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Tese Swing Da Cor BrunoMorais Completa Final

Esta tese estuda a produção da Black Music Brasileira lançada entre 1960 e 1988, analisando a circulação de ideias políticas antirracistas nas canções. A pesquisa identificou a afirmação da cultura negra e a denúncia do preconceito racial no Brasil como temas frequentes em uma produção musical brasileira que hibridava ou incorporava sonoridades da Black Music estadunidense. Junto a isso, aponta a ressignificação do conceito de racismo nos anos 1980.

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Bruno
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Tese Swing Da Cor BrunoMorais Completa Final

Esta tese estuda a produção da Black Music Brasileira lançada entre 1960 e 1988, analisando a circulação de ideias políticas antirracistas nas canções. A pesquisa identificou a afirmação da cultura negra e a denúncia do preconceito racial no Brasil como temas frequentes em uma produção musical brasileira que hibridava ou incorporava sonoridades da Black Music estadunidense. Junto a isso, aponta a ressignificação do conceito de racismo nos anos 1980.

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O swing da cor

A Linguagem Política do Orgulho Negro na Black Music brasileira (1960-88).

Bruno Vinícius Leite de Morais.

Belo Horizonte, 2022.


Bruno Vinícius Leite de Morais

O swing da cor

A Linguagem Política do Orgulho Negro na Black Music brasileira (1960-88).

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-graduação em
História da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais como
requisito parcial para a obtenção de
título de Doutor em História. Área de
concentração: História e Culturas
Políticas.

Orientadora: Profa. Dra. Miriam


Hermeto

Belo Horizonte
2022.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

FOLHA DE APROVAÇÃO

"O swing da cor. A Linguagem Política do Orgulho Negro na Black Music brasileira (1960-88)"

Bruno Vinícius Leite de Morais

Tese aprovada pela banca examinadora constituída pelos Professores:

Profa. Dra. Miriam Hermeto de Sa Motta - Orientadora


UFMG

Prof. Dr. Rodrigo Patto Sá Motta


UFMG

Profa. Dra. Adriane Aparecida Vidal Costa


UFMG

Prof. Dr. Marcos Francisco Napolitano


USP

Profa. Dra. Nilma Lino Gomes


UFMG

Belo Horizonte, 23 de fevereiro de 2022.

Documento assinado eletronicamente por Rodrigo Patto Sa Motta, Membro, em 15/03/2022, às


11:02, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 5º do Decreto nº 10.543, de
13 de novembro de 2020.

Documento assinado eletronicamente por Marcos Francisco Napolitano de Eugenio, Usuário


Externo, em 15/03/2022, às 17:44, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art.
5º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.

Documento assinado eletronicamente por Miriam Hermeto de Sa Motta, Professora do


Magistério Superior, em 17/03/2022, às 10:50, conforme horário oficial de Brasília, com
fundamento no art. 5º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.

Folha de Aprovação FAFICH-SECCPGHIS 1189845 SEI 23072.201761/2022-52 / pg. 1


Documento assinado eletronicamente por Adriane Aparecida Vidal Costa, Professora do
Magistério Superior, em 01/04/2022, às 12:03, conforme horário oficial de Brasília, com
fundamento no art. 5º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.

Documento assinado eletronicamente por Nilma Lino Gomes, Professora Magistério Superior -
Voluntária, em 08/04/2022, às 05:22, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no
art. 5º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.

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1189845 e o código CRC 55D4BCC2.

Referência: Processo nº 23072.201761/2022-52 SEI nº 1189845

Folha de Aprovação FAFICH-SECCPGHIS 1189845 SEI 23072.201761/2022-52 / pg. 2


Obrigado, do fundo do nosso quintal.

Nos encontraremos outra vez


com certeza nada apagará
Esse brilho de vocês
Um carinho dedicado a nós
Derramamos pela nossa voz
Cantando a alegria de não estarmos sós.
(“Do fundo do nosso quintal”.
Grupo Fundo de Quintal. Jorge Aragão/Alberto Souza)

A escrita dos agradecimentos revela, a quem leia o trabalho, um momento de maior


intimidade do autor destas páginas. Afinal, em detrimento a uma burocrática lista nominal,
aqui se registra encontros, e embora a listagem não permita dimensionar o afeto e calor
humano tão importantes para suportar as agruras do dia-a-dia, ao menos a lembrança os
indicia. Por tais razões, os primeiros nomes a serem agradecidos são daquelas pessoas com
as quais compartilho a mais cotidiana intimidade, aquela de toda uma vida de convívio
doméstico: o meu círculo estreito familiar. Agradeço à minha mãe, Miriam, e minhas irmãs
Tatiane e Ana Carolina, às quais devo minha formação e muitas das condições básicas que
me permitiram chegar até aqui. Também aos meus queridos sobrinhos, Natalie e Emanuel.
A esses cinco, todo o meu amor.

Também se enquadra em uma estreita intimidade as amizades de toda a vida, em


parte também responsáveis por importante parcela da minha formação. São os casos dos
irmãos e antigos amigos Bruno e Hugo Costa, os também irmãos Marcos Vinicius e Fábio
Corrêa, o Marcelo Aléssio, a Alice Ramos, o Cláudio Gomes e o casal Tulaci Bhakti e
Juliana Sampaio. Ainda que o tempo estabeleça algumas distâncias, a importância deles
sempre foi e será sentida. E também de amizades que mesmo à distância se conservaram
próximas (e aqui o agradecimento ficaria implicitamente estendido às redes sociais), como
a sempre amável Allana Mátar, a Carolline Andrade e a Poliana Jardim. E ainda ao Lenon
Luz, a Natália Iglesias, a Isadora Aires e a Camila Bastos, entre outros.

Uma tese, contudo, repercute principalmente os encontros e aprendizados de uma


vida acadêmica e, no caso do autor destas páginas, de quase quinze anos de intensa
convivência universitária na UFMG. Assim, o campus universitário por vezes encontrava
um paralelo com uma extensão do lar, configurando um outro ambiente de convívio e
cotidiana intimidade.

Em minha primeira experiência de pesquisa, uma iniciação científica realizada com


o historiador José Newton Coelho Meneses, aprendi “que a sociabilidade possível para o
conjunto familiar, nas vilas e nos arraiais das Minas Gerais colonial, contava menos com o
espaço público e mais com o espaço doméstico. (…) No quintal e na cozinha, um
prosseguimento do outro, encontrava-se a sede dessa hospitalidade ‘mineira’”. 1 Pois bem,
como bom mineiro, busquei nessa referência aos quintais a metáfora para abordar neste
textinho de agradecimentos o espaço de sociabilidade e hospitalidade que se tornou o meu
convívio universitário – e justifico, assim, o título escolhido para essas páginas, também
extraído de uma clássica canção do Grupo Fundo de Quintal, que evidencia os quintais
como espaços de sociabilidade também para os cariocas. Começo, portanto, por agradecer
ao José Newton por todos os aprendizados que me possibilitou nessa etapa inicial – e
decisiva – da formação profissional.

Entre o corpo docente da FAFICH/UFMG, diversos são os nomes que é necessário


nomear pela importância que tiveram em minha formação e o primeiro que devo ressaltar é
o de Luiz Arnaut. Seja nas várias disciplinas que cursei entre as que ele ofertou, em
conversas de corredor ou virtuais e no Grupo de Estudos História e Linguagem, os
diálogos e referências foram fundamentais para o meu desenvolvimento, assim como um
modelo de profissional e de intelectual. Também foram de importância central em minha
vida pelas aulas, conversas e seus textos Mauro Condé, Priscila Brandão Antunes, Kátia
Baggio, Rodrigo Patto Sá Motta, Adriane Vidal Costa, Heloísa Starling, Douglas Libby,
Douglas Áttila Marcelino, Regina Horta, Vanicléia Santos, Adriana Romeiro, Luiz Carlos
Villalta, Alexandre Marcussi, José Dabdab Trabulsi, Eduardo França Paiva, Antônio
Fernando Mitre, Newton Bignotto e Juarez Guimarães, alguns dos grandes intelectuais e
professores com os quais tive o privilégio de estudar. Agradeço também à Ana Paula
Sampaio e Juliana Filgueiras, com as quais ainda não cheguei a cursar disciplinas, mas que
me auxiliaram nessa trajetória em textos e com competência, carisma e simpatia.

Agradeço ainda a outros profissionais da FAFICH, como o secretário do colegiado


de graduação, Marinho, e o da Pós, Maurício, ambos nomes a quem todos os estudantes do
curso de História devem apresentar muitos débitos. E à Vilma, da Biblioteca da FAFICH,
sempre solícita. Mas também devo agradecimento às várias pessoas que integram ou
integraram as equipes das cantinas e do corpo de profissionais terceirizados que atuam no
xerox e limpeza do prédio (e, para representá-los, cito a Thalita, a Terezinha, a Rita e o Seu
José). O eficiente funcionamento de uma universidade do porte da UFMG muito se deve
ao trabalho diário – e muitas vezes invisibilizado – de todas e todos estes.

1
MENESES, José Newton C. A terra de quem lavra e semeia: alimento e cotidiano em Minas Colonial. In:
RESENDE, Maria Efigênia Lage, VILLALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais – As Minas
Setecentistas. Vol. 1. Belo Horizonte: Autêntica Editora/Companhia do Tempo. 2007, p. 350.
Em todos esses anos de vida universitária tive o privilégio e a oportunidade de
ministrar um conjunto de cursos e disciplinas, e quero agradecer aos amigos e colegas que
participaram dessas iniciativas comigo e me permitiram aprender muito ao compartilharem
sua didática e seus conhecimentos: o grande amigo Pedro Montandón Barbosa (de
particular importância para meus aprendizados quanto à História das Ideias e as
Linguagens Políticas), o Igor Rocha (Nefer), Breno Mendes, Nathalia Tomagnini, Gabriel
Verdin, Cássio Bruno Rocha, Isabela Dornelas, Átila Freitas e a Maria Visconti – esta
última que me confiou não apenas compartilhar da execução de um minicurso, mas
também a parceria para a oferta de uma disciplina em 2016. E, claro, estendo o
agradecimento àqueles e aquelas que confiaram em cursar essas atividades – sejam as
coletivas ou às muitas que ofertei sozinho –, muitos dos quais se tornaram amigos
queridos, como Samuel Antunes, Júlia Teresa Leite, Sara Handeri e Hugo Varejão.

Aliás, falando nos amigos que a vida acadêmica me permitiu adquirir, a lista
felizmente é longa. Além de vários nomes já citados nos parágrafos anteriores, um
agradecimento especial cabe à Marina Helena Carvalho, cujos papos e afeto muito
ajudaram e estão ajudando a levar todos esses dias com mais risadas. Também pelas
mesmas razões agradeço às queridíssimas Hélia Morais, Rute Torres e o Alexandre Bellini
Tasca, amigos de tantas empreitadas. Ainda Melissa Lujambio, David Barbuda, Felipe
Malacco, Thayná Peixoto, Thais Behar, Natália Ribeiro, Érika Cerqueira, Ana Ribeiro,
Carol Dellamore, Gabriel Amato, Warley Alves, Virgilio Coelho, Thiago Prates, Ana
Luisa Murta, Douglas Freitas, Isadora Vivacqua, Ana Clara Ferraz, Fabi Léo, Mateus
Frizzone, João Teófilo, Ana Paula Calegari, Andrezza Velloso, Paula Oliveira, Luiz
Guerra, Paulo Renato, Raquel Prado, as Karinas (Ferreira e Rezende)… Enfim, a lista,
fortuitamente, é longa. E segue com as queridas e importantes figuras de Marina Oliveira,
Rafaela Carvalho, Camilinha Rossi, Adriana Souza (Pekena), Ariel Boaz, Clara Lima,
Amanda Santos, Lívia Teodoro, Roberta Ornelas, Luísa Marques, Andrézão Oliveira,
Bruno Carvalho, Carla Odara, Carol Othero, Thais Galindo, Clycia Gracioso, Davi
Aroeira, Isabela Lemos, Camila Similhana, Gabriel Felipe Bem, Gabriela Galvão, Gabriela
Castro, Gabriela Santana, Larissa Assis, as Bruxas da Modernidade (Gabriela Sarmento e
Gabrielle Noacco), Pedro Sanches, Natália Barud, Luiza Parreira, Rafael Azevedo, Maria
Fernanda Melgaço, Álvaro Lourenço, Victoria Cunha, Nathalia Boaventura, Gislaine e
Gisele Gonçalves, Gabriel Assunção, Thales Barbosa, Eloá Scortegagni, Leticia Reis, a
turma do República (Danilo, Wilkie, Pauliane, Bruno Viveiros [com quem muito aprendi
sobre música]) e Daniela Chain. Muitos nomes, eu sei, mas decerto há esquecimentos.
O projeto que se transformou nesta tese de doutorado não existiria sem o enorme
apoio da Julia Lery, que merece um agradecimento especial. E a tese, nos moldes como
está agora, não existiria sem a contribuição ímpar de minha orientadora, Miriam Hermeto,
uma influência e inspiração enquanto professora, orientadora, pesquisadora e como ser
humano. Tal como ocorreu na minha dissertação, sua influência é sentida em toda a obra
desta tese. E, ainda que as falhas presentes no trabalho sejam de responsabilidade (e
teimosia) minhas, os méritos que houverem são compartilhados com ela e com seu modelo
sensível e amigo de orientação.

Entre as heranças da orientação, está a criação de um grupo que permitiu nos


últimos anos a manutenção ou estreitamento de muitos importantes contatos, além de
enriquecedoras discussões e aprimoramentos da pesquisa. Agradeço aos componentes de
tal grupo: as queridíssimas amigas Ana Ianeles (que, aliás, traduziu o resumo deste texto) e
Nádya L. Fernandes, o grande Allysson Lima, Débora Raiza, Camila Figueiredo, Juliana
Ventura, Gabi Fischer, Marcus Morais, Júlia Amaral, Ana Luiza Hosken e Luidy Siqueira.
Ainda entre os componentes desse grupo, cabe o carinho e agradecimento em especial à
Marina Mesquita Camisasca, que, além de compartilhar ideias, indicações e sua companhia
em diversos momentos – de modo que enriqueceu todo o processo de pesquisa e escrita –,
paciente e generosamente leu e revisou todos os capítulos desta tese.

Prosseguindo entre os responsáveis pela melhora deste trabalho, foram de


importância central as contribuições fornecidas pelas bancas que avaliaram essa pesquisa.
Sendo uma tese que apresenta continuidades com o trabalho de mestrado, as bancas de
avaliações daquela etapa trouxeram contribuições sentidas aqui: os já citados Luiz Arnaut e
Heloísa Starling, e também a Lilia Moritz Schwarcz. Já no doutorado, a qualificação com
Samuel Oliveira Adriane Vidal Costa e Rodrigo Patto Sá Motta permitiu um expressivo
avanço das reflexões sugeridas na pesquisa inicial. Contribuição consolidada na honrosa
banca de defesa do trabalho final, repetindo os nomes de Adriane e Rodrigo, acrescentando
o Marcos Napolitano e a Nilma Lino Gomes – com certeza, um momento emocionante,
com a oportunidade de aprender com as leituras da minha tese por essas quatro referências
(aliás, deixo a sugestão para pesquisadores: se tiverem a oportunidade, chamem a “banca
dos sonhos” para suas defesas. Afinal, uma oportunidade provavelmente única de ver suas
grandes influências lendo e comentando um trabalho seu).

E particularmente nesses tempos nos quais a universidade pública tem sido tão
atacada e seus financiamentos cortados, enfatizo a importância da ação do Estado para a
educação: deixo meus agradecimentos às entidades que me auxiliaram economicamente na
trajetória acadêmica, a FUMP, por toda minha graduação, e a CNPq (agência da qual fui
bolsista tanto no mestrado quanto agora no doutorado). A essas entidades – e aos impostos
pagos por milhões de brasileiros – devo a minha manutenção enquanto estudante e
pesquisador. E, considerando que minha trajetória acadêmica iniciou em 2007, o mestrado
iniciou em 2014 e concluí o doutorado em 2022, posso afirmar que pude testemunhar a
importância das políticas públicas e de um governo federal comprometido com a educação,
como os vividos no Brasil dos governos PT, nas presidências de Luiz Inácio “Lula” da
Silva e Dilma Rousseff; assim como pude testemunhar o prejuízo do sucateamento e cortes
de verbas dos governos federais que se seguiram. Como um estudante que teve toda sua
formação escolar realizada em escolas públicas, municipais, estaduais e federais, ressalto a
importância de um investimento na educação pública de qualidade.

Por fim, repito, tal como fiz nos agradecimentos da dissertação, uma última
referência, que pode soar estranha a quem leia essas páginas, mas que para mim é muito
justa: agradeço às árvores e paisagens dessa cidade, os “jardins urbanos” que encontro ao
sair dos “quintais” da sociabilidade cotidiana. Em inúmeros momentos de minha trajetória,
o encontro de soluções quanto à argumentação ou reflexões para esta pesquisa (e para
outros dilemas da vida) foram encontradas a partir da inspiração advinda da vista delas.

P.S.: Entre a defesa da tese e a entrega desta versão final, ingressei como analista
no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA). Algumas
referências incluídas nas revisões finais desta tese – quanto à canção “A festa de Santo
Reis”, de Tim Maia – são tributárias dos aprendizados adquiridos nesta experiência
profissional. Representando o Instituto, agradeço particularmente às enriquecedoras
conversas e demais contribuições de Débora Raíza (novamente), e também à Ana Paula
Belone, Ana Paula Trindade, Nicole Batista, Letícia Reis (novamente também), Steffane
Santos, Helen Crislande, entre outros.
“O único lugar onde os negros não se rebelaram
é nos livros de historiadores capitalistas.”
(JAMES, Cyril Lionel Robert. A revolução e o negro.
1939.)

“O que eu busco é trazer uma pequena contribuição ao


conhecimento dos mecanismos, das relações de
causalidade, das hierarquias e das regras de transformação
das sociedades antigas. Neste sentido, teoricamente falando,
o que mais me ajudou foi sem dúvida o marxismo, uma via
de pesquisa que afirma a responsabilidade do pesquisador, e
que não se contenta com uma contemplação estética do
objeto. Ainda que esta abordagem não esteja muito em
moda, é a única possível, de meu ponto de vista de
pesquisador do terceiro mundo, que sabe que cada hora de
sua pesquisa é paga com o sofrimento de não sei quantos
operários, agricultores ou desempregados. Pesquisa
‘engajada’, bem longínqua, poderão me retrucar; o que eu
rechaço com veemência. Como dizia Moses Finley, todo
trabalho de história é um diálogo no e com o presente.”
(TRABULSI, José Antônio Dabdab. Dionisismo, poder e
sociedade na Grécia até o fim da época clássica. 2004, p.
17.)
Resumo: Esta tese estuda a produção da Black Music Brasileira lançada entre 1960 e 1988,
analisando a circulação de ideias políticas antirracistas nas canções. A pesquisa identificou
a afirmação da cultura negra e a denúncia do preconceito racial no Brasil como temas
frequentes em uma produção musical brasileira que hibridava ou incorporava sonoridades
da Black Music estadunidense. O marco inicial de tal produção foi localizado em 1960,
com o primeiro LP de Elza Soares e o surgimento da Bossa Negra, também desenvolvida
por Jorge Ben e Wilson Simonal. A partir da Bossa Negra, a pesquisa identificou no final
dos anos 1960 a incorporação do Soul e o Funk, que se tornaram hegemônicos na Black
Music Brasileira e encontraram seu auge na década de 1970, com vários artistas. Junto às
sonoridades, a pesquisa também identificou nas letras das canções, a partir de 1967, um
movimento de interlocução com a realidade das comunidades negras estadunidenses, no
que foi chamado de Linguagem Política do Orgulho Negro. No marco final, a década de
1980, a pesquisa localizou o retraimento das sonoridades da Black Music Brasileira no
mercado fonográfico. Entre as conclusões da pesquisa na difusão da temática antirracista,
houve a localização de um esforço da militância negra antirracista pela mudança na
compreensão do vocábulo “racismo”: de afirmação da superioridade de uma raça e
segregacionismo para o preconceito e discriminação contra as comunidades negras,
compreensão que teria contribuído para a desconstrução do ideário de “democracia racial”
no Brasil enquanto um mito.

Palavras-chave: Black Music Brasileira; Bossa Negra; Antirracismo; Ditadura Militar;


Racismo; História Política

Abstract: This dissertation approaches the production of Brazilian Black Music released
between 1960 and 1988, analyzing the circulation of anti-racist political ideas in the songs.
The research identified the affirmation of black culture and the denunciation of racial
prejudice in Brazil as frequent themes in a Brazilian musical production that hybridized or
incorporated sounds from American Black Music. The initial mark of such production was
located in 1960, with the first LP by Elza Soares and the emergence of Bossa Negra, also
developed by Jorge Ben and Wilson Simonal. Starting with Bossa Negra, the research
identified, in the late 1960s, the incorporation of Soul and Funk, which became hegemonic
in Brazilian Black Music and reached their prime in the 1970s, with several artists. Along
with the sounds, the research also identified in the lyrics of the songs, from 1967 onwards,
a movement of dialogue with the reality of American black communities, in what was
called the Political Language of Black Pride. In the final mark, the 1980s, the research
found the withdrawal of Black Music Brasileira sounds in the phonographic market.
Among the conclusions of the research on the dissemination of the anti-racist theme, there
was the location of an effort by the anti-racist black militancy to change the understanding
of the word “racism”: from asserting the superiority of a race and segregationism to
prejudice and discrimination against black communities, an understanding that would have
contributed to the deconstruction of the ideals of “racial democracy” in Brazil as a myth.

Keywords: Brazilian Black Music; Bossa Negra; Anti-racism; Military dictatorship;


Racism; Political History
1

Lista de imagens:
Fig. 1. Capa e contra-capa LP Elza Soares. Se acaso você chegasse. ----------------------------------------------------- 87

Fig. 2. Capa e contra-capa LP Jorge Ben. Samba esquema novo. ------------------------------------------------- 111

Fig. 3. Capa e contra-capa LP Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. ---------------------------------- 120

Fig. 4: Eva. Eva 2001. -------------------------------------------------------------------------------------------------- 173

Fig. 5. Capa e contra-capa LP Tim Maia. Tim Maia. ---------------------------------------------------------------------- 192

Fig. 6: Dom Salvador e Grupo Abolição no V FIC. ---------------------------------------------------------------- 194

Fig. 7. Toni Tornado e Trio Ternura no V FIC. --------------------------------------------------------------------- 195

Fig. 8: Capa e contracapa Som, Sangue e Raça. --------------------------------------------------------------------- 211

Fig. 9. Capa e contracapa. Elza pede passagem. -------------------------------------------------------------------- 221

Fig. 10. Capa e contracapa. Toni Tornado. --------------------------------------------------------------------------- 222

Fig. 11: Capa e contracapa. Tim Maia Racional. Vol. 2. ----------------------------------------------------------- 248

Fig. 12: Gilberto Gil. Refavela. ---------------------------------------------------------------------------------------- 270

Fig. 13. Capa e contracapa. Gerson King Combo. Gerson King Combo. ---------------------------------------- 279

Fig. 14. Dancin Days. The Frenetic Discotheque. ------------------------------------------------------------------ 285

Fig. 15: Atletas Tommie Smith e John Carlos nas Olímpiadas do México. Angela Davis. ------------------- 293

Fig. 16. Michael Jackson. Ben e Sly & The Family Stone. Fresh. ----------------------------------------------- 298

Fig. 17: Wanderléa. Maravilhosa. ------------------------------------------------------------------------------------ 301

Fig. 18: Elza Soares A Bossa Negra. Elza & Roberto Ribeiro. Sangue, suor e raça --------------------------- 302

Fig. 19: Jorge Ben. Ben é samba bom e Jorge Ben. Ben. ----------------------------------------------------------- 303

Fig. 20: Tim. What you want to bet?/These are the songs e Tim Maia.. Tim Maia. ---------------------------- 303

Fig. 21: Trio Ternura. Trio Ternura. LP. 1971. CBS. Filhos de Zambi/Meu caso com você. ----------------- 303

Fig. 22. Dom Salvador. Salvador Trio. LP. 1965. Mocambo. Dom Salvador. LP. 1969. --------------------- 304

Fig. 23. Dom Salvador. My Family. ----------------------------------------------------------------------------------- 304

Fig. 24. Wilson Simonal Wilson Simonal. LP. 1965. Odeon. Se dependesse de mim. ------------------------- 304

Fig. 25: Capa e contracapa. Zezé Motta. Negritude. ---------------------------------------------------------------- 327

Fig. 26. Capa e contracapa. Lady Zu. Fêmea brasileira. ----------------------------------------------------------- 329

Fig. 27. Capa e contracapa. Itamar Assumpção. Beleléu Leléu Eu. ----------------------------------------------- 336

Fig. 28. Capa e contracapa. Sandra Sá. Demônio Colorido. ------------------------------------------------------- 346

Fig. 29. Capa e contracapa. Djavan. Seduzir. ------------------------------------------------------------------------ 348

Fig. 30. Capa e contracapa. Luiz Melodia. Felino. ------------------------------------------------------------------ 359


2

Sumário:

Prefácio: Começar pelo recomeço. ------------------------------------------------------------- 03

Introdução. ------------------------------------------------------------------------------------------ 05

Capítulo Um: --------------------------------------------------------------------------------------- 53


De 1960 a 1969: Os “primórdios” da Black Music Brasileira e da Linguagem Política
do Orgulho Negro na canção brasileira.

Introdução. ------------------------------------------------------------------------------------------- 54
1.1. Um histórico de hibridação: o encontro entre o samba e o jazz na Gafieira. ---------- 59
1.2. A Bossa Negra. --------------------------------------------------------------------------------- 80
1.3. Rumo à Black Soul: a consolidação da Linguagem do Orgulho Negro. -------------- 148
Conclusão: “O fim do começo”. ----------------------------------------------------------------- 174

Capítulo Dois: ------------------------------------------------------------------------------------ 176


De 1970 a 1978: Ápice da estética Black e difusão no circuito comercial.

Introdução. ------------------------------------------------------------------------------------------ 177


2.1. A Primavera soul no Brasil (1970-74). ---------------------------------------------------- 184
2.2. Entre os “anos de aperto” e o “Pragmatismo responsável” (1975-78). --------------- 234
2.3. Aparência e “atitude”: a politização da estética no Orgulho Negro. ------------------ 289
Conclusão: “O começo do fim”. ----------------------------------------------------------------- 305

Capítulo Três: ------------------------------------------------------------------------------------- 307


De 1978 a 1988: Da esfera do político à esfera da política.

Introdução. ------------------------------------------------------------------------------------------ 308


3.1. A Black Music Brasileira em declínio. ---------------------------------------------------- 313
3.2. O vocábulo “Racismo” e o pensamento político antirracista. -------------------------- 374
3.3. As linguagens antirracistas da Black Music à Constituinte. ---------------------------- 397
Conclusão: “O fim da história”. ----------------------------------------------------------------- 425

Considerações finais. ---------------------------------------------------------------------------- 426

Documentos mobilizados por capítulo: ------------------------------------------------------ 435

Documentos mobilizados no primeiro capítulo. ----------------------------------------------- 435


Documentos mobilizados no segundo capítulo. ----------------------------------------------- 439
Documentos mobilizados no terceiro capítulo. ------------------------------------------------ 444

Bibliografia referenciada na tese. ------------------------------------------------------------- 448

Referências audiovisuais. ----------------------------------------------------------------------- 461

Livretos e coleções -------------------------------------------------------------------------------- 461


3

À guisa de prefácio: “Começar pelo recomeço” 1

O texto de uma tese de doutorado muitas vezes expõe o último passo de uma
trajetória de pesquisa iniciada alguns anos antes, no trabalho de mestrado ou graduação; e
este, que aqui inicia, não está na contramão de tal hábito acadêmico. A fim de assumir essa
conexão, ou desenvolvimento do processo, que decorre a escolha do título “Começar pelo
recomeço” para estas primeiras linhas. O título foi extraído do poema escrito por Torquato
Neto (1944-1972) e entregue a seu amigo Luiz Melodia (1951-2017) por volta de 1971,2
pouco antes do suicídio do poeta, mas musicado e gravado pelo cantor apenas em 1997, no
álbum 14 Quilates. E o “recomeço” significa retomar a ideia apresentada no Prefácio da
dissertação “Sim, sou um negro de cor”: Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro
no Brasil dos anos 1960 (2016), ao citar o paralelo feito pelo historiador Antônio Fernando
Mitre entre a historiografia e um mapa enquanto uma forma de orientar um viajante. No
caso do “mapa” historiográfico, a fim de orientar a quem deseje “viajar” “nos caminhos da
vida ou da história”.3 Cabe, portanto, a essas páginas iniciais, traçar as “coordenadas de
leitura” do mapa a esta ou este viajante.

A tese apresentará o desenvolvimento da proposta esboçada na dissertação de


identificar uma forma de compreensão e comunicação da realidade racial brasileira,
expressa na música popular, que estabeleceu diálogos e incorporações de referências
oriundas das produções culturais das comunidades negras estadunidenses, potencializando
a afirmação antirracista no Brasil. Essa forma de comunicação foi chamada de Linguagem
Política do Orgulho Negro – outro “recomeço”, ao refinar um conceito originalmente
proposto na dissertação – e direcionou a análise que será exposta neste trabalho. Uma
primeira dúvida que pode surgir a quem leia essas páginas é sobre onde a pesquisa está
situada no campo historiográfico. De partida, é válido assumir que não será um trabalho de
História da Música no Brasil, posto não haver diálogo expressivo com as contribuições da
Musicologia. Também não chega a ser um trabalho de História da Cultura Afro-brasileira,
o que exigiria um conhecimento bem mais aprofundado das cosmologias e matrizes
religiosas do que as limitações intelectuais do autor destas páginas se mostrarão capazes de
suprir. Este texto, portanto, foi concebido como um trabalho de História Política do século

1
Luiz Melodia. Começar pelo recomeço (Torquato Neto). 14 Quilates. EMI Music. 1997. Fx.3.
2
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano: A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 50, 51.
3
MITRE, Antonio F. História, memória e esquecimento. In: O dilema do centauro: ensaios de teoria da
história e pensamento latino-americano. 2003, p. 17.
4

XX, analisando a circulação de ideias antirracistas em canções gravadas por artistas negros
da Black Music Brasileira em um período de 28 anos, entre 1960 e 1988.

Localizar, desde as primeiras linhas, o trabalho no campo da História Política visa


demarcar a posição que a “questão racial”, que a tese retrata a partir da definição de “luta
antirracista”, integra uma dimensão central para a compreensão das pautas políticas do
século XX – assim como outros movimentos comumente denominados “identitários”,
como os Feminismos e os movimentos LGBTQIA+ –; com tanta importância quanto o
espectro das revoluções socializantes e a Guerra Fria, com os quais, aliás, muitas vezes
encontra-se imiscuída.4 Demarcar os discursos antirracistas em meio à simbologia política
do século XX e analisar sua circulação a partir de uma ferramenta metodológica da
História das Ideias Políticas - enquanto Linguagens Políticas -, assim, pretende seguir uma
historiografia que, conforme reivindicou o antropólogo inglês Paul Gilroy, aborde sujeitos
negros “como pessoas com capacidades cognitivas e mesmo com uma história intelectual –
atributos negados pelo racismo moderno.”5 Os referenciais que orientaram a pesquisa serão
pormenorizados posteriormente, mas pode-se adiantar a quem consulte este “mapa” que o
caminho traçado, estudando o desenvolvimento da Black Music no Brasil e a difusão de
mensagens antirracistas neste gênero musical, ocorre em um contexto temporal turbulento
no qual o Brasil enfrenta um golpe de Estado, uma desenvolvimentista ditadura militar de
Direita e um lento processo de redemocratização. E em um contexto global não menos
turbulento, em meio à Guerra Fria e ao fortalecimento dos movimentos “identitários ”.

Expostas as mais básicas coordenadas a quem deseje “viajar” pelas páginas do


texto, este prefácio finaliza advertindo que, em um marco temporal tão amplo – 28 anos –,
as ausências e limitações da abordagem ficam mais explícitas. Advertência sobre a
necessidade de seleções que traz uma oportunidade para retornar ao paralelo traçado por
Antônio Mitre ao alertar do risco de um mapa que “projetado para ser completo e
fidedigno em todos os detalhes, cresceu tanto que alcançou o tamanho exato do território
que devia representar. Imaginem vocês a utilidade de semelhante portento para o viajante
que busca o rumo nos caminhos da vida ou da história?”6 Circunscritas as orientações
básicas para a leitura, podemos adentrar nos caminhos traçados por esta pesquisa.

4
Esse argumento foi desenvolvido em vários momentos da dissertação supracitada, particularmente nos
trechos aqui destacados: MORAIS, Bruno V. L. “Sim, sou um negro de cor”. 2016, p. 8-17; 123-128.
5
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. 2012, p. 40.
6
MITRE, Antonio F. História, memória e esquecimento. In: O dilema do centauro. 2003, p. 17.
5

Introdução.

Uma língua, uma linguagem, um sotaque, uma mensagem.


Um estilo, uma atitude. Uma virtude, uma imagem.
Africanatividade. (Sandra de Sá/Adriana Milagres)7

No primeiro semestre de 2004, a cantora e compositora brasileira Sandra de Sá


lançou o CD e DVD Música Preta Brasileira.8 Tratava-se de um registro ao vivo
celebrando os vinte e quatro anos de sólida carreira da artista considerada “a rainha do soul
brasileiro”. A carreira fonográfica de Sandra como intérprete iniciou após sua participação
no “MPB-80”, festival promovido pela Rede Globo de Televisão, que a tornou conhecida
nacionalmente através da performance de “Demônio Colorido” (uma balada soul de sua
autoria), dois anos após sua estreia como a compositora de “Morenando”, balada lançada
pela sambista Leci Brandão em 1978. O álbum Música Preta Brasileira, contudo, não se
limitava a uma convencional celebração dos êxitos da artista no mercado fonográfico. As
gravações de duas apresentações intimistas – o público era composto apenas por
convidados – traziam um conceito norteador. Conforme Sandra, em reportagem de
divulgação do novo trabalho: “Há mais de 15 anos que eu luto para tentar gravar um disco
assim, que fizesse não apenas uma revisão de minha história, mas também lembrasse os
grandes momentos de nossa música preta”.9

O título do álbum de Sandra de Sá antecipava e evidenciava a proposta conceitual


defendida: “No começo eu até brincava, dizendo que MPB é Música Preta Brasileira”,
pontuou a cantora. Assim, lançamentos recentes na discografia da artista, como “Nada
mais” e “Qual é?”, versões em português de clássicos do repertório soul setentista
estadunidense – “Lately”, de Stevie Wonder, e “What’s going on?”, de Marvin Gaye,
respectivamente –, gravadas em seu álbum anterior, Pare, olhe, escute, de 2002, conviviam
com marcos de seu repertório, como a supracitada “Demônio colorido”, “Bye-bye
tristeza”, “Retratos e canções”, “Enredo do meu samba”, “Vale tudo” (lançada em dueto
com o compositor da canção, Tim Maia, em 1983) e “Olhos coloridos”. A proposta,

7
Sandra de Sá. Criolo (Sandra de Sá/Adriana Milagres). Africanatividade – cheiro de Brasil. Universal
Music. 2010. Fx.2.
8
Sandra de Sá. Música Preta Brasileira. Universal Music. 2004. Álbum. Para esta tese foi adotada a opção
de normalização das referências musicais como: músicas citadas entre aspas e títulos de discos em itálico.
Essa forma já é utilizada frequentemente em livros e artigos em websites sobre música, apresentando a
vantagem de facilitar a leitura e a prévia identificação das referências a faixas e discos que sejam
homônimos.
9
BARBOSA, Marco Antônio. Sandra de Sá e a música preta brasileira. Publicado em 01/03/2004.
Disponível em <http://cliquemusic.uol.com.br/materias/ver/sandra-de-sa-e-a-musica-preta-brasileira > Acesso
23/05/2019.
6

porém, incluía o que Sandra definiu por “grandes momentos de nossa música preta” com
suas versões para “As dores do mundo”, de Hyldon, “Não Pode”, de Tony Bizarro, e
“Chove chuva/Fio maravilha”, de Jorge Ben, canções originalmente lançadas nas décadas
de 1960 e 1970. Conforme Sandra, em texto publicitário midiatizado para o lançamento do
disco: “Esses caras todos mereciam uma estátua em praça pública. E o pior é que eles
acabam sumindo. Ninguém ouve mais falar de Cassiano, Hyldon, Simonal. É uma
discriminação, um crime”10

Os artistas regravados ou citados acima por Sandra de Sá como responsáveis por


grandes momentos da “música preta brasileira” – Tim Maia, Hyldon, Tony Bizarro, Jorge
Ben, Cassiano e Wilson Simonal –, expressaram seu apogeu criativo e de sucesso
comercial entre as décadas de 1960 e 1980. A própria Sandra de Sá teve seu repertório de
maior impacto comercial lançado na década de 1980, a década em que iniciou seus
registros fonográficos. Em comum, todos estes artistas estão localizados na sonoridade da
Black Music brasileira, uma proposta musical fixada durante o momento de consolidação e
expansão da indústria fonográfica no Brasil, particularmente na década de 1970. Proposta
que se caracterizou pela adoção, por incorporação ou em hibridação com ritmos nacionais,
dos gêneros musicais identificados como Black Music estadunidense, particularmente as
sonoridades Soul e Funk.

O disco de Sandra foi lançado em um momento no qual o mercado fonográfico


estava mais aberto a uma revalorização da sonoridade Black brasileira setentista. O sucesso
da banda mineira de pop-rock Jota Quest exibe um indicativo – ou, talvez, um dos
catalisadores – desta revalorização. Contratada pela gravadora multinacional Sony Music
em 1996, a banda lançou o álbum de estreia J. Quest (1996), tributário da sonoridade Black
Music e que teve execução radiofônica de “Encontrar alguém” e “Onibusfobia”,
composições do grupo, e sucesso com uma versão funkeada de “As dores do mundo”,
balada soul originalmente lançada, com sucesso, por seu compositor, Hyldon, em 1975 (e
regravada por Sandra de Sá, em 2004, em versão mais próxima ao andamento original).
Em uma faixa de menor sucesso comercial, “Há quanto tempo” a banda contou com a
participação especial do cantor Tony Tornado, um dos grandes nomes da Black Music
Brasileira nos anos 1970 e que, desde o final de tal década, se dedicava a uma bem-
sucedida carreira como ator. Em 1998 a banda lançou seu segundo álbum, De volta ao

10
BARBOSA, Marco Antônio. Sandra de Sá e a música preta brasileira. Publicado e m 01/03/2004.
7

planeta, repetindo a fórmula musical de hibridar a sonoridade pop-rock com a black music,
particularmente o funk 11 , conquistando a vendagem de 500 mil discos. 12

A atenção de um público consumidor jovem parece ter potencializado a percepção


da relevância mercadológica da Black Music Brasileira - ou Black Soul, como também era
chamada nos anos 1970. Em 2001, a filial brasileira da multinacional Universal relançou
no formato CD parte de seu catálogo e, conforme a reportagem “Samba & Soul safras 60 e
70. Série de 12 obras repõe clássicos da música black nacional”, publicada no caderno
Ilustrada da Folha de São Paulo, em 03/08/2001, apostou na importância cultural da
vertente musical:

a seleção, feita pelo titã Charles Gavin, aposta na reputação popular da black dos
anos 70 no Brasil, hoje gozando de relativa revalorização. Tudo começa pela raiz
do que na década de 70 se tornaria um caldeirão de fusões entre samba, bossa
nova, jazz, rhythm'n'blues, soul, funk e, mais adiante, discothèque: os três álbuns
iniciais do carioca Jorge Ben (hoje Ben Jor), definidor, com Wilson Simonal, de
novos rumos para o samba e para o orgulho negro no Brasil. (...) De Jorge, a
coleção viaja à soul music de Cassiano e Hyldon, fundadores do gênero no Brasil
com Tim Maia, lá pelo final dos 60.13

A pesquisa que será apresentada nesta tese insere-se no contexto de surgimento e


consolidação dessa vertente musical, a Black Music Brasileira. O objetivo é discutir o tema
da luta antirracista no Brasil através do objeto da black music feita no país por pessoas
negras e em português entre os anos 1960 e 1988. Portanto, indo ao encontro do contexto
que foi apresentado por Sandra de Sá como o grande momento da “Música Preta
Brasileira”. A partir de tal cenário, busca-se localizar a circulação de ideias antirracistas
registradas e difundidas no documento fonograma: os discos veiculados no recorte.

11
Válido adiantar que a sonoridade Funk adotada pelo grupo Jota Quest e que é estudada nesta tese não se
refere ao que hoje é amplamente conhecido por “Funk Carioca”. Embora haja uma ligação estreita, a partir
dos Bailes Funk que surgiram por volta do final dos anos 1960 e início da década de 1970 em regiões de
periferia, em especial na cidade do Rio de Janeiro (mas presentes em várias regiões do país), o Funk
setentista tem por maior influência a sonoridade criada pelo artista estadunidense James Brown na d écada de
1960. Já a sonoridade do Funk Carioca apresenta relações com o Miami Bass, subgênero da cultura Hip Hop,
que foi popularizada também nos EUA na década de 1980. Uma interessante ponte entre os dois gêneros
pode ser ouvida na canção “Vira de ladinho (Malha Funk)” do grupo Malha Funk, sucesso lançado em 2006
na coletânea Funk Mix, produzida pelo Dj. Marlboro e distribuída pela gravadora Som Livre. Sobre ambos os
movimentos musicais e o desenvolvimento de um a outro a partir dos bailes, PEIXOTO, Luiz F.;
SEBADELHE, Zé O. 1976: Movimento Black Rio. 2016.
12
Informação em < https://pt.wikipedia.org/wiki/De_Volta_ao_Planeta > Acesso 09/01/2021. Vale
mencionar que em 2004, ano de lançamento do Música Preta Brasileira de Sandra, a coletânea de sucessos ao
MTV Ao Vivo do Jota Quest figurou em 16° posição nas Estatísticas e Dados de Mercado do ABPD. <
https://web.archive.org/web/20120524030038/http://www.abpd.org.br/estatisticas_mais_vendidos_cd_2004.a
s> Acesso 09/01/2021. O CD e DVD de Sandra não aparecem nas listagens da página.
13
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0308200127.ht m> Acesso 08/01/2021
8

No Brasil, entre as décadas de 1960 e 1980, esta pesquisa identificou ao menos três
gêneros musicais, etiquetas comerciais e estéticas, que poderiam ser elencados como
“Música Preta Brasileira”. E, nesses três gêneros, alguns artistas negros fizeram circular
ideias antirracistas. O primeiro desses gêneros é o samba de morro carioca, com artistas
como Martinho da Vila, Candeia e o grupo Fundo de Quintal, entre outros que, conforme a
comunicóloga Iris Oliveira, basearam-se “nos fazeres africanos ressignificados no Brasil”14
em sua expressão da cultura negra. Com algumas similaridades quanto ao norte cultural,
mas fora do tradicional eixo Rio-São Paulo – e, talvez por isso, demorando um pouco para
ser fixado em fonogramas e ter maior impacto no cenário comercial brasileiro –, o segundo
gênero é representado pelos Blocos Afro surgidos na Bahia na década de 1970, que
também optaram pela centralidade na ascendência cultural africana em suas manifestações,
angariando destaque no boom da música popular baiana a partir da década de 1980.
Exemplo de particular impacto nesta segunda vertente é o Ilê Aiyê, que em sua primeira
apresentação no carnaval de Salvador, em 1975, apresentou uma canção de influência soul,
“Mundo Negro/Ilê Aiyê”,15 que até hoje é regravada por artistas negros localizados em
diferentes gêneros musicais.16 O terceiro gênero passível de referência é a Black Music
Brasileira, que articula referências da black music dos EUA a partir do idioma português,
ambientando os temas ao contexto brasileiro e, em muitos casos, hibridando-os a gêneros
musicais nacionais.

Apresentado o contexto mais amplo de desenvolvimento do tema, o objeto


recortado nesta pesquisa é a Black Music feita no Brasil e em português, registrada em
fonogramas. Escolha justificada pelo sucesso comercial angariado pelo gênero no mercado
fonográfico brasileiro, sobretudo na década de 1970, quando reconhecida como uma
vertente musical tida como própria das comunidades negras – diferenciando-se do samba, a
esta altura consagrado como um símbolo nacional do Brasil mestiço.17 Uma segunda
justificativa é a característica de apropriação e reelaboração de gêneros musicais oriundos
da Black Music estadunidense, que compunham a “trilha sonora” do movimento pelos

14
OLIVEIRA, Iris A. Black soul e “samba de raiz”: convergências e divergências do Movimento Negro no
Rio de Janeiro.1975-1985. Dissertação (Memória Social). Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2014.
15
PEREIRA, Amilcar Araújo. O mundo negro. Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas: FAPERJ, 2013, p. 171-172. MERCÊS, Geander B. De Ilê
Ifé ao Ilê Aiyê: uma releitura do carnaval soteropolitano. Dis sertação (Ciências Sociais). 2017.
16
Regravações mais recentes com a banda de pop-rock O Rappa, como faixa 03 do cd 2 do álbum ao vivo
Instinto Coletivo. Warner Music. 2001; e a supracitada Sandra de Sá, na faixa 02 do álbum Africanatividade
ao vivo – Sandra de Sá 30 anos. Universal Music. 2011.
17
VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Zahar. 2012.
9

Direitos Civis de negros no país:18 a música Soul, Funk, Blues e subgêneros do Jazz
(notadamente a vertente Hard Bop).

A Black Music produzida no Brasil geralmente tem sua origem atribuída ao


compositor e intérprete Tim Maia, em 1970, quando do lançamento de seu primeiro álbum,
que conquistou grande sucesso comercial com canções como “Primavera” e “Azul da cor
do mar”.19 Retroceder à década de 1960, como faz o recorte desta tese, permite
compreender o período de produção musical que o trecho de reportagem citado acima
demarcou como uma “raiz” desta música black, com Jorge Ben e Wilson Simonal - ainda
que a reportagem atribua a Tim Maia, Hyldon e Cassiano o papel de “fundadores” da soul
music no Brasil. A pesquisa localizou na produção musical de Elza Soares um marco
inicial desta apropriação e reelaboração, justificando o marco inicial no ano 1960, quando
do lançamento do primeiro álbum da cantora. A proposta geral da tese, portanto, é analisar
o desenvolvimento de uma abordagem musical brasileira, realizada por artistas negros, que
a partir do ano de 1960 incorporou e reelaborou gêneros musicais da Black Music
estadunidense, em um criativo processo de hibridação, conforme propõe o argentino
Nestor G. Canclini,20 que lhes permitiu ainda produzir um veículo para a difusão de ideias
antirracistas, seja pela denúncia do preconceito racial existente no Brasil (em contraponto
às representações oficiais do país enquanto uma “democracia racial”) ou pela afirmação da
cultura e da estética negras.

A Black Music como etiqueta comercial e expressão do Orgulho Negro.

Uma tese que propõe a análise da Black Music Brasileira exige, evidentemente,
uma definição inicial do termo Black Music enquanto indicador de sonoridades e uma
etiqueta comercial no mercado fonográfico. Pra começo de conversa, traduzindo o termo, a
compreensão estadunidense de uma “música preta” ou “música negra” remonta a três
matrizes musicais formuladas e difundidas pelas comunidades negras escravizadas no país:

18
VIANNA, Hermano. O Baile funk carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. Dissertação.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Depto. de Antropologia. 1987, p. 45.
19
Algumas das frequentes referências midiáticas ao primeiro álbum de Tim Maia como “pioneiro” ou
“inaugural” da black music no Brasil serão exploradas no início do segundo capítulo desta tese.
20
CANCLINI, Nestor Garcia Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. 2008. Esta
obra propõe identificar processos de fusões entre práticas culturais, destacando a importância à circularidade
entre práticas de cultura erudita, popular e “de massas” que desenvolvem as especificidades da América
Latina na “modernidade” pós -colonial. As contribuições do autor para esta tese serão apresentadas no
primeiro capítulo.
10

as canções de trabalho (worksongs), cantigas entoadas coletivamente durante a atividade


laboral; as canções religiosas (spirituals), uma forma de executar canções de louvor em
igrejas cristãs para pessoas negras; e os lamentos individuais (blues), canções que
privilegiavam a temática de desamores e as mazelas sociais cotidianas. Os diversos
gêneros musicais registrados no documento fonograma no decorrer dos séculos XX e XXI
por artistas negros estadunidenses comumente são definidos como tributários, herdeiros ou,
ao menos, influenciados por uma dessas matrizes; principalmente o Blues que, talvez por
ser a forma de expressão individual entre as três matrizes citadas, estimulou maior
diversidade temática na criação artística.

O potencial da articulação política nas músicas criadas pelas comunidades negras


dos EUA é ressaltado pela filósofa Angela Davis: “as pessoas negras foram capazes de
criar uma comunidade estética de resistência com sua música, o que por sua vez encorajou
e nutriu uma comunidade política de luta ativa por liberdade.”21 Em diálogo com essa
reflexão de Angela Davis, a socióloga Patrícia Hill Collins complementa: “Spirituals,
blues, jazz, rhythm and blues, hip hop progressivo, todos fazem parte de uma ‘luta
contínua e de uma só voz estética e política’.”22 A referência a “uma só voz estética e
política”, extraída de Angela Davis, não sugere uma leitura da socióloga que negue a
heterogeneidade das comunidades negras: “Nunca existiu uma cultura de resistência
uniforme e homogênea entre os negros norte-americanos - e essa cultura tampouco existe
hoje. De qualquer modo, pode-se dizer que os negros norte-americanos compartilham de
uma agenda política e cultural comum...”23 A agenda política e a resistência em questão
dizem respeito às formas de discriminação e violência sofridas pelas comunidades negras
no país, em particular através dos linchamentos e da política de segregação racial
promovida pela sociedade branca nos estados do Sul do país, a partir de uma estrutura
legislativa popularmente conhecida como Jim Crow. A dissertação do linguista português
Antônio Borges traz uma síntese a esse respeito:

Efectivamente, nessa região dos E.U.A., onde viviam 95 por cento dos negros
americanos, assinalam-se então inúmeros estratagemas destinados a impedir que
os antigos escravos, agora com estatuto de homens livres, gozassem dos direitos
cívicos recentemente adquiridos, outorgados pela lei federal. (...) O número de
linchamentos, 12 em 1872, subiu para 255 em 1892. E esses actos de
discriminação racial não só passaram a ocorrer cada vez mais frequentemente,
como eram agora sancionados por leis específicas, nos diversos Estados. Em

21
DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. 2017, p. 200, 201.
22
COLLINS, Patrícia H. Pensamento feminista negro: o poder da autodefinição. In: HOLLANDA, Heloísa
B. (org). Pensamento Feminista. Conceitos fundamentais. 2019, p. 282.
23
COLLINS, Patrícia H. Pensamento feminista negro: o poder da autodefinição. 2019, p. 277.
11

concreto, estamos a falar do acervo de legislação que genericamente passou a ser


conhecido e designado pelo nome de Leis Jim Crow (...) Assim, entre 1865 e
1967, desde o fim da Guerra Civil à afirmação do Movimento dos Direitos
Cívicos, foram promulgadas mais de 400 leis estaduais, emendas à constituição e
posturas municipais que tornaram legal a segregação racial relativamente aos
negros. Por volta de 1876, os tratamentos discriminatórios tornaram-se tão
correntes que se considera que a Reconstrução e os direitos de cidadania por ela
implementados e outorgados eram já letra morta. Em 1890, o Mississipi, através
do imposto de capitação, impôs as primeiras medidas res tritivas que aí levaram à
suspensão do voto dos negros, o que também aconteceu na Louisiana, em 1898. 24

Em uma sociedade marcada por uma segregação racial oficial desde o século XIX,
o incipiente mercado fonográfico, surgido no início do século XX, refletiu essa separação.
E um “lugar” inicial onde a discriminação racial demonstrou força na música documentada
em registro fonográfico foi o jazz. Apesar do blues ser o gênero musical negro de maior
influência na cultura estadunidense (o paralelo cultural brasileiro é o samba) e ter sido
fixado inicialmente em fonograma em 1912 (com a gravação instrumental de “Memphis
Blues”, orquestrada por William C. Handy), até por volta dos anos 1940 ele era
predominantemente considerado um tipo de música folclórica. Deste modo, o gênero
musical de ascendência negra a ser inicialmente consagrado como produto no mercado
fonográfico foi o jazz, gênero associado a uma criação cultural urbana. Contudo, a primeira
gravação de jazz foi realizada por um grupo integrado apenas por músicos brancos, a
Original Dixieland Jass Band, que registrou em 26/12/1917 as músicas “Livery Stable
blues” e “Dixie Jass Band one step”.

O ocaso do primeiro registro fonográfico de jazz apresenta, porém, uma dimensão


mais complexa do que “uma forma cultural criada por negros sendo apropriada por
brancos” – e vale adiantar que o desenrolar deste ponto será importante para o argumento
do primeiro capítulo desta tese. Nos debates e literaturas atuais é indubitável a relação do
jazz com as comunidades negras, mas, no contexto da primeira gravação, o assunto
apresentava certa controvérsia. A fórmula musical registrada pela Original Dixieland já era
tocada em diversas regiões do ambiente urbano estadunidense desde o final do século XIX,
principalmente na cidade de Nova Orleans, que ganhou o título de “berço do jazz”, ou,
conforme o jornalista brasileiro Carlos Calado, sua “grande incubadora”.25 Em Nova
Orleans atuaram nomes hoje mitológicos no universo jazzístico, como os músicos negros
Freedie Keppard, Jelly Roll Morton e aquele a quem é atribuída a criação do jazz, o

24
BORGES, Antônio. De Jim Crow a Langston Hughes. “Quando a música começou a ser outra”. 2007, p.
20-21.
25
CALADO, Carlos. Louis Armstrong. Coleção Folha: Clássicos do Jazz. 2007. Vol.3. 64 p.
12

trompetista Buddy Bolden.26 Embora a cidade esteja situada na região sul dos Estados
Unidos, onde imperava as leis Jim Crow, por sua colonização francesa e anexação tardia à
nação estadunidense, a relação entre pessoas negras e brancas era menos segregada,
possibilitando maior circulação cultural. É o que o jornalista citado acima, Carlos Calado,
denominou como um efervescente “caldeirão cultural” no qual referências culturais de
ascendência nas comunidades brancas e negras puderam hibridar em um processo que deu
origem ao jazz - mas é importante salientar que, nesse caso, com grande proeminência da
contribuição negra. E, neste cenário de particularidade local nas hibridações em uma
sociedade sulista segregada, o líder da Original Dixieland, o trompetista Nick La Rocca,
com o sucesso das gravações iniciais, declarava publicamente que o jazz era uma criação
dos brancos estadunidenses, sem qualquer participação dos negros que, segundo La Rocca,
jamais tinham contribuído com algo de valor para a realidade musical do país. 27

A declaração racista de La Rocca não impediu o registro fonográfico dos jazzistas


negros de Nova Orleans, mas ecoou no incipiente mercado de bens culturais de uma
sociedade segregacionista. E assim, a uma forma bastante semelhante de produção musical
– o jazz surgido na cidade de Nova Orleans – houve a criação de duas nomeações: as
gravações feitas por músicos brancos foram chamadas de Dixieland (“dixie” é um termo
que expressa o que é específico da região Sul –28 como a própria legislação Jim Crow), e as
gravações feitas por músicos negros foram chamadas de New Orleans, em homenagem à
cidade de origem (tendo por nome mais representativo, desde os anos 1920, o trompetista e
cantor Louis Armstrong). A importação da segregação para o universo musical, contudo,
não se limitou ao jazz. No início da década de 1920, uma vertente de blues executada em
uma sonoridade imiscuída ao jazz ganhou espaço no mercado fonográfico, particularmente
com intérpretes femininas, como Bessie Smith, Ma Rayney e Mamie Smith. As empresas
de disco começaram a investir em gravações musicais de artistas negros, mas, seguindo a
lógica segregacionista, essas gravações eram destinadas para um público consumidor
circunscrito às comunidades negras. Talvez pela constatação de que o registro sonoro
possibilitado pelos fonogramas não permitia a identificação da cor da pele de artistas
registrados, ainda na década de 1920 as músicas de e para pessoas negras passaram a ser

26
CALADO, Carlos. Coleção Folha: Clássicos do Jazz. (20 vol.) Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2007. 64 p.
HOBSBAWM, Eric. História Social do Jazz. 2009. BURNS, Jazz (documentário).
27
Conforme o primeiro episódio da série documental Jazz, dirigida por Ken Burns. 2002. 724 min (tempo
total)
28
Sobre esta definição do termo, GENOVESE, Eugene. A terra prometida. O mundo que os escravos
criaram. 1988.
13

comercializadas com o selo race records. O historiador Eric Hobsbawm fornece uma
melhor explicação dessa divisão no mercado:

O enorme aumento do público negro produziu um fenômeno responsável pela


documentação básica do jazz: o race-records. A partir de 1920, as empresas de
disco passaram a achar que valia a pena gravar exclusivamente para o mercado
dos negros e, a partir de 1923 várias companhias passaram a elaborar,
sistematicamente, catálogos voltados para esse segmento. O mais famoso deles,
Okeh Company (1923-1935), incluía, além de raro material folclórico, a maior
parte da obra inicial de Louis Armstrong.29

A definição race records, portanto, a partir dos anos 1920 reproduzia a segregação
racial do Sul estadunidense para o mercado fonográfico nacional, sinalizando, ao mesmo
tempo que circunscrevia, para lojistas e consumidores, um “lugar” para a “música preta”
ou “música de pretos” nas paradas de sucessos. O desenvolvimento deste mercado permitiu
o registro de blues mais próximos à execução rural (a voz acompanhada por violão,
fórmula comumente conhecida como Delta Blues, em referência à mítica de sua execução
nas margens do rio Mississippi) por nomes como Blind Lemon Jefferson e Charley Patton
ainda na década de 1920; e Robert Johnson e Lead Belly nos anos 1930. Este último, Lead
Belly, apresentou uma hibridação do blues com elementos do spiritual - gênero que nos
anos 1930 conquistou maior espaço fonográfico, rebatizado pelo termo gospel, com nomes
como Sister Rosetta Tharpe e Mahalia Jackson. No cenário do pós-Segunda Guerra
Mundial, no final da década de 1940, um novo formato de blues ganhou destaque no
mercado das race records. Mais exatamente, a partir de 1948, com o registro por Muddy
Waters das canções “I cant’ be satisfield” e “I feel like going home”, demarcando uma
atualização do Delta Blues, executado com banda completa (bateria, piano, contrabaixo e
gaita de boca) e substituindo o violão pela guitarra elétrica - formato que ficou conhecido
pelo termo Chicago Blues, em uma sonoridade reconhecida como urbana. Neste período
ocorreu a emergência de outra conceituação para referenciar a “música preta”. Conforme o
jornalista Florent Mazzoleni, “Difundido pelo jornalista Jerry Wexler em 1949, o termo
rhythm’n’blues pôs fim ao uso da humilhante expressão race records para designar as
paradas de sucesso das músicas negras.”30

A terminologia rhythm’n’blues (r’n’b), portanto, designava na década de 1950 um


grande grupo de gêneros musicais, ou sonoridades, que tinham como ponto em comum
serem executadas por e para pessoas negras: do gospel de Sister Rosetta Tharpe ao doo-
wop (gênero popular, caracterizado pela execução das canções por grupos vocais, em
29
HOBSBAWM, Eric. História Social do Jazz. 2009, p. 82.
30
MAZZOLENI, Florent. As raízes do rock . 2012, p, 57.
14

harmonia de vozes) do The Platters, dos então populares (entre o público negro, bom
recordar!) Chicago blues de Muddy Waters e Howling Wolf ao rock’n’roll (novo formato
de música urbana, com forte apelo entre o público jovem, caracterizado pela temática
adolescente em canções dançantes de andamento acelerado) de Chuck Berry e Little
Richards. E, assim como a categoria race records foi sucedida pela rhythm’n’blues como
forma de definir lugares para a divisão racial no mercado da música gravada, na década de
1960 a terminologia black music reforçou a divisão racial no mercado fonográfico, então
fortalecido pelo sucesso da música jovem.

A referência à emergência da música jovem como produto de destaque na indústria


fonográfica possibilitou a este texto de introdução enfim apresentar o termo black music
como etiqueta comercial e sinalização de sonoridades. E o rock’n’roll aqui aparece como o
gênero musical catalizador de novos encontros e divergências raciais no cenário musical
dos EUA. Nos anos 1950, artistas negros, como o pioneiro Fats Domino 31 e os citados
Chuck Berry e Little Richards, e brancos, como Elvis Presley, Bill Halley, Jerry Lee Lewis
e Buddy Holly, registraram em discos propostas musicais que partiam das sonoridades
rhythm‘n‘blues, misturadas entre si e com gêneros populares destinados ao público branco,
como o country e o western swing, no que foi aglutinado pelo nome de rock’n’roll,32 um
gênero de sucesso e forte apelo comercial entre o público consumidor adolescente de
ambas as cores de pele.

O que poderia sugerir uma possibilidade igualitária do rock’n’roll nas divisões


raciais do mercado cultural estadunidense - “igualitarismo” que não significava condições
equânimes de retorno financeiro, acessos a espaços culturais ou nas relações com outras
instituições, como nos riscos de violência policial -, já na década seguinte, os anos 1960,
fraturou-se, conforme o rock sedimentava seu lugar na indústria do entretenimento
enquanto trilha sonora da juventude.33 Embora todos os artistas citados no parágrafo
anterior, à exceção de Domino, tenham gravado e alcançado sucesso na segunda metade da
década de 1950, no início da década seguinte eles aparentavam obsoletos – e muitos
estavam com a carreira paralisada ou finalizada – diante de uma nova geração de rockeiros,
como os grupos do fenômeno que ficou conhecido como “invasão britânica” (The Beatles,

31
Sobre o papel pioneiro das gravações de Domino, desde 1949, para o que viria a ser denominado
rock’n’roll, ver RIBEIRO, Helton. Fats Domino. Coleção Folha Soul & Blues. vol. 22. 2015.
32
Uma narrativa detalhada deste processo está em MAZZOLENI, Florent. As raízes do rock . 2012.
33
Sobre o surgimento da juventude (branca) como identidade social e público consumidor, ver SAVAGE,
Jon. A criação da juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX. 2009.
15

The Rolling Stones, The Animals, The Who, etc) ou os da “reação americana” (The Byrds,
The Beach Boys, The Mamas and the Papas, etc), ambos formados por jovens brancos. O
rock era consolidado como produto e a expressão musical de uma faixa etária, o público
adolescente, mas ficava subentendido pelos “rostos” deste símbolo etário que o destinatário
da identificação era a adolescência branca.

A compreensão do rock como gênero de expressão da “música jovem” na sociedade


estadunidense deixava implícito que essa figura universal do jovem se referia aos jovens
das comunidades brancas, a juventude negra do país desenvolvia outra forma de expressão
a partir da música soul, cujo primeiro ídolo foi o cantor Sam Cooke (1931-1964). Em
comum, ambos os gêneros da divisão racial da “música jovem”, além de partir dos gêneros
negros da etiqueta rhythm’n’blues (o rock mais circunscrito ao rock’n’roll da década
anterior e aos Chicago blues, e o soul mais aberto aos gêneros diversos, em especial a uma
secularização do gospel), destacaram os timbres de instrumentos eletrificados: no rock,
predominando o formato do trio bateria, contrabaixo elétrico e guitarra; e no soul, além dos
mesmos três instrumentos, o forte uso do órgão elétrico e de um naipe de sopros
(principalmente saxofone e trompete). As musicólogas Maria Cristina Magalhães e Ana
Guiomar Souza sintetizaram a diferença na recepção dos dois gêneros musicais: “Enquanto
o fenômeno do rock dominava o consumo da música entre os jovens ‘brancos’ e
economicamente favorecidos, o soul visava o resgate de um ritmo autenticamente negro
nos guetos norte-americanos.”34

No espaço comum da indústria do entretenimento e do mercado fonográfico dos


EUA, portanto, na década de 1960 foi reafirmada uma já antiga divisão racial na música
popular, uma “política da estética” na música jovem do país que estabelecia e delimitava a
distribuição em quinhões, lugares separados para brancos e negros na experiência
compartilhada de uma cultura jovem. 35 Assim como a terminologia race records foi

34
MAGALHÃES, Maria C. P. F; SOUZA, Ana G. R. Identidade cultural na música negra: o exemplo do soul
e do rap. In: Anais do III Congresso Internacional de HIstória da UFG/Jataí: História e Diversidade
Cultural. Textos Completos. 2012, p. 4.
35
Esta frase faz alusão a uma reflexão do filósofo francês Jacques Ranciére, que propôs a identificação de
uma “política da escrita” a partir da “partilha do sensível”: “Pelo termo de constituição estética deve -se
entender aqui a partilha do sensível que dá forma à comunidade. Partilha significa duas coisas: a participação
em um conjunto comum e, inversamente, a separação, a distribuição em quinhões. Uma partilha do sensível
é, portanto, o modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão
de partes exclusivas. Antes de ser um sistema de formas constitucionais ou de relações de poder, uma ordem
política é uma certa divisão das ocupações, a qual se inscreve, por sua vez, em uma configuração do sensível:
em uma relação entre os modos do fazer, os modos do ser e os do dizer; entre a distribuição dos corpos de
acordo com as atribuições e finalidades e a circulação o sentido; entre a ordem do visível e do dizível.” In:
16

sucedida por rhythm’n’blues, o novo cenário demarcou o quinhão das comunidades negras
pelo termo black music, a designar a produção musical produzida por e para as pessoas
negras em geral e, em particular, a parcela jovem, com o soul e o funk - gênero criado e
popularizado pelo cantor soul James Brown ainda nos anos 1960, que priorizava os
elementos rítmicos e dançantes. E, do mesmo modo que qualquer ouvinte do rock
reconhece no gênero uma pluralidade de estilos internos, a caracterizar sonoridades tão
díspares como das bandas The Beatles, The Rolling Stones, Pink Floyd, The Doors, The
Stooges, Yes, Jethro Tull, Led Zeppelin e Black Sabbath, entre várias outras consagradas
nas décadas de 1960 e 1970; o universo da black music dos gêneros soul e funk no mesmo
período desenvolveu sonoridades diversas, como as de Sam Cooke, Otis Redding, James
Brown, Aretha Franklin, The Miracles (grupo no qual surgiu Smokey Robinson), The
Impressions (no qual surgiu Curtis Mayfield), The Supremes (no qual surgiu Diana Ross),
Sly & The Family Stone, Marvin Gaye, Stevie Wonder, Jackson 5 (onde surgiu Michael
Jackson), Nina Simone, The Love Unlimited Orchestra (criada por Barry White), The
Temptations, Isaac Hayes, entre vários outros, passando por execuções dançantes,
agressivas ou lentas, e uma diversidade temática, com letras românticas e contestatórias. 36

Inserida em um contexto de discriminação social e segregação oficial às


comunidades negras, a música popular comercializada em fonogramas documentou a
veiculação não apenas de temáticas prosaicas e românticas, mas também de uma agenda
política antirracista, conforme mencionado no início deste tópico. As pessoas negras
estadunidenses não aceitaram passivamente a opressão que lhes foi imposta e realizaram
várias formas de contestação às políticas segregacionistas e às demais formas de violência
que sofriam, com destaque para os movimentos iniciados nos anos 1950, agregados em
torno da reivindicação inicial pelos direitos civis no sul segregacionista e que se
destacaram no mesmo período de emergência da música jovem. O jornalista Paul
Friedlander, no livro Rock and Roll: uma história social, pontua que: “A soul music ajudou
a criar a atmosfera na qual o orgulho negro cresceu. Junto com o movimento pelos direitos

RANCIÉRE, Jacques. Políticas da escrita. 1995, p. 7, 8 (itálico do original). Reflexão retomada em


RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e Política. 2005. Apesar da pertinência da proposta e
seu potencial para as questões propostas por esta pesquisa, a presente tese será desenvolvida a partir de outros
caminhos teóricos, conforme será exposto.
36
Para uma leitura básica referente a alguns dos grandes nomes citados acima é recomendado os 15 volumes
da Coleção Folha Soul & Blues, com coordenação da edição de textos por Carlos Calado, quinzenalmente
publicada pela Editora Mediafashion em 2015, contendo em cada edição um cd e um livreto de 44 páginas.
17

civis, com a expectativa de crescimento econômico e o crescente idealismo da época, a


soul music refletia e incitava o avanço dos negros.”37

A convergência entre a black music e a luta política antirracista justificou a


percepção, ainda na primeira metade da década de 1960, conforme o antropólogo Hermano
Vianna, que “o soul foi um elemento importante, pelo menos como trilha sonora, para o
movimento de direitos civis e para a ‘conscientização’ dos negros norte-americanos.”38 São
canções que articularam as mensagens politizadas veiculadas nas letras com o sucesso
comercial, capaz de potencializar a difusão das mensagens presentes. O primeiro ídolo
soul, Sam Cooke, embora mais conhecido por canções de temática romântica, em 1964,
pouco antes de seu precoce falecimento, gravou aquele que seria um dos primeiros “hinos”
do movimento pelos direitos civis na sonoridade soul, “A change is gonna come” (A
mudança está por vir), canção regravada por Otis Redding em seu mais consagrado álbum,
Otis Blue/Otis Redding Sing Soul (1965) e por Aretha Franklin no também consagrado
álbum I never loved a man the way I love you (1967). Vários nomes destacaram-se na
execução de canções sintonizadas com a causa antirracista, como Curtis Mayfield,
conforme destacado por Carlos Calado:

Se as letras de canções como “Keep on Pushing” (“Continue empurrando”)


[1964] e “People get ready” (“Povo, prepare-se”) [1965] já embutiam mensagens
do movimento pelos direitos civis dos negros, Curtis foi se tornando mais
explícito, progressivamente, nas canções que continuou escrevendo para os
Impressions (...) “We’re a winner” (“Somos um vencedor”), por exemplo,
chegou a ser vetada na programação de algumas rádios norte-americanas, em
1968, por causa dos versos que se referem ao orgulho de ser negro (“E nós
somos vencedores / E todos sabem isso também / Nós vamos continuar
empurrando / Como nossos líderes dizem para fazer”). Qualquer semelhança
com as bandeiras do movimento Black Power não era mera coincidência. 39

O fortalecimento da autoestima das pessoas negras tornou-se uma temática forte


das canções da black music do período, como em um dos primeiros sucessos da proposta
funk de James Brown, “Say it loud, i’m black and i’m proud” (Diga alto, sou negro e tenho
orgulho), lançada em 1968; no soul “Respect” (Respeito) composta e originalmente
gravada por Otis Redding (1965) e recriada como emblema do feminismo negro por
Aretha Franklin (1967) - coincidentemente, lançadas nos mesmos celebrados álbuns
citados no parágrafo anterior -; ou no funk psicodélico “Don’t call me nigger, whitey” (Não

37
FRIEDLANDER, Paul apud MAGALHÃES, Maria; SOUZA, Ana. Identidade cultural na música negra.
2012, p. 5.
38
VIANNA, Hermano. O baile funk carioca. 1987, p. 45, 46.
39
CALADO, Carlos. Curtis Mayfield. Coleção Folha Soul & Blues. Vol. 8. 2015, p. 18-19.
18

me chame de macaco,40 branquelo), lançado em 1969 no consagrado álbum Stand de Sly &
The Family Stone. Essa relação entre política e autoestima insere na definição de
“empoderamento” de Joice Berth:

Seria estimular, em algum nível, a autoaceitação de suas características culturais


e estéticas herdadas pela ancestralidade que lhe é inerente para que possa,
devidamente munido de informações e novas percepções críticas sobre si mesmo
e sobre o mundo que o cerca, e, ainda, de suas habilidades e características
próprias, criar ou descobrir em si mesmo ferramentas ou poderes de atuação no
meio em que vive e em prol da coletividade.41

Não apenas nas letras explícitas das canções, mas o fato em si de várias pessoas
negras aparecerem em posições de destaque na indústria do entretenimento, e não mais
apenas em posições profissionais subalternas, contribuía para esse fortalecimento da
autoestima, aspecto potencializado pela difusão dos aparelhos de televisão. Formas
específicas de dançar, se vestir e de valorização das características físicas, como o cabelo
crespo, compunham o chamado Orgulho Negro (Black Pride), um dos elementos para a
conquista do Poder Negro (Black Power), em um compromisso comum pelo fim da
segregação racial e pela causa antirracista.

A dimensão política antirracista na música popular, embora tenha adquirido maior


destaque temático no contexto contestatório da década de 1960, não surgiu na música
negra estadunidense em tal década. O blues jazzístico “(What did I do to be so) Black and
blue” ([O que eu fiz para ser assim] Preto e azul), composto e gravado pelo pianista de jazz
Fats Waller (com letra de Harry Brooks e Andy Razaf) em 1929, é um exemplo de crítica
contundente às mazelas sofridas pelas pessoas negras devido à discriminação racial e foi
incorporado como repertório constante - e com muitas gravações - nas décadas seguintes
por Louis Armstrong, que, além de um pioneiro do estilo New Orleans, é o mais influente
nome de toda a história do jazz. Outro blues jazzístico, “Strange fruit” (Fruto estranho),
composto e gravado pela cantora de jazz Billie Holiday em 1939, a partir do poema de
Abel Meeropol, é outro exemplo em uma impactante denúncia aos recorrentes assassinatos
por linchamento a negros no sul dos EUA – os estranhos frutos tematizados pela canção
eram os corpos que apareciam pendurados nas árvores. Nas igrejas protestantes destinadas
ao público negro pela política de segregação, as canções gospel veiculavam mensagens de
empoderamento e antirracistas através de uma leitura política do princípio igualitário

40
“Nigger” é um termo altamente pejorativo com o qual as pessoas racistas buscam ofender pessoas negras.
Por isso, para uma tradução da ideia da canção, a opção do termo “macaco” pareceu mais precisa do que
“negro”.
41
BERTH, Joice. O que é empoderamento? 2018, p. 15.
19

basilar do cristianismo - afinal, a religião prega uma igualdade fraterna de toda a


humanidade, criada à imagem e semelhança de Deus;42 canções registradas e
comercializadas pelos artistas gospel do período. Também houve registros em fonogramas
por gravações feitas nas igrejas entre 1960 e 1966, e 43 desses registros estão disponíveis
comercialmente em CD desde 1997, no disco duplo Voices of the Civil Right Movement:
Black American freedom songs, pela distribuidora Smithsonian Folkways.

A breve síntese exposta neste tópico permite situar um repertório de sonoridades,


imiscuído a uma agenda política de combate ao racismo, que foi registrado pelo documento
fonograma e difundido pelo compromisso comercial da indústria de bens culturais. Essa
variedade de “produtos” - a música gravada para comercialização - foi difundida por
discos, trilhas sonoras de cinema e programas de rádio ou televisão não apenas no território
dos EUA, mas em diversas regiões do planeta, o que inclui o Brasil, a realidade estudada
nesta tese. Caberá ao primeiro capítulo situar, brevemente, um histórico de contatos,
registrados em fonogramas, da música brasileira com vertentes da música negra
estadunidense desde o início do século XX. A adesão e reelaboração das referências da
música negra estadunidense por artistas do Brasil ocorreu a partir de possibilidades de
sonoridades diversificadas, assim como formas distintas de expressão, com maior ou
menor intensidade no posicionamento, de uma identificação social politizada pelo
“significante negro” em uma linguagem antirracista.

O “significante negro” e as linguagens antirracistas.

A proposta desta tese consiste em identificar na sonoridade black da música


brasileira a criação de um canal de expressão para as comunidades negras do país,
veiculando uma linguagem política de afirmação estética e das culturas negras, igualdade
racial e combate ao racismo. Tal linguagem expressa uma formulação de identificação
transnacional - o que a tese propõe denominar de Linguagem Política do Orgulho Negro -
contraposta à representação oficial brasileira, hegemônica na sociedade de um país que

42
“Ao proclamar uma única natureza para todos os homens, dada por Deus, proclamou também que todos os
homens são irmãos. Mas ao fazer isto, apesar de todas as tentativas de separar o reino de deus dos reinos dos
homens, evidenciou o abismo existente entre a igualdade dos homens perante Deus e a cruel desigualdade do
homem perante o homem.” GENOVESE, Eugene. A terra prometida. 1988, p. 264. A Parte II do livro, “A
pedra e a Igreja”, analisa a leitura do cristianismo feita por pessoas negras desde o período escravista. É
emblemático, aliás, que o título original da obra, publicada nos EUA em 1974, é Roll, Jordan, Roll, nome de
uma canção spiritual.
20

negava a presença do racismo. É válido, portanto, que esta introdução situe a quem leia a
tese sobre a compreensão fornecida a alguns conceitos displicentemente citados no
decorrer deste parágrafo.

Ao abordar a produção de uma “música negra”, a tese se afasta de perspectivas que


naturalizam ou essencializam a noção de uma “identidade racial biológica” e, por isso, há a
opção por partir da mobilização dos suportes teóricos oferecidos pelo sociólogo Stuart Hall
e o antropólogo Kabengele Munanga. Para o sociólogo, no artigo “Que ‘negro’ é esse na
cultura negra?”, o “significante ‘negro’” seria um conceito condensador capaz de agregar
indivíduos distintos, orientados também por diversas outras identidades, 43 por exemplo,
nacionalidade, gênero, posição social, de classe e identificação político-ideológica, o que
este autor define como a “identidade cultural fragmentada”, característica do séc. XX. 44
Entre os indivíduos compreendidos através do “significante ‘negro’”, pode-se vislumbrar o
que Kabengele Munanga indicou como “identidade cultural subjetiva”: “a maneira pela
qual o próprio grupo define-se e é definido por outros”.45 Articulando uma identidade
negra global e sua manifestação brasileira, Kabengele Munanga propõe que “poder-se-ia
reter como traço fundamental próprio a todos os negros (pouco importa a classe social) a
situação de excluídos em que se encontram em nível nacional. Isto é, a identidade do
mundo negro se inscreve no real sob a forma de ‘exclusão’”. 46 Assim, conclui o
antropólogo, “a identidade negra mais abrangente seria a identidade política de um
segmento importante da população brasileira excluída de sua participação política e
econômica e do pleno exercício da cidadania”. 47

A consciência de viver em condição de exclusão ressoa em expressões antirracistas,


na reivindicação pela mudança de tal condição e na fixação das mudanças em direitos,
ainda que os contornos da mudança almejada sejam distintos, assim como as características
da “cultura negra”, entre os distintos indivíduos agregados pelo “significante ‘negro’”.
Assim, conforme ressaltam André Botelho e Lilia Schwarcz, deve-se pensar a noção de
“identidade como uma construção social relativa, contrastiva e situacional. Ou seja, ela é
uma resposta política a determinadas demandas e circunstâncias igualmente políticas, e é
volátil como são diversas as situações de conflito ou de agregamento social”, por isso,

43
HALL, Stuart. Que “negro” é esse na cultura negra? In: Da diáspora: identidades e mediações culturais.
2003, p. 317-330.
44
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 2005, p. 86.
45
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. 2012, p. 88.
46
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. 2012, p. 16.
47
MUNANGA Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. 2012, p. 16.
21

melhor definida por eles como uma “identidade social politizada”. 48 Ou ainda, como
prefere esta pesquisa, como “identificação”.

A compreensão da luta antirracista como uma luta política é o pressuposto


norteador desta tese, posto que “a inscrição no real sob a forma de ‘exclusão’” a que são
submetidas as pessoas negras é direcionada ao espaço silencioso do privado, sobretudo no
Brasil;49 e um esforço político, conforme recordado por bell hooks, busca “preencher o
espaço entre público e privado”50 . Assim, ao trazer a público o confronto ao processo
sistemático de exclusão, a contestação antirracista opera em um esforço de politizar uma
situação que o discurso hegemônico insiste em relegar para o espaço do privado, um tipo
de atuação política que perpassa os ambientes definidos por Pierre Rosanvallon como
“esfera do político” e “esfera da política”. 51 O político, conforme o autor, refere ao terreno
de configuração do social, do modo como as relações sociais operam - ou são operadas -
no cotidiano, ambiente no qual são construídas, competem e convergem as diferentes
representações e projetos que concebem e configuram a vida em comum. É na esfera do
político que operam as manifestações nas ruas e as expressões culturais, como as canções.
Mas as reivindicações antirracistas, para além da mudança no cotidiano e da vida em
comum, buscam a inscrição desta mudança no real sob a forma de direitos e políticas
públicas, e assim, sua atuação comumente alcança a esfera da política que, para Pierre
Rosanvallon, é o espaço da gestão do social, através do Estado.

Abordar o antirracismo em sua dimensão política permite identificar uma tradição


de pensamento político que tem como objeto e tema o combate à exclusão ou
inferiorização de pessoas negras ou de outros grupos humanos “racializados”. 52 E, assim, a
produção de obras antirracistas configura um objeto de análise para a historiografia das
ideias políticas e sociais, reflexão que motivou a esta pesquisa amparar-se nos modelos de
interpretação propostos pelos historiadores Quentin Skinner e John G. Pocock. Os dois

48
BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia, M. Introdução - Cidadania e direitos: aproximações e relações.
In: Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos. 2012, p. 12.
49
SCHWARCZ, Lilia. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário. Cor e raça na sociabilidade brasileira.
2012, p.30-36.
50
HOOKS, bell. E eu não sou uma mulher?. Mulheres negras e feminismo. 2020, p.16.
51
ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. 2010.
52
Segundo Francisco Bethencourt, “a expansão europeia d eu origem a um corpo coerente de ideias e práticas
associadas à hierarquia dos povos de diferentes continentes.” In: BETHENCOURT, Francisco. Racismos.
Das cruzadas ao século XX. 2018, p. 39. Essa hierarquia, no argumento do autor, manifestou em preconceito
e ação discriminatória em relação à ascendência étnica, motivados por projetos políticos. Esse
comportamento hierárquico e preconceituoso define, para o autor, o racismo, que antecede a formulação das
teorias raciais, também chamadas de racismo científico. Para uma leitura específica sobre as teorias raciais,
ver também: TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. 1993.
22

historiadores desenvolveram a perspectiva comumente chamada de Contextualismo


Linguístico ao proporem a análise histórica de obras do pensamento político enquanto
discursos que buscam intervir em questões da vida política em determinado momento e
local. A historicização das obras do pensamento político, conforme essa abordagem,
propõe compreender certos termos mobilizados nos textos como vocábulos políticos,
expressões de um posicionamento em questões de seu tempo vivido. O contexto
linguístico, assim, está relacionado a um contexto histórico e às formas de expressão
disponíveis no debate político - que podem ser seguidas ou ressignificadas - e refere a tudo
aquilo que forma certa linguagem política de um período. E os textos do pensamento
político, identificados como discursos situados em - e destinados a intervir em - seus
contextos, são considerados como atos de fala, espaços de ação.

Quentin Skinner é o autor de maior destaque na historiografia entre os dois citados,


e atribui às aulas de John Pocock uma das principais influências para o desenvolvimento de
sua proposta metodológica. Entre suas obras de maior destaque, percebe-se o intuito de
recuperar a intenção dos autores e autoras, pois, “reconstituir essas intenções permite-nos
caracterizar aquilo que o autor estava a fazer – ou seja, ser capaz de afirmar que ele ou ela
pretendiam, por exemplo, atacar ou defender um argumento em particular, criticar ou
desenvolver uma tradição específica de discurso, e por aí diante.”53 A busca pela
compreensão das intenções na publicação de certas obras como intervenções no cenário
político aparece de forma nítida nas análises sobre Thomas Hobbes, como em Hobbes e a
liberdade republicana (2010); mas uma análise panorâmica, que privilegia os confrontos e
modificações operados na linguagem política através da ação de diversos autores, aparece
nos livros: As fundações do pensamento político moderno (1996), Liberdade antes do
liberalismo (1998) e no conjunto de artigos metodológicos reunidos em Visões da Política
(2002). É nessa abordagem mais abrangente de Skinner que John Pocock assumidamente
se inspira em seus livros de maior repercussão, El Momento Maquiavélico (2002) e o
conjunto de artigos Linguagens do Ideário Político (2013), atentos à interlocução de
autores em um recorte temporal amplo, de modo que “importa saber quais foram as
implicações e consequências das mudanças verificadas no vocabulário conceitual dos
homens, assim como conhecer em seus termos as ocasiões e as causas originais que

53
SKINNER, Quentin. Motivos, intenções e interpretação. In: Visões da Política: Sobre os métodos
históricos. 2002, p. 142.
23

determinaram que essas mudanças tivessem lugar.”54 E, assim, em cada contexto, eles
buscam identificar certas “‘questões paradigmáticas’ ou modos de enfrentar essas questões,
comuns a vários autores mais ou menos contemporâneos – uma comunidade de ‘falantes’
de uma linguagem política, que a atualiza através de suas intervenções particulares”. 55

Para a metodologia do contextualismo linguístico, “estudar o discurso político


implica estudar fatos históricos, pois faz parte desse enfoque pensar os discursos como
ações - ‘atos de fala’, para usar o termo da filosofia da linguagem contemporânea -, para
reagir a fatos passados (geralmente ações humanas), modificar fatos presentes ou criar
futuros.”56 Quentin Skinner e John Pocock realizam uma apropriação alusiva à teoria da
filosofia da linguagem de John Austin que, nos estudos da retórica, propôs a abordagem da
ação linguística realizada nos enunciados performativos, os atos de fala, que seriam o ato
locucionário (a enunciação de palavras ou frases), o ato ilocucionário (a ação realizada ao
proferir um enunciado) e o ato perlocucionário (a consequência ou efeito provocado pelo
ato ilocutório).57 A menção neste parágrafo a uma “apropriação alusiva” da teoria dos atos
de fala deve-se à constatação que os autores, embora assumindo a inspiração em John
Austin, não se preocupam em transportar a teoria da Linguística para a História das Ideias,
posto que as análises não buscam identificar os efeitos gerados nos leitores. Esta ausência
na interpretação é muito ressaltada pelos críticos da proposta, como nos artigos compilados
por Enrique Bocardo Crespo, que denunciam a limitação aos atos ilocucionários, perdendo
a capacidade das obras de criar ações sociais. 58 A opção de Quentin Skinner e John
Pocock, contudo, é compreensível na leitura de seus textos, que evidenciam o
compromisso em identificar nas obras as ações políticas intencionais, realizadas para
intervir em determinado contexto, e não os efeitos causados na audiência.

A opção por uma exposição tão longa – para um texto introdutório - das
possibilidades e limites da metodologia do contextualismo linguístico serve para justificar

54
POCOCK, John. G. A. El Momento Maquiavélico. El pensamento político florentino y la tradición
republicana atlântica. 2002. p. 142. Livre tradução minha.
55
ARAÚJO, Cícero. Apresentação. Um “giro linguístico” na história das idéias políticas. In: POCOCK.
John. G. A. Linguagens do ideário político. Sergio Miceli (org.). 2013, p. 11.
56
ARAÚJO, Cícero. Apresentação. Um “giro linguístico” na história das idéias políticas. In: POCOCK.
John. G. A. Linguagens do ideário político. Sergio Miceli (org.). 2013, p. 09.
57
SANTOS, Saulo. Fundamentos de pragmática. Apoio pedagógico. 06/06/2018. Disponível em
<https://grad.letras.ufmg.br/arquivos/monitoria/20180606%20-%20Pragm%C3%A1tica%20-
%20Aula%2003%20-%20Atos%20de%20fala.pdf> Acesso 31/01/2021.
58
CRESPO, Enrique B. Intención, convención y contexto. In: El giro contextual. Cinco ensayos de Quentin
Skinner, y seis comentarios. 2007, p. 305-366. Mas também presente nos outros textos de comentadores. Para
a teoria original, ver AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer. Palavras e ação. Trad. Danilo Marcondes. 1990.
24

de antemão que esta tese apresenta as mesmas limitações quanto à recepção das obras
analisadas. Ao propor a identificação das linguagens políticas antirracistas e os atos de fala
produzidos em algumas canções, não há o objetivo de identificar os efeitos causados nos
ouvintes diante da escuta de tais canções. Decerto alguns ouvintes podem refletir, se
informar e elaborar críticas à realidade vivida, enquanto outros podem apenas se entreter
com as melodias, assim como a leitura de um livro não garante mudanças efetivas em
quem o lê. O potencial da proposta está na possibilidade de identificar em produções
culturais, seja algumas formas de literatura, seja em alguns formatos musicais, a
capacidade de expressão de ideias políticas, formas de intervenção na realidade vivida. Há
diferenças entre as “formas de dizer” características ao suporte livro e o suporte canção - e
as especificidades da música gravada enquanto produto cultural serão abordadas em tópico
específico desta introdução -, mas cabe adiantar que ambos preservam uma condição
híbrida enquanto produtos de uma indústria de bens culturais e formas de expressão de
autoras e autores que, a partir das características do formato, podem expressar discursos. A
dimensão comercial, portanto, não impede que se identifique no produto final registrado, o
livro publicado ou a canção gravada, a difusão de mensagens na obra. Na performance da
canção, os atos de fala realizados permitem a leitura também como discurso e, portanto, a
existência de uma intenção autoral que permanece no produto final.

O termo “linguagem” é mobilizado na tese como as formas de compreender,


articular, dar sentido e, principalmente, comunicar um conjunto de experiências vividas,
conhecimento, formas de conceber expectativas e de interceder na vida em comum; e, por
isso, trata-se de uma linguagem que é política. Como argumentou a poeta e intelectual
antirracista Audre Lorde, “quando falo de conhecimento, como você sabe, estou falando
dessa genuína e obscura profundidade a qual a compreensão serve, espera e torna
acessível, para nós e para os outros, por meio da linguagem.”59 Sugere, de tal modo, a
compreensão dos polivalentes ecos de sua repercussão e compartilhamento como uma ação
política, parte do “esforço de falar”. E, assim, nas linguagens antirracistas de pessoas
negras, partindo da experiência concreta de racismo vivida e herdada, busca-se romper um
silenciamento, o que fomenta, ou reivindica, a mudança na realidade social. Uma
linguagem que, no caso do formato canção, é expressa em dois planos, ou níveis,

59
LORDE, Audre, Carta aberta a Mary Daly. In: Irmã Outsider. 2020, p. 86.
25

imbricados: o melódico, compreendido por uma gama de ritmos e suas variações ou


releituras; e o discursivo ou temático, o que as letras dizem ou sugerem. 60

O trabalho desenvolvido na presente tese parte da compreensão de que a temática e


a linguagem antirracista na canção, além de abrangentes nos gêneros musicais, como
ponderado nos tópicos anteriores, não são exclusivas ao fenótipo, à cor de pele negra.
Sendo o racismo um problema de toda a sociedade, a luta antirracista pode, deve ser feita e
é realizada por quaisquer indivíduos, independentemente da cor de sua pele. O recorte da
tese, contudo, é a linguagem negra antirracista na produção musical - tanto de denúncia do
racismo quanto de afirmação de uma cultura negra -, composta e/ou performada por
artistas reconhecidos socialmente como negros para os critérios de representação racial
brasileiros.61 A escolha pela veiculação restrita aos artistas negros, portanto, não se deve a
um pressuposto de que pessoas brancas não possam ser antirracistas; mas sim pela
compreensão que a fala pública de uma pessoa negra em relação a tal temática adquire e
transmite particular densidade política, por se tratar de fala entrecortada e informada pela
experiência do grupo alvo desta forma de preconceito e discriminação. E para valorizar a
fala de um grupo historicamente silenciado. 62

Voltando à terminologia do contextualismo linguístico, a compreensão defendida


na tese parte da existência da Linguagem Política Antirracista no pensamento político, uma
forma de posicionamento e expressão realizada por sujeitos que, independentemente da cor
de sua pele, confrontam o preconceito, a inferiorização e a exclusão de pessoas
racializadas. Desta linguagem, pode-se localizar uma Linguagem Política Negra
Antirracista, que, a partir da experiência de exclusão racializada, retrata o preconceito e
discriminação, assim como promove a afirmação de elementos culturais e da estética de
origem negra. Também a partir da percepção do compartilhamento de experiências de

60
Alusão à referência à linguagem musical presente em: AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para
todo canto: as religiões afro-brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34,
2006, p. 233.
61
Os critérios de representação racial no Brasil diferem-se de outras regiões, como os EUA, por gradações a
partir da cor da pele. Entre o reconhecimento como pessoa “negra” ou “branca”, há um espectro cromático
“pardo” amplo, que altera a percepção individual do racismo. Ver: SCHWARCZ, Lilia. Nem preto, nem
branco, muito pelo contrário. 2012. Contudo, conforme os critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), e antigas demandas do Movimento Negro, a categoria “negro” inclui pessoas pretas e
pardas.
62
O reconhecimento de um silenciamento histórico, sendo a dimensão racial geralmente reconhecida nos
debates sociais e acadêmicos a partir da fala de pessoas brancas do sexo masculino, e a importância das
pessoas negras – e particularmente mulheres negras – falarem em primeira pessoa é tema do artigo da
historiadora GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, L. A. et al.
Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília, ANPOCS n. 2, p.
223-244, 1983.
26

exclusão (ainda que com diferenças próprias a cada cenário local), realiza interlocuções
transnacionais com ideias panafricanas e afro diaspóricas. E é nesse ambiente intelectual
que a pesquisa identificou uma maneira de compreender, elaborar e comunicar as
experiências raciais brasileiras que articula, como principal canal de interlocução e uma
matriz cultural, a experiência estadunidense - a comunidade política do continente
americano de maior impacto cultural global no século XX -, que está sendo proposta na
tese pelo conceito de Linguagem Política do Orgulho Negro.

A identificação da Linguagem Política do Orgulho Negro permite à tese interpretar


menções e alusões à realidade estadunidense, e também maneiras de compreender,
significar e mobilizar os vocábulos políticos da linguagem antirracista brasileira. A partir
da análise das obras de “falantes” desta linguagem em seu contexto que se busca as
performances das ações linguísticas, ou atos de fala, produzidos.63 As canções, assim, são
trabalhadas em uma dupla dimensão de “performance”. Por um lado, demonstrando as
opções de sonoridade da/o artista ao imprimir sua personalidade à canção que compôs ou
interpreta - que propicia uma espécie de coautoria da composição. Por outro, a de “falante”
de uma determinada linguagem política, capaz de trazer na performance um discurso a
intervir na sociedade em que se insere. 64 Pensando a expressão de um ato ilocucionário,
que efetua uma ação ao dizer algo, é possível analisar os atos de fala efetuados na canção
enquanto uma tentativa de intervenção no mundo através da intenção de mobilizar
determinados argumentos em um contexto social específico.

A identificação transnacional e as diversas formas de compreender e combater o


racismo - entendido e definido, na linguagem do Orgulho Negro, enquanto o preconceito e
discriminação vividos pela população negra - em espaços geográficos onde a comunidade
negra está marginalizada e excluída como “o outro” sustentam produções intelectuais e um
imaginário político que se manifesta em uma simbologia expressa em diversas categorias
culturais e elementos estéticos – como música, dança, vestuário, expressões verbais e
leituras sobre a vida em comum: expressões da Linguagem Política do Orgulho Negro.

63
“A performance do texto é sua performance como parole em um contexto de langue.” Ideia desenvolvida
em POCOCK, John. Introdução. O estado da arte. In: Linguagens do ideário político. 2013, p. 23-62.
64
O conceito de Linguagem Política do Orgulho Negro foi originalmente desenvolvido em MORAIS, Bruno
V. L. “Sim, sou um negro de cor.” Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no Brasil dos anos 60.
2016. Particularmente no tópico “Nossa história está na cara, na pele, no ca belo pixaim”, p. 66-123. Contudo,
referia ao que agora está sendo chamado de Linguagem Negra Antirracista, os diversos aspectos e
abordagens que compõem uma reivindicação igualitária e contradiscurso na Modernidade, uma produção
mais ampla do que o termo Orgulho Negro (que alude ao estadunidense Black Pride) sugere. Esta tese,
portanto, refina o conceito.
27

A definição da tradição de lutas negras antirracistas como uma atuação política,


dotada de uma história intelectual, norteia também a influente obra do sociólogo inglês
Paul Gilroy, O Atlântico negro, que, embora “centrado no mundo anglófono e na
experiência colonial britânica”, como definido no texto da orelha à edição brasileira feito
por Lívio Sansone, oferece uma contribuição útil aos objetivos desta tese ao ressaltar a
circulação de referenciais que ocorre de forma transnacional entre comunidades negras. A
síntese na orelha é precisa:

A tese central do livro é que estes processos de racialização, assim como os


ideais antirracistas, embora se apresentem muitas vezes como nacionais ou até
regionalistas, são construídos num circuito transatlântico que abrange o Novo
Mundo, a Europa e a África. Pois fluxos internacionais estão na base da própria
construção da noção de “negro”. O tráfico, a escravidão e o processo d e
racialização mais recente têm definido o contexto sociológico do intercâmbio
entre pensadores e ideais negros, e entre pensadores e ideais “brancos”. 65

Pensar os contatos transnacionais nas ideias antirracistas possibilita a esta pesquisa


propor a compreensão da elaboração de uma identificação social politizada construída a
partir do diálogo transnacional e difundida na Black Music Brasileira. Desta forma, nas
dinâmicas transnacionais na cultura negra, a análise da estética Black, através das
sonoridades e a moda, pode configurar o que a historiadora Bárbara Weinstein, ao
referenciar a historiografia de viés transnacional, definiu como “‘Zonas de contato’ - isto é,
os pontos não necessariamente físicos nem geográficos onde os ‘encontros’ internacionais
mais intensos transparecem.”66 O espaço destas zonas, prossegue a autora, “inclui
‘comunidades’ de discurso e conhecimento e o reino do consumismo, espaços que tendem
a ser transnacionais.”67 A atenção à dimensão transnacional na historiografia, segundo os
historiadores Marina Helena Carvalho e Thiago Prates, “visaria não comparar sociedades,
mas dar conta dos intercâmbios realizados entre elas. Enfatizaria as redes, as crenças, as
instituições que transcendem o espaço nacional.”68

A circulação transnacional de referências antirracistas, para Paul Gilroy, encontra


na música um veículo destacado, sobretudo no século XX, como sugere ao destacar a
“sugestão premonitória de [Peter] Linebaugh de que ‘o navio continuava a ser talvez o
mais importante canal de comunicação pan-africana antes do aparecimento do disco long-

65
SANSONE, Lívio. Orelha do livro GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência.
2° edição. 2012.
66
WEINSTEIN, Barbara. Pensando a história fora da nação: a historiografia da América Latina e o viés
transnacional. In: Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 14, 2013, p. 17.
67
WEINSTEIN, Barbara. Pensando a história fora da nação. 2013, p. 17.
68
CARVALHO, Marina Helena M.; PRATES, Thiago. Para além das fronteiras: histórias transnacionais,
conectadas, cruzadas e comparadas. In: Temporalidades – Revista de História, ed. 21, v. 8, n.2, 2016, p. 9.
28

play.”69 A citação a seguir, embora longa, fornece um bom dimensionamento do


argumento de Paul Gilroy quanto à música e torna-se estimulante para pensar o objeto de
pesquisa desta tese, se o ato de leitura substituir as referências à Grã-Bretanha e Europa
pelo Brasil:

O estilo, a retórica e a autoridade moral do movimento dos direitos civis e do


Poder Negro sofreram destinos similares. Eles também foram desvinculados de
seus marcadores étnicos originais e de suas origens históricas, exportados e
adaptados, com evidente respeito, mas pouco sentimentalismo, às necessidades
locais e climas políticos. Surgindo na Grã Bretanha a partir de um sistema
circulatório que atribuía um lugar central às músicas que informavam e ao
mesmo tempo registravam lutas negras em outros locais, foram rearticulados em
condições distintamente europeias. Como foi possível a apropriação dessas
formas, estilos e histórias de luta em tão grande distância física e social é, por si
só, uma questão interessante para historiadores culturais. Ela foi facilitada por
um fundo comum de experiências urbanas, pelo efeito de formas similares - mas
de modo algum idênticas - de segregação racial, bem como pela memória da
escravidão, um legado de africanismos e um estoque de experiências religiosas
definidas por ambos. Deslocadas de suas condições originais de existência, as
trilhas-sonoras dessa irradiação cultural africano-americana elaborada e
instituída na Europa e em outros lugares dentro dos espaços clandestinos,
alternativos e públicos constituídos em torno de uma cultura expressiva que era
dominada pela música.70

A adoção e a reelaboração de elementos transnacionais da política antirracista –


notadamente dos EUA – para pensar a realidade do Brasil informa a Linguagem Política do
Orgulho Negro. Esta linguagem identifica problemas comuns a uma experiência global do
racismo e sua manifestação diaspórica, a partir da herança de séculos de escravismo e
criação de diversos mecanismos de manutenção da exclusão das comunidades negras no
continente americano. Desta herança comum, advém a formulação de manifestações
culturais e/ou estritamente políticas em resposta às formas de exclusão em suas
particularidades locais, mas passíveis de interlocução com outras realidades geográficas.
Esta forma de ler, interpretar e comunicar a realidade permite, conforme a proposta desta
pesquisa, a autocompreensão de artistas e militantes não só como brasileiros negros, mas
como negros brasileiros, revelando e formando uma identidade social politizada
construída a partir de um diálogo transnacional.

A Linguagem Política do Orgulho Negro, portanto, identifica um repertório


compartilhado de questões a partir do histórico de opressões, resistências e lutas em torno
do “significante ‘negro’”, apesar das diferenças e especificidades de cada realidade local.

69
GILROY, Paul. O Atlântico negro. 2012, p. 54. Sobre o argumento de Peter Linebaugh, foi desenvolvido
posteriormente em LINEUBAGH, Peter; REDIKER, Marcus . A hidra de muitas cabeças. Marinheiros,
escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. 2008.
70
GILROY, Paul. O Atlântico negro. 2012, p. 175.
29

Assim, os países receptores do mercado escravista moderno, como Brasil, Estados Unidos
e os que integram a região do Caribe, a partir da experiência e efeitos da escravidão, teriam
questões passíveis de serem consideradas como próximas por suas comunidades negras,
estimulando a interlocução e tecendo uma identificação transnacional. Esta identificação
inclui influências e experiências das comunidades negras em África, mas tece maior
vínculo a partir da realidade diaspórica, com maior repercussão e interlocução no Brasil
das experiências estadunidenses – maior repercussão justificada pelo status preponderante
conquistado pelos EUA na segunda metade do século XX. E as formas de comunicação
desta linguagem política operaram em um contexto linguístico brasileiro conformado pela
ideia de “democracia racial”.

A democracia racial como contexto.

A expressão “democracia racial” tornou-se, no decorrer do século XX, o vocábulo


condensador de um ideal arraigado que compreende as relações raciais brasileiras como
harmônicas. Seja através do discurso que alega ter existido uma instituição escravista
“branda” no Brasil ou no que afirma a inexistência de preconceito e discriminação no país,
esse ideal de harmonia serviu e ainda serve para mascarar diversas manifestações de
violência existentes no passado e no presente do país. Configurando não apenas um
discurso oficial, mas uma forma de representação da identidade nacional, o ideal de
harmonia espraiou-se na linguagem cotidiana da população, de modo que ao discutir sobre
a questão racial no Brasil, comumente a “democracia racial” aparece como o “pano de
fundo”, o contexto da discussão, no qual é necessário referenciar, validando-a ou
desconstruindo-a como farsa - ou mito. Por isso, compreender a força do vocábulo no país
e sua mobilização no decorrer do recorte desta tese é importante para dimensionar a
repercussão possível às linguagens antirracistas.

A compreensão de relações raciais harmônicas no Brasil, contudo, é tão antiga


quanto a existência do país como Estado nacional, configurando uma das mais bem
sucedidas construções do ideal conciliador e de aversão a conflitos da população brasileira.
No primeiro concurso para a criação de uma narrativa histórica do Brasil, 18 anos após a
independência do país, a tese ganhadora, escrita pelo alemão Von Martius, apresentou a
nação através da metáfora de um caudaloso rio originado da convergência de três afluentes,
um grande e branco (europeu), um mediano e negro (africano) e outro menor indígena
30

(autóctone).71 E, ainda no século XIX, a retórica da harmonia racial foi mobilizada para
reprimir a organização de pessoas negras, conforme o parecer de rejeição do Conselho de
Estado do Império ao estatuto da Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de
Cor no ano de 1875:

Os homens de cor, livres, são no Império cidadãos que não formam classe
separada, e quando escravos não têm direito a associar-se. A Sociedade especial
é pois dispensável e pode trazer os inconvenientes da criação do antagonismo
social e político: dispensável, porque os homens de cor devem ter e de fato têm
admissão nas Associações Nacionais, como é seu direito e muito convém à
harmonia e boas relações entre os brasileiros.72

Contudo, foi no século XX que a representação de harmonia racial consolidou no


discurso do Estado brasileiro como uma característica central e singular da nacionalidade.
Um destaque nesse processo foi a adoção oficial do argumento intelectual de Gilberto
Freyre, que, na década de 1930, interpretou o Brasil pelos termos de uma “democracia
étnica” e “democracia social”. O sociólogo Antônio Sergio A. Guimarães, ao analisar a
produção de Freyre, pontua: “Sua linha de argumentação apoia-se no fato de que a cultura
luso-brasileira é não apenas mestiça, como recusa a pureza étnica, característica dos
regimes fascistas e nazistas da Itália e da Alemanha.”73 Segundo o sociólogo, o uso
conjunto dos designativos “étnico” e “social” para qualificar a democracia brasileira por
Gilberto Freyre no contexto dos anos 1930 demarcava um posicionamento referente à
ascensão dos regimes políticos fascistas na Europa e a sua versão brasileira, com o
movimento Integralista: “o primeiro termo é associado ao antirracismo e o segundo, ao
racismo nazi-fascista; o primeiro, à tradição brasileira, o segundo, ao antibrasileirismo.
Junta-se à tensão da guerra na Europa a tensão regionalista, para definir o conteúdo ‘social’
da democracia brasileira.” Partindo deste arcabouço cultural, Gilberto Freyre defendeu
uma diferença entre os governos nazi-fascistas e os Estados autoritários instituídos em
Brasil e Portugal no período, afirmando que, “Do ponto de vista ‘social’, portanto, estes
regimes seriam democráticos, posto que promovem a integração e a mobilidade social de
pessoas de diferentes raças e culturas”74 .

Se coube a Gilberto Freyre nos anos 1930 conceder ao discurso de “paraíso racial”
brasileiro a terminologia “democracia”, ainda conforme Antônio Guimarães, foi na década
de 1940 que intelectuais impactados pela leitura freyriana - particularmente Arthur Ramos

71
IGLESIAS, Francisco. Segundo Momento: 1838-1931. In: Historiadores do Brasil. 2000, p. 65-72.
72
GOMES, Flávio. Negros e política (1888-1937). 2005, p. 9.
73
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 146.
74
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 146-147.
31

e Roger Bastide - sintetizaram sua construção intelectual através da expressão “democracia


racial” e “Ramos passará a ser o principal intelectual brasileiro a divulgar o Brasil como
uma ‘democracia racial’ e um laboratório de ‘civilização’.”75 Deste modo, o termo foi
difundido nos debates acadêmicos, na retórica parlamentar e mesmo entre movimentos
negros, posto que, em textos do Teatro Experimental do Negro, seria na “utopia de uma
Segunda Abolição, na qual se realizaria plenamente a democracia racial, que se dá a
mobilização política dos negros.”76 Deste modo, na década de 1950 o termo “democracia
racial” encontrava-se sedimentado no léxico político brasileiro como uma forma de
adjetivar e caracterizar, a partir da harmonia racial, a trajetória particular do modelo
democrático brasileiro.77

Na produção musical brasileira da primeira metade do século XX também há


vestígios de difusão e reforço do ideal de um “paraíso racial”. A historiadora Heloisa
Starling e a antropóloga Lilia Schwarcz localizaram nos sambas e marchinhas lançados nas
décadas de 1930 e 1940 considerável recorrência ao tema da harmonia racial. As autoras
argumentaram que a “democracia racial” foi um texto corrente na linguagem musical,
dotado de um status ambíguo: algumas vezes conciliado ao estranhamento diante de
episódios privados de preconceito, mas, em geral, reafirmando o ideal harmônico das
relações raciais brasileiras. “Nesse sentido, o cancioneiro representa um elemento
fundamental na divulgação da ideia de democracia racial que tomava vulto nesse contexto
em outros lugares institucionais”78 . O próprio samba, então tornado um símbolo nacional,
aparecia como um emblema desse ideal harmônico, por exemplo, em “Pra que discutir com
madame?” (Janet de Almeida/Haroldo Barbosa), lançada por Janet de Almeida em 1945,
no qual uma “madame” preconceituosa com o gênero musical identifica a mistura de raça,
mistura de cor e assim madame diz que o samba é democrata, o que a letra deste samba
confirma e enaltece: o samba, brasileiro, democrata, brasileiro na batata é que tem
valor.79 Portanto, algumas canções tomaram parte no processo de sedimentação e difusão
da noção de “democracia racial” como forma de expressar o ideal de harmonia racial no
Brasil, contribuindo para a fixação do termo ocorrer não apenas no léxico político e
acadêmico, mas na própria linguagem popular cotidiana.

75
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 149.
76
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 158.
77
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 149-157.
78
STARLING, Heloísa; SCHWARCZ, Lilia. M. “Lendo canções e arriscando um refrão”. In: Revista USP,
n.68. 2005-2006, p. 230.
79
Janet de Almeida e Regional Benedito Lacerda. Pra que discutir com madame/ Por essa vez passa.
Compacto. Continental. 78rpm. 1945.
32

No início dos anos 1950, “pela primeira vez o preconceito foi objeto de penalização
no país através de lei específica.”80 A Lei n°1390, de 3 de julho de 1951, popularmente
conhecida por “Lei Afonso Arinos”, no artigo primeiro “constitui contravenção penal,
punida nos termos desta lei, a recusa, por parte de estabelecimento comercial ou de ensino
de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno
por preconceito de raça ou de cor”, definindo no parágrafo único, que “será considerado
agente da contravenção o diretor, gerente ou responsável pelo estabelecimento.”81 E nas
justificativas da formulação da lei e nos debates legislativos para a sua aprovação, aparece
a compreensão da harmonia racial brasileira. Afonso Arinos de Melo Franco, em um livro
de memórias publicado em 1965 justificou sua ideia da lei a uma postura antinazista desde
a juventude, quando “uma repugnância crescente me invadia contra o racismo”82 e a
episódios de discriminação sofridos por seu motorista negro, José Augusto: “Isto era
demais, no Brasil, sobretudo considerando que os agentes da injustiça eram quase sempre
gringos, ignorantes de nossas tradições e insensíveis aos nossos velhos hábitos de
fraternidade racial.”83

Nos debates para a aprovação da Lei Afonso Arinos, Gilberto Freyre, então um
deputado federal de vertente conservadora, utilizou a ideia de “democracia” ao manifestar
apoio à proposta de lei de seu companheiro de partido: “Numa tal campanha deve-se pôr
em relevo o que há de antibrasileiro, antidemocrático e anticristão, tanto no racismo da
direita quanto no racismo da esquerda que se tenta desenvolver entre nós.”84 A escritora
Rachel de Queiroz endossou o projeto em artigo publicado no periódico Diário de
Notícias, afirmando que ele criava uma barreira de legalidade “às pretensões racistas em
desenvolvimento nesse país”.85 Assim, a fim de barrar “a tentativa de desenvolvimento do
racismo” no Brasil, a lei foi aprovada e, nas palavras de Afonso Arinos, “Não fosse o povo

80
GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo
Franco. In: Topoi, v. 14, n.26. 2013, p. 34.
81
< https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/128801/lei-afonso-arinos-lei-1390-51 > Acesso
27/01/2021.
82
GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo
Franco. 2013, p. 34.
83
GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo
Franco. 2013, p. 35.
84
FREYRE, Gilberto. Tribuna da Imprensa, 19 jul. 1950, p.3. Apud. GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O
antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo Franco. 2013, p. 35.
85
QUEIROZ, Rachel. Diário de Notícias, 15 jul. 1951. Apud. GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O
antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo Franco. 2013, p. 37.
33

brasileiro instintivamente infenso aos preconceitos de raça e a tramitação de uma lei como
a minha teria provocado verdadeiras batalhas.”86

Na década de 1950, o cenário de aprovação de uma lei que propunha transformar


atos de “preconceito de raça ou de cor” em contravenção penal, a Lei Afonso Arinos, o
termo “democracia racial” é consolidado como representação da harmonia racial brasileira:

No caso que nos interessa mais de perto aqui, a democracia ‘social e étnica’ de
que falava Freyre, em 1943, ou a ‘democracia social e racial’ como disse
Bastide, em 1944, transformam-se, nos anos 1950, em democracia racial tout
court, em referência direta aos conflitos raciais que começam a desmantelar o
racismo legal do Estados Unidos.87

A representação da harmonia nas relações raciais no Brasil, que justificariam a


suposta repulsa para episódios de preconceito e discriminação difundida na sociedade, foi
fortalecida com a escolha do país para uma série de pesquisas a respeito das relações
raciais, patrocinada pela UNESCO, o órgão das Nações Unidas para a educação. “A
Unesco, em perspectiva igualitária e universalista, estimulou a produção de conhecimento
científico a respeito do racismo, abordando as motivações, os efeitos e as possíveis formas
de superação do fenômeno”,88 e assim, o Brasil parecia representar uma “espécie de anti-
Alemanha nazista, localizada na periferia do mundo capitalista, uma sociedade com
reduzida taxa de tensões étnico-raciais”89 e foi escolhido como objeto de pesquisa “com o
objetivo de oferecer ao mundo uma nova consciência política que primasse pela harmonia
entre as raças.”90 Embora parte das pesquisas tenham denunciado a existência do
preconceito e discriminação racial arraigados no país - neste contexto, segundo Antônio
Guimarães, Roger Bastide revê sua posição sobre o debate racial e se afasta das ideias de
Gilberto Freire - 91 , a escolha do Brasil como um modelo a ser exportado fortaleceu a
representação de relações raciais harmônicas.

Assim, no decorrer da década de 1950, manifestações críticas, como de Roger


Bastide, do Teatro Experimental do Negro, do Jornal Quilombo e do intelectual negro
Guerreiro Ramos, na análise de Antônio Guimarães, “não veem problemas em conciliar a

86
GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo
Franco. 2013, p. 43.
87
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 157, 158.
88
MAIO, Marcos. O Projeto Unesco e a agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. 1999, p.
143.
89
MAIO, Marcos. O Projeto Unesco e a agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. 1999, p.
142.
90
MAIO, Marcos. O Projeto Unesco e a agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. 1999, p.
143.
91
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 158, 159.
34

realidade do ‘preconceito de cor’ ao ideal da ‘democracia racial’, tratando-os,


respectivamente, como prática e norma sociais, as quais podem ter existências
contraditórias, concomitantes e não excludentes.”92 De modo que, conclui o sociólogo,
“Nota-se, assim, que o debate acerca da existência ou não do preconceito racial no Brasil
ainda não punha em causa o consenso sobre a ‘democracia racial’, mesmo que polarizasse
o seu significado.”93

Gilberto Freyre, porém, manteve uma adjetivação plural da “democracia”, mas


passou a adotar a expressão “democracia racial” no começo da década seguinte, a partir de
1962, mobilizando o termo de forma corrente em meio à construção teórica do “luso-
tropicalismo”; a fim de defender a ditadura salazarista em Portugal e seu colonialismo em
território africano, e também para criticar o que considerava como influência estrangeira
sobre a comunidade negra brasileira, como o movimento francófono Négritude. 94 Para
Lélia Gonzalez, “Segundo Freyre, os portugueses foram superiores aos demais europeus
em suas relações com os povos colonizados porque não eram racistas. Daí o processo de
miscigenação ocorrido no Brasil e a harmonia racial que o caracteriza.”95 A construção
teórica elaborada por Gilberto Freyre se adequava tanto à representação interna do Brasil
como marcado pela harmonia nas relações raciais, quanto à externa, “ou seja, uma
sociedade sem barreiras legais que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a
cargos oficiais ou a posições de riqueza e prestígio”, deste modo, “tal ideia, no Brasil
moderno, deu lugar à construção mítica de uma sociedade sem preconceitos e
discriminações raciais.”96 Confirmando a sedimentação do ideário e do termo, “Os
acontecimentos políticos posteriores, principalmente a vitória das forças conservadoras em
1964, farão prevalecer a ideia de Freyre de que a ‘democracia racial’ já estava plenamente
realizada no plano da cultura e da mestiçagem, enfim, da formação naciona l.”97

Ao longo da primeira metade do século XX, portanto, o já secular discurso


brasileiro de convivência racial harmônica, que escamoteia conflitos, foi sintetizado a
partir do termo “democracia racial”. O sucesso na consolidação do vocábulo possibilitou
que este migrasse de ser apenas um termo de status ambíguo no debate racial, para tornar-
92
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 159.
93
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 160.
94
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 160. Sobre o movimento Négritude,
ver BERND, Zilá. O que é Negritude. 1987.
95
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político -econômica. In: Por
um feminismo afro-latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 50. Texto original de 1982.
96
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 142.
97
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 162.
35

se o próprio substrato no qual a questão racial poderia ser discutida no Brasil e a


sustentação de um discurso oficial para o qual inexistia o preconceito racial no país. Deste
modo, no relativamente amplo recorte temporal desta tese, o vocábulo “democracia racial”
é encontrado como mais do que um dos termos através dos quais a questão racial era
retratada no léxico político brasileiro, mas configurando o próprio ambiente discursivo
hegemônico, o “contexto linguístico” no qual os termos das linguagens antirracistas e seus
atos de fala repercutiam no debate público.

A “democracia racial” como contexto, portanto, permite compreender a recorrência


de certa compreensão de harmonia racial durante todo o recorte da pesquisa e, se o termo
configura o “contexto linguístico”, parte do exercício da tese será situar sua especificidade
em cada um dos contextos históricos retratados nos capítulos, para assim melhor
compreender os diálogos possíveis aos discursos das canções. No primeiro capítulo, por
toda a década de 1960, será possível identificar que a harmonia racial permeia diferentes
projetos políticos, de Jânio Quadros a João Goulart, e é particularmente mobilizado na
visão conservadora da ditadura militar. No recorte do segundo capítulo, entre 1970 e 1978,
o ideal é operado na política internacional como um modo de aproximação com as nações
africanas emergentes da descolonização, o que possibilita um incentivo do Estado às
manifestações da cultura negra no país, ainda que, ao mesmo tempo, as forças repressivas
associem manifestos antirracistas à subversão e ao comunismo. Por fim, no terceiro
capítulo, entre 1978 e 1988, as lutas pela redemocratização estimulam a revisão do
significado e conteúdo da “democracia”, que, combinadas às lutas antirracistas,
possibilitam maior difusão e força do questionamento do ideal e do termo “democracia
racial”. Divisão melhor compreensível com a estrutura da tese.

Da estrutura da tese.

A tese está formulada em três capítulos com justificativa de recorte simples, cada
qual articulado a partir de um contexto da formulação da Black Music Brasileira e de
difusão da Linguagem Política do Orgulho Negro neste formato da canção brasileira. Cada
capítulo apresenta uma construção com certa medida de independência, contendo
introdução própria, desenvolvimento e conclusão parcial. Os capítulos são construídos a
partir de um argumento central que se conecta e fornece densidade e sustentação à questão
geral da tese.
36

O primeiro capítulo abrange toda a década de 1960 e busca mapear os primórdios


da linguagem do Orgulho Negro na canção popular brasileira. O marco inicial no ano de
1960 justifica-se pela produção da artista que a tese identificou como a inauguradora de
uma proposta de black music no Brasil, Elza Soares. Embora um disco compacto contendo
as canções “Se acaso você chegasse” e “Mack the Knife” tenha sido lançado em dezembro
de 1959, a opção do marco no ano seguinte deve-se ao lançamento do primeiro LP da
cantora, álbum homônimo gravado a partir do sucesso do compacto e que documenta a
formulação de uma então intitulada “Bossa Negra”, a partir de hibridações com a vertente
jazz New Orleans, principalmente com Louis Armstrong. A compreensão de uma
roupagem específica da Bossa Nova realizada por artistas negros - uma “bossa negra” -
orienta a leitura do capítulo para os discos de Jorge Ben (atual Jorge Ben Jor) e de Wilson
Simonal, assim como a produção instrumental do Salvador Trio, produções que
hibridavam o samba às vertentes jazz hard bop e soul jazz. Nas canções de Elza, Ben e
Simonal aparecem a temática antirracista, seja em afirmações da cultura negra ou eventuais
denúncias de preconceito racial. No universo do rock brasileiro iêiêiê, a Jovem Guarda, o
doo wop aparece em trabalhos dos Golden Boys, do Trio Ternura e do Trio Esperança, mas
sem expressão da temática antirracista.

Ainda na década de 1960 aparecem registros de canções na sonoridade soul e funk a


partir de Simonal, Dom Salvador, Raul de Souza e Evinha (saída do Trio Ternura). E
também canções com letras em diálogo explícito com a realidade estadunidense, por
Simonal e Jorge Ben. O argumento defendido no capítulo é que a formulação de uma Black
Music no Brasil começa com a Bossa Negra, enquanto uma proposta reconhecida como
“negra” ao hibridar gêneros musicais brasileiros e gêneros da música negra na divisão
racial do mercado fonográfico estadunidense; e, a partir daí, na década são registradas
canções que tematizam de forma mais recorrente a realidade racial brasileira. O
desenvolvimento desta proposta permitiu, ainda nos anos 1960, a adoção das sonoridades
soul e funk e de uma conexão de experiências das comunidades negras brasileiras com as
estadunidenses no tema das letras. Na política de Estado, considerando que o racismo no
Brasil é um problema estrutural, que antecede o golpe de Estado de 1964, o recorte
escolhido permite abordar alguns aspectos de continuidade do discurso de harmonia racial
e negação da existência de preconceito no país, assim como identificar o que modifica
neste discurso com o advento da ditadura militar.
37

O segundo capítulo abarca os anos de 1970 a 1978, acompanhando a consolidação e


o auge da sonoridade do Orgulho Negro no mercado fonográfico brasileiro. A escolha do
marco inicial em 1970 deve-se por esse ano comumente ser definido como a inauguração
da Black Music brasileira, a partir do lançamento do primeiro álbum do cantor soul Tim
Maia. Embora o capítulo anterior da tese defenda outro marco inaugural, neste recorte do
segundo capítulo a Black Music Brasileira conquista o status de valiosa etiqueta comercial
no mercado de bens culturais, em um período no qual a indústria fonográfica brasileira
sedimenta-se e fortalece em meio ao processo de modernização autoritária efetuado no
país. O impacto fonográfico da música soul brasileira a partir do destaque comercial de
Tim Maia e Toni Tornado no ano de 1970 - e de artistas consagrados na década anterior -
permite a gravação de vários outros artistas com sonoridade similar e, por consequência,
amplia as possibilidades de registro de canções que também abordam a temática
antirracista da linguagem política do orgulho negro. A ampliação do espaço destinado aos
artistas soul na indústria de bens culturais permite a identificação não apenas da difusão
das sonoridades da black music, mas também de aspectos visuais, como o vestuário e
penteados de cabelo que, junto às sonoridades, compõem a estética soul, elementos de
comunicação visual da Linguagem Política do Orgulho Negro, potencializando o diálogo e
a circulação de referenciais com as expressões antirracistas estadunidenses. A descoberta e
cobertura jornalística pelas mídias brasileiras dos bailes black - iniciados nas periferias do
Rio de Janeiro, mas que também eram realizados em diversas cidades do país, reunindo um
público de milhares - explicitou tanto a difusão da estética do Orgulho Negro quanto um
mercado consumidor para a indústria fonográfica, aspecto que auxilia a compreensão do
maior número de artistas lançados em disco entre 1975 e 1978.

O contexto é marcado pela repressão política da ditadura e pelo “milagre


econômico” brasileiro, que, para a população pobre - camada social onde está a grande
maioria das comunidades negras -, significou profundas perdas econômicas e aumento da
marginalização; mas que, para a indústria de bens culturais, significou enorme expansão
com o mercado fonográfico, vivendo “anos de ouro”. Pela política externa da ditadura
militar, o período marcou a adoção do “Pragmatismo responsável”, o movimento do
Estado brasileiro de aproximação e desenvolvimento de relações econômicas com os
países advindos da libertação nacional ou descolonização africana, mobilizando o discurso
da “democracia racial”, com a suposta inexistência de preconceito e discriminação raciais
no país como uma importante propaganda. O argumento do capítulo é que o fortalecimento
38

da indústria fonográfica e o uso político da democracia racial pelas relações exteriores do


Brasil rumo aos países africanos afetaram a sedimentação da black music brasileira como
vertente musical e etiqueta comercial viável. Com o maior espaço conquistado pela
sonoridade black na indústria fonográfica, os canais de expressão foram ampliados para a
difusão de ideias antirracistas no suporte e veículo da canção popular gravada. Mensagens
veiculadas apesar da repressão censória dos “anos de chumbo” - que parece ter optado por
permitir maior execução de artistas negros para corroborar a propaganda oficial de
inexistência de discriminação. O capítulo analisa, assim, o ápice da black music no
mercado de bens culturais, com o maior número de artistas em atividade e destaque
midiático por todo o recorte da tese. A lista de artistas negros na sonoridade black no
período inclui Tim Maia, Cassiano, Toni Tornado, Hyldon, Carlos Dafé, Gerson King
Combo, Banda Black Rio, entre outros, e a difusão da linguagem do Orgulho Negro
aparece também em Luiz Melodia, Grupo Abolição, Emílio Santiago, além dos
remanescentes do recorte anterior, Elza Soares, Wilson Simonal, Jorge Ben, Trio/Quinteto
Ternura, Evinha e Gilberto Gil – que elabora apropriações das sonoridades da black music
a partir do disco Refavela, de 1977.

O terceiro e último capítulo compreende os anos de 1978 a 1988, período marcado


pelo longo processo de lutas em prol da redemocratização brasileira e a emergência do
Movimento Negro Unificado. A justificativa para o recorte iniciar no ano de 1978 deve-se
à confluência de quatro marcos de naturezas distintas. O primeiro é estético, pois, se o
período abordado no capítulo anterior marcou o ápice da sonoridade da Black Music e da
linguagem política do orgulho negro na canção brasileira, a partir de 1978 o gênero entra
em declínio comercial com o sucesso da Disco Music - gênero também incorporado a partir
da produção das comunidades negras estadunidenses, voltado para as danças em boates. A
orientação para a disco reduziu a abertura de espaço no mercado fonográfico para artistas
soul e funk em um período no qual fatores de ordem pessoal na vida de diversos artistas em
destaque no cenário anterior contribuíram para a interrupção da carreira de vários nomes.
O segundo marco está associado ao primeiro e é de natureza comercial, pois o
desenvolvimento mercadológico da indústria fonográfica alterou os rumos da direção
musical das gravadoras, de modo que a experimentação presente no período anterior foi
substituída pela racionalização em incentivo a sucessos comerciais. Assim, o incentivo às
gravações de canções disco e, posteriormente, ao chamado “rock nacional”, irão suplantar
o que poderia ser um apoio consonante à revelação de muitos artistas soul e funk. O
39

terceiro marco é político, com o impacto da fundação do Movimento Negro Unificado


Contra a Discriminação Racial, 8/*ampliou os canais de difusão das ideias políticas
antirracistas na sociedade brasileira. Por fim, o quarto e último marco é de natureza
intelectual, com a publicação do livro O genocídio do negro brasileiro pelo intelectual e
ativista Abdias do Nascimento, que estabeleceu um padrão de leitura social e denúncia da
realidade racial brasileira de enorme influência até hoje.

A análise do período permite constatar que a partir de 1978 e no decorrer da década


de 1980 há um retraimento da sonoridade Soul/Black Music Brasileira como etiqueta
comercial no mercado fonográfico. A pesquisa localizou como artistas surgidos no
mercado fonográfico do período a partir das sonoridades da black music a cantora e
compositora Sandra Sá (atual Sandra de Sá) e a cantora e atriz Zezé Motta na grande
indústria, e o cantor e compositor Itamar Assumpção no cenário alternativo, lançando seus
discos através de um então incipiente circuito independente. Contudo, o retraimento da
black music na grande indústria conviveu com sua difusão em meio à etiqueta de mercado
MPB, como em Djavan e Gilberto Gil; e na cantora Lady Zu, surgida na etiqueta disco. No
mesmo período, porém, ocorre maior difusão das linguagens políticas antirracistas através
de outros veículos, capazes de influenciar o processo da redemocratização brasileira,
incluindo pautas da agenda antirracista na Constituição de 1988. O argumento do terceiro
capítulo defende que é possível estabelecer uma conexão, ou um encontro, entre as
temáticas antirracistas apresentadas no Brasil pelas canções da Black Music e aquelas
presentes no movimento social e em produções intelectuais negros, que possibilitaram uma
expansão do debate antirracista no país e a fixação de uma Constituição mais avançada
quanto ao tema racial. O capítulo não propõe uma relação de influência ou, pior, de causa e
consequência entre temas expressos nas canções e na esfera política, mas sim uma
convergência no estabelecimento de reivindicações e críticas.

O argumento do terceiro capítulo, portanto, propicia a realização de um balanço dos


temas apresentados em canções desde o início do recorte geral, na década de 1960,
sobretudo à luz dos debates da constituinte. E permite também a identificação da difusão
na sociedade e debate parlamentar do Brasil de um vocabulário das ideias políticas
antirracistas que incluiu termos como “genocídio do negro” para nomear um processo
histórico e sistemático de exclusão; “mito da democracia racial”, como contraposição e
denúncia da falácia do discurso de harmonia racial; “segunda abolição”, para as
reivindicações antirracistas imiscuídas na expectativa do processo de redemocratização; e,
40

de particular destaque na construção da tese, a fixação do termo “racismo” como


significante para o preconceito e discriminação racial.

O vocábulo “Racismo” como arena política no Brasil contemporâneo.

Na introdução de um trabalho sobre a antiguidade grega, o historiador José Trabulsi


Dabdab, recordando Moses Finley (outro especialista no período clássico greco-romano),
ressaltou que “todo trabalho de história é um diálogo no e com o presente.”98 Algumas
situações, contudo, enfatizam esse diálogo. No decorrer de todo o trabalho desta tese, o
vocábulo “racismo” conserva grande importância, visto a tese abordar a circulação de
ideias políticas antirracistas, ainda que, conforme adiantado no tópico anterior, apenas no
último capítulo componha a centralidade na análise. Em 2020, nas etapas finais da
realização desta pesquisa, um acontecimento repercutiu na sociedade brasileira e nas
mídias, e sua recordação neste texto de introdução permite dimensionar significados em
disputa do vocábulo “racismo” também identificados no recorte temporal da tese.

Na noite de uma quinta-feira, 19 de novembro, câmeras de celulares de clientes e


funcionários de um supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre, capital do estado
Rio Grande do Sul, registraram o brutal assassinato, por espancamento, de João Alberto
Silveira Freitas, um homem negro, por seguranças do supermercado.99 O vídeo teve a
difusão nas mídias potencializada por ocorrer na véspera do Dia Nacional da Consciência
Negra, efeméride idealizada por militantes negros do Rio Grande do Sul nos anos 1970 - e
que, nos anos 2000, durante as presidências do Partido dos Trabalhadores, entrou no
calendário escolar (2003) e no calendário oficial brasileiros (2011). Com a repercussão do
caso, no dia seguinte ocorreram vários protestos nas ruas - mesmo em meio a uma
pandemia - e pronunciamentos de diversas figuras públicas. O presidente da Câmara dos
Deputados, Rodrigo Maia, declarou em uma rede social: “A cultura do ódio e do racismo
deve ser combatida na origem, e todo peso da lei deve ser usado para punir quem promove
o ódio e o racismo”. E o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, na mesma rede social,
declarou que o caso “estarrece e escancara a necessidade de lutar contra o terrível racismo

98
DABDAB, José A. T. Dionisismo, poder e sociedade na Grécia até o fim da época clássica. 2004, p. 17.
99
< https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/11/20/homem-negro-e-espancado-ate-a-morte-
em-supermercado-do-grupo-carrefour-em-porto-alegre.ghtml> Acesso 25/01/2021.
41

estrutural que corrói nossa sociedade”. 100 Já o vice-presidente da República, general


Hamilton Mourão, falou a jornalistas: “Lamentável isso aí. (...) Para mim, no Brasil não
existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil.”, em seguida,
repetiu, “Não, eu digo para você com toda tranquilidade: não tem racismo aqui” e
completou: “Eu digo para vocês o seguinte, porque eu morei nos EUA: racismo tem lá.
Morei dois anos nos EUA, e na escola em que eu morei lá, o ‘pessoal de cor’ andava
separado. Eu nunca tinha visto isso aqui no Brasil.”101 Por fim, a Polícia Civil do estado
indiciou o crime por homicídio triplamente qualificado após não encontrar elementos para
indiciar no crime de racismo, mas a delegada Roberta Bertoldo explicou: “nós fizemos
uma análise conjuntural de todos os aspectos probatórios e doutrinários e concluímos,
portanto, que o racismo estrutural que são aquelas concepções arraigadas na sociedade
foram sim, fundamentais, no determinar da conduta dessas pessoas naquele caso.”102

As diversas manifestações sobre o caso citadas acima evidenciaram usos diferentes


para o termo “racismo”. Rodrigo Maia, ao exigir a punição a “quem promove o racismo”
traz implícito o significado aparentemente hegemônico atualmente, que define o conceito
como “preconceito em relação à ascendência étnica combinado com ação
discriminatória.”103 Este significado orienta a legislação brasileira e, ao segui-lo, a Polícia
Civil gaúcha não localizou evidências suficientes para indiciar o assassinato no crime de
racismo. Contudo, um segundo significado, mais abrangente, aparece na declaração de
Davi Alcolumbre, ao citar “a necessidade de lutar contra o racismo estrutural”. Mesma
terminologia explicada por Roberta Bertoldo: “o racismo estrutural que são aquelas
concepções arraigadas na sociedade” e que estariam por trás da violência extrema
destinada à vítima. A definição de “racismo estrutural” ganhou maior difusão na sociedade
brasileira recentemente, a partir do impacto de um livro do jurista Silvio Almeida, O que é
racismo estrutural?, originalmente publicado em 2018, através de uma coleção de livros
organizada pela filósofa e influenciadora digital Djamila Ribeiro. Embora Sílvio não seja o
criador do termo, seu livro e palestras, junto a outros livros e vídeos de Djamila, foram de
central importância para a difusão nas mídias, de modo que o “caso João Alberto” parece

100
< https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADcia/presidentes -da-c%C3%A2mara-
e-senado-denunciam-racismo-no-caso-da-morte-de-jo%C3%A3o-alberto-1.524178> Acesso 25/01/2021.
101
< https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/11/20/ mourao-lamenta-assassinato-de-homem-negro-em-
mercado-mas-diz-que-no-brasil-nao-existe-racismo.ght ml> Acesso 25/01/2021.
102
< https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/12/11/policia-indicia -seis-por-morte-de-cidadao-
negro-no-carrefour-em-porto-alegre-rs.ghtml> Acesso 25/01/2021.
103
Esta é a definição do conceito de racismo tomada como ponto de partida de análise do robusto livro de
BETHENCOURT, Francisco. Racismos. Das cruzadas ao século XX. 2018, p. 21.
42

ter sido uma das primeiras ocasiões de mobilização do termo, com grande difusão
midiática, por líderes políticos brasileiros, jornalistas e pelo judiciário.

A quarta declaração citada, contudo, demonstra ir na contramão das demais. A fala


do general Hamilton Mourão negava não apenas a presença de “racismo” no caso, mas
também que exista racismo no Brasil, justificando seu argumento com sua experiência nos
Estados Unidos, onde “‘o pessoal de cor’ andava separado”. Para o general Mourão, e
quem mais ainda pense como ele, o significado de “racismo” não é o preconceito e a ação
discriminatória e tampouco as “concepções arraigadas”, mas sim a segregação racial
oficialmente instituída, nos moldes do que este texto apresentou ao situar a Black Music.
Há que se reparar que não se trata apenas da escolha de palavras em conversas cotidianas,
mas de significados que orientam a legislação, políticas públicas antirracistas e a atuação
das polícias. Definir o racismo enquanto segregação racial oficial estimula raras ações do
Estado para uma realidade como a brasileira, na qual não foi instituída uma separação
racial amparada explicitamente no código legal; diferente da concepção individualista
presente na afirmação de Rodrigo Maia, que permite a criminalização de ações; ou da
concepção estrutural, que exige políticas sociais antirracistas mais profundas, a começar
pela “discriminação positiva” de ações afirmativas.

A concepção de “racismo” defendida pelo general Mourão era a hegemônica no


Brasil durante o recorte estudado nesta tese. Embora a concepção de preconceito e
discriminação aparecesse em algumas reportagens e outras plataformas de denúncias
cotidianas, consultar dicionários da época comprova a hegemonia da concepção de
segregação racial e afirmação da superioridade de uma raça. A compreensão do significado
do termo é importante para acompanhar a mobilização do vocábulo pela legislação
brasileira e o aparato policial da ditadura militar - que enquadrava movimentos
antirracistas como “racismo negro”. E ainda para entender o aparente paradoxo encontrado
no período: alguns artistas declaravam não haver racismo no Brasil, ainda que
denunciassem o preconceito e discriminação racial no país. Deste modo, a compreensão do
“racismo” como um importante vocábulo nas lutas políticas permeia toda a tese, ainda que
o termo não apareça nas letras das canções estudadas.

A historicidade do vocábulo “racismo” na sociedade brasileira e sua relevância para


as linguagens antirracistas explicitam não se tratar apenas da disputa de significados no uso
cotidiano das palavras, conforme argumentado nos parágrafos anteriores. O filósofo
43

marxista russo Mikhail Bakthin, no início do século XX, apresentou as palavras, os signos
linguísticos, como arena da luta de classes, reivindicando atenção às diferenças na
enunciação conforme o grupo social do interlocutor, tendo em vista que a língua, para o
falante, não se apresenta como norma rígida, mas como comunicação. 104 A mobilização
das palavras como mais uma arena das lutas políticas é particularmente importante para os
chamados novos movimentos sociais, ou “movimentos de identidade”, com o intuito de
fixar ganhos políticos e jurídicos. Retratando o feminismo, a historiadora estadunidense
Rebecca Solnit destaca esse fato, em um tópico significativamente intitulado “Nossas
palavras são nossas armas”:

O termo ‘assédio sexual’, por exemplo, foi criado nos anos 1970, usado pela
primeira vez no sistema legal nos anos 1980, recebeu status legal pela Suprema
Corte em 1986, e ganhou cobertura generalizada da mídia em 1991, no turbilhão
ocorrido depois que Anita Hill testemunhou contra seu antigo chefe, Clarence
Thomas, nas audiências do Senado para a indicação dele à Suprema Corte. 105

No prosseguimento do argumento, a historiadora acrescenta: “Violência


doméstica, ‘mansplaining’, cultura do estupro, senso de direito ao sexo são algumas das
ferramentas linguísticas que redefinem o mundo que muitas mulheres encontram
diariamente e abrem o caminho para começar a mudá-lo.”106 Rebecca Solnit inicia essas
considerações demarcando que: “Nestas alturas já ouvimos falar demais sobre os anos
1960, mas as mudanças revolucionárias dos anos 1980 são mais negligenciadas e
esquecidas”,107 advertência dirigida à realidade estadunidense, mas cabível para a pesquisa
sobre o contexto brasileiro.

No tocante às lutas antirracistas, o recorte do terceiro capítulo desta tese, entre 1978
e 1988, é o cenário no qual as militâncias e intelectualidade negra difundiram o movimento
que levou à consolidação do significado do vocábulo “racismo” como “preconceito
combinado à discriminação racial”; potencializando a difusão de outros importantes
vocábulos políticos antirracistas, como o que fortaleceu a denúncia do “mito da
democracia racial” e o “genocídio do negro brasileiro”, e as manifestações em prol de uma
“segunda abolição”.108 Estes termos repercutiram com intensidade nas lutas antirracistas

104
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 1977, p. 9-103.
105
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. 2017, p. 162, 163.
106
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. 2017, p. 170.
107
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. 2017, p. 140.
108
Os termos “segunda abolição” e “mito da democracia” tiveram sua difusão inicial em momento anterior
ao recorte temporal do terceiro capítulo da tese, retrocedendo às décadas de 1950 e 1960, respectivamente,
como será referenciado no capítulo. Contudo, a densidade política obtida no contexto da redemocratização e
com a emergência pública do Movimento Negro Unificado é potencializada em manifestações nas ruas.
44

imiscuídas à “resistência democrática”, contribuindo na qualificação do conteúdo da


“democracia” a emergir após anos de ditadura.

Da documentação fonográfica.

O tópico anterior iniciou-se com uma referência ao ofício historiográfico partir


sempre de um diálogo com o presente, referência útil de ser retomada para a apresentação
do corpus documental principal desta tese: a música popular registrada em fonogramas e
difundida e comercializada no formato de álbuns e discos compactos. Afinal, o
considerável número de discos estudados no decorrer desta tese teve seu acesso
possibilitado principalmente devido à sua força enquanto produtos comerciais, com a
expectativa de lucro das gravadoras, que estimulou reedições no formato Compact Disc
(CD) no decorrer dos anos 1990 e, sobretudo, nas primeiras décadas do século XXI.
Assim, é propício iniciar este último tópico da introdução da tese informando sobre o
cenário de acesso à documentação central da pesquisa.

Conforme pontua a historiadora Miriam Hermeto: “A canção popular é arte, é


produto cultural, mas é, igualmente, produto de mercado”109 E sua dimensão de produto de
mercado é um facilitador para o acesso ao público consumidor, tendo em vista que
possibilita o encontro em lojas diversas, sebos e, por vezes, até mesmo nas prateleiras de
supermercados. A imensa maioria das fontes, o acervo documental desta pesquisa, são de
fácil acesso a quem leia estas páginas e, portanto, não estão restritas à visita de arquivos
históricos. A possibilidade de tal acesso, porém, seria distinta se o contexto de produção da
pesquisa fosse a década de 1990, período no qual a maioria dos discos estudados eram
encontrados apenas em lojas de revenda de velhos discos de vinil (e ainda não havia a
popularização do acesso à rede de internet, vale ressaltar). No decorrer dos anos 1990, após
a difusão das tecnologias digitais de gravação fonográfica, as grandes gravadoras
multinacionais, que dominam (ou dominavam, talvez) o mercado musical, mantiveram o
investimento nos artistas de maior lucratividade do momento (chamados pelos executivos
“artistas de sucesso”) ou em novos lançamentos de artistas com carreira sólidas (“artistas
de catálogo”) em um então novo suporte, o compact disc (CD). E o desenvolvimento desta
revolução digital alterou profundamente a indústria fonográfica:

109
HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de História. 2012, p. 64.
45

Com o desenvolvimento da rede mundial de computadores, as gravações


musicais digitais se transformam em dados e arquivos e, com formatos
adequadamente desenvolvidos, passaram a circular amplamente na internet. A
expansão desse processo coincide com a queda das vendas e do faturamento da
indústria fonográfica.110

A citação acima encontra-se no livro Os donos da voz, da socióloga Márcia Dias,


em um apêndice intitulado “A grande indústria fonográfica em xeque” - título que explicita
o cenário de crise que as multinacionais passaram a enfrentar no final dos anos 1990. A
autora prossegue, apresentando as profundas mudanças ocorridas a partir de então:

O chamado Big Five, grupo formado pelas companhias EMI, Polygram, BMG-
Ariola, Sony Music e Warner Music, hegemônico desde o início da década de
1990, passou por uma mudança significativa em 1998, quando a Philips vendeu a
Polygram para o Grupo Seagram-Universal, fazendo surgir a Universal Music.
(...) A mesma lógica parece ter animado a fusão, em novembro de 2003, da BMG
com a Sony Music, originando a Sony & BMG Music Enternainment. 111

Nas fusões ou vendas, as grandes gravadoras levavam consigo o seu catálogo, ou


seja, os artistas então contratados e também as antigas produções musicais registradas na
empresa: o direito de reprodução das músicas, isoladamente, e dos discos lançados. É este
o contexto da reportagem citada no início desta introdução, “Samba & Soul safras 60 e 70.
Série de 12 obras repõe clássicos da música black nacional”, publicado no jornal Folha de
São Paulo em agosto de 2001. A reportagem retrata uma iniciativa tomada pela filial
brasileira do conglomerado Universal Music e inicia-se com uma referência direta ao
cenário de crise: “Bombardeada pela pirataria e pelo encolhimento assustador do mercado
de CDs, a indústria fonográfica exibe sinais de ‘retroceder’ à preocupação com a
qualidade.”112

Relançar antigos discos do catálogo que estejam “gozando de relativa


revalorização” não foi a única iniciativa tomada pela indústria fonográfica em uma
resposta “memorialística” à crise. O investimento em caixas luxuosas contendo a
discografia completa de artistas - ou trazendo seleções de álbuns em sua produção - tornou-
se uma medida de revalorização do catálogo, visando um público consumidor fiel ao
formato CD e disposto a investir maior valor financeiro. Iniciativa facilitada por as fusões
muitas vezes permitirem a junção de produções de artistas que migraram por diferentes
gravadoras em sua trajetória artística. Foi pela compra de algumas destas caixas que esta
pesquisa de doutorado pôde ter acesso a toda, ou à maior parte, da produção de Elza Soares

110
DIAS, Márcia. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008. 2 ed.,
p. 183.
111
DIAS, Márcia. Os donos da voz. 2008. p. 184, 185.
112
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0308200127.ht m> Acesso 20/01/2021.
46

(Negra. EMI. 2003), Wilson Simonal (Wilson Simonal na Odeon [1961-1971]. Universal.
2004), Jorge Ben (Salve Jorge. Universal. 2010), Gilberto Gil (Palco. Warner. 2002), Luiz
Melodia (Três tons de Luiz Melodia. Universal. 2013), Emílio Santiago (Três tons de
Emílio Santiago. Universal. 2014) e Sandra de Sá (Sandra de Sá - anos 80. Discobertas.
2016). Caixas que contém, além dos álbuns com reprodução dos encartes e informações
originais, comumente faixas bônus extraídas de discos compactos e, algumas vezes, textos
explicativos produzidos para o lançamento. Mesmo o único artista estudado na tese que
teve sua produção lançada por pequenas gravadoras do cenário independente, Itamar
Assumpção, teve sua obra completa acessada via uma caixa (Caixa Preta. Sesc Brasil.
2010).

Além dos discos acessados por meio das caixas, a maioria das obras estudadas na
tese foram adquiridos em reedições no formato CD que reproduzem os fonogramas e
também o material gráfico dos álbuns, e também trazendo, eventualmente, faixas bônus
com canções lançadas em compactos contemporâneos ao disco. E, por fim, alguns discos
tiveram o contato limitado ao acesso nas plataformas digitais - contudo, foram apenas
alguns títulos, de menor relevância para a pesquisa. Vale, contudo, esclarecer a quem leia
estas páginas a diferença entre os formatos de discos compactos e álbuns. Quando se fala
da circulação comercial, no Brasil, da música gravada no suporte dos discos, antes do
advento dos CDs, destaca-se três formatos: o “compacto simples”, com espaço para uma
música geralmente de três a cinco minutos em cada lado, totalizando duas canções (na
indústria anglófona, Single), o “compacto duplo”, com espaço para a duração de duas
músicas em cada lado (Extended Play, EP) e o “álbum” (Long Play, LP), em geral com
quinze a vinte minutos de música por lado.

O álbum, um produto de maior valor agregado, foi difundido no Brasil no decorrer


da década de 1950 e, conforme será exposto no decorrer da tese, entre as décadas de 1960
e 1970 compartilhou o mercado musical com os compactos, então o principal produto.
Entre o final da década de 1970 e os anos 1980 os compactos foram perdendo espaço
comercial para o álbum, que se tornou o principal formato de consumo. Deste modo, era
comum que canções com maior expectativa de apelo comercial fossem lançadas em
compactos e em seguida incluídas no novo álbum de um artista. Alguns artistas, porém,
não repetiam as canções lançadas em compactos em seus álbuns (é o caso, na pesquisa, de
canções relevantes como “Tributo a Martin Luther King” e as lançadas no “compacto
nativista” por Wilson Simonal; ou “Sou Negro” e “Se Jesus fosse um homem de cor [Deus
47

Negro]”, de Toni Tornado), situação na qual a tese se dedicará à análise dos compactos em
seu contexto de lançamento. Salvo esses últimos casos, o álbum será o formato
privilegiado, posto que este, com a maior capacidade de tempo de gravação, permite a
melhor expressão autoral, “uma vez que torna o artista mais importante que o disco.”113 O
sentido da escala de importância no caso, é possível exemplificar, está na diferença entre o
público consumidor que procura, em uma loja, “o disco da canção ‘Primavera’” e aquele
que busca “o disco Tim Maia de 1970”.

O formato álbum, portanto, possibilita a melhor expressão de um artista, posto que


reúne uma série de canções, potencializando a difusão de uma sonoridade ou mesmo de um
argumento que atravesse as canções: o conceito do disco. Dois exemplos esclarecerão
melhor essa referência. No recorte desta tese e entre os artistas estudados, os dois álbuns da
série Racional, lançados por Tim Maia em 1975 e 76, apresentam um conceito bastante
explícito ao difundir a religiosidade da seita Racional em todas as faixas. O apelo religioso
teria menor expressividade se fosse tema de uma música ou duas, mas ao integrar todas as
nove canções de um álbum (e mais nove do segundo lançamento), possibilitou sua
identificação como disco religioso e a sua recusa de lançamento por uma grande gravadora
pela compreensão de ser um conceito de pouca expectativa comercial. Como segundo
exemplo, em 1977, Gilberto Gil, artista de carreira consolidada desde os anos 1960,
lançou, pela gravadora Philips, o álbum Refavela, construído a partir do conceito de
retratar, na sonoridade e nas letras, dimensões sociais e culturais das comunidades negras
no Brasil. Novamente: uma ou duas canções não trariam a mesma força ao argumento
central quanto a sequência das dez canções registradas.

A unidade de um álbum pode ser trabalhada, além da seleção de canções para


integrá-lo, pelo arranjo escolhido para executar as canções (no último exemplo, a execução
por Gil de “Samba do avião”, de Tom Jobim, na sonoridade soul reforça o conceito do
disco), a direção musical, instrumentistas envolvidos, o produtor do disco e os técnicos de
gravação e mixagem – referências apresentadas no gênero masculino, posto que são
profissões ocupadas apenas por homens nos discos do recorte estudado. O trabalho gráfico
de um álbum também pode reforçar aspectos do conceito, através das imagens
selecionadas para capa, contracapa e encarte e outras informações presentes, como textos e
o próprio título da obra. As capas dos discos, portanto, atuam como mais do que mera

113
DIAS, Márcia. Os donos da voz. 2008. p. 61.
48

embalagem, sendo mais um veículo de comunicação, e por isso integram as fontes


estudadas quando o disco é compreendido como documento histórico. Deste modo, o
conjunto de pessoas envolvidas entre a gravação de fonogramas, a produção dos discos e
seu consumo, conforme Miriam Hermeto, compõe um “circuito de comunicação” da
canção, que estimula a atenção acadêmica a uma “história da canção popular e da
audiência”.114 Enquanto objeto e fonte histórica, reconhece-se que entre o ponto de partida
da composição, a fixação e registro da performance no fonograma e a produção da arte
gráfica, há diversos atores – e interesses e propostas – a influenciar no que se tornará o
produto final distribuído às lojas e aos ouvintes como o produto comercial disco. Mas há
também a intenção da/o artista de se expressar a partir dos vários elementos do disco.

A identificação da música registrada em fonogramas e dos álbuns como um veículo


de comunicação permite avançar na abordagem da documentação fonográfica adotada
nesta tese. Segundo o linguista Luiz Tatit, “o canto sempre foi uma dimensão
potencializada da fala.”115 Em uma proposta intelectual de trabalhar como a entoação da
oralidade “produz” a canção, reconhecida como um produto comercial, Tatit argumenta
que, desde os primeiros sambistas, as canções “serviam-se das entoações que acompanham
a linguagem oral e das expressões usadas em conversa”. 116 O autor define a canção como
aquela que estabelece uma “relação entre melodia e letra”, 117 um formato que o historiador
Marcos Napolitano demarcou como “um produto do século XX. Ao menos em sua forma
‘fonográfica’”.118 Essa abordagem orienta a análise do linguista que, assim, estuda na
prática musical brasileira “uma espécie de oralidade musical em que o sentido só se
completa quando as formas sonoras se mesclam às formas linguísticas inaugurando o
chamado gesto cancional (...) instituindo um modo de dizer que, em última instância,
espera por um conteúdo a ser dito.”119

Embora a análise proposta para a presente tese não persiga a força entoativa da
canção ou o gesto cancional, a ênfase de Luiz Tatit na dimensão de fala é estimulante,
assim como sua afirmação que os artistas “preparavam suas canções para a gravação, mas
não deixavam de usá-las como veículo direto de comunicação”. 120 Afinal, compreensão

114
HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de História. 2012, p. 41.
115
TATIT, Luiz. O século da canção. 2008, p. 41.
116
TATIT, Luiz. O século da canção. 2008, p. 34.
117
TATIT, Luiz. O século da canção. 2008, p. 151.
118
NAPOLITANO, Marcos. História & música popular. 2002, p. 11.
119
TATIT, Luiz. O século da canção. 2008, p. 69.
120
TATIT, Luiz. O século da canção. 2008, p. 42.
49

similar foi expressa por Wilson Simonal, em reportagem publicada em março de 1967
sobre sua canção antirracista “Tributo a Martin Luther King”, na qual afirma, a respeito do
processo de criação: “Acho que a música, em primeiro lugar, foi feita para divertir. Mas é
evidente que através da música você pode fazer um movimento de contestação, de
informação.”121

O potencial da música, particularmente no formato canção, como um veículo direto


de comunicação, capaz de realizar movimentos de contestação e informação a partir da
difusão de ideias políticas antirracistas é o que orienta a proposta desta tese. A
compreensão da música popular como suporte e veículo para a circulação de ideias
políticas é inspirada nas contribuições do historiador Robert Darnton aos estudos da
circulação da informação, em que localizou na música um importante veículo para a
circulação de ideias, notícias e mensagens na Paris do século XVIII. 122 A inspiração desta
tese na proposta de Darnton, contudo, é consciente das profundas diferenças de concepção
e suporte na música popular do século XVIII e da música comercial do século XX, fixada e
difundida a partir de fonogramas e da indústria fonográfica, que compoem as fontes desta
pesquisa. A proposta de Robert Darnton é apropriada enquanto uma estimulante inspiração
teórico-metodológica, que funciona como alternativa a uma pesquisa que, embora
comprometida com a atenção na articulação entre melodia e texto que integra o formato
canção – ambos, de certo modo, politizados e veículos da linguagem política estudada –,
não pretende basear-se em uma análise da Musicologia.

Aborda-se, portanto, a música popular, registrada e mercantilizada através do


suporte fonograma, como um veículo para a Linguagem Política do Orgulho Negro,
possibilitando que a canção, por sua dimensão de fala, atue como um ato de fala, um
discurso sobre o mundo – em “um movimento de contestação, de informação”, nas
palavras de Simonal –, ainda que sem perder sua orientação comercial e de entretenimento.
A apropriação para a canção da proposta metodológica dos historiadores Quentin Skinner e
John Pocock, contudo, compartilha das limitações da abordagem dos autores ao analisarem
os livros de pensamento político como atos de fala e discursos: a análise centra-se na
emissão, sem pretensão de compreender a recepção no processo de comunicação, os efeitos

121
Correio da Manhã. Rio de Janeiro. 04 de dezembro de 1970. Caderno anexo, p. 03. O cantor ressaltou a
importância do potencial de comunicação no qual justificou o seu movimento de contestação ou informação.
122
DARNTON, Roberto. As notícias de Paris: uma pioneira sociedade da informação. In: Os dentes falsos de
George Washington: Um guia não convencional para o século XVIII. 2005, p. 40-90.
50

no leitor ou, para esta tese, no ouvinte. 123 Assim, entre as muitas pessoas envolvidas em
meio à “história da canção popular e da audiência”, a tese priorizará os artistas, sobretudo
os intérpretes das obras estudadas. E essas obras terão sua leitura estabelecida como
discursos, formas de intervenção no mundo em que vivem, em diálogo com o seu contexto.
Discursos que em alguns casos são potencializados a partir do conceito defendido no disco
no qual foram inseridos. A música e os discos apresentam peculiaridades que os diferencia
da literatura em suas possibilidades como suporte e veículo de ideias políticas, e, para esta
tese, tais peculiaridades podem potencializar a mensagem, a partir da entoação, melodia, o
conceito do disco e a arte gráfica.

A partir dos referenciais apresentados acima, a tese estuda um formato da canção


brasileira orientado pela sonoridade Black que, a partir da década de 1960 e,
principalmente, de 1970, constituiu um relevante produto no mercado de bens culturais em
uma indústria do entretenimento que se encontrava em franca expansão. A Black Music
Brasileira, então, foi difundida através da comercialização de discos e também em estações
de rádio, programas musicais televisivos, trilhas sonoras de novelas, além das próprias
performances dos artistas em seus concertos. Nesta pesquisa toma-se como ponto de
partida da análise, as pessoas da composição e da interpretação, que, entre diversas
temáticas, podem optar por expressar um comentário ou realizar uma intervenção sobre o
contexto sócio-político no qual estão inseridas, sem deixar de retratar em seus discos
outros temas, como a temática romântica. O processo de autoria e performance da canção
pode, assim, expressar representações sociais e discursos políticos nas falas que
potencializa. Porém, além do público presente nos concertos, ouvintes de lugares mais
longínquos não teriam acesso às mensagens e atos de fala presentes na canção apenas pelo
alcance de uma voz. O processo de gravação e reprodutibilidade pela indústria fonográfica,
objetivando o lucro, permite a fixação e a circulação do produto comercial canção para um
público muito maior, ouvintes/consumidores a variadas distâncias geográficas e
cronológicas. A gravação em fonogramas, a comercialização do produto disco, a
distribuição em diversas lojas no mercado nacional e internacional e as possibilidades de
relançamentos em diversos momentos - ou seja, a dimensão industrial que constitui o
circuito de comunicações remetendo à música como mercadoria -, ainda que delimite a
canção por algumas dinâmicas técnicas objetivando o lucro, em contrapartida, por uma

123
Ver nota de rodapé 58.
51

espécie de “efeito polinizador”,124 potencializa o alcance e a difusão de eventuais


mensagens políticas.

Antes de concluir esse texto introdutório da tese, vale assumir o reconhecimento da


desproporção de gênero na documentação estudada. O número de mulheres identificadas
na seleção da pesquisa é expressivamente inferior ao de homens, apesar da reconhecida
tradição brasileira de mulheres intérpretes no recorte estudado. A percepção desse dado da
análise permite recordar de um ensaio da intelectual Lélia Gonzalez, original de 1979, no
qual ela afirma que “o processo de exclusão da mulher negra é patenteado em termos de
sociedade brasileira, pelos dois papéis sociais que lhe são atribuídos: ‘domésticas’ ou
‘mulatas’.”125 Argumento que a intelectual fundamenta a partir de dados analíticos oficiais:

O censo de 1950 foi o último a nos fornecer indicadores sociais básicos relativos
à educação e ao setor da atividade econômica da mulher negra. A partir daí,
pode-se constatar: seu nível de educação é muito baixo (a escolaridade atinge, no
máximo, o segundo primário ou fundamental) e o analfabetismo é predominante.
Do ponto de vista da atividade econômica, apenas cerca de 10% atuam na
agricultura e/ou na indústria (sobretudo têxtil, e em termos de Sudeste -Sul); os
90% restantes estão concentrados no setor de serviços pessoais. 126

A força do direcionamento ao trabalho no setor de serviços pessoais para as


mulheres negras aparece na biografia de muitas das artistas estudadas durante a pesquisa,
assim como nas mães de grande parte dos artistas estudados, conforme será exposto em
alguns trechos no decorrer da tese. Contudo, as artistas cuja produção é abordada no
decorrer da tese não são as únicas mulheres negras na produção musical do período e nem
mesmo as únicas que escapam à sonoridade convencional do samba – o “lugar” geralmente
circunscrito à população negra na indústria fonográfica. Um livro do historiador Ricardo
Santhiago, Solistas dissonantes: história (oral) de cantoras negras, publicado em 2009,
apresenta como problemática das entrevistas realizadas a rota de cantoras negras brasileiras
não sambistas, em geral adeptas da sonoridade do jazz. Dos nomes cuja carreira
fonográfica coincide com o recorte desta tese, apenas Zezé Motta adere à sonoridade e
abordagem estudadas nesta pesquisa, mas as demais (Alaíde Costa, Áurea Martins, Eliana
Pittman e Rosa Maria [atual Rosa Marya Colin]) por vezes serão referenciadas para a
compreensão do contexto da cena musical de cada capítulo.

