o convite para cada um desses eventos, nos quais recebi importantes comentários sobre algumas
das ideias expostas aqui. Dedico o texto ao Sindicato de Trabalhadores(as) Domésticos(as) do
Estado da Bahia (Sindoméstico-BA), sem o qual certamente eu não teria compreendido uma
parte importante da força da interpretação do Brasil (e do mundo moderno) de Lélia González.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.4
“O lixo vai falar”.
Lélia Gonzalez
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O debate acerca do conceito de “agência”, na teoria política
(incluindo o que se denomina como teoria política internacional)
e na teoria sociológica, vem conferindo uma atenção mais intensa
nas últimas décadas aos aspectos históricos e contemporâneos que
ligam a formação da modernidade aos processos de colonização.
Tem sido destacada, ainda, a importância de se repensar a agência
como algo heterogêneo e atravessado pela interseccionalidade de
marcadores de discriminação, tais como raça, etnia, gênero, classe,
sexualidade, entre outros.
SUMÁRIO 94
Para não perder de vista essas complexidades, Hobson e Sajed (2017)
apontam para o modo como essa agência opera de maneiras varia-
das, abarcando, por exemplo, estratégias cotidianas, a reconstituição
de certas cosmologias e a mobilização de variados nacionalismos.
Assim, tratar a agência por prismas dicotômicos, como reforma/
revolução ou cooptação/transformação, mostra-se insuficiente ou
até contraproducente – tanto teórica quanto politicamente.
AMEFRICANIDADE
Lélia definiu “amefricanidade” como uma “categoria político-
-cultural”, formulando-a por meio de uma interpretação da formação
brasileira, assim como de suas interações com movimentos negros
no Brasil e com “manifestações culturais negras de outros países
do continente americano” (GONZALEZ, 1988, p. 70). Identificando
a marca indelével, porém política e historicamente silenciada,
SUMÁRIO 95
da agência negra no continente, Lélia disse ter sentido a necessidade
de pensar uma “categoria que não se restringisse apenas ao caso
brasileiro e que, efetuando uma abordagem mais ampla, levasse em
consideração as exigências da interdisciplinaridade” (GONZALEZ,
1988, p. 71). Mais do que interdisciplinar, esta categoria, eu diria, con-
voca a uma perspectiva “indisciplinar”.
24 Nesse primeiro sentido, aproprio-me livremente da definição que Jacques Rancière conferiu a seu
próprio pensamento como sendo “indisciplinar” (ver BARONIAN; ROSELLO, 2008).
25 Note, no entanto, que os dois sentidos de "indisciplinaridade" estão conectados, uma vez que, por
exemplo, é através deste tipo de engajamento com a psicanálise que Lélia é capaz de lançar luz
sobre (a multifacetada) agência indisciplinar amefricana.
SUMÁRIO 96
são interpretados como um modo de "ocultação” ou "esquecimento",
ato constitutivo daquela neurose e benéfico à pessoa neurótica –
ou, pode-se dizer, à pessoa que, ao endossar o mito da democracia
racial no Brasil, é por ele privilegiada, a despeito deste ser um pro-
cesso consciente ou não26.
26 Esse argumento se liga a uma crítica de Lélia àquelas correntes de pensamento de esquerda e
marxistas, suas contemporâneas, que se concentram exclusivamente nas relações de classe ou
que a essas relações atribuem precedência sobre as demais. A diluição das questões racial e de
gênero na luta de classes significa para Lélia que “certas posições de esquerda nada mais fazem
do que reproduzir o mito da democracia racial, criado pelo liberalismo paternalista que eles dizem
combater” (GONZALEZ, 1982, p.54). Ver também Bairros (2000).
27 Sobre o contraste entre os racismos no Brasil, nos Estados Unidos e na África do Sul, ver, por exem-
plo, Kabengele Munanga (2017, p.33-38). Recorrente no debate nacional e internacional sobre as
relações raciais, essa comparação por vezes é sustentada pela afirmação de que, ao contrário do
que ocorreu nos dois últimos países, aqui não teria havido uma codificação legal de segregação
racial. No entanto, ver Thula Pires (2016), que fornece um estudo detalhado sobre a relação histó-
rica entre racismo e direito no Brasil. Vale notar, ainda, que esse mesmo contraste foi retomado,
principalmente por intelectuais negras(os) no Brasil, como Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento,
exatamente para a crítica ao racismo por “denegação” (Lélia) ou “mascarado” (Abdias) que marca
as relações raciais no país.
28 Lélia cita o livro Vocabulário da Psicanálise (Santos: Livraria Martins Fontes, 1970), de J. Laplanche
e J.-B. Pontalis.
SUMÁRIO 97
“[a]o insistirmos no mito da democracia racial e na tese de que ‘não
existe racismo no Brasil’, a ênfase na negação acaba por delatar o
caráter denegatório do conteúdo” (p. 100). Dito de outro modo, essa
ênfase faz com que se tome consciência, precisamente por meio do
discurso denegatório, daquilo que se pretendia ocultar: o racismo
estruturante da sociedade brasileira. Por isso, seguem, “pensar o
racismo como Verneinung pode ser uma possível reinscrição ética
para nossa subjetividade tão difusa e uma forma de aliviar nosso
sofrimento com os fantasmas da colônia” (p. 102)29. A categoria da
amefricanidade busca explicitar o racismo, tirando-o do modo dene-
gatório, e ainda conceber outra maneira de se pensar as relações
sociais (inclusive raciais e de gênero) na Améfrica.
29 Rodrigues e Monteiro (2020), Ambra (2019; 2021) e Silveira (2022) exploraram de maneiras
muito profícuas a relação do pensamento de Lélia com a psicanálise. Por outra via,
baseando-se na teoria do reconhecimento de Axel Honneth, Ricardo Fabrino Mendonça e
Nathália França Figuerêdo Porto (2017) argumentam que o alegado valor positivo atribuído à
figura da pessoa negra na formação brasileira a construiu como “mero corpo em movimento
(no trabalho, no sexo, na dança, no esporte) ou fomentou o “mito de uma sociedade
harmônica que não necessita de mudanças estruturais e de políticas raciais” (p.164). Nessa
linha, a noção de "democracia racial" articula um "reconhecimento como ideologia" que está
intrinsecamente ligado ao "racismo por denegação”.
SUMÁRIO 98
da sociedade brasileira e, de maneira mais geral, da forma-
ção do mundo moderno30.
30 De acordo com Luiza Bairros (2000) e Bianca Vieira (2015, p. 216), o engajamento de Lélia com a
psicanálise, bem como com o candomblé, foi crucial para sua autoidentificação como mulher ne-
gra. Conforme destaca Pedro Ambra (2021), a psicanálise, em sua abordagem, contribui para que,
junto com a dimensão material da violência e da distribuição desigual de direitos e privilégios, se
chame a atenção para o modo como o “indivíduo branco” nem sempre sustenta seu lugar de poder
por ações “pautadas por uma lógica da consciência”. (O texto de Ambra (2021) não está paginado
e pode ser acessado através do link a seguir: https://revistarosa.com/3/as-pedras-de-exu. Acesso
em: 7 dez. 2022). Vale ressaltar que a interação com a psicanálise trouxe, na década de 1980, outro
notável estudo sobre o racismo no Brasil: o livro de Neusa Santos Souza (1983), Tornar-se negro:
ou as vicissitudes da identidade do negro brasileira em ascensão social. Antes disso, Virgínia Leone
Bicudo (2010), que viria a se tornar uma das protagonistas da institucionalização da psicanálise
no país, recorreu à psicologia social e à psicanálise, entre outros campos de conhecimento, em
seu estudo sobre as atitudes raciais no estado de São Paulo, apresentado em 1945 à Escola Livre
de Sociologia e Política de São Paulo, com o título Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São
Paulo. Agradeço à Vitailma Santos, cuja pesquisa sobre Virgínia Bicudo me fez estar atento à sua
importância para a interpretação das relações raciais no Brasil. Luiza Nasciutti (2022) publicou
recentemente uma excelente resenha do livro de Neusa, por ocasião de sua reedição em 2021,
e vem conduzindo uma pesquisa de doutorado com enorme potencial de contribuição para os
estudos sobre Neusa.
SUMÁRIO 99
(Há muitas maneiras pelas quais o "lixo” fala através da
atuação de Lélia dentro e fora dos contextos acadêmicos. Aqui,
vou destacar apenas uma entre as muitas linhas de força abertas
por sua perspectiva.)
31 Devo esta observação a um comentário feito por Marta Fernández na defesa de dissertação de
Fernanda Cardoso Fonseca, intitulada “Nossa Améfrica Ladina: o pensamento (decolonial) de Lélia
Gonzalez”, defendida, em 2021, no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da
Universidade Federal da Bahia. O trabalho de Fonseca (2021) desenvolve um profícuo diálogo entre
Lélia e o pensamento decolonial.
SUMÁRIO 100
"Interseccionalidade", em uma de suas primeiras formula-
ções, busca ressaltar a importância de se tratar das diferenças inter-
nas a grupos feministas e antirracistas e, portanto, das identidades
situadas nos "padrões de intersecção do racismo e do sexismo”
(CRENSHAW, 1991, p. 1243; ver também CRENSHAW, 2002).
Crenshaw (1991, 2002), por quem o conceito se tornou conhecido
nos contextos acadêmicos, relaciona-o a múltiplas dimensões: às
posições estruturais que as subjetividades marginalizadas ocupam;
à ação dos movimentos feminista e antirracista; e à construção cul-
tural daquelas subjetividades32.
32 Não estou dizendo que, antes do conceito ter sido cunhado em um texto acadêmico, não haviam
sido levadas adiante intervenções preocupadas com a interseccionalidade dos marcadores de
discriminação. Segundo Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2016), o artigo de 1991 de Crenshaw é
“um documento fundamental para marcar a tradução de entendimentos de interseccionalidade
que emanam do feminismo negro e de projetos similares de justiça social, e entendimentos de
interseccionalidade dentro da academia”; além disso, esse artigo “mostra não apenas a crescente
aceitação da interseccionalidade na academia, mas também como essa aceitação posteriormente
reconfigurou a interseccionalidade como uma forma de investigação e prática crítica” (p. 81). Hill
Collins (2015) considera “interseccionalidade” um "projeto de conhecimento de base ampla" (p. 3),
com três conjuntos de preocupações: como campo de estudo, como uma estratégia analítica e
como práxis crítica. Para alguns debates em torno do conceito, ver Davis (2008), Bilge (2013), Cho,
Crenshaw e McCall (2013), Hill Collins e Bilge (2016) e Akotirene (2018).
SUMÁRIO 101
um conjunto diferente e não antevisto dos mesmos. O ponto central
reside em mobilizar o conceito para a problematização de processos
de subalternização, sempre historicamente situados.
SUMÁRIO 102
de uma das dimensões de sua história, o que não invalida, de maneira
alguma, a força interpretativa que o conceito carrega quando mobi-
lizado em direções permanentemente sensíveis às reconfigurações
dos processos de subalternização ligados a classe, raça, etnia,
gênero, sexualidade, entre outros marcadores33.
33 Em outro texto, ainda não concluído, estou levando adiante algumas das reflexões sinalizadas
nesses dois últimos parágrafos sobre a relação entre o pensamento de Lélia e os debates em torno
dos conceitos de “interseccionalidade” e “imbricação”. Aproveito para destacar os trabalhos de
Flavia Rios e Márcia Lima (GONZALEZ, 2020) e da União dos Coletivos Pan-Africanistas (GONZALEZ,
2018), que organizaram grande parte da produção de Lélia em duas excelentes coletâneas.
34 Lélia usa o conceito de “sexo” em um sentido que, posteriormente, viria a ser associado a “gênero”.
Sobre como a noção de “sexo” foi gradualmente ressignificada pela noção de “gênero”, ver, por
exemplo, Butler (2019) e Wilson (2021).
35 Ver, por exemplo, Gonzalez e Hasenbalg (1982) e Gonzalez (1991; 2011[1988]). Lélia expôs em várias
ocasiões a forma como os movimentos feministas brancos obliteravam a questão racial (e indí-
gena) e as dificuldades que ela mesma enfrentou interagindo com esses movimentos. Ver Luiza
Bairros (2000) e Alex Ratts (2022).
SUMÁRIO 103
abordagem de Lélia conecta ângulos estruturais da subalternização
à construção cultural de subjetividades subalternizadas, bem como à
ação dos movimentos sociais, em particular feministas e antirracistas.
SUMÁRIO 104
Ademais, seu pensamento contribui para certos debates
teóricos contemporâneos ao destacar a dimensão colonial e interna-
cional na construção de marcadores de discriminação. Por exemplo,
David Roediger (2015) salientou que os esforços dedicados ao estudo
de "Império e racialização fora da Europa” são fundamentais para a
"transformação das [Relações Internacionais]” (p. 199). Ampliando
a afirmação, tem-se que esses esforços são igualmente cruciais
para a teoria sociológica36. Charles Mills (2015, p. 206-208), por sua
vez, enfatizou a necessidade de se ir mais longe na investigação
de diferentes tipos de racismo na história e em diferentes lugares,
incluindo a sua reprodução entre os chamados povos "não-brancos".
Um dos exemplos que Mills menciona é o da América Latina, onde
os movimentos nacionais de independência não representavam
uma “libertação racial de indo- e afro-latinos(as), cujas desigual-
dades raciais sistemáticas sob a bandeira ilusória de 'democracias
raciais' continuam até hoje” (p. 208). Nesse sentido, a categoria de
amefricanidade não apenas oferece um caminho possível para o
entendimento daquilo que Roediger e Mills estão destacando, como
também contribui para que os debates sobre interseccionalidade
se atentem à dimensão internacional que atravessa a operação dos
marcadores de discriminação37.
36 Destaco, entre as muitas contribuições que já vêm sendo feitas nesse sentido na teoria socio-
lógica, o trabalho de Gurminder Bhambra. Sergio Tavolaro, por sua vez, vem explorando, nos
últimos anos, por vários ângulos, a relação entre interpretações do Brasil e teorias sociológicas
críticas da modernidade.
37 A coletânea de Persaud e Sajed (2018) reúne vários capítulos que buscam pensar esses marcado-
res em perspectiva global.
SUMÁRIO 105
(GONZALEZ, 1988, p. 76)38. "Améfrica", de acordo com Lélia, é um
“sistema etnogeográfico de referência”, uma criação de articulações
constantes entre referências negras presentes e passadas, perspec-
tivas "americanas” e "africanas” (p. 77)39. Esse sistema – que, como
se percebe, é internacionalizado – proporciona às pessoas negras
potencialidades para a articulação coletiva de arranjos sociais e
políticos alternativos. Recordando Hobson e Sajed (2017), com quem
abri este texto, a agência amefricana, na perspectiva de Lélia, não se
refere a vítimas silenciosas, tampouco a formas heroicas, românticas
ou grandiosas de resistência que não teriam, no entanto, impacto
relevante na política global. Também não se trata de atavismo ou
de uma utopia regressiva. A amefricanidade decreta a superação de
qualquer concepção “idealizada, imaginária ou mitificada da África”,
ao mesmo tempo em que permite se voltar à “realidade em que
vivem todos os amefricanos do continente” (GONZALEZ, 1988, p. 78,
ênfase no original).
38 Em um texto anterior, Lélia já havia enfatizado que “nós negros não constituímos um bloco mono-
lítico, de caraterísticas rígidas e imutáveis” (GONZALEZ E HASENBALG, 1982, p. 18). Assim, para falar
"do Movimento Negro”, não se pode apagar as diferenças e divergências em torno do “significante
negro” (p. 19, ênfase no original). Lélia relaciona amefricanidade, como lembra Luiza Bairros (2000),
a “propostas alternativas de organização social: os quilombos, no caso do Brasil, e, em outras
partes das Américas, organizações similares designadas como cimarrones, cumbes, palenques e
maroon societies” (p. 11). Ver também Cardoso (2014, p. 982-984).
39 Como se pode notar, a agência amefricana, na perspectiva de Lélia, já pode ser vista na escravidão,
exposta em revoltas, em estratégias de resistência cultural, em movimentos de organização livre,
entre outras modalidades de indisciplinaridade.
SUMÁRIO 106
a abordagem de Lélia desafia “noções de sororidade [sisterhood]
pautadas na universalidade de opressões compartilhadas e similares”
e, assim, contribui para situar “lutas e críticas feministas em lugares
históricos, geográficos e culturais específicos” (p. 14). Essa aborda-
gem também convoca a esforços que se engajem em “questões con-
cernentes à política do ‘silêncio subalterno’” e às possibilidades de
recuperação de sua voz (p. 26) – aspecto ao qual voltarei adiante40.
SUMÁRIO 107
para a teorização das relações internacionais – e que, vale acrescentar,
igualmente o é para as teorias política e sociológica –, isto é, uma pro-
blematização de como "o sistema mundial atual é construído em várias
camadas de instituições, experiências, práticas e, o que é mais impor-
tante, memórias dessas experiências e práticas do passado” (p. 14).
SUMÁRIO 108
PRETUGUÊS
Antes de prosseguir, retomo o que foi dito até o momento.
Tenho insistido em que a “categoria político-cultural” da amefricani-
dade é interseccional, indisciplinar e internacional. Sua relação com
o conceito de agência, como vimos, se estabelece por meio de um
pensamento indisciplinar, marcado também pelos engajamentos de
Lélia com movimentos sociais, em particular antirracistas e feminis-
tas, no Brasil e em outros lugares do mundo. Assim, a categoria não
só atravessa várias disciplinas, como também apresenta certo enten-
dimento acerca da heterogeneidade da agência de subjetividades
subalternizadas, com destaque para as mulheres negras, ao longo
da formação brasileira e de seus nexos como a formação do mundo
moderno. Uma importante abertura para esse movimento indisci-
plinar, conforme exposto acima, é perceptível em seu engajamento
com a psicanálise, a partir do qual se coloca em questão a atribui-
ção às mulheres negras do lugar de lixo pela lógica dominante no
processo formativo brasileiro. Diante disso, uma das maneiras pelas
quais a subalternidade fala – e, com isso, confronta a linha global e
multidimensional de cor – é exposta pelas noções de amefricanidade
(discutida acima) e pretuguês (a ser abordada logo a seguir)41.
41 Como será visto abaixo, a noção de “fala” não se refere, de forma alguma, a uma concepção restrita
de “voz”, em detrimento de outras formas de ação.
SUMÁRIO 109
Nesse sentido, seria plausível afirmar que a noção de pre-
tuguês destaca o que, em outra discussão, Debra Thompson
(2015) abordou em termos de "transnacionalismo racial". Com essa
expressão, entende-se a raça como uma ideia “global”, levando em
consideração que sua articulação é inseparável do domínio transna-
cional do império e do capitalismo. Esse traço, sigo com Thompson
(2015, p. 49-51), requer de estudiosas(os) da política internacional e
comparada (e, podemos aduzir, das teorias políticas e sociológicas)
uma abordagem que não reproduza o enfoque exclusivo no esta-
do-nação – ou o nacionalismo metodológico – em estudos sobre
relações raciais. O pretuguês expõe esse tipo de transnacionalismo,
uma vez que capta a forma como a agência das mulheres negras se
liga aos nexos globais que a colonização estabelece com o processo
formativo do Brasil.
42 Note-se que essa perspectiva abre outra interpretação não só para a dinâmica cotidiana da colo-
nização e da escravização, mas também para a configuração mais recente do trabalho doméstico
no Brasil, ainda predominantemente feito por mulheres negras e empobrecidas.
SUMÁRIO 110
Para desdobrar essa formulação, recorro ao famoso ensaio
de Gayatri Spivak. Primeiro, vale lembrar que a pergunta "pode a
subalterna falar?” foi formulada nesse texto da seguinte maneira: "do
outro lado da divisão internacional do trabalho do capital socializado,
dentro e fora do circuito da violência epistêmica da lei e educação
imperialistas, suplementando um texto econômico anterior, pode a
subalterna falar?” (SPIVAK, 1988, p. 283, ênfase no original; e SPIVAK,
1999, p. 269, ênfase no original)43. Por questão de espaço, não farei
justiça à complexidade da discussão em tela. Quero notar, todavia,
que a “subalterna não pode falar” se a linguagem através da qual
ela é abordada não for sensível ou aberta aos limites postos pela
representação nos marcos de uma linguagem dominante. Estando
do “outro lado da divisão internacional do trabalho”, “dentro e fora do
circuito de violência epistêmica”, as subjetividades subalternizadas
permanecem silenciadas caso as dinâmicas que conectam o impe-
rialismo e a produção do conhecimento não sejam problematizadas.
Dizer isso não significa que essa problematização implicaria um
contato direto ou imediato com essas subjetividades ou com sua
suposta realidade concreta. O crucial é cultivar uma atitude crítica
permanente face à (im)possibilidade de compreender a alteridade
“em si mesma”. Nas palavras de Spivak, “[t]oda fala, até a aparente-
mente mais imediata, implica uma decifração à distância por um(a)
outro(a) [by another], que é, na melhor das hipóteses, uma intercep-
tação. Isto é o que é a fala” (1999, p. 309).
43 Ao traduzir “subaltern” por “subalterna”, estou seguindo a sugestão de Grada Kilomba (2019, p. 20-1).
SUMÁRIO 111
com práticas coloniais. No entanto, a fala (da) subalternizada nunca
é total ou imediatamente acessível, uma vez que se localiza e/ou é
localizada, por definição, às margens da linguagem dominante.
44 Destaco a contribuição que Thula Pires (por exemplo, PIRES, 2017) vem oferecendo para a reflexão
sobre os “direitos humanos” em pretuguês.
SUMÁRIO 112
Colocando de outra maneira, o pretuguês é tão historica-
mente situado quanto a própria relação entre lógica e lixo. Spivak
pode ajudar novamente nesse aspecto. Em uma leitura dos Estudos
Subalternos feita “de dentro, mas a contrapelo”, Spivak (1987) sugeriu
que a recuperação da subjetividade subalterna poderia ser compre-
endida em termos de um “uso estratégico do essencialismo positi-
vista em um interesse político escrupulosamente visível” (p. 205) e,
adiante, afirmou que essa subjetividade “é necessariamente o limite
absoluto do lugar onde a história é narrativizada na lógica” (p. 207,
ênfase adicionada).
SUMÁRIO 113
movimento quando tece a relação entre pretuguês e amefricanidade
na decifração de como o lixo fala – isto é, de como a subalternidade,
jogada no lixo da lógica dominante no Brasil e do mundo moderno,
fala. Como afirma Thula Pires (2017), a experiência amefricana que
Lélia traz para o primeiro plano é um “centramento” que “não essen-
cializa identidades” e não “romantiza elementos constitutivos dos
valores africanos”, estando todos eles “sujeitos a debate”, sem que
haja “sistemas fechados” (p. 7). Assim, a amefricanidade carrega um
“sentido positivo, ‘da explosão criadora’, da reinvenção afrocentrada
da vida na diáspora” (p. 7).45
45 Se recordarmos que Lélia interagiu com movimentos feministas, gays, negros e indígenas, no Brasil e
em outros lugares, e que sempre apontou as especificidades da formação histórica brasileira, torna-se
ainda mais plausível entender o pretuguês como algo distante de uma interpretação essencialista.
SUMÁRIO 114
se situa a partir de outro passado, outra história. Com Pedro Ambra
(2019), podemos dizer que, no pensamento de Lélia, “assumir a fala
não é sinônimo apenas de tomar a voz ou ocupar lugares de poder
que historicamente são ocupados por brancos” (p. 98, ênfase adicio-
nada).46 Enfatizo, na citação, que não se trata apenas de tomar essa
voz e ocupar esses lugares, com o intuito de deixar claro que se trata
também disso. Nesse aspecto, considero crucial a observação de Léa
Silveira (2022, p. 9-10), feita em diálogo com o texto de Ambra (2019):
Se, por um lado, o lugar epistemológico do qual parte
Gonzalez em Racismo e sexismo... implica, efetivamente,
como defende Ambra [2019], a incidência da ilusão e da
divisão subjetiva na fala, de modo que, do ‘lugar de fala’,
não decorre a consciência do sujeito a respeito desse
lugar; por outro lado, a autora não elimina a questão da
identidade porque marca o fato de que fala ‘enquanto
mulher negra’ (GONZALEZ, 198[3], p. 225) (SILVEIRA,
2022, p. 9-10, nota suprimida).
46 Creio que Ambra (2019) não endossaria a aproximação que propus, neste texto, entre o pensamen-
to de Lélia e o conceito de “interseccionalidade”, porém não é possível abordar essa questão aqui.
SUMÁRIO 115
Essa dissolução talvez seja, no limite, impossível. Em todo
caso, em vez de uma lógica modernizante falada em português (de
Portugal, da Europa), postulando uma história linear e progressista da
escravidão e da colonização em direção a uma condição moderna de
suposta liberdade e igualdade, a subjetividade subalternizada jogada
no lixo fala pretuguês: uma linguagem que oferece um recurso ines-
gotável para uma problematização amefricana, diaspórica da moder-
nidade. Com isso, retomando as palavras da própria Lélia acerca da
categoria da amefricanidade, abrem-se rotas, por meio de agências
amefricanas, cujas implicações políticas e culturais são realmente
democráticas. Uma democracia por vir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio de um diálogo entre as concepções de agência e
interseccionalidade com o pensamento de Lélia Gonzalez, busquei
indicar uma das rotas possíveis para a problematização da relação do
processo formativo brasileiro com algumas das dimensões interna-
cionalmente articuladas que atravessam os processos de produção
de subjetividades subalternizadas. Para isso, interagi com a “catego-
ria político-cultural” da amefricanidade e com a noção de pretuguês.
SUMÁRIO 116
também se refere às atuais condições de vida daquela subjetividade
e aponta para efetivas e potenciais articulações de enfretamento aos
processos vigentes de subalternização.
SUMÁRIO 117
NOTA SUPLEMENTAR
A mobilização de amefricanidade e pretuguês está ligada
a uma problematização fundamental da divisão internacional do
trabalho intelectual e de sua relação com as assimetrias políticas,
econômicas, sociais e culturais globalmente articuladas. As pala-
vras de Lélia são explícitas quanto a isso: “enquanto mulher negra,
sentimos a necessidade de aprofundar nessa reflexão, ao invés
de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos
eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais”
(GONZALEZ, 1983, p. 225)47. Além disso, Lélia rejeitou “a depen-
dência cultural” e o “eurocentrismo” de movimentos de mulheres no
Brasil, onde “intelectuais e ativistas tendem a reproduzir a postura do
feminismo europeu e norte-americano ao minimizar, ou até mesmo
deixar de reconhecer, a especificidade da natureza da experiência
do patriarcalismo por parte de mulheres negras, indígenas e de paí-
ses antes colonizados” (GONZALEZ apud CARDOSO, 2014, p. 979).
Como observa, por exemplo, Ribeiro (2017, p.24-5), Lélia reconheceu
a íntima relação entre a classificação racial da população e a hierar-
quia produzida entre diferentes saberes.
47 Como Cardoso (2014), Ribeiro (2017) e Ratts (2022) observam, esse desafio a modelos hegemô-
nicos é exposto também em textos que Lélia escreve sem seguir as regras convencionais da
linguagem acadêmica.
