Tese Swing Da Cor BrunoMorais Completa Final
Tese Swing Da Cor BrunoMorais Completa Final
O swing da cor
Belo Horizonte
2022.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FOLHA DE APROVAÇÃO
"O swing da cor. A Linguagem Política do Orgulho Negro na Black Music brasileira (1960-88)"
Documento assinado eletronicamente por Nilma Lino Gomes, Professora Magistério Superior -
Voluntária, em 08/04/2022, às 05:22, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no
art. 5º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.
1
MENESES, José Newton C. A terra de quem lavra e semeia: alimento e cotidiano em Minas Colonial. In:
RESENDE, Maria Efigênia Lage, VILLALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais – As Minas
Setecentistas. Vol. 1. Belo Horizonte: Autêntica Editora/Companhia do Tempo. 2007, p. 350.
Em todos esses anos de vida universitária tive o privilégio e a oportunidade de
ministrar um conjunto de cursos e disciplinas, e quero agradecer aos amigos e colegas que
participaram dessas iniciativas comigo e me permitiram aprender muito ao compartilharem
sua didática e seus conhecimentos: o grande amigo Pedro Montandón Barbosa (de
particular importância para meus aprendizados quanto à História das Ideias e as
Linguagens Políticas), o Igor Rocha (Nefer), Breno Mendes, Nathalia Tomagnini, Gabriel
Verdin, Cássio Bruno Rocha, Isabela Dornelas, Átila Freitas e a Maria Visconti – esta
última que me confiou não apenas compartilhar da execução de um minicurso, mas
também a parceria para a oferta de uma disciplina em 2016. E, claro, estendo o
agradecimento àqueles e aquelas que confiaram em cursar essas atividades – sejam as
coletivas ou às muitas que ofertei sozinho –, muitos dos quais se tornaram amigos
queridos, como Samuel Antunes, Júlia Teresa Leite, Sara Handeri e Hugo Varejão.
Aliás, falando nos amigos que a vida acadêmica me permitiu adquirir, a lista
felizmente é longa. Além de vários nomes já citados nos parágrafos anteriores, um
agradecimento especial cabe à Marina Helena Carvalho, cujos papos e afeto muito
ajudaram e estão ajudando a levar todos esses dias com mais risadas. Também pelas
mesmas razões agradeço às queridíssimas Hélia Morais, Rute Torres e o Alexandre Bellini
Tasca, amigos de tantas empreitadas. Ainda Melissa Lujambio, David Barbuda, Felipe
Malacco, Thayná Peixoto, Thais Behar, Natália Ribeiro, Érika Cerqueira, Ana Ribeiro,
Carol Dellamore, Gabriel Amato, Warley Alves, Virgilio Coelho, Thiago Prates, Ana
Luisa Murta, Douglas Freitas, Isadora Vivacqua, Ana Clara Ferraz, Fabi Léo, Mateus
Frizzone, João Teófilo, Ana Paula Calegari, Andrezza Velloso, Paula Oliveira, Luiz
Guerra, Paulo Renato, Raquel Prado, as Karinas (Ferreira e Rezende)… Enfim, a lista,
fortuitamente, é longa. E segue com as queridas e importantes figuras de Marina Oliveira,
Rafaela Carvalho, Camilinha Rossi, Adriana Souza (Pekena), Ariel Boaz, Clara Lima,
Amanda Santos, Lívia Teodoro, Roberta Ornelas, Luísa Marques, Andrézão Oliveira,
Bruno Carvalho, Carla Odara, Carol Othero, Thais Galindo, Clycia Gracioso, Davi
Aroeira, Isabela Lemos, Camila Similhana, Gabriel Felipe Bem, Gabriela Galvão, Gabriela
Castro, Gabriela Santana, Larissa Assis, as Bruxas da Modernidade (Gabriela Sarmento e
Gabrielle Noacco), Pedro Sanches, Natália Barud, Luiza Parreira, Rafael Azevedo, Maria
Fernanda Melgaço, Álvaro Lourenço, Victoria Cunha, Nathalia Boaventura, Gislaine e
Gisele Gonçalves, Gabriel Assunção, Thales Barbosa, Eloá Scortegagni, Leticia Reis, a
turma do República (Danilo, Wilkie, Pauliane, Bruno Viveiros [com quem muito aprendi
sobre música]) e Daniela Chain. Muitos nomes, eu sei, mas decerto há esquecimentos.