124
A apresentação da metáfora do “efeito polinizador” para abordar a distribuição na indústria fonográfica
está em MORAIS, Bruno. “Sim, sou um negro de cor”. 2016, p. 167-176.
125
GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da
mulher. In: Por um feminismo afro-latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 44.
126
GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da
mulher. In: Por um feminismo afro-latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 40.
52

A proposta de pesquisa da tese, portanto, estimulou a abordagem de pessoas que


são, em certa medida, uma exceção consciente na realidade brasileira. Uma exceção, visto
se tratar de pessoas negras em condição de ascensão social e econômica, que obtiveram
visibilidade midiática e consagração em uma realidade nacional na qual a maioria das
pessoas negras vivem em situação de pobreza – realidade, aliás, da qual emergiu a maioria
destes artistas. Mas essas, então, elites ou classes médias negras configuram exceções
“conscientes”, posto que retrataram em canções o preconceito e discriminação racial e a
situação de marginalidade e exclusão social a que estão confinadas a grande maioria das
pessoas negras no Brasil.

Por fim, cabe avisar que o autor da tese decidiu adotar duas liberdades na
explicitação das referências da pesquisa, ambas justificadas por uma certa dose de
compromisso político e didático. Nas breves experiências de atuação docente para com a
graduação, foi notável o interesse de estudantes pela indicação de referências bibliográficas
escritas por mulheres e por pessoas negras, homens e mulheres. Com o objetivo de facilitar
a localização das mulheres na bibliografia mobilizada, a opção foi adotar a referência no
texto e em notas com a inclusão sempre do primeiro nome, tendo em vista que a suposta
universalidade do sobrenome muitas vezes oblitera a autoria feminina.127 Quanto à
produção intelectual negra, as possibilidades de destaque são um pouco mais difusas. A
opção, portanto, foi de demarcar na bibliografia final da tese em sublinhado as referências
escritas por pessoas negras. Apesar da consciência dos limites e dificuldades inerentes a
esta opção - particularmente na produção brasileira, país no qual os critérios de
classificação racial são fluídos e a identificação torna-se confusa e circunstancial entre a
população miscigenada -, essa opção foi inspirada no que o jurista Silvio Almeida ressaltou
como a “discriminação positiva, definida como a possibilidade de atribuição de tratamento
diferenciado a grupos historicamente discriminados com o objetivo de corrigir
desvantagens causadas pela discriminação negativa – a que causa prejuízos e
desvantagens.”128

Agora sim, e finalmente, adentremos aos capítulos!

127
Agradeço ao historiador e amigo Cássio Bruno de Araújo Rocha por essa sugestão, em uma conversa
informal ocorrida muitos anos atrás, mas estimulante e marcante.
128
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? 2018, p. 26.
53

Capítulo Um:

De 1960 a 1969:
Os “primórdios” da Black Music brasileira e da Linguagem Política do
Orgulho Negro na canção brasileira.

Sim, sou um negro de cor.


Meu irmão de minha cor,
o que te peço é luta sim, lutar mais,
que a luta está no fim.
Cada negro que for, outro negro virá,
para lutar, com sangue ou não,
com uma canção também se luta, irmão.
Ouve minha voz, luta por nós.
Luta negra demais, é lutar pela paz.
Para sermos iguais.
(Wilson Simonal/Ronaldo Bôscoli)
54

Introdução.

Mil nações moldaram minha cara


Minha voz uso pra dizer o que se cala
O meu país é meu lugar de fala.129

Em junho de 2020, enquanto a sociedade brasileira enfrentava o primeiro período


de pico global de contágio da pandemia de Covid-19, a consagrada cantora carioca Elza
Soares lançou nas plataformas virtuais a nova canção “Negão Negra”, gravada em dueto
com o compositor, o rapper mineiro Flávio Renegado. 130 Lançada um mês após o
aniversário de 90 anos de Elza, a canção reafirmava elementos temáticos que
caracterizaram as composições interpretadas pela cantora nos cinco anos anteriores: Nunca
foi fácil e nunca será/ Para o povo preto do preconceito se libertar/ Sempre foi luta,
sempre foi porrada/ Contra o racismo estrutural, barra pesada; e Todos os dias me
levanto/ Olho no espelho, sempre me encanto/ Com o meu cabelo e a cor da pele dos meus
ancestrais. São versos engajados com a denúncia da opressão racial e com a afirmação
orgulhosa das comunidades negras. Em versos cantados por Renegado, a temática também
estava presente: Todas as noites no quarto escuro/ Peço a Deus e aos Orixás/ Que a
escravidão não volte nunca, nunca, nunca mais, abordando a religiosidade de matriz afro-
brasileira e a memória traumática do escravismo.

A idade avançada de Elza Soares e a debilidade física provocada por vários


problemas de saúde131 não se refletiram no vigor das gravações da artista e tampouco
impediram que, desde meados da segunda década do século XXI, a cantora esteja vivendo
um apogeu de sua carreira. Em 2015, a artista lançou o álbum Mulher do fim do mundo,
possivelmente o mais prestigiado de sua carreira, ganhador dos prêmios de melhor álbum
do Troféu APCA132 e do Prêmio da Música Brasileira,133 e eleito o Melhor Álbum de
Música Popular Brasileira do Grammy Latino.134 O disco, trigésimo segundo álbum de

129
Elza Soares. O que se cala (Douglas Germano). Deus é Mulher. Álbum. Deckdisc, 2018. Faixa 01.
Observação: Esta tese foi finalizada e entregue à banca antes do falecimento da Elza, em 20/01/2022.
130
<https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/24/elza-soares-comemora-90-anos-com-
negao-negra-com-flavio-renegado-ouca.htm> Acesso 06/03/2021.
131
Após uma queda ocorrida durante uma apresentação musical em 1999, Elza Soares passou a se locomove r
com dificuldade, o que foi agravado no decorrer dos dez anos seguintes, com uma operação na coluna
vertebral, uma cirurgia na região lombar, outras duas operações seguidas devido a uma diverticulite aguda,
uma colostomia e um acidente de carro. Ver CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 309-345.
132
<https://web.archive.org/web/20160629121012/http://www.jornaldepiracicaba.com.br/ cultura/2016/03/a_
mulher_do_fim_do_mundo> Acesso 06/03/2021.
133
< http://g1.globo.com/musica/noticia/2016/06/veja-os-vencedores-do-27-premio-da-musica-
brasileira.html> Acesso 06/03/2021.
134
< https://gshow.globo.com/Musica/noticia/paula-fernandes-leva-grammy-latino-de-melhor-album-de-
musica-sertaneja.ghtml> Acesso 06/03/2021.
55

estúdio lançado por Elza, consolidou um processo de rejuvenescimento de seu público, que
ocorria desde o impacto da regravação da canção “A Carne”, lançada pela cantora no
álbum Do cóccix até o pescoço (2002), e que possibilitou o reavivamento de uma carreira
bastante fragilizada no decorrer dos vinte anos anteriores.

A guinada na carreira de Elza foi catalisada pela união, em torno da artista, dos
jovens empresários Pedro Loureiro e Juliano Almeida e do produtor musical (e baterista)
Guilherme Kastrup, que criaram uma bem sucedida estratégia de renovação comercial para
a cantora.135 Musicalmente, o projeto incluía um “rejuvenescimento” da sonoridade, enfim
abandonando a identidade estética que desde os anos 1960 supostamente limitava a artista
ao posto de sambista (o que há décadas era criticado pela cantora como uma clausura),
agora fundindo o samba ao rap, guitarras e música eletrônica, num formato que foi
etiquetado comercialmente como “vanguarda paulista”; e uma mudança temática,
abordando enfaticamente a negritude e questões de gênero, como a denúncia à violência
doméstica – temas associados à trajetória publicamente conhecida da artista. 136 A outra
dimensão da estratégia incluía a valorização da imagem pública da artista e divulgação de
sua trajetória biográfica a partir de duas iniciativas. A primeira foi o convite a um
conhecido jornalista para escrever um novo livro biográfico: Zeca Camargo (então
apresentador do programa dominical Fantástico na Rede Globo), que publicou a obra Elza
(2018), com grande divulgação nas mídias. 137 A segunda iniciativa foi outro convite, desta
vez à produtora cultural Andrea Alves, da empresa Sarau Agência, para produzir um
grande espetáculo teatral biográfico sobre a cantora. Também intitulado Elza, o espetáculo
estreou em 2019 e rodou o Brasil, com texto inédito de Vinícius Calderoni, dialogando
com produções teóricas do Feminismo Negro (Conceição Evaristo e Angela Davis), e uma
equipe numerosa, incluindo quatro pessoas na direção, elenco de sete atrizes/cantoras, seis
musicistas e uma ampla equipe técnica, e amparado no repertório dos dois discos mais
recentes da cantora, A mulher do fim do mundo (2015) e Deus é mulher (2018).138

A reapresentação da trajetória biográfica de Elza Soares em livro e espetáculo


teatral abordava uma mulher forte, que enfrentou em toda a vida obstáculos de uma origem
muito pobre entrecortada pelas dificuldades específicas por ser uma mulher negra. Foi uma

135
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 309-345.
136
< https://www.nsctotal.com.br/noticias/elza-soares-de-vitima-de-violencia-domestica-a-deusa-na-sapucai>
Acesso 06/03/2021.
137
< https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/aos -80-anos-elza-soares-anuncia-biografia-preparem-
se/> Acesso 06/03/2021.
138
<https://palcoteatrocinema.com.br/2019/01/25/elza -no-imperator/> Acesso 06/03/2021.
56

narrativa que, assim, diferenciava-se da linha pungente adotada na biografia anterior da


cantora, o livro Elza Soares – Cantando para não enlouquecer, escrito pelo jornalista José
Louzeiro e publicado pela Editora Planeta, em 1997.139 De tal modo, a partir de sua
trajetória biográfica e do posicionamento expresso nas canções, a Elza do século XXI
podia ser reconhecida como um símbolo vivo do Feminismo Negro Interseccional140 ao
expressar as chagas consequentes do que a filósofa argentina María Lugones denominou
“colonialidade dos gêneros”: a experiência feminina operada na intersecção entre gênero,
classe e raça.141 Estes emblemas nortearam o conceito dos dois álbuns seguintes lançados
pela cantora, o já mencionado Deus é mulher (2018) e o - até o momento da redação deste
texto - último álbum da artista, Planeta Fome (2019).142 Ambos os discos aprofundando
mais na sonoridade eletrônica e elétrica e com ótimos retornos de público e crítica,
consolidando o status reconquistado pela intérprete no mercado fonográfico, ainda que sem
a mesma recepção em prêmios do álbum de 2015. Assim, quando do lançamento de
“Negão Negra”, em 2020, tanto a sonoridade rap quanto a temática antirracista e da
afirmação de cultura e beleza negras já eram associadas à imagem de Elza.

A revalorização da carreira e da imagem de Elza Soares repercutiu em interesse


acadêmico em torno da artista. Na revisão bibliográfica para a produção desta tese, os
trabalhos identificados apresentando a artista como objeto de pesquisa situavam o recorte
de análise na produção de Elza no século XXI, tomando os quarenta anos de carreira
anteriores como um contexto. A dissertação em Literatura e Cultura de Luana Solidade,
Blues e Samba traduzindo corpos de mulheres negras em performances de Billie Holiday e
Elza Soares, defendida em 2017, a partir das teorias desconstrucionistas dos filósofos
Jacques Derrida e Gilles Deleuze, estabelece conexões entre as trajetórias pessoais e as
músicas gravadas pela cantora estadunidense, entre as décadas de 1930 e 1950 e a cantora
brasileira no século XXI - principalmente no álbum A Mulher do Fim do Mundo, de 2015 -

139
O potencial para diferentes efeitos narrativos diante de uma mesma história de vida permite ressaltar,
conforme Bourdieu, que a “construção da noção da trajetória como série de posições sucessivamente
ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando
sujeito a incessantes transformações.” [p. 189]. Ver BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO,
Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & Abusos da História Oral. 2006, p. 183-191.
140
Para um apanhado geral e introdutório, ver AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. 2019.
141
LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (org.)
Pensamento feminista. Conceitos fundamentais. 2019, p. 357-77.
142
Título que evoca um momento emblemático da trajetória inicial da cantora, e amplamente mobilizado nas
referências biográficas sobre ela, quando a então adolescente amadora Elza participou do programa de
calouros de Ary Barroso e foi questionada pelo apresentador, jocosamente, sobre sua aparência e de onde ela
teria surgido, no que prontamente respondeu “do mesmo lugar que você, ‘Seu’ Ary: o Planeta Fome”. Ver o
capítulo 3 de CAMARGO, Zeca. Elza. 2019.
57

, como “um movimento de resistência. É ferida aberta: cantar tristeza e sobreviver.”143 Já


entre trabalhos de conclusão de curso, a monografia em Jornalismo de Francielle Souza, A
desconstrução dos mitos sobre a mulher negra: um olhar sobre Elza Soares, Tássia Reis e
Mc Soffia,144 defendida em 2018, aborda a interpretação de Elza apenas na canção “Mulher
do Fim do Mundo”, do álbum homônimo; e a monografia em História de Lucas
Evangelista, “Minha fé quem faz sou eu”: identidade e religião em “Deus é Mulher”
(2018),145 defendida em 2019, desde o título enfatiza o recorte no álbum recente. Os
artigos localizados limitam-se à análise de canções do consagrado álbum de 2015: Cê vai
se arrepender de levantar a mão pra mim: a violência doméstica exteriorizada por Elza
Soares na canção Maria da Vila Matilde (2017), Da tensão ao sublime: potencialidades
estéticas da canção “Mulher do fim do mundo”, de Elza Soares (2019), Discurso
biográfico de (re)existência negra na poética sonora e imagética de “A mulher do fim do
mundo”, de Elza Soares (2020), e Elza Soares e a insubmissão das Marias da Vila
Matilde: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim” (2020).146

A onipresença do recorte analítico na produção de Elza Soares no século XXI para


análises políticas, embora justificada pela indubitável ênfase que as temáticas antirracistas
e de gênero tomaram nas composições gravadas pela intérprete e em seus posicionamentos,
não significa que os elementos reivindicados pela abordagem interseccional estivessem
ausentes na produção gravada pela artista em décadas anteriores. A pesquisa que resulta
nesta tese localizou desde o primeiro álbum lançado por Elza, em 1960, a temática
antirracista expressa em algumas canções, assim como discursos a partir das experiências
de raça, classe e gênero. Também na dimensão da sonoridade, desde o primeiro álbum não
é exato retratar Elza como uma sambista, de maneira “purista”. A mistura de sonoridades

143
SOLIDADE, Luana Lise Carmo da. Blues e Samba traduzindo corpos de mulheres negras em
performances de Billie Holiday e Elza Soares. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal da Bahia, 2017,
p. 18.
144
SOUZA, Francielle Neves. A desconstrução dos mitos sobre a mulher negra: um olhar sobre Elza Soares,
Tássia Reis e Mc Soffia. Monografia (Graduação em Jornalismo). Universidade Federal de Ouro Preto, 2018.
145
EVANGELISTA, Lucas Ramalho. “Minha fé quem faz sou eu”: identidade e religião em “Deus é
Mulher” (2018). Monografia (História). Universidade de Brasília, 2019.
146
ALMEIDA, Alexandre B.; FARIAS, Michele W. S. Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim: a
violência doméstica exteriorizada por Elza Soares na canção Maria da Vila Matilde. In: Anais Intecom. XIX
Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste . Fortaleza. CE. 29/06 a 01/07/2017, p. 1-10.
CORAÇÃO, Cláudio R.; SOUZA, Francielle. N. de. Da tensão ao sublime: potencialidades estéticas da
canção “Mulher do fim do mundo”, de Elza Soares. Revista Extraprensa, v. 12, n. 2, p. 94-113, jan./jun.
2019. LIMA, Lilian C. B.; SILVA, Gabriela C. Discurso biográfico de (re)existência negra na poética sonora
e imagética de “A mulher do fim do mundo”, de Elza Soares. In: Revista Philologus, Ano 26, n. 78 Supl. Rio
de Janeiro: CiFEFiL, set./dez. 2020, p. 1423-1440. ALVES, Lidiane C.; FIUZA, Adriana A. F. Elza Soares e
a insubmissão das Marias da Vila Matilde: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. In: Revista
Feminismos. Vol.8, N.2, Maio – Agosto 2020, p. 194-206.
58

marca os trabalhos da artista desde seu primeiro sucesso, “Se acaso você chegasse”,
lançado em compacto em dezembro de 1959, a partir da hibridação do Samba de Gafieira
com elementos da vertente jazzística New Orleans, da qual o nome mais consagrado é o
trompetista e cantor negro estadunidense Louis Armstrong.

A hibridação com vertentes jazzísticas na produção de Elza Soares foi identificada


à época de seu lançamento e batizada – e comercializada – pela denominação “Bossa
Negra”. Assim, a proposta musical veiculada por Elza configura, no argumento desta tese,
a primeira vertente de uma sonoridade que na década seguinte passou a ser denominada
como Black Music Brasileira. Três anos após o primeiro álbum de Elza chegar a público,
dois outros artistas negros, Jorge Ben e Wilson Simonal, lançaram seus primeiros álbuns,
também apresentando hibridações no samba, agora com a vertente jazzística hard bop,
criada pelas comunidades negras estadunidenses, no que foi chamado de hard-bossanova
ou samba-jazz. Ao realizarem uma proposta musical identificada à Bossa Nova, mas que
trazia interlocuções com uma sonoridade identificada às comunidades negras dos Estados
Unidos da América e que expressava em letras elementos da temática antirracista, esta tese
propõe também enquadrar toda esta produção como uma Bossa Negra. Sonoridade que, em
discos instrumentais, encontrou destaque no pianista negro Salvador.

A produção dos artistas da Bossa Negra no decorrer da década de 1960 permitiu


tanto o desenvolvimento de aproximações e hibridações de sonoridades da música
brasileira, notavelmente o samba, com a música negra estadunidense, expandindo o
horizonte de fusões; quanto a expressão de temáticas antirracistas, seja na denúncia de
preconceito e discriminação às pessoas negras, dificuldades do cotidiano das comunidades
pobres e faveladas e afirmações positivadas de elementos culturais afro-brasileiros,
particularmente religiosos. A esse “leque” temático, a segunda metade da década de 1960
registrou a aproximação de experiências das comunidades negras brasileiras e
estadunidense, potencializando uma forma de identificação de mazelas sociais e expressão
antirracista que esta tese denomina por Linguagem Política do Orgulho Negro, consonante
ao desenvolvimento de sonoridades da Black Music no Brasil. No entanto, para a melhor
compreensão do “ambiente” que possibilitou a formulação da Bossa Negra, o primeiro
movimento deste capítulo realizará um breve recuo temporal, a fim de identificar um
histórico de hibridações do samba brasileiro com as sonoridades da música negra
estadunidense (a Black Music), assim como de expressão da temática antirracista.
59

1.1. Um histórico de hibridação: o encontro entre o samba e o jazz na Gafieira.

O linguista, compositor, cantor e violonista Luiz Tatit iniciou seu livro O século da
canção explicando o título da obra ao atribuir ao século XX a “criação, consolidação e
discriminação de uma prática artística que além de construir a identidade sonora do país, se
pôs em sintonia com a tendência mundial de traduzir os conteúdos humanos relevantes em
pequenas peças formadas de melodia e letra.”147 A junção de melodia e letra que configura
o formato canção, segundo o autor, ocorre no Brasil em uma prática cultural que mistura
elementos de origem africana, europeia e indígena.

Aliás, a ideia de misturas caracteriza a produção musical popular, afinal, conforme


definido pela historiadora Miriam Hermeto: “a música popular é um híbrido de diferentes
elementos musicais - não é, portanto, o oposto de ‘música erudita’, como se costuma
definir no senso comum.”148 E a percepção da dimensão híbrida da música popular (assim
como ocorre em toda prática cultural), permite a esta tese dialogar com a contribuição
intelectual do argentino Nestor Garcia Canclini, que propôs identificar as práticas culturais
como Culturas Híbridas, que seriam não apenas fusões, misturas sem contradições, mas
“processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.”149

O processo de hibridização de elementos musicais resulta que a música popular,


como o formato canção, apresenta-se como uma prática cultural “viva”, resultante de e
exposta a constantes transformações passíveis de fixação a partir do desenvolvimento de
tecnologias de gravação sonoras. Assim, conforme o crítico musical João Máximo: “O
disco, sendo o meio mais fiel, mais abrangente e mais eficaz de registro e perpetuação da
música (...) documentou menos os passos de cada transformação do que os seus
resultados.”150 A possibilidade de documentação e fixação musical em fonogramas
também refletiu em uma priorização geográfica na então capital do país, o Rio de Janeiro,
que, sendo o pólo industrial fonográfico, local de instalação da pioneira Casa Edison,

147
TATIT, Luiz. O século da canção. 2004, p. 11.
148
HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de história. 2012, p. 31.
149
CANCLINI, Nestor G. As culturas híbridas em tempos de globalização. In: Culturas Híbridas: estratégias
para entrar e sair na modernidade. 2008, p. XVIII-XIX.
150
MÁXIMO, João. Discoteca Brasileira do Século XX - 1900-1949. 2007, p. 7.
60

privilegiou os registros de práticas musicais executadas no distrito federal e de artistas


naturais da região ou situados na área. 151

Contudo, se o processo de gravação de música popular no Brasil coincidiu com o


primeiro ano do século XX, foi no decorrer da segunda e da terceira década do século que
o fonograma fixou uma prática musical, realizada por comunidades negras da região
Cidade Nova, no distrito federal. 152 O que foi inicialmente chamado de “samba” foi uma
fórmula musical eminentemente híbrida entre sonoridades de matrizes africana e europeias
- o que se enquadra à sugestão de Nestor Canclini de que práticas antes existentes
separadamente se combinam para gerar novas práticas -, na qual predominava a sonoridade
do maxixe. E os nomes mais representativos - e populares, à época - do samba no estilo
Cidade Nova são o compositor e pianista negro José Barbosa da Silva, o Sinhô (declarado
“rei do samba” à época) e Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha, também negro,
compositor, flautista, arranjador e maestro.

A trajetória de Pixinguinha fornece um capítulo à parte no histórico de hibridações


dos primórdios do samba. Para além do samba amaxixado configurado na região de Cidade
Nova, o músico era um habilidoso executante do Choro, gênero de música popular
instrumental fixado na segunda metade do século XIX, antes das tecnologias de gravação
sonora e mais uma prática criada a partir da hibridação: a polca européia, adicionada de
elementos da valsa, do schottisch e do lundu de origem africana. 153 E, nessa condição de
transição e encontro na execução entre as duas práticas - e outras, como lundus, toadas,
batuques e cateretês, práticas também componentes do samba - que Pixinguinha e Donga
(outro homem negro, autodeclarado, com muita polêmica, autor de “Pelo telefone” –
lançado para o carnaval de 1917 e considerado o primeiro samba de sucesso) foram
convidados pelo gerente do elitizado Cine Palais para tocar no cinema em um conjunto e
assim nasceu, em abril de 1919, o grupo Os Oito Batutas. 154

Os Oito Batutas exerceram um importante papel na difusão da sonoridade do samba


no Brasil, excursionando por várias regiões do país. 155 E, além da difusão desta sonoridade
para outros estados, Os Batutas contribuíram para a fixação e difusão do samba no cenário
internacional, um momento particularmente relevante para o histórico de hibridações e

151
MÁXIMO, João. Discoteca Brasileira do Século XX - 1900-1949. 2007, p. 5.
152
MÁXIMO, João. Discoteca Brasileira do Século XX - 1900-1949. 2007, p. 21.
153
MÁXIMO, João. Discoteca Brasileira do Século XX - 1900-1949. 2007, p. 8.
154
CALADO, Carlos. Pixinguinha. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v.4] 2010, p. 27.
155
CALADO, Carlos. Pixinguinha. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v.4] 2010, p. 28.
61

para o argumento desta tese, ao propiciar encontros com o jazz. Após uma temporada em
Paris, em 1922: “os Batutas trouxeram algumas novidades, especialmente nos aspectos do
visual do conjunto e de sua instrumentação (Pixinguinha acrescentou o saxofone à sua
flauta e Donga trocou o violão pelo banjo)”; assim, conforme Carlos Calado: “Era evidente
a influência do jazz, gênero que naquele momento vivia uma fase de grande popularidade
na Europa.”156 A evidência de tal influência, cabe ressaltar, deve-se não apenas à adoção
de instrumentos como saxofone e banjo, mas sim de uma forma de tocar jazzística.

A relevância deste momento da música brasileira na Europa foi destacada pela


historiadora Anaïs Fléchet em Madureira Chorou... em Paris: A música popular brasileira
na França do século XX, que esclarece um dos pontos de tal encontro: “Nas festas
particulares, nos chás dançantes e nos dancings, os músicos brasileiros dividiam a cena
com uma jazz-band, a fim de satisfazer às expectativas do público.”157 A prática jazzística
com a qual os músicos brasileiros tiveram contato, seguindo a forte segregação racial
existente na sociedade estadunidense, era dividida em dois gêneros, o New Orleans,
quando executada por artistas negros, e o Dixieland, quando por artistas brancos, em uma
sonoridade que, seja em pequenos grupos ou orquestras maiores, apresentava os timbres
característicos do banjo ou piano, bateria, trompete, clarinete, saxofone, trombone e, às
vezes, contrabaixo (muitos desses instrumentos associados no Brasil à tradição das bandas
de música, militares ou paisanas, então comuns em cidades interioranas); enquanto Os
Batutas, antes de embarcarem, alternavam-se em flauta, violão, cavaquinho, bandolim,
bandola, piano e os instrumentos de percussão ganzá e reco-reco. Este contato também foi
ressaltado pelo jornalista Lira Neto, em Uma História do Samba: “Na convivência com
instrumentistas de jazz, a maioria oriundos de Nova Orleans, iriam conhecer e se apropriar
de outras linguagens, bossas e atitudes, incorporando-as ao próprio modo de tocar.”158

A validação cosmopolita francesa d’Os Batutas contribuiu para uma valorização do


samba como prática cultural no Brasil ainda no decorrer dos anos 1920, em um processo de
transformação do gênero de uma manifestação considerada, pelas elites brasileiras, “típica”
de algumas comunidades do Rio de Janeiro para uma possibilidade de símbolo de uma
cultura nacional ainda em construção. Esta prática do samba então validada sofria novas
hibridações com as práticas do jazz estadunidense, que não ficaram limitadas ao grupo Os

156
CALADO, Carlos. Pixinguinha. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v.4] 2010, p. 29.
157
FLÉCHET, Anaïs. Madureira chorou... em Paris: a música popular brasileira na França do século XX.
2017, p. 54.
158
NETO, Lira. Uma história do samba: volume 1 (As origens). 2017, p. 135.
62

Oito Batutas, estendendo-se ao Rei do Samba, Sinhô - como na gravação de “Não sou baú”
pela Jazz Band Sul-Americano, de Romeu Silva (1925), e de “Viva a Penha” (1926) e
“Quem falla de mim tem paixão” (1927) pela American Jazz Band Silvio de Souza.159 Na
obra de Pixinguinha, dois grandes clássicos da música nacional, consagrados até os dias
atuais, foram criticados à época por explicitarem a interlocução com o jazz, conforme o
jornalista Carlos Calado:

Em novembro de 1928 (...) o ortodoxo crítico Cruz Cordeiro comentou na revista


“Phono-Arte” que o choro “Lamentos” pecava por ter recebido “influência das
melodias e mesmo do ritmo das músicas norte-americanas". [E abordando o
choro “Carinhoso”] Dois meses mais tarde, o guardião da brasilidade voltou à
carga, na mesma revista, para criticar outra gravação de Pixinguinha pelo mesmo
motivo: a influência do jazz.160

Além das sonoridades que revelam o resultado de contínuos processos de


hibridação, o fonograma documenta, desde as primeiras décadas do século, a expressão de
questionamentos e reivindicações realizados nas letras das canções. E, em uma sociedade
excludente como a brasileira e sendo a canção uma forma de expressão popular, as músicas
gravadas tornaram-se suporte privilegiado para a veiculação política de grupos excluídos:
os pobres em geral e, em especial, as comunidades negras. A abolição da escravidão,
ocorrida em 1888, era um passado recente, assim como a proclamação da República, em
1889. “Se a abolição havia garantido o direito à liberdade, entendida enquanto a
propriedade de seu próprio corpo e uma maior autonomia quanto ao seu destino, a
República efetuou uma aproximação da utopia da igualdade, através da possibilidade legal
de demandar a inclusão.”161 E a reivindicação em torno dessa promessa da igualdade
republicana pelas comunidades negras aparece em vários canais, como argumentado pelas
historiadoras Martha Abreu e Carolina V. Dantas:

Havia expectativas quanto às possibilidades de inclusão e foi ess e o caminho que


buscaram trilhar nos palcos, na imprensa, nos comícios em praça pública, nas
gravadoras de discos, nos clubes recreativos, nas associações e irmandades
negras, nos terreiros, nas festas e folias, e no parlamento. 162

O argumento que a presente tese busca incluir neste tópico é que o formato canção,
fixado e difundido pelo suporte fonograma, ao potencializar a difusão de mensagens
159
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil nos anos 1960. Dissertação (Mestrado. História). Universidade Federal de Minas Gerais.
2016, p. 194.
160
CALADO, Carlos. Pixinguinha. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v.4] 2010, p. 34, 35.
161
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil nos anos 1960. Dissertação (Mestrado. História). Universidade Federal de Minas Gerais.
2016, p. 188.
162
ABREU, Martha; DANTAS, Carolina V. É chegada “a ocasião da negrada bumbar”: as comemorações da
Abolição, música e política na Primeira República. In: Vária História. 2011, p. 101. Grifo Nosso.
63

políticas de comunidades excluídas dos espaços de mando da política estatal, possibilitou a


fala pública de temas e reivindicações das parcelas negras: uma Linguagem Política Negra
Antirracista. Essa linguagem buscava intervir em um contexto no qual sedimentava-se a
adoção do modelo republicano no Brasil, denunciando as mazelas sociais advindas da
exclusão das comunidades negras da igualdade prometida pelo discurso republicano de
cidadania. Retratar a expressão da temática antirracista nas canções como uma linguagem
que é política, ainda que operando fora das disputas pelo comando do Estado (como as
partidárias e revolucionárias), permite a este texto dialogar com a contribuição do
politólogo francês Pierre Rosanvallon. O autor reconhece as ações e disputas em torno da
gestão do social, através do Estado, como operando na esfera da política, mas propõe um
alargamento ao apresentar uma dimensão mais ampla, que denomina de esfera do político:
espaço no qual são geradas, competem e convergem as representações que conformam o
convívio social, a vida em comum. 163 Portanto, reconhecer a expressão antirracista das
comunidades negras na canção popular como uma linguagem política é situar sua
plataforma de atuação na esfera do político. Por essa proposta de análise, é possível ainda
introduzir um argumento da historiadora Maria Alice de Carvalho:

Daí que a melhor expressão do discurso republicano entre nós - as canções


vagabundas que iluminam o nosso carnaval – seja também uma experiência
democrática de integração de dessemelhantes ao debate público, e de
acolhimento das expectativas de promoção dos recém-chegados (bem como dos
que ainda chegarão) ao mundo dos direitos e das liberdades. 164

A percepção da dimensão política expressa pela canção, desde os primórdios do


século XX, é ressaltada pelo historiador Marcos Napolitano que apresentou a canção
brasileira como “tradutora dos nossos dilemas e veículo de nossas utopias sociais”. 165

O argumento apresentado neste tópico inicial da tese é que entre os temas políticos
documentados desde os primeiros anos da indústria fonográfica, aparece a expressão da
Linguagem Política Negra Antirracista: denúncias de mazelas sociais a partir das vivências
cotidianas, que evidenciam e veiculam publicamente as limitações e contradições do

163
ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. 2010, p. 65-101.
164
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O samba, a opinião e outras bossas. In: CAVALCANTI,
Berenice, STARLING, Heloisa, e EISENBERG (orgs.). Decantando a República, v. 1: inventário histórico e
político da canção moderna brasileira. 2004, p. 66.
165
NAPOLITANO, Marcos. História & Música - história cultural da música popular. 2002, p. 08. Também
o jornalista Franlin Martins demarcou: “o fato é que, nestes 101 anos, a nossa música não só marcou de perto
a política como mostrou enorme agilidade para responder com rapidez aos diferentes episódios que surgiam.”
Em: MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República.
Volume 1 - de 1902 a 1964. 2015, p. 17.
64

discurso igualitário republicano; e também a busca por a “integração de dessemelhantes ao


debate público” através da afirmação de elementos culturais afro-brasileiros.

Um marco para a expressão da Linguagem Política Negra Antirracista nos


fonogramas pode ser a figura de Eduardo Sebastião das Neves, o Crioulo Dudu (1874-
1919), músico que, conforme a historiadora Martha Abreu, nas duas primeiras décadas do
século XX gravou um repertório que “afirmava uma valorização dos não brancos, das
coisas crioulas, mulatas e morenas (...) [expondo] o conflito racial em meio a
possibilidades reais de inserção profissional de negros no mercado cultural e de diversões
cariocas”.166 Conforme Martha Abreu, Crioulo Dudu foi um artista muito popular,
estabelecido na Cidade Nova e conviveu e influenciou diretamente os músicos da região,
como o “Rei do samba” dos anos 1920, Sinhô.

A primeira composição de Sinhô registrada e difundida através de fonogramas,


“Quem são eles”, foi lançada em 1917. E, conforme João Máximo, foi “Êxito em todo o
país, embora bem menor que o de ‘Pelo Telefone’.”167 Segundo o jornalista, em análise das
letras dos 147 títulos arrolados entre as composições de Sinhô, pode-se qualificar suas
produções em dois blocos temáticos: “1. Temas afro-brasileiros; 2. As demais
composições, carnavalescas ou não, sambas ou não, compreendendo crônica, crítica, sátira,
polêmica, mulher.”168 A presença de temas afro-brasileiros - identificadas às práticas das
comunidades negras de origem baiana da região Cidade Nova -, contudo, parece ser
predominante: “Há em seus sambas, mesmo nos que falam de amor, referências a mau
olhados, galhos de arruda, figas, guias, rezas, feitiço. Às vezes a referência está nos títulos:
‘Ai uê dendê’, ‘Bofé pamim Dge’, ‘Ojaré’, ‘Maitaca’, ‘Burucuntum’, ‘Oju Burucu’.”169
Reverências à religiosidade afro-brasileira. Quanto à denúncia de mazelas sociais, a mais
expressiva foi lançada em 1928 pelo então “Rei da voz”:

O segundo samba de Sinhô gravado no sistema elétrico por Francisco Alves, “A


favela vai abaixo”, era um condoído protesto contra o anunciado – e não
concretizado – plano de demolição do morro da Providência [então conhecido
como “Morro da Favela”], projeto incluído em mais uma das propostas de
reformas urbanísticas do Rio de Janeiro: “Minha cabocla, a Favela vai abaixo/
Quanta saudade tu terás deste torrão/ Da casinha pequenina de madeira/ que nos
enche de carinho o coração.” 170

166
ABREU, Martha. O “crioulo Dudu”: participação política e identidade negra nas histórias de um músico
cantor (1890-1920). In: Topoi, vo. 11, n. 20. 2010, p. 94.
167
MÁXIMO, João. Sinhô. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 25], 2010, p. 20.
168
MÁXIMO, João. Sinhô. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 25], 2010, p. 23.
169
MÁXIMO, João. Sinhô. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 25], 2010, p. 23, 24.
170
NETO, Lira. Uma história do samba: volume 1 (as origens). 2017, p. 171.
65

“A favela vai abaixo” contém versos como Vê agora a ingratidão da humanidade/


O poder da flor sumítica amarela/ Quem sem brilho vive pela cidade/ Impondo o
desabrigo ao nosso povo da Favela. Versos de alcance potencializado dado o sucesso em
toda década de 1920 tanto do compositor “Rei do samba”, Sinhô, quanto do intérprete “Rei
da voz”, Francisco Alves. Contudo, a citação de Lira Neto informa também sobre o
advento do sistema de gravação elétrico, estabelecido no Brasil em 1927. 171 Essa mudança
tecnológica permitiu maior fidelidade na captação de sons, de forma a ampliar os timbres
possíveis de serem fixados e reproduzidos nos discos, seja de instrumentos, seja de vozes
delicadas – o que possibilitou o registro das vozes de Mário Reis, em 1928, e Carmem
Miranda, em 1929, menos potentes que a voz de Francisco Alves, por exemplo.

Nas primeiras canções gravadas por Carmem Miranda houve registros da temática
religiosa afro-brasileira. Em 1930, na segunda gravação de Carmem, a “marcha
carnavalesca Yaya, Yoyo, tendo do outro lado Burucutum, incursão em tema afro (com a
consultoria de seu babalaô Assumano) do rei do samba Sinhô, sob o pseudônimo J.
Curanji,”172 Burucuntum estou tendo o que der/ congar na folia não é pra qualquer,
ressaltava o refrão. Segundo o jornalista Tárik de Souza, Carmem retornou ao tema em
1932 em “Feitiço Gorado”, também de Sinhô: Mas eu que sou do Ogum a filha do
coração/ Já despachei com Exum essa maldita paixão. Fora das canções de Sinhô o tema
também se fez presente, como “Sete Flechas”, de Freitas Guimarães gravada por Francisco
Alves, em 1928: Até meu nome/ já botaram na macumba/ Pois me contaram/ lá não fui
nem vi/ que a macumba é da boa/ no ponto de Catumbi. Estas primeiras décadas do século
XX também instituíram um padrão de racialização no mercado fonográfico no qual pessoas
negras predominam na composição, mas intérpretes são pessoas brancas, ou de pele clara.

A chegada dos anos 1930, porém, apresentou mais mudanças para o samba do que a
tecnologia de gravação elétrica. E, conforme João Máximo: “Foi por pura coincidência -
mas coincidência que não deixa de intrigar os historiadores - o fato de o samba da Cidade
Nova, o dos volteios do maxixe, praticamente desaparecer quando Sinhô morre, em 1930,
duas semanas antes do que seria seu 31° aniversário.”173 Assim como o sucesso “Pelo
Telefone” aparece como um marco da consolidação da vertente Cidade Nova, o sucesso da
gravação de “Com que roupa?” no carnaval de 1931 - composta e gravada por Noel Rosa,

171
NETO, Lira. Uma história do samba: volume 1 (as origens). 2017, p. 170.
172
SOUZA, Tárik de. Livreto do box Carmem Miranda. RCA/BMG. 1998, p. 7.
173
MÁXIMO, João. Discoteca Brasileira do Século XX - 1900-1949. 2007, p. 27.
66

homem branco de classe média - destacando a condução ao violão é um marco fonográfico


da vertente que emergiu com o suposto desaparecimento da sonoridade Cidade Nova:

O outro tipo de samba nasce e evolui a partir dos morros, ocupados depois da
Abolição por descendentes bantos egressos do Vale do Paraíba. Mais lento, de
frases melódicas mais longas, um certo acento nostálgico, não para dançar, mas
para cantar em rodas ao pé do barraco ou, quando a polícia permitisse, nos
blocos que desfilavam em fevereiro.174

Sobre a transição entre os dois modelos de samba, uma das interpretações de maior
influência foi publicada em 2001 no livro Feitiço Decente, do escritor Carlos Sandroni. Se
o termo proposto pelo escritor para retratar a vertente de samba do Cidade Nova -
“paradigma do tresillo” - não se consolidou na bibliografia sobre a música brasileira, o
termo proposto para retratar a vertente hegemônica a partir dos anos 1930 tornou-se uma
referência nas obras sobre o tema: “paradigma do Estácio”. As primeiras gravações de
compositores da vertente ocorreram com Francisco Alves, em 1928: “A malandragem” de
Bide, e “Me faz carinhos”, de Ismael Silva - canção que abordava a linguagem antirracista
ao referenciar o preconceito capaz de perpassar as escolhas amorosas, preterindo as
pessoas negras retintas: Se eu fosse homem branco/ Ou por outra mulatinho/ talvez eu
tivesse sorte/ de gozar os teus carinhos. Muitos dos sambas desta nova vertente foram
lançados por novas gravadoras surgidas da expansão da indústria fonográfica. Contudo, a
transição musical não ocorreu de forma tão abrupta quanto, por vezes, a bibliografia
sugere; e os fonogramas documentam os pontos de encontro entre as duas vertentes:

Entre as novas gravadoras, a Odeon/Parlophon e a Victor/RCA apresentavam


bandas e arranjadores fixos: a Orchestra Copacabana e a Diabos do Céo,
respectivamente. E ambas ainda mantendo certa sonoridade amaxixada. A
Diabos do Céo é significativa. Por vezes creditada como Grupo Guarda Velha, a
Diabos do Céo, formada por Pixinguinha, vitorioso em concurso para arranjador
realizado pela recém-instalada no Brasil, RCA, reunia nomes como o
violonista/banjoísta Donga e o percussionista João da Bahiana, todos formados
na tradição estética da Cidade Nova. Com esses grupos instrumentais, cantores já
destacados na sonoridade anterior, como Mário Reis, Carmem Miranda (Victor)
e Francisco Alves em sua dupla com Mário Reis, Ases do Samba (Parlophon),
entre outros, lançariam e consolidariam obras seminais do samba do Estácio.
Embora instrumentistas – como o grupo Gente Bôa, que gravaria muitas canções
com Francisco Alves, ou especificamente a parceria do rei da voz com Ismael
Silva em shows, entre muitos outros exemplos – e timbres específicos - como o
surdo e o tamborim – da tradição do Estácio também fossem logo fixados em
fonogramas, sugerimos que, de início, em detrimento a uma suplantação do
estilo “Cidade Nova” pelo “Paradigma do Estácio”, parece ter ocorrido certa
transição entre os estilos, por vezes mediada por músicos já consolidados,
oriundos da estética Cidade Nova.175

174
MÁXIMO, João. Noel Rosa (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v. 1). 2010, p. 16, 17.
175
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor”: Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil dos anos 1960. 2016, p. 196. Para as referências que sustentaram essa análise, ver
67

Os fonogramas, enquanto documentos históricos, indicam caminhos instigantes


desse processo de transição mediada. Noel Rosa, ambientado e formado na sonoridade dos
morros, o “Paradigma do Estácio”, sentia-se pouco à vontade com a instrumentação que se
tornara característica após a hibridação do samba “Cidade Nova” com o jazz. Um exemplo
ficou disponível no box Noel Pela Primeira Vez, lançado em 2001 pela Fundação Nacional
de Artes (FUNARTE), incluindo 14 cds com as 229 gravações de Noel em versões
originais. No cd2, as faixas 02 e 03 repetem “Cordiais saudações”, gravada em julho de
1931. Na primeira versão, Noel canta acompanhado pela Orquestra Copacabana, com
sonoridade que destaca saxofones, trompetes e trombone. “Segundo o pesquisador Ary
Vasconcelos, Noel havia escrito sobre a referida prova: ‘Não gostei, horrível’.”176 Um ou
dois dias depois foi gravada a versão que se tornou clássica, pelo Bando dos Tangarás
(Noel Rosa junto a Almirante, Braguinha, Alvinho e Henrique Britto), com um piano
destacando a introdução e trecho final da canção, que de resto é dominada pela sonoridade
do violão.

É importante esclarecer que a diferença entre as duas vertentes do samba não está
no predomínio da execução ao violão - que já constava em disco desde o Crioulo Dudu,
mas foi melhor captada com a tecnologia de gravação elétrica. O próprio Sinhô introduziu
em disco a performance “voz e violão” para o samba ao realizar a primeira gravação de seu
aluno Mário Reis, em 1928, com as canções “Que vale a nota sem o carinho da mulher” e
“Carinhos de vovô”, valorizando a interpretação contida e o canto falado de Mário em um
duo de violões, executados por Sinhô e Donga. 177 Também Carmem Miranda teve em seu
primeiro padrinho musical, o compositor e violonista Josué de Barros, acompanhante em
duo de violões em sua estreia em disco na gravadora RCA com as canções “Triste Jandaia”
e “Dona Balbina”, composições de Josué de Barros, lançadas em janeiro de 1930. 178 Não
sendo, portanto, no destaque dado ao violão, a diferença entre o samba Cidade Nova e o do
Paradigma do Estácio está na orientação rítmica. Segundo João Máximo:

O conhecido e muito citado diálogo provocado por outro historiador, Sérgio


Cabral, entre Ismael Silva e Donga, é esclarecedor. Perguntados sob re o que,
para eles, era o verdadeiro samba, cada um respondeu de um modo. Donga citou
“Pelo telefone” como exemplo. Ismael respondeu que “Pelo telefone” não era

CALADO, Carlos. Pixinguinha (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v. 4). 2010; GIRON, Luiz
A. Livreto do box Mário Reis, um cantor moderno. BMG, 2004; VIANNA, Luiz Fernando. Ismael Silva.
(Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v. 21). 2010.
176
JUBRAN, Omar. Livreto box Noel Pela Primeira Vez. FUNARTE. 2001, p. 22.
177
<https://dicionariompb.com.br/mario-reis/dados-artisticos> Acesso 13/03/2021.
178
SOUZA, Tárik. Livreto box Carmem Miranda. RCA/BMG. 1998, p. 7. Sobre as duas canções citadas,
ver, no mesmo box, CD1, faixas 01 e 02.
68

samba, mas maxixe, e deu como modelo o seu “Se você jurar”. Donga rebateu,
garantindo que “Se você jurar” não era samba, mas marcha. Samba, para a turma
de Sinhô, tinha as mesmas síncopes, as mesmas baixarias herdadas do maxixe.
Samba, para os bambas do Estácio, era mais lento, de notas longas, não para
dançar, como os dos baianos, mas para se cantar nos desfiles dos blocos que
dariam nas primeiras escolas.179

A argumentação deste tópico da tese, contudo, visa destacar que apesar dessas
marcantes diferenças, nos primeiros anos da década de 1930, pelo menos, os fonogramas
documentaram uma aproximação entre os dois gêneros, com as composições e
instrumentos do Paradigma do Estácio convivendo com as influências jazzísticas operadas
pela vertente Cidade Nova. No repertório inicial de Carmem Miranda, entre as gravações
lançadas em 1932, aquelas gravadas com acompanhamento do Grupo do Canhoto (“E
depois”, “Bamboleô”, “Quando me lembro”, “Mulato de qualidade”, “Por causa de você”,
por exemplo) e com a American Jazz (“Nosso amô veio dum sonho”, por exemplo)
destacam solos e contrapontos de trompetes e saxofones, advindos do encontro do samba
com o jazz.180 A partir de janeiro de 1933, grande parte das gravações da cantora passaram
a ser acompanhadas por Diabos do Céu e o Grupo da Guarda Velha, dirigidas e arranjadas
por Pixinguinha. A trajetória de Mário Reis entre 1932 e 1935, na gravadora Victor/RCA,
também foi marcada por Pixinguinha e o livreto escrito por Luís Antônio Giron para o box
Mário Reis. Um cantor moderno, esclarece sobre as gravações:

As marcas estética e comercial da Guarda Velha pertenciam a Pixing uinha. Logo


trocaria o nome por Diabos do Céu, marca da gravadora, com os mesmos
integrantes. Os instrumentistas eram da confiança do diretor-musical: Luiz
Americano, João Bagre e Jonas Aragão tocavam saxofone e clarineta; Bonfiglio
de Oliveira era o pistonista. Contrabaixo e bandolim ficavam a cargo de João
Martins, que, às vezes, assumia a batuta no lugar de Pixinguinha. O trombone
contava com o sopro inspirado de Wantuyl de Carvalho. Donga (ele mesmo, o
autor oficial de Pelo Telefone, o primeiro samba a ter sido registrado, em 1917)
tocava banjo, violão e cavaquinho. Três músicos defendiam a percussão típica:
Faustino da Conceição, o “Tio Faustino” (tantã, instrumentos de batuque, como
cabaça, caixeta e omelê), Adolfo Teixeira (cabaça), João da Baiana (pandeiro). A
estréia dos Diabos do Céu se deu em novembro de 1932, na gravação do samba
Etc... (Assis Valente), por Carmem Miranda. A esta altura, Diabos e Guarda
Velha eram a mesma entidade.181

Com a Diabos do Céu e o Grupo Guarda Velha, Carmem Miranda e Mário Reis,
entre 1932 e 1935, lançaram, sozinhos ou como dupla, canções de compositores hoje
canônicos da sonoridade do Estácio, como Cartola, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Assis

179
MÁXIMO, João. Sinhô (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v. 25). 2010, p. 40.
180
Box Carmem Miranda. RCA/BMG. 1998, CD2, faixas 01 a 11.
181
GIRON, Luiz A. Livreto do box Mário Reis, um cantor moderno. BMG, 2004, p. 10.
69

Valente, Ary Barroso, Braguinha, Nássara, Bide, Marçal, Kid Pepe etc. 182 A transição entre
as sonoridades do samba, porém, não foi a única ou mais impactante mudança vivida pela
sociedade brasileira na década de 1930. Um sobressalto atingiu a jovem República do
Brasil no final do ano de 1930, com um movimento armado de golpe de Estado realizado
concomitantemente em diversas regiões do país. O golpe de Estado impediu a posse do
presidente eleito Julio Prestes, subindo ao poder federal uma junta militar que, em seguida,
cedeu o poder ao então governador (ou, nos termos da época, “presidente do estado”) do
Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas. A partir de então, o Brasil passou a viver um governo
autoritário, que legislava por decretos (principalmente até 1934, quando foi promulgada
uma nova Constituição) e que nomeou interventores para o controle executivo dos estados
da União. O quadro ditatorial foi agravado em mais um Golpe de Estado, realizado por
Vargas, com a promulgação da Constituição de 1937, que impediu as eleições
presidenciais então previstas, que possibilitariam a transição do poder federal. Assim,
Getúlio Vargas consolidou um governo autoritário, que foi intitulado de Estado Novo.

O efervescente ambiente político, motivado pela insatisfação com a República


então instituída no Brasil, e que possibilitou a conquista da gestão do Estado por Getúlio
Vargas, inicialmente permitiu a emergência de outras formas de contestação aos limites
republicanos. O jornal criado como porta-voz da instituição, A Voz da Raça, surgido em
1933, assim explicou: “Do advento revolucionário de 1930, nasceram várias instituições
tomando a denominação de Frentes, dentre as quais a Frente Negra Brasileira. (...) longe de
qualquer exploração, tem-na afirmado o seu ideal da União Político-Social da Raça.”183 A
FNB foi fundada oficialmente em 16 de setembro de 1931, em São Paulo, e, segundo o
livro biográfico daquele que se tornou, posteriormente, seu mais renomado integrante,
Abdias Nascimento, seu “surgimento é perfeitamente explicado dentro do quadro de
frustrações generalizadas daquelas primeiras gerações de descendentes de escravos.”184 E,
sendo este quadro de frustrações existente por todo o país, a FNB, criada com intenção
nacional, logo se expandiu, de modo que: “Em 1936, cinco anos após a sua fundação a
entidade já contava com mais de 60 delegações distribuídas no interior de São Paulo e em

182
Além do box citado, dedicado à Mario Reis, o Box Carmem Miranda. RCA/BMG. 1998, também já
citado, encobre a produção da cantora entre os anos de 1930 e 1933 em três CDs que englobam 66
fonogramas.
183
Marcos Rodrigues dos Santos. O que pretendem os frentenegrinos brasileiros com o nome de “Frente
Negra Brasileira”. A voz da Raça, 3 (62) fevereiro, 1937, p. 1. Apud. PINTO, Regina Pahim. O movimento
negro em São Paulo: luta e identidade. 2013, p. 89.
184
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento. [Coleção Retratos do Brasil Negro] 2009, p. 47.
70

outros estados, como Minas Gerais e Espírito Santo.”185 Porém, apesar de se tornar uma
organização negra de caráter massivo, contando com milhares de integrantes pelo país, a
FNB teve vida curta e suas atividades foram encerradas em dezembro de 1937 com a
proibição das organizações sociais imposta pelo Estado Novo de Vargas. 186

Juntando o período que segue ao golpe de Estado de outubro de 1930 e os anos do


Estado Novo (que acabou em janeiro de 1946), totalizaram 15 anos de governo ditatorial
de Getúlio, no que comumente é chamado de Era Vargas. Ao longo desse período, foi
instituída como política federal uma reconstrução da identidade nacional brasileira, agora
focada tanto na disciplina política do Trabalhismo 187 quanto na positivação da figura do
mestiço como a representação oficial da população brasileira. O Estado brasileiro passou a
se definir como uma “democracia racial”, uma terra de igualdade jurídica e social entre
pessoas de diferentes tons de pele e avessa às hierarquias e conflitos raciais, imagem
coroada pela seleção de alguns elementos culturais associados às comunidades negras
como símbolos da nacionalidade brasileira, como o prato culinário feijoada 188 e o gênero
musical samba. A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, em prefácio à reedição
brasileira de uma consagrada obra sobre nacionalismo, Comunidades Imaginadas, do
historiador Benedict Anderson, sintetizou a respeito desse processo de invenção de uma
tradição nacional (imaginada) brasileira:

Vale a pena lembrar, ainda, o “milagre” operado nos anos 1930, quando a
mestiçagem de mácula se transforma na nossa mais profunda redenção. A partir
de então a capoeira e o candomblé viraram “nacionais”, do mesmo modo qu e o
samba e o próprio futebol, o qual era destituído de sua identidade inglesa e se
transformava - como em um passe de mágica - numa marca de brasilidade.189

O sociólogo Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, na obra Racismo e Antirracismo


no Brasil, também referenciou o livro Comunidades Imaginadas ao retratar a formação de
uma ideologia racial, a partir da representação difundida de uma “harmonia racial” vigente

185
PINTO, Regina Pahim. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. 2013, p. 110.
186
PINTO, Regina Pahim. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. 2013, p. 92. Para uma visão
geral sobre a FNB e ramificações, BACELAR, Jefferson. A Frente Negra Brasileira na Bahia. In: Afro-Ásia,
n° 17. 1996, p. 73-85.
187
Sobre o Trabalhismo a mais consagrada referência bibliográfica é GOMES, Angela de Castro. A Invenção
do Trabalhismo. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. (1°ed. 1988) Sobretudo entre as páginas 175 e
264.
188
“A princípio conhecida como ‘comida de escravos’, a feijoada se converte em ‘prato nacional’,
carregando consigo a representação simbólica da mestiçagem. O feijão (preto ou marrom) e o arroz (branco)
remetem metaforicamente aos dois grandes segmentos formadores da população.” SCHWARCZ, Lilia
Moritz. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. 2012, p. 58, 59.
189
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Imaginar é difícil (porém necessário). In: ANDERSON, Benedict.
Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. 2017, p. 16.
71

no país. Apesar de ressaltar não ser um fenômeno restrito ao Brasil no continente


americano, apontou:

No Brasil, a nação foi formada por um amálgama de crioulos, cuja origem étnica
e racial foi “esquecida” pela nacionalidade brasileira. A nação permitiu que uma
penumbra cúmplice encobrisse ancestralidades desconfortáveis. 190

Esse processo de reelaboração de valores e fomento de uma brasilidade – a criação


de uma identidade nacional brasileira –, que no discurso oficial eclipsava as desigualdades
raciais existentes em nome da representação de um país igualitário e “mestiço”, foi
reforçada por uma intelectualidade de impacto no período. Antônio Sérgio A. Guimarães
pontua a repercussão do discurso racial da produção literária e acadêmica ao apontar que
intelectuais como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Padro Jr., e literatos
como Jorge Amado e José Lins do Rego, entre outros, compartilhavam de uma perspectiva
de “superação do racialismo e na valorização da herança cultural em uso pelos negros e
caboclos brasileiros”, de modo que:

Não é, portanto, de estranhar que, nas ciências sociais brasileiras, o conceito de


raça, além de exprimir a ignorância daqueles que o empregam, denotava também
o seu racismo. “Raça” passou a significar, entre nós, “garra”, “força de vontade”,
ou “índole”, mas quase nunca “subdivisões da espécie humana”, as q uais
passaram a ser designadas, apenas, pela cor da pele das pessoas: brancas, pardas,
pretas, etc.191

No processo de seleção de elementos culturais de origem negra para a formulação


da brasilidade, portanto, o estilo de samba que estava se consolidando no decorrer da
década de 1930, o “Paradigma do Estácio”, tornou-se não apenas a representação difundida
do que seria a sonoridade do gênero, mas também fez desta sonoridade mais um símbolo
da nação brasileira, como a bandeira e o hino nacional, e passível de ser amplamente
ressaltada pelas ondas de rádio. A brasilidade então fomentada, embora priorizando
elementos culturais associados às comunidades negras, construía-se através da imagem de
um país mestiço. Conforme o historiador Adalberto Paranhos: “A miscigenação, ora
execrada, ora exaltada, permanecia no centro de debates intelectuais que punham à mostra
como o problema da identidade nacional se ligava umbilicalmente à temática racial.”192

Contudo, o processo não teria ocorrido sem resistências por parte de setores da
sociedade mais preconceituosos e/ou relutantes às culturas negras, que propunham a

190
GUIMARÃES, Antônio S. A. Racismo e Antirracismo no Brasil. 3° ed. 2009 (1° ed. 1999), p. 47, 48.
191
GUIMARÃES, Antônio S. A. Racismo e Antirracismo no Brasil. 3° ed. 2009 (1° ed. 1999), p. 64.
192
PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. 2015, p.73.
72

“higienização” e moralização do samba. 193 Apesar dos detratores, porém, o samba foi
alçado à condição de símbolo musical mais expressivo da nacionalidade brasileira; e o
período de emergência, fixação e consolidação do “Paradigma do Estácio”, os anos 1930,
fixou-se como os “anos de ouro” da música popular brasileira. E, assim, transformado em
símbolo da cultura nacional, a consagração do samba como prática cultural eclipsou a
vertente anterior e seu histórico de hibridações com o jazz surgido em Nova Orleans. As
obras acadêmicas de análise da transformação do samba em símbolo nacional tomam como
objeto privilegiado a produção dos morros cariocas, como a interpretação marxista de
Magno Bissoli Siqueira em Samba e identidade nacional: das origens à era Vargas (2012)
ou a leitura apologética à harmonia racial, seguindo as teorias de Gilberto Freyre, proposta
por Hermano Vianna em O Mistério do samba (2012).

Para o que mais interessa ao argumento deste tópico da presente tese quanto aos
temas do cancioneiro popular, porém, as mudanças surgidas a partir do novo cenário
político fomentaram, progressivamente, uma importante modificação no contexto
linguístico a partir do qual a Linguagem Política Negra Antirracista das canções podia
intervir no debate público. Apresentando de forma esquemática: se no período entre os
anos de 1900 e 1930 a linguagem antirracista nas canções intervia em um contexto
conformado pelas contradições e limitações da igualdade prometida pelo discurso
republicano; no período seguinte, a partir da década de 1930, a linguagem antirracista nas
canções opera sob o contexto da fixação da representação de “democracia racial” como
discurso oficial das relações raciais brasileiras – a afirmar que a igualdade entre pessoas
negras e brancas já estava instituída. A modificação é expressiva posto que, no primeiro
cenário, é possível ler as ações políticas realizadas através das canções como parte da
reivindicação por cidadania de uma expressiva parcela da população brasileira excluída das
benesses prometidas pela República; e, no segundo cenário, o tema das canções é inserido
em um contexto no qual o discurso oficial apresenta a “harmonia racial”, e a tomada como
símbolos nacionais de elementos culturais de origem negra, como coroação da inexistência
de discriminação racial e preconceito no país. É este o momento de construção e fixação da
“democracia racial como contexto” discursivo para os atos de fala nas canções.

A suposta inclusão social do discurso de “Brasil mestiço” da Era Vargas, no tocante


às comunidades negras no Brasil, efetuou uma inclusão de ordem cultural, mas não

193
PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. 2015, p.75.
73

promoveu políticas públicas voltadas para as necessidades específicas das parcelas negras
da sociedade. Contudo, mesmo nesta inclusão cultural, a adoção de algumas práticas
culturais negras (como o samba e a culinária, notadamente a feijoada), coexistiu com a
perseguição e repressão explícita às religiões de matriz afro-brasileira.194 Neste cenário, o
impacto da temática das religiosidades afro na linguagem negra antirracista veiculada pelas
canções adquire particular relevância. Esta temática nos sambas foi estudada mais
profundamente em um projeto desenvolvido por o grupo de pesquisas comandado pelos
antropólogos da Universidade de São Paulo Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva. E o
projeto resultou no artigo: Foi conta para todo canto: as religiões afro-brasileiras nas
letras do repertório musical popular brasileiro. Analisando uma seleção de sambas
lançados entre 1928 e 1994, os antropólogos concluem:

No diálogo das religiões afro-brasileiras com a cultura nacional a música popular


desempenhou um papel fundamental, constituindo uma linguagem privilegiada
em pelo menos dois planos: o melódico (entendido como um leque e ritmos
praticados no terreiro e suas variações e releituras fora dele), e o discursivo
(entendido como o que as letras dizem ou insinuam). Essa linguagem é
constituída por um conjunto de símbolos que são articulados por compositores e
cantores, com diferentes níveis de aproximação religiosa, que os interpretam e
compõem seus repertórios segundo contextos musicais histórica e socialmente
definíveis.195

Sobre o diálogo das religiões afro-brasileiras expresso nas canções pelo plano
discursivo, Rita Amaral e Vagner Silva destacam que os sambas: “Descrevem, entre outros
temas, a pobreza, os amores, traições, a malandragem, a comida, o jogo, a política, e,
permeando tudo isso, frequentemente, o papel da macumba e do feitiço como instrumentos
de interferência em favor próprio nas vicissitudes do dia-a-dia.”196 Verticalizando nos
temas afro-religiosos no período da ditadura Vargas, argumentam que: “Os candomblés e
umbanda surgem, nas canções deste período, ainda, como ambientes significativos para a
sociabilidade e auto-afirmação dos grupos pobres, negros e mestiços, associados aos
morros e subúrbios.”197 Destacam o repertório de Carmem Miranda a partir de “Etc”,
composição de Assis Valente, lançada em 1933, que contém o verso Meu pai é o homem
da muamba/ O grande e conhecido candomblé (Bahia). E prosseguem: “Outro tema

194
A respeito, ver OLIVEIRA, Nathalia Fernandes de Oliveira. A repressão policial às religiões de matriz
afro-brasileiras no Estado Novo (1937-1945). Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade
Federal Fluminense, 2015.
195
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 233.
196
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 193.
197
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 234.
74

escolhido por ela e que tem íntima relação com o candomblé foi o da comida vendida pelas
baianas, que incluía os mesmos quitutes oferecidos aos orixás e conhecidos como ‘comidas
de santo’.”198 Os autores aqui se referem à gravação de “No tabuleiro da baiana”,
composição do mineiro - e tão branco quanto a Carmem, além de oriundo das classes
médias e graduado em Direito - Ary Barroso, lançada em 1936. Para os termos desta tese,
aqui a voz de Carmem não veicula a Linguagem Política Negra Antirracista, embora a
canção possa ser compreendida como um exemplo de uma linguagem antirracista. “Nos
tabuleiros das baianas havia o acarajé com vatapá (comida volitiva de Iansã), a canjica, o
ekô, o ebô e o mungunzá (de Oxalá), o abará (de Xangô), o amalá ou caruru (de Xangô e
de Ibeji), entre outras.” No período dessa performance, Carmem passa a difundir uma
imagem estereotipada de baiana, que a tornou um símbolo nacional. O artigo ainda destaca
“Yaô” (Pixinguinha/Gastão Vianna), gravada por Pixinguinha em 1938:

Esta música, gravada num período em que as religiões afro -brasileiras eram
reprimidas até com violência, refere-se a uma festa de iaô (cerimônia iniciática
do candomblé) aludindo à sociabilidade que se estabelece nos terreiros. Usa para
isso termos africanos como iaô (iniciada), akikó (galo), adié (galinha), jacutá
(terreiro) e nomes de orixas e outras entidades espirituais como Oxalá, Ogum,
Preto-velho, Xangô, etc. (...) Percebe-se, ainda, nessa composição, valores
religiosos sendo afirmadas para o próprio grupo e para a sociedade mais ampla,
um dos pelos quais parcelas de significado religioso foram, aos poucos,
transmitidas para outros espaços, mais abertos, da cultura. 199

Em 1939 outro nome emblemático para a difusão da temática religiosa afro-


brasileira chegou ao mercado de discos, em duetos com Carmem Miranda: o pardo Dorival
Caymmi, com suas composições “O que é que a Baiana tem?” e “A preta do acarajé”.
Ainda em 1939, Dorival estreou solo em um disco compacto no qual lançou duas canções
que introduziram a temática devocional do culto à orixá Iemanjá. Na primeira, “Rainha do
mar”, a referência aparecia indireta: Minha sereia, rainha do mar/ o canto dela faz
admirar/ Minha sereia é moça bonita/ nas ondas do mar aonde ela habita; mas na
segunda, “Promessa de pescador”, a destinatária foi explicitada: Ê... A Alondê Yemanjá -
Oê Iá/ Senhora que é das águas/ Tome conta de meu filho/ Que eu também já fui do mar/
(...) Quando chegar seu dia/ Pescador véio promete/ Pescador vai lhe lev á/ Um presente
bem bonito/ Para dona Yemanjá. Para Rita Amaral e Vagner da Silva: “Dorival Caymmi
foi um dos responsáveis, também pela introdução de artistas, posteriormente, no universo

198
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 202.
199
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro-brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 195, 196.
75

do candomblé, do qual fazia parte na honrosa condição de ministro (obá) de Xangô do


terreiro baiano Axé Opô Afonjá.”200

Entre os anos 1930 e 1950, portanto, temas da religiosidade de matriz afro-


brasileira, que já apareciam em canções nos anos 1920, conquistaram maior recorrência e
“praticamente todos os grandes intérpretes gravaram alguma canção aludindo ao tema.”201
Além deste tema, a canção registrou, ainda que em pequeno número, a denúncia do
preconceito racial percebido nas relações cotidianas, e imiscuído ao tema amoroso, como a
já citada “Me faz carinhos”, em 1928. Uma canção emblemática dessa temática foi lançada
em 1941 por Orlando Silva, conhecido à época como “o cantor das multidões” - epíteto
que evidencia o sucesso popular do artista -, uma composição de Wilson Baptista e Marino
Pinto intitulada “Preconceito”: Eu nasci num clima quente/ Você diz a toda gente/ que eu
sou moreno demais/ Não maltrate o seu pretinho/ Que lhe faz tanto carinho/ E no fundo é
um bom rapaz/ (...) Eu vou cantar minha dor/ Meu samba vai, diz a ela/ Que o coração
não tem cor. Assim como em “Me faz carinhos”, os dessabores e insucesso amoroso do eu
lírico perante a sua musa é justificado pela interferência do preconceito racial.

A evocação ao preconceito racial nas canções “Me faz carinhos” e “Preconceito”,


evidenciam um elemento importante para compreender as formas de expressão do debate
racial no Brasil: a força do vocábulo “preconceito de cor”. É necessário explicitar que o
termo “preconceito racial”, muito utilizado no decorrer deste capítulo como recurso
analítico pelo historiador que escreve essas páginas, não é expressão corrente na
documentação analisada - não apenas neste tópico, mas no decorrer de todo este capítulo.
Para a melhor apreciação deste aspecto da linguagem sobre a questão racial durante a
primeira metade do século XX, vale retomar as reflexões de Antônio Sérgio A. Guimarães:

Os sociólogos aceitaram amplamente a ideia segundo a qual, no Brasil e na


América Latina, em geral, não havia preconceito racial, mas apenas “preconceito
de cor”. Essa tradição começou com um artigo seminal de Franklin Frazier,
publicado em 1942, que nos visitara dois anos antes. Disse ele: “No entanto, há
no Brasil uma certa dose de preconceito de cor, que deve ser distinguido do
preconceito racial, no sentido americano. Por preconceito de cor, em contraste
com preconceito racial, entende-se que as atitudes em relação a pessoas de
ascendência negra são influenciadas pela cor e não pela origem racial ou
biológica. O sangue negro não é visto como um estigma nem identifica alguém
racialmente. Quando os brasileiros usam o termo negro – o que raramente fazem
- estão se referindo a negros puros. De fato, o termo preto é geralmente usado,

200
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 203.
201
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 203.
76

assim como outros termos, para descrever as características físicas das pessoas”
(Frazier 1942: 292, tradução e itálicos meus).202

A citação acima concede melhor compreensão à análise da linguagem antirracista


expressa nos versos das canções retratadas. Em “Preconceito”, a referência explicita que o
preconceito evocado no título da composição é dirigido à “cor” do queixoso eu-lírico
apaixonado. Em “Me faz carinhos”, a alusão ao preconceito nas relações cotidianas,
privadas, é abordado a partir da percepção do compositor sobre a maior aceitação social
obtida a partir das gradações de tom de pele. O eu-lírico de “Me faz carinhos” indica ser
uma pessoa identificada ao que Franklin Frazier denominou “negro puro” - ou que pode ser
compreendido como “negro retinto”, em uma terminologia mais difundida no século XXI -
, e que condiz com a tonalidade epidérmica e identificação social do compositor da canção,
Ismael Silva. E a identificação das possibilidades maiores de aceitação de pessoas negras
de pele mais clara – o “mulatinho” nos termos da canção de Ismael ou o subentendido
“menos moreno” da composição de Wilson Baptista e Marino Pinto –, assim como a
peculiaridade da classificação de “branco” na sociedade brasileira, induz a presente tese a
mais uma citação explicativa de Antônio S. A. Guimarães:

De fato, a ideia de “cor”, apesar de afetada pela estrutura de classe (daí por que o
“dinheiro embranquece”, assim como a educação), funda-se sobre uma noção
particular de “raça”. Tal noção, ainda que gire em torno da dicotomia
branco/negro, tal como no mundo anglo-saxônico, é específica na maneira como
define “branco”. No Brasil, o “branco” não se formou pela exclusiva mistura
étnica de povos europeus, como ocorreu nos Estados Unidos com o “caldeirão
étnico”; ao contrário, como “branco” contamos aqueles mestiços e mulatos
claros que podem exibir os símbolos dominantes da europeidade: formação cristã
e domínio das letras.

Por extensão, as regras de pertença minimizaram o polo “negro” da dicotomia,


separando, assim, mestiços de pretos. O significado da palavra “negro”, portanto,
cristalizou a diferença absoluta, o não europeu. (...) Em consequência, nos meios
e lugares mestiços do Brasil, somente aqueles com pele realmente escura sofrem
inteiramente a discriminação e o preconceito, antes reservado ao negro africano.
Aqueles que apresentam graus variados de mestiçagem podem usufruir, de
acordo com seu grau de brancura (tanto cromática quanto cultural, posto que
“branco” é um símbolo de “europeidade”), alguns dos privilégios reservados aos
brancos.203

Essa identificação sobre a hierarquia de valor produzida a partir de uma “linha de


cor” na sociedade brasileira, a criar mecanismos de manutenção da exclusão das pessoas
negras, justifica o surgimento de novas iniciativas de afirmação racial. Após a imposição
de encerrar as atividades da Frente Negra Brasileira, nos últimos anos do Estado Novo
surgiram duas iniciativas de impacto na luta antirracista. Em 1943, na cidade de Porto

202
GUIMARÃES, Antônio S. A. Racismo e Antirracismo no Brasil. 3° ed. 2009 (1° ed. 1999), p. 45.
203
GUIMARÃES, Antônio S. A. Racismo e Antirracismo no Brasil. 3° ed. 2009 (1° ed. 1999), p. 50,51.
77

Alegre, capital do Rio Grande do Sul, surgiu a União dos Homens de Cor que, em 1948
(apenas três anos após o fim do Estado Novo, portanto) havia ramificado por outros dez
estados brasileiros: Minas Gerais, Santa Catarina, Bahia, Maranhão, Ceará, São Paulo,
Espírito Santo, Piauí, Paraná e o distrito federal. 204 E no ano seguinte, 1944, foi fundado
em São Paulo, por iniciativa de Abdias Nascimento, o Teatro Experimental do Negro.
Conforme Sandra Almada: “A iniciativa, longe de limitar-se a levar negros aos palcos
brasileiros, envolveu uma série de projetos e atividades destinados a elevar a autoestima, a
escolaridade e conscientização da população negra do país”. 205 Ainda segundo a autora:
“Mais que encenação de peças, uma quantidade surpreendente de realizações políticas,
científicas, educacionais e culturais foi desenvolvida com o esforço do pessoal do TEN.”206
Iniciativas que, com a redemocratização do país, após o Estado Novo, adquiriram maior
intensidade. A cientista social Joselina da Silva destacou o renascimento das organizações
negras no período e destacou que elas: “Lutavam também pelo ‘alevantamento moral da
gente negra’ que pode ser traduzido como medidas que objetivavam à ascensão social e à
destruição do mito da inferioridade racial (fruto das teorias racistas do século anterior que
continuavam a permear o imaginário nacional).”207 Portanto, a expressão de temas
antirracistas nas canções não representava o único suporte de tal linguagem política.

Quanto à sonoridade das canções, no decorrer da década de 1930 foi consolidada a


vertente “Paradigma do Estácio” como a definição do samba enquanto gênero,
consagrando, além dos compositores outrora citados, timbres de instrumentos como o
cavaquinho, o surdo e o tamborim, característicos de tal vertente. Aos poucos, foi sendo
suplantada a sonoridade amaxixada e permeada de trompetes e saxofones que caracterizou
a sonoridade do Cidade Nova. Na década de 1940, contudo, um novo processo de
hibridação articulou o samba aos boleros mexicanos e cubanos, originando o popular
gênero samba-canção. Os samba-canções, de interpretações mais passionais,
predominando a temática dos desamores, eram principalmente executados junto a
orquestras de cordas, que potencializavam a dramatização dos temas, assim como os vocais
pungentes. Entre as muitas histórias de desamores registradas como samba-canção, a
“Deusa do asfalto”, composição do pardo Adelino Moreira e interpretada pelo também

204
SILVA, Joselina da. A União dos Homens de Cor: aspectos do movimento negro dos anos 40 e 50. In:
Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, n°2, 2003, p. 224, 225.
205
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento. [Coleção Retratos do Brasil Negro] 2009, p. 19.
206
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento. [Coleção Retratos do Brasil Negro] 2009, p.69.
207
SILVA, Joselina da. A União dos Homens de Cor: aspectos do movimento negro dos anos 40 e 50. In:
Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, n°2, 2003, p. 219.
78

pardo Nelson Gonçalves, foi um sucesso popular de 1953, com os versos não devia e por
isso me condeno, sendo do morro e moreno, amar a deusa do asfalto. 208 No enredo de
“Deusa do asfalto” o insucesso romântico mais uma vez é atribuído ao fenótipo, a cor da
pele (moreno), e à sugerida classe social (sendo do morro), possibilitando interpretações
sociais do verso conclusivo em desalento: quem me abraça é a negra solidão.

O predomínio no mercado fonográfico da vertente de samba do “Paradigma do


Estácio” e do samba-canção, contudo, não significou que a vertente de samba Cidade Nova
tenha efetivamente desaparecido enquanto prática cultural. Para seguir os caminhos
tomados por esta prática cultural no decorrer da década de 1930 e na década seguinte, de
maneira alternativa à indústria fonográfica, é enriquecedora a leitura do livro Os sons que
vêm da rua, do historiador da música popular José Ramos Tinhorão. Segundo ele, o termo
“gafieira” surgiu como designativo das sociedades recreativas das pessoas pobres, que
surgiram no entorno do centro da cidade, região da Cidade Nova, como o:

Clube Cananga do Japão, em que o compositor Sinhô, pioneiro do samba, tocaria


durante mais de dez anos, cercado pelo prestígio resultante de uma circunstância
sentimental: fora seu pai quem pintara os estandartes do clube. (...) Baile de
gente pobre – o que quer dizer predominantemente de pretos e mestiços -, essas
sociedades recreativas representavam a primeira criação social dos grupos
praticamente sem experiência de “vida de salão”. E tanto isso é verdade que, na
tentativa de imitar os bailes de gente da classe média, tais eram os pequenos
equívocos de etiqueta cometidos, que um cronista chamaria pela primeira vez
esses tipos de clubes de gafieiras, para expressar, sob esse neologismo, a
verdadeira enfiada de gafes que neles sempre ocorria. 209

Os ambientes que ficaram popularmente conhecidos como Gafieiras, portanto, são


espaços de interação social, através de música e dança (a chamada “dança de salão”), para
as parcelas pobres da população, predominantemente negras. Orientação socioeconômica
de público que, ainda conforme o texto de José Ramos Tinhorão, permaneceu como
restrição até a década de 1960, quando o espaço passou a atrair o interesse de estudantes
universitários, oriundos das classes médias. Informação também ressaltada na dissertação
de mestrado em Artes Cênicas de Ana Maria de São José, dedicada ao “samba de gafieira”:

Discordamos desta visão preconceituosa que define a gafieira como sendo local
de gente ralé, que comete gafes ou atos involuntários. Acreditamos que este
cenário mudou consideravelmente a partir dos anos 60 do século XX, deixando

208
Nelson Gonçalves. Deusa do asfalto. Lançada em 1953. Composição de Adelino Moreira que é a sétima
registrada entre as canções mais populares (tocadas ou vendidas) no Brasil em 1953 segundo a página
<https://asmusicasmaistocadas.wordpress.com/2013/09/28/musicas -cancoes-mais-populares-tocadas-ou-
vendidas-no-brasil-em-1953-2/> Acesso 20/03/2021.
209
TINHORÃO, José Ramos. As gafieiras. In: Os sons que vem da rua. 2005, p. 207.
79

de lado essa conotação pejorativa e passando a ser respeitado pela inserção e


maior participação de todas as classes sociais.210

Mas qual seria o estilo de samba executado nesses salões, que ficou conhecido
como “samba de gafieira”? O autor da presente tese, em trabalho anterior - a dissertação
“Sim, sou um negro de cor” -, levantou a hipótese que os ambientes das gafieiras, a partir
do sucesso fonográfico do “Paradigma do Estácio”, configuraram “espaços de permanência
para a estética e linguagem do samba da Cidade Nova”. 211 A dissertação de Ana Maria de
São José, a partir do estudo das formas de dança, possibilitou uma confirmação da hipótese
levantada brevemente no trabalho anterior e melhor desenvolvida no decorrer deste tópico,
ao indicar sobre a vertente de samba de Cidade Nova/Praça Onze: “Esse samba tinha uma
grande influência do maxixe e desse samba surgiu posteriormente o samba dançado a dois,
o samba de gafieira.”212

Como espaços de permanência da tradição do samba amaxixado da Cidade Nova,


as Gafieiras também configuraram espaços de permanência das hibridações entre o samba
e o jazz, como é possível compreender em outro trecho do trabalho de Ana Maria de São
José, ao retratar o cenário das décadas de 1940 e 1950: “Grandes jazz-bands tocaram nas
gafieiras como, por exemplo, a Orquestra Pan-Americana, a Americana Jazz-Band, a Jazz-
Band Sul-Americana, a Cuban Tipical Orchestra, a Orchestra Reversom, a Orchestra
Tabajara e outras.”213 Ou quando a autora se refere à formação instrumental típica do
estilo: “No samba de gafieira a banda característica é composta de percussão com pandeiro
e bateria, instrumentos de sopros como saxofone, trombone, clarineta, flauta e de cordas
como guitarra, baixo, cavaquinho e teclados. Essa configuração pode variar.”214 Entre os
instrumentos de sopro não destacados pela autora, porém, há outro que também se tornou
característico do “samba de gafieira”: o trompete, comumente chamado de “piston” entre
os sambistas das gafieiras. Instrumento que foi consagrado como tema por Billy Blanco,
em versos e título da canção lançada por Silvio Caldas em 1959, “Piston de Gafieira”.

210
SÃO JOSÉ, Ana Maria de. Samba de Gafieira: corpos em contato na cena social carioca. Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas). Universidade Federal da Bahia. 2005, p. 83, 84.
211
MORAIS, Bruno Vinícius L. de. “Sim, sou um negro de cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil dos anos 1960. Dissertação (História). Universidade Federal de Minas Gerais. 2016, p. 198.
212
SÃO JOSÉ, Ana Maria de. Samba de Gafieira: corpos em contato na cena social carioca . Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas). Universidade Federal da Bahia. 2005, p. 109. Sublinhado nosso.
213
SÃO JOSÉ, Ana Maria de. Samba de Gafieira: corpos em contato na cena social carioca . Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas). Universidade Federal da Bahia. 2005, p.94, 95. Itálico do original.
214
SÃO JOSÉ, Ana Maria de. Samba de Gafieira: corpos em contato na cena social carioca. Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas). Universidade Federal da Bahia. 2005, p.112.
80

Na chegada da década de 1950, portanto, o estilo de samba brasileiro predominante


pelas ondas das emissoras de rádio e nas lojas de disco era a vertente samba-canção, de
interpretações passionais com destaque para grandes arranjos de orquestras de cordas. E o
samba consagrado como “canônico” era o da “Era de Ouro” dos anos 1930, a partir do
“Paradigma do Estácio”. Contudo, a primeira vertente de samba a ser fixada em
fonograma, o estilo “Cidade Nova” - que, no decorrer da década de 1920, apresentou
hibridações com as vertentes jazzísticas originalmente realizadas na cidade de Nova
Orleans, nos EUA -, também continuou presente. A vertente “Cidade Nova” estimulou as
pistas de dança dos salões de clubes negros, as “gafieiras”, até ter seu próprio nome
associado ao ambiente: tornando-se, assim, conhecido como o “samba de gafieira”.

1.2. A Bossa Negra.

A década de 1950 apresentou impactantes modificações na música popular


brasileira, conforme registrado no documento fonograma. A própria forma de difusão do
documento fonográfico teve uma expressiva modificação, com o advento do formato Long
Playing (LP) que, entre nós, brasileiros, ficou popularmente conhecido como “elepê”. Foi
um período de consolidação da indústria fonográfica em cenário global. Conforme a
socióloga e cientista política Márcia Tosta Dias: “na década de 50 estão lançadas as bases
objetivas para a padronização da produção na indústria fonográfica mundial, que não
podem ser compreendidas destacadas do movimento global do desenvolvimento
capitalista.”215

No mercado fonográfico brasileiro, os efeitos da modernização chegaram antes da


consolidação da indústria fonográfica no país, com o advento, a princípio tímido em
vendas, do formato elepê, que permitiu maior tempo de gravação de músicas, sendo um
suporte comparável a seis compactos simples ou três duplos.

Com a nova tecnologia, foi possível comercializar coleções de canções de sucesso,


inclusive compilações reunidas a partir de um tema, um conceito, como o LP Polêmica,
lançado na gravadora Odeon em 1956 pelos intérpretes Roberto Paiva e Francisco Egydio
regravando, em um único disco, as nove canções que integraram a polêmica musical

215
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008, p.
41.
81

realizada entre os compositores Noel Rosa e Wilson Baptista - que trocaram farpas em
músicas compostas (e, na maioria, gravadas) entre 1933 e 1935. 216

O formato LP permitiu uma mudança na forma de relação comercial entre o


intérprete e o público: “É o tempo do trabalho de autor, quando são oferecidas condições
para que alguns artistas desenvolvam um trabalho que não poderia ser feito em compacto,
mesmo que duplo.”217 É o caso de um dos artistas mais influentes na música popular
brasileira a partir de então: Dorival Caymmi. Embora o compositor baiano tivesse estreado
como intérprete de suas composições em 1939, a estreia em LP, com Canções Praieiras,
em 1954, permitiu ao artista exprimir uma personalidade musical, que se mostrou
influente, ao reunir um repertório a partir da relação do compositor com o mar e o
cotidiano de pescadores. Conforme o texto de apresentação do LP - de autoria não
creditada: “Algumas das melhores canções praieiras que ele fez estão reunidas neste ‘long
playing’ em que atuam apenas a voz e o violão de Caymmi.”218 A esta possibilidade de
lançamento de um conjunto de canções de um artista, reunidas pelo conceito temático (o
mar e a vida ligada a ele) e/ou de sonoridade (a execução apenas em voz e violão do autor),
dá-se o nome de “álbum”, diferenciando, assim, de uma agregação de canções aleatórias.

Destaca-se ainda, para os interesses desta tese, o sucesso do cantor Ataulfo Alves,
por exemplificar um rompimento com o que foi assinalado no tópico anterior deste
capítulo como “um padrão de racialização no mercado fonográfico”. Este artista negro, de
origem pobre, era um compositor reconhecido quando se destacou como intérprete ao
lançar o compacto, em dezembro de 1940, “Alegria na casa de pobre/ Leva meu samba”. A
consagração popular veio em 1942, com a sua “Ai, que saudades da Amélia”. Começava,
assim, a trajetória que Hugo Sukman definiu como de “um sambista atípico”. Além de
compositor gravado por intérpretes como Carmem Miranda, Orlando Silva, Cyro Monteiro
e Dalva de Oliveira, Ataulfo foi o responsável pelo registro e fixação em fonogramas da
tradição de origem africana do “canto e resposta”, ou “canto responsorial”, através do
acompanhamento de vocais femininos como o grupo Ataulfo Alves e suas Pastoras. E
ainda se destacou na administração de sua carreira, estabelecendo-se como produtor de si
próprio, editor de suas músicas e “fundador e dirigente de uma das principais sociedades

216
ALZUGUIR, Rodrigo. Polêmica e amizade. In: Wilson Baptista: o samba foi sua glória. 2013, p. 135-155.
217
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008, p.
61.
218
Dorival Caymmi. Canções Praieiras. Odeon, 1954. Relançamento box Caymmi Amor e Mar. EMI, 2000.
82

arrecadadoras de direitos autorais, a pioneira União Brasileira de Compositores (UBC)”219


Com essa trajetória de destaque e sucesso, Ataulfo ficou reconhecido na sociedade carioca
da época: “seu vistoso Cadillac amarelo foi famoso no Rio de Janeiro”. 220

O sambista Ataulfo Alves, exemplo de consagração entre os pares, sucesso


comercial e retorno financeiro, representava uma excepcionalidade não apenas na música
popular, mas entre os integrantes das comunidades negras no Brasil, predominantemente
circunscritos à situação de marginalidade econômica. A condição de excepcionalidade de
Ataulfo, contudo, era fortuita para o fortalecimento do discurso de “democracia racial”
difundido pelo Estado brasileiro e então referendado internacionalmente.

Compreendido como um caso emblemático de país harmonioso no que se refere às


relações raciais, após o trauma mundial do Holocausto judaico perpetuado pelos nazistas
na Segunda Guerra Mundial, o Brasil foi tomado pela então recente Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), da Organização das
Nações Unidas (ONU), como um tipo de “laboratório” para o estudo da convivência racial
harmônica. A UNESCO objetivava criar um material para exportação destinado a países
reconhecidos por grandes conflitos raciais e segregação legalizada: os Estados Unidos da
América e a África do Sul. O Projeto Unesco, 221 realizado na primeira metade dos anos
1950, coroou a autorrepresentação brasileira de uma “democracia racial”, na qual inexistia
a discriminação e preconceito raciais, em um discurso que desde os anos 1930 retratava o
país como uma nação mestiça e harmônica. Embora a partir de tal Projeto estudos
acadêmicos demonstraram a existência de preconceito e discriminação racial no Brasil e as
formas de sua especificidade local, 222 permaneceu o discurso predominante no país,
focando na harmonia. Imagem reforçada no quinto artigo da Constituição, promulgada em
1946: “Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para
subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe.”223

219
SUKMAN, Hugo. Ataulfo Alves. (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 5). 2010, p. 10.
220
Um estudo verticalizado do posicionamento de Simonal quanto à questão racial é o tema da dissertação:
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor”. 2016. Particularmente os capítulos 02 e 03.
221
MAIO, Marcos Chor. O projeto UNESCO e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50.
In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 14. Núm. 41. Out/1999. P. 141-158. SANTOS, Fernanda
B. A temática racial no debate internacional e a conceituação do termo estabelecida pela UNESCO na década
de 1950. Revista Thema. 2014.
<https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/artigos/SegundoGoverno/QuestaoRacial> 07/05/2019.
222
MAIO. O projeto UNESCO e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. 1999.
223
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1940-1949/constituicao-1946-18-julho-1946-365199-
publicacaooriginal-1-pl.html>
83

A repercussão do formato álbum, abordada neste tópico através de Dorival


Caymmi, ou a ruptura excepcional com o padrão de racialização dominante no mercado
fonográfico por alguém como Ataulfo não foram as únicas mudanças ocorridas no universo
da música popular brasileira durante os anos 1950. Novas incorporações de sonoridades
ampliaram o repertório de hibridação na música brasileira com enorme influência na
música produzida daí pra frente.

Uma primeira entre essas novas sonoridades foi o gênero rock and roll. O sucesso
no mercado jovem estadunidense da canção “Rock Around The Clock”, lançada pelo
grupo Bill Halley and His Comets, em 1954, levou ao convite à cantora de samba-canção
Nora Ney, que dominava o idioma inglês, a gravar uma versão brasileira da canção. Deste
modo, em 1955, Nora Ney lançou o primeiro disco de rock gravado no Brasil. Em 1957, a
pianista Carolina Cardoso de Menezes compôs o primeiro rock brasileiro, a instrumental
“Brasil Rock”, no mesmo ano em que Cauby Peixoto, cantor também identificado aos
sambas-canções, lançou a primeira canção rock gravada com letra em português no Brasil,
“Rock and roll em Copacabana”. Mas o primeiro grande nome do rock no Brasil foi Celly
Campello, que estreou em um compacto lançado em 1958, dividido com seu irmão Tony
Campello, com as músicas “Perdoa-me (Forgive-me)” e “Belo rapaz (Handsome Boy)”.
Outros compactos vieram até o lançamento, em setembro de 1959, do primeiro álbum de
Celly, Estúpido Cupido. Junto ao rock, foi difundido no Brasil dos anos 1950 o Doo Wop,
estilo de música negra executado por grupos de harmonias vocais, em canções românticas
ou dançantes, particularmente através do grupo vocal Os Golden Boys, formado pelos
irmãos Ronaldo, Roberto e Renato Corrêa e José Maria - todos negros -, que estreou em
1958, com os compactos “Sino de Belém/Natal das crianças” e “Wake up little Susie/Meu
romance com Laura”, estreando em LP com Os Golden Boys, em 1959.224

Apesar de ser um gênero de black music, o Doo Wop foi adotado no Brasil como
“música jovem”, ou Pop, e até onde identificado durante esta pesquisa, assim como o rock
and roll, sem expressão da linguagem antirracista nas letras.

Outra sonoridade influente hibridada à música brasileira a partir de então está em


novas vertentes jazzísticas, que dão origem ao gênero musical Bossa Nova. Diversos são
os marcos a que pode ser atribuído os primórdios da Bossa Nova. Para a presente tese,

224
< https://dicionariompb.com.br/golden-boys/discografia> Acesso 30/03/2021. Sobre Carolina Cardoso de
Menezes (1916-1999), a compositora foi mapeada na pesquisa de pós -doutorado “Cartografia das
compositoras brasileiras nos séculos XIX XX”, realizada pela historiadora Carô Murgel na UNICAMP.
84

foram escolhidos dois marcos fixados em fonograma: um que remonta ao final da década
de 1940, e um segundo, dez anos depois, no final da década de 1950. Da década de 1940 é
possível localizar precursores notáveis, particularmente o cantor e pianista Farnésio Dutra
e Silva, o Dick Farney, que desde o final da década de 1930, alternava em palco execuções
de música erudita e a vertente jazzística swing, além da execução de standards. Conforme
o jornalista Carlos Calado no glossário jazzístico da Coleção Folha Clássicos do Jazz,
standard é a “forma clássica de canção norte-americana que se integrou ao repertório
básico do jazz”, já o Swing, “é o nome do estilo de jazz desenvolvido no início dos anos
30, centrado nas big bands, que dominaram os salões de dança dos EUA”, 225 estilo que se
tornou um símbolo da nacionalidade estadunidense na década de 1930 e, por isso, era
executado por músicos brancos e negros, perpassando (sem romper) a segregação racial
reproduzida pela indústria fonográfica no país. Em 1946, Dick Farney começou a gravar
músicas em português entre seu estilo jazzístico e o samba-canção, como o disco compacto
“Copacabana/ Barqueiro do Rio São Francisco”. Conforme o jornalista Ruy Castro:

Com Dick, nascia o que alguns chamariam de “voz de travesseiro” - um canto


sensual, coloquial, como se o cantor estivesse falando para uma única mulher, e
diretamente no ouvido dela. Na verdade, era apenas uma enunciação serena,
natural, nada impostada e perfeitamente de acordo com a delicadeza da fala
brasileira – ou seja, sem nada de americanizado. João Gilberto levaria isso às
últimas consequências em 1958, em sua gravação de “Chega de saud ade”. Mas o
pioneiro foi Dick Farney, e essa glória ninguém lhe tira. 226

Além de Dick, havia o seu grande rival em identidade musical, Lucio Alves, que
tinha em seu repertório apenas canções gravadas em português;227 e o pianista e cantor
Johnny Alf, que estreou em 1952, com o compacto “De cigarro em cigarro/Falseta”. 228
Único negro entre os três artistas citados, Alf ficou em uma posição marginalizada na
comparação com Dick Farney e Lucio Alves. Conforme Ruy Castro: “Johnny Alf já era
cult para toda uma geração, e ninguém sabia. Nem ele”229 Entre os admiradores desses três
artistas estão duas figuras que permitem introduzir o segundo marco escolhido por esta tese
para situar a Bossa Nova: Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Esse segundo marco
fonográfico foi possível com o advento do formato LP e o conceito de álbum: o disco
Canção do amor demais, com a cantora Elizeth Cardoso 230 . Como apresentado pelo

225
Para ambas as definições, ver CALADO, Carlos. Nat King Cole. (Coleção Folha Clássicos do Jazz, vol.
1). 2007, p. 50. Mesmas definições repetidas em inúmeros volumes desta coleção.
226
CASTRO, Ruy. Dick Farney. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 2) 2008, p. 26.
227
< https://dicionariompb.com.br/lucio-alves/discografia> Acesso 31/07/2021.
228
< https://dicionariompb.com.br/johnny-alf/discografia> Acesso 31/03/2021.
229
CASTRO, Ruy. Johnny Alf. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 8) 2008, p. 7.
230
A artista também teve o nome grafado como Elizete e Elisete à época, mas Elizeth era a forma principal.
85

jornalista Lauro Lisboa Garcia, o álbum “Lançado pelo selo Festa, em agosto de 1958,
destaca o violão de João Gilberto e sua revolucionária batida de bossa nova, em duas
canções, além dos arranjos de Jobim.”231 O LP abria com “Chega de saudade”, canção
regravada em compacto por João Gilberto.

“Em 1958, o cantor João Gilberto lançou o disco Chega de Saudade e instaurou o
movimento bossa nova, a primeira reviravolta musical, operada integralmente no domínio
da canção popular,”232 avaliou o linguista Luiz Tatit. Após este disco compacto, João
Gilberto lançou em 1959 o seu primeiro álbum, também intitulado Chega de Saudade. A
interpretação de João apresentou tanto uma forma contida de explorar a voz, atenuando a
emotividade expressa nas canções, quanto uma batida de violão que se tornou um símbolo
de modernização na música popular brasileira. E, embora o intérprete fosse baiano, tornou-
se o mais representativo nome de um movimento cultural encabeçado pela classe média
branca carioca. O movimento bossa nova foi considerado, por formadores de opinião e
uma parcela do público, como uma roupagem sofisticada para o samba, tornando-o
propício à valorização e consumo das classes média e alta brasileiras. A “roupagem
sofisticada” se deu através da exclusão da forte instrumentação percussiva característica
dos sambas e da entoação emotiva característica do samba-canção, valorizando os silêncios
na estrutura da canção.233 Assim, apesar de angariar enorme respeito na crítica
especializada e impactado gerações de músicos, sofreu e ainda sofre críticas como uma
forma de “embranquecimento” do samba. 234 A crítica é explicitada no livro Apropriação
Cultural, do antropólogo e babalorixá Rodney William:

A verdade é que preto cantando samba sempre incomodou, especialmente pelo


tom de denúncia das letras ou pela exaltação de uma tradição considerada
primitiva, mas a bossa nova, na introspecção de “um banquinho e um violão”,
traduzia os sentimentos “nobres” e “refinados” da democracia racial brasileira,
ou seja, de um projeto de nação cada vez mais branca na população e na
cultura.235

231
GARCIA, Lauro Lisboa. Canção do Amor Demais. (Coleção Folha Tributo a Tom Jobim, v. 17) 2013, p.
4. Embora o disco seja um marco do que viria a ser chamado de Bossa Nova, predomina em sua execução a
sonoridade samba-canção, conforme a personalidade artística de Elizeth Cardoso.
232
TATIT, Luiz. O século da canção. 2004, p. 49. Itálico do original.
233
Para uma análise musicológica da contribuição de João Gilberto e, particularmente, de sua interpretação
de "Pra que discutir com madame", ver: MENEZES, Enrique V. A música tímida de João Gilberto.
Dissertação (Mestrado). Departamento de Belas Artes. USP, São Paulo, 2012.
234
O intelectual José Ramos Tinhorão destacou-se na denúncia de elitismo da Bossa Nova des de 1961,
quando iniciou a coluna "Primeiras lições de samba", no Jornal do Brasil. Ver: LAMARÃO, Luisa Q. As
muitas histórias da MPB. As ideias de José Ramos Tinhorão. Dissertação (Mestrado). Departamento de
História, UFF, Rio de Janeiro, 2008. Ou, mais recentemente, WILLIAM, Rodney. Apropriação Cultural.
2019, p. 145-158.
235
WILLIAM, Rodney. Apropriação Cultural. 2019, p. 153.
86

Em detrimento ao compromisso de assumir uma posição apressada de rejeição ou


adesão à crítica ao movimento musical, o intuito do argumento da presente tese é
identificar mais elementos para compreender tal crítica e, assim, qualificar melhor o
debate. Parte das modificações da Bossa Nova, lidas como “embranquecimento” ou
“sofisticação” do samba – de acordo com a localização da leitura na polêmica
interpretativa –, deve-se à influência de elementos do jazz. Contudo, conforme o
argumento que vem sendo apresentado no decorrer desta tese, é importante identificar qual
vertente do jazz é incorporada.

O linguista Luiz Tatit, ao analisar a execução musical de João Gilberto afirma que
ele: “Dissolveu a influência do cool jazz nos acordes percussivos estritamente programados
para o acompanhamento da canção, sem dar espaço à improvisação.”236 A antropóloga
Santuza Cambraia Naves afirma, ao referenciar os artigos publicados nos anos 1960 pelo
poeta Augusto de Campos e os músicos Júlio Medaglia e Gilberto Mendes: “Assim,
segundo eles, ao introduzir um registro musical intimista semelhante ao do cool jazz, a
bossa nova harmonizar-se-ia com o ideário de racionalidade, despojamento e
funcionalismo que teria caracterizado várias manifestações culturais do período.”237
Também o historiador e crítico literário estadunidense Christopher Dunn pontua sobre os
artistas da Bossa Nova: “Eram todos ávidos apreciadores dos vocalistas norte-americanos,
em especial Frank Sinatra, Billy Eckstine e Sarah Vaughan, e dos artistas de jazz da costa
oeste dos Estados Unidos, como Chet Baker, Stan Getz e Gerry Mulligan, além de Miles
Davis.”238 Por fim, no verbete Cool jazz do glossário jazzístico do jornalista Carlos Calado
a referência reaparece:

Também conhecido como West Coast jazz, é um estilo moderno derivado do


bebop, praticado na costa oeste dos EUA a partir dos anos 50. Carregando
influências da música erudita, promoveu uma espécie de “esfriamento” do
bebop. No Brasil, influenciou músicos que, mais tarde, criaram ou participaram
do movimento da bossa nova.239

A referência ao trabalho de Carlos Calado estimula a uma maior explicitação


quanto ao subgênero jazzístico. Embora o jazz seja um gênero musical em que predomina a
origem negra, a vertente que influenciou a Bossa Nova, o cool, é distinta. Apesar de
originada nas primeiras gravações como solista do trompetista negro Miles Davis,

236
TATIT, Luiz. O século da canção. 2004, p. 50.
237
NAVES, Santuza C. Da Bossa Nova à Tropicália: contenção e excesso na música popula r. In: Revista
Brasileira de Ciências Sociais - vol. 15, n° 43, junho/2000, p. 35.
238
DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim. 2009, p. 47.
239
CALADO, Carlos. Chet Baker. (Coleção Folha Clássicos do Jazz; v. 7) 2007, p. 48, 49.
87

realizadas entre 1949 e 1950 (compiladas pela gravadora Capitol Records no LP Birth of
the Cool, em 1957), a proposta de articular a sonoridade do jazz a influências da música
erudita europeia foi desenvolvida e predominantemente executada por músicos brancos,
como os saxofonistas Gerry Mulligan e Lee Konitz (que participaram das gravações de
Miles), e o trompetista e cantor Chet Baker. Aliás, a influência de Baker é percebida no
Brasil também por sua forma de cantar, conforme destacado por Carlos Calado: “Seus
vocais suaves e contidos, quase sussurrados, chegaram a influenciar até músicos
brasileiros, como os tropicalistas Caetano Veloso e Gal Costa ou vários adeptos da Bossa
Nova.”240 Desta forma, o cool foi uma das mais influentes variantes criadas a partir do Bep
Bop: estilo jazzístico síntese do “Jazz Moderno”, surgido no início da década de 1940, por
nomes (negros) como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Sarah Vaughan e
o próprio Miles Davis, e que “comparado ao jazz tradicional, exibe ritmos mais complexos
e harmonias mais dissonantes.”241 Introduzindo influências da música erudita e executado
por músicos brancos, o cool, ou “jazz da costa oeste”, foi considerado como “jazz de
brancos”, no contexto segregacionista dos Estados Unidos da América.242

A recepção social do estilo cool jazz que inspirou os músicos bossanovistas,


portanto, fornece indícios capazes de corroborar a leitura de quem identifique no estilo
brasileiro um “embranquecimento” do samba - a despeito da impressão inicial, e apressada,
de que seria a hibridação de dois gêneros produzidos pelas comunidades negras: o samba
brasileiro e o jazz estadunidense. Além da sonoridade, também nos elementos textuais a
Bossa Nova apresentou uma mudança, ao inicialmente desassociar da linguagem
antirracista e optar por destacar uma temática romântica do flerte sereno à beira do mar,
que ficou simbolizado pela expressão que intitulou o segundo álbum de João Gilberto: O
amor, o sorriso e a flor (Odeon. 1960). Contudo, se a proposta da Bossa Nova tem sua
gênese no primeiro compacto de João Gilberto e consolidação com o primeiro álbum de
João, Chega de Saudade, em 1959; neste mesmo ano, outro lançamento em disco
compacto apresentou uma proposta inovadora para o samba, em particular, e a música
popular brasileira, em geral. Em dezembro de 1959, foi lançado pela gravadora Odeon um
disco compacto com as músicas “Se acaso você chegasse/Mack the Knife”, interpretadas
pela cantora iniciante Elza da Conceição Soares, ou apenas Elza Soares.

240
CALADO, Carlos. Chet Baker. (Coleção Folha Clássicos do Jazz; v. 7) 2007, p. 8.
241
CALADO, Carlos. Chet Baker (Coleção Folha Clássicos do Jazz). 2007, p. 47.
242
CALADO, Carlos. Chet Baker. (Coleção Folha Jazz, vol. 7). 2007, p. 27-29.
88

O jornalista Rodrigo Faour, em livreto biográfico sobre a cantora, escreveu a


respeito do compacto: “Elza gravou o samba ‘Se acaso você chegasse’, que 21 anos antes,
em 1938, lançara outro grande sambista ao estrelato, Cyro Monteiro. Do outro lado do
bolachão de 78 rotações, uma versão do próprio Aloysio para o fox ‘Moritat’ (‘Mack the
Knife’), um hit da época.”243 O Aloysio citado era Aloysio de Oliveira, diretor artístico da
gravadora Odeon, a quem a cantora Elza Soares foi apresentada pela esposa do executivo,
a cantora Sylvia Telles - que então se aproximava do estilo Bossa Nova. 244 O compacto de
Elza documentava um repertório articulado entre um samba mais tradicional e acenos a
uma performance passível de ser identificada a vertentes jazzísticas. “Se acaso você
chegasse”, composição de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, na versão de Elza
Soares, apresentava forte presença de instrumentos percussivos, condução ao piano e
destaque para instrumentos de sopro - trompetes, saxofones e trombone - que soavam em
conjunto (um “naipe de sopros”), retomando a sonoridade dos sambas de gafieira. Além
disso, após um solo de trombone, a segunda parte da letra da canção foi substituída por
uma vocalização onomatopaica (enquanto Elza era acompanhada pelo piano e percussão),
o que nas performances jazzísticas é chamado de scat.

A criação da técnica do scat é atribuída a Louis Armstrong em uma gravação de


1926, a canção “Hebbie Jeebies”,245 sendo que o próprio Armstrong e Ella Fitzgerald,
cânones no universo do jazz, destacaram-se entre os difusores de tal técnica. Embora Elza
pontue que no início de sua carreira sequer sabia da existência de Armstrong e atribua a
sua vocalização a uma emulação dos ruídos ao carregar uma lata d’água, 246 é sugestivo que
em seu primeiro registro fonográfico em uma grande gravadora, 247 esteja inclusa uma
versão ao português, feita por Alberto Ribeiro, para “Mack the Knife”, composição
original de Kurt Weill e Bertolt Brecht, gravada por Louis Armstrong em 1956. 248 A
canção havia sido regravada nos EUA em agosto do mesmo ano de 1959 pelo rockeiro
adolescente Bobby Darin, contudo, a versão de Louis Armstrong é mais consagrada, de
sucesso popular à época e comumente presente no repertório dos shows do cantor daí para

243
FAOUR, Rodrigo. Elza Soares. (Coleção Folha Grandes Vozes, v. 9) 2012, p. 13.
244
Sobre a trajetória de Sylvia Telles, designada por Ruy Castro “a madrinha da bossa nova”, ver CASTRO,
Ruy. Sylvia Telles. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 15) 2008.
245
Uma narração romanceada do momento de criação do scat é contada, em quadrinhos, em SANIN, Camilo.
Louis Armstrong. Coleção BD Jazz. Uma banda desenhada. Lisboa. Éditions Nocturne. 2003.
246
CAMARGO, Zeca. Elza. Ed. Leya. 2019, p. 165.
247
Antes do compacto referenciado, Elza já havia gravado o compacto “Brotinho/Pra que é que pobre quer
dinheiro?” pelo selo independente Rony, também em 1959, e sem obter repercussão.
248
Louis Armstrong and his All Stars. Mack the knife/Back o’town blues. Single. 45rpm. Columbia/Phillips.
1956.
89

frente. Um artista de forte recepção no Brasil desde os anos 1930, como abordado pelo
jornalista Ruy Castro, ao referenciar a formação musical de Dick Farney: “E havia também
a onipresença de Bing Crosby e Louis Armstrong, os dois cantores mais influentes do
planeta na primeira metade do século - um, inclusive, influenciando o outro.”249 Se Elza
não conhecia Armstrong, os executivos da Odeon decerto o reconheciam e a sugestão da
gravação não parece indicar mera coincidência. E a versão de Elza da canção trazia ainda
mais elementos jazzísticos do que em “Se acaso você chegasse”, ao encerrar a percussão a
uma bateria com execução focada nos pratos do instrumento, um piano solista conduzindo
a canção, além do destaque ao naipe de sopros e às intervenções em scat da Elza.

O compacto de Elza Soares, lançado em dezembro de 1959, demonstrou sua força


comercial e impacto no ano de 1960. A análise do acervo do Instituto Brasileiro de Opinião
Pública e Estatística, o IBOPE, revela que, no estado de São Paulo, em janeiro o compacto
de Elza estava em 26° colocação entre os compactos mais vendidos, resultado que foi
subindo para 16° colocação em fevereiro e chegou à 5° posição em março. 250 Embora os
dados de abril demonstrem uma queda, atingindo o posto de 13° em vendas, o bom
resultado comercial do primeiro disco gravado por Elza na Odeon estimulou a gravadora a
lançar um primeiro LP da intérprete, “puxado” pela canção “Se acaso você chegasse”.
Antes do LP, havia gravado outro compacto, conforme informado pelo crítico musical
Marcelo Fróes em texto produzido para o relançamento em cd dos dois primeiros LPs de
Elza: “Lançado às pressas em dezembro daquele ano, o 78 rpm estourou e colocou Elza na
mídia - a ponto de, já no final de janeiro de 1960, a cantora ter retornado ao estúdio para
gravar um novo disco com Edmundo e Era Bom.”251 O segundo compacto seguiu a mesma
sonoridade do primeiro, com forte destaque aos instrumentos de sopro e intensivo uso das
vocalizações do scat. A primeira canção era outra versão de Aloysio de Oliveira para um
standard jazzístico, “In The Mood” (Joe Garland/Andy Razaf), carro chefe da orquestra de
swing liderada pelo trombonista (branco) Glenn Miller, desde sua gravação de 1941. Mas,
como todo standard, com outras regravações. Já a segunda canção, era uma composição de

249
CASTRO, Ruy. Dick Farney. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 2) 2008, p. 15.
250
Fundo: IBOPE. Série PD. Pesquisa venda de discos. Notação: PD 001-37. Arquivo Edgard Leuenroth.
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. UNICAMP. É necessário pontuar que o acervo estudado apresenta
muitas limitações, o que influencia diretamente nas possibilidades de interpretação para a pesquisa. Não há
registro de números de vendas, apenas da ordem de vendagem. E, para a década de 1960, consta apenas
dados dos anos 1960, 1961 e 1965, apenas em São Paulo; 1966, 1967, 1968 e 1969 apenas em São Paulo e
Rio de Janeiro. Pesquisa ainda limitada, devido à pandemia Covid-19, à consulta do acervo online <
https://www.ael.ifch.unicamp.br/>
251
FRÓES, Marcelo. Encarte para a reedição do álbum. Elza Soares. Elza Soares. Odeon. 1960.
Relançamento Elza Soares/A Bossa Negra. In: box Elza Negra, v. 1. 2003.
90

Hianto de Almeida e Macedo Netto. E pouco após começou a gravação do álbum de Elza
Soares, conforme expresso por Marcelo Fróes:

O primeiro álbum foi então gravado, com acompanhamento da orquestra de


Oswaldo Borba e direção musical do maestro Astor Silva, em sessões realizadas
ao longo de duas semanas – entre 20 e 28 de abril e entre 4 e 6 de maio de 1960
– quando foram gravadas dez novas faixas. Se Acaso Você Chegasse e Era Bom
entraram nas versões gravadas recentemente para os 78 rpm, enquanto que Mack
the Knife e Edmundo ficaram esquecidas até agora, quando finalmente
recuperadas como bônus para esta reedição em CD.252

O LP de estreia de Elza Soares desperta atenção ao argumento geral desta tese já a


partir do enunciado na capa.253 A capa do álbum de Elza foi elaborada pelo artista gráfico
César G. Villela, que já declarou sobre seu trabalho: “Não se pretende que alguém
‘entenda’ uma capa de LP mas sim que sinta decisivamente atraído por ela.”254 O trabalho
dessa capa ressalta um fundo vermelho, no qual há uma fotografia colorida de meio corpo
da cantora, evidenciando ser uma artista negra. Elza aparece sorridente, emitindo ondas de
sua cabeça, como que propagando um som (ver Fig.1). Ao lado do nome Elza Soares, que
intitula o álbum, aparece, em destaque, o nome da canção de trabalho, “Se acaso você
chegasse” e, abaixo, o enunciado: “a bossa-negra”. Na contracapa, o enunciado é
explorado em um texto de autoria não creditada, que apresenta o álbum aos possíveis
ouvintes, consumidores (ver Fig. 1). Anuncia em caixa alta: “A bossa negra de Elza
Soares. Ela é o morro que desceu para o asfalto. Bateu na porta do ritmo. E ali resolveu
morar…”.

A partir dessa chamada, o texto não prossegue apresentando o gênero musical ou o


repertório do álbum, mas, sim, descrevendo uma breve biografia da cantora:

Elza Soares se vingou da vida adversa que teve até bem pouco tempo, cantand o.
Ela mesma é quem diz: “Tenho 21 anos, fui mãe de seis filhos, encarei muita
fábrica de sabão e cantava no clubinho do bairro por “duzentas pratas” a sessão;
se eu não fosse alegre, o que seria de mim?” A responsabilidade da bossa, do
balanço de Elza Soares, da sua voz de trombone rouco, não tem uma resposta tão
direta. Correrão nas veias de seu corpo ágil e agitado. Elza Soares, a toda -bossa
ou bossa-negra, como diz a capa, além de excepcional firmeza, divide com uma
precisão matemática de anel no dedo. É musical demais – e sua alegria de cantar
é autêntica porque encerra uma lição de vida. ELZA É O MORRO QUE
DESCEU PARA O ASFALTO… BATEU NA PORTA DO RITMO, E ALI
RESOLVEU MORAR… Elza é vizinha de um doutor trombone chamado
ASTOR e com ele (vocês terão certeza isso) se entendeu às mil maravilhas. Elza

252
FRÓES, Marcelo. Encarte para a reedição do álbum. Elza Soares. Elza Soares. Odeon. 1960.
Relançamento Elza Soares/A Bossa Negra. In: box Elza Negra, v. 1. 2003.
253
Para o potencial das capas de disco como objeto de reflexão acadêmica, ver RODRIGUES, Jorge Caê.
Anos Fatais: design, música e Tropicalismo. 2007 e VIDAL, Erick de Oliveira. As capas da Bossa Nova:
Encontros e desencontros dessa história visual (LPs da Elenco, 1963). (Mestrado em História) – UFJF. 2008.
254
Cesar Villela em LAUS, Egeu. Apud. VIDAL, Erick de O. As capas da Bossa Nova. 2008, p. 87.
91

Soares é a garganta de lixa com voz de passarinho sem nome. Sabe tudo e muito
mais...255

Fig. 1. Capa e contra-capa LP Elza Soares. Se acaso você chegasse. Odeon. 1960. Extraído de:
<https://brazilliance.wordpress.com/2016/12/11/song-no-96-teleco-teco-no-2-nelsinho-oldemar-magalhaes-1960/>
Acesso 28/08/2019.

É sugestivo identificar que a intérprete da “bossa-negra” tenha seu álbum


apresentado a partir de elementos de sua biografia, tão díspar da que marca os intérpretes
da Bossa Nova – em geral, pessoas brancas oriundas das classes médias cariocas. Embora
Elza tenha nascido em 23 de junho de 1930, o que significa que completaria 30 anos no
ano de lançamento do disco, o texto apresenta a informação de ela ter apenas vinte e um
anos, ressaltando a precoce maternidade (Elza realmente teve seu primeiro filho aos 13
anos de idade), que justifica já ter seis filhos. Como a sonoridade bossa nova era então
identificada como um tipo de “música jovem”, talvez por isso tenha havido o esforço de
rejuvenescer a artista na apresentação da biografia. Oriunda do morro e tendo trabalhado
como operária, a trajetória de Elza difere radicalmente tanto das musas das canções
bossanovistas, quanto das biografias das mulheres envolvidas com a proposta musical,
como a cantora “madrinha da bossa nova”, Sylvia Telles, ou a então adolescente “musa da
bossa nova”, Nara Leão, ambas mulheres brancas, oriundas das classes médias ou altas
cariocas.256 E é nesta diferença biográfica que o texto insere o epíteto “a bossa-negra” e a
autenticidade que “encerra uma lição de vida”. Mobilizando termos do debate antirracista
do século XXI, pode-se dizer que, independentemente (mas de forma alguma que seja
irrelevante) do objetivo inicial do texto, ele informa de uma realidade, que, conforme a
255
Trecho do texto original do LP de Elza Soares. Elza Soares. Álbum. Odeon. 1960. Caixa alta no original.
256
CASTRO, Ruy. Sylvia Telles (Coleção Folha 50 anos de Bossa Nova; v. 15) 2008; CASTRO, Ruy. Nara
Leão. (Coleção Folha 50 anos de Bossa Nova; v. 6) 2008. Os epítetos destacados (madrinha e musa) são os
que Ruy Castro usa para apresentar as artistas em cada um dos textos biográficos.
92

filósofa Djamila Ribeiro, não se limita à vivência pela individualidade, mas do que essas
experiências trazem de opressões estruturais, do locus social do qual a cantora emerge;257
ainda que o texto não denuncie ou critique desigualdades de raça, classe e gênero.

A apresentação do álbum a partir de elementos da biografia de Elza, contudo, não


indicia ou antecipa a temática norteadora das canções documentadas nos fonogramas. A
temática predominante do álbum é a amorosa e as duas únicas referências à questão racial
apresentam um caráter dúbio. Em um dos maiores sucessos do disco, “Mulata Assanhada”,
composição de Ataulfo Alves lançada por Miltinho em 1956, a abordagem sugere
aproximar do discurso racial hegemônico ao reafirmar o estereótipo sensual à “mulata” (a
personificação da “democracia racial”258 ), que passa com graça, fazendo pirraça, fingindo
inocente, tirando o sossego da gente. A canção ainda faz uma abordagem positivada da
instituição escravista – e talvez das relações sexuais forçadas a que eram violentamente
submetidas mulheres escravizadas, conforme correntemente exigido por proprietários – ao
dizer: ai, meu Deus, que bom seria, se voltasse a escravidão. Eu comprava essa mulata e
prendia no meu coração. E depois a pretoria resolvia a questão. A filósofa estadunidense
Angela Davis ressalta que as pessoas escravizadas eram identificadas igualmente como
“unidades de trabalho”, independentemente de seu sexo, “Mas as mulheres também
sofriam de forma diferente, porque eram vítimas de abuso sexual e outros maus-tratos
bárbaros que só poderiam ser infligidos a elas.”259 Esta condição de violência sexual
também é ressaltada pela historiadora e comunicóloga brasileira Lélia Gonzalez, ao retratar
o cotidiano de trabalho braçal das mulheres escravizadas no Brasil: “E isso sem contar com
as investidas sexuais do senhor branco que, muitas vezes, convidava parentes mais jovens
para se iniciarem sexualmente com as mucamas mais atraentes.”260

A única canção presente no primeiro álbum de Elza Soares cuja temática expressa a
Linguagem Política Negra Antirracista é “Nego tu... nego vós... nego você”, composição
de Hianto de Almeida e Macedo Netto, os mesmos autores de “Era bom”. A letra dessa
canção diversifica as localizações sociais da população negra (ou, ao menos, dos homens
negros), ao abordar a inserção de uma classe média negra (o nego vós e o nego você) que

257
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? 2017, p. 67, 68.
258
STARLING, Heloisa. SCHWARCZ, Lilia. Lendo canções e arriscando um refrão. In: Revista USP, n° 68.
2005-2006, p. 19.
259
DAVIS, Angela. O legado da escravidão: parâmetros para uma nova condição da mulher. In: Mulheres,
raça e classe. 2016, p. 19. (Livro originalmente publicado em 1981.)
260
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político -econômica. In: Por
um feminismo Afro-latino-americano: ensaios intervenções e diálogos. 2020, p. 53. (Texto original de 1982.)
93

escapa da condição de marginalidade econômica a que estão circunscritas a maioria da


população, em geral, e das pessoas negras, em particular (grupo representado, na música,
pelo nego tu). Essa variedade de tipos sociais de homens negros - agrupados, na canção, a
partir do pronome empregado por eles na comunicação (vós, você ou tu) -, disputam o
desejo (vamos ver se me convém) de sua musa, que também é uma pessoa negra (pois se o
caso é pele escura a minha é também).

Existe um nego tu, / existe um nego você/ Existe um nego vós que é um nego
bem, / vamos ver se me convém/ Pois se o caso é pele escura a minha é também/
Um tal de nego vós, / tem banca de doutor/ E anda de colete no verão também/
Nego vós não me convém/ Porque o olho incoletado não me fica bem/ Nego
você/ trabalha no comércio/ E uma casa do instituto um dia ele tem/ Vai se
instalar/ lá na zona Norte onde ele se dá bem, / também não me convém/ Eu sei
que o nego tu, / só tem na vida um bem/ O escudo do Flamengo é tudo o que ele
tem/ Não trabalha e vive bem/ Apesar de tudo isso ele me convém.261

O enunciado expresso na capa do primeiro LP gravado por Elza Soares, “a bossa-


negra”, apresentado a partir da trajetória pessoal da cantora, que perpassa condições de
classe, raça e gênero - ao se tratar de uma mulher negra pobre, oriunda de uma favela -,
não antecipa, portanto, a temática norteadora das canções. O enunciado, porém, permite
melhor caracterizar a sonoridade expressa no disco quando comparada à dos discos da
Bossa Nova. Todas as dez novas gravações agregadas às duas anteriormente lançadas (“Se
acaso você chegasse” e “Era bom”), confirmam e desenvolvem as características
apresentadas desde o bem sucedido compacto inicial lançado por Elza: ritmo conduzido
por agrupação de instrumentos percussivos ou de bateria tocada de forma jazzística, naipe
de sopros tocados com intensidade e solos de piano e/ou trombone que antecipam, ou
acompanham, o recorrente uso da técnica do scat como diferencial nas canções.

O qualificativo “negra” que diferencia a Bossa de Elza Soares, portanto, indica uma
proposta híbrida entre o samba e o jazz que não está baseada na contenção de arranjos e
interpretações vocais ou nas influências do cool jazz. A música de Elza foi identificada ao
Samba de Gafieira, vertente que, conforme explorado no tópico anterior deste capítulo,
rebatizou o primeiro gênero de samba registrado em fonograma, o Cidade Nova, que
durante a década de 1920 havia hibridado com o jazz criado em Nova Orleans, nos EUA.
Porém, na Bossa Negra de Elza, ao enfatizar o diálogo com o estilo New Orleans, essa
interlocução jazzística foi ainda situada explicitamente dentro da segregação racial na
primeira forma de execução de jazz fixada em fonogramas (Dixieland, por artistas brancos,

261
Elza Soares. Nego tu... nego vós... nego você. (Hianto de Almeida/Macedo Netto). Elza Soares. Odeon.
1960. Faixa 5, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=rorKSQb4-Ec>
94

e New Orleans, por negros, nas race records). Afinal, assumia a identificação com Louis
Armstrong - o mais emblemático nome do estilo New Orleans – através do scat (ainda com
Elza compartilhando com Louis de uma voz rouca) e da regravação de “Mack the Knife”.

O termo “a bossa-negra”, presente no primeiro LP de Elza como um enunciado, foi


escolhido para intitular o segundo álbum da cantora, lançado ainda no mesmo ano de 1960,
reforçando o qualificativo. Decisão que é assim explicada por Rodrigo Faour:

Como a Odeon especializara em lançar diversos artistas (brancos) da chamada


bossa nova, acharam por bem dar este título ao seu long play como contraponto
de uma mesma tendência sambística moderna, ainda que ela fosse muito mais
bossa explosiva, mais para gafieira e menos para o banquinho e violão - mesmo
que caísse no jazz, vira e mexe, com seus scats intuitivos. 262

A ideia de “modernidade” para o samba, identificada à Bossa Nova pela


incorporação do estilo cool jazz em diferenciação aos estilos de samba fixados em
fonograma nas décadas anteriores, foi compartilhada, portanto, pela Bossa Negra de Elza.
No entanto, racializava-se a proposta musical, não apenas pela cor de pele da intérprete,
mas também ao manter a forte base percussiva e adotar a interlocução com um gênero
jazzístico assumido e reconhecido como negro no cenário segregacionista dos EUA. A
adoção do designativo, primeiro como enunciado no primeiro álbum, depois, como título
do segundo, foi explicada mais recentemente pela própria Elza Soares no encarte à uma
reedição do álbum A Bossa Negra, lançada em 2003 pela gravadora Dubas:

Mas o disco nasceu por causa do Ronaldo Bôscoli. Na época ele escrevia para a
revista ‘O Cruzeiro’. Ele achou que eu seria uma figura importante,
representativa da raça negra, e disse assim: ‘é isso o que eu estou procurando!
Você vai ser a representante que a gente tanto buscou! E vamos fazer um disco
que vai se chamar ‘A Bossa Negra’.” 263

Ronaldo Bôscoli foi um consagrado compositor da Bossa Nova e produtor cultural,


de enorme influência desde os primórdios da proposta musical. 264 E, neste momento de
entrada na década de 1960, tornou-se um nome emblemático da defesa de uma Bossa Nova
que se mantivesse concentrada em temas prosaicos, em detrimento a uma vertente de
opção temática engajada às pautas de esquerda, liderada por Carlos Lyra - e que Bôscoli
criticava por ser um grupo de compositores de classe média que buscavam compor e

262
FAOUR, Rodrigo. Elza Soares. (Coleção Folha Grandes Vozes; v. 9) 2012, p. 14.
263
Trecho do encarte à reedição do LP de Elza Soares. A Bossa Negra. Álbum. Odeon. 1960. Dubas/EMI.
2003
264
Para uma breve exposição biográfica: <http://dicionariompb.com.br/ronaldo-boscoli/dados-artisticos>
95

interpretar a realidade social que não viviam, a dos setores pobres. 265 A perspectiva
artística defendida pelo grupo de Carlos Lyra era de uma “Bossa nova nacionalista”, que se
propunha uma espécie de aliança social através da “ida ao povo” pelos intelectuais, a partir
da produção cultural. Conforme o historiador Marcos Napolitano, tal intuito expressava
uma orientação política e intelectual, posto que “[Antonio] Gramsci pressupunha um
‘contínuo intercâmbio’ entre a ‘língua popular’ e a das ‘classes cultas’, ponto de apoio da
cultura nacional-popular que visava, no limite, fundamentar a contra-hegemonia e selar
uma aliança de classes progressista.”266

Ronaldo Bôscoli não compartilhava da perspectiva de “ida ao povo” da Bossa Nova


nacionalista, porém, nota-se que a realidade de preconceito e discriminação racial sofrida
pela comunidade negra, maioria entre os setores pobres, sensibilizava o compositor, um
homem branco oriundo das classes médias altas. Na última obra biográfica, publicada em
2018, Elza, a cantora contou ao biógrafo Zeca Camargo que Bôscoli “ficou meu amigo e
fazia questão de, nos meus dias de folga, me levar para lugares onde ele sabia que a
presença de uma negra não era bem vista.”267 A sensibilidade do compositor para com a
realidade de preconceito é ainda demarcada por Elza ao contar que Bôscoli: “Quando sabia
de uma festa metida a chique no Copacabana, arrumava tudo para eu ir com um modelo
negro lindo, chamado Paulo e avisava a todos os fotógrafos para ficar de olho se
aparecesse algum sinal de discriminação.”268

Ao ser apadrinhada por uma figura como Ronaldo Bôscoli, Elza já iniciou a carreira
fonográfica amparada pela promessa de sonoridade moderna da Bossa Nova e com uma
localização na polêmica que dividiu a proposta musical – e afetou Elza por razões pessoais.
Uma cantora do mesmo bairro, com a qual tinha alguma rivalidade, Alaíde Costa, também
uma cantora negra, foi apadrinhada por Carlos Lyra na década de 1950, durante a polêmica
deste com Bôscoli, e com o apoio de Lyra estreou com o compacto “Conselhos/Domingo
de amor”, em 1957, e lançou o LP Gosto de você, pela RCA, em 1959, em sonoridade

265
Sobre a divisão da Bossa Nova, ver a parte dois da obra de Rui Castro. CASTRO. O grande feriado. In:
Chega de saudade: a história e as histórias da bossa nova. 2 ed. 1998, p. 213 a 422. Ou HERMETO, Miriam.
Canção popular brasileira e ensino de história. 2012, p. 112, 113. Quanto a dimensão de classe, o
historiador Marcos Napolitano ressalta a dimensão de ruptura promovida pela Bossa Nova como inserção da
classe média mais alta, universitária, no plano de criação e consumo de música popular in: NAPOLITANO,
Marcos. Seguindo a canção. Engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). 2010, p. 14.
266
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção. Engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-
1969). 2010, p. 6.
267
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 124.
268
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 124.
96

próxima ao samba canção.269 A produção de Elza, contudo, também foi desde o início
apresentada a partir da condição racial. Se a Bossa Nova representava o amor e o cotidiano
na perspectiva de uma classe média branca oriunda dos bairros nobres do Rio de Janeiro, a
“bossa-negra”, anuncia o encarte, “é autêntica porque encerra uma lição de vida”, a lição
do “morro que desceu do asfalto”, através das dificuldades enfrentadas por uma mulher
pobre e negra.

A definição de “bossa-negra” a Elza, porém, não representa somente a demarcação


de uma pessoa entrecruzada pelos marcadores sociais de diferença cor, gênero e classe
social. Conforme explorado nos parágrafos anteriores, enuncia também a sonoridade de
seus álbuns, com uma significativa diferença em relação à “contenção” que caracteriza as
intepretações da Bossa Nova desde o impacto inicial do cantor João Gilberto, com o
lançamento do compacto “Chega de saudade”, em 1958. Os discos lançados por Elza não
apresentam canções do repertório tradicional da Bossa Nova (como as composições de
Ronaldo Bôscoli) e tampouco os arranjos mais intimistas associados ao gênero. São discos
“encorpados”, acompanhados por naipes de sopros a envolver o vocal potente e rouco da
cantora – como dito no texto do encarte do primeiro disco, “garganta de lixa” –, e abrir
espaço a seus característicos scats.

A identidade sonora, ou “personalidade musical”, formulada nos discos de Elza -


enunciada desde o primeiro álbum no destaque ao maestro Astor Silva como “um doutor
trombone” e a designação da voz da artista como “de trombone rouco” -, buscou no timbre
do trombone o principal parceiro aos improvisos vocais, resultando em recorrentes
momentos de duetos entre scats e solos do instrumento, geralmente com o uso do piano
como base musical nos arranjos. Muito distante, portanto, da sonoridade “um banquinho e
um violão”, representativa da Bossa, que apresentava com discrição os eventuais demais
instrumentos utilizados nas canções, a fim de destacar a voz suave e a batida de violão.

Esta sonoridade, entre o samba de gafieira e o new orleans (estilo jazzístico para o
qual o trombone é um instrumento característico), que definiu a sonoridade apresentada
por Elza Soares, foi repetida no segundo álbum, A Bossa Negra, que, conforme Marcelo
Fróes, “foi gravado entre 4 e 7 de outubro, novamente com direção musical do maestro

269
Sobre a rivalidade entre as artistas e o posicionamento na polêmica da Bossa Nova, ver SANTHIAGO,
Ricardo. Solistas Dissonantes. História (oral) de cantoras negras. 2009, p. 244-253. Sobre a discografia da
cantora, < https://dicionariompb.com.br/alaide-costa/discografia> Acesso 05/04/2021.
97

Astor”.270 A equipe de gravação repete os mesmos nomes do trabalho anterior e, desta vez,
a contracapa apresenta, antes das letras das músicas, apenas o breve informativo: “A
magnífica voz de Elza e o calor de sua interpretação tornam mais espetacular ainda esta
coleção de grandes sambas.” O LP já começa com um solo de scat, introduzindo a canção
“Boato”, com percussão forte e naipe de sopros no qual destaca a sonoridade do trombone
em contraponto aos sopros que soam em uníssono. Prossegue entre regravações de canções
lançadas nos anos 1930 (“Tenha pena de mim”, gravada por Aracy de Almeida, em 1937)
e anos 1950 (como “Cadeira vazia”, gravada por Francisco Alves, em 1950, “Fala
baixinho”, gravada por Maria Izabel em 1959, e “Beija-me”, gravada por Lúcio Alves em
1959, entre outras), tocadas na sonoridade que então caracterizava os trabalhos de Elza. E,
conforme Marcelo Fróes, “O sucesso daquele segundo LP foi igualmente enorme, sendo
bastante trabalhado no primeiro semestre de 1961.”271

No segundo Long Playing lançado por Elza Soares no ano de 1960, predomina o
tema romântico, com uma única canção de temática que toque o tema racial. Esta única
exceção, “As polegadas da mulata”, mais uma composição da dupla Hianto de Almeida e
Macedo Netto, porém, novamente retratou a representação sexualizada das “mulatas”: sem
a moreneza da mulata rebolando a gente vai/ aos poucos até desanimando/ mulata é só
quem tem aquela graça natural/ de quem nasceu pro rebolado.../ Pois a cor dessa figura/
quem pintou foi mãe Natura/ pra deixar o branco todo assanhado.

A sexualização da “mulata” é informada como natural, biológica (graça natural de


quem nasceu pro rebolado) e, ainda, sua existência é atribuída, nos dois últimos versos
destacados, em função da apreciação do homem branco. “Com efeito, objeto dileto dos
compositores – em sua maioria composta por homens –, a categoria mulata indica as
relações que se estabelecem entre cor e gênero. Aí estão marcadores de diferença que se
relacionam e se retroalimentam.”,272 conforme pontuado por Heloísa Starling e Lilia
Schwarcz. A canção “As polegadas da mulata”, portanto, retoma a imagem gravada por

270
FRÓES, Marcelo. Encarte para a reedição do álbum. Elza Soares. A Bossa Negra. Odeon. 1960.
Relançamento Elza Soares/A Bossa Negra. In: box Elza Negra, v. 1. 2003.
271
FRÓES, Marcelo. Encarte para a reedição do álbum. Elza Soares. A Bossa Negra. Odeon. 1960.
Relançamento Elza Soares/A Bossa Negra. In: box Elza Negra, v. 1. 2003. Os dados do IBOPE quanto ao
ano de 1960, em SP, consta apenas até o mês de junho, apenas referenciando os compactos. Já o ano de 1961,
em SP, consta o período de janeiro a maio apenas, e consta A Bossa Negra de Elza Soares em segundo lugar
nas vendas entre os discos 33rpm no mês de fevereiro, e em todos os demais meses os compactos “Boato” e
“As polegadas da mulata”. Instituto Edgar Leurenroth. Fundo: IBOPE. Série: Pesquisa de Venda de Discos.
Notação: PD 002.
272
STARLING, Heloísa. SCHWARCZ, Lilia. Lendo canções e arriscando um refrão. 2005-2006, p. 19.
98

Elza – e associada à sua imagem, como já mencionado – em “Mulata assanhada”, uma


representação sobre as mulheres negras assim analisada por Lélia Gonzalez:

O mito que se trata de reencenar aqui é o da democracia racial. E é justamente no


momento do rito carnavalesco que o mito é atualizado com toda a sua força
simbólica. E é nesse instante que a mulher negra se transforma única e
exclusivamente na rainha, na ‘mulata deusa do meu samba’, ‘que passa com
graça/ fazendo pirraça/ fingindo inocente/ tirando o sossego da gente’. (...) Como
todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra.
Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de
maneira especial sobre a mulher negra, pois o outro lado do endeusamento
carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se
transfigura na empregada doméstica.273

No consagrado artigo do qual foi extraída a citação acima, “Racismo e sexismo na


cultura brasileira”, originalmente publicado em 1983, Lélia Gonzalez estuda o que
denomina “duplo fenômeno” do racismo e sexismo no Brasil a partir dos efeitos violentos
que produz sobre a mulher negra, circunscrita ao lugar social da mãe preta, da empregada
doméstica, ou da mulata – que é tratada mais do que como um estereótipo, mas uma
profissão. O lugar social disponível às pessoas negras, em geral, e às mulheres negras, em
particular, evidencia a situação de exclusão que denuncia o aspecto mitológico do ideal de
democracia racial. Assim, o artigo inicia apresentando a questão geral: “Nossa tentativa
aqui é a de uma indagação. Ou seja, o que foi que ocorreu para que o mito da democracia
racial tenha tido tanta aceitação e divulgação?”274 A transição, por vezes contraditória,
entre as duas representações de mulher negra pode ser apontada nos álbuns iniciais de Elza
Soares no contraponto entre o texto de apresentação do LP de estreia - que a apresenta no
lugar social da “mãe preta” de maternidade precoce, pobre e sofredora - e o impacto da
imagem de “Mulata assanhada”, que garantiu a fixação do estereótipo sexualizado, através
do qual a artista passou a ser associada.

No contexto histórico de lançamento dos dois primeiros LPs de Elza Soares, o


discurso oficial brasileiro, em cenário interno e internacional, incorporou a representação
da democracia racial enquanto um vocábulo condensador do ideal de harmonia racial
defendido como existente no país, sedimentando um processo tecido em um longo cenário
no decorrer do século XX. “Nesse cenário, o ideal de mestiçagem acabou se transformando
no locus da autenticidade nacional e a categoria mulata em uma espécie de acerto desse

273
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afro-latino-
americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 80. (texto originalmente publicado em 1983).
274
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afro-latino-
americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 76.
99

ideal.”275 E, assim, conforme apontado pela historiadora Beatriz Nascimento no artigo “A


mulher negra no mercado de trabalho”, originalmente publicado em 1976: “Se a mulher
negra hoje permanece ocupando empregos similares aos que ocupava na sociedade
colonial, é tanto devido ao fato de ser uma mulher de raça negra, como por terem sido
escravos seus antepassados.”276

De tal modo, a leitura do Brasil como uma democracia racial imune não apenas a
atos discriminatórios, mas também a preconceitos cotidianos, predomina nos discursos
oficiais do período. Uma pesquisa preliminar, realizada para esta tese, nos discursos
disponíveis online dos presidentes da República do Brasil no decorrer da década de 1960
demonstrou que em todas as alusões à dimensão racial no país identificadas, apenas
representações sobre a harmonia racial e a inexistência de preconceitos e conflitos
aparecem. A constatação da força da leitura do Brasil como uma “democracia racial”, aliás,
precisa ser contraposta ao silêncio do governo federal a qualquer referência à cultura negra
no país – afinal, não foi localizada qualquer fala ou discurso presidencial que retrate o
tema, mesmo na data 13 de maio (então a data destinada para a questão racial no
calendário oficial brasileiro, como “Dia da Abolição”), por exemplo.

No ano de 1960, no qual foram lançados os dois álbuns de Elza, o presidente


Juscelino Kubitschek, em seu último ano de mandato, concedeu um exemplo da leitura do
Brasil como um país no qual inexiste o preconceito racial em um discurso realizado na
cidade de Recife:

Graças à fidelidade dos vossos paladinos à grande causa da fraternidade humana,


a nossa civilização não traz a mácula do preconceito racial que enodoa a cultura
de outros povos. A luta comum contra o invasor, na formidável epopéia do
Seiscentos, selou aqui, para sempre, a coexistência harmônica, a compreensão, a
estima entre as diferentes raças que formaram a nacionalidade. 277

A década de 1960 possibilitou ao Estado brasileiro a oportunidade de mobilizar a


imagem difundida mundo afora do país como um local alheio ao preconceito racial, em um
esforço de política externa para a expansão do comércio internacional. Até então, as

275
STARLING, Heloísa. SCHWARCZ, Lilia. Lendo canções e arriscando um refrão. 2005-2006, p. 19.
276
NASCIMENTO, Beatriz. A Mulher Negra no Mercado de Trabalho. In: Beatriz Nascimento, Quilombola
e Intelectual: possibilidade nos dias da destruição. 2018, p. 83. Texto originalmente publicado no Jornal
Último Hora, em 25 de julho de 1976. A escolha por res saltar, no corpo do texto, a data de publicação tanto
desse texto de Beatriz quanto o de Lélia é para enfatizar que, embora sejam pautas por vezes consideradas
recentes, estavam colocadas pelas autoras citadas no recorte temporal estudado na presente tese.
277
17 de setembro de 1960. Agradecendo o título de cidadão do recife, conferido pela câmara de vereadores
da cidade. Discursos proferidos no quinto ano do mandato presidencial, 1960, p. 336. Disponível em:
<https://biblioteca2.presidencia.gov.br/repositorioinstitucional/> Acesso 07/05/2019.
100

relações exteriores do Brasil eram particularmente restritas ao continente americano, o que


explica a pouca atenção ofertada pelo governo Juscelino Kubitschek às independências de
diversas regiões africanas, ocorridas na virada da década. 278 O governo iniciado em 1961,
com as vitórias eleitorais de Jânio Quadros, para a presidência, e de João Goulart, como
vice, buscou mudar esse cenário, implementando uma “Política Externa Independente” que
possibilitou que as novas nações africanas angariassem um papel relevante nas relações
internacionais do Brasil. Uma mensagem do presidente Jânio Quadros na abertura da
Sessão Legislativa é emblemática por retratar o objetivo desta postura e adotar o vocábulo
“democracia racial”: “A política externa de um país democrático, como é o Brasil, não
pode ser senão a projeção, no mundo, do que êle é intrinsecamente. Democracia política,
democracia racial, cultura baseada fundamentalmente na ausência de preconceitos e na
tolerância”279 A Diretriz Geral do mesmo documento reafirma as intenções de aproximação
em relação aos Estados africanos:

O Govêrno aborda o problema de suas relações com os Estados africanos com


humildade. Sabemos que não poderemos dar-lhes ajuda material significativa.
Mas temos a vivência, êles e nós, de luta em meios ecológicos semelhantes, que
pode propiciar proveitoso intercâmbio de técnicas e experiências. Temos, os
brasileiros, uma sociedade multi-racial tão harmoniosa e integrada que talvez não
nos seja difícil a compreensão e o respeito em que toda boa amizade deve
fundar-se.280

A posição de uma política externa independente, mais propensa ao diálogo e


aproximação às novas nações africanas, também orientou posicionamentos de teor político-
ideológico. Aproximar dos novos Estados nacionais africanos exigia posicionamento
quanto ao regime opressivo segregacionista e de exploração econômica da população negra
na África do Sul, país sob controle violento das minorias brancas no regime do apartheid.
A orientação do presidente Jânio ao Ministério das Relações Exteriores foi incisiva:
“Solicito expedir instruções urgentes à delegação brasileira na Organização Internacional
do Trabalho para votar com a Nigéria, condenando a política racial da África do Sul.”281

278
DIGOLIN, Kimberly A.; ASSIS, Jonathan A.; AGATA, Débora. O continente africano na política externa
brasileira: de Jânio Quadros a Lula da Silva. In: Cadernos do Tempo Presente, n. 24, jun./jul. 2016, p. 94-
109. Disponível em: <http://www.seer.ufs.br/index.php/tempo> Acesso 08/05/2019.
279
Mensagem ao Congresso Nacional remetida pelo Presidente da República na Abertura da Sessão
Legislativa de 1961. Discursos selecionados do presidente Jânio Quadros, p. 19. Disponível em:
<http://www.portalentretextos.com.br/download/livros-
online/discursos_selecionados_do_presidente_jan io_quadros.pdf> Acesso 08/05/2019.
280
Mensagem ao Congresso Nacional remetida pelo Presidente da República na Abertura da Sessão
Legislativa de 1961. Discursos selecionados do presidente Jânio Quadros, p. 25.
281
Informe 21/06/1961. Ministério das Relações Exteriores GP/MRE/172. Discursos selecionados do
presidente Jânio Quadros. p. 56.
101

A compreensão do Brasil como uma democracia racial, na qual inexiste preconceito


e discriminação, era reforçada pelo governo também internamente. Em um dos primeiros
discursos, Jânio reafirmou a leitura: “Somos um povo tenaz e tranqüilo, impermeável a
preconceitos de raça, de cor, de credo, que realizou o milagre de sua unidade cimentada
nos séculos e que começa a erigir uma civilização sem rival nestes paralelos.”282

O governo Jânio Quadros, contudo, pouco durou. Em agosto de 1961 o presidente


anunciou sua renúncia. João Goulart, o vice eleito (em uma época na qual o eleitorado
votava e elegia, isoladamente, tanto o presidente quanto o vice), identificado com os
setores progressistas e mais à esquerda da sociedade (e, devido a isso, sofrendo forte
oposição),283 assumiu mantendo o compromisso com uma política externa independente. E
apresentou também leitura similar no que se refere à questão racial do país:

Seja-me permitido dizer que a contribuição que o Brasil vem procurando


emprestar ao entendimento entre os Estados e à paz universal traduz, acima de
tudo, os ideais que norteiam nossa vida nacional. Entre esses ideais, desejo
destacar a fidelidade à forma de governo democrático -representativa, a
convicção de que poderemos processar o desenvolvimento do País e alcançar as
reformas sociais, com pleno respeito às liberdades individuais; o valor que
emprestamos ao fato de ser a nossa uma sociedade multirracial, sem conflitos
nem tensões daí decorrentes ; nossa tradição internacional de defesa de meios
jurídicos e de repulsa à violência para a solução das divergências entre os
Estados.284

As relações exteriores do Estado brasileiro no início da década de 1960 permitem


identificar a força da retórica da “harmonia racial” por outro nome de destaque no cenário
intelectual brasileiro, Gilberto Freyre. Neste momento o sociólogo e político adota o
vocábulo “democracia racial”, mas, na contramão das orientações de política externa de
Jânio Quadros e João Goulart. Conforme Antonio Sérgio Guimarães, Freyre adota o termo
“no auge da sua polêmica defesa do colonialismo português na África, e no bojo da
construção teórica do que chamará de luso-tropicalismo, julga conveniente atacar o que ele
considerava como influência estrangeira sobre os negros brasileiros, particularmente o
conceito de ‘negritude’,”285 surgido em meio à intelectualidade negra sob colonialismo

282
Discurso do Presidente Jânio Quadros veiculado pela “Voz do Brasil” Palácio da Alvorada, 31 de janeiro
de 1961. Discursos selecionados do presidente Jânio Quadros. P. 17.
283
Sobre a trajetória de João Goulart, GOMES, Ângela de Castro, FERREIRA, Jorge. Jango: as múltiplas
faces. 2007. Para uma leitura verticalizada no cenário de eleição e renúncia de Jânio Quadros e o complexo
momento de posse de João Goulart, NAPOLITANO, Marcos 1964. História do Regime Militar Brasileiro.
2014, p. 30-35.
284
Discurso na sessão de instalação da LI Conferência Interparlamentar. Brasília, 24 de outubro de 1962.
Discursos selecionados do presidente João Goulart. P. 52. Grifo meu. Disponível em:
<http://funag.gov.br/biblioteca/download/641-Discursos_joao_goulart.pdf> Acesso 08/05/2019.
285
GUIMARÃES, Antonio S. A. Classes, raças e democracia. 2002, p. 160.
102

francófono286 e reelaborado por Guerreiro Ramos e Abdias Nascimento no Brasil. 287 Um


discurso realizado por Gilberto Freyre em 1962 no Gabinete Português de Leitura é
emblemático quanto ao uso do vocábulo e intenção:

Meus agradecimentos a quantos, pela sua presença, participam este ano, no Rio
de Janeiro, da comemoração do Dia de Camões, vindo ouvir a palavra de quem,
adepto da ‘vária cor’ camoniana, tanto se opõe à mística da ‘negritude’ como ao
mito da ‘branquitude’: dois extremos sectários que contrariam a já
brasileiríssima prática da democracia racial através da mestiçagem: uma prática
que nos impõe deveres de particular solidariedade com outros povos mestiços.
Sobretudo com os do Oriente e os das Áfricas Portuguesas. Principalmente com
os das Áfricas negras e mestiças marcadas pela presença lusitana. 288

Na política estatal, portanto, a representação da harmonia racial brasileira e o


vocábulo “democracia racial” apareciam em lugar de destaque nos discursos realizados no
início dos anos 1960, demarcando uma sociedade pretensamente avessa à discriminação e
preconceito raciais, ou, no termo predominante da época “de cor”. Os episódios de
preconceito em uma sociedade de “harmonia racial”, então, podiam ser atribuídos à
condição social da vítima. De tal forma, quando do lançamento do terceiro LP de Elza
Soares, em 1961, a letra da única canção cuja temática abordava a linguagem antirracista,
“Cantiga do morro”, poderia não ser lida como uma denúncia de corte racial, mas apenas
de classe social, e, assim, não contrapor explicitamente a representação construída do
Brasil enquanto uma “democracia racial”.

Venha aqui, meu senhor/ venha ver/ minha gente do morro/ sofrer/ e a nossa
dor/ ninguém quer entender/ Só vê o que há ruim/ vê bandido em qualquer
morador/ Não vê pai, não vê mãe, nem amor/ Ninguém nos vê como gente/ E
assim/ Só vê o que há de ruim. O morro está cansado/ de trabalhar e não ter./
Venha ver, meu senhor/ Venha ver/ Sem recurso esse povo/ morrer/ e a nossa
dor/ resolvemos deixar/ Nas mãos do senhor.289

A canção “Cantiga do morro”, mais uma composição da dupla Hianto de Almeida e


Macedo Netto gravada por Elza, retomava a dimensão biográfica do texto de apresentação
do primeiro álbum gravado pela cantora quando alega que “encerra uma lição de vida. Elza
é o morro que desceu do asfalto...” Entre as lições de vida do morro trazidas no canto da

286
Sobre o Movimento Négritude, ver BERND, Zilá. O que é negritude. 1988. REIS, Raíssa Brescia.
Negritude em dois tempos: emergência e instituição de um movimento (1931-1956). Dissertação (História),
UFMG, 2014.
287
GUIMARÃES, Antonio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 160. ALMADA, Silvia. Abdias
Nascimento. (Coleção Retratos do Brasil Negro). 2009, p. 92. O uso do termo “vocábulo” nesta tese, como
no caso de “democracia racial”, referenciada nesse momento, é como uma categoria analítica mobilizada na
História Intelectual, conforme a bibliografia mobilizada nesta tese. Por isso não se confunde com apenas uma
palavra.
288
FREYRE, Gilberto. O Brasil em face das Áfricas negras e mestiças. 1962. Apud. GUIMARÃES, Antonio
S. A. Classes, raças e democracia. 2002, p. 160.
289
Elza Soares. “Cantiga do morro” (Hianto de Almeida/Macedo Netto). O Samba é Elza Soares. Álbum.
Odeon. 1961. Faixa 02, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=sxk0pdO0l78>
103

Elza, esse terceiro disco, portanto, trouxe o cotidiano de preconceito nos estereótipos
dirigidos aos habitantes dos morros, a desumanização a partir do estigma da criminalidade
(vê bandido em qualquer morador/ não vê pai, não vê mãe, nem amor/ Ninguém nos vê
como gente) que convive com e fortalece a situação de carestia (venha ver/ sem recurso
esse povo/ morrer). Os estereótipos citados contribuem para a manutenção da situação de
exclusão da população dos morros, na maioria integrada por pessoas negras. O arranjo da
canção ressalta os instrumentos percussivos, com o piano e o naipe de sopros executados
de forma mais discreta enquanto Elza canta acompanhada pelo cantor Monsueto Menezes.
A performance vocal da cantora apresenta a letra de uma forma pungente, diferenciando do
estilo vocal até então registrado por ela, aproximando-se da forma vocal comum ao samba-
canção. A música também não ressalta elementos jazzísticos, inclusive por não apresentar
nenhuma intervenção de scat.

O terceiro álbum de Elza, O samba é Elza Soares, gravado no Rio de Janeiro entre
13 e 29 de abril de 1961 e lançado em junho daquele ano, possivelmente causou alguma
surpresa ao ouvinte. Afinal, apenas na quarta faixa do disco, próximo de encerrar o Lado A
do álbum, que aparece o primeiro uso da técnica do scat, em diálogo com o solo do
trombone, já na introdução da faixa “Bom mesmo é estar de bem”. Das doze faixas que
integram o disco, aliás, somente três apresentam o uso do scat, indiciando, talvez, a busca
por alguma mudança na personalidade musical então expressa na produção musical da
artista. Contudo, os arranjos das canções do disco ainda privilegiavam a roupagem
instrumental da Bossa Negra, com o uso intensivo dos naipes de sopro, privilegiando solos
de trombone ou trompete, além do piano, e contrabaixo e bateria, junto à forte
instrumentação percussiva que reforça o ritmo de samba. O texto de apresentação do
álbum, de autoria de Ismael Corrêa, valoriza a produção dos arranjos que definiu esse
primeiro momento da Bossa Negra. A pedido de Elza, conforme explicitado, o texto é
dedicado ao diretor musical e trombonista, de modo que finaliza concluindo: “Astor
assimilou tão bem o estilo de Elza e de tal maneira valorizou com suas orquestrações as
gravações da estreia de hoje que não hesitamos em creditar 50% do sucesso de Elza a
Astor. Artisticamente, são dois apaixonados, um pelo talento do outro.”290

Após dois anos de intensa atividade profissional, com a gravação e lançamento de


três álbuns, o ano de 1962 trouxe certa calmaria na vida fonográfica de Elza Soares. Neste

290
CORRÊA, Ismael. Texto de contra-capa. O samba é Elza Soares. Álbum. Odeon. 1961.
104

ano, a artista lançou apenas um compacto de uma música (um disco 78rpm) e um
compacto duplo, incluindo quatro canções: “Maria, Maria, Maria” (Billy Blanco), “Praga”
(Fernando Cesar), “Galã enganador” (Haroldo Barbosa/Luiz Reis) e uma regravação da já
clássica “Escurinho” (Geraldo Pereira). Entre essas, a primeira canção é relevante para o
argumento desta tese. “Maria, Maria, Maria” já inicia com os sopros em destaque, em
acompanhamento de piano e percussão, com solos de trombone e os característicos scats
de Elza. Diz a letra da canção:

Maria que nasceu Maria Terezinha/ Maria que desceu do morro pra cozinha/
Maria virou Mária, virou Mariá/ Maria que cuidava muito bem da louça/ Um
dia descobriu-se, descobriram a moça/ Um dono de boate logo a fez brilhar/
Maria já não faz o que é mandada/ Agora é jambete, já não é mulata/ Trocou a
luz de vela pelo refletor/ Maria não tem mais problema financeiro/ Trabalha
muito menos, ganha mais dinheiro/ Enquanto ela deu duro, não deram valor/
Mil Marias nesta vida/ Louras e de outros matizes/ Acontecem no cenário
mundial/ Imperatrizes e atrizes/ Marias que tiveram glória/ rebolando pela
história universal/ Maria toda nossa que venceu na vida/ Sob o signo da bossa
nasceu aplaudida/ Numa terça-feira gorda em que Portela venceu/ Maria não
tem mais complexo nem nada/ Está realizada e eu sem empregada/ É mais uma
escurinha que embranqueceu.291

A canção feita pelo compositor branco Billy Blanco aborda, novamente, elementos
identificáveis com a trajetória pessoal de Elza Soares apresentada ao público no texto de
seu primeiro álbum e, assim, evoca elementos da questão racial no Brasil. A canção narra,
através da interpretação empolgada de Elza (é uma canção dançante), a história da
ascensão social de Maria Terezinha, que, oriunda de uma favela, trabalha como empregada
doméstica (desceu do morro pra cozinha e cuidava muito da louça) e tem a oportunidade
para substituir a condição profissional para o ramo artístico (um dono de boate logo a fez
brilhar e trocou a luz de vela pelo refletor), conquistando sucesso aparentemente como
cantora (venceu na vida sob o signo da bossa nasceu aplaudida). A transição profissional
de Maria Terezinha, na canção, insere-se nos lugares sociais, demarcados nos efeitos
linguísticos, destinados às pessoas negras do sexo feminino no Brasil, conforme a análise
de Lélia Gonzalez: “O processo de exclusão da mulher negra é patenteado, em termos de
sociedade brasileira, pelos dois papéis sociais que lhe são atribuídos: ‘domésticas’ ou
‘mulatas’.”292 É notório, para prosseguir na aproximação com a reflexão da intelectual, que
a consagração da artista na canção é apresentada em meio às Marias que tiveram glória
rebolando pela história universal. Argumenta Lélia Gonzalez:

291
Elza Soares. Maria, Maria, Maria/ Praga/ Galã enganador/ Escurinho . Compacto duplo. Odeon. 1962.
<https://www.youtube.com/watch?v=x0Fui3QPi_g>
292
GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da
mulher. In: Por um feminismo afro-latino americano. 2020, p. 44. Texto originalmente publicado em 1979.
105

A profissão de mulata é exercida por jovens negras que, num processo extremo
de alienação imposto pelo sistema, submetem-se à exposição de seus corpos
(com o mínimo de roupa possível) através do “rebolado”, para o deleite do
voyeurismo dos turistas e representantes da burguesia nacional. Sem se
aperceberem, elas são manipuladas, não só como objetos sexuais mas como
provas concretas da ‘democracia racial’ brasileira; afinal, são tão bonitas e tão
admiradas!293

O texto do qual foi extraído o trecho acima foi apresentado por Lélia Gonzalez em
um congresso nos EUA, em 1979, e publicado em português em 1982 no livro Lugar de
mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual, em diálogo com avanços e
limites dos movimentos feministas no tocante à questão racial no Brasil, um país no qual o
sistema capitalista apresenta marcas profundas tanto dos séculos de escravismo, quanto do
ideal de “democracia racial”. O texto fornece reflexões relevantes sobre a realidade das
mulheres negras e o estereótipo sexualizado ligado à categoria “mulata”, muito presente
nas canções gravadas por Elza, conforme tem sido demonstrado neste tópico.

Em “Maria, Maria, Maria”, porém, a ascensão social através do ramo artístico


(Maria não tem mais problema financeiro) é associada ao rompimento com a identificação
“de cor” na categoria mulata (agora é jambete não é mais mulata). O termo “jambete”,
segundo o dicionário online Michaelis, significa “mulata clara, de pele rosada ou
avermelhada”294 e a etimologia da palavra descrita como “jambo+ete”, aproximando a um
termo designativo ainda presente em 2021: “morena cor de jambo”. De tal modo, o trecho
da canção adianta sobre o processo de clareamento na identificação social pelo qual passa a
personagem, revelado em uma dimensão coletiva para com mulheres negras em ascensão:
é mais uma escurinha que embranqueceu - exemplar da percepção que, no Brasil, entre a
população mestiça, “se ‘embranquece’ por dinheiro ou se ‘empretece’ por queda social”. 295
Nos versos finais, porém, a circunscrição do lugar social destinado às mulheres negras é
reafirmada quando a ascensão de Maria é conectada, em relação de causalidade, à vacância
do cargo de doméstica em desabafo da narração (está realizada e eu sem empregada),
denunciando aquilo que Lilia Schwarcz apontou como característica do racismo brasileiro,
a aparição “como uma expressão de foro íntimo, mais apropriado para o recesso do lar”. 296

A adoção do termo escurinha para a personagem Maria Terezinha, na canção acima


analisada, conectava a faixa de abertura com a de encerramento do disco compacto de Elza

293
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica. In: Por
um feminismo afro-latino americano. 2020, p. 59. Texto original de 1979, publicado em 1982.
294
< https://michaelis.uol.com.br/busca?id=KPmVw> Acesso 14/04/2021.
295
SCHWARCZ, Lilia. Nem preto nem branco, muito pelo contrário. 2012, p. 95.
296
SCHWARCZ, Lilia. Nem preto nem branco, muito pelo contrário. 2012, p. 70.
106

Soares, “Escurinho”, composição de Geraldo Pereira, originalmente gravada, com sucesso,


em 1954 por Cyro Monteiro. A animada canção contava a história de um desencaminhado
(o escurinho era um escuro direitinho/ que agora ‘tá com essa mania de brigão),
atribuindo uma possível culpa a uma prática religiosa de matriz africana (parece praga de
madrinha ou macumba de alguma escurinha que lhe fez ingratidão). A curta versão de
Elza (a duração da canção é de menos de 2 minutos) destaca solos de trombone, trompetes
e naipe de sopros e de scat, que encerra a performance que valoriza o estilo consagrado
pelo compositor, o chamado “samba sincopado” ou “samba do telecoteco”. 297 Na
referência à prática religiosa, porém, a versão de Elza trouxe uma pequena modificação na
letra, mas que altera o sentido do verso, ao positivar a macumba como vingança de uma
mulher injustiçada pelo Escurinho (macumba de alguma escurinha que ele fez ingratidão).
As duas faixas restantes eram canções bem humoradas sobre desamor, encerrando o disco
compacto que marcou a produção fonográfica de Elza em 1962, enquanto a cantora
destinou o ano a uma estadia no Chile, para a Copa do Mundo, torneio de futebol para o
qual a cantora foi escolhida para participar como “Madrinha da seleção” de futebol. Aliás,
durante este evento Elza conheceu pessoalmente o jazzista Louis Armstrong.298

Entre dezembro de 1962 e janeiro de 1963, Elza retornou aos estúdios de gravação
e em março de 1963 foi lançado o quarto álbum da cantora, Sambossa. O título, com certo
ar de novo movimento musical, talvez indiciasse uma mudança de direcionamento
expressa pelos créditos presentes na contracapa do disco. Apesar de toda a valorização no
álbum anterior a Astor Silva, o maestro e trombonista a quem foi creditado “50% do
sucesso de Elza”, neste quarto LP a direção artística foi de José Ribamar e a coordenação
artística de Milton Miranda, sem nenhuma indicação da presença de Astor. Contudo, a
audição do álbum não apresenta grandes diferenças da “sambossa” para a “bossa-negra” –
apenas pela percussão ser reduzida à bateria na maioria das faixas -, com o destaque para
os timbres do piano, naipe de sopros e solos de trombone. Do compacto anterior, a canção
“Maria, Maria, Maria” foi escolhida para relançamento no álbum, que abria com uma
regravação de “Rosa Morena”, canção de Dorival Caymmi, originalmente lançada pelo
conjunto Anjos do Inferno e presente como oitava faixa do emblemático álbum de estreia
de João Gilberto, Chega de saudade. Enquanto a versão de João Gilberto destacava seu
canto contido e a batida de violão, com uma instrumentação percussiva de fundo, bastante

297
Sobre o estilo de samba criado por Geraldo Pereira e uma breve biografia do compositor, ver: VIANNA,
Luiz Fernando. Geraldo Pereira. (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 23). 2010.
298
Ver o capítulo 8 de CAMARGO, Zeca. Elza. 2018.
107

discreta, e uma flauta transversal; a de Elza já começava com os sopros e o scat,


destacando o vocal mais forte da cantora, solos de piano, dueto de voz e trompete e muitas
outras sessões de scat. Em outro diálogo com o cânone da Bossa Nova, nesse álbum, Elza
traz sua primeira gravação da dupla Tom Jobim/Vinícius de Moraes, com a canção “Só
danço o samba”, originalmente lançada em 1962 pela xará Elza Laranjeira. No quesito
instrumental, a versão de Elza Soares trouxe pouca modificação em relação à da Elza
Laranjeira, também marcada por naipes de sopros, vocais de apoio e uma bateria forte,
mas, na comparação entre as Elzas, a Soares marcou sua versão com vários trechos de scat.