SUMÁRIO 118
de raça, sexualidade, classe e gênero. Nesse sentido, o pretuguês
permanece sendo uma linguagem inesgotável para uma problema-
tização amefricana da modernidade, por meio da qual a subalterna
fala, cultivando a possibilidade de uma democracia radical por vir.
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SUMÁRIO 122
5
Rafael Gomes N. Pereira
DARCY RIBEIRO
E A ANTROPOLOGIA:
BREVES NOTAS BIOGRÁFICAS
ACERCA DE UMA ESCOLHA48
48 Uma primeira versão deste ensaio foi publicada como capítulo de minha dissertação de mestrado,
intitulada “Uma teoria da modernização em Darcy Ribeiro: traços de uma filosofia da história?”, e mo-
dificada para a apresentação no “I Colóquio (Re)Leituras desde o pensamento social brasileiro: um
balanço crítico”. Para esta versão final, foram considerados comentários e sugestões da professora
Dra. Christiane Jalles e do professor Dr. Enio Passiani, a quem agradecemos – bem como a todos os
membros do colóquio – pelas valiosas sugestões que auxiliaram no aprimoramento do argumento.
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.5
INTRODUÇÃO
Em um fascinante texto, Alcida Rita Ramos (2010, p. 43)
lançou a seguinte pergunta: “Por que alguém escolhe ser antropó-
logo?”. A questão é fundamental, diríamos, para todos aqueles que se
dedicam aos estudos dos fenômenos humanos e culturais. De modo
similar, Darcy Ribeiro (1922-1997) defrontou-se com essa questão
desde o momento no qual, ao abandonar os estudos no campo da
medicina, teve que apresentar uma justificativa à família para poder
se transferir para São Paulo e, ali, iniciar seus estudos no campo das
ciências sociais, antes mesmo de tomar a prática antropológica como
seu ofício por excelência. Quando nos atentamos a alguns de seus
escritos autobiográficos, encontramos passagens instigantes nas
quais o autor argumentava seu profundo interesse por fenômenos
humanos vivos, observáveis e capazes de permitir melhor compre-
ensão sobre o tempo presente. Inspirado pelo movimento feito por
Ramos, o presente texto tem por objetivo perpassar alguns elemen-
tos constitutivos do processo de formação de Darcy no campo da
antropologia, reforçando dois momentos fundamentais: de início, sua
ida para a Escola Livre de Sociologia e Política – ELSP, após o aban-
dono dos estudos médicos em Belo Horizonte, e, em um segundo
momento, sua passagem pelo Serviço de Proteção aos Índios e seus
primeiros estudos sistemáticos em campo. Nossa trilha argumenta-
tiva pretende atravessar os anos iniciais de sua formação a partir do
enfrentamento de seus textos autobiográficos e do ambiente intelec-
tual no qual o autor se inseria, contrapondo determinados elementos
para tentar, ao fim e ao cabo, compreender indícios de como ele se
formou e, claro, tentou construir uma justificativa sobre o caminho
que traçou na antropologia.
SUMÁRIO 124
– que reapareceu durante os estudos universitários e foi aprofun-
dado pelo contato com o ambiente intelectual paulista –, bem como
os anos de seu bacharelado na ELSP. Inicialmente, tentaremos
desenhar certa trajetória histórica – diga-se, nem um pouco linear
– até a conclusão dos estudos de Darcy e sua opção pelos estudos
etnológicos, sob a orientação de Herbert Baldus. Na segunda parte
do texto, iremos nos concentrar na sua atuação à frente do Serviço
de Proteção aos Índios e na construção de suas primeiras pesquisas
etnográficas nos anos em que participou como pesquisador do órgão.
SUMÁRIO 125
que fez na capital, principalmente aqueles construídos nas pensões
pelas quais passou, do que estudando anatomia e psicologia. Sobre
isso, ele registrou:
Na nova pensão, vivi envolvido num outro grupo de
amigos, poucos da medicina, os mais eram estudantes
de direito e filosofia. Passava minhas tardes olhando
para a rua e o colégio Arnaldo, que ficava na frente. Mais
horas passava no quintal, vendo correr um riachinho que
milagrosamente aflorava ali, no meio de um bananal.
Eu meditava triste sobre o meu destino, sabendo já que
não seria médico, mas procurando um novo caminho
(RIBEIRO, 2010b, p. 68).
SUMÁRIO 126
Num certo momento, eu deixo Minas, convidado a ir para
São Paulo, pelo Donald Pierson, da Escola de Sociologia
e Política, que me daria uma bolsa de estudos. Foi um
conflito com a minha família, e eu estava fazendo 21 anos
e ia entrar em posse de um dinheiro de herança. Eles
acharam que era pura boêmica. Mas o fato é que eu tinha
esgotado o que Belo Horizonte poderia me dar, tendo em
vista o rumo que eu estava (RIBEIRO, 1997, p. 162).
SUMÁRIO 127
Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, para mim, foi
um acontecimento: ele vinha da Alemanha e trazia uma
visão de mundo diferente (RIBEIRO, 1997, p. 163).
SUMÁRIO 128
Escola tinham como marcas principais a valorização da pesquisa
etnográfica e uma análise empírica dos fatos, balizando-os por meio
de forte rigor teórico52. Acompanhando esse cenário, os seminários
de Baldus contavam com uma profunda reflexão teórica, como pode-
mos identificar na passagem abaixo:
O melhor professor que tive foi Herbet Baldus, poeta prus-
siano e etnólogo apaixonado de nossos índios. Frequentei
por três anos seu seminário pós-graduado de etnologia
brasileira. Tanto falavam ele como os mestrandos que
estavam escrevendo dissertações. Ouvi ali e discuti toda
a excelente monografia de Egon Schaden sobre a mitolo-
gia heroica dos Guarani e o ensaio fantástico de Florestan
Fernandes sobre a organização social dos tupinambás.
Aprendi muito com Baldus (RIBEIRO, 2012, p. 112).
52 Devemos aqui recordar que a organização da ELSP e seu modelo de estudos empíricos devia-se,
em grande medida, à figura de Pierson e sua relação com a chamada Escola de Chicago. Para mais
detalhes, sugerimos a leitura de Mattos (2007, p. 57).
SUMÁRIO 129
histórica, foi atraída pelo Exótico. No caso brasileiro, o “Outro” estava
“dentro das fronteiras nacionais”, fazendo de nossa antropologia um
exercício que se concentrou no desvendar de nossas próprias singu-
laridades (PEIRANO, 1992, p. 7). “Se por muito tempo a antropologia
foi definida pelo exotismo do seu objeto de estudo”, então o Brasil
constituiu-se, no início da institucionalização das Ciências Sociais, na
década de 1930, como um “caso etnográfico privilegiado” (PEIRANO,
2006, p. 53). Isso explicaria como a relação de Darcy com a antropo-
logia se deu pelas pesquisas etnológicas, já que as etnias indígenas
se tornaram um dos primeiros e mais fundamentais objetos de uma
antropologia do e no Brasil (PEIRANO, 1997; 2006). Pedimos licença
ao leitor para citarmos uma breve passagem de nosso autor, já por
ocasião dos trabalhos desenvolvidos no Museu do Índio, como forma
de corroborar nosso argumento:
O Museu do Índio foi que acolheu o primeiro curso pós-
-graduado de formação de antropólogos que se realizou
no Brasil, concretizado com a ajuda da CAPES. Ali for-
mamos turmas de melhores antropólogos de campo que,
além de preparados teoricamente pelos cursos, obtinham
recursos para realizar um ano de pesquisa de observação
direta (RIBEIRO, 2012, p. 177).
53 Na segunda parte deste ensaio, desenvolveremos de forma mais detalhada as atividades realiza-
das por ocasião do CAAC.
SUMÁRIO 130
A primeira coisa que publiquei como etnólogo é o que
todo antropólogo sério deve publicar: uma terminologia
de parentesco. Na verdade, eu era obrigado a fazer isso
porque a antropologia fundamental era parentesco, tinha
que saber, tinha que estudar parentesco, era uma espé-
cie de prova. O interessante é que, uns trinta anos mais
tarde, saiu um livro sobre parentesco nos Estados Unidos
que trazia aquele meu artigo como um dos melhores
(RIBEIRO, 1997, p. 171).
SUMÁRIO 131
de parâmetros fornecidos pelo nation-building, o que demandava,
àquela altura, compreender o entrechoque dos povos originários
e do avanço da chamada civilização moderna. Se “Os cientistas
sociais, como outros intelectuais no país, são orientados por parâ-
metros cívicos e políticos”, Darcy orientou sua reflexão teórica inicial
para a compreensão de um passado humano que precisava ser
preservado para o entendimento das demandas do tempo presente
(PEIRANO, 1992, p. 11-12).
SUMÁRIO 132
e métodos dos campos de estudo da antropologia54. Notamos aqui
mais um possível ponto de intersecção entre Baldus e a ELSP: o
trabalho etnográfico como fundamental para a compreensão de um
passado que precisava ser preservado em suas múltiplas perspec-
tivas. Em estimulante artigo, Sílvio Correa (2022, p. 268) esboçou
como Baldus – bem como outros intérpretes da etnologia alemã55
–, desenvolveu um tipo de etnologia que se pautava em uma pers-
pectiva de salvamento de um passado humano que precisava ser
conservado. Isso, como veremos a partir de agora, ganhou fôlego
na produção teórica marcadamente salvacionista. Passemos para
considerações mais precisas sobre os anos iniciais da atividade de
Darcy como antropólogo.
APÓS A ELSP:
A PASSAGEM PELO SERVIÇO PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS
Após três anos na ELSP, Darcy concluiu sua formação como
cientista social, com ênfase em etnologia, no ano de 1946, sob orien-
tação de Baldus. O espectro de consciência que orientou seus estu-
dos etnológicos estava vinculado a um imaginário coletivo do pas-
sado brasileiro (GOMES, 2000, p. 26). Desde o romantismo literário,
em autores como Gonçalves Dias e José de Alencar, o índio passou
a ser um legado histórico e arqueológico que deveria ser preservado.
Como já faziam os antropólogos americanos desde o século XIX, os
“povos ancestrais” deveriam ser mapeados antes que ocorresse sua
dizimação completa, recolhendo sobre eles o máximo de informa-
ções possíveis para a preservação de suas memórias. Vejamos:
54 Como não intencionamos estudar detalhadamente o CAAC, sugerimos, para leitores interessados
no tema, o trabalho de Mattos (2007). Lá está em minúcias a análise do corpo docente, dos alunos
e das aulas ministradas nos anos de atuação do curso.
55 Correa (2022) trabalhou o caso Curt Nimuendajú em perspectiva comparada a Herbert Baldus.
SUMÁRIO 133
O índio interessava, também, como exemplo vivo de um
passado da humanidade que estava por acabar. Assim,
desde o fim do século XIX, a Antropologia americana
vinha buscando documentar os costumes dos índios
americanos que estavam sendo esquecidos ou aban-
donados. Havia uma urgência em se mapear as culturas
que ainda restavam do processo de dizimação que estava
ocorrendo na frente de todos. Com efeito, todo etnólogo
que ia estudar um povo indígena estava imbuído de um
sentimento trágico, de que ele, provavelmente, seria o
último a fazê-lo (GOMES, 2000, p. 27).
SUMÁRIO 134
meio de um processo de pacificação que os tornasse menos hostis
à pátria e os permitisse uma transição gradual para o convívio na
sociedade nacional. A antropologia esteve, no início do século XX,
vinculada à produção de um discurso científico sobre a formação do
Brasil que defendia a integração territorial por meio da desvaloriza-
ção das alteridades locais e regionais56. Contudo, para avançarmos
no pensamento de Darcy precisamos avaliar mais detalhadamente
as condições institucionais e ideológicas do SPI.
SUMÁRIO 135
como seria chamado a partir de 1918, detinha uma concepção de que
os índios, situados em degraus evolutivos inferiores, deveriam ser
integrados e geridos pela força de um Estado tutelar. Como apontou
João Pacheco de Oliveira (2016, p. 223), as políticas indigenistas do
início do século XX foram marcadas pela tentativa de construir uma
ordem pública que engendrasse uma “intervenção tutelar que, por
meio de procedimentos disciplinadores, viesse a hierarquizar e orga-
nizar as diferenças culturais e religiosas”. O SPI, como órgão oficial
de Estado, trabalhou pela formação da unidade nacional a partir do
apagamento das diversidades étnico-culturais dos povos indígenas
que aqui viviam. Darcy, funcionário da instituição naquela ocasião,
“foi quem montou um projeto para explicar a política indigenista”, de
modo a ter defendido a ideologia rondoniana como aquela que seria
responsável por salvar os índios do avanço civilizacional (CUNHA,
2016, p. 44). A atuação profissional no SPI57 reforçou sua atenção
intelectual para o problema da integração do índio na sociedade à luz
do humanismo positivista de Rondon. Como definiu Ramos (2018, p.
109), essa ideologia era caracterizada pela tentativa de salvar a vida
das populações indígenas do progresso civilizacional iminente, mas
às custas de uma abordagem minimalista naquilo que concernia aos
reais impactos da expansão das fronteiras nacionais. Tal perspectiva,
que marcou boa parte da política indigenista no início do século XX,
além de estar diretamente associada a certo ufanismo estatal, tinha
como grande problema partir de uma visão estritamente eurocêntrica
e incapaz de descrever as iracundas políticas públicas que, camufla-
das por um discurso heroico de proteção dos nossos antepassados,
57 Junto à sua atuação no SPI, Darcy trabalhou como pesquisador da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO, nos anos de 1950, em projeto que
buscou desenvolver um conjunto sistemático de estudos sobre as relações étnico-raciais no
Brasil. A Divisão de Estudos, departamento interno desse órgão internacional, fez uma pro-
posta para que ele realizasse um trabalho sobre a política indigenista no Brasil. Aceitando a
empreitada, Darcy iniciou uma série de estudos sobre a relação dos povos indígenas com a
sociedade moderna e o Estado Nacional brasileiro. A tarefa foi cumprida entre os anos de 1952
e 1953, convertendo-se em um relatório para a UNESCO e, mais adiante, na constituição de seu
importante livro Os índios e a Civilização.
SUMÁRIO 136
ignoravam a violência física e simbólica que as etnias indígenas
vinham sofrendo desde os tempos coloniais. O SPI, sob a liderança
de Rondon, adotou uma política de proteção e preservação da vida
dos índios brasileiros por meio de um processo de pacificação das
populações nativas, mas que, na verdade, consistia em uma elabo-
ração discursiva que desejou “contornar obstáculos indigestos ao
poder político e, principalmente, econômico” (RAMOS, 2018, p. 109).
O indianismo oficial do Estado brasileiro atuava com base em uma
abordagem tutelar que considerava os índios como sujeitos inferiores
e atrasados. Calcada no evolucionismo social, a política positivista do
SPI colocou os índios nos degraus mais baixos do desenvolvimento
humano e a formação nacional nos patamares mais avançados, de
tal modo que, no confronto entre essas duas realidades, aquela que
estivesse em um nível evolutivo mais avançado levaria vantagem
sobre as composições sociais mais arcaicas. Vejamos:
Deste modo, promoveram-se novas cartografias sociais
e fortes transformações territoriais. Pela primeira vez era
formulada uma circunferência territorial na administração
republicana que homenageava um brasileiro: trata-se de
Cândido Mariano da Silva Rondon. Da proposta inicial
de Roquette-Pinto até a criação do Território Federal de
Guaporé (1943), o SPI protagonizou políticas indutoras de
mudanças na gestão de territórios e promoveu amálga-
mas entre as políticas tutelares e as ciências com pers-
pectivas positivistas formularam categorizações às socie-
dades indígenas dentro de escalas do evolucionismo
social (CUNHA, 2016, p. 37).
SUMÁRIO 137
incapacidade do termo em lidar com a complexidade do que ocorria
com os povos indígenas na prática, pois eles não abandonavam por
completo suas culturas em prol da incorporação aos padrões sociais
modernos, mas eram transfigurados por meio de mecanismos de
resistência. O confronto entre as distintas culturas levou a um pro-
cesso de transformação, não de abandono:
As duas principais características do processo de trans-
figuração étnica das tribos indígenas brasileiras fazem
dele uma sequência natural e necessária de eventos
resultantes do enfrentamento entre ramos distintos e
originalmente isolados da espécie humana e entre socie-
dades evolutivamente defasadas. O processo atua, assim,
em dois níveis. Primeiro, como um enfrentamento entre
populações que, configurando distintas entidades bióti-
cas, ao entrarem em convivência mescla racialmente e se
contagiam reciprocamente (RIBEIRO, 1982, p. 221).
SUMÁRIO 138
da significação”, apresentou as populações indígenas sob a ótica da
comunidade nacional, alienando suas coletividades (SOUZA LIMA,
2015, p. 434). O resultado de suas reflexões antropológicas pode ser
descrito como a tentativa de
[...] rotular genericamente coletividades, vinculando-as
a espaços e práticas supostamente distintas, e inseri-las
num sistema codificado e hierarquizado de atribuições
positivas e negativas — um status, portanto —, parte de
um mecanismo imaginado como de governo no sentido
de Michel Foucault (2004), operado em escala nacio-
nal. Com tal descrição, define-se também um corpo
de especialistas em tal tipo de coletividade (SOUZA
LIMA, 2015, p. 432).
SUMÁRIO 139
Darcy foi responsável pela elaboração das justificativas da
criação do Xingu58, ocorrida no governo de Jânio Quadros. Ao fazê-lo,
articulou um conjunto de memórias que desaguou na formulação de
um passado arqueológico sobre os povos indígenas. Como dito por
Carlos Augusto Freire (2005, p. 12), a reserva foi a cristalização da
ideologia do SPI e de um modo de interpretação da história brasileira
assombrada pelos ecos de nosso passado colonial. Assim como os
sertanistas e os jesuítas, os etnólogos e pesquisadores do início do
século XX foram incumbidos da “nobre missão” de proteger aqueles
que não podiam se defender, buscando sedentarizar os povos erran-
tes para seu próprio bem (SOUZA LIMA, 2015, p. 429). Assim Darcy
descreveu sua relação com o Xingu:
Feito meu de que me orgulho muito foi colaborar na cria-
ção do Parque Indígena do Xingu, em colaboração com
os irmãos Orlando e Cláudio Villas Boas, com o doutor
Noel Nutels e com Eduardo Galvão. Os Villas Boas dedi-
caram toda as suas vidas a conduzir os índios xinguanos
do isolamento original em que os encontraram até o cho-
que com as fronteiras da civilização. Aprenderam a res-
peitá-los e perceberam a necessidade imperiosa de lhes
assegurar algum isolamento para que sobrevivessem
(RIBEIRO, 2012, p. 174-175).
58 Como apontou Gomes (2000, p. 11), o Parque Nacional do Xingu já estava sendo pensado por
Darcy, Rondon e os irmãos Villas-Boas desde 1952. Todo o projeto foi acompanhado, também, do
desenvolvimento do Museu do Índio.
SUMÁRIO 140
por parte do órgão e de Darcy naquilo que concernia à defesa do índio
em relação ao avanço dos “homens brancos” e ao declínio numérico
dessas populações. Nessa interpretação, Gomes reconheceu, no
SPI, importante papel na manutenção das formas de vida indígenas
e no combate ao extermínio das diversas etnias que estavam sendo
dizimadas pelo avanço societário. Apresento, agora, o argumento de
Gomes, seguido pelo apontamento darcyniano acerca do legado do
positivismo rondoniano:
A crítica, portanto, tem procedência, mas as explicações
são igualmente compreensíveis para o contexto da época.
Nesse tempo, em qualquer parte do mundo, os povos
indígenas estavam em processo de queda demográfica
e destituição cultural. No Brasil e nos trópicos do mundo
isso parecia ainda mais verdadeiro. Os antropólogos que
visitavam povos indígenas o faziam na expectativa de
que eles, se não fossem os primeiros, certamente seriam
os últimos a visitá-los em condições étnicas de sobrevi-
vência. Os estudos etnográficos eram feitos no espírito
de salvamento daquilo que podia ser salvo: amostras da
cultura material, a coleta de mitos, a descrição de rituais,
a análise de parentesco e das condições econômicas e
ecológicas de sobrevivência (GOMES, 2009, p. 185).
SUMÁRIO 141
a dizimação dos povos ancestrais no confronto com a civilização
moderna e o declínio da diversidade étnica ocasionado por esse
contato. Segundo Gomes (2009, p. 179), o órgão contribuiu dire-
tamente para a demarcação de terras indígenas, o que permitiu a
algumas etnias reproduzirem seu modo de vida social – caça, pesca
e coleta –, além de ter sido responsável por realizar um profundo
levantamento histórico – no qual Darcy contribuiu diretamente –,
coletando dados estatísticos, relatos orais e indícios arqueológicos
que permitiram a preservação de importante legado cultural. Dito
isso, percebemos que as discussões acerca do SPI se encontram
longe de uma conclusão. Este trabalho não pretende dar resposta a
essas indagações, mas indicar que os debates acerca das políticas
indigenistas do século XX desencadearam posições contrárias, aqui
figuradas pelas abordagens de Souza Lima e Gomes. Já que nosso
objeto de investigação é Darcy, interessa-nos a forma como que ele
se posicionou em relação aos índios e ao SPI. Seguindo o que foi
posto por Elaine Tavares (2018) e Lucas Pinheiro (2012), o antropó-
logo mineiro era um defensor do lema rondoniano: “Morrer talvez,
matar nunca”, assumindo que, naquelas circunstâncias, a defesa
dos índios e a sua preservação física deveria ser feita por meio de
intervenção direta do órgão como forma de protegê-los diante da
dizimação deflagrada pela civilização moderna:
Fundado nos princípios do positivismo de Augusto
Comte, mas superando-os largamente, Rondon e seus
companheiros estabeleceram um corpo de diretrizes que
por décadas orientaram uma política indigenista oficial.
Eles afirmavam que o objetivo não pode ser exterminar ou
transformar o indígena, mas fazer dele um índio melhor,
dando-lhe acesso às ferramentas e a orientação adequada.
O que cumpria fazer em essência era assegurar aquele
mínimo indispensável a cada povo indígena, que é direito
de ser índio, mediante a garantia de um território onde
possam viver sossegados, a salvo de ataques, e recons-
truir sua vida e seus costumes (RIBEIRO, 2015c, p. 110).
SUMÁRIO 142
Para além de sua atuação como pesquisador no SPI,
Darcy ocupou a cátedra de Etnografia Brasileira e Língua Tupi, na
Faculdade Nacional de Filosofia – FNFi, a partir de 1956. Os cursos
por ele ministrados também versavam sobre questões concernen-
tes à integração das populações indígenas à sociedade moderna e
tomavam como base os estudos que havia desenvolvido nos traba-
lhos de campo pelo SPI59:
Havia sido contratado para dar um curso de etnografia
brasileira de língua tupi. Língua tupi nunca ensinei. Sou
ruim para línguas, ainda que muito bom em português.
Minha etnografia era, de fato, uma introdução à antro-
pologia teórica, que eu recheava com exemplificações
tiradas da etnologia indígena. Exemplificava, por exemplo,
o sistema adaptativo com meus estudos sobre os índios
Kaapor (RIBEIRO, 2012, p. 181).
59 Dentre as monografias que produziu na época em que integrou a Seção de Estudos, merece
menção seu escrito sobre os povos Kadiwéu. Darcy desenvolveu um trabalho sobre a religião e a
mitologia dos Kadiwéu, de modo a dar destaque às alterações sofridas por esses povos quando
entraram em contato com os colonizadores. Ele fez várias alterações no texto original para con-
correr à cátedra na FNFi. Além disso, recebeu, por esse trabalho, o prêmio Fábio Prado (1950). Para
mais, ver Gomes (2000) e Ribeiro (2012).
SUMÁRIO 143
pois eles estavam em um processo de reinvenção constante por
meio do choque com a civilização. Em suas palavras,
Foi nessa base de observações diretas e em toda biblio-
grafia pertinente, bem como na vasta documentação que
me foi acessível, que propus o conceito de transfiguração
étnica, ou seja, a compreensão de que as culturas são
imperativamente transformadoras no confronto umas
com as outras. Especificamente no caso dos povos indí-
genas com a civilização (RIBEIRO, 2012, p. 174).
SUMÁRIO 144
UM TIPO DE ANTROPOLOGIA:
PEQUENAS NOTAS CONCLUSIVAS
Vejamos um breve trecho de outra instigante reflexão
de Peirano:
Em termos da antropologia que se tomou legítima no
Brasil, há, portanto, pelo menos dois tipos de manifesta-
ção a considerar: até os anos 60, pelo rótulo de antro-
pologia entendia-se de forma dominante (se não exclu-
siva) o estudo hoje considerado canônico ou clássico
de sociedades tribais ou primitivas, como era comum
nos grandes centros europeus e norte-americanos
(PEIRANO, 2000, p. 220).
SUMÁRIO 145
o pensamento darcyniano pelas décadas seguintes, em sua busca
pelas raízes da brasilidade. Já no final da década de 1940, ele pro-
curou “um grupo o mais parecido possível com os Tupinambá de
1500, pois foram eles que fizeram a forma básica da cultura brasileira”
(RIBEIRO, 1997, p. 172), e, no encontro com o colonizador, buscou
determinar nossas próprias linhas históricas, como, por exemplo, sua
construção narrativa em O Povo Brasileiro (RIBEIRO, 2015c).
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SUMÁRIO 147
6
Vânia Noeli Ferreira de Assunção
APONTAMENTOS SOBRE
A PERCEPÇÃO DA FORMAÇÃO
DO CAPITALISMO BRASILEIRO
COMO “VIA PRUSSIANA”
EM CARLOS NELSON COUTINHO
E SUA CRÍTICA POR J. CHASIN
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.6
Este texto tem o modesto objetivo de inventariar os caracteres
centrais da noção de via prussiana segundo Carlos Nelson Coutinho,
principal autor que dela se valeu para entender e transformar a reali-
dade brasileira, e J. Chasin, que a criticou como inadequada à espe-
cificidade do país, que, segundo ele, objetivou o capitalismo pela via
colonial. Trata-se de um momento inicial da pesquisa, para, numa
segunda etapa, analisar mais demoradamente a categoria, demons-
trando as suas possibilidades e limites em uma comparação crítica
com a de via colonial.
Para o filósofo, o Brasil era, até por volta dos anos 1930, “uma
sociedade semicolonial em crise”, com “uma economia semifeudal”
(termo posteriormente substituído por outros, como “pré-capitalista”)
cujas capacidades se esgotaram devido a não ter engendrado uma
economia e uma sociedade modernas, dada a inexistência de uma
renovação radical. Nos seus termos:
A ausência de uma economia integrada – estruturada
em torno de um mercado interno único – era causa e
efeito da inexistência de uma classe burguesa orgânica,
que estivesse em condições de promover uma autêntica
revolução democrática. Assim, o total fracionamento de
nossa sociedade – típico de uma economia pré-capita-
lista – impedia a formação de uma verdadeira comuni-
dade humana, de uma vida pública democrática, afas-
tando o povo de qualquer participação criadora em nossa
SUMÁRIO 149
história. A estagnação social condenava os homens a
uma vida medíocre, ao cárcere de um “pequeno mundo”
restrito e sem perspectivas, separado da autêntica vida
social e comunitária por paredes bastante espessas.