O projeto que se transformou nesta tese de doutorado não existiria sem o enorme
apoio da Julia Lery, que merece um agradecimento especial. E a tese, nos moldes como
está agora, não existiria sem a contribuição ímpar de minha orientadora, Miriam Hermeto,
uma influência e inspiração enquanto professora, orientadora, pesquisadora e como ser
humano. Tal como ocorreu na minha dissertação, sua influência é sentida em toda a obra
desta tese. E, ainda que as falhas presentes no trabalho sejam de responsabilidade (e
teimosia) minhas, os méritos que houverem são compartilhados com ela e com seu modelo
sensível e amigo de orientação.
E particularmente nesses tempos nos quais a universidade pública tem sido tão
atacada e seus financiamentos cortados, enfatizo a importância da ação do Estado para a
educação: deixo meus agradecimentos às entidades que me auxiliaram economicamente na
trajetória acadêmica, a FUMP, por toda minha graduação, e a CNPq (agência da qual fui
bolsista tanto no mestrado quanto agora no doutorado). A essas entidades – e aos impostos
pagos por milhões de brasileiros – devo a minha manutenção enquanto estudante e
pesquisador. E, considerando que minha trajetória acadêmica iniciou em 2007, o mestrado
iniciou em 2014 e concluí o doutorado em 2022, posso afirmar que pude testemunhar a
importância das políticas públicas e de um governo federal comprometido com a educação,
como os vividos no Brasil dos governos PT, nas presidências de Luiz Inácio “Lula” da
Silva e Dilma Rousseff; assim como pude testemunhar o prejuízo do sucateamento e cortes
de verbas dos governos federais que se seguiram. Como um estudante que teve toda sua
formação escolar realizada em escolas públicas, municipais, estaduais e federais, ressalto a
importância de um investimento na educação pública de qualidade.
Por fim, repito, tal como fiz nos agradecimentos da dissertação, uma última
referência, que pode soar estranha a quem leia essas páginas, mas que para mim é muito
justa: agradeço às árvores e paisagens dessa cidade, os “jardins urbanos” que encontro ao
sair dos “quintais” da sociabilidade cotidiana. Em inúmeros momentos de minha trajetória,
o encontro de soluções quanto à argumentação ou reflexões para esta pesquisa (e para
outros dilemas da vida) foram encontradas a partir da inspiração advinda da vista delas.
P.S.: Entre a defesa da tese e a entrega desta versão final, ingressei como analista
no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA). Algumas
referências incluídas nas revisões finais desta tese – quanto à canção “A festa de Santo
Reis”, de Tim Maia – são tributárias dos aprendizados adquiridos nesta experiência
profissional. Representando o Instituto, agradeço particularmente às enriquecedoras
conversas e demais contribuições de Débora Raíza (novamente), e também à Ana Paula
Belone, Ana Paula Trindade, Nicole Batista, Letícia Reis (novamente também), Steffane
Santos, Helen Crislande, entre outros.
“O único lugar onde os negros não se rebelaram
é nos livros de historiadores capitalistas.”
(JAMES, Cyril Lionel Robert. A revolução e o negro.
1939.)
Abstract: This dissertation approaches the production of Brazilian Black Music released
between 1960 and 1988, analyzing the circulation of anti-racist political ideas in the songs.
The research identified the affirmation of black culture and the denunciation of racial
prejudice in Brazil as frequent themes in a Brazilian musical production that hybridized or
incorporated sounds from American Black Music. The initial mark of such production was
located in 1960, with the first LP by Elza Soares and the emergence of Bossa Negra, also
developed by Jorge Ben and Wilson Simonal. Starting with Bossa Negra, the research
identified, in the late 1960s, the incorporation of Soul and Funk, which became hegemonic
in Brazilian Black Music and reached their prime in the 1970s, with several artists. Along
with the sounds, the research also identified in the lyrics of the songs, from 1967 onwards,
a movement of dialogue with the reality of American black communities, in what was
called the Political Language of Black Pride. In the final mark, the 1980s, the research
found the withdrawal of Black Music Brasileira sounds in the phonographic market.