Apesar da aparente saída de Astor Silva, portanto, o álbum Sambossa mantinha a


sonoridade que então marcava a personalidade musical expressa por Elza Soares. Quanto à
temática, três canções abordavam uma representação racial. Além de “Maria, Maria,
Maria”, já analisada em parágrafos anteriores, outra composição de Billy Blanco merece
destaque: “A banca do distinto”, canção gravada originalmente por Isaura Garcia e depois
por Dolores Duran, em 1959. A interpretação de Elza reforçou a marcação rítmica deste
samba e é uma das poucas faixas do disco que não apresenta scats ou solo de trombone ou
trompete, embora mantenha a presença do naipe de sopros e um solo de piano. Diz a letra
da canção:

Não fala com pobre,/ Não dá mão a preto,/ Não carrega embrulho!/ Pra quê
tanta pose, doutor?/ Pra quê esse orgulho?/ A bruxa que é cega/ Esbarra n a
gente/ E a vida estanca/ Um enfarte lhe pega, doutor/ E acaba esta banca!/ A
vaidade é assim,/ Põe o bobo no alto/ E retira a escada,/ Mas fica por perto/
Esperando sentada/ Mais cedo ou mais tarde/ Ele acaba no chão!/ Mais alto o
coqueiro/ Maior é o tombo do côco/ Afinal todo mundo é igual/ Quando o tombo
termina/ Com terra por cima/ E na horizontal!299

Retratando a acusação a um personagem arrogante e vaidoso, a canção identifica


três expressões de preconceito: o de classe (não fala com pobre), o racial (não dá mão a
preto) e aquele relegado ao trabalho braçal, a exigir a presença de algum subalternizado
para se distinguir pelo carregamento de qualquer fardo (não carrega embrulho). O tema
poético central da canção não se restringe à crítica ao preconceito contra a pessoa pobre
(como a leitura possível à canção “Cantiga do morro”, do disco anterior, conforme
destacado outrora), afinal, se assim o fosse, a referência à pobreza e ao carregador seria
suficiente, descartando o emblemático verso não dá mão a preto - que explicita, na lista de
defeitos do personagem, a existência do preconceito e discriminação racial ou “de cor”. A
intenção de condenação de tais atitudes também é explicitada na letra, através da
299
Elza Soares. A banca do distinto (Billy Blanco). Sambossa. Álbum. Odeon. 1963. Faixa 03, lado A.
< https://www.youtube.com/watch?v=4xM_M5X1oUg>
108

expectativa da queda social, metaforizada a partir da imagem do “tombo” (mais cedo ou


mais tarde ele acaba no chão).

Para além das duas composições de Billy Blanco escolhidas para compor o
repertório do quarto álbum de Elza Soares, uma terceira a apontar uma dimensão racial foi
selecionada para encerrar o disco, “Mulata de verdade”, de Sergio Malta. Vê se mora no
desenho/ dessas curvas que eu tenho/ nesse fogo que eu retenho/ pois se pega faz
enlouquecer/ E é por isso/ que a mulata de verdade/ é melhor que a liberdade/ pra se ter,
pra se usar/ E é por isso/ que a mulata é uma beleza/ é igual a natureza/ que se vê/ e
ninguém pode explicar.300 A canção é mais um exemplo no repertório de Elza, portanto,
que reafirma e naturaliza o estereótipo de sexualidade à categoria “mulata” e sua atribuição
à figura da cantora, por a letra ser em primeira pessoa.

A fixação da representação de “mulata assanhada” à figura pública de Elza Soares,


fortalecida pelos estereótipos de sexualização da categoria “mulata” e seu efeito de “retirar
o juízo” dos homens (enlouquecer) afetou negativamente a carreira da cantora neste ano de
1963, em meio à repercussão do compacto lançado pela cantora em maio de tal ano. O
disco incluía duas canções de desamor, na sonoridade samba-canção, “Eu sou a outra”
(Ricardo Galeno) - um sucesso lançado pela cantora Carmem Costa, em 1953 - e “Amor
impossível” (João Roberto Kelly/David Nasser). O compacto foi lançado em péssima hora,
diante da publicização do relacionamento entre Elza e o jogador de futebol Garrincha,
iniciado em 1962. Com o fim da Copa do Mundo, o casal passou a morar juntos. Contudo,
Garrincha era casado e com filhos e Elza, reconhecida pelo estereótipo de mulata
assanhada que tira o sossego da gente, foi acusada pela opinião pública de “destruidora de
lares”, após fazer enlouquecer o jogador, conforme imagens apresentadas no repertório
que, de certo modo, a cantora personificou. Neste cenário, os versos de “Eu sou a outra” -
como Ele é casado e eu sou a outra/ na vida dele/ que vive qual uma brasa/ por lhe faltar/
tudo em casa e quem me condena, como se condena/ uma mulher perdida/ só me vêem na
vida dele/ mas não o vêem, na minha vida/ não tenho nome, trago o coração ferido/ mas
tenho muito mais classe/ do que quem não soube prender o marido - puderam ser lidos
como um deboche à situação e uma afronta aos valores morais conservadores e machistas
das famílias brasileiras tradicionais. O biógrafo José Louzeiro, em Elza, cantando para
não enlouquecer, dimensionou o impacto negativo na opinião pública:

300
Elza Soares. Mulata de verdade (Sergio Malta). Sambossa. Álbum. Odeon. 1963. Faixa 06, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=e8q8g76ls8I>
109

Às rádios e redações dos jornais chegavam cartas e mais cartas, pedindo


providências às autoridades contra a desfaçatez da negra. A pressão popular
chegou a tal ponto que as emissoras deixaram de tocar Eu sou a outra e as lojas
retiraram os discos de exposição. A Odeon, que imaginava lucro fácil, terminou
tendo problemas, no Rio em outras praças. Houve desentendimento de Elza com
os diretores de programação, sua casa na Urca foi apedrejada e os muros foram
301
pichados .

Conforme o biógrafo, a cantora se arrependeu de ter gravado as canções e


desentendeu-se com os diretores da Odeon por terem lançado o disco com a expectativa do
“lucro fácil” a partir do impacto midiático da vida afetiva do casal – o que inflamou a
reação pública contra a relação, conforme previsto nos versos de “Amor impossível”, a
outra faixa do compacto: o amor que é nosso bem, pro mundo é um mal. Vai, botem fogo,
levantem sua voz. O compacto, portanto, embora pouco tenha acrescentado para a
produção fonográfica da cantora – foram interpretadas no estilo vocal e sonoridade do
samba-canção, com vocais pungentes, sem scats e nem os arranjos de gafieira que então
caracterizavam a identidade musical de Elza –, afetou a aceitação de sua personalidade
artística. Questão que pode ter influenciado para a mudança de rumos que a carreira da
cantora tomou a partir de então, marcando o ano de 1963 como o encerramento da
sonoridade inicial da Bossa Negra realizada por Elza Soares.

A definição de um encerramento da Bossa Negra é cabível para a sonoridade


realizada na produção musical de Elza, mas não para pensar uma proposta musical
realizada por artistas negros que articulem o samba “modernizado” pelo impacto do
movimento de hibridação jazzística da Bossa Nova, mas promovendo interlocuções com
vertentes assumidamente negras do jazz. Afinal, coincidentemente, o ano de 1963 também
marcou a estreia em álbum dos cantores Jorge Ben e Wilson Simonal, demarcando novos
caminhos na música brasileira, em geral, e para a música negra brasileira, em particular.

Jorge Duilio Lima Meneses, de nome artístico Jorge Ben, lançou o primeiro disco
compacto em 1963, um dos primeiros lançamentos da gravadora Philips, interpretando
suas composições “Mas que nada” e “Por causa de você, menina”. 302 Conforme texto da
jornalista Ana Maria Bahiana na reedição de 2009 do primeiro LP de Jorge, as canções do
primeiro compacto foram lançadas com “boa receptividade comercial, mas massacradas
pela crítica como ‘infantil’ e ‘primitivo’. Tratamento idêntico foi reservado a Samba
Esquema Novo, onde o violão percussivo de Jorge e sua voz peculiar desenhavam mesmo

301
LOUZEIRO, José. Elza – cantando para não enlouquecer. 2010, p. 139. Itálico do original.
302
Jorge Ben. Mas que nada/Por causa de você, menina. Compacto. Philips. 1963.
110

um novo esquema para o samba, meio maracatu, meio afro, meio rock.”303 Os dois sambas
valorizavam, assim, a batida de violão de Jorge - que explora as possibilidades rítmicas do
instrumento -, em arranjos produzidos pelo saxofonista J. T. Meirelles, com forte presença
de instrumentos de sopro. O primeiro álbum de Jorge Ben foi gravado e lançado no mesmo
ano de 1963. O disco revelava uma pretensão ambiciosa, afinal, o título Samba Esquema
Novo apresentava uma dimensão de manifesto. A capa sugeria o ambiente intimista da
proposta “um banquinho, um violão”, com uma foto de Jorge, sozinho, em fundo bege,
sentado (embora não apareça o local onde esteja sentado, como se estivesse “no ar”),
tocando seu violão (fig. 2). Na contracapa, um extenso texto de Armando Pittigliani
(fig.2),304 produtor do disco e assessor de imprensa da multinacional gravadora Philips,
apresentava o cantor e compositor e seu estilo:

É o esquema novo do samba. Talvez um retorno mais acentuado à nossa música


popular primitiva, agora com as características modernas – mas, sem ser “bossa
nova”, aquela “bossa nova” dos primeiros tempos e que agora já se acha em seu
segundo (ou terceiro) estágio de evolução. O samba de Jorge Ben – da batida de
seu violão à linha melódica & letra de suas composições – revela um novo
caminho nos horizontes da nossa MP. É o esquema novo do samba. Reparem que
a influência “negróide” transborda em todos os momentos de sua música. Vale o
sofrimento, o amor singelo (geralmente não correspondido), a pureza dos
sentimentos e o próprio samba, isso em todas as suas letras.

(...) Na sua “batida” tanto se destaca o “baixo” como o “desenho ritmico” de sua
pontuação na maneira toda sua de tocar. Um exemplo disso é o fato de várias
faixas deste disco não contarem com o contra-baixo na orquestração. Somente o
violão de Jorge já dá a necessária marcação dispensando, portanto, aquele
instrumento de ritmo. O “balanço” do acompanhamento repousa quase sempre
no seu violão. (…) Jorge Ben canta o que compõe, o que sente e o que sonha. Há
em suas letras e melodias toda a nostalgia do sangue negro, todo o encanto da
poesia pura e simples do brasileiro autêntico, todo o ritmo empolgante de quatro
séculos de civilização baseada numa miscigenação de raças onde o negro
africano tem papel preponderante. Da Etiópia vieram seus ancestrais. De nobre
linhagem indígena Jorge tirou de sua vó o sobrenome Ben. 305

Diferente do texto presente no álbum de estreia de Elza Soares, a dimensão


biográfica ocupa menor espaço na apresentação. É informada a origem de Jorge no bairro
da Tijuca, bairro de classe média baixa e setores pobres do Rio de Janeiro, mas a origem
econômica do artista não é explicitada, podendo sugerir uma aproximação ao cotidiano
temático da Bossa Nova, ao referenciar que “das praias e das noites da Zona Sul veio à
tona seu talento musical”. Embora os elementos biográficos tenham pequeno destaque, em

303
Trecho da contracapa à reedição em CD de Jorge Ben. Samba Esquema Novo. Álbum. Philips. 1963.
Universal Music. 2009. Negrito do original.
304
Sobre Pittigliani, ver reportagem de Luiz Fernando Vianna. Memórias de um inventor de histórias da
MPB. O Globo. Cultura. 25/02/2012. <https://oglobo.globo.com/cultura/memorias -de-um-inventor-de-
historias-da-mpb-4059256> Acesso 30/05/2019
305
Trecho do texto original do LP de Jorge Ben. Samba Esquema Novo. Álbum. Philips. 1963.
111

dois momentos a dimensão racial é enfatizada como componente da personalidade musical


do artista, havendo “em suas letras e melodias toda a nostalgia do sangue negro” e por
ressaltar sua ancestralidade etíope, origem do sobrenome artístico Ben. O historiador
Alexandre Reis, na dissertação “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política
e relações raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976), explica a ancestralidade africana de
Jorge: “Conforme entrevistas concedidas pelo artista a diversos veículos de imprensa, entre
eles O Pasquim, sua mãe se chama Sílvia Duílio Saint Ben Zabella e nasceu na Etiópia,
tendo chegado ao Brasil aos 13 anos, trazida pelos pais.”306

Fig. 2. Capa e contra-capa LP Jorge Ben. Samba esquema novo. Philips. 1963. Extraído de:
<https://www.musicontherun.net/2017/01/discos -para-historia-samba-esquema-novo-jorge-ben-1963.html>
Acesso 28/08/2019.

É interessante destacar do texto também a informação de que a música de Jorge


Ben apresenta “as características modernas – mas sem ser ‘bossa nova’”, o que permite
diferenciar a recepção inicial de sua sonoridade em relação àquela tida pelo trabalho de
Elza. É dito “inicial”, pois, as referências posteriores comumente situam os primeiros
discos de Jorge como parte do movimento musical Bossa Nova. Já em 1968, o Samba
Esquema Novo foi incluído pelo maestro Júlio Medaglia no ensaio Balanço da Bossa
Nova.307 E, no relançamento oficial de sua discografia em 2009, coordenado por Rodrigo
Faour, Ana Maria Bahiana assim inicia o texto de apresentação do disco: “O primeiro
álbum de Jorge Ben Jor aterrisou na música brasileira quase como um objeto não
identificado. O padrão estético era o da bossa nova: cool, complexo e civilizado.”308 O

306
REIS, Alexandre. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações raciais na obra de
Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p. 44.
307
PAIVA, Carlos E. A. Black Pau: a soul music no Brasil anos 1970. Tese (Doutorado) Ciências Sociais.
Universidade do Estado de São Paulo. 2015, p. 29.
308
Trecho da contracapa à reedição em CD de Jorge Ben. Samba Esquema Novo. Universal Music. 2009.
112

termo “civilizado”, operado por Ana M. Bahiana ao referir ao padrão da Bossa Nova,
indicia um vocabulário valorativo que conforma o debate sobre o “embranquecimento” do
samba; afinal, contrapõe às formas anteriores de execução do samba, como no texto de
apresentação do LP, que retrata a elas como “música popular primitiva”.

Embora o texto do encarte apresente ao potencial ouvinte-consumidor os temas das


letras de Jorge Ben como “o sofrimento, o amor singelo (geralmente não correspondido), a
pureza dos sentimentos e o próprio samba, isso em todas as suas letras”, a audição do
álbum permite ampliar a temática com a referência à cultura e religiosidade de matriz afro-
brasileira em ao menos três das 12 canções, a começar pela faixa de abertura do disco,
oriunda do compacto: “Mas que nada”. O primeiro sucesso fonográfico de Jorge inicia e
encerra exaltando a orixá Obá (Ô, ariá, raiô. Obá, Obá, Obá), uma das esposas de Xangô.
Ou ainda como uma alusão mais generalista, tendo em vista que, segundo o Dicionário de
Cultos Afro-Brasileiros organizado por Olga Gudolle Cacciatore e publicado em 1977,
Obá é um “termo usado, no Brasil, para designar os doze ministros de Xangô, do Axé Opô
Afonjá, BA, também chamados Mangbá.”309 E a canção ainda se apresenta como um
samba de preto velho, samba de preto tu. Conforme o mesmo dicionário, Preto Velhos são
“espíritos purificados de antigos escravos africanos no Brasil, os quais ‘descem’ na
Umbanda e são exclusivos dessa religião afro-brasileira. São o exemplo da humildade,
sabedoria simples, bondade e perdão. Dão conselhos e ralham amigavelmente”. 310

A reverência a Obá aparece ainda em outra canção do Samba Esquema Novo de


Jorge Ben, a quarta faixa do Lado B do disco, “Ualá, ualalá”, apresentado como um samba
diferente/ lá dos tempos de sinhá/ e de sinhô/ é um lamento que o nego entoava pela noite/
é um lamento de amor. Agô, Obá, agô. Além da alusão implícita à memória da escravidão
(os tempos de sinhá e de sinhô em que o nego entoava pela noite seu lamento), a última
expressão é um pedido de licença ou proteção (“Agô”) à Obá. E a canção seguinte do
disco, “A tamba” apresenta a letra: A conga está chamando/ Vamos todos até lá/ Pois a
tamba está tocando/ Hoje nós vamos sambar/ iê, iê, iê, iê, iê, iá/ Desde que se foi/ o nosso
Rei Nagô, ô, ô/ Ninguém jamais fez samba/ Ninguém jamais cantou/ Um lamento ou uma
canção de amor. A pesquisa para esta tese não localizou significados exatos para “conga”
e “tamba”, mas uma possível leitura é de ser uma referência à Maria Conga. Segundo
Alexandre Reis, “esta personagem é popularmente conhecida como uma das entidades da

309
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977. p, 182.
310
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977. p, 215.
113

Umbanda”311 e é tema de outra canção de Jorge, lançada em 1965. Outra possibilidade é


apresentada pela comunicóloga Luciana Oliveira, na dissertação O swing do samba: uma
compreensão do gênero samba-rock a partir da obra de Jorge Benjor, que afirma: “a
conga é um instrumento musical de origem cubana que ecoa um som médio grave.”312 A
leitura como instrumento percussivo aproxima a “conga” do significado aparente de
“tamba” na canção, que parece referir aos tambores, instrumentos comuns nas cerimônias
religiosas afro-brasileiras e também nos sambas. Por fim, Nagô, conforme o supracitado
Dicionário, designa o “nome dado, no Brasil, ao grupo dos escravos sudaneses procedente
do país Iorubá/ Nome dado, no Brasil, à língua iorubá que foi, na Bahia, a ‘língua geral’
dos escravos, tendo dominado as línguas faladas pelos escravos de outras nações”, 313
fortalecendo a conexão temática entre “Ualá, Ualalá” e “A tamba”.

Além da recorrência da presença de elementos de matrizes religiosas afro-


brasileiras, as composições de Jorge Ben registradas no álbum Samba Esquema Novo
apresentaram outro elemento interessante para a linguagem negra antirracista na canção, e
que diferencia suas letras em relação às músicas lançadas por Elza Soares: a forma de
retratação da mulher. Em nenhuma canção do disco aparece o termo “mulata”. As
retratações ocorrem por morena (“Vem, morena, vem”), menina (“Rosa, menina, Rosa”,
“Menina bonita não chora” e “Por causa de você, menina”) e amor (“Chove, chuva” e
“Ualá, Ualalá”), além de uma sutil mudança na forma de expressão do encantamento em
“Quero esquecer você” quando diz: Por você me enfeiticei/ Por você me enamorei/ Sei que
não devo/ Querer você tanto assim, com o eu lírico da canção assumindo uma posição
ativa na referência ao feitiço, diferente da representação da “mulata” que tira o sossego e o
juízo dos homens como que por um encanto natural, conforme analisado.

Quanto à sonoridade, além do destaque ao violão percussivo de Jorge, predomina


no LP o piano, contrabaixo (em algumas faixas, substituído pelos acordes graves do violão
de Jorge), bateria e o naipe de sopros, com destaque para o saxofone.

A sonoridade jazzística que acompanhava a performance em voz e violão de Jorge


Ben caracterizava também a produção do outro artista negro lançado em LP no ano de
1963: Wilson Simonal. Portanto, uma terceira proposta identificada como um tipo de

311
HOBSBAWM, Eric. História social do jazz. Trad.: Ângela Noronha. 6 ed. rev. e ilust. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2009. p, 82
312
OLIVEIRA, Luciana Xavier. O swing do samba: uma compreensão do gênero samba-rock a partir da obra
de Jorge Benjor. Dissertação (mestrado em Comunicação). Universidade Federal da Bahia. 2008, p. 152.
313
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977. p, 178.
114

“música moderna negra” na década de 1960 foi lançada por Wilson Simonal de Castro,
artista que iniciou carreira fonográfica pela gravadora Odeon, lançando em dezembro de
1961 um compacto no qual interpretava o chácháchá “Terezinha” (Carlos Imperial) e o
rock “Biquinis e borboletas” (Britinho/Fernando César). Um segundo compacto, em junho
de 1962, incluiu “Eu te amo” e “Beija, meu bem” (Carlos Imperial). Ambos lançamentos
sem repercussão no mercado. Assim sendo, diferente de Elza e Jorge, Simonal não
apresentou sucesso imediato com sua primeira oportunidade de gravação em uma grande
gravadora e testou alguns gêneros musicais antes de produzir uma espécie de bossa negra.

O primeiro álbum de Wilson Simonal, Tem ‘Algo Mais’, foi gravado e lançado em
1963, com arranjos de Lyrio Panicalli e apresentando um artista identificado à Bossa Nova,
embora, como sugerido pelo título, anunciando “algo mais”: a potência vocal, o swing e
certas doses de malandragem (entendida como uma forma de interpretar mais cadenciada e
cheia de “ginga”) atribuídas à performance do cantor. Corroborando a sugestão, o
relativamente longo texto de apresentação do álbum na contracapa do disco, escrito por
Ricardo Galeno, parte de uma metáfora de uma revolução comportamental em curso (“o
Brasil já não está dormindo de pijama”) para apresentar o artista a partir da correlação com
um contexto de inovações:

O Brasil já não está dormindo de pijama listrado, como dormia nos dias de
ontem. Há uma espécie de revolução, em que a grande maioria toma parte, isso
para desespero e nariz torcido da minoria quadrada, que não dispensa o pijama,
que cronometra tudo, que “standardiza” tudo, que até pra ir a uma simples ses são
de cinema tem dia estabelecido. O Brasil dos dias de hoje é outro. É
revolucionário. Há uma insurreição violenta contra os padrões preestabelecidos,
tanto que o vestir das moças e dos rapazes, as conversas que eles conversam, as
músicas que preferem, a literatura que absorvem, dizem bem da revolução
existente e que, fatalmente, derrubará os retrógrados tirando -lhes, em praça
pública, o indefectível pijama. [...]

“WILSON SIMONAL TEM “ALGO MAIS” é um disco para o Brasil que tirou
o pijama e não, evidentemente, para o Brasil que continua de pijama. E, como
diz o título da produção de Milton Miranda, responsável pelo tudo de bom que
há no disco, é uma produção feita de “por enquanto”, porque a coisa ficava
avançada demais e a própria maioria teria que parar pra pensar e até mesmo
estudar esse Wilson Simonal admirável, que nasceu avançado e que tem algo
mais pra dar em matéria de intepretação moderna do moderno cancioneiro
popular brasileiro. “Por enquanto”, Wilson Simonal é tudo isso. Aqui está um
“monstro” que canta, que tem o que dar à música nova do Brasil musical que
surge. […] Esta produção, senhores, representa um tratado definitivo da BOSSA
NOVA.314

O texto de Ricardo Galeno é rico em alusões àquilo que o historiador Eric


Hobsbawm definiu como uma “revolução moral e cultural, uma dramática transformação

314
Trecho do texto original do LP de Wilson Simonal. Tem algo mais. Álbum. Odeon. 1963.
115

das convenções de comportamento social e pessoal.”315 A revolução social e cultural, para


usar ainda termos mobilizados pelo historiador, demonstrou na parcela jovem da população
de diversas regiões do planeta um novo ator social a expressar a radicalização política e a
transformação em padrões de cultura, sociabilidade e expressão artística.316 A apresentação
do primeiro álbum de Simonal, conforme visto no trecho acima citado, associa a produção
do artista a esse contexto de transformação comportamental que ocorria na sociedade
brasileira (e não apenas nela) na segunda metade do século XX e insere o cantor como um
representante de tal mudança dentro do gênero Bossa Nova. Difere, assim, das
apresentações dos álbuns de estreia de Elza Soares e Jorge Ben. Destaca-se a diferença em
relação à apresentação de Elza, afinal, Simonal nasceu e cresceu na Favela Brás do Pinto,
no Rio de Janeiro, sua mãe trabalhava como empregada doméstica e ele também começou
a trabalhar muito jovem, buscando amenizar as dificuldades financeiras da família,
conforme apresentado na biografia do cantor, Nem vem que não tem, a vida e o veneno de
Wilson Simonal, escrita pelo jornalista Ricardo Alexandre. 317 Uma possível explicação
para a diferença entre as apresentações dos três artistas está no recorte de gênero, com o
texto para Elza demonstrando uma opção explícita de partir da esfera privada, enquanto em
Jorge e, sobretudo, em Simonal, o texto ancora em uma dimensão pública (em nenhum dos
dois homens o público/consumidor é informado da idade ou se tem filhos, por exemplo).

O álbum de estreia de Simonal, apesar da sintonia com a revolução


comportamental, foi apresentado como “uma produção feita de ‘por enquanto’”, com a
promessa de aprofundar a proposta em trabalhos seguintes. As 12 canções eram mais
convencionais na temática - o amor e o desamor. Quanto nos arranjos, mais “encorpados”
na instrumentação, se comparados à contenção da Bossa Nova (contava com bateria, piano,
contrabaixo, vibrafone e naipes de sopros, incluindo flautas, e instrumentos de percussão
pouco comuns, como berimbau), mas ainda contidos na execução, apesar de demonstrarem
a adoção da técnica do scat em “Samba cromático”. Contudo, segundo o texto de Ricardo
Alexandre para a reedição do álbum em CD em 2004, o álbum trazia alguns elementos
centrais para a personalidade musical de Simonal: “Não era samba, não era bossa nova.
Mas era negro, brasileiro, sofisticado e poderoso, quase como se Ray Charles e Frank

315
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. 1995, p. 313.
316
Ver os capítulos 10 e 11, respectivamente “Revolução Social” e “Revolução Cultural” de HOBSBAWM,
Eric. Era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. 1995, p. 282-336.
317
ALEXANDRE, Ricardo. O “Pai João” (1938-1960). In: Nem vem que não tem: a vida e o veneno de
Wilson Simonal. 2009, p. 13-35.
116

Sinatra encarnassem em João Gilberto. Ou o contrário.”318 Esses elementos foram


desenvolvidos através de anos na atuação como cantor nas noites cariocas em boates,
particularmente aquelas reunidas no quarteirão conhecido como Beco das Garrafas, onde
era desenvolvida uma nova concepção de execução musical dentro das hibridações entre o
samba e o jazz. Novamente conforme Ricardo Alexandre, “o jornalista Robert Celerier, do
Correio da Manhã, definiu aquela nova escola como ‘hard-bossa-nova’, muito mais
agressiva do que o som de João Gilberto, intrincada, técnica, urbanóide, nervosa e
definitivamente exibicionista.”319 Uma escola importantíssima para o desenvolvimento do
argumento desta tese. Conforme defendido pelo autor desta tese em trabalho anterior:

O que estava sendo chamado de “hard bossa nova” é o também denominado


samba-jazz: outra vertente de influência do jazz no samba, também desenvolvida
em boates cariocas no decorrer dos anos 1950 e comumente confundido com a
Bossa Nova, mas que priorizara, ao contrário do cool que orientara a bossa, o
chamado hard bop.320

Um estudo verticalizado sobre o samba-jazz foi realizado na tese em Música de


Marcelo Silva Gomes, Samba-jazz aquém e além da bossa nova: três arranjos para Céu e
Mar de Johnny Alf, que estuda, a partir do conceito de hibridação de Nestor Canclini para a
abordagem da Musicologia, os diferentes encontros de samba e jazz nos anos 1950 e 1960.
Em referência a discos lançados entre 1964 e 1966 por nomes como Meirelles e os Copa 5,
Milton Banana Trio, Bossa Três, entre outros, o autor pontua que: “Nestes, o caráter da
execução é vigoroso, franco e brilhante. Não há sinal de economia, pelo contrário, de certa
forma busca-se, nos moldes dos hard bop, os limites possíveis de execução, com solos
extensos e virtuosísticos.”321 Referência também explicitada quando o autor argumenta que
“pode-se afirmar que, em linhas gerais, o SJ [samba-jazz], diferente de Johnny [Alf], não é
cool. Daí a analogia com o caráter intenso do hardbop. Tanto um quanto outro usualmente
empregam os recursos instrumentais em direção aos excessos, a virtuosidade”. 322

Conforme o glossário jazzístico de Carlos Calado, o verbete hard bop define uma
“corrente moderna do jazz, mais praticada em Nova York e na costa oeste dos EUA, na

318
ALEXANDRE, Ricardo. Encarte. Wilson Simonal. 1963-1964 (Tem ‘algo mais’. A nova dimensão do
samba. Odeon. 1963, 1964, respectivamente). In: Box Wilson Simonal na Odeon (1961-1971). EMI, 2004.
Cd 1.
319
ALEXANDRE, Ricardo. Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 52-53.
320
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor.” Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil dos anos 1960. 2016, p. 166.
321
GOMES, Marcelo Silva. Samba-jazz aquém e além da bossa nova: três arranjos para Céu e Mar de
Johnny Alf. Tese (doutorado em Música). Universidade Estadual de Campinas. 2010, p. 60.
322
GOMES, Marcelo Silva. Samba-jazz aquém e além da bossa nova: três arranjos para Céu e Mar de
Johnny Alf. Tese (doutorado em Música). Universidade Estadual de Campinas. 2010. p. 94.
117

década de 50. Diferentemente do que pode sugerir o termo ‘hard’ (difícil), suas harmonias
e melodias são mais simples do que as do bebop.”323 A difusão dessa corrente do jazz
moderno é comumente associada ao Funky, que, conforme o glossário de Carlos Calado, é
um “estilo de jazz criado na segunda metade dos anos 50, com forte influência do gospel e
do blues. A partir dos anos 60, quando se popularizou, passou a ser chamado de soul
jazz.”324 A relação com o cool é explicitada por Carlos Calado em outro texto:

Mas é certo que, personalidades à parte, o hard bop trazia intensidade sonora,
vontade de expressar sentimentos mais profundos e uma maneira visceral de
tocar que quase haviam se perdido no jazz do final dos anos 40, quando o cool
jazz e outros estilos influenciados pela música clássica européia deram uma
racional “esfriada” na cena do jazz. Ao enfatizar novamente o blues e o gospel
como raízes essenciais do jazz, o hard bop se estabeleceu, de certo modo, como
um bebop mais espontâneo, mais pé-no-chão.325

O hard bop representava uma influência contraposta à vertente jazzística cool Jazz,
que influenciara a Bossa Nova no Brasil e que, conforme argumentado no início deste
tópico, era um formato executado predominantemente por músicos brancos com impacto
no mercado fonográfico a partir na década de 1950, por nomes como Chet Baker e Stan
Getz. Paralelo ao sucesso comercial e repercussão do cool, músicos negros
produziram uma contraposição ao que consideravam como “frieza” do gênero. Realçando
o sentimento do Blues e da vertente religiosa gospel, esses músicos reafirmaram as
matrizes da música negra estadunidense no jazz, em sintonia com o contexto histórico
estadunidense da década de 1950, no qual acirrava as lutas antirracistas contra a política
segregacionista existente no país. Assim, há uma leitura política nas variações jazzísticas
com o surgimento do Hard Bop e o Soul jazz (ou Funky), que chegaram aos fonogramas
ainda na década de 1950, destacando nomes como Art Blakey e os Jazz Messengers,
Horace Silver Quintet, Lee Morgan e os primórdios de John Coltrane. 326

A leitura predominante da bibliografia sobre a Bossa Nova quanto à adoção do cool


jazz foi explicitada no início deste tópico do capítulo. A tese de Marcelo Silva Gomes,
contudo, traz mais uma referência quanto a essa incorporação, ao recordar sobre a narração
de Ruy Castro a respeito de um encontro entre Tom Jobim e João Gilberto, em 1957, no
qual Tom notava que João “deixara de ser o discípulo de Orlando Silva, com toques de

323
CALADO, Carlos. Horace Silver (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 10). 2007, p. 49.
324
CALADO, Carlos. Horace Silver (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 10). 2007, p. 49.
325
CALADO, Carlos. Art Blakey (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 5). 2007. p, 31-32.
326
Sobre a questão racial entre o Cool e o Hard Bop no jazz ver CALADO, Carlos. Coleção Folha: Clássicos
do Jazz. 2007. 20 Volumes. Particularmente os volumes 05, 07, 10 e 11.
118

Lúcio Alves, que ele se lembrava de ter ouvido. Cantava agora mais baixo, dando a nota
exata, sem vibrato, estilo Chet Baker, que era coqueluxe à época.”327

Todavia, embora o cool tenha apresentado maior impacto no Brasil dos anos 1950,
através da repercussão cultural e fonográfica da Bossa Nova, o hard bop também foi
difundido em terras brasileiras na virada dos anos 1950 para 1960. Inspirados por Johnny
Alf, um músico negro, tido como um dos precursores da Bossa Nova e que apresentava em
suas interpretações a influência do jazzista estadunidense negro Nat King Cole - 328
considerado um pioneiro da introdução de elementos do gospel no jazz nos anos 1930 -,329
os artistas influenciados pelo hard bop tiveram suas performances conhecidas como
“Samba-jazz” ou “Hard Bossa Nova”. Entre estes, conquistaram destaque inicialmente
grupos instrumentais, como o Tamba Trio, liderado pelo pianista Luiz Eça, o Milton
Banana Trio, liderado pelo baterista que empresta o nome ao trio (e que foi casado com
Elza Soares antes da relação dela com Garrincha) e o Copa 5, liderado pelo saxofonista J.
T. Meirelles. Para a consolidação do Samba-jazz, a referência de maior impacto, porém,
não seria um grupo ou indivíduo, mas o local de encontro e atuação dos músicos do
gênero, o Beco das Garrafas: uma agremiação de boates cariocas que possibilitava uma
performance mais livre dos músicos e também a troca de influências e a experimentação.330
No Beco, além da interlocução com o subgênero hard bop, os músicos participantes
articulavam ainda a referência a uma tradição de samba mais popular, dançante e também
com hibridações jazzísticas, desenvolvida em salões: o Samba de Gafieira. Novamente
citando Marcelo Gomes: “[Roberto] Menescal (2007) relata que muitos dos envolvidos
com o SJ, como o próprio Raul de Souza, Dom Um, Edison Machado, entre outros,
moravam na Zona Norte do Rio e tocavam em orquestras e gafieiras.”331

E assim, do mesmo modo que a produção de Elza Soares aproximava-se à promessa


de modernidade bossanovista ao realizar novas hibridações do samba com o jazz, mas
fazendo um recorte racial por explicitar a interlocução com uma vertente jazzística
assumidamente negra, o new orleans de Louis Armstrong; as propostas musicais lançadas
por Jorge Ben e Wilson Simonal também permitiram associações com a Bossa Nova, e
327
CASTRO, Ruy. 1990, p. 167. Apud. GOMES, Marcelo S. Samba-jazz aquém e além da Bossa Nova.
2010, p. 57.
328
Sobre Johnny Alf e sua reverência a Nat King Cole, ver CASTRO, Ruy. Johnny Alf. Coleção Folha: 50
anos de Bossa Nova. Vol. 08. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008. 64 p.
329
CALADO, Carlos. Nat King Cole (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 1). 2007.
330
GOMES, Marcelo. Samba-jazz aquém e além da Bossa Nova: três arranjos para Céu e Mar de Johnny Alf.
Tese em Música. Universidade Estadual de Campinas. 2010. 187 p.
331
GOMES, Marcelo Silva. Samba-jazz aquém e além da Bossa Nova. 2010, p. 64.
119

também distantes do “jazz de brancos” do estilo cool e reforçando o recorte racial, mas
através da adoção da vertente jazzística hard bop.

Devido às escolhas de sonoridade new orleans e hard bop, assim como a expressão
de temática antirracista em algumas letras, o argumento da presente tese defende retratar
tanto a produção de Elza quanto o samba-jazz realizado por artistas negros enquanto uma
“Bossa Negra” – tomando de empréstimo o termo dado à produção inicial gravada por
Elza. Tanto Jorge Ben quanto Simonal iniciaram a atuação artística, no início dos anos
1960, no ambiente musical do Beco das Garrafas: “Foi ali que Armando Pittigliani,
produtor da gravadora Philips, descobriu o ainda adolescente Jorge Ben tocando violão”, 332
e estimulou a gravação de seu Samba Esquema Novo, disco que teve arranjos de J. T.
Meirelles e acompanhamento do próprio e seu conjunto Copa 5. Também foi no Beco que
Wilson Simonal lapidou a proposta esboçada no disco Tem ‘algo mais’.

A proposta do primeiro álbum de Wilson Simonal, contudo, foi desenvolvida em


seu segundo LP, A Nova Dimensão do Samba, lançado em 1964, e concebido a partir de
espetáculos dirigidos pelos produtores culturais Miéle e Ronaldo Bôscoli333 – o mesmo
Bôscoli que apadrinhou Elza Soares e designou a proposta musical realizada por ela como
“A Bossa Negra”. O álbum Tem ‘algo mais’ foi apresentado como uma promessa, “feita de
‘por enquanto’”, como destacado no texto na contracapa; promessa que começou a ser
cumprida em A nova dimensão do samba. Esse segundo álbum apresentou, desde o nome,
uma proposta de manifesto na cena musical brasileira, definindo a semelhança entre o
título A nova dimensão do samba e o Samba esquema novo, de Jorge Ben (ou A Bossa
Negra de Elza Soares), através da sugestão de uma performance diferenciada e inovadora.
E, tal qual o disco de Ben, levava ao público potentes samba-jazz, com arranjos explorando
timbres de instrumentos de sopro. Uma diferença importante entre esses dois artistas
oriundos do Beco das Garrafas, contudo, é que enquanto Jorge destacou-se enquanto
violonista, compositor e cantor (talvez menos como cantor do que como violonista e
compositor, conforme o texto de apresentação de seu álbum de estreia), Simonal, embora
fosse instrumentista (tocava, à época, piano, violão e trompete) e um compositor irregular,
era mais respeitado pela técnica como cantor. O baterista do grupo Bossa Três, Ronie

332
MENDES, Vinicius. Os melancólicos dias finais do Beco das Garrafas, joia da noite carioca onde Elis
estreou nos palcos. 15/07/2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/os-
melancolicos-dias-finais-do-beco-das-garrafas-joia-da-noite-carioca-onde-elis-estreou-nos-palcos.ghtml>
Acesso 03/06/2019.
333
CASTRO, Ruy. Wilson Simonal (Coleção Folha: 50 anos de Bossa Nova, v. 17). 2008, p. 23.
ALEXANDRE, Ricardo. Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 55-59.
120

Mesquita, declarou sobre Simonal: “Ele era mais um músico entre nós, e seu instrumento
era a voz.”334

O texto de apresentação de A nova dimensão do samba, assinado por Sérgio Lobo


(fig. 3), iniciava valorizando o vocal: “Wilson Simonal é mesmo o melhor cantor moderno
do Brasil no momento. Melhor em voz e em estilo. (...) Em ‘Lobo bobo’, samba dos
grandes pioneiros Carlinhos Lyra e Ronaldo Bôscoli, Simonal dá uma verdadeira aula de
como dividir uma frase, em Bossa Nova, e como ‘balançar’”. 335 Ronaldo Bôscoli, aliás, é
coautor de mais duas faixas desse disco que traz outras composições de cânones da Bossa,
como Tom Jobim e Vinicius de Moraes, além de recriar “Rapaz de bem”, de Johnny Alf. O
elogioso texto de apresentação situava a produção, em ao menos duas músicas – “Nanã” e
“Mais valia não chorar” –, no “que alguns críticos denominaram de afro-samba”,336 além de
destacar a primeira composição de Simonal registada em disco, “Jeito bom de sofrer”, uma
parceria com José Luiz.

Fig. 3. Capa e contra-capa LP Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. Odeon. 1964. Extraído de:
<https://orfaosdoloronix.wordpress.com/category/wilson-simonal/> Acesso 28/08/2019.

O segundo álbum de Simonal manteve a direção musical de Lyrio Panicalli e as


orquestrações do próprio Lyrio junto de Eumir Deodato, contudo, a orientação da
sonoridade samba-jazz, com as referências hard bop, ficou muito mais evidente. A
segunda faixa do disco, por exemplo, “Mais valia não chorar”, destaca solos de trompete e
de saxofone e uma bateria vigorosa, em estilo hard bop, e finaliza com um solo de scat. A
faixa seguinte, “Lobo bobo”, com forte presença do naipe de sopros, também destaca a
condução da bateria e um solo de guitarra semi-acústica, que remete ao timbre do contra-

334
ALEXANDRE, Ricardo. Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009. p, 58.
335
Sergio Lobo. Texto original do LP de Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. Álbum. Odeon. 1964.
336
Sergio Lobo. Texto original do LP de Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. Álbum. Odeon. 1964.
121

baixo. A instrumentação em todas as faixas traz forte destaque para a bateria e o naipe de
sopros, notadamente os solistas saxofone e trompete, e o acompanhamento de piano e
contrabaixo. A performance vocal do cantor nas faixas é potente e exibicionista de técnica,
e os vários momentos de uso do scat não remetem ao estilo de Elza Soares, rouco,
semelhante à criação de Louis Armstrong, mas à elaboração da técnica por cantores do
chamado jazz moderno, como a cantora de swing e hard bop Sarah Vaughan. Assim, as
regravações de canções da Bossa Nova, como “Samba do avião”, “Ela é carioca” e “Garota
de Ipanema”, indicam caminhos do samba-jazz pela execução vocal e instrumental.

Em A nova dimensão do samba, duas canções abordam a temática racial. A


primeira delas, “Nanã”, pode ser inserida na linguagem negra antirracista e foi escolhida
para ser a faixa de abertura do long playing. Ela foi destacada no texto de apresentação do
LP como exemplo da definição de Simonal como “o melhor cantor moderno do Brasil no
momento”: “Wilson está realmente soberbo em sua interpretação dessa originalíssima
composição (...) Sua vocalização reveste-se de uma intensidade emocional e de um
arrebatamento extraordinários.”337 O tema da canção é a devoção religiosa afro-brasileira.
Segundo o Dicionário de cultos afro-brasileiros, “Nos cultos afro-brasileiros Nanã é
considerada orixá feminino, ‘Mãe de todos os Orixás’ para alguns, e a mais velha deusa
das águas. Na Umbanda é considerada orixá da chuva e da lama (origem da Terra).”338

Esta noite quando eu vi Nanã/ Vi a minha deusa ao luar./ Toda noite eu olhei
Nanã,/ a coisa mais linda de se olhar./ Que felicidade achar enfim/ Essa deusa
vinda só pra mim, Nanã/ E agora eu só sei dizer/ Toda minha vida é Nanã/ É
Nanã/ Nanã/ Esta noite dos delírios meus/ Vi nascer um outro amanhã/ Meio dia
com um novo sol/ Sol da luz que vem de Nanã./ Adorar Nanã é ser feliz/ Tenho a
paz no amor e tudo o que eu quis/ E agora eu só sei dizer/ Toda a minha vida é
Nanã/ É Nanã/ É Nanã...339

A música de Moacir Santos, um reconhecido compositor, arranjador e saxofonista


negro (na verdade, um multi-instrumentista mais conhecido pela performance ao saxofone
e clarinete), foi originalmente gravada sem letra por Nara Leão, para a abertura do filme
Ganga Zumba, dirigido pelo cineasta Cacá Diegues e lançado ainda em 1964, retratando a
vida do primeiro líder do Quilombo dos Palmares. Conforme verbete de Jairo Severiano e
Zuza Homem de Mello: “Vinícius de Moraes, parceiro de Moacir em algumas canções,
fez-lhe uns versos meio sensuais que não agradaram o compositor. ‘O quadro não era

337
LOBO, Sergio. Encarte do disco. Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. Álbum. Odeon. 1964.
338
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p, 179.
339
Wilson Simonal. Nanã. A nova dimensão do samba. Álbum. Odeon. 1965. Faixa 01, lado A.
< https://www.youtube.com/watch?v=FjcGr9oluqQ>
122

aquele, com gente espiando um banho de Nanã’, recorda Moacir.”340 Moacir justificou,
segundo os autores, por seu conhecimento e respeito devocional à Nanã enquanto Orixá, a
rejeição à letra de Vinícius, e coube a Mário Telles a produção da letra definitiva, gravada
por Simonal, ainda conforme os autores: “em grande interpretação, respeitando os graves
desse tema singular.” Mário, um compositor branco, irmão da cantora Sylvia Telles,
produziu uma letra respeitosa e reverente à Orixá, seguindo a intenção do compositor
Moacir Santos. A performance de Simonal em “Nanã” acentua o arranjo crescente da
canção, que destaca a bateria e o naipe de sopros, com solos de saxofone, marcando, desde
a primeira faixa, a orientação de sonoridade apresentada como A nova dimensão do samba.

A segunda composição do álbum de Simonal a retratar uma dimensão racial é a


sexta faixa, que encerra o Lado A do LP, “Samba de negro”, composição de Roberto
Corrêa e Sylvio Son. Como nas demais canções do LP, a bateria aparece com performance
de destaque, junto ao naipe de sopros e a potente interpretação vocal do cantor.

Subi lá no morro só pra ver o que o negro tem/ Pra sambar gostoso e fazer
samba como ninguém/ Negro sambando esquece da dor/ Negro transporta pro
samba o amor/ E faz sambar muita gente que nunca sambou/ Negro se inspira
na negra que passa/ Não é poeta sem a sua cachaça, que ele não bebe sem antes
saudar a Xangô.341

A letra da canção apresenta um discurso ambíguo, tendo em vista que a “subida ao


morro” narrada possibilita uma referência ao estigma do alcoolismo que alguns discursos
discriminatórios atribuem às pessoas negras (Negro [...] não é poeta sem sua cachaça).
Porém, situa a ingestão do álcool em meio à reverência ao Orixá Xangô (que ele não bebe
sem antes saudar a Xangô), “um grande e poderoso orixá iorubá (nagô), deus do raio e do
trovão, filho de Yemanjá e Oranhiã, fundador mítico da cidade de Oyó, da qual Xangô foi
o 4° rei.”342 Mas a canção ainda pode sugerir uma naturalização das pessoas negras aos
morros como uma espécie de “lugar natural” ao dizer: subi lá no morro só pra ver o que o
negro tem. Contudo, sendo Wilson Simonal um intérprete negro, e a interpretação da
canção justificando essa subida ao morro pra sambar gostoso e fazer samba, resulta em
dúvida ao ouvinte se o “negro” referenciado, que dança e compõe sambas na narrativa,
alude à primeira pessoa, como uma identificação de si, ou, em terceira pessoa, uma leitura
sobre um outro que está sendo visitado. Em trabalho anterior, o autor da presente tese, em
análise dessa canção, argumentou:
340
SEVERIANO, Jairo, MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo. 1998, p. 76.
341
Wilson Simonal. Samba de negro (Roberto Corrêa/Sylvio Son). A nova dimensão do samba. Álbum.
Odeon. 1964. Faixa 6, Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=g9_06fnBF7E>
342
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p, 249.
123

Há uma interessante diferença, no entanto, possibilitada pela posição do


intérprete. Crescido em um morro carioca, a ‘subida’ de Simonal, diferentemente
daquela realizada pelos artis tas relacionados à bossa nova participante [o grupo
criticado por Ronaldo Bôscoli após a cisão da Bossa Nova] pode sugerir um
retorno. Esse retorno, no entanto, traz ao diálogo com o samba do morro,
referenciado na canção, a bagagem musical dos negros urbanos estadunidenses,
através das referências jazzísticas de Simonal e dos músicos, oriundos do Beco
das Garrafas, resultando em um samba com forte sonoridade hard bop.343

Para além da produção de Simonal, o ano de 1964 apresentou o desenvolvimento da


proposta de um “esquema novo” do samba por Jorge Ben, que, após o impacto de seu
primeiro álbum, lançou mais dois LPs nesse ano, gravados no estúdio da Companhia
Brasileira de Discos (CBS), da gravadora Philips. O primeiro deles, Sacundin Ben Samba,
continha outro extenso, mas informativo, texto de apresentação na contracapa, escrito
novamente pelo produtor, Armando Pittigliani.

“Samba Esquema Novo” é a terminologia mais usada. Jorge Ben, o nome mais
aplaudido. Seus sambas, os mais ouvidos em toda parte. E é pouco. O valor da
criação de um estilo puramente brasileiro (da “puxada” do violão à inspiração da
composição das letras e melodias, ele é todo verde-amarelo) é realmente
incalculável. (...)

Sua carreira artística tem sido das mais rápidas e consagradoras já registradas por
artista nacional. Em apenas três meses decorridos do lançamento do seu primeiro
disco, alcançava ele o sucesso absoluto em todo o país. Vários foram os prêmios
e troféus conquistados por Jorge Ben em 1963. Entre outros, assinalamos: Troféu
Euterpe, do matutino “O Correio da Manhã”, na pessoa do crítico especializado
Claribalte Passos, dedicado ao “Cantor Revelação do Ano”; ainda como a
“Revelação do Ano”, indicado do cronista de “O Globo”, Sylvio Tullio Cardoso;
em São Paulo, teve oportunidade de receber o troféu já famoso do “Show da
Balança”, promovido pelos alunos da Universidade Mckenzie; além de vários
outros ainda não recebidos quando da confecção desta contracapa.344

No decorrer do texto de contracapa, Armando Pittigliani optou por apresentar o


segundo álbum de Jorge não pelo conteúdo do disco, mas por um duplo movimento de
defesa em relação às críticas recebidas no primeiro LP. Primeiro, rebatendo o que foi
apontado como negativo, inclusive amparando no nome de respaldo do compositor Tom
Jobim, para defender a “virtude no samba de Jorge”. Segundo, através da explicitação da
consagração do álbum de estreia, citando os prêmios recebidos e supondo uma maior
possibilidade de consumo por setores sociais diversos, o que foge a uma recepção
intelectualizada. Portanto, o texto, se não apresenta o álbum, torna-se um documento
interessante sobre a recepção do LP de estreia de Jorge Ben no mercado fonográfico. 345

343
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor.” Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil dos anos 1960. 2016. p, 206.
344
Armando Pittigliani. Texto de apresentação. Jorge Ben. Sacudin Ben Samba. Álbum. Odeon. 1964.
345
“Engraçado é que o criticam em um dos seus pontos mais fortes: a letra dos seus sambas. (...) No ‘Samba
Esquema Novo’, as palavras ‘balançam’ ritmicamente em bem feitas divisões melóricas. Antonio Carlos
124

Outro ponto a destacar no texto da contracapa do Sacundin Ben Samba está na


expressão de uma necessidade de comparação com a proposta bossanovista. Primeiro o
texto afirma “que a música de Jorge Ben não é ‘bossa nova’”, mas um caminho
“desenvolvido paralelamente”, por conter “características amplamente diversas” – o que,
conforme argumentado nas últimas páginas, pode ser explicado pela sonoridade do samba-
jazz. O parágrafo seguinte, porém, demarca que “talvez ele constitua no elo entre o samba
tradicional e a ‘bossa nova’.” – “samba tradicional”, no caso, que a argumentação desta
tese apresentou como sendo o samba de gafieira, ou seja, a sonoridade do Cidade Nova. E,
por fim, o texto conclui que a proposta de Ben está “a meio passo da chamada ‘bossa nova’
64”, o que fecha um movimento de recusa, dúvida e enfim aceitação da proposta em meio
à Bossa Nova. Na argumentação desta tese, “não é” Bossa ao não compartilhar da
influência do cool, “talvez seja” pela orientação samba-jazz (retomando as gafieiras) e o
“meio passo” é a Bossa Negra. O texto ainda explicita o acompanhamento samba-jazz: “os
arranjadores e acompanhantes deste LP situam-se entre os mais credenciados da ‘safra’ de
músicos modernos. Destacaremos [J. T.] Meirelles e Luiz Carlos Vinhas.”346

A sonoridade de Sacudin Ben Samba, portanto, prossegue nos mesmos parâmetros


desenvolvidos como o Samba Esquema Novo. O texto de apresentação do novo álbum
informa, ainda, que o elemento mais criticado da produção de Jorge são as letras, o que
Armando defende como “um dos seus pontos mais fortes”, uma das “diferenças radicais”
na música moderna; porém, “ponto forte” apenas devido à “simplicidade incomum”. E a
escuta das faixas do álbum novamente permite a constatação de referências a elementos da
cultura negra, sobretudo por elementos da religiosidade de matriz afro-brasileira.

Nas faixas 3 e 4 do Lado A do LP, “Vamos embora ‘uau’” e “Capoeira” é a


referência à prática da capoeira, mistura de dança e luta que configura uma importante
expressão da cultura desenvolvida por escravizados e que resistiu a amplas perseguições.
Na primeira canção, sob o fundo de uma história romântica, há uma apologia ao
instrumento berimbau, característico das práticas de capoeira (mas se não tem berimbau/
meu amor, não me leve a mal/ Pois a minha inspiração não vem [...] o que me faz
sentimental é o danado do berimbau/ Berimbau que mal eu fiz/ pra você não me fazer
feliz). Já “Capoeira” traz os versos vamos embora, camarada/ vamos sair dessa jogada/

Jobim é um dos poucos a enxergar mais esta virtude no samba de Jorge ‘Sacudin’ Ben.” Armando Pittigliani.
Texto de apresentação. Jorge Ben. Sacudin Ben Samba. Álbum. Odeon. 1964.
346
Armando Pittigliani. Texto de apresentação. Jorge Ben. Sacudin Ben Samba. Álbum. Odeon. 1964.
125

quem tem amor tem coração/ capoeira é que não dá pé, não/ Pois quem é filho de Deus/
deve ajudar os companheiros seus/ mesmo sofrendo, mesmo chorando/ negro tem que
levar a vida cantando. Esta segunda canção expressa um elemento interessante pelo
vocabulário das composições de Jorge Ben: assim como foi destacado outrora, que o autor
não usa o termo “mulata”, há a fuga do termo “homem de cor”, optando por “negro”.

A faixa 5, “Gimbo”, pede certa redistribuição de renda (tira gimbo de quem tem/ e
dá gimbo a quem não tem) utilizando uma palavra de origem africana que designa
“moeda” (gimbo),347 e finaliza com repetições da expressão “emoriô”, que, segundo o
então Ministro da Cultura do Brasil em 2004, o célebre cantor e compositor Gilberto Gil:
“com toda a arte afro-brasileira, Emoriô não é uma tradução literal da matriz Yorubá, nem
uma citação fundamentalista, mas a lembrança do jeito africano de produzir a beleza.”348 Já
segundo a historiadora Rafaela Capelossa Nacked, embasada em obra de Nei Lopes, “a
palavra ‘Emoriô’ é, em iorubá, uma frase que se escreve como ‘E mo ri O’ e significa ‘Eu
te vejo’. No caso, o ‘O’ maiúsculo é que enfatiza referência a um Ser Superior, digno de
reverência, daí a associação a [o ‘pai dos orixás’] Oxalá.”349

A referência a um elemento de religião afro-brasileira também aparece na quarta


faixa do Lado B do LP, “Jeitão de Preto Velho”, dos versos Olha o jeitão de olhar de preto
velho/ quando vê sinhá passar/ olha com carinho, ternura/ enciumado, orgulhoso/ pois ele
é o padrinho de sinhá/ foi quando sinhazinha nasceu/ às pressas teve que se batizar/ Preto
velho foi padrinho/ e conseguiu sinhá salvar. A letra da canção apresenta dubiedade se a
referência a “preto velho” apresenta apenas um homem negro de idade avançada que foi
incluído nas relações de compadrio, aparentemente no contexto da escravidão. Contudo,
desde “Mas que nada”, e em diversas canções lançadas no decorrer da carreira de Jorge
Ben, a menção a “preto velho” é repetida, indiciando uma dimensão mais profunda do que
uma referência etária. A intelectual Lélia Gonzalez retratou a imagem dos Preto Velhos
como de “uma importância fundamental na formação dos valores e crenças do povo”
brasileiro: “Que se atente, por exemplo, para as figuras dos pretos velhos na umbanda.
Representam exatamente toda uma sabedoria marcada pela astúcia, adquirida no decorrer

347
JUSKULKI, Ana. 2018. Apud GOULART, Lauren C. Cultura africana: um desafio para a educação
infantil. Monografia (Pedagogia). Universidade Regional do Noroeste do Estad o do Rio Grande do Sul.
2018, p. 16.
348
“Ministro Gilberto Gil sobre a exposição África no CCBB”, em < http://cultura.gov.br/ministro-gilberto-
gil-sobre-a-exposicao-africa-no-ccbb-36032/> Acesso 18/04/2021.
349
NACKED, Rafaela C. Chocolate e mel: negritude, antirracismo e controvérsia nas músicas de Gilberto
Gil (1972-1985). Dissertação (História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2015, p, 71.
126

de suas longas vidas, e que se constitui como uma resposta às diferentes formas de
manifestação do racismo em nosso país.”350

A alusão a “preto velho” ainda aparece na última faixa do disco de Jorge, “Não
desanima, João”: Não desanima, não, viu, João? / Pois você é um menino/ que já não
precisa mais sofrer/ pois a lei do ventre livre/ veio lhe salvar/ Preto velho, sim/ está
cansado, precisa descansar. O tema da canção evoca a lembrança da escravidão, uma
herança comum que configura uma espécie de “memória da pele”351 para as comunidades
negras diaspóricas. A composição faz referência à libertação do sofrimento pelo menino
João com a Lei do Ventre Livre, assinada em 28 de setembro de 1871 e que proclamou a
libertação de filhos de escravizadas nascidos a partir daquela data – embora estes ainda
permanecessem sob guarda e usufruto dos “proprietários” destas escravizadas até
completarem 18 anos. Tal lei, contudo, conforme o historiador Alexandre Reis, em análise
desta canção, “abarca não só a liberdade dos filhos, mas também outras práticas como o
direito a acumulação de pecúlio para compra de alforria e a não separação de cônjuges e
filhos menores de doze anos, entre outros.”352 Na canção, o personagem João é motivado
pela possibilidade de liberdade e o acesso ao estudo, contrapondo a um preto velho que
ainda não pode descansar.

O segundo álbum lançado por Jorge Ben no ano de 1964 foi Ben é Samba Bom e,
conforme o texto de Ana Maria Bahiana para a reedição em Cd de 2009, “é essencialmente
uma continuação, em conteúdo e estilo, de Sacudin Ben Samba: sambas supersuingados e
uma dose farta de bossa nova – Jorge chega a gravar Oba-la-lá, sucesso de João
Gilberto.”353 Cabe destacar, inclusive, que a regravação escolhida foi de uma das raras
composições de João Gilberto registradas em fonograma. A autora identifica nesse álbum
indícios da mudança de orientação que a carreira de Jorge irá tomar no final da década: “A

350
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político econômica. In: Por
um feminismo afro-latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p, 54. Texto original de 1982.
351
A metáfora de “memória da pele” como uma forma de ligação identitária para os sujeitos identificados
pelo “significante ‘negro’” na realidade diaspórica foi apresentado em MORAIS, Bruno Vinícius L. “ Não sou
racista”: Racismo, racialismo, o Orgulho Negro e os seus efeitos políticos sociais. In: “Sim, sou um negro de
cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no Brasil dos anos 1960. 2016, p. 126: “Ou seja,
reconhecer-se e ser reconhecido não apenas herdeiro de um histórico traumático nacional (demarcado pela
escravidão, assim como pela ‘memória nacional’ da colonização, do Império, da República e os diversos
eventos integrantes desta identidade brasileira), mas também de uma comunidade que o ap roximava de
experiências coletivas de preconceito nacionais e estrangeiras, compartilhadas em uma ‘memória da pele’.”
352
REIS, Alexandre. Depois que o primeiro homem maravilhosamente pisou na lua. In: Anais do XV
Encontro Regional de História da ANPUH-Rio. 2012, p. 7. Disponível em:
< http://www.encontro2012.rj.anpuh.org/site/anaiscomplementares > Acesso 06/06/2019.
353
Ana M. Bahiana. Texto de apresentação. Jorge Ben. Ben é Samba bom. Philips. 1964. CD. Universal.
2009.
127

jazzística Descalço no parque e a animada Zope zope também trazem sinais visíveis do
estilo-Jorge, enquanto Dandara, hei e Guerreiro do rei antecipam o Ben afro dos anos
70.”354 A diferença de proposta e sonoridade, em linhas gerais, é que as duas últimas
canções citadas focam mais no violão e nos instrumentos de percussão, apesar de contar
com naipe de sopros, enquanto as demais canções seguem a sonoridade samba-jazz,
destacando violão, bateria, piano e sopros, com solos de saxofone. O texto original da
contracapa, provavelmente escrito pelo produtor Armando Pittigliani (não creditado) foca,
novamente, na repercussão dos lançamentos anteriores, conforme o trecho:

Sempre foi difícil para qualquer artista criar um estilo próprio e – sobretudo -
autêntico, baseado em sua própria música popular, sem buscar ‘inspiração’ em
ritmos ou linhas melódicas alienígenas. Pois está o valor de JORGE BEN. (...)
Poucos artistas no Brasil podem se orgulhar de já terem vendido cem mil LPs em
poucos meses de carreira fonográfica. Pois Jorge Ben já ultrapassou esta
fabulosa cifra em pouco mais de seis meses de vida artística e cada novo
lançamento seu resulta em novos ‘recordes’ de vendagem. (...) Este é o seu
terceiro LP e, como de hábito, conta com alguns dos melhores arranjadores do
gênero como: Meirelles, Nelsinho e Gaya.355

A referência a uma recepção bem sucedida dos trabalhos de Jorge agora incluíram
números, com a cifra de cem mil cópias vendidas “em pouco mais de seis meses de vida
artística”. Apesar do texto dizer que “cada novo lançamento seu resulta em novos
‘recordes’ de vendagem”, é possível questionar o sucesso de vendagem do segundo álbum,
afinal, conforme o texto de Ana Maria Bahiana para a reedição em Cd do Sacudin Ben
Samba, “esta segunda coleção de composições suas não rendeu sucessos estrondosos como
Samba Esquema Novo”.356 Neste terceiro LP, apenas uma canção foi identificada nesta
pesquisa por abordar alguma referência a elementos culturais associados às comunidades
negras, a faixa 4 do Lado B, “Dandara, Hei”, cuja letra diz: Dandara, hei/ Dandara,
Dandara/ Boca mais linda/ que deus no mundo botou/ mas fica feia, pois/ não quer o meu
amor/ Moça de Luanda/ Toma jeito/ Veja o que faz, o que diz/ Moça de Luanda/ toma jeito
se quiser ser feliz. A musa da canção é apresentada como moça de Luanda, situando-a na
cidade portuária e mais importante da região africana de Angola, então em luta por
independência contra Portugal. E o nome da musa, Dandara, remete a uma figura simbólica
da luta antirracista e do Feminismo Negro, a liderança do Quilombo de Palmares e esposa
de Zumbi. Segundo a Enciclopédia Negra, escrita por Flávio Gomes, Jaime Lauriano e

354
Ana M. Bahiana. Texto de apresentação. Jorge Ben. Ben é Samba bom. Philips. 1964. CD. Universal.
2009.
355
Texto de contracapa (autoria não creditada). Jorge Ben. Ben é Samba Bom. Álbum. Philips. 1964.
356
Ana M. Bahiana. Texto de apresentação. Jorge Ben. Sacudin Ben Samba. Philips. 1964. Cd. Universal,
2009.
128

Lilia Schwarcz, as pesquisas documentais sobre Palmares não trazem nenhuma referência
ao nome Dandara, cuja primeira referência localizada foi em um romance de João Felício
dos Santos, Ganga-Zumba, editado em 1962, apenas dois anos antes do disco com a
canção de Jorge. Contudo, conforme os autores:

Embora o nome de Dandara não apareça na documentação até agora localizada e


registrada sobre Palmares, o papel feminino nos quilombos e mocambos foi
fundamental – seja na manutenção material, com o abastecimento de
provimentos, como confecção de roupas, utensílios, seja na espiritual, a presença
das mulheres foi destacada, sobretudo na formação da família e da memória. Em
alguns mocambos, dizia-se que as mulheres tinham uma função religiosa
relevante e que fortaleciam o espírito combativo de seus habitantes. Por meio de
amuletos e banhos de ervas, elas ofereciam sacrifícios às divindades, proteg endo
quilombolas em suas caçadas e enfrentamentos com as tropas reescravizadoras.

Essas mulheres existiram. Para além das polêmicas, experiências de mulheres


como as de Dandara e de tantas outras - invisíveis e anônimas - escondem a
importância que tiveram, seja em Palmares, seja em outros tantos quilombos
coloniais e pós-coloniais. Tudo isso a despeito do silêncio imposto a elas pelas
fontes e pela história.357

O ano de 1964 trouxe, ainda, mais um álbum de Elza Soares, que então enfrentava,
conforme já explicitado, fortes problemas com a opinião pública. Na roda do samba foi
gravado entre outubro e novembro de 1963, mas somente lançado no ano seguinte. Foi o
primeiro álbum lançado por Elza que não continha um texto de apresentação, apenas os
créditos e as letras.

O novo álbum de Elza novamente não contava com o maestro e trombonista Astor
Silva, indiciando que a saída daquele a quem foi creditado “50% do sucesso” da Bossa
Negra era definitiva. Contudo, a direção musical do disco foi de Lyrio Panicalli, o mesmo
diretor musical dos dois álbuns então lançados por Wilson Simonal, companheiro de Elza
na Odeon. Já a orquestração, ficou por conta de Severino Araújo e a direção artística foi
mantida com Milton Miranda. A sonoridade do disco manteve a forte presença do naipe de
sopros, o maior destaque nas canções, substituindo os solos de trombone por eventuais
solos de flauta ou trompete. A percussão na maioria das canções foi reduzida a bateria ou
pandeiros e o timbre do piano continuou como destaque, seja no acompanhamento ou em
solos, assim como os usos de scat pela cantora. A sonoridade sugere uma aproximação
com o samba-jazz. Entre regravações de canções lançadas nas décadas de 1940 e 1950 e
novas composições, a temática predominante no disco foi a romântica. Contudo, foi o
primeiro álbum lançado por Elza a não reproduzir a representação sexualizada da categoria
“mulata”. Aliás, a faixa de abertura do Lado B, “Nega”, composição de Afonso Teixeira e

357
GOMES, Flávio; LAURIANO, Jaime; SCHWARCZ, Lilia. Enciclopédia negra. 2021, p. 146, 147.
129

Waldemar Teixeira, diz Nêgo/ não despreze tua nêga/ não me deixe tão sozinha/ do
contrário eu vou morrer/ de dor/ Nêgo/ se tu não tens compaixão/ vou mandar fazer/
despacho/ pra conseguir teu coração/ mas diz pretinho, nêgo/ Há muito tempo tu devias
entender/ que tua vida/ é a razão do meu viver. O termo “nêgo”, enunciação informal de
“negro”, é cantado com ternura, mas dada a difusão do termo como expressão afetuosa
entre casais das camadas populares no Brasil, não configura necessariamente um vocábulo
de posicionamento racial. A única canção que aborda certa dimensão racial inequívoca no
disco é a quarta faixa do Lado B, “Princesa Izabel”, composição de Izidro Quintanilha e
Lourenço Quintanilha que contrapõe preconceito racial à ascensão social:

Você fala de preto/ que o preto é isto/ que o preto é aquilo/ Preto tem muita
linha/ ele sempre teve estilo/ muita gente fala/ sacode carola/ Preto hoje é
doutor/ preto é senador/ e joga muita bola/ hoje todo preto é bem contente/ leva
a vida diferente/ a rezar e olhar para o céu/ quando vem chegando a t ardezinha/
ele acende uma vela/ e faz uma prece, agradece/ à Princesa Izabel .358

A letra evoca um tom de contraposição ao preconceito racial, ao responder a


alguém que fala de preto (e fica entendido que é um falar mal) defendendo que ele sempre
teve estilo e hoje ocupa cargos de ascensão social, como doutor, senador ou jogador de
futebol. Porém, a letra demonstra ingenuidade ou desconhecimento da realidade social de
exclusão à qual está (naquela época e ainda hoje) submetida a grande maioria da população
negra brasileira ao dizer hoje todo preto é bem contente/ leva a vida diferente, e associar
essa suposta melhora do quadro social à abolição da escravidão, que a canção atribui à
Princesa Izabel. Afinal, conforme pontuado por Antonio Sergio Alfredo Guimarães, desde
a geração da militância negra da década de 1930, com a Frente Negra Brasileira, ou a dos
anos 1940 e 1950, com o Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias Nascimento, a
abolição da escravidão era apresentada como incompleta, por falta de integração
econômica, necessitando, assim, de novas ações estatais, de modo que na “utopia de uma
Segunda Abolição, na qual se realizaria plenamente a democracia racial, que se dá a
mobilização política dos negros.”359 Contudo, vale destacar que a canção também foge ao
termo “homem de cor”, ao usar o termo “preto”.

Segundo Marcelo Fróes, no texto para a reedição em Cd do álbum, “A carreira de


Elza Soares dá então um pulo, visto que durante o ano de 1964 pouco foi feito em termos
profissionais. Ela muda-se do casarão da Urca, onde morava com Garrincha, para outro na

358
Elza Soares. Princesa Izabel (Lourenço Quintanilha/ Izidro Quintanilha). Na roda do samba. Álbum.
Odeon. 1964. Faixa 04, Lado. B. < https://www.youtube.com/watch?v=LTMzJn2czVA >
359
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raça e democracia. 2012, p. 158.
130

Ilha do Governador.”360 Para além do turbilhão na vida pessoal, no entanto, elementos da


convulsão na vida política do país também afetaram Elza. Segundo seu último livro
biográfico, Elza, a cantora fez amizade com o presidente Juscelino Kubitschek e gravou o
jingle para a campanha de João Goulart para a vice-presidência, na eleição de 1960 – o que
alega ter feito “pelo cachê”, não por adesão política. Contudo, a cantora fez amizade
também com João Goulart, que assumiu a presidência do Brasil após a renúncia de Jânio
Quadros, em 1961, e passou a cantar em comícios dele (mas alega nunca ter discursado),
inclusive no Comício do Automóvel Clube, realizado em março de 1964. 361 A cantora não
tem certeza, mas, acredita que talvez devido a isso, sua casa foi invadida na madrugada de
20 de junho de 1964 – invasão que ela credita à polícia política, o DOPS. Reviraram sua
casa e foram embora.362 Sinais das mudanças que tomavam o país, com a queda de João
Goulart – e da democracia brasileira –, através de um golpe de Estado.

Páginas atrás, quando foram referenciados os discursos de chefes de Estado do


Brasil que evocavam o ideal de “democracia racial”, a retórica mobilizada pelo presidente
João Goulart, destacando a “fidelidade à forma de governo democrático-representativa”
como uma das características brasileiras indicava mais uma esperança do que um
diagnóstico, e findou por mostrar-se tão enganosa quanto a leitura de “harmonia racial”
com a qual seu discurso parecia comungar. A renúncia de Jânio Quadros, que levou à
ascensão do então vice-presidente João Goulart, acirrou uma intensa crise política que já
era vivida no país desde a década anterior, situação agravada devido a uma forte crise
econômica e a mobilização de um discurso anticorrupção por setores da sociedade ávidos
por enfraquecer o poder executivo em exercício. 363 João Goulart, apelidado Jango, ex-
Ministro do Trabalho do governo eleito de Getúlio Vargas nos anos 1950, era identificado
por um comprometimento a causas populares, operárias e camponesas, de modo que,
conforme exposto pelo historiador Marcos Napolitano, o espectro ideológico das direitas
temia que seu governo criasse uma espécie de “República sindicalista” no Brasil. 364 A
resistência dos setores conservadores à posse de Jango, portanto, devia-se a um temor do
surgimento de um governo que atuasse seguindo políticas de esquerda. A posse de Jango
360
Marcelo Fróes. Texto do encarte. Elza Soares. 1964/1965 [Na roda do samba/ Um show de Elza]. Box
Elza Negra. EMI. 2012. Volume 3.
361
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 191, 192.
362
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 189-190.
363
Sobre a crise econômica, ver SINGER, Paul. O processo econômico. In: REIS FILHO, Daniel Aarão.
Modernização, ditadura e democracia. 2014, p. 184-186.
364
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 28 e nota 23, p. 336. Sobre
o apoio de Jango à sindicalização de camponeses, ver CAMISASCA, Marina Mesquita. Camponeses
mineiros em cena: mobilização, disputas e confrontos (1961 -1964). Dissertação (História). UFMG, 2009.
131

foi possível através de um “golpe branco” que, novamente segundo Marcos Napolitano,
configurou um mérito de engenharia política, estabelecendo a limitação do poder político
do presidente da República através da “solução parlamentarista”.365

Esse contexto, por si só turbulento, inseria-se em um cenário global de Guerra Fria,


um confronto entre as concepções de mundo – e modelos de Estado e sociedade –
capitalista e socialista, cada qual tendo como símbolo maior um país: respectivamente, os
EUA e a URSS. Neste contexto mundial, os setores conservadores da sociedade brasileira
temiam as políticas progressistas de Goulart e mobilizavam uma retórica e imaginário
anticomunista contra seu governo. 366 Ao mesmo tempo, uma espécie de “espectro da
esquerdização” rondava o planeta, e alguns setores da sociedade brasileira visavam a
transformação social, política e econômica, agregadas em torno do vocábulo “revolução”.
O texto de apresentação do primeiro álbum de Simonal, de 1963, como já abordado,
dialogou com esse cenário e vocabulário ao dizer que “O Brasil dos dias de hoje é outro. É
revolucionário. Há uma insurreição violenta contra os padrões estabelecidos”, em
referência às transformações comportamentais e nas expressões artísticas, particularmente
impactando nas parcelas jovens. Conforme o historiador Rodrigo Patto Sá Motta: “Na
primeira metade dos anos 1960 teve lugar uma conjunção de elementos (...): uma
polarização aguda entre esquerda e direita, gerando a sensação de que haveria alguma
ruptura grave - como um golpe ou uma guerra civil - e, ao mesmo tempo, relativa liberdade
de expressão.”367 Foi em meio a essa polarização que ocorreu o governo de Jango.

Falar em “polarização” no cenário político brasileiro da primeira metade da década


de 1960, porém, exige ressalvas. A sensação de ameaça sentida pelos setores
conservadores da sociedade hiper dimensionava a real extensão das forças de esquerda
revolucionária no Brasil. Assim, as propostas e ações progressistas de uma esquerda
moderada, como era o governo de João Goulart, podiam ser compreendidas e temidas por
conservadores como comprovação do que acreditavam ser um processo de comunização do
Brasil.368 Os avanços ocorridos na ação de alguns movimentos sociais no período,
notoriamente a luta camponesa, agravavam as expectativas e orientavam a leitura realizada
sobre o “carro chefe” do projeto político de João Goulart, uma série de reformas (agrária,

365
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 34-35.
366
Esta seria a “segunda onda do anticomunismo”, analisada em MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda
contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo, Perspectiva: FAPESP, 2002.
367
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. 2006, p, 10.
368
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O Segundo Grande Surto Anticomunista: 1961-1964. In: Em guarda contra o
“Perigo Vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). 2002, p. 231-278.
132

bancária, eleitoral, tributária, etc.) apresentadas como “reformas de base”. Tal projeto
político ganhou forças com a vitória de Jango no plebiscito que findou com o
parlamentarismo, em janeiro de 1963, retomando os maiores poderes do presidencialismo.
O cenário estimulou também o imaginário de setores da esquerda radical, que novamente
mobilizou o vocabulário revolucionário, conforme demonstrado por Marcos Napolitano:
“As esquerdas reafirmaram seu projeto político a partir do tema das reformas, que para
alguns era o começo da ‘Revolução Brasileira’.”369 O acirramento da politização atingiu as
Forças Armadas, com episódios de sublevação nos quartéis, e foi em meio a esta situação
específica que ocorreu o Comício do Automóvel Clube, em que Elza Soares cantou.

No dia 30 de março [de 1964], a presença do presidente Goulart em uma reunião


de sargentos e suboficiais da Polícia Militar no Automóvel Clube do Brasil, que
também reivindicavam direitos, como quaisquer trabalhadores, foi vista como o
ultraje final ao princípio de comando hierárquico. O discurso do presidente, na
verdade, foi conciliador, apelando para o sentimento de ordem e os princípios
cristãos dos subalternos na defesa das reformas e na luta por direitos dentro da
ordem institucional. Até aí, nada de tão revolucionário. Mas o problema era a
presença do presidente em si mesma, falando diretamente com os subalternos,
passando por cima de toda a cadeia de comando. 370

O episódio ficou marcado como um estopim. Em uma articulação entre lideranças


das Forças Armadas e da classe política à direita do espectro político, elites tradicionais, o
grande empresariado, conglomerados de mídia e a embaixada estadunidense, além da
pressão nas ruas por setores da população que compartilhavam dos temores conservadores,
foi executado um golpe de Estado entre 31 de março e 01 de abril de 1964. Deposto João
Goulart, assumiu o poder uma junta militar e, dentre alguns dias, após a cassação dos
parlamentares governistas, o Congresso Nacional elegeu o general Humberto de Alencar
Castelo Branco como presidente, legalizando, assim, a ruptura constitucional do golpe de
Estado realizado.371

E também este golpe de Estado, justificado por parte dos apoiadores como um
“contragolpe preventivo” - os que acreditavam estar às portas de um governo comunista -,
se apropriou do vocabulário revolucionário, como expresso no Ato Institucional n°1, de 9
de abril de 1964, desde a primeira frase: “É indispensável fixar o conceito do movimento
civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que
houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das

369
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 37.
370
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 58.
371
Para uma boa síntese de todo esse cenário, ver: NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar
brasileiro. 2014. Capítulos 1 e 2 (“Utopia e agonia do governo Jango” e “O carnaval das direitas: o golpe
civil-militar”), p. 13-67.
133

classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.”372 O


documento ainda registra a orientação anticomunista do golpe de Estado, ao apresentar o
objetivo de “destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País” ou
se atribuir “a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as
urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia
infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas.” E,
com tal intuito, a ação repressiva do novo regime teve como primeiros alvos parlamentares
governistas, lideranças sindicalistas e da luta camponesa, militares fiéis ao governo
deposto, intelectuais e ideólogos do governo.373 Cenário persecutório que talvez explique a
invasão à casa de Elza Soares, após sua participação em comícios.

O vocabulário revolucionário mobilizado pelo novo governo instituído, à força, no


Brasil, comunicava o autoritarismo inconstitucional através do qual o Estado passou a
perseguir seus opositores, alegando “drenar o bolsão comunista” que supostamente
ameaçava a sociedade brasileira. E, assim, de um golpe de Estado de natureza civil-militar,
surgiu uma Ditadura Militar - pois comandada por militares que chegaram para ficar
(frustrando os políticos golpistas que ansiavam por um “golpe cirúrgico”, apenas para
depor o adversário Goulart e os quadros de esquerda no congresso, visando a eleição de
1965), posto que “não confiavam nos políticos, mesmo à direita”. Uma ditadura militar,
ainda que apoiada e sustentada por consideráveis parcelas da sociedade civil.374

E nesse “vocabulário político da ditadura militar”, por assim dizer, o ideal de


harmonia racial manteve a força que fora identificada no decorrer deste capítulo nos
discursos de chefes de Estado anteriores. Ou mesmo ganhou força, agora compreendida em
meio à concepção de ordem assegurada pelo regime ditatorial. A influência intelectual do
político conservador Gilberto Freyre pode ser destacada. Como já exposto neste capítulo, o
sociólogo, à época, defendia a ação colonialista em África do Estado ditatorial de direita
que havia em Portugal. E, conforme Antonio Sergio A. Guimarães: “Os acontecimentos
políticos posteriores, principalmente a vitória das forças conservadoras em 1964, farão

372
Ato Institucional n°1. < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.ht m> Acesso 19/04/2021.
373
NAPOLITANO, Marcos. O mito da “ditabranda”. In: 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p.
69-95.
374
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 1964, p. 18. A presente tese segue a
reflexão sobre a natureza do regime de Marcos Napolitano em tal obra: “A coalização antirreformista saiu
vencedora, enquanto a coalização reformista de esquerda foi derrotada. Entretanto, não endosso a visão de
que o regime político subsequente tenha sido uma ‘ditadura civil-militar’ ainda que tenha tido entre os seus
sócios e beneficiários amplos setores sociais que vinham de fora da caserna, pois os militares sempre se
mantiveram no centro decisório do poder.”, p. 11.
134

prevalecer a ideia de Freyre de que a ‘democracia racial’ já estava plenamente realizada no


plano da cultura e da mestiçagem, enfim, da formação nacional.”375

A conquista do Estado brasileiro pelas forças conservadoras, através dos militares,


e o rompimento com o modelo de democracia política existente no Brasil, porém, coincidiu
com a difusão de uma tese que foi adquirindo cada vez mais influência nas linguagens
antirracistas que, a partir de então, mobilizaram o vocábulo “democracia racial”. No caso,
o termo “tese” refere-se realmente ao jargão acadêmico, pois, em 1964, o sociólogo
Florestan Fernandes defendeu a sua tese de professor titular da Cadeira de Sociologia I na
Universidade Federal de São Paulo, A integração do negro na sociedade de classes.
Florestan dialoga com a concepção de “democracia” de Gilberto Freyre e seu conceito de
“mito”, mas invertendo-o, de modo que identificava um “mito da democracia racial”. O
sociólogo da USP, um homem branco comprometido com a luta antirracista, mantinha
comunicação com os movimentos negros, e assim: “Ainda em 1964, Florestan faz uma
conferência no Curso de Introdução ao Teatro Negro sobre o mito da democracia racial.”376
De tal forma, na reflexão de Antonio Sergio A. Guimarães: “O rompimento do pacto
democrático que vigeu entre 1945 e 1964 e que incluiu os negros, seja como movimento
organizado, seja como elemento fundador da nação, parece ter decretado também a morte
da ‘democracia racial’ daqueles anos.”377

Ao menos “a morte da ‘democracia racial’” entre a militância negra impactada pela


difusão da tese de Florestan Fernandes; pois, no discurso oficial do Estado brasileiro, o
ideal seguiu mais forte. Na segunda metade de 1965, pouco mais de um ano após o golpe,
o governo ditatorial decretou o Ato Institucional n°2 (foram quatro decretados até 1966,
conformando, no governo Castelo Branco, as principais características autoritárias da
ditadura estabelecida). Esse Ato, em seu artigo 12, através de uma breve modificação do
quinto artigo do texto constitucional vigente, apresentou uma referência sobre a questão
racial: “Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de
preconceitos de raça ou de classe.”378 A ditadura militar manteve a Constituição de julho
de 1946, promulgada após o fim da ditadura do Estado Novo de Vargas, modificando-a
através de atos e decretos. O artigo quinto da Constituição originalmente dizia:

375
GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, raça e democracia. 2012, p. 162.
376
GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, raça e democracia. 2012, p. 162, nota de rodapé 13.
377
GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, raça e democracia. 2012, p. 163.
378
Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm#art 12> Acesso 04/06/2019. Grifos do autor.
135

É livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo


quanto a espetáculos e diversões públicas, res pondendo cada um, nos casos e na
forma que a lei preceituar pelos abusos que cometer. Não é permitido o
anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e
periódicos não dependerá de licença do poder público. Não será, porém, tolerada
propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política
e social, ou de preconceitos de raça ou de classe.379

A intolerância aos “preconceitos de raça” na mesma alínea do texto constitucional


na qual consta a rejeição à “propaganda de guerra, de subversão da ordem” adquire
particular intensidade em um governo autoritário e com a “missão” assumida de “drenar o
bolsão comunista” no país. De tal forma, é sugestiva a alteração do trecho “processos
violentos para subverter a ordem política e social” para a sintetização em “subversão da
ordem”, que amplia as possibilidades de leitura sobre o entendimento de “subversão” que
não será tolerada. O trecho destacado ainda estimula a pensar qual a concepção de
“preconceitos de raça” combatida, tendo em vista que, como já apresentado neste capítulo,
o termo comumente utilizado para expressar comportamentos hostis às pessoas negras no
Brasil à época era “preconceito de cor”.

Um discurso realizado no Palácio do Congresso, em maio de 1966, realizado pelo


nome escolhido para as eleições internas à sucessão presidencial de Castelo Branco, o
general Artur da Costa e Silva, orienta quanto à visão da situação racial por parte das
lideranças militares: “Se o nazi-fascismo foi totalitário e absolutista, o comunismo,
materialista e ateu, não o é menos, nem constitui menor ameaça às nossas instituições
políticas e sociais, ao nosso modo brasileiro de viver e de conviver sem ódios, sem
preconceitos de qualquer espécie.”380 E, sendo esse o “nosso modo brasileiro”, portanto,
para Costa e Silva: “Nossa união nacional é indestrutível; nossa união humana não está
contaminada por germes de preconceitos ou de discriminações de cores, raças ou
religiões.”381 A imunidade brasileira aos “germes de preconceito ou de discriminação”, ou
seja, a harmonia racial, componente de “nossa união nacional”, na fala daquele que se

379
Constituição de 1946. Disponível em <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1940-
1949/constituicao-1946-18-julho-1946-365199-publicacaooriginal-1-pl.html> Acesso 04/06/2019. Grifos do
autor.
380
Desenvolvimento para integração social e econômica do povo discurso proferido no palácio do congresso,
em Brasília, a 26 de maio de 1966, durante a convenção da aliança renovadora nacional (arena) que
homologou seu nome como candidato ã presidência da república, para suceder ao marechal Humberto de
Alencar Castello Branco. In: Discursos Costa e Silva, p. 65. Disponível em:
<http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes -oficiais/catalogo/costa-e-silva/costa-e-silva-
pronunciamentos-do-presidente-discursos-mensagens-e-entrevistas-1966/view> Acesso 04/06/2019.
381
Discursos Costa e Silva, p. 74. Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes -
oficiais/catalogo/costa-e-silva/costa-e-silva-pronunciamentos-do-presidente-discursos-mensagens-e-
entrevistas-1966/view> Acesso 04/06/2019.
136

tornou o segundo presidente-general brasileiro (assumiu o mandato em 15 de março 1967),


era ameaçada pelo “comunismo, materialista e ateu”. O discurso, portanto, indicia a
aproximação entre “união nacional”, conservação do ideal de harmonia racial e o combate
ao comunismo que orienta a ditadura. E assim é aproximada a “propaganda de preconceito
de raça” à subversão da ordem, demarcada na Constituição.

A identificação dos modos de leitura da questão racial por parte das forças de
Estado brasileiras em contextos autoritários foi tema de pesquisa da historiadora Karin
Kossling na dissertação As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do
DEOSP/SP (1964-1983). Com a pesquisa, a autora constatou que a vigilância aos
movimentos negros por parte do DEOSP (Departamento de Operações Especiais) e do
DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) em São Paulo remontam aos anos 1930,
“sustentada por uma visão policial que classificava essas associações como ‘introdutoras’
da questão racial no Brasil e, por consequência, geradora de conflitos que poderiam
desestabilizar a ‘democracia racial brasileira’.”382 A perspectiva apresentada no discurso de
Costa e Silva, conforme apontado acima, compartilha de tal leitura racial e fornece indícios
da orientação expressa no Ato Institucional n°2.

O Estado autoritário instalado em 1964, portanto, mantinha a leitura oficial


hegemônica do Brasil como um país isento de preconceito e discriminação racial e herdava
da ditadura anterior, liderada por Getúlio Vargas, a possibilidade de identificar em
movimentos negros – ao realizarem a denúncia do preconceito e discriminação vivida pela
população negra – a introdução da “questão racial”, visando desestabilizar a harmonia
racial. E, por isso, ameaças de “subversão da ordem”. O argumento, basicamente, é que
uma organização ou afirmação restrita às pessoas negras, no “país da mestiçagem”, cindia
a união nacional ao instituir um segregacionismo de raça. Ainda em 1962, Gilberto Freyre
corroborou essa forma de leitura, em uma ferrenha oposição à palavra “negritude” e
denúncia aos políticos progressistas brasileiros que apoiavam os movimentos negros e/ou
os movimentos de libertação colonial em África:

Palavra que ferindo o que Angola tem de mais democrático - a sua democracia
social através daquela mestiçagem que vem sendo praticada por numerosos luso-
angolanos, ao modo brasileiro – fere o Brasil; e torna ridícula - supremamente
ridícula - a solidariedade que certos diplomatas, certos políticos e certos
jornalistas do Brasil de hoje pretendem, alguns do alto de responsabilidade
oficiais, que parta de uma população em grande parte mestiça, como a brasileira,

382
KOSSLING, Karin Sant Anna. As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do DEOPS/SP
(1964-1983). Dissertação (Mestrado em História). Universidade de São Paulo. 2007, p. 09.
137

a favor de afroracistas. Que afinidade com esses afrorracistas, cruamente hostis


ao mais precioso valor democrático que vem sendo desenvolvido pela ge nte
brasileira – a democracia racial – pode haver da parte do Brasil? (...) Nós,
brasileiros, não podemos ser, como brasileiros, senão um povo por excelência
antissegregacionista: quer o segregacionismo siga a mística da ‘branquitude’,
quer siga o mito da ‘negritude’.383

A leitura expressa por Gilberto Freyre, portanto, considerava movimentos negros


ou antirracistas como segregacionistas, e os apresentava pelo termo “afrorracistas”,
compreensão que parece ser compartilhada pelas lideranças militares da ditadura, ao
atribuirem a introdução do “preconceito de raça” como efeito da ação subversiva, no caso,
de um projeto comunista. E a fala do sociólogo sobre diplomatas e políticos brasileiros
apoiadores do que considera “segregacionismo” pode indiciar conexões com a atividade da
alegada – pela ditadura militar – infiltração comunista na cúpula do governo e nas suas
dependências administrativas, expressa no texto do Ato Institucional n°1.

Contudo - para trazer de volta a este texto a atenção ao objeto principal da pesquisa
-, enquanto o Estado brasileiro consolidava em uma ditadura militar, completando o
segundo ano desde o golpe civil-militar, 1965 representou mais um ano fértil para a
produção da Bossa Negra. Em janeiro Elza Soares iniciou as gravações para seu próximo
álbum, que foram finalizadas em março e o LP, intitulado Um show de Elza, lançado em
maio de 1965. O disco novamente trazia a direção musical de Lyrio Panicalli, direção
artística de Milton Miranda e as orquestrações ficaram a cargo do maestro Nelsinho. A
sonoridade do álbum, no entanto, na maioria das canções evocava o samba-canção,
predominando no arranjo orquestras de cordas e interpretações vocais pungentes, que não
recordavam o estilo vocal consagrado pela cantora. Cinco das doze canções do álbum,
porém, referenciavam a identidade musical associada à cantora, juntando às cordas o naipe
de sopros e diálogos entre os scats de Elza e o timbre do trombone, como na regravação de
“Samba da minha terra” – um clássico do repertório de Dorival Caymmi, lançado em 1940
e com várias regravações, inclusive a de João Gilberto, em 1961. O disco também
registrava uma composição de Garrincha, o samba “Pé redondo”, cuja performance
destacou muitos scats e duetos com trombone. Nenhuma canção referenciou o tema racial.
O texto da contracapa do disco, escrito por Jotapê, chama a atenção por ser o primeiro
texto de seus LPs que faz referência às comparações do canto de Elza com o de Louis
Armstrong: “E muita gente andou descobrindo que a cantora possuía um ‘scat singing’

383
FREYRE, Gilberto. O Brasil em face das Áfricas negras e mestiças. (1962). Apud. GUIMARÃES,
Antonio S. A. Classes, raça e democracia. 2012, p. 162. As grafias “afroracistas” e “afrorracistas” seguem o
texto.
138

idêntico ao de Louis Armstrong. Em que pese toda a genialidade de L.A., podemos


assegurar que Elza nunca tinha ouvido falar do gênio de New Orleans.”384

No entanto, em outro lançamento de Elza em 1965, um compacto simples, a canção


“O neguinho e a senhorita”, composição de Noel Rosa de Oliveira 385 e Aberlado da Silva,
abordou a dimensão racial e a linguagem antirracista ao abordar o “preconceito de cor”:

O Neguinho gostou da filha da Madame/ Que nós tratamos de sinhá/ Senhorita


também gostou do Neguinho/ Mas o Neguinho não tem dinheiro pra gastar/ A
Madame tem preconceito de cor/ Não pôde evitar esse amor/ Senhorita foi
morar lá na Colina/ Com o Neguinho que é compositor/ Senhorita ficou com
nome na história/ E agora é a rainha da escola/ Gostou do samba e hoje vive
muito bem/ Ela devia nascer pobre também.386

A canção “O neguinho e a senhorita”, originalmente gravada pelo intérprete Noite


Ilustrada no mesmo ano de 1965, trata a temática do amor entre um sambista negro e
pobre, oriundo de um morro, e uma mulher aparentemente branca e de melhor situação
econômica (pois filha de madame). Diferentemente dos sambas “Preconceito” e “Deusa do
asfalto”, que tratavam o preconceito a partir das relações amorosas, e abordados no
decorrer deste capítulo, o amor entre o casal é correspondido e - a principal diferença - é
bem sucedido. Todavia, o romance ainda é dificultado pela mãe da senhorita, pois, a
Madame tem preconceito de cor, ainda que não tenha conseguido evitar esse amor. De tal
forma, apesar da narrativa simples da canção, sua letra contrapunha a representação oficial
defendida pelo Estado, da sociedade brasileira “imune” aos preconceitos raciais. A versão
de Elza retomou sua sonoridade característica, enfatizando o naipe de sopros – trompetes,
trombones e saxofones – cujos instrumentos alternam solos, enquanto o ritmo é marcado
por vigorosa bateria e instrumentos de percussão, aproximando dos sambas de gafieira, e
diferenciando da intepretação de Noite, que, embora também utilize instrumentos de sopro,
aproxima à sonoridade consolidada pelos sambas do Estácio.

Assim como Elza Soares, Jorge Ben também lançou em 1965 um dos álbuns menos
louvados em sua discografia, Big Ben. O LP original não apresentou texto de apresentação
na contracapa, mas, no texto para a reedição do álbum em Cd, em 2009, Ana Maria
Bahiana pontua sobre o trabalho: “Big Ben, seu álbum dessa fase, não tem o mesmo brilho

384
Jotapê. Texto do encarte. Elza Soares. Na roda do samba. Álbum. Odeon. 1964.
385
Não confundir com o consagrado compositor e intérprete Noel de Medeiros Rosa, mais conhe cido como
Noel Rosa. Este Noel Rosa de Oliveira nasceu no morro do Salgueiro em 1920 e faleceu em 1988. Teve sua
primeira canção gravada em 1948, “Falam de mim”. Para uma breve biografia,
<http://dicionariompb.com.br/noel-rosa-de-oliveira/dados-artisticos>
386
Elza Soares. O neguinho e a senhorita/O que passou, passou . Compacto. Odeon. 1965.
< https://www.youtube.com/watch?v=QDWaZjyI8Y4>
139

de sua performance ao vivo: no repertório misturam-se canções originais e composições de


outras pessoas, numa tentativa de criar um clima de boate, de Beco das Garrafas.”387 Na
dissertação de Alexandre Reis dos Santos, o comentário sobre o álbum é: “O estilo sonoro
ainda é o mesmo dos álbuns anteriores, uma maneira própria de fazer samba com
influência do jazz do beco das garrafas.”388

Em duas das canções de Big Ben havia a valorização da cultura negra. As canções
fazem novas referências à religiosidade afro-brasileira, o que, conforme tem sido destacado
no decorrer deste tópico, pode ser considerada uma temática frequente na produção de
Jorge Ben. A terceira faixa do Lado B do disco, “Maria Conga”, composição de Nélio da
Silva, repete a referência apresentada na canção “A tamba”, composição de Jorge lançada
no Samba Esquema Novo, que evocava a Conga está chamando. Maria Conga é o nome de
uma falange, uma entidade religiosa da religião afro-brasileira Umbanda, e a narrativa da
canção gira em torno do Aluá que, conforme Alexandre Reis dos Santos, é “uma bebida
fermentada feita à base de cereais, principalmente milho e frutas, servida em algumas
festas religiosas de matriz africana e, segundo Nei Lopes, tem origem em costumes dos
povos bantos.”389

Já chegou Maria Conga vendendo aluá/ Aluá de Maria Conga eu vou comprar/
Pois aluá de Maria Conga é bom e pode acabar/ Maria Conga, tem dó de mim/
Maria Conga, não faz assim/ Maria Conga, traz um pouquinho pra mim/ Aluá de
Maria Conga.390

Encerrando este álbum, a sexta faixa do Lado B é uma composição de Jorge Ben,
“Agora ninguém chora mais”, que cita a divindade Iansã quando diz Menino que é bom
não cai/ pois é protegido de Iansã. O arranjo da canção, em forte acento samba-jazz,
destaca as performances de uma vigorosa bateria e do violão – executados por Dom Um
Romão e Jorge –, entrecortados por um piano solista.

Chorava todo mundo/ Mas agora ninguém chora mais/ Chora mais/ Chorava
mãe, chorava pai/ Na hora da partida/ Mas era uma beleza/ Em vez de tristeza/
Chorava mãe, chorava pai/ Chorava todo mundo mas agora ninguém chora
mais/ pois o menino voltou/ Voltou homem, voltou doutor/ Menino que é bom

387
Ana M. Bahiana. Texto de apresentação. Jorge Ben. Big Ben. Álbum. Rosenblit. 1965. Cd. Universal.
2009.
388
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”: negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p.
56.
389
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”: Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2012, p.
119.
390
Jorge Ben. Maria Conga. Big Ben. Álbum. Phillips. 1965. Faixa 03, lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=CTGcC7OXrV8>
140

não cai/ Pois já nasceu com a estrela/ E sempre a mente sã/ Menino que é bom
não cai/ Pois é protegido de Iansã/ Chorava todo mundo/ Mas agora ninguém
chora mais.391

É importante para o argumento da presente tese dimensionar a potência da difusão


das temáticas religiosas afro-brasileiras através do veículo canção. Desde o primeiro tópico
deste capítulo foram citadas diversas canções que reverenciaram orixás e evocaram outros
aspectos e elementos das expressões religiosas afro-brasileiras. O aspecto de resistência na
valorização de práticas culturais que enfrentam um sistemático processo de exclusão, pois
identificadas às comunidades negras e à herança africana dos povos escravizados, já foi
mencionado, mas cabe ainda situar sobre a invisibilização a que estas práticas estavam
submetidas no contexto histórico retratado neste capítulo. A principal obra mobilizada no
capítulo para apresentar as figuras e elementos religiosos referenciados nas canções, o
Dicionário de Cultos Afro-brasileiros, organizado por Olga Gudolle Cacciatore, foi
publicado em 1977 e apresentado como um primeiro trabalho de grande porte visando
compreender e compartilhar o ensino sobre práticas religiosas de matriz africana no Brasil,
esforço empreendido por profissionais da Antropologia do Museu de Artes e Tradições
Populares. Assim, no texto de introdução do livro, José Carlos Rodrigues pontua que “o
leitor cedo descobrirá estar travando contato com um marco importante na história dos
estudos religiosos brasileiros.”392 O texto assim inicia:

Os últimos anos têm sido marcados, no Brasil, por acontecimentos insólitos e,


entre eles, parece podermos incluir o desenvolvimento dos cultos de origem
africana. De fato, não deixa de ser surpreendente que em um país cujos
recenseamentos oficiais não incluem, entre os quesitos sobre filiações religiosas,
os cultos afro-brasileiros, englobando-os genericamente na categoria “espíritas”,
se possam encontrar, nos nossos cotidianos, nas esquinas, nas galerias, nas praias
e florestas urbanas, nos bairros próximos e distantes, o testemunho vivo, através
de ‘despachos’, de ritos, de comércio de artigos religiosos, do crescimento
inegável, constatável a olho nu, dessas crenças e práticas religiosas.393

A invisibilidade das religiões afro-brasileiras nos recenseamentos oficiais, portanto,


é contraposta à sua recorrência como temática das canções analisadas, fortalecendo sua
localização neste capítulo como parte da Linguagem Política Negra Antirracista. Assim
reforça “o papel do Movimento Negro brasileiro [incluindo os “negros em movimento”, as
pessoas negras de fora do movimento organizado] como educador, produtor de saberes

391
Jorge Ben. Agora ninguém chora mais. Big Ben. Álbum. Phillips. 1965. Faixa 06, lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=NkUXLki5ACk>
392
RODRIGUES, José Carlos. Introdução. In: CACCCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-
brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 19.
393
RODRIGUES, José Carlos. Introdução. In: CACCCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-
brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 7.
141

emancipatórios e um sistematizador de conhecimentos sobre a questão racial no Brasil”,394


conforme proposto pela pedagoga Nilma Lino Gomes no livro O Movimento Negro
Educador: saberes constituídos na luta por emancipação. As religiões afro-brasileiras
conquistaram maior destaque temático no mercado fonográfico brasileiro na década de
1960, sendo uma referência comum quanto ao tema os “afro-sambas”, de letras compostas
pelo poeta branco Vinícius de Morais e músicas do violonista negro Baden Powell.
Contudo, foi apenas em 1965 que a dupla lançou o primeiro compacto com as canções
“Berimbau” e “Samba da Benção”. O consagrado álbum Os Afro-sambas, disco que levou
ao público uma série de composições da dupla em homenagem aos orixás Exu, Iemanjá,
Xangô e Ossanha, e outros elementos de culto afro-brasileiro, foi lançado no ano seguinte,
1966,395 após diversas canções sobre o tema abordadas no decorrer deste capítulo. É
possível, portanto, assinalar a temática da religiosidade afro-brasileira como um dos temas
frequentes das canções da Bossa Negra, por Elza Soares, Simonal e, sobretudo, Jorge Ben,
embora sejam pouco ressaltados na bibliografia, na comparação aos Afro-sambas.

Todavia, se Elza Soares e Jorge Ben apresentaram no ano de 1965 discos de menor
expressão em sua discografia, o contrário pode ser dito de Simonal que, em tal ano, lançou
dois álbuns que demonstram o período mais fértil e consagrado de sua produção até então.
Segundo o texto de Ricardo Alexandre para o relançamento desses dois discos em 2004:

Se, em seus dois primeiros LPs, o garoto de Areia Branca simulava o bom gosto
de seus novos amigos jazzistas, pouco mais de dois anos depois ele já dominava
os pequenos truques de interpretação da música moderna, deixando aflorar sua
marca pessoal – a do fã de soul music e das big bands americanas, interpretando
com a malícia dos subúrbios cariocas, falando as gírias das ruas.

Os dois álbuns que lançou em 1965 são o registro do auge desse processo,
quando Simonal aprendeu a desvendar cada milímetro de sua extensão vocal e
cantou sobre arranjos cada vez mais ousados, feitos sob medida para ele e para
seu já famoso ‘swing’. O LP Wilson Simonal (...) segue reinventando “Marina”,
de Dorival Caymmi, transformando Zé Keti em um hardbop e mergulhando
Durval Ferreira (outro bossanovista do subúrbio) em Henry Mancini. São deste
álbum as únicas colaborações entre Simonal e o ‘rei do samba jazz’, o
saxofonista J. T. Meirelles.396

O texto de Ricardo Alexandre destaca alguns pontos interessantes para a presente


tese, particularmente o interesse de Simonal pela soul music estadunidense, embora ainda a
partir da filiação jazzística da produção do cantor. Essa atmosfera soul nas canções,
394
GOMES, Nilma L. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. 2017,
p. 14. O termo “negros em movimento” e sua definição citada também partem das reflexões da autora nesta
obra.
395
Vinicius de Moraes & Baden Powell. Os Afro-sambas. Álbum. Forma. 1966.
396
Ricardo Alexandre. Texto de apresentação. Wilson Simonal. 1965 (Wilson Simonal/S’imbora. Odeon).
Box Wilson Simonal na Odeon (1961-1971). EMI. 2004. CD 2.
142

conforme apresentado anteriormente, indicia da transição do hard bop para o soul jazz
entre as influências jazzísticas. Na escuta do primeiro dos discos lançados em 1965, Wilson
Simonal, essa característica nos arranjos pode ser identificada na ênfase blues das
sonoridades de “Só tinha de ser com você”, “Marina”, e “Juca Bobão”, que recriaram as
canções, tamanha a diferença em relação às gravações anteriores - de Tom Jobim, lançada
no ano anterior, para a primeira canção, e Dick Farney e Dorival Caymmi, nas décadas de
1940 e 1950, para a segunda. O disco tinha texto de apresentação de Ronaldo Bôscoli, que
sintetizava a então trajetória artística de Simonal e declarava: “A Bossa já teve a vez do
violãozinho tímido, a vez do ‘genial’ João Gilberto. Agora chegou a vez de Simonal. A vez
da voz.”397 Já o texto de Ricardo Alexandre para a reedição do álbum, destaca a presença
do saxofonista J. T. Meirelles, o mesmo que trabalhava nos álbuns de Jorge Ben; e cabe
destacar a referência à transformação de “Zé Keti em um hardbop”, alusão à única
representante da linguagem política negra antirracista.

Quatro anos após a gravação de “Cantiga do morro” por Elza Soares, a temática dos
morros reapareceu com Simonal. Foi a segunda faixa do Lado B do LP, que reuniu as
canções “Opinião/O morro não tem vez/ Batucada surgiu”. “Opinião” foi originalmente
lançada em 1964 pelo compositor, o sambista Zé Keti, e no mesmo ano foi regravada no
segundo LP de Nara Leão, então conhecida como “musa da Bossa Nova”. Compondo o
repertório do espetáculo Show Opinião em 1964, estrelado por Nara, Zé Keti e João do
Vale - peça considerada a primeira grande obra artística de resistência ao golpe de Estado
efetuado em abril do mesmo ano -, a canção ficou consolidada na memória social sobre o
período como um clássico da resistência à ditadura militar. Segundo obra do jornalista
Franklin Martins, no segundo volume da sua trilogia Quem foi que inventou o Brasil? A
música popular conta a história da República: “Muito mais que uma canção, Opinião
passou à história como uma marca de resistência ao regime militar.”398 Recepção que pode
ser melhor esclarecida com uma citação de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello:

Além do título de uma peça que, como foi dito, reuniu no palco Nara Leão, Zé
Keti e João do Vale, o samba “Opinião” inspirou os nomes de um jornal, de um
teatro, do grupo que encenou a peça e do segundo elepê de Nara, lançado no
final de 64. Simbolizando uma resistência ao processo de remoção de favelas,
que então executava o governo do Estado da Guanabara, “Opinião” é uma
canção de protesto explícito (“Podem me prender/ podem me bater/ podem até
deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro eu não saio
não...”), que, cantada numa época de forte repressão, funcionou como desafio à

397
Ronaldo Bôscoli. Texto de contracapa. Wilson Simonal. Wilson Simonal. Álbum. Odeon. 1965.
398
MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República.
Volume II - de 1964 a 1985. 2015, p. 52.
143

ditadura vigente. Daí a razão do sucesso da composição e do musical, que


instituiu um esquema de contestação ao regime, logo adotado por diversos
grupos.399

Na releitura de Simonal, contudo, o enredo da canção teve resgatado o seu sentido


original de denúncia das remoções forçadas:

Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer. Que eu
não mudo de opinião. Daqui do morro eu não saio, não/ O morro não tem vez e
o que ele fez já foi demais. Olhem bem vocês, quando derem vez ao morro toda
cidade vai cantar/ Batucada surgiu, nem um branco ficou. Que ser branco é ter
cor... E pouco amor. Canta amor que é mais branco o sorriso do negro, que
nasceu só sem cor, cheio de amor. E vai vivendo vendo a vida terminar.
Chorando tanto por quem nunca pôde amar/ O morro não tem vez e o que ele fez
já foi demais. Olhem bem vocês, quando derem vez ao morro toda cidade vai
cantar/ A batucada surgiu, nem um branco ficou.400

O compositor, Zé Keti,401 sambista associado à sonoridade do Paradigma do


Estácio, ligado à Escola de Samba da Portela - do bairro da Madureira, Zona Norte do Rio
de Janeiro -, denunciou na canção o processo de remoção forçada das populações das
favelas rumo aos blocos residenciais criados por iniciativa dos governos do estado e
federal, através do Banco Nacional de Habitações (BNH). Estas remoções foram iniciadas
em 1962, no governo estadual do conservador Carlos Lacerda (um dos políticos
articuladores do golpe de 1964), e continuaram a ocorrer até meados da década de 1970.
Com a efetivação do golpe, instalando uma ditadura militar, a política de remoções das
favelas foi intensificada, com particular violência a partir da atuação das forças policiais
para a expulsão de moradores, de modo que, conforme apuração do relatório da Comissão
da Verdade do Rio de Janeiro, cerca de 100 mil pessoas foram removidas nas favelas
cariocas entre os anos de 1964 e 1973. 402

Simonal, crescido na favela Praia do Pinto - que passou por um violento processo
de remoção, anos após a gravação de Simonal -, reforçou a mensagem original da letra
através da seleção de versos de outras canções, como o morro não tem vez (Tom Jobim) e
batucada surgiu nem um branco ficou (Marcos e Paulo S. Valle). Demarcou, assim, que
nos versos podem me bater, podem me prender, que eu não mudo de opinião. Daqui do

399
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza H. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, vol. 2: 1958-
1985. São Paulo: Ed. 34, 1998., p. 86-88.
400
Wilson Simonal. Medley: Opinião/O morro não tem vez/Batucada surgiu. Wilson Simonal. Álbum.
Odeon. 1965. Faixa 02, Lado B. <https://www.youtube.com/watch?v=KvfycjLpZTA > As barras de divisão
foram aqui utilizadas para demarcar as canções presentes no medley e não os versos, como nas outras
citações musicais.
401
Para uma biografia de Zé Keti, ver <http://dicionariompb.com.br/ze-keti/b iografia >
402
PESTANA, Marco e OAKIM, Juliana. A ditadura nas favelas cariocas. In: Rio de Janeiro (estado).
Comissão da Verdade do Rio. Relatório. Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2015, p. 118-126.
144

morro eu não saio, não!, o “morro” retratado não é metáfora à resistência ao exílio político
ou convocação de enfrentamento à ditadura. Afinal, a canção “transfigurada em hino da
resistência à ditadura, inadvertidamente, teve a válida e importantíssima causa de oposição
ao golpe silenciando e deixando subterrânea à memória nacional a mensagem original.”403
A versão de Simonal apresentou um arranjo e performance que a transformaram em um
samba-jazz de forte influência hard-bop, conforme destacado por Ricardo Alexandre. A
mudança permitiu à canção sugerir, ainda, um diálogo, a partir da sonoridade, entre a
experiência social das comunidades faveladas brasileiras, mote do tema poético da canção,
com a experiência de marginalidade nos guetos estadunidenses, representada pelas
comunidades negras do hard bop.404

O segundo álbum gravado por Wilson Simonal em 1965 foi lançado em novembro
do mesmo ano. S’imbora manteve a identificação samba-jazz, na interlocução com o hard
bop e obteve bom resultado comercial, posto que, conforme dados do IBOPE da cidade de
São Paulo, o LP esteve como quinto no índice de vendas.405 Esse álbum, o quarto da
carreira de Simonal, apresentou, como nos outros dois, arranjos de Lyrio Panicalli e Eumir
Deodato, mas incluiu o maestro negro Erlon Chaves. Tal qual expresso no disco anterior, o
instrumental incluiu piano, um eventual e discreto violão ou guitarra semiacústica tocado
como instrumento rítmico, bateria, contrabaixo e um numeroso naipe de sopros, com solos
de saxofone, trompete e, em menor proporção, flauta. Portanto, uma instrumentação de
orquestra de jazz, as Big Bands, bem mais “encorpada” do que a utilizada nos discos de
Jorge Ben – que apresentavam grupos instrumentais menores. A instrumentação escolhida,
portanto, demonstra diferenças na execução do samba-jazz entre os artistas.

Para ouvintes mais familiarizados às sonoridades jazzísticas, os álbuns de Simonal


em 1965 remetiam à proposta musical da orquestra do bandleader negro Count Basie,
sobretudo a formação surgida nos anos 1950: “O novo testamento”. Basie é um consagrado
nome do jazz, destacado no estilo swing na década de 1930, contudo, com uma variante
própria, apelidada “estilo Kansas City” e caracterizada pelo repertório baseado no blues e
por uma potente sessão rítmica (piano, guitarra, baixo e bateria), reforçada “pela profusão
403
MORAIS, Bruno V. L. “Sim, sou um negro de cor”: Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no
Brasil dos anos 1960. Dissertação (História). Universidade Federal de Minas Gerais. 2016, p. 212.
404
Um desenvolvimento mais detalhado desse argumento foi realizado em MORAIS, Bruno V. L. “Sim, sou
um negro de cor”: Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no Brasil dos anos 1960. 2016, p. 209-
212.
405
Instituto Edgar Leurenroth. Fundo: Ibope. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação: PD 003. Vale
ressaltar que os dados disponíveis do ano de 1965 são apenas da cidade de São Paulo e constam somene 4
páginas scanneadas, sem informação do mês ou semana de referência.
145

de potentes riffs (frases curtas e repetitivas) dos metais.”406 Os vocais no estilo comumente
destacavam scats, notadamente com o cantor Jimmy Rushing. Durante a década de 1950, a
orquestra foi reagrupada com dezesseis integrantes e maior liberdade para os músicos
solistas, agora extraídos entre instrumentistas de jazz moderno - herdeiros do be bop, como
os adesistas da vertente hard bop - o formato denominado “O novo testamento”. 407

O álbum S’imbora apresentava canções de compositores consagrados na Bossa


Nova, como “Samba do carioca” (Carlos Lyra e Vinícius de Moraes) e “Se todos fossem
iguais a você” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes) e de revelações da chamada Música
Popular Moderna (MPM), os compositores Geraldo Vandré (“Fica mal com Deus”) e
Chico Buarque (“Sonho de carnaval”); além da regravação de “Balanço Zona Sul”, lançada
no primeiro LP de Simonal. Entre as canções do álbum, em apenas uma foi localizada a
retratação da questão racial. A temática da escravidão aparece em “Ladeira do Pelourinho”,
composição de Evaldo Gouvêia e Jair Amorim, primeira faixa do Lado B do disco. É um
samba executado em sonoridade hard bop, demarcada pela execução firme e ágil da bateria
e forte participação do naipe de metais, acrescidos de uma flauta transversal, além de um
coral que ressalta alguns trechos da letra.

Isto foi Ebó/ Foi lá na Bahia que eu achei teu amor/ Lá no pelourinho que é
ladeira da dor/ Onde escravo no tronco penou muitos anos atrás/ Onde agora,
escravo que sou, também sofro demais/ Sinto teu açoite de feitor sobre mim/ Oh,
valei-me agora, meu Senhor do Bonfim/ Dá-me um pouco de paz, Oxalá, dá-me
um pouco de fé/ Que eu estou amarrado a um olhar, um olhar candomblé/ Isto
foi Ebó, na ladeira está/ Vou descer agora e dizer a meu Babalorixá/ Que eu não
vivo só.408

Retomando a memória da escravidão, a canção ressalta símbolos dolorosos (no


tronco penou e sinto teu açoite de feitor), costurados na imagem construída pela canção
através de um eu lírico amarrado a um olhar, sofrendo as penas do desamor. A canção
ainda apresenta referências ao culto aos orixás, atribuindo que o sofrimento foi Ebó
(“Oferenda ou sacrifício animal, feito a qualquer orixá [...] Termo mais comumente
empregado para oferenda especial a Exu, pedindo o bem ou o mal de alguém, ou
agradecendo, colocada em encruzilhada, sendo vulgarmente chamada ‘despacho’”409 ), e
pedindo paz ao orixá Oxalá (“nome brasileiro de Obatalá, o orixá iorubá da criação da
Humanidade, filho de Olórun, Deus Supremo, o qual lhe delegou poderes para governar o

406
RIBEIRO, Helton. Count Basie (Coleção Folha. Lendas do Jazz, v. 8) 2017, p. 08.
407
RIBEIRO, Helton. Count Basie. (Coleção Folha Lendas do Jazz; v. 8) 2017, p. 32-33.
408
Wilson Simonal. Ladeira do Pelourinho. S’imbora. Álbum. Odeon. 1965. Faixa 1, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=gaQi8iC36c8>
409
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977, p. 107.
146

mundo. É sincretizado com o Sr. do Bonfim [filho do Deus católico].”410 ), através do


intermédio do Babalorixá (“termo atualmente usado para alguns chefes de terreiro que
praticam a adivinhação pelos búzios. [...] sacerdote de Ifá, o orixá da adivinhação.”411 ).
Embora a identificação deste amor seja compreendida de forma negativa, justificando
alusões à metáfora da escravidão e atribuição ao Ebó, o eu-lírico busca alívio na mesma
religiosidade, através da reivindicação a Oxalá, pela intervenção do meu Babalorixá.

O ano de 1966 chegou trazendo importantes modificações nas carreiras dos três
nomes então identificados neste capítulo como representantes da Bossa Negra. A pioneira
Elza Soares voltou aos estúdios da Odeon no final de março para iniciar novas gravações,
que foram concluídas em maio do ano, de modo que em junho foi lançado o álbum Com a
Bola Branca. O disco repetiu a parceria entre Milton Miranda, Lyrio Panicalli e o maestro
Nelsinho, mas agora com uma aproximação ao samba-jazz. Talvez devido à presença de
Lyrio, a sonoridade deste disco é próxima à executada nos discos de Simonal, porém, com
maior ênfase no ritmo de samba, efetuando uma identificação mais forte com a vertente
Samba de Gafieira. O ritmo é ditado por uma bateria vigorosa, que disputa o destaque nos
arranjos com a orquestra de instrumentos de sopro. A identificação com o samba de
gafieira é explicitada já na segunda canção do disco, “Estatuto de gafieira”, mais uma
composição de Billy Blanco gravada por Elza. A adesão ao samba-jazz por Elza, realizada
a partir da sonoridade das gafieiras, valorizou a personalidade musical desenvolvida pela
cantora, sobretudo em seus quatro primeiros discos, ao fornecer uma base instrumental
sólida para os duetos entre a técnica scat e solos de trombone.

O texto de contracapa do disco Com a Bola Branca não faz referência às mudanças
de sonoridade, seja deste trabalho ou do anterior da cantora, limitando-se a ressaltar a
relação de Elza com o samba. A faixa de abertura do disco, “Quizumba”, composição de
Serrinha, aproxima, na temática e narrativa, da canção “Ladeira do pelourinho”, analisada
acima, ao trazer os versos: Eu preciso ir na Macumba/ pra tirar essa Quizumba/ que
jogaram em cima de mim/ não é praga de madrinha/ procurei andar na linha/ (...) Na
Bahia tem o Senhor do Bonfim/ vou pedir a ele tirar a Quizumba de cima de mim. O termo
de origem africana “quizumba” no português brasileiro “significa ‘confusão’”, 412 ao qual o
eu-lírico da canção buscará resolver na “Macumba” (“nome que os leigos usam para os

410
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros. 1977, p. 200, 201.
411
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros. 1977, p. 60.
412
PETTER, Margarida. O léxico compartilhado pelo português angolano, brasileiro e moçambicano. In:
Revista Veredas, n° 9. 2008, p. 71.
147

cultos que empregam a magia negra e que os adeptos de Umbanda de Linha branca
chamam Quimbanda. Nome genérico que os leigos usam para designar cultos afro-
brasileiros.”413 ) com o intermédio do Senhor do Bonfim - que, nos cultos afro-brasileiros, é
sincretizado a Oxalá, como anteriormente pontuado.

Outra canção destaca no disco de Elza Soares de 1966, embora não pela temática
racial, mas pela abordagem da temática de gênero: a faixa que encerra o Lado A do LP, “A
vida como ela é”, composição de Julio D. de Castro. A canção, com destaque nos naipes de
metais e uma interpretação vigorosa da cantora (sem teor pungente), diz: Você andou lendo
demais/ ‘A vida como ela é’/ Meu caso é muito amor, rapaz/ não me bata mais porque/ eu
me aborreço e abandono você/ Nelson Rodrigues sempre diz, mas não faz/ infelizmente
convenceu você/ que a mulher gosta de apanhar/ não é nada disso, você pode crer/ me
bata mais e vai se arrepender. A letra da canção, portanto, faz um explícito combate à
violência doméstica com referência à coluna diária publicada pelo dramaturgo Nelson
Rodrigues entre 1950 e 1961 no jornal Última Hora. Devido ao sucesso e longevidade da
série, do longo número de contos, foi publicada em 1961 uma seleção como Cem contos
escolhidos - A vida como ela é, em dois volumes, pela editora J. Ozon. 414

Se Elza Soares em 1966 encontrou um novo direcionamento na carreira, deixando


de lado a orientação samba-canção de seu trabalho anterior e concentrando-se na
sonoridade do samba de gafieira, alimentado pelo samba-jazz; Jorge Ben parecia estar em
um momento de reflexão sobre sua identidade musical. O artista transitava entre a vertente
então chamada de Música Popular Moderna, com a qual sua proposta musical foi desde o
início identificada - ao ser considerada um desenvolvimento da Bossa Nova - e a nova
geração do rock brasileiro, a chamada - em referência a um programa de televisão que
artistas desta vertente estrelavam - Jovem Guarda.415 Talvez devido a esse impasse, o ano
de 1966 representou um hiato da carreira de Jorge, o primeiro sem um lançamento desde
sua estreia em 1963. Simonal também transitou por esse duplo caminho e lançou, em abril
de 1966, um compacto acompanhado pelo grupo de Jovem Guarda The Fevers com as
canções “Tá por fora” e “Mamãe passou açúcar em mim” – e que conquistou sucesso. O
primeiro passo rumo a uma grande reorientação em sua carreira.

413
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977, p. 166.
414
RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é... 3.ed. 2012, p. 09 (Nota do editor).
415
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p.
52.
148

No decorrer do ano de 1966, Simonal estudou a criação de uma proposta musical


que mantivesse a personalidade musical samba-jazz, a partir da interlocução com o hard
bop, que desenvolvia em sua carreira, mas que buscasse a “comunicabilidade”, entendida
como o acesso ao consumo a maiores plateias, sobretudo a parcela jovem, como fazia o
rock da Jovem Guarda. Um primeiro movimento foi de sintetizar seu acompanhamento
instrumental - então com grandes orquestras em linha Big Bands de jazz - em um trio de
samba-jazz, oriundo do Beco das Garrafas. O conjunto Som Três, formado pelo pianista
César Camargo Mariano, Sabá, no contrabaixo e Toninho Pinheiro na bateria, era formado
na sonoridade samba-jazz e do samba de gafieira, mas aceitava também tocar canções com
temáticas juvenis, como as que faziam sucesso na cena nacional da Jovem Guarda. A nova
proposta foi batizada de Pilantragem e, assim, o artista poderia buscar ampliar seu público,
mantendo a fidelidade jazz estilo hard bop.

Em outubro de 1966, Simonal e o Som Três gravaram um álbum para a


apresentação ao público e desenvolvimento da proposta da Pilantragem – ou “samba
jovem”, como também chamada à época. Lançado em novembro de 1966, o LP Vou deixar
cair... mantinha Milton Miranda na produção e Lyrio Panicalli na direção musical, mas
agora trazia os arranjos produzidos por César Mariano. Os sopros, conforme informado no
encarte do disco, foram encarregados apenas a pistão (trompete) de Maurílio e o sax-tenor
de Juarez. O álbum apresentava arranjos elaborados, comprometidos com um caráter
dançante, sobre canções de apelo diverso. Havia desde a temática infantil (“Meu limão,
meu limoeiro”, “Mamãe passou açúcar em mim” e “A formiga e o elefante”), passando por
releituras da Era do Rádio (“Maria”), incluindo versões de Bossa Nova (a dançante “Tem
dó” e a romântica “Minha namorada”) e Jovem Guarda (“Carango”, lançada no mesmo ano
por Erasmo Carlos), e revelando o jovem compositor Gilberto Gil, em “Vento de Maio”.
Contudo, rompendo com a constância temática dos três últimos LPs, em nenhuma canção
do LP havia qualquer referência à linguagem antirracista ou à temática racial.

1.3. Rumo ao Black Soul: a consolidação da linguagem do Orgulho Negro.

Quando chegou o ano de 1967, as sonoridades da Bossa Negra de Elza Soares,


Jorge Ben e Wilson Simonal encontravam-se consolidadas no mercado fonográfico
brasileiro. E, em certa medida, davam sinais de saturação ou mesmo superação, tendo em
vista as mudanças de rumo sinalizadas nas carreiras, como referenciado nos parágrafos
149

finais do último tópico. Ou, ao menos, as mudanças sinalizadas por Jorge e Simonal, posto
que Elza, em seu trabalho de 1966, aproximou-se do samba-jazz. O disco seguinte da
cantora, O máximo em samba, foi gravado entre maio e junho de 1967 e lançado em junho
do mesmo ano e, embora com a mesma equipe que esteve na produção do disco anterior,
retomou a sonoridade consolidada pela artista nos primeiros álbuns. O repertório do novo
LP era calcado em sambas lançados originalmente nos anos 1930 e 1940 e executados com
os destaques aos instrumentos de percussão, naipes de sopros e solos de trombone da
Bossa Negra de Elza, mas sem o vigor nas execuções que caracterizava a sonoridade
samba-jazz, a partir do hard bop. Apesar deste retorno, o disco pouco explorava a técnica
dos scats (uso somente na canção “Devagar com a louça”) e em nenhuma faixa aparecia
qualquer referência à temática racial. E, em agosto, a cantora já retornou aos estúdios, onde
iniciou mais uma série de regravações de sambas clássicos, agora interpretados em dueto
com o famoso cantor Miltinho, em uma sonoridade de samba mais convencional - focada
no violão e percussão, deixando o piano e os instrumentos de sopro com discrição nos
arranjos -, saindo em agosto o disco Elza, Miltinho e Samba.

Jorge Ben, no entanto, encontrou em 1967 um ano para experimentações. Reuniu-se


ao The Fevers - o grupo de rock com o qual Simonal gravou o compacto “Tá por fora/
Mamãe passou açúcar em mim” no ano anterior - e, entre bateria, guitarras e contrabaixo
elétricos, lançou o álbum O Bidú - Silêncio no Brooklin, em uma nova gravadora, a
Beverly/Rozenblit. O conceito do disco apresentava o que o compositor, na faixa 03 do
Lado A, defendia como “A Jovem Samba”: sambas tocados com grupos associados à
Jovem Guarda. O título do álbum, à primeira vista, poderia sugerir uma referência
transnacional, ao remeter ao condado Brooklyn, região de Nova Iorque, nos EUA, em que
predomina a população negra. No entanto, o álbum de Jorge alude a uma referência mais
próxima e bairrista, pois, conforme Alexandre Reis dos Santos: “Bidú é o apelido que
Jorge tinha entre o grupo da música jovem e Brooklin foi o bairro paulistano pra onde
Jorge se mudou neste período.”416 O tema predominante no disco é romântico, dialogando
com o vocabulário associado às canções da Jovem Guarda, como nas músicas intituladas
“Menina, Gata, Augusta”, “Eu sou da pesada” e “Si manda”, com expressões jovens e que
poderiam remeter a canções da Jovem Guarda, como “Rua Augusta” e “Eu sou terrível”.

416
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p.
59.
150

Uma faixa de O Bidú - Silêncio no Brooklin, porém, retoma o tema da religiosidade


afro-brasileira, comum nos discos anteriores de Jorge, a segunda do LP, “Nascimento de
um Príncipe Africano”. A letra da canção diz: hoje vai ter festa no Gongá/ Vai sambar
Aruan/ Vai sambar Inaná/ Vai sambar Ogan/ Vai sambar Obáobá/ A Tamba está tocando/
um novo príncipe está nascendo/ está até chovendo/ mas é um bom sinal/ é um futuro rei/
pra combater o mal. “O gongá, segundo Nei Lopes, em religiões de matriz africana como a
umbanda, é o recinto onde fica o altar com as imagens sagradas e uma referência ao
terreiro de uma forma geral.”417 A pesquisa desta tese não localizou os significados de
Aruan e Inaná, mas Ogan, na grafia Ogã, trata de um “título honorífico, dado a homens de
boa situação financeira e prestígio social ou político, capazes de ajudar e proteger o
terreiro, bem como a outros, escolhidos por sua honorabilidade e prestação de relevantes
serviços à comunidade religiosa.”418 Obá-obá refere à “planta de todos os orixás, espécie
de palmeira miniatura”,419 ou, se for uma repetição da palavra Obá, é o “termo usado, no
Brasil, para designar os doze ministros de Xangô, do Axé Opô Afonjá, BA, também
chamados Mangbá” ou a “Orixá do rio Obá [Nigéria, África] e esposa, a menos amada, de
Xangô.”420 Esta canção, portanto, figura no LP como uma ponte entre a temática do Jorge
da Bossa Negra e a sonoridade do “novo Jorge” da Jovem Samba.

A transição efetuada por Jorge Ben e Simonal de uma sonoridade identificada à


Bossa Nova para e da chamada Música Popular Moderna (MPM) rumo à Música Jovem, o
rock da Jovem Guarda, é emblemática quanto a um importante debate estético e político
envolvendo a canção produzida no período. Marcos Napolitano, ao analisar o cenário de
“ampliação da audiência e a gênese da moderna MPB” no livro Seguindo a canção:
engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969), destacou O Fino da Bossa
Nova, disco que registrou o show realizado na Universidade de São Paulo, em maio de
1964, incluindo o grupo de samba-jazz Zimbo Trio, Alaíde Costa, Paulinho Nogueira,
Rosinha de Valença e Oscar Castro Neves aos novatos Jorge Ben e Nara Leão. Segundo o
autor, “Jorge Ben empolgou a plateia com sua batida que misturava samba e soul.”421
Conforme o historiador, durante a década de 1960 houve maior difusão entre os setores de

417
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p.
141.
418
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977. p, 187.
419
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977, p. 183.
420
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977, p. 182.
421
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-
1969). 2010, p. 44.
151

classe média e elites brasileiras de aparelhos de televisão, o que permitiu a ampliação da


audiência da música popular, entre esses setores, a partir de programas televisivos que
configuraram mais um importante veículo para a difusão da canção enquanto produto
comercial. Além de diversos programas televisivos dedicados à música popular, como o
Fino da Bossa (estrelado por Elis Regina e Jair Rodrigues, ligados à MPM) e o Jovem
Guarda (estrelado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, do rock), ambos
estreados no ano de 1965, a ampliação da audiência se deu pelos festivais.

Mas foram os Festivais da Canção os programas que mais agitaram a sociedade


brasileira entre 1966 e 1968. Nestes anos, a fórmula “festival da canção”
imperou na TV brasileira, tornando-se os seus programas de maior audiência.
(...) O festival era um tipo de evento que reunia um conjunto de músicas inéditas,
de 36 a 40, dependendo da emissora, em que se escolhia entre estas algumas
finalistas que disputavam os principais prêmios, sobretudo o de ‘melhor canção’.
Entre 1966 e 1968, principalmente, os festivais acabaram sendo os principais
veículos da manifestação da canção engajada e nacionalista, voltada pa ra a
discussão dos problemas que afligiam a sociedade brasileira. 422

Enquanto os Festivais da Canção tornaram-se um importante veículo para a difusão


de canções muitas vezes comprometidas a um engajamento social e político para os
músicos e setores do público partidários da necessidade de veiculação política na música
popular; na perspectiva desse mesmo setor de público e artistas, “o movimento Jovem
Guarda era relacionado aos efeitos de ‘entreguismo’ cultural e ‘alienação’ política no seio
da juventude e, neste sentido, a ponta de lança dos militares na guerrilha cultural que o país
parecia vivenciar.”423 Portanto, o trânsito entre as duas correntes, como fazia Jorge Ben,
participando dos dois programas televisivos sínteses da divisão que era realizada no
consumo da música popular, era polêmico e com riscos de leitura de traição.

A chamada Jovem Guarda refere-se à segunda geração do rock no Brasil, surgida


logo após a então musa juvenil Celly Campello abandonar a carreira de cantora, aos 20
anos, ao se casar. Os nomes mais emblemáticos da Jovem Guarda eram Roberto Carlos, “o
rei da juventude”, Erasmo Carlos, o “tremendão”, e Wanderléa, “a ternurinha”, entre
outros.424 Essa vertente musical, inicialmente chamada de iê iê iê, ou música jovem, tinha a
sonoridade caracterizada pelos timbres das guitarras elétricas, contrabaixos e órgão
também elétricos (este último, o maior instrumento solista, ao menos nas canções de

422
NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 2008, p. 56.
423
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-
1969). 2010, p. 72.
424
Para uma referência sobre os primórdios da Jovem Guarda, inclusive com relatos quanto ao impacto da
Bossa Nova entre Roberto e Erasmo Carlos, a tentativa de ambos de inserção e a sensação de rejeição nos
círculos bossanovistas no início dos anos 1960, ver CARLOS, Erasmo. Minha fama de mau. 2009.
152

Roberto) e bateria. A temática predominante das canções era romântica e certa rebeldia
juvenil, a partir da realidade urbana, além da apologia aos carros (temas associados ao
cinema estadunidense voltado ao público adolescente, como a produção dos anos 1950
estrelada pelos ícones juvenis James Dean e Marlon Brando) em canções como “É
proibido fumar”, “O calhambeque”, e as já citadas “Rua Augusta” e “Eu sou terrível”.

Embora a Bossa Negra fosse identificada comercialmente em meio à Música


Popular Moderna, e, portanto, mais próxima aos setores engajados na oposição acima
apresentada, é notável que os três artistas estudados, Elza Soares, Jorge Ben e Simonal, não
sejam nomes emblemáticos nas referências sobre os festivais. Talvez porque o ápice da
produção da Bossa Negra deu-se entre 1960 e 1965, antes da “febre” dos festivais. Dessa
forma, até o ano então retratado neste tópico, 1967, Jorge e Simonal não participaram dos
festivais. Ou, pelo menos, não tiveram uma participação expressiva, que tenha sido
identificada durante as leituras para esta tese. Já Elza Soares, conforme sua mais recente
biografia, Elza, participou do II Festival de Música Popular Brasileira, realizado no teatro
da TV Record (o que finalizou com o empate entre “A Banda”, por Chico Buarque e Nara
Leão, e “Disparada”, por Jair Rodrigues) e ficou em segundo lugar, interpretando a canção
“De amor ou paz”. Porém, a cantora revelou no livro, sem citar nomes, que se sentia
deslocada, não aceita, entre os artistas dos festivais:

Eu tinha a certeza de que não era ‘da patota’. Todo mundo me respeitava, disso
eu não tinha dúvida, mas era sempre como se eu fosse uma exceção. Eu era a
neguinha que tinha chegado lá e todo mundo só olhava pra mim como se eu
fosse boa para cantar samba e pronto. Aquele era o lugar onde eles podiam olhar
para mim e se sentir confortáveis.425

Apesar de expressar a sensação de deslocamento, através da reafirmação de um


“lugar social” circunscrito ao posto de sambista, Elza Soares venceu na categoria “melhor
intérprete feminino” o IV Festival da Música Popular Brasileira da mesma TV Record, de
1968, mas com um samba de linha convencional (única gravação de sua carreira, até então,
a privilegiar violão, cuíca e tamborim), “Sei lá, Mangueira”, de Paulinho da Viola. E ainda
recorda ter sofrido preconceito racial.426 Enquanto isso, a partir de dezembro de 1966, a

425
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 203. A percepção de um “lugar social” circunscrito às pessoas negras
no universo profissional do entretenimento no Brasil também foi denunciada por Simonal, no ano de 1970:
“Se fosse branco, eu teria feito sucesso há muito mais tempo. (...) Porque a imagem do negro é aquele tipo
marginal. Preto tem que ficar tocando pandeiro, caixa de fósforos, ficar fazendo palhaçada no palco. Como
eu faço um gênero que o pessoal acha que é gênero de branco, como eu sou um show-man, então, dizem que
fiquei pretensioso, sou metido a importante. Isto é uma consequência do preconceito racial e a gente tem que
denunciar.” Correio da manhã. Caderno anexo. 04 de dezembro de 1970, p. 03.
426
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 207.
153

Pilantragem de Simonal incluía a regravação de algumas canções de destaque nos festivais,


mas reelaboradas a partir das propostas de sonoridade realizadas pelo cantor, como no
compacto com as vencedoras “A Banda” e “Disparada”, transformadas, por Wilson
Simonal & O Som Três, em potentes hard bops - particularmente a segunda, que em nada
lembrava a sonoridade agreste vencedora. 427

Contudo, foi outro lançamento de Simonal em 1967, também comercializado na


forma de compacto, que apresentou o maior impacto e relevância para o argumento deste
capítulo e da tese. Embora fosse um compositor inseguro (até então, havia gravado apenas
duas canções de sua autoria), Simonal compôs uma música ao piano e convidou um
compositor consagrado, seu amigo Ronaldo Bôscoli (o criador do termo Bossa Negra,
como ressaltado), para ajudá-lo na produção da letra. O tema era o preconceito e a
discriminação às pessoas negras, articulando a realidade brasileira com o contexto
estadunidense, então com grande impacto midiático do movimento das comunidades
negras sulistas do país reivindicando os Direitos Civis - suprimidos pela legislação
popularmente conhecida como “Jim Crow”. Segundo o biógrafo Ricardo Alexandre: “Com
a ajuda de Ronaldo Bôscoli, Simonal conseguiu sintetizar o espírito de sua época, boa parte
de sua própria experiência de vida e ainda escolher as palavras certas para transformá-las
em um sucesso popular”.428 O biógrafo também abordou sobre o impacto do pianista do
Som Três, César Mariano, ao ser apresentado à canção:

“Arrepiado”, segundo suas próprias palavras, César rapidamente bolou um


arranjo pesado, “compatível com toda aquela dor da letra”. Mas,
surpreendentemente, Simonal pediu o contrário: “Vamos ‘suingar’ isso aí,
precisamos deixar esse assunto mais leve”. O Som Três produziu um
instrumental ritmado e irresistível, pontuado por um riff de metais e vozes e
muitos “lá-lá-lás”, transformando uma ideia em um protesto civil que viraria
sucesso até em bailes de carnaval.429

O comentário de César Mariano traz elementos importantes sobre o entendimento


do pianista e de Simonal sobre a Black Music. A canção não se tratava de um samba ou
samba-jazz. O gênero em que Simonal compôs foi o spiritual, uma das matrizes da música
negra estadunidense, e o ancestral do gênero comercial gospel. Era uma escolha que
combinava perfeitamente com a ambientação da canção, visto que o homenageado na letra

427
Wilson Simonal. A Banda/ Disparada/ Quem samba fica/ Máscara negra. Compacto duplo. Odeon. 1966.
Para uma análise detalhada dessas gravações e suas orientações jazzísticas, ver MORAIS, Bruno Vinícius L.
de. “Sim, sou um negro de cor.” Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no Brasil. 2016, p. 160-
167.
428
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 101.
429
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 101.
154

era um pastor negro de vertente protestante Batista, Martin Luther King, e o gospel era
uma base musical da religiosidade cristã dos negros nos Estados Unidos da América. Mas,
para quem conheça o gênero, fica evidente que os spirituals não são necessariamente
canções “pesadas”, como atestam as discografias de duas das mais emblemáticas cantoras
do gênero, Sister Rosetha Tharpe (considerada, por sua performance na guitarra elétrica,
uma pioneira do rock and roll – mesmo que a sua música fosse criada “para louvar o
Senhor”) ou a jazzística Mahalia Jackson. Sobretudo no decorrer dos anos 1950 e 1960, os
spirituals e o gospel executados nos cultos dentro das igrejas protestantes passaram a
expressar mensagens antirracistas de adesão aos Direitos Civis - seja em canções de
andamento lento ou as dançantes, “suingadas” -, posto que, assim como Luther King,
outros pastores engajaram-se na luta. De tal forma, o pedido de Simonal, que compôs este
spiritual, de ter um arranjo animado não destoa do gênero ou do tema. Quanto à letra,
embora Ronaldo Bôscoli seja reconhecido como avesso à vertente engajada da música
brasileira, sua composição apresentou forte densidade política:

Sim, sou um negro de cor/ meu irmão de minha cor/ o que te peço é luta, sim,
lutar mais/ Que a luta está no fim/ Cada negro que for/ outro negro virá para
lutar/ Com sangue ou não, com uma canção também se luta, irmão/ Ouve minha
voz/ Luta por nós/ Luta negra demais é lutar pela paz/ Para sermos iguais. 430

“Tributo a Martin Luther King”, como a canção foi intitulada, foi gravada em 28
de fevereiro de 1967, mas, segundo Ricardo Alexandre, “a música foi imediatamente retida
pela censura, que condicionou sua liberação a uma série de ‘esclarecimentos’ que se
estenderiam por quatro meses.”431 Assim, a canção só foi lançada comercialmente em
junho do mesmo ano, pela gravadora Odeon, em um compacto duplo, com “Deixe quem
quiser falar”, “Ela é demais” e “Está chegando a hora”. Contudo, quando do lançamento do
fonograma, a canção já era conhecida pelo grande público. A primeira apresentação da
composição ocorreu ainda em março, quando Simonal foi convidado para abrir o show de
entrega do troféu Roquete Pinto, destinado aos “melhores artistas do ano”, um espetáculo
exibido em horário nobre pela TV Record. O elenco incluía os Golden Boys (cuja carreira
foi fortalecida com o sucesso da Jovem Guarda, com a qual sua sonoridade doo wop foi
associada), Vanderléa, Elis Regina e Roberto Carlos. Simonal comemorava o impacto
comercial da Pilantragem e do álbum Vou deixar cair... Era esperado, portanto, que o
cantor executasse um de seus recentes sucessos, “Carango”, “Mamãe passou açúcar em
430
Wilson Simonal. Tributo a Martin Luther King/Deixa quem quiser falar/Ela é demais/Está chegando a
hora. Compacto duplo. Odeon. 1967. Faixa 01, lado A. <
https://www.youtube.com/watch?v=NYppRXA4_0s >
431
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem.” A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 101.
155

mim” ou “Meu limão, meu limoeiro”. No entanto, anunciou uma canção ainda não lançada
comercialmente, conhecida apenas pelo público de seus shows mais recentes. Enquanto
sua banda de apoio, o Som 3, esboçava a introdução, o cantor, bastante sério, dirigiu-se à
plateia, apresentando, em tom didático, o tema da canção:

Eu compus uma música de parceria com meu amigo Ronaldo Bôscoli e intitulei
“Tributo a Martin Luther King”. Martin Luther King é um negro norte -
americano. O mérito maior de Martin Luther King é lutar cada vez mais pela
igualdade dos direitos das raças. Essa música, eu peço permissão a vocês, porque
eu dediquei ao meu filho, esperando que no futuro ele não encontre nunca
aqueles problemas que eu encontrei, e tenho às vezes encontrado, apesar de me
chamar Wilson Simonal de Castro.432

Outro trecho da fala de César Mariano ao jornalista Ricardo Alexandre fortalece a


compreensão da densidade política da fala e da composição de Simonal, pois fornece
indícios sobre a leitura antirracista de viés transnacional que motivou a composição:

“Na época – acho que posso dizer isso agora –, Simonal estava muito atento à
criação do Partido dos Panteras Negras nos Estados Unidos”, lembra o pianista.
“Era algo que dizia muito a ele, que estava se transformando em um astro, mas
pouco tempo antes era obrigado a entrar pelas portas de trás nos lugares em que
queria ir. Esse assunto sempre estava em pauta nos shows, ou como uma piada
leve, ou em um texto sério. E ele ficou encantando com Martin Luther King e
acompanhava em detalhes a luta dele como ativista dos direitos dos negros.” 433

Apesar da fala de César Mariano situar a preocupação racial de Simonal a partir de


experiências do passado (“pouco tempo antes era obrigado...”), cabe destacar o aspecto
emblemático do cantor, ao apresentar a composição ao público, ressaltar a existência de
episódios recentes de preconceito e discriminação raciais (“e tenho às vezes encontrado”),
apesar da ascensão social. A fala de Simonal abordou, portanto, um elemento chave para
compreender o preconceito e discriminação raciais, que propicia experiências de exclusão,
independentemente da posição social conquistada por indivíduos negros. “Tributo a Martin
Luther King” ainda sinalizou para novas possibilidades nos processos de hibridação na
música negra brasileira. Afinal, promoveu a adesão explícita ao spiritual, um gênero da
música negra estadunidense (diferente do samba estilo Cidade Nova ou da Bossa Negra,
que articulavam as sonoridades estadunidenses ao samba) e sua incorporação é reelaborada
a partir da ambientação ao contexto brasileiro, ao ser cantada em português e em diálogo
com a realidade local. Permitiu, assim, a interlocução com o contexto do gênero de origem,
através da identificação de experiências comuns. Luther King, o destinatário da mensagem
da canção, é reconhecido como representante de uma luta negra que é comum e não

432
Texto transcrito a partir da cena registrada em vídeo. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=FH0Ws4Sw0ZE> Último acesso em 07/06/2019.
433
ALEXANDRE, Ricardo. Livreto do box de cds Wilson Simonal na Odeon (1961-1971). EMI. 2004
156

apenas das comunidades negras estadunidenses. Portanto, o tema da canção não faz um
comentário sobre uma realidade estrangeira, mas aborda o reconhecimento de uma questão
compartilhada. Esse movimento é realizado com o sujeito da canção partindo da primeira
pessoa do singular (sim, sou um negro de cor), dirigindo à segunda do singular (meu irmão
de minha cor o que te peço é luta, sim) para sintetizar na primeira do plural, (luta por nós.
Para sermos iguais). Franklin Martins, em verbete sobre a canção, ressalta:

Em 1967, os Estados Unidos ferviam com a mobilização dos negros pelos


direitos civis. (...) Um ano antes havia sido fundado o Partido dos Panteras
Negras, que defendia o armamento da população afro-americana e a recusa à
“ordem branca”. (...) A maioria das lideranças negras, porém, acompanhava a
orientação do reverendo Martin Luther King, Prêmio Nobel da Paz em 1964,
adepto da não violência e da resistência ativa como o caminho para a conquist a
dos direitos civis. (...) Após sua morte, pipocaram em todo o mundo canções
reverenciando a firmeza de King na promoção da igualdade racial. Poucas foram
as músicas, porém, que homenagearam o pastor quando ele ainda estava vivo.
Uma das exceções é Tributo a Martin Luther King, de Wilson Simonal e
Ronaldo Bôscoli, de 1967. (...) O verso que proclamava que a luta deveria ser
travada em qualquer circunstância - “com sangue ou não” - revelava uma faceta
surpreendente do mestre da pilantragem.434

O compacto com “Tributo a Martin Luther King”, como já informado, foi lançado
em junho de 1967, embora a canção fosse executada em shows do cantor e no programa de
tv supracitado. Um vestígio da consagração da canção entre o público do cantor está no
próximo lançamento de Simonal, o LP duplo, gravado ao vivo, Show em Simonal. O LP foi
gravado em 24 de junho de 1967 - mesmo mês em que foi lançado o compacto -, e lançado
comercialmente pela Odeon em outubro de 1967. A penúltima faixa do álbum era uma
regravação de “Tributo a Martin Luther King” e o fonograma registra a empolgação da
plateia, que acompanha, cantando, por toda a letra da canção. 435 No texto de apresentação
da reedição em Cd deste disco, Ricardo Alexandre esclarece sobre o espetáculo registrado:

Embora tivesse apresentado um programa durante todo o ano de 1965 – o


Spotlight, na TV Tupi -, Simonal ficou conhecido nacionalmente por causa do
Show em Simonal. Transmitido pela TV Record em São Paulo e TV Excelsior no
Rio (e em diversas outras emissoras pelo Brasil), o programa estreou em 20 de
outubro de 1966, nas noites de domingo. Na época, os musicais televisivos
dividiam o público entre o Fino da Bossa e Jovem Guarda, entre MPN e o iê -iê-
iê, entre os que lutavam pela música brasileira “legítima” e aqu eles que
preferiam emular o pop internacional. Show em Simonal unia as duas pontas do
cenário, no único palco onde Ataulfo Alves e Erasmo Carlos poderiam se
encontrar, na mesma noite. Lá, Simonal se transformou no “comunicador do
ano”, conforme definia a imprensa, em um programa cheio de surpresas,
ousadias de formato e muito humor.436

434
MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República.
Volume II - de 1964 a 1985. 2015, p. 78, 79.
435
Wilson Simonal. Show em Simonal. (Álbum duplo. Odeon. 1967). Cd. EMI. 2004, faixa 18.
436
Ricardo Alexandre, texto do encarte. Wilson Simonal. Show em Simonal (Odeon. 1967). Cd. EMI, 2009.
157

O álbum Show em Simonal, portanto, foi lançado para comemorar o primeiro


aniversário do programa televisivo apresentado por Simonal - por isso o lançamento em
outubro de 1967 - e o conceito buscava registrar em fonogramas o que era o espetáculo:
inúmeras referências a outros artistas, com trechos de músicas tanto identificados à
vertente engajada (“Cantiga brava”, de Geraldo Vandré e “Terra de ninguém”, dos irmãos
Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, por exemplo) quanto à Jovem Guarda (“Mexerico da
Candinha”, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos e “Meu bem”, de Ronnie Von, por
exemplo), além de outras vertentes da música popular, para além dessa oposição (como
“Peguei um Ita no Norte”, de Dorival Caymmi), entrecortas por intervenções humorísticas,
inclusive zombarias ao tema político das músicas engajadas. Além deste álbum, os
registros do acervo IBOPE do Rio de Janeiro demonstram que o compacto duplo intitulado
Tributo a Martin Luther King aparece em julho de 1967 no segundo lugar em vendas e
permanece entre os cinco mais vendidos até novembro.437 Mesmo resultado obtido na
consulta ao acervo IBOPE de São Paulo, mas começando em junho de 1967, quando o
compacto duplo Tributo a Martin Luther King já aparece em primeiro lugar nas vendas. 438

A canção “Tributo a Martin Luther King”, de Wilson Simonal, apresenta uma


mudança na forma de expressar a temática racial na música brasileira. Desde o primeiro
verso a canção enfatizou a conexão e sugeriu uma transição da terminologia “de cor” para
“negro” (sim, sou um negro de cor, meu irmão de minha cor). Como retratado
anteriormente neste capítulo, o termo “pessoa de cor” se tornou predominante no Brasil no
decorrer do século XX para referenciar as pessoas negras - embora movimentos políticos
importantes enfatizassem o termo “negro”, como a Frente Negra Brasileira, nos anos 1930,
e o Teatro Experimental do Negro na década de 1940. O termo “negro” já havia sido
utilizado nas canções analisadas neste capítulo, em composições de Jorge Ben, mas torna-
se notável nessa canção de Simonal a sua repetição enfática: a palavra “negro” ou “negra”,
como designação identitária, é repetida dez vezes em uma canção que dura menos de três
minutos. E o “significante ‘negro’” na letra é mobilizado reconhecendo a existência de
uma conexão transnacional entre as comunidades negras. Tal conexão, na narrativa da
canção, sugere um elo familiar (meu irmão de minha cor), um elemento de construção da
identificação negra estadunidense destacado por Stephanie Borges, na tradução brasileira

437
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: Ibope. Série: PD. Pesquisa de venda de discos. Notação: PD
005.
438
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: Ibope. Série: PD. Pesquisa de venda de discos. Notação: PD
006.
158

da obra de Audre Lorde, Irmã Outsider: “Nos Estados Unidos é comum que as pessoas
negras se tratem ‘irmão’, seguindo a lógica de que a experiência de ser um negro em
diáspora os une como uma família.”439 A fraternidade é mobilizada na canção através do
evocativo a uma luta comum, em prol da reivindicação por igualdade (luta negra demais/
para sermos iguais). A canção marca, portanto, a interlocução entre as comunidades
negras estadunidenses e as brasileiras expressa na sonoridade e no tema da composição.

A conexão afro-diaspórica promovida em “Tributo a Martin Luther King” e sua


repercussão potencializada pela exibição em TV e sucesso comercial evidenciam, para o
argumento desta tese, um documento da conexão transnacional das comunidades negras
brasileiras e estadunidenses. Conexão expressa tanto na sonoridade quanto na forma de
elaborar e comunicar a experiência social enquanto uma pessoa negra. Essa identificação
social na canção sugere uma transição da leitura como um “brasileiro de cor” ou “brasileiro
negro” para um “negro brasileiro”. Assim, indicia ou evidencia o compartilhamento de um
repertório de problemas e lutas, a partir de uma experiência cotidiana afro-diaspórica
marcada pela desigualdade – a experiência da exclusão, independente da classe social
conquistada –, apesar das diferenças específicas a cada realidade geográfica.

Nos conceitos mobilizados por esta tese, o ato de fala realizado no discurso de
Simonal ao entoar o spiritual “Tributo a Martin Luther King” marca uma nova etapa de
expressão da Linguagem Política Negra Antirracista elaborada na canção brasileira: a
consolidação da Linguagem Política do Orgulho Negro a partir das letras das canções.

A compreensão de uma forma de identificação negra construída a partir do diálogo


transnacional remete ao significado do termo “diáspora” explicitado por Elisa Larkin
Nascimento: “o de dispersão geográfica de um povo que, mesmo espalhado pelo mundo
em novas condições sociais e históricas, mantém o elo com sua origem e sua identidade
originária.”440 Contudo, essa identificação negra transnacional atualiza a definição recém
apresentada ao sustentar que as novas condições sociais e históricas se manifestam a partir
da compreensão de uma experiência compartilhada de exclusão, que produz um novo elo,
através da luta. Em entrevista à Sandra Almada, o intelectual e militante negro Abdias
Nascimento explicitou tal conexão:

439
LORDE, Audre. Irmã Outsider. Ensaios e conferências. 2020, p. 30 Versão original de 1984. (Nota da
tradutora).
440
NASCIMENTO, Elisa Larkin. 2003, p. 27. Apud. ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento [Coleção
Retratos do Brasil Negro]. 2009, p. 16, nota de rodapé 2.
159

Enquanto houver um descendente de africano nessa situação de pobreza, de


miséria, de opressão, eu me sinto atingido, pois o racismo não é uma co isa
pessoal, e sim coletiva. Essa situação, nos Estados Unidos, na África ou em
qualquer parte do mundo me preocupa e angustia da mesma forma como se fosse
no Brasil.441

A circulação de referências culturais transnacionais entre as comunidades negras no


Brasil, porém, pode ser identificada muito antes da produção de Simonal nos anos 1960. O
artigo do historiador Petrônio Domingues, “Este samba selvagem”: o charleston na arena
transatlântica, aborda o sucesso no Brasil da década de 1920 de uma dança originada nas
comunidades negras dos EUA, consolidando no país o nome da multiartista Josephine
Baker. O charleston foi muito divulgado no Brasil pelos teatros negros (grupos teatrais
formados por elenco e músicos negros. Diferenciavam do TEN, de Abdias Nascimento,
por não explicitar a dimensão política antirracista também na formação intelectual
divulgada). Conforme o historiador: “A emergência dessa nova dança na arena afro-
atlântica - essa rede transnacional de comunicações, intercâmbios, diálogos e trocas entre
os negros de várias partes do mundo atlântico -, também faz pensar como as ideias, os
produtos culturais e as tendências estéticas são viajantes, atravessando as fronteiras
nacionais.”442 Referências transnacionais também são encontradas na difusão da poesia do
movimento francófono Négritude pelo Teatro Experimental do Negro, a partir dos anos
1940, invocando a afirmação da ancestralidade africana. Conforme Marta Fernández, para
um dos mais influentes poetas do movimento Négritude, Aime Cesaire, “a negritude
constitui uma comunidade particular, em primeiro lugar, pelo fato de seus membros terem
uma experiência compartilhada de opressão, exclusão e discriminação, mas também de
resistência, luta pela liberdade e esperança.”443

Apesar dos antecedentes, segundo a pesquisa realizada para esta tese, na canção
brasileira, “Tributo a Martin Luther King” é pioneira ao conciliar tal interlocução
transnacional, a partir da realidade dos EUA, tanto em sonoridade quanto em letra.

Conforme exposto no tópico anterior deste capítulo, a identificação transnacional


entre as comunidades negras brasileiras era compreendida por setores conservadores como
um tipo de importação de um problema estrangeiro da “questão racial”, o que, nos termos

441
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento [Coleção Retratos do Brasil Negro]. 2009, p. 16.
442
DOMINGUES, Petrônio. “Este samba selvagem”: o charleston na arena transatlântica. In: GOMES,
Flávio dos Santos; DOMINGUES, P. Da nitidez e invisibilidade. Legados do pós-emancipação no Brasil.
2013, p, 198.
443
FERNÁNDEZ, Marta. Aimé Césaire: as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em
versos. In: TOLEDO, Áureo (org.). Perspectivas pós coloniais e decoloniais em relações internacionais.
2021, p. 46.
160

de Gilberto Freyre, era um comportamento “afrorracista”. Portanto, para adeptos a tal


leitura, a força do ideal de harmonia racial do “Brasil mestiço”, expresso pelo vocábulo
“democracia racial”, e a negação de conflitos e da existência do preconceito racial no
Brasil é que representava uma postura antirracista. Antonio S. A. Guimarães pondera sobre
as diferenças de leitura da ação negra antirracista:

Apenas para os afro-brasileiros, para aqueles que se chamam a si mesmos de


“negros”, o antirracismo deve significar, antes de tudo, a admissão de sua “raça”,
isto é, a percepção racializada de si mesmo e do outro. Trata-se da reconstrução
da negritude a partir da rica herança africana - a cultura afro-brasileira do
candomblé, da capoeira, dos afoxés, etc. -, mas também da apropriação do
legado cultural e político do “Atlântico negro” - isto é, do Movimento pelos
Direitos Civis nos Estados Unidos, da renascença cultural caribenha, da luta
contra o apartheid na África do Sul, etc.444

Outra publicação do ano de 1967 tornou-se emblemática para a difusão ao grande


público da aproximação entre as experiências de exclusão social de pessoas negras
brasileiras e estadunidenses: a edição número 19 da revista Realidade, publicada pela
editora Abril em outubro, cuja capa, sob o fundo de duas fotos de rosto de pessoas negras,
anunciava o dossiê “Racismo: EUA. Brasil”. Curiosamente, na primeira sessão da revista,
“Roteiro/ Artes, Espetáculos, Indicações”, páginas antes do dossiê, há uma pequena
reportagem intitulada “Até onde vai Simonal?” fazendo referência ao programa do cantor
lançado em disco: “O programa Show em Si... monal sempre obteve bons índices de
audiência. Quando comemorou seu primeiro aniversário, o cenário mostrava (...) Grandes
fotos de Pelé e Cassius Clay. Era uma alusão clara ao seu mais novo lançamento à época,
Tributo a Martin Luther King.”445 Abrindo o dossiê, um texto do diretor da revista, Odylo
Costa Filho, pontua, já desde o título - “Começo de conversa. Nosso tema não é o
preconceito, mas a fraternidade” - um tom mais conciliatório do que o exposto na capa e
explica a estrutura do dossiê de 40 páginas:

Nas páginas que seguem apresentamos duas reportagens sobre faces diversas do
mesmo problema: o da antifraternidade. Numa, o jornalista conta o que viu nos
Estados Unidos. Noutra, uma pequena equipe corre algumas capitais do Brasil
para espiar como anda o preconceito de cor por essas bandas, testando as
diferenças de reação em face de um branco e de um negro. (...) Seria cômodo e
tranquilo tratar apenas da tragédia americana. Não nos limitamos, todavia, a falar
dos Estados Unidos porque não queremos contribu ir, ainda que pelo silêncio,
para que aconteça um dia aqui o que está agora desgraçadamente acontecendo lá.
Preferimos a incomodidade e os riscos de ser mal compreendidos, mal julgados,
acusados de estar fazendo justamente aquilo contra que estamos dispost os a
lutar, de atiçar o ódio de raça que queremos extirpado antes de nascer. (...) A

444
GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. 2009, p. 61.
445
Realidade. Editora Abril. Ano II. Número 19. Outubro de 1967, p. 11.
161

tendência liberal dos Estados Unidos, a que corresponde mais profundamente ao


seu destino, não é a dos racistas desta ou daquela cor. 446

O diretor, portanto, apresenta o dossiê como dotado de certa intenção preventiva, a


fim de evitar “que aconteça um dia aqui” o que ocorre nos EUA. Contudo, em outro trecho
da introdução, contrapôs a imagem difundida pelo discurso oficial brasileiro: “Nossa
vaidade é não têrmos preconceito. (...) A verdade é que o preconceito entre nós sempre
andou numa escala, de atenuado até feroz, começando pela doce convivência doméstica,
passando pela difícil ascensão social, endurecendo feio no que tange ao casamento (mas
não ao sexo...).”447 Embora a chamada de capa da Revista apresente o tema como
“Racismo”, o vocábulo com o qual o dossiê opera é “preconceito” ou “discriminação” e já
antecipa: “Os racistas, brancos ou negros, para trás com êles! (...) Façamos do Brasil aqui
dentro a democracia racial de que nos envaidecemos lá fora.”,448 explicitando uma
compreensão do vocábulo mais próxima àquela mobilizada por Gilberto Freyre, embora
amparada em uma linguagem antirracista. A parte do dossiê dedicada ao Brasil, em
reportagem significativamente intitulada “Existe preconceito de côr no Brasil” avaliou, em
diversas regiões do país, manifestações de discriminação racial que barravam o acesso de
pessoas negras a serviços e instituições - mais forte nas instituições da iniciativa privada do
que nos serviços públicos, segundo a reportagem.