(COUTINHO, 1967, p. 140-1)
SUMÁRIO 150
definitivamente, aos princípios democráticos e humanistas do seu
período de ascensão revolucionária nos países hoje desenvolvidos”
(COUTINHO, 1967, p. 156). No bojo desta renúncia, nem mesmo os
“os mais consequentes entre os nossos burgueses, os que encarnam
a mais alta possibilidade de ambição e de progresso contida em sua
classe”, viam além das frestas do “cárcere do ‘pequeno mundo’” em
que viviam, com o qual conciliavam, e às quais limitavam seus hori-
zontes, sem “abrir-se para uma vida comunitária e autenticamente
humana” (COUTINHO, 1967, p. 156-7).
SUMÁRIO 151
as perspectivas revolucionárias nunca vicejaram: “As esperanças de
renovação democrática da sociedade eram violentamente cortadas:
a ausência de uma classe social efetivamente (e não apenas poten-
cialmente) revolucionária condenava os que pretendiam lutar por
uma nova comunidade à solidão e à incompreensão.” (COUTINHO,
1967, p. 140) Ademais, sem as condições para “autênticas revoluções”
levadas a cabo por amplos movimentos populares, com a participa-
ção ativa e estimuladora das massas, as mudanças que ocorreram
no Brasil se deram pela conciliação entre as classes economica-
mente dominantes, sob a forma política de “reformas ‘pelo alto’”
(COUTINHO, 1984, p. 132).
SUMÁRIO 152
Como à “decadência de nossa estrutura agrária semifeudal” não se
seguiu uma transformação capitalista do campo, “o latifúndio – o
monopólio da terra – torna-se a causa da exploração e da miséria no
campo brasileiro” (COUTINHO, 1967, p. 172-3).
SUMÁRIO 153
em vista das modificações que “fazem com que o capitalismo se torne
o modo de produção predominante no Brasil” (COUTINHO, 2003, p.
214). Nesse processo, o mercado interno brasileiro se internacionalizou
e o capital estrangeiro reforçou as modificações que tornaram o Brasil
um país industrial, urbanizado e com uma estrutura social complexa.
SUMÁRIO 154
sociais subordinadas. No país, a subsunção do Estado aos “interesses
privados se manifestava com sua tomada como propriedade privada
dos seus ocupantes, donde seu acentuado caráter patrimonialista –
cujo objetivo era, antes de tudo, promover as melhores condições
para a expansão do capital privado” (COUTINHO, 2020, p. 242-3).
SUMÁRIO 155
Aqui, o capitalismo se desenvolveu “no interior da economia semifeu-
dal e dependente” e que não compartilhava os ideais revolucionários
que haviam existido na Europa Ocidental. Seu caráter conciliador
o impedia de atacar os preconceitos e privilégios pré-capitalistas,
antes os fortalecia, bem como era inabilitado para efetivar uma revo-
lução democrática. Donde, no Brasil, o capitalismo não apresentava
nenhuma inclinação e nem tinha um baluarte para um movimento
revolucionário conforme havido nos países clássicos, nunca se pôs
como projeto a criação do cidadão – indivíduo síntese da vida pública
com a vida privada – nem da autêntica comunidade humana, “na
qual os interesses individuais e os interesses coletivos formam uma
totalidade orgânica” (COUTINHO, 1967, p. 141).
SUMÁRIO 156
O processo de análise dos textos coutinianos revelou a recor-
rência a “três fontes” explicativas do processo de modernização do
Brasil, “paradigmas” paulatinamente incorporados a seu raciocínio
e que, dizia, facultavam “captar algumas determinações decisivas
da formação do estado que se gestou em nosso país” (COUTINHO,
2020, p. 231). Trata-se da via prussiana de Lênin e G. Lukács, com
as quais trabalhou desde 1972; da revolução passiva de Gramsci e
da modernização conservadora de Barrington Moore Jr., agregadas
num segundo momento ao seu pensamento:
Há três paradigmas que nos ajudam a pensar essa moda-
lidade peculiar pela qual o Brasil transitou para a moder-
nidade e enfrentou os grandes desafios históricos de sua
evolução política, praticamente desde a Independência.
O primeiro desses paradigmas é o conceito de “via prus-
siana”, elaborado por Lênin. (...) Conceito análogo aparece
em Gramsci, ou seja, o conceito de “revolução passiva”.
(...) Finalmente, há um conceito mais “acadêmico”, ou seja,
com melhor trânsito na universidade, que também ajuda
a pensar o caso brasileiro: o conceito de “modernização
conservadora”, elaborado pelo sociólogo norte-americano
Barrington Moore Jr. (COUTINHO, 2020, p. 230-1).
J. CHASIN E A CRÍTICA
DA IDENTIFICAÇÃO DO CAMINHO
BRASILEIRO COMO “VIA PRUSSIANA”
J. Chasin (1937-98) foi um filósofo e professor universitário
marxista paulistano. Embora muito pouco conhecido, trata-se de um
pensador fundamental para a compreensão do Brasil e crítico do uso
de “via prussiana” para a objetivação do capitalismo no país.
SUMÁRIO 157
Em sua tentativa de desvelar a especificidade do Brasil no
rol dos países capitalistas, o teórico faz um movimento de retorno a
Marx, tendo em vista que este estudou constantemente as formas
particulares de objetivação do capitalismo, ao abordar questões
relativas a países como Inglaterra, França e Estados Unidos, de um
lado, e Alemanha, de outro. Chasin lembra que, segundo Marx, os
primeiros países seguiram uma via clássica ao capitalismo, nos quais
a burguesia assumira a representação dos interesses universais das
demais classes oprimidas pelo feudalismo e realizara uma revolu-
ção cuja vitória resultara na inauguração de todo um novo sistema
social, estabelecendo uma dominação econômica e política “na
identidade formal da soberania popular” (CHASIN, 2000, p. 158). Nos
países de via clássica (na Inglaterra, ainda no século XVII, portanto
de forma precoce; na França, no século XVIII), a burguesia dera cabo
de tarefas históricas próprias, resultando delas a efetivação de uma
economia capitalista e de uma sociedade burguesa interdependen-
tes, estruturadas de forma orgânica e integral e interdeterminadas
(CHASIN, 2000, p. 216).
SUMÁRIO 158
ordem, produzindo uma combinação de novos e velhos problemas,
de retrocessos e avanços. De fato, ainda que com um atraso secu-
lar, houvera um desenvolvimento significativo, veloz e completo em
determinadas regiões da Alemanha no final daquele século. Como
resultado das especificidades históricas e conjunturais de sua situ-
ação, a burguesia prussiana se impusera a toda a Alemanha sem
um processo revolucionário; a burguesia alemã renunciara ao poder
político, instituindo sua dominação por meio de concessões e com-
binações com as classes dominantes remanescentes do feudalismo,
suprimindo a participação das grandes massas populares, subjuga-
das pela repressão e pela força da ideologia. Nos limites dessa forma
de dominação, na qual abrira mão do poder político, a burguesia ao
menos cumprira suas tarefas econômicas, mormente a industrializa-
ção, que solidificara com uma indústria de base de porte significativo.
SUMÁRIO 159
O teórico em tela concorda que havia semelhanças com o
caso brasileiro. E, “no afã de tracejar um contorno interpretativo geral
do caso brasileiro”, aquele caminho prussiano para “se constituir e
ser capitalismo” “tem para nós importância teórica básica” (CHASIN,
2000, p. 15). Isto porque, no processo de transição para o capitalismo,
(...) tanto no Brasil quanto na Alemanha, a grande pro-
priedade rural é presença decisiva; de igual modo, o
“reformismo pelo alto” caracterizou os processos de
modernização de ambos, impondo-se, desde logo, uma
solução conciliadora no plano político imediato, que
exclui as rupturas superadoras, nas quais as classes
subordinadas influiriam, fazendo valer seu peso espe-
cífico, o que abriria a possibilidade de alterações mais
harmônicas entre as distintas partes do social. Também
nos dois casos o desenvolvimento das forças produtivas é
mais lento e a implantação e progressão da indústria, isto
é, do “verdadeiro capitalismo”, como distinguia Marx, do
modo de produção especificamente capitalista, é retar-
datária, tardia, sofrendo obstaculizações e refreamentos
decorrentes da resistência de forças contrárias e adversas
(CHASIN, 1999, p. 573).
SUMÁRIO 160
Neste caminho, em contraponto à ampliação indevida de “via
prussiana” para o caso brasileiro, Chasin destaca que as desseme-
lhanças eram tão grandes que mais os distanciavam dos clássicos
do que os aproximavam entre si. Arrola como uma primeira e funda-
mental diferença a gênese da grande propriedade, que na Alemanha
era o latifúndio feudal, enquanto no Brasil, de economia mercantil,
era a empresa colonial. Também o perfil tardio da industrialização em
comparação aos países clássicos – que, a um primeiro olhar, aproxi-
mava Brasil e Alemanha – na verdade demonstrava diferenças abis-
sais: a industrialização alemã é do século XIX, foi extremamente veloz
e completou seu perfil, possibilitando àquela nação situar-se entre
os países imperialistas; no Brasil, deu-se de forma tardia em relação
à própria Alemanha, já adiantado o século XX (a partir de 1930) e em
plena era das guerras imperialistas e do capital monopolista. Uma
terceira grande diferença é o fato de que a burguesia prussiana, con-
quanto que antidemocrática, nunca tenha sido subserviente a uma
burguesia estrangeira, “realiza um caminho econômico autônomo,
centrado e dinamizado pelos seus próprios interesses” (CHASIN,
2000, p. 104). Já no Brasil a burguesia sempre foi subserviente ao
capital estrangeiro. Donde Chasin conclui ser absolutamente incor-
reto tomar como idênticos os caminhos de países como Alemanha,
Itália e Japão – “elos débeis da cadeia imperialista, portanto fenôme-
nos do capitalismo altamente avançado, entidades da fase superior
do capitalismo” – e o Brasil, que era objeto da disputa interimperia-
lista (CHASIN, 2000, p. 58). Por fim, o teórico paulistano contrapõe a
diferença do tipo de encargo que o ingresso no capitalismo – tardio,
no caso da Alemanha; hipertardio, no do Brasil – havia legado a
ambos os países, no seu intermitente e irregular processo de objeti-
vação do capitalismo, herança que os punha, como mencionado, em
patamares históricos distintos:
Enquanto a industrialização tardia se efetiva num quadro
histórico em que o proletariado já travou suas primeiras
batalhas teóricas e práticas, e a estruturação dos impérios
coloniais já se configurou, a industrialização hipertardia se
SUMÁRIO 161
realiza já no quadro da acumulação monopolista avan-
çada, no tempo em que guerras imperialistas já foram
travadas, e numa configuração mundial em que a pers-
pectiva do trabalho já se materializou na ocupação do
poder de estado em parcela das unidades nacionais que
compõem o conjunto internacional. Ainda mais, a indus-
trialização tardia, apesar de retardatária, é autônoma,
enquanto a hipertardia, além de seu atraso no tempo,
dando-se em países de extração colonial, é realizada sem
que estes tenham deixado de ser subordinados das eco-
nomias centrais (CHASIN, 2000, p. 34).
SUMÁRIO 162
um caminho particular ao capitalismo, enquanto mediação objetiva
entre universal capitalista e sua efetivação singular, distanciando-se
da “‘criação’ de novos universais, tal como se dá quando, a colonial,
se antepõe modo de produção” (CHASIN, 2000, p. 17).
SUMÁRIO 163
nunca desempenhou a função de representante universal dos inte-
resses das classes dominadas, que, pelo contrário, foram reprimidas,
marginalizadas e excluídas dos processos mais significativos. O pro-
gresso se pôs parcialmente, já que contemporizado com a conser-
vação do atraso via acertos e acomodações com os representantes
da ordem agroexportadora. Assim, o reformismo pelo alto marcou
a sociedade brasileira e impediu a existência de uma hegemonia
burguesa liberal-democrática, reforçando o perfil excludente da via
colonial. Por isso o fenômeno da exclusão social – com destaque
para a extraordinária desigualdade e para a dominação autocrática
(institucionalizada ou bonapartista) – era constituinte da forma de
ser e ir sendo de um capital personificado numa classe contrarre-
volucionária, inapta para o cumprimento de suas tarefas históricas e
mansamente obediente às burguesias dos países centrais. Imersa na
realização de seus interesses mesquinhos, subordinada às classes
dominantes estrangeiras, feroz com as classes dominadas, a burgue-
sia brasileira só poderia fazer a estas pequenas concessões, de má
vontade, quando não houvesse no horizonte nenhuma ameaça – e
não hesitava em reprimi-la com violência aberrante quando ousasse
reivindicar seu lugar na história. Este quadro histórico se manteve,
no geral, até a globalização, que impôs modificações de fora para
dentro, as quais seria necessário investigar em outra pesquisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deste breve estudo, evidenciou-se a existência de diversas
semelhanças entre as teorias de Coutinho e de Chasin, mas também
de algumas diferenças fundamentais.
SUMÁRIO 164
inexistência de revolução democrático-burguesa, a permanência do
latifúndio (tido primeiro como “(semi)feudal”, “semicolonial”, depois
“pré-capitalista”), a subordinação às burguesias estrangeiras, as
negociações e transições “pelo alto”, excluída a participação popu-
lar, complementadas com a atuação do Estado tanto na repressão
quanto na intervenção econômica direta.
SUMÁRIO 165
e completamente, a brasileira nunca se completou, e assim o capital
também jamais pôde nem poderia se integralizar e articular organica-
mente no país. As classes dominantes brasileiras, ineptas e inaptas,
sempre foram subordinadas aos centros hegemônicos, outra especi-
ficidade em relação à alemã. Assim, adverte sobre a impropriedade
de se chamar pelo mesmo nome dois percursos tão distintos, que
levaram a estatutos socioeconômicos tão diferentes.
SUMÁRIO 166
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SUMÁRIO 168
Par te
II
RELEITURAS
DO PENSAMENTO
SOCIAL BRASILEIRO
7
Marcos Abraão Ribeiro
Roberto Dutra
Maro Lara Martins
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.7
INTRODUÇÃO
Depois de 20 anos de ditadura civil-militar, o Brasil retomou
o regime democrático representativo com a instituição da Nova
República, que foi simbolizada pela Constituição de 1988 e pelas elei-
ções diretas para presidente da República no ano seguinte. Depois
da promulgação da Constituição Cidadã e da retomada das eleições
diretas para presidente, consolidamos a democracia no país60.
60 Este texto foi publicado previamente como apresentação do dossiê a Atualidade do pensamento
social e político brasileiro, na Terceiro Milênio: revista crítica de sociologia e política, vol.18, n.01, 2022.
SUMÁRIO 171
muito distintas para compreender a crise brasileira em diálogo com
teorias e abordagens mais recentes. Categorias clássicas como perso-
nalismo, patrimonialismo, populismo, autocracia burguesa são capazes
de compreender nossos dilemas? O Brasil contemporâneo possui pro-
blemas essencialmente seus ou trata-se de dilemas mais gerais viven-
ciados por muitos outros países, mesmo que em intensidades distintas?
Qual é o potencial heurístico do pensamento social e político brasileiro?
Nesse texto introdutório, nosso objetivo é apresentar traços gerais do
pensamento social e político brasileiro, algumas críticas aos seus pres-
supostos e teorias sociais e políticas brasileiras que são decisivas para
a necessária ruptura com as leituras dos dilemas brasileiros que os cir-
cunscrevem como atraso e singularidades sociais e políticas.
O PENSAMENTO SOCIAL
E POLÍTICO BRASILEIRO
A expressão pensamento social e político brasileiro61 comporta
diversos significados62, como etapa da história das ciências sociais,
como imaginação social ou como campo de estudos disciplinar.
61 Sobre o pensamento político brasileiro, Lynch (2016, p.80) oferece a seguinte definição: “No
sentido estrito, a expressão PPB se refere a um círculo mais reduzido de obras que, dotadas
de maior fôlego e sistematicidade, pretenderam descrever nossa realidade política com maior
fidedignidade e como tal passaram a integrar uma espécie de cânone dos ‘clássicos’ do PPB.
Encara-se o PPB então como uma teoria política e/ou a ‘velha’ ciência política, elaborada antes
da institucionalização universitária”.
62 Sobre a pluralidade de significados, Schwarcz e Botelho (2011, p.11) argumentam nos trazem um
importante argumento ao analisarem o campo do pensamento social brasileiro: Nos últimos trinta
anos, pesquisas sobre as tradições intelectual, cultural, social e política brasileiras, ao se identifica-
rem e serem identificadas como “pensamento social brasileiro”, contribuíram para dar forma a esta
área de pesquisa que, hoje, tem apresentado uma dinâmica muito particular e amplas condições de
afirmação no âmbito das ciências sociais praticadas no Brasil. Condições, porém, que não tornam
autoevidentes as fronteiras entre o pensamento social e outras áreas de pesquisa, ou mesmo outros
campos do conhecimento nas ciências humanas. Longe de ser uma limitação, tal aspecto parece,
antes, constituir vantagem em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea.”
SUMÁRIO 172
Nos últimos anos, tem se destacado aquele que concebe o pensa-
mento social e político brasileiro como um campo de análise multidis-
ciplinar, com características, objetos e métodos próprios, instituciona-
lizado na prática científica brasileira, seja através de criação de grupos
de pesquisa, publicações, congressos e presença na pós-graduação.
SUMÁRIO 173
para superá-los. Devido ao caráter atrasado e singular da realidade
brasileira, nossos intelectuais teriam que produzir pensamento para
compreender os dilemas que seriam essencialmente nacionais,
deixando para os pesquisadores dos países centrais a tarefa de
formular teoria com validade universal (LYNCH, 2013). Sobre a cen-
tralidade da perspectiva do atraso no pensamento social brasileiro
(PSB), Bastos argumenta:
Creio que simplificando a resposta podemos dizer que
a grande indagação presente nos vários momentos de
desenvolvimento do pensamento social brasileiro diz res-
peito à questão do atraso. Por que uso a palavra atraso?
Não só porque esse termo aparece explicitamente em mui-
tas das abordagens dos autores, como porque está implí-
cito em quase a totalidade dos textos, mesmo com outra
denominação. As temáticas da modernização, os debates
sobre o subdesenvolvimento, mas também as mais gerais
como a pobreza, o analfabetismo, as diferenças regionais,
ilustram bem a questão. (BASTOS, 2013, p.288-289).
SUMÁRIO 174
As interpretações do pensamento político brasileiro incor-
poraram de modo acrítico a filosofia eurocêntrica da história e a
representação da produção periférica como essencialmente inferior
(LYNCH, 2013). Como consequência da internalização e naturaliza-
ção do atraso e da subalternidade (LYNCH, 2016), as intepretações
com validade nacional foram formuladas tendo como contraponto e
referência de teoria os trabalhos produzidos na Europa e nos Estados
Unidos. A ênfase no tema do atraso fez com que conceitos como
personalismo, populismo e patrimonialismo fossem alçados a semân-
ticas capazes de explicar nossos dilemas e, consequentemente, e
de nos fazer compreender de forma sistemática os entraves que nos
impediriam de construir sociedades que se assemelhassem àquelas
(supostamente) existentes nos países centrais.
63 Sobre a questão, os autores argumentam: “A escolha por reivindicar a atualidade das interpre-
tações não implica, contudo, nenhuma recusa por novos métodos e técnicas de pesquisa, mas
sim busca compreendê-las em chave não antagônica a um acúmulo de ideias sobre a sociedade
brasileira” (CHALOUB; LIMA, 2018, p.19).
SUMÁRIO 175
referir à estrutura institucional em que a norma seriam
os desvios de dinheiro público para fins privados. No
patrimonialismo grassa, portanto, a corrupção — e, nesse
discurso difuso de notável ressonância talvez já consoli-
dado em senso comum, o problema residiria quase que
exclusivamente no Estado e em seus agentes, obstáculos
para que um moderno regime de competição econômica
se instaurasse entre nós (CHALOUB; LIMA, 2018, p.28-9).
64 Ribeiro (2022) formulou uma crítica detalhada à intepretação damattina sobre o fenômeno do
autoritarismo como uma irredutível singularidade social e política brasileira.
SUMÁRIO 176
A antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, por sua vez, segue
o caminho de reforço e síntese das interpretações culturalistas do
pensamento social e político (RIBEIRO, 2020) ao construir uma leitura
multidimensional do autoritarismo brasileiro que tem como núcleo
explicativo o passado escravista e a herança ibérica patrimonialista:
Apesar da síntese analítica e dos novos elementos trazidos
à explicação, a autora segue a perspectiva culturalista, par-
ticularista e essencialista que analisa o autoritarismo como
fenômeno estritamente brasileiro, ou seja, que demarca
o fenômeno como fruto exclusivo do processo histórico
nacional. Schwarcz, portanto, reitera as clássicas imagens
culturalistas sobre o Brasil. (RIBEIRO, 2020, p.367).
ATRASO E SINGULARIDADE:
ENTRAVES DO PENSAMENTO SOCIAL
E POLÍTICO BRASILEIRO
As interpretações do pensamento social e político brasileiro,
apesar de ainda serem reproduzidas de forma acrítica, como nas
interpretações supracitadas, também foram alvos de importantes
SUMÁRIO 177
e contundentes críticas em torno dos pressupostos que conformam
as imagens do atraso e da singularidade, e que são responsáveis pela
leitura do Brasil como realidade social e política essencialmente infe-
rior às sociedades centrais. As críticas também são cruciais para sus-
tentarmos nosso argumento sobre a necessidade de ruptura com as
narrativas do atraso e da singularidade social e política caso queira-
mos nos afastar de uma posição de subordinação estrutural na geo-
política do conhecimento, de modo a termos condições de estabele-
cer diálogos mais horizontais com os teóricos dos países centrais65.
65 Ao enfocar o pensamento social brasileiro, Maia (2011, p.72-3) sustenta que é necessário inseri-lo
em um cenário mais amplo através de um momento de descentramento teórico: “A ideia defendida
é razoavelmente simples: sustento que o processo de descentramento teórico que vem ocorrendo
ao longo das últimas décadas na sociologia fornece aos estudos de pensamento social brasileiro
um instigante enquadramento analítico. Esse descentramento refere-se ao conjunto de textos e
trabalhos que questionam o fundamento eurocêntrico da sociologia e afirmam a necessidade de
se levar em conta lugares de discurso intelectual tidos como alternativos e/ou ‘periféricos’”.
SUMÁRIO 178
Isto é, as histórias nacionais de países não europeus se
apresentam como narrativas de construção de institui-
ções — cidadania, sociedade civil etc. —, que só encerram
sentido se projetadas no espelho de uma “Europa hiper-
real”, na medida em que ignoram as experiências efetivas
das populações de tais países. Nessas histórias nacionais,
a Europa imaginada é a morada do verdadeiro sujeito
moderno, do qual mesmo os socialistas e nacionalistas
mais combativos buscam construir, pela imitação, uma
similar nacional (COSTA, 2006, p.121).
SUMÁRIO 179
A tese da singularidade brasileira, portanto, tem como ele-
mento implícito a incorporação da modernidade como enunciação
e discurso de dominação (TAVOLARO, 2014). O hiato em relação ao
núcleo dinâmico da modernidade ocorre porque não teríamos supe-
rado as estruturas pré-modernas, o que nos impossibilita universa-
lizar racionalização, complexificação social e, consequentemente, a
separação entre público e privado no Estado.
SUMÁRIO 180
modo a relativizar os limites estritamente nacionais que os conformam
(MAIA, 2011, p.72). Assim, nossas produções poderão ser utilizadas,
por exemplo, para a construção de um discurso contra-hegemônico66
sobre a modernidade (TAVOLARO, 2017, p.119). Sobre o questionamento
do discurso hegemônico acerca da modernidade, Tavolaro argumenta:
Nesse sentido, longe de adstritas à realidade nacional, obras
“clássicas” do pensamento brasileiro auxiliam a ampliar e
diversificar os horizontes de compreensão e codificação
da própria experiência moderna. Dito de outro modo,
ainda que de maneira residual e não necessariamente em
conformidade com suas motivações e planos originais, ao
menos algumas das mais celebradas obras de interpreta-
ção do Brasil oferecem retratos, noções, categorias e ideias
que contribuem para um imaginário contra-hegemônico
da modernidade (TAVOLARO, 2017, p.136).
66 Bastos também defende o potencial heurístico e a atualidade do PSB: “Ou seja, a problemática da
emancipação, do direito à diferença, dos limites à liberdade, da definição da dignidade como pro-
jeto social, do reconhecimento, da exclusão/excludência, foi objeto recorrente dos estudos sobre a
formação nacional. Nos últimos anos o retorno dos estudos sobre o pensamento social brasileiro
e sua história permitiu que fossem retomados os debates, avaliados o seu alcance e limites, além
de constatar seus efeitos. Ora, as transformações mundiais colocam hoje aquelas questões sob
outra ótica e conduzem à produção de diferentes categorias teóricas que buscam apreender os
fenômenos, mas não podem desconhecer os caminhos trilhados pelas interpretações anteriores.
É a partir dessa situação que a reflexão brasileira se insere, necessariamente, no debate interna-
cional. Para ilustrar a hipótese levantada, pretendo apontar, (...) como algumas reflexões dos anos
1950 e 1960 — brasileiras e latino-americanas — antecipam questões atuais, mesmo sem terem
tido desdobramento teórico sistemático”. (BASTOS, 2011, p. 52).
67 Sobre essa questão, Maia (2011) apresenta um argumento fundamental para que possamos ques-
tionar a universalidade das interpretações reproduzidas como teorias com validade universal pela
no Brasil: “Ora, se a teoria social é constituída hermeneuticamente por intermédio das releituras de
clássicos e se cada fabulação traz consigo um mundo imaginado que relaciona enunciados teó-
ricos abstratos a objetos e a qualidades de espaços sociais delimitados, torna-se absolutamente
crucial discutir a universalidade das teorias que consumimos.” (MAIA, 2011, p.75).
SUMÁRIO 181
para caracterizarmos as produções nacionais também como teoria
social e política. Na próxima seção, apresentaremos algumas teo-
rias sociais e políticas produzidas no Brasil contemporâneo que nos
auxiliam a sustentar o que consideramos ser a atualidade do pensa-
mento social e político brasileiro.
SUMÁRIO 182
José Maurício Domingues, por sua vez, tem se dedicado a
produzir teoria social e política a partir do Brasil, tendo a moder-
nidade como questão primordial. Além de estabelecer a crítica aos
pressupostos presentes nas interpretações clássicas sobre o atraso
brasileiro e latino-americano, o sociólogo tem construído uma narra-
tiva moderna do país, como integrante da modernidade global.
68 A partir de características do PPB demarcadas por Lynch (2016), Ribeiro apresenta de forma
comparada as teorias de Jessé Souza e José Maurício Domingues com o objetivo de averiguar
se os autores efetivamente se afastaram das tradicionais leituras da vida política brasileira e dos
pressupostos que as conformam. Como sustentado pelo autor, Domingues rompe de modo efetivo
com as narrativas do atraso e da singularidade (RIBEIRO, 2017).