Among the conclusions of the research on the dissemination of the anti-racist theme, there
was the location of an effort by the anti-racist black militancy to change the understanding
of the word “racism”: from asserting the superiority of a race and segregationism to
prejudice and discrimination against black communities, an understanding that would have
contributed to the deconstruction of the ideals of “racial democracy” in Brazil as a myth.
Lista de imagens:
Fig. 1. Capa e contra-capa LP Elza Soares. Se acaso você chegasse. ----------------------------------------------------- 87
Fig. 2. Capa e contra-capa LP Jorge Ben. Samba esquema novo. ------------------------------------------------- 111
Fig. 3. Capa e contra-capa LP Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. ---------------------------------- 120
Fig. 11: Capa e contracapa. Tim Maia Racional. Vol. 2. ----------------------------------------------------------- 248
Fig. 13. Capa e contracapa. Gerson King Combo. Gerson King Combo. ---------------------------------------- 279
Fig. 15: Atletas Tommie Smith e John Carlos nas Olímpiadas do México. Angela Davis. ------------------- 293
Fig. 16. Michael Jackson. Ben e Sly & The Family Stone. Fresh. ----------------------------------------------- 298
Fig. 18: Elza Soares A Bossa Negra. Elza & Roberto Ribeiro. Sangue, suor e raça --------------------------- 302
Fig. 19: Jorge Ben. Ben é samba bom e Jorge Ben. Ben. ----------------------------------------------------------- 303
Fig. 20: Tim. What you want to bet?/These are the songs e Tim Maia.. Tim Maia. ---------------------------- 303
Fig. 21: Trio Ternura. Trio Ternura. LP. 1971. CBS. Filhos de Zambi/Meu caso com você. ----------------- 303
Fig. 22. Dom Salvador. Salvador Trio. LP. 1965. Mocambo. Dom Salvador. LP. 1969. --------------------- 304
Fig. 24. Wilson Simonal Wilson Simonal. LP. 1965. Odeon. Se dependesse de mim. ------------------------- 304
Fig. 26. Capa e contracapa. Lady Zu. Fêmea brasileira. ----------------------------------------------------------- 329
Fig. 27. Capa e contracapa. Itamar Assumpção. Beleléu Leléu Eu. ----------------------------------------------- 336
Fig. 28. Capa e contracapa. Sandra Sá. Demônio Colorido. ------------------------------------------------------- 346
Sumário:
Introdução. ------------------------------------------------------------------------------------------ 05
Introdução. ------------------------------------------------------------------------------------------- 54
1.1. Um histórico de hibridação: o encontro entre o samba e o jazz na Gafieira. ---------- 59
1.2. A Bossa Negra. --------------------------------------------------------------------------------- 80
1.3. Rumo à Black Soul: a consolidação da Linguagem do Orgulho Negro. -------------- 148
Conclusão: “O fim do começo”. ----------------------------------------------------------------- 174
O texto de uma tese de doutorado muitas vezes expõe o último passo de uma
trajetória de pesquisa iniciada alguns anos antes, no trabalho de mestrado ou graduação; e
este, que aqui inicia, não está na contramão de tal hábito acadêmico. A fim de assumir essa
conexão, ou desenvolvimento do processo, que decorre a escolha do título “Começar pelo
recomeço” para estas primeiras linhas. O título foi extraído do poema escrito por Torquato
Neto (1944-1972) e entregue a seu amigo Luiz Melodia (1951-2017) por volta de 1971,2
pouco antes do suicídio do poeta, mas musicado e gravado pelo cantor apenas em 1997, no
álbum 14 Quilates. E o “recomeço” significa retomar a ideia apresentada no Prefácio da
dissertação “Sim, sou um negro de cor”: Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro
no Brasil dos anos 1960 (2016), ao citar o paralelo feito pelo historiador Antônio Fernando
Mitre entre a historiografia e um mapa enquanto uma forma de orientar um viajante. No
caso do “mapa” historiográfico, a fim de orientar a quem deseje “viajar” “nos caminhos da
vida ou da história”.3 Cabe, portanto, a essas páginas iniciais, traçar as “coordenadas de
leitura” do mapa a esta ou este viajante.
1
Luiz Melodia. Começar pelo recomeço (Torquato Neto). 14 Quilates. EMI Music. 1997. Fx.3.
2
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano: A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 50, 51.
3
MITRE, Antonio F. História, memória e esquecimento. In: O dilema do centauro: ensaios de teoria da
história e pensamento latino-americano. 2003, p. 17.