O impacto da edição 19 da Realidade foi destacado por alguns integrantes do


movimento negro organizado na década de 1970 em entrevistas para os historiadores
Verena Alberti e Amílcar Pereira publicadas no livro Histórias do Movimento Negro no
Brasil: depoimentos ao CPDOC.449 A boa circulação da revista era anunciada desde a
Carta do Editor, Victor Civita, que abria essa edição: “Neste mesmo ano e meio, a
circulação da REALIDADE foi de 250.000 para mais de 400.000 exemplares”. E esta
edição continha o informe de tiragem: 465.900 exemplares.

O dossiê da revista Realidade, ao estampar na capa o termo “Racismo” demonstrou


uma dose de ousadia e coragem deste veículo de imprensa – assim como a apresentação
em TV de Simonal. Afinal, contrapunham a representação racial difundida pelo Estado

446
Realidade. Editora Abril. Ano II. Número 19. Outubro de 1967, p. 21.
447
Realidade. Editora Abril. Ano II. Número 19. Outubro de 1967, p. 22.
448
Realidade. Editora Abril. Ano II. Número 19. Outubro de 1967, p. 22.
449
A título de exemplo, Ivair Alves dos Santos informa: “O mundo chegava para mim através da revista
Realidade. E teve um número que foi especificamente sobre racismo. Aquele número foi demolidor. Eu tinha
os mesmos 16, 17 anos quando li. Foi um impacto grande, uma das leituras que marcaram muito a minha
trajetória.” In: ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amílcar Araújo. Histórias do movimento negro no Brasil:
depoimentos ao CPDOC. 2007, p. 72.
162

brasileiro em uma ditadura militar que, a cada momento, demonstrava-se mais autoritária.
Agravando os riscos, abordar a discriminação racial no Brasil poderia configurar subversão
e ameaçar a “integração nacional”, conforme o imaginário das forças do Estado quanto às
ameaças à Segurança Nacional. Era a releitura de uma lei original de janeiro de 1953, que
configurava crime contra a ordem política e social “Fazer publicamente propaganda [...] de
ódio de raça, de religião ou de classe”,450 agora parte de uma nova legislação autoritária:

(...) a Lei de Segurança Nacional, de 11/03/1967, em seu artigo n.33, no item VI


assinalava como crime incitar publicamente “ao ódio ou à discriminação racial”.
Esta lei previa pena de detenção de 1 a 3 anos, podendo ser aumentada se o
“crime” fosse praticado por meio da imprensa, panfleto ou escritos e de qualquer
natureza, radiodifusão e televisão. Da mesma forma, a Lei de Imprensa de
9/2/1967 no parágrafo 1º do art. 1, apontava que: “não será tolerada a
propaganda de guerra, de processos de subversão da ordem política e social ou
de preconceitos de raça ou classe.” (…) Desta forma, as críticas dos movimentos
poderiam ser identificadas pelos aparatos de informação e repres são como
‘guerra psicológica adversa’, uma vez que divulgavam uma imagem considerada
‘negativa’ do país para o exterior. Conforme o 2º parágrafo do 1º capítulo da Lei
de Segurança Nacional de 11/03/1967: “A guerra psicológica adversa é o
emprego da propaganda, da contrapropaganda e de ações nos campos político,
econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar
opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos,
neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais.” 451

Tais elementos configuraram também a nova Constituição promulgada pelo regime


ditatorial em 24 de janeiro de 1967 e que entrou em vigor 15 de março do corrente ano. No
capítulo IV (“Dos Direitos e Garantias e Individuais”), o artigo 150, inciso 1, proclamou:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, trabalho, credo religioso e
convicção políticas. O preconceito de raça será punido por lei.” e o inciso 8 do mesmo
artigo proclama novamente, entre outras coisas: “A publicação de livros, jornais e
periódicos independe de licença da autoridade. Não será, porém, tolerada a propaganda de
guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe.”452 A leitura das
forças de Segurança Nacional quanto ao “preconceito de raça” foi ainda reforçada em um
documento de 1968 da Escola Superior de Guerra, no qual defendem uma:

psicologia brasileira que preside o caldeamento das raças em nosso País: a


ausência de um verdadeiro preconceito racial, de que só encontramos paralelo
em Cuba, antes do regime do ditador Castro. Com um orgulho racial muito
reduzido o brasileiro gloria-se antes de não possuir um vero (sic) preconceito de
raças. As distinções sociais derivam ainda de um remanescente espírito de
nobreza, caracterizado hoje pelas diferenças de poder econômico, e pelo nível de

450
KOSSLING, Karin Sant’Anna. As lutas anti-racistas dos afro-descendentes sob a vigilância do DEOSP
(1964-1983). Mestrado (História). Universidade de São Paulo. 2007, p. 16.
451
KOSSLING, Karin Sant’Anna. As lutas anti-racistas dos afro-descendentes sob a vigilância do DEOSP
(1964-1983). Mestrado (História). Universidade de São Paulo. 2007, p. 41-43.
452
Constituição da República Federativa do Brasil de 1967.
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm> Acesso 24/04/2021.
163

educação, de mais fortemente distingue pessoas o grupo no Brasil. Mas a isto


não se pode chamar ‘preconceito racial’.453

O trecho acima é sintomático sobre a forma de interpretação então hegemônica nas


Forças Armadas, que governavam o país, quanto ao sofrimento do preconceito no Brasil:
não existiria preconceito racial, ou, conforme mobilizado, o “preconceito de cor”, mas
apenas por razão econômica ou pelo grau de instrução obtido através da educação formal.
E tal leitura fortalece o dimensionamento sobre a orientação do combate do regime à
“propaganda de preconceitos de raça”. A repressão da ditadura militar ao que considerava
“subversão”, por sinal, ampliou os seus mecanismos de atuação no ano de 1968. O governo
do general Costa e Silva, sucessor de Castelo Branco, apresentou mudanças quanto à
orientação política da ditadura vigente, adotando um modelo de nacional-
desenvolvimentismo conservador, ao mesmo tempo em que intensificava a perseguição e
repressão aos movimentos de resistência ao regime, em particular às guerrilhas armadas,
realizadas por grupos de esquerda. Como uma demonstração de força e união dos diversos
grupos que compunham o governo das Forças Armadas, em 13 de dezembro de 1968 foi
proclamado o Ato Institucional n°5, que previa o poder do governo federal de intervir nos
estados e municípios, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de
10 anos e cassar mandatos, entre outras ações. 454

Enquanto na vida política do país o autoritarismo da ditadura intensificava, a cena


musical na qual se enquadram os artistas oriundos da Bossa Negra também sofreu
alterações. Elza Soares lançou em 1968 dois álbuns. O primeiro, Elza Soares. Baterista:
Wilson das Neves, recordava a sonoridade samba-jazz, com solos de piano, naipe de sopros
e destaque para a bateria executada pelo músico apresentado no título. O disco continha
regravações de “Balanço Zona Sul”, primeiro relativo sucesso comercial de Simonal,
“Deixa isso pra lá”, do repertório de Jair Rodrigues - transformada em um interessante
samba-jazz -, as bossanovistas “Garota de Ipanema”, “O pato” e “Samba de avião”,
regravações de alguns sucessos de Elza (“Edmundo”, “Se acaso você chegasse” e “Mulata
assanhada”), entre outras. O outro LP foi o segundo volume de Elza, Miltinho e Samba, um

453
MORAES FILHO, B. “Elementos básicos da nacionalidade as instituições” In: Segurança e
Desenvolvimento, ano XVII, n. 130, Rio de Janeiro: Associação dos Diplomados da Escola Superior de
Guerra, 1968, p.53. Apud KOSSLING, Karin Sant’Anna. As lutas anti-racistas dos afro-descendentes sob a
vigilância do DEOSP (1964-1983). Mestrado (História). Universidade de São Paulo. 2007, p. 84. [A citação
está transcrita aqui conforme consta na dissertação]
454
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm> Acesso 24/04/2021. A referência
historiográfica sobre o AI-5 é extensa e o diálogo será aprofundado no decorrer do próximo capítulo desta
tese. Para uma leitura pontual e sintética, ver NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar
brasileiro. 2014, p. 83-94.
164

disco curto com mais uma série de regravações de canções mais antigas, em dueto. Ambos
os álbuns sem abordar o tema racial.

Jorge Ben teve no ano de 1968 mais um momento de pausa na carreira, sem lançar
nenhum trabalho fonográfico. Já Simonal, consolidava, com sucesso comercial, o formato
da Pilantragem. Em novembro de 1967 o cantor já havia lançado o seu segundo álbum do
ano, Alegria, Alegria, que apresentou as temáticas juvenis ou mesmo infantis de sua
proposta musical em canções como “Escravos de Jó”, “Vesti Azul” e “Nem vem que não
tem”, além de regravações de canções dos anos 1930 e 1940, como “Agora é cinza” e “Aos
pés da Cruz”, releituras de canções de Festival, como “Belinha”, entre outras, em arranjos
que destacavam a sonoridade jazzística e dançante. Em agosto de 1968, o álbum Alegria,
Alegria, vol. 2. ou Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga, repetiu a
fórmula e apresentou, entre outras, “Sá Marina”, canção que angariou sucesso à época, e
“Zazueira”, composição de Jorge Ben – o início de uma parceria e amizade entre Jorge e
Simonal. Os dois LPs de Simonal evidenciaram a seu público que o caminho apontado em
“Tributo a Martin Luther King” não demonstrava uma reorientação da carreira em direção
a um repertório dito engajado.

O ano de 1969, contudo, se mostrou um cenário profícuo na produção de uma


música brasileira com hibridações e interlocuções com a Black Music estadunidense. Esse
enunciado, no entanto, não cabe para a produção de Elza Soares no período, posto que os
dois álbuns que ela lançou no ano mantiveram as características demonstradas
anteriormente de forma mais convencional. O primeiro, Elza, carnaval & samba, lançado
no primeiro semestre, seguiu a sonoridade da gravação premiada da artista em “Sei lá,
Mangueira”: arranjos que destacavam principalmente a instrumentação percussiva,
incluindo o uso corrente de cuíca, surdo e tamborins, além dos naipes de sopros, com solos
de trombone, portanto, mantendo parte da sonoridade característica da cantora. A faixa de
abertura do álbum, “Bahia de todos os deuses”, sugere o tema associado à cultura negra
(Preto velho Benedito já dizia/ felicidade também mora na Bahia) e na música de trabalho
do disco, a faixa de abertura do Lado B, “Heróis da Liberdade”, há um coral reivindicando
Liberdade, senhor, em uma canção que evoca a memória da escravidão: Passava noite/
vinha dia/ o sangue do negro corria/ dia a dia/ De lamento em lamento/ de agonia em
agonia/ Ele pedia o fim da tirania/ (...) Com flores e alegria, veio a abolição. O segundo
álbum lançado por Elza em 1969 foi o terceiro volume de Elza, Miltinho e Samba,
repetindo a fórmula dos outros dois discos. Apesar dos dois LPs mais “tradicionais”, por
165

assim dizer, um compacto lançado por Elza em junho de 1969 incluiu uma versão de
“Chove Chuva”, de Jorge Ben, regravada com uma discreta - mas inovadora para a
sonoridade então registrada nos discos da cantora - guitarra elétrica.

O cenário de hibridação da música brasileira com a Black Music estadunidense em


1969 fica marcado pelo retorno fonográfico de Jorge Ben, com uma produção que
revolucionou a sua proposta musical. Após a aproximação com a Jovem Guarda expressa
em Bidú, silêncio no Brooklin, o seguinte hiato de gravação de Jorge, em 1968, coexistiu
com sua aproximação aos artistas do tropicalismo musical: uma vertente difundida dentro
do ambiente dos festivais da canção e que buscava dissolver as dicotomias que tomavam a
música brasileira, em prol de uma sonoridade dita “universal”, que conciliasse a noção de
uma tradição musical brasileira, com as inovações trazidas pela Música Popular Moderna e
os timbres elétricos do rock. O tropicalismo, capitaneado pelos artistas baianos Caetano
Veloso e Gilberto Gil, buscava, de dentro dos festivais, romper com impasses que se
instalavam em torno da institucionalização da chamada MPB, a Música Popular Brasileira,
a partir do modelo de produção musical difundido nos festivais. 455 O grupo obteve
destaque em 1967, com a participação em festival de Caetano Veloso interpretando sua
composição “Alegria, alegria” e Gilberto Gil, acompanhado do grupo Os Mutantes, com
sua composição “Domingo no parque”. Conforme o texto de Ana Maria Bahiana para a
reedição em Cd do disco Jorge Ben, de 1969:

Em meados dos anos 60, uma série de escolhas infelizes haviam descarrilhado a
carreira ascendente de Jorge Ben Jor. (...) E foi exatamente a Tropicália que
contribuiu para o resgate de Jorge, que se viu contratado por Guilherme Araújo e
incluído no elenco do programa de TV “Divino, Maravilhoso”. Não que os
tropicalistas influenciassem Jorge - era o contrário, a música de Ben surgia para
eles como a mais perfeita síntese de sua proposta estética. 456

A influência de Jorge aos tropicalistas foi evidenciada no primeiro álbum lançado


pelo grupo Os Mutantes, homônimo, em 1968, no qual Jorge participou tocando violão na
sua composição “A minha menina”. E duas composições suas foram incluídas no primeiro
álbum da cantora Gal Costa, também oriunda do movimento: “Que Pena” e “Deus é amor”.
Apesar de tal aproximação com a sonoridade elétrica rockeira da tropicália, o novo disco,
Jorge Ben, voltava a conceder destaque ao timbre do violão do compositor e não
apresentou instrumentos elétricos. No entanto, contou com arranjos, em duas faixas,

455
NAPOLITANO, Marcos. A república das bananas: o tropicalismo no panorama da MPB. In: Seguindo a
canção. Engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). 2010.
456
Ana Maria Bahiana. Texto de contracapa. Jorge Ben. Jorge Ben. Álbum. Philips. 1969. Cd. Universal,
2009.
166

assinados por Rogério Duprat, maestro responsável pelos audaciosos arranjos das canções
tropicalistas. O disco marcou, ainda, o retorno de Jorge à gravadora Philips, com assinatura
do texto de contracapa ficando a cargo, novamente, de Armando Pittigliani que destacou:
“A rítmica marcante de suas composições aliada ao incrível ‘balanço’ negróide de seu
violão ‘sui generis’ tornaram suas singelas letras meras pontuações de ritmo integradas em
um todo essencialmente selvagem e, ao mesmo tempo, lírico.”457 Contudo, apesar dos
arranjos do disco explorarem riffs do naipe de sopros, enriquecendo a execução realizada
pelo violão de Jorge, a sonoridade resultante não era próxima ao samba-jazz, tampouco
explicitava a incorporação de outras vertentes da Black Music estadunidense. A
originalidade da proposta musical criada por Jorge Ben a partir de 1969 – aliás, a fase mais
celebrada de sua discografia -, portanto, neste momento inicial, apesar de representar o
desenvolvimento do processo de hibridações realizado pelo artista, não é considerada pela
pesquisa desta tese como exemplo da sonoridade da Black Music Brasileira.

Embora a sonoridade expressa nas gravações de Jorge Ben a partir do LP de 1969


não explicite o diálogo com as vertentes da música negra estadunidense, como ocorria na
Bossa Negra, as letras de suas composições passaram a apresentar conexões transnacionais
com a realidade das comunidades negras estadunidenses, reaproximando, assim, da
Linguagem Política do Orgulho Negro. “Crioula”, a faixa de abertura desse disco,
evidencia a valorização não da categoria “mulata”, mas da mulher negra (Criola/ Uma
linda dama negra/ A rainha do samba/ Mais bela da festa/ A dona da feira/ Uma fiel
representante brasileira/ Criola/ Filha de nobres africanos/ Que por um descuido
geográfico/ Nasceu no Brasil/ (...) Você criola é o poder negro da beleza) e destaca, além
da ancestralidade africana dessa fiel representante brasileira - mas nascida no país por um
descuido geográfico -, que essa musa é o poder negro da beleza. Jorge trouxe para a
composição o termo “poder negro”, então emblemático nas lutas negras estadunidenses,
particularmente difundido pelo ativista Stockely Carmichael, que publicou em 1967 o livro
cujo título era o termo em inglês: Black Power.458 O termo, aliás, foi apresentado com
destaque na reportagem sobre os EUA na edição da revista Realidade de outubro de 1967.
A primeira faixa do Lado B do Lp, “Take it easy my brother Charles”, também apresentava
a conexão transnacional nos versos Take it easy, meu irmão de cor/ (...) Depois que o
primeiro homem/ maravilhosamente pisou na lua/ eu me senti com direitos/ com princípios

457
Armando Pittigliani. Texto de contracapa. Jorge Ben. Jorge Ben. Álbum. Philips. 1969.
458
CARMICHAEL, Stockely; HAMILTON, Charles V. Poder Negro, la politica de liberación em Estados
Unidos. 1976 (Edição mexicana).
167

e dignidade/ de me libertar/ por isso, sem preconceito eu canto. Além de trazer palavras
em inglês no diálogo com o irmão de cor - referenciando a fraternidade diaspórica negra
destacada parágrafos atrás -, a conexão entre o primeiro homem que pisou na lua (em
1969, o astronauta estadunidense branco Neil Armstrong realizou o feito), a dignidade e
libertação de preconceitos a partir dos direitos evoca o contexto racial dos EUA.

Se na produção de Jorge Ben em 1969 a identificação de diálogos com a sonoridade


Black estadunidense esteve pouco explícita, o contrário pode ser dito de Simonal. Nos dois
LPs lançados pelo artista em tal ano, há uma incorporação explícita dos gêneros musicais
da Black Music. O álbum Alegria, Alegria vol.3 ou Cada um tem o disco que merece,
lançado em abril de 1969, manteve o acompanhamento do Som Três, acrescido de um
naipe de sopros (três saxofones e dois trompetes) e um percussionista. É notável também a
incorporação de mudanças pelo Som Três, com o baixista Sabá passando a tocar também o
contrabaixo elétrico e o pianista César Mariano a incluir o piano e órgão elétricos. Os
arranjos foram de César e do maestro negro Erlon Chaves (que atuou no disco de 1965). O
disco documenta as canções gospel “Silêncio” (Eduardo S. Neto/Sérgio Bittencourt) e
“Aleluia Aleluia” (Antônio Adolfo/Tibério Gaspar); a composição soul “Mustang cor de
sangue” (Marcos Valle/Paulo S. Valle) e uma versão soul para a toada “Prece ao vento”
(Gilvan Chaves/ Alcyr P. Vermelho/Fernando L. Câmara Cascudo. Lançada em 1954 pelo
Trio Nagô e regravada em 1956 por Elizeth Cardoso), além do funk “What you Say”,
composição de Simonal cantada em inglês - “na língua da matriz”, como anunciado na
abertura da canção. A interpretação de composições de Jorge Ben não foi mantida nesse
álbum, mas compensada no compacto seguinte, lançado em agosto, com as canções “País
tropical/ Se você pensa”, que apresentou ao país, com enorme sucesso, a composição que
Jorge regravou em seu LP de 1969, interpretada por Simonal em um arranjo dançante de
soul jazz. Conforme a dissertação de Luciana Oliveira, ao mencionar da versão de Jorge
Ben: “Wilson Simonal, então o cantor mais famoso (e o mais bem pago) do país, que já
havia gravado País Tropical e feito da canção um estrondoso sucesso.”459

O lançamento seguinte de Simonal saiu em novembro de 1969, Alegria, Alegria


vol. 4 ou Homenagem à graça, à beleza, ao charme e ao veneno da mulher brasileira, que
fechou a série Alegria, Alegria com a mesma equipe do disco anterior e ressaltando, desde
o título do álbum, o impacto da canção “País tropical” - o subtítulo do disco é uma frase

459
OLIVEIRA, Luciana Xavier de. O swing do samba: uma compreensão do gênero samba-rock a partir da
obra de Jorge Ben Jor. Dissertação (Comunicação). Universidade Federal da Bahia. 2008, p. 125.
168

que Simonal incluiu em sua versão, na introdução da música. A incorporação do soul e o


funk neste álbum foi menos explícita do que a expressa no anterior, predominando arranjos
de sonoridade soul jazz, como era corrente na Pilantragem; mas ainda aparece forte nas
baladas soul “Evie”, cantada em inglês, e “Olho d’água”, e na introdução funkeada da
versão pilantragem da cantiga infantil “Eu fui no tororó”. E, tal qual o álbum anterior, em
nenhuma das canções a temática abordava a linguagem antirracista.

A produção musical de Wilson Simonal entre 1968 e 1969 não voltou a expressar a
Linguagem Política do Orgulho Negro. Contudo, os discos do cantor registram a
interlocução com a Black Music estadunidense, a partir da incorporação explícita dos
gêneros soul e funk. E em uma produção influente, afinal, segundo o biógrafo Ricardo
Alexandre sobre o ano de 1969, em comparação entre Simonal e o campeão em vendas de
discos, Roberto Carlos: “Naquele momento, o que se via era as vendagens de Roberto
caindo de 500 mil para 300 mil discos, e as de Simonal orbitando entre 500 e 600 mil.”460

A ampliação realizada por Wilson Simonal no leque de incorporação de


sonoridades da música negra dos EUA a partir de 1967, com “Tributo a Martin Luther
King” e a rápida adoção do soul e o funk, sugere uma atenção do artista para as novidades
surgidas nas paradas de sucesso estadunidenses na categoria musical Black Music. No
decorrer da década de 1960, o gênero soul obteve destaque comercial no país de origem e
houve a criação do funk. Segundo Carlos Calado, no livreto James Brown: “Lançado só em
maio de 1963, o álbum Live at the Apollo chegou ao segundo lugar na parada pop,
permanecendo entre os discos mais vendidos por 66 semanas.”461 O destaque para este
álbum deve-se por ser considerado um dos mais influentes do nome mais influente da
Black Music a partir dos anos 1960: James Brown. O músico soul lançou em 1965 a
canção “I got you (I feel good)”, que sinalizava para uma execução ainda mais dançante e
ritmada dentro da sonoridade soul, proposta que, conforme Carlos Calado, foi
desenvolvida, com impacto, dois anos depois:

Em “Cold Sweat”, Brown radicalizou. “Em algum momento de 1967, James


Brown concluiu que o fator mais opressivo na música era a tirania da progressão
de acordes. Então ele decidiu se revoltar fazendo música na qual as mudanças de
acordes eram supérfluas. O resultado foi o nascimento do funk moderno,
dividido nos lados A e B de um disco compacto”, sintetizou bem o crítico Dave
Marsh referindo-se a essa gravação, em seu livro The Heart of Rock & Soul.462

460
ALEXANDRE, Ricardo. Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 147.
461
CALADO, Carlos. James Brown. [Coleção Folha Soul & Blues, v, 3] 2015, p. 19.
462
CALADO, Carlos. James Brown. [Coleção Folha Soul & Blues, v, 3] 2015, p. 22.
169

James Brown não era o único cantor soul com grande impacto comercial no
período. Apenas no ano de 1967, o cantor negro Otis Redding consagrou-se no Monterey
Pop Festival, cantando no mesmo palco que astros brancos do rock, como Janis Joplin, The
Byrds, Canned Heat e Country Joe and The Fish e havia feito uma bem sucedida turnê na
Europa. Conforme Carlos Calado, no livreto Otis Redding: “Já em outubro desse mesmo
ano, os leitores da influente revista britânica Melody Maker elegeram Otis Redding como
‘vocalista n°1 do mundo.’ Pela primeira vez em dez anos, esse prêmio deixou de ser
entregue a Elvis Presley”,463 um indicativo do impacto do artista para além das plateias
negras de seu país. A carreira deste cantor, contudo, foi interrompida em dezembro de
1967, com o desastre aéreo que o matou.

Para além do sucesso da soul music, o impacto da proposta funk, recém criada por
James Brown, foi particularmente sentido em 1968. Tal impacto ocorreu com uma canção
composta por Brown a partir das revoltas ocorridas em bairros negros dos EUA após o
assassinato de Martin Luther King, em 4 de abril de 1968. Lançada em agosto, “Say it
loud, I'm black, I'm proud” era um funk dançante, com letra combativa. Novamente citando
Carlos Calado: “O impacto dessa canção ficou estampado nos hit parades: ‘Say it loud’
frequentou os primeiros lugares da parada de rhythm & blues durante três meses, além de
chegar ao décimo lugar na parada pop.”464

De tal forma, a adoção por Simonal dos gêneros pop da black music, soul e,
sobretudo, funk, explicitava a interlocução com uma produção recente de músicos negros
estadunidenses, ainda que fosse um desenvolvimento mais simples para um músico que já
se ancorava nas vertentes jazzísticas soul jazz e funky - com as quais os gêneros de música
pop citados dialogavam. E, assim como Simonal demonstrou estar atento a esses gêneros,
setores da indústria fonográfica brasileira também identificaram o potencial comercial da
música jovem (pop) negra oriunda dos Estados Unidos. O pianista Dom Salvador, músico
negro consagrado nos trios de samba-jazz, e figura que obteve enorme influência para a
música brasileira, esclareceu sobre isso em entrevista, ao comentar a respeito do impacto
do produtor Hélcio Milito para sua carreira:

Depois, fiz o disco Dom Salvador em 69, em que participaram alguns músicos
como o Cassiano, o baixista Paulo César Barros, o Laércio de Freitas e o Durval
Ferreira. Nessa época, o Hélcio tinha recém-chegado dos EUA. Estava tendo um
movimento lá fora da black music e ele voltou com a idéia de que eu era o cara

463
CALADO, Carlos. Otis Redding [Coleção Folha Soul & Blues, v. 10] 2015, p. 08.
464
CALADO, Carlos. James Brown. [Coleção Folha Soul & Blues, v, 3] 2015, p. 08, 09.
170

que poderia fazer um negócio desse no Brasil. Ele me mostrou um discos do Sly
& The Family Stone, Blood Sweat & Tears, Chicago e Kool & The Gang. Eu
achei que poderia fazer uma mistura. Aí surgiu o Abolição, a concepção foi dele
e a idéia foi minha. Eu fiz uma mistura, até choro a gente tocava. 465

Hélcio Milito, antes de ser produtor musical, foi baterista do grupo de samba-jazz
Tamba Trio, liderado pelo pianista Luiz Eça. E, conforme mencionado por Salvador, já
como produtor musical, Hélcio o convidou para formular no Brasil uma sonoridade soul e
funk, na linha da realizada pelos artistas estadunidenses citados. Uma primeira iniciativa
em prol do redirecionamento da carreira de Salvador foi a sugestão de Hélcio para a
mudança de seu nome artístico, conforme é explicitado na mesma entrevista com o
pianista, quando, perguntando sobre a origem do apelido “Dom”, diz: “O Hélcio Milito,
baterista do Tamba Trio, foi quem me deu esse apelido. Ele é um cara visionário, muito
inteligente. Disse que eu deveria procurar um nome mais artístico e sugeriu Dom. Eu
gostei e assim ficou.”466

Salvador vinha de uma carreira sólida como instrumentista, tendo tocado com Jorge
Ben, Quarteto em Cy e Simonal e atuado como pianista de Elis Regina na gravação do
álbum Samba eu canto assim, lançado em 1965. Entre 1965 e 1966, lançou quatro álbuns
autorais e instrumentais de Bossa Negra pelas gravadoras Philips e Mocambo. Na Philips,
em discos creditados ao Rio 65 Trio (Salvador ao piano, Sergio Barroso no baixo e Edison
Machado na bateria) lançou em 1965 o álbum Rio 65 Trio (que inclui sua composição mais
conhecida, “Meu fraco é café forte”) e A Hora e a vez da M.P.M (disco no qual o texto de
contracapa, de autoria de Armando Pittigliani, diz: “Mas a principal diferença entre o ‘iê-
iê-iê’ e a música moderna é que aquele, como uma mulher bonita e sem dotes de
inteligência, atrai mas não prende, enquanto a MPM tem mais profundidade, mais ‘miolo’,
mais base.”). E na Mocambo, creditados ao Salvador Trio (Salvador, Edson Lobo no baixo
e Victor Manga na bateria), lançou o LP Salvador Trio, em 1965, e (com a mesma
formação do Rio 65 Trio), Tristeza, em 1966. Os três primeiros discos seguiam a cartilha
do samba-jazz, notavelmente o primeiro, cujas performances, mesmo em canções já
conhecidas (“Desafinado”, “Minha namorada”) pouco evocavam o ritmo do samba, soando
mais nitidamente hard bop. O último disco citado, Tristeza, aproximou à sonoridade da
Jovem Guarda, com Salvador executando um órgão elétrico (em performance com
similitudes à de Lafayete, organista da banda de Roberto Carlos à época), mas também
465
Tatiana Queiroz. Após 35 anos, Dom Salvador grava disco brasileiro e se apresenta no Rio . Publicado em
27/07/2007. Disponível em: <http://www.musitec.com.br/revistas/?c=2472> Acesso 04/05/2020.
466
Tatiana Queiroz. Após 35 anos, Dom Salvador grava disco brasileiro e se apresenta no Rio . Publicado em
27/07/2007. Disponível em: <http://www.musitec.com.br/revistas/?c=2472> Acesso 04/05/2020.
171

aproximava das sonoridades então lançadas em discos da Black Music estadunidense,


como as dos organistas Booket T. e Sly Stone.

O retorno aos estúdios por Salvador, na CBS, em 1969, documentou o avanço das
mudanças apresentadas em seu último disco, acrescidas das influências sugeridas por
Hélcio Milito. O álbum instrumental Dom Salvador apresentava o pianista a partir da
identificação transnacional, afinal, o título do texto de contracapa anunciava: “Dom
Salvador. Síntese brasileira da música negra no mundo”. É interessante destacar a
construção da narrativa sobre a mudança de sonoridade do artista no texto de apresentação
do disco, pois diz que no “tempo em que ficou sem gravar, Dom Salvador aproveitou para
fazer uma pesquisa racional e em profundidade sobre a música do nosso tempo, buscando
um caminho que dissesse alguma coisa e que estivesse de acordo com o gosto do
público.”467 Concluindo o apagamento da sugestão do produtor Hélcio Milito em sua dose
de direcionamento comercial, o texto afirma: “Salvador considera este disco a sua primeira
oportunidade real para gravar o que queria e como queria. E é grato à CBS por isso.” Os
músicos participantes não são creditados no LP, mas, conforme informado pelo músico no
trecho de entrevista citado acima, incluiu o baixista branco Paulo César Barros (do grupo
de rock Renato & Seus Blue Caps, e que também tocava com Roberto Carlos e Erasmo
Carlos) e o jovem guitarrista paraibano negro Cassiano, então do grupo Os Diagonais. A
sonoridade do disco foi predominantemente elétrica, com uma guitarra rítmica onipresente
(sem solos), bateria estilo rock ou soul, contrabaixo elétrico em marcação convencional, e
destacando duetos entre piano (acústico ou elétrico) e órgão elétrico. Em duas canções, o
arranjo elétrico foi acrescido do uso de cuíca: “Folia de Reis” e “O Rio”. E cabe pontuar a
versão de “País tropical”, então sucesso de Simonal composta por Jorge Ben.

Um último disco lançado em 1969 que também evidenciou o trânsito de um músico


da Bossa Negra rumo ao Black Soul é o álbum International Hot, creditado a Raulzinho e o
Impacto 8, lançado pela gravadora Equipe. “Raulzinho” é o trombonista Raul de Souza,
músico negro que transitou entre as gafieiras e o samba-jazz e lançou em 1965 seu
primeiro LP como líder de gravação, o instrumental À vontade mesmo, pela gravadora
RCA - em estilo samba-jazz, com acompanhamento de Cesar Camargo Mariano, no piano,
Humberto Clayter, no contrabaixo e Airto Moreira, na bateria. Com o sucesso da proposta
da Pilantragem de Simonal, Raul de Souza participou do conjunto A Turma da

467
Texto de contracapa. Autoria não creditada. Dom Salvador. Dom Salvador. Álbum. CBS. 1969.
172

Pilantragem, com o qual gravou dois discos, 468 antes de enfim lançar o novo disco como
líder, em 1969. O conjunto Impacto 8 incluía o saxofonista e flautista Oberdan Magalhães,
os pistonistas (trompetistas) Bill Vogen e Sérgio, o baixista Romildo, o violonista e
guitarrista Fredera e o baterista Robertinho Silva, além do vocalista Betinho. O disco
intercala execuções instrumentais e com vocal, e repertório amparado em regravações de
músicas estadunidenses, como “I’ve got a feelin”, de James Brown (“I feel good”) e
“Cantaloupe Island” do pianista negro de jazz Herbie Hancock.

Contudo, se os álbuns instrumentais lançados por Dom Salvador e Raulzinho


definem a mudança de orientação de artistas oriundos da Bossa Negra, um último disco
lançado em 1969 ainda interessa ao argumento do primeiro capítulo desta tese, mas agora a
partir dos círculos da Jovem Guarda: Eva 2001, disco de estreia solo da cantora Evinha (ou
Eva). Ela integrava outro grupo de Doo Wop, Trio Esperança, junto aos irmãos Mário e
Regina. O Trio Esperança foi formado por os três irmãos mais jovens da família dos
integrantes dos Golden Boys, grupo que, conforme mencionado no início do tópico
anterior deste capítulo, iniciou a carreira na década de 1950 a partir do mesmo estilo
musical. O Trio Esperança gravou o primeiro disco em 1961 e lançou diversos compactos
e seis LPs no decorrer dos anos 1960, associados ao impacto da Jovem Guarda.

Em 1969, Eva foi convidada para lançar carreira solo. Seu primeiro álbum foi
lançado pela gravadora Odeon com texto de contracapa escrito por Wilson Simonal:
“Algum tempo atrás quando apareceu o Trio Esperança, todo mundo ficou vidrado. O Trio
é um tremendo sucesso. Embora as três vozes irmãs se harmonizassem divinamente,
poucas pessoas percebiam que ali se estava formando a futura ‘maior cantora do
Brasil’.”469 As canções do álbum apresentavam baladas soul de arranjos discretos, entre
naipe de sopros, guitarra elétrica discreta, órgão, bateria, contrabaixo e piano, mas cujo
destaque maior era concedido à voz da cantora. A canção que ficou mais conhecida do
disco - e uma das mais emblemáticas de toda a carreira da cantora - é a faixa de abertura, a
balada soul “Casaco Marrom (Bye, Bye, Ceci)”.

A temática predominante do álbum Eva 2001 é romântica. A única canção, no


entanto, passível de ser destacada em meio à temática discutida na presente tese é a
segunda faixa do Lado A, “Tigre da Esso que sucesso”. Ao retratar o efeito de “viagem no

468
< https://dicionariompb.com.br/raul-de-souza/dados-artisticos> Acesso 25/04/2021.
469
Wilson Simonal. Texto de contracapa. Eva. Eva 2001. Álbum. Odeon. 1969.
173

tempo e no espaço” possibilitado pelas telas dos aparelhos televisores, a letra da canção faz
uma alusão à questão racial nos EUA no verso: vim da Casa Branca, da causa negra, sem
me cansar. O verso sugere uma identificação do viajante andarilho que narra a canção com
a Linguagem Política do Orgulho Negro, ao apontar sua origem na causa negra e na
residência oficial do presidente da República estadunidense e sede oficial do poder
Executivo do país. No entanto, a temática não é explorada ou desenvolvida na letra da
canção, que apresenta imagens desconexas, aparentando uma bricolagem das referências
pop que se apresentam diante este andarilho.

Fig. 4: Eva. Eva 2001. Odeon. 1969. Extraído de: < https://immub.org/album/eva-2001> Acesso 26/04/2021.

Com os diversos lançamentos fonográficos demarcando a incorporação explícita de


sonoridades soul e funk, o ano de 1969 marcou o passo definitivo da transição de uma
Bossa Negra - que hibridava referências jazzísticas estadunidenses ao samba brasileiro e
remontava a sonoridade das Gafieiras - rumo à Black Soul, consagrada na década de 1970.

No decorrer da década de 1960, portanto, foi gerada e desenvolvida uma forma de


expressão de uma Black Music de criação e expressão brasileira, realizada, inicialmente
através da hibridação. Mas, a partir de 1967, essa vertente brasileira também foi executada
através da incorporação e reelaboração nacional de gêneros da música negra estadunidense.
174

Conclusão: “O fim do começo...”

A proposta deste primeiro capítulo constituiu em situar a leitora ou leitor desta tese
quanto ao objeto e tema desta pesquisa: a Black Music Brasileira e a expressão da
Linguagem Política do Orgulho Negro. Para tal intuito, o argumento defendido neste
capítulo é que o desenvolvimento da Black Music no Brasil ocorreu durante a década de
1960 e entre artistas de impacto no mercado fonográfico, tendo como pioneira Elza Soares.
A partir da Bossa Negra, foi localizada uma proposta alternativa à Bossa Nova, que
promovia hibridações do samba – sobretudo o subgênero Samba de Gafieira – com
sonoridades jazzísticas da Black Music estadunidense: as vertentes New Orleans, Hard
Bop, Soul Jazz e Funky. Na segunda metade da década ocorreu a consolidação da
Linguagem Política do Orgulho Negro, com a gravação do spiritual “Tributo a Martin
Luther King”, por Wilson Simonal. A canção marcou tanto a apropriação de interlocuções
mais explícitas das sonoridades estadunidenses, a partir não mais da hibridação, mas da
incorporação (sedimentando, de tal modo, a formulação de uma Black Music brasileira);
como a expressão de letras que articulavam a realidade das comunidades negras
estadunidenses e suas formas de reivindicação, à realidade de exclusão das comunidades
negras brasileiras, identificando uma experiência compartilhada.

A percepção de experiências compartilhadas quanto ao cotidiano e os desafios de


“ser negro” potencializou uma construção identitária que promove diálogos transnacionais:
uma forma específica de ler, compreender e comunicar a experiência racial a partir da
realidade da diáspora africana no continente americano (mas buscando como norte cultural
a experiência estadunidense) que a tese denominou por Linguagem Política do Orgulho
Negro. Assim, as temáticas nas letras das canções podiam ir ao encontro do movimento de
interlocução transnacional já realizado pelas sonoridades mobilizadas, ao hibridar ou
incorporar gêneros dos EUA.

Para realizar esse movimento, o capítulo propôs um recuo no recorte temporal da


tese, para demonstrar na primeira metade do século XX, durante os primórdios da indústria
fonográfica brasileira, a identificação de hibridações entre a música popular brasileira e
gêneros da música negra estadunidense, as race records. A necessidade da maior extensão
de tal recuo é justificada pela inexistência do argumento mobilizado entre a historiografia
então conhecida pelo autor desta tese, demandando, assim, maior consistência na análise
efetuada. A pesquisa sustentou que a primeira vertente de samba registrado no Brasil, o
175

estilo Cidade Nova, articulou hibridações com o gênero jazzístico New Orleans, em uma
sonoridade conservada entre as décadas de 1930 a 1960 nos ambientes das Gafieiras.
Também desde a década de 1920 a pesquisa identificou exemplos da expressão do
antirracismo por parte de compositores negros na música popular brasileira, no que foi
denominado Linguagem Política Negra Antirracista. A tradição de sonoridade do Samba
de Gafieira sustentou a produção de Elza Soares e do samba-jazz, no que foi etiquetado
como Bossa Negra a partir de 1960, o recorte inicial da tese.

De tal forma, na análise da Bossa Negra de Elza Soares, e, posteriormente, do


samba-jazz de Jorge Ben e Wilson Simonal foi possível perceber tanto as heranças e
diálogos com o histórico de hibridações documentado pela sonoridade do Samba de
Gafieira, quanto as inovações então trazidas pelas produções artísticas no contexto. Após a
pioneira Elza Soares, as produções de Jorge Ben e Simonal também foram associadas ao
padrão de hibridação do samba ao jazz que então caracterizava a concepção de
“modernidade” da Bossa Nova, mas trazendo articulações não ao cool jazz, como no
movimento consagrado por Tom Jobim e João Gilberto, mas ao subgênero jazzístico de
black music hard bop. De tal forma, as produções de Jorge Ben e Simonal foram
compreendidas durante a pesquisa como mais uma etapa e desenvolvimento da Bossa
Negra, ampliando os canais para a difusão da linguagem negra antirracista na canção.

Por fim, seguindo, sobretudo, a trajetória dos artistas associados à Bossa Negra, a
pesquisa localizou as primeiras evidências de incorporação no Brasil das sonoridades de
música jovem (ou, conforme atribuídas à época, música pop) soul e funk. Mas as canções
também evidenciaram os elementos de uma nova forma de expressão do antirracismo na
canção brasileira, o que a tese denominou de Linguagem Política do Orgulho Negro.

Feito o esforço inicial de definir e explorar os primórdios da Black Music


Brasileira, agora será possível prosseguir no objeto da pesquisa em seu momento de maior
produção, repercussão e consagração: a década de 1970.
176

Capítulo Dois:

De 1970 a 1978:

Ápice da estética Black e difusão no circuito comercial.

Dessa vida, nada se leva


Não sei por que vocês
têm tanto orgulho assim
Você sempre me despreza
Sei que sou negro,
mas ninguém vai rir de mim!
Vê se entende, vê se ajuda
O meu caráter não está na minha cor
O que eu quero, não se iluda,
O meu futuro é conquistar o seu amor.
Sou negro, sim
Mas ninguém vai rir de mim!
(Getúlio Cortês)
177

Introdução.

Rei da luta, Luther King.


Negro é o samba e o swing.
Nossa história está na cara,
na pele, no cabelo pixaim.
(...) Nossa luta tá no dia-a-dia,
mesmo que longe do fim.
Eu também tive um sonho,
igual ao de Martin Luther King.470
(Wilson Simoninha [Jair de Oliveira] 2008)

O olhar retrospectivo para as duas primeiras décadas do século XXI explicita uma
interessante reação da indústria fonográfica perante a crise no mercado de CDs: a reedição
do catálogo de álbuns de artistas de maior expectativa comercial a partir da criação de
livretos, com comercialização ampliada em bancas de jornais. O público consumidor de
CDs originais – termo difundido à época para qualificar aqueles produzidos pela indústria
fonográfica, diferenciando, assim, das reproduções caseiras, então chamadas de “CDs
piratas” ou a reprodução nas plataformas digitais – passou a ser seduzido por coleções que
ofereciam um fácil acesso à grande parte da produção de determinado cantor ou cantora.
As coleções traziam também um livreto explicando o contexto de cada disco reproduzido,
tudo isso facilitado pela distribuição semanal de um exemplar nas bancas de jornais de
todo o país e com um valor acessível (em média, de R$7,99 a R$19,99 cada livro-CD, em
todo o período de 20 anos do recorte citado). Concluindo a estratégia de vendas, além das
edições isoladas de cada álbum em livro-CD, comumente há a oferta de uma caixa fechada
e personalizada incluindo a coleção completa então produzida (o chamado box).

Possivelmente, a primeira entre essas coleções de livros-CD vendidas em bancas de


jornais dedicadas a um só artista foi a Coleção Chico Buarque, lançada pela editora Abril,
com 20 exemplares. A coleção incluiu 20 álbuns originalmente lançados entre as décadas
de 1970 e 1990, com a reprodução das capas e encartes originais e um livreto de 44
páginas em cada edição, contando tanto a biografia do artista, quanto créditos e a história
de produção de cada álbum.471 No ano seguinte, 2011, a editora Abril prosseguiu na
iniciativa com a Coleção Tim Maia, que, mais modesta que a do Chico, incluiu 14 livro-
CDs com as mesmas características da coleção anterior, abrangendo alguns dos álbuns
lançados pelo artista entre 1970 e 1997, incluindo um disco póstumo, ao vivo,

470
Wilson Simoninha. Rei da luta (Jair Oliveira). Melhor. Álbum. Som Livre. 2008. Faixa 04.
471
< http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/08/colecao-reune-20-cds-comentados-de-chico-
buarque.html> Acesso 06/05/2021.
178

originalmente lançado em 2007. No caso dessa coleção, o atrativo principal estava no


relançamento de dois então consagrados álbuns lançados por Tim e que há muito tempo
estavam fora de catálogo: Tim Maia Racional e Tim Maia Racional vol. 2, originalmente
lançados em 1975 e 1976; e ainda o Tim Maia Racional vol. 3, então inédito - e disponível
apenas como um bônus para quem comprasse a coleção completa. 472

Em 2012 a editora Abril lançou a Coleção Milton Nascimento, com 20 volumes,


incluindo todos os álbuns lançados pelo artista, no Brasil e nos EUA, de 1967 a 1990, entre
discos gravados em estúdio e ao vivo. 473 Ainda em 2012, a Innovant Editora aderiu ao
formato e lançou simultaneamente a Coleção Caetano Veloso e a Coleção Gilberto Gil, ,
em celebração aos 70 anos de vida dos artistas homenageados, cada uma delas com 20
títulos selecionados entre a obra de cada artista em um livreto de 32 páginas.474 Em 2013, o
Grupo Folha - que, até então, lançava coleções no formato livro-CDs dedicadas a gêneros
musicais, como Música Clássica, Jazz e Bossa Nova, e não a artistas isolados - aderiu à
iniciativa na Coleção Folha Tributo a Tom Jobim, distribuída pela editora MediaFashion, e
contendo 20 títulos do catálogo do artista em um livreto de 48 páginas.475 Por fim, em
2015, o Grupo Folha lançou o que, até o momento da redação desta tese, foi a última
iniciativa dedicada a um único nome, a Coleção Folha O Melhor de Elis Regina, com 25
livros-CDs abordando a obra e Elis entre 1965 e 1980, incluindo 4 discos de raridades. 476

Em todas as coleções de livro-CDs até então lançadas, incluindo as dedicadas a


gêneros musicais ou as em tributo ao catálogo de somente um artista, a única referente à
Black Music Brasileira foi a Coleção Tim Maia. Para além da expectativa comercial e da
importância da obra de Tim para a música brasileira, a seleção do catálogo também fornece
uma evidência da centralidade da produção do artista para o que é considerada a música
Black no Brasil. Afinal, conforme expresso no primeiro volume da coleção, dedicado ao
álbum de estreia do cantor:

Tim Maia 1970, como o disco ficou conhecido é, segundo muitos críticos, o
álbum responsável pela introdução e popularização do soul, a moderna música
negra americana, no Brasil. Mais que importar o ritmo, Tim tropicalizou-o,

472
< https://oglobo.globo.com/cultura/colecao-de-discos-de-tim-maia-vendida-em-bancas-com-album-
inedito-2821686> Acesso 06/05/2021.
473
< https://www.discogs.com/pt_BR/label/1062398-Cole%C3%A7%C3%A3o-Milton-Nascimento> Acesso
06/05/2021.
474
< https://musicapave.com/artigos/box-de-livros-cds-celebram-as-carreiras-de-caetano-e-gil/> Acesso
06/05/2021.
475
< https://tomjobim.folha.com.br/colecao.html> Acesso 06/05/2021.
476
< https://promoelis.folha.com.br/#about> Acesso 06/05/2021.
179

temperando-o com variedades locais como o samba, o xaxado, e a bossa nova. O


resultado é sensacional.477

Conforme é informado no trecho citado, a Coleção não está sozinha em atribuir a


Tim Maia a introdução da sonoridade soul no Brasil. Doze anos antes, em 1999, a Editora
Jorge Zahar publicou o Guia da MPB em CD: uma discoteca básica da música popular
brasileira. O autor, o jornalista Antonio Carlos Miguel, abre o livro dizendo: “Mais do que
um prefácio, esta abertura é uma denúncia do descaso por parte da indústria do disco no
Brasil em relação à MPB.”,478 referindo à então carência de relançamentos em CD da
produção da nossa música popular. O verbete dedicado à Tim Maia, com a indicação de
quatro álbuns, inicia apresentando-o: “Introdutor da soul music no Brasil, esse carioca de
vozeirão e personalidade fortes deixou mais de 30 álbuns.”479 Uma publicação mais
recente – e abrangente – dedicada à sonoridade Black no Brasil, 1976. Movimento Black
Rio, escrita por Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe e publicada em 2016
pela editora José Olympio, apresenta: “Sebastião Rodrigues Maia, talvez o personagem
mais representativo de uma nova safra musical da MPB, classificada no subgênero samba-
soul justamente pelo pioneirismo de misturar a música brasileira a elementos do soul e do
funk norte-americanos.”480

Na produção acadêmica, o livro A cena musical da Black Rio. Estilo e mediações


nos bailes soul dos anos 1970, fruto da tese de doutorado em Comunicação Social de
Luciana Xavier de Oliveira, ao retratar o “momento-chave para a configuração de uma
cena de black music brasileira [, ressalta] as trajetórias midiáticas de artistas como Tim
Maia, Jorge Ben Jor e Dom Salvador”; e cita o brasilianista Bryan Mcann, que “postulou
que o primeiro álbum de Tim Maia (Tim Maia, 1970. Polydor) ‘inaugurou o Soul
Brasileiro como um subgênero vocal musical’, afirmando que o cantor foi uma espécie de
retransmissor da cultura negra norte-americana”.481 A tese de doutorado do cientista social
Carlos Eduardo A. Paiva, Black Pau: a soul music no Brasil nos anos 1970, embora não
nomeie Tim como o inaugurador da soul music, tem sua estrutura construída a partir da
trajetória biográfica do cantor e destaca já na introdução: “De fato, no ano de 1970 a soul

477
GANDRA, José Ruy. Tim Maia 1970. (Coleção Tim Maia, v. 1). Abril Coleções. 2011, p. 7. Grifo nosso.
478
MIGUEL, Antonio C. Guia da MPB em CD: uma discoteca básica da música popular brasileira. 1999, p.
9.
479
MIGUEL, Antonio. Guia da MPB em CD: uma discoteca básica da música popular brasileira. 1999, p.
254. Grifo nosso.
480
PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. SEBADELHE, Zé Octávio. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 33.
481
OLIVEIRA, Luciana Xavier. A cena musical da Black Rio. Estilo e mediações nos bailes soul dos anos
1970. 2018, p. 89.
180

music se faria ouvir com o lançamento do primeiro disco de Tim Maia, as investidas
sonoras de Jorge Ben e a consagração performática de Tony Tornado no V Festival
Internacional da Canção (V FIC).”482 A dissertação em Música de Eloá Gabrielle
Gonçalves, Banda Black Rio: o soul no Brasil da década de 1970, informa que “Um dos
exemplos importantes de se ressaltar quando se trata dos precursores da soul music e do
funk no Brasil é o cantor e compositor Tim Maia. Em 1959, o artista que seria tido como
um dos ‘pais do soul brasileiro’ iniciava sua estadia nos EUA, que durou cerca de cinco
anos.”483 Retrocedendo ao ano de 1979, na crítica musical também é localizada tal
atribuição, como em Importação e assimilação: rock, soul e discotheque, artigo da
jornalista Ana Maria Bahiana publicado por Adauto Novaes na obra panorâmica Anos 70:

Com a soul music - e, de um modo mais abrangente, com os modos negros e


americanos de fazer música - já se deu um processo parecido com o do rock.
Surgiu, num primeiro momento, uma leva de compositores, cantores e grupos
voltados à cópia dos cânones exatos da soul music americana – alguns, como
Tim Maia e Cassiano, vindos de uma reverência mais antiga ao gênero, já nos
anos 60. E, com exceção quase única destes dois, este bloco de artistas foi
rapidamente esquecido – tanto pelo público aficionado de soul, que continuou
preferindo a música original, quanto por outras plateias em potencial.484

No trecho citado acima, Ana Maria Bahiana localiza a referência de Tim Maia
ainda na década de 1960, antecipando, portanto, em relação ao lançamento do primeiro LP
gravado pelo artista e a conquista de enorme sucesso popular. A mesma localização
temporal foi feita por Luciano Marsiglia na reportagem Desarmado e Perigoso: como o
movimento Black Rio apavorou a ditadura militar (Orgulho Negro. 1976-1977), publicada
na edição especial “História do Rock Brasileiro. Anos 70”, da revista Super Interessante,
de novembro de 2004. Ao mencionar sobre a difusão da sonoridade na indústria
fonográfica da segunda metade da década de 1970, a reportagem menciona: “A Phonogram
tinha dois tradutores do soul: Tim e Cassiano. Desde 1968, Tim difundia o gênero.”485
Conforme será abordado neste segundo capítulo da tese, as duas publicações referenciam a
trajetória artística de Tim Maia, que lançou dois discos compactos entre os anos de 1968 e
1969 sem repercussão comercial e apareceu em quadros do programa televisivo Jovem
Guarda, antes de conseguir lançar o LP de estreia.
482
PAIVA, Carlos Eduardo Amaral de. Black Pau: a soul music no Brasil nos anos 1970. Tese (Doutorado
em Ciências Sociais). Universidade Estadual Paulista. 2015, p. 5.
483
GONÇALVES, Eloá Gabrielle. Banda Black Rio: o soul no Brasil na década de 1970. Dissertação
(Mestrado em Música). Universidade Estadual de Campinas. 2011, p. 32.
484
BAHIANA, Ana Maria. Importação e assimilação: rock, soul e discotheque. In: NOVAES, Adauto. Anos
70: ainda sob a tempestade. [original de 1979] 2005, p. 59.
485
MARSIGLIA, Luciano. Desarmado e perigoso: como o movimento Black Rio apavorou a ditadura
militar. In: Revista Super Interessante [Coleção História do Rock Brasileiro, vol.02.]. Novembro de 2004, p.
66.
181

A presente tese não localizou na produção musical de Tim Maia a inauguração e


difusão inicial das sonoridades da Black Music no Brasil. Conforme defendido no
argumento central do primeiro capítulo, no decorrer dos anos 1960, outros artistas tiveram
sucesso comercial no gênero. Porém, a pesquisa reconhece a importância da obra de Tim
para a sedimentação do gênero e sua grande visibilidade nos anos 1970, o que configurou o
período como o ápice do impacto cultural e da difusão enquanto produto comercial.

O texto de Ana Maria Bahiana, originalmente publicado em 1979, ainda afirma


que, em seu contexto de publicação, 1979, o grupo de artistas da soul music tinha sido
“rapidamente esquecido”. Embora a pesquisa que resultou nesta tese identifique certo tom
de exagero na afirmação da jornalista, é necessário reconhecer que no ano de 1979 o soul
encontrava-se em declínio no mercado de bens culturais do Brasil, principalmente quando
comparado com a sua difusão entre os anos de 1975 e 1977, o auge. De tal forma, o recorte
temporal deste segundo capítulo estuda a produção musical da Black Music Brasileira
lançada entre os anos de 1970 e 1978, abarcando obras de artistas remanescentes da década
de 1960, e também de artistas negros que conquistaram relevância no mercado fonográfico
entre 1970 e 1977. Ou seja, artistas que se destacaram na indústria fonográfica em 1978,
como Zezé Motta e Don Beto, serão retratados apenas no terceiro capítulo desta tese.

O contexto histórico brasileiro no qual ocorreu o ápice e a difusão da Black Music


brasileira é marcado pelas contradições do chamado “milagre econômico” brasileiro. Se,
por um lado, potencializou a “modernização autoritária” que beneficiou a indústria
fonográfica, ampliando as condições para que grande parte da produção musical analisada
fosse lançada (e, portanto, permitindo que mais desses artistas negros divulgassem seu
trabalho e a linguagem do orgulho negro); por outro, tal processo agravou a desigualdade
social no país e a exclusão das pessoas pobres – que são, em sua maioria, negras.

Esse elemento é destacado já na introdução deste capítulo para fugir a uma possível
ilusão quanto à relação entre as mensagens das canções e o público atingido pela
vendagem dos discos. Infelizmente, a pesquisa realizada para esta tese não foi capaz de
acessar os dados sobre as canções executadas nas rádios, o que poderia informar sobre o
consumo, ou acesso às canções, por aquelas pessoas que não tinham condições econômicas
para comprar discos. Para exemplificar a dimensão sobre o acesso aos discos, em um relato
instigante disponibilizado na internet, de autoria creditada a 'O Eremita, ao informar sobre
a “Cena rockeira no Brasil nos anos 70”, o autor, que apresenta sua família no período
182

como situada na classe média baixa, informa: “Os discos eram muito caros. Pouca gente
tinha condição de ter muitos discos. Comprar um LP, pelo menos no meu ambiente, era um
acontecimento. A gente anunciava: ‘tal dia eu vou comprar um disco!’.”486

Além dos valores necessários para comprar os discos, maiores condições


econômicas eram exigidas para adquirir os aparelhos de reprodução, os toca-discos,
produtos de maior valor agregado. Segundo Renato Ortiz, no livro A moderna tradição
brasileira, ao pensar os anos 1960 e 1970: “Durante o período que estamos considerando,
ocorre uma formidável expansão, a nível de produção, de distribuição e de consumo da
cultura; é nesta fase que se consolidam os grandes conglomerados que controlam os meios
de comunicação e da cultura popular de massa.”487 Ainda conforme o autor: “Entre 1967 e
1980, a venda de toca-discos cresce 813%. Isto explica por que o faturamento das
empresas fonográficas cresce entre 1970 e 1976 em 1.375%.”488 Contudo, é sempre
necessário ponderar sobre os excluídos de tal expansão. Por exemplo, Marcia Tosta Dias,
em Os donos da voz, informa que “em 1970, 24% dos domicílios brasileiros tinham
televisão” e 58,9% apresentavam aparelhos simples de rádio;489 o que significa, portanto,
que 76% dos lares do Brasil não tinham acesso a aparelhos de TV e 41,1% dos lares não
possuíam aparelhos de rádio. Em 1980, segundo a mesma autora, os aparelhos de TV já
estavam em 56,1% dos lares brasileiros e os de rádio em 76,2%.490 Ou seja, 43,9% dos
domicílios permaneciam excluídos do acesso à TV e 23,8% do acesso doméstico às
emissoras de rádio. Portanto, muitas são as limitações de acesso ao produto comercial
“disco” (particularmente os álbuns), sobretudo para os setores sociais excluídos, em um
cenário de agravamento da pobreza e desigualdade social por efeito do “milagre”.

Embora não seja o objetivo desta pesquisa analisar a recepção das músicas e discos,
mas sim os discursos emitidos no formato canção (por isso a concentração da tese apenas
em músicas efetivamente lançadas, e na forma como foram gravadas), serão referenciados
na tese os dados obtidos através da pesquisa no acervo do IBOPE491 e outros obtidos

486
O Eremita. Discografia comentada do Deep Purple. Os discos de estúdio . [1° versão de 2012] Versão
10.2. Janeiro de 2021, p. 11. Disponível em: < http://www.arquivosdoeremita.com.br/> Acesso 06/05/2021.
487
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 1988, p. 121.
488
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 1988, p. 127.
489
DIAS, Marcia T. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008, p.
56.
490
DIAS, Marcia T. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008, p.
56.
491
Os dados disponíveis no acervo digitalizado do Arquiv o Edgar Leurenroth, da Unicamp, informam apenas
do consumo nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, em todo o recorte do capítulo (1970-1978) e da
cidade de Recife, entre 1971 e 1977. Os dados também não informam percentuais ou números de vendas,
183

através da bibliografia lida. Tais dados ajudam a apontar álbuns que conquistaram maior
repercussão e sucesso comercial, justificando o investimento da indústria fonográfica em
mais artistas, com a expectativa de angariar grandes vendas. Mas, conforme ressaltado nos
parágrafos anteriores, deve-se ter em mente que o consumo de discos é uma fonte histórica
limitada, posto que retrate, sobretudo, setores das classes médias e elites econômicas. E
ainda pode-se ressaltar, além da localização econômica do consumo, a incerteza quanto à
cultura de consumo de discos, de modo que o grande número de vendas de um
determinado disco de um determinado artista não significa que a maior parte desse público
permaneçerá acompanhando toda a produção seguinte lançada por esse/a artista. Afinal,
conforme destacado por Sam Inglis, na obra O livro do disco. Harvest. Neil Young:

Qualquer que seja o ano, há sempre um punhado de álbuns que vendem milhões
de cópias não porque atraem os fãs de música, mas porque de alguma maneira
provocam uma reação emocional em ouvintes casuais. É relativamente fácil
vender discos a leitores religiosos de revistas de música que passam as tardes de
sábado vasculhando as prateleiras das lojas de disco. O problema é que não há
muitas pessoas desse tipo. O Santo Graal da indústria fonográfica não são os
discos que recebem críticas entusiasmadas e a admiração de um exército de
especialistas, mas aqueles que são comprados por pessoas que só compram um
disco por ano.492

Tais pontos estão sendo ressaltados para reafirmar que o maior interesse no sucesso
comercial de artistas e álbuns informa, a esta tese, sobre o potencial de incentivo à
indústria fonográfica para gravar outros LPs e artistas considerados de proposta musical
similar. Portanto, embora a vendagem forneça indícios do alcance da difusão (devido ao
pressuposto que discos com maiores vendas contenham músicas mais tocadas nas
emissoras de rádio), o argumento do capítulo prioriza o “efeito polinizador” da indústria
em difundir discursos da Linguagem Política do Orgulho Negro. Essa perspectiva orientou
a análise do lançamento de uma maior quantidade de artistas e obras, posto que o mercado
fonográfico da Black Music Brasileira foi ampliado sobretudo entre 1975 e 1977, após o
sucesso e visibilidade de alguns artistas no início da década, como Tim Maia e Toni
Tornado. A atenção aos anos 1970 revela também a difusão de uma forma de se portar e
vestir, uma moda soul, ou black, que se caracterizava por roupas e penteados informados
por uma forma de expressar a “cultura negra”.

São esses elementos, e a dimensão política que perpassa por eles, que serão
estudados no decorrer das próximas páginas.

apenas a colocação nas listas de mais vendidos do período. Fundo: Ibope. Série: PD Pesquisa de Venda de
Discos.
492
INGLIS, Sam. O livro do disco. Harvest. Neil Young. Trad. Diogo Henriques. Ed. Cobogó. 2016, p. 51.
184

2.1. A Primavera Soul no Brasil. (1970-1974).

A eclosão da música Black Music no mercado fonográfico brasileiro durante o ano


de 1970 evidenciou a catalisação de um processo impulsionado nos últimos anos da década
de 1960, ao menos desde o segundo semestre de 1967, com o lançamento do spiritual
“Tributo a Martin Luther King” por Wilson Simonal. A referência à mais expressiva
liderança do movimento pelos Direitos Civis à população negra estadunidense,
potencializada pelo sucesso comercial da canção, de certa forma antecipou a repercussão
midiática do ativista e pastor Luther King no Brasil no ano seguinte.

Em 04 de abril de 1968, Martin Luther King foi assassinado, baleado na varanda de


um hotel na cidade estadunidense de Memphis, onde estava em apoio a uma greve de garis.
Em seu último discurso, um dia antes do assassinato, o pastor anunciou que sofria ameaças
e avisou: “Talvez não chegue até lá com vocês, mas quero que saibam que nós, como um
povo, chegaremos à terra prometida.”493 O ativista, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em
1964, há anos atacava em seus discursos a “posição imperialista dos EUA” no Vietnam.
Fazia ataques também ao capitalismo - sem aderir ao comunismo -, particularmente quanto
à ampliação da pobreza, combatia a desigualdade social, o desemprego (reconhecia que as
pessoas negras são as primeiras a perder o emprego em um cenário de crise e as últimas a
recuperá-lo) e o déficit habitacional. Após seu assassinato, uma atmosfera de revolta
atingiu parcelas da comunidade negra, com rebeliões violentas ocorrendo em mais de 100
cidades dos EUA, resultando em um saldo de mais de 40 mortos, 3.500 feridos e 27 mil
presos no país.494 Assim, se o ano de 1968 é muitas vezes recordado pela rebeldia jovem,
que tem como evento símbolo o “Maio de 1968” francês, 495 nos EUA um marco da luta
nas ruas contra o autoritarismo foi a revolta das pessoas negras.

No Brasil, segundo a biografia “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de
Wilson Simonal, escrita pelo jornalista Ricardo Alexandre: “Quando King foi assassinado,
em abril de 1968, a TV Record montou um programa chamado Tributo a Martin Luther
King. Conduzido por Simonal e produzido por Miele e Bôscoli, o show reuniu 15 negros

493
Mundo em 1968: ativista negro Martin Luther King é assassinado nos EUA. Folha de São Paulo.
04/04/2018. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/04/mundo-em-1968-ativista-
negro-martin-luther-king-e-assassinado-nos-eua.shtml> Acesso 13/05/2021.
494
Mundo em 1968: ativista negro Martin Luther King é assassinado nos EUA. Folha de São Paulo.
04/04/2018. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/04/mundo-em-1968-ativista-
negro-martin-luther-king-e-assassinado-nos-eua.shtml> Acesso 13/05/2021.
495
HOBSBAWM, Eric. Maio de 1968. In: Pessoas Extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. 1998, p.
305-323.
185

no mesmo palco.”496 Entre os artistas reunidos, a cantora Rosa Marya Colin, apadrinhada
por Simonal, declarou: “No Brasil o racismo toma a forma mais odiosa, pois é social, com
uma aceitação aparente”; já Simonal, segundo o jornalista, “preferiu falar pouco ‘para não
transformar Luther King em objeto’ e fez a sua parte cantando, lendo discursos do pastor e
apresentando o programa.”497 Não foi possível localizar quais discursos foram lidos por
Simonal no programa, mas, para o público interessado em tal leitura, em junho de 1968 a
editora Expressão e Cultura publicou Grito de Consciência, livro que incluiu a transcrição
em português de cinco emissões radiofônicas de Luther King, transmitidas entre novembro
e dezembro de 1967 no Canadá. Já no primeiro discurso transcrito nessa obra é possível
recordar de “Tributo a Martin Luther King” e compreender o potencial político da
sonoridade spiritual na canção; afinal, segundo Luther King: “Os nossos spirituals, hoje
tão apreciados no mundo inteiro, frequentemente eram códigos. Referíamo-nos ao ‘céu’
que nos esperava e os feitores não percebiam que não estávamos falando do reino de Deus.
Céu significava o Canadá, e os negros cantavam sua esperança de chegar até lá”,
explicando o uso da canção religiosa como expressão de expectativas e até de instruções
cifradas para fugas rumo a uma região na qual não imperava a instituição escravista. 498

Ainda em junho de 1968, Elza Soares gravou uma versão de “Tributo a Martin
Luther King”, embora o lançamento da regravação, por razão desconhecida, ficou
arquivado até 1970.499 Também em 1968 foi publicado O Negro Revoltado, livro
organizado por Abdias Nascimento que “reúne vários trabalhos apresentados ao I
Congresso do Negro Brasileiro, promovido pelo Teatro Experimental do Negro, no Rio de
Janeiro, entre 26 de agosto e 4 de setembro de 1950.”500 Curiosamente, essa edição não foi
mencionada na biografia Abdias Nascimento, escrita por Sandra Almada, mas o ano de
1968 é referenciado no livro pelo auto exílio do intelectual nos EUA, que duraria treze
anos: “Foi nesse ano que Abdias partiu para um exílio ‘voluntário’, isto é, condicionado
pela situação de insegurança gerada pela ‘revolução’ de 1964 com seus inquéritos policiais
militares (IPMs) arbitrários, abrindo caminho para as torturas e assassinatos de
oposicionistas.”501 É interessante destacar esse cenário intelectual da produção antirracista

496
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 102.
497
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 102,
103.
498
KING, Martin Luther. Impasses nas relações raciais. In: Grito de Consciência. 1968, p. 15, 16.
499
Marcelo Fróes. Texto do Encarte. Elza, Miltinho e Samba, vol. 3/Sambas e mais sambas. Odeon. CD Elza
Soares 1969/1970. Box. Negra, vol. 7. 2003, p. 06.
500
NASCIMENTO, Abdias do. O Negro Revoltado. 2. ed. 1982, p. 59.
501
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento. [Coleção Retratos do Brasil Negro]. 2009, p. 92,93.
186

no Brasil do final da década de 1960, pois, conforme mencionado no final do capítulo


anterior, a memória dos militantes do movimento negro da década de 1970 entrevistados
na obra História do Movimento Negro no Brasil, ressalta apenas uma edição da revista
Realidade, publicada em 1967 - de acesso facilitado, por ser encontrada nas bancas.

O ano de 1968 ainda apresentou o destaque de artistas da Black Music nos dados de
vendas de discos no Brasil, com o lançamento de compactos de Otis Redding (a partir de
maio, com “The dock of the bay”) e Aretha Franklin (a partir de novembro, com a gospel
“I say a little prayer”) entre as mais vendidas nas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo. 502
O “rei da juventude” brasileira, Roberto Carlos, lançou nesse ano o álbum O inimitável,
marca de uma transição de sonoridade, deixando a “Jovem Guarda” rumo ao que é
considerada a maturidade musical do artista. Nesse álbum, elementos da black music
aparecem em canções como “Se você pensa” (na execução da guitarra e do naipe de
sopros), “Eu te amo, te amo, te amo” (no naipe de sopros e nos arranjos vocais de fundo),
“As canções que você fez para mim” (vocais de fundo e no solo de órgão elétrico) e nas
canções soul dançantes “Ciúme de você” e “Não há dinheiro que pague” (ambas com
execuções de guitarra funkeada, naipe de sopros e inflexão vocal soul).503 No lado
Tropicalista da cena musical brasileira, o álbum de estreia de Gal Costa foi gravado em
1968, mas lançado pela gravadora Philips em março de 1969. O LP Gal Costa, embora
comprometido com as hibridações com o rock, apresenta elementos de Black Music na
regravação de “Se você pensa” (execução da guitarra e o naipe de sopros), “Vou
recomeçar”, outra composição de Roberto e Erasmo Carlos (na condução do contrabaixo
elétrico e da bateria), e no naipe de sopros de “A coisa mais linda que existe”. 504

Em 1969 a Black Music estadunidense apareceu nas paradas de sucesso brasileiras


em compactos com o canto soul adocicado de Marvin Gaye (creditado “E as uvas
falaram”, o que deve ser o compacto “I heard It Through the Grapevine”, lançado nos EUA
em outubro de 1968) e de Stevie Wonder (“My cheriè amour”, lançado nos EUA em
1969).505 Ambas as gravações lançadas pela Motown Records, gravadora de central
importância na formulação da música negra jovem, a Black Music estadunidense, junto à

502
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação:
PD 007 e PD 008.
503
Roberto Carlos. O inimitável. Álbum. CBS. 1968. CD. Columbia/Sony Music. 2015.
504
Gal Costa. Gal Costa. Álbum. 1969. Philips. CD. Universal Music. 2010.
505
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação:
PD 009 e PD 010.
187

sua maior rival na proposta musical, a Stax Records (na qual gravava Otis Redding, citado
no parágrafo anterior).

A Motown foi fundada em 1959 pelo empresário negro Berry Gordin Jr. e angariou
forte projeção durante a década de 1960, quando ajudou a moldar as características do que
foi chamado de Pop Music, a partir da Black Music, através de uma fórmula de produção
musical em estilo “linha de montagem”. Os artistas que gravavam pela Motown
executavam canções com um mesmo grupo de instrumentistas de estúdio (chamados The
Funk Brothers) e de um mesmo grupo de compositores, chamados The Corporation (Brian
Holland, Edward Holland Jr., Lamont Dozier, Smokey Robinson e o próprio Berry Gordin
Jr.). Assim, segundo o jornalista e crítico musical Mauro Ferreira: “Na primeira metade
dos anos 1960, a companhia já dominava as paradas de soul, R&B e até pop, no caso do
repertório das Supremes.”506 Enquanto a Motown muitas vezes priorizava arranjos
“adocicados”, com o uso de cordas e vocais de apoio doo wop, a Stax Records, fundada em
1957 pelos irmãos brancos Jim Stewart e Estelle Axton, sem fixar compositores, focava as
execuções no gospel, blues, soul e funk através da banda de estúdio Booker T. & The
M.G.’s (formado pelos negros Booker T. Jones no órgão e piano elétrico e Al Jackson Jr.
na bateria, e os brancos Steve Crooper na guitarra e Donald “Duck” Dunn no contrabaixo),
que também lançava discos próprios, e o grupo de sopros The Bar-Keys.507

Entre artistas brasileiros, em 1969, além da ampliação das sonoridades da Black


Music nas canções de Simonal e Eva e nos discos instrumentais de Dom Salvador e
Raulzinho & Impacto 8, conforme abordado no capítulo anterior, Roberto Carlos lançou
um novo álbum que consolidava sua transição ao que foi considerada sua maturidade
artística. O LP de 1969, Roberto Carlos, destacou duas canções abertamente funk (e de
sonoridades muito parecidas entre si, aliás), a faixa 03 do Lado A, “Nada vai me
convencer”, de Paulo César Barros, e a faixa 01 do Lado B, “Não vou ficar”, de Tim Maia.
Tim, um jovem negro, era oriundo do bairro Tijuca, no Rio de Janeiro, o mesmo de
Erasmo Carlos e Jorge Ben. Tim era amigo de infância principalmente de Erasmo e na
adolescência formou a banda amadora The Sputniks, com Erasmo e Roberto Carlos, antes
506
FERREIRA, Mauro. Diana Ross & The Supremes. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 6]. 2015, p. 09, 10.
Sobre a Motown ver também: CALADO, Carlos. Stevie Wonder. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 1]. 2015;
CALADO, Carlos. Marvin Gaye. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 2]. 2015; GARCIA, Lauro Lisboa.
Jackson 5. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 5]. 2015; FERREIRA, Mauro. Gladys Knight & The Pips.
[Coleção Folha Soul & Blues, v. 11]. 2015; e FERREIRA, Mauro. Smokey Robinson. [Coleção Folha Soul &
Blues, v. 15]. 2015.
507
Sobre a Stax Records, CALADO, Carlos. Otis Redding. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 10]. 2015. E <
https://en.wikipedia.org/wiki/Booker_T._%26_the_M.G.%27s > Acesso 14/05/2021.
188

de decidir migrar para os Estados Unidos, vislumbrando uma oportunidade em uma


viagem realizada pela igreja católica de seu bairro. Após viver nos EUA entre 1959 e 1964,
foi deportado por participar de uma série de delitos. Ao voltar ao Brasil, descobriu o
sucesso de Roberto e Erasmo na Jovem Guarda. Com o aval de Roberto, Tim participou de
algumas edições de programas da TV Record e lançou pela CBS (gravadora à qual Roberto
Carlos era contratado) em 1968 um disco compacto com suas composições soul “Meu
país/Sentimentos” sem conquistar repercussão de vendas ou de crítica. 508

A gravação de “Não vou ficar” por um grande vendedor de discos, como Roberto
Carlos, concedeu maior projeção ao nome de Tim Maia. Ou, ao menos, maior projeção
dentro da indústria fonográfica. Assim, em 1969 foi lançado um segundo compacto por
Tim (que nessa época ainda não assinava o sobrenome), com as canções em inglês “What
you want to Bet?/These are the songs”, mas também sem angariar maior repercussão.

Além de Tim, três personagens que conquistarão projeção no mercado na segunda


metade da década de 1970 gravaram em 1969: os amigos Genival Cassiano e Hyldon,
integrantes do grupo Os Diagonais que lançou um álbum homônimo (disco comumente
creditado como soul, mas que a escuta permite concordar com o historiador Gustavo
Alonso, que o situou como parte da Pilantragem;509 pois, efetivamente, a sonoridade do LP
sugere uma versão simplificada da Pilantragem, realizada em guitarra baixo e bateria); e A
Turma do Soul, que também lançou um disco homônimo, tendo como vocalista Gerson
Cortês - que na segunda metade da década de 1970 destacou-se sob o nome de Gerson
King Combo. Ambos os discos, porém, sem conquistar repercussão. No caso de Tim Maia
e Cassiano, contudo, o ano de 1969 finalizou com um encontro, através da gravação por
Tim da balada soul “Primavera”, composta por Cassiano, em compacto apenas lançado no
ano seguinte, com a sedimentação da transição de Tim para a gravadora Philips.

Também no encerramento do ano de 1969, uma iniciativa política apresentou


enorme importância para uma ampliação da indústria fonográfica: a “Lei disco é cultura”,
nome como ficou popularmente conhecido o artigo 2° da Lei Complementar n°4, de 2 de
dezembro de 1969. Conforme sintetizou Claudio Jorge Pacheco de Oliveira, na dissertação
Disco é cultura. A expansão do mercado fonográfico brasileiro nos anos 1970:

508
Sobre a trajetória de Tim Maia, MOTTA, Nelson. Vale tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 28-
65.
509
ALONSO, Gustavo. Simonal. Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga: Wilson Simonal
e os limites de uma memória tropical. 2011, p. 467. Os Diagonais. Os Diagonais. Álbum. CBS. 1969.
189

Consequência da política econômica de forte estímulo ao consumo do regime


militar, a “Lei disco é cultura” autorizava as empresas produtoras de discos
fonográficos a abater, do montante do Imposto sobre Circulação de Mercadorias
(ICM), o valor dos direitos autorais artísticos e conexos, pagos aos autores e
artistas brasileiros. A busca por investimentos estrangeiros era um aspecto
fundamental do modelo econômico da ditadura. A expectativa era que a “maior
eficiência” das empresas multinacionais contribuísse para um rápido
crescimento. Essa política favoreceu a expansão das gravadoras estrangeiras, que
tiveram seus interesses e demandas acolhidos pelo governo. 510

A “Lei disco é cultura” representou a inserção da indústria fonográfica no processo


de “modernização autoritário-conservadora” professado pelo regime militar - conceito que,
conforme o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, sintetiza alguns paradoxos e contradições
das ações políticas do Estado. A ditadura militar, de maneira autoritária, desenvolveu
medidas de modernização econômica e industrialização no Brasil, ao mesmo tempo em
que enfatizou o impulso conservador “de preservar a ordem social e os valores tradicionais,
o que insuflava o combate às utopias revolucionárias e outras formas de subversão”. 511 No
caso da produção musical, combate potencializado pela ação da censura às produções
artísticas, como na nova Lei de Censura, promulgada em novembro de 1968, que atingiu
particularmente artistas ligados às esquerdas, mas não somente esses – como comprovado
nas pesquisas de Paulo César de Araújo sobre as ações da censura em artistas populares.512

A “modernização capitalista estimulada pelos militares tinha na indústria da cultura


um dos seus setores mais dinâmicos”513 e, assim, a política de incentivo à produção
musical brasileira possibilitou a oportunidade de gravação para vários artistas, em discos
que apresentavam na contracapa o informativo “Disco é Cultura”. Foi uma ação que, se,
por um lado, ampliou a oportunidade para artistas nacionais, por outro, privilegiou o
estabelecimento no Brasil de filiais das gravadoras multinacionais.

Conforme o jornalista Mauro Ferreira: “Logo no início de 1970, a gravadora Philips


decidiu lançar o compacto que Tim gravara em 1969. Primavera, e não Jurema [o Lado
A do compacto], estourou e abriu caminho para a gravação e edição do primeiro álbum do

510
OLIVEIRA, Claudio Jorge P. Disco é cultura. A expansão do mercado fonográfico brasileiro nos anos
1970. Dissertação (Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais). Fundação Getúlio Vargas. 2018, p. 06.
511
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência da
cultura política. In: REIS FILHO, Daniel, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo P. S. (org.) A ditadura que
mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. 2014, p. 51.
512
Sobre à censura aos cantores esquerdistas (ou s impatizantes), NAPOLITANO, Marcos. A MPB sob
suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981). In: Revista
Brasileira de História, v. 24, n°47, p. 103-126. 2004. Para a censura sob outros gêneros musicais, ARAÚJO,
Paulo C. Eu não sou cachorro não. Música popular cafona e ditadura militar. 7° ed. 2010. Sobretudo entre as
páginas 51 e 152.
513
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do Regime Militar Brasileiro. 2014, p. 99.
190

artista, o antológico Tim Maia”,514 um LP lançado já através da “Lei Disco é Cultura”,


como é informado na contracapa. Contudo, outro acontecimento fonográfico, no meio do
caminho, contribuiu para o artista obter essa possibilidade de gravação de um álbum. O
compacto que Tim Maia lançou em 1969 chamou a atenção do jornalista Nelson Motta,
que então atuava como produtor musical de Elis Regina, artista representativa da MPM,
agora MPB, e que estava em um momento de reavaliação da carreira. Conforme livreto do
jornalista Tárik de Souza sobre o álbum lançado por Elis em 1970, no tópico intitulado “A
reaproximação do público jovem”:

Nas mudanças por que passava o cenário musical, o ano de 1970 assinalou o
surgimento de uma nova aclimatação estética, o assim chamado soul b rasileiro.
Seu porta-estandarte, um certo Sebastião Rodrigues Maia, conhecido por Tim
Maia, por coincidência, tinha acabado de gravar um ‘single’ na Polydor, o selo
mais popular da mesma gravadora [Philips], e Nelson Motta vibrou com o que
ouviu.

“Tim introduzia a moderna música negra americana no pop nacional,


aproximava o funk do baião, trazia o soul para perto da bossa nova”, descreveu
em seu livro. “Levei uma cópia para Elis e ela também ficou besta com o que
ouviu. Para ela, uma cantora, mais do que tudo a impressionavam o timbre, o
ritmo, o fraseado, a precisão, os vastos recursos daquela voz grave e imensa. E
ela repetia, entusiasmadamente, bem ao seu estilo: ‘Puta que pariu! Que
cantor!’”. No estúdio, a escolhida do novo autor foi ‘These are the songs”,
cantada parte em inglês e parte em português. “Mais que um dueto, a gravação
virou um duelo, com Tim e Elis usando todas as suas armas para fazer mais
forte, mais bonito”, diagnosticou Nelson.515

Tárik de Souza, conforme o trecho destacado acima, acompanha Nelson Motta na


atribuição à Tim Maia da introdução do soul no Brasil. O compacto de Tim “What you
want to bet?/These are the songs” havia sido lançado pelo selo Fermata, então parte da
gravadora RGE, portanto, possivelmente o single (compacto simples) ao qual o jornalista
menciona no primeiro parágrafo da citação seja o das canções “Jurema/Primavera”,
lançado em 1970 por Tim na Polydor, o selo da Philips voltado para artistas considerados
“populares”, como Odair José e Evaldo Braga. 516 Em todo caso, o dueto de Elis e Tim em
“These are the songs” foi incluso em um álbum no qual Elis Regina aproximava-se das
sonoridades da Black Music. Nelson Motta informa, ao referenciar a opção de regravar “As
curvas da estrada de Santos”, composição de Roberto e Erasmo Carlos lançada por Roberto
em 1969: “Encomendamos ao maestro Erlon Chaves um arranjo de big band, com metais
suingados e estridentes, base pesada de blues.”517 Após obter reconhecimento como

514
< https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/01/02/ha-50-anos-tim-maia-fez-o-
brasil-dancar-ao-som-do-soul.ghtml> Acesso 14/05/2021. Negritos do original.
515
SOUZA, Tárik. Em pleno verão (1970). [Coleção Folha O melhor de Elis Regina; v. 13] 2014, p. 18, 19.
516
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 42.
517
MOTTA, Nelson. Noites Tropicais. Apud. SOUZA, Tárik. Em pleno verão (1970). 2014, p. 17.
191

compositor, através da gravação de uma canção sua por um grande nome da indústria
fonográfica em 1969, Roberto Carlos, Tim Maia obteve o reconhecimento também como
intérprete em seu dueto com outro grande nome da indústria fonográfica brasileira, Elis
Regina, em 1970, abrindo caminho para a oportunidade de gravar seu próprio LP.

“Foi uma batalha quase aflitiva até que Tim Maia conseguisse, enfim, lançar seu
primeiro LP. Em compensação, o disco retirou-o instantaneamente do semianonimato para
transformá-lo em um dos intérpretes mais populares e queridos do Brasil.”, 518 apresentou o
jornalista José Ruy Gandra ao introduzir o texto de um livreto sobre o álbum de estreia de
Tim. Segundo o jornalista, ainda em 1970, as “canções Azul da Cor do Mar, Primavera e
Coroné Antonio Bento bombavam nas rádios cariocas, paulistas e de todo o Brasil,”519
indiciando o sucesso do álbum no mercado fonográfico. Além dessas três canções, o LP
aproveitava “Jurema”, do último compacto, e apresentava as composições “Flamengo”
(Tim Maia), “Cristina” e “Cristina n°2” (Tim Maia e Carlos Imperial), “Risos” (Fábio e
Paulo Imperial), e outras três composições de Cassiano, além de “Primavera”: “Você
Fingiu”, “Eu amo você” (parceria com Silvio Rochael, também co-autor de “Primavera”) e
“Padre Cícero”, parceria com Tim. Encerrando o álbum, uma composição de Cláudio
Roditi, “Tributo a Booker Pitman”, uma homenagem, cantada em inglês, ao trompetista
estadunidense negro de jazz que, na década de 1960, lançou alguns álbuns no Brasil em
parceria com sua filha brasileira, a cantora Eliana Pittman.

A participação do ex-Os Diagonais, Genival Cassiano, no disco de estreia de Tim


Maia não ficou limitada às quatro composições que assinou. O artista (que já havia sido o
guitarrista do álbum Dom Salvador, de 1969), tocou todas as guitarras e participou dos
vocais de apoio do LP, contribuindo, com seus timbres de guitarra, para a sonoridade
“adocicada” do soul de Tim registrado em seu álbum de estreia. Os arranjos do LP,
produzidos por Tim, incluíam ainda a instrumentação de bateria, contrabaixo elétrico,
percussão, violão de centro (executado por Tim), vibrafone, piano e órgão, além do amplo
uso de orquestra de cordas e vocais de apoio.520

Na biografia Vale Tudo. O som e a fúria de Tim Maia, o autor, Nelson Motta,
ressalta sobre as gravações do primeiro álbum de Tim, que o cantor e compositor ditou “as
frases de metais chupadas da gravação de Otis Redding de ‘Respect’ pontuando o ritmo à

518
GANDRA, José Ruy. Tim Maia (1970). [Coleção Tim Maia; v. 1] 2011, p. 7.
519
GANDRA, José Ruy. Tim Maia (1970). [Coleção Tim Maia; v. 1] 2011, p. 9.
520
Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1970. CD. Abril Coleções. 2011.
192

la Motowm em ‘Jurema’ e as cordas românticas de Isaac Hayes em ‘Primavera’.”521


Portanto, ressaltando a conexão com a sonoridade da Black Music estadunidense.
Conforme o autor: “Baseado no R&B dos anos 60, na soul music da Motown e no funk de
James Brown, mas já miscigenado com o samba, o xote e o baião, o soul brasileiro nasceu
negro e internacional, romântico e suingado, destinado a se integrar definitivamente à
melhor música popular do Brasil.”522

Fig. 5. Capa e contra-capa LP Tim Maia. Tim Maia. Polydor. 1970. Extraído de:
<https://www.musicontherun.net/2017/05/discos -para-historia-tim-maia-tim-maia-1970.html> Acesso 31/08/2019.

Embora compartilhando da compreensão que Tim foi o introdutor da sonoridade


soul no Brasil, a reflexão de Nelson Motta, ao enfatizar a conexão transnacional na canção,
particularmente através das conexões entre Brasil e Estados Unidos, fortalece o argumento
desta tese, que defende na sonoridade da Black Music Brasileira uma expressão musical da
linguagem do Orgulho Negro. O autor ainda informa que “Coroné Antonio Bento”
(composição de Luiz Wanderley e João do Vale, que desde 1968 Tim cantava em suas
participações em programas da TV Record), compunha o repertório de Os Diagonais e, na
gravação desse álbum de Tim, apresenta um dueto com o paraibano Camarão, irmão de
Genival Cassiano. E, a pedido de Nelson Motta, então produtor de trilhas sonoras das
novelas da TV Globo, outra canção do disco, “Padre Cícero” foi adaptada por Tim e
Cassiano para integrar a trilha sonora da novela Irmãos Coragem, tornando-se “João
Coragem”, interpretada por Tim, tema do protagonista da novela. 523 A telenovela, de
autoria de Janete Clair, exibida entre 08/06/1970 e 12/06/1971, com 328 episódios, tornou-

521
MOTTA, Nelson. Vale tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 77.
522
MOTTA, Nelson. Vale tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 77.
523
MOTTA, Nelson. Vale tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 82-85.
193

se mais um canal de difusão para a voz de Tim, contribuindo para estimular uma atenção
aos discos do intérprete entre os telespectadores. 524

A rápida consagração do primeiro álbum de Tim Maia possibilitou que, ainda no


ano de 1970, o cantor fosse convidado para se apresentar no show de encerramento do V
Festival Internacional da Canção (FIC), promovido pela TV Globo. A escolha da
apresentação de Tim demonstrou consonância com a atmosfera da edição, que documentou
a entrada da sonoridade da Black Music brasileira na dinâmica dos festivais. Afinal,
conforme ressaltado por José Ruy Gandra no livreto Tim Maia 1970: “Curiosamente, as
três canções favoritas – O Amor é o meu País, composta e interpretada por Ivan Lins,
Abolição 1860-1980, com Dom Salvador e o Grupo Abolição, e, por fim, BR-3, na voz de
Tony Tornado – tinham, cada qual a seu modo, uma indisfarçável pegada soul.”525 O
“Hino do Festival Internacional”, composto por Miguel Gustavo, foi interpretado por
Wilson Simonal, representando mais uma conexão com os artistas da ambientação soul
brasileira. Cabe salientar que, exceto pelo cantor e pianista branco Ivan Lins, os artistas
que traziam a “indisfarçável pegada soul” ao Festival eram pessoas negras. Dom Salvador,
que no ano anterior lançou um disco instrumental promovendo hibridações de gêneros
musicais brasileiros com a black music, para a defesa de sua composição no Festival,
montou uma banda tendo como vocalistas sua esposa, Mariá, e Luis Antônio (Fig. 6).

A música “Abolição 1860-1980” foi composta por Dom Salvador e Arnaldo


Medeiros e a composição avançava na proposta de hibridação musical sinalizada por
Salvador no seu último álbum, porém, agora adotando o formato canção, em uma
composição com letra. A canção ficou com a 5° colocação no festival e foi lançada em dois
compactos no ano de 1970, em ambos, tendo como Lado B uma versão funk do baião
“Juazeiro” (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira), sucesso com Luiz Gonzaga. O primeiro
compacto foi creditado ao V Festival Internacional da Canção e lançado pela RCA/ Victor,
constando como intérprete Luiz Antônio e participação especial de Urea Martins. 526 O
segundo compacto, com as mesmas gravações e na mesma ordem de apresentação, foi
creditado apenas a Dom Salvador e lançado pela gravadora CBS.

524
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/irmaos -coragem-1a-versao/> Acesso
16/05/2021.
525
GANDRA, José Ruy. Tim Maia. Tim Maia 1970. [Coleção Tim Maia; v. 1] 2011, p. 27.
526
Aparentemente, este crédito ainda se refere a Mariá. Embora o nome no compacto estimule a recordação
da cantora Áurea Martins, não foram localizadas referências que sustentem a participação dela no V FIC,
sendo que sua primeira gravação fonográfica é atribuída ao ano de 1972. <
https://dicionariompb.com.br/aurea-martins/discografia> Acesso 17/05/2021.
194

Fig. 6: Dom Salvador e Grupo Abolição no V FIC. Ao lado, Luis Antônio, Dom salvador e Luis
Antônio e Mariá e Luis Antônio. Imagens extraídas do blog:
< http://festivaisdacancao.blogspot.com/2009/01/abolio-1860-1980.ht ml> Acesso 17/05/2021.

A música “Abolição 1860-1890” apresentava uma composição em três partes,


transitando entre trechos acústicos e elétricos. Conforme registrado no compacto, a canção,
com duração de 4 minutos, iniciava com um solo vocal de Mariá. Acompanhada apenas do
órgão acústico de Dom Salvador em sonoridade gospel, cantava os versos Ave Glória, vem,
aleluia/ Cada lágrima de pranto, eu grito/ Cada grito de lamento, eu canto/ O meu pov o
sofre o seu destino/ sem amor. A partir do segundo minuto, começa a parte elétrica, em
sonoridade funk, com os timbres de bateria, percussão e destaque para o contrabaixo
elétrico e o piano elétrico de Salvador, além de um naipe de sopros e uma guitarra base
discretos. O solo vocal é de Luiz Antônio, com versos de temática antirracista, como: Alto,
pelo asfalto, eu irei cantar/ demolindo a voz do preconceito/ (...) Vou lançar sobre um
sonho certo/ e o futuro sob um céu liberto/ (...) cada passo eu faço um braço amigo
levantar. Mariá retornou no refrão: Vamos vivendo de paz/ Meu desafio de amor/ Meu
desespero é de ter [inaudível]/ na liberdade. E no encerramento, volta um
acompanhamento apenas de órgão acústico, com vocal solo de Mariá e vocalises de Luiz,
na repetição dos versos iniciais, até enfim concluir com o retorno breve da parte funk, com
vocalises e gritos de aleluia de Luiz Antônio. A gravação apresenta dicções difíceis de
compreender em muitas partes, tanto por Mariá quanto Luiz. E não foram localizadas
justificativas para as datas 1860 e 1890 do título da composição.

Já a segunda gravação, “Juazeiro”, apresentou a mesma instrumentação funk e o


solo vocal de Luiz, que realiza vocalises em inglês durante os solos dos instrumentos. A
195

gravação representa mais uma aproximação entre o funk e o baião, como Salvador já havia
feito em seu álbum de 1969, Dom Salvador, na gravação instrumental de “Asa Branca”
(Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira) - evidenciando que Tim Maia não estava sozinho ao
trazer aproximações entre tais gêneros na canção, como às vezes é colocado em textos
sobre seu LP de estreia.

A canção que venceu a fase nacional do V FIC foi “BR-3”, balada soul composta
por Antônio Adolfo e Tibério Gaspar (compositores de várias músicas gravadas por
Simonal no decorrer da segunda metade da década de 1960, como o sucesso de 1968, “Sá
Marina”). Foi interpretada pelo estreante Toni Tornado, cantor de voz muito similar à de
Luiz Antônio, do Abolição (passível de ser confundida). Junto a Toni, o apoio vocal doo
wop do Trio Ternura (formado pelos irmãos Jussara, Robson e Jurema. Tal como ocorria
com o Trio Esperança, eram associados à Jovem Guarda) vestindo túnicas coloridas –
mesma vestimenta do grupo Abolição. Além da performance soul nos vocais e arranjos –
que apresentavam variações de andamento na canção, ora lento, ora acelerado –, a
coreografia executada por Toni destacou ao público do festival os passos de uma forma de
dançar difundida pelo cantor estadunidense James Brown.

Fig. 7. Toni Tornado e Trio Ternura no V FIC. Extraído de:


< http://festivaisdacancao.blogspot.com/2008/01/br-3.html> Acesso 17/05/2021.

O cantor paulista Antônio Viana Gomes, Toni Tornado (atual Tony Tornado),
iniciou a carreira artística na virada dos anos 1950 para os anos 1960 de forma amadora, e,
assim como Simonal, Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Tim Maia, ao lado do agitador
cultural Carlos Imperial, um entusiasta do rock no Brasil. Segundo a historiadora Amanda
196

Palomo Alves, na dissertação O Poder Negro na pátria verde e amarela: musicalidade


política e identidade em Tony Tornado (1970): “Em meados de 1965, Tornado deslocou-se
para a Europa com o grupo de dança ‘Brasiliana’ e depois para os Estados Unidos onde
viveu na clandestinidade por alguns meses.”527 Portanto, assim como Tim Maia, Toni,
outro artista negro que se projetou no ano de 1970 a partir do sucesso na sonoridade soul
em português, também explicita um diálogo transnacional com a experiência estadunidense
relacionada à sua estadia clandestina nos EUA durante a década de 1960. Em ambos os
casos, no entanto, a viagem ao país não foi motivada pela atuação musical. Tim aproveitou
a oportunidade surgida por uma missão cristã e, Toni, viajou por efeito da apresentação do
grupo de dança do qual fazia parte. Ainda conforme Amanda Alves: “A vitória da canção
‘BR-3’ no V FIC, interpretada por Tony Tornado o transformou em uma ‘celebridade’ em
nosso país, sendo destaque em inúmeras revistas da época.”528 E em meio a essa
consagração, para além do lançamento da interpretação de Toni de “BR-3” pelo Festival,
ainda em 1970 pôde lançar um novo disco.

O primeiro disco gravado por Toni Tornado foi lançado pela gravadora Odeon em
1970, na esteira da vitória no V FIC, um compacto duplo contendo quatro canções que
transitavam entre as sonoridades soul e funk: “Nada de novo/ Dez Leis/ Sou negro/ Meu
mundo caiu”. Os arranjos destacavam o intenso uso do naipe de sopros, guitarra rítmica,
contrabaixo, bateria, piano acústico solista e o forte e grave vocal de Toni, acompanhado
por vocais de apoio (exceto em “Meu mundo caiu”). Destaca-se no disco a composição
“Sou negro”, de Getúlio Cortês, tanto pela repercussão à época quanto pelo argumento da
presente tese, devido à letra de temática expressiva da linguagem política negra antirracista
e, sendo uma canção funk, a sonoridade a identifica com a linguagem do Orgulho Negro. O
autor, Getúlio Cortês, é um compositor negro associado à Jovem Guarda, tendo sido o
autor de “Negro Gato”, canção lançada por Roberto Carlos. A letra de “Sou negro” diz:

Nessa vida/ nada se leva/ não sei por que vocês tem tanto orgulho assim/ Você
sempre/ me despreza/ sei que sou negro, mas ninguém vai rir de mim/ Sou negro,
sim/ Mas ninguém vai rir de mim/ Vê se entende/ Vê se ajuda/ O meu caráter
não está na minha cor/ O que eu quero/ não se iluda/ o que eu procuro é
conseguir o seu amor/ Sou negro, sim/ Mas ninguém vai rir de mim.529

527
ALVES, Amanda P. O Poder Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade em
Tony Tornado (1970). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 11.
528
ALVES, Amanda P. O Poder Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade em
Tony Tornado (1970). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 17.
529
Toni Tornado. Sou Negro (Getúlio Cortês). Nada de novo/Dez leis/Sou negro/Meu mundo caiu . Compacto
duplo. Odeon. 1970. Lado B, faixa 01. < https://www.youtube.com/watch?v=cN-NSLBOrvw>
197

A canção “Sou Negro” era um funk bem ao estilo de James Brown (como “Say it
loud I'm black, I’m proud”), o que significa ser uma canção dançante, de andamento
acelerado, e com interpretação vocal potente, enfatizando a dimensão afirmativa da letra,
sobretudo do refrão Sou negro, sim, mas ninguém vai rir de mim (se fosse uma balada
lenta, por exemplo, a mensagem da canção transmitiria uma dimensão sofrida, de lamento,
e não o teor afirmativo). A performance vocal foi potencializada pelo arranjo, que destaca
a guitarra elétrica rítmica e com os vocais femininos de apoio reforçando os versos e o
naipe de sopros enfatizando a força do refrão. A dissertação de Amanda Palomo Alves,
citada acima, ao estudar a produção de Toni Tornado e a recepção de suas obras entre as
forças repressivas do Estado brasileiro, localizou que essa canção teve sua mensagem
antirracista potencializada pela performance gestual do cantor. Toni reforçou a conexão
com as lutas antirracistas estadunidenses ao reproduzir gestos rituais politizados que foram
associados ao imaginário do movimento Poder Negro (Black Power) dos EUA. Por essa
associação, gerou uma advertência pela repressão da Ditadura, conforme noticiado em
edição da Revista Veja de outubro de 1970:

Ao interpretar na televisão carioca a canção ‘Sou Negro’, cuja letra focaliza


problemas de raça, o cantor Tony Tornado, 25, foi advertido pelo Serviço de
Censura na última semana por acompanhar sua apresentação com tapas no rosto
e gestos de punho cerrado, imitando os representantes do Poder Negro dos
Estados Unidos. Motivos da advertência: Tony Tornado (apelido do carioca
Antônio Vieira Gomes) dá uma imagem falsa da realidade brasileira, ao insinuar
agressivamente um clima de ódio racial que não existe no Brasil. 530

A notícia da revista é interessante ao demonstrar que o fato da composição abordar


“problemas de raça” não impediu a veiculação da gravação; contudo, a interpretação de
Toni motivou uma advertência do Serviço de Censura do Estado ditatorial brasileiro ao
fornecer o que consideraram “uma imagem falsa da realidade brasileira, ao insinuar
agressivamente um clima de ódio racial que não existe no Brasil.” Aos “olhos” do Estado
autoritário, portanto, a maior dimensão subversiva na canção esteve presente não na
mensagem antirracista e afirmativa dos versos, mas ao proporcionar a identificação
transnacional a partir da interpretação, evocando elementos gestuais simbólicos da luta
antirracista estadunidense, considerada “um clima de ódio racial”. E assim, contrapondo o
ideal de harmonia sintetizado como “democracia racial” no Brasil. Um gesto simples,
como erguer o punho cerrado, adquiria uma dimensão política ao ser associado a um rito

530
Revista Veja, edição 109, sete de outubro de 1970, p. 84. Apud. ALVES, Amanda Palomo. O Poder
Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade em Tony Tornado (1970). Dissertação
(Mestrado em História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 22. (Negrito na referência do original)
198

antirracista difundido por um movimento negro estadunidense. Em todo caso, ao lançar


“Sou Negro”, Toni Tornado publicizou, no ano de sua estreia fonográfica, a opção por
veicular, através do suporte da música gravada, um posicionamento antirracista, articulado
a partir da sonoridade da Black Music. No caso, em uma canção funk.

O ápice comercial conquistado pela Black Music brasileira, a partir do ano de 1970,
conforme será abordado no decorrer deste segundo capítulo, transitou por dois caminhos já
sinalizados pelos dois artistas que surgiram com maior expressão dentro do gênero em tal
ano: Tim Maia e Toni Tornado. Nas canções lançadas por Tim, em discos de grande
repercussão comercial em vendagens, o tema predominante aborda relações amorosas e o
sofrimento do desamor, além de questões prosaicas. Nas canções de Toni, embora também
priorizando o desamor, o tema antirracista adquiria maior projeção. Ambas as propostas, é
importante ressaltar, apresentaram grande importância para a consolidação e difusão do
gênero Black Music no Brasil – e também eram temáticas pelas quais transitavam os
artistas Black dos EUA. Portanto, embora a análise desta tese concentre-se nas mensagens
antirracistas difundidas nas canções, não há pretensão de sugerir hierarquia nos temas e
reconhece-se que o sucesso comercial viabilizou um maior número de gravações.

Os dados disponíveis para o ano de 1970 no acervo Pesquisa de Venda de Discos


do IBOPE fornecem indícios interessantes quanto ao impacto da Black Music brasileira
entre o público consumidor do produto disco. Tim Maia aparece com destaque a partir de
agosto, quando consta na lista dos mais vendidos entre os 10 LPs e os 15 compactos
(“Primavera”) nas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo. Já em setembro, o álbum Tim
Maia aparece em primeiro lugar em vendas nas duas cidades, resultado melhor do que o
compacto, que ainda não alcança as 10 primeiras colocações. No restante do ano, o álbum
Tim Maia permanece em primeiro lugar no RJ. Em SP, o álbum Tim Maia aparece em
agosto em nona posição e o compacto “Primavera” em segundo; mas em setembro o LP
consta em primeiro lugar, posto no qual esteve até dezembro, enquanto o compacto
permanecia entre os 5 mais vendidos. Já Toni Tornado, na documentação disponível,
aparece apenas em dois meses (outubro e novembro), no acervo do RJ, com o compacto
“BR-3” angariando a 27° posição de vendas. E uma vez no acervo de SP (14° posição de
outubro, com o mesmo compacto), sinalizando que a repercussão de Toni, com a vitória no
V FIC e a cobertura midiática, não resultou em expressivo retorno comercial. O compacto
duplo com “Sou negro” não apareceu nenhuma vez nos índices consultados para o ano. Do
cenário internacional, além de Stevie Wonder e James Brown, nos compactos simples
199

apareceram Sly & Family Stone (o funk “Thank You”) e The Jackson 5 (a balada soul “I’ll
be there”).531

Além dos dois novos nomes de impacto no mercado fonográfico, os dados do


IBOPE revelam o resultado comercial de artistas abordados no capítulo anterior: Simonal,
Jorge Ben, Elza Soares e Eva. Já em janeiro, nos índices semanais do RJ, Simonal
apareceu no 1° lugar em vendas de LPs, com seu álbum Alegria, Alegria, vol. 4 e o álbum
Jorge Ben no 3° lugar. Entre os compactos simples, Jorge, com “Crioula” esteve em 5°
lugar, Simonal em 13° com “País Tropical” e Elza Soares em 9°, com “Lendas e mistérios
da Amazônia”. Jorge e Simonal mantiveram os resultados nos meses seguintes e Eva
apareceu em março em 6° lugar nos compactos, com “Teletema”. Exceto por Elza, que só
constou uma vez com o compacto citado em janeiro e uma em março, os demais artistas
mantiveram o bom resultado comercial dos discos citados durante todo o primeiro
semestre. Simonal incluiu, a partir de maio, os compactos duplos “Menina do Leblon”
(13°) e “País do futebol” (9°), e Eva, o compacto duplo “Agora” (19°). De julho até
setembro, os compactos duplos de Eva (“Agora”), Simonal (“País do futebol”) e Jorge
(“Jorge Ben”), permaneceram constando entre os mais vendidos, mas apenas Jorge constou
em LPs, e a partir de setembro aparece seu novo LP, Força Bruta (7° posição). Em
outubro, Simonal reapareceu com o compacto duplo “Brasil, eu fico” (2°, 3° em novembro,
e 10° em dezembro, quando consta também o compacto duplo “Resposta”: 18° colocação)
e Eva com o compacto duplo “Pigmaleão” (20°). Força Bruta, de Jorge, esteve entre os 10
LPs mais vendidos no ano. Em SP os dados são similares: em janeiro Simonal em 1° com
o álbum Alegria, Alegria, vol. 4 e em 3° com compacto “País tropical”. Em fevereiro,
Jorge Ben em 13° com o LP homônimo, em abril Eva apareceu em 12° com o compacto
“Teletema”. Os três artistas permaneceram entre os mais vendidos por todo o primeiro
semestre. Já no segundo, Eva constou a partir de agosto com o compacto duplo “Pigmaleão
70” (11°), Jorge em outubro com o LP Força Bruta (10°) e Simonal com o compacto duplo
“Brasil, eu fico” (9° posição), resultados mantidos até dezembro – com o LP de Jorge
alcançando o 5° lugar.532

Portanto, segundo os dados do IBOPE, entre a produção lançada em 1970 por


artistas consagrados na década de 1960, à exceção de Jorge Ben, as gravações em discos

531
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Ven da de Discos. Notação:
PD 011 e PD 012.
532
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação:
PD 011 e PD 012.
200

compactos apresentaram melhor resultado comercial do que os álbuns. O LP de Jorge,


Força Bruta, foi a continuidade da sonoridade formulada no álbum anterior, Jorge Ben e
apresentou músicas de impacto, como “Oba, lá vem ela” e “O telefone tocou novamente”.
O álbum registrou ainda uma bem sucedida parceria entre Jorge e o Trio Mocotó, um
grupo de percussionistas (cuíca, pandeiro e bateria) e vocalistas que apresentaram forte
afinidade ao estilo de violão de Jorge, valorizando arranjos instrumentais que ainda
contavam com orquestras de sopros. O disco não apresentou referências à linguagem
antirracista, embora a terceira faixa do Lado B, “Mulher brasileira”, nos versos Mulher
brasileira, eu quero você pra mim/ preta, branca, pobre ou rica/ bonita ou feia, você é
maravilhosa,533 ressaltava a mulher preta e não a categoria “mulata”, então frequente nas
representações sobre a mulher na música brasileira. O disco de Jorge também não fornece
um texto de apresentação na contracapa, algo que esta pesquisa identificou como comum a
toda a produção a partir do ano de 1970, contrariando a tendência recorrente na década
anterior. Poucos são os álbuns pesquisados lançados nos anos 1970 e 1980 que
apresentaram textos, o que talvez indicie uma consequência da maior consolidação do
produto álbum - necessitando menos do atrativo textual para a valorização de mercado.

Enquanto no álbum lançado por Jorge Ben houve a valorização da mulher preta, no
LP de Elza Soares, Sambas e mais sambas, o estereótipo de sexualização a partir da
categoria “mulata” apareceu de forma contundente. A última canção gravada para o álbum,
“Tributo a Dom Fuas” (gravada em 26 de novembro de 1969, sendo que o álbum foi
lançado em janeiro de 1970) era uma composição de Carlos Imperial e Fernando César e
representou a adoção por Elza da sonoridade da Pilantragem, difundida por Simonal.
Conduzida pelo piano acústico, a canção inclui contrabaixo, bateria e um naipe de sopros e
foi cantada por Elza com muitos scats. O homenageado é uma figura apresentada como um
guerreiro nobre português, associada à mitologia católica e à Reconquista Cristã por
Portugal no século XII. Fuas foi citado por Luís de Camões na epopeia Os Lusíadas, nos
versos: “um Egas, e um Dom Fuas, que de Homero/ A cítara para eles só cobiço”534 e “É
Dom Fuas Roupinho, que na terra/ e no mar resplandece juntamente/ com o fogo que
acendeu junto da serra/ de Abila, nas galés de Maura gente.”535

My name is Elza Soares: a fera do Mané/ Sou carioca, sambista, diplomada por
90 milhões de brasileiros/ nasci num dia de sol sem fim/ e canto nas noites

533
Jorge Ben. Mulher Brasileira (Jorge Ben). Força Bruta. Álbum. Philips. 1970. CD. Universal. 2009.
534
CAMÕES, Luiz Vaz. Os Lusíadas. São Paulo: L&PM. 2008. I-XII.
535
CAMÕES, Luiz Vaz. Os Lusíadas. São Paulo: L&PM. 2008. Estrofe 17 do canto VIII.
201

molhadas de saudade/ aqui vai a minha homenagem a Dom Fuas/ o inventor da


raça mais quente do mundo: a mulata/ Eu disse a mulata! /Na base do “era uma
vez”/ assim a vovó me contou/ Dom Fuas, barão português/ foi quem a mulata
inventou/ a terra só dava batata/ que é só de fazer engordar/ Dom Fuas criou a
mulata/ pra bem do aquém além-mar/ A branca se queima na areia/ querendo a
mulata imitar/ Por fora às vezes tapeia/ por dentro não dá pra enganar/ Mulata
ao nascer tem que ser/ jogada com força na porta/ se é boa, merece crescer/ se é
feia, abotoa e cai morta/ Mulata é sempre um colosso/ com carne para dar e
vender/ ou mesmo que seja só osso/ é sempre mulher pra valer/ Igual a Cabral
em abril/ Dom Fuas, você foi o tal/ na história do nosso Brasil/ você foi legal.536

A canção “Tributo a Dom Fuas” apresenta uma leitura objetificada da mulher


negra, ao definir a categoria “mulata” como uma criação de um inventor português pra
bem do aquém-mar, ao compará-la a uma plantação de batatas, e pelo verso com carne
para dar e vender. Destaca-se ainda na letra da canção uma referência à violência física, ao
dizer: mulata ao nascer tem que ser/ jogada com força na porta/ Se é boa, merece crescer/
se é feia, abotoa e cai morta. Curiosamente, essa canção de temática explicitamente
agressiva à população negra foi apresentada no disco pouco após a regravação de Elza de
“Tributo a Martin Luther King”. A faixa de expressão antirracista da Linguagem Política
do Orgulho Negro abre o Lado B do álbum, regravada com a condução por uma guitarra
elétrica rítmica e percussão, além do piano e naipe de sopros, que aparecem com maior
discrição. Já a canção que sucede “Tributo a Dom Fuas”, o samba-jazz dançante “Seu
José”, mantém a temática da violência doméstica, ao narrar a nega que era muito boa,
fugiu do barracão pois a pancada todo dia enjoa, versos que sugerem naturalização da
agressão, mas que são contrapostos pela conclusão da história, que o Seu José aprendeu
que com mulher não se bate nem com uma flor.537 O álbum Sambas e mais sambas
mantinha a sonoridade Bossa Negra de Elza, com solos de trombone e scats, mas apresenta
a adoção, discreta, dos timbres da guitarra e do órgão elétrico. Além da regravação de
Simonal, o disco abriu com uma versão de “Mas que nada”, do Jorge Ben.

Evinha, segundo álbum da cantora Eva, apresentava o repertório ancorado no


sucesso de “Agora” e em “Pigmalião 70”, lançadas em compacto. O disco manteve a
sonoridade soul que caracterizou o primeiro álbum da cantora, mas explorando timbres
distorcidos de guitarra, junto a sopros, piano, órgão e contrabaixo elétricos, porém, sem
apresentar a linguagem antirracista em nenhuma faixa. Já Wilson Simonal lançou nesse

536
Elza Soares. Tributo a Dom Fuas (C. Imperial/ F. Cesar). Sambas e mais sambas. Álbum. Odeon. 1970.
Faixa 04, Lado B. CD. Elza, Miltinho e Samba vol. 3/Sambas e mais sambas. [Box Negra, vol. 7]. EMI,
2003.
<https://www.youtube.com/watch?v=0p5r3Ga6v1Y>
537
Elza Soares. Seu José (Silvio. Cesar). Sambas e mais sambas. Álbum. Odeon. 1970. Faixa 05, Lado B.
CD. Elza, Miltinho e Samba vol. 3/Sambas e mais sambas. [Box Negra, vol. 7]. EMI, 2003.
202

ano o álbum Simonal, que também não apresentou nenhuma canção que evocasse a
temática antirracista, mas representou um avanço na sonoridade de black music adotada
pelo cantor, afastando por completo da Pilantragem. Conforme Ricardo Alexandre, em
texto para a reedição em CD de tal álbum, Simonal sinalizou uma mudança de orientação
artística: “Rareiam as recriações, desaparecem as galhofas juvenis tipo ‘Escravos de Jó’,
emergem novos compositores e, principalmente, estabelece-se um novo padrão de black
music local, em fina sintonia com o funk planetário, mas tão brasileiro quanto à
pilantragem.”538 Nesse álbum, em que predomina a sonoridade soul, Simonal e o Som 3
explicitaram a adoção de contrabaixo, piano e órgão elétricos, destacando o baião-soul
“Severino Nonô” (cujo título no encarte do LP é “Destino e desatino de Severino Nonô na
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro [Oh, Yeah]”) e o soul “Moro no fim da rua”,
conduzido por guitarra elétrica executada pelo ex-Os Diagonais, Hyldon.

Encerrando o intenso (para a black music brasileira) ano de 1970, houve o impacto
dos compactos lançados por Simonal. Conforme os dados do IBOPE, em outubro destacou
em vendas o compacto duplo “Brasil, eu fico” lançado no mesmo mês e que incluía “Hino
do festival internacional/Brasil, eu fico/Que cada um cumpra com o seu dever”; e em
dezembro destacou o compacto duplo “Resposta”, lançado em novembro e que incluía
“Brasil, eu fico/Canção num.21/Resposta/ Que cada um cumpra com o seu dever.”,
portanto, basicamente repetindo o mesmo repertório. Essas canções apresentaram ainda
mais explicitamente a abordagem soul e funk por Simonal e o Som 3, agora incluindo uma
guitarra distorcida, particularmente no funky “Que cada um cumpra com o seu dever”. As
canções foram reunidas por um conceito que Simonal declarou como “nativista”: a
abordagem patriótica. Ainda em dezembro de 1970, em entrevista ao jornal Correio da
Manhã, Simonal declarou: “Aquelas músicas que eu gravei – Brasil, eu fico e Que cada
um cumpra com o seu dever – não são músicas comerciais, são nativistas. (...) Essas
músicas foram para denunciar a falta de crédito do pessoal no Brasil.”539

O repertório dos compactos agregava composições de Jorge Ben (“Brasil, eu fico” e


“Resposta”), Eduardo Souza Netto e Sergio Bittencourt (“Canção n°21”) e de Simonal
(“Que cada um cumpra com o seu dever”). A primeira delas, centralizada nos versos: Este
é o meu Brasil/ cheio de riquezas mil/ Este é o meu Brasil/ futuro e progresso do ano 2000/

538
ALEXANDRE, Ricardo. Texto de apresentação para a reedição em CD. Simonal/Jóia, Jóia. [Wilson
Simonal. 1970/1971. Box Wilson Simonal na Odeon (1961-1971). CD 07]. EMI. 2004.
539
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 04/12/1970 (sexta-feira). Caderno anexo, p. 03. Itálico do original.
203

quem não gostar e for do contra que vá pra..., seguindo do naipe de sopros censurando, ao
mesmo tempo em que sugerindo, um corrente “palavrão”.540 Abordagem também seguida
em “Resposta”: Pois eu sou um amante/ um amante do meu país/ eu sei onde é meu lugar/
eu sei onde ponho o meu nariz,541 e na composição de Simonal, que convocava ao
compromisso patriótico toda a população brasileira, a partir de tipos sociais, como nos
versos: seja tua tia, seu amigo, seu irmão/ cada um cumpra com o seu dever/ seja
brigadeiro, cabo velho, capitão/ cada um cumpra com o seu dever/ (...) seja no governo,
no trabalho, na canção/ cada um cumpra com o seu dever.542 O título e refrão “Cada um
cumpra com o seu dever” alude a um lema da Marinha brasileira, consagrado pelo
Almirante Barroso na Batalha de Riachuelo de 11 de junho de 1865, “O Brasil espera que
cada um cumpra com o seu dever”, referência icônica para as Forças Armadas, posto
celebrarem em 11 de junho a Data Magna da Marinha. 543

Ou seja, a partir das sonoridades de origem estadunidense da black music, Simonal


realizou em canção, através de sua composição e das de Jorge Ben, atos de fala em defesa
do nacionalismo e das Forças Armadas que comandavam o Brasil através de uma ditadura
(seja brigadeiro, cabo velho, capitão (...) seja no governo...). “Brasil, eu fico”, desde o
título, evocava um então popular slogan do governo autoritário, “Brasil, ame-o ou deixe-
o”, emblemático da repressão que provocou muitos exílios, voluntários, como o de Abdias
Nascimento, ou involuntários, como a expulsão de Caetano Veloso e Gilberto Gil.544

A composição das canções nativistas “Brasil, eu fico” e “Resposta” por Jorge Ben e
sua gravação por Simonal, junto à sua própria composição “Que cada um cumpra com o
seu dever”, contudo, tiveram como motivação imediata um episódio particular do ano de
1970. O compacto inseria-se em uma polêmica estabelecida entre os dois artistas e o

540
Wilson Simonal. Brasil, eu fico. (Jorge Ben). Brasil, eu fico/Canção n°21/Resposta/Que cada um cumpra
com o seu dever. Compacto duplo. Odeon. 1970. Faixa 01, Lado A.
< https://www.youtube.com/watch?v=aonfA5zYWro>
541
Wilson Simonal. Resposta. (Jorge Ben). Brasil, eu fico/Canção n°21/Resposta/Que cada um cumpra com
o seu dever. Compacto duplo. Odeon. 1970. Faixa 01, Lado B.
542
Wilson Simonal. Que cada um cumpra com o seu dever. (Wilson Simonal). Brasil, eu fico/Canção
n°21/Resposta/Que cada um cumpra com o seu dever. Compacto duplo. Odeon. 1970. Faixa 02, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=lknJDup4UXM>
543
O termo, junto ao “Sustentar o fogo que a vitória é nossa”, constam como “Sinais de Barroso” na
mitologia da Marinha brasileira. “Anualmente, no dia 11 de junho, a Marinha do Brasil comemora o grande
feito do Almirante Barroso na Batalha Naval do Riachuelo, ocasião em que são içados nos mastros de todo s
os navios e organizações de terra os históricos sinais utilizados pelo Chefe Naval durante o confronto.”
<https://www.marinha.mil.br/dphdm/historia/almirante-barroso/sinais-de-barroso> Acesso 21/05/2021.
544
Segundo o historiador Carlos Fico, a criação de tal slogan foi obra Operação Bandeirantes. FICO, Carlos.
A pluralidade das censuras e das propagandas da ditadura. IN: FICO, Carlos (org.). 1964-2004 – 40 anos do
golpe: ditadura militar e resistências no Brasil. 2004, p. 273.
204

compositor, intérprete e humorista - identificado às esquerdas do espectro político - Juca


Chaves. Com o sucesso da canção “País tropical” (composta por Jorge) por Simonal, Juca -
que desde 1963 morava na Europa -, gravou, em tom de galhofa, a canção “Paris
Tropical”, de versos como: Alô Brasil, alô Simonal/ moro e namoro/ em Paris Tropical/
(...) Alô Brasil, alô Jorge Ben/ eu vou de metrô/ você vai de trem,545 canção com sucesso
no ano, chegando a pontuar como vigésimo primeiro compacto mais vendido. Juca lançou
ainda um segundo compacto no tema em 1970, também lançada em compacto no Brasil,
“Take me back to Piauí”, de versos como: Adeus Paris Tropical/ Adeus Brigite Bardot/ O
champanhe me fez mal, caviar já me enjoou/ Simonal que estava certo, na razão do
Patropi/ eu também, que sou esperto, vou viver no Piauí.546 Estas duas canções cômicas e
provocativas estimularam as respostas de Simonal e Jorge Ben, evidenciadas na letra da
composição “Resposta”: Quem dera que Paris/ Paris fosse tropical/ tivesse uma nega
Tereza/ muita alegria e carnaval/ (...) Eu tô na minha/ por isso gosto de andar de trem/
(...) meu coração é rubro-negro/ e também verde-e-amarelo.547

O compacto “nativista” lançado por Simonal, embora motivado pela polêmica


musical com Juca Chaves, evidenciou um posicionamento de aproximação com a
propaganda oficial e o discurso patriótico e autoritário difundidos pelo Estado ditatorial
brasileiro. Jorge Ben e Simonal, ao comporem e gravarem tais canções, optaram por
mobilizar termos associados ao imaginário do regime militar, entre um repertório de
argumentos através dos quais poderiam defender a composição “País tropical”. A opção
dos artistas, ou, ao menos, a de Simonal - que, enquanto intérprete, obteve maior
visibilidade e reafirmou a argumentação patriótica à imprensa - indicia um comportamento
de afinidade e adesão ao discurso da ditadura. 548 O que diferencia as possibilidades de
leitura da canção “País tropical” de “Brasil, eu fico” e “Que cada um cumpra com o seu
dever” é o vocabulário mobilizado em cada composição, sendo que na primeira há uma
afirmação nacionalista, mas nas duas seguintes são enfatizados termos oriundos do
patriotismo militarista, indiciando uma ação política adesista à ditadura.

545
Juca Chaves. Paris Tropical (J. Chaves). Paris tropical/ E no fundo era igual às outras. Compacto. RGE.
1970. < https://www.youtube.com/watch?v=XDYlbQxJhdM>
546
Juca Chaves. Take me back to Piauí. (J. Chaves). Take me back to Piauí/ Vou viver num arco íris.
Compacto. RGE/Sdruws. 1970. < https://www.youtube.com/watch?v=E5XnDHstRws >
547
Wilson Simonal. Resposta. (Jorge Ben). Brasil, eu fico/Canção n°21/Resposta/Que cada um cumpra com
o seu dever. Compacto duplo. Odeon. 1970. Fx. 01, Ld. B. <
https://www.youtube.com/watch?v=Ty9J8VRa998>
548
A análise mais aprofundada desse compacto e das aproximações de Simonal com a ditadura, inclusive sua
defesa do regime em entrevistas, foi realizada em MORAIS, Bruno Vinícius L. de. “Sim, sou um negro de
cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no Brasil dos anos 1960 . Dissertação. 2016, p. 65-77.
205

Uma análise mais verticalizada dos posicionamentos públicos do cantor Simonal,


que expressava um compromisso antirracista ao mesmo tempo em que uma perspectiva
política conservadora e de apoio à ditadura, foi realizada pelo autor desta tese no artigo
“Um antirracismo liberal conservador? Orgulho Negro e denúncia do racismo por Wilson
Simonal nos anos 1960”, publicado em 2019 no livro Pensar as direitas na América
Latina. Texto que defendeu a compreensão da luta antirracista como capaz de proporcionar
um corte transversal no espectro político, podendo ser realizada à esquerda e por uma
direita liberal (conservadora quanto à manutenção das desigualdades socioeconômicas,
mas sensível e oposta à construção de desigualdades e hierarquias pretensamente
naturalizadas por argumentos biológicos, que fundamentam barreiras à demonstração do
mérito e às disputas por oportunidades). 549 Antes, o aspecto conservador de Simonal já
havia sido ressaltado em 2007 pelo historiador Gustavo Alonso Ferreira, na tese Quem não
tem swing morre com a boca cheia de formiga: Wilson Simonal e os limites de uma
memória tropical, que problematizou o ostracismo do cantor como parte da construção da
memória de resistência por uma sociedade que desejava eclipsar suas relações de
colaboração para com o Estado ditatorial. 550 A hipótese de Gustavo Alonso integra uma
perspectiva historiográfica que estuda as relações entre a ditadura e a sociedade brasileira a
partir da legitimidade social e o consenso conquistado pelo regime militar, como nos
artigos sobre o Brasil publicados na obra Construção social dos regimes autoritários.551

Os estudos historiográficos verticalizados nas relações entre Estado e sociedade a


partir da interpretação da legitimidade conquistada pela ditadura como um “consenso
social” têm como principal recorte o período estudado neste segundo capítulo da presente
tese, em particular o período do chamado “Milagre econômico” brasileiro. O historiador
pioneiro em tal perspectiva é Daniel Aarão Reis Filho, a partir da obra Ditadura militar,
esquerdas e sociedade, publicada em 2000. Segundo tal historiador, o crescimento
econômico conquistado pelo “milagre” - que durou, aproximadamente, entre 1969 e 1973,
abarcando o governo do presidente-ditador general Ernesto Geisel - teria permitido que
amplos setores da sociedade brasileira tivessem vivido o período como “anos de ouro”, em
oposição à memória construída a partir da redemocratização, que enfatizou o mesmo

549
MORAIS, Bruno Vinícius L. de. Um antirracismo liberal conservador? Orgulho Negro e a denúncia do
racismo por Wilson Simonal nos anos 1960. In: BOHOSLAVSKI, Ernesto, MOTTA, Rodrigo P. S.,
BOISARD, Stéphane (orgs.) Pensar as direitas na América Latina. 2019, p. 245-265.
550
A tese, defendida na Universidade Federal Fluminense, foi publicada com o mesmo título pela editora
Record, em 2011, com o autor assinando apenas como Gustavo Alonso.
551
QUADRAT, Samantha, ROLLEMBERG, Denise (org.). Construção social dos regimes autoritários. Vol.
2. 2013. Um dos capítulos da obra, aliás, foi escrito por Gustavo Alonso Ferreira, estudando o Simonal.
206

recorte temporal como “anos de chumbo”, devido à violenta repressão à resistência


armada.552 Para a compreensão do período como “anos de ouro”, foram destacadas
representações do “Brasil grande”, simbolizadas pelo slogan “esse é um país que vai pra
frente”. Tal slogan foi evocado pelo governo justamente a partir do ano de 1970, com o
crescimento econômico conciliado à vitória da seleção de futebol na Copa do Mundo de
1970 – na qual Simonal era o cantor oficial.553 A construção dessa visão otimista sobre o
período é sintetizada nas canções do compacto “nativista” de Simonal.

Wilson Simonal, contudo, não foi o único artista no período a ecoar a representação
do “Brasil grande” a partir dos acordes da Black Music Brasileira. O Trio Ternura, que
obteve maior visibilidade após sua atuação junto a Toni Tornado no V FIC com a canção
“BR-3”, lançou seu segundo álbum, Trio Ternura (o primeiro foi lançado em 1968 em
estilo doo wop), adotando explicitamente a sonoridade soul em todo o LP. Nele havia a
canção “Por isso eu digo: Brasil, eu fico”, composição de Fábio e Paulo Imperial. Lá no
alto/ da montanha/ Jesus Cristo/ no altar/ lá do alto/ tudo é mar/ são as cores do meu Rio
a passar/ por isso eu digo, Brasil, eu fico. As histórias desse mundo/ eu ouvi e desisti de
sonhar/ vou vivendo/ acordado/ são as cores do meu Rio a passar. A letra desse soul é
apologética a um cartão-postal do país, a paisagem do Rio de Janeiro, a partir da estátua do
Cristo Redentor, mas a ampla repetição do refrão por isso eu digo, Brasil, eu fico, denuncia
a opção dos compositores e intérpretes em adotar e ecoar um slogan da propaganda política
do regime ditatorial.554 O LP Trio Ternura foi lançado em 1971 pela gravadora CBS, com
produção do músico, compositor e, então, diretor artístico Raul Seixas, que assinou uma
das canções do álbum, “Vê se dá um jeito nisso”. Também o ex-Os Diagonais, Hyldon,
integrou o elenco de compositores, com “Vou morar no teu sorriso”. O disco não apresenta
texto de contracapa ou crédito aos músicos que participaram, mas explicita o
desenvolvimento da sonoridade soul no Brasil. No entanto, em nenhuma das composições
foi identificada qualquer referência à temática racial.

Os artistas da Black Music não estavam sozinhos na adoção de temas nacionalistas


na canção brasileira do período. Em outubro de 1970 foi lançada pelo grupo de rock Os
Incríveis a marcha “Eu te amo meu Brasil”, composta pela dupla Dom & Ravel, que, por

552
Entre uma farta produção do autor desenvolvendo esse argumento, destaca-se REIS FILHO, Daniel A.
Ditadura e democracia no Brasil. 2014, uma versão ampliada do livro originalmente publicado em 2000.
553
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0209200428.htm> Acesso 20/05/2021. Para uma análise
profunda, FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. 1997.
554
Trio Ternura. Por isso eu digo: Brasil, eu fico. (Fábio/Paulo Imperial). Trio Ternura. Álbum. CBS. 1971.
Faixa 06, Lado A. CD. Sony Music, provável 2010. < https://www.youtube.com/watch?v=E-0uqHwF7tQ>
207

fazer grande sucesso à época, comumente é tomada como um marco do ufanismo no


período. Na canção caipira, em 1971 a dupla Léo Canhoto & Robertinho lançou “Minha
pátria amada”, que, aliás, ecoa a representação harmônica da “democracia racial” no
Brasil: aqui os negros e os brancos se entendem/ sem preconceito nem de raça nem de cor.
Estas, e diversas canções na temática lançadas entre 1970 e 1975, são referenciadas pelo
historiador Paulo César Araújo no capítulo “De armas, bandeiras e lápis nas mãos” do livro
Eu não sou cachorro, não. Música popular cafona e ditadura militar, originalmente
publicado em 2002.555 Referências apologéticas, como as expressas nessas canções,
fundamentam as análises de quem identifica no período um consentimento social, como
abordado pela historiadora Janaína Cordeiro no artigo Anos de chumbo ou anos de ouro? A
memória social sobre o governo Médici, no qual afirma que a ditadura foi “capaz de
estabelecer um diálogo com a sociedade e criar elementos de identificação entre esta e o
regime.”556 Ou, pela mesma historiadora, no artigo “Por que lembrar? A memória coletiva
sobre o governo Médici e a ditadura em Bagé”, publicado no livro A ditadura que mudou o
Brasil. 50 anos do golpe de 1964, quando, ao analisar a cidade natal do general ditador e as
mudanças nas formas de representação sobre a figura, afirma: “As relações de Bagé com
os anos de chumbo da ditadura civil-militar são extremamente complexas. (...) Sob esse
aspecto, Bagé é a perfeita síntese da nação, de seus complexos, limites e dificuldades para
lidar com o passado recente.”557

A interpretação apresentada nesta tese não compartilha de uma análise generalista


quanto à construção de um consenso social ou da percepção do período como “anos de
ouro”. A percepção ufanista explicita a capacidade da ditadura em estabelecer diálogo com
alguns setores da sociedade brasileira, que, assim, poderiam se identificar com o regime;
mas não com “a sociedade”, de maneira abrangente ou globalizada. Afinal, se o “milagre”
teve beneficiários, setores mais numerosos da sociedade constam na lista dos excluídos ou
mesmo dos prejudicados do período, conforme será posteriormente referenciado nesta tese.

A ideia de “anos de ouro” para esses primórdios da década de 1970, no entanto, é


certeira para referenciar a carreira de artistas consagrados no período, como Tim Maia. E

555
ARAÚJO, Paulo C. De armas, bandeiras e lápis nas mãos. In: Eu não sou cachorro, não. Música popular
cafona e ditadura militar. 7° edição. 2010, p. 211-231.
556
CORDEIRO, Janaína Martins. Anos de chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o gov erno
Médici. In: Estudos Históricos. vol. 22, n°43, janeiro-junho. 2009, p. 88.
557
CORDEIRO, Janaína Martins. Por que lembrar? A memória coletiva sobre o governo Médici e a ditadura
em Bagé. In: AARÃO REIS, Daniel, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo P. S. A ditadura que mudou o
Brasil. 50 anos do golpe de 1964. 2014., p. 198, 199.
208

em tal momento de consagração, Tim relançou sua primeira composição a abordar a


temática racial, mas cujo discurso aproxima às representações defendidas pelo governo,
através do ideário de “democracia racial”: a canção “Meu país”, penúltima faixa do álbum
Tim Maia, de 1971. A canção “Meu país” foi lançada originalmente no primeiro compacto
gravado por Tim Maia, lançado em 1968, sem grande repercussão, quando o artista
assinava apenas como Tim. Então, para a imensa maioria do público conquistado por Tim,
a canção aparecia com ares de nova composição. A canção retratou a leitura do artista
sobre a situação racial no Brasil, a partir de sua experiência ao morar nos EUA, nos anos
1960: Sim/ Bem sei/ Que aprendi/ Muito no seu país/ Justo no seu país/ Porém, no meu
país/ Senti/ Tudo que quis/ Pois vi/ como vivem/ todas as flores/ todas as dores/ sem
distinção de cor/ o amor/ existe, enfim/ mesmo ainda/ quando a luta/ do alto se escuta/ em
uma só voz/ que diz/ somos irmãos.558 Na biografia sobre o cantor, Vale Tudo. O som e a
fúria de Tim Maia, Nelson Motta afirma:

Nas ruas do Greenwich Village, em Nova York, Tim veria pela primeira vez
jovens negros com orgulhosas carapinhas eriçadas e adereços africanos,
testemunharia outras demonstrações de orgulho da raça e de rebeldia que jamais
imaginou na Tijuca. E sentiria na pele, muito mais do que no Brasil, a chibata da
discriminação.

No Brasil, Tim sempre se acreditara e se dissera mulato, mas logo descobriu que
ali não havia essas sutilezas, se não era branco, negro era. 559

Assim, ao retornar ao Brasil, Tim compôs e gravou a canção que faz um balanço de
sua percepção da experiência racial nos países, estabelecendo, por um lado, uma conexão
transnacional (em uma só voz/ que diz/ somos irmãos), e, por outro lado, reafirmando o
ideal de harmonia racial de um Brasil imune à discriminação (sem distinção de cor).

Segundo o livreto Tim maia. 1971, escrito por José Ruy Gandra, Tim “insistiu para
que a romântica balada soul Meu País, que recheara seu primeiro compacto simples,
também constasse no novo disco. Tim queria regravá-la para aproveitar os recursos
técnicos que não tivera na versão original.”560 O disco no qual a canção foi lançada, o
segundo álbum de Tim, é, até os dias atuais, um dos mais celebrados de sua discografia,
incluindo “A festa do Santo Reis”, “Não quero dinheiro (só quero amar)”, “Um dia eu
chego lá” e “É por você que eu vivo”, além das regravações de “Não vou ficar” lançada
por Roberto Carlos em 1969 e “Você”, lançada por Eduardo Araújo em 1968, para citar as

558
Tim Maia. Meu país (Tim Maia). Tim Maia. Álbum. 1971. Polydor. Faixa 05, Lado B. Reedição CD.
Abril Coleções. 2011. Faixa 11. < https://www.youtube.com/watch?v=dn9AUZW0dFA >
559
MOTTA, Nelson. Vale tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 45.
560
GANDRA, José Ruy. Tim Maia. 1971. (Coleção Tim Maia; v. 2) 2011, p. 22.
209

canções que se tornaram mais famosas. Ainda segundo o livreto: “Em 1971, a Philips
reinava no mercado fonográfico brasileiro. Seu elenco reunia a nata da MPB. (...) Nenhum
desses medalhões da MPB impediu que, em 1971, Tim Maia se tornasse o maior vendedor
de discos da gravadora.”561 O disco foi lançado pela Polydor, como o álbum anterior, um
selo pertencente à gravadora Philip.

O segundo álbum de Tim Maia manteve a banda que fora reunida para a gravação
do primeiro LP, mas com uma expressiva diferença. Genival Cassiano, que gravou todas as
guitarras e contribuiu com algumas composições do disco anterior, não participou do
segundo, sendo substituído pelo seu ex-companheiro de Os Diagonais, Hyldon, nas
guitarras-base (parceiro de Tim na composição “I don’t know what to do with myself”,
inclusa no álbum) e por Paulo (mais conhecido como Paulinho Guitarra) nas guitarras solo,
artista que formulou um padrão de sonoridade para a produção de Tim a partir desse álbum
- e que durou por toda a década de 1970 - no qual o soul e funk do compositor eram
executados com um timbre de guitarra agressivo, mais próximo à escutada nos discos de
artistas da Black Music estadunidense como Sly & The Family Stone ou Isaac Hayes,
diferente dos timbres de guitarra executados por Cassiano no primeiro álbum de Tim, que
remetiam mais à execução da Black Music de Curtis Mayfield. Os timbres de guitarra de
Cassiano, porém, puderam ser melhor escutados em 1971, assim como sua voz, com o
lançamento pela RCA de seu primeiro LP solo, Imagem e Som, que, apesar de conter uma
versão do compositor para o sucesso “Primavera” e referências a Tim em algumas letras,
não obteve repercussão. O disco não apresentou nenhuma referência à temática racial.

A diferença de sonoridades na produção de Tim Maia promovida pelo timbre de


Paulinho Guitarra é explícita desde a primeira faixa do álbum de 1971, “A Festa de Santo
Reis”, composição de Márcio Leonardo, cuja execução é permeada pela guitarra solista de
Paulinho, que contrapõe o acordeom, baixo e bateria. A temática dessa canção retoma o
expresso no título de uma das canções do álbum Dom Salvador, de 1969, a instrumental
“Folia de Reis”, mencionada no fim do capítulo anterior. A letra dessa canção diz:

Hoje é o dia de Santo Reis/ Anda meio esquecido, mas é o dia da Festa do Santo
Reis/ Eles chegam tocando/ Sanfona e violão/ Os pandeiros de fita/ carregam
sempre na mão/ eles vão levando/ Levando o que pode/ Se deixar com eles/ Eles
levam até os bodes/ É os bodes da gente/ é os bodes, mé. 562

561
GANDRA, José Ruy. Tim Maia. 1971. (Coleção Tim Maia; v. 2) 2011, p. 33.
562
Tim Maia. A Festa de Santo Reis (Márcio Leonardo). Tim Maia. Álbum. 1971. Polydor. Faixa 01, Lado
A. Reedição CD. Abril Coleções. 2011. Faixa 11. < https://www.youtube.com/watch?v=b5EZudzb45U >
210

Conforme a publicação Folias de Minas Gerais, edição da coleção Cadernos do


Patrimônio lançada em 2018 pelo Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de
Minas Gerais: “As Folias, também conhecidas como Ternos, Companhias e Caravanas, são
celebrações religiosas com base no catolicismo popular (...) que podem ser definidas como
um agrupamento de devotos que percorrem jornadas cumprindo promessas recolhendo
donativos”; e essa celebração é “composta por ritos como a saída da Folia, a visita da
bandeira e a festa de encerramento, que quase sempre são realizados em um ciclo
determinado pelo dia do santo de devoção”. 563 Nessa tradição, de forte arraigamento entre
o catolicismo popular, cuja maioria dos devotos são pessoas negras, as jornadas incluem os
instrumentos musicais violas, caixas, violões, pandeiros, sanfonas e rabecas, em geral. E,
entre os santos de devoção, o culto principal é aos Santos Reis, devendo, a isso, o nome
mais consagrado às folias, e à sua festa. Ainda conforme a mesma publicação:

Devido à forte devoção aos Santos Reis no Brasil o dia 6 de janeiro era
considerado feriado nacional, assim como ainda é na Espanha, Itália e
Alemanha, sendo mencionado nos calendários destes países como o dia da
Epifania ou dos Reis Magos. Jornais, como O Estado de São Paulo, revela m por
meio de notas publicadas em 1909 e 1944 que diversos estabelecimentos
paralisavam suas atividades, pois, além de feriado, era um dia Santo de Guarda,
em que os católicos tinham o dever de ir à missa e participar das festividades.

A suspensão do feriado do Dia de Reis ocorreu em dezembro de 1967, quando o


Estado confirmou a retirada de outros cinco dias santos, conforme noticiado pelo
mesmo jornal: ‘Com a nova legislação implantada no País, os feriados
facultativos foram drasticamente reduzidos, passando a serem considerados dias
santos apenas os seguintes: Natal, 1° de janeiro, sexta-feira santa, Corpus Christi,
Imaculada Conceição (8 de dezembro) e Finados. 564

Portanto, a canção gravada por Tim, ao ressaltar que Hoje é o dia de Santo Reis/
Anda meio esquecido, mas é o dia da Festa de Santo Reis, abordava uma memória recente,
buscando enfatizar uma tradição importante ao catolicismo popular e que recentemente – a
pouco mais de três anos – havia perdido o status de feriado nacional.

Outra estreia na Black Music brasileira ocorrida, em LP, em 1971, foi de Dom
Salvador e Abolição, com o álbum Som, Sangue e Raça, que se tornou o único lançamento
do grupo. O disco, lançado na gravadora CBS, documentou um encontro das duas
formações instrumentais que haviam gravado discos com a sonoridade soul e funk nos fins
dos anos 1960, conforme informado no último tópico do primeiro capítulo desta tese, nos
discos Dom Salvador e International Hot. Oriundo do conjunto criado por Raul de Souza,

563
Folias de Minas Gerais/ Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – Belo
Horizonte: Iepha (Cadernos do Patrimônio), 2018, p. 7.
564
Folias de Minas Gerais/ Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – Belo
Horizonte: Iepha (Cadernos do Patrimônio), 2018, p. 20.
211

o saxofonista e flautista Oberdan Magalhães se uniu a Dom Salvador (piano, acústico e


elétrico, órgão elétrico e acordeom), Mariá (vocal), Darcy (trompete e flugel), Rubens
Sabino (contrabaixo), Serginho (trombone), José Carlos (guitarra), Nelsinho (percussão e
vocal) e o baterista e vocalista Luiz Carlos – que substituiu o Luiz Antônio, que havia
participado da gravação do compacto “Abolição 1869-1980/Juazeiro”. Esse conjunto,
integrado por músicos negros, gravou doze canções que hibridavam o soul e o funk ao
baião (em “Hey você” e “Folia de reis”), predominando faixas instrumentais (9, das 12
composições), cinco delas regravações de músicas já lançadas em discos de Salvador
(“Tema pro gaguinho”, original do Salvador Trio, de 1965, “O Rio”, “Moeda, reza e cor”,
“Tio Macrô” e “Folia de Reis”, originais de Dom Salvador, de 1969). Das três faixas com
letra, apenas “Evo” evocava uma dimensão racial, ao entoar: você precisa saber do amor
que não tem cor/ Ele habita em seu ser, Senhor, seu criador, referenciando a leitura
antirracista do princípio igualitarista cristão, conforme a tradição gospel.565

A capa do LP do grupo Dom Salvador e Abolição apresentava todo o conjunto


(Salvador é o primeiro à direita, em pé, com calça jeans azul com suspensório e camisa
estampada) e uma criança, expressando, portanto, um grupo de dez pessoas, todas elas
negras. No arquivo virtual de vídeos Youtube consta uma execução da faixa de abertura do
disco, “Uma vida”, gravada em 1970 no programa Elis Regina – Especial, no qual a
cantora performa a canção em dueto com Luiz Carlos, acompanhados por todo o conjunto,
documentando um registro televisivo do grupo, apesar de sua existência efêmera.566

Fig. 8: Capa e contracapa Som, Sangue e Raça. (Salvador é o primeiro à esquerda, de jeans azul) Extraído de
[Acesso 21/05/2021]: < https://flabbergasted-vibes.org/2010/12/06/dom-salvador-e-abolicao-som-sangue-e/>

565
Dom Salvador e Abolição. Evo (Dom Salvador/Pedro Santos). Som, Sangue e Raça. Álbum. CBS. 1971.
Faixa 01, Lado B. Reedição em CD. Sony Music. Data não localizada, provável 2010. Faixa 07.
566
< https://www.youtube.com/watch?v=RuJSQAhb9HY> Acesso 21/05/2021.
212

Entre as estreias em LP do ano de 1971, porém, talvez a mais ansiada à época tenha
sido a do ganhador do FIC no ano anterior, Toni Tornado. Lançado pela Odeon, o álbum
homônimo, Toni Tornado, apresentava o selo “Disco é Cultura”. Embora não apresentasse
os nomes dos instrumentistas participantes, o LP informava na contracapa os cinco
orquestradores, incluindo Dom Salvador nas composições “Dei a partida” (de Getúlio
Cortês) e “O repórter informou” (de Hyldon). O disco trouxe a faixa “BR-3”, abrindo o
Lado B, mas não incluiu nenhuma das quatro canções lançadas no compacto duplo do ano
anterior. Portanto, o público de Tornado foi apresentado a onze novas gravações, incluindo
sua versão de “Uma vida”, de Salvador. O álbum apresentava canções de temática
diversificada, todas executadas nas sonoridades funk e soul (com forte inclinação gospel),
sendo que a abertura, “Juízo Final”, composição soul de Pedrinho e Renato Corrêa
(integrantes, brancos, do grupo de rock A Bolha), tornou-se um manifesto antirracista da
Linguagem Política do Orgulho Negro na voz de Toni, ao retratar a discriminação racial: O
dia da verdade/ o juízo final/ o fim desse mundo/ cheio de guerras/ O início de um mundo
de paz/ Bebedouro mata a sede, não escolhe cor/ Não escolhe cor porque irmão/ o dia da
verdade, o juízo final/ Eu preciso crer/ eu preciso crer no fim de tudo isso.567

Renato Corrêa, um dos compositores de “Juízo final” era atuante nos festivais da
canção e foi um dos compositores de “Casaco Marrom”, gravada por Eva. A canção “Juízo
final” seguiu a sonoridade característica da produção musical de Toni Tornado, com
arranjo elétrico soul, destacando guitarra, contrabaixo, bateria, naipe de sopros e vocais
femininos de apoio que entoavam, em inclinação gospel, o verso: o dia da verdade/ o juízo
final. A letra não oferece uma narrativa elaborada, mas informa a compreensão de um
contexto de guerras que poderia ser pacificado pela igualdade racial (bebedouro mata a
sede, não escolhe cor). A referência ao bebedouro como símbolo para retratar a
discriminação racial denuncia uma alusão de pouca densidade argumentativa para o
contexto racial brasileiro, mas de forte evocação à realidade estadunidense. Conforme a
dissertação de Amanda Palomo Alves, ao analisar a mensagem dessa canção: “Ademais,
durante vários anos, o bebedouro foi marca distintiva da segregação racial nos Estados
Unidos ao distinguirem aqueles destinados aos brancos daqueles reservados aos negros
(‘colored’).”568 É notável que nem a letra da composição ou a interpretação vocal de Toni

567
Toni Tornado. Juízo Final (Pedrinho/Renato Corrêa). Toni Tornado. Álbum. Odeon. 1971. Faixa 01, Lado
A. < https://www.youtube.com/watch?v=_v3w7CUDAT0>
568
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade
em Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 104.
213

fazem menção explícita à realidade estadunidense, de modo que a canção, gravada no


Brasil, em português e por um artista brasileiro, sugere a ambientação da crítica à realidade
brasileira, tornando o bebedouro um signo para o “preconceito de cor”. O verso bebedouro
mata a sede, não escolhe cor, de tal forma, se não evidencia a experiência concreta da
segregação racial em bebedouros no país, simboliza a existência da discriminação racial.

A canção “Juízo final”, portanto, embora traga uma dimensão antirracista de


conexão com a realidade estadunidense, expressou uma ação política consideravelmente
mais discreta do que a composição “Sou negro” lançada em seu disco compacto anterior.
Contudo, se a gravação de 1970 evocava prioritariamente a afirmação do orgulho racial
confrontando o preconceito (você sempre me despreza/ sei que sou negro, mas ninguém vai
rir de mim), a de 1971 complementa a mensagem ao referenciar a discriminação, discurso
fortalecido ao ser apresentado na faixa de abertura do álbum. As demais canções do disco,
porém, não trazem referências à questão racial em suas letras. O álbum documenta duas
composições de Toni, a balada romântica “Uma canção pra Arla” e o funk “O jornaleiro”
(parcerias com Major). O soul “Papai, não foi esse o mundo que você falou” (Roberto
Carlos e Erasmo Carlos), aborda o cenário da época, com a luta armada de movimentos
revolucionários no Brasil e no mundo (guerrilhas) e outras formas de contestação política
(protesto, ocupação) que buscavam alterar a realidade de desigualdade social e avanço da
miséria pelo capitalismo. Contudo, em uma mensagem que permanece dúbia na canção
quanto ao posicionamento do eu lírico diante do cenário: abro o jornal vejo guerrilhas/ o
sangue deixa/ a sua trilha/ vejo protesto, ocupação/ vejo misérias e traição/ prevejo a
morte da alegria/ a noite vai/ vencendo o dia/ eu me importo com as pessoas/ e elas nem
estão aí/ estão longe, muito longe/ mas eu vejo elas daqui.569

O lançamento do primeiro LP de Toni Tornado ocorreu em um momento


conturbado de sua recente carreira, no qual o cantor enfrentava problemas com setores da
imprensa e com os órgãos de vigilância do Estado ditatorial brasileiro. A dissertação
Signos da Política, representações da subversão: a Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira, defendida pela historiadora Ana Marília Carneiro
em 2013, ao investigar a especificidade dos códigos de produção de proibições no contexto
autoritário, retrata algumas das dificuldades enfrentadas pelo cantor no ano de 1971:

569
Toni Tornado. Papai, não foi esse o mundo que você falou (Roberto Carlos/Erasmo Carlos). Toni
Tornado. Álbum. Odeon. 1971. Faixa 03, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=1hHt5D3TgoE>
214

Elis Regina, a presidente do júri internacional do VI FIC, apresentava a música


Black is beaufitul, composição que trazia uma letra audaciosa, já anunciada pelo
emblemático título estampado com as palavras de ordem do poder negro. Em
meio à apresentação, Tony Tornado subiu ao palco e iniciou uma performance na
qual erguia os braços em punho cerrado, gesto símbolo do poder negro nos
movimentos pelos direitos civis. A performance foi interrompida pela invasão de
agentes do DOPS, que subiram ao palco e conduziram Tony Tornado algemado
para fora do Maracanãzinho.

De certa forma, a atitude do cantor já era esperada: Tornado havia chegado


recentemente de uma ‘estadia’ de quatro anos nos EUA, em um momento no
qual ganhava força a organização dos movimentos em defesa dos direitos civis
dos negros. O efervescente contexto político-cultural, marcado pela ampliação
do discurso político do movimento black power, ascensão do partido dos
Panteras Negras e propagação da black music, exerceu uma grande influência no
vocabulário, vestimentas, ideários e posturas políticas da comunidade negra,
determinando mesmo um modo de agir e viver no mundo. Slogans como black is
beautiful e I’m black, I’m proud tornaram-se as palavras de ordem que
simbolizavam a unificação e a conscientização da comunidade negra em torno de
um movimento de contestação que começava a tomar corpo no ambiente político
norte-americano.570

A cantora Elis Regina, nome consagrado nos Festivais da Canção,571 e da Música


Popular Moderna (MPM), lançou em 1971 o álbum Ela no qual gravou o soul “Black is
Beautiful”. O LP prosseguia na mudança da carreira de Elis rumo ao público jovem e com
adoção da sonoridade soul, como feito no álbum anterior, que registrou o dueto com Tim
Maia. “Black is beautiful” teve arranjos de Erlon Chaves, músico negro familiarizado às
sonoridades da black music, conforme mencionado no capítulo anterior. O arranjo da
canção acentuou a sonoridade gospel – uma das bases da Soul Music – da composição.

Hoje cedo, na rua do Ouvidor,/ Quantos brancos horríveis eu vi/ Eu quero um


homem de cor/ Um deus negro do Congo ou daqui/ Que se integre no meu
sangue europeu/ Black is beautiful, black is beautiful/ Black beauty so peaceful/
I want to a black I want to a beautiful/ Hoje à noite, amante negro eu vou/ Vou
enfeitar o meu corpo no seu/ Eu quero este homem de cor/ Um deus negro do
congo ou daqui/ Que se integre no meu sangue europeu/ Black is beautiful, black
is beautiful/ Black beauty so peaceful/ I want to a black I want to a beautiful .572

A composição dos irmãos Marcos e Paulo Sergio Valle, performada por Elis
Regina, além de adotar a sonoridade soul, articula a temática racial, de intenção
antirracista, na letra. O título ecoa um slogan desenvolvido nos movimentos negros
estadunidenses que evoca a apologia à estética corporal das pessoas negras, afirmando a
beleza de elementos fenotípicos como a cor da pele, os cabelos crespos e os lábios grossos,
de modo a confrontar um ideal de beleza hegemônico que valoriza apenas o padrão estético

570
CARNEIRO, Ana M. Signos da Política representações da subversão: a Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. 2013, p. 83, 84.
571
Sobre os festivais, ver MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo. Ed. 34.
2003.
572
Elis Regina. Black is Beautiful (Marcos Valle/Paulo S. Valle). Ela. Álbum. Philips. 1971. Faixa 02, Lado
A. No mesmo ano, Marcos Valle também gravou a canção ressaltando: “eu quero uma dama de cor”.
215

e os fenótipos associados às pessoas brancas (pele alva, cabelos lisos e nariz fino, por
exemplo). Ou, conforme definição produzida para o termo “Black is beautiful” pelas
editoras brasileiras do livro Irmã Outsider: ensaios e conferências, da poeta estadunidense
Audre Lorde: “Movimento cultural criado por pessoas afrodescendentes nos Estados
Unidos, no início dos anos 1960, com a intenção de acabar com a ideia racista de que
características físicas típicas de pessoas negras são inerentemente feias.”573

A canção, composta por irmãos cariocas loiros e de padrões fenotípicos brancos, e


interpretada por uma cantora socialmente reconhecida como branca nos padrões
brasileiros, não busca performar um eu lírico negro, mas sim uma pessoa branca que
procura um parceiro sexual negro (Eu quero um homem de cor/ (…) Que se integre no meu
sangue europeu). A letra da canção evoca a positivação ao fenômeno da mestiçagem,
porém, promove a inversão ao ideal da política de branqueamento da população brasileira.
A gravação não se enquadra no objeto desta tese, mas funciona como um interessante
exemplo de uma intenção antirracista – ainda que potencialmente problemática (por
exemplo, vou enfeitar o meu corpo no seu é um verso infeliz para uma relação afetiva que
se pretenda equalitária, posto que objetifica o par romântico como um tipo de adereço) –
veiculada na sonoridade soul brasileira a partir de uma perspectiva identitária branca.

A mensagem da canção, na performance de Elis Regina durante sua execução em


um festival, foi potencializada pela intervenção de Toni Tornado que, conforme informado
na dissertação de Ana Marília Carneiro, personificando o “muso” negro da composição,
enfatizou a conexão transnacional pela Linguagem do Orgulho Negro sinalizada no título
da canção, performando o gestual identificado ao Poder Negro nos EUA, como já havia
feito no ano anterior, durante a canção “Sou negro”. A repetição do gestual por Toni, mais
do que a letra e a sonoridade da canção, afrontou o imaginário de subversão do Estado,
resultando na detenção do cantor.574

A atenção das forças repressivas do Estado à figura de Toni Tornado também era
intensificada pela política de combate às drogas ilícitas. Conforme abordado por Ana
Marília Carneiro, a canção “BR-3” foi apresentada na coluna do jornalista Ibrahim Sued
como “uma apologia às drogas por muitos motivos, dentre eles os trechos que
mencionavam a BR-3 como gíria para a veia principal do braço para a aplicação de

573
LORDE, Audre. Irmã Outsider: ensaios e conferências. 2020, p. 125. Nota de rodapé, 26 (N.E.).
574
Uma reflexão sobre a densidade política associada ao gesto do punho cerrado será realizada no terceiro
tópico deste capítulo, dedicado à politização da estética na Linguagem Política do Orgulho Negro.
216

entorpecentes, ‘viagem multicolorida’ significava os efeitos psicotrópicos do LSD”. 575


Além disso, durante uma apresentação no Festival de Verão de Guarapari em 1971,
“exaltado entre os passos de dança e rodopios, Tony Tornado teria se desequilibrado do
palanque e acabou por aterrissar em cima de uma jovem na plateia, provocando uma
fratura na sua coluna”, acidente que no parecer do Centro de Informação do Exército, de
dezembro de 1971, foi atribuído ao cantor estar “dopado e completamente fora-de-si
durante as apresentações, chegando a lançar-se sobre o público, no auge do ‘entusiasmo
alucinante’, indo ferir gravemente uma jovem assistente.”576 Além da política de combate
às drogas à qual os órgãos de repressão associavam sua leitura de Toni, conforme a
historiadora Amanda Palomo Alves, retomando um argumento de Zuza Homem de Mello:
“Tornado representaria um perigo para o governo militar, uma vez cogitada a possibilidade
de que pudesse se tornar um líder negro, capaz por sua popularidade de facilitar a formação
de organizações políticas no Brasil como a dos ‘Panteras Negras’.”577 Percepção que
justifica a reação perante ao gesto do punho cerrado, apesar da atuação repressiva contra o
cantor não ter chegado a configurar prisões prolongadas, apenas esclarecimento das ações.