SUMÁRIO 183
No campo da teoria política, temos o trabalho de Wanderley
Guilherme dos Santos (2017), que produz teoria a partir da periferia
quando analisa o impedimento da presidente Dilma Rousseff, em
2016, como golpe parlamentar. Assim, o cientista político não inter-
preta o golpe através de gramáticas políticas, em tese, particulares
à realidade brasileira, como patrimonialismo ou populismo, que
demonstrariam como mais uma ruptura democrática no país seria
a demonstração inequívoca de nossa singularidade política. Sobre a
negação das perspectivas do atraso e a singularidade na teoria polí-
tica de WGS, Lynch argumenta:
Em terceiro lugar, e talvez mais importante, encontra-se
o fato de que, como cientista político, WGS se via prima-
riamente como um teórico que recorria à empiria para
testar suas hipóteses. Inclemente crítico do complexo de
inferioridade que rebaixa sistematicamente a ambição
teórica dos intelectuais brasileiros, WGS desenvolveu
uma ciência política abrangente, capaz de ser demons-
trada de forma sistemática e aplicável a qualquer país.
Não obstante a maioria de suas reflexões tenha por ori-
gem os problemas empíricos da construção democrática
brasileira, ele sempre evitou tomá-los como “jabuticabas”,
evitando simultaneamente o paroquialismo etnocêntrico,
disfarçado de universalismo, de boa parte dos intelectuais
europeus e norte-americanos (LYNCH, 2020, p.3).
SUMÁRIO 184
Santos formulou uma teorização inovadora e original sobre o
golpe parlamentar, ao sustentar que ele é elemento moderno e intrín-
seco ao sistema democrático representativo instituído dentro do sis-
tema capitalista. Dessa forma, WGS teoriza o sistema representativo
em dimensão global, pois o caso brasileiro seria uma unidade de
análise para interpretar um dilema de consequências globais. A teo-
ria política de WGS rompe, portanto, com o estilo periférico de pro-
dução intelectual que singulariza o PPB em contraste com as obras
cosmopolitas e canônicas da teoria política europeia (LYNCH, 2016,
p.83). E demonstra também que é possível produzir teoria original a
partir da periferia, e não apenas por adição (COSTA, 2010).
Por mais forte que essa distinção entre teoria geral e pensa-
mento particular possa parecer, ela não possui o caráter totalizante
SUMÁRIO 185
e necessário assumido inclusive por muitos de seus críticos. Em
balanço sobre a produção de teoria social feita por brasileiros entre
2010 e 2019, Rosa e Ribeiro (2021) fazem um diagnóstico pessimista,
apontando nossa baixa capacidade de inovação teórica, mas sem
indicar caminho para desestabilizar e transcender a hierarquia geo-
política entre teoria e pensamento social que nos coloca na condição
de incompetentes para o trabalho teórico. Segundo eles, o debate
sociológico sobre teoria no Brasil concentra-se em: “1) produções
engajadas na reconsagração de autores; 2) produções engajadas
em descrever movimentos teóricos; 3) produções inovadoras, porém
não apropriadas localmente” (ROSA; RIBEIRO, 2021, p. 3).
SUMÁRIO 186
muitos cientistas sociais brasileiros mantêm com esses e outros
autores é marcado por esforços bem-sucedidos de inovação teórica,
como apresentamos acima. Portanto, não são apenas esforços de
adição, mas também elaborações conceituais capazes de corrigir e
substituir premissas e afirmações sobre a sociedade moderna a par-
tir de um trabalho teórico engajado na compreensão não somente da
modernidade periférica, mas da modernidade como um todo a partir
da chamada periferia.
SUMÁRIO 187
No entanto, uma crítica consequente da assimetria geopolítica
entre teorias gerais e pensamento social e político particular só é pos-
sível quando se afirma a existência de uma vida social comum entre
centro e periferia. Não se trata de ignorar fenômenos de periferização
e centralização na esfera da ciência ou em qualquer outra esfera, mas
sim de considerar que existem camadas de sentido e práticas sociais
mais abrangentes do que a diferença entre centro e periferia.
SUMÁRIO 188
periferia válida em todas as dimensões, é rompido pela diferenciação
funcional, que impõe uma fragmentação da oposição centro/perife-
ria em múltiplas diferenças entre “centros” e “periferias” no interior
dos distintos sistemas funcionais. O primado da diferença colonial,
definidor do colonialismo, implicava a existência global de uma epis-
teme unitária que classifica e hierarquiza raças e povos:
A ideia de raça ou pureza de sangue, tal como expressa no
século XVI, tornou-se o princípio básico para classificar e
ranquear povos por todo o planeta, redefinindo identidades
e justificando o trabalho escravo (MIGNOLO, 2002, p. 83).
SUMÁRIO 189
a constituição e funcionamento de todas as instituições e sistemas
da sociedade global. O déficit de reflexividade reside precisamente
nesse pressuposto, pois na vigência do primado da diferença colo-
nial a crítica da colonialidade do poder não seria possível enquanto
saber do social sobre o social. O lugar de enunciação da crítica deco-
lonial não se sustenta enquanto exterioridade (MIGNOLO, 2002, p.
62): ou ele está internamente implicado na própria diferença colonial,
o que representaria uma impossibilidade disfarçada com a busca de
um lugar híbrido de enunciação, ou ele é uma construção interna de
formas de sociabilidade que transcendem a diferença colonial.
SUMÁRIO 190
cuja existência pressupõe uma sociedade global em que a diferença
primária não é uma diferença colonial unitária e vigente em todas as
esferas sociais, mas sim uma sociedade formada por um conjunto
diferenciado de esferas nas quais diferentes estruturas neocoloniais
ou anticoloniais se desenvolvem de modo não necessariamente
relacionado. O problema teórico fundamental é, portanto, se as dife-
renças regionais — sejam elas neocoloniais ou não — devem ser
explicadas a partir do primado da diferença colonial ou do primado
da diferenciação funcional.
SUMÁRIO 191
enquanto um trabalho de teoria. É preciso relativizar a localização
geográfica do conhecimento para transcender a assimetria geopolí-
tica entre teoria geral e pensamento particular. É conveniente e pos-
sível implodir essa assimetria geopolítica. Para isso, o mais impor-
tante é questionar a própria autocompreensão do que se chama de
pensamento social e político brasileiro, que adota frequentemente
um estilo periférico, aceitando a inferioridade que lhe é atribuída
em contraste com as teorias cosmopolitas vistas como trabalho
exclusivo do centro.
SUMÁRIO 192
as decisões conceituais sobre um objeto também são contingentes:
sempre poderiam ou podem ser de outro modo. E é comum que mui-
tas dessas decisões sejam reiteradas sem um trabalho concomitante
de reflexão sobre elas, de modo que acabam sendo reproduzidas
como pressupostos e asserções implícitas sobre os objetos de pes-
quisa. As diferentes tradições do pensamento social e político brasi-
leiro produziram e produzem trabalhos de decisão conceitual sobre
objetos de estudo que dizem respeito não apenas ao Brasil, mas à
modernidade como um todo. Teoria não é o trabalho que se realiza no
centro. Teoria é o trabalho de decisão conceitual realizado em qual-
quer lugar, tenha ele o nome de teoria, pensamento ou qualquer outro.
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21/05/2024.
SUMÁRIO 196
8
Ana Rodrigues Cavalcanti Alves
Lucas Amaral de Oliveira
REDIMENSIONANDO
GUERREIRO RAMOS:
UM EXERCÍCIO DE RELEITURA
DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA69
69 Este trabalho é fruto de uma pesquisa de maior fôlego dos(as) autores(as) sobre releituras da
sociologia brasileira. Uma versão ampliada do texto foi publicada na revista Sociedade & Estado
(vol. 38, n. 1, 2023, p. 243-274), em português e inglês. Uma variação da reflexão também saiu
na coletânea Teoria Social e Desafios Pós-Coloniais, organizada por Ricardo Pagliuso Regatieri e
Lucas Amaral de Oliveira (Salvador: EDUFBA, 2024, p. 181-204).
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.8
INTRODUÇÃO
Desde o início do século XX, a história intelectual e das ideias
no país tem sido caracterizada por um imaginário modernista de infle-
xão crítica em relação às matrizes teóricas e metodológicas estran-
geiras. Isso se manifesta através de certa orientação antropofágica
de apropriação seletiva e, por vezes, criativa de diferentes tradições
no processo de amadurecimento intelectual do país (SANTIAGO,
1978). O projeto da “redução sociológica” de Alberto Guerreiro
Ramos (1915-1982) exemplifica essa postura no campo sociológico
brasileiro, ao sistematizar o procedimento “crítico-assimilativo” de
esquemas explicativos estrangeiros, sem, contudo, anunciar a rup-
tura total com as “teorias alienígenas” do Atlântico Norte (RAMOS,
1996), mas sim redimensionando os enquadramentos e as técnicas
às circunstâncias locais. Gostaríamos de propor, neste capítulo, um
breve exercício de “releitura” desse autor baiano, o que nos parece
um caminho produtivo de aproximação entre uma tradição crítica da
teoria sociológica brasileira e os tensionamentos mais recentes tra-
zidos pelo pensamento pós-colonial. Esse exercício de releitura nos
permitirá discutir mais ao final a relevância e atualidade da sociolo-
gia de Guerreiro Ramos.
SUMÁRIO 198
Mesmo se considerarmos a constituição interna de tais
campos, é possível observar que os mesmos não se fundamentam
em interpretações unívocas ou em qualquer monolitismo teórico ou
político. Essas discussões, em última instância, sintetizam o desafio
de abordar a sociologia brasileira de modo mais abrangente, espe-
cialmente ao se concentrar nos enfoques voltados à crítica da colo-
nialidade e do eurocentrismo, presentes em nosso campo intelectual.
SUMÁRIO 199
Poderíamos, então, dizer que uma convergência entre socio-
logia brasileira e teorias pós-coloniais diria respeito, mais substan-
cialmente, à preocupação teórico-metodológica com o estatuto da
sociologia em contextos periféricos. Tal discussão é crucial para
o debate pós-colonial e atravessa de modos variados o campo
sociológico nacional.
70 Vale lembrar que a chamada Geração de 1930-45 – que constitui uma espécie de “cânone sociológico
nacional”, como destacou Mariana Chaguri em sua reflexão no Colóquio que ensejou este livro – será
consagrada no campo intelectual brasileiro não somente em virtude de suas interpretações origi-
nais sobre formação nacional, mas também pela introdução pioneira de enfoques antropológicos
e sociológicos estrangeiros. E aqui poderíamos citar exemplos clássicos: Gilberto Freyre, por meio
da introdução da perspectiva culturalista em sua reinterpretação do problema da miscigenação no
processo de formação da família patriarcal; Sérgio Buarque de Holanda pela introdução de conceitos
weberianos em sua análise da cordialidade e do patrimonialismo; e Caio Prado Jr. por meio da análise
de nossa formação econômico-social fundamentada no materialismo histórico (CÂNDIDO, 2006).
SUMÁRIO 200
sociológico, suas preocupações teóricas, metodológicas e políticas,
bem como as condições de pesquisa e desenvolvimento no Brasil.
Segundo Edson Bariani (2006) as divergências entre Guerreiro
Ramos e Florestan Fernandes exprimiam diferentes projetos para o
campo acadêmico brasileiro e para a nação.
SUMÁRIO 201
de fazer frente a influências externas, que pesam sobre o sociólogo
em diversos níveis, sobretudo em um contexto marcado pela persis-
tência de relações arcaicas e autoritárias. Com isso, ele defende o
rigor metodológico na condução da pesquisa sociológica – que não
deveria ser subordinada às condições materiais de subdesenvolvi-
mento da nação – e o caráter universal do conhecimento científico,
passível de ser absorvido dos grandes centros acadêmicos. A incor-
poração dos estudos de comunidade – rejeitada veementemente por
Guerreiro Ramos –, quando combinada à análise histórico-estrutural,
permitiria, segundo Fernandes (1977), distanciar-se dos ensaísmos
de interpretação do Brasil e apreender de forma mais metódica e
cientificamente informada as variações do desenvolvimento interno,
econômico e sociocultural, que caracterizariam as diversas regi-
ões do país em meados do século XX. Ou seja, a própria ciência
deveria ser explorada como fator de desenvolvimento (BARIANI,
2006; FERNANDES, 1977).
71 Embora o debate entre Fernandes e Ramos tenha sido analisado de modo competente por di-
versos(as) autores(as), a relação entre os dois se coloca para além das divergências citadas no
referido debate, sendo marcada também pelo reconhecimento mútuo, respeito e admiração no
que tange à contribuição de cada um para a história da sociologia no Brasil. Pelo menos é isso
o que sugere as correspondências de Guerreiro Ramos encontradas na biblioteca de Florestan
Fernandes, disponíveis nas Coleções Especiais da UFSCar. Infelizmente, para este trabalho, não foi
possível recuperar as cartas enviadas por Fernandes ao sociólogo baiano. É possível, no entanto,
que uma análise mais pormenorizada desse material ajude a reconstruir as nuances inscritas
nessa relação, marcada por importantes debates acadêmicos, assim como as influências mútuas
entre os autores em seus esforços de construção de uma sociologia autêntica, autônoma e enga-
jada no enfrentamento dos dilemas nacionais.
SUMÁRIO 202
Tais questionamentos nos conduzem à discussão sobre as
principais divergências teóricas entre a linhagem crítica encontrada
no campo intelectual brasileiro e uma vertente mais radical das dis-
cussões pós-coloniais, em especial acerca da relação com o cânone
sociológico euro-norte-americano. A hipótese que temos explorado
é que, na sociologia brasileira, parece haver, de um modo geral,
maior disposição a dialogar criticamente com esse cânone, mesmo
que apontando seus limites. E isso se explica fundamentalmente
de três formas: 1) seja porque reconhecem nele uma gramática
que possibilita o diálogo entrecruzado; 2) seja porque reivindicam
a utilização de repertórios metodológicos considerados úteis para
a análise dos fenômenos sociais; 3) ou, ainda, porque defendem a
existência de elementos de resistência e emancipação no imaginário
moderno, com os quais não seria desejável romper integralmente
(OLIVEIRA & ALVES, 2023).
SUMÁRIO 203
O EXERCÍCIO CRÍTICO DA RELEITURA
Já faz alguns anos que, no Brasil, agendas de pesquisa têm
procurado destacar a relevância de intelectuais como “precurso-
res(as)” de perspectivas pós-coloniais. Sob vieses distintos, pesqui-
sadores(as) têm alçado a trajetória e a obra de Guerreiro Ramos como
esforços se não vanguardistas, pelo menos inovadores na tentativa
de constituir um projeto teórico-metodológico descentrado e uma
agenda de pesquisa crítica ao eurocentrismo, pensando a sociologia
a partir das idiossincrasias do contexto nacional (BARBOSA, 2006;
BARIANI, 2011; BRINGEL, LYNCH & MAIO, 2015; FIGUEIREDO &
GROSFOGUEL, 2007; FILGUEIRAS, 2012; LYNCH, 2015; MAIA, 2012;
2015; OLIVEIRA, 1995; REZENDE, 2006). Buscando inserção nessa
fortuna crítica, o objetivo aqui é evidenciar a proposta de redução
sociológica de Guerreiro Ramos como uma alternativa teórico-me-
todológica para o incremento das epistemologias pós-coloniais. Tal
discussão permite explorar a hipótese das “releituras” da sociologia
brasileira – foco deste livro e de nossa agenda conjunta de pesquisa.
SUMÁRIO 204
de acordo com a crítica do próprio sociólogo baiano, não é algo que
atinge somente o campo acadêmico; ela incide em todos os níveis
de nossa vida, estabelecendo uma tensão entre os anacronismos do
país, a potencialidade de suas “estruturas em geração” e as dificulda-
des de suscitar soluções efetivas:
Em termos superestruturais, essa tensão traduz um conflito
de duas perspectivas, a do país velho e a do país novo, da
mentalidade colonial ou reflexa e da mentalidade autentica-
mente nacional. No domínio das ciências sociais, essa ten-
são também se verifica. Até agora, considerável parcela de
estudiosos se conduziu sem se dar conta dos pressupostos
históricos e ideológicos do seu trabalho científico. Sua con-
duta era reflexa e se submetia passiva e mecanicamente a
critérios oriundos de países desenvolvidos [...]. À assimilação
literal e passiva dos produtos científicos importados, ter-
-se-á de opor a assimilação crítica desses produtos. Por isso,
propõe-se aqui o termo redução sociológica para designar
o procedimento metódico que procura tornar sistemática a
assimilação crítica (RAMOS, 1996, p. 68).
SUMÁRIO 205
contribuindo para a consolidação de uma “concepção quietista de
sociedade”, que favorece a “ocultação da terapêutica decisiva dos
problemas humanos em países subdesenvolvidos” (RAMOS, 1981, p.
3). É interessante notar que embora Ramos proponha, no texto, um
balanço dos estudos sobre o negro no Brasil, a crítica direcionada
a diversos autores brasileiros se orienta não tanto pela concepção
de raça adotada – racista e, de todo modo, datada do ponto de vista
científico –, mas pela atitude assumida frente ao repertório teórico-
-metodológico estrangeiro. Em suas palavras:
[...] a partir de uma posição científica, de caráter funcional,
isto é, proporcionadora da autoconsciência ou do autodo-
mínio da sociedade brasileira, importa, antes de estudar a
situação do negro tal como é efetivamente vivida, exami-
nar aquela literatura, tendo em vista desmascarar os seus
equívocos, as suas ficelles e, além disso, denunciar a sua
alienação (RAMOS, 1981, p. 1-2).
72 Segundo o autor, o que permite reunir autores tão distintos é o esforço expresso por todos eles
em formular uma teoria do “tipo étnico brasileiro”, o que permite aproximar o negro dos outros
contingentes populacionais, em vez de destacar suas particularidades, mediante uma abordagem
exotizante que sugere ainda seu caráter de antepassado histórico. Para Ramos (1981), a análise
das relações raciais no Brasil deveria superar a chave do exotismo, comprometendo-se com a
transformação da condição humana do negro na sociedade brasileira. Em sua perspectiva, o negro
deve ser encarado como agente histórico em devir, que se consubstanciaria no brasileiro.
SUMÁRIO 206
Nesse primeiro momento de sua reflexão, a atitude crítico-
-assimilativa seria marcada por certo distanciamento em relação a
teorias e conceitos estrangeiros, considerados inadequados à análise
dos problemas característicos da realidade brasileira. Afinal, nosso
autor lembra que, “embora os princípios gerais de conhecimento
positivo sejam universais [...], os problemas científicos radicam-se em
situações historicamente concretas” (RAMOS, 1981, p. 2). Portanto, é
possível inferir de sua sistematização crítica um esboço do que seria
a proposta de redução sociológica alguns anos depois, que exprime
preocupações metodológicas e políticas consideradas essenciais
para assegurar o fazer-sociológico em contextos periféricos.
SUMÁRIO 207
A ideia de “releitura” deve ser compreendida como uma
categoria analítica. Reler pressupõe retrospecto; implica ler de
modo diferente, deslocado, heterotópico. Não se trata de “redefinir”
certa tradição histórica a partir de seus fundamentos – com auto-
res(as), ideias, projetos, contextos, disputas –, enquadrando-os em
movimentos contemporâneos, de modo atemporal, como se esse
conjunto de fatores anunciasse, profeticamente, o futuro; ou como
se expressasse antecipações vanguardistas de novas descobertas
epistemológicas. Por “releitura” sociológica compreendemos um
deslocamento e um descentramento epistêmico, um novo prisma
através do qual a tradição sociológica no Brasil pode ser redesco-
berta, reavaliada e ressignificada de modo crítico – afinal, foi este
o principal tensionamento que paradigmas pós-coloniais exerceram
sobre a sociologia nacional e em nível global.
SUMÁRIO 208
No caso brasileiro, um exemplo seria a crítica ao racismo
culturalista inerente às interpretações da geração de ensaístas de
1930 – conforme destaca Jessé Souza (2017) acerca dos conceitos
de cordialidade e patrimonialismo elaborados por Sérgio Buarque de
Holanda. Mesmo Caio Prado Jr., que parte do paradigma materia-
lista, é criticado pelo racismo cultural constitutivo de sua proposta
de modernização do país, ancorada na elevação dos padrões cul-
turais (aggiornamento) de nossas matrizes coloniais – ameríndia e
africana (MELO, 2019).
SUMÁRIO 209
e requalificando suas contribuições à luz de novas possibilidades
teóricas e metodológicas abertas pelas viradas epistêmicas na teoria
social contemporânea.
SUMÁRIO 210
A “REDUÇÃO SOCIOLÓGICA” CONTRA
A MENTALIDADE COLONIAL
Conforme aventado anteriormente, Guerreiro Ramos per-
cebia, no trabalho sociológico no Brasil dos anos 1940 e 1950, um
reflexo de “dependência acadêmica e intelectual”, representado na
forma de “alienação” científica e de “servidão conceitual” – tema
que será desenvolvido em Mito e Verdade da Revolução Brasileira
(RAMOS, 1963). O autor acusava parte da sociologia nacional de sua
época de fazer uso impreciso da produção estrangeira, “alienígena”,
aplicada ao Brasil de modo mecânico, servil, automático, sem atentar
para os “pressupostos históricos e ideológicos do trabalho científico”
em um país na periferia do capitalismo (RAMOS, 1996, p. 68).
SUMÁRIO 211
política; e a apresentação dos seus fundamentos históricos e ideo-
lógicos para a reivindicação e aquisição de uma “nova consciência
crítica da realidade brasileira”, capaz de lidar com seus reveses estru-
turais e estruturantes. Essa consciência embasaria uma sociologia
autônoma, autêntica, menos alienada, livre dos “grilhões imperiais”,
produtora de teorias e métodos científicos mais ajustados às deman-
das da realidade nacional (RAMOS, 1966), pavimentando o caminho
para a emergência de um “sujeito epistêmico” ou do que Ramos
denominava “homem parentético”.
SUMÁRIO 212
Cumpre observar que A Redução Sociológica é uma obra em
que Ramos responde às críticas feitas a ele no II Congresso Latino-
Americano de Sociologia, em 1953, reformulando e aprofundando
algumas das propostas apresentadas naquela ocasião, dentre elas
o seu próprio posicionamento com relação a demandas metodológi-
cas – o que permite destacar, novamente, a constante preocupação
do campo sociológico brasileiro com a questão do método.
SUMÁRIO 213
incorrendo em grande falácia ao vislumbrar uma distância intrans-
ponível entre o “mundo dos sociólogos” e o “mundo dos leigos”
(RAMOS, 1996, p. 27). Para tanto, ele faz uma analogia dos “soció-
logos convencionais” com os “puritanos” em matéria de gramática,
que buscam uma vernaculidade linguística do português do século
XVI não só inalcançável como inexistente. Guerreiro diz que a “hiper-
correção em sociologia” é uma contradição em termos, “porque há
muito pouco de sociologia e muito de consciência mistificada e alie-
nada”. O que nos coloca em simetria em relação a “colegas estran-
geiros não é o conhecimento decorado de suas produções, mas sim
o domínio do raciocínio que implicam, e que habilita os sociólogos
a fazer coisas diferentes em circunstâncias diferentes’’, “sem prejuízo
da objetividade científica” (RAMOS, 1996, p. 20).
SUMÁRIO 214
como sendo um processo de falsificação da história, que reflete o fato
de que a história de sociedades periféricas tem sido escrita apenas
“do ponto de vista europeu” (RAMOS, 1996, p. 49).
SUMÁRIO 215
A proposta de Ramos (1996) converge com os procedimen-
tos analíticos destacados por Maia (2011), na medida em que a redu-
ção sociológica convida tanto à crítica conceitual a partir de outros
lugares de enunciação quanto à proposição de novas abordagens
analíticas para fenômenos específicos. Ademais, a releitura da sua
obra – em especial, de sua proposta de redução sociológica – pode
render contribuições inventivas à fortuna crítica das epistemologias
pós-coloniais, na medida em que adentra a seara das discussões
sobre os desafios metodológicos colocados ao fazer-sociológico em
contextos periféricos.
SUMÁRIO 216
perspectiva, tanto os problemas formulados inicialmente quanto
os objetos analisados deixam de ser o que eram. Em decorrência
dessa variabilidade, um problema sociológico não pode ser enfren-
tado como “desligado de um contexto historicamente determinado”.
A redução sociológica, mesmo pressupondo um suporte coletivo
(as vivências populares e a experiência da formação nacional) – o
que sugere que a sociologia, em sentido genérico, não é um “ato de
lucidez individual”, mas fundamenta-se em uma espécie de “lógica
material imanente à sociedade” –, é altamente rigorosa e elaborada
em termos metodológicos, apropriando-se do conhecimento histó-
rico, do estudo sistemático dos fatos sociais e do raciocínio cien-
tificamente embasado.
SUMÁRIO 217
Já a “ciência sociológica em ato” refletiria uma atitude metó-
dica diante da realidade concreta. Em virtude de seu lastro social,
a “sociologia em ato” erige seu método e modula seus conceitos a
partir do que encontra na realidade, na dinâmica das vivências. Por
isso, seu futuro é deixar de ser conhecimento de especialistas, para
tornar-se conhecimento prático dos cidadãos e cidadãs. No “Prefácio
à Segunda Edição” de A Redução Sociológica, escrito em meados
de 1963, Ramos (1996, p. 27) preconiza um tipo-ideal de sociologia
pública e militante como horizonte de expectativa. Segundo ele, “a
vocação da sociologia [no Brasil], aliás, é tornar-se um saber vulga-
rizado. A sociologia se volatizará no próprio processo social global”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, discutimos em que medida as teorias socio-
lógicas produzidas no campo acadêmico brasileiro podem ser corre-
lacionadas com um movimento intelectual mais abrangente e ainda
heterogêneo de crítica à colonialidade e aos pilares eurocêntricos
das ciências sociais, que têm ganhado destaque e reconhecimento
nas últimas décadas.
SUMÁRIO 218
Tentamos enfrentar esse problema de duas maneiras.
Primeiro, redimensionando as contribuições de Guerreiro Ramos na
história das ideias sociológicas brasileiras, no sentido de discutir a
pertinência de se considerar o autor baiano com “inspirações pós-
-coloniais”. Isso se fundamentou tanto em suas crítica (negativa) ao
eurocentrismo acadêmico, à mentalidade colonial e à dependência
intelectual, quanto em sua proposição (positiva) de uma abordagem
epistemológica e metodológica que lidou de maneira criativa com
o desafio da apropriação de conceitos, teorias, métodos e técni-
cas desenvolvidas em outros contextos pela sociologia brasileira.
Segundo, explorando os predicados epistemológicos de uma dessas
agendas, que corresponde à proposta de releitura da teoria socio-
lógica brasileira à luz dos tensionamentos provocados pelo pensa-
mento pós-colonial na teoria social contemporânea em escala global.
SUMÁRIO 219
operacionaliza categorias que são objetos de crítica desse movi-
mento77. Todavia, isso não nos impede de conjecturá-lo enquanto
um autor com inspirações pós-coloniais e, mais que isso, como um
teórico genuinamente anticolonial e anti-eurocentrista que, cada vez
mais, constitui referência obrigatória para debates contemporâneos
e que pode contribuir para o incremento das epistemologias pós-co-
loniais em nível global.