4
XX, analisando a circulação de ideias antirracistas em canções gravadas por artistas negros
da Black Music Brasileira em um período de 28 anos, entre 1960 e 1988.
4
Esse argumento foi desenvolvido em vários momentos da dissertação supracitada, particularmente nos
trechos aqui destacados: MORAIS, Bruno V. L. “Sim, sou um negro de cor”. 2016, p. 8-17; 123-128.
5
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. 2012, p. 40.
6
MITRE, Antonio F. História, memória e esquecimento. In: O dilema do centauro. 2003, p. 17.
5
Introdução.
7
Sandra de Sá. Criolo (Sandra de Sá/Adriana Milagres). Africanatividade – cheiro de Brasil. Universal
Music. 2010. Fx.2.
8
Sandra de Sá. Música Preta Brasileira. Universal Music. 2004. Álbum. Para esta tese foi adotada a opção
de normalização das referências musicais como: músicas citadas entre aspas e títulos de discos em itálico.
Essa forma já é utilizada frequentemente em livros e artigos em websites sobre música, apresentando a
vantagem de facilitar a leitura e a prévia identificação das referências a faixas e discos que sejam
homônimos.
9
BARBOSA, Marco Antônio. Sandra de Sá e a música preta brasileira. Publicado em 01/03/2004.
Disponível em <http://cliquemusic.uol.com.br/materias/ver/sandra-de-sa-e-a-musica-preta-brasileira > Acesso
23/05/2019.
6
porém, incluía o que Sandra definiu por “grandes momentos de nossa música preta” com
suas versões para “As dores do mundo”, de Hyldon, “Não Pode”, de Tony Bizarro, e
“Chove chuva/Fio maravilha”, de Jorge Ben, canções originalmente lançadas nas décadas
de 1960 e 1970. Conforme Sandra, em texto publicitário midiatizado para o lançamento do
disco: “Esses caras todos mereciam uma estátua em praça pública. E o pior é que eles
acabam sumindo. Ninguém ouve mais falar de Cassiano, Hyldon, Simonal. É uma
discriminação, um crime”10
10
BARBOSA, Marco Antônio. Sandra de Sá e a música preta brasileira. Publicado e m 01/03/2004.
7
planeta, repetindo a fórmula musical de hibridar a sonoridade pop-rock com a black music,
particularmente o funk 11 , conquistando a vendagem de 500 mil discos. 12
a seleção, feita pelo titã Charles Gavin, aposta na reputação popular da black dos
anos 70 no Brasil, hoje gozando de relativa revalorização. Tudo começa pela raiz
do que na década de 70 se tornaria um caldeirão de fusões entre samba, bossa
nova, jazz, rhythm'n'blues, soul, funk e, mais adiante, discothèque: os três álbuns
iniciais do carioca Jorge Ben (hoje Ben Jor), definidor, com Wilson Simonal, de
novos rumos para o samba e para o orgulho negro no Brasil. (...) De Jorge, a
coleção viaja à soul music de Cassiano e Hyldon, fundadores do gênero no Brasil
com Tim Maia, lá pelo final dos 60.13
11
Válido adiantar que a sonoridade Funk adotada pelo grupo Jota Quest e que é estudada nesta tese não se
refere ao que hoje é amplamente conhecido por “Funk Carioca”. Embora haja uma ligação estreita, a partir
dos Bailes Funk que surgiram por volta do final dos anos 1960 e início da década de 1970 em regiões de
periferia, em especial na cidade do Rio de Janeiro (mas presentes em várias regiões do país), o Funk
setentista tem por maior influência a sonoridade criada pelo artista estadunidense James Brown na d écada de
1960. Já a sonoridade do Funk Carioca apresenta relações com o Miami Bass, subgênero da cultura Hip Hop,
que foi popularizada também nos EUA na década de 1980. Uma interessante ponte entre os dois gêneros
pode ser ouvida na canção “Vira de ladinho (Malha Funk)” do grupo Malha Funk, sucesso lançado em 2006
na coletânea Funk Mix, produzida pelo Dj. Marlboro e distribuída pela gravadora Som Livre. Sobre ambos os
movimentos musicais e o desenvolvimento de um a outro a partir dos bailes, PEIXOTO, Luiz F.;
SEBADELHE, Zé O. 1976: Movimento Black Rio. 2016.