Apesar da repercussão da produção dos novos destaques da indústria fonográfica,


os artistas da Black Music Brasileira que conquistaram impacto comercial na década de
1960 também fizeram lançamentos, à exceção de Elza Soares, que em 1971, enquanto
migrava com a família para a Itália, não realizou lançamentos fonográficos. Simonal
lançou o álbum Jóia, Jóia, que registrou o fim de sua parceria com o Som 3, agora com um
novo trio instrumental, “Simonautas” (piano/teclados de Sérgio Carvalho, contrabaixo por
Sérgio Barroso e bateria por Wilson das Neves) e prosseguiu em uma proposta de
sonoridade samba-soul, mas sem qualquer expressão da linguagem antirracista ou da
temática racial. Contudo, a recepção do álbum foi afetada pela midiatização do
envolvimento do cantor com a tortura ao seu contador, realizada pelo Departamento de
Ordem Política e Social (o DOPS), em meio à circulação da notícia, inicialmente
fortalecida pelo próprio Simonal, de que teria ligações com as forças repressivas do
Estado. Aparentemente, a intenção de Simonal em passar tal imagem de relação com a
ditadura era de impedir a circulação do episódio de tortura ao seu contador (realizada em

575
CARNEIRO, Ana M. Signos da Política representações da subversão: a Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. 2013, p. 85.
576
CARNEIRO, Ana M. Signos da Política representações da subversão: a Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. 2013, p. 86.
577
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade
em Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 87.
217

sede do DOPS de forma clandestina, pela amizade do artista com alguns policiais),
contudo, o efeito foi contrário, potencializando a difusão do episódio. 578 Em meio a esse
episódio, Simonal saiu da gravadora Odeon, assinando contrato com a Philips. O episódio
provavelmente eclipsou o lançamento do que poderia ter sido considerada uma segunda
canção explicitamente engajada na pauta racial por Simonal, na linha de “Tributo a Martin
Luther King”. Dois meses antes da repercussão do caso do contador, Simonal lançou, em
junho de 1971, seu primeiro compacto com o conjunto Simonautas, que incluía outra
composição sua em parceria com Ronaldo Bôscoli, “África, África”: África ê. África.
Mostra meu passado que eu não vi passar./ Oh, lelê./ África ê. África. Quem tá do meu
lado pode se chegar./ Meus antepassados vão querer saber./ Quem tem guia forte, quem é
pra valer./ Toda luz do mundo sai do Sol de lá./ África, meu sangue, África, África.579 Uma
canção, portanto, na qual Simonal reivindicava sua ancestralidade africana e sugeria o seu
apagamento no pedido: África, mostra meu passado que eu não vi passar.

Já Eva, lançou em 1971 o LP Cartão Postal pela Odeon, no qual assumia o nome
artístico Evinha (através do qual era conhecida desde os anos 1960), mantendo a
sonoridade soul de sua carreira solo, mas sem apresentar a temática racial nas letras.

A temática racial, em identificação com a realidade estadunidense, contudo,


apareceu desde o título do álbum lançado por Jorge Ben em 1971, Negro é lindo, tradução
literal do slogan Black is beautiful, explicado nas páginas anteriores. Segundo Ana Maria
Bahiana, em texto para a reedição em CD do álbum, foi lançado “em uma fase da indústria
cultural brasileira onde o negro começa a ser percebido como potencial consumidor. Negro
é lindo traz homenagem a Cassius Clay, depois Muhammad Ali e também a João
Parahyba, apelidado de Comanche.”580 O boxeador é homenageado logo na terceira faixa
do álbum, “Cassius Marcelo Clay” dos versos Cassius Marcelo Clay/ herói do século
vinte/ sucessor do Batman/ Capitão América e Superman/ (...) Salve, Narciso Negro, salve/
Mohamed Ali/ (...) O eterno campeão/ Na realidade, um ídolo mundial/ tem a postura da
Estátua da Liberdade/ e a altura do Empire State/ Soul Brother, soul boxer/ soul man.581

578
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 200-
235. MORAIS, Bruno V. L. “Sim, sou um negro de cor”: Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro
no Brasil dos anos 1960. Dissertação (História). UFMG. 2016, p. 35-44.
579
Wilson Simonal. África, África (Wilson Simonal/Ronaldo Bôscoli). Compacto simples. Na galha do
cajueiro/Ouriço/África, África. Odeon. 1971.
580
Ana Maria Bahiana. Texto de contracapa. Jorge Ben. Negro é lindo. Álbum. Philips. 1971. Reedição em
CD, Universal Music. 2009. Negrito do original.
581
Jorge Ben. Cassius, Marcelo Clay. (Jorge Ben). Negro é lindo. Álbum. Philips. 1971. Faixa 03, Lado A.
218

Conforme o historiador Alexandre Reis dos Santos, na dissertação “Eu quero ver
quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações raciais na obra de Jorge Ben
(1963-1976): “Mohammed Ali era um polêmico boxeador estadunidense e um ativo
militante pelos direitos civis dos negros. Nascido Cassius Marcellus Clay, se converteu ao
islamismo e então mudou de nome, pois considerava o anterior um ‘nome de escravo’.”582
A conversão do boxeador ao islamismo, na década de 1960, foi relacionada ao impacto e
influência do líder negro Malcolm X, então um militante da Nação do Islã, grupo que
evocava o rompimento com o cristianismo (e a rejeição dos nomes de batismo) entre a
comunidade negra como uma libertação da herança escravista.583 Um dos episódios da
militância do boxeador que angariou maior repercussão foi a sua recusa ao alistamento
militar obrigatório para servir na invasão dos EUA ao Vietnam. O pugilista declarou: “Não
tenho nenhum problema com os vietcongues. Eles nunca me chamaram de crioulo.”584

O arranjo da canção “Cassius Marcelo Clay” priorizava o violão de Jorge e


tambores tocados pelo Trio Mocotó, além de orquestra de cordas e sopros, mantendo a
sonoridade apresentada nos dois álbuns anteriores do artista, de difícil classificação.
Sonoridade também presente na canção título do álbum, “Negro é lindo”, dos versos:
negro é lindo/ negro é amor/ negro é amigo/ negro também é filho de deus/ eu só quero
que Deus me ajude/ a ver meu filho nascer e crescer/ e ser um campeão/ sem prejudicar
ninguém/ Preto Velho tem/ tanta canjira/ que todo o povo de Angola/ mandou Preto Velho
chamar/ Eu quero ver/ Preto Velho dizer.585 Os versos dialogam com a proposta do slogan
“black is beautiful”, mas ambientando a ideia ao valorizar a figura afro-religiosa do Preto
Velho – muito evocada em canções de Jorge, como apresentado no capítulo anterior desta
tese – em uma possível conexão transnacional também com o continente africano, ao
referenciar todo o povo de Angola. A referência à religiosidade de matriz africana é
fortalecida pela alusão a canjira, que, conforme o Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros,
de Olga Gudolle Cacciatore é um “conjunto de cânticos e danças rituais, girando em
círculo, em homenagem a entidades, na Umbanda e terreiros bântu.”586

582
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014,
p. 78.
583
Sobre Malcolm e a Nação do Islã, ver MARABLE, Manning. Malcolm X. Uma vida de reinvenções. 2013.
584
REMICK, David. 2011: 11. Apud. SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”.
Negritude, política e relações raciais na obra de Jorge Ben (1963 -1976). Dissertação. UFF. 2014, p. 108.
585
Jorge Ben. Negro é lindo. (Jorge Ben). Negro é lindo. Álbum. Philips. 1971. Faixa 03, Lado A.
586
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 81.
219

No ano de 1971, portanto, a indústria fonográfica brasileira possibilitou o registro e


difusão de um conjunto de canções e álbuns da Black Music Brasileira. Em comparação
com o cenário da década de 1960, o início dos anos 1970 representou um distanciamento
do jazz e os subgêneros New Orleans, Hard Bop e Souljazz/Funky, com o predomínio das
sonoridades da música jovem negra, Soul e Funk, sobretudo através dos trabalhos de
artistas consagrados nesta década, como Tim Maia, Toni Tornado e o Trio Ternura.

Quanto aos dados da Pesquisa de Vendas de Discos do IBOPE, o ano de 1971


iniciou ainda com o impacto dos álbuns Tim Maia (1970) e Força Bruta (1970), de Jorge
Ben, que constam, em janeiro no RJ, entre as cinco primeiras colocações e os compactos
duplos “Brasil, eu fico” e “Resposta”, de Simonal, também entre as dez primeiras
colocações. Discos que permanecem constando nas listagens durante o primeiro semestre,
com a inclusão dos compactos simples “Azul da cor do mar” e “Chocolate” de Tim Maia,
“Na galha do cajueiro” de Simonal e “Tobogã” de Evinha. O fato do álbum de Tim em
1971 também ser chamado Tim Maia dificulta a identificação de seu surgimento na
listagem, mas em outubro aparece a referência ao LP Festa para um santo rei de Tim na 7°
colocação entre os mais vendidos, o que possivelmente trate de uma referência ao segundo
álbum de Tim (que abre com a canção “A festa de Santo Reis”), na mesma semana em que
aparece o álbum Jorge Ben como 19°. Nos registros seguintes, as referências ficam como
álbum Tim Maia (7°) e Negro é lindo (12°), que permanecem em destaque até dezembro,
junto ao compacto “Na galha do cajueiro” de Simonal. Da Black Music dos EUA, constam
discos de Aretha Franklin e Jackson 5 no início do ano, e no restante, uma coletânea de
James Brown entre os LPs.587 Em SP e em Recife os dados de vendas são similares ao
encontrado no RJ, com Tim Maia tendo o maior destaque em vendas no decorrer do ano
(no caso de Recife, principalmente pelo compacto, diferente de SP e RJ, que o sucesso
maior é em LP), além de alguns registros para Jorge Ben (LP), Simonal e Evinha
(compactos), com a diferença que, em SP, Toni Tornado aparece, poucas vezes na lista de
compactos (“BR-3”) e em Recife, uma vez o Trio Ternura (LP). 588

O ano de 1972, conforme esse acervo, demonstra o impacto em Recife do LP de


Tim Maia, que permanece entre os dez mais vendidos por todo o ano, junto a Jorge Ben.
Toni Tornado aparece apenas em março, com o compacto “Podes crer, amizade” e Simonal

587
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa Venda de Discos. Notaç ão: PD
013.
588
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa Venda de Discos. Notação: PD
014 (SP) e PD 016 (Recife, anos 1971 e 1972).
220

em dezembro, com o LP Wilson Simonal, lançado pela Philips. Para o ano de 1972, os
dados de vendas em Recife são interessantes por incluir, junto ao “Título do LP”, o “Título
da Música”, de modo que a informação do LP Tim Maia é fortalecida pela música “Pelo
amor de Deus” (o que significa se tratar do terceiro álbum homônimo do artista, lançado
em 1972) e o LP Jorge Ben, pela música “Fio maravilha” (informando se tratar do álbum
Ben, também lançado em 1972).589 O acervo para esse ano não contém nenhum registro da
cidade do Rio de Janeiro e, além dos dados de Recife, constam apenas três microfilmagens
intituladas “Relação das gravações mais vendidas durante o ano de 1.972 em São Paulo”,
nas quais, nos 20 compactos duplos, “Você”, de Tim Maia, aparece em 4° e nos 20 Long-
Playings, Tim Maia n°2 está em 12° (ou seja, o segundo álbum de Tim, lançado em 1971),
configurando Tim como o único artista do recorte desta tese a pontuar. Da Black Music dos
EUA, que nenhum artista apareceu nos dados de Recife, em SP apareceu Michael Jackson
(“Ben”, 16°, e “Got to be there”, em 18° na lista de compactos simples).590

Tim Maia, terceiro LP gravado pelo artista, lançado pela Polydor em 1972, manteve
a sonoridade desenvolvida por Tim no álbum anterior, com os seus souls e baiões-soul
enriquecidos pelos solos de Paulinho, mas para este disco o instrumental foi fortalecido
pela adoção dos músicos do grupo Dom Salvador e Abolição. O LP de Tim foi gravado por
duas bases de instrumentistas, uma creditada pela localização “Rio” e outra “São Paulo”.
Os músicos do Rio eram os oriundos do Abolição: Salvador (piano), Luiz Carlos (bateria),
Rubens (baixo), Oberdan (sax e flauta) e Sérgio (trombone), além de Garoto (vibrafone),
Waldir e Barrosinho (pistons), Paulinho (guitarra solo) e o próprio Tim (guitarra e violão
base), conforme informado no encarte do LP. Já o grupo São Paulo, mantinha Luiz Carlos,
Rubens, Sérgio, Waldir, Paulinho e Tim, incluindo Carlos da Fé (piano, piano elétrico e
órgão), Aparecido Bianchi (vibrafone), Chacal (tumba, congas e percussão), Isidoro
Longano (sax e flauta), Antônio Arruda (sax) e Paulinho (piston). Os dois grupos contando
com o amparo de orquestra de cordas, alguns instrumentistas convidados e os vocais de
apoio de Sérgio e dos ex-Os Diagonais, Genival (Cassiano) e Amaro. O álbum apresentou
três canções em inglês: uma regravação de “These are the songs”, “My little girl” e “Where
is my other half?”, também gravada em português no álbum com o título “Lamento”. 591

589
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa Venda de Discos. Notação: PD
016.
590
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa Venda de Discos. Notação: PD
020 (SP anos 1972 e 1973).
591
Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1972. Reedição em CD, Universal Music. 2010.
221

Dom Salvador também produziu os arranjos dos álbuns lançados por Elza Soares
em 1972, Elza pede passagem e Sangue, suor e raça - disco de duetos com o sambista
Roberto Ribeiro -, lançados em março e dezembro, respectivamente. Após ter residido na
Itália entre 1970 e 1971, Elza retornou ao Brasil e retomou a carreira na Odeon. O primeiro
contato com o LP Elza pede passagem, através da capa sugere uma mudança na sonoridade
da artista rumo ao soul e funk devido à sua aparência. Afinal, a adoção do penteado black
power, valorizando o volume dos cabelos crespos, da calça boca de sino e os movimentos
captados nas fotos de capa e contracapa aproximavam-na da “moda soul”. A ausência de
um texto informativo para o consumidor poderia ser compensada pela inclusão de Salvador
como orquestrador. Porém, a audição do disco evidencia que não ocorreu expressivas
mudanças na sonoridade de Elza, apenas com a maior exploração do timbre do contrabaixo
elétrico em algumas composições (“Cheguendengo” e “Amor perfeito”), além da guitarra e
órgão elétrico em algumas canções, que ainda assim eram associadas ao samba (mas não à
Bossa Negra). Essa tendência seguiu no álbum seguinte, Sangue, suor e raça, gravado com
o então popular sambista Roberto Ribeiro, disco de sonoridade de samba mais tradicional
(mesmo em “Swing Negrão”, composição de Elza que abre o disco, como uma breve
introdução citando a canção “Brasil pandeiro”), apenas com o contrabaixo elétrico um
pouco mais forte em algumas canções. Também não há referências antirracistas.

Fig. 9. Capa e contracapa. Elza pede passagem. 1972. Extraído de (Acesso 23/05/2021):
<https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-1312546998-vinil-lp-elza-soares-elza-pede-passagem-disco-
1972-lacrado-_JM>

Dom Salvador também atuou na produção de um terceiro artista entre os estudados


no período. Toni Tornado, segundo álbum do cantor, também lançado em 1972, não
apresenta créditos aos músicos participantes, mas há a informação da orquestração e
222

regência por parte de Dom Salvador, o que permite concluir, portanto, que o pianista,
embora não tenha lançado um novo trabalho solo, teve participação expressiva na
sonoridade difundida em tal ano. Para a produção de Toni, os arranjos de Salvador (e
talvez sua presença ao piano) proporcionaram uma maior referência blues no disco, como
destacado em “Não grile minha cuca” (de Toni) e “Uma ideia” (Marcos Valle/Paulo Sérgio
Valle). O álbum também registrou maior atuação de Toni como compositor, que assina
oito das onze canções e apenas em uma delas tendo um parceiro (Major em “Podes crer,
amizade”), sendo as duas atuações como intérprete restantes apresentadas em “Mané
Beleza” (Chico Anísio/Arnaud Rodrigues) e “Sinceridade” (Tim Maia).

Entre as onze canções, apenas a composição dos irmãos Valle aborda alguma
referência antirracista (os mesmos autores de “Black is beautiful”): Quando eu nasci/ vim
sem pedir/ antes eu fui uma ideia/ só uma ideia/ de minha mãe e um pai/ de construir
alguém que só soubesse amar/ Eu aprendi minha lição/ eu sei que a sombra das mãos joga
no chão/ a mesma cor/ Oh, que ideia!592 A canção repete algumas vezes o verso Pai, olhe,
olhe para mim, que, acompanhado por uma sonoridade que transita entre o blues e o
gospel, evoca uma dimensão de mensagem religiosa. Conforme a dissertação da
historiadora Amanda Palomo Alves: “Depreendemos que o verso ‘eu sei que a sombra das
mãos joga no chão a mesma cor’, explicita a acepção de que todos os homens são iguais,
indiferente da cor da pele.”593

Fig. 10. Capa e contracapa. Toni Tornado. 1972. Extraído de (Acesso 23/05/2021):
< https://woodstocksound.wordpress.com/2014/06/10/toni-tornado-discografia/>

592
Toni Tornado. Uma ideia. (Marcos Valle/Paulo S. Valle). Toni Tornado. Álbum. Odeon. 1972. Faixa 03,
Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=jhL9FhmQZrs >
593
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade
em Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 107.
223

Encerrando a análise sobre o ano de 1972, Evinha não lançou nenhum álbum e
Simonal lançou o seu primeiro LP na gravadora Philips (que constou nos dados de vendas
em Recife no ano), Se dependesse de mim, que sucedeu o seu primeiro lançamento na nova
gravadora, o compacto simples “Noves fora/Paz e arroz”. Os discos demostravam que a
filiação de Simonal ao soul e funk, agora com maior adoção de guitarra, não exibia sinais
de influência dos novos artistas da Black Music Brasileira, mantendo a sonoridade
identificável em seus últimos trabalhos desde 1969; e as gravações não apresentaram
referência à questão racial. O álbum aproveitou a composição “Noves fora” do compacto,
já “Paz e arroz”, canção de Jorge Ben, foi lançada no LP do compositor em 1972, Ben,
com algumas modificações na letra, em um álbum que marcou o fim da parceria de Jorge
com o Trio Mocotó. Segundo Ana Maria Bahiana, em texto para a reedição do álbum em
CD: “Ben marca o apogeu de Jorge Ben Jor como um alquimista de ritmos, um
explorador da impensada fronteira entre samba, blues e soul.”594 A hibridação entre
gêneros da black music e os ritmos do samba permanecem realizando um produto original
de difícil classificação - embora apontado como imiscuído ao blues e soul -, de modo que a
mudança mais explícita na sonoridade foi a exploração mais intensa do violão (exceto em
“Paz e arroz”, tocada na guitarra) como instrumento de ritmo e solista, e o menor destaque
à percussão e ao acompanhamento de orquestra (de cordas e sopro). Quanto à temática,
este álbum de Jorge também não apresentou referências à linguagem antirracista.

O desenvolvimento da sonoridade de Jorge Ben motivou uma revisão em estúdio de


sua produção musical. Em 1973, Jorge lançou o disco retrospectivo 10 anos depois, cuja
contracapa anunciava: “Nova gravação de sucessos de Jorge Ben, com o seu som de hoje.”
O LP, porém, já avançava na sonoridade em relação ao anterior. Além da centralidade do
violão de Jorge, no álbum há o retorno dos timbres do piano acústico e um uso vigoroso da
bateria e do contrabaixo elétrico, então inéditos em sua carreira, no Lado A e, no Lado B,
além dessa instrumentação, o piano elétrico e vocais de apoio femininos. O conceito do
álbum era articular as regravações em blocos que uniam três canções em cada uma das
faixas do LP, incluindo canções de sua autoria gravadas por outros artistas (“A minha
menina”, lançada por Os Mutantes e “Zazueira”, por Simonal, apareceram na faixa 03 do
Lado A, junto a “Que maravilha”, lançada tanto por Jorge quanto por Simonal. E
“Vendedor de bananas”, lançada por Os Incríveis, abriu a faixa 02 do Lado B, junto de

594
Ana M. Bahiana. Texto para a reedição. Jorge Ben. Ben. Álbum. Philips. 1972. CD. Universal Music.
2009.
224

“Cosa nostra” e “Bicho do mato”). Conforme texto de Ana Maria Bahiana para a reedição
em CD: “Jorge Ben Jor lançou esse novo conceito de álbum (para a época): vinte e uma
canções compactadas em sete faixas, cada qual um pout-pourri de músicas aparentadas
rítmica e conceitualmente, cobrindo dez anos de sucesso.”595 O consumidor ouvinte
seduzido pelos lançamentos de Jorge após sua revalorização em 1969 era apresentado às
composições da primeira fase de sua carreira sem riscos de rejeição da sonoridade samba-
jazz, e quem acompanhava sua carreira desde o álbum de 1963 poderia ouvir versões
atualizadas de suas composições, mais próximas às execuções ao vivo na época,
diferenciando do efeito de uma coletânea com os fonogramas originais.

Toni Tornado em 1973 lançou apenas um compacto simples, contendo o baião (que
incluía instrumentos elétricos, mas não chegava a ser um baião-soul ou funk) “Odorico” e o
soul “Mole, Mole, Fácil, Fácil”, composições de sua autoria.596 A primeira, uma explícita
referência ao personagem Odorico Paraguaçu, protagonista da telenovela O bem amado, a
primeira em cores da televisão brasileira, exibida às 22h pela Rede Globo entre 22/01/1973
e 03/10/1973. A composição de Toni não compôs a trilha sonora da novela, cuja trilha
nacional foi integralmente composta por Vinícius de Moraes e Toquinho - e na trilha
internacional havia “Masterpiece” do grupo de black music estadunidense (doo wop, soul e
funk) The Temptation.597 Já o Trio Ternura e Tim Maia participaram da trilha sonora da
telenovela Rosa dos Ventos, exibida pela TV Tupi às 19h entre 16/07 e 17/11 de 1973, com
as canções “Sempre Primavera” e “Paz”, respectivamente, comercializadas no LP com a
trilha sonora da novela, lançado em 1973 pela gravadora Sinter. 598 A telenovela da Tupi
estreou no mesmo mês que chegou às lojas o quarto álbum de Tim, Tim Maia (1973) que
não incluiu a faixa presente na trilha, mas apresentou duas canções de expressivo impacto
na carreira do cantor: “Réu confesso” e “Gostava tanto de você”. Exceto pelo guitarrista
Paulinho, o disco não manteve os instrumentistas presentes no álbum anterior (oriundos do
grupo Dom Salvador e Abolição) e também não apresentou a temática racial.599

O Trio Ternura, por sua vez, lançou em 1973 dois discos compactos de interesse
para a proposta da presente tese. Desde o álbum de 1971, o grupo lançou mais quatro

595
Ana M. Bahiana. Texto de reedição. Jorge Ben. 10 anos depois. Álbum. Philips. 1973. CD Universal.
2009.
596
Toni Tornado. Odorico/Mole, mole, fácil, fácil. Compacto. Odeon. 1973.
597
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/o -bem-amado/trilha-sonora/> Acesso
24/05/21.
598
< http://teledramaturgia.com.br/rosa-dos-ventos/> Acesso 24/05/2021.
599
Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1973. Reedição em CD. Abril. 2011.
225

compactos. Dois em 1971, na CBS, que repetiam as faixas “Por isso eu digo, Brasil, eu
fico/Ah! Se eu pudesse”, oriundas do LP; e os compactos soul “O mensageiro/Razão de
ser” e “Sempre primavera/Canção sem rima”, em 1972, ambos pela Polydor e de tema
romântico. Os compactos lançados em 1973 diversificaram a temática, incluindo
referências religiosas de matriz afro, sobretudo em composições de Umberto Silva, pai dos
irmãos integrantes do trio.

O primeiro compacto incluiu as canções “Oxalá/A hora grande”, sendo que a


primeira delas (que também foi lançada em 1973 no LP da coletânea Sucessos de ouro n°5,
da Polygram/Philips, disco que abria com a canção “Réu Confesso”, do álbum de Tim
Maia lançado no ano) entoava o refrão, cantado por Jussara e Jurema: Oxalá/ salve o
senhor de aruanda/ salve o senhor dos orixás. Robson, em vocal solo, narra uma história
que começa dizendo: quis um dia Oxalá uma coroa de pena/ tão rara e impossível era de
encontrar/ e pediu que um guerreiro chamado Oxossi/ encontrasse uma ave com a cor do
mar, enquanto o instrumental destaca tambores e atabaques, acompanhados por uma
guitarra rítmica, contrabaixo e órgão elétricos e bateria. 600 A canção, assim, aborda uma
narrativa de cosmogonia afro-brasileira, temática também presente no segundo compacto
lançado pelo Trio no ano, “A gira/Last tango em Paris”. A canção “A gira” (Umberto
Silva/ Beto Scala) seguiu a mesma linha da anterior no instrumental e na divisão vocal: as
irmãs cantando por toda a canção o verso Ele atirou a flecha/com seu bodoque atirou,
enquanto Robson canta a história, desta vez menos explícita quanto às divindades
reverenciadas.601 No Dicionário de Cultos afro-brasileiros o verbete “gira” informa:
“Roda ritual, com cânticos e danças, para cultuar os santos e as entidades espirituais,
formada pelos filhos de santo (médiuns). O mesmo que canjira e enjira.”602 Conforme texto
de Brenda Vidal comentando o relançamento em vinil do compacto, em 2018, tratou-se de
uma “nova prensagem pelo selo inglês Phonica, em um compacto que celebra o groove do
soul, percussão e influências do candomblé.”603

Ainda entre os lançamentos de discos compactos, em dezembro de 1973 ocorreu a


estreia de Hyldon que lançou, também pelo selo Polydor, da multinacional Philips, o
compacto “Na rua, na chuva, na fazenda/Meu patuá”, duas canções soul românticas.

600
Trio Ternura. Oxalá/A hora grande. Compacto. Polydor. 1973.
601
Trio Ternura. A gira (Umberto Silva/Beto Scala). A gira/Last tanto in Paris. Compacto. Polydor. 1973.
602
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 131.
603
Acesso 24/05/2021: < https://noize.com.br/raridade-soul-brasileiro-trio-ternura-ganha-relancamento-em-
vinil/?fbclid=IwAR1HiaRKavb3rRzfaTNA2QAWfS4xOKxNiOe5aql0hXVBFiM V6Iljq1jHb1A#1>
226

Antes, Hyldon, que atuava como músico de estúdio da Philips, participou do LP de


estreia de Luiz Melodia, artista negro, oriundo do Morro de São Carlos, no Rio de Janeiro,
e que havia sido lançado como compositor em 1971, pela tropicalista Gal Costa, que
interpretou a sua “Pérola negra” no show e disco Fa-tal: Gal a todo vapor.

A aposta da gravadora em Luiz sugere um investimento na diversidade de


sonoridades que inspiravam o artista, posto a gravação de um LP ocorrer antes de um
compacto ou mesmo um compacto duplo e pelo selo principal: Philips. Conforme texto de
Ricardo Moreira para a reedição do álbum em CD em 2013, na caixa Três Tons de Luiz
Melodia: “Pérola Negra é um nome bem apropriado para o raro híbrido de choro, blues,
samba, bolero, R&B, Jovem Guarda e MPB que se condensa no carrossel de influências do
artista. (...) O delicioso soulzinho Pra aquietar tem a guitarra solo de Hyldon”,604
destacando que o repertório do artista incluía ao menos três sonoridades da Black Music –
o blues, o R&B e o soul – já em seu álbum de estreia. A instrumentação do LP Pérola
negra, de 1973, era esparsa, centralizada na voz de Luiz e o piano acústico de Antônio
Perna, acompanhados de baixo e orquestra (“Pérola negra”), baixo e guitarra
(“Magrelinha”) e guitarra ou violão, baixo, bateria e percussão (“Vale quanto pesa”,
“Estácio, holly Estácio”, “Farrapo humano”, “Objeto H”), exceto em “Pra aquietar” e
“Forró de janeiro”, com banda completa de outros integrantes, o choro “Estácio, eu e
você”, com o Regional do Canhoto e o blues “Abundantemente morte”, apenas com violão
e guitarra de Perinho Albuquerque. 605 As canções, todas compostas por Luiz Melodia, não
evocavam a temática racial nas letras – ainda que “Pérola negra” apresentasse uma alusão
racial, com a musa negra desde o título.

O antigo companheiro de Hyldon em Os Diagonais, Cassiano, lançou em 1973 seu


segundo LP solo, Apresentamos nosso Cassiano, pela gravadora Odeon. Conforme
destacado pelo jornalista Mauro Ferreira, apesar de ser o segundo álbum solo do artista, o
título do LP sugeria uma estreia: “Só que o título Apresentamos nosso Cassiano fazia
sentido porque, em 1973, o cantor permanecia desconhecido ao público. (...) O disco foi
gravado por artistas identificados com a linguagem da black music,”606 com bateria,
contrabaixo, piano e órgão elétricos, além de vocais de apoio e arranjos orquestrais
valorizando o timbre vocal suave e os acordes de guitarra delicados, mas marcantes, de

604
Ricardo Moreira. Texto de encarte. Box. Três Tons de Luiz Melodia. Universal Music. 2013.
605
Luiz Melodia. Pérola Negra. Álbum. Philips. 1973. Reedição em CD. Universal Music. 2013.
606
< https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/07/28/discos-para-descobrir-em-
casa-apresentamos-nosso-cassiano-cassiano-1973.ghtml> Acesso 24/05/2021.
227

Cassiano.607 Contudo, foi mais um disco que não angariou repercussão. A sonoridade soul
mais suave, porém - em diferença aos arranjos mais enérgicos dos discos de Tim Maia,
Toni Tornado ou Abolição - também marcou Evinha, o quarto LP lançado pela cantora,
que incluiu uma versão em português para “Ben”, de Michael Jackson (canção de sucesso
comercial no Brasil desde o ano anterior, conforme os dados do IBOPE).608

Já Simonal, em 1973 lançou o álbum Olhaí, balandro... é bufo no birrolho grinza!,


pela Philips, aproximando do que era chamado “sambão-jóia” de artistas como Benito de
Paula e Antônio Carlos & Jocafi. Apesar de repleto de apitos e cuícas, o disco destacava
também guitarras em linha funk, órgão e piano elétrico desde a faixa de abertura, “Dingue
li bangue”. Segundo Ricardo Alexandre, o LP identificado ao samba-rock: “vendeu melhor
do que o álbum anterior (21 mil cópias), ‘Dingue li bangue’ entrou nas programações de
rádios populares e, por certo tempo, Simonal voltou a ser um dos melhores cachês do
Brasil.”609 A faixa que encerra o disco, “Rio Grande do Sul na festa do preto forro”, um
samba-enredo lançado no carnaval de 1972, embora gravado em um arranjo convencional
de samba, portanto, fora da sonoridade estudada nesta tese, trouxe elementos da linguagem
antirracista ao disco, ao abordar a memória da escravidão através da evocação pela
liberdade, cuja conquista é atribuída à intervenção dos orixás: Um negro na senzala
cruciante/ olhando o céu pedia a todo instante/ em seu canto e lamentos de saudade/
apenas uma coisa: liberdade/ (...) Oeô, oeá/ Saravá, meu povo/ e salve todos os orixás.610

Outro álbum de aproximação ao samba de artistas oriundos da Bossa Negra na


década de 1960 foi justamente o da pioneira do estilo, o álbum Elza Soares, lançado em
dezembro, um mês depois do de Simonal. A faixa de abertura do LP, “Eu não toco
berimbau” (Serrinha/ Mazola), poderia sugerir uma atualização do samba de gafieira com
novos elementos da black music, com o naipe de metais, os teclados e a guitarra rítmica
dialogando com o solo de berimbau. Contudo, a sonoridade das demais onze faixas que
integram o álbum justifica a presença do texto de contracapa com o informe do álbum ser
um projeto do produtor Jorge Coutinho para Elza “fazendo-a reviver como sambista de
corpo inteiro.”611 No restante das canções, ainda que com uso de guitarra (rítmica),
contrabaixo elétrico e teclados, predomina a sonoridade mais convencional dos sambas,

607
Cassiano. Apresentamos nosso Cassiano. Álbum. Odeon. 1973.
608
Evinha. Evinha. Álbum. Odeon. 1973.
609
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 228.
610
Wilson Simonal. Rio Grande do Sul na Festa do Preto Forro (Nilo Mendes/Dario Marciano). Olhaí
balandro. é rufo no birrolho grinza! Álbum. Philips. 1973. Faixa 06, Lado B.
611
Waldinar Ranulpho. Texto de contracapa. Elza Soares. Elza Soares. Álbum. Odeon. 1973.
228

com apitos, cuícas, tamborins, tambores e outros instrumentos de percussão e o canto de


Elza sem scats, em muitas canções evocando o vocal de samba-canções (geralmente com
apoio instrumental de orquestras de cordas). Assim como no disco de Simonal, há canções
que evocam a dimensão antirracista, mas fora da sonoridade estudada nesta tese, como a
regravação de “Zelão” (Sergio Ricardo), composição engajada dos anos 1960, que tematiza
o cotidiano de dificuldades financeiras dos moradores de favelas e a solidariedade diante
da perda da moradia e pertences por chuva forte. E a faixa 04 do Lado A, “Dia da graça”
(Candeia), que ao tematizar o carnaval, trouxe os versos: Damos alegria e amor/ a todos
sem distinção de cor/ (...) Negro não humilhe, nem se humilhe pra ninguém/ todas as raças
já foram escravas também/ (...) cante um samba na universidade/ e verás que teu filho será
príncipe de verdade/ Que então jamais tu votarás ao barracão.612 A canção atribui o
comportamento de harmonia racial às comunidades negras, e reforça o orgulho racial
rompendo com o estigma da herança escravista ao ressaltar: todas as raças já foram
escravas também. Por fim, celebra a educação, enaltecendo o acesso à universidade.

O ano de 1973 possibilitou um quadro mais diversificado da produção da Black


Music no mercado fonográfico nacional. Os dados de vendagem do IBOPE revelam que no
Rio de Janeiro, Tim Maia (aparentemente, os LP de 1972 e 1973) e Jorge Ben (compacto
duplo “O circo chegou” e LPs Jorge Ben e 10 anos depois), angariaram resultados por todo
o ano. Elza Soares constou apenas no primeiro semestre (em janeiro está em 15° com o
compacto duplo “Sangue, suor e raça” com Roberto Ribeiro). O Trio Ternura a partir de
maio mantém bons resultados com o compacto “A gira” e Simonal aparece uma vez em
novembro, com o LP creditado como Wilson Simonal em 7° uma vez (provavelmente o
Olhaí, balandro...). Já no cenário da produção internacional, a informação detalhada dos
dados de janeiro antecipa resultados de todo ano: James Brown (“There it is” em 18° no
novo formato Fitas, mas, a partir de março, o LP Good Foot e, depois, o compacto duplo
“The goodfather of soul” destacam o ano todo), Stevie Wonder (“You are sunshine of my
life”, 7° em compactos e Talking book em 13° nos LPs), Temptations (“Papa was a rolling
stone” em 26° nos compactos), Michael Jackson (“Ben”, 1° lugar entre os compactos, 1°
nos compactos duplos e 14° nos LPs), The Jackson 5 (“Lookin throught the windows” em
10° nos compactos duplos) e The Supremes (“Precious little things”, em 7° nos
compactos). Estes artistas, com os discos acima e outros trabalhos, permaneceram em

612
Elza Soares. Dia da graça. (Candeia). Elza Soares. Álbum. Odeon. 1973. Faixa 04, Lado A. CD EMI,
2003.
229

destaque por todo o ano. A partir de maio começou o grande destaque da balada soul
“Killing me softly” de Roberta Flack (1° lugar nos compactos), que também constou por
todo o ano, e Marvin Gaye (25° no compacto “Don’t mess with mister ‘T’”). No segundo
semestre, Gladys Night & The Pips (“Everything you’ll ever need”, “Neither one of us” e
“For once in my lip”, nos compactos) e Kool and the Gang (“Funk stuff” nos compactos)
aparecem nos índices, confirmando o bom momento, na recepção brasileira, para
lançamentos da black music estadunidense.613

Em Recife, Tim Maia (2° lugar) e Jorge Ben aparecem em destaque desde janeiro
nos LPs, e permanecem constando várias vezes ao ano, e Evinha (compacto “Como vai
você”, em maio), Trio Ternura (compacto “A gira”, em maio) e o estreante Luiz Melodia
(LP Luiz Melodia, como foi creditado Pérola Negra, consta em 11° em junho) apareceram
uma vez. No cenário internacional, Michael Jackson (LP Michael Jackson e o compacto
“Ben”), Stevie Wonder (compacto “You are the sunshine of my life” e LP Stevie Wonder).
Já em São Paulo, os resultados são mais parecidos com o do RJ, porém, o maior destaque
foi de Jorge Ben (LP e compacto “Fio maravilha” e os compacto duplos “Lá vem
salgueiro” e “Bahia, berço do Brasil”), por todo o ano, Tim Maia apareceu muitas vezes
(LP e compacto “Canário do reino”), Simonal constou apenas na virada de maio a junho,
mas com o compacto “Homem de verdade”. Da produção internacional, Michael Jackson,
Stevie Wonder, Gladys Night & The Pips, Roberta Flack e, estreando em dezembro, o
baladista Barry White (compacto “Love’s theme”) constam, confirmando o impacto no
Brasil da produção soul lenta e romântica estadunidense.614

Os dados para 1974 mantiveram o sucesso comercial, no Brasil, da produção soul


estadunidense de andamento lento e expressão romântica. Exceto por discos de James
Brown e Kool and the Gang (que constaram apenas no RJ), de sonoridade funk, os dados
de RJ, SP e Recife apresentaram o sucesso de gravações de Michael Jackson, Stevie
Wonder, Gladys Night & The Pips, Diana Ross & Marvin Gaye e Barry White que tinham
em comum a sonoridade soul romântica. Essa tendência de gosto musical (e consumo do
produto disco) possivelmente influenciou a recepção do compacto lançado por Hyldon no
ano anterior, 1973, com “Na rua, na chuva, na fazenda”, uma balada soul suave, envolta
em arranjo de cordas. A partir de junho, o compacto simples constou nos índices do Rio de

613
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação:
PD 019.
614
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação:
PD 018 (Recife) e PD 020 (SP).
230

Janeiro e, em setembro, em Recife. Em dezembro de 1974, um segundo compacto simples


de Hyldon consta em RJ, “As dores do mundo/Sábado e domingo”, puxado pela
repercussão da primeira faixa, outra balada soul romântica destacando uma orquestra de
cordas.615

O baiano Hyldon foi o único artista consagrado nos anos 1970 na sonoridade da
black music brasileira que obteve destaque comercial em 1974, além do grande vendedor
de discos Tim Maia, que se manteve nos cinco primeiros lugares de LPs por quase todo o
ano nas três cidades - provavelmente com o álbum lançado em 1973 que demonstrou seu
vigor comercial com a manutenção do destaque em um ano (1974) no qual o artista não
lançou discos. Tim ainda apareceu várias vezes entre os cinco primeiros em vendas com o
compacto duplo “Tim Maia”. Dos artistas consagrados na década de 1960, Jorge Ben foi o
maior destaque comercial nas três cidades, constando entre os 20 mais vendidos em LP por
todo o ano (10 anos depois e, a partir de maio, também com A tábua esmeralda (que logo
subiu para os cinco mais vendidos). Simonal, que em janeiro ainda constava em LP no RJ,
pontuou com o LP Simonal em novembro e dezembro (RJ e Recife). Elza constou em
compacto em julho (“Salve a mocidade”) e LP em novembro e dezembro (Elza Soares)
apenas no RJ. E Evinha em LP (Eva) em julho e agosto apenas em Recife. 616

Os álbuns realizados em 1974, conforme mencionado no parágrafo anterior,


portanto, incluíam Wilson Simonal, lançado na Philips em novembro e que prosseguia na
proposta então executada pelo artista de gravar um repertório privilegiando sambas (desde
“Carinhoso” de Pixinguinha até o recente “Águas de março”, de Tom Jobim), mas com
timbres elétricos de guitarra e teclados. O álbum Elza soares de 1974, o primeiro da
cantora lançado na gravadora Tapecar, também era baseado em sambas, mas com
instrumental privilegiando percussões, particularmente cuíca, sendo que o Lado A
predomina uma sonoridade próxima ao samba-canção, com orquestras de cordas e canto
pungente, e no Lado B há uma adoção tímida de timbres elétricos de guitarra e órgão. O
LP confirma a modificação da identidade musical da cantora, não aparecendo o uso de
scats - como ficou característico por toda sua produção nos anos 1970. Já Eva, lançado por
Evinha na Odeon – e último álbum da cantora em todo o recorte desta tese – foi o LP mais
identificado à sonoridade soul entre os citados, tanto pela atuação vocal da cantora, quanto

615
Hyldon. As dores do mundo/Sábado e domingo. Compacto. Polydor. 1974.
616
Dados de todo o parágrafo: Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de
Venda de Discos. Notação: PD 021 (Recife) e PD 022 (RJ) e PD 023 (SP).
231

pelo destaque na marcação do contrabaixo elétrico, o órgão elétrico, e as passagens e solos


de guitarra com efeitos de distorção.617

O álbum de maior projeção comercial entre os referenciados, contudo, foi o lançado


por Jorge Ben, A tábua de esmeralda, possivelmente o disco mais celebrado da longa
carreira do artista, preferido do cantor e compositor, conforme informado por Ana Maria
Bahiana no texto de relançamento do álbum em CD: “um dos melhores discos de sua longa
carreira (...) Samba-rock acústico em sua melhor forma – compreensivelmente, o disco
favorito do próprio Jorge Ben Jor.”618 A celebração do disco, coincidente com o sucesso
comercial à época, é justificada por canções que até hoje estão entre as mais conhecidas do
repertório do artista, como “Os alquimistas estão chegando os alquimistas”, “Menina
mulher da pele preta”, “Eu vou torcer”, “Minha teimosia, uma arma pra te conquistar”, “O
namorado da viúva” e “Cinco minutos”. A sonoridade do álbum, chamada por Ana Maria
Bahiana de “samba-rock acústico”, é um prosseguimento da fórmula que a mesma
jornalista definiu como “exploração da fronteira entre o samba, blues e soul” ao comentar
o disco Ben, centralizada no violão de Jorge, acompanhada de uma base instrumental em
contrabaixo elétrico e percussão, e vocais de apoio e orquestra de cordas de fundo. Esse
acompanhamento instrumental acompanhou uma faixa que expressa a linguagem política
negra antirracista (e que, no disco, antecedeu “Brother”, canção em inglês que mobiliza a
temática cristã de linha gospel), “Zumbi”:

Angola, Congo, Benguela,/ Monjolo, Cabinda, Mina,/ Quiloa, Rebolo/ Aqui onde
estão os homens/ Há um grande leilão/ Dizem que nele há uma princesa à
venda/ Que veio junto com seus súditos/ Acorrentados num carro de boi/ Eu
quero ver/ Angola, Congo, Benguela/ Monjolo, Cabi nda, Mina,/ Quiloa, Rebolo/
Aqui onde estão os homens/ De um lado cana de açúcar/ Do outro lado o
cafezal/ Ao centro senhores sentados/ Vendo a colheita do algodão tão branco/
Sendo colhidos por mãos negras/ Eu quero ver/ Quando Zumbi chegar/ O que
vai acontecer/ Zumbi é senhor das guerras/ É senhor das demandas/ Quando
Zumbi chega, Zumbi é quem manda/ Eu quero ver.619

A referência à memória da escravidão conduz a canção, tema presente na produção


e Jorge desde a década de 1960, como abordado no primeiro capítulo desta tese. Nessa
canção, a herança escravista culmina na evocação de esperança no retorno do último líder
da longeva e mais reconhecida experiência de resistência no Brasil escravista, o Quilombo

617
Wilson Simonal. Wilson Simonal. Philips. Álbum. 1974. Elza Soares. Elza Soares. Álbum. Tapecar. 1974.
Evinha. Eva. Álbum. Odeon. 1974.
618
Ana Maria Bahiana. Texto de contracapa. Jorge Ben. A tábua de esmeralda. Álbum. Philips. 1974. CD.
Universal Music. 2009.
619
Jorge Ben. Zumbi (Jorge Ben). A tábua de esmeralda. Álbum. Philips. 1974. Lado B, faixa 02.
< https://www.youtube.com/watch?v=ge5BZjVVKpQ >
232

dos Palmares. Segundo Alexandre Reis dos Santos: “A canção começa fazendo menção a
algumas das principais localidades do continente africano que exportaram escravos para o
Brasil: Angola, Congo e Benguela. Os nomes destas localidades foram ressignificados no
Brasil, ganhando uma função semântica identitária para designar o indivíduo.”620 A
instituição escravista que submete integrantes da realeza e seus súditos à condição de
mercadoria (à venda (...) acorrentados num carro de boi) para o trabalho forçado nas
plantações dos latifúndios (cana de açúcar e cafezal) será confrontada pela chegada de
Zumbi, o senhor das guerras e das demandas. Quanto ao arranjo, a comunicóloga Luciana
Oliveira ressalta: “na faixa Zumbi, o arranjo vocal do coral é feito em um tom épico, que
acompanha o cantor, também lembrando os spirituals, cantos de fé religiosa e canções de
trabalho entoadas pelos escravos norte-americanos”,621 o que, para a autora, estabelece tal
faixa como exemplo da conexão entre o samba e o rhythm’n’blues formando o samba-rock.

A figura de Zumbi foi mobilizada na composição como um ícone político, assim


como o artista já havia feito com Cassius Clay anos antes, reavivando o líder quilombola
como um símbolo afro-brasileiro da luta antirracista. Ao enaltecer Zumbi, o tema
mobilizado por Jorge Ben conectava a uma reivindicação realizada por uma organização
negra antirracista. O historiador e militante do Movimento Negro Unificado Marcos
Cardoso, na dissertação O movimento negro em Belo Horizonte: 1978-1998, defendida em
2001, informa: “Marcar a data de 20 de novembro – dia da morte de Zumbi – foi uma ideia
que surgiu e começou a ser praticada em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em 1971,
por iniciativa do Grupo Palmares, autodenominado associação cultural de negros.”622 O
grupo reivindicava a adoção da data de morte de Zumbi nas escolas, em contraposição às
festividades oficiais no 13 de maio, “Dia da Abolição”, para valorizar o protagonismo da
luta de pessoas negras contra a escravidão. 623 A conexão entre Jorge e o Grupo Palmares
não foi confirmada nas dissertações antes citadas, que estudaram verticalmente a produção
do artista, contudo, tendo em vista que, nos anos 1960, Jorge já havia buscado inspiração
em “Dandara”, mitológica esposa de Zumbi e guerreira em Palmares, a referência na
composição de 1974 revela o que pode ser uma sintonia com a organização social.

620
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p.
140.
621
OLIVEIRA, Luciana Xavier. O swing do samba: uma compreensão do gênero samba-rock a partir da obra
de Jorge Ben Jor. Dissertação (Comunicação Social). Universidade Federal da Bahia. 2008, p. 144.
622
CARDOSO, Marcos. O movimento negro em Belo Horizonte: 1978-1998. 2011 [publicação em livro], p.
66.
623
PEREIRA, Amílcar. O mundo negro. 2013, p. 28.
233

Referência talvez considerada similar à época foi lançada por um dos artistas da
black music brasileira dos quais os lançamentos em 1974 não constaram nos dados do
IBOPE, o Trio Ternura. O compacto “Filhos de Zambi/Meu caso com você” foi lançado
pela gravadora RCA/Victor e a primeira canção, uma composição de Umberto Silva e José
Ribamar manteve a orientação dos dois compactos anteriores ao trazer a sonoridade de
tambores acompanhada de contrabaixo elétrico e guitarra e bateria funk com os vocais do
trio entoando o refrão ele vai girar por toda a canção, enquanto Jussara e Jurema cantam
juntas a letra. A referência a Zambi em canção já havia aparecido em canção em 1965, no
álbum A música de Edu Lobo por Edu Lobo, na faixa “Zambi”, composta para a trilha
sonora da peça teatral “Arena canta Zumbi” e que intercalava os termos Zambi e Zumbi. 624
Essa leitura pode ser justificada no verbete “Zumbi” da obra Enciclopédia Negra onde
consta, em documentos de 1678: “Um desses guerreiros foi capturado por dois filhos do
rei, sendo ele ‘um macho chamado Zambi’. (...) Segundo notícias, os embates teriam
deixado ferido ‘com uma bala o general das armas, que se chamava Zambi, que quer dizer
Deus da Guerra, negro de singular valor”. 625 Em outro verbete da obra, em referência a
Palmares, consta: “Da família real, os nomes de destaque são Acaiuba e Toculo, filhos de
Ganga-Zumba, além de Acaiuba Zambi, filho de Zumbi.”626 Contudo na canção do Trio
Ternura os versos não sugerem referência a Palmares: já abençoou filhos de Zambi/ lá na
casa de meu pai muito ele tem que fazer/ ele vai girar./ (...) sua missão nunca se encerra/
no espaço e na terra/ sem nos esquecer jamais.627

Por coincidência, o sambista Martinho da Vila, no mesmo ano de 1974, lançou o


álbum Canta, canta, minha gente que encerrava com a faixa “Festa de Umbanda” no qual
constava o ponto “Filhos de Zambi” que canta: Tem pena dele, ô Nanã (ô Zambi), ele é
filho de Zambi, tenha dó.628 Em entrevista publicada em 2020 por Lucas Teixeira,
Martinho da Vila afirma: “Então eu quis fazer um registro da umbanda do Brasil, que é a
religião brasileira de verdade. (...) Mas essas músicas, normalmente, não são para ser
cantadas assim em festa, de qualquer maneira. Ela faz parte de uma religião, como uma

624
Edu Lobo. Zambi (Edu Lobo/Vinícius de Moraes). A música de Edu Lobo por Edu Lobo. Álbum. Elenco.
1965. Faixa 06, Lado B. Também gravada sob o título “Zambi no açoite” no LP: Arena conta Zumbi. Texto e
trilha sonora da peça. Álbum. Som Maior. 1965. Sobre a peça teatral:
< http://memoriasdaditadura.org.br/pecas/arena-conta-zumbi/> Acesso 25/05/2021.
625
GOMES, Flávio dos. LAURIANO, Jaime, SCHWARCZ, Lilia. Enciclopédia negra. 2021, p. 579.
626
GOMES, Flávio dos. LAURIANO, Jaime, SCHWARCZ, Lilia. Enciclopédia negra. 2021, p. 25.
627
Trio Ternura. Filhos de Zambi. (Umberto Silva/José Ribamar). Filhos de Zambi/Meu caso com você.
Compacto simples. RCA/Victor. 1974. Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=Y4NUOFZHv Gg>
628
Martinho da Vila. Festa de Umbanda. (tradicional). Canta, canta, minha gente. Álbum. RCA/Victor.
1974. Faixa 06, Lado B.
234

reza.”629 A referência à religião Umbanda parece explicar melhor a mensagem da canção,


ao dialogar com a temática de canções lançadas nos compactos do Trio em 1973 e pode ser
fundamentada pelo verbete “Zâmbi” do Dicionário de Cultos Afro-brasileiros: “Deus
Supremo dos cultos bantos e da Umbanda, Criador e Senhor Todo-poderoso. Foi a única
divindade bântu que predominou sobre os nomes das divindades nagô, fazendo pouco
conhecido o nome Olórun. (V.). F. - kimb.: ‘Nzambi’.”630

Além do compacto, o Trio Ternura lançou em 1974 um novo LP, acrescidos de Zé


Roberto e Léo, tornando-se assim, conforme o título do álbum, o Quinteto Ternura. O
disco trouxe uma recriação soul de “Baby”, de Caetano Veloso, a canção “Quando gosto é
pra valer”, de Cassiano e Paulinho Motoka e mais dez faixas originais valorizando os
arranjos vocais alternados à voz solo e destaque às guitarras, em sonoridade comprometida
com o soul e temática despretensiosa, em geral românticas, sem abordagens raciais.631 Um
último disco de 1974 na Black Music Brasileira, e que também não constou nos dados do
IBOPE, foi o compacto “Cabeça oca/I say goodbye” de Toni Tornado, de sonoridade funk,
mas também sem referência temática que interesse ao argumento da presente tese.632

Entre 1970 e 1974, portanto, houve o registro de um conjunto de gravações


produzidas por artistas negros brasileiros adotando as sonoridades soul e funk,
principalmente a partir do sucesso comercial de Tim Maia, por todo o recorte, e o impacto
midiático de Toni Tornado. Os discos foram lançados em meio ao processo de expansão da
indústria fonográfica, parte do processo de modernização autoritária e conservadora
conduzido pela Estado ditatorial brasileiro. Tal processo possibilitou o incentivo estatal via
Lei Disco é Cultura, através da qual muitos dos artistas do recorte foram lançados, a
começar por Tim Maia. Outras consequências e nuances desse complexo cenário serão
abordadas no próximo tópico da tese.

2.2. Entre os “anos de aperto” e o “Pragmatismo responsável” (1975-78).

Entre 1974 e 1975, Luiz Melodia colhia os frutos do seu primeiro LP, Pérola
Negra. E de sua carreira como compositor, afinal, após a gravação da canção “Pérola

629
< https://monkeybuzz.com.br/materias/revisitando-meus-classicos-canta-canta-minha-gente-1974/>
Acesso 25/05/2021.
630
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977, p. 255.
631
Quinteto Ternura. Quinteto Ternura. Álbum. RCA/Victor. 1974.
632
Toni Tornado. Cabeça Oca/I say goodbye. Compacto. Odeon. 1974.
235

Negra” por Gal Costa, em 1971, a consagrada cantora Angela Maria a regravou em seu
álbum Angela, de 1972, em um arranjo jazzístico de Big Band (estilo swing), bastante
diferente da sonoridade rockeira em baixo, guitarra e bateria da versão de Gal. 633 Também
em 1972, sua composição “Estácio, Holly Estácio” foi lançada por Maria Bethânia no
álbum Drama-Anjo Exterminado, em versão que valorizava a sonoridade de bolero, mais
próxima ao samba-canção.634 Em 1973, após o lançamento do primeiro álbum de Luiz
Melodia, sua própria versão de “Estácio, Holly Estácio” foi incluída pela gravadora
Fontana na coletânea em LP Máximo de Sucessos, junto a Raul Seixas, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Fagner, Sergio Sampaio e Gal Costa.635

Nem tudo nesse primórdio da carreira fonográfica, porém, foi positivo. Com o
impacto inicial, segundo Luiz, em entrevista a seu biógrafo Toninho Vaz, a gravadora
queria rápido um segundo álbum e ele não se sentia preparado. Sugeriram-lhe “um álbum
só de sambas, pois queriam me fazer um sambista. Não deu certo e eu passei a ser
considerado um cara difícil.”636 Conforme expresso no primeiro disco de Luiz, o cantor
estabelecia identificação com o samba, mas também com diversos outros gêneros musicais,
particularmente a “música jovem”, com o rock, o soul e o funk. Nessa época de
desentendimento com a Philips, Luiz se aproximou de vários músicos e funcionários da
indústria fonográfica com os quais jogava futebol informalmente, o que contribuiu na
articulação de seu rompimento com a primeira gravadora e contratação pela Som Livre - a
iniciativa fonográfica do grupo Globo. Luiz aproximou também de Oberdan Magalhães,
saxofonista e flautista que integrou o grupo Dom Salvador & Abolição, participou do
terceiro álbum de Tim Maia e já participava de fusões da black music com a música
brasileira desde o final da década de 1960. Oberdan acompanhou o cantor nos shows e o
ajudou a formar uma banda de apoio. O primeiro registro dos dois encontros, com a Som
Livre e com Oberdan, foi o compacto “Ébano/Maria particularmente”, lançado em 1975,
canções em sonoridade elétrica, destacando as passagens de guitarra, órgão elétrico e os
naipes de sopros.637 A canção “Ébano” foi lançada por Luiz no Festival Abertura, da Rede
Globo de São Paulo, acompanhado pela banda formada por Oberdan Magalhães.

633
Angela Maria. Pérola Negra. (Luiz Melodia). Angela. Álbum. Som. 1972. Faixa 06, Lado A.
634
Maria Bethânia. Estácio, Holly Estácio. (Luiz Melodia). Drama-Anjo Exterminado. Álbum. Philips. 1972.
Faixa 05, Lado B.
635
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 66.
636
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 67.
637
Luiz Melodia. Ébano/Maria particularmente. Compacto. Som Livre. 1975.
236

Segundo o historiador Magno Cirqueira Córdova, na dissertação Rompendo as


entranhas do chão: cidade e identidade de migrantes do Ceará e do Piauí na MPB dos
anos 70: “A canção ‘Ébano’ trouxe elementos claramente herdados do Jazz para o palco do
Municipal de São Paulo, em 1975.”638 Mais do que o jazz, a escuta explicita forte
sonoridade soul na canção, reforçada pelas execuções de guitarra, do teclado e do modo de
utilização do naipe de sopros. O título podia remeter um ouvinte mais atento às produções
da indústria fonográfica brasileira, ao grupo doo wop Nilo Amaro e Seus Cantores de
Ébano, que lançou alguns álbuns no início dos anos 1960. No entanto, ébano nomeia um
gênero nobre de madeiras, cujo interior é escuro e denso e por isso foi mobilizado como
uma simbologia de valorização da pele negra, conforme a letra de Luiz Melodia: Meu
nome é Ébano/ venho te felicitar sua atitude/ (...) Me chamam Ébano/ o novo peregrino,
sábio dos enganos/ (...) Eu grito Ébano/ o couro que me cobre a carne não tem planos/ A
sombra da neurose te persegue há quantos anos? A referência ao couro que me cobre a
carne confirma a alusão à pele e, a partir da madeira nobre, explicita a afirmação de
orgulho negro, reforçada pela interpretação vocal e instrumental vigorosa a cada afirmação
de si enquanto “ébano”.

A trajetória de Luiz Melodia foi detalhada recentemente, com a publicação em


2020 da biografia Meu nome é Ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia, por Toninho Vaz,
título que evoca a canção lançada no compacto de 1975 (e gravada em álbum apenas em
1997). A trajetória de Luiz, nascido em 1951 e crescido em uma favela carioca, o Morro de
São Carlos, fornece alguns elementos interessantes para pensar a realidade de segmentos
da população brasileira cuja experiência comumente não é explorada na historiografia
canônica que aborda a vida social durante o regime militar. Conforme o biógrafo, a
formação escolar de Luiz foi apenas a ginasial, não tendo completado o primeiro grau.
Quanto à formação musical, o contato de Luiz com a música se dava principalmente
através de rádios de pilha, posto que “o único toca-discos do bairro era de um vizinho,
chamado Dario, que tinha uma discoteca de vinil eclética”, do samba-canção aos discos da
Jovem Guarda.639 Seu pai, Oswaldo, era funcionário público, “religioso radical”, cristão da
vertente protestante batista e, embora tocasse violão e compusesse canções, segundo Luiz:
“queria bem ao filho, mas jamais quis que eu fosse músico. Queria que eu fosse doutor.”640

638
CÓRDOVA, Magno Cirqueira. Rompendo as entranhas do chão: cidade e identidade de migrantes do
Ceará e do Piauí na MPB dos anos 70. Dissertação (História). Universidade de Brasília. 2006., p. 69.
639
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 23.
640
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 26.
237

Também a programação televisiva foi destacada pelo artista, particularmente telenovelas


(como Beto Rockfeller, exibida em 1967) e musicais (Jovem Guarda) cujo o acesso se dava
graças a outro vizinho, capitão Danilo, da PM, “que tinha uma televisão em preto e branco
e deixava a porta da sala aberta para que todos pudessem assistir.”641 Dependência material
mantida apesar de Luiz ter começado a trabalhar cedo, tendo sido tipógrafo, atendente em
bar, vendedor e operador de caixa.

Foi através do contrato com a Philips que Luiz saiu da casa em São Carlos,
passando a morar em uma casa alugada pela gravadora, junto ao baixista Rubão Sabino
(integrante de Dom Salvador & Abolição) e o guitarrista Renato Piau. E, após as
vendagens do disco Pérola Negra, comprou um carro modelo Fusca, evidência da ascensão
social.642 Contudo, oriundo de um núcleo familiar que não experimentou o abandono
paterno e no qual o “chefe de família” tinha um emprego fixo e estável, a realidade
familiar de Luiz não era compartilhada por muitas das famílias pobres negras posto que,
conforme pontuado pela historiadora Beatriz Nascimento no artigo “A mulher negra e o
amor”: “Via de regra, nas camadas mais baixas da população cabe à mulher negra o
verdadeiro eixo econômico onde gira a família negra. Essa família, grosso modo, não
obedece aos padrões patriarcais, muito menos os padrões modernos de constituição
nuclear.”643 Todavia, a origem de Luiz é exemplar quanto à reflexão da intelectual Lélia
Gonzalez no artigo “Mulher negra”, ao analisar dados do período do chamado “milagre
econômico”: “Isso significa que o número de membros das famílias negras inseridos na
força de trabalho é muito maior que o das famílias brancas para a obtenção do mesmo
rendimento familiar”, o que permite à autora concluir, como ocorreu a Luiz: “Um dos
efeitos desse trabalhar mais e ganhar menos implica lançar mão do trabalho do menor. (...)
Por aí se entende por que nossas crianças mal conseguem cursar o primeiro grau.”644

A realidade de pouco acesso a bens materiais vivida pela família de Luiz Carlos dos
Santos, nome de batismo de Luiz Melodia, é representativa para amplas parcelas da
sociedade brasileira. O recorte temporal do chamado “milagre econômico brasileiro” é
marcado por intensa concentração de renda e ampliação das desigualdades sociais. Tal
recorte, consagrado entre os anos de 1969 e 1973, finaliza justamente quando a situação

641
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 29.
642
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 59-63.
643
NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra e o amor. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e intelectual:
possibilidade nos dias da destruição. 2018, p. 355. Artigo originalmente publicado em 1990.
644
GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e
diálogos. 2020, p. 99. Artigo originalmente publicado em 1984.
238

econômica de Luiz inicia melhora, após o contrato com a gravadora Philips e o lançamento
do primeiro disco. Porém, não é possível compreender os resultados econômicos obtidos
pelo regime sem dimensionar os custos estabelecidos e apontar quem os pagou. Conforme
problematizado na introdução deste segundo capítulo da tese, se, ao falar das indústrias do
entretenimento, é possível ilustrar a expansão possibilitada pela modernização autoritário-
conservadora informando que “em 1970, 24% dos domicílios brasileiros tinham
televisão”,645 importa ressaltar a significativa parcela de 76% das residências cuja condição
econômica dos moradores não lhes permitia adquirir um destes aparelhos eletrodomésticos,
como a maioria dos moradores do Morro de São Carlos. Lélia Gonzalez, no texto acima
citado, faz referência a um estudo de Carlos Hasenbalg e Nelson Valle Silva sobre a
concentração de renda e desigualdade do período, concluindo: “Pelo exposto, o
desenvolvimento econômico brasileiro, segundo esses analistas, resultou num modelo de
modernização conservadora excludente.”646

O processo de modernização conservadora, tão autoritária quanto excludente,


vivido no Brasil durante a ditadura militar, encontrou seu apogeu nos anos do “milagre
econômico”. Conforme pontuado no tópico anterior deste capítulo, tal período suscitou
influentes análises historiográficas, amparadas nas relações entre sociedade e regime, a
partir das reflexões de Daniel Aarão Reis. De acordo com esse historiador, como título de
um dos capítulos de seu livro Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à
Constituição de 1988, o período seria melhor abordado como “Os anos de ouro e de
chumbo: a retomada do nacional-estatismo (1968-1974)”.647 O chumbo e o ouro são metais
que funcionam como metáforas para referências negativas e positivas, respectivamente, nas
representações das vivências e memórias sociais sobre o período ditatorial. O peso do
chumbo, remetendo à violência do regime perante os opositores - sobretudo o aparato de
extermínio voltado para a repressão das guerrilhas -, e o valor do ouro, referindo às
benesses econômicas e de bens de consumo. As experiências vividas pela parcela pobre,
onde está a enorme maioria da população negra (e da população brasileira, em geral),
contudo, exigem a busca por outra expressão. A opção nesta pesquisa foi por retomar um
termo proposto pelo autor da presente tese em trabalho anterior e mobilizar a metáfora dos

645
Fonte: Mídia dados, SP: Grupo de Mídia, 1996, p. 73 e 145. In: DIAS, Márcia. Os donos da voz. 2008,
p.56.
646
GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e
diálogos. 2020, p. 96. [O livro dos autores referenciado é Industrialização, emprego e estratificação social
no Brasil. Rio de Janeiro. Iuperj, 1984. (Série estudos, 23).]
647
AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de
1988. 2014, p. 74-92.
239

anos de aperto para dimensionar a realidade econômica da enorme parcela populacional de


desfavorecidos do regime. Busca-se, em uma expressão coloquial mobilizada
popularmente para momentos significativos de limitações financeiras, o “aperto”, um
adjetivo para qualificar a “legião dos esquecidos” nas representações sobre o período.648

Referir às parcelas pobres como os “esquecidos” dos estudos sobre “a sociedade”


na ditadura deve ser compreendido como uma provocação desta tese quanto a
profundidade nos estudos mais influentes e não como a afirmação de ineditismo desta
pesquisa na referência. O próprio Daniel Aarão Reis, no livro citado acima, reconhece que
durante o apogeu econômico do regime, “sem dúvida, o topo, já enriquecido, enriqueceu-se
ainda mais. E setores miseráveis da base, mais miseráveis se tornaram.”649 Também as
historiadoras Lilia Schwarcz e Heloísa Starling, na abrangente obra Brasil: uma biografia,
pontuam o preço pago pela estratégia que levou ao “milagre”: “o crescimento da economia
se fez acompanhar de um processo acentuado de concentração de renda, resultado de uma
política salarial restritiva, em que os ganhos de produtividade não eram repassados para os
trabalhadores.”650 Em análise detalhada sobre a dimensão econômica do período, o
economista Paul Singer, em capítulo do livro Modernização, ditadura e democracia. 1964-
2010 (organizado por Daniel Aarão Reis, aliás), explicita os mecanismos escolhidos para
operar no plano econômico:

Para interromper a chamada espiral de preços e salários, o governo militar


interveio nos sindicatos e proibiu as greves. E reprimiu, em 1968, as que foram
feitas. Ao mesmo tempo, criou-se uma sistemática de reajuste salarial baseado na
inflação passada acrescida de 50% da inflação futura, estimada pelo Ministério
da Fazenda. Era uma política destinada a conter a inflação, imp ondo-se aos
trabalhadores o ônus de suportar uma perda de salário real entre dois reajustes.
(...) Se o governo militar fosse de esquerda, teria escolhido como vítimas os
empresários, impondo-lhes um único reajuste de preços por ano, o valor sendo
limitado à inflação do ano anterior, acrescida de metade da inflação vindoura,
subestimada pelo Ministério da Fazenda. Como os empresários são responsáveis
por um número de preços maior do que os afetados pelos salários, a hipótese
aventada poderia ter levado à queda da inflação mais depressa do que a opção
adotada pelo governo militar.651

O impacto desses dados no cotidiano era parcialmente amenizado, pois, conforme


Marcos Napolitano, “até o fim dos anos 1970, a ampla oferta de emprego e a inflação alta,

648
O termo “anos de aperto” nesta concepção foi anteriormente usado em MORAIS, Bruno Vinícius L. A
legião dos esquecidos. In: “Sim, sou um negro de cor”: Wilson Simonal e a afirmação do orgulho negro no
Brasil dos anos 1960. Dissertação (História). Universidade Federal de Minas Gerais. 2016, p. 44-61.
649
AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de
1988. 2014, p. 92.
650
SCHWARCZ, Lilia M., STARLING, Heloisa M. Brasil: Uma biografia. 2015, p. 453.
651
SINGER, Paul. O processo econômico. In: AARÃO REIS FILHO, Daniel. (coord.). Modernização,
ditadura e democracia. 1964-2010 [História do Brasil Nação 1808-2010, vol 5]. 2014, p. 187.
240

mas relativamente controlada, atenuavam os efeitos da concentração de renda.”652 Ainda


assim, os indícios sustentam ser pouco provável que tal amenidade configurasse conforto.

A expansão da desigualdade social que amparou o “milagre” foi denunciada à


época. É amplamente conhecida a analogia sobre a abismal desigualdade social e
econômica no Brasil como havendo um pequeno setor que vive em condições similares aos
ricos da Bélgica e uma multidão pobre que vive como as amplas parcelas miseráveis da
Índia. Essa analogia foi criada pelo economista Edmar Lisboa Bacha, na fábula “O rei da
Belíndia: uma fábula para tecnocratas”, publicada no jornal Opinião em agosto de 1974.
Conforme o autor, em discurso à Academia Brasileira de Letras: “Com a fábula ‘O rei da
Belíndia’ quis mostrar como a política econômica do período do autoritarismo, em um país
de desigualdades como o nosso não ia ao coração das questões, não combatia a
desigualdade nem a inflação que a acentuava.”653 Nos termos da presente tese, certamente
os habitantes do “Brasil-Bélgica” que não se opunham ao regime viveram anos de ouro no
período, mas a ampla parcela vitimada pela modernização excludente da ditadura, o
“Brasil-Índia”, experimentou anos de aperto.

O ano de 1975, recorte inicial deste tópico do capítulo, foi cenário para uma ampla
pesquisa sobre as consequências do “milagre” em São Paulo e o relatório, publicado em
1976, verticalizou a análise do quadro social. Nas periferias da cidade, 78% da população
alcançava renda familiar até três salários mínimos e 19% de três a seis salários mínimos. 654
O relatório produzido pelos pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e
Processamento (CEBRAP),655 São Paulo 1975: crescimento e pobreza, evidencia algumas
consequências da modernização operada nas camadas urbanas na maior cidade do país.
Uma citação desta obra ajuda a melhor compreender, a partir da situação dos habitantes
das favelas:

(...) trabalhadores braçais na construção civil, “biscateiros”, não qualificados na


indústria, voltando-se o trabalho feminino quase exclusivamente para os
empregos domésticos remunerados. Os rendimentos familiares, em 80% dos
casos, não ultrapassam dois salários mínimos. Embora os favelados sejam, em
geral, migrantes, 41,1% dos que vieram de outros municípios estão há mais de 5
anos em São Paulo. Portanto, não se trata apenas dos recém-chegados.

A localização das favelas tende a seguir a trilha da industrialização,


amontoando-se os barracos em áreas próximas ao mercado de mão-de-obra não

652
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do Regime Militar Brasileiro. 2014, p. 149.
653
< https://www.academia.org.br/academicos/edmar-lisboa-bacha/discurso-de-recepcao> Acesso
28/05/2021.
654
CAMARGO, Cândido et al. São Paulo 1975. Crescimento e pobreza. São Paulo: Ed. Loyola. 1976, p. 43.
655
Para a origem do CEBRAP, ver <http://www.cebrap.org.br/v2/contents/view/18> Acesso em 24/06/2019.
241

qualificada. Os favelados são expulsos de seus barracos tão logo a valorização


atinja os terrenos privados ou uma obra pública forneça ao terreno onde se
localizam um novo destino urbano. (...) Além dos 130 mil favelados, há em São
Paulo, 615 mil moradores de cortiços. Ademais, 1,8 milhão de indivíduos moram
nas casas precárias da periferia. Tais cifras referem-se somente à Capital.656

. Essa situação tende a agravar-se, na medida em que se vêm deteriorando os


salários. Para cobrir os gastos básicos, considerados mínimos, - com nutrição,
moradia, transporte, vestuário, etc. - o trabalhador que recebe salário mínimo
deveria atualmente trabalhar 466 horas e 34 minutos mensais, isto é, 15 horas e
55 minutos durante 30 dias por mês. Em outros termos, atribuindo-se um valor
igual a 100 ao salário mínimo em 1970, este valor, 4 anos após, cai para 82.
Segundo os cálculos do DIEESE, para atingir o valor imperante em 1958, o
salário mínimo em 1975 deveria ser Cr$1.413,00 e não o de Cr$532,80 (...). 657

Embora esta tese esteja se referindo primordialmente à cidade do Rio de Janeiro,


local onde estão situados (e onde nasceram grande parte) os artistas analisados, os dados da
capital paulista fornecem possibilidades de análise, inclusive pela referência à expulsão da
população favelada diante da expansão da especulação mobiliária, tema que apareceu em
várias canções estudadas. Identificar a situação econômica das populações marginalizadas,
particularmente as faveladas, permite, portanto, retratar uma outra experiência social,
divergente à dualidade entre os anos de chumbo ou anos de ouro que predomina nas
representações da historiografia sobre a memória social do período. O artigo de Lélia
Gonzalez supracitado, “Mulher negra”, ao apresentar a modernização conservadora
excludente, apresenta dados sobre o efeito do “milagre” na população do Rio de Janeiro,
merecendo outra longa citação:

Por isso mesmo, os aspectos positivos do desenvolvimento econômico brasileiro


(cuja fase culminante ficou conhecida como ‘milagre brasileiro’: 1968-73) foram
neutralizados por determinados fatores (...):

a) Deterioração das condições de vida dos extratos urbanos de baixa renda . Não
esqueçamos que o deslocamento de grandes contingentes de mão de obra do
campo para os centros urbanos determinou não o crescimento populacional
destes últimos, mas a sua “inchação”, com a consequente formação de bairros
periféricos e de favelas (na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, existiam 757
mil favelados em 1970; em 1980, seu número aumentou para 1 740 000,
passando a constituir cerca de 34% da população do município), onde se pôde
constatar: aumento da mortalidade infantil, aumento dos acidentes de trabalho,
deterioração e crescimento insuficiente da infraestrutura urbana de transportes,
problemas habitacionais e de saneamento básico, altos índices de evasão escolar
no primeiro grau [atual ensino fundamental], insuficiências quanto ao
atendimento médico-hospitalar do sistema previdenciário etc. Desnecessário
dizer que esse subproletariado é constituído majoritariamente por negros.

b) Concentração de renda. Apesar das mudanças da estrutura de classes durante


esses vinte anos, os pobres ficaram mais pobres e os ricos mais ricos (não
esqueçamos que ainda em 1980 um terço da população economicamente ativa –
PEA – encontrava-se na faixa salarial de até um salário mínimo), sobretudo no

656
CAMARGO, Cândido et al. São Paulo 1975. Crescimento e pobreza. 1976, p. 37.
657
CAMARGO, Cândido et al. São Paulo 1975. Crescimento e pobreza. 1976, p. 45.
242

que se refere ao campo. Continuando sua análise, os autores citados [Hasenbalg


e Valle Silva] nos informam que, em 1970, os 50% mais pobres participavam em
14, 9% dos rendimentos obtidos pelo PEA; em 1980, essa participação baixou
para 12, 6%; os 10% mais ricos aumentaram sua apropriação de 46,7% para
50,9%; 0,1% mais rico passou de 14,7% para 16,9%, superando
consideravelmente sua apropriação, se comparada àquela recebida pelos 50%
mais pobres. No campo, entretanto, é que esses percentuais se tornam
gritantemente desiguais: o dos 50% mais pobres cai de 22,4% para 14,9%,
enquanto o do 1% mais rico elevou-se de 10,5% para 29,3%. (...) Não é casual,
portanto, o fato de a força de trabalho negra permanecer confinada nos empregos
de menor qualificação e pior remuneração. A sistemática discriminação sofrida
no mercado remete a uma concentração desproporcional de negros nos setores
agrícola, de construção civil e de prestação de serviços. Segundo o Censo de
1980, esses setores absorvem 68% de negros e 52% de brancos. 658

A citação do texto de Lélia Gonzalez se justifica pela utilidade dos dados


fornecidos por ela, que sustentam a compreensão do período como anos de aperto para
uma parcela muito mais expressiva da sociedade brasileira do que aquela que possa
celebrar o período como anos de ouro. Uma parcela facilmente identificável quando a
análise sofre um recorte racial, como proposto pela intelectual. Embora os dados citados
por ela cheguem ao início dos anos 1980, avançando, portanto, em relação aos
apresentados em São Paulo: crescimento e pobreza, as duas análises se complementam,
particularmente na identificação da ampla parcela que tinha por renda mensal familiar até
um salário mínimo no contexto de enorme desgaste do valor do salário, conforme a
avaliação do DIEESE para 1975. Outro texto sobre a situação econômica do período,
“Transformações econômicas no período militar (1964-1985)”, de Francisco Vidal Luna e
Herbert S. Klein, publicado na coletânea A ditadura que mudou o Brasil, destaca sobre os
salários no período abordado no presente tópico da tese: “O salário mínimo anual médio
real, por exemplo, reduziu-se de um índice 100 em 1964 para 82 em 1977.”659 Embora o
país viesse de uma duradoura crise econômica desde o início da década de 1960, de modo
que o temporário controle da inflação possibilite certo planejamento da economia
doméstica; ainda assim, no cotidiano, a perda do valor salarial é sentida.

Pensar a experiência das parcelas da sociedade excluídas - ou marginais - das


benesses econômicas do regime angaria maior importância por retratar tanto uma
considerável parte do público com o qual os artistas dialogavam nas composições, quanto
do setor social de origem de vários dos artistas da Black Music Brasileira. Os artistas, ao

658
GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e
diálogos. 2020, p. 95-97.
659
LUNA, Francisco Vidal, KLEIN, Herbert. Transformações econômicas no período militar (1964-1985).
In: AARÃO REIS FILHO, Daniel, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo P. S. A ditadura que mudou o
Brasil: 50 anos do golpe de 1964. 2014, p. 94.
243

conquistarem algum destaque em sua profissão, podem ser incluídos na escassa listagem
da ascensão social, tornando-se integrantes das classes médias ou mesmo altas no período.
Isso permite a eles terem vivido anos de ouro de suas carreiras no período de crescimento
da indústria do entretenimento.

A possibilidade de ascensão social na vida artística, no caso, deve ser dimensionada


em meio às políticas culturais do regime militar. Afinal, a legislação “Disco é Cultura”
visava tornar a produção musical brasileira mais competitiva diante da concorrência
internacional – mais rentável, visto importar as matrizes prontas, sem os custos de
gravação. O jornalista André Barcinski, em Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da
música pop no Brasil, informa sobre as consequências da “Lei Disco é Cultura”: “O
resultado da lei, no entanto, foi o oposto: ela acabou beneficiando as gravadoras
estrangeiras, que passaram a usar o dinheiro que economizavam do ICM para contratar
artistas brasileiros e, assim, aumentar seus elencos nacionais”, de modo que, como conclui
o autor: “É aqui que os interesses das grandes gravadoras cruzam com o sonho de
‘integração nacional’ da ditadura militar”660 O que ajuda a explicar o aumento na produção
e venda de discos no Brasil, que, entre 1969 e 1975, sobe de 11.067 milhões de unidades
em compactos (simples e duplos) e 6.588 milhões de unidades em LP para 13.213 em
compactos e 16.995 em LP, dados que informam, ainda, sobre a consolidação do formato
LP, de maior valor aquisitivo.661

Se os e as artistas encontraram na política de modernização autoritária da ditadura


uma oportunidade de ascensão social, passível de representar anos de ouro de sua vida, o
público consumidor muitas vezes não encontrava a mesma sorte. Com os anos de aperto
de aumento da desigualdade social e o grande arrocho salarial, resultando na perda do
poder de compra do salário, muitos indivíduos devem ter encontrado maior dificuldade
para a aquisição de bens de consumo supérfluos, como são os discos e os aparelhos de
execução desses, os toca-discos, ficando dependentes das programações das emissoras de
rádio, via “radinho de pilha” e do compartilhamento dos aparelhos eletrônicos de vizinhos
– o que significa ser dependente também das preferências pessoais de tais vizinhos – como
ocorria com Luiz Melodia. Renato Ortiz informa que “entre 1967 e 1980 a venda de toca-

660
BARCINSKI, André. Pavões misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 43.
661
Fonte: ABPD, RJ: 03-95. In: DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e
mundialização da cultura. 2008. p. 60.
244

discos cresce 813%”,662 mas o modelo excludente de modernização operado pelo Estado
indica um acesso extremamente desigual.

Ainda assim, como um grande número de pessoas de menor poder aquisitivo e mais
limitado poder de consumo poderia ter acesso às canções a partir da radiodifusão, importa
destacar que o período da década de 1970 também marcou anos de ouro para a indústria
dos bens de consumo, com expansão da aquisição dos aparelhos de rádio, presentes em
58.9% dos domicílios brasileiros no ano de 1970 e em 76.2% dos domicílios no ano de
1980.663 Como destacado na introdução deste capítulo, é necessário recordar que 23.8%
dos lares não tinham acesso nem aos aparelhos de rádio mais simples; contudo, percebe-se
o grande potencial de difusão da música popular via rádio, em toda forma. Ao ter acesso às
canções Black, estas pessoas ouviam sobre temáticas diversas, sobretudo amores,
desamores e invocações à dança, mas também referências de orgulho racial, como a canção
“Ébano”, de celebração à história e cultura de comunidades negras e de referências às
mazelas de seu cotidiano.

Para o público com acesso aos aparelhos de televisão - própria ou compartilhada


pela casa de um vizinho, como o exemplo apresentado -, a programação das telenovelas
tornou-se mais uma importante forma de difusão da produção musical. Para Luiz Melodia,
o ano de 1975 encerrou com a notícia da inclusão de uma música recém-gravada e ainda
não lançada comercialmente, o samba “Juventude transviada”, na trilha da telenovela
Pecado Capital da Rede Globo, que estreou em novembro. A possibilidade de difusão de
canções nas trilhas sonoras era uma das principais vantagens dos artistas contratados pela
Som Livre, do próprio grupo Globo, e a canção de Luiz tornou-se tema do protagonista da
novela (interpretado por Francisco Cuoco) e assim, além da garantia de exibição da canção
durante toda a transmissão da novela, a canção era difundida no LP da trilha da novela, que
incluía nomes como Wando, Martinho da Vila, Moraes Moreira, Beth Carvalho, João
Donato, Nana Caymmi e o compositor da marcante faixa de abertura, homônima à novela,
Paulinho da Viola.664

Segundo Marcos Napolitano: “Os anos 1970 podem ser considerados a ‘era de
ouro’ da televisão brasileira. Foi naquela década que a televisão, como sistema de

662
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 1988, p. 127.
663
Fonte: Mídia dados, SP: Grupo de Mídia, 1996, p. 73 e 145. In: DIAS, Marcia. Os donos da voz. 2008,
p.56.
664
Pecado Capital. Trilha sonora original. LP. Som Livre. 1975. “Juventude transviada” era a faixa 01, Lado
B.
245

comunicação, e algumas emissoras em particular (como a Rede Globo) construíram seu


poderio e estabeleceram seu lugar definitivo na sociedade e na cultura brasileira.”665 A
Rede Globo de Televisão surgiu em 1965 e foi uma das grandes beneficiárias da política de
modernização da ditadura militar, apresentando uma enorme expansão. Conforme André
Barcinski: “Em 1969, com o objetivo de lançar as trilhas sonoras de suas novelas, a Globo
inaugurou a Som Livre. Em 1971, a gravadora lançou sua primeira trilha sonora, O
Cafona, e seis anos depois já era líder em vendas no país”, expansão e consolidação
surpreendente mesmo para o período, afinal, “Nenhuma gravadora havia dominado o
mercado brasileiro com tanta rapidez.”666

O livro de André Barcinski, Pavões Misteriosos. 1974-1983, defende que no


recorte: “A música brasileira ficou mais jovem e mais popular. A venda de discos se
multiplicou depois do chamado milagre econômico. O advento das rádios FM e a
popularização da TV e dos LPs com trilhas de novelas ajudaram a fortalecer o mercado do
disco no país.”667 A obra abarca o recorte deste segundo tópico do capítulo e aponta
consequências do “milagre”: “O progresso econômico inseriu no mercado uma nova massa
de consumidores. O público não só aumentou, mas também era mais jovem e mais urbano,
em decorrência da crescente migração populacional do campo para as cidades.”668 André
Midani, um destacado produtor cultural do período, explicou na obra sobre a mudança de
perfil do público alvo: “O típico comprador de discos no fim dos anos 1960 e início dos
anos 1970 era homem, de classe média e tinha mais de trinta anos. Depois o público foi
ficando maior e cada vez mais jovem.”669

Os investimentos governamentais nos anos 1970 possibilitaram a ampliação de


muitos setores industriais no Brasil, entre os quais, a indústria fonográfica, que, conforme
apontado neste capítulo, encontra no período seu momento de consolidação. Conforme
Marcia Tosta Dias, “o Estado brasileiro é o realizador, mais uma vez, de uma espécie de
modernização conservadora, fornecendo toda a infra-estrutura necessária à implantação da
indústria cultural no país em nome da Segurança Nacional.”670 A consolidação da indústria
do entretenimento e a expansão da indústria fonográfica pode ser sintetizado através de

665
NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 2008 [3 ed], p. 90.
666
BARCINSKI, André. Pavões misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 43.
667
BARCISNKI, André. Pavões misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 9.
668
BARCINSKI, André. Pavões misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 40.
669
BARCINSKI, André. Pavões misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 40.
670
DIAS, Marcia T. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008, p.
55.
246

uma citação de Paulo César de Araújo em Eu não sou cachorro, não. Música popular
cafona e ditadura militar:

O período de maior repressão política do regime militar coincide com o da fase


de consolidação de uma cultura de massa e a consequente expansão da indústria
fonográfica. Entre 1970 e 1976, a indústria do disco cresceu em faturamento, no
Brasil, 1.375%. Na mesma época, a venda de LPs e compactos passou de 25
milhões de unidades por ano para 66 milhões de unidades. (...) Favorecido pela
conjuntura econômica em transformação, o Brasil alcançou o quinto lugar no
mercado mundial de discos. Nunca tantos brasileiros tinham gravado e ouvido
tantas canções.671

Os números obtidos a partir de dados da Associação Brasileira dos Produtores de


Discos (ABPD, organização fundada em 1965) dimensionam a conexão entre a gravação e
o consumo de discos. A relação de venda de produtos da indústria fonográfica brasileira
entre 1968 e 1980, em milhões de unidades, contando LPs, compactos simples e duplos
revela em 1968 a quantia de 14.818 unidades, em 1976, 48.926 unidades e, ao encerrar a
década, o ano de 1980 registra 57.066 unidades vendidas.672 Ou seja, o período foi de anos
de ouro, sem dúvidas, para o grande empresariado, além de artistas consagrados, como já
destacado.

Entre os artistas abordados nesta tese, o ano de 1975 foi particularmente um ano de
ouro para Hyldon, que lançou, pela Polydor, um compacto duplo, amparado nas canções
de seus dois compactos anteriores: “As dores do mundo/Na sombra de uma árvore/Na rua,
na chuva, na fazenda/Sábado e domingo.” No mesmo ano foi lançado o primeiro LP do
cantor, Na rua, na chuva, na fazenda, que repetia as cinco canções lançadas em compactos
desde 1973 e acrescentou outras sete composições - mas com destaque às já lançadas.673

Nos dados do acervo IBOPE das cidades de Recife, Rio de Janeiro e São Paulo,
Hyldon consta nas vendas de compacto simples (“Na rua, na chuva, na fazenda”) e, a partir
de junho, com o LP nas três cidades, sendo que o álbum destaca por todo o segundo
semestre nas três regiões, alcançando as cinco primeiras colocações em vendas. Além de
Hyldon, que foi o único artista da Black Music Brasileira a constar, com impacto, nas três
cidades, Tim Maia pontuou no primeiro semestre em Recife (compactos simples “Réu
confesso”, “Do you thing be have you self”, compacto duplo “Gostava de você” e LP Tim

671
ARAÚJO. Eu não sou cachorro, não. Música popular cafona e ditadura militar. 2010. p.19. Conforme
citado em nota de rodapé, “Fontes: respectivamente, Associação Brasileira de Produtores de Discos e
IBINEE; “Discos em São Paulo”, Pesquisa 6, IDART, 1980. Apud. Renato Ortiz. A moderna tradição
brasileira; cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 127-128.
672
Fonte: ABPD, RJ: 03-95. In: DIAS, Marcia T. Os donos da voz. 2008, p. 59.
673
Hyldon. Na rua, na chuva, na fazenda. Álbum. Polydor. 1975.
247

Maia Racional) e Rio de Janeiro (LP Tim Maia Racional) e no segundo semestre apenas
em Recife (em outubro e novembro com o compacto duplo “Imunização racional”). Elza
Soares também pontuou no primeiro semestre nessas duas cidades em LP, porém, em
trabalho de samba tradicional, e no segundo semestre, apenas em RJ. Jorge Ben pontuou
apenas no RJ, em LP (Jorge Ben – provavelmente o A tábua esmeralda, do ano anterior – e
Solta o pavão) e Evinha apenas em SP, no segundo semestre, em compacto simples
(“Perdão amor”). O compacto “Ébano”, de Luiz Melodia, pontuou somente em Recife no
mês de junho. Da Black Music dos EUA, em Recife não houve qualquer registro, mas em
SP e RJ, Barry White foi o artista de maior destaque por todo o ano. Em SP, um expressivo
destaque de Michael Jackson por todo o ano e no RJ, James Brown e Gladys Night no
primeiro semestre e Commodores no segundo. 674

A repercussão no Brasil de Barry White, então conhecido como “o maestro do


amor”, deu-se tanto por compacto (“Barry White”) quanto pelo álbum Can’t Get Enough e
o seu impacto, assim como o da produção de Hyldon, fornecem indícios interessantes
sobre o gosto hegemônico no período entre o público consumidor. O trabalho de ambos os
artistas tem em comum o repertório romântico em andamento lento, com expressivo uso de
orquestração de cordas. Indícios do apreço do público brasileiro ao soul com tais
características já era percebido no ano anterior através do sucesso da produção de Michael
Jackson e Roberta Flack. No livreto Barry White, o jornalista Mauro Ferreira explica sobre
essa sonoridade:

Faixa que inspirou o título de álbum de 1974, “Can’t Get Enough of Your Love,
Babe”, é canção composta e produzida somente por Barry. O arranjo de cordas
da faixa é uma das marcas registradas do som do artista. (...) Sucesso de seu
primeiro álbum de 1973, “I’m Gonna Love You Just a Little More, Baby”
exemplifica o talento do soulman para armar luxuosa cama instrumental e deitar
nela com sua voz sensual de baixo-barítono.675

Para além do consumo potencializado de canções soul românticas, a pesquisa desta


tese não identificou em 1975 outros lançamentos que abordassem a linguagem antirracista
na Black Music Brasileira, além da canção “Ébano”, com a qual esse tópico foi iniciado. O
LP lançado por Elza Soares no ano, Nos braços do samba, embora tenha incluído uma
faixa de reverência às orixás femininas (“Lendas e festas das Yabás”), é um disco de
sonoridade de samba convencional, sem qualquer referência seja ao soul ou à Bossa Negra.
Inclusive, o LP confirmou a tendência de Elza por toda a década de 1970, ao não realizar
674
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE, Série: PD. Pesquisa de Venda de Discos. Notação:
PD 024 (Recife), PD 025 (RJ), PD 027 e PD 028 (ambas, SP).
675
FERREIRA, Mauro. Barry White. [Coleção Folha. Soul & Blues; v. 7] 2015, p. 30, 31.
248

scats por todo o disco, conforme feito nos dois álbuns anteriores. Jorge Ben lançou o
álbum Solta o Pavão, que, para Ana Maria Bahiana, conforme texto para a reedição do
álbum em CD “é claramente a segunda parte de A Tábua de Esmeralda, de 1974”,676 pela
sonoridade e temas mobilizados, mas sem incluir referências raciais. Wilson Simonal
lançou o álbum Ninguém proíbe o amor, que mantinha a sonoridade do álbum que lançou
no final de 1974, Dimensão 75, afastando do “sambão-jóia” e transitando por sambas e
baladas em diálogo com as sonoridades soul e jazz, mas, assim como no álbum anterior,
sem expressar a temática racial.677 De Toni Tornado e o então Quinteto Ternura, não foram
localizados por esta pesquisa lançamentos no ano.

De toda a produção abordada no ano de 1975, decerto a mais inusitada (e


consagrada nas referências sobre o período) foi o retorno fonográfico de Tim Maia, com o
LP Tim Maia Racional. O disco trouxe surpresas para o público do artista e eventuais
consumidores. A começar pela capa e contracapa que, pela primeira vez, não trazia uma
fotografia do artista, mas uma sequência de explicações sobre um “mundo racional”,
apresentado na capa como o mundo de origem, “o verdadeiro mundo do animal racional”,
que era “a causa” do micróbio que, por sua vez, era “a causa do ser humano”.

Fig. 11: Capa e contracapa. Tim Maia Racional. Vol. 2. Álbum. Seroma. 1976. O disco apresenta o mesmo
trabalho gráfico de seu antecessor, lançado em 1975. Extraído de [Acesso 29/05/2021]:
< https://thebestofvinil.blogspot.com/2017/11/tim-maia-racional-2-1975-sero ma.ht ml>

A estranha história narrada na capa antecipa o conteúdo do disco, posto que: “As
letras das músicas racionais, estão ligadas à Energia Racional, a energia pura, limpa e

676
Ana Maria Bahiana. Texto de apresentação. Jorge Ben. Solta o pavão. Álbum. Philips. 1975. Reedição em
CD. Universal Music. 2009.
677
Simonal. Dimensão 75. Álbum. Philips. 1974. Simonal. Ninguém Proíbe o amor. Álbum. RCA. 1975
249

perfeita, por ser do Supermundo, o mundo Supremo a este antimundo, que nós habitamos,
que é o mundo da energia elétrica e magnética, causadora dos males do corpo e dos males
da vida.” A contracapa prossegue na explicação da tese, apresenta o “mapa da formação e
criação do mundo de energia elétrica e magnética” e mais vinte e um mandamentos, as
“eternidades” e “o princípio da degeneração”. Desenhos e explicações ainda buscavam
sistematizar a cosmologia Racional. Por fim, a contracapa informa os títulos e a duração
das nove faixas que integram o LP, todas compostas por Tim Maia Racional, indicando
que o álbum mantinha a tradição do título ser apenas o nome do artista. Não era um álbum
chamado Racional, mas sim o artista que agora atendia por Tim Maia Racional. 678

O LP Tim Maia Racional, conforme antecipado na capa, era um álbum conceitual,


com todas suas composições dedicadas à expressão religiosa da Cultura Racional.
Contudo, a capa também informava que o disco não era lançado por nenhuma grande
gravadora, mas sim pela Seroma, uma marca independente criada pelo próprio Tim Maia.
No ano anterior, 1974, Tim desfez o contrato com a Polygram e assinou com a RCA,
combinando estrear com um álbum duplo. Porém, após a produção dos arranjos e início
das gravações, Tim descobriu um exemplar da série de livros Universo em desencanto na
casa do amigo Tibério Gaspar e teve uma conversão abrupta. O rompimento com a RCA
ocorreu por esta não aceitar lançar um LP religioso. Conforme José Ruy Gandra no livreto
Tim Maia Racional, vol. 1: “O disco, que já tinha as bases gravadas, serviu como
instrumento de difusão da doutrina, que é mencionada em todas as suas faixas. Lançado
pela Seroma, selo independente criado por Tim, o álbum foi ignorado pela crítica e pelo
público.”679 Os dados do IBOPE apresentados acima evidenciam que, longe de ser
ignorado pelo público, o LP, além de apresentar bons resultados no Rio de Janeiro, apesar
das dificuldades de distribuição de um selo novo e independente, alcançou boas vendas em
Recife. O público consumidor do disco encontrou funks e souls com possivelmente a
melhor performance vocal de Tim até então documentada.

A vendagem da “fase Racional” de Tim Maia, no entanto, não deve ser


superestimada. 1976, ano no qual foi lançado o Tim Maia Racional Vol. 2 - e que o artista,
após desligar do grupo religioso, lançou mais dois álbuns - é o primeiro desde sua estreia
em LP em que Tim não aparece nenhuma vez nos dados do IBOPE consultados, tanto em

678
Tim Maia Racional. Tim Maia Racional. Álbum. Seroma. 1975.
679
GANDRA, José R. Tim Maia Racional, vol. 1 (1975). [Coleção Tim Maia; v. 5] Abril Coleções. 2011, p.
9.
250

Recife, São Paulo ou em seu principal local de atuação, o Rio de Janeiro. A penúltima
faixa de Tim Maia Racional Vol. 2, “Guiné-Bissau, Moçambique e Angola Racional” por
vezes é citada como uma abordagem antirracista. Franklin Martins, no segundo volume da
trilogia Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República,
relaciona a canção de Tim com a independência dos três países, conquistada em 1975, após
o secular domínio colonial português: “Embora não fosse dado a compor e cantar músicas
sobre política, ele fez questão de saudar em 1976 a independência da Guiné-Bissau, de
Moçambique e de Angola”.680 O autor justifica sua interpretação pelos versos: Eu vim aqui
pra lhe dizer/ Que eles agora estão/ numa relax, numa tranquila, numa boa/ lendo os
livros da Cultura Racional/ Guiné-Bissau, Moçambique e Angola.681 Porém, a letra indica
que a bonança dos países não se deve à independência política, mas sim à exportação de
livros da Cultura Racional aos países africanos que leem no idioma português. Em todo
caso, a canção registrou uma demonstração de atenção de Tim Maia ao continente
africano.

Ainda em 1976, Tim Maia realizou o terceiro empreendimento fonográfico da


Seroma, lançando mais um LP homônimo, mas que ficou conhecido como Tim Maia em
inglês. Como indicado pelo título, o disco registrava apenas composições de Tim em inglês
e documentou uma das consequências da fase Racional: a debandada de sua banda de
apoio. Apenas três músicos seguiram com Tim e atuaram no novo lançamento: Paulinho
Guitarra, o baixista Carlinhos Simões e Dom Pi, que se encarregou do sintetizador e piano
e órgão elétricos. Tim tocou a bateria e percussão. A verba para o lançamento desse disco
em inglês foi possível graças ao retorno de Tim à Polygram, na qual lançou nesse
produtivo ano de 1976 mais um LP Tim Maia, agora com canções em português (apenas
três, das onze faixas do álbum, foram gravadas em inglês). O disco manteve os mesmos
instrumentistas do álbum em inglês, exceto Dom Pi, substituído por Reginaldo Francisco, e
incluiu Paulinho Batera em uma segunda bateria, Antônio Pedro, em um segundo
contrabaixo elétrico, mais dois guitarristas de base, Paulinho Roquete e José Maurício,
além de três vocalistas de apoio e arranjos de cordas. A ideia do disco era justamente
registrar toda essa potência sonora de três guitarras, dois baixos e duas baterias em todas as
canções. Nesse álbum uma nova aproximação com o continente africano foi documentada,
agora sim em uma composição política de Tim, o funk “Rodésia”:

680
MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República.
Volume II - de 1964 a 1985. 2015, p. 185.
681
Tim Maia Racional. Tim Maia Racional vol. 2. Álbum. Seroma. 1976. Faixa 03, Lado B.
251

Em Guiné-Bissau/ não está legal/ muito menos na Rodésia/ África do Sul/ Pegue
o sangue azul/ mande para as cucuias/ Só assim vão ver/ que o preto é bom/ mas
é valente também/ Meu irmão de cor/ chega de pudor/ pois assim não é possível/
Tome o que é seu/ pois foi quem te deu/ bela natureza triste/ Foi deixar pra lá/
mas assim não dá/ veja o que aconteceu/ vai bem devagar/ vai bem como és/ mas
vai bem objetivo/ Pegue o que é seu/ viva livre em paz/ pois a sua terra é esta/
Sei que és do som/ não és de matar/ mas não vai deixar pra lá. 682

Nelson Motta, na biografia de Tim, Vale Tudo, menciona sobre a composição:


“Uma nova causa substituía o Universo em Desencanto: a África, sua miséria e sua fome, a
diáspora negra, tema da faixa mais forte do disco, o empolgante funk-soul ‘Rodésia’” que,
segundo o jornalista, foi inspirada pelo mais destacado artista do reggae: “Zimbábue, o
novo nome da Rodésia independente, era uma canção guerreira de Bob Marley, lançada na
época, que provocou grande impacto e inspirou Tim.”683 Franklin Martins, na obra citada
acima, aponta: “Embora a canção tenha sido lançada em 1976, provavelmente foi
composta anos antes, já que ainda se refere à Guiné Bissau como se ela estivesse sob a
dominação de Portugal. Tim Maia dá seu apoio às maiorias negras na África do Sul e da
Rodésia que lutavam contra o apartheid”, e conclui em alusão ao cenário político: “Em
1980, a Rodésia passou a ser governada pela maioria negra, adotando o nome de
Zimbábue.”684 A explicação de Franklin Martins ajuda a corrigir algumas confusões feitas
por Nelson Motta. A Rodésia surgiu como país independente em 1965, através de um
governo de minoria branca altamente segregacionista que apenas foi derrubado no final de
1979, com a ascensão do líder revolucionário Robert Mugabe (que governou o país, em
regime ditatorial, até 2017). Embora os grupos políticos revolucionários que atuavam na
região já se intitulassem com o termo nacionalista Zimbabwe, 685 a canção com tal nome foi
lançada por Bob Marley em 1979.686 Portanto, a gravação de Tim foi lançada três anos
antes, tornando pouco provável a relação de inspiração - a menos que em direção invertida.

Tim Maia não foi o único dos artistas analisados nesta tese que promoveu uma
aproximação com o continente africano no ano de 1976. Jorge Ben lançou em tal ano o LP

682
Tim Maia. Rodésia (Tim Maia). Tim Maia. Álbum. Polydor. Faixa 03, Lado A. CD. Universal Music.
2010. < https://www.youtube.com/watch?v=Hv6QW6VDO64>
683
MOTTA, Nelson. Vale Tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 154.
684
MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República.
Volume II - de 1964 a 1985. 2015, p. 185, 186.
685
GONTIJO, Manoel Magalhães dos Santos. Da Rodésia ao Zimbábue: A Transmutação de Culturas
Políticas e a Identidade dos Colonos. Disponível em:
<https://www.encontro2012.historiaoral.org.br/resources/anais/3/1330812076_ARQUIVO_TRABALHOCO
MPLETO_XIENCONTROABHO2012_ DOC.pdf >
686
<https://atarde.uol.com.br/muito/noticias/2118263-zimbabwe-a-musica-de-bob-marley-que-embalou-ha-
40-anos-a-libertacao-de-um-pais> Acesso 29/05/2021. Bob Marley & The Wailers. Zimbabwe. Single. Island
Records. 1979.
252

África Brasil, mais um dos títulos que se tornariam consagrados em seu repertório. Este
disco marcou a transição de Jorge da execução ao violão, então característica da
sonoridade do artista, para o uso da guitarra elétrica. A adoção de timbres elétricos ocorreu
junto a uma maior aproximação de Jorge com o funk, sonoridade reforçada pelos teclados e
o forte naipe de sopros (incluindo Oberdan Magalhães no sax). Portanto, esse disco marcou
um retorno de Jorge à sonoridade estudada na presente tese. Conforme pontuado por
Luciana Oliveira, Jorge estava “catalisando em seu samba as influências da black music
norte-americana que chegavam ao Brasil.”687 Segundo Ana Maria Bahiana, no texto para
reedição do álbum em CD: “África e futebol estão presentes em todo o disco, na canção
tema para o filme Xica da Silva de Cacá Diegues (...), na faixa título, incendiária e
passional, que encerra o álbum e em mais um gesto de paixão ao Mengo, Camisa 10 da
Gávea, hino de amor a Zico.”688

A faixa título do álbum, “África Brasil (Zumbi)”, é uma regravação da canção


“Zumbi”, lançada em 1974 no A tábua esmeralda. O historiador Alexandre Reis dos
Santos destaca a mudança na interpretação da canção, dada pela instrumentalização e a
atuação vocal de Jorge: “Já a interpretação de 1976 é bem mais rápida, mais agitada, com
riffs de guitarra. Nesta última, Jorge quase grita ao interpretar a canção, como se estivesse
com raiva.”689 A dimensão da sonoridade é destacada também na dissertação de Luciana
Oliveira, abordando justamente as duas faixas de África Brasil que interessam à presente
tese pelo tema racial:

Se em Xica da Silva, a proposta sonora está mais próxima do soul da Motown,


mais ligada a estratégias do pop e do mainstream, e palatável a um público mais
amplo, em África Brasil (Zumbi), última faixa do disco, a idéia era desenvolver
uma sonoridade mais agressiva, influenciada pelo soul de Memphis, propagado
pela gravadora Stax.690

Juntando as interpretações dois autores, é possível considerar que a sonoridade soul


em estilo próximo ao propagado pelas gravações da Stax Records na atualização da canção
para 1976 fundamenta o andamento acelerado executado e a interpretação vigorosa da voz
de Jorge Ben. A letra permanecia a mesma de “Zumbi”, mas a interpretação concedia uma

687
OLIVEIRA, Luciana. O Swing do samba. Uma compreensão do gênero samba-rock a partir da obra de
Jorge Ben Jor. Dissertação (Comunicação Social). Universidade Federal da Bahia. 2008, p. 108.
688
Ana Maria Bahiana. Texto de reedição. Jorge Ben. África Brasil. Álbum. Philips. 1976. CD. Universal
Music. 2009.
689
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben. Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p. 142-143.
690
OLIVEIRA, Luciana. O Swing do samba. Uma compreensão do gênero samba-rock a partir da obra de
Jorge Ben Jor. Dissertação (Comunicação Social). Universidade Federal da Bahia. 2008, p. 161.
253

atmosfera mais violenta ao refrão Eu quero ver quando Zumbi chegar. É interessante
destacar ainda que a conexão África-Brasil expressa a partir do novo título da canção
expressava uma identificação triangular, ao buscar em um gênero da black music
estadunidense um elo na construção de uma identidade negra pensada a partir da realidade
diaspórica de Zumbi, lido como uma figura simbólica, escapando ao estereótipo
“coisificado” imposto pela instituição escravocrata. Mesma característica que pode ser
identificada na canção-biografia “Xica da Silva” de versos como: de escrava a amante/
mulher/ mulher do fidalgo tratador/ João Fernandes/ A imperatriz do Tijuco/ a dona de
Diamantina/ (...) Mulher rica e invejada/ temida e odiada/ (...) a negra era obrigada a ser
recebida/ como uma grande senhora da corte/ do Rei Luís, entoados enquanto o coro canta
o mote: Xica da Silva. A negra.691

Na segunda metade da década de 1970, além de Tim Maia e Jorge Ben, o Estado
ditatorial brasileiro também efetuava um movimento de aproximação ao continente
africano. O sociólogo Walace Ferreira, no artigo “A África na Política Externa Brasileira:
análise de distanciamentos e aproximações entre as décadas de 1950 e 1980” pontua que
entre 1964 e início dos 1970, o termo chave usado pelas autoridades nas relações exteriores
no país era “interdependência”, que o próprio ditador Castelo Branco explicou durante seu
governo como a necessidade de conexão com algum bloco na ordem mundial bipolar, e,
assim, o Brasil se conectou aos EUA nos campos econômico, militar e político. Porém:
“De 1969 a 1974 (período do governo Médici), a economia brasileira cresceu a um índice
médio de mais de 11% ao ano, de modo que o período do ‘milagre econômico’ criou uma
nova justificativa para as relações com a África.”692 Essa aproximação, contudo, era
contraposta pela relação simbiótica que o Estado brasileiro mantinha com Portugal e sua
política colonialista em solo africano, como exemplificado na escolha do governo pelo
“voto contrário ao reconhecimento da existência de um Estado autônomo instituído na
Guiné-Bissau em 1973.”693

691
Jorge Ben. Xica da Silva (Jorge Ben). África Brasil. Álbum. Philips. 1976. Faixa 01, Lado B. CD.
Universal Music. 2009. < https://www.youtube.com/watch?v=bNEUBlI4G7o> Conforme será explorado no
capítulo três, a difusão dessa canção foi potencializada como trilha sonora do bem sucedido filme Xica da
Silva, produzido por Cacá Diegues e lançado em 1976. Já “África Brasil”:
<https://www.youtube.com/watch?v=gV8V6IR-UI0>
692
FERREIRA, Walace. A África na Política Externa Brasileira: análise de distanciamentos e aproximações
entre as décadas de 1950 e 1980. In: Revista acadêmica de Relações Internacionais. n°4. Vol. 11, 2013, p.
140.
693
FERREIRA, Walace. A África na Política Externa Brasileira: análise de distanciamentos e aproximações
entre as décadas de 1950 e 1980. 2013, p. 139.
254

As relações internacionais entre o Estado brasileiro e os países do continente


africano no período da ditadura militar foram mais detalhadamente abordadas no livro
Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980, do historiador
Jerry Dávila. O livro aponta a centralidade da concepção de “democracia racial” para os
modelos em disputa quanto às relações exteriores do Brasil por todo o recorte estudado
pelo autor: “Ao projetar o país como a síntese dialética de elementos portugueses e
africanos, [Gilberto] Freyre criou o arcabouço que tanto aqueles que apoiavam Portugal
quanto aqueles que buscavam laços com a África iriam utilizar.”694 Conforme apontado no
capítulo anterior da presente tese, o próprio Gilberto Freyre mobilizou o seu arcabouço
teórico para justificar o colonialismo português, como a promoção de “províncias
ultramarinas” - e não colônias de um projeto imperialista - fundadas no que o sociólogo
denominou “lusotropicalismo”: o ideal harmônico de ausência de preconceitos raciais da
“democracia racial” expandido a todo o “Império português.” Porém, conforme Jerry
Dávila: “A descolonização mudou o cenário do mundo em expansão moldado pela
diáspora africana e teve um impacto visível no pensamento brasileiro e em suas conexões
com o projeto de desenvolvimento nacional.”695 Tal projeto angariou maior impacto em
meio à modernização autoritária: “A África parecia um mercado potencialmente rico para a
exportação dos tipos de bens de consumo industriais que o Brasil agora estava produzindo
para seu mercado interno.”696 Outros elementos contribuíram para a mudança:

A estabilidade política que se instaurou quando a facção dos oficiais que apoiava
Médici consolidou seu poder, além da cres cente rescisão das liberdades civis e
da repressão violenta da dissidência no Brasil, produziu um clima no qual a
política externa podia ser conduzida com maior coerência do que a que tinha
existido por mais de uma década.697

Portanto, conforme a análise de Jerry Dávila, a aproximação do Brasil com a África


através do Ministério das Relações Exteriores foi fruto tanto dos anos de ouro do “milagre
econômico” - produzido graças ao empobrecimento e exploração da classe trabalhadora no
país - quanto dos anos de chumbo da violência política à oposição. Contudo, a lealdade
com Portugal era um empecilho para a aproximação, de modo que as políticas de
aproximação efetivamente ocorreram após a Revolução dos Cravos, que, em abril de 1974,
derrubou o governo ditatorial português e possibilitou a ascensão de um governo socialista.
Foi neste cenário internacional que: “Ansioso para restaurar a credibilidade do país na

694
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 24.
695
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 14.
696
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p.179.
697
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 24.
255

África, Geisel fez com que o Brasil fosse a primeira nação a reconhecer o governo
independente de Angola, embora fosse um regime marxista. Essa decisão foi parte de uma
nova política externa que o regime chamou de ‘pragmatismo responsável.”698

O discurso mobilizado pelos representantes do Estado brasileiro que executavam a


política do “pragmatismo responsável” no continente africano difundia representações da
identidade racial no país que eram defendidas como justificativas para o estreitamento de
acordos comerciais: “Elas ilustram como a ideia de que o Brasil era especial por sua
harmoniosa miscigenação - ou seja, de que o país era uma ‘democracia racial’ - o que dava
sentido à política estatal, definia um papel global para o Brasil e impulsionava uma
geração de diplomatas”.699 Esse discurso político também se valeu do surgimento de várias
entidades culturais negras. O governo brasileiro em que mais desenvolveu tal aproximação
política na ditadura militar foi o do quarto ditador, o general-presidente Ernesto Geisel, e
seu governo, iniciado em 1974, prometia uma abertura política, lenta e gradual. O
historiador Amílcar Araújo Pereira, no livro O Mundo Negro. Relações Raciais e a
Constituição do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil, ressalta uma entrevista com
a antropóloga Zélia Amador de Deus que identificou que o: “contexto histórico e político
brasileiro, que desde 1974 vivia a chamada ‘Abertura política’ -, teria sido um ponto de
inflexão nesse debate sobre cultura e política, e, dessa forma, teria influenciado na criação
de várias organizações do movimento negro pelo Brasil afora,”700 Tais organizações são
detalhadas por Amílcar Pereira no livro:

Algumas entidades se formaram logo no início da década de 1970, como o


Grupo Palmares, no Rio Grande do Sul em 1971; o Centro de Cultura e Arte
Negra (Cecan) e o grupo de teatro Evolução, em São Paulo em 1972; o bloco
afro Ilê Aiyê em 1974 e o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro em 1976, ambos em
Salvador; a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba) em 1974 e o
Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) em 1975, no Rio de Janeiro; o
Grupo de Trabalho André Rebouças, em Niterói, e o Centro de Estudos Brasil-
África (Ceba), em São Gonçalo (RJ), em 1975, entre outras. Um exemplo dessas
redes de relação que se expandiam nos anos 1970 é o fato de que em 1975, a
criação do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), no Teatro
Opinião, no Rio de Janeiro, contou com a participação de alguns atores que
conheciam a trajetória do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em
1944.

Joel Rufino dos Santos afirma que o fato de haver em geral “pesquisa” e
“cultura” nos nomes das organizações negras surgidas na década de 1970,
mesmo não sendo estas organizações estritamente culturais, se deve, de um lado,
ao impedimento legal de se registrar uma entidade como sendo “racial”, mas

698
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 53.
699
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 12.
700
Entrevista ao autor. PEREIRA, Amílcar A. O Mundo Negro. Relações Raciais e a Constituição do
Movimento negro Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 227.
256

também ao fato de a “raça” sozinha não ser catalisadora, sendo necessário


misturá-la à “cultura”. “Negro”, nesse contexto, “é mais bem uma soma de raça e
cultura”.701

As organizações de estudo da cultura negra desenvolviam com cuidado em um


cenário político de repressão no qual a Doutrina de Segurança Nacional do regime reprimia
a difusão de “preconceito de raça” - e assim podia compreender e enquadrar manifestações
de denúncia do preconceito e discriminação racial no país, como já abordado na presente
tese. No entanto, sua existência (fruto de ações de resistência à repressão do regime por
parte daqueles que as organizavam) tornava-as úteis para o discurso e propaganda do
regime ao se afirmar enquanto uma “democracia racial”, afinal, podia ressaltar que tanto
não havia discriminação e racismo, que existiam essas diversas entidades de valorização da
ancestralidade e identidade africana. Assim, a existência das entidades negras podia ser útil
à nova política de relações exteriores da ditadura, que, conforme Jerry Dávila: “utilizava as
conexões raciais e culturais do Brasil com a África para construir parcerias econômicas e
mercados de exportação que iriam sustentar o milagre econômico.”702 A criação das
parcerias não foi rápida e vigorosa o suficiente para sustentar o milagre, mas criou
conexões desenvolvidas nos anos seguintes.

No ano de 1976, enquanto Tim Maia acenava a seus irmãos de cor da Rodésia e
Jorge Ben lançava África Brasil, outro registro da Black Music Brasileira também
valorizava a ancestralidade e uma identificação africana, com Luiz Melodia: Eu sou quase
esse crânio/ tentando ou não tentando/ sou quase nada/ mulato não é questão de engano/
Sou quase nada/ sou descendente mais de africano/ Sou quase nada/ sou forte feito um
nobre humano.703 Em uma sonoridade soul vigorosa, destacando as execuções de guitarra e
bateria, Luiz exaltava que sua existência enquanto mulato, uma pessoa miscigenada
descendente mais de africano, era tão forte quanto um nobre humano. São versos da
canção título de seu segundo álbum, Maravilhas contemporâneas, lançado com o selo
“Disco é Cultura” pela Som Livre.

Maravilhas contemporâneas incluiu “Juventude transviada”, samba lento executado


com guitarra, que, conforme já informado, compôs a trilha sonora da telenovela da Globo
Pecado Capital e que foi lançada em compacto na época - o único lançamento de Melodia

701
PEREIRA, Amílcar A. O Mundo Negro. Relações Raciais e a Constituição do Movimento negro
Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 220.
702
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 173.
703
Luiz Melodia. Maravilhas contemporâneas (Luiz Melodia). Maravilhas contemporâneas. Álbum. Som
Livre. 1976. Faixa 02, Lado A. Reedição em CD. Som Livre. 2017.
257

no ano a constar nos dados do IBOPE, com bons resultados no primeiro semestre nos
dados de SP, RJ e, principalmente, em Recife, onde pontuou de março a junho. 704 LP mais
celebrado da carreira do cantor, ao lado de Pérola Negra (1973), distanciava do antecessor
(que exibia arranjos minimalistas, algumas faixas com apenas dois instrumentos) ao
apresentar uma sonoridade soul encorpada, e banda completa em todas as faixas, formada
predominantemente por músicos negros. Era o grupo reunido por Oberdan Magalhães (sax
e flauta), que tocou no disco junto ao seu companheiro de Dom Salvador e Abolição, Luiz
Carlos (bateria), Jamil Jonas e Valtencir (contrabaixo), Perinho Santana (guitarras),
Cidinho (piano elétrico), Octavio Brito (sintetizador), Márcio Montarroyos (pistom), entre
outros, além de Melodia ao violão.

Oberdan Magalhães também atuou no segundo álbum de Hyldon, Deus, a natureza


e a música, lançado em 1976, que manteve tanto a sonoridade quanto a temática romântica,
mas não repetiu o impacto de seu LP anterior. 705 Em contraponto, seu ex-companheiro
Cassiano enfim conseguiu sucesso com a balada soul “A lua e eu”, lançada em compacto
pela Polydor e que, conforme os dados do IBOPE, teve bons resultados durante todo o ano
em SP, RJ e em Recife.706 O sucesso do compacto antecipou o lançamento de seu terceiro
álbum, Cuban Soul – 18 Kilates, que registrou a lapidação do estilo desenvolvido pelo
compositor: baladas soul que valorizavam as harmonias vocais e de guitarra de Cassiano,
evocando a sonoridade de Curtis Mayfield, além do amplo uso da orquestra de cordas. Este
disco, o mais consagrado da carreira de Cassiano, também incluiu a canção “Coleções”,
que a partir de 01/03/1977 foi veiculada diariamente (até 12/09/1977) na trilha sonora da
telenovela Locomotivas da Rede Globo.707 Cuban Soul foi o primeiro álbum de Cassiano
na Polydor e também o primeiro a constar um texto de indicação na contracapa, com
características de LP de estreia, ao iniciar apresentando que o artista “nasceu em Campina
Grande, Paraíba, em 16 de setembro de 1943”, seguindo por seus primeiros contatos
familiares com a música, a formação de “‘Os Diagonais’, de enorme influência para a
música brasileira” e que, segundo o texto, “são o centro de apoio de todo o trabalho de Tim
Maia. Cassiano compõe ‘Primavera’ e faz todos os arranjos das músicas de Tim, o que o
consagra definitivamente.” O texto finaliza anunciando: “Neste LP, Cassiano procura criar

704
Arquivo Edgard Leuenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Vendas de Discos. Notação
PD 029 (Recife), PD 030 e PD 031 (RJ) e PD 032 e PD 033 (SP).
705
Hyldon. Deus, a natureza e a música. Álbum. Polydor. 1976.
706
Arquivo EdgarLeurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação: PD 029
(Recife), PD 030 e 031 (RJ) e PD 032 e 033 (SP).
707
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/locomotivas/ > Acesso 30/05/2021.
258

um novo tipo de ritmo, denominado ‘cuban soul’, baseado na universalidade da música e


sua mistura com as raízes brasileira.”708

É interessante destacar a estratégia discursiva no texto de apresentação do terceiro


álbum de Cassiano. Conforme informado neste tópico, Tim Maia em 1976 havia retornado
à gravadora Polydor e saído do proscênio da cena musical com sua fase Racional, após ter
lançado quatro álbuns de grande sucesso por essa gravadora, o último em 1973. A
contratação de Cassiano pela Polydor, conforme os trechos destacados no parágrafo
anterior, além de superestimar a influência do grupo Os Diagonais, atribuiu a Cassiano não
apenas os arranjos do álbum de estreia de Tim Maia, mas de “todos os arranjos das
músicas de Tim”, e como “centro de apoio de todo o trabalho de Tim”. A estratégia da
gravadora, de acordo com o texto de contracapa, sugere uma tentativa de fomentar
Cassiano como um substituto natural de Tim Maia, então em momento de crise na carreira
– e que poderia ser um sinal do fim de seu sucesso no presente de atores sociais do
período, que não tinham o privilégio da ciência sobre os anos seguintes como nós: o autor
desta tese e quem esteja lendo estas páginas. A estratégia da Polydor foi temporariamente
bem sucedida - tendo em vista o impacto de Cuban Soul à época e sua consagração futura -
, graças, principalmente, à força das canções do LP.

Outros lançamentos do ano de 1976 incluíram o compacto duplo de Simonal com


as canções “Navio Negreiro/O amor está no ar/ Escola de luto/Esses tempos de agora”,
cuja a primeira canção buscava no navio negreiro colorido/ no asfalto/ alegrando a
multidão, uma entrada para homenagear os nomes das diversas escolas de samba do Rio de
Janeiro. E, no final do ano, o compacto simples “A vida é só para cantar/Trinta
dinheiros”.709 O novamente reduzido Trio Ternura lançou apenas um compacto, “De amor
também se morre/Eta eta”, que distanciava da sonoridade então desenvolvida pelo grupo
na década, ao apresentar os arranjos vocais em ritmo de samba então convencional
(tamborins e cavaquinho etc).710 Um disco compacto também foi o lançamento de Evinha
em 1976, que gravou “Marido ideal” para a trilha sonora da telenovela Anjo Mau. No
entanto, para a proposta da presente tese de analisar a expressão de linguagens políticas
antirracistas do Orgulho Negro na Black Music Brasileira, o disco compacto mais
expressivo lançado em 1976 foi de Toni Tornado, o compacto duplo “Se Jesus fosse um

708
Texto não creditado. Cassiano. Cuban Soul – 18 Kilates. Álbum. Polydor. 1976.
709
Wilson. Simonal. Navio Negreiro/O amor está no ar/Escola de luto/Esses tempos de agora . Compacto
duplo. RCA. 1976. Wilson Simonal. A vida é só para cantar/Trinta dinheiros. Compacto. RCA. 1976.
710
Trio Ternura. De amor também se morre/Eta eta. Compacto. Tapecar. 1976.
259

homem de cor (Deus Negro)/Osso duro de roer/Fica Comigo/Vou apagar você”, primeiro -
e único - registro fonográfico do cantor lançado pela Copacabana. 711

Entre as composições lançadas no compacto duplo de Toni Tornado, o destaque é a


versão de “Se Jesus fosse um homem de cor (Deus Negro)”, lançada originalmente por seu
compositor, Cláudio Fontana, em 1973. Na versão de Toni, a canção foi transformada em
um soul de forte acento gospel, enfatizado pela sonoridade instrumental e pelo coro
feminino que, após uma introdução em guitarra elétrica distorcida, entoa o cântico de tom
religioso Glória, glória, aleluia/ Glória, glória, paz e amor/ Glória, glória, aleluia/ o meu
Cristo não tem cor e também o refrão de questionamento: você teria por ele esse mesmo
amor/ se Jesus fosse um homem de cor?, ambos os trechos cantados diversas vezes durante
a canção. A composição reafirma a existência de preconceito racial no Brasil (negada pelo
discurso oficial do Estado brasileiro, conforme enfatizado nesta tese), realizando um ato de
fala da Linguagem Política do Orgulho Negro. A partir do uso dos elementos gospel, a
sonoridade fortalece a mensagem da letra, em diálogo com a leitura antirracista que
enfatiza a dimensão política do princípio igualitário cristão realizada pelas igrejas
protestantes dos EUA destinadas às pessoas negras:

Talvez ninguém tenha pensando no que eu pensei/ durante a noite que passou/
Ou se pensou, ficou calado pra não ver/ um mundo inteiro reagir/ A minha fé
não modifica e nem se abala/ Mas eu não posso me calar/ Minha pergunta
necessita uma resposta/ Será que alguém me pode dar?/ Você teria por ele esse
mesmo amor/ se Jesus fosse um homem de cor? Talvez ninguém tenha passado o
que eu passei/ e os meus problemas são de cor/ eu q uis pintar meu céu de azul
de amor e paz/ e o mundo inteiro não deixou. 712

O questionamento realizado por Claudio Fontana ao compor a canção “Se Jesus


fosse um homem de cor” foi potencializado ao ser interpretado e publicizado por Toni
Tornado, artista que já havia difundido expressões antirracistas nas canções “Sou negro”,
“Juízo final” e “Uma ideia”, além de performances no qual o gestual evocava a luta
antirracista. Conforme abordado outrora neste capítulo, a identificação da manifestação
antirracista pelo artista despertou a atenção das forças repressivas da ditadura militar
brasileira - que pode alimentar outras dimensões diante do verso os meus problemas são de
cor. O olhar repressivo do Estado novamente se manifestou após o lançamento de tal

711
Toni Tornado. Se Jesus fosse um homem de cor (Deus Negro)/Osso duro de roer/Fica comigo/Vou apagar
você. Compacto duplo. Continental. 1976.
712
Toni Tornado. Se Jesus fosse um homem de cor (Deus Negro). (Claudio Fontana) Se Jesus fosse um
homem de cor (Deus Negro)/Osso duro de roer/Fica comigo/Vou apagar você . Compacto duplo.
Continental. 1976.
260

canção por Toni, em 1976, e sua execução ao vivo. Claudio Fontana, em entrevista
fornecida em 1999 ao historiador Paulo César de Araújo para a pesquisa que resultou no
livro Eu não sou cachorro, não, revelou sobre sua intimação, junto de Toni Tornado, para
depor na Polícia Federal no período:

Eles chamaram a gente lá na Federal e pediram para eu explicar o que eu queria


dizer com aquilo; se eu e o Tony Tornado estávamos querendo fazer algum
movimento de protesto no Brasil e tal. ‘Vocês querem jogar os negros contra os
brancos?’ Evidentemente, respondemos que não, senão seríamos presos ali
mesmo.713

O relato acima revela uma convocação para esclarecimentos, e não uma prisão,
como temia o compositor. E indicia um aviso velado, pelas forças repressoras do Estado,
de sua atenção sobre o tema, em detrimento do uso aberto da violência. O recorte
documental desta tese circunscreve-se às canções conforme gravadas e veiculadas, nas
quais é possível identificar os atos de fala realizados pelos artistas quanto às linguagens
antirracistas. Portanto, o recrudescimento dos órgãos de censura e sua intervenção em
letras de canções do amplo recorte não integra os temas abarcados nesta pesquisa.
Contudo, os efeitos de tal recrudescimento, elemento ressaltado na memória social e na
historiografia pelo termo anos de chumbo, podem ser percebidos na trajetória de Toni
Tornado. Embora a canção “Se Jesus fosse um homem de cor (Deus negro)” não tenha
sofrido censura, sendo lançada em disco e comercializada, a referência ao preconceito
contradizia a representação oficial sobre a inexistência do preconceito racial no Brasil
justificando a atuação do aparato repressivo ao convocar esclarecimentos do compositor e
do intérprete. Ou seja, a leitura de que abordar o preconceito seria “jogar os negros contra
os brancos” orientava as interpretações do regime sobre a pauta racial, porém, não
implicou que os aparelhos censórios impedissem a circulação desta, assim como das
diversas canções estudadas na presente tese.

As constantes tensões com o aparato repressivo da Ditadura Militar brasileira


vividas na trajetória musical de Toni Tornado instigam uma reflexão comparativa com um
dos principais expoentes da linguagem do Orgulho Negro apresentados no capítulo anterior
desta tese: Wilson Simonal. Toni, que entre outros temas, expressava o antirracismo nas
canções, teve sua expressão lida como subversiva e identificada ao comunismo pelos
órgãos do Estado, conforme estudado na dissertação da historiadora Amanda Palomo

713
ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não. Música popular cafona e ditadura militar 2010, p.
331.
261

Alves, O Poder Negro na pátria verde-e-amarela.714 E apesar do impacto de sua produção


no início dos anos 1970, após diversos incidentes com os órgãos policiais, na segunda
metade desta década, Toni optou por interromper sua carreira musical, dedicando-se ao
ramo artístico apenas enquanto ator.

Já Simonal, que, entre outros temas, expressou o antirracismo em canções -


conforme estudado pelo autor desta tese na dissertação “Sim, sou um negro de cor” e no
texto “Um antirracismo liberal conservador?” -, teve sua canção “Tributo a Martin Luther
King” identificada como um posicionamento à esquerda do espectro político por setores da
mídia em 1967.715 Contudo, por suas declarações públicas de apoio ao governo ditatorial e,
principalmente, a associação de seu nome com órgãos de informação do regime em meio
ao polêmico caso da tortura de seu contador em 1971, passou a ser associado às direitas do
espectro político em um cenário no qual foi perdendo a relevância artística que conquistou
nos anos anteriores. A partir dos dois casos é possível retomar uma reflexão outrora
levantada pelo presente autor: “Deste modo, identificamos a reivindicação antirracista
como possível de efetuar um corte transversal no espectro político, capaz de perpassar a
Direita e a Esquerda”, sendo que as respostas dadas a ela e os posicionamentos quanto a
outras questões sociais enfatizam a distância política. 716

A articulação entre o temor anticomunista e expressões antirracistas no discurso das


forças repressivas do Estado ditatorial, no entanto, não foi dirigida apenas a Toni Tornado
na década de 1970. Ainda no ano de 1976, a descoberta e ampla divulgação pelas grandes
mídias dos bailes de Black Music que reuniam milhares de jovens nas periferias do Rio de
Janeiro acendeu o alerta das forças repressivas para o risco de subversão e infiltração
comunista. O acontecimento catalisador para isso foi a publicação da reportagem “Black
Rio: o orgulho (importado) de ser negro no Brasil.” da jornalista Lena Frias, em quatro
páginas do Caderno B da edição do Jornal do Brasil de 17 de julho de 1976. A longa
reportagem apresentou um evento cultural de frequência regular, então existente há quase
uma década, reunindo um público estimado aos milhares de jovens periféricos (portanto,
formado, em sua grande maioria, por jovens negros) e que, ainda assim, era totalmente

714
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na pátria verde-e-amarela: musicalidade, política e identidade
em Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual de Maringá. 2010.
715
MORAIS, Bruno V. L. “Sim, sou um negro de cor”. Wilson Simonal e a expressão do Orgulho Negro no
Brasil dos anos 1960. Dissertação (História). Universidade Federal de Minas Gerais. 2016, p. 123-151.
716
MORAIS, Bruno V. L. Um antirracismo liberal conservador? Orgulho Negro e denúncia do racismo por
Wilson Simonal nos anos 1960. In: BOHOSLAVSKY, Ernesto, MOTTA, Rodrigo P. S, BOISARD,
Stéphane. (org.) Pensar as Direitas na América Latina. 2019, p. 245-265.
262

desconhecido pela equipe do jornal e ampla parcela de seu público consumidor. A


reportagem de Lena apresentou os bailes como uma espécie de experiência estrangeira,
uma “outra” cultura, com sua própria moda, formas de comunicação gestual e de se portar,
danças, vocabulário e preferências musicais. A essa cultura, a autora intitulou “Black Rio”.
A reportagem de Lena Frias destacou reações de suspeita perante pessoas brancas no
ambiente – reações que ela não sofreu por seu fenótipo, apesar de ser uma “estranha” no
ambiente, posto que a jornalista é uma pessoa negra.

O significante “Black” operado por Lena Frias era oriundo da própria comunidade
que ela analisava: “Um fenômeno de massa raro e desconcertante para os padrões da
época, que envolvia negros e mestiços, na sua maioria de bairros suburbanos do Rio de
Janeiro. Negros não. Eles se chamavam blacks.”717 Ou, para usar as palavras de Lena:
“Uma cidade de cultura própria desenvolve-se dentro do Rio. (...) Uma cidade cujos
habitantes se intitulam a si mesmos de blacks ou de browns; cujo hino é uma canção de
James Brown (...) cujo modelo é o negro americano, cujos gestos copiam, embora sobre a
cópia já se criem originalidades.”718 Por tal significante, a jornalista interpretou e
descreveu os códigos culturais apresentados por ela e registrados pelas lentes fotográficas:
uma “moda black”, “cumprimentos black”, a dança “black” e a “música black” - ou black
music -, os elementos desse Rio de Janeiro alternativo, o “Black Rio”. Conforme os autores
da frase citada no início do parágrafo, os jornalistas Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé
Octávio Sebadelhe, no livro 1976. Movimento Black Rio: “A brilhante matéria de quatro
páginas assinada pela jornalista Lena Frias, com o tenaz ensaio fotográfico de Almir
Veiga, iria batizar o movimento eternamente.” e os autores em seguida ressaltam: “A
extensa matéria com chamada de capa, na edição de um sábado de 1976, publicada como
manchete em um dos jornais de maior circulação nacional, iria tanger a opinião pública de
uma forma que não se poderia presumir.”719

O historiador Maurício Barros de Castro, na obra O Livro do Disco. Gilberto Gil.


Refavela, também destaca o impacto da reportagem de Lena Frias, que “provocou um
efeito dominó sobre o assunto, alcançando diversos veículos de mídia. Hermano Vianna
conta que depois dessa matéria praticamente todos os jornais e revistas do Brasil se

717
PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. SEBADELHE, Zé Octávio. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 11, 12.
718
<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&pasta=ano%20197&pesq=Black%20R
io&pagfis=144015> Acesso 01/06/2021.
719
PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. SEBADELHE, Zé Octávio. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 21.
263

voltaram para a cena soul e funk dos bailes cariocas.”720 Tal impacto, a começar pela
própria imprensa da época, foi objeto da monografia Movimento Black Rio e sua influência
na construção da identidade negra no Rio de Janeiro: um estudo das representações no
Jornal do Brasil (1976-1977), da historiadora Marianna Gomes Muniz, que conclui:

Após a publicação da reportagem de Lena sobre o movimento Black Rio, a


reação que se teve nas matérias posteriores sobre essa temática foi, em sua
grande maioria, também de repúdio, onde a população carioca não compreendia
a razão na qual uma parcela dos negros na sociedade carioca da época
encomendava uma cultura vinda de fora, sendo que no Brasil havia uma riqueza
cultural negra superior.721

O impacto da reportagem de Lena Frias também possibilitou que ela fosse tornada
um marco para as reflexões acadêmicas sobre a Black Music brasileira ou dos bailes, a
começar pelo trabalho pioneiro do antropólogo Hermano Vianna, O baile funk carioca.
Festas e estilos de vida metropolitanos de 1987.722 Além das três obras mencionadas nos
últimos parágrafos, uma revisão bibliográfica abarcando os bailes e apresentando a
reportagem de Lena como um marco inclui trabalhos de referência como o artigo de
Paulina L. Alberto Quando o Rio era Black: soul music no Brasil dos anos 70, que explora
o impacto e representação dos bailes tanto na imprensa brasileira quanto nos órgãos de
repressão da ditadura.723 Também de 2015, a tese Black Pau: a soul music no Brasil nos
anos 1970 do cientista social Carlos Eduardo Paiva introduz o quarto capítulo, dedicado à
“Black Rio: os bailes e a banda”, a partir da reportagem de Lena. 724 A dissertação Sou
negro e tenho orgulho! Política, identidade e música negra no Black Rio (1970-1980) do
historiador Carlos Eduardo de Freitas e a tese em Comunicação Social A cena musical da
Black Rio. Estilos e mediações nos bailes soul dos anos 1970, de Luciana Xavier de
Oliveira são outros exemplos entre a produção em Ciências Humanas que aborda o evento
cultural dos bailes destacando o marco da reportagem de Lena Frias.725 A repercussão e
sedimentação da reportagem, portanto, é inegável.

720
CASTRO, Maurício Barros de. O Livro do Disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 29.
721
MUNIZ, Marianna Gomes. Movimento Black Rio e sua influência na construção da id entidade negra no
Rio de Janeiro: um estudo das representações no Jornal do Brasil (1976-1977). Monografia (História). PUC.
Paraná. 2018.
722
VIANNA, Hermano P. O baile funk carioca. Festas e estilos de vida Metropolitanos. Dissertação
(Antropologia). Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1987.
723
ALBERTO, Paulina L. Quando o Rio era Black: soul music no Brasil dos anos 70. In: História: Questões
e Debates, Curitiba, volume 63, n° 2, p. 41-89, jul/dez. 2015.
724
PAIVA, Carlos Eduardo de Amaral. Black Pau: a soul music no Brasil dos anos 1970. Tese (Ciências
Sociais). Universidade Estadual Paulista. 2015, p. 118.
725
LIMA, Carlos E. F. Sou negro e tenho orgulho! Política, identidade e música negra no Black Rio (1970-
1980). Dissertação (História). UFF. 2017. OLIVEIRA, Luciana X. A cena musical da Black Rio. Estilos e
mediações nos bailes soul dos anos 1970. Tese (Comunicação Social). UFBA, 2018.
264

A repercussão da reportagem “Black Rio: o orgulho (importado) de ser negro no


Brasil” ecoou no aparato repressivo da ditadura militar brasileira em 1976, conforme
exposto pela produção acadêmica sobre os bailes. Contudo, a dissertação Bailes soul,
ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970, de Lucas Pedretti Lima,
ao abordar a documentação trabalhada pela Comissão Estadual da Verdade do Rio de
Janeiro, apresenta que a atenção das forças repressivas estaduais aos bailes de subúrbio no
Rio iniciou em fevereiro de 1975, com o encaminhamento de um Pedido de Buscas ao
DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social, no estado do Rio de Janeiro com o
“Assunto: Black Power”. Conforme o documento: “estaria sendo formado no Rio um
grupo de jovens negros de nível intelectual acima da média, com pretensões de criar no
Brasil um clima de luta racial entre brancos e pretos”, liderados por um “negro norte-
americano”.726

O prosseguimento da investigação acompanhou o baile “Fusão Black da


Guanabara”, integrado por “6.000 pessoas de cor” e um segundo baile frequentado por
“aproximadamente quatro mil pessoas de cor” tratados como “os BLACK”. Mas, após
cerca de um ano de ação, o relatório final concluiu: “o objetivo precípuo de tais grupos é o
de faturarem, não importando o tipo de pessoas admiradoras do gênero musical por eles
apresentado”.727 Porém, a pesquisa de Lucas Lima localizou outro documento, enviado ao
Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE) poucos dias após a publicação da
reportagem de Lena Frias, que dizia: “A leitura da reportagem do Caderno ‘B’ do Jornal do
Brasil, de 17 de julho de 1976 - sábado, causou-me impacto pelo sentido de oposição que,
futuramente, poderá ser criado entre pessoas brancas e pretas”, solicitando uma série de
investigações, pois: “A exclusividade do tipo de música, uniformidade no vestir e no
calçar, não viriam a constituir, mais tarde, um grupo também político e orientado no
sentido de preconceito racial?”728

Assim, após a matéria de Lena, intensificou-se o ciclo de investigações aos bailes e


organizadores pelo aparato repressivo do Estado, conforme analisado na dissertação de
Lucas Lima e, antes, no já citado artigo “Quando o Rio era Black: soul music no Brasil dos
726
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Fundo Polícias Políticas, Setor DGIE, Notação 232. Apud.
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 .
Dissertação (História). PUC Rio de Janeiro. 2018, p. 80.
727
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 .
Dissertação (História). PUC Rio de Janeiro. 2018, p. 81-85.
728
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Fundo Polícias Políticas, Setor DGIE, Notação 252, fls 9 e
10. Apud. LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de
1970. Dissertação (História). PUC Rio de Janeiro. 2018, p. 86.
265

anos 70”, de Paulina Alberto, e no capítulo nove do Relatório Final da Comissão da


Verdade do Rio de Janeiro, “Colorindo memórias: ditadura militar e racismo”, escrito por
Thula Rafaela de Oliveira Pires, ambos publicados em 2015.729 A atuação da Ditadura
Militar nos bailes black representou mais o acompanhamento e investigação do que
efetivamente a repressão violenta visando o impedimento de sua realização, o que permite
um paralelo com a ação dos órgãos do Estado diante da produção musical de Toni
Tornado: os anos de chumbo podiam ser percebidos mais pela atmosfera do medo do que
na violência bélica voltada às guerrilhas.

Os jovens frequentadores dos bailes blacks não enfrentavam uma realidade dos
anos de chumbo da mesma forma que os militantes das organizações armadas que
confrontavam o regime, portanto. Oriundos das favelas e subúrbios, a repressão sofrida por
estes jovens é a mais sistêmica da realidade brasileira, voltada para a população pobre e,
particularmente, às pessoas negras, ainda que tenha sido intensificada pela sensação de
onipotência de policiais militares em um período no qual o Estado era controlado por uma
ditadura militar.730 Se não são recordados como vítimas dos anos de chumbo – justamente
por serem alvos de uma violência sistêmica, que articula o racismo estrutural da sociedade
brasileira e o controle violento dirigido às camadas populares pelos detentores do poder –,
esta realidade está ainda muito mais distante da memória dos anos de ouro vividos pelas
elites e setores das classes médias, como o empresariado da indústria fonográfica e a classe
artística de sucesso. E os relatos dos frequentadores dos bailes trazem mais dimensões do
cotidiano de anos de aperto.

Os bailes do que foi chamado por Lena Frias de “Black Rio” exibiam uma
racialização do consumo de música jovem. Conforme citado na tese de Carlos Eduardo
Paiva, a partir de uma citação de Carlos Medeiros sobre a organização dos bailes: “as
equipes perceberam que havia dois públicos distintos, um predominantemente negro, curtia
soul music, com destaque para o funk brabo de James Brown, outro, 95% branco, ligado
nas mais diversas correntes de rock.”731 As entrevistas realizadas por Lucas P. Lima com
outros frequentadores ampliam as informações sobre o cotidiano das comunidades negras
dos bailes. Jailson da Silva menciona:

729
PIRES, Thula R. O. Colorindo memórias: ditadura militar e racismo. In: Relatório final Comissão da
Verdade do Rio de Janeiro. 2015, p. 127-138.
730
Sobre a violência policial a essas comunidades, ver: PESTANA, Marco e OAKIM, Juliana. A ditadura nas
favelas cariocas. In: Relatório final Comissão da Verdade do Rio de Janeiro . 2015, p. 118-126.
731
MEDEIROS, Carlos. 1977, p. 16. Apud. PAIVA, Carlos E. A. Black Pau. A soul music no Brasil nos
anos 1970. Tese (Ciências Sociais). UNESP, 2015, p. 126.
266

Então, eu não tinha acesso. A televisão lá em casa foi chegar depois que eu
comecei a trabalhar de carteira assinada, eu fui lá e tirei uma televisão pra casa,
porque o meu poder aquisito era muito baixo, baixo mesmo. Fotos da época, eu
não tenho. Eu não tinha como. (...) A minha infância, adolescência, até os 15
mais ou menos foi bem fraca. Aí eu não posso dizer pra você sobre porque até
pra comprar um jornal era difícil, ou eu compro um pão ou compro um jornal.
Então pra mim a preferência era o pão. (...) Era mais difícil você saber das
notícias, ou então pelo rádio, você tinha um radinho de pilha, aí sim escutava as
notícias (...) O Filó, o Filó é um cara que é estudado, desde nov o ele tá dentro do
movimento, viajava, ele tava sempre dentro do contexto. Pra gente da periferia
não, era mais pra curtir o baile mesmo, escutar a música, dar aquela
paqueradazinha básica, sempre foi dessa forma. Era um encontro para a gente
curtir.732

A fala de Jailson relaciona a condição econômica e o acesso a notícias no período,


que fortaleceriam uma leitura politizada dos bailes, e assim diferencia a experiência dos
jovens periféricos para a de Dom Filó, um conhecido organizador de Bailes em um clube
voltado para as classes médias negras do período, o Clube Renascença, que apresentava
imagens de afirmação racial durante a execução das músicas. 733 Contudo, mesmo o acesso
aos bailes nas periferias poderia ser limitado, ou mesmo impedido, pela ausência de
condições econômicas. Lucas Predretti Lima menciona sobre sua entrevista com Aldemar
Matias da Silva, o Sir Dema: “Dema, por exemplo, não frequentava o Baile da Pesada -
não tinha nem a idade, nem o dinheiro necessários -, mas escutava Big Boy no rádio. Ele e
os amigos, animados por aquele ritmo, organizavam festas nas garagens.”734 A fala de
Dema permite ponderar sobre o acesso à produção de Black Music tanto pelo público sem
acesso aos bailes, quanto àqueles sem acesso aos toca-discos e ao produto disco,
mencionados no início deste tópico. Através de programas de rádio, como o de Big Boy –
que priorizava a execução de “música jovem”, tanto o rock quanto o soul e funk – pessoas
marginalizadas poderiam acessar as músicas.

A produção literária então citada sobre os bailes destaca que, assim como no
programa de Big Boy, as músicas escutadas eram a produção de Black Music
estadunidense. Inclusive, Big Boy e Ademir Lemos (um dos profissionais das equipes de
Som) organizaram coletâneas lançadas em LP reunindo canções do repertório
estadunidense e que constaram entre as mais vendidas nos dados do IBOPE do RJ nos anos

732
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970.
Dissertação (História). PUC Rio de Janeiro. 2018, p. 64.
733
Sobre o Clube Renascença e Dom Filó, ver GIACOMINI, Sonia M. A Alma da Festa. Família, etnicidade
e projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro - o Renascença Clube. 2006, p. 189-246.
734
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970.
Dissertação (História). PUC Rio de Janeiro. 2018, p. 47.
267

1970 e 1971.735 A profissionalização das equipes de som que organizavam os bailes, por
sinal, possibilitou a publicação de diversas coletâneas em LP, amparadas em canções
selecionadas do repertório Black estadunidense.736

A midiatização dos bailes black, a partir da reportagem de Lena Frias, e seu


destaque à produção musical executada, atraiu a atenção também da indústria fonográfica.
Carlos Paiva ressalta que “não podemos menosprezar a investida de André Midani no
movimento Black Rio,” e em seguida detalha: “Entusiasmado com os bailes, Midani
convidou Marcos Mazzola para produzir uma banda brasileira que juntasse aquela
sonoridade black ao samba. A ‘descoberta’ de Midani visava a criação de uma banda que
conseguisse conquistar aquele público.”737 A centralidade de André Midani no comentário
deve-se ao importante momento desse produtor cultural para a indústria fonográfica.
Segundo Marcelo Fróes, em texto escrito para a reedição em cd do álbum Refavela, de
Gilberto Gil: “Ele (Midani) deixou a Phonogram para ser o primeiro presidente da Warner
no Brasil, quando a mesma aqui se instalou em 1977.”738 No livro 1976. Movimento Black
Rio, esse direcionamento realizado pela gravadora Warner, presidida por André Midani, é
mencionada por Marinaldo Guimarães, empresário de Luiz Melodia na época, relembrando
conversa com a jornalista Ana Maria Bahiana:

Olha, tem um movimento incrível por aí, pelas gravadoras. É. A Warner tá


animadíssima, tem toda uma transação em cima de música negra, sabe. Eles
estão formando uma banda, o Oberdan e esse pessoal, eles tão recebendo um fixo
pra ensaiar todo dia e criar um som black brasileiro. É esse pessoal que tá
tocando com o Melodia, justo. Tem um lance assim black , parece que vai entrar
o Melodia também, o que é muito justo, tem tudo a ver. 739

A iniciativa de André Midani para a produção de uma nova banda resultou na


criação de um grupo de impacto na produção fonográfica de 1977, que, se apropriando da
terminologia formulada na reportagem de Lena Frias, foi intitulada Banda Black Rio.
Como destacado pelo empresário de Luiz Melodia na citação acima, o grupo reunido por
Oberdan Magalhães incluiu alguns músicos que acompanharam Luiz em Maravilhas
Contemporâneas: o baixista Jamil Joanes e o baterista Luiz Carlos – que tocaram com o
saxofonista Oberdan no LP Som, Sangue e Raça, gravado com Dom Salvador e Abolição,

735
Arquivo Edgar Leuenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE, Série: Pesquisa de Vendas de Discos. Not ação: PD
011 (1970) e PD 013 (1971).
736
PEIXOTO, Luiz F. L., SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 68-75.
737
PAIVA, Carlos E. A. Black Pau. A soul music no Brasil nos anos 1970. Tese (Ciências Sociais). UNESP,
2015, p. 134.
738
Marcelo Fróes. Texto para relançamento. Gilberto Gil. Refavela. Álbum. 1977. Philips. CD. WEA. 2002.
739
PEIXOTO, Luiz F. L., SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 168.
268

e em Tim Maia, de 1972. Junto a eles, associaram o trombonista Lúcio, o trompetista


Barrosinho, o guitarrista Cláudio Stevenson e um pianista que desde 1973 tocava nos
álbuns do sambista Paulinho da Viola: Cristóvão Bastos. A criação e a produção musical
da Banda Black Rio foram objeto da dissertação da musicóloga Eloá Gabriele Gonçalves,
Banda Black Rio: o soul no Brasil da década de 1970, que se dedicou ao que a autora
denominou por “mesclas” entre os gêneros brasileiros samba, choro e baião, aos
estadunidenses jazz, soul e funk. Em entrevista à autora, André Midani contrapõe a imagem
apresentada no parágrafo anterior quanto ao seu papel na criação do conjunto: “Mas eu não
chamei o Oberdan pra dizer: ‘Oberdan, faça o favor de descobrir um estilo’. Ninguém.
Nem eu nem o Mazzola. Chegou tudo pronto. Tudo o que você ouviu no disco estava na
demo.”740 A fala de André Midani condiz com a sonoridade expressa no primeiro álbum do
grupo, Maria Fumaça, que apresenta dez faixas instrumentais executadas com similaridade
aos trabalhos Som, Sangue e Raça e o Dom Salvador, de 1969.

A ideia da direção brasileira da Warner com a Banda Black Rio, contudo, parece
ter pontos de encontro com a proposta da Stax Records com o Booker T. & The MGs: um
grupo de instrumentistas que lançasse trabalhos próprios, mas também atuasse nas
gravações em estúdio de artistas contratados. Esta impressão é sustentada pela produção da
gravadora já no ano de 1977, no qual foi lançado o primeiro LP do grupo, Maria Fumaça
(articulando versões funk de músicas consolidadas como “Na baixa do sapateiro” e “Tico-
tico no fubá” com novas composições dos integrantes da banda) e dois compactos, “Maria
fumaça/Mr. Funky Samba” e “Na baixa do sapateiro/Mr. Funky Samba”, 741 sendo que a
composição “Maria fumaça” foi incluída como faixa de abertura da telenovela
Locomotivas, da Rede Globo, e difundida no LP da trilha sonora. Ainda em 1977, a Banda
Black Rio atuou em “Tapanacara”, funk que abre o álbum O dia em que a terra parou, de
seu compositor, o rockeiro branco Raul Seixas – que desde seu primeiro álbum solo,
lançado cinco anos antes, operava com a sonoridade gospel da Black Music em meio às
suas fusões musicais.742 E o grupo ainda atuou em todas as faixas do primeiro LP de um
estreante da black music brasileira, Carlos Dafé (pianista e organista do álbum Tim Maia,
de 1972), no álbum de soul romântico Pra que vou recordar - e revelando um artista cuja

740
GONÇALVES, Eloá Gabriele. Banda Black Rio: o soul no Brasil na década de 1970. Dissertação
(Música). Universidade Estadual de Campinas. 2011, p. 151.
741
Banda Black Rio. Maria Fumaça. Álbum. Warner. 1977. Maria fumaça/Mr. Funky Samba. Compacto.
Warner. 1977. Na baixa do sapateiro/Mr. Funky Samba. Compacto. Warner. 1977.
742
Raul Seixas. O dia em que a terra parou. Álbum. Warner. 1977. Relançamento em CD. Warner. 1988.
269

voz remete à de Cassiano.743 Tanto Raul quanto Carlos Dafé, recém contratados pela
gravadora e com esses dois álbuns produzidos por Marcos Mazzola.

Outro artista negro contratado em 1977 pela Warner por intermédio de André
Midani e que então acenava para o “Movimento Black Rio” foi um nome consagrado da
MPB: Gilberto Gil. Conforme a historiadora Rafaela Capelossa Nacked, na dissertação
Chocolate e mel: negritude, antirracismo e controvérsia nas músicas de Gilberto Gil
(1972-1985), o artista atribui (como afirmado em entrevista à autora) o desenvolvimento
de sua “consciência racial” ao período que viveu em Londres, na Inglaterra, entre 1969 e
1971 - por efeito de um exílio imposto pela Ditadura Militar brasileira. No seu retorno ao
Brasil, Gil aproximou-se de práticas culturais negras de seu estado de origem, a Bahia, o
que a autora abordou a partir da criação de um conceito: “Bahiaáfricas é um conceito
construído pela autora durante a imersão realizada na obra de Gil e refere-se às práticas de
matrizes africanas praticadas na Bahia, repertório de ampla penetração no cotidiano do
artista, formando um corpo único de ‘tradições não tradicionais’ ao qual ele amplamente se
refere.”744 A autora identificou os elementos para a operação desse conceito na obra de Gil
pela escolha de instrumentos ligados à tradição afro-baiana, como tambores, xequerês e
agogôs e também através do uso, pelo artista, de vocábulos e expressões de origem
africana. Em gravações realizadas em 1973, Gil reverenciou orixás na sua versão de
“Rainha do mar” (composição de Dorival Caymmi para Iemanjá) e na sua composição
(parceria com Caetano Veloso) “Iansã”. 745 Contudo, foi em 1977 que as “Bahiaáfricas”
encontraram o “Black Rio” no discurso musical de Gilberto Gil, manifestando seu ponto de
encontro em Refavela, seu último álbum lançado na Philips.

Segundo a pesquisa e a audição da produção fonográfica de Gilberto Gil realizadas


para a presente tese, Refavela foi o primeiro álbum do artista a incorporar de forma
explícita a Black Music estadunidense a partir das sonoridades da “música jovem”, soul e
funk. Desde o final dos anos 1960, quando Gil participou da proposta de promover uma
“música universal” na produção musical brasileira dos Festivais, a MPB, através do
movimento conhecido como Tropicalismo, o artista utilizou elementos da música pop. Sua
inspiração anglófona, contudo, baseava-se no rock, do grupo inglês (de jovens brancos)

743
Carlos Dafé. Pra que vou recordar. Álbum. Warner. 1977. CD. WEA. 2000.
744
NACKED, Rafaela Capelossa. Chocolate e mel: negritude, antirracismo e controvérsia nas músicas de
Gilberto Gil (1972-1985). Dissertação (História). PUC São Paulo. 2015, p. 46.
745
As gravações foram arquivadas e lançadas apenas em 1999, após trabalho de pesquisa e edição em CD
feito pelo produtor Marcelo Fróes, resultando no álbum: Gilberto Gil. Cidade de Salvador. Álbum. WEA.
1999.
270

The Beatles ao músico (negro) estadunidense Jimi Hendrix, e não a Black Music. Para a
produção do LP Refavela, a proposta de Gil foi de abordar uma identificação transnacional
de elementos musicais e sociais das comunidades negras no continente africano e na
diáspora. O álbum, portanto, foi produzido a partir de um duplo conceito: primeiro, de
ordem pessoal, ao representar a segunda etapa de um processo de elaboração musical do
reencontro de Gil com suas origens, que começou no álbum Refazenda, de 1975, que
retomava uma herança bucólica de sua formação. Refavela marcava sua identificação com
a negritude. O segundo aspecto era a dimensão social e política que envolve “o conceitual
de Refavela”, conforme explicado por Gil à jornalista Ana Maria Bahiana na reportagem
publicada no jornal O Globo de 10 de julho de 1977: “essa coisa de arte dos trópicos,
comunidades negras contribuintes para a formação de novas etnias e novas culturas no
Novo Mundo – Brasil, Caribe, Nigéria, Estados Unidos –, essas culturas emergentes como
presença forte do dado negro”.746 A identificação do “dado negro”, assim, foi construída
por Gil no LP a partir da experiência de marginalização nas periferias urbanas.

Fig. 12: Gilberto Gil. Refavela. Álbum. Philips. 1977. Disponível em (acesso 03/06/2021):
<https://vinilrecords.com.br/produto/gilberto-gil-refavela/>

No texto de Marcelo Fróes para a reedição do álbum em Cd, em 2002, Gilberto Gil
recorda que: “Era época do movimento Black Rio, com o funk começando por aqui e eu
quis gravar algo como aquela versão de Samba do Avião”, de modo que o artista sintetiza o
álbum Refavela: “O disco era pra isso, para registrar os ‘afrorismos’ que havia na época -
como era a juju music de Balafon e os blocos afro-baianos de Ilê-Ayê.”747 Portanto, a

746
BAHIANA, Ana Maria. “A paz doméstica de Gilberto Gil.” Apud. CASTRO, Maurício Barros de. O livro
do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 15. A reportagem não está disponível no acervo digitalizado do
jornal O Globo, portanto, seu acesso completo é possível nos livros BAHIANA, Ana Maria. Nada será como
antes: MPB nos anos 1970. Civilização Brasileira. 1980. COHN, Sergio. Gilberto Gil – Encontros. Beco do
Azougue. 2007.
747
Marcelo Fróes. Texto para reedição. Gilberto Gil. Refavela. Álbum. Philips. 1977. CD. WEA. 2002.
271

reelaboração do artista ao recordar do disco sugere uma atenção à sonoridade funk a partir
do impacto após a repercussão dos bailes na imprensa em 1976, ignorando a difusão da
sonoridade em discos lançados no Brasil desde 1969, conforme demonstrado na presente
tese. O comentário de Gil demonstra também que a proposta desenvolvida no conceito do
disco não era de aproximar da sonoridade da black music, apenas; mas sim de inseri-la em
meio às manifestações modernas de uma cultura negra pensada como “afrorismos”: um
ponto de conexão entre as experiências sociais de pessoas negras habitantes de diversas
regiões geográficas ao redor do planeta. Para o historiador Maurício Barros de Castro, ao
introduzir a análise do conceito do disco na obra O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela:
“é uma tentativa de captura do seu tempo, um instantâneo das manifestações culturais que
surgiam, em meio às turbulências dos anos 1970, reinventadas nos guetos e periferias de
partes distintas do planeta, conectadas principalmente pela música negra.”748 E assim, a
experiência periférica do Rio de Janeiro, no “Black Rio”, a partir da música, dança e
aparência, era conectada à experiência periférica estadunidense.

Nessa proposta de promover uma identificação racial construída a partir do diálogo


transnacional das experiências dos “afrorismos”, adquire particular sentido para o conceito
do álbum Refavela a escolha por adotar a sonoridade funk na regravação de “Samba do
avião”, um clássico da Bossa Nova, composto por Tom Jobim. A letra retrata uma
declaração de afeto ao Rio de Janeiro diante do aeroporto do Galeão, por um indivíduo
retornando de uma viagem, dialogando com o fato de Gil ter criado o conceito do LP e
algumas das composições durante uma viagem para a Nigéria, onde participou do 2°
Festival Mundial de Arte e Cultura Negra, o FESTAC, no final de 1976. É emblemático
para o conceito que a “ponte aérea” entre Lagos, na Nigéria, e o destino brasileiro por RJ e
Bahia, passe pelas sonoridades da Black Music estadunidense, indiciando uma
identificação negra imaginada como triangular.

A participação de Gil no FESTAC foi um convite oficial para integrar a comitiva


brasileira no evento, parte das estratégias do Pragmatismo Responsável do Estado
ditatorial, de modo que, como destacado por Maurício de Castro, no livro sobre o disco, “o
governo brasileiro estava empenhado em estabelecer boas relações comerciais com os
países da África independente.”749 Gil, inadvertidamente, pode ter contribuído com a
imagem que o governo gostaria de transmitir, ao reunir uma banda integrada apenas por

748
CASTRO, Maurício Barros de. O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 15.
749
CASTRO, Maurício Barros de. O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 46.
272

artistas negros para tocar no FESTAC – e que atuou por todo o álbum Refavela. O núcleo
central da banda reuniu o contrabaixista Rubens Sabino, que integrou o grupo Dom
Salvador e Abolição e atuou no álbum Tim Maia (1972), o pianista/tecladista Cidinho e o
guitarrista Perinho Santana, ambos oriundos do grupo que acompanhou Luiz Melodia no
disco Maravilhas Contemporâneas. Completava o grupo o percussionista Djalma Correa e
o baterista Robertinho Silva, integrante da banda de apoio de Milton Nascimento - e
substituído no disco por Paulinho Braga. Além de instrumentistas de sopro (trompete, sax,
flauta e trombone) e vocais de apoio.