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SUMÁRIO 224
9
Nikolas Pallisser Silva
Alan Caldas
A RECEPÇÃO
E A CRÍTICA DO CONCEITO
DE “SOBREVIVÊNCIAS
AFRICANAS” NO PENSAMENTO
DE GUERREIRO RAMOS
(1948–1955)
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.9
INTRODUÇÃO
Este ensaio tem dois objetivos: primeiro, apresentar o con-
texto e as notas fundamentais do conceito de “sobrevivência africana”,
elaborado por Melville Jean Herskovits; segundo, mostrar a recepção
do conceito feita por Alberto Guerreiro Ramos e, posteriormente, a
crítica que esse sociólogo fez dessa noção.
SUMÁRIO 226
configuração social presente do dito “Novo Mundo”. Em última análise,
as sobrevivências seriam restos imemoriais da África que não exercem
nenhum efeito no processo de aculturação e assimilação que supos-
tamente esses povos passavam nas diferentes sociedades nacionais.
SUMÁRIO 227
na Universidade de Chicago e, posteriormente, fez mestrado e dou-
torado em Antropologia na Universidade de Columbia, em Nova
York, sob a orientação do também antropólogo judeu Franz Boas.
Herskovits fez sua carreira como antropólogo na Northwestern
University, onde trabalhou de 1927 até sua morte, em 1963.
78 O conceito de aculturação é bastante problemático, para compreender seus limites teóricos e po-
líticos, pois, em geral, ele quase sempre supõe que a aculturação é a absorção dos mais variados
grupos étnicos dentro da cultura ocidental. Para compreender essa crítica que Ramos faz a esse
conceito, cf. (CALDAS; PALLISSER SILVA, 2024).
SUMÁRIO 228
Todavia, somente a publicação de Herskovits The Myth of the
Negro Past, de 1941, reelabora a importância da presença dos des-
cendentes de africanos no “Novo Mundo”, tornando-se questão cen-
tral o lugar destes povos e abrindo uma nova agenda de pesquisa79.
Esse livro é paradigmático em relação a seus antecessores, pois ele
combate, com estudos comparativos sistemáticos, a ideia de que o
povo negro não teria passado, tratando da questão das origens do
negro escravizado, buscando situar as culturas de onde vem. W.E.B.
Du Bois (1942, p. 115), em resenha desse livro, afirmou que: “O The
Myth of the Negro Past do Dr. Herskovits está marcando época no
sentido de que ninguém daqui em diante, escrevendo sobre as reali-
zações culturais do negro americano, pode-se dar ao luxo de ignorar
seu conteúdo e conclusões”.
79 É valido mencionar que o referido trabalho de Herskovits, The Myth of the Negro Past, foi produzido
em cerca de um ano, com o apoio se sua esposa Frances S. Herskovits, por encomenda de Gunnar
Myrdal. Myrdal havia sido contratado por Frederick P. Keppel, presidente da Carnegie Corporation,
para coordenar um estudo sobre o negro estadunidense, por sua vez, o economista sueco contra-
tou trinta e um pesquisadores para escrever memorandos sobre o assunto, que resultaram no livro
An American Dilemma, de 1944 (YELVINGTON, 2007).
SUMÁRIO 229
pessoal de Du Bois. Posteriormente, quando Du Bois foi para Chicago,
Herskovits o convidou para participar do Clube dos Professores da
Northwestern. Tal gesto tratava-se de um "ato de muita coragem,
pois convidar um negro para o clube de uma universidade não era
comum naquela época", além disto, "o próprio Herskovits era ape-
nas o segundo judeu do corpo docente da Northwestern e também
sofria discriminação" (YELINGTON, 2016, p. 350). Contudo, ainda
que Herskovits tenha "herdado" de Franz Boas a relação com Du
Bois e à tenha mantido, em seu esforço por demarcar o campo de
estudos sobre o negro nas Américas, o antropólogo se engajou de
forma secreta em uma campanha para minar o projeto de Du Bois de
uma "Enciclopédia do Negro"80. Ao ser consultado pelas instituições
de financiamento as quais Du Bois solicitava recursos, o antropólogo
judeu não o recomendava, alegando dúvidas sobre a cientificidade
da pesquisa a ser realizada, "ainda que Du Bois fosse um grande
pesquisador, receava que o projeto se tornasse obra de propaganda"
(YELINGTON, 2016, p. 350).
80 Du Bois sonhava com "a edição de um compêndio do conhecimento "científico" sobre a história,
culturas e instituições sociais de pessoas de ascendência africana, isto é, daqueles que foram
construídos como negros no Velho e no Novo Mundo" (SILVÉRIO; SANTOS; COSTA, 2020, p. 340).
SUMÁRIO 230
Tal perspectiva teórico-metodológica será muito influente no
Brasil pela presença do próprio autor em diversas atividades no país,
sobretudo na Bahia, não só realizando pesquisa, mas também como
palestrante. Além disso, também será influente pela proximidade que
Herskovits construiu com Arthur Ramos. Tal influência também se
fará presente nos rumos do Projeto UNESCO no Brasil, dos anos
1950, bem como em outras declarações públicas da agência interna-
cional (MAIO, 1997; YELVINGTON, 2007).
SUMÁRIO 231
A calma com que as histórias são contadas, mais o seu
apelo aos brancos como histórias para crianças, tornaram
a retenção deste elemento da cultura africana tão omni-
presente como é no Novo Mundo. Os tipos de dança e
canto africanos eram permitidos quando não interfe-
riam no trabalho ou eram apresentados em feriados [...].
(HERSKOVITS, 1941, p. 138, grifo nosso)81.
81 Tradução livre de: "The quiet with which tales are told, plus their appeal to the whites as stories
for children, made the retention of this element of African culture as ubiquitous as it is in the New
World. African types of dancing and singing were allowed when they did not interfere with work or
were performed on holidays".
82 Tradução livre de: "Why one special style of African carving should have survived in one part of
the New World, and there alone, we do not know, but the special circumstances under which
Yoruban carving survived in Brazil, should these ever be discovered, will throw light on why similar
survivals are not found elsewhere".
SUMÁRIO 232
inscritas no corpo e na mente, herdadas de um passado africano,
raramente exercem mudança estruturais nas pessoas que as pos-
suem, na medida em que estas continuam vivendo como pessoas que
assimilaram a cultura dominante euro-americana (MATORY, 2020).
A RECEPÇÃO DO CONCEITO
DE “SOBREVIVÊNCIA AFRICANA”
POR GUERREIRO RAMOS
Aproximadamente entre 1943 e 1953, no começo de sua car-
reira como sociólogo, Alberto Guerreiro Ramos esteve muito próximo
da sociologia estadunidense, em especial, da sociologia da Escola de
Chicago, em virtude da importância de Donald Pierson, discípulo de
Robert Park, para o debate sobre relações raciais no país (CALDAS;
PALLISSER SILVA, 2024). Em 1946, em uma entrevista concedida
a Abdias Nascimento acerca da questão racial no Brasil, Guerreiro
Ramos (1946) cita, entre outros autores, Herskovits como um daque-
les que contribuíram para desacreditar o racismo científico.
SUMÁRIO 233
O homem de côr viveu sempre tutelado no Ocidente.
Introduziram-lhe ai e lhe deram alguns papéis para repre-
sentar e até recentemente em tôda parte do Ocidente,
êle permaneceu segregado em grandes aglomerados,
imerso em sua mentalidade pré-lógica. Tendo êle pró-
prio assimilado os padrões culturais do homem branco
passou a ver-se a si mesmo inclusive e à sua herança
cultural através dos padrões culturais do homem branco.
Assim, o homem de côr, especialmente o pouco instru-
ído, é vítima de uma profunda ambivalência psicológica
que o faz hesitar entre as sobrevivências africanas e os
traços culturais representativos do Ocidente (RAMOS;
NASCIMENTO, 1950, p. 4).
SUMÁRIO 234
A ambivalência da subjetividade negra decorreria do fato de
ela ser obrigada a se expressar entre diversas culturas, a Ocidental
e as de origem africana. Esses múltiplos processos de socialização
resultariam numa subjetividade singular, capaz de compreender e
ir além dos limites do mundo moderno, uma subjetividade que, ao
mesmo tempo, é parte constituinte do mundo moderno e aponta
para fora dele. Desse modo, as “forças da alma negra” constituem
uma contranarrativa da modernidade, um repositório de práticas,
afetos, sentimentos e linguagens com uma força primordial para a
reconstrução do mundo humano. Nesse momento, início de 1950,
mais do que os movimentos de descolonização que varreram o
mundo nos anos posteriores, Guerreiro Ramos tinha como para-
digma desse processo o Movimento de Negritude francófano, que
usou a literatura para expressar essas “forças da alma negra”. Este
tema da ambivalência psicológica da pessoa negra não aparecerá
mais da mesma forma nos trabalhos posteriores de Ramos. Mais
abaixo mostraremos como ele se modificará para pensar o racismo
numa sociedade colonizada por pessoas brancas.
SUMÁRIO 235
estética e a subjetividade negra, bem como reeducar o branco para
esses elementos. No último dia, esses cientistas sociais produziram
um documento que sugeria um “racismo às avessas” por parte dos
militantes do TEN e fazia uma declaração de fé à distinção entre
natureza e cultura. Guerreiro Ramos tentou uma política conciliatória
assinando tanto a Declaração dos Cientistas quanto a Declaração
Final do Congresso feita pelos militantes. Mais tarde, de modo radi-
cal, ele tomará partido da posição dos militantes do TEN (BARBOSA,
2004). Após esse período, o modo de teorização de Guerreiro Ramos
também mudará radicalmente, ele abandonará os pressupostos da
Escola de Chicago e sua teoria das relações raciais e irá assumir
para si o modo weberiano de teorizar sobre o conflito de racionali-
dades (CALDAS, 2021).
SUMÁRIO 236
Adotando um paradigma historicista radical, Ramos dá uma
guinada no uso do conceito de sobrevivência. Embora ainda man-
tenha a ideia de que a sobrevivência é uma reminiscência de outra
totalidade histórica que não a presente, o autor sugere que o que
está fora de seu tempo não é a subjetividade negra, mas o racismo.
Afinal, o racismo seria fruto de um momento histórico em que o
branco imperava, algo que já não mais acontecia.
O ideal da brancura, tal como o ilustramos anteriormente,
nas condições atuais, é uma sobrevivência que emba-
raça o processo de maturidade psicológica do brasileiro,
e, além disso, contribui para enfraquecer a integração
social dos elementos constitutivos da sociedade nacional
(RAMOS, 1995, p. 231).
SUMÁRIO 237
à luz do ponto de vista da África Negra, se inscreve na
reação de autodefesa do “povo africano”, tendente a “eli-
minar o mal cotidiano que nos causam as terríveis armas
culturais a serviço do ocupante” (RAMOS, 1996, p. 49).
SUMÁRIO 238
preservá-los em sua pureza; é antes uma atitude que não
exclui o diálogo, pois contém a consciência de que, para
ser historicamente válida, a auto-afirmação dos povos
deve confluir para o estuário de todas as altas culturas da
humanidade (RAMOS, 1996, p. 49).
SUMÁRIO 239
CONCLUSÃO
Em trabalho anterior, mostramos em que medida noções
chaves da sociologia da Escola de Chicago, como, por exemplo,
assimilação e aculturação, tendiam a retirar a agência da população
negra, apontando o quanto faltava de cultura euro-norte-americana
para ela assimilar e se integrar com igualdade nas sociedades da
diáspora. Neste capítulo, concluímos que:
Enquanto a visão de Park e seus discípulos de que os
descendentes de africanos nada traziam de culturalmente
valioso, conduzia ao argumento de que esses povos deve-
riam assimilar a cultura de origem europeia para se civili-
zarem, intelectuais negros e negras da diáspora como W.
E. B. Du Bois, Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento
e muitos outros e outras, apostaram na capacidade dos
descendentes de africanos reinventarem suas vidas a
partir de sua herança cultural e, assim, darem grandes
contribuições para a humanidade. Desse modo, as cul-
turas negras não seriam dissolvidas na cultura europeia,
mas, como argumentou Guerreiro Ramos, revitalizariam
essa cultura com novos modos de ser e viver (CALDAS;
PALLISSER, 2024, p. 27).
SUMÁRIO 240
aculturação na cultura euro-americana dominante. Esta
metáfora implica (e as investigações de Herskovits pres-
supõem) que a África é o passado do presente americano.
O pressuposto é que a África é imutável e está [...] iso-
lada do resto do mundo.
SUMÁRIO 241
REFERÊNCIAS
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SUMÁRIO 243
10
Diogo Valença de Azevedo Costa
FLORESTAN FERNANDES
E O ESTILO LUMPEN
DE PENSAMENTO:
UMA SOCIOLOGIA MARGINAL
NA PERIFERIA DO CAPITALISMO83
83 Versão ampliada do texto apresentado na mesa-redonda (Re)leituras do Pensamento Social
Brasileiro, no dia 30 de agosto de 2022, durante o I Colóquio (Re)leituras desde o Pensamento
Social Brasileiro: um balanço crítico, transmitido on-line pelo Instituto Humanitas de Estudos
Integrados da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O presente trabalho foi
produzido no âmbito do projeto de pesquisa “O artesanato intelectual de Florestan Fernandes:
uma perspectiva latino-americana sobre o desenvolvimento”, financiado com recursos do Edital
Universal 2021 do CNPq (Processo 4200043/2021-7).
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.10
INTRODUÇÃO
Propor uma (re)leitura do pensamento social brasileiro a partir
do estudo sociológico da obra de Florestan Fernandes, o que tentarei
fazer muito brevemente neste artigo, é uma das tarefas mais comple-
xas e desafiadoras. A fortuna crítica sobre o autor já se apresenta bas-
tante extensa, diversa e plural. Assim, minhas afirmações constituem
um diálogo com parte significativa dessas reflexões anteriores. Mas
deixarei implícitas as referências a elas, pois meu objetivo consiste
em afirmar novos caminhos possíveis de interpretação da trajetória
acadêmica e política de Florestan, bem como da importância de sua
obra sociológica para o debate teórico e o enfrentamento prático dos
dilemas contemporâneos das sociedades periféricas de capitalismo
dependente na América Latina e, especificamente, no Brasil.
SUMÁRIO 245
Assim, por exemplo, ao opor-se ao estilo ensaísta, beletrista, bacha-
relesco, escolástico e “pré-científico”84, a sua sociologia passa a ser
vista como a encarnação de uma linguagem cientificista, positi-
vista, sociologista e presa à concepção da autonomia intelectual do
especialista - que agiria politicamente na sociedade, mas, situado
num patamar acima das perspectivas das diferentes classes, falaria
somente em nome de sua profissão. Florestan, como exemplo do
intelectual moderno bourdieusiano, seria o produto mais acabado
das missões estrangeiras que fundaram a Universidade de São Paulo
(USP) e suas inovações advêm apenas do aperfeiçoamento do padrão
de trabalho científico e acadêmico que foi para cá transplantado. O
sociólogo paulistano faria parte de um mito de origem da própria
USP e seu nome expressaria a continuidade, numa espécie de reflexo
invertido da realidade, do projeto científico e acadêmico original.
84 Utilizo o termo pré-científico porque Florestan o utiliza para caracterizar a produção sociológica
localizada em fins do século XIX até a década de 1930.
85 Todos esses trabalhos podem ser consultados em Fernandes (1974; 1976).
SUMÁRIO 246
em Karl Mannheim, as ideias de Florestan são muito diferentes do
reducionismo cientificista e positivista que encontramos em algumas
das interpretações de sua fase marcadamente acadêmica – estabe-
lecida, em geral, a partir de seu ingresso como estudante na USP, em
1941, até sua aposentadoria compulsória em decorrência da ditadura
civil-militar e do AI-5 em 1969 – nas ciências sociais.
SUMÁRIO 247
entre um momento e outro se dá na continuidade de seu estilo
lumpen de pensamento. O que caracteriza o estilo social de pen-
samento seria, sobretudo, a representação do tempo histórico e as
formas particulares de combinação entre presente, passado e futuro.
O pensamento conservador se volta para o passado, percebendo o
presente e o futuro como uma reatualização desse passado histó-
rico e utópico; já o pensamento liberal se direciona para o eterno
presente, encarando o passado e o futuro como polos simétricos
que se anulam; por fim, o estilo socialista de pensamento percebe
o presente em suas potencialidades futuras e o passado como um
elemento fundamental para compreender o tempo histórico presente
como um campo de conflitos. Chamo atenção para o estilo lumpen
na reflexão sociológica de Florestan Fernandes, pois, dada sua ori-
gem social precária e plebeia, os elementos de tensionamento que
apontam para um futuro de transformações radicais, na perspec-
tiva socialista, não admitem conciliações. Essa perspectiva radical,
que não suporta a conciliação pelo alto, é um dos motivos do seu
entusiasmo pela leitura de Os condenados da terra, de Frantz Fanon
(1961), um elemento fundamental do processo de teorização política
de suas categorias histórico-estruturais de capitalismo dependente e
autocracia burguesa.
SUMÁRIO 248
sugestões metodológicas de Karl Marx, em Fundamentos empíricos
da explicação sociológica (FERNANDES, 1978). Não é certo que
Florestan tenha abandonado a ambição teórica de trazer grandes
contribuições para a sociologia sistemática, deixando esse campo de
trabalho livre para os colegas sociólogos das nações de capitalismo
central. A grande teoria, se lembrarmos o termo irônico cunhado por
Wright Mills para se referir à teorização parsoniana, não deveria ape-
nas ser produzida nos centros para ser aplicada nas periferias.
SUMÁRIO 249
A maioria dos trabalhos sobre o autor vincula sua produção
sociológica à história das ciências sociais brasileiras, e pouco falam
de sua inserção latino-americana. Acredito que isso acarreta certo
viés na compreensão exata do significado e da importância de sua
obra. É desconhecida, por exemplo, sua troca de correspondência
com Sergio Bagú, intelectual argentino radicado no México que ele
considerou ser um pioneiro, ao lado de José Carlos Mariátegui e
Caio Prado Jr., na compreensão das especificidades das formações
coloniais latino-americanas e da transição para o capitalismo depen-
dente. Ao mesmo tempo, nosso autor foi considerado por Aldo Solari
(sociólogo uruguaio que projetou um estudo sociológico comparado
das universidades na América Latina, buscando a colaboração de
seu colega brasileiro, Florestan) e dois de seus colaboradores, no
livro Teoría, acción social y desarrollo en América Latina (SOLARI et
al., 1976), um dos representantes da sociologia científica na América
Latina, ao lado de José Medina Echavarría e Gino Germani. Nesse
sentido, uma (re)leitura atual da obra de Florestan e de sua inser-
ção no pensamento social brasileiro deve questionar o seu lugar na
América Latina. Nas páginas a seguir, abordarei, em linhas gerais,
seu estilo lumpen de pensamento e sua inserção latino-americana,
como uma forma de (re)pensar suas contribuições ao pensa-
mento social brasileiro.
SUMÁRIO 250
cedendo seu café da manhã para que a colega grávida pudesse se
alimentar em condições melhores. O choffeur, então, procurava tomar
sua primeira refeição do dia numa padaria próxima ao emprego.
SUMÁRIO 251
Os choques entre as realidades da mãe e da madrinha tal-
vez tenham alcançado o ponto máximo quando Hermínia propôs
a Dona Maria que ela lhe desse seu filho. É possível que os con-
flitos cotidianos entre o universo camponês, popular, comunitário
e de trabalhadora doméstica, de sua mãe, e o aristocrático, elitista,
individualista de uma das famílias quatrocentonas de ex-senhores
de escravos, em São Paulo, explique o afastamento do afilhado da
casa de seus padrinhos. O menino Florestan continuará a manter
contato com os Bresser de Lima, mas a firmeza e dignidade de Dona
Maria, bem como sua ética e visão de mundo tão particular, de raiz
popular, alimentavam como valor um apego aos laços de sangue e
ao compartilhar da convivência humana. Estava inteiramente fora
de cogitação que seu filho fosse criado por outra família. O menino
Florestan-Vicente, vivendo com sua mãe nos cortiços de São Paulo,
passa a trabalhar aos seis anos de idade, ganhando a vida em servi-
ços típicos das camadas subalternas.
SUMÁRIO 252
se começou a estruturar sua consciência social lumpen proletária,
representam a sua primeira grande fonte de aprendizagem socioló-
gica. Essa sociologia recebida das duras lições da vida iria manter
vivo, dentro de si, o menino Vicente, um alter ego que simbolizava sua
origem social. Não há dúvidas de que o próprio Florestan assumiu o
seu lado Vicente como parte de seus horizontes éticos. Assim, numa
entrevista, em 1984, ao programa televisivo Vox Populi, irá responder
à pergunta do seu filho, o jornalista Florestan Fernandes Jr.:
[...] Vicente era meu nome quando criança. Meu nome
de batismo é Florestan. Então existia uma dualidade de
nomes e Vicente é uma figura que me acompanha até um
certo momento da minha vida, porque, para os familiares
e para conhecidos, eu não era Florestan. E passei a ser
conhecido como Florestan depois que, na carreira intelec-
tual, o nome pegou e ninguém me chamava de Vicente,
porque, naturalmente, ninguém conhecia esse apelido. É
claro que, como Vicente, eu tive uma vida sofrida, vida
de criança de origem muito pobre, praticamente lumpen,
que começa a trabalhar com seis anos, que conhece
junto com sua mãe as piores privações, que sofria frustra-
ções e ansiedades típicas das crianças pobres. Portanto,
o Vicente sofreu muito e teve de abrir o seu caminho
com muita dificuldade. Entretanto, o Florestan também
encontrou um caminho difícil. Eu não saberia dizer qual
das figuras foi mais difícil para mim ao longo da vida. É
claro que às vezes as privações são terríveis de enfren-
tar. Não é agradável ser uma criança de seis anos e estar
ansiosa esperando, quem sabe, se a madrinha me traz
um presente no fim do ano. De outro lado, era desagra-
dável vestir um paletó velho, de adulto, e andar com ele
da Rua Major Diogo até a Rua José Bonifácio, esquina
com a Quintino Bocaiúva. Era realmente ridículo, trágico...
[Pergunta do apresentador do programa Vox Populi:
“E qual foi exatamente a influência do Vicente nas ideias
socialistas de Florestan?]. O Vicente não teve influência
no plano das ideias, teve influência no plano do caráter.
Eu nunca deixei de ser Vicente nesse plano. Quer dizer,
o que há de bom em mim é o Vicente que não morreu.
SUMÁRIO 253
Embora eu não tenha um duplo, eu não tenha um
desdobramento de personalidade, eu não tenha o pro-
blema que muitos apresentam de uma dupla personali-
dade. Mas, na medida em que eu sou uma pessoa que
foi apresentada aqui como um rebelde [no começo do
programa, o apresentador caracteriza o entrevistado como
um intelectual rebelde], esse rebelde nasce do passado
que eu enfrentei. E eu sou leal a ele quando me identi-
fico com o socialismo revolucionário e com o marxismo.
De modo que, para resumir, eu diria que o Florestan
sofreu decepções mais graves e profundas, que não
vinham dele, vinham das impossibilidades da sociedade
brasileira e que não afetam propriamente a mim, porque
depois eu me tornei um professor, uma pessoa de classe
média que tem muito mais do que deveria ter. É vergo-
nhoso que alguém tenha coisas demais. Então, realmente
me pesa o fato de que acabei adquirindo uma posição
diversa. Mas o que pesa, o que é difícil para mim, é a situ-
ação média: o fato de haver tanta miséria no Brasil e de
não termos saída, de não conseguirmos criar uma situa-
ção na qual os que são privados de meios de sobrevivên-
cia, de subsistência, de educação, logrem transformar a
sociedade e criar para si próprio condições de felicidade
humana (FERNANDES, 1984)86.
86 A entrevista se encontra disponível no youtube. A parte transcrita se inicia aos seis minutos e oito
segundos (6:08) e termina aos dez minutos e dezoito segundos (10:18). Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=0u_x-6m_mQI. Acesso em: 21 de julho de 2022.
SUMÁRIO 254
e das possibilidades atuais de transformação, Florestan enxerga os
dilemas das nossas sociedades como caminhos alternativos, poten-
cialmente realizáveis no futuro, mas nunca determinações impassi-
velmente fatalistas ou inexoráveis.
SUMÁRIO 255
O livro A revolução burguesa no Brasil (1975), não por acaso visto pelo
autor como um ensaio de interpretação sociológica, representa uma
reapropriação política original do velho ensaísmo histórico brasileiro,
mas, agora, sob a ótica do lumpen como camada social potencial-
mente produtora de conhecimentos.
O BRASIL EM PERSPECTIVA
LATINO-AMERICANA
Três livros sintetizam a visão teórica de Florestan sobre Brasil
e a América Latina: A integração do negro na sociedade de clas-
ses (1964), A revolução burguesa no Brasil (1975) e Da guerrilha ao
socialismo: a revolução cubana (1979)87. Esses trabalhos revelam um
esforço de compreensão conjunta, desvelando as raízes do passado
que atuam no presente em ebulição e sinalizam alternativas futuras.
SUMÁRIO 256
A categoria dilema racial, que emerge em A integração do
negro, assume um sentido latino-americano compreensivo. Não ape-
nas o Brasil, mas outros países se deparam com o racismo na con-
solidação do modo de produção capitalista. A exploração econômica
sempre foi acompanhada de combinações históricas dos sistemas
de estratificação por castas e estamentos, com forte conteúdo racial.
Assim, formas de exploração e dominação por classes se misturam
com o racismo. Um marxismo desvinculado dessa determinação
histórico-concreta alimenta uma visão eurocêntrica dos países lati-
no-americanos, sem considerar que essa visão homogeneizadora,
em termos do passado europeu, também seria ilusória. O internacio-
nalismo proletário sempre sofreu a oposição das diferenciações étni-
cas e nacionais, se julgarmos pela cisão de 1914, causada pelo apoio
do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), de Karl Kautsky,
à concessão dos créditos de guerra para ingresso da Alemanha no
conflito mundial. A partir de fins do século XIX, ao se espraiar para
países semifeudais como a Rússia e o Terceiro Mundo colonizado,
o marxismo deparou-se ainda mais intensamente com as questões
nacionais, étnicas e raciais associadas à expansão imperialista.
SUMÁRIO 257
As relações raciais irão se sobrepor a estas últimas, as relações de
classes, “mesmo onde e quando as contrariam, como se o sistema
de ajustamentos e de controles sociais da sociedade de classes
não contivesse recursos para absorvê-las e regulá-las socialmente”
(FERNANDES, 2008, p. 571). O dilema racial se define como um “fenô-
meno estrutural de natureza dinâmica”, em que o atraso cultural de
relações raciais assimétricas será constantemente recomposto no
contexto da modernidade capitalista. A situação ambígua apontada
por ele é a de que, a partir dos valores sagrados da ordem social com-
petitiva, todos os indivíduos deveriam dispor de certa igualdade de
oportunidades ou que essas disparidades não fossem, pelo menos,
das mais perversas. Contudo, os padrões assimétricos de relações
raciais – herdados do antigo regime senhorial, que se prolongaram
no Brasil Império e nas primeiras décadas da República - permanece-
ram quase intactos, sofrendo algumas impulsões igualitárias apenas
em meados do século XX, quando o negro consegue se classificar
no sistema de classes, ainda que nas posições menos prestigiadas.