12
Informação em < https://pt.wikipedia.org/wiki/De_Volta_ao_Planeta > Acesso 09/01/2021. Vale
mencionar que em 2004, ano de lançamento do Música Preta Brasileira de Sandra, a coletânea de sucessos ao
MTV Ao Vivo do Jota Quest figurou em 16° posição nas Estatísticas e Dados de Mercado do ABPD. <
https://web.archive.org/web/20120524030038/http://www.abpd.org.br/estatisticas_mais_vendidos_cd_2004.a
s> Acesso 09/01/2021. O CD e DVD de Sandra não aparecem nas listagens da página.
13
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0308200127.ht m> Acesso 08/01/2021
8
No Brasil, entre as décadas de 1960 e 1980, esta pesquisa identificou ao menos três
gêneros musicais, etiquetas comerciais e estéticas, que poderiam ser elencados como
“Música Preta Brasileira”. E, nesses três gêneros, alguns artistas negros fizeram circular
ideias antirracistas. O primeiro desses gêneros é o samba de morro carioca, com artistas
como Martinho da Vila, Candeia e o grupo Fundo de Quintal, entre outros que, conforme a
comunicóloga Iris Oliveira, basearam-se “nos fazeres africanos ressignificados no Brasil”14
em sua expressão da cultura negra. Com algumas similaridades quanto ao norte cultural,
mas fora do tradicional eixo Rio-São Paulo – e, talvez por isso, demorando um pouco para
ser fixado em fonogramas e ter maior impacto no cenário comercial brasileiro –, o segundo
gênero é representado pelos Blocos Afro surgidos na Bahia na década de 1970, que
também optaram pela centralidade na ascendência cultural africana em suas manifestações,
angariando destaque no boom da música popular baiana a partir da década de 1980.
Exemplo de particular impacto nesta segunda vertente é o Ilê Aiyê, que em sua primeira
apresentação no carnaval de Salvador, em 1975, apresentou uma canção de influência soul,
“Mundo Negro/Ilê Aiyê”,15 que até hoje é regravada por artistas negros localizados em
diferentes gêneros musicais.16 O terceiro gênero passível de referência é a Black Music
Brasileira, que articula referências da black music dos EUA a partir do idioma português,
ambientando os temas ao contexto brasileiro e, em muitos casos, hibridando-os a gêneros
musicais nacionais.
14
OLIVEIRA, Iris A. Black soul e “samba de raiz”: convergências e divergências do Movimento Negro no
Rio de Janeiro.1975-1985. Dissertação (Memória Social). Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2014.
15
PEREIRA, Amilcar Araújo. O mundo negro. Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas: FAPERJ, 2013, p. 171-172. MERCÊS, Geander B. De Ilê
Ifé ao Ilê Aiyê: uma releitura do carnaval soteropolitano. Dis sertação (Ciências Sociais). 2017.
16
Regravações mais recentes com a banda de pop-rock O Rappa, como faixa 03 do cd 2 do álbum ao vivo
Instinto Coletivo. Warner Music. 2001; e a supracitada Sandra de Sá, na faixa 02 do álbum Africanatividade
ao vivo – Sandra de Sá 30 anos. Universal Music. 2011.
17
VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Zahar. 2012.
9
Direitos Civis de negros no país:18 a música Soul, Funk, Blues e subgêneros do Jazz
(notadamente a vertente Hard Bop).
Uma tese que propõe a análise da Black Music Brasileira exige, evidentemente,
uma definição inicial do termo Black Music enquanto indicador de sonoridades e uma
etiqueta comercial no mercado fonográfico. Pra começo de conversa, traduzindo o termo, a
compreensão estadunidense de uma “música preta” ou “música negra” remonta a três
matrizes musicais formuladas e difundidas pelas comunidades negras escravizadas no país:
18
VIANNA, Hermano. O Baile funk carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. Dissertação.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Depto. de Antropologia. 1987, p. 45.
19
Algumas das frequentes referências midiáticas ao primeiro álbum de Tim Maia como “pioneiro” ou
“inaugural” da black music no Brasil serão exploradas no início do segundo capítulo desta tese.