Conexões com elementos da chamada “cultura black” também apareceram na


canção “Ilê Ayê”, versão de Gil para a composição “Mundo negro”, de Paulinho Camafeu,
lançada em desfile no carnaval de 1975 pelo bloco afro baiano Ilê Ayê: Que bloco é esse?/
Eu quero saber/ é o mundo negro/ que viemos mostrar pra v ocê/ Somo criolo doido, somo
bem legal/ temo cabelo duro/ somo bleque pau/ branco se você soubesse/ o valor que o
preto tem/ tu tomava banho de piche/ ficava preto também.750 A conexão transnacional
com a realidade estadunidense na expressão antirracista da canção seria expressa na
própria denominação do bloco afro, como destacado por Maurício Barros de Castro: “a
ideia do grupo inicialmente era sair pelas ruas de Salvador com um bloco carnavalesco
chamado Poder Negro, uma clara alusão ao Black Power, mas de acordo com o Vovô eles
foram desaconselhados a seguir com a ideia, devido à repressão da ditadura militar.”751 O
receio da repressão, pontuado por um dos fundadores do bloco, Antônio Carlos dos Santos,
apelidado Vovô, não impediu que o discurso antirracista de Orgulho Negro fosse expresso
no enredo. Rafaela Nacked ressalta o fortalecimento da autoestima das pessoas negras
operado na mensagem da canção, rompendo o padrão de beleza que inferioriza seu
fenótipo: “A inversão provocativa de Camafeu, cantada por Gil, acena para um
deslocamento: o negro torna-se digno de admiração e até de imitação, invertendo a lógica
do branqueamento e enfrentando o privilégio branco.”752 Contudo, a canção do álbum
Refavela mais emblemática na conexão com o “Black Rio” é a faixa título:

A refavela revela aquela/ Que desce o morro e vem transar/ O ambiente


efervescente/ De uma cidade a cintilar/ A refavela revela o salto/ Que o preto
pobre tenta dar/ quando se arranca do seu barraco/ para um bloco do BNH/ A
refavela, ó/ Como é tão bela, ó/ A refavela revela a escola/ De samba paradoxal/

750
Gilberto Gil. Ilê Ayê (Paulinho Camafeu). Refavela. Álbum. Philips. 1977, faixa 02, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=RnDO0PbsWlQ>
751
CASTRO, Maurício Barros de. O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 74.
752
NACKED, Rafaela Capelossa. Chocolate e mel: negritude, antirracismo e controvérsia nas músicas de
Gilberto Gil (1972-1985). Dissertação (História). PUC São Paulo. 2015, p. 110.
273

Brasileirinho, pelo sotaque/ Mas de língua internacional/ A refavela revela o


passo/ Com que caminha a geração/ Do black jovem/ Do black -Rio/ Da nova
dança no salão.753

A letra da canção de Gil associa a movimentação da juventude negra no Black Rio


com a realocação dos “pretos pobres” saídos dos barracos – portanto, das favelas – para os
conjuntos habitacionais construídos com os fundos do Banco Nacional de Habitações
(BNH). No capítulo anterior, durante a exposição da versão da canção “Opinião” por
Simonal, esta tese abordou a remoção forçada de comunidades faveladas cariocas rumo as
periferias da cidade durante a década de 1960 e início da década de 1970. Gil retoma o
tema em 1977, lhe permitindo abordar o cenário urbano com que se depararam os setores
sociais que passaram por tal mudança (A refavela revela o salto que o preto pobre tenta
dar quando se arranca do seu barraco para um bloco do BNH), um ambiente que o artista
denominou por “refavela”. Maurício de Castro, ao analisar essa canção, ressalta que: “Os
blocos do BNH encobriam a política das remoções, que ocorre até os dias de hoje, a qual
consiste em literalmente remover os moradores das favelas dos seus ‘barracos’, com a
promessa de levá-los para moradias mais dignas”, e pontua também limites de tal política:
“os conjuntos habitacionais costumam ser construídos em lugares muito distantes das
opções de trabalho e, depois da inauguração, ficam esquecidos pelo Estado, sendo muitas
vezes governados pelo crime organizado.”754 E o historiador prossegue citando a
explicação de Gil da composição, que revelou ter concebido “Refavela” ainda na Nigéria,
durante o FESTAC:

Para abrigar os 50 mil negros do mundo inteiro que para lá acorreram, tinha sido
construída uma espécie de vila olímpica com pequenas casas feitas com material
barato e um precário abastecimento de água e luz, que reavivou em mim a
imagem física do grande conjunto habitacional pobre. “Refavela” foi estimulada
por esse reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já
houvesse o compromisso conceitual com o “re” para prefixar o título do novo
trabalho, de motivação urbana, em contraposição a Refazenda, o anterior, de
inspiração rural.755

Embora a inspiração tenha surgido com os conjuntos habitacionais nigerianos, Gil


pontuou em sua composição o contexto brasileiro, aludindo explicitamente ao BNH, e em
específico o Rio de Janeiro, ao citar o Black Rio. Um estudo sobre o estabelecimento dos
habitantes e as condições de vida nos conjuntos habitacionais no Rio de Janeiro foi
realizado pelo historiador Mario Brum no livro Cidade Alta: História, memórias e estigma

753
Gilberto Gil. Refavela (Gilberto Gil). Refavela. Álbum. Philips. 1977. Faixa 01, Lado A.
< https://www.youtube.com/watch?v=6cqcr_19TDg>
754
CASTRO, Maurício Barros de. O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 70.
755
CASTRO, Maurício Barros de. O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 70, 71.
274

de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro, publicado em 2012. O autor


estudou um conjunto estabelecido na Zona Norte do Rio, criado em 1969 e que abrigou
removidos da favela Praia do Pinto – a que o cantor Simonal cresceu – e outras. Segundo a
obra, foram removidas quase 200 mil pessoas das favelas cariocas apenas entre 1968 e
1973, a partir de estratégias de convencimento e da expulsão violenta operada pelos
policiais do Estado, em iniciativa promovida pelos governos estadual e federal. Uma das
conclusões da pesquisa é que mesmo realocados para as habitações planejadas de um
conjunto residencial, o estigma de “favela” e “favelados” acompanhou a habitação e os
moradores pelo olhar das elites e classes médias cariocas. A pesquisa demonstrou o
conceito de favela como uma representação social mais do que uma definição para um
conjunto de habitações precárias, de construção apressada. 756 Sofrendo com o descaso de
políticas públicas, como as de saneamento, e com o estigma e o preconceito social, os
moradores de blocos do BNH encontravam-se em uma situação de “refavelização”,
tornando certeira a nomeação feita por Gil ao abordar a temática.

“A favela então, nada mais é do que uma representação sobre determinado local, no
qual o estigma atua para delimitá-lo como sendo o que destoa do entorno, que é e contém o
que não deveria ser nem conter na cidade”, concluiu Mário Brum na tese que deu origem
ao livro.757 Essa problematização, assim como o argumento de Gil na canção “Refavela”
poderia representar muito além das comunidades do RJ. Como evidencia o nome Banco
Nacional de Habitação, a política habitacional retratada não se limitou ao Rio de Janeiro. O
livreto de Ermínia Maricato, Política Habitacional no Regime Militar. Do milagre
brasileiro à crise econômica, publicado em 1987, analisou o Sistema Financeiro da
Habitação e o BNH, apontando relações entre os loteamentos clandestinos e o capital
imobiliário. A autora aponta a importância do setor no Brasil: “Além de ocupar até 7,2%
da população economicamente ativa (em 1980), através de empregos formais ou não, a
indústria da construção tem presença destacada no intenso processo de industrialização e
urbanização do país.”758 A obra aponta a importância dada ao setor de habitação pela
ditadura militar tendo em vista o intenso processo de urbanização nas grandes cidades do
país, que “transformou o Brasil, em pouco tempo, de país com população

756
BRUM, Mário. Cidade Alta. Histórias, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.
757
BRUM, Mario S. I. Cidade alta: História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do
Rio de Janeiro. Tese (História). Universidade Federal Fluminense. 2011, p. 320. Sublinhado do original.
758
MARICATO, Ermínia. Política Habitacional no Regime Militar. Do milagre brasileiro à crise econômica.
1987, p. 15.
275

predominantemente rural, em país com população predominantemente urbana”. 759 E,


conforme a autora: “Desde o início da década de 70, o BNH passou sistematicamente a
orientar seus recursos para o financiamento de governos estaduais e municipais na
produção de obras de infra-estrutura urbana”.760 Assim, “A COHAB-SP, por exemplo,
havia construído 9.000 unidades habitacionais até 1974 e entregado 3.459”. 761 Já a atuação
do BNH e a expansão da malha urbana com os COHAB na região metropolitana de Belém
(PA) nos anos 1970 foi destacada em artigo de Marlon Silva e Helena Tourinho. 762

A atuação do BNH, com a difusão dos Conjuntos Habitacionais (COHAB) esteve


relacionada, ou inicialmente direcionada, às habitações precárias e loteamentos
clandestinos, como são as favelas. E assim, a estratégia de “desfavelamento” em direção
aos novos locais de moradia incluiu estratégias de convencimento que passavam pelo uso
da força bruta, conforme destacado no capítulo anterior desta tese. Tais violências, para
além do estado do Rio de Janeiro, são mencionadas na tese Cidade e Exclusão: o lugar de
moradia dos excluídos. O caso de Belo Horizonte, da geógrafa Rita de Cássia Liberato,
que, ao referenciar a atuação da Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo
Horizonte (CHISBEL) na década de 1970 localiza na documentação sobre suas atribuições
“propor medidas necessárias à execução de um programa continuado de desfavelamento a
curto, médio e longo prazo”; de modo que: “Nesse período inúmeras favelas são removidas
e o fato de o País estar sob uma ditadura militar impede a reação dos favelados.”763

As referências apresentadas nos dois últimos parágrafos, sugerem que a política


nacional de habitação da ditadura militar representa uma síntese das contradições da
“modernização autoritária, conservadora e excludente” do regime: os conjuntos
habitacionais das “Refavelas” representam avanços em condições de saneamento básico e
estrutura doméstica para seus habitantes, contudo, as mudanças foram realizadas com
violência aos resistentes e priorizando os interesses das elites econômicas. Ou seja,
atuaram com anos de ouro para as grandes construtoras e a especulação imobiliária, mas

759
MARICATO, Ermínia. Política Habitacional no Regime Militar. Do milagre brasileiro à crise econômica.
1987, p. 22.
760
MARICATO, Ermínia. Política Habitacional no Regime Militar. Do milagre brasileiro à crise econômica.
1987, p. 33.
761
MARICATO, Ermínia. Política Habitacional no Regime Militar. Do milagre brasileiro à crise econômica.
1987, p. 43.
762
SILVA, Marlon L. TOURINHO, Helena L. Z. O Banco Nacional de Habitação e o Programa Minha Casa
Minha Vida: duas políticas habitacionais e uma mesma lógica locacional. In: Cad. Metrop., São Paulo, v. 17,
n. 34, pp. 401-417, nov. 2015.
763
LIBERATO, Rita de Cássia. Cidade e Exclusão: o lugar de moradia dos excluídos. O caso de Belo
Horizonte. Tese (Geografia). PUC Minas. 2007, p. 192.
276

anos de chumbo para os habitantes das favelas que buscaram resistir à remoção. Mas
também agravaram os anos de aperto à comunidade removida, particularmente porque as
casas não eram gratuitas e muitos não tiveram condições de cumprir o pagamento das
prestações, conforme abordado tanto nos trabalhos de Mário Brum quanto no de Ermínia
Maricato anteriormente citados. E além dessas contradições do salto que o preto pobre
tenta dar/ quando se arranca/ de seu barraco/ pro bloco do BNH, a canção de Gil ainda
possibilitava conectar Brasil afora experiências da geração do black jovem, posto a difusão
do fenômeno dos bailes black por outras regiões do país, conforme apontado na revista
Versus de maio/ junho de 1978: “Black Rio, Black São Paulo, Black Porto (Porto Alegre) e
até Black Uái (Belo Horizonte)! Primeiro a descoberta da beleza negra. A vontade de lutar
como negro norte-americano, em busca da libertação do espírito negro, através do soul.”764

Pouco após lançar o álbum Refavela, Gilberto Gil atendeu ao convite de André
Midani e migrou da Philips para a Warner - que passou a ter os direitos do álbum a partir
de 1983. Outro álbum lançado pelo selo Philips em 1977, porém, merece ser abordado
nesta tese. Tal ano marcou a contratação pela gravadora do cantor negro Emílio Santiago,
um intérprete eclético que transitava pelo samba e a MPB promovendo hibridações com a
sonoridade soul em dois discos lançados na gravadora CID: Emílio Santiago (1975) e
Brasileiríssimas (1976). Inaugurando sua trajetória na Philips, Emílio lançou seu terceiro
álbum Comigo é assim, que mantinha a sonoridade eclética, construída a partir de
instrumentação elétrica e elementos soul. Neste disco, Emílio gravou uma composição do
sanfonista Dominguinhos e Anastacia abordando o preconceito racial, a pungente balada
“Preconceito (Pura Tolice)”:

Esse teu jeito de falar de preconceito/ Que na cor da minha pele está a tua
indecisão/ Pura tolice de quem diz que tudo sabe/ Não procura d escobrir a
própria cor do coração/ E o feijão que te alimenta tem cor preta/ Quando falta
em tua mesa, a alegria se desfaz/ A cor da pele, por ser preta, não diz nada/
Examina no teu ego, e a resposta satisfaz/ O preconceito não tem valor/ Quando
se sente que existe amor/ Desligue a mente dessa ilusão/ E veja a cor desse teu
coração.765

A canção denuncia o preconceito nas relações afetivas cotidianas, tema comum em


composições das décadas anteriores, conforme demonstrado no capítulo anterior desta tese,
mas que continuava contradizendo o discurso da “democracia racial” difundido pela

764
Versus. Maio/Junho 1978: 42. Apud. PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black
Rio. 2016, p. 98.
765
Emílio Santiago. Preconceito (Pura tolice). (Dominguinhos/Anastácia) Comigo é assim. Álbum. Philips.
1977. Faixa 02, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=KN-TcRgo33c>
277

ditadura militar brasileira. Comigo é assim é atribuído como o primeiro álbum de impacto
comercial de Emílio Santiago, cantor que emergiu do circuito universitário, enquanto
cursava Direito.766 Emílio se projetou a partir da execução de “Nêga”, um samba em
roupagem funk composto por Veve Calazans, lançado nesse álbum e incluído na trilha
sonora da telenovela O astro, da emissora Globo. Sendo um versátil e diversificado
intérprete, Emílio não era um artista identificado diretamente à sonoridade da Black Music,
mas, assim como Luiz Melodia, dialogava com os gêneros Black em parte de seu
repertório, como perceptível neste álbum. E entre os arranjadores deste álbum aparece J. T.
Meirelles, nome destacado no samba-jazz.

Contudo, a resposta da gravadora Philips à descoberta do “Black Rio” e às


iniciativas da Warner visando ao “nicho de mercado” do público black foi realizada a partir
do selo Polydor, através do qual lançavam os trabalhos de Tim Maia (que, em 1977, lançou
seu nono álbum homônimo, sem repercussão) e de Cassiano (que não realizou lançamentos
no ano). A aparente resposta à Banda Black Rio foi a contratação do grupo União Black,
que além de lançar o seu primeiro álbum, homônimo, em 1977, acompanhou a outra
contratação do selo, o cantor Gerson King Combo, que também lançou seu primeiro
álbum, homônimo, no ano – mas que, no encarte, constava a informação Gerson King
Combo & União Black. Segundo Luiz Felipe Peixoto e Zé Sebadelhe no supracitado livro
1976. Movimento Black Rio, Gerson teria sido sondado para compor a Banda Black Rio,
“Mas o amigo Paulão Black Power, da equipe Black Power, havia lhe dito que a gravadora
Polydor também estava querendo atingir o mercado black com artistas brasileiros”; assim,
o cantor aproveitou a oportunidade, mas, “Primeiramente, Gerson ajudou a montar a banda
União Black, que foi o primeiro lançamento da gravadora nessa linha.”767 É interessante
destacar o argumento dos autores de que o disco da União Black tenha sido “o primeiro
lançamento da gravadora nessa linha”, que só pode ser compreendido dentro da
repercussão do “Black Rio”, postos os vários lançamentos citados nesta tese realizados
pela Polydor nas sonoridades soul e funk, antes da União Black.

Era um grupo que tocava samba na Pavuna. (...) Estava querendo fazer
exatamente aquele estilo, meio Kool and Gang, meio Funkadelic, bem no clima
dos guetos black . (...) A União Black era composta por Ivan Tiririca (baterista),
Lula Barreto, Claudio Café (guitarras), Dom Luiz (voz), Bira (sax e flauta), mas
teve uma formação instável e os seus principais integrantes, Ivan e Lula, optaram
por rescindir contrato com a gravadora antes mesmo de seu primeiro disco sair.
Os dois músicos já tinham um projeto de banda o África Hot Band, mas por

766
Rodrigo Faour. Texto para o box. Três Tons de Emílio Santiago. Universal Music. 2014.
767
PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 170, 171.
278

insistência do marketing da Polygram mudaram para União Black, com o intuito


de se valer do movimento que estava em evidência. 768

A formação do grupo encobre representações que destoam de algumas das


construídas sobre ele, como a veiculada no texto de Charles Gavin para a reedição em CD
do álbum União Black, em 2001: “Depois de acompanhar vários artistas cariocas, a União
Black chega, finalmente, ao seu próprio LP em 1977. O som da banda misturava o funk
afro-americano de James Brown ao samba-soul que rolava desde os primeiros anos da
década de 70.”769 O grupo União Black era integrado por músicos que tocavam samba,
embora, conforme os autores no livro citado acima, alguns integrantes transitassem por
outros gêneros, como Ivan, que havia tocado com Tim Maia, Paulo Diniz, Os Diagonais,
Cassiano, Toni Tornado. O título do grupo e do álbum, União Black - único lançamento
em todo o recorte desta tese -, portanto, foi uma iniciativa do departamento de marketing
da gravadora, associando o conjunto ao chamado Movimento Black Rio através do
significante “black” a antecipar a sonoridade funk do disco. Tal associação foi ainda
explicitada no repertório do álbum, a começar pela faixa instrumental intitulada “Black
Rio”, mas também em “Geração Black”, “União Black” e “A família Black”. Diferente da
Banda Black Rio, que estreou com um álbum instrumental, a União Black alternou faixas
instrumentais e canções, tematizando o ato de dançar (“Geração Black”), a vida amorosa
(“Só eu e você” e “Sou só”), e outras evocações ao termo Black, como em “A vida”, única
a retratar explicitamente o orgulho racial com uma dimensão combativa: Viver a vida que
eu vivo/ Ser Black, cantar alegre e unido/ Lutando/ O nosso som é uma luta/ é swing,
sentimento, força bruta; e em “Quando alguém está dormindo”, dos versos: Quando
alguém está dormindo/ mas só sonha curtindo/ se for um bom sonho Black - mas que não
explica ou caracteriza o que seria um “sonho black”.

Se o álbum União Black é pouco expressivo para a abordagem da linguagem negra


antirracista e, especificamente, a linguagem política do Orgulho Negro; o disco gravado
por eles em seguida, Gerson King Combo, pode ser lido como um manifesto de afirmação
racial. Gerson Cortês é irmão de Getúlio Cortês, compositor que se destacou na década de
1960 em composições lançadas por Roberto Carlos (“Negro gato”, em 1966 e “Quase fui
lhe procurar”, em 1968) e autor de “Sou negro”, lançada por Toni Tornado em 1970. Seu
primeiro álbum solo, lançado em 1977, não inclui texto de apresentação, mas consta na
contracapa uma extensa entrevista, que inicia situando o artista como um pioneiro: “O

768
PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 171.
769
União Black. União Black . Álbum. Polydor. 1977. CD. Universal Music. 2001. [Coleção Samba&Soul]
279

black é um movimento que vem se afirmando no Brasil, resultado de uma comunicação


cada vez mais internacional da música. Mas Gerson Combo é black muito antes que este
acontecesse e, com isto, traz-no sempre as raízes da música universal e as raízes da música
de nossa terra.”770

O texto indicia um objetivo de marketing em valorizar e talvez superestimar a


atuação de Gerson que informa que no Brasil se sentia “solitário em minhas afirmativas.
Por causa disto, eu fui viajar, conhecer novos países e como a raça negra se manifestava
nestes países.” Na Jamaica, viu um show do grupo The Supremes, “mas eu não me satisfiz
com isto... pulei para o palco, agarrei uma das Supremes e comecei a dançar com ela. Todo
mundo parou. (...) Minha dança era um novo dado para eles. O meu corpo conseguia fazer
o que eles não conseguiam.” Em seguida, teria sido convidado a ensinar passos a James
Brown: “Bem, logo depois do show, o manager me chamou e disse que ia haver um show
de James Brown daqui alguns dias, se eu não queria participar mostrando novos
movimentos de corpo.” E o estadunidense aprendeu bem suas lições: “Ele é um grande
dançarino. Assimilou rápido meus movimentos, e em pouco tempo fazia a coisa sem sentir
que estava aprendendo. Eu já estava cansado, eram quase 3 horas da tarde, mas James
Brown não queria parar de dançar.” Ao fim da entrevista, Gerson apresenta a identificação
transnacional de sua proposta: “A música é um sentimento internacional. Não tem raiz e
nem cor. O soul não apenas é uma música negra, assim como o samba não é uma música
brasileira. (…) ambas as músicas nasceram de uma mesma raça e estão procurando sua
linguagem universal.”771 Pra completar a estratégia, o material gráfico do álbum incluiu um
telegrama de James Brown direcionado a Gerson Combo, cumprimentando o “excelente
trabalho musical de soul e Black Music no Brasil”.

770
Entrevista não creditada. Gerson King Combo. Gerson King Combo. Álbum. Polydor/Phonogram. 1977.
771
Entrevista não creditada. Gerson King Combo. Gerson King Combo. Álbum. Polydor/Phonogram. 1977.
280

Fig. 13. Capa e contracapa. Gerson King Combo. Gerson King Combo. Álbum. Polydor. 1977.
Extraído de (Acesso 31/08/2019):
<https://www.musicastoria.com/rock-brasil-musica-jovem-b rasileira -desde-1954-veja-e-
ou%C3%A7a/a1977/>

No texto para o relançamento em CD desse álbum, o responsável pelo projeto,


Charles Gavin, alega: “Falando em não-violência, racismo, orgulho de ser negro e
liberdade, Gerson, senhor de um suingue incomparável no pop brasileiro, se torna o rei dos
bailes funk no Rio e de São Paulo no final da década de 70. Sua atitude, sonoridade e
discurso produziram a grande obra-prima do ‘soul brasileiro’.”772 O repertório desse álbum
permitiu a Gerson furar a “onipresença estadunidense” nos bailes. Afinal, conforme
informado em 1976. Movimento Black Rio: “Sem dúvidas, Gerson foi o artista que mais
fez apresentações nos bailes do subúrbio. Chegava sempre com um carrão Galaxy, com
mulatas black power o acompanhando e vestido a caráter, com chapéu, terno lilás e sua
famosa capa.”773

Além de Gerson, o livro acima destaca as participações de Carlos Dafé: “O cantor


foi um dos poucos músicos a se apresentarem em bailes do Movimento Black Rio, com
grande circulação de shows. Sua indumentária era criada pela amiga Zezé Motta, que
compunha modelitos principescos para o multi-instrumentista.”774 Nessa perspectiva,
podiam ser o “rei” e o “príncipe” do Black Rio. A presença de Gerson nos bailes, aliás,
despertou a atenção das forças repressivas do Estado ditatorial e de setores conservadores
da imprensa. Lucas Pedretti Lima retrata um relatório emitido pelo Centro de Informações
de Segurança da Aeronáutica (CISA) em outubro de 1977, intitulado “Movimento
Nacional dos Black’s”. Nele, o CISA revela manter um acompanhamento quanto aos bailes
e ter a dúvida se o “líder dos blacks” seria Toni Tornado ou Gerson King Combo. Tal
questão foi levantada poucos dias antes do relatório, na coluna de Ibrahim Sued no jornal
O Globo: “O líder é o cantor Gerson King Combo e o vice-líder Tony Tornado. A tônica
do movimento é lançar o racismo no país, como existe nos States.”775 A vigilância, porém,
não configurou em repressão ao cantor.

Contudo, outro elemento informado na entrevista presente na contracapa do


primeiro álbum de Gerson merece referência: o argumento de aproximação entre o soul e o

772
Charles Gavin. Texto para reedição. Gerson King Combo. Gerson King Combo. Álbum. Polydor. 1977.
CD. Universal Music. 2001. [Coleção Samba&Soul]
773
PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 172.
774
PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 169.
775
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970.
Dissertação (História). PUC Rio. 2018, p. 91, 92.
281

samba. No cenário de forte exposição do Black Rio a partir de 1976, parte das críticas
dirigidas ao “fenômeno” midiatizado apontavam uma polarização com o samba. O cerne
da crítica pode ser sintetizado na frase da historiadora Miriam Hermeto no livro Canção
popular brasileira e o ensino de História: palavras, sons e tantos sentidos: “a soul music
no Brasil foi considerada alienante, por críticos que viam ali apenas a importação de
aspectos da cultura musical estadunidense, que roubavam a ‘autenticidade’ da canção
brasileira”.776 Exemplo dessa visão aparece desde o início da década, como em entrevista
publicada na revista Veja, em dezembro de 1970, com um expoente da Bossa-nova e
compositor dos “Afro-sambas”, o músico, poeta e diplomata Vinicius de Moraes: “Há esse
novo som, como esse do Milton Nascimento e do Tim Maia. Mas eu não estou na deles,
não. Gosto é do som brasileiro.”777 No caso de Milton, Vinicius se referia às recentes
hibridações realizadas no repertório gravado pelo artista entre música brasileira e o rock,
particularmente inspirado nos grupos The Beatles e Yes, além do estilo jazzístico Fusion,
que articulava o jazz moderno ao rock.

Essa crítica à “importação” foi agravada com a repercussão dos bailes a partir de
1976. Conforme André Midani: “a longa matéria de quatro páginas ampliava os debates e
punha fogo no confronto entre ‘Velhas Guardas versus Jovens Guardas’, que no fim se
resumia a uma intriga entre o samba e o soul.”778 A polêmica, já existente em meio às
comunidades, conquistou espaço nos jornais e um dos principais palcos de defesa do
samba era o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, fundado pelo
compositor e cantor de sambas, Candeia, 779 objeto de estudo da comunicóloga Íris Agatha
de Oliveira na dissertação Black Soul e “Samba de raiz”: convergências e divergências do
Movimento Negro do Rio de Janeiro 1975-1985.780 Gerson busca contrapor essa oposição,
aproximando os dois gêneros.

O álbum Gerson King Combo apresenta dez composições em sonoridade funk -


com forte uso de efeitos de guitarras, contrabaixo e piano elétrico, bateria, percussão e
naipe de sopros (sonoridade da União Black), além de vocais femininos -, nas quais são

776
HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de história : palavras, sons e tantos sentidos.
2012, p. 130.
777
Revista Veja, dezembro de 1970. Apud. GANDRA, José Ruy. Tim Maia (1973). Abril Coleções. São
Paulo: Editora Abril S/A. (Coleção Tim Maia, Vol. 3). 2011, p 30.
778
PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 108.
779
BUSCÁCIO, Gabriela Cordeiro. “A chama não se apagou”: Candeia e a Gran Quilombo – Movimentos
Negros e escolas de samba nos anos 70. Dissertação (História). UFF. 2005.
780
OLIVEIRA, Íris Agatha de. Black Soul e “Samba de raiz”: convergências e divergências do Movimento
Negro do Rio de Janeiro. 1975-1985. Dissertação (Memória Social). UFRJ. 2014.
282

correntemente repetidos, como designativos, os termos Brother e Black. O LP inicia com


uma composição de Gerson (parceria com Pedrinho e Augusto Cesar) direcionada ao
público dos bailes e passível de reconhecimento a quem tivesse lido a reportagem de Lena
Frias: os blacks não querem ofender a ninguém, brother/ o que nós queremos é dançar/ e
curtir muito soul, e assim anuncia, como diz o título, os “Mandamentos Black”: dançar
como dança um black/ amar como ama um black/ andar como anda um black/ usar sempre
o cumprimento black/ falar como fala um black/ (...) viver sempre na onda black/ ter
orgulho de ser black/ curtir o amor de outro black, versos entrecortados por expressões em
inglês.781

A terceira faixa do LP, “Andando nos trilhos”, tematiza a rodinha de dança dos
blacks e em “God save the King”, narra o sonho que tinha sido aclamado o rei dos blacks.
Com um riff marcial de guitarra distorcida, “Esse é o nosso black brother” brada: tem que
ser agora, brother/ erga da sua mente adormecida todo o poderio de sabedoria que você
teima em guardar só para si/ semelhante sempre atrai semelhante, brother/ Esse é o nosso
black brother/ (...) eu também sou como você/ um black brother.782 Já “Uma chance”
apresenta a sonoridade convencional funk e versos como: e sentir toda beleza que é ser
black, brother, irmão/ abra o seu coração/ para eu entrar, irmão/ outra chance/ mais uma
chance/ pra te mostrar/ como usar/ a sua mente/ inteligente/ sempre amar/ seu outro igual/
a ser natural/ ser normal/ e não deixar/ se derrotar. 783 As canções do disco, portanto,
abordam mensagens de positivação de elementos de identificação com a expressão cultural
negra do “Black Rio”.

Uma canção de particular expressão da Linguagem Política do Orgulho Negro no


repertório lançado no álbum de estreia de Gerson King Combo é “Hereditariedade”, cuja
letra é uma mensagem de orgulho e valorização da família negra, contrapondo o discurso
histórico da miscigenação brasileira, que atua pelo apagamento da ascendência familiar
negra, em prol do embranquecimento. Diferente de outras canções apresentadas nessa tese,
não ocorre nesta composição uma inversão do ideal de embranquecimento. O elemento
branco está ausente. E, na canção, a origem e descendência negra/black conectam-se

781
Gerson King Combo. Mandamentos Black (Gerson Combo/Pedrinho/Augusto Cesar). Gerson King
Combo. Álbum. Polydor. 1977. Faixa 01, Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=kGknEh80NZc>
782
Gerson King Combo. Esse é o nosso Black Brother (Gerson Combo/Pedrinho/Augusto Cesar). Gerson
King Combo. Álbum. Polydor. 1977. Faixa 04, Lado A. <
https://www.youtube.com/watch?v=9UT8GPuBoLo>
783
Gerson King Combo. Uma chance (R&G Combo/Pedrinho). Gerson King Combo. Álbum. Polydor. 1977.
Faixa 03, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=V9Vj0cAvo8w>
283

através do soul. Esse ato de fala realizado na canção de Gerson permite associações com
um dos bailes mais destacados na bibliografia sobre o “Black Rio”, a “Noite do Shaft” do
Clube Renascença - inspirada em uma produção cinematográfica estadunidense com trilha
sonora de Isaac Hayes -, na qual eram exibidos slides com imagens e frases de afirmação
racial, como “Família negra”.784

Minha mãe é negra/ graças a Deus/ o meu pai é um black também/ graças a
Deus/ e é por isso que o meu corpo treme todo com o soul a balançar/ quando eu
começo mexe tudo, se agita, já não posso parar/ é, brother, desde pequeno isso
acontece comigo/ acho que é hereditário/ porque a mesma coisa aconteceu com
os meus pais/ aquele swinguizinho malandro, velho/ quando ouviam um som
black/ dançavam/ Brother, a minha mãe é negra, o meu pai é um black também,
brother/ e se nascer alguém por aí/ vai ser um black também, como você/ Já tem
um blackinho lá em casa/ Ah, já ia me esquecendo/ o meu avô é black também/ e
a vovó é uma tremenda black que vocês precisam saber quem é.785

No acervo do IBOPE consultado na pesquisa para esta tese constam sobre o ano de
1977 apenas os dados de Recife e eles nos informam que, nos índices de principais vendas
de discos em tal cidade, a farta produção de Black Music apresentada nas últimas páginas
obteve pouco destaque comercial. Gerson King Combo constou apenas em novembro,
atingindo o 5° lugar em compactos duplos (“Mandamentos Black”) em uma semana,
enquanto de julho a outubro, o álbum Refavela de Gilberto Gil migrou da 10° à 5°
colocação de vendas em LP.786 O artista com melhores resultados entre os estudados nesta
tese foi Wilson Simonal, que pontuou entre os cinco primeiros lugares por todo o primeiro
semestre, com os compactos simples e duplo do samba “A vida é só pra cantar”. O bom
resultado comercial da canção motivou o lançamento de um álbum por Simonal em abril
de 1977 pela gravadora RCA, A vida é só pra cantar, no qual o artista regravou várias das
canções de maior destaque em sua carreira, como “Nanã” e “Tributo a Martin Luther
King”.787 Elza Soares também lançou mais um álbum no ano, pela Tapecar, Pilão + Raça
= Elza, primeiro álbum da artista desde 1972 a apresentar scat, apenas em uma faixa
(“Sombra confidente”) em um disco convencional de sambas,788 que não constou nos
índices de vendas analisado. Os dados de venda de Recife em 1977, contudo, já
apresentam indícios de um novo fenômeno fonográfico que marca o fim do “ápice” da

784
PAIVA, Carlos. Black Pau: a soul music no Brasil nos anos 1970. Tese (Doutorado). UNESP. 2015, p.
128.
785
Gerson King Combo. Hereditariedade (R. Combo). Gerson King Combo. Álbum. Polydor. 1977. Faixa 01,
Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=vX7RaIlpZrY>
786
Arquivo Edgar Leuenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Vendas de Discos. Notação:
PD 034.
787
Simonal. A vida é só pra cantar. Álbum. RCA. 1977. A vida é só pra cantar/Trinta dinheiros. Compacto.
RCA. 1977. A vida é só pra cantar/Cordão/Trinta dinheiros/Coisa de louco . Compacto duplo. RCA. 1977.
788
Elza Soares. Pilão + Raça = Elza. Álbum. Tapecar. 1977.
284

Black Music Brasileira, com o LP Dancin’ Days, lançado pela gravadora Som Livre,
estreando em julho na 6° posição. Era o início da moda disco music.

Se a virada do ano de 1976 para 1977 representou o ponto máximo de uma década
que propiciou o ápice da sonoridade da black music nas sonoridades soul e funk no Brasil,
com ampla repercussão midiática potencializando iniciativas da indústria fonográfica para
novos lançamentos, a virada de 1977 para 1978 foi o apogeu da música Disco. O jornalista
André Barcisnki, no livro Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no
Brasil, ressalta: “A discoteca tomou o mundo em 1977, na esteira do filme Os embalos de
sábado à noite. Mas o gênero já existia desde o início dos anos 1970 – o primeiro artigo a
citar a palavra disco foi publicado em 1973, na revista Rolling Stone” e caracteriza a
sonoridade: “uma música feita para dançar, com vocais cheios de reverb e em falsete,
arranjos orquestrais, uso frequente de ritmos latinos na percussão e um clima de celebração
coletiva. A discoteca era filha do funk de James Brown (...) e de tantos outros gênios dos
sons negros.”789

Embora surgida da Black Music estadunidense, a Disco Music não se consolidou


como sonoridade identificada às comunidades negras do país, conforme destacado por
André Barcinski: “Socialmente, suas raízes estão nas lutas pelos direitos dos gays, que
ganharam força depois do conflito de Stonewall, em 1969.”790 E tampouco demarcou uma
expressão musical de pretensão politizada, conforme definido por um dos cânones do
gênero, Nile Rodgers, guitarrista e produtor do grupo Chic: “A discoteca era realmente só
sobre eu, eu, eu! [...] Não falava sobre salvar o mundo. Era sobre conseguir um parceiro, se
divertir e esquecer o resto do mundo.”791 E, conforme citado, o gênero ganhou destaque
internacional através da produção cinematográfica estadunidense Saturday Night Fever -
no Brasil, Os embalos de sábado à noite -, que retrata o cotidiano de marginalização da
comunidade latina e de brancos pobres nos EUA, com trilha sonora Disco produzida pelo
grupo (de brancos) The Bee Gees.

Indícios da entrada da sonoridade disco no Brasil são identificados por toda a


década de 1970, devido ao sucesso fonográfico da produção de Barry White, conforme
destacado no decorrer deste capítulo. Mauro Ferreira, no livreto Barry White, pontua sobre
a produção do artista entre 1973 e 1975: “Foi nessa fase que ele misturou o soul e o R&B

789
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 87.
790
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 88.
791
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 90.
285

com levadas do gênero que nascia nos clubes noturnos de Nova York naquela época e que
seria rotulado como disco music.”792 Sucesso atestado pelo lançamento da coletânea em LP
Dancin’ Days.

Fig. 14. Dancin Days. The Frenetic Discotheque. LP. Som Livre. 1977. Extraído de (acesso 05/06/2021):
<https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-1401824580-lp -som-livre-the-frenetic-dancin-days-discotheque-
1977-_JM>
Curiosamente, a coletânea em LP Dancin’ Days, lançada pela gravadora Som
Livre, não incluiu qualquer canção de Barry White, apresentando artistas como KC and
The Sunshine Band, Betty Wright e canções como “Soul Dracula”. O sucesso do LP, ao
que parece, estimulou o grupo Globo a lançar uma telenovela dedicada à proposta
discoteca, também intitulada Dancin’ Days,793 exibida entre 10/07/1978 e 27/01/1979.

O impacto no Brasil da sonoridade disco – ou discoteca ou discotheque – foi


notável. Aquele que pode ser considerado o seu principal “arauto” no país, Lincoln
Olivetti, tecladista e produtor musical, tornou-se quase onipresente nas paradas de sucesso.
Em 1978 a adoção da sonoridade disco foi expressiva entre artistas então consagrados na
Black Music Brasileira. A começar por Tim Maia, que recuperou o sucesso comercial
perdido desde 1974 ao lançar o álbum Tim Maia Disco Club, acompanhado de Lincoln
Olivetti no piano elétrico, oberheim, e órgão, além da produção de arranjos, marcando a
estreia de Tim no selo Atlantic, associado à gravadora Warner, integrante da multinacional
WEA (fusão das gravadoras Warner, Elektra e Atlantic Records). No álbum destacou as
canções “Acenda o farol” e “Sossego”. 794

A atuação de Lincoln Olivetti como instrumentista e na produção de arranjos


também destacou no segundo álbum de Carlos Dafé, Venha matar saudades, em particular

792
FERREIRA, Mauro. Barry White. [Coleção Folha. Soul&Blues, v. 7] 2015, p. 28.
793
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/dancin -days/> Acesso 05/06/2021.
794
Tim Maia. Tim Maia Disco Club. Álbum. Atlantic. 1978.
286

nas canções disco “Criança maravilha” e “Escorpião”. O álbum, no entanto, é mais


eclético, incluindo sambas-soul (“Acorda que eu quero ver” e “Pra não padecer”), mas com
predomínio de baladas soul, duas delas evocando dimensões raciais na letra. “Nessa festa
de luz”, dos versos: Pois para nós a verdade não tem cor/ nem forma de ser/ Tem certeza
que da cor que você tem/ se lá vive bem, que tematiza um lugar alternativo onde não há
preconceito pela cor da pele; e “Vice-versa”, que denuncia um comportamento
preconceituoso: Cheio/ de preconceitos/ detestando(?) corações/ Falta de sentimentos/
afastando a pele irmã/ Sem saber explicar/ o porque não amar/ Dividir é bom/ se integrar
é bom/ filhos somos todos da mesma raiz/ veia(?) corre o sangue da mesma cor.795 Este
segundo álbum de Carlos Dafé também foi executado pela Banda Black Rio e alguns
instrumentistas convidados.

Lincoln Olivetti ainda atuou com o Trio Ternura, que lançou em 1978 o compacto
“Linda manhã/Simão Pedro”, cuja primeira canção era uma composição disco de autoria
de Lincoln.796 No entanto, não foi apenas entre os artistas que trabalharam com Lincoln
Olivetti que a sonoridade disco foi desenvolvida. A sonoridade apareceu já na faixa de
abertura de Gerson King Combo. Volume II, “Pro que der e vier”, composição de Hyldon e
Pedrinho. Outras canções disco deste segundo álbum de Gerson, lançado em 1978, foram
“Na trilha do coração” e “Por isso vou te amando”, entre funks e baladas soul. O álbum,
embora apresente a mesma instrumentação do trabalho de estreia, documenta expressiva
modificação nas letras e nas performances instrumentais, sem incluir arranjos agressivos
nem letras politizadas.797 O álbum, aliás, foi o último lançado por Gerson até o momento
de redação desta tese. Contudo, há lançamentos em 1978 fora da sonoridade disco. Luiz
Melodia lançou seu terceiro álbum, segundo pela Som Livre, Mico de Circo, novamente
acompanhado pela Banda Black Rio. O LP documenta novas hibridações entre o samba, o
funk e o soul, e a inclusão da sonoridade da rumba em “Mulato Latino”. No soul “O morro
não engana”, os versos subi o morro/ morro do medo/ morro do sonho/ morro do sono/
morro no asfalto,798 demarcam representações contrapostas a respeito da favela, e associa a
violência de assassinatos ao asfalto.

795
Carlos Dafé. Nessa festa de luz (Dafé/Tania Maria). Vice-versa (Dafé). Venha matar saudades. Álbum.
WEA/Warner. 1978. Faixa 02, Lado A. Faixa 02, Lado B.
796
Trio Ternura. Linda manhã/Simão Pedro. Compacto. Continental. 1978.
797
Gerson King Combo. Gerson King Combo. Volume II. Álbum. Polydor. 1978. CD. Universal Music.
2001.
798
Luiz Melodia. O morro não engana (Luiz Melodia/Ricardo Augusto). Mico de circo. Álbum. Som Livre.
1978. CD. Som Livre. 1995. < https://www.youtube.com/watch?v=bllwxaVrFyU >
287

A Banda Black Rio em 1978 lançou seu segundo álbum, após migrar para uma
nova gravadora, a RCA. Além da mudança de gravadora, o grupo apresentou outras
alterações, a começar pela formação, com a substituição do tecladista Cristóvão Bastos por
Jorjão e do baixista Jamil Joanes por Valdecir Nei – que também havia participado do LP
Maravilhas Contemporâneas de Luiz Melodia. Conforme Eloá Gabriele Gonçalves: “Não
mais um disco totalmente instrumental (ao que parece, por sugestão da nova gravadora,
interessada em aumentar as vendagens), Gafieira Universal conta com três canções,
cantadas em forma de coro pelo baterista Luiz Carlos Batera e o novo tecladista, Jorge
(“Jorjão”) Barreto.”799 Das três canções, “Vidigal” apresentava uma mistura da sonoridade
funk com o samba, e uma letra que aborda o contexto do Vidigal, no Rio de Janeiro:
falaram que o morro ’tá ruim pra cachorro que a turma não pode ficar/ (...) Agora esse
papo que não me convence dizendo que o morro não dá/ a corda arrebenta do lado mais
fraco/ só fica quem pode pagar.800

A canção “Vidigal” refere à luta das comunidades da região contra os processos de


remoções. Em 03/01/1978 foi noticiado pelo Jornal do Brasil a publicação oficial da
desapropriação do Morro do Vidigal. Conforme o relatório de Patrícia Dantas Ferreira, A
luta pela permanência das favelas cariocas: o caso da tentativa de remover o Morro do
Vidigal em 1977, a justificativa do Estado era que o “local era uma área de risco e que,
além disso, as favelas estavam sendo espaços de proliferação de doenças devido à falta de
saneamento básicos e as condições precárias das moradias”, porém, no processo de
resistência os habitantes descobriram que: “No local de remoção daquelas casas, a
prefeitura tinha como objetivo construir um hotel de luxo, já que a Favela do Vidigal fica
localizada entre o Leblon e São Conrado”.801 Uma organização dos moradores, unida à
Pastoral de Favelas da Igreja Católica, conseguiu barrar o processo de remoções,
frustrando os interesses imobiliários.

Hyldon, que havia lançado em 1977, sem repercussão, o álbum Nossa História de
amor, teve seu contrato com a Polydor encerrado e não teve nenhum lançamento
fonográfico na década a partir de então. Seu parceiro Cassiano também não teve outro
799
GONÇALVES, Eloá G. Banda Black Rio: o soul no Brasil na década de 1970. Dissertação (Música).
Unicamp. 2011, p. 71.
800
Banda Black Rio. Vidigal (Oberdan Magalhães/Valdecir Nei). Gafieira Universal. Álbum. RCA. 1978,
Faixa 02, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=TZExMIa9u7Q>
801
FERREIRA, Patrícia Dantas. A luta pela permanência das favelas cariocas: o caso da tentativa de
remover o Morro do Vidigal em 1977. < http://www.puc-
rio.br/pibic/relatorio_resumo2015/relatorios_pdf/ccs/SER/SER-Patricia%20Dantas%20Ferreira.pdf> Acesso
05/06/2021.
288

lançamento após o Cuban Soul – 14 Kilates, de 1976. Em 1978, o artista passou por uma
cirurgia de extração de um pulmão, em decorrência de tuberculose, se retirando da cena
pública.802 Confirmando a aparente retração do elenco da black music brasileira, Simonal e
Elza Soares também não realizaram lançamentos em 1978, Toni Tornado permaneceu sem
realizar lançamentos, assim como Dom Salvador, que em meados da década de 1970
migrou para os EUA, onde gravou discos instrumentais - assim como fez Raul de Souza
também em meados da década.

Melhor situação estava Jorge Ben, que, consolidando a transição para a sonoridade
elétrica, iniciada em África-Brasil, de 1976, lançou o álbum A Banda do Zé Pretinho,
agora na gravadora Som Livre, mudança que facilitou a inclusão de umas das faixas em
trilhas sonoras de telenovela da emissora Globo, no caso, o samba-pop “Amante amado”,
na novela Dancin’ days. O LP de Jorge Ben, no entanto, não apresentou canções que
evocassem a temática racial. A canção “Amante amado”, aliás, foi gravada também em
1978 no terceiro álbum de Emílio Santiago na Philips. O LP Emilio registrou o primeiro
fruto do encontro do cantor com o compositor Jorge Aragão, integrante do grupo de samba
Fundo de Quintal, “Cabelo Pixaim”, que em sonoridade samba-funk, dizia: quero o seu
amor, crioula (...) olha eu sou da pele preta/ bem pior pra se aturar/ mas se me der na
veneta/ quero ver alguém amar/ mais do que eu/ ô do cabelo pixaim/ quero ver você/
ligada só em mim.803 Uma canção que evocava o amor interracial e evocava uma musa de
cabelo crespo, popularmente rejeitado pelo termo “pixaim” - mas que na canção não sugere
um uso pejorativo ou ofensivo.

Após uma intensa produção localizada na sonoridade da Black Music Brasileira


desde o ano 1970, o cenário do mercado fonográfico em 1978 sugeria que o período que
configurou o auge de tal sonoridade na indústria fonográfica brasileira e a sua difusão entre
as gravadoras – possibilitando o registro de novos artistas – havia chegado ao fim.

802
< https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2021/04/4920524-cassiano-autor-de----
primavera----esta-internado-em-estado-grave.html> Acesso 05/06/2021.
803
Emilio Santiago. Cabelo Pixaim (Jorge Aragão/Jotabê). Emilio. Álbum. Philips. 1978. Fx 02, Lado A.
< https://www.youtube.com/watch?v=4gwhm6ue7ig>
289

2.3. Aparência e “atitude”: a politização da estética no Orgulho Negro.

No decorrer deste segundo capítulo, em meio à exposição e análise do repertório da


Black Music Brasileira, alguns elementos externos às sonoridades e às temáticas
mobilizadas pelos artistas nas canções foram ressaltados em representações dos órgãos de
repressão e pela imprensa: o gestual do punho cerrado e o visual. Na capa da influente
reportagem “Black Rio. O orgulho (importado) de ser negro”, de Lena Frias, ao apresentar
o “fenômeno sociológico”, é ressaltado que “essa população que não tem samba e feijoada
entre as suas manifestações cotidianas e folclóricas” e “cujo modelo é o negro americano,
cujos gestos copiam” adota um código de vestimentas específico: “óculos escuros, um
chapelão, um paletó diferente, lascado atrás, um terno branco e uma gravatinha borboleta,
um casacão até o pé.”804 Nessa mesma capa da reportagem é anunciada uma festa “quando
se esperam lançamentos especialmente notáveis em roupas, sapatos, chapéus e cortes de
cabelo”, indiciando, além da dimensão de identificação de grupo através do vestuário, o
potencial de mercado dessa moda. O visual foi destacado no ensaio fotográfico de Almir
Veiga, veiculado junto ao texto da reportagem.

A relevância das formas de comunicação visual para a Black Music,


particularmente da vertente soul produzida no Brasil durante a década de 1970, foi
ressaltada pela antropóloga Santuza Cambraia Naves como o eixo da dimensão política de
tal repertório. No livro Canção popular no Brasil: a canção crítica, a autora aborda o
desenvolvimento, entre as décadas de 1950 e 1960, de um destacado papel do formato
canção nos debates estéticos e culturais no Brasil, demarcando, assim, a característica da
produção musical de apresentar uma matriz crítica. Segundo a autora, a Black Music
brasileira dos anos 1970 compôs o espectro das canções críticas não através de um
posicionamento explícito nas letras, como caracterizava as canções de protesto contra a
ditadura militar e as apologéticas à revolução social, mas a partir da “atitude” assumida.
Ou seja, as canções mobilizariam uma sonoridade associada à cultura negra e também
signos, como a valorização dos cabelos crespos volumosos – o penteado Black Power –,
um estilo específico de vestimenta (estampas, ternos coloridos, calças bocas de sino) e uma
coreografia, a forma de dançar inspirada na proposta Black dos EUA.805

804
Jornal do Brasil. 17 de julho de 1976. Caderno B, p. 1.
<memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?b ib=030015_09&Pesq=black%20rio&pagfis=144015>
805
NAVES, Santuza Cambraia. Canção popular no Brasil: a canção crítica. 2010, p. 129.
290

Embora a presente tese tenha apresentado diversos registros fonográficos que


evidenciam uma dimensão crítica nas letras de expressiva parte da Black Music brasileira
na luta antirracista; é necessário concordar com a antropóloga quanto a importância da
“atitude” e da aparência na comunicação do que a tese retrata por Linguagem Política do
Orgulho Negro. A proposta deste último tópico do segundo capítulo, portanto, é abordar,
ainda que de forma breve e ensaística, a operação realizada pela linguagem do Orgulho
Negro ao politizar a estética, concedendo sentidos públicos de afirmação racial a elementos
cotidianos passíveis de ser considerados formas de expressão privada, como o gestual e,
sobretudo, a aparência. O gesto do punho cerrado será o elemento gestual retratado dada a
sua relevância na atuação dos órgãos de vigilância da ditadura diante das performances de
Toni Tornado. E, em seguida, o tópico dedicará maior atenção ao vestuário e, sobretudo,
ao uso dos cabelos por artistas da Black Music tratando por documentação as capas dos
discos lançados nas décadas de 1960 e 1970. A “estética do Orgulho Negro”, portanto, está
sendo compreendida como os diversos elementos que permitem a identificação (entre si e
perante os outros) de uma expressão da “cultura negra”, incluindo as sonoridades
trabalhada nesta tese e outros designativos visuais.

A historiadora Ana Marília Carneiro, ao analisar Signos da Políticas,


Representações da Subversão, conforme o título de sua dissertação sobre a atuação da
Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) na ditadura, identifica entre as
representações anticomunistas que preocupavam a repressão brasileira, o signo do “Black
is beautiful: braço erguido em punho forte.”806 A atenção da ditadura militar para tal signo
é destacada pela historiadora durante análise da documentação sobre Toni Tornado que,
conforme ela o apresenta, ao retornar ao Brasil: “havia incorporado um novo estilo,
passava a exibir uma volumosa cabeleira black power e a se vestir de acordo com a ‘moda
soul’, abusando de camisas e batas de estampas coloridas, calças boca-de-sino, lenços,
óculos, colares”, expressando “o orgulho da identidade negra”. 807 Em tal documentação, os
órgãos do Estado enfatizam o uso pelo cantor do “gesto-símbolo” do poder negro,
erguendo o punho fechado – conforme já referenciado ao longo deste capítulo da presente
tese – o que motiva a argumentação da autora: “O punho cerrado, nesse sentido, é tomado
como uma representação ou signo que evoca certa concepção política, historicamente e

806
CARNEIRO, Ana Marília. Black is beautiful: braço erguido em punho forte. In: Signos da Política,
representações da subversão. A Divisão de Censura de Diversões Públicas na Ditadura Militar Brasileira.
Dissertação (História). UFMG. 2013, p. 80-101.
807
CARNEIRO, Signos da Política, representações da subversão. A Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Dissertação (História). UFMG. 2013, p. 84.
291

convencionalmente construída.”808 Enquanto signo, conforme apresentado pela


historiadora a partir de teorias semióticas, “o braço erguido em punho cerrado se tornou
uma imagem emblemática da cultura comunista, largamente empregada em manifestações,
na imprensa, saudações”,809 o que permite melhor compreender a associação do gesto com
a “subversão comunista” no imaginário anticomunista dos órgãos de repressão.

Ao abordar o imaginário anticomunista de órgãos de vigilância e repressão da


ditadura militar, assim como o punho cerrado enquanto um símbolo da cultura comunista,
Ana Marília Carneiro está trabalhando as dimensões políticas de tais elementos culturais,
que inspiram ações. Segundo a historiadora, a adoção do gesto do punho cerrado por
militantes comunistas teve início na década de 1930, durante a Guerra Civil Espanhola
(1936-1939), como “um contraponto combativo ao gestual adotado pelos fascistas
inspirado na saudação romana do braço levantado com a palma da mão estendida” para
baixo.810 De tal forma, a repetição de ambos os gestos não configuraria mais um ato
cotidiano, mas sim demarcaria a identificação - entre companheiros de luta e opositores -
dos valores e concepções políticas do indivíduo, assim como de um elemento ritual
associado à determinada militância e ideologia política. A incorporação de densidade
política ao gesto informa de sua dimensão simbólica, parte de um imaginário político, que,
conforme a definição do historiador Raoul Girardet no livro Mitos e mitologias políticas,
apresenta um “papel de explicação [que] se desdobra em um papel de mobilização”. 811 Ou
seja, a simbologia política do gesto do punho cerrado mobilizaria adesão e comunhão ao
imaginário comunista e repulsa e confronto ao imaginário anticomunista.

A definição de imaginário acima referida segue a síntese realizada pelo historiador


Rodrigo Patto Sá Motta: um “conjunto de representações mentais de um determinado
grupo, representações viabilizadas através de imagens” que integram o repertório de
identificação social que tal grupo articula sobre si e através do qual pode ser identificado
pelos outros.812 E, conforme esse historiador, os símbolos configuram parte do “amplo

808
CARNEIRO, Signos da Política, representações da subversão. A Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Dissertação (História). UFMG. 2013, p. 88.
809
CARNEIRO, Signos da Política, representações da subversão . A Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Dissertação (História). UFMG. 2013, p. 89.
810
CARNEIRO, Signos da Política, representações da subversão. A Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Dissertação (História). UFMG. 2013, p. 90.
811
GIRARDET, Raoul. Para uma introdução ao imaginário político. In: Mitos e mitologias políticas. 1987,
p.87
812
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A história política e o conceito de cultura política. In: Anais do X Encontro
Regional da ANPUH/MG. Mariana. 1996, p. 86. O autor produziu um relevante estudo sobre o imaginário
anticomunista no Brasil, MOTTA, Rodrigo P. S. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil
292

espectro constituído pelo imaginário”, tal qual os ritos e os mitos, de modo que o “símbolo
seria uma forma de representação, um tipo de signo, cujo significado não pode ser
apresentado diretamente. O símbolo se refere a um sentido, não a uma coisa tangível. Ele
trabalha com uma ordem de fenômenos invisíveis e virtualmente inefáveis.”813

Portanto, o argumento proposto nesta tese é que a dimensão simbólica atribuída ao


punho cerrado efetua a sua transição de um simples gestual para um emblema de uma luta
política - que ainda propicia a mobilização ritual, ao ser repetido em série pelos indivíduos
enquanto cumprimento ou forma de expressão coletiva.

Contudo, diferente da fixação ocorrida desde meados do século XX do gesto


romano do braço erguido com a palma da mão estendida para com a simbologia
nazifascista; o gesto do braço erguido com o punho cerrado não permaneceu evocando
reconhecimento restrito à simbologia comunista, sendo associado à luta contra a opressão
por diversos grupos sociais. E é dessa forma, enquanto um símbolo da luta contra a
opressão, que o gesto foi apropriado ao repertório simbólico da luta política antirracista
estadunidense. A imagem do punho cerrado fixou no imaginário dos movimentos negros
durante a segunda metade do século XX em um duplo sentido interconectado. Primeiro,
enquanto um rito, parte de uma “série de atos solenes, repetitivos e codificados, de ordem
verbal, gestual e postural, de forte conteúdo simbólico”814 inicialmente associado aos
militantes do Partido dos Panteras Negras para Autodefesa, grupo antirracista de orientação
socializante.815 A partir da difusão através dos Panteras Negras, o gesto converteu-se em
símbolo da luta antirracista em geral e conquistou particular status e notoriedade após os
jogos olímpicos realizados no México, em 1968, quando os atletas negros estadunidenses
Tommie Smith e John Carlos, inspirados no grupo paramilitar, o repetiram no pódio como
um protesto antirracista em apoio às reivindicações estadunidenses.

(1917-1964). 2002. O livro teve uma segunda edição brasileira lançada em 2020, após edições em inglês e em
espanhol.
813
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A história política e o conceito de cultura política. In: Anais do X Encontro
Regional da ANPUH/MG. Mariana. 1996, p. 87.
814
RIVIÉRE, Claude. As liturgias políticas. RJ: Imago, 1989, p. 13. Apud. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A história
política e o conceito de cultura política. In: Anais do X Encontro Regional da ANPUH/MG. Mariana. 1996, p. 87.
815
Grupo paramilitar e, logo, partido político estadunidense surgido em 1968 com o intuito de vigiar e coibir
as violentas ações policiais no país em relação às comunidades negras e também promover assistência social.
Para uma breve introdução aos Panteras, ver: CHAVES, Wanderson. O Partido dos Panteras Negras. In:
Topoi. Rio de Janeiro, v.16, n. 30, p. 359-364, jan./jun. 2015.
293

Fig. 15: Atletas Tommie Smith e John Carlos nas Olímpiadas do México. 1968. Imagem extraída de:
<https://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2015/07/16/bater-continencia-e-direito-erguer-punho-
gesto-punido-tambem-tem-de-ser/>
Angela Davis no Departamento de Polícia do Condado de Marin. San Rafael, EUA. 1971. Imagem extraída
de:
<https://flashbak.com/iconisingangela-davis-fbi-flyers-radical-chic-art-393334/angela-davis-sanrafael-usa/>

A associação do gesto do punho cerrado à luta antirracista a partir das experiências


e ações das comunidades negras estadunidenses permite a leitura de sua repercussão no
Brasil - conforme o argumento da presente tese - como um elemento simbólico da
Linguagem Política do Orgulho Negro. Demonstra, entre as pessoas negras brasileiras que
o operaram, uma forma de identificação com a luta antirracista das comunidades negras
dos EUA, como no uso por Toni Tornado. Ao mesmo tempo, o histórico de operação do
gesto pela simbologia comunista (e o fato do Partido dos Panteras Negras ser de orientação
socialista) justifica que os órgãos brasileiros de repressão associassem seu uso à ideologia
comunista. Fortalecendo a relação, o impacto da midiatização do gesto pela filósofa e
ativista antirracista Angela Davis não deixa despercebido o fato dela então ser militante do
Partido Comunista dos EUA.

Para o autor da presente tese, a ampla apropriação do gesto do punho cerrado a


partir da segunda metade do século XX indicia a fixação de sua representação enquanto
símbolo das lutas contra a opressão. Por isso cabível - mas não limitado - tanto à causa
comunista, quanto à luta antirracista de forma geral. A iconografia do gesto permite, ainda,
a alusão ao trabalho manual - o que para as comunidades negras pode ser capaz de
referenciar a memória histórica do trabalho forçado no sistema escravista. No imaginário
do aparato repressivo da ditadura militar brasileira, tal articulação do gesto do punho
cerrado entre comunismo e antirracismo estadunidense consta como inaugurado por Toni
Tornado, conforme documento do DCDP no Centro de Informações do Exército (CIE):
294

[...] dia 25 Ago 70, 5ª feira – Programa “Alô Brasil aquêle abraço”, TV GLOBO,
Canal 4 – Rio, marca a presença do cantor negro Tony Tornado, que voltara dos
Estados Unidos, interpretando uma canção de protesto do negro americano
contra a discriminação racial existente em nosso país, com o lançamento inédito
do gesto-símbolo do “poder negro” (comunista), êste representado pelo punho
direito cerrado, braço estendido para o alto.816

É interessante que a redação do parecer do DCDP, ao demarcar “a discriminação


racial existente em nosso país”, contraria a representação racial do discurso oficial do
Estado brasileiro. Contudo, o documento apresenta a associação entre poder negro e
comunismo e o uso inaugural no Brasil por Toni Tornado (grafado na documentação do
Estado com “y”, como se tornou posteriormente a forma como o próprio artista grafa o seu
nome, diferente do modo utilizado em seus discos no período analisado nesta tese, como já
demonstrado).

Um movimento intelectual similar ao operado para compreender a dimensão


simbólica que politiza o gesto do punho cerrado pode ser mobilizado para apresentar o
significado dado à “moda soul”, de vestuário e cabelos, no período. É através do
revestimento simbólico ligado ao imaginário antirracista difundido por setores das
comunidades negras estadunidenses que é estabelecido o significado político de tais opções
de aparência. A historiadora Amanda Alves, ao iniciar reflexão sobre a moda black na
performance de Toni Tornado, ressalta a “relevância do vestuário no processo de
construção das identidades.”817 A antropóloga Sônia Giacomini, ao analisar os bailes soul
do Clube Renascença, identifica entre os integrantes o esforço de exprimir “sinais externos
que permitam, de um lado, o reconhecimento pelos iguais e, de outro, a afirmação da
especificidade junto aos diferentes”, através da moda soul.818 E a comunicóloga Luciana
Oliveira, ao analisar “o estilo da Black Rio” expresso em vestimentas dos bailes soul em
geral, afirma: “Essas eram estratégias que buscavam uma conscientização racial tomando
por base uma valorização estética e uma celebração de um estilo, em detrimento de uma
atuação político-pedagógica mais convencional.”819 A importância de pensar a aparência e

816
Ministério do Exército – Gabinete do Ministro - Centro de Informações do Exército S/103.2. Apud.
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na pátria verde-e-amarela: musicalidade, política e identidade em
Tony Tornado (1970). Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual do Maringá. 2010, p. 99. Sublinhado
nosso.
817
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na Pátria Verde e Amarela: musicalidade, política e
identidade em Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual do Maringá. 2010, p. 64.
818
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 199.
819
OLIVEIRA, Luciana Xavier. A cena musical da Black Rio. Estilo e mediações nos bailes soul dos anos 1970.
Dissertação (Comunicação Social). Universidade Federal da Bahia. 2018, p. 189.
295

a moda como formas de comunicação identitária, veículo para a expressão de um modelo


de cultura negra, portanto, não é novidade na produção acadêmica.

Este breve tópico não pretende aprofundar a discussão teórica nas linguagens da
moda. As teorias no campo da Moda são amplas, remontando ao final do século XIX e
início do XX e é necessário reconhecer a escassa, se não nula, familiaridade com o estado
da arte por parte do presente autor. A proposta deste tópico, porém, retoma, como ponto de
partida, o argumento da cientista social Maria Eduarda A. Guimarães, no artigo “Moda,
cultura e identidades”, que afirma: “no século 20 a moda se consolidará como veículo [de]
transmissão de idéias e ideais, ‘transformando-se num veículo estético para as experiências
sobre o gosto, como um meio político de expressão das dissidências, da revolta e das
reformas sociais.’”820

A fim de prosseguir na abordagem, propõe-se uma diferenciação preliminar entre


vestuário e moda. A categoria “vestuário” - as roupas - é compreendida na presente tese
como um “elemento material da cultura”, ou seja, à dimensão da cultura integrada pelo
universo dos objetos, utensílios, etc. E, como qualquer registro material, o vestuário
permite, à análise sensível à complexidade de tal “banalidade”, identificar vestígios de
experiências sociais a partir da materialidade. 821 Dessa conceituação abrangente para
vestuário, compreende-se por “moda” uma característica das roupas enquanto categorias
culturais no século XX: sua capacidade de expressar identidades e transmitir ideias -
portanto, passível de comunicar mensagens políticas. Pensando categorias culturais como
teias de significados, como proposto pelo antropólogo Clifford Geertz em A interpretação
das culturas, e o vestuário como elementos materiais da cultura, pode-se concluir que é a
dimensão simbólica imiscuída na Moda que possibilita a veiculação de um imaginário
político.822

A moda black, ou soul, é caracterizada por Amanda Palomo Alves “pela


extravagância da junção de peças coloridas, com elementos relacionados a representações

820
GUIMARÃES, Maria Eduarda Araujo. Moda, cultura e identidades. 2008, In: IV Encontro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura. 2008. UFBA, p. 6 (citando Wilson, 1989).
821
Sobre a categoria analítica “elementos materiais da cultura”, em substituição ao termo “cultura material”,
ver: MENESES, José Newton Coelho. Apresentação: culturas alimentares, práticas e artefatos. In: Varia
Historia, vol. 32, núm. 58, Jan/Abr. 2016, p. 15-20.
822
Para a abordagem semiótica da cultura as categorias culturais e como teia de s ignificados, GEERTZ,
Clifford. Uma descrição densa. In: A interpretação das culturas. 2008, p. 3-27. LAPLATINE; TRINDADE.
O que é imaginário? 1997.
296

da cultura africana e pela elegância dos ternos.”823 Contudo, em detrimento a um norte


cultural situado no continente africano, era a partir de modelos estadunidenses que a
expressão da cultura negra da moda soul operava seus elementos de identificação.
Conforme Sonia Giacomini: “O termo soul é ainda utilizado para designar vários aspectos
de um ethos negro-americano que estaria na base das inúmeras ‘conquistas’ alcançadas
pelo negro norte-americano, referência central para o grupo aqui analisado.”824 E assim,
enquanto forma de expressar identificação entre uns e diferença para com outros, em uma
mesma comunidade, como a do Clube Renascença, a moda era capaz de adiantar um
posicionamento quanto aos embates na defesa da “cultura negra” entre os grupos adeptos
da identificação em diálogo transnacional através da black music e os grupos adeptos da
identificação nacionalista a partir do samba.

O embate entre as concepções de cultura, conforme Sonia Giacomini, possibilitou à


“vida no Clube nos inícios dos anos 70 tomar a forma de uma espécie de campo de batalha,
em que adeptos do samba e adeptos do soul disputam, entre si, não somente diferentes
maneiras de ser negro, mas também de ser brasileiro.”825 Tal embate, portanto, expressava
mais do que as preferências musicais: “da perspectiva de nossos entrevistados, o orgulho
propiciado pelo samba só se completa na relação com os brancos – isto é, a classe média da
Zona Sul – enquanto o verdadeiro orgulho negro é afirmado e celebrado entre negros.”826

A estética do Orgulho Negro, encobrindo sonoridades, códigos de comportamento e


de vestuário - comunicados a partir dos significantes Black ou Soul -, portanto, comunicava
de um imaginário sobre a afirmação racial no Brasil, assim integrando uma forma de
expressar a luta antirracista no período. Ou seja, uma das maneiras de identificação
enquanto uma pessoa negra no Brasil. E o embate com o samba foi um ponto que
explicitou que as maneiras de se identificar enquanto pessoa negra eram diversas. Sonia
Giacomini produz uma tabela que facilita a visualização das diferenças entre as duas
identificações: o Soul é “espaço negro, do orgulho negro”, da “cultura negra”, capaz de
“agregar os negros” por um “projeto político de valorização do negro” e da “ascensão
social via afirmação étnica”; e enxergavam no Samba um “espaço brasileiro, em que o

823
ALVES, Amanda P. O Poder Negro na Pátria Verde e Amarela: musicalidade, política e identidade em
Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual do Maringá. 2010, p. 76.
824
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 199.
825
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 217, 218.
826
GIACOMINI, Sonia Maria. A alma da festa. Família, etnicidade e projetos num clube social da Zona
Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 211. Itálicos do original.
297

negro se destaca”, da “cultura brasileira”, visando “congraçar brasileiros de todos os


matizes”, definido por “ausência de trabalho com a comunidade” e no qual é promovida a
“ascensão social via integração subordinada”. 827 Em síntese, para adeptos do Soul, havia:
“No fundo, um sentimento de que o samba, ao mesmo tempo em que permitia afirmar o
valor da contribuição dos negros à cultura nacional, contribuía, pelo seu projeto integrador
– sobretudo a partir dos anos 60 – para escamotear a questão racial.”828 Síntese que
evidencia a contraposição entre maneiras de desenvolver a luta antirracista a partir da
cultura e expressões musicais, e a especificidade da Linguagem Política do Orgulho Negro.

O livro de Sonia Giacomini ressalta sobre a moda soul que: “No caso aqui
estudado, o cabelo também é visto como marca ou sinal que melhor e mais decididamente
que qualquer outro, expressariam – ou negariam – o orgulho negro.”829 Ao referenciar um
diálogo operado pela moda entre o costume dominante em uma sociedade e a tradição de
referência de certo grupo, a antropóloga destaca: “O penteado soul é um exemplo desse
duplo diálogo: o volume, a textura e a produção do penteado expressam, ao mesmo tempo,
o compromisso com o que se representa como sendo o costume ancestral e marcam a
diferença face ao rejeitado penteado do padrão eurocêntrico.”830 O que a autora define por
“penteado soul” é mais comumente definido como “penteado black power” e apareceu na
imagem da filósofa Angela Davis apresentada acima e em várias capas de discos retratadas
no decorrer deste capítulo. Esse penteado, no contexto histórico retratado nesta tese,
configurou-se no mais emblemático e difundido símbolo no imaginário antirracista da
Linguagem Política do Orgulho Negro. E os artistas da Black Music estadunidense tiveram
papel expressivo para a difusão do penteado, como exemplificado abaixo em capas de LPs
de Michael Jackson e Sly & The Family Stone.

827
GIACOMINI, Sonia Maria. A alma da festa. Família, etnicidade e projetos num clube social da Zona
Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 212.
828
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 190.
829
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 203.
830
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 201.
298

Fig. 16. Michael Jackson. Ben. LP. 1972. Extraído de [Acesso 07/06/1971]:
<https://www.amazon.com/MICHA EL-JACKSON-BEN-viny l-record/dp/B00Q7D5IVA>
Sly & The Family Stone. Fresh. LP. 1973. Extraído de [Acesso 07/06/2021]:
< https://www.amazon.com.br/Fresh-Audio-Sly-Family-Stone/dp/B00000250F>

A difusão da afirmação do orgulho racial a partir do penteado black power no


Brasil, no entanto, adquire uma dimensão política singular, devido às especificidades das
formas de desenvolvimento dos critérios de classificação - e hierarquização - racial no país.
Conforme exposto no primeiro capítulo desta tese, no Brasil, o critério de classificação
“cor” prevaleceu sobre o termo “raça” nas representações construídas no país, de forma
que os designativos “pessoas de cor” e “preconceito de cor” difundiram no léxico cotidiano
e político. Segundo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, na obra Racismo e Antirracismo
no Brasil: “‘Cor’ é, no Brasil, primitivamente, uma construção racialista, que se estrutura
em torno de uma ideologia bastante peculiar. Segundo tal ideologia, os mestiços de
diferentes raças tendem, por meio de um processo de ‘reversão’, a concentrar-se em torno
das características de algumas raças”,831 ideologia explicada pelo intelectual Oliveira
Vianna, em texto original de 1932:

“os brancos puros e os fenótipos do branco (mestiços afro -arianos e indo-arianos


em reversão para o tipo branco). (...) O grupo dos pardos ou mulatos era
constituído por aqueles mestiços afro-arianos, que, pela pigmentação particular
da pele, não podendo incorporar-se a nenhuma das raças originárias, formavam
um grupo à parte, perfeitamente diferenciado dos outros grupos.” 832

Apesar de no decorrer da primeira metade do século XX ter ocorrido modificações


nas teorias raciais brasileiras, afastando do racialismo que, a partir da biologia, apresentava
diferenças inatas e hierárquicas entre os tipos humanos; segundo obra de Antonio
Guimarães, as bases dos critérios de classificação racial ainda permaneciam no contexto

831
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. 1999. p. 101, 102.
832
VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação 1959 [1932]:45. Apud GUIMARÃES, Antonio S. A. Racismo e
Antirracismo no Brasil. 1999. p. 103.
299

histórico brasileiro deste capítulo. Em republicação de 1971 de um influente estudo das


relações raciais no Brasil produzido pelo antropólogo Donald Pierson, originalmente
publicado em 1942, o brasilianista apontou: “Tal como se emprega no Brasil, [...] ‘cor’
significa mais que simples cor, isto é, mais do que pigmentação, [significa] inclusive, em
primeiro lugar, [a presença] de um certo número de outras características físicas: tipo de
cabelo (talvez o mais importante), assim como os traços fisionômicos.”833 E é pela
identificação das características físicas que definem os grupos de cor que se percebe as
possibilidades de ascensão social no Brasil:

Oracy Nogueira (1985 [1954]), por seu turno, argumentou que, no Brasil, era a
marca de cor (a aparência física) que contava em termos de distinção social, e
não a origem biológica (raça), como nos Estados Unidos. Mais tarde, será
apoiado nesses estudos que Carl Degler (1991 [1971]) formulará a famosa tese
do “mulato como válvula de escape”, segundo a qual a ascensão social dos
mulatos e mestiços resultava na sua cooptação por um regime de desigualdade
social, privando os negros de uma liderança política mais preparada e educada.834

A partir dos argumentos de teoria social brevemente referenciados acima, é possível


constatar que a adoção de elementos característicos da “cor” preta, particularmente o
cabelo, limitava as possibilidades de ascensão social no Brasil – assim como
potencializava o risco de discriminação. Riscos que podem ser assumidos como atos de
coragem particularmente no contexto de aumento da repressão e com a ampliação da
desigualdade social, a perda do poder de compra e as outras características dos “anos de
aperto” ampliados na década de 1970.

A importância da expressão da afirmação racial através dos cabelos foi objeto de


estudos do livro Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra.
No prefácio do livro, o antropólogo Kabengele Munanga afirma: “O cabelo é analisado, na
obra da Professora Nilma Lino Gomes, não apenas como parte do corpo individual e
biológico, mas, sobretudo, como corpo social e linguagem; como veículo de expressão e
símbolo da resistência cultural.”835 A presente tese se apropria da leitura proposta pelo
antropólogo para compreender o penteado Black Power como “veículo de expressão”
antirracista e, nesse momento inicial de sua difusão no Brasil, como parte de uma
linguagem específica, a Linguagem Política do Orgulho Negro, tal qual expresso em
algumas imagens apresentadas neste capítulo da tese. Conforme a autora do livro citado, a

833
PIERSON, Donald. Brancos e pretos na Bahia. 1971: 38. Apud. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo.
Racismo e Antirracismo no Brasil. 1999. p. 104. Sublinhado nosso.
834
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. 1999. p. 111.
835
MUNANGA, Kabengele. Prefácio. In: GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos
da identidade negra. 2008, p. 16.
300

antropóloga e pedagoga Nilma Lino Gomes: “O cabelo ‘afro’, também considerado por
alguns como black power, foi considerado um estilo político pelo movimento de
contestação dos negros desencadeado a partir da década de 60.”836 E complementa
explicando o que seriam as características de tal penteado: “O black power é mais
associado ao estilo de cabelo ‘crespo natural’ bem cheio (às vezes chamado
pejorativamente de tipo ‘capacete’) e com cortes redondos ou quadrados (também
chamado de estilo ‘marmitão’).”837 A autora ainda historiciza o uso do estilo:

O movimento de estetização negra, que destaca a importância da beleza dos


descendentes de africanos, também tem influências profundas na produção
musical norte-americana dos anos 60 e 70. Nos Estados Unidos, durante os anos
60, o soul, estilo musical negro cujos vários integrantes adotavam o cabelo estilo
‘afro’, era usado como trilha sonora para o Movimento dos Direitos Civis e de
Consciência Negra norte-americanos.838

Dado o exposto nas últimas páginas, compreende-se a forte carga simbólica para a
luta antirracista atribuída ao uso do penteado black power e sua densidade afirmativa do
Orgulho Negro. Porém, assim como apontado na abordagem musical, os elementos visuais
da moda soul podem ser localizados em pessoas brancas, sinalizando um gosto pessoal.
Em sua adoção por pessoas negras é que estes elementos visuais são investidos de uma
simbologia que lhes fornece dimensão política, antirracista. Portanto, é apenas em seu uso
por pessoas negras que a presente tese compreende a moda Black enquanto uma expressão
da Linguagem Política do Orgulho Negro: a aparência, através da pigmentação da pele e
demais características físicas de identificação social ao “significante ‘negro’” é o elemento
central para a politização do símbolo e para a atribuição de dimensão política.

Uma pessoa branca usando os elementos da moda black/soul apresenta uma opção
estética que não irá referenciar, em seu corpo, à mesma força política que uma pessoa
negra. Tal adoção, contudo, pode assinalar um gosto pessoal ou um desejo de aproximação
à estética soul. Afinal, um desejo de aproximação à estética soul é o que sugere a adoção
do penteado black power na capa do álbum Maravilhosa, da cantora Wanderléa, lançado
em 1972 pela gravadora Polydor. Oriunda da sonoridade rock da Jovem Guarda nos anos
1960, a cantora buscou modificar sua imagem artística na década de 1970, adotando a
sonoridade soul. Tal modificação é anunciada aos potenciais consumidores e ouvintes na
capa do disco, através da adoção deste elemento visual associado à cena da Black Music –

836
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2008, p. 193.
837
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2008, p. 193.
Nota de rodapé 5.
838
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2008, p. 196.
301

embora a contracapa do disco retome a imagem consolidada da artista, com os cabelos


ondulados. A referência visual, de tal forma, sugere uma antecipação do conteúdo do
álbum, no qual a sonoridade soul aparece, por exemplo, na gravação de composições de
Hyldon (“Vida maneira” e “Deixa”). A adoção de sonoridades da Black Music por artistas
brancos também ocorreu nos EUA, onde foi chamada de Blue-eyed-soul ou Plastic soul.

Fig. 17: Wanderléa. Maravilhosa. Álbum. Polydor. 1972. Extraídas da página:


<http://discosmusicaeinformacao.blogspot.com/2012/04/wanderlea-maravilhosa-1972-polydor.ht ml>

A mobilização da estética soul, portanto, angaria particular impacto social e


dimensão política quando adotada por artistas negros. Como exposto neste capítulo, a
participação do cantor Toni Tornado no V FIC interpretando a canção “BR-3”, assim como
as performances de “Sou Negro” e “Se Jesus fosse um homem de cor” adquiriram maior
teor contestatório ao serem articuladas ao gesto do punho cerrado, mas também pela
corporeidade do cantor, ao exibir um volumoso penteado black power. Em sua
apresentação no V FIC, impacto ampliado pelo acompanhamento vocal do Trio Ternura
usando roupas dotadas de estampas coloridas da moda soul. A mobilização intencional
desses elementos visuais de comunicação expressa o que Nilma Lino Gomes denominou
por “saberes estético-corpóreos” no livro O Movimento Negro Educador: “Eles afirmam a
presença da ancestralidade negra e africana inscrita nos corpos negros como motivo de
orgulho, como empoderamento ancestral. Recolocam a negra e o negro no lugar da estética
e da beleza.”839 No caso, de uma ancestralidade negra afirmada a partir da identificação
diaspórica, em interlocução com referências estadunidenses.

Assim, convertido em um símbolo da estética do Orgulho Negro e identificado à


luta antirracista, o impacto midiático do penteado black power no Brasil repercutiu em

839
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. 2017, p.
80.
302

artistas de carreira consolidada na década de 1960. As últimas páginas deste capítulo,


portanto, serão dedicadas à exposição comparativa entre capas de discos lançados por
artistas estudados neste capítulo, visando explicitar, em diálogo com a reflexão
desenvolvida neste tópico, a diferença a partir da adoção da Moda Black/Soul. A opção foi
por apresentar capas de discos lançados nos anos 1960 e no recorte do primeiro tópico
deste capítulo, priorizando até 1974. Torna-se perceptível que a comunicação visual da
estética da Linguagem Política do Orgulho Negro ocorreu no produto disco antes da
difusão midiática do “fenômeno Black Rio”. Assim, entre artistas da Bossa Negra, a
comunicação visual de Elza Soares no álbum A Bossa Negra, de 1960, difere dos primeiros
álbuns dos anos 1970, quando adota o estilo Black Power, como o Sangue, Suor e Raça,
gravado com Roberto Riberto e com arranjos de Dom Salvador - que também mudou o
visual. Jorge Ben apresenta-se de forma distinta nos álbuns Ben é samba bom, de 1964, e
Ben, de 1972. Entre os artistas destacados no recorte deste segundo capítulo, é notável a
diferença da comunicação visual entre o compacto “What you want to bet?/These are the
songs”, de Tim, em 1967, e o álbum de 1973, Tim Maia. E também entre o Trio Ternura do
álbum de 1971 e do compacto “Filhos de Zambi/Meu caso com você”, de 1973.

A mudança visual dos artistas, expressa nas capas dos discos, pode representar uma
intenção de informar ao público quanto à roupagem estética das canções, indiciando uma
aproximação à sonoridade da Black Music, tal qual sugerido para o LP de Wanderléa.
Diante do desuso de textos nas contracapas dos LPs, a dimensão atrativa e de informação
nos trabalhos gráficos das capas tem sua importância ampliada para o produto cultural
disco. Essa possibilidade, porém, não invalida a hipótese da tese, de que tal adoção visual
possa também se associar à dimensão política de uma maneira de se apresentar ao mundo,
amparada na expressão de uma forma de identificação negra transnacional.
303

Fig. 18: Elza Soares A Bossa Negra. LP. 1960. Sangue, suor e raça. LP. 1974. Extraído de:
< http://armazemmemoria.co m.br/elza-soares/>

Fig. 19: Jorge Ben. Ben é samba bom. Álbum. Philips. 1964. Extraída da página:
<https://www.amazon.com.br/LP-Jorge-Ben-Samba-Bo m/dp/B00MA9W Y9O>
Jorge Ben. Ben. Álbum. Philips. 1972. Extraída da página:
<https://en.wikipedia.org/wiki/Ben_(Jorge_Ben_album)>

Fig. 20: Tim. What you want to bet?/These are the songs. Compacto. CBS. 1968. Extraída da página:
<https://www.diogodiscos.com.br/pd-613065-compacto-tim-maia-what-you-want-to-bet-these-are-the-songs-
2018.html >
Tim Maia.. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1973. Extraída da página:
< https://armazemdovinil.com/produto/disco-de-vinil-tim-maia-t im-maia-1973/>
304

Fig. 21: Trio Ternura. Trio Ternura. LP. 1971. CBS. Filhos de Zambi/Meu caso com você. Compacto. 1973.
Extraídas da página:
<http://jgsaudade.blogspot.com/2013/06/trio-ternura.html>

Fig. 22. Dom Salvador. Salvador Trio. LP. 1965. Mocambo. Dom Salvador. LP. 1969. CBS. Extraídas da
página: < https://www.discogs.com/>

Fig. 23. Dom Salvador. My Family. LP. 1976. Muse Records. Lançado apenas nos EUA. Extraído da página:
<https://www.discogs.com/>

Fig. 24. Wilson Simonal Wilson Simonal. LP. 1965. Odeon. Se dependesse de mim. LP. 1972. Philips.
Extraídas da página: < https://www.discogs.com/>
305

Conclusão: “O começo do fim”.

A proposta deste segundo capítulo da tese foi analisar o recorte temporal no qual
ocorreu o ápice da produção da Black Music Brasileira, a partir das sonoridades soul e
funk, sendo, por isso, mais abordado pela historiografia que debruçou sobre tal produção
musical. O capítulo buscou demonstrar que, nesse período da produção da Black Music
realizada no Brasil, houve o registro de um expressivo número de canções que abordaram
temáticas da linguagem negra antirracista e da Linguagem Política do Orgulho Negro.

Embora o período estudado tenha encoberto o momento mais repressivo da


Ditadura Militar imposta no Brasil, com intensa atuação de órgãos de censura, a pesquisa
localizou a publicização de muitas canções que contrapunham a representação difundida
oficialmente sobre as relações raciais no Brasil. De tal forma, o ápice da sonoridade da
Black Music Brasileira também configurou um momento de expressiva difusão das
Linguagens Políticas Negras Antirracistas. Assim, a pesquisa atestou que as sonoridades
predominantes no capítulo anterior, a Bossa Negra de orientação jazzística (New Orleans,
Hard Bop, Souljazz e Funky), tornaram-se inexpressivas na produção da Black Music
Brasileira da década de 1970, na qual predominava os gêneros da música jovem
estadunidense, com a incorporação explícita do soul e funk. Também os processos de
hibridação se tornaram menos frequentes, havendo maior número de reelaborações em
português das sonoridades da Black Music dos EUA nas canções estudadas. Quanto à
linguagem expressa nas letras das canções, no recorte deste segundo capítulo houve maior
expressão de uma identificação negra construída a partir do diálogo transnacional entre
Brasil e EUA, portanto, da Linguagem Política do Orgulho Negro e a maior recorrência do
termo “negro” em contraposição ao termo “de cor” ou “mulata/o”.

Como parte da Linguagem Política do Orgulho Negro, junto à expressão das


sonoridades e das temáticas das canções, foram difundidas formas de comunicação visual,
um estilo de vestuário e, particularmente, de penteado que integram a estética do Orgulho
Negro.

As hipóteses levantadas no capítulo foram que a partir da produção musical da


Black Music do Brasil nos anos 1970 é possível compreender e explorar algumas das
contradições da modernização autoritária realizada pela ditadura militar, sobretudo durante
o “milagre”.
306

Por um lado, o incentivo à indústria fonográfica possibilitou a expansão do setor, a


entrada de multinacionais estrangeiras e a oportunidade de gravação para muitos artistas. A
política de relações exteriores do governo ditatorial no período, com aproximação ao
continente africano em busca de novos mercados para exportações (“Pragmatismo
responsável”), e o uso do ideário e discurso da “democracia racial” em tal processo, parece
ter beneficiado a difusão de canções antirracistas, que, apesar do acompanhamento de
órgãos repressivos à difusão de ideias antirracistas, não impediu a circulação das canções
estudadas.

Por outro lado, o agravamento da desigualdade econômica e os custos do “milagre


brasileiro”, cobrados entre a população pobre - em sua maioria pessoas negras, recaiu
sobre a parcela da população representada em muitas das canções da Black Music
Brasileira, de modo que a tese propôs que estas devem ter experenciado o período
enquanto anos de aperto.

Ainda sobre os setores sociais marginalizados e predominantemente negros, a


“descoberta” pelas mídias dos bailes de subúrbio, voltados às sonoridades soul e funk
estadunidenses, contribuiu para uma “corrida” de gravadoras para lançamentos de novos
artistas da Black Music nacional. Contudo, aparentemente, o excesso de exposição em
seguida propiciou um arrefecimento do gênero musical, a partir do impacto da disco music.
307

Capítulo Três:

De 1978 a 1988:

Da esfera do político à esfera da política.

Trago no meu peito as marcas do açoite


Na pele cor de noite que o bronze esculturou
Tenho no meu sangue o elã da madrugada
De cada encruzilhada que Angola me deixou
Sou filha do atabaque, dos sons dos retirantes
Do Congo dos amantes caçados no Sudão
Das músicas de Gana, das flautas de Uganda
Das festas de Luanda, tambores do Gabão
E desses ancestrais, da Argélia ao Senegal
Nasceu meu carnaval e dele sou herdeira
E mostro com orgulho ao mundo, à Terra inteira.
Meu ritmo, meu viço, de Negra Brasileira.
(Irineia Maria/ Paulo Cezar Feital)
308

Introdução.

Será sem fim o sofrer do povo do Brasil?


Nele, em mim, vive o refrão:
As camélias da Segunda Abolição virão!840
(Caetano Veloso/Gilberto Gil. 2015)

A proposta de análise da Black Music Brasileira que vem sendo realizada nesta tese
é amparada em um entendimento alargado de atuação política, para além das lutas pelo
poder de Estado. Tal entendimento legitimou inserir esta pesquisa em uma abordagem de
História Cultural do Político ao estudar a circulação de ideias antirracistas na canção em
uma maneira específica de identificação entre pessoas negras no Brasil: a Linguagem
Política do Orgulho Negro. Buscou-se nas inovações da História Política, agora atenta aos
elementos do cotidiano, do cultural e do simbólico, uma compreensão mais abrangente
para as abordagens e objetos da política e também um rico terreno de investigação: a esfera
do político.841

O pressuposto que orientou a pesquisa é que, ao trazer para a cena pública a


denúncia sistemática do racismo brasileiro, a lógica da contestação efetuada por artistas e
militantes negros antirracistas opera em um esforço contínuo para tornar pública, politizar,
uma situação que o discurso hegemônico insiste em relegar para o silencioso espaço do
privado. Essa situação é a manutenção da desigualdade racial e discriminação, sob uma
falsa impressão de igualdade garantida pela legislação republicana do Brasil, mas que vale
primordialmente para um grupo limitado: as pessoas brancas, ou, ao menos, as
identificadas como não-negras.

De certa forma, tal compreensão vai ao encontro da percepção apresentada por


Marcos Napolitano no ensaio Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime
militar (1964-1985), ao situar, brevemente, sobre a “nova identidade [que] não cabia nos
moldes do pensamento nacional-popular, mais afeito ao mito das três raças mestiças do que
à identidade negra e afro-brasileira em conexão com o mundo da música pop
estadunidense.”842 Para o historiador: “A Black music, que conheceu um lugar de destaque

840
Caetano Veloso e Gilberto Gil. As camélias da segunda abolição (Caetano Veloso/Gilberto Gil). Dois amigos,
um século de música. Álbum. Warner/WEA. 2015.
841
Parte da elaboração que se segue foi preliminarmente apresentada em: MORAIS, Bruno Vinícius L. de. A
MPB e a reivindicação antirracista no Brasil durante a ditadura militar: uma proposta de abordagem teórico -
conceitual. In: CUNHA, André Lescovitz et al (org.). O fazer historiográfico na contemporaneidade. 1ed.
Curitiba: Setor de Ciências Humanas, 2019, v. 01, p. 151-170.
842
NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) -
ensaio histórico. 2017, p. 322.
309

no próprio cenário fonográfico brasileiro com Tim Maia, Jorge Ben(jor) e Tony Tornado,
acabou por criar redes capilares e invisíveis aos olhos da mídia hegemônica e da esquerda
intelectual, com implicações culturais e políticas amplas.”843 A presente tese busca, na
ampliação do conceito “política”, analisar as implicações da forma de expressão identitária
negra dos artistas Black, a partir da difusão da Linguagem Política do Orgulho Negro,
através da qual foi compreendida e comunicada essa forma de expressão - seja na canção
ou em outros canais de comunicação.

O texto “História e Poder” de Francisco Falcon, publicado no manual Domínios da


História, identifica na tradição da historiografia política o predomínio de uma concepção
de “poder” vinculada ao “poder de Estado”.844 Também no Dicionário de Política,
organizado pelo filósofo Norberto Bobbio e outros, o verbete “Política”, escrito pelo
próprio filósofo, apresenta definição associada a tudo que se refira à cidade, pólis, ao que é
público e à ideia de governo para a conquista e manutenção do “poder” – o poder de
Estado, sobretudo na forma de Estado-nação.845 Assim, as análises “políticas” retratariam a
gestão do poder de Estado e “disputas políticas” seriam aquelas entre os que reivindicariam
sua conquista e manutenção.

O predomínio da concepção sobre política restrita ao poder de Estado resultou que


algumas temáticas permanecessem eclipsadas nos estudos de História Política, entre as
quais, as que fundamentam as reivindicações coletivas chamadas “identitárias”, basilares
aos Novos Movimentos Sociais. No contexto brasileiro, os Novos Movimentos Sociais
angariaram maior impacto a partir do final da década de 1970, 846 com o novo sindicalismo,
os movimentos de bairro, feministas, antirracistas e os movimentos gays (este, origem do
que hoje é chamado LGBTQI+). No caso dos movimentos antirracistas, o marco de maior
visibilidade é junho de 1978, quando, em uma manifestação em São Paulo, pessoas negras
fundaram o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, logo rebatizado para
Movimento Negro Unificado.

843
NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) -
ensaio histórico. 2017, p. 322.
844
FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.).
Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. 1997. 5 ed, p. 97-138.
845
BOBBIO, Norberto. Política. In: In: BOBBIO, MATEUCCI, PASQUINO. Dicionário de Política. Coord.
Trad. João Ferreira. Brasília. Ed. Univ. de Brasília. 1998, p. 954-962.
846
Para uma abordagem geral e de época, SINGER, Paul; BRANT, Vinicius Caldeira (orgs.) São Paulo: O
povo em movimento. 1980. Para uma abordagem teórica de referência na sociologia dos movimentos sociais,
GOHN, Maria da Glória Marcondes. Novas teorias dos movimentos sociais. 2008.
310

Segundo a historiadora Maria Helena Capelato: “Nos anos 1960-1970 o


deslocamento da revolução para as rebeliões políticas e culturais produziu um tipo de
revisão historiográfica que acabou privilegiando os estudos sobre os movimentos sociais,
grupos minoritários e cultura”.847 A noção de “movimentos sociais”, segundo os cientistas
sociais Adriano Duarte e Luiz Meksenas, surgiu como referência às formas de participação
do proletariado na luta por sua emancipação social; porém, a partir desta concepção inicial,
ocorre um sucessivo alargamento do conceito na produção acadêmica no decorrer do
século XX, como o direcionamento de abarcar as mobilizações de trabalhadores rurais. 848
No período assinalado por Maria Capelato, entre os anos 1960 e 1970, com o impacto da
Contracultura, ocorreu uma nova ampliação dos sujeitos identificados aos movimentos
sociais devido à repercussão das demandas do Feminismo e dos movimentos negros e gay,
exigindo uma nova compreensão de “atuação política”. Conforme o sociólogo Luiz
Cláudio Barcelos, o “conceito de identidade passa a substituir o de ideologia como
referencial para a atuação e análise dos movimentos sociais”, 849 justificando a “novidade”
quanto aos “antigos” movimentos, urbanos e rurais.

Seguindo o caminho esboçado acima, as ações dos movimentos negros, ao expor os


efeitos do preconceito e da discriminação racial e reivindicar uma mudança no perfil da
sociedade, de modo a criar um ambiente mais igualitário, expressariam um tipo de atuação
política. Mas essa atuação não se pauta, necessariamente, na busca por reestruturar o
modelo econômico nacional ou na conquista do Estado, como pode ser percebido em
reivindicações mais tradicionais identificadas à organização da luta de classes na esfera
política – a partidária ou revolucionária. Seu campo de atuação denuncia o compromisso
de modificar o terreno de configuração do social, do modo como as relações humanas
operam no cotidiano. Para isso, alcança a gestão do Estado, criador e aplicador de leis. Tal
como ocorre nas lutas de mulheres e pessoas LGBTQIA+, as lutas operadas na
conformação da vida cotidiana por pessoas negras buscam no Estado a garantia e fixação
de suas reivindicações em direitos, na legislação.

Para fundamentar a análise dessa expansão da atuação política, a fim de abarcar a


luta contra práticas de discriminação e preconceitos no cotidiano - e sua difusão no objeto

847
CAPELATO, Maria Helena Rolim. História Política. In: Estudos Históricos. Núm. 17. 1996, p. 162.
848
DUARTE, Adriano Luiz, MEKSENAS, Paulo. História e Movimentos Sociais: possibilidades e impasses
na constituição do campo do conhecimento. In: Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 12, n. 1, p. 119-139, 2008.
849
BARCELOS, Luiz Claudio. Mobilização racial no Brasil: uma revisão crítica. In: Afro-Ásia. Salvador,
Bahia. No. 17, 1996, p. 189.
311

canção -esta tese buscou amparo na conceituação sugerida pelo historiador Pierre
Rosanvallon. Esse autor, nos artigos do livro Por uma História do Político, propõe a
identificação de uma “esfera do político” como o espaço onde são gerados e disputam
ideais e representações que conformam o social, a vida em comum. Ambiente
diferenciado, assim, embora em diálogo constante, do espaço da gestão do social através
do Estado, a “esfera da política”. 850 Por não idealizar a conquista do poder de Estado, o
campo de atuação política primordial das lutas antirracistas, seja nos movimentos
organizados, nas ruas ou canções, é a esfera do político.

A opção por introduzir este terceiro capítulo a partir de uma breve pontuação a
respeito da ampliação das abordagens na História Política justifica-se pelo
desenvolvimento que será tomado na redação do texto. Dos três capítulos desta tese, é
neste último que será melhor explorada a identificação de uma atuação antirracista que
transita entre a esfera do político e a esfera da política, localizada, a partir de diferentes
marcos analíticos, no ano de 1978 e no decorrer dos dez anos seguintes. De tal forma, a
partir dos marcos do impacto da Disco Music e do redirecionamento da indústria
fonográfica, o primeiro movimento do capítulo irá manter o trajeto desenvolvido nos dois
capítulos anteriores, ao explorar o cancioneiro da Black Music Brasileira lançado entre os
anos de 1978 e 1988, uma atuação operada na esfera do político.

Apesar da identificação de uma nítida retração na produção do gênero em relação


ao cenário do capítulo anterior, a circulação de elementos das Linguagens Políticas Negras
Antirracistas aparece em algumas canções, como nas lançadas por Zezé Motta e Sandra Sá,
principais destaques do gênero na indústria fonográfica durante o período. Também no
cenário alternativo, com Itamar Assumpção, e na produção de artistas comumente
associados à etiqueta de mercado MPB, Djavan, Gilberto Gil e Emílio Santiago, é possível
localizar o diálogo com a produção black estadunidense e a difusão de ideias antirracistas e
da Linguagem Política do Orgulho Negro. Diferente do capítulo anterior, para o recorte
temporal deste terceiro capítulo não consta no acervo digitalizado pelo IBOPE dados sobre
a Pesquisa de Vendas de Discos, de modo que não foi possível trazer informações sobre a
recepção comercial dos trabalhos.

O segundo movimento do capítulo irá realizar um pontual afastamento do formato


canção, mas mantendo a atenção à esfera do político, ao explorar uma produção intelectual

850
ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. 2010.
312

negra antirracista difundida no suporte livro durante o recorte temporal do capítulo. O


marco é a publicação no Brasil do manifesto de Abdias Nascimento divulgado no
FESTAC’77, O genocídio do negro brasileiro. Esse aparente desvio do objeto estudado na
tese é justificado por uma pergunta surgida, e sistematicamente retomada, durante a
pesquisa deste trabalho: qual o significado do termo “racismo” que sustentava o discurso
oficial e das grandes mídias no Brasil ao afirmarem a inexistência de racismo no país; o
aparato policial, quando este identificava um “racismo negro”; ou mesmo os discursos do
intelectual Gilberto Freyre, que combatia o “racismo de esquerda” e os “afro-racismos”? A
pesquisa evidencia ser este um significado distinto daquele que sustenta a luta antirracista
dos movimentos negros, mas a bibliografia consultada não apresentou ou problematizou
tais nuances do vocábulo. A busca pela resposta a essa pergunta recordou um argumento
do historiador Eric Hobsbawm:

Muitas fontes para a história dos movimentos populares apenas foram


reconhecidas como tais porque alguém fez uma pergunta e depois sondou
desesperadamente em busca de alguma maneira – qualquer maneira – de
respondê-la. Não podemos ser positivis tas, acreditando que as perguntas e as
respostas surgem naturalmente do estudo do material. Em geral, não existe
material algum até que nossas perguntas o tenham revelado. 851

Assim como na citação acima, na busca desesperada por encontrar alguma maneira
de responder à questão levantada – paralela ao objeto, mas central ao tema desta tese –, a
forma encontrada foi recorrer a alguns dos dicionários publicados no Brasil entre as
décadas de 1930 e 1980, a fim de identificar os significados dados ao vocábulo “racismo”.
Com esses verbetes, foi cotejado o significado operado em documentos das forças
repressivas do Estado e outras fontes. Identificado um significado “consensual”, a leitura
da produção intelectual antirracista lançada entre 1978 e 1986 - além de Abdias, por nomes
como Joel Rufino, Lélia Gonzalez, Neusa dos Santos e Kabengele Munanga - permite
acompanhar um esforço de ressignificação do vocábulo “racismo”, que vai ao encontro das
mensagens difundidas nas canções abordadas no decorrer da tese. A atuação política em
torno da ressignificação do termo, no argumento desta tese, amplia a sustentação da
rejeição do ideário da “democracia racial” como um mito.

A reflexão e análise operada no segundo movimento deste capítulo permite


aproximar a tese da abordagem consolidada da História Intelectual, ao estudar a
compreensão e uso de um vocábulo a partir de obras literárias. Este estudo de uma história
das idéias antirracistas na produção brasileira do cenário da redemocratização, recorda das

851
HOBSBAWM, Eric. A história de baixo pra cima. In: Sobre a História. Ensaios. 1998, p. 220.
313

considerações apontadas pela historiadora brasileira Adriane Vidal Costa e por o


historiador argentino Elias Palti no prefácio da obra História Intelectual e circulação de
ideias na América Latina nos séculos XIX e XX:

Em síntese, como nos ensina a “nova história intelectual”, não é no plano dos
conteúdos referencias dos discursos (as “ideias”) que é possível observar os tipos
de distorções que tais discursos apresentam como resultado dos traslados
contextuais. De fato, as “ideias” não conservam os vestígios das alterações nas
suas condições de enunciação. Para encontrá-los, devemos trasladar nosso
enfoque ao plano da dimensão pragmática da linguagem e seus usos. Ou seja,
devemos reconstruir o conjunto de relações comunicativas dentro do qual um
determinado enunciado foi produzido. Efetivamente, as enunciações, ao
contrário das “ideias”, que são abstratas e genéricas por definição, são fatos
plenamente históricos, sempre singulares. E o que os singulariza não está no que
diz, mas sim em sua dimensão retórica, o que a tradição retó rica medieval
chamava de “circunstâncias”: quem fala, a quem se fala, como o diz, em qual
marco de relações de poder etc.” 852

O terceiro movimento do capítulo, enfim, propõe a atenção para a atuação


antirracista transitando da esfera do político à busca por consolidação na esfera da política,
a partir do marco da fundação do Movimento Negro Unificado e de sua atuação durante a
luta em prol da redemocratização no Brasil. Com o fim da ditadura militar brasileira,
durante a transição democrática, um breve balanço dos temas apresentados pela Black
Music Brasileira por todo o recorte da tese (1960-1988) permite ao tópico realizar uma
comparação com as pautas do Movimento Negro nos anos 1980. Além das reivindicações,
o tópico compara a fixação de pautas antirracistas através do Estado, na Constituição
Federal, promulgada em 1988 – como a tipificação do crime de “racismo”, reforçada pelo
entendimento definido no tópico anterior.

3. 1. A Black Music Brasileira em declínio.

A produção musical gravada e lançada a partir de 1978 registra tal ano como marco
de um declínio da Black Music Brasileira na indústria fonográfica, em consonância ao
impacto comercial da Disco Music. A ascensão e apogeu da Discotheque – Discoteca ou
apenas Disco – no Brasil foi analisada no livro Pavões Misteriosos: 1974-1983: A
explosão da música pop no Brasil, de André Barcinski, no qual o autor destaca o impacto
do grupo As Frenéticas - contratado pela gravadora Warner, dirigida por André Midani e
recém-inaugurada no Brasil.

852
PALTI, Elias; COSTA, Adriane Vidal. Prefácio – Os lugares das ideias na América Latina. In: idem
[Orgs] História Intelectual e circulação de ideias na América Latina nos séculos XIX e XX. 2021, p. 6.
314

A importância de As Frenéticas para a Disco Music é ressaltada por Márcia Tosta


Dias, ao referenciar a mundialização dos gêneros e estilos musicais: “Em torno de 1977/78,
a música dançante das discotecas, a dance music, surge no Brasil, na esteira do boom
americano (e mundial) do gênero e tem sua expressão nacional com As Frenéticas.”853 O
livro de André Barcinski, contudo, explicita mais detalhadamente sobre a difusão da onda
Disco no Brasil:

As paradas dos discos mais vendidos em 1977 dão uma ideia do domínio da
discoteca no Brasil. Dos cinquenta mais vendidos no país pelo menos vinte,
incluindo LPs e compactos, estavam associados ao gênero, entre baladas lentas
para dançar agarradinho e músicas mais aceleradas e animadas. O segundo disco
mais vendido do ano - e que só perdia para o de Roberto Carlos – foi I love to
love, de Tina Charles. (...) Em 1978, o domínio foi ainda maior: mais de 60% dos
compactos e LPs que lideraram as paradas estavam associados à discoteca. (...)
Já a produção brasileira vendeu muito com Perigosa (Frenéticas), Amante Latino
(Sidney Magal), A noite vai chegar (Lady Zu), Quem é ele (Miss Lene) e Tim
Maia Disco Club (Tim Maia).854

Portanto, enquanto em 1977 havia o ápice da produção fonográfica da Black Music


brasileira - uma consequência da maior exposição midiática do gênero ocorrida no ano de
1976 -, a Disco Music também engendrava sucesso comercial, consolidado no ano
seguinte. Ainda conforme André Barcinski: “Em julho de 1978, a TV Globo estreou a
novela Dancin Days, com Sonia Braga, Antonio Fagundes, Lidia Brondi, Joanna Fomm e
Glória Pires e a discoteca atingiu o auge de sua popularidade no Brasil.”855 Também o
multimídia Carlos Imperial, nome de destaque para o rock da Jovem Guarda e a
Pilantragem, contribuiu na ascensão da disco na televisão, pois, em 1978, ele “voltava à
Tupi para comandar o programa Os embalos de sábado à noite, em que divulgava a nova
onda da discoteca brasileira.”856 Consolidando a “febre disco”, difundiram espaços de
danças dedicados ao gênero e também chamado discotecas. 857

A discoteca, seja enquanto gênero musical ou enquanto espaço físico para


performances de dança, difundiu-se no Brasil distanciada de suas origens nas comunidades
negras dos EUA. No contexto estadunidense, o gênero já encontrava maior enraizamento
entre as comunidades gays, por pessoas brancas e negras. Também no filme estadunidense
Saturday Night Fever, estreado em 1977, conforme referenciado no capítulo anterior desta

853
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2008, p.
80.
854
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos: 1974-1983: A explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 95,
96.
855
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos: 1974-1983: A explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 97.
856
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos: 1974-1983: A explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 115.
857
MOTTA, Nelson. Caia na gandaia. In: Coleção História do Rock Brasileiro. Vol. 02. Super Interessante.
2004, p. 69, 70.
315

tese, a trama celebrava as canções e danças Disco a partir de comunidades brancas – o


protagonista, Tony Manero, era um jovem ítalo-estadunidense. No Brasil, o filme estreou
em julho de 1978 pelo nome Os embalos de sábado à noite, um sucesso comercial que
estimulou Carlos Imperial a se apropriar do título do filme para o seu novo programa na
TV Tupi. A desassociação da Disco não apenas com as comunidades negras, mas à própria
Black Music foi notável na recepção brasileira:

Antes havia o povo da black music, que vinha desde o começo dos anos 70, com
o Tim Maia, o Cassiano, o Fábio, logo em seguida com o pessoal que formaria a
Banda Black Rio, o Hyldon, os bailes funks de subúrbio. Isso tudo já vinha de
bem antes, mas aí era o funk-soul carioca. A disco music começou no Brasil com
as Frenéticas, que nem tinham muito a ver com funk e com soul. Pelo contrário,
era uma espécie de disco-rock.858

A explosão da sonoridade Disco, contudo, não foi a única e tampouco a maior


mudança ocorrida no cenário da indústria fonográfica brasileira no final da década de
1970. Em Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura,
Márcia Tosta Dias estuda um processo no qual “As grandes empresas transformam-se em
escritórios de gerenciamento de produto e elaboração de estratégias de mercado”; e
identifica nos anos 1970 o “período de consolidação da moderna indústria fonográfica
brasileira. Nos anos 1980 e 1990 é definida e, efetivamente, colocada em prática a sua
reestruturação.”859 A alteração no direcionamento das grandes empresas do ramo
fonográfico coexistiu e se relacionou com um momento de agravamento da crise
econômica no Brasil, conforme ressaltado por Luiz Tatit em O século da canção: “A
imensa crise financeira que atinge o Brasil a partir de 1973, e que só amenizaria nos anos
90, impede o surgimento de nomes que dependeriam de uma oportunidade de gravação.
Nenhuma empresa se arrisca em lançamento incerto.”860

O livro de André Barcinski citado acima, no entanto, aborda mais detalhadamente as


alterações realizadas no direcionamento artístico das gravadoras, apontando um marco em
1978: “Para muitos [artistas], a liberdade criativa nas gravadoras foi diminuindo a partir de
meados da década, até chegar, por volta de 1978 ou 1979, a um estágio em que a gravadora
decidia praticamente tudo: repertório, capa, produção e mesmo mudanças no estilo e no

858
MOTTA, Nelson. Caia na gandaia. In: Coleção História do Rock Brasileiro. Vol. 02. Super Interessante.
2004, p. 71.
859
DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2008,
p. 21, 22.
860
TATIT, Luiz. O século da canção. 2004, p. 231.
316

visual dos artistas.”861 O autor aproxima do argumento de Luiz Tatit, ao ressaltar que o
processo de “profissionalização”, em cenário de crise econômica, limitou oportunidades de
gravação:

No Brasil, as vendas [de produtos fonográficos] diminuíram quase 20% entre


1978 e 1979. Foi um período de intensa reformulação nas estratégias das
gravadoras. As empresas começaram a perceber que era mais rentável ter casts
menores e artistas maiores. Em vez de apostar em nomes desconhecidos e
desenvolver suas carreiras ao longo do tempo, a nova ordem era contratar os
astros mais populares a peso de ouro e tornar cada um de seus discos um
“acontecimento”. No Brasil, essa mudança de rumos da indústria culminou com
a chegada de alguns executivos estrangeiros que as grandes gravadoras enviaram
para vigiar de perto as empresas. (...) Nos anos 1970, a Philips chegou a ter
oitenta artistas contratados. Em 1981, esse número caiu para vinte. Os executivos
se metiam em todas as decisões do departamento artístico. 862

A mudança na dinâmica de funcionamento das gravadoras visava potencializar a


obtenção de lucro, alterando o cenário considerado – por executivos – pouco profissional
na indústria fonográfica brasileira de até então. André Barcinski ressalta tal visão sobre o
cenário fonográfico no país até a década de 1970: “A verdade é que as gravadoras
brasileiras ainda eram, no fundo, empresas quase amadorísticas, onde um ou dois chefes
decidiam tudo. Não que os executivos fossem diletantes ou mecenas, mas as estruturas das
gravadoras eram enxutas, e muitas decisões artísticas eram tomadas por instinto e gosto
pessoal.”863 Mas tal mudança de orientação também sofreu a influência de uma mudança
no “comportamento do mercado”, segundo André Midani, um dos executivos de maior
destaque na época:

Eu era visto como um Midas da música, tudo o que eu via dava certo, e aí
chegou o dia em que tudo o que eu via dava errado. Isso aconteceu porque o
comportamento do mercado mudou. No período 1968/1976 o que fazia sucesso
era o discurso do artista. O importante era o personagem e o que o personagem
falava. Quando chegou em 77, uma das grandes mudanças que começaram a se
desenhar é que o personagem ficou relegado a um segundo plano diante da
música. Aí eu vi que tinha passado anos sem olhar direito para a música, sem
sacar se ela fazia sucesso ou não.864

Já para a classe artística, o redirecionamento da gerência artística das gravadoras


significou não apenas limitação de oportunidades, mas também certo engessamento para os
contratados. No livro Marcelo Nova - o galope do tempo: conversas com André Barcinski,
Marcelo - compositor e vocalista da banda baiana Camisa de Vênus, um dos expoentes do
Rock Brasileiro lançado nos anos 1980 -, menciona de sua relação por vezes conflituosa
861
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos: 1974-1983: A explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 44,
45.
862
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos: 1974-1983: A explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 159.
863
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos: 1974-1983: A explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 39.
864
Entrevista com André Midani. In: VICENTI, 2008, p. 59. Apud. PAIVA, Carlos E. A. Black Pau: a soul
music no Brasil nos anos 1970. Tese (Ciências Sociais). Universidade Estadual Paulista. 2015, p. 136.
317

com executivos da indústria fonográfica. O artista foi um dos pioneiros da cena rockeira
que se tornou um “carro chefe” do mercado fonográfico oitentista. Tendo iniciado carreira
um pouco mais velho que a maior parte de seus companheiros de geração musical, Marcelo
(que gravou o primeiro álbum na faixa dos 30 anos, enquanto na cena rockeira
predominava adolescentes na casa dos 20 anos ou menos) sugere um gesto de maturidade a
resistência à direcionamentos artísticos - que propiciou o rompimento de seu primeiro
contrato artístico com a Som Livre que impôs a alteração do nome da banda pouco após o
lançamento do primeiro LP, em 1983. E destaca como uma rara exceção a atuação
profissional de André Midani: “Agora ele se aposentou, mas ele se destacava
culturalmente, intelectualmente, nas atitudes, na forma que encontrou para conduzir a
Warner. Eu percebia nele uma busca pela liberdade artística que nunca mais encontrei em
grandes gravadoras.”865 A avaliação de Marcelo Nova ganha maior força por ser um livro
de memórias publicado em 2017, após o artista transitar por diversas gravadoras e estar,
desde 1998, na cena de gravação independente - na qual lançou 9 álbuns.

O redirecionamento da produção artística na indústria fonográfica, visando atentar ao


“comportamento de mercado” para potencializar as vendas, alterou, portanto, as dinâmicas
de relacionamento entre artista e gravadora, a partir da maior pressão por retornos
comerciais aos produtores musicais. Os estudos e memórias publicadas sobre o período
indicam que o final dos anos 1970 promoveu uma menor liberdade artística para a atuação
dos profissionais da produção musical, que até então encontravam um cenário de maior
liberdade. Uma possível síntese da mudança é que as gravadoras passaram a se preocupar
mais em corresponder aos gostos do “mercado consumidor” do que em buscar ditar esses
gostos a partir da contratação de novos artistas considerados experimentais e inovadores
por produtores musicais.

Na leitura do autor da presente tese, a atuação das gravadoras no Brasil nas décadas
de 1960 e 1970, a partir de produtores e diretores artísticos, por vezes expressava
estratégias de acomodação com os governos da ditadura militar. O uso do conceito é
inspirado na reflexão do historiador Rodrigo Patto Sá Motta no artigo A estratégia de
acomodação na ditadura brasileira e a influência da cultura política: “acomodação
permite expressar melhor a ideia de que mesmo em uma ditadura houve oportunidades
para acomodar intelectuais e acadêmicos do campo oposicionista, em um jogo de mútuas

865
BARCINSKI, André. Marcelo Nova - O galope do tempo: conversas com André Barcinski. 2017, p. 114.
318

concessões entre Estado e atores sociais.”866 O historiador, ao estudar os círculos


universitários na ditadura, identificou muitos intelectuais “ideologicamente suspeitos em
cargos públicos”, a partir de um comportamento mutuamente ambíguo ou flexível:
“Tratava-se de jogo em que o Estado buscava atrair o intelectual/professor e este precisava
moderar suas opiniões e comportamentos. Entretanto, o Estado igualmente cedia ao
transigir com os valores do ‘inimigo’ - por vezes contrários aos seus - e ao permitir sua
circulação, ainda que em versões fracas.”867 Tal reflexão é sugestiva para pensar a atuação
das gravadoras que, a despeito do funcionamento de órgãos de censura, veiculavam valores
opostos aos do governo ditatorial – sejam discursos socializantes, de denúncia da ditadura
ou das Linguagens Políticas Antirracistas expostos nos capítulos desta tese – “ainda que
em versões fracas”; utilizando das iniciativas de fomento realizadas pelo governo no setor
fonográfico, parte da política de modernização autoritária conservadora.

O ano de 1978, portanto, destaca-se na produção fonográfica brasileira pela ascensão


da música Disco e por uma alteração no gerenciamento industrial no setor, ao priorizar
uma dinâmica empresarial visando a potencialização de lucro. O cenário, no entanto, não
impediu a repercussão do repertório da Black Music no país. Da produção estadunidense,
duas baladas soul do conjunto The Commodores destacaram, conforme pontuado por
Mauro Ferreira:

No Brasil, “Easy” tocou muito no primeiro semestre de 1978, propagada na


trilha sonora internacional da novela-blockbuster “O Astro”, exibida pela TV
Globo entre fim de 1977 e o primeiro semestre de 1978. Hit do álbum de 1978,
“Three Time a Lady” também conquistou o Brasil ao ser incluída na trilha
sonora internacional da novela “Dacin’Days”, exibida pela TV Globo naquele
ano de 1978.868

A produção da Black Music Brasileira também teve lançamentos em 1978, conforme


abordado no capítulo anterior desta tese, com discos de artistas que conquistaram evidência
nos anos anteriores. Mas estreias em LP também foram registradas, como Don Beto, artista
que angariou notoriedade ao ter sua canção “Pensando nela” executada na trilha sonora da
telenovela Dona Xepa, exibida na Rede Globo entre 24/05/1977 e 24/10/1977. 869
Contratado pela gravadora Som Livre, na esteira da repercussão da canção na telenovela, o
cantor lançou, no primeiro semestre de 1978, seu primeiro e único álbum, Nossa

866
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A estratégia de acomodação na ditadura brasileira e a influência da cultura
política. In: páginas, año 8 - n° 17. 2016, p. 16.
867
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A estratégia de acomodação na ditadura brasileira e a influência da cultura
política. In: páginas, año 8 - n° 17. 2016, p. 17.
868
FERREIRA, Mauro. The Commodores. [Coleção Folha. Soul & Blues] 2015, p. 30.
869
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/dona-xepa/> Acesso 09/08/2021.
319

Imaginação, contando com doze canções na sonoridade de baladas soul, mas nenhuma
delas evocando as linguagens antirracistas - a temática do LP transita entre romântica e
existencial.870 O artista, com este trabalho, conquistou o prêmio Globo de Ouro na
categoria Melhor Disco do Ano 1979. 871

Outra estreia da Black Music Brasileira em LP no ano foi a de Zezé Motta, artista
então amplamente conhecida por sua atuação como protagonista no filme Xica da Silva,
produção dirigida por Cacá Diegues. O filme, baseado em fatos reais, abordou uma
escravizada que estabeleceu relação amorosa com uma autoridade portuguesa nas Minas
Gerais setecentistas e tornou-se uma mulher poderosa na região. Conforme a sinopse
disponibilizada pelo Museu da Imagem e do Som: “O filme foi um grande sucesso de
bilheteria no ano de seu lançamento (1976) e, de forma alegre e carnavalizada, não deixa
de evocar a luta do povo brasileiro contra os poderosos.”872 Um livro biográfico sobre a
artista foi publicado em 2018, Zezé Motta: Um canto de luta e resistência, escrita pelo ator
Cacau Hygino, mas uma síntese representativa da biografia de Zezé foi escrita por Lélia
Gonzalez, “possivelmente em meados de 1984”, uma “transcrição original encontrada no
Memorial Lélia Gonzalez”:873

Todos a conhecemos como a atriz promissora que despontou em Roda Viva, sob
a direção de José Celso Martinez; que se afirmou em Arena canta Zumbi,
dirigida por [Augusto] Boal, ou na novela Beto Rockfeller. Todos sabemos que
atingiu o estrelato, arrebatando público e crítica, com sua magnífica
interpretação em Xica da Silva, de Carlos Diegues, a ponto de os críticos de
Chicago poucos meses atrás terem comentado: “Basta de Evita! Agora queremo s
Xica”.

E quem desconhece aquela voz quente e aveludada, mas às vezes zombeteira e


cortante como faca amolada, que mexe com a gente quando canta “Senhora
Liberdade”, “Cais escuro”, “Rita baiana”, “Oxum” e tantas outras músicas mais?

Mas muitos poucos de nós a conhecemos como aquela criança que, vinda de
Campos com os pais e o irmão, morou no morro do Pavãozinho e estudou em
colégio interno para crianças pobres. Ou como a adolescente que ajudava a mãe
na costura, ouvindo rádio o dia inteiro, e que depois cantava as músicas ouvidas
para o pai, a fim de que este as transformasse em partituras a serem distribuídas
entre os membros do conjunto de músicos profissionais que dirigia. Poucos
sabem que essa mesma adolescente começou a tomar consciência da situação dos
deserdados e oprimidos, pobres e negros como ela própria quando fez o ginasial
no colégio João XXIII, na Cruzada São Sebastião. Mas nada disso a fazia
desistir. Ao entrar para o segundo grau (curso de contabilidade), foi trabalhar
como operária ao mesmo tempo que estudava teatro com Maria Clara Machado.

870
Don Beto. Nossa Imaginação. Álbum. Som Livre. 1978. Relançamento em CD: Som Livre. 2006.
871
< https://www.morganmusic.com.br/site/?page_id=3540> Acesso 09/08/2021.
872
< https://acervo.mis-sp.org.br/video/xica-da-silva-direcao-de-caca-diegues> Acesso 09/08/2021.
873
GONZALEZ, Lélia. Fontes. in: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e
diálogos. 2020, p. 366.
320

Vida dura de jovem negra pobre, numa sociedade onde os espaços reservados
para mulheres, negros e pobres são aqueles da exclusão. 874

A biografia de Zezé Motta ressalta uma condição econômica de origem que


estabelece paralelos com vários outros artistas abordados nos capítulos desta tese: ter
habitado em um “morro”, trabalhado desde a tenra idade e a “vida dura de jovem negra
pobre” - conforme definiu Lélia Gonzalez. A percepção da origem de tantas pessoas negras
da classe artística compartilhar de uma condição de exclusão explicita não ser apenas uma
coincidência, mas uma consequência dos efeitos estruturais do preconceito e discriminação
raciais na sociedade brasileira. Para Zezé, assim como aos demais artistas estudados nesta
tese de origens pobres, a oportunidade para sair de tal condição social foi possibilitada pela
atuação artística. No caso de Zezé Motta, primeiro pela encenação dramatúrgica, que
possibilitou à atriz estabelecer carreira paralela como cantora. Segundo ela, em entrevista
ao historiador Ricardo Santhiago para o livro Solistas dissonantes: história (oral) de
cantoras negras: “Eu sempre quis ser cantora e atriz. Sempre quis ser ‘cantriz’! Na minha
trajetória, estas duas opções corriam paralelas, mas a oportunidade para me tornar atriz
chegou antes.”875

O primeiro álbum gravado por Zezé Motta foi lançado em 1975, um LP de Gerson
Conrad, que a convidou para dividir os vocais com ele na maioria das canções. Gerson foi
integrante do grupo de rock e MPB Secos & Molhados, conjunto de enorme popularidade
em 1973 e 1974, quando lançou dois álbuns antes do fim de sua formação clássica - que
contava com Gerson, o vocalista Ney Matogrosso e o vocalista, violonista e compositor
principal, João Ricardo. O LP Gerson Conrad & Zezé Motta foi lançado pela Som Livre
pouco após a dissolução do conjunto, contando com quatorze composições do cantor e
violonista Gerson Conrad em parceria com Paulinho Mendonça, 876 canções que
apresentavam “na imagem do meio rural e na vida saudável longe dos centros urbanos seu
principal arquétipo.”877

O álbum com Gerson Conrad não teve grande repercussão, situação oposta à que
ocorreu à produção cinematográfica Xica da Silva. Produzido pela estatal Embrafilme, o
filme foi um sucesso de bilheteria e de crítica, conquistando os prêmios de Melhor Filme,

874
GONZALEZ, Lélia. Fontes. in: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e
diálogos. 2020, p. 228.
875
SANTHIAGO, Ricardo. Solistas dissonantes: história (oral) de cantoras negras. 2009, p. 201.
876
Gerson Conrad e Zezé Motta. Gerson Conrad & Zezé Motta. Álbum. Som Livre. 1975. Relançamento em
CD. Som Livre. 2006.
877
< http://www2.portoalegre.rs.gov.br/cantrizes/default.php?reg=1&p_secao=27> Acesso 09/08/2021.
321

Melhor Direção e Melhor Atriz para Zezé Motta no Festival de Brasília (1976); Melhor
Filme, Melhor Direção, Melhor Atriz para Zezé Motta no Prêmio Air France de Cinema
(1976); o Prêmio Coruja de Ouro do INC – Instituto Nacional de Cinema – de Melhor
Atriz para Zezé Motta, Melhor Atriz Coadjuvante para Elke Maravilha, Melhor Fotografia
e Melhor Coreografia (1976); e o Prêmio Governador do Estado de São Paulo de Melhor
Atriz e Melhor Montagem (1977).878 A repercussão nos cinemas propiciou oportunidades
para Zezé enquanto cantora, como nas viagens de divulgação do filme. O seu livro
biográfico ressalta: “Zezé fez muitos shows nos Estados Unidos. Os cartazes anunciavam:
‘show de Zezé Motta, a estrela do filme ‘Xica da Silva’.”879 No Brasil, Zezé concedeu
diversas entrevistas nas quais anunciava seu desejo de cantar, sendo procurada por
gravadoras e pelo empresário Guilherme Araújo, que trabalhava com Caetano Veloso,
Maria Bethânia, Gal Costa e o antigo vocalista dos Secos & Molhados, Ney Matogrosso,
que passou a empresaria-la em 1977.880

Com a notoriedade obtida pelo sucesso do filme e empresariada pelo nome


experiente e bem relacionado de Guilherme Araújo, Zezé Motta estabeleceu um contrato
com a gravadora Warner, dirigida por André Midani. Ainda em 1977, Zezé lançou um
compacto simples com as faixas “Babá Alapalá”, de Gilberto Gil e “Xica da Silva” - a
canção biografia composta por Jorge Ben para o filme e que, com Zezé, adquiriu maior
sonoridade soul, particularmente pelas guitarras. O passo seguinte foi a reunião de um
repertório de canções inéditas de artistas de destaque. De tal forma, em 1978 houve mais
três lançamentos de Zezé. Um compacto simples, com as faixas “Pecado original”
(Caetano Veloso) e “Dores de amores”, em dueto com Luiz Melodia, compositor da
canção – que também foi gravada no mesmo ano por Emílio Santiago. 881 Um compacto
duplo, incluindo “Rita baiana” (John Neschling/Geraldo Carneiro), “Trocando em miúdos”
(Francis Hime/Chico Buarque), “Magrelinha” (Luiz Melodia) e “Baba Alapalá” (Gilberto
Gil) - sendo essas duas últimas presentes no Lado B, versões de faixas originalmente

878
< http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/> Acesso 09/08/2021.
879
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 91. O impacto midiático do filme à
época e sua repercussão educativa foram estudados na tese FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Cinema,
história pública e educação: circularidade do conhecimento histórico em Xica da Silva (1976) e Xico Rei
(1985). Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais.
2014.
880
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 107.
881
Zezé Motta. Pecado original/Dores de amores. Compacto. Warner/WEA. 1978. A gravação de Emílio foi
lançada no álbum O canto crescente de Emílio Santiago. LP. Philips. 1978.
322

lançadas pelos compositores nos álbuns Pérola Negra (1973) e Refavela (1977).882 E,
enfim, um LP, que aproveitava as seis canções lançadas nos compactos e incluía outras
cinco composições.

O primeiro álbum de Zezé Motta documentou o apadrinhamento musical da artista


por Luiz Melodia, de quem gravou três canções: a inédita “Dores de amores”, único dueto
do LP, e as regravações do blues “Magrelinha” e de “O morro não engana” (lançada pelo
compositor no mesmo ano, 1978), três canções em arranjos que sinalizavam para o soul. A
diversidade na sonoridade do disco, no entanto, extrapolava a vertente Black Music,
evocando a produção de Luiz Melodia. Conforme o biógrafo Cacau Hygino: “Foi um LP
bem eclético, tinha chorinho, pop/romântico, música afro-brasileira, até funk. Na capa, em
cima dos seios, havia umas folhas que a censura mandou colocar, mas dentro do LP ela
aparecia numa foto quase nua.”883 O álbum apostava em uma imagem de ousadia da
intérprete. Porém, para transmitir essa ousadia em sonoridade - em uma estreante, sem
trajetória sólida como cantora e cuja performance em um repertório próprio eram novidade
- angariou maior importância a figura do produtor musical.

Segundo a socióloga Marcia Tosta Dias, o produtor musical: “Coordena todo o


trabalho de gravação, escolhendo os músicos, arranjadores, estúdio e recursos técnicos.
Pensa na montagem do disco, na sequência em que as músicas devem ser apresentadas e
escolhe as faixas de trabalho (músicas que serão usadas para a divulgação nas rádios e na
televisão).”884 O produtor selecionado para o disco de estreia de Zezé Motta foi Arnolpho
Lima Filho, vulgo Liminha, que fora baixista do grupo tropicalista e de rock progressivo
Os Mutantes até 1974 e em 1977 estreou na produção musical de Caia na Gandaia,
primeiro álbum do grupo disco As Frenéticas.885 Diferente da opção realizada com As
Frenéticas - com as quais atuou por todo o disco um grupo fixo, o conjunto de rock,
marginal, Bixo da Seda - Liminha convocou um time de músicos experientes e respeitados
para o álbum de Zezé, a começar por si próprio no baixo e seu antigo companheiro de Os
Mutantes, o guitarrista Sérgio Dias Batista. Outros instrumentistas renomados foram
selecionados: os guitarristas e violonistas Perinho Albuquerque, Paulinho Soledade e Luiz
Cláudio; os baixistas Jamil Joanes (da Banda Black Rio), Rubens Sabino, Luizão e Moacir

882
Zezé Motta. Rita baiana/Trocando em miúdos/Magrelinha/Baba Alapalá . Compacto duplo.
Warner/WEA. 1978.
883
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 109.
884
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2008, p.
95.
885
As Frenéticas. Caia na gandaia. Álbum. Warner/WEA. 1977.
323

Albuquerque; os bateristas Tutty Moreno, Paulinho Braga e Robertinho Silva; e os


pianistas Tomás Emprota, Miguel Cidras e Antônio Adolfo - todos eles com experiência
em álbuns de MPB e Black Music Brasileira. E a canção escolhida para abrir o disco, uma
composição inédita do casal Rita Lee/Roberto de Carvalho, feita especificamente para a
cantora, servia como cartão de visita, “Muito prazer, Zezé”:

Muito prazer, eu sou Zezé/ Mas você pode me chamar como quiser/ Eu tenho
fama de ser maluquete/ Ninguém me engana, nem joga confete/ Mas pra quem
gosta de amar e segredo/ eu sou um prato cheio/ Eu quero dar uma colher/ Eu
sou Zezé, da terra do Sol/ da lua de mel/ da cor do café/ Muito pra zer, eu sou
Zezé/ uma rainha, uma escrava, uma mulher/ uma mistura de raça e cor/ uma
vida dura, mas cheia de sabor/ é que hoje em dia estou mais atrevida/ muito
mais sabida/ Meu nome é Zezé, mas pode chamar de Xica, se quiser. 886

A letra da canção “Muito prazer, Zezé” repercute o impacto da atuação no filme Xica
da Silva para a carreira de Zezé Motta, visto que a composição destinada a ser uma
apresentação da cantora a associa à personagem; seja de forma sugerida, nos versos muito
prazer, eu sou Zezé/ uma rainha, uma escrava, uma mulher ou no trecho final, quando
autoriza o/a ouvinte a chamá-la por Xica. A dimensão racial também foi evocada por Rita e
Roberto nos versos que caracterizam a intérprete como da cor do café e uma mistura de
raça e de cor. A execução instrumental e vocal da canção concede uma dimensão alegre,
que é reforçada pela inclusão de risadas por Zezé durante o canto. Características de
composição e performance que aparecem também em outra canção feita para Zezé, por
Moraes Moreira, “Crioula”: Quando eu penso nela/ na forma de canção/ eu imagino um
som/ que revele/ o tom de sua pele/ Crioula/ Quando eu penso nela/ o meu coração bate
num swing/ que se passa da cabeça aos pés/ que corre no sangue/ swing que é natural da
raça.887

Três das canções gravadas no álbum Zezé Motta, contudo, abordam temáticas raciais
a partir de linguagens antirracistas. “O morro não engana”, de Luiz Melodia e Ricardo
Augusto, lançada pelo compositor no mesmo ano no álbum Mico de Circo, conforme foi
abordado no capítulo anterior, traz uma representação sobre as favelas que inverte a
associação dos morros com a violência urbana nos versos morro do medo/ morro do sono/
morro do sonho/ morro no asfalto. A composição explora a polissemia do termo “morro”
ao associar o medo, o sono e o sonho ao morro enquanto espaço geográfico, em

886
Zezé Motta. Muito prazer, Zezé (R. Lee/ R. Carvalho). Zezé Motta. Álbum. Warner. 1978. Fx. 01, Lado
A.
<https://www.youtube.com/watch?v=QxsNnT_VG6U>
887
Zezé Motta. Crioula (Moraes Moreira). Zezé Motta. Álbum. Warner. 1978. Fx. 01, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=z6TYL-rQVE4>
324

contraposição ao “morro” enquanto conjugação do verbo morrer, quando referente ao


espaço geográfico do asfalto. É o asfalto que apresenta o risco à vida do eu-lírico da
canção, que na interpretação de Zezé Motta tem mantida a sonoridade soul pela execução
instrumental, em bateria, percussão, guitarra e piano e baixo elétricos, além de um arranjo
de cordas e flautas.

As duas canções que encerram o álbum de estreia Zezé Motta retratam a religiosidade
de matriz africana, a partir do culto a orixás. “Dengue”, composta por Leci Brandão
(sambista que então se destacava a partir de uma renovação do samba, realizada por
artistas envolvidos com a escola de samba Cacique de Ramos), não evoca as sonoridades
da Black Music, sendo executada apenas por cinco percussionistas, o baixo elétrico de
Liminha e coro. A letra, Olha que dengue/ olha que calma/ Oxum me entende/ Oxum me
acalma/ Na cachoeira toda danada/ toda faceira, toda enfeitada/ Oloriê salve o tesouro/
Ora iê, iê ô/ Dona do ouro,888 celebra a orixá que, conforme o Dicionário de cultos afro-
brasileiros, é: “Deusa das águas doces – rios, lagos, cachoeiras – bem como da riqueza e
da beleza. Deusa menina, faceira, a mais jovem e preferida esposa de Xangô, portanto uma
das rainhas de Oyó, segundo os mitos”, 889 em verbete que prossegue descrevendo a
indumentária e colares característicos da divindade, que justificam na canção a referência
toda enfeitada. E a faixa que encerra o LP, “Babá Alapalá” é uma reverência a Xangô
selecionada do repertório composto e gravado por Gilberto Gil no projeto Refavela:
Aganjú, Xangô, Alapalá/ Xangô, Aganjú. Embora as duas versões utilizem a mesma
instrumentação (baixo, guitarra, bateria, percussão e violão, além de acompanhamento de
coro), a gravação de Gil sugere influências da sonoridade nigeriana Juju Music, sobretudo
pela execução da guitarra, enquanto a de Zezé aproxima da sonoridade Black,
principalmente nas performances do baixo e bateria. 890 Sobre o tema da composição,
Maurício Barros de Castro, em Refavela. O livro do disco, ressalta:

“Babá Alapalá” é marcada pela pergunta que se repete, do filho para o pai, do pai
para o avô, do avô para o bisavô, do bisavô para o tataravô: “Onde está?” É uma
pergunta sobre a ancestralidade que se tentou apagar com o tráfico de africanos
escravizados, uma empreitada desumana que sequestrou cerca de 12 milhões de
indivíduos de suas famílias, de suas nações de origem, e os acorrentou
amontoados em diversos tipos de embarcações negreiras que rumaram,
principalmente, para o chamado “Novo Mundo”. É sobre est e desmantelo da

888
Zezé Motta. Dengue (Lecy Brandão). Zezé Motta. Álbum. Warner/Wea. 1978.
<https://www.youtube.com/watch?v=aN0oyTOlrVA >
889
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 202.
890
Zezé Motta. Babá Alapalá (Gilberto Gil). Zezé Motta. Álbum. Warner. 1978. Fx. 06, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=CbAcMUxq2T0>
325

memória que se buscou impor ao africano – para reduzi-lo a mercadoria e força


de trabalho – que a canção se refere.891

Apesar do repertório por compositores renomados, da produção, do talento e da


repercussão midiática de Zezé Motta na época, as vendas de seu primeiro álbum
revelaram-se frustrantes para a indústria fonográfica. O resultado foi uma intervenção da
gravadora para um redirecionamento da então incipiente carreira fonográfica da artista.
Segundo Zezé:

Com o sucesso que eu estava fazendo, a Warner achou que eu ia vender milhões,
mas não foi bem assim... Essas coisas são imprevisíveis e acabei vendendo
menos do que a gravadora esperava. Eles acharam que tinha alguma coisa errada
com meu trabalho: disseram que eu tinha que direcioná-lo, que devia ter um
rótulo e que esse rótulo seria o samba.

Esperneei pra cá e pra lá, mas no disco Negritude topei gravar alguns sambas.
Mesmo assim, sempre rejeitei o rótulo de sambista - não porque tivesse algo
contra o samba, mas porque sabia que a gravadora queria que eu gravasse samba
por ser negra. Eu achava isso, vamos dizer, meio estranho... Parecia uma
ditadura com o artista negro.892

Ou seja, o resultado comercial menor que o esperado diante da fama de Zezé Motta
após o filme Xica da Silva, mesmo que em uma forma de atuação artística totalmente
distinta (a musical) e em uma primeira experiência, instigou a pressão da indústria
fonográfica em impor rumos específicos à carreira da cantora. Tal redirecionamento, como
foi percebido por Zezé, buscava circunscrever sua carreira ao posto de sambista - um lugar
social criado pelo preconceito e discriminação racial. Conforme ressaltado pela artista, o
preconceito não está na gravação de sambas (o seu primeiro LP flertava com o gênero no
choro “Rita baiana”), mas na imposição, a despeito da identidade musical que Zezé
buscava conceder à sua carreira.

A consciência de Zezé Motta quanto ao fundamento preconceituoso e discriminatório


da pressão por um redirecionamento ao samba era reforçada pela atuação da artista junto
ao Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial - organização surgida ao
público em julho de 1978 como uma união de diversas instituições antirracistas e da qual a
cantora foi uma das fundadoras, após atuar em organizações antirracistas desde 1971. 893
Apesar da militância, porém, Zezé adotava posturas menos restritivas quanto à sua carreira.
A própria construção da personagem no filme Xica da Silva era rejeitada por setores dos
movimentos negros. “Achavam que Xica da Silva era explorada muito mais pelo lado

891
CASTRO, Maurício Barros de. Refavela. O livro do disco. 2017, p. 85.
892
SANTHIAGO, Ricardo. Solistas dissonantes: história (oral) de cantoras negras. 2009, p. 207.
893
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 187.
326

sensual do que por outros atributos.”894 Crítica que a atriz e cantora não compartilhava:
“Zezé até compreendia a reflexão. Sempre se falou por aqui sobre o negro como exótico,
da sensualidade, que o homem negro é muito viril, que a mulher negra é mais sensual.
Bom, baseado nisso tudo, Zezé começou a dizer: ‘Gente, não cobrem de Xica da Silva
atitudes de Angela Davis’.”895

Assim como Zezé interpretou Xica - e outras personagens -, que explorava o


estereótipo da sensualidade, ainda que inadvertidamente, ela também fez uma concessão
dos argumentos da militância e forneceu seu talento a um disco de sambas em seu segundo
álbum, Negritude, lançado em 1979.896 Para a gravação deste segundo LP houve uma
mudança expressiva na produção, substituindo Liminha pelo produtor João de Quino, a
direção artística de Mazola – um produtor experiente com artistas da MPB – e a direção de
produção de Cuti. A instrumentação do álbum reforçava o direcionamento, priorizando
pandeiro, tamborins, cuíca, violões e cavaquinho. Assim, o samba em sonoridade mais
tradicional apresenta-se desde a primeira faixa, “Manhã brasileira”, um dueto com o
compositor, o sambista Manacéa.

A sonoridade de samba em vertente mais tradicional predomina por todas as doze


faixas do álbum; embora na quinta faixa do lado A, “Autonomia”, composição do sambista
Cartola, haja um trecho ao piano elétrico e sax tenor de orientação jazzística e a terceira
faixa do lado B, “Trovoada”, de Tunai e Sérgio Natureza, ainda um samba, apresente um
diálogo com a sonoridade soul. No entanto, o redirecionamento artístico cumpriu as
expectativas comerciais da gravadora: “Fez um sucesso estrondoso por conta da música
‘Senhora Liberdade’, de Wilson Moreira e Ney Lopes. De tudo o que Zezé gravou, foi uma
das músicas que mais tocou no rádio.”897 A faixa de maior destaque comercial do LP era
um samba em sonoridade então convencional (violão, cavaquinho, tamborim, pandeiro,

894
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 103. Tais críticas foram exploradas
e analisadas por FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Cinema, história pública e educação: circularidade do
conhecimento histórico em Xica da Silva (1976) e Chico Rei (1985). Tese (Educação). UFMG. 2014, p. 280-
300.
895
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 103.
896
É válido enfatizar que o argumento nesse momento não é que para os movimentos negros da época - ou
para o autor desta tese - gravar um disco apenas de sambas fosse aderir ao preconceito e discriminação racial.
Como afirmado desde a introdução desta tese, há important es nomes e produções no samba comprometidas
com a luta antirracista. No período da década de 1970, destaca-se, por exemplo, a atuação do cantor e
compositor Candeia, com a criação da Escola de Samba Quilombo – como mencionado no capítulo anterior.
Tampouco está sendo feito aqui um julgamento de valor do álbum Negritude, de Zezé - um dos melhores de
sua carreira, na opinião do autor desta tese. Neste caso do segundo álbum de Zezé, apenas está sendo
destacada a concessão aberta pela artista diante de uma pres são que ela mesma compreendia como ecoando
orientações racistas da indústria.
897
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 117.
327

baixo) e de temática romântica. Embora as relações amorosas predominem na temática do


LP, o samba “Pensamento Iorubá”, composto por Moraes Moreira, busca apresentar uma
série de termos que integram o vocabulário da cosmologia Iorubá: para vir a ser tem que
ter axé/ para sempre ser tem que ter abá.898

Fig. 25: Capa e contracapa. Zezé Motta. Negritude. LP. Atlantic/WEA. Extraído de:
< https://www.antikarius.com.br/produto/599232/zeze-motta-negritude-lpusado>

Apesar da sonoridade sambista, a capa do disco Negritude, contudo, apresentou uma


interessante interlocução de referenciais internacionais, ao demonstrar Zezé com um
penteado Black Power e um colar com dente de marfim, ao estilo da moda associada a
regiões africanas.

A única canção lançada no álbum Negritude que escapa à sonoridade de samba é a


faixa título do LP. “Negritude”, composição de Irineia Maria e Paulo Cezar Feital, é de
difícil caracterização, mas com fortes elementos jazzísticos, conduzida pelos timbres de
piano e baixo elétricos, trompete e saxofone. Esta também é a mais expressiva faixa do LP
quanto à expressão de linguagens antirracistas, tematizando a memória da escravidão, a
ascendência africana e reforçando a construção de uma identificação transnacional
amparada na afirmação do eu lírico não como uma “brasileira negra”, mas sim uma negra
brasileira.

Trago no meu peito as marcas do açoite/ Na pele cor de noite que o bronze
esculturou/ Tenho no meu sangue o elã da madrugada/ De cada encruzilhada
que Angola me deixou/ Sou filha do atabaque, dos sons dos retirantes/ Do
Congo dos amantes caçados no Sudão/ Das músicas de Gana, das flautas de
Uganda/ Das festas de Luanda, tambores do Gabão/ E desses ancestrais, da
Argélia ao Senegal/ Nasceu meu carnaval e dele sou herdeira/ E mostro com
orgulho ao mundo, à Terra inteira/ Meu ritmo, meu viço, de Negra Brasileira.899

898
Zezé Motta. Pensamento Iorubá (Moraes Moreira). Negritude. Álbum. Warner/Atlantic. 1979. Fx.4, Lado
A.
899
Zezé Motta. Negritude (I. Maria/P. C. Feital). Negritude. Álbum. Atlantic/WEA. 1979. Fx. 4, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=1yOvTq5S_rU>
328

A identificação transnacional veiculada na canção “Negritude” é construída a partir


de uma perspectiva pan-africana, ao conectar a localização brasileira com heranças
situadas em vários países do continente africano: Angola, Congo, Sudão, Gana, Uganda,
Luanda, Gabão, Argélia e Senegal. A “ponte transatlântica” entre o Brasil e os países do
continente africano, na canção, é sugerido a partir da memória dolorosa da escravidão, pelo
verso trago no meu peito as marcas do açoite. O tema da canção, portanto, comunica uma
linguagem antirracista, mas não a Linguagem Política do Orgulho Negro. Contudo, a
sonoridade amplia a conexão transnacional rumo aos Estados Unidos da América, ao
adotar sonoridades do Jazz Moderno.

A linguagem do Orgulho Negro apareceu, no entanto, em outra canção de uma


cantora que lançava seu segundo LP em 1979: Lady Zu. A cantora destacou no mercado
fonográfico em 1977, ao lançar um compacto que obteve muito sucesso com a canção
disco “A noite vai chegar”, que fez parte da trilha sonora da telenovela Sem lenço, sem
documento, exibida pela Rede Globo de televisão entre 13/09/1977 e 04/03/1978. 900 Com o
sucesso da faixa, Lady Zu conquistou o título de “Rainha das discotecas brasileiras”, 901 e
lançou seu primeiro álbum, A noite vai chegar, em 1978, focado na sonoridade Disco
Music. Em 1979, a cantora lançou seu segundo LP - e último solo no recorte desta tese -,
Fêmea brasileira, no qual transitava pelas sonoridades disco, soul e funk. A música de
maior sucesso do disco foi o funk “Hora de União”, que expressava mensagens
antirracistas e a identificação transnacional com os EUA:

Brother, vem dançar/ que a banda começou/ É o samba soul/ que outro brother
me ensinou/ Venha se embalar nessa marcação/ é muito importante/ o clima
dessa união/ Vem dançar, irmão/ é a vez do samba soul/ Este é o momento certo/
dessa libertação/ se a gente usar a força/ dessa canção/ Samba é soul e soul é
samba/ ambos são negros como eu/ e importantes como a noite/ temos as
mesmas origens/ Brasil/ África.902

A canção “Hora de União”, composição de Antônio Silva, foi gravada por Lady Zu
em um dueto com o cantor Totó Mugabe e em sua letra realiza um manifesto pela
aproximação entre o samba e o soul - dialogando, portanto, com as oposições entre os
admiradores dos dois gêneros, conforme retratado no capítulo anterior. A canção utiliza o
termo Brother, comum nos círculos dos frequentadores dos bailes Black e estabelece uma
interessante conexão entre Brasil, Estados Unidos e o continente africano ao pregar que

900
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/sem-lenco-sem-documento/> Acesso
13/08/2021
901
< http://culturabrasil.cmais.com.br/especiais/por-onde-andarao/de-zuleide-a-lady-zu> Acesso 13/08/2021.
902
Ladu Zu. Hora de União (Antônio Silva). Participação: Totó Mugabe. Fêmea brasileira. Álbum. Philips.
1979. Faixa 04, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=AUqyrgDoLLs >
329

samba é soul e soul é samba/ ambos são negros como eu (...) temos as mesmas origens/
Brasil/ África. Tal como na música “Negritude”, lançada no mesmo ano por Zezé Motta,
há uma identificação construída a partir de um diálogo transnacional com o continente
africano, mas pelo gênero musical – aqui, em “Hora de União”, explicitado na letra e
música como soul –, conecta também aos EUA.

No álbum Fêmea Brasileira, consta ainda outro dueto, entre Lady Zu e o guitarrista e
cantor Luis Vagner, no samba-soul “Boneca de pixe” que retrata um diálogo conjugal de
um casal negro. Luiz introduz: venho empurrando quase toda a gente, Preta/ Pra ver meu
benzinho, você, meu benzinho, e canta o primeiro refrão: Da cor do azeviche, da
jacoticaba/ boneca de pixe, é tu que me acaba/ sou preto e meu gosto, ninguém me
contesta/ mas há muito branco com pinta na testa; e Zu responde: tem português assim nas
minhas águas/ Que culpa eu tenho de ser boa mulata/ Nego se tu aborrece minhas
mágoas/ ah, eu te dou a lata e o segundo refrão - os mesmos versos, cantados em primeira
pessoa do singular.903 A canção é executada na sonoridade soul, sendo que o refrão é
entoado na cadência do samba. Não foi localizado pelo autor desta tese um significado
para a expressão branco com pinta na testa. É notável, porém, a busca por uma positivação
estética das referências raciais: cor do azeviche, da jaboticaba e o uso carinhoso dos
termos Preta e Boneca de Pixe; embora a letra retome, como autodefinição, a “categoria
mulata”. Ainda que o diálogo alcance ameaças de agressão física - quando Zu ameaça o
término da relação no verso eu te dou a lata, Luiz responde: se tu me engana vai haver
banzé/ eu te sapeco um rabo de arraia/ E te dou no pé - predomina na composição uma
representação que celebra uma relação amorosa afetuosa entre o par negro.

Fig. 26. Capa e contracapa. Lady Zu. Fêmea brasileira. LP. Philips. 1979. Extraídas de:
<http://knrecords.com/?pid=109291358>

903
Lady Zu. Boneca de pixe. Participação Luis Vagner. Fêmea brasileira. Philips. 1979. Faixa 06, Lado A.
<https://www.youtube.com/watch?v=2keKg_7v6OA>
330

O segundo álbum de Lady Zu, uma artista consagrada na sonoridade Disco, registrou
a aproximação da cantora com as sonoridades soul e funk, documentando, assim, a difusão
da Black Music entre artistas oriundos de outras vertentes musicais no Brasil. Algo similar
ocorreu na carreira de Gilberto Gil que, conforme abordado no capítulo anterior,
aproximou das sonoridades da Black Music no álbum Refavela, lançado em 1977. Essa
aproximação se manteve nos próximos álbuns de Gil, conforme atestado pela jornalista
Ana Maria Bahiana nesse ano de 1979, no texto Importação e assimilação: Rock, soul,
discotheque: “a soul music veio marcar e interessar muitos trabalhos, sendo citada por
Caetano Veloso no LP Bicho (1977), incorporando-se totalmente às novas produções de
Gilberto Gil (Refavela, 1977, Nightingale, 1978, Realce, 1979)”.904 O texto foi
originalmente publicado no mesmo ano em que Gil lançou Realce, o último LP da trilogia
iniciada com Refazenda, em 1975. Nightingale, o lançamento anterior do artista, foi
produzido para o mercado estadunidense, reproduzindo canções lançadas no Refavela e
“Maracatu atômico”, lançada em 1973, e apresentando a faixa inédita “Sarará Miolo”, que
no Brasil foi apresentada no álbum Realce.

Sara, sara, sara, Sarará/ Sarará miolo/ Sara, sara, sara cura/ Dessa doença de
branco/ de querer cabelo liso/ já tendo cabelo louro/ Cabelo duro é preciso/ que é pra ser
você, crioulo,905 entoa os versos da canção “Sarará Miolo”, a segunda faixa de Realce. É
uma canção que dialoga com elementos do soul na sonoridade, e na temática faz uma
positivação dos cabelos crespos (mobilizando o termo pejorativo cabelo duro) e do
vocábulo crioulo, contrapondo a imposição social do processo de branqueamento em alisar
os cabelos. Realce, o álbum, tal como os outros dois da trilogia, difundia um conceito,
conforme exposto por Gil: “como um terceiro movimento, ‘Realce’ tinha a coisa da música
associada à cultura de massa, e ao brilho anônimo das pessoas na época da disco music”.906
Por isso, “Realce”, a canção, exaltava quanto mais purpurina melhor e, no texto escrito por
Gil na contracapa do álbum, é explicado: “Realce, uma maneira de dizer a luz geral.
Denominar o brilho anônimo, como um salário mínimo de cintilância a que todos tivessem
direito. Como a noite de discoteque após o dia de trabalho. Realce, uma maneira de dizer o

904
BAHIANA, Ana Maria. Importação e assimilação: rock, soul, discotheque. In: NOVAES, Adauto. Anos
70. Ainda sob a tempestade. 2005, p. 59.
905
Gilberto Gil. Sarará Miolo (Gilberto Gil). Realce. Álbum. Warner. 1979. <
https://www.youtube.com/watch?v=UskIGl19oB4>
906
Livreto. Gilberto Gil. Realce. Warner. 1979. (Coleção Gilberto Gil. 70 Anos. Vol. 1). Innovant. 2011, p.
6.
331

bem estar.” Seguindo tal conceito, a canção apresentava uma sonoridade disco e foi
gravada nos EUA, com músicos estadunidenses.

A aproximação de Gil com a Black Music foi explicitada no álbum Realce em mais
uma regravação de um clássico do cancioneiro brasileiro em versão funk, “Marina”, de
Dorival Caymmi - tal como foi feito com “Samba do avião” em Refavela. Segundo
Gilberto Gil, nas lembranças sobre o LP para os textos da Coleção Gilberto Gil 70 anos, de
2011, a gravação causou polêmica: “Porque muita gente achou que eu não podia ter feito
isso – funkeando ‘Marina’ e gritando daquele jeito – mas foi uma das que mais fez
sucesso! Os jovens adoravam aquela levada!”.907 A expressão de uma linguagem
antirracista, porém, ocorre na composição “Logunedé”, faixa de difícil caracterização
quanto à sonoridade, na qual Gil volta a afirmar a religiosidade de matriz africana e
apresenta uma divindade que, conforme o Dicionário de Cultos Afro-brasileiros é: “Orixá
filho de Ibualama ou Inlé (Oxóssi) e Oxum Pandá. Reúne as naturezas do pai e da mãe,
sendo seis meses jovem caçador e, nos outros seis, bela ninfa dos bosques que só come
peixe.”908 A letra de Gil proclama: É de Logunedé a doçura/ Filho de Oxum, Logunedé,
tanta ternura/ Logunedé é demais/ sabido, puxou aos pais/ astúcia de caçador/ paciência
de pescador/ Logunedé é demais/ Logunedé é depois/ Que Oxóssi encontra a mulher/ Que
a mulher decide ser/ A mãe de todo prazer.909

O álbum de 1979, Realce, documenta a adoção por Gilberto Gil de outra sonoridade
que expressa uma conexão transnacional entre experiências de comunidades negras no
continente americano: o reggae. Antonio Carlos Miguel, no livro Guia de MPB em CD:
uma discoteca básica da música popular brasileira, alega sobre Gil: “Admirador do
trabalho do cantor e compositor Bob Marley, foi um dos principais responsáveis pela
introdução do ritmo jamaicano no Brasil.”910 O antropólogo inglês Paul Gilroy, no livro O
Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência, apresenta a difusão do reggae como
exemplo da “inovação cultural transnacional diaspórica” a partir de Londres, e atribui a
inspiração para o surgimento do ritmo jamaicano ao sucesso do grupo estadunidense de

907
Livreto. Gilberto Gil. Realce. Warner. 1979. (Coleção Gilberto Gil. 70 Anos. Vol. 1.) Innovant. 2011, p.
21.
908
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 164.
909
Gilberto Gil. Logunedé (Gilberto Gil). Realce. Warner. 1979. Faixa 04, Lado B. <
https://www.youtube.com/watch?v=rgwQx9eLRRY>
910
MIGUEL, Antonio C. Guia de MPB em CD: uma discoteca básica da música popular brasileira. 1999,
p.131
332

doo wop e soul The Impressions no Caribe.911 Argumento instigante para pensar o contato
de Gilberto Gil com o gênero durante o seu período de exílio em Londres. Mas também no
Brasil a difusão do reggae é sugerida a partir do impacto da Black Music anglófona,
conforme referenciado pelo historiador Amílcar Araújo Pereira na obra O Mundo Negro:
Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil, ao
retratar as influências do contato com a música soul para a construção de identidades
negras no Brasil. Uma entrevista com o militante Carlos Alberto Medeiros, citada pelo
historiador, explícita essa conexão no Brasil: “Eu falo do soul e seus filhotes. O reggae é
um filhote do soul – o Bob Marley era cantor de soul.”912

A faixa do disco Realce que promoveu a interlocução com o ritmo jamaicano


apresentava a sonoridade do reggae com muita discrição, portanto, sendo mais próxima a
uma balada; contudo, era uma versão de “No woman, no cry”, sucesso do nome mais
emblemático do reggae, Bob Marley. A versão de Gil, batizada “Não chore mais”, foi
originalmente lançada em compacto em maio de 1979, 913 e, conforme o compositor: “‘Não
chore mais’ só foi incluída no álbum porque estava estourada.”914 O “estouro” da canção -
que significa o sucesso comercial do compacto - relaciona-se ao significado político
atribuído à composição. Conforme o sociólogo Marcelo Ridenti, no livro Em busca do
povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV, o compacto de Gil com “Não
chore mais” vendeu 750 mil cópias e virou um hino da anistia,915 a partir dos versos
amigos presos/ amigos sumindo assim/ pra nunca mais/ as recordações/ retratos do mal
em si/ melhor é deixar pra trás. Em 28 de agosto de 1979, foi aprovada a lei n°6.683, a Lei
da Anistia, que possibilitou o retorno ao Brasil de vários opositores políticos da ditadura
militar que estavam exilados.

Carlos Dafé lançou em 1979 Malandro Dengoso, seu terceiro e último LP na


Warner, no qual, em dez faixas, exibia um redirecionamento para a sonoridade do samba,
com diálogos com baladas soul na linha de Cassiano. Nenhuma faixa do álbum, contudo,
exibia temática racial. Já o cantor e compositor Jorge Ben lançou o seu segundo álbum pela
gravadora Som Livre, Salve Simpatia, disco que documentava a maior adoção pelo artista

911
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. 2012, p. 197.
912
PEREIRA, Amílcar Araújo. O Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 171.
913
Gilberto Gil. Não chore mais/Macapá. Compacto. Warner. 1979.
914
Livreto. Gilberto Gil. Realce. Warner. 1979. (Coleção Gilberto Gil. 70 Anos. Vol. 1.) Innovant. 2011, p.
13.
915
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. 2014, p.
386.
333

da sonoridade Black, a partir do soul e do funk – sonoridade característica de sua produção


nos anos 1980, embora a partir deste álbum seja apontado por críticos musicais o declínio
criativo da produção do artista. 916 As sonoridades soul e funk são explicitadas no
cancioneiro de Jorge a partir de então principalmente pela forma de utilização do
contrabaixo elétrico e dos naipes de sopros. Porém, Salve Simpatia também aproximava da
Disco, com os arranjos a cargo de Lincoln Olivetti. Este álbum apresenta uma canção que
se tornou conhecida no repertório do artista, “Ive Brussel”, cantada em dueto com Caetano
Veloso; e uma canção que expressa a linguagem antirracista característica do compositor, a
balada soul “Menina crioula”, que novamente positiva o termo “crioula” e valoriza a
beleza negra nos versos Essa menina crioula tá demais/ a sua pele negra/ macia e
aveludada/ é demais/ Vai ser bonita assim lá em casa/ vai ser dengosa assim lá em casa/
Clássica crioula/ meiga mulher/ de pura raiz/ tens o andar de uma guerreira/ Crioula/ tens
no sangue um vulcão/ tens um gesto de princesa.917

O ano de 1979, contudo, apresentou um fenômeno inovador para a indústria


fonográfica brasileira, com o impacto da produção independente. Segundo Marcia Tosta
Dias, há registro de produção fonográfica no Brasil fora do circuito das majors - as grandes
gravadoras - desde o início dos anos 1960. No entanto, o impacto comercial e de crítica de
tal produção adquiriu novos contornos em 1979, com o lançamento do álbum Boca Livre,
do grupo homônimo - integrado pelos violonistas, compositores e vocalistas Cláudio
Nucci, David Tygel e José Renato, e o baixista, compositor, vocalista e arranjador vocal
Maurício Maestro. O álbum, produzido por Boca Livre Produções e Gravações Ltda.,
apresentou canções que até hoje são as mais conhecidas do grupo, como “Quem tem a
viola”, “Toada (na direção do dia)”, “Mistérios”, “Diana” e “Feito mistério”.918 Para
Marcia Tosta Dias: “O Boca Livre chegou a provocar uma espécie de ‘boom’, já que
parece ter sido o que mais vendeu discos independentes. Criou-se até a distribuidora
independente a partir de seu sucesso de vendas.”919 E conforme o historiador Marcos
Napolitano, o grupo carioca Boca Livre foi “o grupo de maior sucesso do movimento
independente (...), formado em 1978 e que explodiu em 1980 com um LP que vendeu mais

916
< https://www.vagalume.com.br/news/2012/03/22/jorge-ben-jor-completa-70-anos-confira-algumas-das-
revolucoes-que-ele-fez-em-nossa-musica.html> e < https://blogdomauroferreira.blogspot.com/2009/12/salve-
jorge-e-sua-obra-fundamental-para.html> Acesso 15/08/2021.
917
Jorge Ben. Menina Crioula (Jorge Ben). Salve simpatia. Álbum. Som Livre. 1979. Faixa 02, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=CWUtAwKMV-U>
918
Boca Livre. Boca Livre. Álbum. Independente. 1979. Reedição em CD. Warner. 1998.
919
COSTA, I. C. Apud. DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização
da cultura. 2008, p. 136.
334

de 80 mil cópias (feito notável para um álbum que não teve o apoio de uma grande
gravadora e distribuído de ‘porta em porta’).”920

O epicentro da produção fonográfica independente - ou, ao menos, daquela que


adquiriu maior notoriedade -, no entanto, ocorreu em São Paulo, de modo que a cena
alternativa, para além do impacto do Boca Livre, ficou consagrada através do termo
“vanguarda paulista”. Novamente conforme Marcos Napolitano: “Propondo uma
linguagem poética musical anticonvencional e mesclando música erudita de vanguarda,
rock e MPB, a nova música (também conhecida como ‘vanguarda paulista’) parecia
retomar as experiências mais radicais do Tropicalismo que a MPB mais aceita no mercado
tinha deixado de lado.”921 Os artistas independentes de São Paulo fizeram de um espaço
físico um centro de aglutinação e irradiação, o Centro de Artes Lira Paulistana, que,
conforme o livro de Marcia Tosta Dias, “surgiu da intenção de oferecer uma programação
cultural alternativa a um público insatisfeito com o show business instituído.”922 Prossegue
a socióloga:

As atividades do Teatro Lira Paulistana possibilitaram o funcionamento da Lira


Paulistana Gravadora e Editora, responsável pelo selo fonográfico e pelo jornal
de mesmo nome (“tablóide semanal de roteiros e serviços”). Depois de realizar
vários lançamentos independentes, financiados pelos músicos e co m algum
investimento da empresa, o selo associou-se, em 1983, à gravadora Continental.
Na justificativa apresentada, exaltava-se o fato de ser a Continental “a maior
gravadora de capital totalmente nacional”. Em outubro de 1983, o selo totalizava
23 lançamentos.