Aqueles padrões, portanto, não entram em colapso - como suposta-
mente deveriam entrar, se a história se realizasse num plano ideal -
com a emergência do capitalismo. Esse círculo vicioso só poderia ser
quebrado por um amplo e autêntico movimento antirracista, para além
das linhas divisórias da estratificação racial entre negros e brancos.
SUMÁRIO 258
Nos textos de Florestan escritos após A integração do negro,
as conexões de sentido entre dilema racial, subdesenvolvimento,
capitalismo dependente, contrarrevolução e autocracia burguesas se
tornarão mais explícitas. O dilema racial atua não apenas como fun-
damento do subdesenvolvimento dependente, pois os tipos de explo-
ração e dominação associados ao racismo permitem a constituição
de uma “massa marginal” funcional à extração extra de mais-valia
(nas formas absoluta e relativa) das classes trabalhadoras; mas, tam-
bém, como efeito de reforço ao aprofundamento dos nexos coloniais,
neocoloniais e imperialistas externos. A dinâmica interna das classes
sociais nas sociedades brasileira e latino-americanas pauta-se pela
dialética das contradições de classe no plano internacional, externo.
Esses foram os primeiros passos da formulação de Florestan de suas
contribuições mais específicas ao debate sociológico sobre a depen-
dência. Alguns dos trabalhos reunidos em O negro no mundo dos
brancos, livro publicado em 1972, sugerem sua compreensão teórica
da retroalimentação entre dilema racial e capitalismo dependente.
No ensaio Os aspectos políticos do dilema racial brasileiro, diz:
[...] embora não exista, para a estrutura econômica da
sociedade de classes brasileira, qualquer interesse em
evoluir para o padrão sistemático de preconceito e de
discriminação raciais (como o que existe nos Estados
Unidos ou na África do Sul), o tipo de capitalismo depen-
dente e subdesenvolvido imperante não pode prescindir
da concentração racial da renda e do poder (e, em conse-
quência, das formas pré ou subcapitalistas de exploração
e de expropriação econômicas e de dominação política
que ela envolve). (FERNANDES, 2007, p. 305)
SUMÁRIO 259
essas formas extremamente perversas de exploração e dominação
das forças de trabalho representam uma dimensão normal do tipo de
desenvolvimento capitalista estabelecido nas periferias do sistema
mundial. Nesse sentido, foi a problemática da questão racial que
conduziu Florestan ao questionamento das revoluções burguesas
em países de origem colonial e das etapas históricas do capitalismo
dependente, com o qual passou a refletir comparativamente em ter-
mos mais amplos latino-americanos.
SUMÁRIO 260
a aspectos conjunturais. As categorias de capitalismo dependente
e autocracia burguesa assumem uma dimensão histórico-estrutu-
ral, com variações específicas adequadas à diversidade latino-a-
mericana. Como argumentado anteriormente, a caracterização da
revolução burguesa no Brasil como um caso extremo de capitalismo
dependente, capaz de expressar os traços essenciais de um tipo his-
tórico particular de estrutura social, com seus padrões próprios de
desenvolvimento e dinâmicas singulares, implica uma comparação
implícita com outros países latino-americanos.
SUMÁRIO 261
e culturais correlatas. O regime democrático representativo nos
países de capitalismo dependente corresponde a uma “democracia
restrita” às classes burguesas e seus funcionários subalternos dos
setores médios, isto é, a uma sociedade civil fechada para uma par-
ticipação ampliada das classes trabalhadoras e das camadas popu-
lares. O pacto populista de conciliação de classes, anterior ao golpe
civil-militar de 1964, representava espécie de manipulação demagó-
gica das aspirações dos grupos subalternos, cujo equilíbrio precário
iria se esfacelar pela incorporação do Brasil aos dinamismos interna-
cionais do capitalismo monopolista e consequente internalização da
dependência nos níveis econômico, político, cultural e social. Mesmo
com todos os seus limites históricos, o populismo instilava nas mas-
sas o desejo de aprofundar as reformas estruturais de base, e isso
representava sério risco para as posições de poder da burguesia, seu
autoprivilegiamento quase estamental, seu monopólio cultural, seu
controle ideológico da educação e, por fim, sua ultraconcentração
de riquezas. As elites da grande burguesia brasileira negociaram
a soberania nacional pela manutenção de sua vantajosa inserção
internacional no cenário do capitalismo monopolista.
SUMÁRIO 262
caracterizada pela “consolidação da economia urbano-comercial” e
pelo primeiro impulso industrial mais significativo no Brasil, a exem-
plo das fábricas têxteis, indo até meados do século XX; c) “irrupção do
capitalismo monopolista”, cujo marco seria a “reorganização do mer-
cado e do sistema de produção por meio das operações comerciais,
financeiras e industriais da ‘grande corporação’ (predominantemente
estrangeira, mas também estatal ou mista)”, com início na década
de 1950, mas consolidando-se após o golpe de 1964 (FERNANDES,
2006, p. 264). Os nexos heteronômicos e de dependência entre o
Brasil, as nações capitalistas hegemônicas e a superpotência impe-
rialista mantiveram-se intactos, porém intensificaram sua capacidade
tentacular de interferir nas diversas esferas sociais, econômicas,
políticas, culturais, militares e ideológicas dos países de capitalismo
dependente. Aqui, despontam as principais contribuições teóricas de
Florestan para o refinamento das teses marxistas da lei do desen-
volvimento desigual e combinado, a partir do ponto de vista de um
cientista social situado num país de capitalismo dependente.
SUMÁRIO 263
no momento de consolidação do capitalismo monopolista em escala
internacional. Essa estrutura não se limita, por isso, ao âmbito nacio-
nal das burguesias internas e suas tecnoburocracias estatais, civis
e militares, mas se estende em direção às frações imperialistas das
burguesias externas. Os grandes conglomerados internacionais
passam a assumir influências diretas nas decisões de rumos das
políticas econômicas dos países subdesenvolvidos e dependentes.
Tal situação acarreta não apenas uma alta dose de manipulação de
massas, mas um Estado capaz de agir de maneira ultraviolenta nos
momentos de crise hegemônica.
SUMÁRIO 264
se revele com maior violência devido à imbricação entre formas de
exploração e dominação capitalistas e a reatualização dos mecanis-
mos de opressão política e espoliação econômica do passado colonial
e neocolonial. No ensaio A sociedade escravista no Brasil, de 1976, um
escrito que completa análises inacabadas contidas em A revolução
burguesa, Florestan demonstra como o “escravismo colonial” atuou
como plataforma econômica, social, política e cultural para a emer-
gência, formação e consolidação da sociedade capitalista brasileira,
alimentando seu processo de “acumulação primitiva” como uma ver-
dadeira espoliação das populações negras escravizadas traficadas
da África e dos povos originários anteriores à conquista portuguesa
(FERNANDES, 2010, p. 37-95). O capitalismo que resulta de todas
essas transformações históricas só poderia ser, nas palavras do pró-
prio autor, um capitalismo selvagem. A violência com que tal modelo
autocrático de transformação capitalista se reproduziu de maneira
generalizada nos países da América Latina explica a eclosão história
da Revolução Cubana.
SUMÁRIO 265
as contradições e dilemas da revolução cubana, a perspectiva socio-
lógica de futuro de Florestan se expressa como um exercício rigoroso
de reflexão da história do tempo presente ou, como costumava dizer,
da “história em processo”, in flux:
Diante de revoluções burguesas em atraso, a revolução
em avanço procede do socialismo, o que quer dizer que
temos de estudar Cuba se pretendemos desvendar o
futuro e conhecer a história de ritmos fortes, que se abre
para frente e assinala uma “nova época de civilização” no
solo histórico da América Latina (FERNANDES, 1979, p. 3).
SUMÁRIO 266
internos, opuseram limites ao processo de descolonização em Cuba
e procuraram barrar uma revolução que se propôs inicialmente
objetivos de autonomização nacional. O socialismo foi uma imposi-
ção da história latino-americana e não uma exportação do modelo
soviético. Assim, as contradições do processo revolucionário cubano
são analisadas em seu caráter histórico aberto (FERNANDES, 1979,
p. 10) de uma tentativa original de construção do socialismo numa
sociedade latino-americana, partindo de duras condições neocolo-
niais. A primeira parte do livro foi utilizada por Florestan como uma
necessária limpeza de terreno contra os preconceitos ideológicos no
estudo da Revolução Cubana, os quais se baseiam no modelo único
da democracia ocidental. As novas formas de poder popular sinaliza-
vam a institucionalização de práticas democráticas de participação
direta, atuantes na sociedade cubana, que em diversos momentos
funcionariam como fatores corretivos dos excessos de centralismo
burocrático e do Estado planificado. A “análise concreta de situações
concretas” não é substituída ideologicamente por conceitos formais.
SUMÁRIO 267
neocolonial, com todos seus efeitos nefastos como desemprego,
fome, miséria, analfabetismo, doenças, corrupção, violência poli-
cial colonialista etc., que uma revolução inicialmente de libertação
nacional, democrática e anti-imperialista, desembocaria quase natu-
ralmente numa revolução anticapitalista e socialista. Na América
Latina, dadas as características do capitalismo dependente e seu
passado neocolonial, o desencadeamento de autênticas “revoluções
dentro da ordem” pode conduzir a novos e mais avançados pata-
mares históricos de “revoluções socialistas contra a ordem”. Assim,
Florestan não explica de maneira reducionista a Revolução Cubana
por fatores impositivos externos, mas, sem desprezar as determi-
nações históricas internacionais, a partir de sua interpretação das
formações sociais capitalistas da América Latina.
À GUISA DE CONCLUSÃO:
NOVOS CAMINHOS DE INTERPRETAÇÃO
DA OBRA DE FLORESTAN FERNANDES
A grande maioria dos intérpretes da obra sociológica de
Florestan situa seus trabalhos no plano específico da história das
ciências sociais no Brasil. Os estudos assim delimitados trouxeram
contribuições imprescindíveis e devem ser utilizados como pontos de
partida para o conhecimento de sua produção acadêmica e política.
No entanto, já se encontram em andamento pesquisas que vinculam
o pensamento do sociólogo paulistano à história mais geral das ciên-
cias sociais latino-americanas. O presente trabalho limita-se a propor
aqui, nos marcos de uma perspectiva latino-americana e não apenas
brasileira, o início de uma reinterpretação de livros fundamentais de
Florestan, a serem analisados em suas possíveis conexões históricas,
políticas, conceituais, teóricas e epistemológicas.
SUMÁRIO 268
Assim, os três livros mencionados – A integração do negro, A
revolução burguesa e Da guerrilha ao socialismo – representam, em
conjunto, os traços essenciais de uma nova interpretação do Brasil
e América Latina. Essa interpretação não pode ser dissociada da
visão de mundo lumpen, radical-popular e socialista de Florestan. A
originalidade da teoria social da América Latina construída pelo soci-
ólogo brasileiro se deve justamente a seu esforço político de partir da
perspectiva social dos sujeitos subalternos, os povos originários, o
negro, o imigrante, os trabalhadores do campo e da cidade, as mas-
sas despossuídas e, como disse certa vez, de todos os “condenados
do sistema” em geral.
SUMÁRIO 269
REFERÊNCIAS
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FERNANDES, Florestan. A sociologia numa era de revolução social. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1963.
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Nacional, 1974.
______. Ensaios de sociologia geral e aplicada. 3ª Ed. São Paulo: Pioneira, 1976.
______. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. 3ª Ed. Rio de
Janeiro: LTC, 1978.
______. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1979.
______. Entrevista ao programa televisivo Vox Populi da TV Cultura. Vox Populi,
1984. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0u_x-6m_mQI. Acesso em:
22 mar. 2024
______. O negro no mundo dos brancos. 2ª Ed. São Paulo: Global, 2007.
______. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5ª
Ed. São Paulo: Globo, 2006.
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Globo, 2008.
______. Circuito fechado. São Paulo: Globo, 2010.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
NEUMANN, Franz. Behemoth: pensamiento y acción en el nacionalsocialismo. México:
Fondo de Cultura Económica, 1943.
SOLARI, Aldo et al. Teoría, acción social y desarrollo en América Latina. México-DF:
Siglo XXI, 1976.
SUMÁRIO 270
11
Lucas Trindade
UM FLORESTAN
PARA ALÉM DA “TESE
DA SINGULARIDADE
BRASILEIRA”88
88 Texto publicado pela primeira vez em Terceiro Milênio: Revista Crítica de Sociologia e Política, v. 18,
n. 01, 2022, integrado ao dossiê “A atualidade do pensamento social e político brasileiro”, organizado
por Marcos Abraão Ribeiro, Roberto Dutra e Maro Lara Martins. Nesta publicação, o texto passou por
mínimas alterações de forma, sem qualquer mudança em seu conteúdo e principais argumentos.
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.11
INTRODUÇÃO
Pretendo aqui elaborar de forma sistemática uma questão
que levantei em artigo anterior (ver SILVA, 2020), a saber: refletir
sobre a obra de Florestan Fernandes, em particular sua interpreta-
ção sobre os padrões e dilemas (COHN, 1986) brasileiros, pelo crivo
da tese da singularidade brasileira, chave de leitura formalizada por
Sergio Tavolaro para a análise crítica de amplamente reconhecidos
intérpretes do Brasil.
SUMÁRIO 272
e formaliza a singularidade brasileira (modelo autocrático-burguês
em contraste com o modelo democrático-burguês), também sugere
elementos conceituais e heurísticos para além da singularidade, prin-
cipalmente quando identifica tendências de generalização global
das formas autocráticas de dominação burguesa. Tais tendências
ganham notoriedade e reflexão sistemática em Apontamentos sobre
a “Teoria do Autoritarismo”, publicação original de 1979 a partir de um
curso oferecido em 1977.
SUMÁRIO 273
Como será uma tônica até os seus trabalhos mais recentes, a
busca de demarcação das regularidades dispersivas que traçam os
limites do pensamento social brasileiro, tomado como uma episteme
ou formação discursiva, é feita em um rigoroso trabalho simultâneo
de demarcação do discurso sociológico hegemônico sobre a moder-
nidade em autores e obras de indiscutível relevância na teoria socio-
lógica clássica e contemporânea.
SUMÁRIO 274
seja em relação ao mundo objetivo a seu redor”; (5) “a imagem de
ruptura radical entre a cultura e a natureza”, fundamento para o domí-
nio técnico sobre a natureza externa e interna; e (6) uma “estrutura
espaço-temporal igualmente singular”, na qual, de forma crescente,
“o espaço é imunizado de condicionamentos contextuais” e o tempo,
homogêneo e abstrato, ganha uma “conotação predominantemente
linear e progressiva”.
SUMÁRIO 275
não-hegemônicos ou não-modelares da modernidade, a exemplo
das tensões com a temporalidade moderna presentes nos intérpretes
do Brasil (TAVOLARO, 2021).
SUMÁRIO 276
Como já anunciado na introdução, é do interesse deste
artigo reconstruir os traços principais do enquadramento da sociolo-
gia da dependência, mais particularmente do trabalho de Florestan
Fernandes, no interior de uma sociologia da inautenticidade, do des-
vio e da singularidade brasileira, uma sociologia que revelaria “forte
suspeição quanto à equidade entre Brasil e as chamadas ‘sociedades
modernas centrais’” (TAVOLARO, 2005, p.8). Em Prado Jr.89, Tavolaro
aponta principalmente o argumento perpassado pela marcada distin-
ção ou dicotomia entre as experiências de colonização estadunidense
e brasileira, aquela assentando as bases para uma modernidade
capitalista plena e hegemônica, esta, como sabemos, exprimindo uma
contínua reconfiguração do seu sentido originário de colônia.
89 História econômica do Brasil, The colonial background of modern Brazil e Evolução política do Brasil
são citados por Tavolaro (2005).
90 Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970) e O colapso do populismo no Brasil são
citados por Tavolaro (2005).
91 O modelo político brasileiro, As ideias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento
e, em coautoria com Faletto, Dependency and development in Latin American são citados por
Tavolaro (2005).
92 Sociedade de classes e subdesenvolvimento e A revolução burguesa no Brasil são citados por
Tavolaro (2005).
SUMÁRIO 277
enquadrariam a sua sociologia em uma compreensão do Brasil por
sua inautêntica e singular modernidade: (a) em contraste com o
“continente europeu”, a vitalidade de traços estamentais em nossa
“configuração social” devido ao peso da “combinação inicial de
grande lavoura, escravidão e expropriação colonial”; (b) uma incor-
poração superficial, “em suas linhas mais gerais”, dos “padrões
sociais, políticos e econômicos vivenciados pelas sociedades capi-
talistas hegemônicas”; e (c) a “condição de dependência estrutural”,
caracterizada pela articulação entre “setores econômicos modernos
e supermodernos” e “setores arcaicos”, como “razão pela qual uma
porção significativa da população brasileira permaneceu alheia à
universalização legal do trabalho-livre” e como fundamento explica-
tivo para o fato de que, aqui, “certas instituições políticas vivenciadas
pelas sociedades capitalistas centrais não conseguiram vingar”.
SUMÁRIO 278
o que explicaria “o status semimoderno da sociedade brasileira con-
temporânea” (TAVOLARO, 2005, p. 10, grifos do autor).
SUMÁRIO 279
Ao revisitar a “tese de singularidade brasileira”, “ideia-força
mais poderosa e penetrante do nosso pensamento social” que, em
nossos dias, “parece permanecer irresistivelmente hegemônica”,
Tavolaro (2014, p. 633-4, grifo do autor) reitera as balizas de sua
abordagem: não é possível falar da tese da singularidade brasileira
sem pensá-la como uma enunciação que parte de um imaginário
hegemônico sobre a modernidade; é a partir desta norma discursiva
que casos singulares e desviantes são indicados.
SUMÁRIO 280
puderam trazer “à luz aspectos da própria ‘realidade modelar’ que
escaparam ao campo de visão daquele quadro de referência hege-
mônico”. Esse ângulo de abordagem — que mais nitidamente busca
indicar tanto os limites como as potencialidades da tese da singula-
ridade brasileira — permite adicionar importantes nuances à leitura
dos pensadores enquadrados nesta tese.
SUMÁRIO 281
Elaborada esta síntese da tese da singularidade brasileira e
de como Fernandes é nela enquadrado, tenho elementos para um
retorno direto ao trabalho do saudoso sociólogo uspiano. Ao longo
do texto buscarei demonstrar como Fernandes apresenta aspectos
tanto de endosso da tese da singularidade brasileira como de supe-
ração, numa dinâmica de tensão e ambivalência, desse imaginário:
primeiro ao desatrelar a ideia de singularidade das imagens de des-
vio e inautenticidade; depois, ao realizar um consistente movimento
para além da singularidade, em particular ao pensar as relações
entre capitalismo e autocracia.
SUMÁRIO 282
influenciado pela hipótese da demora cultural (BRASIL JR., 2013;
PORTELA JR., 2013; SILVA, 2021) e que, por isso, responde àquela
pergunta da seguinte forma: “o que parece a muitos uma ‘crise’ da
democracia no Brasil é, antes, efeito da lentidão com que se vem
operando a substituição dos antigos hábitos e práticas (além do
mais, deformados) de vida política, por outros novos, ajustados à
ordem legal democrática em elaboração” (Fernandes, 2008a, p. 100).
O núcleo do problema não seria, portanto, uma democracia em crise
(como se um dia tivesse existido de maneira plena), mas condições
sociológicas que favorecem a “perpetuação” daqueles “antigos hábi-
tos e práticas (além do mais, deformados)” e a prevalência, “ao longo
da moderna evolução política do país”, dos “móveis egoístas das eli-
tes dirigentes” “sobre necessidades muito mais urgentes e graves”
(FERNANDES, 2008a, p. 100).
SUMÁRIO 283
No entanto, percebe-se “a realização quase sempre parcial, incom-
pleta ou deformada desses modelos, em virtude de as bases econô-
micas, sociais ou culturais de vida não oferecerem, no meio brasi-
leiro, as principais condições requeridas pelo pleno desenvolvimento
normal daqueles modelos” (FERNANDES, 2008b, p. 172).
SUMÁRIO 284
raciais” (FERNANDES, 2021, p. 827). Trata-se de algo considerado
como uma “anomalia” (FERNANDES, 2021, p. 827) com consequên-
cias dramáticas para negros e negras, mas, de modo amplo, “para
o próprio equilíbrio do sistema, ou seja, para a normalidade do fun-
cionamento e do desenvolvimento da ordem social como um todo”
(FERNANDES, 2021, p. 827).
SUMÁRIO 285
Esta é colocada nos mesmos termos contrastivos: é a partir de um
modelo de “ordem social competitiva” — modelo elaborado como
uma organização conceitual de experiências históricas concretas,
os contextos “originais” de emergência daquela ordem — que é
possível analisar os impasses de uma formação social em transi-
ção como a brasileira.
93 Para um aprofundamento ver “Florestan Fernandes e o dilema racial brasileiro” (COSTA et al., 2021).
SUMÁRIO 286
antieconomicista94 e antiteleológica, dado que o subdesenvolvimento
é compreendido não como etapa, desvio ou anomalia do desenvolvi-
mento, mas como possibilidade normal de formação no interior das
dinâmicas globais do capitalismo.
SUMÁRIO 287
histórica nova e inconfundível” (FERNANDES, 2008c, p. 36): “uma
economia de mercado capitalista que, ao crescer, corre o risco de se
tornar ainda mais dependente” (FERNANDES, 2008c, p. 37).
SUMÁRIO 288
o arcaico e o moderno nem sempre entram em choque
decisivo, que termine com a eliminação das estrutu-
ras repudiadas; estabelecem-se várias espécies de
fusões e de composições, que traduzem os diferentes
graus de identificação dos homens com a herança tra-
dicional e com a modernização (FERNANDES, 2008c,
p. 53, grifos do autor).
SUMÁRIO 289
Sem de modo algum pretender reduzir a riqueza e as ino-
vações trazidas por uma obra como A revolução burguesa no Brasil
(doravante RBB), eu diria que os aspectos teóricos acima salien-
tados se mantêm e ganham maior amplitude investigativa: não se
trata apenas de pensar os atributos do capitalismo dependente e
subdesenvolvido em um permanente contraste com um modelo de
capitalismo autônomo e desenvolvido (a razão dualista projetada
em nível global), mas de contrapor explicitamente, aprofundando
os interesses de uma sociologia histórico-comparativa, um “modelo
democrático-burguês” (FERNANDES, 2006, p. 340), “liberal-demo-
crático” ou “clássico” (FERNANDES, 2006, p. 380, grifo do autor), que
refletiria os processos históricos inglês, francês e estadunidense,
ao “modelo autocrático-burguês” (FERNANDES, 2006, p. 337, p.
374, p. 424), formulado a partir da experiência brasileira. Este, como
“reflexo invertido” (FERNANDES, 2006, p. 382) do primeiro modelo,
se caracterizaria pela “forte dissociação pragmática entre desenvol-
vimento capitalista e democracia” ou, em fórmula positiva, pela “forte
associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia”
(FERNANDES, 2006, p. 340, grifos do autor).
SUMÁRIO 290
democracia burguesa’ e atrelado a uma ‘versão tecnocrá-
tica da democracia restrita’ que funciona como uma ‘demo-
cracia de cooptação’ (COHN, 2004, p. 404, grifos do autor).
SUMÁRIO 291
Ainda sobre SCS e RBB, gostaria de chamar atenção não
só para a amplamente enfatizada superação da razão dualista, ao
conceber arcaico e moderno não como um dualismo, mas como
uma articulação estrutural; parece-me que Fernandes sugere silen-
ciosamente mais do que isso. Sugere, eu diria, uma detida reflexão
sobre se a própria terminologia do “arcaico” e do “moderno” é útil;
se o uso desses termos ainda não ressoa pressupostos teleológicos,
lineares, progressivos, etapistas de temporalidade histórico-social.
Afinal, como pode ser arcaico aquilo que é central na estruturação
e ativação de processos sociais presentes e tendentes a permane-
cer? Se estamos tratando da “contemporaneidade” de elementos da
realidade que têm uma emergência histórica heterogênea, por que
continuamos a chamar essa “contemporaneidade” em termos que
evocam uma concepção linear de tempo?95
95 Sugestão que também atravessa o clássico ensaio de Francisco de Oliveira publicado em 1972:
“o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o
chamado ‘moderno’ cresce e se alimenta da existência do ‘atrasado’, se se quer manter a termino-
logia” (OLIVEIRA, 2013, p. 32).
SUMÁRIO 292
centro/periferia, autonomia/heteronomia, modelo democrático/
modelo autocrático são dualismos complementares para pensar
experiências sociais que se configuram relacionalmente na constitui-
ção do mercado mundial, mas que são conceitualizadas como uma
assimetria, como em um “reflexo invertido”, para utilizar novamente a
plástica expressão de Fernandes (2006, p. 382).
SUMÁRIO 293
Logo, se Florestan sustenta o dualismo entre “modelo demo-
crático-burguês” e “modelo autocrático-burguês” para analisar a
longa duração que é o desenvolvimento desigual e combinado do
capitalismo no colossal palco do mercado mundial, a passagem
indica um cessar daquela assimetria cognitiva que perpassa toda
a RBB. Assim, não se trata mais, naquele contexto, de um “reflexo
invertido” ou de um dualismo que opõe modelos de transformação
capitalista segundo qualidades ou essências irredutíveis.
SUMÁRIO 294
O próprio mote do curso, e do livro, é a crítica a um tipo de
razão dualista que saturava a ciência política de então96. Mais pre-
cisamente, certa compulsão a enquadrar a realidade a partir de
uma “tipologia dicotômica”, plena de “inconsistências”, que opõe
“sistemas autoritários” e “sistemas democráticos”, “democracia
(liberal)” e “democracia (autoritária)”, “democracia” e “totalitarismo”
(FERNANDES, 2019, p. 44-45)97. Um conceito de autoritarismo que
se baseie em tal tipologia dicotômica “circunscreve o horizonte inte-
lectual do analista político”, pois rejeita, a priori, premissas básicas: a
compreensão de que “a democracia típica da sociedade capitalista é
uma democracia burguesa, ou seja, uma democracia na qual a repre-
sentação se faz tendo como base o regime eleitoral, os partidos, o
parlamentarismo e o Estado constitucional”; de que a esta demo-
cracia burguesa “é inerente forte desigualdade econômica, social e
cultural com uma alta monopolização do poder pelas classes pos-
suidoras-dominantes e por suas elites”; de que nesta democracia a
“liberdade e a igualdade são meramente formais, o que exige, na teo-
ria e na prática, que o elemento autoritário seja intrinsecamente um
componente estrutural e dinâmico da preservação, do fortalecimento
e da expansão do ‘sistema democrático capitalista.’” (FERNANDES,
2019, p. 45, grifos do autor).
96 Embora o arsenal crítico também se volte para um passado mais distante (E. Cassirer; V. Pareto,
Ortega y Gasset, H. Rickert, R. Michels, entre outros), os alvos de Florestan são sobretudo autores e
obras dos anos 1950, 1960 e 1970: Totalitarian dictatorship and totalitarianism, de Carl J. Friedrich e
Zbigniew K. Brzezinskí; The case of Spain, de J. Linz, incluído na coleção Regimes and oppositions,
organizada por R. Dahl; Uma teoria de política comparada, de G. A. Almond e C. Bingham Powell Jr.;
Power and society: a framework for political inquiry, de Harold D. Lasswell e Abraham Kaplan; Uma
teoria da análise política, de David Easton. A contundente crítica ao trabalho de Gabriel A. Almond
(e Powell Jr.) sugere um profundo incômodo de Florestan com a chamada teoria da cultura política,
que se baseia em um “modelo liberal democrático de cidadania” (RENNÓ, 1998, p. 73) para analisar/
tipificar os sistemas políticos e as ditas transições para a democracia. Teoria essa que tem como
marco fundador a obra The civic culture, de G. Almond e Sidney Verba, publicada em 1963 (para um
balanço, ver RENNÓ, 1998).
97 Para um esforço recente — inspirado na teoria dos sistemas sociais e em diálogo com o trabalho
de Sergio Tavolaro — de pensar o autoritarismo como constitutivo da modernidade política global,
ver Dutra e Ribeiro (2021).
SUMÁRIO 295
Sob citada influência dos trabalhos de Georg Lukács, Franz
Neumann, Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Max Horkheimer e em
polêmica frontal com uma ciência política que sob a bata da cienti-
ficidade “confere um caráter racional, definitivo e eterno ao modelo
de democracia que resultou do capitalismo” e condena toda “demo-
cracia popular” como “intrinsecamente aberrante e corrompida”,
Florestan (2019, p. 48-9, grifos do autor), do seu modo, aponta como
os regimes democrático-liberais são não só saturados, mas sustenta-
dos por formas de sociabilidade e marcos institucionais autoritários.
SUMÁRIO 296
se manifesta, revelando “que ao monopólio da dominação burguesa
corresponde um monopólio do poder político estatal: sem nenhuma
mágica, o Estado de exceção brota do Estado democrático, em que
está embutido” (FERNANDES, 2019, p. 52-53). Tal oscilação entre
latência e manifestação de tendências autoritárias intrínsecas ou o
“contraste entre autoritarismo e democracia”, porém, não se vincula
de modo algum “à pressão burguesa”, enfatiza Fernandes (2019, 53),
para quem a expansão do “elemento democrático” se ampara, pelo
contrário, “nos interesses e situações de classe da maioria”, quando
“as forças antiburguesas ganham saliência”.
SUMÁRIO 297
A partir de uma crítica da ciência política, o seu interesse é de, pelo
contrário, acentuar as tendências autoritárias intrínsecas à dominação
burguesa (formalmente democrática ou não) e, como já vinha fazendo
desde a RBB, apontar uma tendência de escancaramento ou generali-
zação de um padrão autocrático de dominação a nível global.
SUMÁRIO 298
Para Harvey (2008, p. 26), “a neoliberalização foi desde o começo um
projeto voltado para restaurar o poder de classe”, “os dados sugerem
vigorosamente que a virada neoliberal está de alguma maneira e em
algum grau associada à restauração ou reconstrução do poder das
elites econômicas”. “Nascida da liberalização e da desregulamenta-
ção, a mundialização liberou... todas as tendências à polarização e à
desigualdade que haviam sido contidas, com dificuldades, no decor-
rer da fase precedente” (CHESNAIS, 2001, p. 12).
98 Para uma excelente análise crítica do Relatório The crisis of democracy, ver especialmente o capí-
tulo sexto de A sociedade ingovernável (CHAMAYOU, 2020).
SUMÁRIO 299
Também me parece plausível afirmar que o neoliberalismo
se enquadraria bem no que Florestan chama, ao falar do Brasil sob
botas a partir de 1964, de “reação societária às pressões dentro da
ordem” motivada por “uma forma ultravulnerável de temor de classe”
(FERNANDES, 2006, p. 383). No caso brasileiro, aquela “reação
societária” se deu visando garantir a consolidação do capitalismo
monopolista industrial sufocando, precoce e preventivamente, os
descontroles possíveis da organização popular e um ensaio de
keynesianismo nos nossos tristes trópicos. No chamado “neoli-
beralismo”, que segundo Duménil e Lévy (2007, p. 3) foi “um golpe
político cujo objetivo era a restauração” dos “privilégios” políticos e
econômicos da classe capitalista, a “reação societária” teve que de
fato atacar uma experiência de quase 30 anos de efetivo poder, em
limites nacionais, das classes trabalhadoras por meio de sindicatos,
partidos social-democratas, socialistas, trabalhistas, comunistas e no
interior do próprio Estado. Em outras palavras, a autocracia neoli-
beral teve que efetivamente desvirtuar e suprimir as estruturas do
“capitalismo democrático” (STREECK, 2011), enquanto a autocracia
burguesa brasileira conceituada por Florestan é, em primeiro plano,
uma aborteira de pulsões democráticas.
99 A crítica da razão welfarista é um mote central das inquietações compartilhadas e das conversas
com os queridos amigos Alexandre Pimenta e Edemílson Paraná.
SUMÁRIO 300
É digno de nota que certa idealização do capitalismo hege-
mônico/desenvolvido ou do modelo democrático-burguês (a partir
do qual é desenhado o reflexo invertido do capitalismo dependente
e da autocracia burguesa) se faça presente principalmente em tex-
tos dos anos 1950, 1960 e início dos 1970. Exatamente os anos em
que o Welfare State e um significativo desenvolvimento da tríade de
direitos civis, políticos e sociais (MARSHALL, 1967) mostravam-se
consolidados como um caminho de controle das forças socialmente
desagregadores dos mercados, se deixados à própria sorte.
SUMÁRIO 301
condena-se à extinção” (FERNANDES, 2019, p. 98) — e por forças
anticapitalistas. O império do capital acossado é o império da “con-
trarrevolução em escala mundial”, o que faz com que “os mecanismos
de defesa da ordem” tornem-se “igualmente repressivos e opressivos
— ao nível da empresa, da sociedade global e das relações interna-
cionais entre nações capitalistas desiguais” (FERNANDES, 2019, p.
98-99, grifo do autor). Florestan então escreve, como quem responde
a uma possível objeção:
Ao que parece, o chamado “pluralismo” é possível no
centro e permite conciliar a democracia constitucional,
representativa e parlamentar com o “emburguesamento”,
a cooptação institucionalizada direta e indireta das
demais classes. Essa corrupção organizada e profunda
possui limites e eles se acham no próprio eixo elementar
da propriedade privada e do capitalismo privado. Uma
oscilação maior na direção do Welfare State e das fun-
ções de legitimação do Estado capitalista forçará, sem
dúvida, um desequilíbrio fatal entre os dois tipos de fun-
ção (FERNANDES, 2019, p. 99, grifo do autor).
SUMÁRIO 302
CONCLUSÃO
Quando lido através das lentes da “tese da singulari-
dade brasileira”, pode-se dizer que Fernandes passa por três
momentos fundamentais:
SUMÁRIO 303
é realizada através de uma projeção do dualismo para o contexto
global, consolidando certo léxico binário da dependência/autono-
mia, modelo autocrático/modelo democrático, periferia/centro.
100 “Modelos” de democracia que em plenos “anos dourados” mantinham domínios coloniais e, no
caso estadunidense, a segregação racial garantida por lei.
SUMÁRIO 304
Sugeri ainda, sem pretensão exaustiva, que o movimento
para além da singularidade em Florestan parece guardar íntima rela-
ção com as mudanças do capitalismo nos anos 1970. Em fins dessa
década, os fortes indícios de crise do regime de acumulação keyne-
siano-fordista em seletos países da Europa Ocidental e nos EUA e o
ascenso dos processos globais da chamada neoliberalização fizeram
ruir qualquer possibilidade de identificação estável, pelo pensamento
crítico, entre capitalismo e democracia como uma norma — ou um
a priori analítico — a partir da qual seria possível apontar processos
históricos e estruturais desviantes.
101 Gabriel Cohn, a partir de outro ângulo, capta da seguinte forma a sofisticação do tempo social
para Florestan: “o passado aparece como complexo de oportunidades (ganhas ou perdidas), o
presente se configura como campo de forças e o futuro como conjunto de alternativas a serem
(seletivamente) ‘dinamizadas’. O passado não é um jogo de memória (como em Gilberto Freyre),
mas um inventário de desafios e obstáculos” (COHN, 2015, p. 16).
SUMÁRIO 305
cracia” e “autoritarismo” em nível global), gostaria de enfatizar, reto-
mando o diálogo com as proposições de Tavolaro (2005, 2014) para
pensar além da singularidade, como Florestan oferece significativos
elementos para uma concepção agonística, contingente e fundamen-
talmente histórica dos processos globais de modernização capitalista.
102 Para um aprofundamento das nuances e complexidade do conceito de classe social em Florestan
Fernandes, ver Alves (2020).
SUMÁRIO 306
Como se vê, diferente de negar a importância da tese da
singularidade brasileira como chave analítica para pensar o pensa-
mento social brasileiro em suas fragilidades e potencialidades, bus-
quei aqui demonstrar, pelo contrário, a sua força e pertinência. Neste
artigo, foi a formalização crítica da tese da singularidade brasileira
que permitiu um esforço de releitura de um autor como Florestan
Fernandes, buscando salientar, em sua ampla contribuição intelec-
tual, os aspectos que vão além de formas rígidas e dualistas, nas
quais ele mesmo por vezes se enredou, de pensar a modernidade e
o capitalismo no Brasil e no mundo.
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SUMÁRIO 310
12
Matheus de Carvalho Barros
O SIGNIFICADO DO
PROTESTO NEGRO:
COLONIALISMO, CAPITALISMO
DEPENDENTE E QUESTÃO RACIAL
EM FLORESTAN FERNANDES
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.12
INTRODUÇÃO
O objetivo do presente trabalho é analisar a articulação entre
raça e classe no pensamento de Florestan Fernandes. A intenção é
examinar a forma como o sociólogo paulistano relaciona a questão
racial aos dilemas históricos do subdesenvolvimento, do capita-
lismo dependente e da revolução burguesa. Ou seja, pretendemos
demonstrar como Fernandes relaciona raça e classe, não apenas
como uma chave interpretativa da realidade latino-americana, mas
também como um imperativo fundamental para se pensar os pro-
cessos emancipatórios.
103 Como nos apontam os autores do texto Florestan Fernandes e o dilema racial brasileiro, para se
atingir uma visão compreensiva desse dilema, seria necessário reler passo a passo toda obra
pertinente do sociólogo paulistano sobre o assunto. Um trabalho dessa envergadura demandaria
uma releitura diacrônica e de reconstituição cronológica do conjunto de sua produção sobre
o negro, desde a Pesquisa Unesco, passando pela Integração do Negro, até chegar nas suas
conclusões mais “maduras” das décadas de 1970 e 1980, para demonstrar como seus conceitos
foram sendo formulados, redefinidos e ressignificados (COSTA; ALVES; PORTELA JR; SOARES; SILVA;
MUTZENBERG, 2021).
SUMÁRIO 312
Todavia, é necessário enfatizar também que nem sempre os
vínculos conceituais entre racismo e as caracterizações sociológi-
cas sobre o subdesenvolvimento e o capitalismo dependente estão
devidamente estabelecidos em todos os trabalhos de Florestan que
versam sobre as classes sociais. A articulação entre essas categorias
se intensifica na medida em que a posição política e sociológica de
Florestan assume uma postura mais radicalizada e aprofunda sua
relação com a teoria marxista.
SUMÁRIO 313
CAPITALISMO DEPENDENTE
E REVOLUÇÃO BURGUESA
NO BRASIL
Analisando as particularidades da transformação capitalista
na periferia, em 1975, Florestan Fernandes publica umas de suas
obras mais importantes que, segundo Carlos Nelson Coutinho
(2000), é o primeiro texto onde o marxismo é assumido explicita-
mente como ponto de vista metodológico pelo sociólogo paulistano.
Refiro-me aqui à obra A Revolução Burguesa no Brasil.
SUMÁRIO 314
Entretanto, em meados dos anos de 1960, ou seja, antes
mesmo da publicação de A Revolução Burguesa, já era possível visu-
alizar algumas alterações fundamentais na forma com que Florestan
concebia o desenvolvimento sócio-histórico brasileiro. Uma dessas
mudanças pode ser visualizada na maneira como Fernandes passa a
relacionar os termos “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento”,
a partir da construção do conceito de “Capitalismo Dependente”.
SUMÁRIO 315
A natureza e os ritmos da transformação capitalista sob
as grandes corporações “multinacionais” criaram a rea-
lidade histórica de nossa época. Os países retardatários
são comensais desprezíveis ou simples repasto para os
demais. Não há como fazer coincidir os tempos da histó-
ria: as estruturas sócio-econômicas, culturais e políticas
dos países capitalistas hegemônicos absorvem estru-
turas dos países subcapitalistas, semicapitalistas ou de
capitalismo dependente, submetendo-as a seus próprios
ritmos e subordinando-as aos interesses que lhe são
próprios (...) O capitalismo selvagem (a forma assumida
pelo capitalismo nos países dependentes) não reproduz o
passado; e se nele há lugar para a “revolução burguesa”,
esta se apresenta de outra forma e com outros objetivos
fundamentais. Sem dúvida, o desenvolvimento capitalista
pressupõe muitos mecanismos econômicos, sócio-cul-
turais e políticos que se repetem. Mas eles se repetem
em tais condições e sob tais fundamentos, que apontam
para uma realidade econômica, sócio-cultural e política
específica, típica de uma situação histórica e de uma
condição inexorável de dependência tecnoeconômica
(FERNANDES, 1968, p. 64-65).
SUMÁRIO 316
Florestan começa o sétimo capítulo de A Revolução Burguesa
no Brasil ressaltando que a relação entre a modernização capitalista
e dominação burguesa é altamente variável. Nesse sentido, o soci-
ólogo paulistano está se contrapondo a uma visão eurocêntrica que
supõe a existência de um único modelo básico de transformação
capitalista. Fernandes (2020) argumenta que as maiorias das inter-
pretações teóricas só aceitam como revolução burguesa as mani-
festações que se aproximavam dos “casos clássicos”, caracterizadas
por uma associação entre desenvolvimento capitalista e conquistas
democráticas. Entretanto, essas análises partiam de uma
posição unilateral, que perdia de vista o significado empí-
rico, teórico e históricos dos “casos comuns”, nos quais
a revolução burguesa aparece vinculada a alterações
estruturais e dinâmicas condicionadas pela irradiação
externa do capitalismo maduro, ou dos “casos atípicos”,
nos quais a revolução burguesa apresenta um encade-
amento bem diverso daquele que se pode inferir através
do estudo de sua eclosão na Inglaterra, França e nos EUA
(FERNANDES, 2020, p. 288).
SUMÁRIO 317
A condição de dependência faz com que o capitalismo na periferia
seja “selvagem e difícil, cuja viabilidade se decide, com frequência,
por meios políticos e no terreno político” (FERNANDES, 2020, p. 291).
CAPITALISMO DEPENDENTE,
SUBDSENVOLVIMENTO
E QUESTÃO RACIAL
Analisando os nexos entre a questão racial e os dilemas do
subdesenvolvimento e do capitalismo dependente, em uma impor-
tante passagem do texto Aspectos políticos do dilema racial brasileiro,
SUMÁRIO 318
escrito provavelmente entre 1971 e 1972 – e publicado em O negro
no mundo dos brancos104 –, o sociólogo paulistano deixa clara a
vinculação entre a “questão do negro” e os dilemas do capitalismo
periférico. Segundo Fernandes,
Embora não exista, para a estrutura econômica da socie-
dade de classes brasileira, qualquer interesse em evoluir
para o padrão sistemático de preconceito e de descri-
minação raciais (como o que existe no Estados Unidos
ou na África do Sul), o tipo de capitalismo dependente
e subdesenvolvido imperante não pode prescindir da
concentração racial da renda e do poder (e, em consequ-
ência, das formas pré ou subcapitalistas de exploração e
de expropriação econômicas e de dominação política que
ela envolve) (FERNANDES, 2007, p. 305).
104 Esse ensaio foi escrito originalmente para um volume coletivo que seria publicado na França, em
homenagem a Roger Bastide (FERNANDES, 2007).
SUMÁRIO 319
progressiva entre “negros” e brancos”. Isso nos ensina, pois,
algo muito importante. O dilema racial brasileiro constitui
um fenômeno social de natureza sociopática e só poderá
ser corrigido por meio de processos que removam a obs-
trução introduzida na ordem social competitiva pela desi-
gualdade racial (FERNANDES, 2021, p. 826).
105 Existe uma leitura muito recorrente na academia e em determinados setores do movimento negro
que sugere que, na obra publicada em 1965, Florestan teria atestado que a eliminação do racismo
se daria com o avanço e o desenvolvimento espontâneo da sociedade de classes. Concordamos
com os argumentos de Brasil Jr. e Medeiros da Silva (2021), e consideramos equivocada esse tipo
de leitura, principalmente se levarmos em consideração o conjunto da obra de Florestan. Como
demonstra nossos autores, ao que tudo indica, sobretudo no campo de pesquisas sobre relações
raciais no Brasil, é a leitura de Carlos Hasenbalg, em sua importante obra Discriminação e de-
sigualdades raciais no Brasil (1979), que vem modelando grande parte da recepção crítica de A
integração do negro na sociedade de classes.
SUMÁRIO 320
no potencial de uma efetiva democratização da sociedade brasileira,
feita de baixo para cima, através do protagonismo negro” (BRASIL JR;
MEDEIROS DA SILVA, 2021, p. 10).
SUMÁRIO 321
intrínseca e indissociável da realização do capitalismo na perife-
ria, a noção de “dilema racial” assume novas dimensões e sentido
qualitativamente novos (COSTA; ALVES; PORTELA JR; SOARES;
SILVA; MUTZENBERG, 2021).
SUMÁRIO 322
Nesse sentido, para Florestan Fernandes, a permanência do
colonialismo e das relações coloniais e racistas atuantes na sociedade
de classes não são meras “sobrevivências” do passado ou “anomalias”,
mas sim elementos estruturantes que se atualizam e se combinam
constantemente para serem funcionais ao capitalismo dependente.
SUMÁRIO 323
Em termos metodológicos, Florestan entende a convergên-
cia entre raça e classe como crucial para uma tomada de posição
revolucionária e enriquecedora de uma dialética marxista:
[...] existem duas polaridades que não se contrapõem
mas se interpenetram como elementos explosivos – a
classe e a raça. Se a classe tem de ser forçosamente o
componente hegemônico, nem por isso a raça atua como
um dinamismo secundário. A lógica política que resulta
de tal solo histórico é complexa. A fórmula “proletários
de todo o mundo, uni-vos” não exclui ninguém, nem em
termos de nacionalidades nem em termos de etnias ou
de raça [...] Classe e raça se fortalecem recipocramente
e combinam forças centrífugas à ordem existente [...]
(FERNANDES, 2017, p. 84-85).
SUMÁRIO 324
Nesse sentido, Fernandes defende que a interação de raça e classe
existe objetivamente e fornece uma via de transformação social
engendrando uma “sociedade libertária e igualitária sem raça e
sem classe, sem dominação de raça e sem dominação de classe”
(FERNANDES, 2017, 27).
SUMÁRIO 325
nivelem e o talento deixe de ser recrutado em termos não igualitá-
rios, em termos de concentração racial de renda, cultura e de poder”
(FERNANDES, 2017, p. 115). Para isso, é necessária uma estratégia
de luta política corajosa, “pela qual a fusão de raça e classe regule a
eclosão do Povo na história” (FERNANDES, 2017, p.36).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O nosso passado colonial deita raízes profundas na formação
social brasileira. Ele faz parte da configuração do nosso capitalismo
dependente e alimenta o racismo como uma categoria estruturante
de nossa sociedade. Nesse sentido, a questão do racismo não se
trata de uma mera herança da escravidão, mas de uma situação atual
que estrutura e dinamiza as relações sociais capitalistas no Brasil.
Essa é uma conclusão teórico-política que podemos elaborar a partir
do conjunto da obra de Florestan Fernandes sobre as relações raciais
no Brasil e suas profundas conexões com o capitalismo dependente.
SUMÁRIO 326
REFERÊNCIAS
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FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
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Editora Contracorrente, 2021.
MARTINS, José de Souza. Prefácio in: A revolução Burguesa no Brasil: ensaio de
interpretação sociológica/ Florestan Fernandes – 5.ed. – São Paulo: Globo, 2006.
SUMÁRIO 327
13
Marcelo Sevaybricker Moreira
UM ESBOÇO
DE INTERPRETAÇÃO SOBRE
O PENSAMENTO SOCIAL
DE CHICO DE OLIVEIRA:
DO RADICALISMO DE CLASSE MÉDIA
AO MARXISMO
DOI: 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-177-2.13
INTRODUÇÃO
Apresenta-se no corpo deste escrito um esboço de inter-
pretação do pensamento social do intelectual recifense Francisco
Maria Cavalcanti de Oliveira (1933-2019), que esteve envolvido
com importantes iniciativas institucionais na história brasileira,
tanto no âmbito da produção científica, quanto da política, tais
como: o Banco do Nordeste, a Sudene (Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste), a Cepal (Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe), o Cebrap (Centro Brasileiro
de Análise e Planejamento), o Cenedic (Centro de Estudos dos
Direitos da Cidadania - da USP - Universidade de São Paulo) e o
PT (Partido dos Trabalhadores).
SUMÁRIO 329
estilística e provocativamente, anunciada, do que propriamente
comprovada) e a ausência de referências bibliográficas e de cita-
ções em seus textos, parece apenas reforçar esse tipo de esco-
lha. Sobre isso, vale a pena transcrever a passagem certeira de
Mendes (2015, p. 2):
Escritos quase sempre na forma de ensaio, os textos do
sociólogo refletem essa postura e transformam em um
grande desafio a análise a que me propus neste trabalho.
Só tomei consciência dessa dificuldade com a pesquisa
já em curso, quando me encarreguei da leitura de docu-
mentos muitas vezes curtos, mas repletos de ironia e con-
teúdo. No espaço de um parágrafo a crítica de Francisco
de Oliveira pode demolir os argumentos básicos de um
pensamento complexo como o da escola da CEPAL, o
que me obrigava a repetir a leitura de inúmeras passagens
até que seu raciocínio fosse apreendido. E não adiantava
buscar amparo em referências bibliográficas ou longas
citações. Elas são, em geral, escassas, o que transmite
a impressão de que os textos do sociólogo prestam-se
mais comumente à crítica demolidora de categorias do
que à construção de argumentos ou conceitos definitivos
a respeito de um determinado objeto. Percebi que muitas
de suas conclusões não almejam o estatuto de verdade,
mas apenas alimentar debates futuros. Distanciam-se,
assim, de algumas regras do mundo acadêmico, com
o qual Francisco de Oliveira se relacionou sempre
de forma conflituosa.
SUMÁRIO 330
Cumpre também considerar a relevância desta pesquisa,
dada a carência de estudos mais sistemáticos sobre a obra desse
autor107. Os poucos trabalhos já existentes a seu respeito têm mais
o intento de render uma homenagem ao autor, ou, como dito, bus-
cam mais avaliar a sua trajetória intelectual e institucional (ou ainda,
uma mistura dessas duas abordagens), do que propriamente a sua
relação com as tradições da teoria política e do pensamento social
brasileiro - dimensão privilegiada neste estudo.
107 Além dos já aqui mencionados, cumpre conferir: Rizek e Romão, 2006; Montero e Moura, 2009;
Bello, Rizek, Barros e Silva, 2022. Os trabalhos de Perruso (2013) e Mendes (2015) são, ao contrário
dos anteriores, os que mais procuram, de fato, examinar sistematicamente a trajetória e o pensa-
mento desse autor - contribuições importantes do qual este estudo parte.
SUMÁRIO 331
por um crescente alinhamento desse autor à tradição marxista. São,
grosso modo, os anos de participação de Oliveira no Cebrap e de
redação do conhecido "A economia brasileira: crítica à razão dua-
lista", publicado como artigo em 1972, e, em 1981, como livro; escrito
esse que é uma espécie de "acerto de contas" do próprio autor em
relação aos projetos desenvolvimentistas defendidos por ele ao longo
da República de 1945, bem como uma resposta a certas interpreta-
ções publicadas a essa época, como Autoritarismo e democratização,
de Fernando Henrique Cardoso. Essas polêmicas de Oliveira com o
nacional-desenvolvimentismo reaparecem em uma obra imediata-
mente posterior, de 1977, Elegia para uma re(li)gião, no qual aponta as
limitações do desenvolvimento produzido pela Sudene no Nordeste
- ainda que reconheça a industrialização decorrente dessa iniciativa
furtadiana, da qual ele próprio, como já dito, fez parte. Essa segunda
fase é, ao que parece, marcada pela aposta na formação de uma
social-democracia no Brasil, marcada pela expansão dos direitos
à cidadania, acompanhando, em certa medida, certas expectativas
difusas na sociedade nacional em relação ao processo de redemo-
cratização do país na última quadra do século passado.
SUMÁRIO 332
Brasileiro (Brandão, 2010, p. 38), mas um marxismo mais “acadêmico”,
ainda que isso não signifique estar alheado das lutas políticas de seu
tempo. Como dito, o marco histórico dessa "guinada à esquerda" se
dá com a Crítica à razão dualista, no contexto de derrota dos seto-
res progressistas frente ao golpe de 64 - caracterizado por Oliveira
como uma contrarrevolução na história nacional. Pode-se dizer que
tal guinada se intensifica, quando no início do século XXI, Chico de
Oliveira polemiza com os governos petistas, caracterizados por ele
como uma forma de regressão política.
SUMÁRIO 333
Talvez possa-se dizer que acompanhar o pensamento e a
trajetória de Chico de Oliveira - e as rupturas e permanências que a
caracterizam - nos permita compreender melhor tanto a ascensão e
a queda do processo de construção de um Brasil mais justo e livre
- dos projetos de desenvolvimento nacional autônomo, dos anos 50
e 60, ao totalitarismo neoliberal, dos anos 2000 - quanto também as
possibilidades e os limites da atuação de um pensador da periferia,
comprometido com a emancipação social e com o espírito crítico.
SUMÁRIO 334
pode-se ler o seguinte depoimento de Oliveira sobre os autores que
estudou na juventude:
Eu vim a estudar, conhecer Maynard Keynes, o maior
economista do século XX, precisamente no curso do
Banco do Nordeste, não na faculdade. A faculdade nem
sabia nem quem era Keynes. Marx, nem de longe, embora
a cidade [Recife] fosse uma cidade de esquerda, com um
partido comunista muito forte e alguns professores com
simpatia pela esquerda. Não davam Marx, não, isso, era
impensável (MONTERO; MOURA, 2009, p. 147).
SUMÁRIO 335
dando consistência analítica e garantindo unidade mínima ao pen-
samento econômico de parcela significativa dos técnicos gover-
namentais engajados no projeto de industrialização brasileira. Seu
fôlego inesgotável e sua admirável capacidade de combinar criação
intelectual e esforço executivo, assim como sua habilidade e senso
de oportunidade para abrir espaço às tarefas desenvolvimentistas
que propagava, explicam a enorme liderança que exerceu entre os
economistas da época. Tornou-se, indiscutivelmente, uma espécie
de símbolo da esperança desenvolvimentista brasileira dos anos 50
(Bielschowsky, 1996, p. 132). Chico de Oliveira, jovem cientista social e
também nordestino, parece ter encontrado na parceria com Furtado
uma possibilidade de, através do próprio aparato estatal, contribuir
para promover um conjunto de reformas, cientificamente informa-
das, a fim de superar o subdesenvolvimento nacional.