Ao grave problema da distribuição, os artistas respondiam com o trabalho


artesanal: além da venda de discos nos shows, tentavam distribuí-los,
pessoalmente, às lojas ou vendê-los por reembolso postal. Com o aumento dos
títulos produzidos de maneira independente e o relativo sucesso de vendas de
alguns (...) foi fundada a Independente Distribuidora de Discos e Fitas, numa
tentativa “de distribuir de forma prática e comercial os discos independentes”. 923

O cenário de fortalecimento das gravações independentes dialogava com o contexto


de redirecionamento da indústria fonográfica, mencionado outrora neste capítulo. Afinal, a
possibilidade de gravação artesanal permite escapar tanto do afunilamento de contratações
por parte das majors, quanto das maiores chances de interferência na produção artística de
novos artistas, devido à maior preocupação com os retornos comerciais pelas direções

920
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 204.
921
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 203. Importante não
confundir essa “vanguarda paulista” da nomenclatura dada ao trabalho de Elza Soares a partir de 2015,
conforme citado na introdução do primeiro capítulo desta tese.
922
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2008,
p.140.
923
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2008,
p.142.
335

artísticas. De tal forma, as gravações lançadas pela cena independente muitas vezes
apresentavam maior grau de ousadia e experimentação, como os casos dos nomes da
“vanguarda paulista”: Arrigo Barnabé, o Grupo Rumo, Premeditando o Breque e Itamar
Assumpção – o único negro entre os artistas independentes então citados. E, no caso de
Itamar Assumpção, a experimentação de sua produção musical incluía um uso expressivo
das sonoridades da Black Music. O artigo Música popular experimental: Itamar
Assumpção, a vanguarda paulista e a tropicália, de Sean Stroud, informa sobre o cenário
de liberdade criativa na produção independente, ao comparar a boa recepção de crítica ao
primeiro lançamento fonográfico de Itamar e a dificuldade do artista de se inserir nas
grandes gravadoras:

O que é bem intrigante é como essa aprovação unânime da imp rensa da música
de Assumpção estava diametralmente oposta à maneira como ele foi rejeitado
categoricamente por inúmeros grandes selos musicais durante o final da década
de 1970. Essa rejeição centrava-se na percepção da falta do elemento comercial
em sua música e no fato de os executivos fonográficos serem incapazes de
classificá-lo adequadamente. Segundo o próprio Assumpção, quando fazia
audições para os executivos fonográficos, eles com frequência lhe perguntavam
se não tinha “alguns sambas” em seu repertório, além da música mais
idiossincrática que tocava para eles.924

A citação de Sean Stroud revela que Itamar Assumpção enfrentou, em sua


experiência de tentativa de inserção nas grandes gravadoras, uma pressão similar àquela
sofrida por Zezé Motta para circunscrição de sua produção artística ao rótulo de sambista,
reproduzindo o “lugar de negro” na produção musical brasileira. A diferença é que as
expectativas comerciais para as gravações de Zezé foram ampliadas pelo sucesso da artista
enquanto atriz, de modo que a pressão se tornou mais forte após a pouca vendagem do
primeiro LP. Como Itamar não tinha uma “moeda de barganha” similar, suas
oportunidades para gravação foram negadas. No entanto, a cena independente lhe permitiu
a gravação conforme sua proposta artística:

A liberdade criativa concedida pelo proprietário do selo Lira Paulistana a


[Itamar] Assumpção resultou no lançamento do LP Beleléu, Leléu, Eu em 1980,
uma mistura altamente inovadora de rock, funk, reggae e MPB. Apesar da
pequena escala desse primeiro lançamento, a reputação de Assumpção como um
intérprete vibrante nas apresentações ao vivo indicava que ele estava construindo
uma reputação para si, e seu primeiro LP recebeu críticas positivas unânimes na
imprensa a tal ponto que, em 1981, ele foi saudado pela revista Veja como “um
dos maiores talentos da música brasileira do momento”. 925

924
STROUD, Sean. Música popular experimental: Itamar Assumpção, a vanguarda paulista e a tropicália.
Trad.: Saulo Adriano. In: Revista USP, São Paulo, n.87, p. 86-97, set/nov. 2010, p. 91.
925
STROUD, Sean. Música popular experimental: Itamar Assumpção, a vang uarda paulista e a tropicália.
Trad.: Saulo Adriano. In: Revista USP, São Paulo, n.87, p. 86-97, set/nov. 2010, p. 90.
336

Rosa Aparecida do Couto Silva, na tese Itamar Assumpção e a encruzilhada urbana:


negritude e experimentalismo na vanguarda paulista, aprofunda a compreensão sobre a
obra do artista. Segundo a historiadora: “Em 1980 Itamar Assumpção concorreu com a
música Nego Dito no Festival Feira da Vila Madalena, tendo alcançado a terceira
colocação numa final disputada com o Jorge Matheus e Celso Machado.”926 Deste
resultado, surgiram duas oportunidades de gravação. Na primeira, “Nego dito” foi
escolhida como faixa de abertura do LP lançado pela gravadora Continental com as demais
composições vencedoras do festival; e a segunda foi o convite de um dos integrantes do
júri do festival, Wilson Souto – um dos fundadores do Lira Paulistana – para que Itamar
gravasse um álbum solo. E, ainda conforme a historiadora, tal oportunidade permitiu a
Itamar atuar como produtor de seu primeiro LP: “Em decorrência destes fatos, o primeiro
disco de Itamar Assumpção, intitulado Beleléu Leléu Eu, seria gravado em 1981, sem o
suporte financeiro de uma major, com o músico participando e opinando ativamente de
todo o processo de produção, da capa à mixagem.”. 927

Fig. 27. Capa e contracapa. Itamar Assumpção. Beleléu Leléu Eu. Álbum. Selo Lira Paulista. 1980. Extraídas
de: < https://www.fatiadodiscos.com.br/pd-79cdb0-lp-itamar-assumpcao-e-banda-isca-de-policia-
beleleu.html>

O álbum Beleléu Leléu Eu. Isca de Polícia, de Itamar Assumpção, apresenta como
faixa síntese e principal a composição “Nego Dito”, não apenas por seu resultado no
Festival Feira da Vila Madalena e gravação pela Continental, mas também por apresentar o
personagem que conduz a história narrada no álbum. Desde a primeira faixa do álbum,
“Vinheta I”, a audição do disco fornece a apresentação do protagonista: Benedito João dos

926
SILVA, Rosa Aparecida do Couto. Itamar Assumpção e a encruzilhada urbana: negritude e
experimentalismo na vanguarda paulista. Tese (His tória). Universidade Estadual Paulista. 2020, p. 24.
927
SILVA, Rosa Aparecida do Couto. Itamar Assumpção e a encruzilhada urbana: negritude e
experimentalismo na vanguarda paulista. Tese (História). Universidade Estadual Paulista. 2020, p. 25.
337

Santos Silva, Beleléu/ Vulgo Nego Dito, Nego Dito, Cascavé.928 Esses mesmos versos de
apresentação são repetidos no final do Lado A do disco, na “Vinheta 2”, na abertura do
Lado B, na “Vinheta 3” e, enfim, na faixa final do álbum, “Nego Dito”, que narra mais
detalhadamente sobre a persona.

Rosa Aparecida do Couto Silva apresenta em sua tese as implicações sociais e


políticas da figura enquanto uma imagem de Itamar: a “criação do personagem Nego Dito,
seu alter-ego anti-herói-exu, elementos necessariamente calcados na experiência histórica
da diáspora, de sua posição como homem negro em um país que estava passando,
lentamente, por um processo de abertura política, saindo de um extenso período de
ditadura militar.”929 Beleléu, o Nego Dito, é um homem à margem da lei, agressivo e
explosivo, que atua como músico junto de sua banda, Isca de Polícia, conforme indicado
no título do disco e na faixa “Nego Dito”. A agressividade já é apresentada na faixa 02 do
álbum, “Luzia”, na qual, em uma discussão conjugal, o - assim denominado - Beleléu
ameaça: Deixa de conversa mole, Luzia/ Porque senão eu vou desconsertar a sua
fisionomia e, alguns versos depois, reafirma a ameaça de agressão física: você quer
harmonia, mas que harmonia? / Só me enche o saco/ me obriga a mais cruel solução/
desço pro porão da vil covardia, mas te meto a mão.930 A marginalidade é afirmada pouco
após, na faixa “Fico louco”, nos versos: Espero ouvir você dizer que gosta de viver em
perigo/ considerando que eu não seja nada mais além de bandido; em uma faixa que
apresenta na letra e em sua sonoridade o diálogo com o reggae: Espero ver você curtindo o
reggae desse rock comigo.931 Tal como todas as faixas do disco, essas duas apresentam os
timbres de bateria, percussão, guitarra, baixo, piano e vocais femininos para apoio e
duetos.

A faixa de encerramento do disco, “Nego Dito”, narra o momento em que Beleléu e a


banda Isca de Polícia resolveram se entregar depois de um longo período de resistência.
Na descrição do personagem, aparecem referências ao estereótipo racial pejorativo ao
cabelo crespo: Tenho o sangue quente/ não uso pente, meu cabelo é ruim/ Fui nascido em
Tietê/ Pra provar pra quem quiser ver e comprovar/ Me chamo Benedito João dos Santos

928
Itamar Assumpção. Vinheta I (Itamar Assumpção). Beleléu Leléu Eu. Isca de Polícia. Álbum. Selo Lira
Paulistana. 1980. Faixa 01, Lado A.
929
SILVA, Rosa Aparecida do Couto. Itamar Assumpção e a encruzilhada urbana: negritude e
experimentalismo na vanguarda paulista. Tes e (História). Universidade Estadual Paulista. 2020, p. 19, 20.
930
Itamar Assumpção. Luzia (Itamar Assumpção). Beleléu Leléu Eu. Isca de Polícia. Álbum. Selo Lira
Paulistana. 1980. Faixa 02, Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=V1BDQxxccGo>
931
Itamar Assumpção. Fico Louco (Itamar Assumpção). Beleléu Leléu Eu. Isca de Polícia. Álbum. Selo Lira
Paulistana. 1980. Faixa 04, Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=H6cKOPM_onU>
338

Silva Beleléu, Vulgo Nego Dito.932 O álbum de estreia de Itamar Assumpção não veicula as
linguagens antirracistas pela temática das canções, mas é expressivo na interlocução com a
Black Music a partir da produção independente. Para a historiadora Rosa Aparecida do
Couto Silva, porém, a faixa “Nego Dito” traz importantes elementos de representações
sociais dirigidas às pessoas negras no Brasil, posto “que concatena em si alguns
estereótipos colados à imagem de negras e negros, considerados violentos, imprevisíveis e
pouco confiáveis.”933 No entanto, conforme será apresentado neste tópico, a referência à
figura do Nego Dito, Beleléu, em outros trabalhos de Itamar permitirá aprofundar a
reflexão sobre representações raciais.

Contudo, voltando à análise da produção das grandes gravadoras, um conjunto de


lançamentos configurou o repertório da Black Music Brasileira no ano de 1980. Zezé Motta
lançou pelo grupo WEA (que reunia a Warner e a Atlantic – pela qual foram lançados os
LPs da cantora) seu terceiro álbum, Dengo. A contracapa do disco já sugeria um rumo
diferente do seguido no álbum anterior, ao informar a produção por Perinho Albuquerque
(guitarrista conhecido por seu trabalho com artistas tropicalistas, como Caetano Veloso,
Gilberto Gil e Gal Costa, além de Luiz Melodia) e direção artística do pesquisador musical
Sérgio Cabral. E um grupo fixo de músicos, integrado pelo pianista Tulio Mourão (que
havia integrado o grupo de rock progressivo Mutantes), Claudio Guimarães nas guitarras e
violões, Luizão no baixo, Enéas Costa na bateria, Bira da Silva na percussão, Jorginho na
flauta, Juarez Araujo no sax tenor e Chiquinho no acordeão. A capa do encarte do disco
(constando as letras das músicas) demonstrava ousadia, ao exibir uma foto do busto nu de
Zezé, com os seios livres.

A audição do álbum Dengo exibe um retorno de Zezé a uma sonoridade eclética, aos
moldes da exibida em seu LP de estreia. A temática predominante é a do romance, como
nas baladas “Remendos”, “Cais escuro” e “Sem essa”, e no samba “Fez bobagem”. E
também faixas de reflexões existenciais, como em “Bola de meia, bola de gude”, composta
por Milton Nascimento e Fernando Brant e gravada no mesmo ano pelo grupo de rock
progressivo 14 Bis. Interlocuções com a sonoridade soul apareciam no baixo e guitarra de
“Sete faces”, de Gonzaguinha, e no baixo e piano elétricos e nos arranjos de metais de
“Oxum”, composição de Johnny Alf em veneração a orixás, que abre o Lado B do disco:

932
Itamar Assumpção. Nego Dito (Itamar Assumpção). Beleléu Leléu Eu. Isca de Polícia. Álbum. Selo Lira
Paulistana. 1980. Faixa 06, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=9zczdWyVO_Y>
933
SILVA, Rosa Aparecida do Couto. Itamar Assumpção e a encruzilhada urbana: negritude e
experimentalismo na vanguarda paulista. Tese (História). Universidade Estadual Paulista. 2020, p. 34.
339

Oxum, senhora bonita/ Xangô não lhe resistiu/ Oxum, senhora bendita/ Meu canto de fé/
Por seu encanto sentiu/ Eu estava na cachoeira/ e o sol logo refletiu/ e em pingos
resplandecentes/ de ouro, seu leque surgiu/ Ora yê yê Oxum, minha mãe.934 E também no
forte baixo elétrico do baião “Poço fundo”, composição de Gilberto Gil na qual o eu-lírico
reflete sobre a imagem de si diante do ser desejado: Será que assim mereço parecer/ uma
montanha negra/ consagrada ao rito/ dos pactos de amor/ que faço em mim/ pareço com
uma pedra bruta/ preta de granito/ mereço mesmo parecer assim? (...) Pergunto porque
embora a aparência um pouco fria/ nunca estou feia/ nunca estou vazia.935 As referências
a uma montanha negra e à pedra preta de granito, cantadas por uma mulher negra e
compostas por um homem negro explicitam um teor racial que afetam a representação de si
e o olhar do outro em uma relação conjugal.

O compositor da faixa “Poço fundo”, Gilberto Gil, em 1980 não lançou um álbum. O
artista enfrentava uma separação conjugal e anunciou um ano com poucas apresentações -
embora realizou alguns shows com o cantor jamaicano Jimmy Cliff, um expressivo nome
do reggae, e gravaram em dupla um programa especial para a TV Globo. 936 Tim Maia
lançou pela Polydor mais um álbum homônimo, como sucessor de Reencontro, disco
lançado na EMI Odeon em 1979, sem repercussão. Como nos antecessores, Tim Maia
(1980) foi um LP de roupagem disco, com doses de soul e funk e participação expressiva
de Lincoln Olivetti, no qual saiu uma composição que se tornou célebre no repertório do
cantor, “Você e eu, eu e você (juntinhos)”. 937 O disco ainda trouxe uma participação de
Cassiano, que fez vocais de apoio e tocou guitarra na sua composição “Não fique triste”.
Mas, assim como no LP anterior, não trazia referências raciais nas letras das composições.

Alguns artistas da Black Music Brasileira referenciados nos capítulos anteriores e que
não haviam feito lançamentos fonográficos em 1979 retornaram em 1980. Elza Soares
lançou seu primeiro e único álbum pela gravadora CBS. O LP Elza negra, negra Elza
apresentava doze canções distribuídas em dez faixas (a última faixa reunia três
composições), cinco delas compostas por Gerson Alves, que também assinou a produção
artística do álbum. Como no álbum anterior, Pilão+raça = Elza, de 1977, apenas uma
faixa do LP de 1980 apresentava scats, “É isso aí”. Predomina a sonoridade convencional

934
Zezé Motta. Oxum (Johhny Alf). Dengo. Álbum. Atlantic/WEA. 1979. Faixa 01, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=5djb8hJvBlI>
935
Zezé Motta. Poço Fundo (Gilberto Gil). Dengo. Álbum. Atlantic/WEA. 1979. Faixa 05, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=tbszuJW1meI>
936
< https://gilbertogil.com.br/bio/gilberto-gil/> Acesso 17/08/2021.
937
Tim Maia. Reencontro. Álbum. Emi-Odeon. 1979. Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1980.
340

de sambas, embora o LP apresente maior uso da instrumentação elétrica do que os


trabalhos anteriores de Elza. A terceira faixa do lado A, “Timbó”, composição de Ramon
Russo, é executada em guitarra, teclado, baixo elétrico e bateria e narra a história de um
grande feiticeiro, vindo de solo africano para o rincão brasileiro (...) um dia Timbó
faleceu/ e do germe sangue na terra nasceu/ a Tulipa negra dos sonhos meus,938 canção
que valoriza ascendência africana. A sonoridade elétrica (baixo, órgão e piano elétricos,
além de violão, bateria jazzística e violão) também predomina na canção lenta, de
inspiração gospel, “Oração de duas raças”, composição de Gerson Alves que veicula a
Linguagem Política Negra Antirracista, em uma interpretação pungente:

Deus quando criou o mundo/ fez tudo como devia ser/ criou uma filosofia/
crescer, multiplicar e morrer/ Criou os dez mandamentos/ para o mundo ser fiel/
assim seja a vossa vontade/ com sinceridade como é lá no céu/ Não devemos
criticar nossos semelhantes/ Devem se manter distante das coisas alheias
também/ Não deve haver distinção de ambiente nem cor/ tanto o negro como o
branco tem o mesmo sangue/ sente a mesma dor/ No ambiente em que vive um
branco/ pode haver um negro a mais/ O importante na vida/ aqui somos todos
iguais/ E quando acontece uma guerra/ morre o negro e morre o branco/ chora
toda a humanidade/ sem saber a cor do pranto/ a mente fica confusa/ a guerra é
um desespero/ e não se escolhe pela cor/ gente pra morrer primeiro. 939

Embora a maioria das composições de Gerson Alves gravadas por Elza no álbum de
1980 fossem sambas de sonoridade considerada mais convencional à época, na canção
“Oração de duas raças” utilizou-se a sonoridade gospel, de origem estadunidense. Assim, a
mensagem antirracista que prega a igualdade entre pessoas negras e pessoas brancas era
comunicada na canção em interlocução com a Linguagem Política do Orgulho Negro.

Luiz Melodia lançou seu quarto álbum, Nós, em uma terceira gravadora. Após estrear
na Philips, em 1973, e lançar os dois álbuns seguintes na Som Livre, em 1976 e 1978,
agora o artista gravava pela Warner. O álbum abre com “Ilha de Cuba”, composição de
Papa Kid em sonoridade latina, com arranjos e teclados por Lincoln Olivetti. Contudo, a
sonoridade que predomina no álbum é da Black Music, como o blues (“Segredo”) e
particularmente o Soul. Os músicos são ligados à Banda Black Rio, como o saxofonista
Oberdan Magalhães (que toca em 7 das 9 canções do LP), o baterista Luiz Carlos, o
baixista Jamil Joanes e o trombonista Serginho Trombone. Como característico da
produção do artista, a sonoridade soul é hibridada a outros gêneros, em um álbum que
destaca os trabalhos de guitarra realizados por Perinho Santana, em todas as faixas. O disco
não apresentou composições que abordassem linguagens antirracistas, embora Luiz

938
Elza Soares. Timbó (Ramon Russo). Elza negra, negra Elza. Álbum. CBS. 1980. Faixa 03, Lado A.
939
Elza Soares. Oração de duas raças (G. Alves). Elza negra, negra Elza. Álbum. CBS. 1980. Faixa 5, Lado
A. < https://www.youtube.com/watch?v=W5o8MnbT930>
341

regravou e personificou “Negro gato”, composição de Getúlio Cortês originalmente


lançada por Roberto Carlos nos anos 1960, que se tornou, para Luiz Melodia, um
manifesto de afirmação de autoestima: eu sou o negro gato.940

O compositor de “Negro Gato”, Getúlio Cortês, obteve destaque no capítulo anterior


desta tese como autor de “Sou Negro”, do refrão sou negro, sim, mas ninguém vai rir de
mim, gravada por Toni Tornado, um explícito manifesto antirracista e de autoestima. O
compositor também é irmão de Gerson Cortês, o Gerson King Combo, que em 1980 lançou
sua última gravação localizada no recorte temporal desta pesquisa, o compacto “Melô do
Mão Branca”. O compacto não era atribuído ao cantor da faixa, Gerson, mas sim ao
personagem Mão Branca e a composição do funk creditada a Rocha, Carmem e Barros.

Alô/ aqui é o Mão Branca/ eu liguei pra dizer que/ esses bandidos, soltos, cruéis
e vagabundos que andam perturbando por aí/ Daqui pra frente é bom tomar
muito cuidado porque o Mão Branca está aqui/ Eles se escondem e pensam que
estão muito seguros, mas sou o dono da situação/ estou lá em cima, lá em baixo,
na frente, atrás do muro, sozinho valho mais que um esquadrão/ Eles assaltam,
batem, matam e violentam, criando um império do terror/ mas são covardes,
fracos, vivem implorando: “Mão Branca, não me mate, por favor”/ Há... É,
gente boa! /Vou dançar todos eles! / (Mas quem é que está falando, quem é
você? /Quem sou eu? Deixa comigo, vou mostrar quem sou!) /A bandidagem
agora, é bom sair das ruas, estou limpando a área pra valer/ Quem tiver culpa,
se manda, ou manda comprar velas, porque vai ser o próximo a morrer/ Olho de
Lince, Pelado, e um forte Manto Negro, são homens que me seguem até o fim/
São gente fina, não gostam de muita violência, mas hoje a gente tem que ser
assim/ Rá, tá, tá! Pá, pá! Zim, ká, ti, bum! São sons que você tem que acostumar/
Essa é a busca que toca a dança do Mão Branca, botando os bandidos pra
dançar/ Ah, há, há, há/ Quero avisar que na baixada estão esperando pelo
Senhor dois presuntinhos desovados... à moda da casa/ É bom ir conferir agora!
/Aqui me despeço, mas amanhã tem mais!941

A longa letra é recitada na canção de forma similar ao gênero musical Rap, com a
base musical em sonoridade funk. A canção interpretava e nitidamente exaltava uma figura
temida do período, posto que Mão Branca era o nome de um Grupo de Extermínio,
formado por policiais e que operava na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Lucas
Pedretti Lima, na dissertação Bailes Soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na
década de 1970, ao pesquisar a documentação da Censura Federal, localizou nos primeiros
meses de 1980 ao menos quatro músicas sobre o Mão Branca: “Todas as obras possuíam
letras semelhantes, com elogios à atuação dos assassinos e menções à prática que o grupo
possuía de ligar para as delegacias e jornais a fim de avisar onde haviam deixado

940
Luiz Melodia. Negro Gato (G. Cortês). Nós. Álbum. Warner 1980. Fx. 05, Lado A. CD. Discobertas,
2012.
941
Mão Branca (G. King Combo). Melô do Mão Branca (Rocha, Carmem, Barro). Compacto. Sinter. 1980.
< https://www.youtube.com/watch?v=tqcShL0WZps >
342

corpos.”942 O historiador conclui, em relação à gravação da “Melô do Mão Branca” por


Gerson King Combo:

Os esquadrões da morte e os grupos de extermínio faziam parte da experiência


cotidiana e do imaginário dos jovens frequentadores dos bailes soul - público de
Gerson King Combo. E, como indica a baixa vendagem do disco, o tom
apologético da música cantada por Combo não parecia estar de acordo com o que
eles sentiam em relação àqueles grupos.943

A intelectual Lélia Gonzalez, no artigo Racismo e sexismo na cultura brasileira, faz


referência ao grupo de extermínio Mão Branca, explicitando que o principal alvo da
violência desse grupo eram homens negros jovens e periféricos - coincidindo com o
público dos bailes. A essa parcela população, o estigma da criminalidade orienta ações
policiais discriminatórias, de forma que os jovens negros eram - e ainda são - 944 maioria
entre a população carcerária:

Mas é justamente aquela negra anônima, habitante da periferia, nas baixadas da


vida, quem sofre mais tragicamente os efeitos da terrível culpabilidade branca.
Exatamente porque é ela que sobrevive na base da prestação de serv iços,
segurando a barra familiar praticamente sozinha. Isso porque seu homem, seus
irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição policial sistemática (esquadrões
da morte e “mãos brancas” estão aí matando negros à vontade; observe -se que
são negros jovens, com menos de trinta anos. Por outro lado, que se veja quem é
a maioria da população carcerária deste país).945

Portanto, a referência ao Mão Branca, para muitas pessoas, sobretudo as periféricas e


negras, não evocava um grupo justiceiro urbano, que trabalhasse pela segurança pública;
mas a ameaça de assassinato de si ou de pessoas queridas, por um grupo de extermínio. O
estigma da criminalidade alimentado pelo imaginário de discriminação racial propiciava
que pessoas negras, sobretudo homens jovens, fossem (e ainda sejam) presos ou
assassinados pelas forças do Estado injustamente. E, mesmo quando culpados por crimes, a
legislação brasileira não previa a pena de morte, tornando a ação sumária de abordagem,
julgamento e execução feita pelos grupos de extermínio inaceitável. Realizada tal reflexão,
compreende-se que a última gravação fonográfica de Gerson King Combo no recorte
temporal desta tese esteja contraposta aos princípios defendidos pelas expressões
antirracistas.

942
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes Soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970.
Dissertação (História). Pontífica Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. 2018, p. 114.
943
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes Soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970.
Dissertação (História). Pontífica Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. 2018, p. 115.
944
Segundo dados do Infopen, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo e, nesta, 64% são
negros e 55% jovens – que são 21,5% da população brasileira. Ver: BORGES, Juliana. O que é
encarceramento em massa? 2018, p. 13, 14.
945
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afro-latino-
americano. Ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 83. Texto original de 1983.
343

Na produção fonográfica do ano 1980 também há o retorno da Banda Black Rio, que
lançou seu terceiro álbum - e último no recorte desta tese -, Saci Pererê, o segundo pela
RCA Victor; além do compacto simples Saci Pererê/Amor natural, lançado pela mesma
gravadora. Esse álbum apresenta uma mudança na sonoridade da banda, com a inclusão de
três baladas (“De onde vem”, “Amor natural” e “Tem que ser agora”), além de manter a
adoção da Disco Music, em particular na música “Miss Cheryl” e na balada “De onde
vem” - composta por Lincoln Olivetti e Ronaldo Barcellos. A canção “Amor natural”
integrou a trilha sonora da telenovela Marina, exibida pela Rede Globo entre 26/05/1980 e
08/11/1980.946 As faixas cantadas no disco apresentavam dois vocalistas, creditados como
Abóbora e Gerson, e nova mudança na formação do grupo, agora com Décio Cardoso no
baixo, Paulinho Braga na bateria e Carlos Darcy no trombone; mantendo o líder Oberdan
Magalhães nos saxofones, Barrosinho no trompete, Claudio Stevenson na guitarra e Jorjão
Barreto no teclado e vocais.

Das nove músicas que integraram o álbum Saci Pererê, seis apresentavam letra
cantada (“Saci Pererê”, “De onde vem”, “Amor natural”, “Profissionalismo é isso aí”,
“Broto sexy” e “Tem que ser agora”) e em nenhuma delas apareciam referências à temática
racial. Contudo, a gravação de “Profissionalismo é isso aí”, composição de João Bosco e
Aldir Blanc que na performance da Banda Black Rio tornou-se um samba-funk, retomava a
temática marginal da criminalidade, mas trazendo elementos interessantes sobre o
cotidiano econômico na época:

Era eu e mais dez num pardieiro/ no Estácio de Sá/ fazia biscate o dia inteiro/
pra não desovar/ E quanto mais apertava o cinto/ mais magro ficava com as
calças caindo/ Sem nem pro cigarro, nenhum pra rangar/ Falei com os dez no
pardieiro/ do jeito que tá, com a vida pela hora da morte e vai piorar/ Imposto,
inflação, cheirando a assalto/ juntamo as família na mesma quadrilha/ nos
organizamo pra contra assaltar/ Fizemos a divisão dos trabalhos/ Mulher,
suadouro, trotuá/ Pivete nas missas, nos sinais/ marmanjo, no arrocho, pó,
chantagem/ balão apagado, tudo o que pintar/ (...) Tenteia, tenteia/ com berro e
saliva fizemo o pé-de-meia/ (...) Hoje tenho status, mordomo, contatos/ pertenço
à situação/ Mas não esqueço os velhos tempos/ Domingo numa so lenidade/ uma
otoridade me abraçou/ bati-lhe a carteira, nem notou/ levou meu relógio e eu
nem vi/ já não há lugar pra amador.947

Através de uma letra bem humorada escrita por Aldir Blanc, a canção
“Profissionalismo é isso aí” abordou a adoção de diversas atividades criminosas como
opção encontrada por um grupo de pessoas para amenizar, ou solucionar, uma situação de
carência. E os últimos versos indicados da canção ainda sinalizam para a corrupção de
946
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/marina-1980/> Acesso 17/08/2021.
947
Banda Black Rio. Profissionalismo é isso aí (J. Bosco/A. Blanc). Saci Pererê. RCA/Victor. 1980. Faixa 2,
Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=-q5jRwFB0bM>
344

autoridades, visto que o personagem, agora remediado e com status, descobre-se um


amador no ramo dos furtos ao tentar roubar a carteira de uma otoridade e perceber que a
mesma tomou o seu relógio. O enredo da canção e a “solução” proposta pelos
compositores encontram particular sentido no contexto de sua produção e difusão, com o
agravamento da crise econômica vivida no Brasil desde o fim do dito “milagre econômico”
piorando ainda mais o cotidiano de anos de aperto entre as comunidades pobres do país.
Conforme o historiador Marcos Napolitano: “Agravado pela política de arrocho salarial, o
aumento dos preços de itens de consumo e aluguéis se agravou a partir de 1975, quando a
inflação voltou a ser notada. Nascia o Movimento do Custo de Vida (MCV)”948 O
historiador refere-se ao movimento social que a partir de 1979 foi renomeado para
Movimento de Luta Contra a Carestia, em denúncia a efeitos dos anos de aperto.

O eu-lírico da canção ainda demonstra sagacidade na previsão expressa no verso do


jeito que tá, com a vida pela hora da morte e ainda vai piorar, associando aos impostos e
inflação. Se a situação econômica das parcelas pobres da sociedade brasileira estava difícil
nos anos de aperto do “milagre econômico”, piorou com o país mergulhado em uma crise
econômica e a desigualdade social aprofundou ainda mais nos anos 1980. Conforme o
sociólogo Mario Luis Grangeia, no artigo Pátria amada, não idolatrada: o Brasil no rock
dos anos 1980/1990: “A alta concentração de renda não era uma percepção subjetiva; o
país entrara naquela década com coeficiente de Gini 0,584 (1981) e a encerrou com tal
medida de desigualdade de renda no patamar de 0,614 (1990), recuando para 0,594 até
1999 (índice 1 seria desigualdade máxima).”949 E, tal como em toda sociedade marcada por
hierarquias racializadas, as comunidades negras sofreram particularmente no cenário de
crise econômica.

Em 1963, o pastor e liderança do Movimento pelos Direitos Civis nos EUA, Martin
Luther King, afirmou em um discurso que o modelo de segregação racial vigente pelas
Leis Jim Crow no sul do país manifestava-se no norte democrático do país através dos
acessos desiguais e precários à empregos, moradia e escolas públicas. 950 A percepção da
desigualdade em uma sociedade na qual pessoas negras são preteridas apesar do
pressuposto de igualdade cabe perfeitamente para o Brasil, como argumentado em diversos

948
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 274.
949
GRANGEIA, Mario L. Pátria amada, não idolatrada: o Brasil no rock dos anos 1980/1990. In:
FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia A N. (orgs.). O Brasil Republicano. Vol. 5. O tempo da Nova
República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-2016). 2018, p. 367.
950
LUTHER KING, Martin. Discurso no comício pela liberdade no Cabo Hall. Um apelo à consciência: os
melhores discursos de Martin Luther King. 2006, p. 63-64.
345

artigos da intelectual Lélia Gonzalez. Por exemplo, em A juventude negra brasileira e a


questão do desemprego, original de 1979, a autora afirma: “Existem atualmente no Brasil
cerca de 16 milhões de adolescentes e jovens totalmente entregues à própria sorte, sem a
menor perspectiva de vida; ou melhor, sua única perspectiva são o banditismo e a morte.
Desnecessário dizer que são negros em sua maioria.”951 Argumento que aproxima da
“solução” encontrada pelos personagens da canção “Profissionalismo é isso aí”. E a
explicitação da desigualdade para obtenção de empregos, agravada pelo cenário de crise, é
percebida no texto publicado por Lélia Gonzalez em 1982, A mulher negra na sociedade
brasileira: uma abordagem político econômica, texto que ainda permite diálogo com a
“Melô do Mão Branca” ao referenciar a violência policial:

Ora, numa sociedade em que a discriminação racial é vist a diariamente na


admissão no emprego (especialmente no atual período de recessão), pode -se
imaginar a única saída que o trabalhador afro-brasileiro encontra: sem outra
forma de escapar da violência policial, ele vende seu trabalho a qualquer preço
para um patrão branco que aceite assinar sua carteira de trabalho. 952

Na canção “Profissionalismo é isso aí”, a Banda Black Rio canta o refrão que narra
com berro e saliva fizemo o pé-de-meia, que significa que pela violência (berro é gíria para
arma de fogo) e falcatruas (saliva) conseguiram construir o fundo econômico que sustentou
o status conquistado pelo narrador. No entanto, coincidentemente, outro significado para a
expressão “pé-de-meia” foi veiculado com atuação da Banda Black Rio no ano 1980,
através da canção “Pé de meia”, faixa de abertura de Demônio Colorido, LP de estreia da
cantora Sandra Sá. Os versos da composição de Sandra ressignificavam a expressão: De
hoje em diante, juro, não falo mais nada/ vou ficar na minha, pode ficar sossegado/ que eu
vou resolver a minha loucura/ eu não sou meia pra ficar no pé de ninguém.953 A faixa é
um soul dançante, com o arranjo por Lincoln Olivetti – que também arranjou no disco a
faixa “É”, composição de tema existencialista de Gilberto Gil, produzida para o álbum
conceitual Refavela, que o compositor lamentou ter de ficar de fora na seleção final do
repertório.954 Das doze faixas do LP de Sandra Sá, outras cinco apresentaram arranjos de
Oberdan Magalhães, duas do guitarrista Perinho Santana, duas do pianista Antônio Adolfo
e as duas últimas por Serginho Trombone.

951
GONZALEZ, Lélia. A juventude negra brasileira e a questão do desemprego. In: Por um feminismo afro-
latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 46. Original de 1979.
952
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político econômica. In: Por
um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 67. Original de 1982.
953
Sandra Sá. Pé de meia (Sandra Sá). Demônio Colorido. Álbum. RGE. 1980. Faixa 01, Lado A.
954
CASTRO, Maurício Barros. O livro do disco. Refavela. 2017, p. 60.
346

Sandra Sá tornou-se conhecida na indústria do entretenimento no ano de 1980,


quando participou do festival “MPB-80”, promovido pela Rede Globo de televisão,
defendendo a sua composição, “Demônio Colorido”. Antes, a artista teve a composição
“Morenando” gravada pela sambista Leci Brandão em 1978, no LP Metades. Após o
festival, a então estudante de Psicologia e dançarina conhecida entre os frequentadores dos
bailes do Movimento Black Rio foi contratada pela gravadora RGE e pôde lançar em 1980
seu primeiro álbum.955

O disco foi lançado via selo Disco é Cultura, com direção artística e produção por
Durval Ferreira, que escreveu um texto para a contracapa: “Dentre os novos e bons valores
da MPB, dos últimos dois anos, a voz e a força dessa jovem Sandra Sá, carioca de 24 anos,
me impressionaram vivamente. Me chamaram a atenção principalmente a maneira especial
com que ela trabalha suas letras e sua interpretação personalíssima”. 956 É interessante que,
embora o produtor apresente Sandra como um valor da MPB, a sonoridade predominante
do álbum de estreia é abertamente a Black Music Brasileira, a partir do soul e do funk. A
canção que concedeu notoriedade para Sandra, “Demônio colorido”, composição da
própria, já era uma balada soul-pop, com temática romântica versando um amor lésbico:
Mas eu vou lhe guardar/ com a força de uma camisa/ me despir do pavor/ lhe chamar de
amiga/ 24 horas por dia/ tentando meu juízo/ foi unanimemente eleita/ meu demônio
colorido.957

Fig. 28. Capa e contracapa. Sandra Sá. Demônio Colorido. RGE. 1980. Extraídas de:
< http://djmessias2.blogspot.com/2011/02/1980-sandra-de-sa-demonio-colo rido.ht ml>

955
Para os dados biográficos da artista, ver <http://dicionariompb.com.br/sandra-de-sa/dados-artisticos>
Acesso 11/07/2019.
956
Durval Ferreira, texto de apresentação na contracapa. Sandra Sá. Demônio Colorido. Álbum. RGE. 1980.
957
Sandra Sá. Demônio Colorido (Sandra Sá). Demônio colorido. Álbum. RGE. 1980. Faixa 06, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=gUT4_W_jacA >
347

Com a estreia de Sandra Sá no mercado fonográfico, a Black Music Brasileira


adquiriu sua mais emblemática representante na década de 1980, que construiu sua
identidade artística a partir das sonoridades soul e funk em uma carreira sólida na grande
indústria. No álbum de estreia de Sandra, Demônio Colorido, apenas uma canção apresenta
elementos da linguagem antirracista, a quarta faixa do Lado B, “Mucama”, composta por
Ronaldo Malta. A música segue a melodia popularizada pela cantiga infantil “Sambalelê”,
mas a letra evoca a memória da escravidão, a ascendência africana e o culto ao orixá
Ogum: Samba criola/ mucama que veio d’Angola/ da graça do corpo de fora/ Cadê fulô,
teu sinhô/ oh, tu me mata de amô/ e o batuque inda mal nem começou/ o vermelho é de
Ogum/ canta pra iaiá um lundum/ deitada na rede de tucum/ no balancê, balançá/ ah, me
ensina a sonhar/ com as asas que vão me libertar. 958 A evocação a Ogum, na canção,
relaciona-se à busca por liberdade.

Com o álbum de estreia de Sandra Sá, em 1980, delimitou-se a seleção de artistas


negros ingressos na indústria fonográfica e identificados pela pesquisa desta tese como
representantes da Black Music Brasileira. Entre artistas de identidade artística mais
eclética, mas que dialogavam com gêneros da Black Music, o último identificado por esta
tese é o alagoano Djavan, que estreou no mercado fonográfico na Som Livre em 1976, com
o disco A voz. O violão. A música de Djavan, álbum de sambas que apresentou
composições de impacto na carreira do artista, como “Flor de Lis” e “Fato consumado”. A
sonoridade foi mantida no álbum seguinte, Djavan, de 1978. O terceiro álbum,
Alumbramento, lançado em 1980, mostra uma modificação na sonoridade do artista,
adotando gêneros além do samba; mas no quarto LP, Seduzir, de 1981, o cantor,
compositor e violonista apresenta interlocuções com a Black Music, sobretudo com o soul,
mas também o blues, em “Seduzir”. O álbum ainda celebra a herança africana e reverência
à orixá Oxum em “Luanda”: Num grito da mãe Oxum/ dizendo: “Menino, onde é que tu
anda?”/ Eu te batizo africamente/ com o fogo que Deus lavrou tua semente/ Luanda,
Luanda, Luanda Luanda.959 E a canção “Nvula”, composta por Filipe Mukenga no idioma
africano Kimbundo, e cantada em dueto com Gilberto Gil. Traduzida ao português, a letra

958
Sandra Sá. Mucama (Ronaldo Malta). Demônio Colorido. Álbum. RGE. 1980. Faixa 04, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=PY04ObA5wZ8>
959
Djavan. Luanda (Djavan). Seduzir. Álbum. EMI. 1981. Faixa 03, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=YE7Ypft_P7o >
348

da canção celebra: A chuva já chegou/ obrigada, meu Deus/ a chuva chegou este mês/ as
coisas que eu plantei crescem/ por causa da chuva já crescem.960

Fig. 29. Capa e contracapa. Djavan. Seduzir. Álbum. EMI. 1981. Extraído de:
< http://dvinil.com.br/produto/djavan-seduzir-1981-emi/>

A partir de 1981, Djavan passou a atuar com um grupo musical fixo, denominado
Sururu de Capote – nome retirado de uma das faixas de seu disco anterior, Alumbramento.
E desde então as composições do artista transitaram entre sambas, outros ritmos regionais
do Brasil e interlocuções com sonoridades da Black Music estadunidense, como o jazz, o
soul e o blues – particularmente nas baladas do artista alagoano. Quanto às temáticas das
composições escritas ou gravadas pelo artista, o diálogo transnacional, como assinalado no
LP Seduzir, foi realizado com o continente africano, ainda que, por vezes, em sonoridades
estadunidenses. No entanto, esse não foi o caso das canções assinaladas acima, “Luanda” e
“Nvula”, que não foram executadas através das sonoridades da Black Music.

Djavan, como Gilberto Gil, integra nesta tese a lista de artistas negros identificados
pelo estabelecimento de diálogos com a Black Music no decorrer da carreira,
documentando, nos fonogramas gravados e lançados por eles, a difusão da sonoridade
entre a chamada MPB. Outros artistas comumente associados à MPB trouxeram
incorporações diluídas da Black Music, sem compromisso de identificação restrita a tais
sonoridades, como Luiz Melodia, Emílio Santiago, Zezé Motta e Itamar Assumpção, mas
estes, conforme demonstrado nesta tese, apresentaram tais diálogos desde o seu primeiro
LP. Assim, as carreiras de artistas que promovem uma incorporação diluída da Black
Music diferem de artistas cuja identidade musical é reconhecida como estabelecida na
Black Music Brasileira, como Sandra Sá que, apesar do texto do produtor Durval Ferreira

960
Djavan. Nvula (Felipe Mukenga). Seduzir. Álbum. EMI. 1981. Faixa 05, Lado B. Para a letra traduzida,
ver: < https://djavan.com.br/discografia/seduzir/> Acesso 18/08/2021.
349

para o primeiro álbum associá-la à MPB, ficou conhecida como “a rainha do soul
brasileiro”.961

Apesar dos trabalhos então assinalados em grandes gravadoras da indústria


fonográfica – major –, a análise da produção musical dos anos 1980 evidencia o declínio
das sonoridades da Black Music Brasileira. E, como consequência, na pesquisa realizada
para o recorte do último capítulo desta tese, a identificação de referências raciais é menos
expressiva na Black Music Brasileira entre 1981 e 1988. Esse declínio da gravação da
Black Music feita em português e no Brasil coincidiu com a diminuição dos bailes black. A
historiadora Marianna Gomes Muniz, na monografia Movimento Black Rio e sua influência
na construção da identidade negra no Rio de Janeiro: um estudo das representações no
Jornal do Brasil (1976-1977), conclui o trabalho dizendo: “A partir dos anos 80, a
ocorrência e frequência dos bailes com o surgimento de outros ritmos musicais, somado à
repressão policial, foram diminuindo.”962 E a autora cita o sociólogo Hermano Vianna: “Os
militantes das várias tendências do movimento negro brasileiro parecem ter esquecido os
bailes, não mais os considerando espaço propício à conscientização.”963 Também o
historiador Lucas Pedretti Lima, na dissertação Bailes soul, ditadura e violência nos
subúrbios cariocas na década de 1970, afirma:

Como e por que acabaram os bailes soul? A partir de fins da década de 1970, o
Black Rio começou a perder lugar para a música disco. Além disso, autores
apontam outras razões para esse fim: excesso de atenção da mídia, disputa com o
samba, perseguição policial. Ainda não está claro, na literatura, quais fatores
tiveram mais ou menos peso.964

No livro 1976. Movimento Black Rio, dedicado ao estudo dos bailes, os jornalistas
Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octavio Sebadelhe demonstram que o arrefecimento dos
bailes soul operou com a substituição do gênero musical por outras formas musicais, como
a supracitado disco e, particularmente, o charme. É a origem dos Bailes Funk do modo
como ficaram nacionalmente conhecidos a partir dos anos 1990 e 2000. Conforme os
autores, na década de 1980 “a galera dançava o passinho sincronizado, no estilo de eventos
que ficariam reconhecidos como bailes charme”; uma continuidade direta do fenômeno

961
Tal epíteto sobre Sandra pode ser facilmente encontrado em diversas referências sobre a artista, como na
página da Fundação Cultural Palmares, < http://www.palmares.gov.br/?page_id=26901> Acesso 19/08/2021.
962
MUNIZ, Marianna Gomes. Movimento Black Rio e sua influência na construção da identidade negra no Rio de
Janeiro: um estudo das representações no Jornal do Brasil (1976-1977). Monografia (História). Pontifícia
Universidade Católica (PUC) Paraná. 2018, p. 49.
963
VIANNA, Hermano. O Baile Funk Carioca. 1988, p. 32. Apud. MUNIZ, Marianna Gomes. Movimento
Black Rio e sua influência na construção da identidade negra no Rio de Janeiro: um estudo das representações no
Jornal do Brasil (1976-1977). Monografia (História). Pontifícia Universidade Católica (PUC) Paraná. 2018, p. 49.
964
LIMA, Lucas P. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 . Dissertação
(História). Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. 2018, p. 66.
350

difundido nos anos 1970, posto que: “Entre todas as derivações que se seguiram, os bailes
charme carregariam a influência direta dos bailes black, na sua ambiência e na reunião de
um público composto, na sua maioria, por negros e mestiços - mas que se espraiaria por
diversos pontos da cidade durante os anos 1980 e 1990.”965

Sinalizando para esse cenário de declínio da Black Music Brasileira, o ano de 1981
apresentou uma produção fonográfica tímida do gênero ou de suas influências. Para além
da reorientação de Djavan, Gilberto Gil lançou o LP Luar (a gente precisa ver o luar),
primeiro da parceria do artista com o produtor Liminha, que marcaria a produção de Gil
nos anos 1980. A sonoridade do disco avançava no diálogo com o pop estadunidense
realizado em Realce, com ecos soul e funk (nas linhas de baixo de Jamil Joanes e arranjos
de sopros por Oberdan Magalhães, saxofonista do LP, além de outros integrantes da Banda
Black Rio) e elementos disco (com os arranjos e teclados de Lincoln Olivetti e Robson
Jorge). O álbum apresentou canções que se tornaram canônicas no repertório do artista,
como “Palco”, “Flora” e “Se eu quiser falar com Deus”, e na faixa “Axé Babá”, fazia
reverência ao orixá: meu pai Oxalá.966

A maioria dos artistas estudados nesta tese, no entanto, não lançaram álbuns em
1981. Além de Gilberto Gil e Djavan, Jorge Ben lançou o álbum Bem-vinda Amizade, seu
décimo nono LP e, assim como o antecessor, Alô, Alô como vai? (1980), não apresentou a
temática negra antirracista. O repertório de Bem-vinda Amizade destacou a canção
“Curumim chama Cunhatã que vou contar”, popularmente conhecida pelo refrão, todo dia
era Dia de Índio, que manifesta uma atenção do artista às agressões sofridas pelos povos
indígenas no Brasil.967 Já o intérprete Emílio Santiago lançou em tal ano seu oitavo álbum,
Amor de Lua, na mesma gravadora que os cinco discos anteriores, Philips. 968 Conforme
apontado pelo jornalista Mauro Ferreira: “com arranjos de Antonio Adolfo, João Donato e
José Roberto Bertrami (1946-2012), Amor de Lua foi disco formatado com repertório
inédito de alto nível, dominado pelo samba e quase sempre à altura da voz grave e
aconchegante de Emílio Santiago.”969 Assim como não explicitava hibridações com as
sonoridades da Black Music, o álbum também não apresentou letras com a temática

965
SEBADELHE, Zé Octavio; PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 191.
966
Gilberto Gil. Axé Babá (Gilberto Gil). Luar (a gente precisa ver o luar). LP. Warner. 1981. Fx. 02, Ld. B.
967
Jorge Ben. Curumim chama Cunhatã que vou contar (J. Ben). Bem-vinda Amizade. Álbum. Som Livre.
1981
968
Emilio Santiago. Amor de Lua. Álbum. Philips. 1981.
969
< https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/06/26/discos-para-descobrir-em-
casa-amor-de-lua-emilio -santiago-1981.ght ml> Acesso 19/08/2021.
351

antirracista. Por fim, 1981 documentou o retorno de Hyldon ao mercado fonográfico, com
Sabor de Amor, lançado pela Continental, álbum marcado pelas baladas soul características
do artista, mas também canções soul mais dançantes, como a faixa de abertura,
“Vadiagem”, mas sem expressar temáticas raciais. 970

O ano de 1982, contudo, apresentou gravações mais expressivas para o estudo desta
tese. Itamar Assumpção lançou seu segundo álbum, novamente uma gravação
independente, um disco ao vivo emblematicamente intitulado Às próprias custas S. A. O
álbum explicitava a sonoridade elétrica e a interlocução com a Black Music apresentada no
primeiro LP, inclusive na regravação de “Não vou ficar”, de Tim Maia - a gravação em
estúdio que encerra o álbum, como faixa bônus. O disco apresentou um longuíssimo (para
os padrões de um disco) texto no encarte, manuscrito pelo próprio Itamar. O texto foi
escrito no formato de uma declaração judicial, iniciando com o nome completo e números
de documentos de Itamar, concluindo com “Devo confessar que assino esta confissão
debaixo do maior pau, meu irmão. Assinado: Itamar de Assumpção... sob pressão”; e faz
uma apresentação da trajetória artística do cantor, ressaltando um episódio no qual foi
preso injustamente acusado de ter roubado o seu próprio equipamento musical. 971 A injusta
abordagem policial - difícil de não ser associada ao fato de Itamar ser um homem negro -
concede maior sentido ao batismo do conjunto como Isca de Polícia. Embora o texto faça
uma referência como Beleléu, a narração e assinatura é feita sob o nome de Itamar
Assumpção, e a - também assim denominada - Banda Isca aparece não mais ligada ao
personagem Nego Dito, Beleléu, mas como banda de apoio de Itamar Assumpção.

Diferente das canções assinaladas dos discos de Djavan e Gilberto Gil em 1981, no
segundo álbum de Itamar Assumpção as composições que trazem referências raciais
estavam executadas em sonoridades que evocavam a Black Music. A faixa de abertura de
Às próprias custas S.A foi uma versão, com elementos de rock e soul, de “Negra Melodia”,
gravada originalmente por um de seus compositores, Jards Macalé, em 1977, como uma
homenagem a Luiz Melodia. Negra Melodia/ que vem do sangue do coração/ I know how
to dance/ dance like a young black/ American black do Brás do Brasil/ (...) O meu pisante
colorido, o meu barraco lá do Morro do São Carlos/ Meu cachorro Paraíba, minha

970
Hyldon. Sabor de Amor. Álbum. Continental. 1981.
971
Texto de encarte do álbum. Itamar Assumpção. Às próprias custas. S. A. Álbum. Selo Lira Paulistana.
1981.
352

cabrocha, minha cocota/ a minha morna lá no largo do Estácio de Sá.972 A composição


estabelece uma identificação transnacional na alternância entre os idiomas inglês e
português, aproximando os EUA ao Morro do São Carlos, no bairro Estácio de Sá do Rio
de Janeiro. Aproximação sintetizada no verso American black do Brás do Brasil, uma
síntese da figura de Luiz Melodia segundo os compositores de “Negra Melodia”, e que
Itamar incorpora nesse disco.973 Conforme Toninho Vaz, em Meu nome é Ébano: a vida e
a obra de Luiz Melodia, em junho de 1981, Itamar e Luiz Melodia se conheceram e
criaram laços no show A noite da beleza negra, realizado na Rádio Clube de São Paulo, do
qual também participou Zezé Motta.974

As três primeiras faixas do segundo álbum de Itamar Assumpção foram executadas


com o acompanhamento instrumental do grupo que compõe a Banda Isca de Polícia nesse
LP: os negros Luiz Monteiro “Rondó” (guitarra) e Jorge Luiz de Souza, o Gigante Brazil
(bateria) e os brancos Luiz Chagas (guitarra) e Paulo Lepetit (baixo). A esse quarteto, a
partir da quarta faixa, “Fico louco”, reuniram-se o quarteto vocal: Denise Assumpção
(negra, irmã de Itamar), Suzana Salles, Vania Bastos e Virginia Rosa - brancas. Itamar,
nesse LP, atuou como cantor, sem tocar algum instrumento. “Batuque”, segunda faixa do
Lado B do disco, evocou o gênero embolada, mas com uma execução funkeada pela banda
Ísca e sua letra retratava a memória da escravidão, a luta pela liberdade a partir da figura de
Zumbi dos Palmares e a abolição:

Houve um tempo em que a terra gemia e um povo tremia de tanto apan har/
Tanta chibata no lombo que muitos morriam no mesmo lugar/ Deu bandeira,
dançou na primeira, dançou capoeira, dançou na bobeira, dançou na maior/
Deu canseira, sambou na poeira, tossiu na fileira, dançou pra danar/ O meu pai,
minha mãe, minha avó, tanta gente tristonha que veio de lá/ Minha avó já
morreu, o meu pai lá se foi, só ficou minha mãe pra rezar. Deu bandeira.../ Vez
em quando eu me lembro dos fatos que meu avô contava nas noites de frio/ Não
chorava, porém, não sorria, mentir, não mentia, fing ir, fingir não fingiu. Deu
bandeira.../ Liberdade além do horizonte, morreu tanta gente de tanto sonhar.
(Quem foi?) Foi Zumbi/ A Princesa Isabé assinou um papé, dia 13 de maio de

972
Itamar Assumpção. Negra Melodia (Jards Macalé/Waly Salomão). Às próprias custas S.A. Álbum. Selo
Lira Paulistana. Faixa 01, Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=wbuiGx4VLtQ>
973
Itamar assumiu sua identificação com Luiz Melodia em composição lançada em 1993: Nasceste no Rio,
Estácio, eu em São Paulo, Tietê/ Os nossos passos compassos afirmam ter tudo a ver/ Não só na tonalidade,
também no jeitão de ser/ Circula pela cidade que sou cover de você/ Tu és Perola Negra já desde setenta e
dois/ eu inventei Beleléu só oito anos depois/ Além desta pele preta, coisa comum em nós dois/ Ideias,
músicas, letras, não são só feijão com arroz/ Dizem formamos de fato um belo par de malditos/ te chamam
de Negro Gato, me tratam de Nego Dito/ E já que talento é inato, isto já estava escrito/ Num mundo cheio de
Cratos, nós somos São Beneditos/ No mais sambamos de tudo/ Funk, Soul, Blues, Jazz, Rock and roll/ (...) Só
falta contar agora o que que houve outro dia/ assim que entrei num bar desses de periferia/ alguém começou
a gritar, jurar que me conhecia/ mas no lugar de Itamar, disparou Luiz Melodia. Itamar Assumpção & As
Orquídeas do Brasil. Quem é cover de quem? (Itamar Assumpção). Bicho de sete cabeças. Vol.1. (1993). CD.
SESC. 2010. Faixa 04.
974
VAZ, Toninho. Meu nome é Ébano: A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 129.
353

1888/ desamassa, amassa, amassa, amassa... e agora? Como é que ficou aqui
agora? Deixa pra lá.975

A letra da composição “Batuque”, de Itamar Assumpção, abordou a violência


sofrida pelas pessoas negras escravizadas, um povo [que] tremia de tanto apanhar/ tanta
chibata no lombo que muitos morriam no mesmo lugar. Um cotidiano de violência e morte
ameaçando o desejo de libertação, de modo que morreu tanta gente de tanto sonhar. Por
fim, a canção exibia um questionamento dos limites nas décadas após a abolição, ao referir
ao documento que pôs fim à legalidade escravista: desamassa, amassa, amassa... e agora?
Como é que ficou aqui, agora? Deixa pra lá. Ao “deixar pra lá”, a canção sugeriu ser o
tema do pós-abolição uma questão sensível e não superada, leitura reforçada pela menção
do documento de garantia da libertação ser desamassado e correntemente amassado – ou
seja, desrespeitado. A faixa de encerramento do show, penúltima do disco, “Denúncia dos
Santos Silva Beleléu” dialogava com a atmosfera do texto do encarte do álbum. A canção
retomou o personagem Nego Dito, encenando a acusação do mesmo feita pelas vocalistas
que, tratando-o por “Black”, dizem: Hoje aqui você é nosso réu! Comporte-se bem,
entendeu?!/ Aguarde tua sentença. E, no encerramento da faixa, Itamar apresentou os
músicos participantes, mas introduziu a si mesmo cantando: My name is: Benedito João
dos Santos Silva, Beleléu, vulgo Nego Dito.976

Outra canção emblemática para o tema desta tese lançada em 1982, “Olhos
coloridos” é a faixa de abertura do segundo álbum da cantora e compositora Sandra Sá. O
LP Sandra Sá também teve a direção artística e produção por Durval Ferreira e, tal como
seu antecessor, foi lançado pela gravadora RGE. O álbum, desde a contracapa, valorizava
os companheiros de Sandra nesse trabalho, ao trazer uma foto da cantora junto a um grupo
de homens, incluindo Claudio Stevenson e Oberdan Magalhães, da Banda Black Rio e o
compositor Macau, todos eles identificados com o nome abaixo de sua imagem na foto.
Macau compôs a faixa “Olhos coloridos”, canção que, conforme Luiz Felipe L. Peixoto e
Zé Octávio Sebedelhe, no livro 1976. Movimento Black Rio, tornou-se hino “que ficaria
eternizado na história blackriana, música que até hoje leva multidões a comoção.”977 Os
jornalistas, em sequência, informam sobre o momento no qual Macau e Sandra se
conheceram:

975
Itamar Assumpção. Batuque (I. Assumpção). Às próprias custas. S.A. Álbum. Selo Lira Paulistana. 1982.
Faixa 02, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=19ZWNpptchA>
976
Itamar Assumpção. Denúncia dos Santos Silva Beleléu (I. Assumpção). Às próprias custas. S.A. Álbum.
Selo Lira Paulistana. 1982. Faixa 05, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=wXjhWBoUUvc>
977
SEBADELHE, Zé Octavio; PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 209.
354

Macau lembra do dia em que conheceu Sandra por intermédio do grande músico
e produtor Durval Ferreira, que ouviu pela primeira vez a música “Olhos
coloridos” em fita demo e fez a conexão imediata para a voz da cantora, quando
gravavam o seu segundo LP. “Eu tinha composto a música em 1973, quando
fazia parte da banda Paulo Bagunça e a Tropa Maldita. Quando Durval me
apresentou à Sandra, parecia que a conhecia de outra dimensão, foi como se
tivéssemos tido um reencontro de outras vidas”, recorda-se o compositor
Macau.978

Conforme ainda os mesmos autores, “Paulo Bagunça e a Tropa Maldita teve um


único disco, lançado também em 1973” e que buscava fundir o samba com um soul em
roupagem latina,979 contudo, sem grande expressão no período. Na época em que compôs a
música “Olhos coloridos”, Macau era um amigo próximo e companhia constante de Luiz
Melodia e do compositor Papa Kid. Toninho Vaz, no livro Meu nome é Ébano. A vida e a
obra de Luiz Melodia, narra, a partir de relatos do próprio Macau, sobre a composição de
tal música:

Macau tinha sido preso nos anos 1970, sem motivos, em uma exposição de
escolas públicas no Estádio de Remo da Lagoa, e a experiência indigesta serviu
de inspiração para a música. Diz-se que foi uma prisão injusta porque não havia
flagrante e, na ocasião, as únicas coisas encontradas com ele foram a cor da pele
e o cabelo estilo africano. Era o que bastava. Passeou de camburão a noite toda,
com os policiais rindo de seu cabelo e de suas roupas. Acabou sendo resgatado
no dia seguinte por um padre da Pastoral Penal da Igreja Católica. Macau
reconhece que a barra pesada política e o preconceito racial eram os principais
obstáculos para negros sobreviverem com dignidade na “sociedade carioca”. “O
Luiz já era um nome da MPB, mas o caminho era difícil. A gente era alvo fácil
da polícia, que sempre agia com truculência. Eu, Luiz e Papa Kid éramos três
negões circulando pela cidade.” 980

O relato de Macau sobre a abordagem policial que resultou em sua prisão injusta,
que inspirou a composição de “Olhos coloridos”, aproxima-se do relato de prisão
manuscrito por Itamar Assumpção no encarte de seu segundo LP, também lançado em
1982. De tal forma, o desabafo de Macau dizendo que ele, Luiz e Papa Kid, enquanto
homens negros “circulando pela cidade”, tornavam-se “alvo fácil da polícia” e sua
truculência, explica o sentido do termo Isca de Polícia, escolhido por Itamar para batizar
sua banda de apoio. E o episódio narrado explica também a força dos versos da
composição escolhida para abrir o segundo álbum de Sandra. O funk foi introduzido pelo
acompanhamento solista do violão rítmico de Macau, ao qual juntam baixo, percussão,
bateria, guitarra e naipe de sopros, além de vocais de apoio:

Os meus olhos coloridos/ me fazem refletir/ Que eu estou sempre na minha/ e


não posso mais fugir/ Meu cabelo enrolado/ todos querem imitar/ eles estão

978
SEBADELHE, Zé Octavio; PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 209,
210.
979
SEBADELHE, Zé Octavio; PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 210.
980
VAZ, Toninho. Meu nome é Ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 93.
355

baratinados/ também querem enrolar/ Você ri da minha roupa/ você ri do meu


cabelo/ você ri da minha pele/ você ri do meu sorriso/ A verdade é que você/ tem
sangue crioulo/ tem cabelo duro/ sarará crioulo. 981

A canção “Olhos coloridos” é um manifesto de autoestima, de Orgulho Negro - ou,


como pontuado pelo pesquisador Ricardo Cravo Albin, segundo Toninho Vaz, “da
negritude ostensiva” -,982 que contrapõe a ridicularização expressa pelos risos diante do
tipo de cabelo crespo e da cor da pele negra. A canção opera com a transformação desses
estigmas da aparência em emblemas de orgulho racial, além de enfatizar que tais elementos
também estão presentes em seu interlocutor preconceituoso. É notável, ainda, que a canção
evoca os termos depreciativos associados ao cabelo crespo, “cabelo duro” e “sarará”,
termos também mobilizados por Gilberto Gil na composição “Sarará Miolo”, lançada em
1979, conforme pontuado outrora. A canção “Olhos coloridos” é a única do álbum Sandra
Sá arranjada por Serginho Trombone, sendo que quatro outras canções do LP tiveram
arranjo do guitarrista Claudio Stevenson, três por Lincoln Olivetti e duas por Oberdan
Magalhães - incluindo o blues “Amor meu”, composto por Luiz Melodia e Ricardo
Augusto. Cassiano é homenageado na saudosa “Preciso urgentemente falar com Cassiano”,
soul de Fábio e Paulo Imperial, que anuncia: Preciso urgentemente falar com Cassiano
sobre o som que Stevie Wonder faz.983

Coincidentemente, no ano que Sandra Sá lançava a composição “Preciso


urgentemente falar com Cassiano”, celebrando o ícone do soul da Motown; Stevie Wonder,
este consagrado cantor, compositor e instrumentista participava da faixa de abertura do
quinto álbum lançado por Djavan, Luz. Conforme texto sobre o álbum presente na página
oficial do artista na WEB, a oportunidade surgiu por uma major: “Djavan recebeu, em
1982, o convite da gravadora CBS (futura Sony Music) para, não só, ser lançado nos
Estados Unidos, como também gravar nos míticos estúdios americanos. Em solo
estrangeiro, trabalhou sob a produção de Ronnie Foster, até então um dos principais
produtores da soul music americana”.984 Com o suporte de uma multinacional, Djavan e a
banda Sururu de Capote puderam não apenas gravar com a tecnologia de estúdios
estadunidenses, quanto estabelecer vínculos com músicos do país, de modo que a faixa de
abertura do novo álbum, “Samurai”, apresentava um dueto entre a voz de Djavan e a

981
Sandra Sá. Olhos coloridos (Macau). Sandra Sá. Álbum. RGE. 1982. Faixa 01, Lado A.
<https://www.youtube.com/watch?v=bo1pg3AJ2wQ>
982
VAZ, Toninho. Meu nome é Ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 92.
983
Sandra Sá. Preciso urgentemente falar com Cassiano (Fábio/P. Imperial). Sandra Sá. Álbum. RGE. 1982.
Faixa 01, Lado B.
984
< https://djavan.com.br/discografia/luz/> Acesso 20/08/2021.
356

característica gaita de Stevie Wonder – solista por toda a canção. De tal forma, o álbum
Luz, desde a primeira música, explicitou a manutenção de interlocuções com a black music,
sonoridade já sinalizada pelo nome do produtor do LP, conforme mencionado. O disco
tornou-se um dos mais consagrados de Djavan, com canções consagradas em seu
repertório, como “Sina”, “Pétala” e “Açaí”, mas em nenhuma há referências raciais. 985

Emílio Santiago lançou em 1982 o álbum Ensaios de Amor, no qual retomou um


diálogo com sonoridades da Black Music, notavelmente o Soul, mas sem realizar
referências à temática racial nas letras. Simonal retornou ao mercado fonográfico pela via
independente e, com o apoio financeiro do empresário armênio Vartival Tchirichian,
lançou Alegria tropical, disco sem expressão da sonoridade de Black Music e sem
referências raciais, assim como seu sucessor, Simonal, lançado no ano seguinte, 1983, nos
mesmos moldes.986 Conforme Ricardo Alexandre, no livro Nem vem que não tem. A vida e
o veneno de Wilson Simonal: “Ambos os discos foram lançados com baixa expectativa,
apenas para renovar o repertório dos shows.”987 E foram os dois últimos LPs lançados pelo
artista no recorte desta tese.

Tim Maia também retornou à produção independente para lançar, em 1982, Nuvens,
álbum que contou com a participação de Hyldon ao violão na regravação da sua “Na rua,
na chuva, na fazenda” e no dueto vocal em “Sol brilhante”, de Rubens Sabino e Tim Maia,
além do violão de Cassiano na sua balada soul “Nuvens”.988 Segundo Mauro Ferreira, esse
disco pode “ser considerado o marco final do auge artístico desse cantor e compositor”,
posto que, “Após Nuvens, Tim adocicaria progressivamente o soul com o mel falsificado
de baladas industrializadas.”989 O jornalista se refere ao redirecionamento musical de Tim,
que, a partir de 1983, reconquistou o sucesso comercial com o LP O descobridor dos sete
mares, lançado pela pequena gravadora Lança, e que rendeu o sucesso da faixa título e da
balada “Me dê motivos”.990 Estas gravações após 1983, portanto, não se enquadram no
objeto desta tese.

A referência aos álbuns de artistas associados à Black Music Brasileira que


chegaram ao mercado fonográfico no ano de 1982 finaliza com Gilberto Gil e o disco Um

985
Djavan. Luz. Álbum. CBS. 1982.
986
Wilson Simonal. Alegria tropical. Álbum. WM. 1982. Wilson Simonal. Simonal. Álbum. WM. 1983.
987
ALEXANDRE, Ricardo. Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 262.
988
Tim Maia. Nuvens. Álbum. Seroma. 1982.
989
< https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/04/01/discos-para-descobrir-em-
casa-nuvens-tim-maia-1982.ght ml> Acesso 20/08/2021.
990
Tim Maia. O descobridor dos sete mares. Álbum. Lança. 1983.
357

Banda Um, segundo LP do artista com a produção de Liminha. Segundo Antonio Carlos
Miguel, no livro Guia de MPB em CD: uma discoteca básica da música popular
brasileira: “Lançado no fim de 1982, esse é o melhor disco de Gil nos anos 80, incluindo
canções como ‘Deixar você’, ‘Drão’, ‘Andar com fé’, ‘Metáfora’ e a sua versão para
‘Esotérico’ (esta lançada em 1976 no disco dos Doces Bárbaros, que dividiu com Bethânia,
Gal e Caetano).”991 O LP não incluiu canções de temática antirracista, porém, na
celebração de valores comunitários, evoca elementos do Candomblé na segunda faixa do
LP, a pop “Afoxé E´”, que menciona a devoção do negro e a benção de Oxalá. Segundo
Gil: “O afoxé como uma forma, celebradíssima, de candomblé de rua - lúdica, em vez de
religiosa.”, mas adverte: “Não é, contudo, o objeto da crença - não é Deus - que é
comentado na canção, ou o que nela comove, mas o humano, demasiadamente humano; o
compromisso do homem com a comunidade.”992 Quanto à sonoridade do álbum, Um
Banda Um marca a ampliação da incorporação do reggae na produção musical de Gil, em
hibridações ecléticas com o pop, os ritmos afro-baianos e a bossa nova.

O contato de Gilberto Gil com o reggae, conforme abordado antes neste capítulo,
iniciou no exílio londrino. Mauricio Barros de Castro, em O livro do disco. Refavela,
ressalta: “No contexto londrino, o encontro com o reggae ganhava contornos políticos.”993
A difusão do gênero musical associava-se à descolonização do Terceiro Mundo, com a
independência da ex-colônia inglesa Jamaica, em 1962. Pensando “nos espaços periféricos
para onde foram empurrados os negros - os guetos dos Estados Unidos, da Europa, do
Caribe e da América do Sul”, o autor ressalta a conexão transnacional de pessoas negras a
partir da música: “Nesses lugares marginais surgiram formas musicais diaspóricas
contemporâneas, criadas entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970, como o funk,
o rap e o reggae.”994 A percepção de uma identidade construída pela situação global de
exclusão teria afetado Gil: “Artista negro, exilado na Europa por uma ditadura militar da
América Latina, Gil tinha muitos motivos para se identificar com a condição marginal e
periférica dos músicos caribenhos na capital da Inglaterra.”995 Tal reflexão aproxima da
realizada por Carlos E. Paiva na tese Black Pau: a soul music no Brasil nos anos 1970, a

991
MIGUEL, Antonio Carlos. Guia de MPB em CD: uma discoteca básica da música popular brasileira.
1999, p. 134. Gilberto Gil. Um Banda Um. Álbum. Warner. 1982.
992
< https://gilbertogil.com.br/producoes/detalhes/um-banda-um/> Acesso 20/08/2021.
993
CASTRO, Mauricio Barros. O livro do disco. Refavela. 2017, p. 39.
994
CASTRO, Mauricio Barros. O livro do disco. Refavela. 2017, p. 40.
995
CASTRO, Mauricio Barros. O livro do disco. Refavela. 2017, p. 40.
358

partir da discussão proposta pelo teórico jamaicano Stuart Hall sobre a aproximação de
identidades subalternas no processo de globalização:

Como exemplo o autor assinala que nos anos 1970 o significante black forneceu
um foco de identificação que abrangia tanto as comunidades afro -caribenhas,
quanto as comunidades asiáticas em território britânico. O fato é que, apesar de
não representarem culturalmente a mesma coisa, essas comunidades eram vistas
e tratadas “como a mesma coisa” pela cultura dominante. A exclusão dessas
comunidades formulava um “eixo comum de equivalências”. 996

Elementos culturais de origem jamaicana difundidos - assim como Stuart Hall


apontou sobre o significante black - como um “foco de identificação” a partir da circulação
do reggae, são encontrados na produção fonográfica de 1983 em outro artista associado à
Black Music Brasileira: Luiz Melodia. No quinto álbum do artista, Felino, primeiro LP de
Luiz Melodia pela gravadora Ariola e distribuído pela Polygram, há incorporação do
reggae na sonoridade. O LP não apresenta temática racial, apenas uma breve referência à
ancestralidade africana no verso Sou ferro, fera solta/ vim da África no couro de um
pandeiro, da faixa de abertura “O sangue não nega” - samba-soul composto por Luiz
Melodia e Ricardo Augusto e arranjada por Serginho Trombone, que afirma a identificação
do artista com o samba.997 E a faixa seguinte, “Divina criatura”, de Luiz Melodia e Papa
Kid que evoca, em verso, ao afoxé. O LP inclui Lincoln Olivetti e instrumentistas já
associados ao trabalho de Luiz, como o guitarrista Perinho Santana e músicos da Banda
Black Rio (como Oberdan, Jorjão e Jamil Joanes).

A incorporação do reggae é antecipada, ou indiciada, desde a capa do álbum Felino


a partir de um penteado difundido pelos artistas identificados ao reggae e que se tornou
uma alternativa ao penteado Black Power enquanto uma forma de comunicação visual da
cultura negra transnacional. Conforme apontado por Nilma Lino Gomes, na obra Sem
perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra: “Dessa forma, reitero
que tanto o estilo de cabelo construído na diáspora negra ocidental, chamado de ‘afro’ ou
black, quanto o dreadlocks são expressões culturais negras que operam no contexto da
diáspora.”998 A pedagoga historiciza sobre os significados culturais e a difusão global do
estilo de cabelo, em diálogo com a contribuição do intelectual Kobena Mercer:

Ainda, dentro da estetização da raça que apela para o uso do cabelo na textura
crespa natural, encontramos mais um estilo: o rastafari. Nesse ponto, retomo as
análises de Mercer (1994, p. 126). Segundo o autor, na realidade rastafari é uma

996
PAIVA, Carlos Eduardo. Black Pau. A soul music no Brasil nos anos 1970. Tese (Ciências Sociais).
Universidade Estadual Paulista. 2015, p. 73.
997
Luiz Melodia. O sangue não nega (L. Melodia/R. Augusto). Felino. Álbum. Ariola. 1983. Fx. 01, Lado A.
998
GOMES, Nilma L. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2008, p. 200.
359

doutrina espiritual que, ao adotar o estilo de cabelo dreadlocks, expressa uma


interpretação de ordem religiosa e bíblica que proíbe o corte de cabelo entre os
membros do hinduísmo. Tornou-se muito popular em maior escala social,
principalmente entre a militância do reggae.999

Fig. 30. Capa e contracapa. Luiz Melodia. Felino. Álbum. Ariola. 1983. Extraídas de:
< https://genius.com/albums/Luiz-melodia/Felino>

O ano de 1983 marcou o retorno de Carlos Dafé à indústria fonográfica, que lançou
seu quarto álbum, De repente, pela gravadora RCA, disco que contava com arranjos feitos
por músicos que fazem ou fizeram parte da Banda Black Rio: o saxofonista Oberdan
Magalhães, o guitarrista Claudio Stevenson e o baterista Luiz Carlos, além de José Roberto
Bertrami, João W. Plinta, Pique e Reinaldo Arias. As dez faixas do LP diferenciavam dos
dois últimos do artista ao afastarem do samba e apresentarem a sonoridade predominante
de baladas soul. No entanto, nenhuma das faixas abordaram temáticas raciais. 1000 Arranjos
de Reinaldo Arias, Claudio Stevenson e Oberdan Magalhães também apareceram no
terceiro álbum de Sandra Sá, Vale tudo, que contou, ainda, com arranjos de Serginho
Trombone e Tim Maia e, em metade do disco, arranjos por Lincoln Olivetti. Tim arranjou
e cantou na faixa título, de sua autoria, canção de roupagem disco que se tornou o primeiro
grande sucesso de Sandra.1001 O disco também apresentou “Candura”, composição de
Cassiano e Denny King. A balada soul “Onda negra”, composição de Irineia Maria e
arranjo de Lincoln Olivetti, celebra: Uma forma de beleza/ colorido de real valor/ um
calor, uma energia boa/ uma onda negra de amor.1002 Única faixa do LP que sugeriu uma
dimensão racial ao positivar a cor negra na letra amorosa.

As sonoridades da Black Music foram expressivas em 1983 desde a primeira faixa


do décimo álbum de Emílio Santiago, Mais que um momento, o LP mais explícito do
999
GOMES, Nilma L. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2008, p. 199.
1000
Carlos Dafé. De repente. Álbum. RCA. 1983.
1001
< https://dicionariompb.com.br/sandra-de-sa/dados-artisticos> Acesso 21/08/2021.
1002
Sandra Sá. Onda negra (Irineia Maria). Vale tudo. Álbum. RGE. 1983. Faixa 04, lado A.
< https://www.youtube.com/watch?v=yz7CPYhzcoQ>
360

cantor na abordagem da Black Music Brasileira. A faixa de abertura do disco, “O amigo de


Nova York” é um funk composto por Macau e Durval Ferreira cuja o tema explorou a
identificação transnacional da Linguagem Política do Orgulho Negro: Lá vem meu amigo
de Nova York/ Ele mora no gueto/ ele mora no Harley/ É do subterrâneo, é do mundo
negro/ Já foi à Bahia, já foi ao Bonfim/ comeu vatapá e bolo de aipim/ Jogou capoeira,
tocou berimbau e tamborim/ Alô Brother, alô man/ Alô Black, my friend.1003 Canção que,
fiel ao gênero funk, explorou os timbres do naipe de sopros, baixo elétrico, guitarra, bateria
e vocais de apoio. Entre alguns funks (alguns hibridados ao samba, como em “Mais que um
momento” e “Desfigurado” - de Djavan) e muitas baladas de inspiração soul (como
“Carícia e sedução”, de Cassiano e Denny King); o álbum apresentou a temática racial na
faixa que introduziu o Lado B, “Nego John”: John nasceu de mim num parto sem hora/ De
uma imensa América interior/ John mistura homogenia de mil sentimentos/ fato, relato, de
um ato nêgo/ Icuta inte, Obauayê, eu só sei é que John, negou/ Esses nêgo forte, que
abraça a sorte/ (...) mistura de cor, raça, sangue amor/ nesse seu balançar indefinido.1004
A composição inicia com vocais de apoio femininos entoando o refrão, John negou, em
sonoridade gospel, e prossegue como um soul dançante, com letra que evoca Obaluayê,
“Orixá da varíola, forma jovem de Xampanã” e Omolu.1005

Gilberto Gil lançou em 1983 seu terceiro álbum na parceria com o produtor
Liminha, Extra, mantendo o direcionamento de sonoridade dos últimos dois discos,
articulando o pop a outros gêneros, como o reggae da faixa título. A sonoridade funk ecoa
na faixa pop “Funk-se quem puder”, cujo trecho funk-se quem puder/ se é hora da barca
virar/ não entre em pânico/ jogue-se rápido/ nade de volta à mãe África, aborda a conexão
tríplice transnacional entre a ascendência africana expressa no Brasil a partir de um gênero
musical estadunidense.1006 O disco também apresentou a canção “Punk da periferia” que
polemizava com a expressão de cultura jovem Punk, que integrava a nova forma de rock
para a qual então se direcionava a indústria fonográfica, comercializada pelos termos Rock
Nacional ou Rock Brasileiro.

1003
Emílio Santiago. O amigo de Nova York (Macau/Durval Ferreira). Mais que um momento. Álbum.
Philips. 1983. Faixa 01, Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=78ixTH78q BU>
1004
Emílio Santiago. Nego John (Carlos Conceição). Mais que um momento. Álbum. Philips. 1983. Faixa 01,
Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=yZa_zPt07LE>
1005
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 182.
1006
Gilberto Gil. Funk-se quem puder (Gilberto Gil). Extra. Álbum. Warner. 1983. Faixa 01, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=NdlwRakOeks >
361

O impacto do Rock Brasileiro no mercado fonográfico iniciou com o sucesso da


banda Blitz, em seu primeiro compacto, com a canção “Você não soube me amar”, lançado
pela gravadora EMI/Odeon em 1982. Ainda em 1982, o conjunto estreou em LP, As
aventuras da Blitz 1, na mesma gravadora, enquanto a Som Livre adentrou no “nicho de
mercado” com o LP Barão Vermelho, estreando o grupo homônimo. No ano seguinte,
1983, o conglomerado WEA (Warner/Elektra/Atlantic) lançou pelo selo Elektra o Ultraje a
Rigor, no compacto com “Inútil”, e o Magazine, no compacto com “Sou Boy”, que se
tornaram sucessos do ano. A Fermata lançou em compacto o grupo baiano Camisa de
Vênus, que ainda em 1983 lançou o primeiro LP pela Som Livre. Daí em diante, as bandas
jovens do Rock Brasileiro revelaram um lucrativo produto para a indústria fonográfica,
atendendo a demanda reprimida de público e também por ter um valor mais baixo de
produção. Tais aspectos ficam mais compreensíveis através de uma citação do produtor
musical Pena Schmidt – que trabalhava com os artistas da cena rock – presente no livro Os
donos da voz. Indústria fonográfica e mundialização da cultura, seguida por uma citação
da autora do livro, a socióloga Marcia Tosta Dias:

O rock como produção é muito barato. A música de intérprete requer maestro,


arranjador, músicos acompanhantes, que ganham cachês estipulados por
sindicatos, o que transforma uma música com milhares de dólares. O rock como
fenômeno mundial tem uma raiz econômica fortíssima, (...) Você tem uma forma
razoavelmente pequena, portátil, que se sustenta dentro de si, ela não recebe
cachê, os músicos são os autores, entram no estúdio e não custam nada para
trabalhar.1007

O baixo preço da produção de rock aparece traduzido nos seguintes números,


apresentados em notícia sobre encontro de gravadoras, realizado em Canela/RS,
em junho de 1983, quando anunciou-se que o mercado de discos no Brasil, no
referido ano, seria movimentado pelo rock e pelo “brega”: “‘Sou Boy’, po r
exemplo, custou a miserável despesa de Cr$ 100 mil de produção. A produção da
maioria dos discos de rock ou ‘brega’ não ultrapassa Cr$1 milhão. Enquanto
isso, os discos de produção mais sofisticada estão custando às gravadoras em
torno de Cr$ 10 milhões, podendo chegar a Cr$ 50 milhões, como no caso do
último disco do Djavan, mixado em Los Angeles. 1008

Uma aproximação explícita com o Rock Brasileiro foi realizada por Sandra Sá em
seu quarto álbum, lançado pela Som Livre. Neste LP, Sandra Sá, a cantora gravou
acompanhada do grupo Barão Vermelho o rock “Sem conexão com o mundo exterior”,
composição de dois membros do conjunto, Frejat e Cazuza. Conforme indicado no texto do
encarte do álbum, de autoria não creditada, a cantora mostrava-se eclética, “Forte, inteira,
sem rótulos ou medos”; e distanciando da identificação restrita à Black Music Brasileira:

1007
Pena Schidt. Entrevista à autora. DIAS, Marcia. T. Os donos da voz. Indústria fonográfica e
mundialização da cultura. 2008, p. 89.
1008
DIAS, Marcia. T. Os donos da voz. Indústria fonográfica e mundialização da cultura. 2008, p. 89.
362

“Sandra neste LP incorpora e transcende seu passado de ‘rainha do funk’ (...) esta ousada
garota do subúrbio carioca de Pilares se revela completa, cantando de blues a samba-
enredo, de rock a pontos de candomblé.”1009 Sandra estreou na Som Livre com sua
gravação do samba “Enredo do meu samba”, composição de Dona Ivone Lara e Jorge
Aragão, dois nomes expressivos da escola de samba Cacique de Ramos, gravada para ser
tema de abertura da telenovela Partido Alto, exibida pela Rede Globo entre 07/05/1984 e
23/11/1984.1010 Mudar de gravadora concedeu maior visibilidade ao trabalho de Sandra,
contudo, pôs fim à parceria da cantora com Durval Ferreira, produtor dos três discos
anteriores da cantora, compositor de algumas faixas e quem a apresentou ao compositor
Macau. O novo trabalho foi produzido pro Guto Graça Mello.

O álbum Sandra Sá, de 1984, apresentou poucas composições da artista. Apenas


uma, das dez faixas, foi composta por Sandra: “Canção de Búzios”, parceria com Pi e
Ronaldo Barcellos. Os dois pontos de candomblé foram gravados na mesma faixa, “Canto
de Oxum (Nação Ijexá)/Canto de Oxossi (Nação Angola)”, reverência aos orixás gravada
apenas com coro de vozes e percussão; não dialogando, portanto, com sonoridades da
Black Music, embora potencializando a expressão da linguagem antirracista, ao aproximar
da execução nos terreiros religiosos. Outras duas canções foram composições de nomes
expressivos do pop e do rock da época, Guilherme Arantes (“Férias de verão”) e Lulu
Santos (“Batikum”, parceria com Nelson Motta) e outras duas são composições do
produtor Guto Graça Mello em parceria com Naila Skorpio (“Muito Prazer” e
“Coincidentemente”). Curiosamente, uma das faixas era um fonograma de Billie Holiday,
o jazz “I’m a fool to want you”, sem atuação de Sandra. Esse também foi seu primeiro
disco sem contar com a presença instrumental e em arranjos de Oberdan Magalhães, que
faleceu em janeiro de 1984, resultando no fim da Banda Black Rio.

Também pela gravadora Som Livre, foi lançado em 1984 o vigésimo primeiro
álbum de Jorge Ben, Sonsual, sucessor de Dádiva, de 1983. Em Dádiva, a faixa de
abertura, “Eu quero ver a rainha”, apresentou um dueto de Jorge com Tim Maia, mas
nenhuma faixa foi expressiva para o estudo da presente tese. Sonsual seguiu as mesmas
características, contudo, conforme assinalado na dissertação do musicólogo Alam D’Ávila
do Nascimento, “Para Animar a Festa”. A música de Jorge Ben Jor: “Em três versos da
letra de ‘Irene Cara Mia’, terceira faixa deste LP, Jorge apresenta uma interessante síntese

1009
Texto de encarte. Sandra Sá. Sandra Sá. Álbum. Som Livre. 1984.
1010
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/partido -alto/> Acesso 21/08/2021.
363

de sua música: ‘minha música suburbana urbana/ com raízes africanas e oriental/ com
ligeiro toque universal’.”1011 Emílio Santiago lançou a sequência de Mais que um
momento, o álbum Tá na hora, também amparado na Black Music, porém, conforme
assinalado pelo jornalista Mauro Ferreira: “Mas já é um álbum empapuçado dos
sintetizadores que deram o tom tecnopop dos anos 1980.”1012 A faixa “Revelação” é uma
parceria de Macau com Nelson Motta, porém, não apresentava referências raciais, assim
como as demais faixas deste que foi o último LP de Emílio lançado no recorte desta tese.
Em 1988 o artista lançaria seu próximo álbum, Aquarela Brasileira, que, conforme Mauro
Ferreira: “Com discos de repertórios pautados por medleys de sucessos alheios, a série
gerou sete volumes lançados entre 1988 e 1994 pela gravadora Som Livre, e deu a Emílio
o sucesso popular contínuo que ele nunca tinha obtido até então”. 1013

Zezé Motta também lançou em 1984 seu último álbum no recorte desta tese, o
quarto de sua carreira, Frágil Força, pela gravadora Pointer. A faixa título, “Frágil força” é
um blues pop composto pelo “padrinho artístico” de Zezé, Luiz Melodia. O LP teve a
produção de Elodi e o acompanhamento e arranjos por uma banda musical fixa, o Grupo
Água Marinha, composto por Luiz Lopes (piano elétrico, acústico e teclados), Albino
Infanttozzi (bateria e percussão), Pedro Infanttozzi (baixo) e, nas guitarras, Don Beto – que
lançou o álbum Nossa Imaginação em 1978, conforme mencionado no início deste
capítulo. A sonoridade do disco era reforçada por vocais de apoio e um naipe de sopros.

A faixa de abertura de Frágil Força, “Negrito”, de Belizário e Paulinho Rezende,


evoca elementos soul, sobretudo pela execução do naipe de sopros e dos vocais de apoio, e
na letra promove a afirmação da autoestima e estética negras, fazendo referência à
escravidão e traçando conexão com o continente africano: Negrito/ que pele bonita que é
só melanina/ que coisa esquisita que me desatina/ e me deixa doida para endoidecer/
Deixa aquele tempo de senzala/ (...) Negrito/ me ensina o caminho do mar de Luanda.1014
A primeira faixa do Lado B, “Dança“, composição de Djalma Luz, é um ijexá tocado em
instrumentos elétricos, com elementos soul na introdução, e exalta: Pra dançar com esse
molejo, meu bem/ é preciso ir muito além/ é preciso ter Axé/ tem que ter a força e o pé/

1011
NASCIMENTO, Alam D’Ávila do. “Para animar a festa”. A música de Jorge Ben Jor. Dissertação
(Música). Universidade Estadual de Campinas. 2008, p. 46. Jorge Ben. Sonsual. Álbum. Som Livre. 1984.
1012
< http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/post/cinco-albuns-voltam-ao-catalogo-com-outros-
tons-da-aquarela-de-emilio.html> Acesso 21/08/2021.
1013
< http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/post/cinco-albuns-voltam-ao-catalogo-com-outros-
tons-da-aquarela-de-emilio.html> Acesso 21/08/2021.
1014
Zezé Motta. Negrito (Belizário/Paulinho Rezende). Frágil Força. Álbum. Pointer. 1984. Faixa 01, Lado
A. < https://www.youtube.com/watch?v=P2yy_lllAsk>
364

essa força da negra mulher/ ser bendita filha de Odé/ tem que ter Axé/ a dança dessa
menina/ me encanta e me fascina/ corpo negro, vem, me fala/ vem, invade a minha
alma.1015 Canção que reverencia o orixá caçador Odé ao ressaltar a força da mulher negra.
As canções “Angorá”, “Romântico” e “Prateia” ainda retomavam elementos da sonoridade
soul, mas sem abordar dimensões raciais.

Em 1984, Gilberto Gil compôs uma série de canções para o filme Quilombo, de
Cacá Diegues. As canções celebraram o Quilombo dos Palmares, as lideranças Ganga
Zumba e Zumbi e a figura de Dandara. No entanto, a trilha foi lançada em álbum apenas
no mercado europeu, pela WEA.1016 De tal forma, não sendo lançado no Brasil durante a
década de 1980, o LP Quilombo não compõe a documentação fonográfica desta tese. O
álbum lançado por Gil no Brasil em 1984 foi Raça Humana, mantendo as sonoridades pop
e reggae apresentadas nos álbuns anteriores e a produção de Liminha, mas, conforme
assumido por Gil, aproximando ao Rock Brasileiro. 1017 O LP apresentou outras canções
que ficaram consagradas no repertório do artista, como “Tempo rei” e “Vamos fugir” e
documentou Gil utilizando apenas guitarras, diferenciando dos discos anteriores, no qual o
artista tocava predominantemente violões.

No álbum Raça Humana, a expressão da linguagem negra antirracista é


emblemática em “A mão da limpeza”, um funk-reggae. Segundo Gil: “Eu fiz A Mão da
Limpeza para repor certas coisas no lugar e remendar um preconceito histórico contra os
negros; para responder, no mesmo tom, um desaforo – o velho ditado: ‘Negro, quando não
suja na entrada, suja na saída’”; e o compositor prossegue pontuando a dimensão
antirracista de sua letra na contraposição ao ditado, ao comentar a composição em sua
página na WEB: “No fundo, o provérbio tem uma conotação nitidamente moral, além de
física; o que se tenta considerar como sujo no negro é a sua existência, sua pessoa, sua
condição humana.”1018 Gilberto Gil conclui a explicação de sua canção afirmando: “Mas
jogando a sujeira como algo produzido preferencialmente pelos brancos, ela faz a limpeza
da nódoa que quiseram impor aos negros. E deixa implícita também uma condenação
moral aos brancos.”

O branco inventou que o negro/ quando não suja na entrada/ vai sujar na saída,
ê/ Imagina só/ que mentira danada, ê/ Na verdade a mão escrava/ passava a

1015
Zezé Motta. Dança (Djalma Luz). Frágil Força. Álbum. Pointer. 1984. Faixa 01, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=T9nake_9m_8>
1016
< https://gilbertogil.com.br/bio/gilberto-gil/> Acesso 21/08/2021.
1017
< https://gilbertogil.com.br/producoes/detalhes/raca-humana/> Acesso 22/08/2021.
1018
< https://gilbertogil.com.br/producoes/detalhes/raca-humana/> Acesso 22/08/2021.
365

vida limpando/ o que o branco sujava, ê/ imagina só/ o que o negro penava/ Eta
branco sujão/ Mesmo depois de abolida a escravidão/ negra é a mão/ de quem
faz a limpeza/ lavando a roupa encardida, esfregando o chão/ negra é a mão da
pureza/ Negra é a vida consumida ao pé do fogão/ negra é a mão/ nos
preparando a mesa/ limpando as manchas do mundo com água e sabão/ negra é
a mão/ da imaculada nobreza.1019

Djavan lançou pela gravadora CBS seu sexto álbum em 1984, Lilás, que desde a
faixa título, abrindo o disco, expressava a sonoridade pop, novamente em gravação
realizada nos EUA. Conforme texto sobre o LP na página oficial do artista na WEB,
“Nesse álbum, o que se ouve é a mesma sensibilidade poética e musical de sempre com
uma linguagem totalmente pop e atualizada para os padrões internacionais da época.”1020
No entanto, a partir da segunda faixa, “Infinito”, é perceptível a influência soul,
particularmente nas linhas de baixo elétrico, nítidas em várias canções do álbum, assim
como execuções de guitarra funk. A faixa “Obi” é um samba em sonoridade mais
convencional que faz referência à África e a orixás, como Obá e Logunedé (com a sua
saudação, Logun), e pelo próprio título da canção, pois Obi, segundo o Dicionário de
Cultos Afro-brasileiros, é: “Fruto da palmeira africana (...) É imprescindível no
candomblé, onde é oferecido aos orixás ou usado na adivinhação simples”.1021

O cenário da indústria fonográfica brasileira a partir de 1984 aprofundou o


retraimento da produção do cancioneiro Black brasileiro nos anos 1980. Conforme a
produção até então apresentada nesta tese demonstra, na década predominou, na Black
Music Brasileira, artistas identificados à MPB, que dialogavam com tal gênero musical de
forma diluída, como Djavan e Gilberto Gil. Tendência agravada em 1985 e na segunda
metade da década.

Em 1985, Carlos Dafé retornou à indústria fonográfica, lançando seu último


trabalho na década. O artista teve alguma visibilidade no compacto simples com a canção
“Deixa pra lá”, lançado pela RGE em 1984,1022 que integrou a trilha sonora da telenovela
Livre pra voar, da Rede Globo, exibida entre 17/09/1984 e 12/04/1985 - na qual também
constou a canção “Novas emoções”, de Hyldon. 1023 Porém, o álbum de 1985, O trem da
gente, foi lançado pela pequena gravadora Acorde, mantendo a sonoridade de baladas soul

1019
Gilberto Gil. A mão da limpeza (Gilberto Gil). Raça Humana. Álbum. Warner. 1984. Faixa 02, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=3nId4SUxlns >
1020
<https://djavan.com.br/discografia/lilas/> Acesso 22/08/2021.
1021
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 184.
1022
Carlos Dafé. Um estranho no ninho/Deixa pra lá. Compacto. RGE. 1984.
1023
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/livre-para-voar/trilha-sonora/> Acesso
22/08/21.
366

e sem apresentar temas raciais.1024 Elza Soares também retornou ao mercado fonográfico
com um novo LP, após um hiato de cinco anos. A cantora obteve notoriedade nos círculos
da MPB em 1984, por seu dueto com Caetano Veloso no samba-rap “Língua”, lançada no
álbum Velô do compositor. O novo álbum de Elza, Somos todos iguais, ao ser intitulado
por uma das faixas, diferenciou da tendência dos últimos álbuns de Elza,
Pilão+Raça=Elza (1977) e Elza Negra, Negra Elza (1980), nos quais os títulos pareciam
evocar uma afirmação racial enquanto negra, talvez em busca de distanciar do estereótipo
de “mulata” fixado à cantora na década de 1960.

Somos todos iguais foi lançado pela gravadora Som Livre mas, conforme
informado na contracapa do LP, com Elza Soares “cedida” pela Recarey. A sequência
inicial do álbum, “Osso, pele e pano”, “Mais uma vez” e “Da fuga de sua verdade”,
evidenciava a manutenção na sonoridade mais convencional de sambas, conforme
predominante nas gravações de Elza desde o início da década de 1970. Contudo, a cantora
gravou outros gêneros musicais, como a salsa “Somos todos iguais”; a versão de um
standard jazzístico, “Sophisticated Lady”, dueto com Caetano Veloso e com letra em
inglês e português; o blues jazzístico “Exagero”; o rock “Milagres”, de Frejat e Cazuza, do
Barão Vermelho; e o samba-jazz “Daquele amor, nem me fale”. Demonstrava um trabalho
mais eclético do que os anteriores de Elza. A cantora ainda regravou “Heróis da liberdade”,
originalmente gravada por ela em 1969 e que tematiza a memória da escravidão e da busca
pela liberdade pelas pessoas escravizadas – aqui, cantada em voz e violão, e nos segundos
finais, a entrada de forte percussão de samba enredo.1025

Gilberto Gil lançou em 1985 seu décimo sexto álbum de estúdio, Dia Dorim, Noite
Neon. O disco aprofundou a aproximação do artista com o Rock Brasileiro através da
citação a vários nomes do gênero em “Roque Santeiro, o Rock” e na participação de
Herbert Vianna, do grupo Paralamas do Sucesso, na guitarra do blues “Seu olhar”. O disco
encerrou a parceria de Gil com o produtor Liminha e também a produção do artista no
recorte desta tese. O LP seguinte de inéditas de Gil saiu somente em 1989, O Eterno Deus
Mu Dança, produzido por Celso Fonseca; mas nesse intervalo o cantor lançou duas trilhas
sonoras de filmes, Jubiabá (1986) e Um trem para as estrelas (1987), um disco ao vivo em
voz e violão, Em concerto (1987) e duas gravações para o mercado internacional, a
coletânea Soy Loco por ti América e o Ao vivo em Tóquio - lançado apenas no Japão. O

1024
Carlos Dafé. O trem da gente. Álbum. Acorde. 1985.
1025
Elza Soares. Somos todos iguais. Álbum. Som Livre. 1985.
367

relativo intervalo na produção do artista dialogava com o contexto nacional. O Brasil vivia
um processo de reabertura política que, em 1985, proporcionou a eleição indireta de um
primeiro presidente civil após vinte e um anos de ditadura militar. Gilberto Gil ingressou
na esfera da política, primeiro na gestão da Fundação Gregório de Matos, órgão municipal
de cultura de Salvador (1987) e depois como vereador em Salvador pelo Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). 1026

No álbum Dia Dorim, Noite Neon, Gilberto Gil lançou “Oração pela Libertação da
África do Sul”, um manifesto que evidenciava as amplas conexões transnacionais das
culturas negras e da luta antirracista. Afinal, a composição é um reggae, gênero jamaicano
que Gil conheceu com migrantes negros do país na Inglaterra, mas se tornou mundialmente
conhecido pela indústria fonográfica dos EUA, e que aqui tematiza a luta antirracista na
África do Sul, composta em português por um artista brasileiro. Portanto, a composição
indicia interlocuções entre comunidades negras de quatro países em dois continentes:
Brasil, Jamaica, EUA (das Américas do Sul, Central e do Norte) e África do Sul (África).
A música foi introduzida pelo aviso de Gil: Esta música é dedicada ao físico nuclear
Mário Schenberg, quem encomendou a composição a Gil, como explicado pelo artista:
“[ele] queria uma música sobre a África do Sul. Eu ainda disse: ‘Nós temos feito protestos,
manifestações, assinado manifestos contra o apartheid e tal.’ E ele: ‘Mas não é o suficiente;
é preciso uma canção’.”1027 Embora o motivo para a composição tenha sido uma
encomenda, tal fato não diminui a expressão antirracista do ato realizado pelo artista e
tampouco a intenção de intervenção política dos versos:1028

Se o rei Zulu já não pode andar nu/ salve a batina do bispo Tutu/ Ó Deus do céu
da África do Sul/ tornai vermelho todo o sangue azul/ Já que vermelho tem sido
todo o sangue derramado/ todo corpo, todo irmão chicoteado/ Senhor da selva
africana, irmã da selva americana/ nossa selva brasileira de Tupã/ fazei com
que o chicote seja por fim pendurado/ revogai da intolerância a lei/ devolvei o
chão a quem no chão foi criado/ Ó Cristo Rei, branco de Oxalufã/ zelai por
nossa negra flor pagã/ sabei que o Papa já pediu perdão/ varrei do mapa toda a
escravidão.1029

1026
< https://gilbertogil.com.br/bio/gilberto-gil/> Anos 1987 e 1988. Acesso 23/08/2021.
1027
< https://gilbertogil.com.br/producoes/detalhes/dia-dorim-noite-neon/> Acesso 23/08/2021.
1028
Esse argumento retoma a reflexão de Quentin Skinner quanto às intervenções políticas realizadas na
produção intelectual como ato de fala. Para o autor: “Falar de motivos de um autor implica, invariavelmente,
falar de uma condição que antecedeu e está relacionada de forma contingente – o nascimento das suas obras”
(p. 138). Enquanto as “intenções permite-nos caracterizar aquilo que o autor estava a fazer – ou seja, ser
capaz de afirmar que ele ou ela pretendiam, por exemplo, atacar ou defender um argumento em particular,
criticar ou desenvolver uma tradição específica de discu rso, e por aí diante.” SKINNER, Q. Motivos,
Intenções e Interpretação. In: Visões da política. Sobre os métodos históricos. 2002, p. 142.
1029
Gilberto Gil. Oração pela Libertação da África do Sul (Gilberto Gil). Dia Dorim Noite Neon. Álbum.
Warner. 1985. Faixa 02, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=JkJbGr-_mB0>
368

A canção de Gilberto Gil enfatizou uma conexão transnacional africana, americana


e brasileira, e expressões religiosas africanas, indígenas (Tupã) e do cristianismo de origem
europeia, mas mobilizado na luta contra o regime segregacionista do Apartheid pelo
arcebispo negro da África do Sul, Desmond Tutu, prêmio Nobel da Paz em 1984. A canção
cita o maior grupo étnico da África do Sul, a nação Zulu e evoca a luta contra a escravidão.
Analúcia Danilevicz Pereira introduz o livro A Revolução Sul-Africana. Classe ou raça,
revolução social ou libertação nacional? informando: “Pensar a África do Sul significa
considerar que a economia desse país foi marcada pela escravidão e servidão por 250 anos
e pela discriminação e exploração por outros 100 anos”; afinal, prossegue a autora: “O
regime do apartheid, implantado em 1948, sobrepujou o sistema da escravidão e servidão
organizado pelos europeus desde a segunda metade do século XVII e o transformou em um
sistema de discriminação e exploração.”1030 Em um cenário de Guerra Fria, o regime
segregacionista da África do Sul foi tornado um “pilar” na defesa do modelo de sociedade
e economia capitalista pelos Estados Unidos, que mantinha o apoio ao regime, a despeito
da oposição predominante no cenário internacional da década de 1980. Analúcia D. Pereira
demarca o período a partir de 1976 como “O ápice do confronto”, com as revoltas na
região de Soweto e a forte atuação de grupos de resistência, sobretudo o Congresso
Nacional Africano (CNA), intensificadas nos anos 1980: “Em 1985, na Conferência
Nacional ocorrida em Kawbe, Zâmbia, realizada no auge dos levantes na África do Sul, o
CNA adotou formalmente a estratégia da Guerra Popular.”1031 Assim, a África do Sul
tornava-se um símbolo global para a luta antirracista.

A expressão de apoio à luta contra a segregação racial na África do Sul por artistas
negros articulados à Black Music Brasileira também foi identificada nos últimos trabalhos
de Djavan no recorte temporal desta tese. Em 1986, o artista alagoano lançou Meu Lado,
álbum gravado com sua banda, Sururu de Capote, no Rio de Janeiro - diferenciando de Luz
e Lilás, gravados em Los Angeles, nos EUA. 1032 O LP ficou conhecido pela faixa “Meu
bem querer”, que, segundo a página oficial de Djavan na WEB: “é uma balada de acento
blues, com letra ultra-romântica.”; e, conforme a página: “No esforço internacional de
combater o Apartheid, que em 1986 ainda separava oficialmente brancos ricos e negros
pobres e oprimidos na África do Sul, Djavan gravou o ‘Hino da Juventude Negra da África

1030
PEREIRA, Analúcia D. A Revolução Sul-Africana. Classe ou raça, revolução social ou libertação
nacional? 2012, p. 23.
1031
PEREIRA, Analúcia D. A Revolução Sul-Africana. Classe ou raça, revolução social ou libertação
nacional? 2012, p. 117.
1032
Djavan. Meu lado. Álbum. Sony Music. 1986.
369

do Sul’, acompanhado de grupo vocal daquele país.”1033 O Hino da Juventude Negra foi
gravado no idioma original como faixa de encerramento do álbum, intitulado, assim, “So
Bashiya Ba Hlala Ekhaya” (traduzido ao português, “Vamos deixar nossos pais”). A
penúltima faixa do LP era o hino do Congresso Nacional Africano, “Nkosi Sikelel’ L-
Afrika” (“Abençoe a África, oh! Senhor”). 1034 Ambas foram gravadas em respeito à
sonoridade original, sem diálogos com outros gêneros.

O álbum seguinte de Djavan, Não é azul mas é mar, oitavo LP do artista e


novamente gravado em Los Angeles, conforme a página do artista: “esteticamente situa-se
num meio termo entre os outros dois anteriores [produzidos nos EUA por Ronnie Foster],
nem tão soul quanto ‘Luz’, nem tão eletrônico quanto ‘Lilás’.” E foi introduzido pela faixa
“Soweto”, na qual, segundo a mesma página: “a dolorosa resistência sul-africana contra o
Apartheid não apenas abre os trabalhos (...), como desta vez, de forma direta, crua,
transforma o sofrimento em lição para todo o mundo.”1035 A letra da canção é enfática:
Kinshasa, Beirute, Maranhão/ O negro que lute/ pra poder sonhar/ em mudar isso aqui/ O
poder tem tantas mãos/ e só sabe mentir/ quanto mais se diz/ e mais o povo quer/ eleição/
Ninguém esperava ver/ a terra estremecer/ com o apartheid/ Deus salve Soweto/ carência
e calor/ nos guetos.1036 Cantada em sonoridade elétrica, com destaque aos teclados, baixo
elétrico e guitarra, a canção abordou a região então mundialmente reconhecida pelos
levantes e a violência da repressão.

O álbum Não é azul mas é mar foi o último lançamento de Djavan no recorte desta
tese - seu próximo disco saiu em 1989 e com o enorme sucesso “Oceano”. O álbum
também foi um dos dois únicos identificados pela pesquisa desta tese para o ano de 1987.
O outro foi o sexto álbum de Luiz Melodia, Claro, lançado pela gravadora Continental,
com produção de Oscar Paolillo, arranjos e instrumentistas não creditados e no qual a
única faixa que trazia alguma referência racial foi “Malandrando”, samba em sonoridade
convencional ao gênero, que faz referência a Tia Ciata como “mãe preta”, citando a
memória da escravidão e a figura do “mulato” como legítimo da nação. 1037 No entanto, se

1033
<https://djavan.com.br/discografia/meu-lado/> Acesso 23/08/2021.
1034
Traduções dos títulos extraídas da página oficial do artista, na qual também constam as letras traduzidas.
<https://djavan.com.br/discografia/meu-lado/> Acesso 23/08/2021
1035
< https://djavan.com.br/discografia/nao-e-azul-mas-e-mar/> Acesso 23/08/2021.
1036
Djavan. Soweto (Djavan). Não é azul mas é amor. Álbum. Sony Music. 1987. Faixa, 01, Lado A.
<https://www.youtube.com/watch?v=wrC-orL1cik>
1037
Luiz Melodia. Malandrando (L. Melodia/ Perinho Santana/ Silvio Lana). Claro.LP. Continental. Fx 2, Ld
B
370

1987 houve apenas dois álbuns, em 1986 ainda teve outros registros, além dos de Gilberto
Gil e Djavan, abordados acima.

Sandra Sá retornou com álbum lançado pela gravadora RCA, dirigido por Miguel
Plopschi e produzido pelo mais eficaz compositor de sucessos radiofônicos da década, o
hitmaker Michael Sullivan. Segundo André Barcinski: “O domínio de Sullivan e Massadas
na cena musical ganhou um forte empurrão com a chegada do executivo Miguel Plopschi à
gravadora RCA, em 1983.”1038 E o LP de Sandra parece confirmar o argumento. Sandra Sá
iniciava com duas composições de Michael Sullivan e Paulo Massadas que reforçavam a
característica das produções da dupla: canções que respeitavam a identidade musical dos
intérpretes, mas com apelo e – geralmente – sucesso comercial:1039 a balada soul “Retratos
e canções” e o funk “Joga fora”, ambas em arranjos com maior diálogo com o pop. Tim
Maia já tinha estourado nas paradas de sucesso com composições da dupla em seu
redirecionamento à sonoridade pop, com as baladas “Me dê motivo” (1983) e, em dueto
com Gal Costa, “Um dia de domingo” (1985). E as duas canções interpretadas por Sandra
nesse disco de 1986 também conquistaram sucesso, assim como a balada soul “Solidão”
(Chico Roque/Carlos Colla) e o funk antirracista “Olhos coloridos” (Macau), que se tornou
mais conhecido (e sua mensagem mais difundida) ao ser regravado neste LP de destaque
na discografia da artista.1040 As outras faixas do disco, porém, eram na sonoridade pop da
época, sem diálogo com a Black Music.

A sonoridade pop então em voga, evidenciada pelos timbres eletrônicos e forte uso
de sintetizadores, também apareceu imiscuída ao samba em Ben Brasil, álbum lançado por
Jorge Ben em 1986, seu último registro na gravadora Som Livre e último também no
recorte desta tese. Embora na faixa “O amante vigilante africano” evocasse a ascendência
africana e saudasse salve Oxalá, e em “A fonte de Paulus V” saudasse o machado de
Oxóssi, o disco não apresenta maiores expressões antirracistas e pouco das sonoridades da
Black Music.1041

Por fim, o ano de 1986 apresentou o terceiro álbum gravado por Itamar Assumpção,
Sampa Midnight – Isto não vai ficar assim. O disco também foi lançado através do cenário
independente, mas pelo selo Mifune Produções Artísticas, posto que o Selo Lira

1038
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 201.
1039
Sobre a dupla de compositores e seu enorme sucessos nos anos 1980, ver: BARCINSKI, André. Pavões
Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2015, p.199-207.
1040
Sandra Sá. Sandra Sá. Álbum. RCA. 1986.
1041
Jorge Ben. Ben Brasil. Álbum. Som Livre. 1986.
371

Paulistana, que existia em um acordo de distribuição com a gravadora Continental, não


conseguiu se manter e encerrou atividades.1042 O álbum documentou uma mudança na
sonoridade de Itamar, priorizando o violão do artista, que dialoga com guitarras, baixo,
bateria e vozes e com o som do trombone, marcante por todo o álbum - como o era para a
Elza Soares na primeira década da carreira, conforme assinalado no primeiro capítulo desta
tese.1043 O disco explicitou referências soul e funk em meio ao “caldeirão” de influências
sonoras do artista, e documentou a incorporação mais explícita do reggae por Itamar em
“Movido a água”.

A pluralidade de possibilidades de explorar o LP de Itamar motivou uma


dissertação recentemente defendida pela filósofa Gabriela Miranda de Frias, “Entre o sim e
o não existe um vão”: um estudo sobre Itamar Assumpção e o álbum Sampa Midnight
(1986). No entanto, não foi identificada a questão racial nas letras. Contudo, cabe ressaltar
a hipótese central da leitura da filósofa sobre o álbum, que seria: “a ideia do vão, e desse
cantor popular que está em um entre: ao mesmo tempo que tem consciência da
impossibilidade de sua música seguir pelo caminho alternativo aos meios hegemônicos de
gravação e difusão, ainda aposta e insiste em uma produção musical mais livre”. 1044 Afinal,
o LP seguinte de Itamar, Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!!, lançado em
1988, saiu pela Continental, sendo o único trabalho do artista em uma major. O ingresso
em uma grande gravadora impactou na obra do artista. Segundo a historiadora Rosa
Aparecida do Couto Silva, “já não é preponderante o experimentalismo radical das
primeiras obras, mas um equilíbrio entre a engenhosidade musical de Itamar Assumpção e
um direcionamento aos gêneros populares simples, passíveis de serem executados em
programas de rádio, por exemplo.”,1045 como “Maremoto”, samba em sonoridade
convencional, algo único na obra do artista. Neste último trabalho de Itamar no recorte
desta pesquisa, por fim, também não foram identificados temas raciais. Mas, ao sair da
produção independente, Itamar finalizou a década de 1980 aparentando adquirir maior

1042
Sobre o selo Lira Paulistana, ver FRIAS, Gabriela Miranda de. “Entre o sim e o não existe um vão”: um
estudo sobre Itamar Assumpção e o álbum Sampa Midnight (1986). Dissertação (Filosofia). Universidade de
São Paulo. 2020, p. 41, 42. Itamar Assumpção. Sampa Midnight. Álbum. Mifune Produções Artísticas. 1986.
1043
Tal como feito com Luiz Melodia, Itamar Assumpção declarou sua relação com Elza Soares em música.
Contudo, a gravação Elza Soares foi lançada postumamente. Desde que me entendo por gente/ Elza Soares
da vida/ das armas brancas, químicas, quentes/ Música é a preferida/ eu disse/ Desde que me entendo por
gente/ eu sambo, eu faço o que gosto/ my soul is black, meu sangue é quente/ eu quando gosto, me enrosco .
In: Itamar Assumpção. Pretobrás II. Maldito vírgula. SESC. 2010. Faixa 14. Caixa Preta.
1044
FRIAS, Gabriela Miranda de. “Entre o sim e o não existe um vão”: um estudo sobre Itamar Assumpção e
o álbum Sampa Midnight (1986). Dissertação (Filosofia). Universidade de São Paulo. 2020, p. 99.
1045
SILVA, Rosa Aparecida Couto. Itamar Assumpção e a encruzilhada urbana: negritude e
experimentalismo na vanguarda paulista. Tese (História). Universidade Estadual Paulista. 2020, p. 113.
372

alcance para o seu trabalho, com as possibilidades de distribuição de uma grande


gravadora.

Elza Soares também retornou em 1988 com o álbum Voltei, encerrando sua
produção no recorte desta tese com um disco voltado para as composições e sonoridade do
samba de tipo partido alto.1046 Já Sandra de Sá gravou um novo álbum que registrou a
mudança de seu nome, incluindo o conectivo “de”. O LP Sandra de Sá, lançado em 1988
pela RCA, repetiu a direção artística de Miguel Plopschi e a produção de Michael Sullivan.
Embora houvessem três composições da dupla Sullivan e Massadas, a canção que se
tornou mais conhecida do LP foi “Bye, Bye Tristeza”, de Carlos Colla e Marcos Valle.
Quanto às linguagens antirracistas, a conexão com o continente africano apareceu na
quarta faixa do LP, “África”, em sonoridade pop-soul: África, mulher de raça antiga/
África, mistério e magia/ África, selvagem... amiga/ África, negra tão bonita/ (...) Sinto em
mim tua música, tua força de guerreira/ Zimbabwe, celebrando uma imagem
homogeneizada e estereotipada (mistério e magia, selvagem...), mas positiva do continente
africano.1047 E a canção finalizou evocando o país que Tim Maia havia cantado em 1976,
Zimbabwe - quando ainda era a Rodésia, sob domínio da minoria branca.

Ainda em 1988, Sandra de Sá foi convidada para participar do LP Central Africana,


a estreia fonográfica do grupo homônimo, lançado pela gravadora RCA. 1048 Considerado
um álbum pioneiro de uma banda de reggae no Brasil, a canção gravada com Sandra, “Sou
negro, sim”, no entanto, é uma balada soul.

Sou negro, sim, não tenho vergonha, não/ Desde a abolição que eu luto/ Luz do
cometa luz. Reluz. Sobre nossas cabeças/ A minha cor não deve influir no nosso
amor/ Porque o negro é nascido da flor/ Vá, diga para ele, se a cor da pele é
limpa demais/Vá, diga para eles que a cor da pele é limpa demais! 1049

A canção retomava a afirmação existencial que apareceu em 1971 em “Sou negro”,


gravada por Toni Tornado, e enfatiza a luta das pessoas negras após a abolição da
escravidão. A canção citou o preconceito como uma barreira nas relações afetivas, no
verso A minha cor não deve influir em nosso amor. E concluiu com uma referência a um
estigma do preconceito racial, aquele que relaciona a cor de pele negra à sujeira,

1046
Elza Soares. Voltei. Álbum. RGE. 1988.
1047
Sandra de Sá. África (Gil Gerson/César Rossini). Sandra de Sá. Álbum. RCA. 1988. Faixa 04, Lado A .
<https://www.youtube.com/watch?v=GQny0n9rasQ>
1048
<http://www.cultne.com.br/central-africana-pioneira-do-reggae-no-brasil-no-cultne/> Acesso
15/07/2019.
1049
Central Africana e Sandra de Sá. Sou negro, sim. Central Africana. Álbum. PluG. 1988. Faixa 02, lado
A.
<https://www.youtube.com/watch?v=Zyq8TiXF9xo>
373

transitando entre o questionamento deste estigma (Vá, diga para ele, se a cor da pele é
limpa demais) para a afirmação oposta ao estigma (Vá, diga para eles que a cor da pele é
limpa demais!), dialogando, assim, com a composição de Gilberto Gil, “A cor da limpeza”.
Embora não seja uma gravação incluída na discografia oficial de Sandra de Sá, a seleção
de “Sou negro, sim” para esta tese é justificada pela escolha da participação da intérprete
para o dueto com o vocalista Papa Ricky interferir na estética mobilizada à canção – um
soul, em um álbum dedicado ao reggae brasileiro.

Os últimos trabalhos localizados na produção fonográfica de 1988, ano final do


recorte desta tese, podem aparentar uma dimensão de epílogo. Alguns artistas cuja
produção foi estudada nesta tese e que haviam interrompido as gravações, retornaram em
projetos coletivos no ano. Tony Tornado e Lady Zu, juntos a Luiz Vagner, Tony Bizarro e
Carlinhos Trumpete, participaram do LP coletivo Alma Negra, lançado pela Continental e
dedicado à Black Music Brasileira.1050 Cada artista gravou duas faixas. Lady Zu atuou em
duas canções românticas, a balada “Junto a mim” e a dançante “Vou vivendo”. Tony
Tornado lançou “Motim” que, apesar do nome, não apresentava tema político, e o reggae
“Manifesto”, que dialoga com a crise política em Angola: Temos que fazer algo agora/
sem desesperar como outrora/ retornar o tempo perdido/ sentido, ferido/ todo nosso tempo
perdido/ e covardemente agredido/ nós estamos voltando agora/ Angola, é hora/ queremos
tudo de novo/ devolvam tudo que é nosso/ a liberdade eu conheço/ e não tem preço, não/
eu sei que mereço.1051

Outro projeto coletivo de 1988 foi lançado pelo selo Kuarup Discos, Quarteto
Negro, que marcou o retorno de Zezé Motta aos registros fonográficos, acompanhada dos
saxofones e clarinete de Paulo Moura, Djalma Corrêa nas percussões e Jorge Degas, no
violão e baixo. Zezé canta a faixa “Zumbi”, composição de Gilberto Gil e Waly Salomão
da trilha sonora de Quilombo. No filme, lançado em 1984, dirigido por Cacá Diegues, Zezé
Motta interpretou a personagem Dandara, companheira do líder Zumbi e Tony Tornado
interpretou Ganga Zumba, antecessor de Zumbi na liderança de Palmares. Evocando a
imagem de resistência dos quilombos, a canção “Zumbi” trouxe o refrão: A felicidade do
negro é uma felicidade guerreira e os versos Minha espada espalha o sol da guerra/ Meu

1050
Carlinhos Trumpete/Lady Zu/Tony Bizarro/Tony Tornado/Luiz Vagner. Alma negra. LP. Continental.
1988
1051
Tony Tornado. Manifesto (T. Tornado/Gene Araujo). Alma Negra. LP. Continental. 1988. Faixa 5, Lado
A. O artista, a essa época, já assinava com “y” no disco. < https://www.youtube.com/watch?v=1iM7sMAAh-
Q>
374

quilombo incandescendo a serra (...) Brasil, meu Brasil brasileiro/ meu grande terreiro,
meu berço e nação/ Zumbi protetor, guardião padroeiro/ Mandai a alforria pro meu
coração.1052 Canção representativa para o objetivo geral do álbum coletivo. O disco foi
produzido como uma homenagem ao centenário da abolição da escravidão, com a proposta
de misturar sonoridades africanas, da música popular brasileira e sopros jazzísticos.

As homenagens ao centenário da escravidão parecem ter inspirado o lançamento do


LP coletivo Alma Negra, abordado alguns parágrafos atrás, devido à atenção midiática a
artistas negros brasileiros. Exemplar de tal atenção midiática em 1988 foi o clipe “Axé
para todo mundo”, produzido pela Rede Globo de televisão, reunindo dezenas de artistas
negros, inclusive a grande maioria dos que tiveram a sua produção analisada no decorrer
desta tese.1053

3. 2. O vocábulo “Racismo” e o pensamento político antirracista.

No decorrer desta tese é notável que o vocábulo “racismo” não aparece em


nenhuma das canções citadas, assim como o termo não foi identificado nas demais canções
escutadas do recorte temporal, em todo o processo de produção desta pesquisa. No entanto,
tal vocábulo apareceu diversas vezes não somente na bibliografia mobilizada, mas em
várias das demais documentações do período. Concomitante à lacuna quanto a “racismo”
na documentação fonográfica, foi perceptível que a recorrência do termo na bibliografia
operava um significado distinto ao identificado na recorrência do termo em outras
documentações consultadas. É um esforço para compreender essas diferenças no vocábulo
que estimulou este tópico da tese.

Por exemplo, na edição de julho de 1969 do periódico alternativo O Pasquim, foi


publicada uma entrevista com Wilson Simonal, então no auge do sucesso, e a reportagem
recebeu o sintomático título Simonal: “Não sou racista” (Simonal conta tudo).1054 Por
volta da metade da entrevista que o público leitor compreende o título da reportagem, após
Simonal responder que escolhe como gênio do futebol Pelé, tendo como outra opção o
Garrincha. A reportagem explicita (através de reticências após dizer “O Pelé, porque...”)
que a resposta do cantor foi interrompida pelo jornalista Pinheiro Guimarães, que pergunta

1052
Quarteto Negro. Zumbi (G.Gil/W. Salomão). Quarteto Negro. Álbum. Curau Discos. 1988. Fx 1, Lado B.
1053
< https://www.youtube.com/watch?v=1NC0YsHQqk8> Acesso 23/08/2021.
1054
O Pasquim, julho de 1969, n°4. Apud. ALONSO, Gustavo. Quem não tem swing morre com a boca cheia
de formiga: Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical. 2011, p. 411-423.
375

“Você é racista?” e Simonal responde: “Não, eu não sou racista, minha mulher é loura, sou
vidrado em loura, em olho verde, olho azul, e não é necessidade de afirmação (...) Mas o
Pelé foi o mais inteligente, porque gênio é em todos os sentidos...”1055 A essa resposta,
outro jornalista do periódico, Jaguar, pergunta “Como é que você encara o preconceito
racial no Brasil?” e Simonal diz:

Acho meio frescura, mas no duro ele existe. (...) E então, por que existe o
racismo? Eu me lembro que quando estava no colégio, eu estudava que a raça
negra era inferior, que o branco era mais bonito, era superior, etc. (...) Quando eu
canto o charme e a beleza negros, não é que eu seja racista, é apenas para provar
para a maioria destes crioulinhos idiotas, que em vez de estudar ficam aí se
marginalizando, que enquanto existirem esses conceitos e o condicionamento do
povo em relação à beleza branca e sua superioridade, este negócio vai existir, vai
demorar um pouco para mudar. Mas para mudar não é com poder negro, pantera
negra e outras frescuras, muda é com educação e o negro mostrando que tem
capacidade de se impor.1056

Os trechos citados acima da entrevista com Wilson Simonal são instigantes quanto
ao entendimento demonstrado pelo cantor para o termo “racismo” e também o
demonstrado por jornalistas de O Pasquim. Afinal, a pergunta “Você é racista?” surge após
o cantor escolher um jogador de futebol de pele mais escura, um negro retinto – na
terminologia atual. Porém, a pergunta seguinte, de Jaguar, não usa o termo “racismo”, mas
“preconceito racial” para questionar Simonal sobre a situação brasileira. Em ambas as
respostas do cantor, no entanto, o termo “racismo” é mobilizado com significados
próximos: primeiro ao justificar suas opções na avaliação da técnica futebolística e no par
afetivo (e enfatizando não ser “necessidade de afirmação”); e em seguida, ao justificar que
a existência de preconceito racial no Brasil deve-se a um “condicionamento”, introjetado
desde a infância, a partir das escolas, que prega a superioridade e a beleza das pessoas
brancas. De tal forma, no argumento de Simonal, ele não seria racista ao preferir o
esportista de pele mais escura, sendo uma avaliação justificada pela habilidade individual
do atleta. E esta “neutralidade” da avaliação, para o cantor, seria similar à sua preferência
por mulheres louras – e é curioso que o cantor não associe tal preferência ao
condicionamento para a superioridade da beleza branca. A despeito de seu gosto, Simonal
alega que seu discurso sobre o charme e a beleza negra em canções não seria “racista”, mas

1055
O Pasquim, julho de 1969, n°4. Apud. ALONSO, Gustavo. Quem não tem swing morre com a boca cheia
de formiga: Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical. 2011, p. 418.
1056
O Pasquim, julho de 1969, n°4. Apud. ALONSO, Gustavo. Quem não tem swing morre com a boca cheia
de formiga: Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical. 2011, p. 419.
376

apenas uma tentativa de contrapor o “condicionamento” em prol da superioridade


branca.1057

A evocação do vocábulo “racismo” significando a hierarquia de beleza e


preferências para relacionamentos, envolvendo a música brasileira e a imprensa, apareceu
novamente em 1971, quando a jornalista Lenita Miranda Figueiredo expôs, em sua coluna
no jornal Folha da Tarde, sua leitura sobre os riscos da canção “Black is beautiful”:

Sem dúvida alguma “Black is beautiful” é uma música perigosa ainda que seja
top nas paradas de sucesso [...] Que os irmãos Valle ou Elis Regina queiram um
homem de cor, do Congo ou daqui, e que achem horríveis os brancos da rua do
Ouvidor, ninguém tem nada a ver com isso. Mas dessas divagações pode nascer
o desentendimento dos verdes brasileiros. Com isso pode desencadear-se aqui,
uma onda racista, uma guerra entre brancos e negros, coisa que jamais o
brasileiro pensou. Em contrapartida, só nos resta uma alternativa. Ou nós, os
brancos pintamos a cara de preto e que nessa onda entrem também “os homens
horríveis da rua do Ouvidor” ou vamos imprimir nossos cart ões de visita com o
novo slogan “White is beautiful”.1058

Na avaliação da colunista, a canção gravada por Elis Regina trazia o risco de


provocar uma “onda racista, uma guerra entre brancos e negros” ao evocar que “negro é
bonito” com a contraposição aos “brancos horríveis”. Para Lenita Figueiredo, portanto,
afirmar, de tal forma, “Negro é bonito” influenciaria a necessidade da afirmação
contraposta, “Branco é bonito”, manifestações que, para além de uma preferência estética
privada, arriscariam estimular a tal “onda racista”. Ou seja, a afirmação de uma
superioridade da beleza de pessoas negras ou brancas traria, igualmente, uma ameaça de
“racismo”, no argumento da jornalista.

Também na influente reportagem de Lena Frias, Black Rio. O orgulho (importado)


de ser negro no Brasil, publicada no Jornal do Brasil em 1976, o termo “racismo” voltado
às pessoas brancas aparece em algumas falas de integrantes dos bailes à entrevista. Por
exemplo, Nirto, um homem negro integrante da equipe de som Soul Grand Prix, diz: “Aqui
no Rio tem racismo, é claro que tem, mas é assim muito disfarçado, quer dizer, está
tomando certas proporções, mas racismo mesmo - eu sei que isso vai ferir muita gente –

1057
Uma exploração mais detalhada desta reportagem e de outras de Wilson Simonal abordan do o
preconceito racial e o racismo foi realizada pelo autor desta tese em: MORAIS, Bruno Vinícius Leite de.
“Não sou racista”: Racismo, racialismo, o Orgulho Negro e os seus efeitos políticos e sociais. In: “Sim, sou
um negro de cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no Brasil dos anos 1960. Dissertação
(História). Universidade Federal de Minas Gerais. 2016, p. 78-151.
1058
FIGUEIREDO, Lenita. 1971, p. 20. APUD. PAIVA, Carlos Eduardo A. Black Pau: a soul music no
Brasil nos anos 1970. Tese (Ciências Sociais). Universidade Estadual de São Paulo. 2015, p. 112. Sublinhado
meu.
377

somos nós negros mesmo que estamos fazendo, eu acho.”1059 O integrante referia à
produção dos bailes Black serem preferencialmente voltadas para o público de pele negra.
Embora as organizações dos bailes não impedissem a entrada de pessoas brancas, a
manifestação de um direcionamento de público e certos relatos de impressão de menor
receptividade aos frequentadores brancos foi entendida como segregação e expressa pelo
entrevistado a partir do vocábulo “racismo”.

E, para entrar no recorte temporal deste capítulo da tese, na edição de agosto de


1982 da revista Gallery Around, foi publicado um texto intitulado Manifesto Punk, escrito
pelo jovem Clemente Nascimento – vocalista e guitarrista da banda de Rock Brasileiro
Inocentes e o único negro a liderar uma das bandas a angariar destaque nos anos 1980.
Segundo Ricardo Alexandre, no livro Dias de Luta: o Rock e o Brasil dos anos 80, o texto
assim iniciava: “Nós, os punks, estamos movimentando a periferia – que foi traída e
esquecida pelo estrelismo dos astros da MPB. Movimentando a periferia, mas não como
Sandra Sá, que agora faz sucesso com uma canção racista e com outra que apenas convida
o pessoal para dançar”.1060 A canção referida por Clemente, considerando ser o ano de
1982, é “Olhos coloridos”, composição de Macau que, conforme apresentado no tópico
anterior, afirmava a beleza da estética e fenótipo das pessoas negras. É instigante que
também foi um artista negro a denunciá- la como racista.

Os quatro casos citados acima expõem uma compreensão do vocábulo “racismo”


que era atribuída não somente a pessoas brancas, mas também a comportamentos de
pessoas negras – compreensão difundida por pessoas negras e brancas. A seleção de tais
exemplos para iniciar este tópico da tese justifica-se para apresentar a difusão de uma
compreensão do termo amplamente encontrada na documentação produzida pelas forças
policiais no período.

“‘Legítimos propagadores do racismo negro’? O Movimento Negro


Contemporâneo e a luta contra o racismo durante a ditadura civil-militar no Brasil”, artigo
escrito pelos historiadores Amílcar Araujo Pereira e Agenor Brito dos Santos Neto para o
livro A ditadura aconteceu aqui: a história oral e as memórias do regime militar
brasileiro, retirou a expressão inicial do título de um documento produzido em 1976 pelo
Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica. Conforme os autores: “Enxergar

1059
Lena Frias. O Orgulho (importado) de ser negro no Brasil. Jornal do Brasil. 17 de julho de 1976.
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib =030015_09&Pesq=black%20rio&pagfis=144019 >
1060
ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o Rock e o Brasil dos anos 80. 2002, p. 63. Sublinhado meu.
378

aqueles que lutavam contra o racismo no Brasil como ‘propagadores do racismo negro’
não era nenhuma novidade naquele momento (...) A expressão ‘racismo negro’, aliás,
aparece com recorrência nos arquivos dos órgãos de inteligência e informação da
ditadura.”1061 Apesar de informar da recorrência da expressão “racismo negro” na
documentação do período, os autores não explicam sobre a compreensão e difusão social
do termo à época, nem sobre diferenças quanto ao significado que os próprios autores estão
trazendo ao mobilizar o termo. Em outro trabalho acadêmico, a dissertação Configurações
do racismo nas redes sociais, Kamila Dutra Pena traça uma explicação para o termo como
uma reação aos movimentos negros dos anos 1970: “Em relação a luta negra contra o
racismo, parte da sociedade sentindo-se ameaçada pela luta negra de igualdade, começou a
propagar a existência de um racismo reverso/inverso, ou seja, o racismo do negro contra o
branco.”1062 Explicação, contudo, que não é capaz de esclarecer a difusão da compreensão
do termo “racismo” apresentada nos exemplos iniciais deste tópico.

Na bibliografia consultada para a pesquisa desta tese (e em toda até então lida
durante a formação intelectual do historiador que escreve estas linhas) não foi encontrada
um texto que buscasse explicar sobre a diferença da compreensão e usos do termo
“racismo” no Brasil. No entanto, durante os vinte e oito anos que compõem o recorte
temporal desta tese, foi possível identificar uma disputa pelo vocábulo e diferentes
significados para o termo. A compreensão predominante no recorte da pesquisa, conforme
os exemplos acima, indicia o significado de “racismo” como discurso de poder e prática
política que prega a supremacia de um grupo étnico sobre outros e a segregação. Diferente,
assim, do significado aparentemente hegemônico atualmente, que compreende “racismo”
também como um discurso de poder e prática política e social de inferiorização de um
grupo étnico e sua discriminação. A transição entre os dois significados hegemônicos
pareceu, para esta pesquisa, ter como momento emblemático o período após 1978,
particularmente no decorrer da década de 1980.

Este tópico do terceiro capítulo da tese visa apontar para a modificação no vocábulo
“racismo”, apresentando como hipótese o impacto de obras literárias de pensamento
político negro antirracista, ainda que sem a pretensão de aprofundar no estudo da alteração

1061
PEREIRA, Amilcar A. SANTOS NETO, Agenor B. “Legítimos propagadores do racismo negro?” O
Movimento Negro Contemporâneo e a luta contra o racismo durante a ditadura civil-militar no Brasil. In:
DELLAMORE, Carolina; AMATO, Gabriel; BATISTA, Natália. (orgs.) A ditadura aconteceu aqui: a
história oral e as memórias do regime militar brasileiro. 2017, p. 68.
1062
PENA, Kamila Duarte. Configurações do racismo nas redes sociais. Dissertação (Gestão em
Organizações Aprendentes). Universidade Federal da Paraíba. 2017, p. 19.
379

do termo. O “silêncio” quanto ao vocábulo nas canções estudadas é tomado como o


estímulo para o estudo e reflexão. Com este intuito, a pesquisa localizou um marco que
coincidiu com o recorte inicial deste terceiro capítulo, o ano de 1978, com a publicação no
Brasil do livro O genocídio do negro brasileiro, do intelectual Abdias Nascimento. Este
livro estabeleceu uma leitura dos padrões raciais brasileiros que se tornou paradigmática
nos esforços antirracistas no país. Deste marco inicial, nos dez anos que encobrem o
recorte deste capítulo, a publicação de um conjunto de livros de intelectuais negros
contribuiu para o fortalecimento das linguagens antirracistas, em geral, e da compreensão
hoje hegemônica para o termo “racismo”, em específico.

Interpretar a literatura antirracista em atenção às disputas sobre o vocábulo


“racismo” remete à metodologia proposta para o estudo do pensamento político em A ideia
de um Léxico Cultural, do historiador Quentin Skinner: “nosso objetivo é esclarecer
confrontos ideológicos através do estudo de divergências linguísticas”; de modo que se
questione: “em que sentido estas divergências linguísticas são também divergências sobre
a própria vida social?”1063

Antes de apresentar o livro de Abdias Nascimento e as publicações subsequentes,


porém, é importante retroceder um pouco para melhor situar as definições de “racismo” na
época. Na obra Racismos. Das Cruzadas ao século XX, o historiador estadunidense
Francisco Bethencourt parte de uma definição de “racismo” condizente com o contexto da
publicação original do livro, em 2013: “preconceito em relação à ascendência étnica
combinado com ação discriminatória.”1064 Todavia, o historiador realiza uma síntese da
trajetória do conceito nos Estados Unidos da América que também é informativa para o
contexto brasileiro:

Os conceitos usados para analisar o racismo são, eles próprios, produtos da


história, razão pela qual é essencial que os contextualizemos. Os termos “racista”
e “racismo” foram criados recentemente, em finais do século XIX, início do XX,
para designar aqueles que promoviam a teoria racial combinada com a hierarquia
das raças. (...) Nas décadas de 1920 e 1930, os termos “racista” e “racismo”
assumiram o sentido de hostilidade contra grupos raciais. Essas inovações
linguísticas refletiam as políticas de segregação no Sul dos Estados Unidos e o
desenvolvimento, na Europa, de movimentos nacionalistas baseados em teorias
raciais – concretamente, a ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha. Os
antônimos ‘antirracista’ e ‘antirracismo’ foram cunhados nas décadas de 1930 e
1950, respectivamente, para manifestar o protesto político contra os
preconceitos, a discriminação e a segregação raciais. A derrota da Alemanha
nazista na Segunda Guerra Mundial revelou que os preconceitos raciais haviam

1063
SKINNER, Quentin. A ideia de um Léxico Cultural. In: Visões da política: sobre os métodos históricos.
2002, p. 224 e p. 227, respectivamente.
1064
BETHENCOURT, Francisco. Racismos. Das Cruzadas ao século XX. 2018, p. 21.
380

sido transformados em ações políticas, numa escala sem precedentes, resultando


em milhões de mortes. A descoberta do ponto a que tinham sido levadas as
políticas de extermínio racial conduziu à adoção do antirracismo, que é agora a
norma.1065

O significado para “racismo” apresentado por Francisco Bethencourt para a


primeira metade do século XX e as intenções políticas que fundamentaram tal definição
também foram identificadas no Brasil. Na Pequena enciclopédia de moral e civismo,
organizada pelo padre Fernando B. de Ávila e originalmente publicada em 1967 pela
Fundação Nacional de Material Escolar (FENAME), o verbete do vocábulo “racismo”
apresenta: “termo que se vulgarizou no Brasil, a partir de 1935, por ocasião da expansão do
nazismo, do qual o racismo se apresentava como expressão ideológica. O racismo se
afirmou como uma ideologia e como uma norma política”; e assim, a definição
fundamentava nas teorias biológicas do racialismo (como ideologia) e nas políticas oficiais
de segregação às comunidades judaicas e do regime do apartheid na África do Sul (como
norma política).1066 A pesquisa realizada pelo autor desta tese nas edições de dicionários de
português do acervo da biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais indicia a veracidade dessa historicização da vulgarização do termo. No
Vocabulario Etymologico, orthographico e prosodico, de Ramiz Galvão, publicado em
1909, por exemplo, não consta verbete ou referência a racismo. 1067

A difusão do vocábulo “racismo” no Brasil de meados da década de 1930 também


foi referenciada pelo sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães em Racismo e
antirracismo no Brasil. Conforme o livro do sociólogo, o racismo, associado ao nazismo e
entendido como uma ideologia pautada nas teorias racialistas de hierarquizações entre os
grupos humanos, foi contraposto por uma ação antirracista que articulava ao ideário
brasileiro de harmonia racial:

Sem sombra de dúvidas, o movimento antirracialista dos anos 30 foi decisivo e


eficaz no combate a certas formas de discriminação racial – afinal, tratava-se de
um discurso desmoralizador do racismo e, por isso, encampado pelo movimento
negro de então. No entanto, a falta de políticas públicas efetivas para reverter a
situação marginal dos negros na sociedade brasileira acabou por reproduzir a
ordem hierárquica diferenciadora entre brancos e negros, ampliando as
desigualdades sociais e nutrindo uma série de tropos sociais para a raça. Foi
justamente em sua função obscurecedora e manipuladora que o antirracialismo,
neste país, passou a incomodar, cada vez mais, a população negra, sobretudo
aquela fatia que não queria ser benevolamente embranquecida por nossa

1065
BETHENCOURT, Francisco. Racismos. Das Cruzadas ao século XX. 2018, p. 28.
1066
ÁVILA, Fernando B. de. Pequena enciclopédia de moral e civismo. Fundação Nacional de Material
Escolar. Ministério da Educação e Cultura. 1967. Reedição 1972, p. 552.
1067
GALVÃO, Ramiz. Vocabulario Etymologico, orthographico e prosodico. 1909 (sem informações
editoriais).
381

terminologia cromática - aqueles para quem palavras como “escuros”,


“morenos”, “roxinhos” e tantas outras eram percebidas como uma
desvantagem.1068

A despeito da perceptível manutenção de hierarquias sociais entre as pessoas negras


e brancas na sociedade brasileira, a definição de “racismo” vinculada ao “racialismo” - as
teorias raciais e as normas políticas nelas baseadas - fixou-se no vocabulário normativo do
Brasil. De tal modo, no recorte temporal abarcado pelos três capítulos desta tese, o
significado para “racismo” difundido nos dicionários indicia a compreensão convencional
para o termo.

No Dicionário Mor da Língua Portuguesa, organizado por José Francisco Moreira,


lançado pela Livro’Mor Editora Ltda em 1967, o verbete “racismo” consta como “tese que
admite o predomínio de certas raças humanas” e “racista” é “adj. referente ao racismo;
adepto do racismo”. Também no Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua
Portuguesa, de Francisco da Silveira Bueno, publicado pela Editora Brasília Ltda em 1974,
“racismo” corresponde a “s.m. Sistema político baseado nas raças. O predomínio da raça
como base da política”; e o “racista” é “adj. Sequaz do racismo”. No Novo Dicionário da
Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, publicado pela Editora Nova
Fronteira, em 1975, o verbete “racismo” significa “Doutrina que sustenta a superioridade
de certas raças. Qualidade, sentimento ou ato de indivíduo racista”, sendo “racista” “adj.
Respeitante do racismo. Que é partidário do racismo. Qualidade, sentimento ou ato do
indivíduo racista [segregacionismo]”. Por fim, o Dicionário Brasileiro Globo de Franciso
Fernandes, publicado pela Editora Globo em 1984, define “racismo” como “teoria que
admite a superioridade inerente a certas raças humanas; ato ou qualidade de racista”, sendo
o “racista”, um “adj.relativo ao racismo; adepto do racismo; pessoa partidária do
racismo.”1069

A definição apresentada acima nos dicionários também era veiculada nas instituições
de ensino, a partir dos materiais didáticos. Foi citada, parágrafos acima, a Pequena
enciclopédia de moral e civismo, publicada pela FENAME, uma instituição que, conforme
as pesquisas da historiadora Juliana Miranda Filgueiras, foi criada em 1967 pelo Ministério
da Educação e Cultura do governo ditatorial brasileiro para “produzir e distribuir materiais

1068
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. 1999, p. 66.
1069
MOREIRA, José Francisco. Dicionário Mor da Língua Portuguesa. 1967. BUENO, Francisco S. Grande
Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa. 1974. FERREIRA, Aurélio Buarque de H. Novo
Dicionário da Língua Portuguesa. 1975. FERNANDES, Francisco. Dicionário Brasileiro Globo. 1984.
382

didáticos para as escolas em co-edição com o ‘empresariado nacional’.”1070 Ainda


conforme a historiadora, a partir de 1976 a FENAME passaria a ser responsável pelo
Programa do Livro Didático.1071 O exemplar consultado na presente tese foi a reedição de
1972, celebrativa ao “ao internacional do livro”. Ainda que a publicação do FENAME
apresentasse uma definição mais extensa do que as dos dicionários citados, informando
exemplos políticos de segregação racial, o verbete “racismo” é apresentado como “teoria
da superioridade inerente a certas raças humanas”. 1072

Também em 1969 tal concepção do vocábulo “racismo” apareceu na publicação


oficial Guia de Civismo. Destinado ao Ensino Médio, escrita por Diniz Almeida do Valle.
O livro foi introduzido por um Prefácio do ministro Jarbas G. Passarinho informando que
“destina-se à biblioteca de consulta permanente dos professores de Educação Moral e
Cívica, já na condição de obrigatoriedade, não somente como prática educativa, mas
também como disciplina curricular em todos os graus de ensino.” E pela Advertência: “O
presente GUIA, classificado em 1.° lugar (...), em concurso realizado pelo Ministério da
Educação e Cultura, em 1968, para a escolha de um Guia de Civismo destinado ao ensino
médio, orientou-se pelas Ideias Básicas das Instruções Reguladoras, elaboradas pela
Comissão Organizadora”. Nesta publicação constam duas referências ao termo “racismo”.
A primeira, na exposição dos “Direitos Individuais”, na qual consta: “O racismo, ante
nossa Carta Magna, oficialmente não existe no país, o que muito honra todos os
brasileiros”; e a segunda no capítulo “O Brasileiro”: “Quando se analisa a formação étnica
do povo brasileiro, proveniente de três raças, a branca, a negra e a indígena, vemos que
Brasil é o país da democracia por excelência, pois em nenhuma parte do mundo se resolveu
tão felizmente o problema da coexistência das raças”, de modo que o tópico conclui: “De
fato, o racismo puro é uma utopia.”1073

Após essa contextualização da difusão de um significado para o vocábulo “racismo”


que se tornou hegemônico em dicionários e publicações didáticas oficiais, torna-se
compreensível a leitura que orientava a legislação brasileira, ao criminalizar a “incitação

1070
FILGUEIRAS, Juliana Miranda. A produção didática de educação moral e cívica: 1970-1993. In:
Cadernos de Pesquisa: Pensamento Educacional (Curitiba. Impresso), v. 3. 2008, p. 83.
1071
FILGUEIRAS, Juliana Miranda. Os Processos De Avaliação De Livros Didáticos No Brasil (1938 -
1984). Tese (Educação: História, Política, Sociedade). Pontifícia Universidade Católica De São Paulo. 2011,
p. 222.
1072
ÁVILA, Fernando B. de. Pequena enciclopédia de moral e civismo. Fundação Nacional de Material
Escolar. Ministério da Educação e Cultura. 1967. Reedição 1972, p. 552.
1073
VALLE, Diniz A. Guia de Civismo. Destinado ao Ensino Médio. Ministério da Educação e Cultura.
Brasil. 1969. Disponível em: <http://www.livrosgratis.com.br/download_livro_36616/guia_de_civismo >
383

pública ao ódio e à discriminação racial” na Lei de Segurança Nacional de 11/03/1967, 1074


fomentar ações das forças repressivas do Estado mobilizando o termo “racismo”. Com a
representação oficial brasileira criada a partir do ideário de inexistência de preconceito
racial e discriminação no país, a compreensão de que o “racismo” refira à discursos de
superioridade de “certas raças”, legitimou que as forças repressivas do Estado
denominassem e autuassem os movimentos negros antirracistas como “propagadores do
racismo negro”.

O historiador Lucas Pedretti Lima, apresenta documentos produzidos pelas forças


repressivas do Estado operando com o termo “racismo” ao investigar os bailes black. Um
relatório produzido pelo DGIE em 1976, estimulado pela reportagem de Lena Frias,
informa: “Aqui no Rio o ‘Black Power’ abriga algum sentido contestatório e racista,
conforme já dissemos, porém ainda sem grandeza nem profundidade, não logrando
contextura sócio-política.”1075 Conforme o historiador: “Em 20 de outubro de 1976, o
CISA produziu um Informe cujo assunto era ‘Racismo Negro no Brasil’, e o encaminhou
para a Agência Central do SNI” e outros órgãos repressivos, associando os bailes à
organização de palestras que denunciavam “a existência de um disfarçado racismo branco
no Brasil”: “Nesse quadro, o soul já não era mais visto como uma potencial ameaça, mas
estava no contexto de um perigo [considerado] real. Assim, o fenômeno passou a ser
monitorado em todo o país.”1076 Também o jornal O Globo publicou em abril de 1977 um
editorial intitulado “Racismo”, que atribuía aos bailes “uma visão alienada da realidade,
artificialmente estimulada por interesses nitidamente comerciais, e tendo por base um
indisfarçado racismo.”1077

O informe “Racismo Negro no Brasil” também foi mobilizado no estudo “Colorindo


memórias: ditadura militar e racismo”, nono capítulo da Parte III do Relatório da
Comissão da Verdade do Rio, no qual a pesquisadora Thula Rafaela de Oliveira Pires
expôs atuações policiais no monitoramento da cultura negra e “movimento black” por

1074
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967-366980-
publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso 29/08/2021.
1075
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Fundo Políticas Públicas, Setor DGIE, Notação 250. Apud.
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 .
Dissertação (História). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2018, p. 89.
1076
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 .
Dissertação (História). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2018, p. 90 e p. 91.
1077
O Globo, “Racismo”, 26 de abril de 1977. Apud. LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência
nos subúrbios cariocas na década de 1970. Dissertação (História). Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. 2018, p. 89.
384

receio de encontro de ativistas negros. 1078 Contudo, para além das forças repressivas do
Estado e das publicações de órgãos oficiais de educação, a compreensão do termo
“racismo” circunscrita à afirmação de valores de um grupo racial também informava outros
setores da sociedade brasileira, inclusive pessoas negras, conforme exemplificado no início
deste tópico. Porém, a afirmação da estética de pessoas brancas ou a existência de espaços
circunscritos a esse grupo social não eram igualmente identificados como “racismo”, posto
a naturalização de tais elementos pelos grupos dominantes - predominantemente formado
por pessoas brancas - por toda a trajetória do Estado brasileiro. Assim, conforme o
sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães:

Foi esse conjunto de crenças, somadas a um antirracialismo militante, que passou


a ser conhecido como “democracia racial”. (...) Ora, a redução do antirracismo
ao antirracialismo, e sua utilização para negar os fatos de discriminação e as
desigualdades raciais, crescentes no país, acabaram por formar uma ideologia
racista, ou seja, uma justificativa da ordem discriminatória e das desigualdades
raciais realmente existentes.1079

A denúncia das particularidades da construção de hierarquias raciais no Brasil


enquanto “racismo”, entendido como uma ideologia, aparecia no período através da
intelectualidade negra. A historiadora Beatriz Nascimento publicou em 1974, na edição 68
da Revista de Cultura Vozes o pequeno artigo “Negro e racismo” no qual argumentou:

A ideologia do racismo tem raízes tão profundas na formação social brasileira


que temos que levar em conta uma série de formas de comportamento, de
hábitos, de maneira de ser e de agir inerentes não só ao branco (agente) como ao
negro (paciente). Principalmente, é da parte do negro que se necessita de
esclarecer todo o produto ideológico de quatro séculos de inexistência dentro de
uma sociedade da qual participou em todos os níveis. (...) Ao utilizar, no início
desta exposição, determinados termos entre aspas (aceitação, integração,
igualdade) queríamos mostrar na prática como a ideologia de dominação
representa nela mesma, através da linguagem, o preconceito, evidencia uma
situação de fato, isto é, o racismo, a discriminação.1080

O argumento de Beatriz Nascimento desloca o significado então convencional do


termo “racismo” ao atribuir um sentido unidirecional (o branco como agente e o negro
como paciente) e questionar a crença de que as comunidades negras no país viveriam em
aceitação, integração e igualdade. Ou seja, a historiadora associa “racismo” a
“discriminação racial” para afirmar sua existência no Brasil e tensionar os pilares da ideia
de “democracia racial”. A ação operada pelo argumento enquadra-se na reflexão do

1078
Rio de Janeiro (Estado). Comissão da Verdade do Rio. Relatório. 2015, p. 127-139. Disponível em:
<https://documentosrevelados.com.br/wp-content/uploads/2015/12/cev-rio-relatorio-final.pdf>
1079
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. 1999, p. 66.
1080
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Negro e Racismo. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual:
Possibilidades nos dias da destruição. 2018, p. 54, 55.
385

historiador John G. A. Pocock, quanto à metodologia do Contextualismo Linguístico no


estudo do pensamento político:

O método de [Quentin] Skinner, portanto, nos impeliu na direção tanto do


resgate da linguagem do autor quanto do resgate de suas intenções, bem como a
tratá-lo como habitante de um universo de langues que confere sentido às
paroles que ele emite nessas línguas. Isso de forma alguma resulta em reduzir o
autor a um mero porta-voz de sua própria linguagem. Quanto mais complexo, e
até mesmo quanto mais contraditório o contexto linguístico em que ele se situa,
mais ricos e mais ambivalentes serão os atos de fala que ele terá condições de
emitir, e maior será a probabilidade de que esses atos atuem sobre o próprio
contexto linguístico e induzam a modificações e transformações no interior dele.
(...) um autor é tanto o expropriador, tomando a linguagem de outros e usando-a
para seus próprios fins, quanto o inovador que atua sobre a linguagem de
maneira a induzir momentâneas ou duradouras mudanças na forma como ela é
usada.1081

O historiador citado por John Pocock, Quentin Skinner, explicita o potencial do


método de abordagem do pensamento político enquanto um discurso, visando efetuar uma
ação no mundo vivido, ao buscar identificar: “as questões que formulavam e tentavam
responder, e em que medida aceitavam e endossavam, ou contestavam e repeliam, ou às
vezes até ignoravam (de forma polêmica), as ideias e convenções então predominantes no
debate político.”1082 No argumento da historiadora Beatriz Nascimento exposto acima, o
ato de fala emitido pela autora atuava em um contexto no qual a convenção então
predominante entendia “racismo” como a afirmação de um grupo racial, qualificando a
democracia racial brasileira, de modo que movimentos negros podiam ser rejeitados como
racistas. A questão formulada pela autora contestava tal convenção, articulando um outro
significado para “racismo”, como uma ideologia de dominação que também operava
através da linguagem, de modo a permitir ao texto denunciar a discriminação no Brasil e
tensionar o ideal de democracia racial.

O alcance do argumento desenvolvido nas seis páginas do artigo de Beatriz


Nascimento, no entanto, parece ter sido pequeno. Ou, pelo menos, quando comparado à
publicação do O genocídio do negro brasileiro. Processo de um racismo mascarado, de
Abdias Nascimento, em 1978. O intelectual e militante antirracista saiu do Brasil em auto
exílio no ano de 1968, e, conforme destacado por Sandra Almada na biografia Abdias
Nascimento: “desembarca nos Estados Unidos em meio a uma grave convulsão
sociorracial, processo que tinha na sua vanguarda diversas correntes do movimento pelos
direitos civis, humanos e políticos dos afrodescendentes.”1083 Nos EUA, Abdias estreitou

1081
POCOCK, John. G. A. Introdução. O estado da arte. In: Linguagens do ideário político. 2013, p. 28, 29.
1082
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. 1996, p. 13.
1083
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento (Retratos do Brasil Negro). 2009, p. 96.
386

contatos com ideias pan-africanistas e, a partir de 1974, “passou a residir na Nigéria, onde
trabalhou como professor visitante na Universidade de Ifé. Isso permitiu que ele
participasse, em 1977, do Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas –
Festac 77.”1084 Foi, portanto, para o mesmo festival no qual Gilberto Gil apresentou e
concebeu o álbum conceitual Refavela, que Abdias escreveu o artigo cujo título traduzido
ao português seria “Democracia Racial no Brasil: mito ou realidade?”, proibido de ser
apresentado no colóquio do evento, mas publicado no país em quatro edições do jornal
Daily Sketch, durante o mês de fevereiro de 1977.1085

A repercussão da polêmica sobre o texto de Abdias Nascimento e a aparição em cena


pública do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), em julho de
1978, na cidade de São Paulo, estimularam a publicação do trabalho no Brasil. Acrescido
de algumas alterações, informações e fatos (incluindo sobre o surgimento do próprio
MUCDR), o texto foi publicado no final de 1978, pela editora Paz & Terra, com o título de
O genocídio do negro brasileiro, em meio ao processo de menor repressão ditatorial com o
início da abertura política. Conforme o título original da obra explicitava, o principal alvo
do ataque do livro era o ideário de democracia racial, o que fica evidenciado pelos títulos
dos quatorze tópicos da obra: “Escravidão: O mito do senhor benevolente”, “Exploração
sexual da mulher africana”, “O mito do africano livre”, “O branqueamento da raça: uma
estratégia de genocídio”, “Discussão sobre raça: proibida”, “Discriminação: realidade
racial”, “Imagem racial internacional”, “O embranquecimento cultural: outra estratégia de
genocídio”, “A perseguida persistência da cultura africana no Brasil”, “Sincretização ou
folclorização”, “A bastardização da cultura afro-brasileira”, “A estética da brancura nos
artistas negros aculturados”, “Uma reação contra o embranquecimento: o Teatro
Experimental do Negro” e a “Conclusão”, com a exposição de dezessete propostas para o
governo brasileiro.

O termo “genocídio”, escolhido para reforçar o argumento na edição brasileira, tem a


adequação de seu significado à análise explicada na epígrafe do livro, a partir de verbetes
de um dicionário estadunidense de 1967 e um dicionário brasileiro de 1963:

O uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injúria corporal e


mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimentos), calculadas
para o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir a
língua, a religião ou a cultura de um grupo.

1084
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento (Retratos do Brasil Negro). 2009, p. 110.
1085
NASCIMENTO, Abdias. Prólogo: A história de uma rejeição. In: O genocídio do negro brasileiro.
Processo de um racismo mascarado. 2018, p. 33.
387

Recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de


seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais,
linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos. Ex: perseguição
hitlerista aos judeus, segregação racial etc.1086

Uma síntese do argumento de Abdias Nascimento pode ser realizada através de duas
citações da obra. No nono capítulo, o autor proclama: “Devemos compreender ‘democracia
racial’ como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não
tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África
do Sul, mas institucionalizado de forma eficaz”. 1087 E na Conclusão, ao apontar:
“Caracteriza-se o racismo brasileiro por uma aparência mutável, polivalente, que o torna
único; entretanto, para enfrentá-lo, faz-se necessário travar a luta característica de todo e
qualquer combate antirracista e antigenocida.”. 1088 Entre as inovações do argumento de
Abdias Nascimento está a apresentação do preconceito e discriminação raciais no Brasil
(definidos por “racismo” e assegurados pelo ideal de democracia racial) como uma ação
institucional de longa duração.