SUMÁRIO 336
isso observando que ele pensa os problemas na escala
da nação, como um todo, preconizando soluções para a
nação, como um todo. Deste modo, passa por cima do
antagonismo entre as classes; ou por outra, não localiza
devidamente os interesses próprios das classes subal-
ternas, e assim não vê a realidade à luz da tensão entre
essas classes e as dominantes. O resultado é que tende
com freqüência (sic) à harmonização e à conciliação, não
às soluções revolucionárias (CANDIDO, 1990, p. 4-5).
SUMÁRIO 337
O radicalismo seria um corretivo da tendência predomi-
nante nessas sociedades, que consiste em canalizar as
reivindicações e as reformas, deformando-as por meio de
soluções do tipo populista, isto é, as que manipulam o
dinamismo popular a fim de contrariar os interesses do
povo e manter o máximo possível de privilégios e van-
tagens das camadas dominantes (CANDIDO, 1990, p. 5).
SUMÁRIO 338
explicação para o atraso econômico, social e político de alguns paí-
ses e muito menos como solução para a superação desse atraso.
Destarte, o desenvolvimentismo apresenta-se como teoria alterna-
tiva ao cânone na economia clássica, focando nos países que, por
razões históricas, permaneceram à margem do capitalismo em uma
condição de subalternidade, ainda que não mais colonial.
SUMÁRIO 339
como economia política. Mais do que meramente uma mudança de
forma, os seus textos posteriores evidenciam uma guinada do autor
em relação aos próprios pressupostos da tradição na qual se formou,
isto é, o nacional-desenvolvimentismo e na obra furtadiana. Oliveira
afastar-se-á, a partir de 1964, cada vez mais desse intelectual-téc-
nico, perfil que o caracteriza até esse momento, em direção a um
intelectual-crítico. Como ele próprio depõe:
É paradoxal: 1964 me salvou de ser um burocrata de êxito.
Quer dizer, o que foi ruim para o país, para mim foi bom.
Quer dizer, foi bom vendo em perspectiva, jamais ia adivi-
nhar isso, porque eu estava em carreira ascendente, e isso
felizmente não aconteceu. Mas o impacto foi destrutivo.
Calou fundo no Nordeste, o que até hoje é pouco explo-
rado. Calou fundo ao ponto de que Celso [Furtado] tor-
nou-se um dom Sebastião. Foi uma frustração enorme e,
eu diria, irrecuperável (MONTERO; MOURA, 2009, p. 162).
SUMÁRIO 340
relação a ele. Mas não só. Contra a tese esposada por seu colega
de Cebrap, Fernando Henrique Cardoso, Oliveira argumenta que
a expansão do capitalismo no Brasil, nos anos 60, se deu por uma
expansão das nossas próprias contradições sociais, mas sem uma
revolução burguesa. O autor evidencia que os setores "atrasados" da
economia nacional (a agricultura, por exemplo) foram e ainda eram
funcionais e fundamentais para a viabilização dos setores "avan-
çados", que dos primeiros dependem, por exemplo, para fornecer
mão-de-obra a um custo ínfimo e rebaixar, com seu enorme exército
de reserva, o custo do trabalho. Sua tese nega o modo tradicional à
época de se conceber o problema do capitalismo nacional, tanto em
sua versão cepalina, isebiana, comunista e mesmo cebrapiana, que
operam - a despeito de suas diferenças - segundo a mesma "razão
dualista". Trata-se, pois, de um escrito não apenas polêmico, como
altamente inovador, como a seguinte passagem revela:
O esforço reinterpretativo que se tenta neste trabalho
suporta-se teórica e metodologicamente em terreno
completamente oposto ao do dual-estrutualismo: não se
trata, em absoluto, de negar o imenso aporte de conhe-
cimentos bebido diretamente ou inspirado no ―modelo
CEPAL, mas exatamente de reconhecer nele o único
interlocutor válido, que ao longo dos últimos decênios
contribuiu para o debate e a criação intelectual sobre a
economia e a sociedade brasileira e a latino-americana.
Mesmo porque a oposição ao ―modelo CEPAL, durante
o período assinalado, não se fez nem se deu em nome
de uma postura teórica mais adequada: os conhecidos
opositores da CEPAL no Brasil e na América Latina
tinham, quase sempre, a mesma filiação teórica margi-
nalista, neoclássica e keynesiana, desvestidos apenas
da paixão reformista e comprometidos com o status
quo econômico, político e social da miséria e do atraso
seculares latino-americanos. Como pobres papagaios,
limitaram-se durante décadas a repetir os esquemas
aprendidos nas universidades anglo-saxônicas sem
nenhuma perspectiva crítica, sendo rigorosamente nulos
seus aportes à teoria da sociedade latino-americana.
SUMÁRIO 341
Assim, ao tentar-se uma ―crítica à razão dualista, reco-
nhece-se a impossibilidade de uma crítica semelhante
aos ―sem razão (OLIVEIRA, 2003a, p. 32).
SUMÁRIO 342
isto é, de proprietários. O que poderá resultar numa arma-
dura institucional que estabeleça regras democráticas na
competição pelo fundo público, elo essencial tanto para
o financiamento da reprodução do capital quanto para o
financiamento do social. Nisto consistirá a instituição de
um pacto de "incertezas previsíveis", mais além do Estado
do Mal-Estar brasileiro, abrindo o passo para a supera-
ção mesma do Estado do Bem-Estar, que transformou o
acesso ao fundo público em campo de luta corporativista
(OLIVEIRA, 1985, p. 7).
SUMÁRIO 343
social no Brasil da Nova República. Sob esse ponto, Chico de Oliveira
parece se aproximar do tipo ideal de intelectual prevalecente nos
anos 1950 e 60 e representado pelos membros do Iseb (o Instituto
Superior de Estudos Brasileiros). Sobre isso, Angélica Lovatto (2021)
comenta que o golpe de 1964 operou uma ruptura significativa na
cultura brasileira, na medida em que a figura do intelectual público
foi, a partir daí, substituída pelo intelectual que tem seu trabalho
pautado por critérios mais acadêmicos. Obviamente, trata-se da
construção de dois "tipos ideais" de trabalho intelectual, por assim
dizer, que exageram os traços mais ou menos presentes em diferen-
tes gerações de pensadores: o primeiro tipo de intelectual, marcado
pela sua vocação pública, e o segundo, caracterizado por certo insu-
lamento do intelectual nas universidades, mais preocupado com os
indicadores de produtividade e com uma produção discursiva mais
voltada para um público mais restrito. Assim, apesar de já estar vin-
culado a uma instituição de pesquisa arquetípica das novas ciências
sociais no país, o Cebrap, e que, inclusive, antagonizava com a tradi-
ção nacional-desenvolvimentista do passado (Sorj, 2001) esse autor
parece, todavia, resistir, pela forma como pensa e escreve e pela sua
deliberada vontade de romper com os limites departamentais, à con-
versão a esse novo padrão de trabalho intelectual.
SUMÁRIO 344
Conciliando a princípio aquilo que deveria ser inconciliável
– uma economia industrializada, mas em condição de subordinação
financeira e de forte urbanização e, ao mesmo tempo, domínio polí-
tico do agronegócio – Chico de Oliveira sustenta que o ornitorrinco
brasileiro é um ser híbrido (um mamífero ovíparo, com bico de pato,
que dá à luz a filhotes que mamam), e que desafia, portanto, a ima-
ginação sociológica. Trocando em miúdos, sua tese é que o país se
modernizou ao longo do século XX, mas de um modo “truncado”, isto
é, sem romper com padrões de sociabilidade e de cultura próprias
ao nosso passado colonial e escravista, o que explicaria a coexis-
tência de traços oligárquicos e autoritários e de aspectos avançados
da sociedade nacional. Mais do que isso, e reiterando uma tese sua
formulada no clássico Crítica à razão dualista, os elementos de atraso
são aquilo que, paradoxalmente, viabilizam a modernização do país,
de modo que nosso “subdesenvolvimento” não é uma etapa anterior
do desenvolvimento, nem tampouco um obstáculo ou elemento des-
conexo à ordem capitalista global, mas deve ser compreendido como
uma formação social peculiar aos países perifericamente integrados
ao processo de acumulação de capital. O "atraso" (evidenciado, por
exemplo, por um enorme contingente de pessoas terceirizadas e pre-
carizadas) é um meio para a "modernidade".
SUMÁRIO 345
trabalhadores, nem propriamente burgueses, mas uma elite sindi-
cal endinheirada, dado que administradores de enormes somas de
capital controlado pelo Estado brasileiro (Oliveira, 2003a: 147-148).
Essa nova fração de classe, simultaneamente trabalhadora e rentista,
exemplifica o estranho animal no qual o Brasil se converteu.
SUMÁRIO 346
O ex-presidente, elevado à época à condição de “mito polí-
tico” teria também despolitizado a questão da pobreza e das desi-
gualdades, transformando-as, doravante, em temas de administração
pública. "Ele não tem inimigos de classe", ironiza Chico de Oliveira
(2003a: 144). Mesmo depois de viver décadas de crescimento eco-
nômico, o Brasil continua a ser um dos países mais atrasados do
ponto de vista da distribuição da riqueza. A “solução” dada por Lula,
como por meio do Bolsa Família, não apenas não resolve o problema,
mas, ao contrário, o agrava, pois funciona como o “mais poderoso
narcótico social” (Oliveira, 2003a: 144). Assim, afirma este sociólogo,
estão errados os intelectuais que compreendem essa política social
como um mecanismo de inclusão, pois, na realidade, ela representa
paradigmaticamente o novo modo de dominação, consolidando uma
exploração inédita no país com o consentimento dos dominados -
"anestesiados" pela recém-conquistada capacidade de consumo.
SUMÁRIO 347
O lulismo, segundo essa chave de interpretação, seria, na base, uma
nova forma de pacificação social dos conflitos entre capital e trabalho
e, no topo, a integração das cúpulas sindicais aos órgãos do Estado.
Uma forma de dominação social nova no país – a “hegemonia às
avessas” – que pode ser compreendida como um arranjo político
que viabilizou a superexploração do capital na periferia do mundo, o
que só seria possível sob a direção de um líder carismático.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dados os limites deste escrito e da pesquisa que o embasou,
o que se pretendeu aqui foi simplesmente apresentar um esboço
de interpretação, detectando as linhas-mestras do desenvolvimento
do pensamento social de Chico de Oliveira. Para tal, baseamos esta
investigação em trabalhos de outros estudiosos do pensamento
brasileiro, além de alguns textos de autoria do próprio Oliveira.
Buscou-se evidenciar que esse desenvolvimento, ao longo de seis
décadas de trajetória intelectual, aproximadamente, caracteriza-se
pela substituição do radicalismo de classe média, embasado nos
SUMÁRIO 348
preceitos do nacionalismo desenvolvimentismo (primeira fase), por
um marxismo crítico, profundamente atento às condições de forma-
ção de uma sociedade burguesa na periferia capitalista e que aposta
(na segunda fase) no fortalecimento do poder público a fim de cos-
turar um novo pacto classista, social-democrata, para promover os
direitos da cidadania moderna, mas que acaba se desiludindo com
essa perspectiva (terceira fase), na medida em que as condições de
sua realização foram obstadas pela difusão do neoliberalismo, inclu-
sive incorporadas pelos setores de transformação social.
SUMÁRIO 349
Chico de Oliveira liga-se mais organicamente ao marxismo, o que
não significa dizer que o fez dogmática ou mecanicamente, muito ao
contrário. Marx, Gramsci, Benjamin, Polanyi são alguns dos autores
dessa tradição mobilizados por ele tanto para - naquilo que deno-
minamos aqui de segunda fase - defender a possibilidade de cons-
trução de uma social-democracia no país, quanto - na terceira fase -
para constatar a conversão dessa esperança em desilusão. Sob esse
aspecto, Chico de Oliveira se filia à longa linhagem de pensadores
marxistas do país - evocando nomes como Caio Prado Jr., Florestan
Fernandes, Luiz Werneck Vianna, dentre tantos outros - que - bus-
cando compreender o "lugar" do Brasil no mundo capitalista - tive-
ram o desafio de pensar (e tentar transformar) a política nacional
com as peculiaridades que lhe são próprias: de um país periférico,
ex-colonial, baseado por séculos na escravização negra etc.
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OLIVEIRA, Francisco. Nova classe social comanda governo Lula, diz sociólogo. Entrevista
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https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2209200313.htm. Acesso em: 26/10/18.
OLIVEIRA, Francisco. Hegemonia às avessas. In: BRAGA, Ruy, OLIVEIRA, Francisco, RIZEK,
Cibele (orgs.) Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão
financeira. São Paulo: Boitempo, 2010a.
OLIVEIRA, Francisco. O avesso do avesso. In: BRAGA, Ruy, OLIVEIRA, Francisco, RIZEK,
Cibele (orgs.) Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão
financeira. São Paulo: Boitempo, 2010b.
PERRUSO, Marco Antonio. Uma trajetória dissonante: Francisco de Oliveira, a SUDENE e o
CEBRAP. Cadernos CRH, v. 26, 67, 2013.
SORJ, Bernardo. A construção intelectual do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001.
SUMÁRIO 351
SOBRE OS ORGANIZADORES
E AS ORGANIZADORAS
Ana Rodrigues Cavalcanti Alves
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Professora Adjunta do Departamento
de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde
integra o PERIFÉRICAS – Núcleo de Estudos em Teorias Sociais, Modernidades e Colonialidades.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6506286038414113
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9121-882X
E-mail: [email protected]
Christiane Jalles
Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ, é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e membro do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCSO-UFJF). É autora do livro O bom combate: Gustavo Corção na
imprensa brasileira (1953-1976), publicado em 2015.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5761320624136237
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8955-5576
E-mail: [email protected]
Enio Passiani
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor do Departamento de Sociologia e dos
Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Segurança Cidadã da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS); editor adjunto do periódico Sociologias e líder do Grupo de Estudos em Cultura, Comunicação e Arte (GECCA-
Sul), registrado no CNPq.
Lattes: https://lattes.cnpq.br/3396333225250833
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9937-4413
E-mail: [email protected]
SUMÁRIO 352
Helga Gahyva
Doutora em Sociologia pelo IUPERJ, é professora associada do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas (IFCS) e docente pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
(PPGSA), ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autora de O inimigo do século: um estudo sobre
Arthur de Gobineau (1816-1882), publicado em 2012.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1502805689051677
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4581-7212
E-mail: [email protected]
Lucas Trindade
Professor Adjunto do Instituto Humanitas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN. Doutor em Sociologia pela UnB. Lidera o Grupo de Pesquisa Social (GPS)
da UFRN e integra os seguintes Grupos de Pesquisa: Periféricas - Núcleo de Estudos em Teorias Sociais, Modernidades
e Colonialidades (UFBA); Laboratório de Pesquisa e Estudos em Pensamento Social no Brasil (LAPES-Br).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0314360149038167
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3390-2046
E-mail: [email protected]
SUMÁRIO 353
Maro Lara Martins
Possui graduação em História pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestrado em Sociologia pelo Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e doutorado em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-UERJ). É Professor Adjunto do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e coordenador do Núcleo de Teoria Social e Interpretação
do Brasil (Netsib-UFES).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6769360859491465
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5898-6632
E-mail: [email protected]
Sergio B. F. Tavolaro
Professor Associado do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade
de Brasília. É Doutor em Sociologia pela The New School for Social Research e Bolsista Pesquisador do CNPq.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5442207538362236
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2755-3361
E-mail: [email protected]
SUMÁRIO 354
SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS
Alan Caldas
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) (2007), Mestre em Ciências Sociais
pela mesma instituição (2012) e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) (2021). Foi
professor de sociologia na Educação Básica (2011-2019), professor de sociologia do Departamento de Educação da
Universidade Estadual Paulista (2022), praticante de capoeira angola por mais de 20 anos, interessado em ciências
e tecnologias abertas. É membro do grupo Ideias e Intelectuais para o desenvolvimento e a democracia? (CNPq).
Desenvolve pesquisas no campo do pensamento político e social brasileiro e da sociologia da cultura (instituições,
intelectuais, teorias, culturas negras, relações raciais).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7011441525925785
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7049-2106
E-mail: [email protected]
SUMÁRIO 355
Bárbara Vital de Matos Oliveira
Possui Mestrado (2015) e Doutorado (2022) pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF), tendo defendido a tese intitulada "Entre lembranças, esquecimentos e silenciamentos:
trajetória e legado de Itamar Franco", sob orientação da Professora Doutora Christiane Jalles de Paula.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9320102600097870.
E-mail: [email protected]
SUMÁRIO 356
Lucas Trindade
Professor Adjunto do Instituto Humanitas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN. Doutor em Sociologia pela UnB. Lidera o Grupo de Pesquisa Social (GPS)
da UFRN e integra os seguintes Grupos de Pesquisa: Periféricas - Núcleo de Estudos em Teorias Sociais, Modernidades
e Colonialidades (UFBA); Laboratório de Pesquisa e Estudos em Pensamento Social no Brasil (LAPES-Br).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0314360149038167
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3390-2046
E-mail: [email protected]
SUMÁRIO 357
Mateus Lôbo
Mestre em Ciência Política e doutorando no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1385245458115011
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4139-8046
E-mail: [email protected]
SUMÁRIO 358
Roberto Dutra
Doutor em sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin, professor associado da Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9879768833653743
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7854-1139
E-mail: [email protected]
SUMÁRIO 359
ÍNDICE REMISSIVO
A D
Academia 58, 75, 147 democracia 13, 15, 57, 70, 100, 101, 119, 122, 177, 178, 184, 209,
Amefricanidade 16, 96, 107, 108 282, 284, 287, 300, 301, 306, 313, 314, 316, 317, 318,
319, 320, 323, 325, 328, 329, 330, 332, 333, 345,
Anpocs 11, 12, 124, 207
353, 354
antropologia 17, 64, 93, 129, 136, 138, 140, 152, 153, 239, 241,
diálogo 14, 20, 60, 103, 118, 119, 185, 186, 195, 199, 219, 257, 265,
246, 335
318, 328, 330, 333
autonomia 16, 18, 46, 173, 217, 228, 266, 311, 312, 313, 316,
Discoteca Pública 49, 59
327, 345
discriminação 348
C
diversidade 13, 112, 148, 281, 325
capitalismo 18, 21, 22, 98, 106, 112, 113, 157, 158, 159, 161, 162, 164,
165, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 175, 176, 227, E
260, 264, 265, 268, 269, 270, 278, 279, 280, 281, educação 53, 77, 91, 142
282, 283, 284, 285, 286, 288, 289, 295, 301, 305, ELSP 17, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 138, 139, 151, 257
310, 311, 312, 313, 314, 315, 316, 317, 319, 320, 322,
Escola Livre de Sociologia e Política 17, 102, 130, 266
323, 324, 325, 326, 327, 328, 329, 330, 331, 338,
339, 340, 341, 342, 343, 344, 345, 346, 347, 349, escravidão 38, 109, 117, 119, 301, 353
350, 351, 353, 354 Estabelecidos 13, 14
ciências sociais 43, 63, 91, 92, 124, 133, 134, 136, 152, 206, 207, estética 47, 49, 57, 250, 254
208, 209, 210, 238, 239, 260, 296, 334 etnia 17, 97, 104, 106, 201, 215
classe 17, 18, 22, 49, 67, 74, 75, 80, 88, 89, 97, 100, 104, 106, 122,
158, 159, 160, 161, 163, 173, 174, 201, 215, 267, 272, F
274, 279, 285, 286, 309, 314, 317, 320, 322, 323, folclore 47, 49, 59, 60, 63
330, 331, 333, 339, 345, 347, 350, 351, 352, 353, G
354, 358
gênero 13, 16, 17, 46, 47, 48, 49, 54, 64, 75, 97, 100, 101, 104, 106,
classe social 161, 330, 331, 333 110, 112, 122, 123, 164, 201, 215
CNPq 14, 264 globalização 172, 174, 303
colonialismo 20, 22, 98, 106, 119, 201, 202, 215, 217, 338, 340,
349, 350, 352 H
contradições 162, 167, 279, 286, 287, 290, 315 hegemonia 51, 81, 159, 163, 173, 174, 210, 256, 327, 334
crítica cultural 49 herança 30, 36, 46, 62, 133, 171, 190, 191, 252, 258, 271, 299, 301,
302, 312, 353
cultura nacional 42
heterodoxia 14
cultura popular 34, 43, 49
SUMÁRIO 360
história 31, 44, 55, 63, 64, 76, 78, 88, 89, 91, 99, 106, 108, 110, 116, modernidade 16, 17, 19, 22, 57, 67, 68, 70, 71, 72, 76, 80, 88, 97,
118, 119, 129, 132, 140, 146, 159, 160, 161, 163, 174, 108, 115, 117, 119, 122, 166, 177, 187, 190, 191, 192, 193,
184, 185, 186, 188, 194, 214, 216, 218, 220, 226, 231, 194, 196, 198, 200, 205, 206, 207, 208, 209, 210,
235, 236, 248, 251, 252, 254, 255, 256, 258, 270, 239, 253, 278, 295, 296, 297, 298, 299, 300, 301,
271, 278, 285, 286, 287, 288, 289, 290, 300, 322, 302, 303, 304, 305, 307, 312, 314, 318, 326, 327,
326, 330, 333, 342, 343, 344, 353, 359 329, 331, 334
história do Brasil 31 Modernismo 28, 42
história intelectual 186, 214, 220, 226, 236 movimento modernista 27, 28, 34, 36, 62
história social 64, 186, 322 N
historiografia 186 nacionalidade 33, 104, 150
I nacionalismo 113, 209, 298, 330
identidade 34, 42, 43, 50, 51, 56, 64, 85, 88, 89, 93, 102, 118, O
124, 167
ortodoxia 14
identidade nacional 43, 51, 56
Outsiders 13
ideologia 91, 92, 265, 291
P
integração 14, 69, 85, 86, 141, 142, 149, 255, 276, 277, 279, 281,
289, 291, 304, 306, 307, 327, 333, 348 patriarcado 106
intelectual 15, 17, 21, 22, 23, 26, 30, 46, 47, 48, 49, 51, 52, 53, 55, patrimônio 63, 231
57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 68, 75, 76, 93, 111, Pensamento Social Brasileiro 11, 12, 13, 14, 15, 264
121, 130, 131, 134, 138, 142, 150, 153, 185, 186, 191, produção do conhecimento 11, 19, 111, 114
198, 209, 214, 215, 216, 219, 220, 226, 227, 229, 233,
234, 235, 236, 256, 264, 266, 267, 270, 273, 274, produção intelectual 46, 47, 61, 186, 198, 276, 303
275, 276, 303, 318, 331, 341, 342, 359 R
intelectualidade 253 raça 17, 22, 30, 32, 37, 38, 41, 43, 97, 104, 106, 110, 112, 113, 122,
interdisciplinaridade 99 138, 202, 215, 222, 261, 309, 339, 350, 351, 352,
interpretações 11, 12, 63, 108, 111, 184, 185, 188, 189, 190, 191, 193, 353, 354
194, 195, 196, 197, 209, 215, 216, 217, 218, 225, 267, reconhecimento 16, 48, 69, 73, 76, 101, 124, 125, 134, 147, 194, 199,
275, 344 204, 218, 226, 235, 271, 352
interseccionalidade 17, 97, 98, 103, 104, 105, 106, 108, 111, 112, redução sociológica 19, 20, 214, 220, 221, 222, 223, 231, 232,
115, 118, 119, 122 233, 234, 235, 238, 240, 259, 261
L regionalismo 43
legitimidade 69, 71, 72, 73, 74, 78, 89 relações sociais 29, 41, 62, 89, 101, 165, 254, 353
literatura 12, 29, 47, 48, 60, 177, 222, 253, 321, 322, 326 releitura 11, 19, 20, 21, 110, 213, 214, 219, 220, 224, 225, 226, 227,
232, 235, 236, 331, 339
M religião 149, 310
marxismo 22, 175, 176, 274, 277, 341, 358 representação 50, 64, 75, 114, 167, 188, 268, 318
memória 15, 46, 47, 63, 71, 86, 92, 329 resistência 17, 97, 107, 108, 109, 113, 144, 169, 219, 228, 281, 299
mestiçagem 39, 41, 56, 138 ressignificação 11, 118
Retrato do Brasil 15, 26, 28, 29, 30, 32, 33, 36, 39, 42, 43, 44
SUMÁRIO 361
S subjetividade 101, 103, 113, 115, 116, 117, 119, 120, 140, 192, 245, 252,
Semana de Arte Moderna 13, 26, 28, 43, 44, 49 253, 254, 255, 257, 259, 352
socialismo 178, 272, 274, 276, 281, 283, 285, 286, 287, 289, T
290, 322 teoria crítica 207, 241, 328
sociedade 18, 19, 22, 26, 31, 32, 35, 38, 40, 42, 43, 46, 47, 67, 68, teoria social 14, 19, 21, 193, 194, 195, 196, 198, 199, 204, 205, 206,
69, 72, 73, 74, 75, 77, 82, 85, 101, 102, 133, 137, 141, 209, 214, 220, 224, 225, 226, 227, 235, 260, 289,
142, 143, 144, 149, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 167, 290, 295, 298, 330
173, 184, 186, 188, 189, 192, 195, 200, 201, 202, 203,
teorização 17, 98, 103, 111, 121, 195, 198, 254, 268, 269, 281
204, 216, 217, 222, 223, 229, 233, 253, 255, 266,
274, 275, 276, 278, 279, 280, 282, 284, 285, 286, tradição 15, 16, 18, 27, 28, 44, 45, 47, 57, 62, 66, 68, 70, 76, 77, 80,
287, 291, 299, 301, 302, 304, 307, 308, 310, 311, 318, 86, 91, 151, 214, 215, 219, 224, 225, 226, 227, 229,
319, 323, 325, 327, 331, 332, 333, 341, 342, 346, 236, 257, 299, 330, 341
347, 348, 350, 352, 353, 354 transformação 28, 48, 49, 98, 108, 144, 149, 161, 162, 163, 164,
sociologia 19, 20, 21, 55, 92, 99, 133, 152, 184, 186, 191, 195, 207, 169, 175, 187, 202, 223, 272, 275, 285, 306, 313, 314,
209, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 224, 317, 319, 325, 327, 341, 342, 343, 344, 350, 352
225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, transgressão 57
235, 236, 237, 238, 239, 240, 251, 252, 256, 258,
261, 264, 265, 266, 267, 268, 269, 270, 273, 278, U
290, 297, 299, 300, 301, 302, 304, 305, 313, 324, UFPE 11, 333
330, 332, 334, 359 UFRJ 11, 90, 152, 177, 240, 261
subalternidade 19, 103, 112, 115, 117, 120, 188, 196 USP 49, 54, 63, 64, 90, 91, 266, 267, 275, 359
SUMÁRIO 362