É interessante pontuar que, conforme o intelectual Silvio Almeida no livro O que é


Racismo Estrutural?, a concepção estrutural de “racismo” surgiu com a publicação do
livro Black Power, de Stockely Carmichael e Charles Hamilton, em 1965. 1089 Embora
Abdias não cite em nenhum momento tais autores ou estes constem na bibliografia final do
livro, considerando a influência deles no cenário antirracista dos EUA nos anos 1960,
torna-se muito provável que Abdias Nascimento tenha tido contato, senão com o livro, ao
menos com o argumento. A obra, que em português chamaria Poder Negro: a política de
liberação nos Estados Unidos, denunciava, a partir de diversos dados, que a situação de
marginalização das comunidades negras acontecia não apenas no Sul, mas em todo o país,
de modo que tais grupos viveriam em um status colonial similar ao das regiões colonizadas
no continente africano. Para os autores, a resposta para tal situação seria não apenas os
Direitos Civis para a população negra do Sul, mas o compartilhamento da gestão estatal
por pessoas negras.1090 A possibilidade de interlocução de ideias entre o livro de Abdias e a
obra Black Power reforça os elementos da Linguagem Política do Orgulho Negro em O

1086
NASCIMENTO, Abdias. Prólogo: A história de uma rejeição. In: O genocídio do negro brasileiro.
Processo de um racismo mascarado. 2018, p. 15.
1087
NASCIMENTO, Abdias. Prólogo: A história de uma rejeição. In: O genocídio do negro brasileiro.
Processo de um racismo mascarado. 2018, p. 111.
1088
NASCIMENTO, Abdias. Prólogo: A história de uma rejeição. In: O genocídio do negro brasileiro.
Processo de um racismo mascarado. 2018, p. 169.
1089
ALMEIDA, Silvio. O que é Racismo Estrutural? 2018, p. 29-32.
1090
CARMICHAEL, Stockely, HAMILTON, Charles V. Poder Negro. La política de liberación en Estados
Unidos. México. Siglo Veintiuno. 1976.
388

genocídio do negro brasileiro, além das conexões transnacionais nos argumentos sobre o
racismo, conforme citado acima.

É importante destacar que, ao incluir no encerramento do último capítulo do livro a


“Carta aberta à população contra o racismo” (distribuída pelo Movimento Unificado
Contra a Discriminação Racial durante o ato inaugural, em sete de julho de 1978), Abdias
Nascimento contribuiu para a maior circulação da mensagem expressa no documento. E,
de tal forma, para a difusão da compreensão dada pelo MUCDR ao termo “racismo”,
também amparada em uma compreensão institucional e unidirecional do vocábulo:

Hoje estamos na rua numa campanha de denúncia.

Campanha contra a discriminação racial, contra a opressão policial, contra o


desemprego, o subemprego e à marginalização. Estamos nas ruas para denunciar
as péssimas condições de vida da Comunidade Negra.

Hoje é um dia histórico. Um novo dia começa a surgir para o negro!

Estamos saindo das salas de reuniões, das salas de conferências e estamos indo
para as ruas. Um novo passo foi dado na luta contra o racismo.
(...)

O MOVIMENTO UNIFICADO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL foi


criado para ser um instrumento de luta da comunidade Negra. Este movimento
deve ter como princípio básico o trabalho de denúncia permanente de todo ato de
discriminação racial, a constante organização da comunidade para enfrentarmos
todo e qualquer tipo de racismo. Todos nós sabemos o prejuízo social que causa
o racismo. Quanto uma pessoa não gosta de um negro é lamentável, mas quanto
toda uma sociedade assume atitudes racistas frente a um povo inteiro, ou se nega
a enfrentar, aí então o resultado é trágico para nós negros:

Pais de família desempregados, filhos desamparados, sem assistência médica,


sem condições de proteção familiar, sem escolas e sem futuro. E é este racismo
coletivo, este racismo institucionalizado, que dá origem a todo tipo de violência
contra um povo inteiro. É este racismo institucionalizado que dá segurança para
a prática de atos racistas como os que ocorreram no Clube Tietê, como o ato de
violência policial que se abateu sobre Robson Silveira da Luz, no 44° Distrito
Policial de Guaianazes, onde este negro, trabalhador, pai de família, foi torturado
até a morte. (...)

Casos como estes são rotina em nosso país, que se diz democrático.

(...)

Convidamos aos setores democráticos da sociedade que nos apoiem, criando as


condições necessárias para criar uma verdadeira democracia racial.1091

O autor da presente tese não localizou informações sobre a impressão e vendagens da


primeira edição de O genocídio do negro brasileiro, mas é notável a influência que o livro
adquiriu nos anos subsequentes, de forma que, em 2018, já estava na 4° edição lançada

1091
Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial. Carta aberta à população contra o racismo. Apud.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. Processo de um racismo mascarado. 2018, p. 166-
8.
389

pela Editora Perspectiva. No entanto, uma segunda publicação de um intelectual negro


antirracista no recorte deste capítulo fornece maiores indícios de sua difusão. Em 1980, o
historiador Joel Rufino dos Santos, publicou o livreto emblematicamente intitulado O que
é Racismo. A obra integrava à Coleção Primeiros Passos, ação editorial da Brasiliense de
livros de bolso de teor paradidático, visando o público de estudantes, tendo a distribuição
facilitada ao ser vendida a preços acessíveis e também (a partir de 1984) em bancas de
jornais.1092 Até o ano de 1985 o livro totalizava 41.000 exemplares impressos, 1093 como
parte do sucesso comercial que fez da coleção responsável por 25% do faturamento de toda
a editora Brasiliense já em 1983.1094

A Coleção Primeiros Passos iniciou com cinco títulos publicados em 1980. Com o
sucesso comercial dessas primeiras publicações, ainda em 1980 foram lançados novos
títulos, entre os quais o sétimo da coleção, O que é Racismo. O livro inicia com a definição
do termo encontrada por um estudante francês ao abrir “seu Petit Larousse um dicionário
de prestígio universal: ‘Racismo. s.m. Sistema que afirma a superioridade racial de um
grupo sobre outros, pregando, em particular o confinamento dos inferiores numa parte do
país (segregação racial).”1095 E prossegue mobilizando o significado convencionalmente
usado também nos dicionários brasileiros, associando às teorias raciais e aos regimes
políticos de segregação, como o apartheid sul-africano e a Alemanha sob governo nazista.

Contudo, após essa primeira metade “convencional”, a segunda metade do livro é


destinada aos capítulos “Existe racismo no Brasil” (uma afirmação, não uma pergunta) e
“Principais modalidades do racismo brasileiro”. Durante os quais, o historiador argumenta
que: “nos acostumamos a ver, e a tratar, o povo como bichos”, havendo uma integração
entre discriminação social e racial, pois a maioria dos negros são pobres e a maioria dos
pobres são negros; “achamos, sinceramente, que os brancos são melhores que os não-
brancos”, com a consequente existência do “padrão branco de qualidade” e introjeção “nas
suas vítimas, tornando-as, também, racistas”; a “ideia negativa que fazemos das pessoas de
cor”; a “ideia de que não somos racistas” e o fato de “olharmos os não-brancos como não-

1092
ROLLEMBERG, Marcello. Um circo de letras: a Editora Brasiliense no contexto sócio -cultural dos anos
80. In: Anais Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplin ares da Comunicação XXXI
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação . 2008, p. 10.
1093
GALUCIO, Andrea Xavier. Civilização Brasileira e Brasiliense: trajetórias editoriais, empresários e
militância política. Tese (História). Universidade Federal Fluminen se. 2009, p. 273.
1094
IUMATI, Paulo Teixeira. Reviravoltas no mercado editorial. In: Brasiliense, 50 anos. 1993. s/p
1095
SANTOS, Joel Rufino dos. O que é Racismo. 1980, p. 13.
390

brasileiros”.1096 Apresentando esses elementos como característicos do “racismo”, o autor


argumenta que a ideia de democracia racial fundamenta o racismo, como ideologia e
norma política, no Brasil:

Além de acreditar na sua “democracia racial”, o brasileiro acha que falar no


problema [do racismo] é subversão. Que conclusão extrair daí? O mito da
democracia racial é uma forma brasileiríssima, bastante eficaz, de controle
social. O que espanta os estrangeiros que nos visitam não é esta democracia
racial – em que só nós acreditamos –, é a nossa ingenuidade em acreditar
nela.1097

A publicação de O que é racismo por Joel Rufino dos Santos significou uma
expressiva ação no sentido de difundir a compreensão do vocábulo “racismo” associado ao
preconceito e discriminação raciais, capaz de confrontar o ideário de “democracia racial”.
Compreensão que, como demonstrado acima, amparava o MUCDR. Como parte da
Primeiros Passos, uma iniciativa editorial de sucesso da Brasiliense, o livro conseguia
atingir um público mais amplo, contribuindo no processo de ressignificação com uma
argumentação desenvolvida a partir de uma linguagem simples e acessível, conforme a
proposta da coleção.

Outra publicação da intelectualidade negra de destaque no período saiu em 1982,


com o livro Lugar de Negro, escrito por Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg. Uma mulher
negra e um homem branco então conhecidos por sua atuação antirracista. Lélia, além de
seus artigos, integrou a assessoria política do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras
(IPCN) do Rio de Janeiro entre 1976 e 1978, e desde 1978 era integrante da comissão
executiva nacional do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial e professora
da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Além dessa trajetória
acadêmica e na militância, a partir de 1981, Lélia passou a integrar o Diretório Nacional do
Partido dos Trabalhadores (PT) e em 1982 foi candidata a deputada federal pelo partido,
eleita primeiro suplente.1098 Com a Lei da Reforma Partidária, aprovada em novembro de
1979, o Brasil teve um passo no processo de reabertura política, com a volta do
pluripartidarismo, inclusive a criação de novos partidos, como o Partido dos
Trabalhadores, que agregava nomes dos novos movimentos sociais, 1099 sobretudo do novo
sindicalismo. Já Carlos Hasenbalg, segundo Alex Ratts e Flávia Rios:

1096
SANTOS, Joel Rufino. O que é Racismo. 1980, p. 64-82.
1097
SANTOS, Joel Rufino. O que é Racismo. 1980, p. 45. Grifos do autor.
1098
Para esses dados da atuação profissional e política, ver: RATTS, Alex. RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez.
(coleção Retratos do Brasil Negro). 2010, p. 166.
1099
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 299-301.
391

O sociólogo argentino Carlos Hasenbalg conviveu mais diretamente com os


ativistas e intelectuais negros cariocas que ajudaram a forjar o movimento negro
contemporâneo. Seu livro Discriminação e desigualdades raciais no Brasil
(1979), que estabeleceu um divisor de águas nos estudos de relações raciais no
país, foi dedicado aos militantes que atuavam naquela época, particularmente à
historiadora Beatriz Nascimento.1100

O livro Lugar de Negro, publicado pela editora Marco Zero, foi distribuído em três
textos, o primeiro de autoria de Lélia Gonzalez e os dois últimos de Carlos Hasenbalg,
porém, em número de páginas, cada autor escreve cerca de metade do livro. O capítulo de
Lélia, “O movimento negro na última década”, é desenvolvido a partir de cinco tópicos: “O
golpe de 64, o novo modelo econômico e a população negra”, “Movimento ou movimentos
negros?”, “Experiências e tentativas”, “A retomada político-ideológica” (no qual fala sobre
a música soul e os bailes black), e “O Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial”. O primeiro tópico apresenta a exclusão da população pobre e negra
das benesses do “milagre econômico”, com os dados do aumento da marginalização desses
grupos sociais, assim como o aumento da migração rumo aos centros urbanos, que a autora
atribui ao desemprego no campo. Este tópico sintetiza o argumento geral antecipado pelo
título do livro, ao defender que os modos de dominação no Brasil parecem coincidir em
uma reinterpretação da teoria do “lugar natural” de Aristóteles. O “lugar natural” do grupo
branco dominante são moradias amplas, espaçosas, em belos lugares e protegidos por
diferentes formas de policiamento:

Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas,


cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos ‘habitacionais’ (cujos modelos
são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério também tem
sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço. (...) Além disso, aqui
também se tem a presença policial; só que não é para proteger, mas para
reprimir, violentar e amedrontar. É por aí que se entende que o outro lugar
natural do negro sejam as prisões e os hospícios. A sistemática repressão
policial, dado o seu caráter racista (segundo a polícia, todo crioulo é marginal até
que se prove o contrário), tem por objetivo próximo a imposição de uma
submissão psicológica através do medo.1101

Em linhas gerais, em Lugar de Negro, Lélia Gonzalez expõe o empobrecimento e a


marginalização das pessoas negras por toda a história brasileira pós a abolição,
demonstrando uma continuidade deste “lugar de negro” como excluído desde a escravidão;
mas a partir de então mascarado pela “ideologia de branqueamento” e “o mito da
democracia racial”, que caracterizam o “racismo à brasileira”. 1102 O argumento da autora
enfatiza a marginalização econômica e habitacional como consequências do racismo. Para

1100
RATTS, Alex. RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. (coleção Retratos do Brasil Negro). 2010, p. 89.
1101
GONZALEZ, Lélia. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 15, 16.
Sublinhado meu.
1102
GONZALEZ, Lélia. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 54.
392

a autora, o Movimento Negro surgido em 1978 representaria uma nova etapa na denúncia e
luta contra o “lugar de negro” no Brasil, ao articular na luta raça e classe. Vale ser
destacado nesse texto a reprodução do argumento do militante negro Milton Barbosa,
publicado no jornal Versus em novembro de 1978, no qual fala sobre a Lei Afonso Arinos:
“Nós, negros, sempre desconfiamos desta lei, pois temos certeza que, apesar de ser uma lei
que deveria garantir o direito do negro lutar contra o racismo, nunca funcionou contra os
racistas. Deveria ser usada contra nós.”1103 Este argumento auxilia a autora a apresentar um
termo para ressignificar o que as fontes policiais e alguns jornais chamavam por “racismo
negro”: “Quanto aos aspectos negativos, deixando de lado o já tradicional ‘racismo às
avessas’ de que somos acusados sempre que nós, negros, partimos para a denúncia do
racismo e da discriminação, pintaram outras acusações como as de divisionistas,
revanchistas, etc e tal”.1104 O texto de Lélia Gonzalez ainda reproduz alguns documentos
do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, como a “Carta aberta à
população contra o racismo” e a “Carta de princípios” da organização.

Nos capítulos de Carlos Hasenbalg em Lugar de Negro, “Raça, classe e mobilidade”


e “O negro na publicidade”, o autor parte de uma definição para o vocábulo “racismo, cuja
essência reside na negação total ou parcial da humanidade do negro e outros não-brancos,
constituiu a justificativa para exercitar o domínio sobre os povos de cor.”1105 O primeiro
texto apresenta uma revisão crítica das teorias acadêmicas sobre desigualdades raciais.
Após explorar diversos dados de desenvolvimento social no Brasil, que demonstram
desigualdades raciais nas oportunidades, o autor conclui o primeiro capítulo dizendo:
“Dada essa situação de fato, parece muito pouco provável que o ideal da igualdade racial
seja atingido através de um mecanismo calcado no mercado, isto é, o processo de
mobilidade social individual.”1106 E, no segundo artigo, o autor analisa que “A publicidade
reproduz os estereótipos culturais sobre o negro, assim contribuindo para delimitar, no
plano ideológico, ‘seus lugares apropriados’”; de modo que conclui: “Na ausência de
transformações semelhantes, o negro brasileiro, exposto ininterruptamente às imagens de
um mundo branco dominante, ficará confinado às alternativas de uma auto-imagem
negativa ou a adoção de um ideal de ego branco nos seus intentos de ascensão social.”1107

1103
GONZALEZ, Lélia. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 56.
1104
GONZALEZ, Lélia. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 61.
1105
HASENBALG, Carlos. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 69.
1106
HASENBALG, Carlos. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 99.
1107
HASENBALG, Carlos. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 113.
393

As conclusões de Carlos Hasenbalg em Lugar de Negro dialogam com a pesquisa da


psiquiatra e psicanalista negra Neusa Santos Souza, em Tornar-se negro. Ou as
vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, publicada pela Edições
Graal em 1983. O prefácio do livro foi escrito pelo também psiquiatra e psicanalista,
branco, Jurandir Freire Costa, com o título “Da cor ao corpo: a violência do racismo”, que
apresenta como argumento nodal do livro: “O negro, no desejo de embranquecer, deseja,
nada mais, nada menos, que a própria extinção.”1108 Em diálogo com contribuições
psiquiátricas do intelectual martinicano Frantz Fanon, a autora analisa uma série de
entrevistas, questionando as representações que as pessoas negras têm de si, as estratégias
e os “preços” da ascensão social. A frase com a qual a autora introduz seu trabalho é:
“Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso de si mesmo”, indicando sua
questão geral: “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua
identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a
expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a
resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades.”1109 E uma ponte com o trabalho
de Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg pode ser lida no trecho que informa de um “lugar de
negro”: “A sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro
como raça, e marcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação
com o branco instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior.”1110

Após o livro de Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg explicitar a criação de um “lugar


de negro” no Brasil circunscrito à exclusão, Neusa Santos Souza analisa a situação de
indivíduos negros que conseguiram escapar desse “lugar” e ascender socialmente. A
pesquisa da autora revela as características do chamado “embranquecimento social”, que
ela define como um processo ideológico de alienação de si. Por isso, a necessidade de
“Tornar-se negro”, pois, conforme a conclusão da psiquiatra: “Ser negro é tomar posse
desta consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e
que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração.”1111 Assim, os livros

1108
COSTA, Jurandir F. Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUZA, Neusa Souza. Tornar-se
negro. Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 1983, p. 5.
1109
SOUZA, Neusa Souza. Tornar-se negro. Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em
ascensão social. 1983, p. 17, 18.
1110
SOUZA, Neusa Souza. Tornar-se negro. Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em
ascensão social. 1983, p. 19. Sublinhado meu.
1111
SOUZA, Neusa S. Tornar-se negro. Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão
social. 1983, p. 77.
394

Lugar de Negro e Tornar-se Negro contribuíram para fundamentar o conteúdo do vocábulo


“racismo” e o alcance dos efeitos.

Um último livro selecionado para este tópico da presente tese enquanto exemplar da
literatura de pensamento político antirracista produzida por intelectuais negros é
Negritude: usos e sentidos, escrito pelo antropólogo Kabengele Munanga e publicado em
1986, pela editora Ática. A síntese presente na contracapa da edição original demarca a
proposta da obra: “Resultado da história colonial, a negritude é uma resposta racial negra a
uma agressão racial branca. (...) Neste livro o leitor encontrará uma visão mais ampla da
problemática da negritude, estudada enquanto conceito e movimento.” E também apresenta
o autor: “nascido no Zaire [atual Congo], doutorou-se em Antropologia na USP, onde
leciona.” A estrutura do livro é dividida em Introdução e cinco capítulos: “Condições
históricas”, “Tentativas de assimilação dos valores culturais do branco”, “O negro recusa a
assimilação”, “Diferentes acepções e rumos da negritude”, e “Críticas”, além de um
“Vocabulário crítico” no final.

Negritude: usos e sentidos, na comparação com as outras obras referenciadas neste


tópico, é a que mais enfatiza uma identificação transnacional. A obra traça paralelos entre
as comunidades de ascendência africana no Brasil e em outros países da diáspora, no
continente americano e no europeu, a partir da experiência comum diante do racismo: “Se
historicamente a negritude é, sem dúvida, uma reação racial negra a uma agressão racial
branca, não poderíamos entendê-la e cercá-la sem aproximá-la do racismo do qual é
consequência e resultado.”1112 O livro aproxima do argumento de Neusa S. Souza ao
referenciar a exclusão mesmo na ascensão social: “poder-se ia reter como traço
fundamental próprio a todos os negros (pouco importa a classe social) a situação de
excluídos em que se encontram em nível nacional. Isto é, a identidade do mundo negro se
inscreve no real sob a forma de ‘exclusão’. Ser negro é ser excluído.”1113 A aproximação
do argumento do antropólogo com o das outras obras citadas neste tópico opera a partir de
uma perspectiva de identificação transnacional:

Em primeiro lugar é importante frisar que a negritude, embora tenha sua origem
na cor da pele negra, não é essencialmente de ordem biológica. De outro modo, a
identidade negra não nasce do simples fato de tomar consciência da diferença de
pigmentação entre brancos e negros ou negros e amarelos. A negritude e/ou a
identidade negra se referem à história comum que liga de uma maneira ou de
outra todos os grupos humanos que o olhar do mundo ocidental “branco” reuniu
sob o nome de negros. A negritude não se refere somente à cultura dos povos

1112
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Reedição 2012, p. 15.
1113
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Reedição 2012, p. 16. Sublinhado meu.
395

portadores da pele negra que de fato são todos culturalmente diferentes. Na


realidade, o que esses grupos humanos têm fundamentalmente em comum não é
como parece indicar, o termo Negritude à cor da pele, mas sim o fato de terem
sido na história vítimas das piores tentativas de desumanização e de terem sido
suas culturas não apenas objeto de políticas sistemáticas de destruição, mas, mais
do que isso, de ter sido simplesmente negada a existência dessas culturas. (...)

Tomada de consciência de uma comunidade de condição histórica de todos


aqueles que foram vítimas de inferiorização e negação da humanidade pelo
mundo ocidental, a negritude deve ser vista também como afirmação e
construção de uma solidariedade entre as vítimas. (...) A negritude torna-se uma
convocação permanente de todos os herdeiros dessa condição para que se
engajem no combate para reabilitar os valores de suas civilizações destruídas e
de suas culturas negadas. Vista desse ângulo, para as mulheres e os homens
descendentes de africanos no Brasil e em outros países do mundo cujas plenas
revalorização e aceitação de sua herança africana faz parte do processo do
resgate de sua identidade coletiva, a negritude faz parte de sua luta para
reconstruir positivamente sua identidade e, por isso, um tema ainda em
atualidade.1114

A longa citação acima demonstra que, para Kabengele Munanga, a “negritude”


define uma forma de identificação construída a partir de uma experiência transnacional de
grupos (negros) racializados e também a necessidade de construção de laços de
solidariedade transnacional a partir de uma luta comum. Com a publicação de Negritude:
usos e sentidos, a luta antirracista e suas linguagens adquiriram mais um argumento teórico
no sentido de fundamentação da leitura unidirecional do vocábulo “racismo”, enquanto
uma agressão racial branca sofrida por pessoas negras, independentemente de sua
localização geográfica e situação econômica. E a obra ofereceu a sistematização de uma
nomenclatura para a forma de identificação transnaciona l, através do termo “negritude”.

A contribuição das obras brevemente abordadas no decorrer deste tópico, escritas por
Abdias Nascimento, Joel Rufino dos Santos, Lélia Gonzalez, Neusa S. Souza e Kabengele
Munanga, permite compreender o pensamento político antirracista produzido por
intelectuais negros a partir da reflexão de Nilma Lino Gomes em O Movimento Negro
Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Nesta obra, a pedagoga propõe
que a atuação do movimento negro, assim como dos negros em movimento (uma
militância negra e antirracista que não integra uma entidade ou organização específica):
“reeduca e emancipa a sociedade, a si próprio e ao Estado, produzindo novos
conhecimentos e entendimentos sobre as relações étnico-raciais e o racismo no Brasil, em
conexão com a diáspora africana.”1115

1114
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Reedição 2012, p. 20.
1115
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
2017, p. 38.
396

A hipótese levantada neste tópico da presente tese é que tal produção literária
lançada a partir do ano 1978 teve impacto para a produção de conhecimentos que
fundamentaram a ressignificação do termo “racismo”, necessária para fortalecer a denúncia
da “democracia racial” enquanto um mito. O conteúdo do termo “racismo” expresso
através das linguagens antirracistas abarcava o preconceito e a discriminação racial,
argumentando ser unidirecional; uma agressão branca sofrida pelas pessoas negras. De tal
modo, inviabilizava a leitura de um “racismo negro”, tal como realizada pelos órgãos de
repressão, que seria, assim, uma tentativa de propor um “racismo às avessas”. Afinal, o
preconceito e discriminação estão inseridos em uma estrutura de dominação,
institucionalizada pelo Estado, que visa a circunscrição de um “lugar de negro”, na
exclusão, e, em última instância, “o genocídio do negro brasileiro”, seja cultural ou mesmo
físico - tal como países com políticas segregacionistas.

Nesse processo de ressignificação do conceito de “racismo” pelo pensamento


político negro antirracista, as obras literárias sistematizaram um uso do termo, enquanto as
canções, expressando as linguagens negras antirracistas, contribuíam para a difusão dos
exemplos de preconceito e discriminação raciais que reforçavam a demonstração das
manifestações do que os livros chamavam de “racismo” - atuando para a sedimentação de
tal significado no Brasil.

A historiadora estadunidense Rebecca Solnit, ao publicar no ano 2014 o livro que em


português chamou Os homens explicam tudo para mim, realizou uma consideração sobre
as contribuições do movimento feminista nos EUA desde 1963, a partir da publicação do
livro A mística feminina, de Betty Friedan. Segundo a historiadora: “Desde o manifesto de
Friedan, o feminismo avançou, em parte, por dar nome às coisas.”1116 Tal constatação é
válida para abordar a luta antirracista no Brasil, particularmente no recorte deste terceiro
capítulo da tese. Os movimentos negros também avançaram, em parte, por dar nome às
coisas. E, conforme avançavam, conseguiam difundir tais nomes. Prosseguindo no
argumento da historiadora:

Linguagem é poder. (...) Pode-se usar o poder das palavras para enterrar o
significado, ou então para desenterrá-lo e fazê-lo vir à tona. Se você não tem
palavras para nomear um fenômeno, uma emoção, uma situação, não poderá
falar a respeito, o que significa que não poderá se reunir com outras pessoas para
tratar do problema, e muito menos mudar a situação. 1117

1116
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. 2017, p. 162.
1117
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. 2017, p. 165, 166.
397

O processo de nomeação e/ou renomeação operado pelas formas de comunicação das


linguagens negras antirracistas brasileiras adquiriu maior força em um período
efervescente da vida política nacional, durante a lenta redemocratização do país e a
reconstrução do Estado liberal democrático de Direito. O palco da batalha pelos conceitos
foi as lutas sociais por qualificar os conteúdos da “cidadania” e da “democracia” a serem
fixados em uma nova Constituição. Tema a ser desenvolvido no tópico de encerramento
desta tese.

3. 3. As linguagens antirracistas da Black Music à Constituinte.

O tópico anterior deste capítulo retomou a argumentação realizada pela pedagoga


Nilma Lino Gomes, em seu livro O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas
lutas por emancipação. A pesquisa apresentada pela autora em tal livro demonstra a
capacidade desse movimento social em produzir conhecimentos: “Parte-se da premissa de
que o Movimento Negro, assim como outros movimentos sociais, ao agir social e
politicamente, reconstrói identidades, traz indagações, ressignifica e politiza conceitos
sobre si mesmo e sobre a realidade social.”1118 O argumento foi estimulante para a reflexão
sobre a ressignificação do conceito de “racismo” convencionalmente aceito pela sociedade
brasileira e também para a contestação e rejeição do ideal de “democracia racial” como
explicativo das relações raciais no Brasil, conforme realizado no tópico anterior. Contudo,
a proposta da autora visa explorar de forma mais abrangente a atuação do Movimento
Negro Unificado, surgido em 1978.

O historiador Marcos Napolitano, na obra Coração Civil. A vida cultural brasileira


sob o regime militar (1964-1985) - Ensaio histórico, faz referência ao surgimento do
Movimento Negro Unificado associando-o ao impacto da Black Music brasileira e os bailes
soul:

Em grande parte, essa movimentação de fundo estritamente cultural, ligada à


busca de lazer por parte dos jovens negros cariocas e paulistas, mas também de
outras cidades, anunciou a criação do primeiro grande grupo de defesa da
identidade e das demandas especificamente raciais dos afro -brasileiros. O
Movimento Negro Unificado, nas cido dentro da organização trotskista
Convergência Socialista em 1978, anunciava, igualmente, uma nova era de
demandas populares, que não cabiam na pauta clássica das esquerdas

1118
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
2017, p. 28.
398

nacionalistas, embora não estivessem completamente ausentes de sua


tradição.1119

O surgimento do Movimento Negro Unificado não representou o primeiro grande


grupo de defesa da identidade e das demandas raciais das comunidades negras no Brasil.
Afinal, a organização foi antecedida, entre outras, pela Frente Negra Brasileira nos anos
1930, muito mais abrangente no número de integrantes Brasil afora. 1120 Todavia, Marcos
Napolitano não é o único a associar o surgimento do MNU ao movimento Black. Lélia
Gonzalez, em Lugar de Negro, pontua o fenômeno fluminense da “comunidade negra
jovem, dando sua resposta aos mecanismos de exclusão que o sistema lhe impunha.
Estamos falando do movimento ‘soul’, depois batizado de Black Rio.”1121 E prossegue o
argumento com a aproximação de tal movimento com a organização política: “Interessante
notar que o ‘soul’ foi um dos berços do movimento negro do Rio, uma vez que a moçada
que ia aos bailes não era apenas constituída de trabalhadores, mas de estudantes
secundários e universitários também.” No conjunto de entrevistas realizadas pelos
historiadores Verena Alberti e Amílcar A. Pereira, publicadas no livro Histórias do
movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC, as referências ao movimento soul
aparecem nas falas de vários militantes do MNU enquanto “influências externas e
circulação de referenciais”.1122 O Black Soul ainda é apresentado como referencial e
espaço de sociabilidade de militantes na tese do Amílcar Araujo Pereira, O Mundo Negro:
Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil.1123

O impacto do surgimento e atuação do Movimento Negro Unificado entre 1978, ano


de sua fundação, e 1988, ano da promulgação da nova Constituição, estimulou que a
aparição de tal organização se tornasse o último marco escolhido para justificar o recorte
temporal do capítulo final desta tese. O historiador Petrônio Domingues apresenta uma boa
síntese da fundação do MNU no artigo “Movimento Negro Brasileiro: alguns
apontamentos históricos”:

1119
NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) -
Ensaio histórico. 2017, p. 322, 323.
1120
Uma abordagem ampla de ambos os movimentos pode ser lida em PINTO, Regina Pahim. O Movimento
Negro em São Paulo: Luta e identidade. 2013, 437 p. E uma abordagem comparativa curta, em:
DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. In: Tempo (UFF),
vol. 23, 2007.
1121
GONZALEZ, Lélia. In: GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 31.
1122
ALBERTI, Verena. PEREIRA, Amilcar A. (orgs.) Influências externas e circulação de referenciais. In:
Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. 2007, p. 69-130.
1123
PEREIRA, Amilcar A. O Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 168-173.
399

Assim, no contexto de rearticulação do movimento negro, aconteceu uma


reunião em São Paulo, no dia 18 de junho de 1978, com diversos grupos e
entidades negras (CECAN, Grupo Afro-Latino América, Câmara do Comércio
Afro-Brasileiro, Jornal Abertura, Jornal Capoeira e Grupo de Atletas e Grupo
de Artistas Negros). Nesta reunião, decidiu-se criar o Movimento Unificado
Contra a Discriminação Racial (MUCDR), e a primeira atividade da nova
organização foi um ato público em repúdio à discriminação racial sofrida por
quatro jovens no Clube de Regatas Tietê e em protesto à morte de Robson
Silveira da Luz, trabalhador e pai de família negro, torturado até a morte no 44°
Distrito de Guainases. O ato público foi realizado no dia 7 de julho de 1978, nas
escadarias do Teatro Municipal em São Paulo, reunindo cerca de 2 mil pessoas, e
“considerado pelo MUCDR como o maior avanço político realizado pelo negro
na luta contra o racismo”. O evento recebeu moções de apoio de alguns estados,
inclusive de várias associações negras cariocas: Escola de Samba Quilombo,
Renascença Clube, Núcleo Negro Socialista, Centro de Estudos Brasil-África
(CEBA) e o IPCN.

Uma Carta Aberta, distribuída à população, concitava os negros a formarem


“Centros de Luta” nos bairros, nas vilas, nas prisões, nos terreiros de candomblé
e umbanda, nos locais de trabalho e nas escolas, a fim de organizar a peleja
contra a opressão racial, a violência policial, o desemprego, o subemprego e a
marginalização da população negra. Na 1° Assembléia Nacional de Organização
e Estruturação da entidade, no dia 23 de julho, foi adicionada a palavra Negro ao
nome do movimento, passando, assim, a ser chamado Movimento Negro
Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR). Neste mesmo ano, foram
aprovados o Estatuto, a Carta de Princípios e o Programa de Ação. No seu 1°
Congresso, o MNUCDR conseguiu reunir delegados de vários estados. Como a
luta prioritária do movimento era contra a discriminação racial, seu nome foi
simplificado para Movimento Negro Unificado (MNU). 1124

A carta aberta do então MUCDR em convocação para o ato de 7 de julho de 1978 foi
também publicizada no mesmo ano no livro O genocídio do negro brasileiro, de Abdias
Nascimento e, em 1982, em Lugar de Negro de Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg. Outros
documentos, incluindo a Carta de Princípios, o Hino do MNU e diversas declarações,
foram publicados pela organização na obra celebrativa 1978-1988. 10 anos de luta contra
o racismo. E trechos do Estatuto e do Programa de Ação estão disponíveis nos estudos O
Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998, do militante do MNU e historiador
Marcos Cardoso e a dissertação em História de Marcelo Leolino da Silva, A História no
discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da História como estratégia de
combate ao racismo.1125

A leitura dos documentos produzidos pelo MNU permite estabelecer outras conexões
com o movimento Soul: não apenas das canções da Black Music estadunidense na
circulação de referenciais e dos bailes Black enquanto espaços de sociabilidade; mas

1124
DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. In: Tempo
(UFF), vol. 23, 2007, p. 113, 114.
1125
Movimento Negro Unificado. 1978-1988. 10 anos de luta contra o racismo. 1988. CARDOSO, Marcos.
O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978 -1998. 2011. SILVA, Marcelo Leolino da. A História no
discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da História como estratégia de combate ao
racismo. Dissertação (História). Universidade Estadual de Campinas. 2007.
400

também da Black Music Brasileira enquanto outro canal de expressão de pautas e


reivindicações antirracistas. No decorrer desta tese foi identificado um conjunto de
argumentos, discursos comunicados através da Linguagem Política do Orgulho Negro e as
demais linguagens negras antirracistas a partir das diversas formas musicais da Black
Music Brasileira lançadas entre 1960 e 1988. A proposta deste último tópico da tese é
explicitar temas comuns às canções e à atuação do MNU, de modo a assinalar não uma
influência, mas o compartilhamento de questões.

Nos três capítulos que abarcam os vinte e oito anos do recorte temporal desta tese, os
atos de fala das linguagens negras antirracistas expressos nas canções evidenciaram alguns
tópicos recorrentes, passíveis de serem agregados em blocos temáticos. Por serem blocos
esquemáticos, os temas das canções não ficam necessariamente circunscritos a apenas um
deles, mas a enumeração de tais blocos irá facilitar o argumento deste tópico final.

Como exemplos nos blocos temáticos, foram identificadas canções que travavam de:
1) o preconceito racial no cotidiano, como “O neguinho e a senhorita”, “A banca do
distinto”, “Se Jesus fosse um homem de cor (Deus negro)”, “Preconceito”, “Oração de
duas raças” e “A mão da limpeza”; 2) representações da mulher negra, como em “Maria,
Maria, Maria”, “Crioula” e “Menina mulher da pele preta”; 3) representações da favela e
denúncia das remoções, como em “Cantiga do morro”, o medley “Opinião/O morro não
tem vez/Batucada surgiu”, “Refavela” e “Vidigal”; 4) memória da escravidão, como em
“Não desanima não, João”, “Ladeira do Pelourinho”, “Zumbi/África Brasil”, “Xica da
Silva”, “Rio Grande do Sul na Festa do Preto Forro” e “Negritude”; 5) afirmação da
religiosidade afro-brasileira, em “Ladeira do Pelourinho”, “Maria Conga”, “Nanã”,
“Babá Alapalá”, “Filhos de Zambi”, “Logunedé”, “A gira”, e várias outras; 6)
identificação em diálogo transnacional afro diaspórico, como em “Tributo a Martin
Luther”, “Brother”, “Cassius Marcellus Clay” e “Amigo de Nova York”; 7) ascendência
africana, em “Maravilhas Contemporâneas”, “Negritude” e “África”; 8) celebração a
Zumbi e o Quilombo dos Palmares, em “Zumbi/ África Brasil” de Jorge Bem, “Zumbi”
com Zezé Motta e “Batuque”; 9) a positivação da estética negra, como em “Sou Negro”,
“Negro é lindo”, “Ilê Aiyê”, “Hereditário”, “Olhos Coloridos” e “Sou negro, sim”; e 10) a
denúncia dos regimes segregacionistas no continente africano, em “Rodésia”, e em
particular, a oposição ao apartheid em “Oração pela libertação da África do Sul”, o “Hino
do Congresso Nacional Africano” e “Soweto”.
401

Tendo em vista o expressivo volume de canções referenciadas no decorrer desta tese,


foram citados acima apenas alguns exemplos, para sustentar o argumento de identificação
dos blocos temáticos. Portanto, não há pretensão de oferecer aqui um mapeamento
esquemático com todas as canções abordadas ou mesmo da maioria delas. Contudo, a
recordação pontual dessas canções através dos blocos temáticos permite identificar
aproximações com alguns dos tópicos da Carta de Princípios do, então, MNUCDR,
publicizada no final de 1978:

Nós, membros da população negra brasileira - entendendo como negro todo


aquele que possui na cor da pele, no rosto ou nos cabelos, sinais característicos
dessa raça -, reunidos em Assembleia Nacional, CONVENCIDOS da existência
de:

- Discriminação racial
- Marginalização racial, política, econômica, social e cultural do povo negro
- Péssimas condições de vida
- Desemprego
- Subemprego
- Discriminação na admissão em empregos e perseguição racial no trabalho
- Condições subhumanas de vida dos presidiários
- Permanente repressão, perseguição e violência policial
- Exploração sexual, econômica e social da mulher negra
- Abandono e mal tratamento dos menores, negros em sua maioria
- Colonização, descaracterização, esmagamento e comercialização de nossa
cultura
- Mito da democracia racial

RESOLVEM OS juntar nossas forças e lutar por:

- Defesa do povo negro em todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e


culturais através da conquista de:
- Maiores oportunidades de emprego
- Melhor assistência à saúde, à educação e à habitação
- Reavaliação do papel do negro na história do Brasil
- Valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização,
folclorização e distorção
- Extinção de todas as formas de perseguição, exploração, repressão e violência a
que somos submetidos
- Liberdade de organização e de expressão do povo preto.
(...)

POR UMA AUTÊNTICA DEMOCRACIA RACIAL!

PELA LIBERTAÇÃO DO POVO NEGRO!1126

No III Congresso Nacional do Movimento Negro Unificado, realizado na cidade de


Belo Horizonte, MG, em abril de 1982, foi redigido o Programa de Ação da organização -
ou, como prefere os militantes, “da entidade” - e nele também é possível identificar um

1126
Movimento Negro Unificado. 1978-1988. 10 anos de luta contra o racismo. 1988, p. 18, 19.
402

repertório de questões com similaridades aos blocos temáticos das canções. Conforme
Marcos Cardoso:

O Programa de Ação foi estruturado com uma introdução geral acerca da


situação histórica e social da população negra, seguida de dezesseis questões, a
seguir. Introdução: “Por uma autêntica democracia racial”; Marginalização do
negro; Discriminação racial no trabalho; Desemprego; Condições de vida;
Direito e violação; Prisões; Menor abandonado; Cultura Negra; Educação;
Mulher Negra; Imprensa Negra; Sindicatos; Área rural; Posses de terras, doações
e invasões [no qual retomava a questão das remoções nas favelas]; Luta
internacional contra o racismo; Transformação geral da sociedade. 1127

Para pensar a construção dos documentos oficiais do MNU e outros textos


produzidos por membros da entidade, é válido considerar o perfil dos integrantes. Segundo
Amilcar A. Pereira, em O Mundo Negro, as lideranças entrevistadas para a sua pesquisa
integravam uma “elite intelectual negra”, posto que, “embora muitas fossem de origem
humilde e ainda vivessem em situação de pobreza, a maioria cursava o ensino superior nas
décadas de 1970 e 1980”; de modo que o autor retoma uma consideração de Joel Rufino
dos Santos, em 1985: “O movimento negro atual é, pois, da maneira como o entendem suas
lideranças e intelectuais, filho do ‘milagre brasileiro’, por via das frustrações sociais-
raciais (e não sócio-raciais) apontadas e outras.”1128 A fala de Joel R. dos Santos refere à
expansão universitária promovida pelo regime militar e o “boom do ensino universitário
privado”, que possibilitou a alguns poucos jovens negros investir na formação educacional
a partir do dito “milagre”. No entanto, as “frustrações sociais-raciais” surgiam ao serem
preteridos no mercado de trabalho e na remuneração, a despeito da qualificação, remetendo
ao “lugar de negro” na exclusão.

O maior acesso à formação escolar por alguns integrantes do MNU, particularmente


suas lideranças, contribuiu para que os artigos produzidos pela organização trouxessem
maior densidade nas análises. A argumentação realizada em tais artigos foi objeto do
historiador Marcelo Leolino da Silva em A História no discurso do Movimento Negro
Unificado: os usos políticos da História como estratégia de combate ao racismo. No
quarto e último capítulo da dissertação, o historiador incluiu o tópico “O MNU escreve sua
história”, no qual aborda a produção de militantes na academia, identificando os seguintes
grandes temas: “A África e a diáspora”, “Eurocentrismo x Africanidade”, “Adjetivando a

1127
CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 55.
1128
PEREIRA, Amilcar Araujo. O Mundo Negro. Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 232.
403

África”, “A religião”, “Da inspiração à crítica do Apartheid”, e “Cafundó e a África”. 1129


Contudo, o restante do capítulo mobiliza um leque documental mais amplo: “A
documentação analisada consta desde revistas e jornais a cartazes, folhetos, fotos de
outdoors, panfletos do MNU e de militantes, além de publicações sobre eventos, festivais e
manifestações das quais o MNU participou com outras entidades.”1130 Uma documentação
de difícil acesso, conforme o autor.

A pesquisa de Marcelo Leolino da Silva sobre a documentação oficial criada pelo


MNU foi reproduzida no artigo “A História e a identidade negra nas fontes primárias do
MNU”, no qual o autor estruturou a análise através de outros três campos temáticos:
“Escravidão”, “Abolição” e “Pós-abolição”. O historiador identificou que o MNU extrai
um sentido positivo à resistência dos escravizados e assim estabelece laços de continuidade
com as lutas contemporâneas, ao mesmo tempo que denuncia a ausência dos escravizados
como sujeitos ativos nos livros didáticos e na historiografia oficial, criticada como
comprometida com as elites brancas dominantes. Assim, conforme o historiador, por um
lado, os ideais do MNU são apresentados como “elaborados nos ensinamentos da
Ancestralidade Negra, que resistiu bravamente às injustiças e desigualdades de um passado
nada distante”; e, por outro lado, constata-se: “A ‘elite dominante’ de hoje é, assim,
descendente direta da ‘elite’ que promoveu a escravidão, da mesma forma que os negros
são descendentes diretos dos escravos.”1131

Marcelo L. da Silva identificou nas fontes primárias do MNU uma expressiva


atenção ao Quilombo dos Palmares e à figura do líder Zumbi. A organização contrapôs a
Sociedade Colonial ao Quilombo de Palmares, apresentado como uma “República Negra
livre, aberta, independente e democrática”, de modo que a imagem sobre Palmares
(também chamado de “Angola Janga”, que significa “Pequena Angola”) é elaborada
“como uma estratégia política para combater a baixa autoestima dos negros provocada pela
discriminação racial.”1132 Esse destaque a Palmares pelo MNU nas referências às
resistências dos escravizados confirma a tendência identificada nas canções da Black

1129
SILVA, Marcelo Leolino da. A História no discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da
História como estratégia de combate ao racismo. Dissertação (História). Universidade Estadual de Campinas.
2007, p. 96-117..
1130
SILVA, Marcelo Leolino da. A História no discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da
História como estratégia de combate ao racismo. Dissertação (História). Universidade Estadual de Campinas.
2007, p. 61.
1131
SILVA, Marcelo Leolino. A História e a identidade negra nas fontes primárias do MNU. In: Congresso
Internacional de História. Jataí. Universidade Federal de Goiás. 2016, p. 04 e p. 06.
1132
SILVA, Marcelo Leolino. A História e a identidade negra nas fontes primárias do MNU. In: Congresso
Internacional de História. Jataí. Universidade Federal de Goiás. 2016, p. 07.
404

Music referenciadas no decorrer desta tese quanto à centralidade da figura de Zumbi. “O


MNU procurou também impedir a apropriação oficial da imagem de Zumbi como herói
nacional. A entidade reagiu ferozmente às comemorações oficiais do Estado que
utilizavam a imagem de Zumbi.”1133 Resistência a uma apropriação da simbologia de
Zumbi pelo Estado, contudo, que convivia com a reivindicação do Movimento Negro
Unificado, desde o final do ano de 1978, por transformar a data de assassinato do líder de
Palmares, 20 de novembro, na data oficial de Dia Nacional da Consciência Negra. 1134

Ainda conforme a pesquisa de Marcelo L. da Silva, o MNU difundiu a reflexão que a


população negra no Brasil vive em um secular processo de exclusão racial: “Esse processo
de exclusão possui a Abolição como marco definidor entre os diferentes mecanismos de
exclusão, primeiro a escravidão, depois o racismo. Logo, a história da escravidão para o
MNU é a história da estruturação da exclusão racial no Brasil.”1135 A força da escravidão
nas narrativas sobre o histórico de opressão e de resistências das comunidades negras
brasileiras na documentação do MNU ajuda a compreender a recorrência da memória da
escravidão nas letras das canções abordadas no decorrer desta tese. A escravidão e o pós-
abolição conectam-se a partir da manutenção da exclusão. Para o MNU, segundo Marcelo
L. Silva, “o ponto de partida do seu interesse pela História é a necessidade de construção
da identidade negra.”1136

Assinalando conexão com a escravidão de povos africanos e de ascendência africana,


e seus efeitos no Brasil, o MNU denunciou a perseguição às religiões de matriz africana no
séc. XX como mais um elemento do preconceito racial, o “racismo à brasileira”. Esses
elementos do preconceito incluem a sexualização da mulher negra, através do estereótipo
da “mulata” e/ ou sua circunscrição profissional em trabalhos de baixa remuneração e
prestígio social, em particular o serviço doméstico. Pauta que realizava intercessões entre o
MNU e o movimento Feminista, por um lado, traçando a especificidade do patriarcado
para a realidade de pessoas negras, e, por outro, pontuando a forma de experenciar o
racismo enquanto uma mulher. O MNU ainda aproximava de outro “novo movimento
social”, os Movimentos de Bairro, ao levantar a pauta das ocupações urbanas (as favelas) e

1133
SILVA, Marcelo Leolino. A História e a identidade negra nas fontes primárias do MNU. In: Congresso
Internacional de História. Jataí. Universidade Federal de Goiás. 2016, p. 09.
1134
PEREIRA, Amilcar Araujo. O Mundo Negro. Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo. 2013, p. 262, 263.
1135
SILVA, Marcelo Leolino. A História e a identidade negra nas fontes primárias do MNU. In: Congresso
Internacional de História. Jataí. Universidade Federal de Goiás. 2016, p. 10.
1136
SILVA, Marcelo Leolino. A História e a identidade negra nas fontes primárias do MNU. In: Congresso
Internacional de História. Jataí. Universidade Federal de Goiás. 2016, p. 07.
405

das remoções a partir da carestia e do direito à moradia. 1137 Questões, portanto, que
permitem a recordação de diversas letras de canções abordadas no decorrer desta tese,
conforme os blocos temáticos pontuados. Aliás, o compartilhamento de pautas extrapola os
temas identificados nos blocos citados, posto que a denúncia da violência policial aos
negros e agressão aos presidiários, por exemplo, remetem ao Itamar Assumpção, com a
construção do personagem Nego Dito e a banda Isca de Polícia.

As representações sobre a mulher negra apareceram no repertório identificado nesta


tese desde a década de 1960, evocando o estereótipo sexualizado da “mulata”,
particularmente nas canções gravadas por Elza Soares, e a contraposição a tal estereótipo
nas composições de Jorge Ben. Gravações de Elza e Simonal difundiram representações
das favelas. Conforme explicitado no decorrer do primeiro capítulo desta tese, nos anos
1960 as referências a religiões afro-brasileiras e as retratações do preconceito racial no
cotidiano eram temas recorrentes na Black Music Brasileira, muitas vezes associando à
ascendência africana. E, a partir de 1967, com a gravação de “Tributo a Martin Luther
King”, foi introduzida a temática antirracista a partir da conexão com a realidade
estadunidense. Esse conjunto de temas permaneceu nos anos 1970, década que iniciou com
a inclusão da temática que positivava a estética negra, com “Sou negro”, por Toni
Tornado; e registrou a inclusão das denúncias de regimes segregacionistas em África, com
a “Rodésia”, de Tim Maia. A retratação dessas pautas como temas de composições da
Black Music Brasileira, assim, precedeu a organização do Movimento Negro Unificado,
difundindo na cena pública questões e denúncias no veículo cultural – e que a atuação do
movimento social elaborou como reivindicações por direitos. É lícito supor que o contato
com os argumentos e textos da militância do MNU proporcionasse a recordação de letras
de canções, devido ao compartilhamento de certos problemas.

Alguns dos artistas abordados nesta tese, porém, apresentaram uma relação mais
estreita com a organização do movimento negro. O caso mais expressivo foi o da atriz e
cantora Zezé Motta, uma integrante fundadora do Movimento Negro Unificado. Em
entrevista a Ricardo Santhiago, Zezé revela: “Considero a Lélia [Gonzalez] minha guru,
porque foi a partir daí que percebi que tínhamos que fazer alguma coisa em vez de ficar
reclamando da vida ou esperar por uma atitude paternalista”; e a artista e militante comenta
ao historiador sobre sua atuação no MNU: “Tenho muito orgulho da minha geração do
1137
Uma elaboração da época analisando os novos movimentos sociais, incluindo capítulos sobre
“Movimentos de Bairro”, “O feminino e o feminismo” e “Organizações negras”, está em: SINGER, Paul.
BRANT, Vinícius C. (orgs.). São Paulo: o povo em movimento. 1980.
406

movimento negro – que, na verdade, é o negro em movimento. Em vez de ficarmos


patrulhando os outros ou reclamando do que acontece, cada um fez alguma coisa para virar
o jogo.”1138

Também Gilberto Gil estabeleceu contatos com os movimentos negros, participando


das reuniões de fundação do Centro de Cultura Negra do Maranhão, conforme informado
pelo militante Magno Cruz em entrevista a Amílcar A. Pereira: “Eu sou fundador fictício,
porque não fui fundador orgânico que estava lá no início, nas primeiras reuniões, que
tiveram as participações de Gilberto Gil e outras figuras de nível nacional que estavam
aqui e participaram realmente da fundação do CCN, no dia 19 de setembro de 1979.”1139 A
atuação de Gilberto Gil em iniciativas do Movimento Negro também foi ressaltada por
Lélia Gonzalez em entrevista para o livro Patrulhas Ideológicas, publicado em 1980: “em
termos de movimento negro, o Gil, o Caetano, esse pessoal todo dá uma puta força pra
gente... eles estão sacando, estão percebendo. Por exemplo, no ano passado, no Parque
Lage, ele segurou a barra de um show onde vários artistas participaram mas outros
negaram.”1140 A intelectual se refere a um show organizado pelo Movimento Negro
Unificado no qual Gil participou.

O surgimento do Movimento Negro Unificado ocorreu em um contexto efervescente


da mobilização social no Brasil. A organização antirracista foi criada e chegou às ruas em
consonância com outros grupos de pautas coletivas, como os já citados movimento
Feminista e Movimentos de Bairros, além do Movimento Contra a Carestia, o movimento
Gay, os movimentos ecológicos e - o que angariou maior visibilidade à época - o Novo
Sindicalismo. Foram os chamados Novos Movimentos Sociais, que incrementavam o
repertório de ações coletivas da sociedade civil brasileira. Parte desses movimentos foi
estudada por Eder Sader, em um livro que se tornou referência: Quando novos
personagens entraram em cena: Experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São
Paulo – 1970-1980. Conforme ele:

A novidade eclodida em 1978 foi primeiramente enunciada sob a forma de


imagens, narrativas e análises referindo-se a grupos populares os mais diversos
que irrompiam na cena pública reivindicando seus direitos, a começar pelo
primeiro, pelo direito de reivindicar direitos. (...) Foram assim redescobertos

1138
SANTHIAGO, Ricardo. Solistas dissonantes: história (oral) de cantoras negras. 2009, p. 209.
1139
PEREIRA, Amilcar Araujo. O Mundo Negro. Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo. 2013, p. 105.
1140
Lélia Gonzalez. Entrevista concedida a Carlos Alberto M. Pereira e Heloisa B. Hollanda, publicada em
PEREIRA, Carlos A. M; HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Patrulhas Ideológicas. 1980. In: GONZALEZ,
Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 294.
407

movimentos sociais des de sua gestação no curso da década de 70. Eles foram
vistos pelas suas linguagens, pelos lugares de onde se manifestavam, pelos
valores que professavam, como indicadores da emergência de novas identidades
coletivas.1141

“Os movimentos sociais são produtores e articuladores dos saberes construídos pelos
grupos não hegemônicos e contra hegemônicos da nossa sociedade”, 1142 afirmou Nilma
Lino Gomes ao propor a compreensão do Movimento Negro como um sistematizador de
saberes. A importância da circulação de saberes produzidos pelos novos movimentos
sociais pode ter constituído particular impacto nesses dez anos a partir da eclosão, em
1978. Afinal, sendo o período entre 1978 e 1988 conhecido como a “reabertura
democrática” do Estado brasileiro, a atuação e os saberes dos diversos movimentos sociais
contribuíram para substanciar o conteúdo da “democracia” a ser instituída. De tal forma, é
estimulante pensar tal contribuição a partir de dois cenários: o recorte entre 1978 e 1985,
no processo de uma reabertura política, lenta e gradual, ainda em meio ao regime ditatorial;
e no recorte entre 1986 e 1988, o contexto de sedimentação da transição democrática, já
em um governo civil, mas oriundo de uma eleição indireta e com sua legitimidade
associada à construção de uma nova Constituição.

A atuação dos movimentos antirracistas brasileiros no período da reabertura


política, entre 1978, ano de fundação do Movimento Unificado Contra a Discriminação
Racial, e 1985, com o fim da ditadura militar, induz a pensar em um esforço de
reelaboração do vocábulo “racismo”, como assinalado no tópico anterior, contribuindo
para desconstruir a “democracia racial”. Questionar a “democracia racial” trazia para os
movimentos negros a oportunidade de discutir tanto o racismo, quanto as delimitações da
democracia. É importante pontuar que essa plataforma de ação foi definida junto à
circunscrição da luta antirracista no Movimento ao combate à discriminação, preconceito e
marginalização sofridas pelas pessoas negras. Direcionamento explicitado quando da
inclusão do termo “negro” no nome da entidade, de MUCDR para MNUCDR, conforme
apontado pelo historiador Amílcar Araújo Pereira:

Essa mudança foi importante, na medida em que alterou a visão inicial do


movimento, que teve a participação de judeus e estav a aberto para uma possível
colaboração de movimentos indígenas, embora não houvesse nenhum indígena
participando naquele momento. Com a inserção da palavra “negro”, ao invés da
construção de uma frente ampla reunindo todos os “discriminados” - como
queriam algumas das lideranças no processo -, optou-se por se criar ali uma

1141
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências e lutas dos trabalhadores da
Grande São Paulo – 1970-1980. 1988, p. 26.
1142
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
2017, p. 29.
408

organização que reunisse somente as entidades e grupos de negros que já


estavam surgindo pelo Brasil naquele momento. 1143

Com a luta “contra a discriminação racial” circunscrita à população negra, o então


MNUCDR participou do Congresso Nacional do Comitê Brasileiro pela Anistia propondo
a tese Papel do aparato policial no processo de dominação do negro, que explicitava a
direção da luta a ser seguida a partir da tese que a população negra encarcerada também
viveria uma perseguição e prisão política.1144 A tese foi reforçada pelo grupo de
encarcerados Netos de Zumbi, que produziu ainda em 1978 uma carta denunciando as
precárias condições de vida sob o sistema prisional. Contudo, enquanto uma organização
negra, o MNU trabalhou, desde a Carta de Princípios de 1978, já citada neste tópico, para
demarcar o ideal de democracia racial como “mito” - retomando o argumento que
Florestan Fernandes difundiu em 1964. Para Marcos Cardoso, um grande esforço do MNU
foi no sentido de buscar o “desmascaramento da farsa da democracia racial”, ainda que
inicialmente sob a reivindicação “Por uma autêntica democracia racial”, conforme
demarcado no Programa de Ação do grupo, votado em 1982:

Desde ‘pequenininho’ fomos acostumados e acostumamos com a ideia de que no


Brasil ‘não há racismo’, ‘não há preconceito de cor’ e que vivemos numa
‘harmonia de raças’ - a oferecer iguais oportunidades a negros e brancos, na
‘democracia racial’. (...) Os defensores de tal democracia, principalmente quando
brancos, trabalham com ‘provas’ aparentes e, através delas, lançam suspeitas,
rejeição e respondem com indignação, contra os que - como nós - negamos a
‘democracia racial’, com o objetivo de demonstrar sua falsidade e trabalhar para
que seja autêntica, verdadeira e humana. (...) No caso da criança negra, é
justamente na escola que se dá a quebra de sua estrutura psicológica, emocional
e cultural através da internalização da ideologia do branqueamento, do mito do
branqueamento e do mito da democracia racial. No final desse processo se ela
não reage, acaba por envergonhar das suas origens e da sua condição de
negro.1145

Portanto, definido enquanto um movimento centrado na causa das pessoas negras no


Brasil, o MNU esforçou na rejeição do ideal de “democracia racial”. Conforme apontado
por Antonio Sergio A. Guimarães, em Classes, Raças e Democracia: “Ainda que nesse
período apareçam palavras de ordem como ‘por uma autêntica democracia racial’ (...)
gradativamente a mobilização negra de 1978 a 1985 se fará tendo como pano de fundo a
denúncia do ‘mito da democracia racial’.”1146 Mas o sociólogo também ressalta a relação
contextual mais ampla: “O movimento negro ressurgiu, em 1978, como o fez em 1944, em

1143
PEREIRA, Amílcar Pereira. O Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 258.
1144
CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 45.
1145
CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 94 e p. 101.
1146
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. 2012, p. 169.
409

sintonia com o movimento pela redemocratização do país.”1147 Nessa mesma obra, como
colocado no primeiro capítulo da presente tese, Antonio S. A. Guimarães apresentou a
formulação do ideal de “democracia racial” nas décadas de 1930 e 1940 como um
qualificativo do modelo democrático brasileiro, a compensar a inexistência de democracia
política na ditadura de Getúlio Vargas. 1148 Durante a ditadura militar, o amparo do discurso
oficial do Estado no vocábulo “democracia racial” sugeria uma intencionalidade similar. E
assim, ao denunciar a inexistência de “democracia racial” no Brasil e reivindicá-la, os
movimentos negros rejeitavam um fundamento ideológico da ditadura ao mesmo tempo
que acrescentavam um conteúdo para a redemocratização.

Os embates em torno do conteúdo e dos limites da “democracia” apresentaram um


destacado papel na discussão política das décadas de 1970 e 1980 no Brasil. Afinal,
enquanto fortalecia a reivindicação pela redemocratização do país, surgiam compreensões
polissêmicas para o termo. O historiador Marcos Napolitano ressalta a centralidade da
chamada “questão democrática” no movimento distensão-abertura-transição que marcou
os últimos governos da ditadura militar, com os generais Ernesto Geisel e João Baptista
Figueiredo, entre 1974 e 1985. Segundo a análise do historiador, a partir de 1978: “Havia
uma pressão cada vez maior dos movimentos sociais unidos, ocupando de forma crescente
a praça pública em torno da democracia, o que sem dúvida era um fator de pressão a mais
sobre as políticas de distensão e abertura no caso brasileiro.”1149 No entanto,
confrontavam-se as leituras do vocábulo:

Para o governo, o país já era democrático, posto que fiel aos valores cristãos e
ocidentais e defensor da liberdade individual e da livre-iniciativa contra o
“totalitarismo de esquerda”, mas não abria mão dos instrumentos de repressão,
até que um novo sistema de valores estivesse internalizado. (...) O governo
entendia democracia como mero debate de ideias e ‘críticas construtivas.” (...)

Para o conjunto das oposições, começou a se definir um conceito de democra cia


“participativa”, que tentava criar uma zona de convergência entre os conceitos
elitistas e formais de democracia liberal e a democratização da sociedade com
base na afirmação dos direitos sociais e da participação efetiva. (...)

Se a questão democrática era um ponto de convergência, as várias leituras do que


significava democracia e os vários projetos de transição política que elas
encerram eram pontos de tensão dentro da sociedade. Para as associações
profissionais identificadas com a tradição liberal, como a OAB e a Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), democracia era o “estado de direito”, marcado
pelo império da lei, pelo equilíbrio dos poderes de estado, pelas liberdades civis
(reunião, manifestação e expressão) e pela igualdade jurídica entre os indivíduos.
Para os movimentos sociais de esquerda, era isso e algo mais, configurando a

1147
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. 2012, p. 167, 168.
1148
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. 2012, p. 141-148.
1149
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 234.
410

chamada “democracia substantiva”, marcada pela efetiva participação popular


nas decisões dos governos, pela construção de políticas de distribu ição de renda
e limites ao direito de propriedade. Para setores ainda mais à esquerda, de
tradição marxista, era a realização da democracia popular de massas, de caráter
delegativa e calcada mais em direitos sociais do que propriamente políticos. 1150

Em um contexto semântico tão polissêmico, evidenciando o vocábulo “democracia”


como uma importante arena de conflitos – afinal, não se limitava a uma palavra, mas ao
tipo de sociedade a ser definida através de tal palavra –, os movimentos sociais
contribuíam através de suas pautas individuais. No caso que interessa à presente tese, a
compreensão do vocábulo “democracia” pelas Linguagens Políticas Negras Antirracistas
confrontava o “racismo à brasileira” que sustentava o “mito da democracia racial”. A
redemocratização, para os Movimentos Negros, não podia se limitar ao reestabelecimento
do modelo derrubado em 1964, que ainda se apoiava em uma concepção mitológica de
igualdade e harmonia racial; mas necessitava de um efetivo combate ao racismo, “por uma
verdadeira democracia racial”. Ou seja, a exigência por democracia não visava apenas o
fim da ditadura militar, mas entendia os direitos políticos como fundamento para a
construção de uma sociedade igualitária.

O esforço pela fundamentação do ideal de democracia a partir das pautas do


movimento negro, assim como dos demais movimentos sociais, todavia, não seria
suficiente caso a atuação se limitasse à transição do Estado brasileiro para um governo
civil, com as eleições indiretas em 1985. Finda a ditadura militar, a ação dos movimentos
sociais visou a fixação das pautas reivindicadas no corpo da lei, através da Constituição.
De tal modo, nas páginas finais desta tese cabe assinalar, ainda que brevemente, sobre o
impacto das lutas antirracistas no recorte entre 1986 e 1988, o contexto de sedimentação da
transição democrática brasileira.

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães afirma que: “Com a redemocratização do país, a


impossibilidade de se conter as reivindicações sociais dos negros brasileiros nos estreitos
parâmetros da ideia freyriana de ‘democracia racial’ fica de todo evidente.”1151 Um
exemplo a confirmar a frase do sociólogo pode ser identificado em argumento da principal
liderança do Novo Sindicalismo e do PT, rejeitando a tese da democracia racial. O então
deputado federal constituinte Luiz Inácio “Lula” da Silva publicou na edição de Folha de
São Paulo de 16 de fevereiro de 1988 o artigo de opinião “A mistificação da democracia
racial” no qual afirmou:

1150
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 241, p. 242 e p. 248.
1151
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. 2012, p. 175.
411

É um grande mito a tão decantada “democracia racial” brasileira. A classe


dominante brasileira usa essa expressão para tentar enganar os povos de outros
países, mas, principalmente, para neutralizar e amortecer, aqui dentro, as lutas
por uma verdadeira emancipação do negro no Brasil.

Não podemos continuar sustentando esses mitos enquanto milhões de negros


continuam analfabetos; enquanto milhares de crianças negras (entre tantas
outras) estão presas em instituições de ‘recuperação’, rejeitadas pela sociedade
pelo duplo fato de serem negras e pobres; enquanto percebemos que o “lugar do
negro”, em nossa sociedade, materializou-se em cortiços, porões, mocambos,
alagados, favelas.

Esse é um quadro que configura uma espécie de ‘apartheid’ à moda brasileira.


Não é um ‘apartheid’, enquanto instituição filosófica, jurídica, socioeconô mica,
embasada em princípios teóricos e na legislação. Mas é um ‘apartheid’ de fato,
no sentido político, enquanto supremacia de uma elite dominante, branca, para as
quais existe uma correlação direta entre a cor da pele e as possibilidades de
acesso aos direitos e ao poder.1152

A aproximação entre o Movimento Negro e o Novo Sindicalismo não ficou exclusiva


ao artigo de Lula. Também em 1988, um artigo escrito por Hédio Silva Junior
significativamente intitulado “Democracia: a contribuição do movimento negro” enfatizou
a relação das pautas das lutas negras antirracistas com a organização do sindicalismo
brasileiro e da esquerda:

O movimento negro vem contribuindo para que o movimento sindical rompa seu
silêncio histórico e passe a discutir a questão racial que atinge pelo menos 40,2%
da força de trabalho do país, na perspectiva de unir os trabalhadores e dar maior
legitimidade à ideia de solidariedade de classe, tendo em vista que quem divide
os trabalhadores é o racismo. Ao mesmo tempo em que trabalha para dest ruir o
mito da democracia racial, o movimento negro tem atuado no sentido de que,
para além dos discursos bem intencionados, os partidos políticos de esquerda
passem a ter uma prática política que considere a eliminação do racismo como
parte da luta política pela democracia e pelo socialismo.1153

A atuação dos movimentos negros junto aos partidos e à gestão do Estado, a esfera
da política, foi intensa nos anos 1980. Em meio à renovação partidária do processo de
abertura política, alguns nomes da intelectualidade e militância negra adentraram na vida
político-partidária. Por exemplo, Abdias Nascimento retornou ao Brasil em 1981, após
treze anos em exílio, e filiou ao Partido Democrático Trabalhista (PDT) - partido do campo
progressista liderado por Leonel Brizola -, no qual foi eleito e atuou como deputado federal
entre 1983-1986. “A proposição de projetos de lei definindo o racismo como crime de lesa-
humanidade e a criação de mecanismos de ação compensatória para os negros brasileiros

1152
SILVA, Luiz Inácio Lula da. A mistificação da democracia racial. Folha de São Paulo. 16/02/1988.
Apud. CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 103, 104.
1153
JUNIOR, Hédio Silva. Democracia: a contribuição do movimento negro. In: Revista Tempo e Presença,
n. 227. 1988. Apud. CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 133.
412

foram as principais bandeiras de sua primeira experiência parlamentar”, conforme a


biógrafa Sandra Almada.1154

Lélia Gonzalez também atuou após a rearticulação pluripartidária, filiando no Partido


dos Trabalhadores (PT), do qual foi militante entre 1981 e 1986. A intelectual se
candidatou a deputada federal em 1982, defendendo reivindicações dos movimentos negro,
homossexual e feminista, em campanha que contava com shows de Zezé Motta (também
filiada ao PT). No entanto, Lélia não foi eleita para o cargo, ficando como primeira
suplente. A intelectual atuou, entre 1983 e 1984, como assessora política da vereadora
Benedita da Silva (PT), militante do movimento negro e a primeira mulher negra a ocupar
uma cadeira na Câmara dos Vereadores, com o slogan “negra, mulher e favelada” - que
sinalizava para suas pautas. Em 1986, Lélia Gonzalez deixou o PT e se filiou ao PDT, no
qual candidatou a deputada estadual, mas novamente não foi eleita, ficando como primeira
suplente.1155 Conforme Alex Ratts e Flávia Rios na biografia Lélia Gonzalez, outros
militantes do MNU ingressaram em partidos, e: “A Constituinte foi um espaço bastante
aproveitado por esses ativistas. Lélia comparecia à casa de Abdias para elaborar teses para
os deputados mais sensíveis à questão racial.”1156

A atuação de militantes negros na Constituinte foi estudada na dissertação em Direito


A voz e a palavra do Movimento Negro na Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988):
um estudo da demanda por direitos, defendida por Natália Neris da Silva Santos. 1157 A
pesquisa e as conclusões da autora foram sintetizadas no artigo “Vozes negras no
Congresso Nacional: Movimento Negro e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-
1988”, que será a base da análise apresentada nos próximos parágrafos - exceto quando
apontado.

O cenário da Constituinte e os efeitos e limites da Constituição, em linhas gerais, foi


estudado nos vários artigos que compõem o livro A Constituição de 88: trinta anos depois,
organizado por Cristina Buarque de Hollanda, Luciana Fernandes Veiga e Oswaldo E. do
Amaral. Embora nos quatorze artigos que integram a obra não haja maior atenção à
questão racial, os textos contribuem para uma compreensão mais aprofundada sobre o

1154
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento (Coleção Retratos do Brasil Negro). 2009, p. 120.
1155
Sobre a atuação partidária de Lélia, ver: RATTS, Alex, RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez (Retratos do Brasil
Negro). 2010, p. 113-125. Sobre Benedita da Silva, ver: < https://www.ebiografia.com/benedita_da_silva/>
1156
RATTS, Alex, RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez (Retratos do Brasil Negro). 2010, p. 125.
1157
SANTOS, Natalia Neris da S. A voz e a palavra do Movimento Negro na Assembleia Nacional
Constituinte (1987/1988): um estudo da demanda por direitos. Dissertação (Direito). Fundação Getúlio
Vargas. 2015.
413

cenário. Por exemplo, a síntese realizada pelos organizadores quanto ao capítulo sete,
“(Des) venturas do Poder Constituinte no Brasil, 1964-1986”, ajuda a situar o debate no
contexto:

O texto de Antonio Sérgio Rocha defende que o período que vai de 1964 a 1986
apresenta três versões de Poder Constituinte, cada um deles evocando um tipo
específico de legitimidade. Inicialmente, há o apelo a um Poder Constituinte
Revolucionário. A partir de 1979, no âmbito do projeto de distensão política,
desencadeia-se um amplo debate entre partidários governistas de uma reforma da
constituição autoritária e os proponentes oposicionistas de uma assembleia
constituinte originária. A questão vai entrar na formação e no funcionamento da
Nova República, período em que se formula o conceito de Poder Constituinte
Instituído - base doutrinária para a determinação de um Congresso
Constituinte.1158

Sendo o Poder Constituinte Instituído o espaço de fundamentação e mesmo fundação


da Nova República, a pesquisa de Natália Neris da Silva Santos permite compreender a
atuação dos movimentos negros no sentido de buscar acessar parte de tal Poder para o
antirracismo. De tal forma, a autora justifica sua pesquisa a partir de dois pressupostos: o
primeiro, que “o direito é constantemente transformado pelas lutas sociais”; e o segundo
identifica uma linguagem do Direito, “e de que o uso desta linguagem por grupos
subalternizados é capaz de visibilizar questões e contribuir para a minimização de
desigualdades.”1159 Segundo Natália Neris S. Santos, a Assembleia Nacional Constituinte
(ANC) durou 583 dias, marcados por:

disputas, negociações e por uma relação, sem precedentes no que se refere à


intensidade, entre atores parlamentares e extraparlamentares: estima-se que dez
mil postulantes franqueavam diariamente a entrada no Parlamento no período de
realização da ANC e que nove milhões de pessoas tenham passado pelo
Congresso no período de sua realização.1160

A pesquisadora concentrou análises em cinco naturezas de documentação,


disponíveis no acervo eletrônico da ANC: 1) sugestões encaminhadas pelo Movimento
Negro à ANC; 2) atas de audiências públicas com participação do movimento social; 3)
emenda popular de autoria de entidades subscrita por um parlamentar; 4) atas das reuniões
de instalação e encerramento das instâncias responsáveis pela discussão da temática racial
na ANC; e 5) as versões dos anteprojetos e projetos de Constituição até sua promulgação.
Tal documentação evidencia o funcionamento descentralizado da Assembleia Nacional

1158
HOLLANDA, Cristina Buarque. VEIGA, Luciana Fernandes. AMARAL, Oswaldo E. Introdução. In: A
Constituição de 88: trinta anos depois. 2018, p. 09. Para o capítulo referenciado, ver p. 181-202 do livro.
1159
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 3.
1160
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 3.
414

Constituinte, que a autora atribui à intensão mobilização social. Assim, a ANC contou com
quatro mecanismos de participação extraparlamentar: a possibilidade de encaminhar
sugestões; uma quantia de cinco a oito reuniões de cada subcomissão a serem destinadas às
audiências públicas; o mecanismo de emendas populares; e a possibilidade de o público
assistir sessões, da galeria. A estrutura da ANC foi dividida em oito Comissões Temáticas,
compostas cada uma por sessenta e três membros titulares e igual número de suplentes, e
cada uma ligada a três Subcomissões Temáticas, compostas por vinte e um membros. As
pautas das chamadas “minorias” foram discutidas na sétima comissão, a Comissão da
Ordem Social, que incluía a Subcomissão dos Negros, populações Indígenas, Deficientes e
Minorias, e, segundo a autora, considerada a “espinha dorsal das demais comissões” por
parlamentares.1161

À etapa que permitia maior participação de atores extraparlamentares, a literatura


sobre a Constituinte trata por “fase popular”, diferenciando das etapas seguintes à
Comissão de Sistematização, tratada por “fase parlamentar” ou “fase centralizada”. E,
conforme Natália Neris S. Santos, “O Movimento Negro fez uso de todos os instrumentos
de participação popular no processo constituinte.”1162 A pesquisadora identificou a
participação de vinte e um ativistas do Movimento Negro durante as audiências públicas,
incluindo nomes como Lélia Gonzalez e Joel Rufino dos Santos, além da participação,
como convidado para consultoria acadêmica pelos parlamentares, de Florestan Fernandes
para as pautas de negros e indígenas nos debates. Segundo a pesquisadora:

Permearam as falas: (i) diagnósticos sobre as condições de vida da população


negra (que ora faz menção a questões históricas de um modo geral, ora se valeu
de experiências pessoais ou histórias de vida), (ii) uma visão sobre o momento
histórico vivido e sobre o papel da Constituinte, da Subcomissão e também sobre
o papel do Direito e das leis no que se refere ao enfrentamento do racismo e das
desigualdades raciais, (iii) propostas de redação do texto e temas a serem
inseridos na Constituição.1163

Assim, ainda conforme a Natália Neris S. Santos, “Ademais, chama a atenção neste
momento do processo a preocupação por parte do movimento social em garantir ‘algo mais
que a igualdade formal no texto da Constituição’”; de modo que “O Movimento Negro

1161
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 5-8.
1162
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 10.
1163
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 11.
415

encaminhou sete documentos assinados por pelo menos 70 organizações contendo


sugestões à ANC.”1164 Os documentos apresentavam uma série de pautas, detalhadas pela
pesquisadora, como: direitos e garantias individuais (com destaque às condições de
encarcerados e seus familiares); violência policial; condições de vida e saúde; a situação da
mulher; a situação de menores; educação; cultura (onde entrou a reivindicação pelo Dia
Nacional da Consciência Negra no 20 de novembro, data do assassinato de Zumbi de
Palmares); acesso à terra; trabalho (com destaque às empregadas domésticas); relações
internacionais (incluindo a reivindicação por ações mais efetivas quanto ao regime
segregacionista sul-africano); e os tópicos “Caminhos para a questão racial”, de teor
coercitivo, promocional (reivindicavam o crime inafiançável contra os Direitos Humanos e
caber aos juízes federais processar e julgar crimes de discriminação), e didático-
pedagógico (com o ensino de história africana). 1165

Reivindicações de teor antirracista também foram expressas junto aos movimentos


feministas, conforme A Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, aprovada em
1986 e entregue pela socióloga e presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
na Constituinte, Jacqueline Pitanguy, ao presidente do Congresso Nacional, o deputado
Ulisses Guimarães, em março de 1987. Dos seis tópicos da carta (a saber, após os
Princípios Gerais; as Reivindicações Específicas: Família, Trabalho, Saúde, Educação e
Cultura, e Violência; e o tópico Questões Nacionais e Internacionais) o tópico Educação e
Cultura reivindicava:

Ênfase na igualdade entre os sexos, na luta contra o racismo e outras formas de


discriminação, afirmando o caráter multicultural e multirracial dos brasileiros;
tornar obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira; zelar por uma educação e
cultura igualitária a ser promovida pelos meios de comunicação; zelar pela
imagem social da mulher sem preconceitos e estereótipos discriminatórios;
discriminar as estatísticas por sexo, raça e cor.1166

A defesa de parte das pautas antirracistas descritas acima pode ser identificada no
discurso de Lélia Gonzalez na Constituinte, “O negro e a sua situação”, realizado a convite
da deputada Benedita da Silva (PT). O pronunciamento da intelectual ocorreu na sétima
Reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e

1164
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 11.
1165
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 12-17.
1166
PITANGUY, Jacqueline. A carta das mulheres brasileiras aos constituintes: memórias para o futuro. In:
HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. 2019, p. 88.
416

Minorias, ocorrida em 28 de abril de 1987, no Anexo II do Senado Federal. O discurso de


Lélia Gonzalez partiu da ideologia do embranquecimento e da situação da mulher negra,
sobretudo denunciando a sexualização, que, junto à exclusão econômica, direciona as
mulheres à prostituição; pontuou o desconhecimento brasileiro da história das civilizações
africanas, com a abordagem escolar centrada na história europeia, e abordou a perseguição
policial aos homens negros:

Diante disso, nós, negros, tivemos que ir à luta praticamente sozinhos, e,


sobretudo nos anos 1970, inspirados muito pela nossa própria história, pela nossa
história de resistência, de postura democrática já em Palmares, no século XVII,
democrática do ponto de vista racial. (...) Mas de qualquer forma nos u nimos
àqueles constituintes, àqueles efetivamente representantes do povo brasileiro,
que se unem a nós, que são sensíveis às nossas propostas, às nossas denúncias, às
nossas reivindicações, porque, repito, não é com a mulher negra na prostituição;
não é com o homem negro sendo preso todos os dias por uma polícia que o
considera, antes de mais nada, um suspeito; não é com a discriminação no
mercado de trabalho; não é com a apresentação distorcida e insignificante da
imagem do negro nos meios de comunicação; não é com teorias e práticas
pedagógicas que esquecem, que omitem a história da África e das populações
negras e indígenas no nosso país; não é com isso que se vai construir uma nação.
Construir-se-á, isso sim, uma África do Sul muito bem-estruturada, mais bem-
estruturada do que a própria África do Sul, porque, sem assumir legalmente o
apartheid através de um discurso teatral da democracia racial, ela mantém um
tipo de apartheid. Isto nós negros deste país, que lutamos, nós cidadãos deste
país, pela nossa cidadania neste país, nós negros, mulheres, trabalhadores, não
vamos permitir isso e por isso estamos aqui.1167

O trecho destacado acima do discurso de Lélia Gonzalez na Constituinte exibe a


forma da intelectual elaborar e comunicar as pautas expressas pelas organizações do
Movimento Negro, e também sinaliza quanto a uma importante mudança no discurso da
militância negra antirracista no contexto da constituinte: não é mais frequente a aparição da
reivindicação “por uma autêntica democracia racial”. Diferente do cenário de lenta
reabertura política, durante a transição democrática do governo civil de José Sarney, a
denúncia e desconstrução do “mito da democracia racial” passavam a ser contrapostas à
reivindicação por cidadania.

A atuação do Movimento Negro no período da transição democrática ocorreu no


Congresso, tornando a Assembleia Constituinte uma arena de disputa, mas também nas
ruas, em particular diante do 13 de março de 1988. No cenário já efervescente da
Constituinte, o marco do centenário da abolição da escravidão tornou-se mais uma
importante arena da luta política antirracista e da denúncia do ideal da democracia racial
enquanto um mito.

1167
GONZALEZ, Lélia. Discurso na Constituinte. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios,
intervenções e diálogos. 2020, p. 251-252.
417

Na narrativa do Estado, as comemorações oficiais da efeméride incluíram um


discurso do então presidente da república, José Sarney, realizado em 21 de março de 1988:
“Abertura das comemorações do Centenário da Abolição da Escravatura”. Em tal discurso,
o presidente brasileiro anuncia a criação da “Fundação Cultural dos Palmares, para
incentivar a cultura negra”, e de um “monumento nacional na Serra da Barriga, em União
dos Palmares, em Alagoas”, e afirma “o repúdio do Brasil ao racismo e ao apartheid”; no
entanto, reafirmava o Brasil enquanto uma “democracia racial” e o seu caráter de exemplo
de relações raciais a outras nações, mantendo, assim, elementos da representação racial
difundida desde os anos 1950.1168 A celebração do centenário da abolição tornou-se mais
um campo de batalha para os movimentos negros e a narrativa oficial foi confrontada pelo
Movimento Negro Unificado, através de diversas marchas realizadas no país, “as passeatas
de protesto no dia 13 de maio de 1988, cujo objetivo era negar a imagem da princesa
imperial como ‘redentora’, culminaram com as marchas contra as comemorações do
centenário da abolição da escravatura.”1169

A marcha realizada na avenida Presidente Vargas da cidade do Rio de Janeiro, em


11 de maio de 1988, indica o tom das reivindicações já a partir do seu título: “Marcha
contra a farsa da Abolição”,1170 questionando os limites das políticas de Estado nesses cem
anos após a abolição. O impacto de tais marchas e manifestações propiciaram a difusão de
um vocábulo expressivo nas reivindicações negras antirracistas: a demanda pela “segunda
abolição” - termo que aparecia na imprensa negra do Brasil, pelo menos, desde 1929, no
jornal O Clarim da Alvorada, e importado para textos acadêmicos por Florestan
Fernandes.1171 Assim, conforme constatou o historiador Jacob Gorender: “as
comemorações ficaram apagadas e depreciadas pelos protestos dos movimentos negros na
rua”.1172

1168
Discurso transcrito e disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-
presidentes/jose-sarney/discursos/1988/23.pdf/view> Acesso em 11/09/2021.
1169
RIOS, Flavia. Lélia Gonzales. (Retratos do Brasil Negro). 2010, p. 91.
1170
Sobre as marchas, ver RIOS, Flavia. Lélia Gonzales. (Retratos do Brasil Negro). 2010, p. 91-92. RIOS,
Flávia. O protesto negro no Brasil contemporâneo (1978-2010). In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política,
São Paulo, 85: 41-79, 2012. ALBERTI, Verena. PEREIRA, Amilcar A. Histórias do Movimento Negro no
Brasil: depoimentos ao CPDOC. 2007, p. 252-270.
1171
RIBEIRO FRANCISCO, Flávio Thales. Da segunda abolição ao fim da democracia racial: interpretações
historiográficas sobre a presença do negro na história republicana do Brasil. In: Estudios del ISHIR, 20, 2018,
pp. 35-52. <http://revista.ishir-conicet.gov.ar/ojs/index.php/revistaISHIR> SANTOS, Patrick S. dos. O Negro
na Revolução Socialista Brasileira: uma análise das expectativas de Florestan Fernandes. In: Mosaico, vol.
12, n°19, 2020, p. 7-31.
1172
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática. 1990, p. 91.
418

Cabe ressaltar que, apesar do aparente clima de liberdade propiciada pela


reconquista de direitos civis na Nova República, as marchas não ocorreram sem atritos
com as forças repressivas do Estado brasileiro. O historiador Lucas Pedretti Lima ressalta
sobre a marcha na capital do Rio de Janeiro, que reuniu cinco mil pessoas, com o trajeto
programado da Igreja da Candelária até a estátua de Zumbi dos Palmares, através da
avenida Presidente Vargas. O fato do trajeto passar em frente ao Panteão de Duque de
Caxias, no edifício do Comando do Primeiro Exército, levou ao impedimento da marcha,
com o levantamento de uma barricada com mais de 600 soldados fortemente armados,
impedindo a passagem da marcha e, portanto, sua chegada ao monumento a Zumbi. 1173 O
historiador localizou um documento do CIE, o Relatório Periódico Mensal de abril de
1988, que justificava, no olhar das forças repressivas, o perigo das marchas. Após elogiar
as iniciativas oficiais de celebração ao 13 de março, o documento enuncia a organização
dos atos de contestação como uma iniciativa comunista em busca de contrapor a “harmonia
racial” brasileira visando introduzir um inexistente racismo no país - ou seja, a mesma
leitura da realidade racial pela Ditadura já apresentada nesta tese:

As organizações marxistas ou por elas infiltradas valem-se de todos os meios e


temas para convencer (e persuadir) as massas dos malefícios do regime político e
do sistema econômico vigentes. (...) Nesse mister, são de sua predileção os temas
que envolvem as minorias, pois, sua exploração torna possível criar dissensões
na sociedade visada. Isto é exatamente o que vem ocorrendo no Brasil, onde as
bandeiras do racismo e da marginalização do negro são desfraldadas, tendo como
pano de fundo as comemorações do Centenário da Abolição da Escravatura. (...)
Assim, num país como o nosso, de ‘muitas raças e um só povo’, nas palavras de
D. Eugênio Sales, onde a miscigenação se processou sem traumas ao longo dos
dois últimos séculos, as esquerdas conseguem, pelo menos, empanar o brilho de
um evento que deveria ser confraternização e integração, semeando o germe da
discórdia, com a finalidade de criar mais uma área de antagonismo social,
sobrepondo a exploração de um pretenso racismo à exaltação de um fato
histórico de real importância no processo de formação da nacionalidade
brasileira.1174

Contudo, apesar da oposição das forças repressivas do Estado, as pressões das ruas
foram canalizadas pela atuação do Movimento Negro na Assembleia Nacional
Constituinte, pressionando, por sua vez, os parlamentares que se declaravam
comprometidos com a luta antirracista. E com atuação em particular dos parlamentares da
chamada “A bancada negra”: Edmilson Valentim (PT/RJ), Carlos Alberto Caó (PDT/RJ),

1173
LIMA, Lucas P. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 . Dissertação
(História). PUC RJ. 2018, p. 95.
1174
Arquivo Nacional, BR_DFANBSB_2M_0_0_0034_003_d0001de0001. Apud. LIMA, Lucas P. Bailes
soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 . Dissertação (História). PUC RJ. 2018,
p. 96,97.
419

Paulo Paim (PT/RS) e Benedita da Silva (PT/RJ).1175 Uma atuação que, segundo Natália
Neris da Silva Santos, potencializou as reivindicações dos anos 1990 e 2000 e revelou “que
a gramática dos direitos passou definitivamente a integrar o repertório do Movimento
Negro a partir de 1988, da luta pela aprovação de legislação à mobilização por sua efetiva
implementação.”1176

Se a atuação dos movimentos negros antirracistas, assim como de outros


movimentos sociais, buscava a fixação das reivindicações na forma de direitos, através da
luta por a fundamentação da cidadania; grupos hegemônicos de vertente conservadora, no
entanto, buscavam manter a democracia enquanto Estado Liberal de Direito e a cidadania
enquanto o exercício do sufrágio em eleições livres. É possível que a derrota da Ementa
Dante de Oliveira, que previa a eleição direta para a presidência da República de 1985,
tenha colaborado para os esforços daqueles que buscavam na eleição aberta de 1989 para a
presidência da República - a primeira, desde a eleição do presidente Jânio Quadros - a
consagração da cidadania e da Nova República.

O breve comentário acima foi colocado na presente tese para reforçar o argumento
de que as lutas do Movimento Negro e outros movimentos sociais formam um elemento
central – e possivelmente decisivo - para os avanços fixados na legislação do período.
Porém, o esforço para que tais avanços fossem fixados não ocorreu sem resistências. A
pesquisa de Natália Neris S Santos revela que a Subcomissão que discutiu o tema racial
“fora um espaço desvalorizado, com baixa frequência de parlamentares e que recebeu
pouca atenção na mídia”, exigindo estratégias dos movimentos negros para garantir o
quórum mínimo, além de enfrentar limitações para a discussão das pautas pela divisão na
qual foi estruturada a ANC compartilhar a Subcomissão com outras minorias, o que
resultou que na etapa da Comissão de Sistematização, algumas demandas foram
obliteradas em prol de soluções mais generalizadas. 1177 Conforme o artigo “A trajetória das
políticas sociais nos 30 anos desde a Constituição de 1988”, escrito pelas cientistas
políticas Telma Menicucci e Gabriela Lotta:

1175
SANTOS, Natália Neris S. A voz e a palavra do Movimento Negro na Assembleia Nacional Constituinte
(1987-1988): um estudo das demandas por direitos. Dissertação (Direito). FGV. 2015, p. 205.
1176
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 22.
1177
SANTOS, Natália Neris da Silva. A voz e a palavra do movimento negro na Assembleia Nacional
Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos. Dissertação (Direito). FGV. 2015, p. 174-
178.
420

Esse registro é particularmente relevante no âmbito das políticas sociais, no qual


as alterações normativas e institucionais introduzidas contribuíram para a
alcunha de “Constituição Cidadã”, a partir da noção de que as políticas sociais
dão materialidade aos direitos sociais enquanto um dos pilares da noção
contemporânea de cidadania.1178

É válido pontuar que no contexto da redemocratização, o conceito de “cidadania”


ainda era recente no léxico político brasileiro, o que reforça as possibilidades de disputas
de significados no debate político. A cientista social Maria de Lourdes Manzini Covre, no
livro O que é Cidadania, informa sobre o uso então recente do termo no debate político
brasileiro e as conexões entre as reivindicações por cidadania e a Constituição:

Há algum tempo o tema cidadania passou a ser mais ventilado no mundo


contemporâneo, inclusive no Brasil. (...) Nas décadas de 60 e 70, esse tema não
exercia o mesmo apelo. Ouvíamos então falar de mudança social, do modelo
revolucionário russo ou do chinês. Naquela época, cidadania tinha uma
conotação pejorativa, espécie de engodo a “la democracia americana”, que não
levaria a nada. Hoje, aqueles modelos revolucionários, tais como foram
encaminhados inicialmente, mostram-se falidos. Novas propostas, de certa forma
relacionadas ao tema cidadania, passaram sobre eles. (...)

A Constituição é uma arma na mão de todos os cidadãos, que devem saber usá -la
para encaminhar e conquis tar propostas mais igualitárias. (...) Só existe cidadania
se houver a prática da reivindicação, da apropriação de espaços, da pugna para
fazer valer os direitos do cidadão. (...) Mas o primeiro pressuposto dessa prática
é que esteja assegurado o direito de reivindicar os direitos, e que o conhecimento
deste se estenda cada vez mais a toda a população. 1179

Também no livro Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e


direitos, os organizadores da obra, André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz, ressaltaram na
“Introdução - Cidadania e direitos: aproximações e relações”: “No Brasil, a chegada dos
anos 1970 traz todo um movimento de contestação aos valores vigentes, e aos modelos de
cidadania imperantes e totalmente vinculados ao Estado e ao jogo partidário,” ressaltando a
atuação dos “movimentos sociais feminista, ambiental, o LGBTS, bem como o movimento
negro.”1180 Os autores do texto complementam a historicização: “Com a transição
democrática no final dos anos 1970 é que teria início, enfim, um novo momento da história
da cidadania nacional, com o reconhecimento e o exercício pleno de direitos de todas as
ordens, garantidos pela Constituição de 1988, não por acaso denominada de ‘cidadã’.”1181

1178
MENICUCCI, Telma. LOTTA, Gabriela. A trajetória das políticas sociais nos 30 anos desde a
Constituição de 1988. In: HOLLANDA, Cristina B. VEIGA, Luciana F. AMARAL, Oswaldo E. A
Constituição de 88: trinta anos depois. 2018, p. 73.
1179
COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é Cidadania. 1991 (8° reimpressão, 1999), p. 7 e p. 10.
1180
BOTELHO, André. SCHWARCZ, Lilia M. Introdução - Cidadania e direitos: aproximações e relações.
In: Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos. 2012, p. 16, 17.
1181
BOTELHO, André. SCHWARCZ, Lilia M. Introdução - Cidadania e direitos: aproximações e relações.
In: Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos. 2012, p. 21.
421

É nesse ambiente de sedimentação da concepção de cidadania no vocabulário das


lutas políticas dos movimentos sociais que se insere o discurso de Lélia Gonzalez na
Constituinte, contrapondo o “mito da democracia racial” à reivindicação por cidadania. De
modo que o vocábulo “cidadania” também pode ser identificado em meio à gramática dos
direitos inclusa no repertório do Movimento Negro, conforme o argumento de Natália
Neris da Silva Santos, citado acima. Ou, conforme André Botelho e Lilia M. Schwarcz, em
“uma verdadeira doutrina de cidadania; uma gramática da democracia.”1182

Instigante considerar, conforme levantado como hipótese neste último tópico da


tese, que a inclusão do vocábulo “cidadania” e da “gramática dos direitos” no repertório do
Movimento Negro enriqueceu as linguagens negras antirracistas. E assim, na Constituinte,
a luta contra o racismo buscou se integrar ao conteúdo do conceito de “democracia” no
léxico político brasileiro.

Concluindo a hipótese sugerida por esta tese, as mensagens antirracistas veiculadas


pelas canções da Black Music Brasileira entre 1960 e 1988 podem ter contribuído para
difundir na sociedade brasileira os significados mais amplos do termo “racismo”, que
inseriam diversas situações de preconceito e discriminação no cotidiano de pessoas negras.

Natalia Neris da Silva Santos constata que “A Constituinte fora de fato o momento
em que a temática [dos movimentos negros] insere-se na agenda governamental
brasileira.”1183 A autora realiza em sua pesquisa um balanço da fixação do tema antirracista
no texto constitucional, concluindo que: “Ao estudarmos o texto final da Constituição
notamos que a mesma incorporou os pleitos relativos aos seguintes temas: criminalização,
relações diplomáticas, cultura, educação e questão quilombola. (...) A incorporação de tais
dispositivos na CF é uma importante conquista do Movimento Negro.”1184

Assim, Natalia Neris S Santos destaca no artigo o que denominou por “Legado da
tematização no texto constitucional e infraconstitucional: avanços e persistências”,
abordando “As demandas incorporadas no texto constitucional”: nos Princípios
Fundamentais, artigo 4°, o parágrafo VII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; nos

1182
BOTELHO, André. SCHWARCZ, Lilia M. Introdução - Cidadania e direitos: aproximações e relações.
In: Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos. 2012, p. 25.
1183
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 20.
1184
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 19, 20.
422

Direitos e Garantias Fundamentais - Dos Direitos Sociais, o artigo 5°, parágrafo XLII – a
prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, suje ito à pena de
reclusão, nos termos da lei, e o artigo 7°, inciso XXX - proibição de diferença de
salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade,
cor ou estado civil; em Da Ordem Social – Da educação da cultura e do desporto da
cultura, artigo 215, parágrafo 1° - O Estado protegerá as manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional, e parágrafo 2° - A lei disporá sobre a fixação de datas
comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnico nacionais ; e o
artigo 216, parágrafo 5° - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores
de reminiscências históricas dos antigos quilombos; nas Disposições Constitucionais
Gerais, o artigo 242, parágrafo 1° - O ensino da História do Brasil levará em conta as
contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro; e no
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, artigo 68: Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.1185

Portanto, com o amparo da pesquisa de Natália Neris da S. Santos, é possível


perceber que a atuação do Movimento Negro trouxe uma série de reivindicações durante as
discussões da Assembleia Nacional Constituinte que contribuíram para a criação de uma
“Constituição Cidadã”, de teor mais progressista. E essas reivindicações fixadas na
Constituição evocam temas veiculados nas canções da Black Music brasileira desde o
início dos anos 1960. Assim, os dispositivos incorporados na Constituição Federal citados
no parágrafo acima abarcam alguns dos temas dos blocos temáticos das canções
mencionados no início deste tópico, como o preconceito racial no cotidiano, a afirmação de
elementos culturais afro-brasileiros, a memória da escravidão, a partir da valorização da
resistência quilombola, e a celebração de Zumbi dos Palmares, a partir da garantia de
fixação de datas comemorativas.

Outro tópico presente nos blocos temáticos apontados nas canções, porém, também
encontrou espaço no texto da Constituição Federal de 1988: a questão das remoções
forçadas nas favelas. O Banco Nacional de Habitação (BNH), criado pela ditadura militar e

1185
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 19, 20. Negritos da autora.
423

através do qual foram construídos os blocos habitacionais que Gilberto Gil apontou como
“refavelas” na canção homônima, “foi extinto pelo Decreto-Lei n°2.291, de 21 de
dezembro de 1986, do então presidente da República José Sarney, que também transferiu a
função de coordenador do SFH [Sistema Financeiro da Habilitação] para a Caixa
Econômica Federal e a de regulador para o Banco Central.”1186 No entanto, a mudança
mais expressiva ocorreu através do texto constitucional, conforme apontado por Adauto
Lúcio Cardoso e Rosana Denadi na introdução do livro que organizaram, Urbanização de
favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC:

Após um período de repressão acentuada, em que as políticas de desfavelamento,


baseadas em remoções forçadas, eram a tônica, passou -se a uma relativa
aceitação das favelas e um progressivo reconhecimento de sua presença e
permanência no espaço urbano. A instituição da função s ocial da propriedade e
da usucapião especial urbana, na Constituição de 1988, vieram a marcar
positivamente essa nova atitude do Poder Público, fornecendo a base legal para
uma série de intervenções que visaram a reconhecer juridicamente a legitimidade
da posse da terra das favelas e também melhorar as condições de vida dessa
população por intermédio de projetos de urbanização. 1187

Todavia, embora a Constituição Federal promulgada em 1988 apresente avanços


para a sociedade brasileira que justificam seu epíteto de “Constituição Cidadã”, seria
ingênuo para esta tese finalizar o texto sem assinalar as contradições e limites. A
historiadora e antropóloga Lilia M. Schwarcz aponta alguns limites da Constituição ao
abordar a crime de racismo, no livro Nem preto nem branco, muito pelo contrário. Cor e
raça na sociabilidade brasileira:

Analisando-se seu texto, depreende-se uma reiteração do “preconceito à la


brasileira” de maneira invertida, porém mais uma vez simétrica. Só são
consideradas discriminatórias atitudes preconceituosas tomadas em público. Atos
privados ou ofensas de caráter pessoal não são imputáveis, mesmo porque
precisariam de testemunha para a sua confirmação. 1188

A penalização do crime de racismo foi consolidada com a Lei 7.716 de 1989, que
no artigo 20 previa a reclusão para “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”1189 E, apesar dos limites
de aplicação apontados acima, atestou uma associação entre “racismo” e preconceito e
discriminação.

1186
< http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/banco-nacional-da-habitacao-bnh>
1187
CARDOSO, Adauto L. DENADI, Rosana. Apresentação. In: CARDOSO, Adauto L. DENADI, Rosana.
(orgs.) Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. 2018, p. 09.
1188
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário. Cor e raça na sociabilidade
brasileira. 2012, p. 79.
1189
< https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas -e-produtos/direito-facil/edicao-
semanal/injuria-racial-x-racismo > Acesso 12/09/2021.
424

As pautas incluídas na Constituição estabeleceram-se não como um ponto de


chegada da reivindicação igualitária, mas como novos pontos de partida na luta
antirracista, partindo da legislação para buscar combater os esforços de manutenção de
exclusão. Conforme Natalia Santos: “De todo modo, as demandas inseridas ensejaram
lutas posteriores por regulamentação e efetiva implementação de leis, o que conferiu o
direito para tais atores/ atrizes a característica de campo de disputa.”1190 Lutas contra um
secular e sistemático processo de exclusão cujos mecanismos se atualizam e permanecem.

Para além dos limites quanto às pautas antirracistas, a República brasileira surgida
em 1989, após a “transição democrática”, sugere a fixação de um conceito formal de
“democracia”, mais restrito do que outras opções em disputa apresentadas neste tópico.
Pode-se pontuar o significado fixado citando a definição das historiadoras Denise
Rollemberg e Samantha Quadrat em A construção social dos regimes autoritários:
legitimidade, consenso e consentimento no século XX: “Um sistema de governo para ser
democrático deve apresentar eleições regulares, sem fraudes e realmente competitivas,
liberdade de imprensa e organização, alternância no poder, independência dos três poderes
e o direito de qualquer cidadão votar e ser votado.”1191

Para o autor da presente tese, a difusão das ideias políticas e das linguagens negras
antirracistas no léxico político brasileiro, veiculadas através das canções e sistematizadas
pelos movimentos negros, contribuiu para que a consagração do “cidadão negro” na
redemocratização não se limitasse à mera conquista do exercício do voto. A um conceito
de “cidadão” que poderia significar o sinônimo de “eleitor”, os Movimentos Sociais se
esforçaram para fixar o sentido de “destinatário de um catálogo de direitos”. 1192

É possível sugerir, para concluir a argumentação levantada neste tópico, que, se


surgiu uma “Constituição Cidadã” no Brasil com o fim da ditadura militar e o governo de
transição democrática de José Sarney, tal feito, ainda que com limitações, foi uma
conquista da atuação dos diversos movimentos sociais, como os movimentos negros.

1190
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 21. Itálicos da autora.
1191
QUADRAT, Samantha & ROLLEMBERG, Denise (orgs.). A construção social dos regimes autoritários:
legitimidade, consenso e consentimento no século XX. 2010, p. 18.
1192
A inspiração para a reflexão sobre as lutas sociais em torno dos conteúdos da “democracia” e
“cidadania”, em contraposição ao esforço de grupos dominantes por sintetizar tais conceitos ao mero
exercício do voto, é atribuída à argumentação, pensando na realidade francesa, de ROSANVALLON, Pierre.
La consagración del ciudadano. Historia del sufragio universal en Francia. Trad. Ana Garcia Bergua.
Instituto Mora. 1999.
425

Conclusão: O fim da história.

Entre 1978 e 1988, a produção fonográfica documentou o declínio da Black Music


Brasileira. Em comparação com os anos 1970, o número de artistas estreantes diminuiu, e,
muitos dos que se destacaram entre 1970 e 1977, paralisaram gravações. O retraimento da
Black Music coincidiu com o redirecionamento da indústria fonográfica brasileira rumo à
profissionalização, o que reduziu espaço para a experimentação por produtores musicais.
Predominava, a partir de então, a ênfase em produtos com maior expectativa de retorno
comercial. O início do recorte, o ano de 1978, marcou também o apogeu do gênero Disco
Music, que foi incorporado por alguns artistas abordados anteriormente nesta tese. Ainda
assim, a Black Music Brasileira a partir de 1978 e nos anos 1980 apresentou nomes de
impacto na grande indústria, como as cariocas Zezé Motta e, particularmente, Sandra Sá -
que recebeu o epíteto “rainha do soul”. O gênero ainda ecoou, de forma mais diluída, na
produção de artistas como o baiano Gilberto Gil e, a partir de 1980, o alagoano Djavan.
Também no cenário, então emergente, da produção fonográfica alternativa, o músico
paulista Itamar Assumpção incorporou elementos da Black Music. E, na produção de todos
esses artistas, houve veiculação de eventuais discursos das linguagens antirracistas.

Embora a produção fonográfica da Black Music Brasileira registrasse declínio a


partir de 1978, tal recorte atestou o recrudescimento da luta antirracista, com a visibilidade
angariada pelo Movimento Negro em um cenário de intensificação das lutas populares
contra a ditadura militar e de eclosão de novos movimentos sociais. O período da
reabertura política, lenta e gradual, marcou o fim da ditadura, e a transição democrática, no
governo de eleição indireta de José Sarney, marcou o início da Nova República. O
processo de redemocratização foi sedimentado com a formulação de uma nova
Constituição Federal. E, nesse efervescente cenário político entre 1978 e a Constituição de
1988, a luta antirracista apresentou um papel de destaque, reivindicando um alargamento
do conteúdo da democracia a ser instaurada. Em diálogo com esse cenário, o capítulo
assinalou, brevemente, a ação de alguns intelectuais negros que buscaram fundamentar
uma nova compreensão do termo “racismo” que abarcasse o preconceito e a discriminação
racial, conforme a definição apontada pelo movimento negro. Uma ressignificação central
para sustentar a rejeição da “democracia racial” enquanto mito. Por fim, foi assinalada,
também brevemente, a organização do Movimento Negro a partir de 1978, principalmente
sua atuação no cenário da Constituinte, com o capítulo apontando aproximações das pautas
reivindicadas com os temas veiculados pelas canções apresentadas na tese.
426

Considerações finais:

Pretensão e água benta, cada um toma o que quer. Esse verso integra a canção “É
um quê que a gente tem”, afirmação dos “bambas” do samba, composta por Ataulfo Alves
e Joaquim Homem, e lançada em fonograma na gravação de Carmem Miranda, nos idos de
1941. O verso, contudo, é cabível para introduzir as considerações finais desta longa tese.
Afinal, concluindo essas quase 450 páginas, pode-se assumir que a tese foi além do seu
propagado recorte temporal de 1960 a 1988, ao conceder, em seu primeiro capítulo, muitas
páginas para abordar, ainda que brevemente, o cenário entre o início do século XX e 1959.
Esse alongamento - nesta conclusão é lícito admitir - foi consciente e justificado. O autor
destas páginas considera que há um marco de ruptura estabelecido entre 1888 e 1889, com
a abolição da escravidão e a proclamação da República no Brasil, que possibilitou surgir
um movimento negro contemporâneo, situado em um cenário no qual, ao menos em teoria,
prometia a qualquer indivíduo, branco ou negro, ser igualmente cidadão. Assim, pensar
possibilidades de leitura da história do Brasil republicano a partir das lutas antirracistas era
uma das motivações mais amplas deste autor. Pretensão e água benta, cada um toma o que
quer. E se alguma dessas possibilidades for considerada instigante, sinto-me realizado.

Para situar a escolha do tema e objeto, esta tese apresentou resultados de pesquisas
motivadas por inquietações surgidas no processo de mestrado, ao analisar a expressão
antirracista na produção musical de Wilson Simonal na década de 1960. A obra gravada
pelo artista revelava hibridações com os gêneros musicais hard bop, souljazz, funky, blues,
soul e funk, uma incorporação da Black Music. Constatação que inspirou o questionamento
quanto a outros artistas negros que dialogavam com a música negra estadunidense na
mesma década. A listagem inicial de artistas “pioneiros/as” em tais hibridações nos anos
1960, junto à abordagem de alguns nomes consagrados na sonoridade soul no Brasil dos
anos 1970, foi realizada para a oferta de uma disciplina optativa para o curso de graduação
em História da UFMG, oferecida no segundo semestre de 2015: “Black Music à Brasileira:
identidade negra na Música Popular Brasileira durante a Ditadura Militar.” Portanto, a
primeira produção do autor desta tese em aproximação com o objeto e tema deu-se pelos
estimulantes caminhos da docência, compartilhada com e enriquecida por estudantes.

As inquietações iniciais, convertidas em pesquisa de doutorado, resultaram em duas


questões gerais que orientaram essa pesquisa por um caminho distinto ao do localizado nas
leituras da bibliografia sobre a música Black do Brasil. A primeira questão geral refere aos
427

processos de hibridações e incorporações dos gêneros estadunidenses que formaram a


Black Music Brasileira e justificou o recorte inicial da tese. 1960 foi o ano da consagração
de Elza Soares e no qual foi lançado o álbum de estreia da artista, o primeiro LP
identificado por esta pesquisa como um primórdio para a Black Music Brasileira. Com esta
opção, o marco inicial da pesquisa antecipou em dez anos o recorte comumente apontado
pela bibliografia especializada, 1970, permitindo, assim, acompanhar o desenvolvimento
da produção apresentada como pioneira, de nomes como Jorge Ben e Wilson Simonal. O
alargamento do recorte até fins dos anos 1980 também permitiu observar interlocuções
musicais em um cenário mais abrangente do que o da bibliografia geral, assim como
identificar elementos do período de declínio da produção musical estudada.

A segunda questão geral que orientou a tese, contudo, refere ao objetivo de


localizar a circulação de ideias antirracistas veiculadas a partir da produção musical
estudada. A opção, ou compromisso, de compreender o antirracismo enquanto uma ideia
política encaminhou a pesquisa aos rumos da renovação da História Política e inspirou o
marco final da tese. O ano de 1988 não foi escolhido por um acontecimento interno à Black
Music Brasileira, mas por ser quando ocorreu a promulgação da Constituição Federal ainda
vigente, marco das lutas realizadas no processo da redemocratização brasileira, após uma
longa ditadura militar. Com esta opção, o marco final da pesquisa prorrogou por mais dez
anos o recorte em comparação com a historiografia consultada sobre a black music no
Brasil. Contudo, a prorrogação do recorte na tese permitiu comparar as ideias antirracistas
veiculadas nas canções estudadas com as reivindicações do Movimento Negro que eclodiu
em 1978 e com as demandas igualitárias fixadas no texto constitucional.

A segunda questão geral da pesquisa, de tal modo, inspirou a criação do conceito de


Linguagem Política Negra Antirracista para operar com as especificidades das formas de
expressão da luta antirracista quando realizada por pessoas negras. Todavia, assim como
ocorria com as sonoridades estudadas, também nas formas de compreensão e expressão do
antirracismo nas letras das canções analisadas, a pesquisa identificou interlocuções com as
comunidades negras dos EUA, justificando a formulação do conceito de Linguagem
Política do Orgulho Negro, central para o desenvolvimento desta tese.

A trajetória de pesquisa exposta nos parágrafos acima explica a escolha por colocar
o subtítulo: “A Linguagem Política do Orgulho Negro na Black Music Brasileira (1960-
1988)”. O conceito de Linguagem Política do Orgulho Negro na pesquisa compreende uma
428

forma de identificação da experiência de ser uma pessoa negra no Brasil que promove
diálogos com as experiências de pessoas negras estadunidenses. Tais diálogos, registrados
em canção a partir de 1967, com a gravação de “Tributo a Martin Luther King” por
Simonal, expressaram nas letras o movimento de interlocução transnacional identificado
nas sonoridades estudadas durante a pesquisa. Portanto, embora antes de 1967 canções já
veiculassem o antirracismo, a diferença identificada na pesquisa a partir de tal ano foi a
expressão da Linguagem Política do Orgulho Negro nas letras – ainda que, por todo o
recorte da tese, tenha predominado expressões da Linguagem Política Negra Antirracista.
De tal modo, a pesquisa identificou politização nas sonoridades e nas letras, ambas
passíveis de veicular as linguagens antirracistas.

Pensar a circulação de ideias políticas antirracistas a partir das linguagens


estimulou a pesquisa a atentar aos vocábulos mobilizados nas canções. O uso do
significante “negro”, por exemplo, era pouco comum nas canções estudadas antes de 1967.
Tornou-se mais frequente a partir de 1970, com a gravação de “Sou negro”, por Toni
Tornado, configurando um evocativo de afirmação e positivação da estética negra. A
afirmação da autoestima, portanto, também passou por uma escolha de vocabulário nas
canções analisadas nesta tese e que, no caso estudado, substituiu os designativos para
pessoa “de cor” ou “moreno/a”. Já o termo “racismo” não apareceu nas canções analisadas,
em detrimento a “preconceito”. O exemplo dessas duas constatações quanto ao vocabulário
salienta ganhos possibilitados pela abrangência do recorte temporal e de fontes.

Torna-se importante enfatizar que, tanto para a análise da produção da Black Music
Brasileira quanto, principalmente, para a análise das questões raciais e da luta antirracista,
a pesquisa apresentaria reflexões mais frágeis se não estivesse amparada em uma ampla
bibliografia de produção recente. Espera-se que quem leia as páginas dessa tese se atente à
data de publicação dos trabalhos citados, pois, confirmará que uma expressiva parcela das
obras teve a publicação posterior ao ingresso do autor no curso de doutorado (2017),
particularmente com publicações entre 2018 e 2021. A mobilização da produção recente -
ou mesmo de publicação contemporânea à escrita da tese - enriqueceu a pesquisa e as
análises e é necessário reconhecer que a ampliação de pesquisas e obras sobre racismo
deve ser compreendida entre os resultados das políticas públicas realizadas durante os
governos federais do Partido dos Trabalhadores no Brasil, com a ampliação do acesso ao
ensino universitário às parcelas marginalizadas e as ações de inclusão das comunidades
negras. E um efeito também da implementação da Lei 10.639, de janeiro de 2003, que
429

instituiu a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” em todos os


níveis de ensino – uma reivindicação antiga dos movimentos negros brasileiros.

Cabe salientar, porém, que apesar do expressivo número de artistas e discos


abordados nos vinte e oito anos do recorte desta tese, não houve a pretensão – ou a
ingenuidade – de abarcar a totalidade da produção da Black Music Brasileira realizada por
artistas negros no período. Alguns esquecimentos foram exclusões conscientes,
particularmente no recorte do segundo capítulo, durante o apogeu do gênero na indústria
fonográfica brasileira. Foi o caso de Di Melo, “o imorrível”, que lançou um álbum
homônimo em 1975, aparentemente de pouco impacto na época, mas redescoberto e
celebrado nos anos 1990 - e, principalmente, a partir de 2011, após ser citado em um
videoclipe do grupo estadunidense The Black Eyed Peas. 1193 Outros nomes, como Paulo
Diniz (autor e intérprete do sucesso “Quero voltar pra Bahia”), Miguel de Deus e Bebeto
exemplificam “esquecimentos conscientes” do autor desta tese - e justificados pelo menor
impacto dos artistas para os objetivos desta pesquisa. Por certo, eventuais leitoras e leitores
identificarão outras ausências, inconscientes ou motivados por desconhecimento.

Com a produção analisada, ou citada, no decorrer desta tese, buscou-se, portanto,


apresentar um cenário abrangente e razoavelmente bem amparado, capaz de explicitar
tanto as sonoridades identificadas como Black Music Brasileira, quanto a veiculação de
ideias políticas antirracistas nas canções. O cenário mapeado evidenciou pontos de
encontro entre muitos dos músicos e compositores, que teceram redes de sociabilidade e
circularam por vários discos de diferentes intérpretes. 1194 Entre os nomes mais recorrentes
de tais redes pode-se citar Dom Salvador e Oberdan Magalhães, que articularam um
conjunto de instrumentistas, predominantemente negros, que atuaram em trabalhos de Dom
Salvador & Abolição, Tim Maia, Toni Tornado, Luiz Melodia, Carlos Dafé, Banda Black
Rio, Sandra Sá, entre outros. Também o guitarrista Perinho Santana atuou fortemente em
tal rede, nos trabalhos de Luiz Melodia, o Refavela de Gilberto Gil, Zezé Motta, entre
outros. Aliás, é interessante destacar que Gilberto Gil foi inserido em tal rede como

1193
< https://oglobo.globo.com/cultura/cultuado-soulman-pernambucano-dos-anos-70-di-melo-redescoberto-
em-clipe-dos-black-eyed-peas-disco-novo-filme-2755946> Acesso 13/09/2021.
1194
Conforme Adriane Vidal Costa: “A princípio, como aponta Claudio Maiz (2009), as redes são por sua
natureza elásticas e porosas e podem formar, nesse sentido, um complexo ema ranhado, um mapa de conexões
que atravessa fronteiras, blocos, regiões e põe em contato sujeitos situados em posições distintas entre si e
permite um novo tipo de intercâmbio.” COSTA, Adriane. V. Darcy Ribeiro e o Centro de Estudios de
Participación Popular (CENTRO) em Lima: redes intelectuais e circulação de ideias. In: PALTI, Elias;
COSTA; Adriane Vidal. História Intelectual e circulação de ideias na América Latina nos séculos XIX e XX .
2021, p. 87.
430

compositor após o álbum Refavela, de 1977, sendo sugestivo que canções compostas para
esse disco tenham sido incluídas nos álbuns de estreia de Zezé Motta (“Babá Alapalá”), em
1978, e Sandra Sá (“É”), em 1980. Além disso, a gravação por Gil de “Ilê Ayê/Mundo
Negro” tornou-se um clássico da Black Music Brasileira, estimulando várias regravações.

Entre as contribuições da tese, a primeira questão geral permitiu traçar um


panorama mais abrangente da Black Music Brasileira, apresentando o surgimento, apogeu
e seu declínio comercial, e identificando um expressivo número de artistas associados ao
gênero. A pesquisa possibilitou estabelecer aproximações e distanciamentos com outros
gêneros musicais, como a Bossa Nova – que demarcou a primeira expressão musical
identificada como um primórdio da Black Music Brasileira nesta tese, a Bossa Negra. E
também com a Disco Music, que, embora apresente parentesco com a Black Music, atesta
diferenças desde a sua criação nos EUA, sobretudo quanto ao reconhecimento de
inexpressão do antirracismo em suas composições. O reggae, porém, foi um gênero
incorporado no Brasil como familiar à sonoridade soul, sendo, por isso, reconhecido e
inserido no caldeirão de elementos mobilizados por artistas da Black Music Brasileira.

A pesquisa identificou que no decorrer da primeira metade da década de 1960, a


Bossa Negra produziu hibridações entre vertentes do samba e o jazz estadunidense, a partir
dos estilos New Orleans, Hard Bop, Souljazz e Funky. Tais hibridações foram ambientadas
retomando a sonoridade do Samba de Gafieira que, por sua vez, foi identificado pela tese
enquanto a continuidade de outras hibridações entre o samba e o jazz ocorridas na década
de 1920, com os estilos Cidade Nova e New Orleans. No decorrer da segunda metade da
década de 1960, porém, houve a consolidação de uma Black Music Brasileira, a partir não
apenas da hibridação, mas também da adoção do spiritual e de gêneros da música jovem da
Black Music estadunidense: o Soul e o Funk. A partir de tais análises, a tese argumentou
que a sonoridade negra desenvolvida, e com destaque, na indústria fonográfica brasileira
no decorrer da década de 1970, já estava consolidada no final dos anos 1960. Contudo,
esse apogeu da produção conviveu com o aparente desaparecimento das sonoridades jazz
entre as produções estudadas. O final dos anos 1970 e o decorrer da década de 1980,
porém, representou a retração das sonoridades soul e funk, ainda que essas permanecessem
de forma mais diluída em alguns artistas. Por outro lado, emergiu a sonoridade do reggae.

A segunda questão geral da tese possibilitou, além da formulação dos conceitos de


Linguagem Política Negra Antirracista e Linguagem Política do Orgulho Negro, contribuir
431

na reflexão sobre o impacto das ideias políticas antirracistas, levantando a hipótese de sua
atuação no sentido de fixar um significado mais complexo para o termo “racismo”. A tese
sugeriu que, ao designar não apenas uma doutrina de hierarquia racial (tal como pensado
hegemonicamente até a década de 1970), mas também os sistemáticos preconceitos e
discriminações raciais, o vocábulo “racismo” permitiu ao Movimento Negro expressar
mais enfaticamente a reivindicação jurídica por punição aos atos excludentes e também as
demandas por ações políticas de inclusão.

A ressignificação do vocábulo, por enfatizar o “racismo” como unidirecional – uma


agressão branca sofrida pelos negros – teria contribuído para sustentar a denúncia do ideal
de “democracia racial” enquanto um mito que busca mascarar as efetivas hierarquias e
opressões raciais existentes no Brasil. Os limites da pesquisa não permitiram desenvolver a
análise e construir uma argumentação sólida para essa mudança - que exigiria outra tese -,
mas os indícios fortalecem a hipótese, justificando a inclusão no texto final. No entanto,
um possível efeito colateral dessa conquista importante dos movimentos negros parece ter
sido uma perda de densidade do vocábulo “racismo” para expressar o preconceito e
discriminação dirigida a outros grupos humanos racializados que vivem no Brasil, como
indígenas, judeus e os povos “amarelos”: os orientais ou seus descendentes.1195

A luta pelo significado do vocábulo “racismo”, contudo, representou uma vitória


expressiva dos movimentos negros, posto que enfraqueceu o uso da legislação antirracista
contra os movimentos negros – conforme apresentado no recorte desta tese pela expressão
“racismo negro”. Embora a ideia de “racismo negro” ainda ecoe em 2022, atualizada por
setores da sociedade como “racismo reverso”, ao menos o termo “reverso” evidencia que
esteja em posição oposta, contrária, ao que seria o “rumo correto” ou “esperado”. Nas
quase três décadas que integram o recorte desta tese, ao ser compreendido como doutrina
de hierarquia ou afirmação de uma raça, o vocábulo “racismo” foi correntemente utilizado
pelas forças do Estado para reprimir a denúncia de preconceito e exclusão das pessoas
negras. Tal parcialidade ocorria, pois, as pessoas brancas, detentoras do poder político e
econômico no país, não se liam como sujeitos racializados, mas universais, de modo que a
afirmação de valores, figuras ou da estética branca, era considerada como “o normal”.

1195
O autor redigiu esta tese durante a pandemia do Coronavírus, descoberto em Wuhan, cidade da República
Popular da China e constatou em diversas ocasiões a dificuldade de veículos midiáticos em denominar os
atos e discursos de preconceito e discriminação sofridos pelo povo chinês, ou de ascendência chinesa. O
vocábulo mais comumente utilizado para expressar tais atos tem sido “xenofobia”. Assim como, no caso dos
judeus, fixou-se o termo antissemitismo.
432

Enquanto isso, a afirmação de valores, figuras e da estética negra foi compreendida como
contravenção, instaurando conflitos e a desarmonia no corpo social brasileiro. Uma
representação da realidade racial no país, referendada pelo ideário da “democracia racial”,
que negava a existência de segregação, discriminação e preconceito racial no Brasil.

O ideário de harmonia sintetizado pelo vocábulo “democracia racial” era arraigado


com tamanha força nas representações brasileiras, que no recorte temporal desta tese, era
comumente encontrado nos discursos à direita e à esquerda do espectro político. De tal
modo, o programa da “revolução brasileira”, igualitária e de viés socializante, muitas vezes
ignorava as necessidades específicas de combate à desigualdade racial, sintetizando a
igualdade ao fim das classes sociais dominantes, detentoras dos meios de produção. 1196 A
revolução traria, por si, a igualdade esperada. A atuação das militâncias negras antirracistas
- assim como de feministas e movimentos gays - contribuiu para apresentar os limites de
uma revolução que desconsiderasse os mecanismos específicos que projetavam a exclusão
de certos grupos. Se, conforme apontou o historiador Marcos Napolitano, nos “anos de
chumbo” da ditadura militar brasileira, setores das esquerdas e liberais consolidaram o
tema da “resistência democrática” na oposição ao regime;1197 a presente tese sugere que, no
período da redemocratização, entre a reabertura política e a transição democrática, os
Novos Movimentos Sociais atuaram para incorporar ao conteúdo da “democracia” novas
temáticas e, no caso do Movimento Negro, a luta negra antirracista.

Assim - para prosseguir no diálogo com a esquerda política então convencional -, a


pesquisa da tese sugere que os novos movimentos sociais permitiram um aprofundamento
do discurso igualitário ao qualificarem a igualdade, afirmando as especificidades das
hierarquias de raça, sexo e gênero, além das de classe. Essa qualificação, no contexto de
fim da ditadura e sedimentação da Nova República a partir da Constituinte, propiciou
incorporar significados mais profundos à democracia política e à concepção de cidadania
naquele momento da história brasileira. E, no tocante à luta negra antirracista, as
reivindicações dos movimentos sociais podiam evocar letras de canções da Black Music
Brasileira, difundidas nas rádios e aparelhos toca-discos desde o início da década de 1960.
A pesquisa não identificou uma relação direta, ou conexão, entre os movimentos negros
organizados e as canções (embora alguns artistas realizassem tal conexão, como Gilberto
Gil e, particularmente, Zezé Motta). Mas é possível identificar ideias compartilhadas.
1196
CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1988. 2011, p. 59.
1197
NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil: A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) -
ensaio histórico. 2017, p. 56.
433

Uma pretensão do último capítulo da tese, portanto, foi explicitar algumas dessas
ideias antirracistas compartilhadas, reforçando as conexões de temáticas expressas através
das Linguagens Políticas Antirracistas nos movimentos sociais, na representação política
da Constituinte, na literatura antirracista e nas canções da Black Music Brasileira.

Por fim, é difícil escrever sobre os temas desta tese sem refletir quanto ao cenário
político brasileiro atual. A ascensão de discursos de extrema direita no Brasil possibilitou a
eleição de Jair Bolsonaro ao cargo de presidente da República, em 2018, de modo que a
maior parte desta pesquisa e a redação do texto da tese ocorreram enquanto o historiador
acompanhava – com preocupação e lamento – as ações desse governo. O cenário político
brasileiro a partir de então tem convivido com inúmeros ataques e ameaças aos valores de
“democracia” consolidados durante a década de 1980 e os fixados na Constituição de 1988.

No tocante à luta antirracista de movimentos negros, é emblemática quanto à


corrosão interna da concepção de “democracia” brasileira a atuação do governo federal em
relação à Fundação Cultural Palmares. A criação da Fundação ocorreu em 1988, no
governo de José Sarney, como um órgão ligado ao Ministério da Cultura. O projeto para a
Fundação teve como relatora a deputada federal Benedita da Silva. Embora o surgimento
da Fundação tenha sido criticado por setores do Movimento Negro, por considerar que o
governo “tinha o objetivo de dividir, manipular a opinião pública e cooptar lideranças,
personalidades e setores adesistas do Movimento Negro”, 1198 a sua atuação foi importante
nos anos seguintes no sentido da promoção de avanços na pauta racial no país.

No entanto, com a posse de Jair Bolsonaro, a Fundação Palmares passou a ser


dirigida por Sergio Camargo, um homem negro contrário às pautas que sustentaram a
criação e atuação do órgão. Nesse sentido, em 02 de dezembro de 2020, a Fundação
Palmares publicou um informe de retirada oficial de vinte e sete nomes da Lista de
Personalidades Negras, assim como seus textos biográficos. A lista de nomes excluídos, à
primeira vista, já surpreende por conter o de Benedita da Silva, a deputada relatora para o
surgimento da organização oficial. Além dela, nomes emblemáticos para as organizações
dos movimentos negros brasileiros contemporâneos foram removidos, como o Vovô do Ilê
e Sueli Carneiro. Também outros nomes de destaque no cenário político e/ou antirracista
brasileiro foram removidos, como a candidata presidencial Marina Silva, a escritora

1198
CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 77.
434

Conceição Evaristo, e músicas/os como Leci Brandão, Alaíde Costa, Martinho da Vila e
Milton Nascimento. Entre os artistas estudados no decorrer desta tese, foram excluídas/os
Elza Soares, Gilberto Gil, Sandra de Sá e Zezé Motta. 1199 Uma iniciativa que evidencia,
portanto, que no cenário brasileiro do governo Bolsonaro, deve-se desconfiar dos nomes
que a Fundação Cultural Palmares optar por homenagear, contraditoriamente.

A despeito de todos os ataques, a presente tese é concluída com a crença que o


esforço por lembrar e valorizar as atuações dos movimentos sociais, como o movimento
negro e os negros em movimento, é importante para a defesa da democracia - entendida
como o esforço contra processos sistemáticos de exclusão. Pretensão e água benta, cada
um toma o que quer. Então, a grande dose de pretensão dirigida pelo autor desta tese se
resume à expectativa que a singela contribuição destas páginas, portanto, auxilie, a quem
porventura leia a tese, na identificação do rico histórico de lutas contra o racismo no Brasil.

1199
< http://www.palmares.gov.br/?p=57158> Acesso 30/09/2021.
435

Documentos mobilizados por capítulo.

Documentos mobilizados no primeiro capítulo:

Documentação fonográfica:

Box Carmem Miranda. RCA/BMG. 1998.

Box Noel Pela Primeira Vez. FUNARTE. 2001.

Box Mário Reis, um cantor moderno. BMG. 2004.

Mário Reis e Francisco Alves – Ases do Samba. CD. Revivendo, 2002.

Box Caymmi amor e o mar. EMI. 2000.

Celly Campello. Estúpido cúpido. Álbum. Odeon. 1959.

João Gilberto. Chega de saudade. Álbum. Odeon. 1959.

Louis Armstrong and his All Stars. Mack the knife/Back o’town blues. Single. 45rpm. Columbia/Phillips.
1956.

Elza Soares. Se acaso você chegasse/Mack the knife. Compacto. Odeon. 1959.

Elza Soares. Elza Soares. Odeon. 1960. CD. Dubas/EMI. 2003.

Elza Soares. Elza Soares. Álbum. Odeon. 1960.

Elza Soares. A Bossa Negra. Álbum. Odeon. 1960. CD. Dubas/EMI. 2003.

Elza Soares. O samba é Elza Soares. Álbum. Odeon. 1961. CD. Dubas/EMI. 2003.

Elza Soares. Maria, Maria, Maria/ Praga/ Galã enganador/ Escurinho . Compacto duplo. Odeon. 1962.

Elza Soares. Sambossa. Álbum. Odeon. 1963. CD. Dubas/EMI. 2003.

Elza Soares. Eu sou a outra/amor impossível. Compacto. Odeon. 1963.

Jorge Ben. Mas que nada/Por causa de você, menina. Compacto. Philips. 1963.

Jorge Ben. Samba Esquema Novo. Álbum. Philips. 1963. CD. Universal Music. 2009.

Wilson Simonal. Tem algo mais. Álbum. Odeon. 1963. CD. EMI. 2004.

Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. Álbum. Odeon. 1964. CD. EMI. 2004.

Jorge Ben. Sacudin Ben Samba. Álbum. Odeon. 1964. CD. Universal Music. 2009.

Jorge Ben. Ben é Samba bom. Álbum. Philips. 1964. CD. Universal Music. 2009.

Elza Soares. Na roda do samba. Álbum. Odeon. 1964. CD. Dubas/EMI. 2003.

Box. Elza Soares. Negra. 2003. CD (12 vol.) Reedição. EMI 2012.

Elza Soares. Um show de Elza. Álbum. Odeon. 1965. CD. Dubas/EMI. 2003.

Elza Soares. O neguinho e a senhorita/O que passou, passou. Compacto. Odeon. 1965.

Jorge Ben. Big Ben. Álbum. Rosenblit. 1965. Cd. Universal. 2009.
436

Wilson Simonal. 1965 (Wilson Simonal/S’imbora. Odeon). Box Wilson Simonal na Odeon (1961-1971).
EMI. 2004. CD 2.

Elza Soares. Com a bola branca. Álbum. Odeon. 1966. CD. Dubas/EMI. 2003.

Wilson Simonal. Tá por fora/Mamãe passou açúcar em mim. Compacto. Odeon. 1966.

Wilson Simonal. Vou deixar cair… Álbum. Odeon. 1966. CD. EMI. 2004.

Elza Soares. O máximo em samba. Álbum. Odeon. 1967. CD. Dubas/EMI. 2003.

Elza Soares; Miltinho. Elza, Miltinho e Samba. Álbum. Odeon. 1967. CD. Dubas/EMI. 2003.

Jorge Ben. O Bidú - silêncio no Brooklin. Álbum. Beverly/Rozenblit. 1967. CD. Universal Music. 2009.

Wilson Simonal. A Banda/ Disparada/ Quem samba fica/ Máscara negra. Compacto duplo. Odeon. 1966.

Wilson Simonal. Tributo a Martin Luther King/Deixa quem quiser falar/Ela é demais/Está chegando a hora .
Compacto duplo. Odeon. 1967.

Wilson Simonal. Show em Simonal. Álbum duplo. Odeon. 1967. CD. EMI. 2004.

Elza Soares. Elza Soares. Baterista: Wilson das Neves. Álbum. 1968. Odeon. CD. Dubas/EMI. 2003.

Elza Soares; Miltinho. Elza, Miltinho e Samba. Vol. 2. Álbum. Odeon. 1968. CD. Dubas/EMI. 2003.

Wilson Simonal. Alegria, Alegria. Álbum. Odeon. 1967. CD. EMI. 2004.

Wilson Simonal. Alegria, Alegria. Vol. 2. ou Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga .
Álbum. Odeon. 1968. CD. EMI. 2004.

Elza Soares. Elza, carnaval & samba. Álbum. Odeon. 1969. CD. Dubas/Emi. 2003.

Elza Soares; Miltinho. Elza, Miltinho e Samba. Vol. 3. Álbum. Odeon. 1969. CD. Dubas/EMI. 2003.

Jorge Ben. Jorge Ben. Álbum. Philips. 1969. CD. Universal, 2009.

Wilson Simonal. Alegria, Alegria vol.3 ou Cada um tem o disco que merece. Álbum. Odeon. 1969. CD. EMI.
2004.

Wilson Simonal. Alegria, Alegria vol. 4 ou Homenagem à graça, à beleza, ao charme e ao veneno da mulher
brasileira. Álbum. Odeon. 1969. CD. EMI. 2004.

Rio 65 Trio. Rio 65 Trio. Álbum. Philips. 1965.

Rio 65 Trio. A Hora e a vez da M.P.M. Álbum. Philips. 1966.

Salvador Trio. Salvador Trio. Álbum. Mocambo. 1965.

Salvador Trio. Tristeza. Álbum. Mocambo. 1966.

Dom Salvador. Dom Salvador. Álbum. CBS. 1969.

Raulzinho e o Impacto 8. International Hot. Álbum. Equipe. 1969.

Raul de Souza. À vontade mesmo. Álbum. RCA. 1965.

Eva. Eva 2001. Álbum. Odeon. 1969.

Livretos:

MÁXIMO, João. Discoteca Brasileira do Século XX - 1900-1949. MediaFashion. 2007.


437

CALADO, Carlos. Pixinguinha. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v.4] 2010.

MÁXIMO, João. Sinhô. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 25], 2010.

MÁXIMO, João. Noel Rosa (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v. 1). 2010.

SUKMAN, Hugo. Ataulfo Alves. (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 5). 2010.

CALADO, Carlos. Nat King Cole. (Coleção Folha Clássicos do Jazz, vol. 1). 2007.

CASTRO, Ruy. Dick Farney. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 2) 2008.

CASTRO, Ruy. Lucio Alves. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 9) 2008.

CASTRO, Ruy. Johnny Alf. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 8) 2008.

GARCIA, Lauro Lisboa. Canção do Amor Demais. (Coleção Folha Tributo a Tom Jobim, v. 17) 2013.

CALADO, Carlos. Chet Baker. (Coleção Folha Clássicos do Jazz; v. 7) 2007.

FAOUR, Rodrigo. Elza Soares. (Coleção Folha Grandes Vozes, v. 9) 2012.

CASTRO, Ruy. Sylvia Telles. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 15) 2008.

CASTRO, Ruy. Nara Leão. (Coleção Folha 50 anos de Bossa Nova; v. 6) 2008.

VIANNA, Luiz Fernando. Geraldo Pereira. (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 23).
2010.

CALADO, Carlos. Horace Silver (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 10). 2007.

CALADO, Carlos. Art Blakey (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 5). 2007.

CALADO, Carlos. Nat King Cole (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 1). 2007.

CASTRO, Ruy. Wilson Simonal (Coleção Folha: 50 anos de Bossa Nova, v. 17). 2008.

RIBEIRO, Helton. Count Basie (Coleção Folha. Lendas do Jazz, v. 8) 2017.

CALADO, Carlos. James Brown. [Coleção Folha Soul & Blues, v, 3] 2015.

CALADO, Carlos. Otis Redding [Coleção Folha Soul & Blues, v. 10] 2015.

SANIN, Camilo. Louis Armstrong. Coleção BD Jazz. Uma banda desenhada. Lisboa. Éditions Nocturne.
2003.

Documentação em Acervos (acesso virtual):

17 de setembro de 1960. Agradecendo o título de cidadão do recife, conferido pela câmara de vereadores da
cidade. Discursos proferidos no quinto ano do mandato presidencial, 1960, p. 336. Disponível em:

<https://biblioteca2.presidencia.gov.br/repositorioinstitucional/>

Mensagem ao Congresso Nacional remetida pelo Presidente da República na Abertura da Sessão Legislativa
de 1961. Discursos selecionados do presidente Jânio Quadros, p. 19. Disponível em:
438

<http://www.portalentretextos.com.br/download/livros-
online/discursos_selecionados_do_presidente_janio_quadros.pdf>

Informe 21/06/1961. Ministério das Relações Exteriores GP/MRE/172. Discursos selecionados do presidente
Jânio Quadros. <http://www.portalentretextos.com.br/download/livros-
online/discursos_selecionados_do_presidente_janio_quadros.pdf>

Discurso do Presidente Jânio Quadros veiculado pela “Voz do Brasil” Palácio da Alvorada, 31 de janeiro de
1961. Discursos selecionados do presidente Jânio Quadros.
<http://www.portalentretextos.com.br/download/livros-
online/discursos_selecionados_do_presidente_janio_quadros.pdf>

Discurso na sessão de instalação da LI Conferência Interparlamentar. Brasília, 24 de outubro de 1962.


Discursos selecionados do presidente João Goulart. Disponível em:

<http://funag.gov.br/biblioteca/download/641 -Discursos_joao_goulart.pdf>

Fundo: IBOPE. Série PD. Pesquisa venda de discos. Notação: PD 001 a 006. Arquivo Edgard Le uenroth.
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. UNICAMP.

Desenvolvimento para integração social e econômica do povo discurso proferido no palácio do congresso,
em Brasília, a 26 de maio de 1966, durante a convenção da aliança renovadora nacional (arena ) que
homologou seu nome como candidato ã presidência da república, para suceder ao marechal Humberto de
Alencar Castello Branco. In: Discursos Costa e Silva. Disponível em:
<http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/costa-e-silva/costa-e-silva-
pronunciamentos-do-presidente-discursos-mensagens-e-entrevistas-1966/view>

Páginas da WEB:

<https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/24/elza-soares-comemora -90-anos-com-negao-
negra-com-flavio-renegado-ouca.htm>

<https://web.archive.org/web/20160629121012/http://www.jornaldepiracicaba.co m.b r/cultura/2016/03/a_mu l


her_do_fim_do_mundo>

< http://g1.globo.com/musica/noticia/2016/06/veja-os-vencedores-do-27-premio-da-musica-brasileira.ht ml>

<https://gshow.globo.com/Musica/noticia/paula-fernandes-leva-grammy-latino-de-melhor-albu m-de-musica-
sertaneja.ghtml>

< https://www.nsctotal.com.br/noticias/elza-soares-de-vitima-de-violencia-domestica-a-deusa-na-sapucai>

< https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/aos-80-anos-elza-soares-anuncia-biografia-preparem-se/>

<https://palcoteatrocinema.com.br/2019/01/25/elza-no-imperator/>

<https://dicionariompb.com.br/mario-reis/dados-artisticos>

<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1940-1949/constituicao-1946-18-ju lho-1946-365199-
publicacaooriginal-1-pl.html>

< https://dicionariompb.com.br/dick-farney/discografia>
439

< https://dicionariompb.com.br/lucio-alves/discografia>

< https://dicionariompb.com.br/johnny-alf/discografia>

<http://dicionariompb.com.br/ronaldo-boscoli/dados-artisticos>

<https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/os-melancolicos-dias-finais-do-beco-das-garrafas-joia-da-
noite-carioca-onde-elis-estreou-nos-palcos.ghtml>

< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.ht m>

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm#art 12>

<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1940-1949/constituicao-1946-18-ju lho-1946-365199-
publicacaooriginal-1-pl.html>

<http://dicionariompb.com.br/noel-rosa-de-oliveira/dados-artisticos>

< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>

< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.ht m>

<http://www.musitec.com.br/revistas/?c=2472>

Documentos mobilizados no segundo capítulo:

Documentação fonográfica:

Wilson Simoninha. Melhor. Álbum. Som Livre. 2008.

Roberto Carlos. O inimitável. Álbum. CBS. 1968. CD. Columbia/Sony Music. 2015.

Gal Costa. Gal Costa. Álbum. 1969. Philips. CD. Universal Music. 2010.

Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1970. CD. Abril Coleções. 2011.

Dom Salvador. Abolição 1860-1980/Juazeiro. Compacto. CBS. 1970.

Toni Tornado. Nada de novo/Dez leis/Sou negro/Meu mundo caiu. Compacto duplo. Odeon. 1970.

Elza Soares. Sambas e mais sambas. Álbum. Odeon. 1970.

Elza Soares. Box Negra. EMI. 2003

Box Wilson Simonal na Odeon (1961-1971). EMI. 2004.

Wilson Simonal. Brasil, eu fico/Canção n°21/Resposta/Que cada um cumpra com o seu dever. Compacto
duplo. Odeon. 1970.

Juca Chaves. Paris tropical/ E no fundo era igual às outras. Compacto. RGE. 1970.

Juca Chaves. Take me back to Piauí/ Vou viver num arco íris. Compacto. RGE/Sdruws. 1970.

Trio Ternura. Trio Ternura. Álbum. CBS. 1971. CD. Sony Music. 2010(?).

Tim Maia. What you want to bed/These are the songs. Compacto. CBS. 1968.

Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1971. Reedição CD. Abril Coleções. 2011.

Cassiano. Imagem e Som. Álbum. RCA. 1971.


440

Dom Salvador & Abolição.Som, sangue e raça. Álbum. CBS. 1971.

Toni Tornado. Toni Tornado. Álbum. Odeon. 1971.

Elis Regina. Ela. Álbum. Philips. 1971.

Wilson Simonal. Simona. Álbum. Odeon. 1970.

Wilson Simonal. Jóia, jóia. Álbum. Odeon. 1971.

Eva. Evinha. Álbum. Odeon. 1970.

Evinha. Cartão Postal. Álbum. Odeon. 1971.

Jorge Ben. Força Bruta. Álbum. Philips. 1970.

Jorge Ben. Negro é lindo. Álbum. Philips. 1971.

Wilson Simonal. Se dependesse de mim. Álbum. Philips. 1972.

Wilson Simonal. Noves fora/Paz e arroz. Compacto. Philips. 1972.

Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1972. CD. Universal Music. 2010.

Jorge Ben. Ben. Álbum. Philips. 1972.

Elza Soares. Elza pede passagem. Álbum. Odeon. 1972.

Elza Soares e Roberto Ribeiro. Sangue, suor e raça. Álbum. Odeon. 1972.

Toni Tornado. Toni Tornado. Álbum. Odeon. 1972.

Jorge Ben. 10 anos depois. Álbum. Philips. 1973.

Toni Tornado. Odorico/Mole, mole, fácil, fácil. Compacto. Odeon. 1973.

Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1973. CD. Abril Coleções. 2011.

Trio Ternura. O mensageiro/Razão de ser. Compacto. Polydor. 1972.

Trio Ternura. Sempre primavera/Canção sem rima. Compacto. Polydor. 1972.

Trio Ternura. Oxalá/A hora grande. Compacto. Polydor. 1973.

Trio Ternura. A gira/Last tango in Paris. Compacto. Polydor. 1973.

Hyldon. Na rua, na chuva, na fazenda/Meu patuá. Compacto. Polydor. 1973.

Luiz Melodia. Pérola Negra. Álbum. Philips. 1973. CD. Universal Music. 2013.

Box. Três Tons de Luiz Melodia. Universal Music. 2013.

Cassiano. Apresentamos nosso Cassiano. Álbum. Odeon. 1973.

Evinha. Evinha. Álbum. Odeon. 1973.

Wilson Simonal. Olhaí balandro.é rufo no birrolho grinza!Álbum. Philips. 1973.

Elza Soares. Elza Soares. Álbum. Odeon. 1973.

Hyldon. As dores do mundo/Sábado e domingo. Compacto. Polydor. 1974.

Jorge Ben. A tábua de esmeralda. Álbum. Philips. 1974.

Evinha. Eva. Álbum. Odeon. 1974.


441

Wilson Simonal. Wilson Simonal. Álbum. Philips. 1974.

Elza Soares. Elza Soares. Álbum. Tapecar. 1974.

Trio Ternura. Filhos de Zambi/Meu caso com você. Compacto. RCA/Victor. 1974.

Edu Lobo. A música de Edu Lobo por Edu Lobo. Álbum. Elenco. 1965.

Arena conta Zumbi. Texto e trilha sonora da peça. Álbum. Som Maior. 1965.

Martinho da Vila. Canta, canta, minha gente. Álbum. RCA/Victor. 1974.

Quinteto Ternura. Quinteto Ternura. Álbum. RCA/Victor. 1974.

Toni Tornado. Cabeça oca/I say goodbye. Compacto. Odeon. 1974.

Angela Maria.Angela.Álbum. Som. 1972.

Gal Costa. Fatal. Gal a todo vapor. Álbum. Philips. 1971.

Maria Bethânia. Drama-Anjo Exterminado. Álbum. Philips. 1972.

Máximo de sucessos. Vol. 6. LP. Fontana. 1973.

Luiz Melodia. Ébano/Maria particularmente. Compacto. Som Livre. 1975.

Pecado Capital. Trilha sonora original. LP. Som Livre. 1975.

Hyldon. As dores do mundo/Na sombra de uma árvore/Na rua, na chuva, na fazenda/Sábado e domingo .
Compacto duplo. Polydor. 1975.

Hyldon. Na rua, na chuva, na fazenda. Álbum. Polydor. 1975.

Tim Maia. Tim Maia Racional. Álbum. Seroma. 1975. CD. Abril Coleções. 2011.

Jorge Ben. Solta o pavão. Álbum. Philips. 1975.

Elza Soares. Nos braços do samba. Álbum. Tapecar. 1975.

Wilson Simonal. Dimensão 75. Álbum. Philips. 1974.

Wilson Simonal. Ninguém proíbe o amor. RCA. 1975.

Tim Maia. Tim Maia Racional. vol. 2. Álbum. Seroma. 1975. CD. Abril Coleções 2011.

Tim Maia. Tim Maia em inglês. Álbum. Seroma. 1976 [polêmica com 1978]. Abril Coleções 2011.

Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polygram. 1976.

Bob Marley & The Wailers. Zimbabwe. Single. Island Records. 1979.

Jorge Ben. África Brasil. Philips. Álbum. 1976.

Luiz Melodia. Maravilhas contemporâneas. Álbum. Som Livre. 1976. CD. Som Livre. 2017.

Hyldon. Deus, a natureza e a música. Álbum. Polydor. 1976.

Cassiano. Cuban Soul – 18 Kilates. Álbum. Polydor. 1976.

Simonal. Navio Negreiro/O amor está no ar/Escola de luto/Esses tempos de agora . Cpcto duplo. RCA. 1976.

Wilson Simonal. A vida é só para cantar/Trinta dinheiros. Compacto. RCA. 1976.

Trio Ternura. De amor também se morre/Eta eta. Compacto. Tapecar. 1976.


442

Toni Tornado. Se Jesus fosse um homem de cor (Deus Negro)/Osso duro de roer/Fica comigo/Vou apagar
você. Compacto duplo. Continental. 1976.

Emílio Santiago. Comigo é assim. Álbum. Philips. 1977.

Box. Três Tons de Emílio Santiago. Universal Music. 2014.


Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polygram. 1977.
União Black. União Black. Álbum. Polygram. 1977. CD. Universal Music. 2001.
Gerson King Combo. Gerson King Combo. Álbum. Polygram. 1977. CD. Universal Music. 2001.
Emilio Santiago. Emilio. Álbum. Philips. 1978.

Livretos:
GANDRA, José Ruy. Tim Maia 1970. (Coleção Tim Maia, v. 1). Abril Coleções. 2011.
FERREIRA, Mauro. Diana Ross & The Supremes. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 6]. 2015.
CALADO, Carlos. Stevie Wonder. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 1]. 2015.

CALADO, Carlos. Marvin Gaye. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 2]. 2015.

GARCIA, Lauro Lisboa. Jackson 5. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 5]. 2015.

FERREIRA, Mauro. Gladys Knight & The Pips. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 11]. 2015.

FERREIRA, Mauro. Smokey Robinson. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 15]. 2015.

CALADO, Carlos. Oti sRedding. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 10]. 2015.

SOUZA, Tárik. Em pleno verão (1970). [Coleção Folha O melhor de Elis Regina; v. 13] 2014.

GANDRA, José Ruy. Tim Maia. 1971. (Coleção Tim Maia; v. 2) 2011.

FERREIRA, Mauro. Barry White. [Coleção Folha. Soul & Blues; v. 7] 2015.

GANDRA, José Ruy. Tim Maia Racional, vol. 1 (1975). (Coleção Tim Maia; v. 5) Abril Coleções. 2011.

Documentação em Acervos (acesso virtual):

- Arquivo EdgarLeurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos.


Notação: PD 007 a PD 037 (exceto PD 015 e PD 017, que não estavam digitalizadas).
- Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 04/12/1970. Caderno anexo. (Hemeroteca Digital).
- Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 17/07/1976. Caderno B. (Hemeroteca Digital)

Páginas da WEB:

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2821686>

<https://www.discogs.com/pt_BR/label/1062398-Cole%C3%A7%C3%A 3o-Milton-Nascimento>

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<https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/04/mundo-em-1968-ativista-negro-martin-luther-king-e-
assassinado-nos-eua.shtml>

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brasil-dancar-ao-som-do-soul.ghtml>

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1972-lacrado-_JM>

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vinil/?fbclid=IwAR1HiaRKavb3rRzfaTNA2QAWfS4xOKxNiOe5aql0hXVBFiM V6Iljq1jHb1A#1>

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anos-a-libertacao-de-um-pais>

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ou%C3%A7a/a1977/>

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1977-_JM>
444

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esta-internado-em-estado-grave.html>

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gesto-punido-tambem-tem-de-ser/>

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2018.html>

<https://armazemdovinil.com/produto/disco-de-vinil-tim-maia-tim-maia-1973/>

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Documentos mobilizados no terceiro capítulo:


Documentação Fonográfica:
Caetano Veloso/Gilberto Gil. Dois amigos, um século de música. Álbum. Warner/WEA. 2015.
Gerson Conrad e Zezé Motta. Gerson Conrad & Zezé Motta. Álbum. Som Livre. 1975. Relançamento em
CD. Som Livre. 2006.
Zezé Motta. Pecado original/Dores de amores. Compacto. Warner/WEA. 1978.
Emílio Santiago. O canto crescente de Emílio Santiago. LP. Philips. 1978.
Zezé Motta. Rita baiana/Trocando em miúdos/Magrelinha/Baba Alapalá . Compacto duplo. Warner/WEA.
1978.
As Frenéticas. Caia na gandaia. Álbum. Warner/WEA. 1977.
Zezé Motta. Zezé Motta. Álbum. Warner. 1978.
Zezé Motta. Negritude. Álbum. Warner/Atlantic. 1979.
Ladu Zu. Fêmea brasileira. Álbum. Philips. 1979.
Gilberto Gil. Realce. Álbum. Warner. 1979.
Gilberto Gil. Realce. Warner. 1979. (Coleção Gilberto Gil. 70 Anos. Vol. 1). Innovant. 2011.
Gilberto Gil. Não chore mais/Macapá. Compacto. Warner. 1979.
Jorge Ben. Salve simpatia. Álbum. Som Livre. 1979.
Boca Livre. Boca Livre. Álbum. Independente. 1979. Reedição em CD. Warner. 1998.
Itamar Assumpção. Beleléu Leléu Eu. Álbum. Selo Lira Paulista. 1980.
Zezé Motta. Dengo. Álbum. Atlantic/WEA. 1979.
Tim Maia. Reencontro. Álbum. Emi-Odeon. 1979.
Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1980.
Elza Soares. Elza negra, negra Elza. Álbum. CBS. 1980.
445

Luiz Melodia. Nós. Álbum. Warner 1980. CD. Discobertas, 2012.


Mão Branca (G. King Combo). Melô do Mão Branca. Compacto. Sinter. 1980.
Banda Black Rio. Saci Pererê. RCA/Victor. 1980.
Sandra Sá. Demônio Colorido. Álbum. RGE. 1980.
Djavan. Seduzir. Álbum. EMI. 1981.
Gilberto Gil. Luar (a gente precisa ver o luar). Álbum. Warner. 1981.
Jorge Ben. Bem-vinda Amizade. Álbum. Som Livre. 1981.
Emilio Santiago. Amor de Lua. Álbum. Philips. 1981.
Hyldon. Sabor de Amor. Álbum. Continental. 1981.
Itamar Assumpção. Às próprias custas. S. A. Álbum. Selo Lira Paulistana. 1981.
Itamar Assumpção & As Orquídeas do Brasil. Bicho de sete cabeças. Vol.1. (1993). CD. SESC. 2010.
Sandra Sá. Sandra Sá. Álbum. RGE. 1982.
Djavan. Luz. Álbum. CBS. 1982.
Wilson Simonal. Alegria tropical. Álbum. WM. 1982.
Wilson Simonal. Simonal. Álbum. WM. 1983.
Tim Maia. Nuvens. Álbum. Seroma. 1982.
Tim Maia. O descobridor dos sete mares. Álbum. Lança. 1983.
Gilberto Gil. Um Banda Um. Álbum. Warner. 1982.
Luiz Melodia. Felino. Álbum. Ariola. 1983.
Carlos Dafé. De repente. Álbum. RCA. 1983.
Sandra Sá. Vale tudo. Álbum. RGE. 1983.
Emílio Santiago. Mais que um momento. Álbum. Philips. 1983.
Gilberto Gil. Extra. Álbum. Warner. 1983.
Sandra Sá. Sandra Sá. Álbum. Som Livre. 1984.
Jorge Ben. Dádiva. Álbum. Som Livre. 1983.
Jorge Ben. Sonsual. Álbum. Som Livre. 1984.
Zezé Motta. Frágil Força. Álbum. Pointer. 1984.
Gilberto Gil. Raça Humana. Álbum. Warner. 1984.
Carlos Dafé. Um estranho no ninho/Deixa pra lá. Compacto. RGE. 1984.
Carlos Dafé. O trem da gente. Álbum. Acorde. 1985.
Caetano Veloso. Velô. Álbum. Philips. 1984.
Elza Soares. Somos todos iguais. Álbum. Som Livre. 1985.
Gilberto Gil. Dia Dorim Noite Neon. Álbum. Warner. 1985.
Djavan. Meu lado. Álbum. Sony Music. 1986.
Djavan. Soweto (Djavan). Não é azul mas é amor. Álbum. Sony Music. 1987.
Luiz Melodia. Claro. Álbum. Continental. 1987.
Sandra Sá. Sandra Sá. Álbum. RCA. 1986.
Jorge Ben. Ben Brasil. Álbum. Som Livre. 1986.
Itamar Assumpção. Pretobrás II. Maldito vírgula. SESC. 2010. Faixa 14. Caixa Preta.
Itamar Assumpção. Sampa Midnight. Álbum. Mifune Produções Artísticas. 1986.
446

Elza Soares. Voltei. Álbum. RGE. 1988.


Sandra de Sá. Sandra de Sá. Álbum. RCA. 1988.
Central Africana. Central Africana. Álbum. PluG. 1988.
Carlinhos Trumpete/Lady Zu/Tony Bizarro/Tony Tornado/Luiz Vagner. Alma negra. LP. Continental. 1988.
Quarteto Negro. Quarteto Negro. Álbum. Curau Discos. 1988.

Livreto:
FERREIRA, Mauro. The Commodores. [Coleção Folha. Soul & Blues] 2015.

Documentos originalmente impressos:


GALVÃO, Ramiz. Vocabulario Etymologico, orthographico e prosodico . 1909 (sem informações editoriais).

ÁVILA, Fernando B. de. Pequena enciclopédia de moral e civismo. Fundação Nacional de Material Escolar.
Ministério da Educação e Cultura. 1967. Reedição 1972.

MOREIRA, José Francisco. Dicionário Mor da Língua Portuguesa. Livro’Mor Editora Ltda. 1967.

BUENO, Francisco S. Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa. Brasilia Ltda.


1974.

FERREIRA, Aurélio Buarque de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira. 1975.

FERNANDES, Francisco. Dicionário Brasileiro Globo. Editora Globo. 1984.

VALLE, Diniz A. Guia de Civismo. Destinado ao Ensino Médio. Ministério da Educação e Cultura. Brasil.
1969. Disponível em: <http://www.livrosgratis.com.br/download_livro_36616/guia_de_ civismo >

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro. Processo de um racismo mascarado. Paz &
Terra. 1978.

SANTOS, Joel Rufino dos. O que é Racismo. Brasiliense. 1980.

GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Marco Zero. 1982.

SOUZA, Neusa Souza. Tornar-se negro. Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão
social. Edições Graal. 1983.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Editora Ática. 1986.

Movimento Negro Unificado. 1978-1988. 10 anos de luta contra o racismo. 1988.

Páginas da WEB:
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< https://www.antikarius.com.br/produto/599232/zeze-motta-negritude-lpusado>

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revolucoes-que-ele-fez-em-nossa-musica.html>

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aquarela-de-emilio.html>

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< https://gilbertogil.com.br/producoes/detalhes/dia-dorim-noite-neon/>

<https://djavan.com.br/discografia/meu-lado/>

< https://djavan.com.br/discografia/nao-e-azul-mas-e-mar/>

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Conforme anunciado na introdução desta tese, o autor optou por demarcar em sublinhado as autoras e
autores socialmente identificados enquanto negros. Contudo, diante da impossibilidade de contato pe ssoal
com cada nome, o critério foi tomado enquanto a percepção do autor. Do mesmo modo, foram assinalados
aqueles que o autor conseguiu localizar imagens (quando já não os conheça). Portanto, reconhece -se a
possibilidade de equívocos e o autor deixa liberdade para contato para correções, através do email pessoal:
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Livretos de coleções completas (textos foram base como bibliografia):

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2007. 64 p.
Vol. 1: Nat King Cole.
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Vol. 3: Louis Armstrong.
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Vol. 18: Al Di Meola.
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2008. 64 p.
Vol. 1: Antônio Carlos Jobim.
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Vol. 3: Vinícius de Moraes.
Vol. 4: Baden Powell.
Vol. 5: Carlos Lyra.
Vol. 6: Nara Leão.
Vol. 7: João Donato.
Vol. 8: Johnny Alf.
Vol. 9: Lucio Alves.
Vol. 10: Miúcha.
Vol. 11: Roberto Menescal.
Vol. 12: Marcos Valle.
Vol. 13: Leny Andrade.
Vol. 14: Pery Ribeiro.
Vol. 15: Sylvia Telles.
Vol. 16: Maysa.
Vol. 17: Wilson Simonal.
Vol. 18: Os Cariocas.
Vol. 19: Joyce.
Vol. 20: Milton Banana Trio.

Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira. Edição e coordenação dos textos: Carlos
Calado. Rio de janeiro, MEDIAfashion. 2010. 64 p.
Vol. 1: Noel Rosa. Texto por João Máximo.
Vol. 2: Lamartine Babo. Texto por Mathilda Kóvak.
Vol. 3: Cartola. Texto por Carlos Calado.
Vol. 4: Pixinguinha. Texto por Carlos Calado.
Vol. 5: Ataulfo Alves. Texto por Hugo Sukman.
Vol. 6: Lupicínio Rodrigues. Texto por Arthur de Faria.
Vol. 7: Adoniram Barbosa. Texto por Carlos Calado.
Vol. 8: Dolores Duran. Texto por Rodrigo Faour.
Vol. 9: Ary Barroso. Texto por Moacyr Andrade.
Vol. 10: Luiz Gonzaga. Texto por Tárik de Souza.
Vol. 11: Nelson Cavaquinho. Texto por Tárik de Souza.
Vol. 12: Dorival Caymmi. Texto por Aluisio Didier.
Vol. 13: Braguinha. Texto por Zuza Homem de Mello.
Vol. 14: Herivelto Martins. Texto por Rodrigo Faour.
Vol. 15: Jackson do Pandeiro. Texto por Kiko Ferreira.
Vol. 16: Paulo Vanzolini. Texto por Tom Cardoso.
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Vol. 18: Chiquinha Gonzaga. Texto por Henrique Cazes.
Vol. 19: Jacob do Bandolim. Texto por Henrique Cazes.
Vol. 20: Ernesto Nazareth. Texto por Irineu Franco Perpétuo.
Vol. 21: Ismael Silva. Texto por Luiz Fernando Vianna.
Vol. 22: Assis Valente. Texto por Moacyr Andrade.
Vol. 23: Geraldo Pereira. Texto por Luiz Fernando Vianna.
Vol. 24: Waldir Azevedo. Texto por Henrique Cazes.
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Coleção Folha Soul & Blues. Edição e coordenação dos textos: Carlos Calado. Rio de janeiro,
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Vol. 1: Stevie Wonder. Texto por Carlos Calado.
Vol. 2: Marvin Gaye. Texto por Carlos Calado.
Vol. 3: James Brown. Texto por Carlos Calado.
Vol. 4: Ike & Tina Turner. Texto por Lauro Lisboa Garcia.
Vol. 5: Jackson 5. Texto por Lauro Lisboa Garcia.
Vol. 6: Diana Ross & The Supremes. Texto por Mauro Ferreira.
Vol. 7: Barry White. Texto por Mauro Ferreira.
Vol. 8: Curtis Mayfield. Texto por Carlos Calado.
Vol. 9: The Commodores. Texto por Mauro Ferreira.
Vol. 10: Otis Redding. Texto por Carlos Calado.
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Vol. 14: Etta James. Texto por Roberto Muggiati.
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