20
CANCLINI, Nestor Garcia Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. 2008. Esta
obra propõe identificar processos de fusões entre práticas culturais, destacando a importância à circularidade
entre práticas de cultura erudita, popular e “de massas” que desenvolvem as especificidades da América
Latina na “modernidade” pós -colonial. As contribuições do autor para esta tese serão apresentadas no
primeiro capítulo.
10
Efectivamente, nessa região dos E.U.A., onde viviam 95 por cento dos negros
americanos, assinalam-se então inúmeros estratagemas destinados a impedir que
os antigos escravos, agora com estatuto de homens livres, gozassem dos direitos
cívicos recentemente adquiridos, outorgados pela lei federal. (...) O número de
linchamentos, 12 em 1872, subiu para 255 em 1892. E esses actos de
discriminação racial não só passaram a ocorrer cada vez mais frequentemente,
como eram agora sancionados por leis específicas, nos diversos Estados. Em
21
DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. 2017, p. 200, 201.
22
COLLINS, Patrícia H. Pensamento feminista negro: o poder da autodefinição. In: HOLLANDA, Heloísa
B. (org). Pensamento Feminista. Conceitos fundamentais. 2019, p. 282.
23
COLLINS, Patrícia H. Pensamento feminista negro: o poder da autodefinição. 2019, p. 277.
11
Em uma sociedade marcada por uma segregação racial oficial desde o século XIX,
o incipiente mercado fonográfico, surgido no início do século XX, refletiu essa separação.
E um “lugar” inicial onde a discriminação racial demonstrou força na música documentada
em registro fonográfico foi o jazz. Apesar do blues ser o gênero musical negro de maior
influência na cultura estadunidense (o paralelo cultural brasileiro é o samba) e ter sido
fixado inicialmente em fonograma em 1912 (com a gravação instrumental de “Memphis
Blues”, orquestrada por William C. Handy), até por volta dos anos 1940 ele era
predominantemente considerado um tipo de música folclórica. Deste modo, o gênero
musical de ascendência negra a ser inicialmente consagrado como produto no mercado
fonográfico foi o jazz, gênero associado a uma criação cultural urbana. Contudo, a primeira
gravação de jazz foi realizada por um grupo integrado apenas por músicos brancos, a
Original Dixieland Jass Band, que registrou em 26/12/1917 as músicas “Livery Stable
blues” e “Dixie Jass Band one step”.
24
BORGES, Antônio. De Jim Crow a Langston Hughes. “Quando a música começou a ser outra”. 2007, p.
20-21.
25
CALADO, Carlos. Louis Armstrong. Coleção Folha: Clássicos do Jazz. 2007. Vol.3. 64 p.
12
trompetista Buddy Bolden.26 Embora a cidade esteja situada na região sul dos Estados
Unidos, onde imperava as leis Jim Crow, por sua colonização francesa e anexação tardia à
nação estadunidense, a relação entre pessoas negras e brancas era menos segregada,
possibilitando maior circulação cultural. É o que o jornalista citado acima, Carlos Calado,
denominou como um efervescente “caldeirão cultural” no qual referências culturais de
ascendência nas comunidades brancas e negras puderam hibridar em um processo que deu
origem ao jazz - mas é importante salientar que, nesse caso, com grande proeminência da
contribuição negra. E, neste cenário de particularidade local nas hibridações em uma
sociedade sulista segregada, o líder da Original Dixieland, o trompetista Nick La Rocca,
com o sucesso das gravações iniciais, declarava publicamente que o jazz era uma criação
dos brancos estadunidenses, sem qualquer participação dos negros que, segundo La Rocca,
jamais tinham contribuído com algo de valor para a realidade musical do país. 27
26
CALADO, Carlos. Coleção Folha: Clássicos do Jazz. (20 vol.) Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2007. 64 p.
HOBSBAWM, Eric. História Social do Jazz. 2009. BURNS, Jazz (documentário).
27
Conforme o primeiro episódio da série documental Jazz, dirigida por Ken Burns. 2002. 724 min (tempo
total)
28
Sobre esta definição do termo, GENOVESE, Eugene. A terra prometida. O mundo que os escravos
criaram. 1988.
13
comercializadas com o selo race records. O historiador Eric Hobsbawm fornece uma
melhor explicação dessa divisão no mercado:
A definição race records, portanto, a partir dos anos 1920 reproduzia a segregação
racial do Sul estadunidense para o mercado fonográfico nacional, sinalizando, ao mesmo
tempo que circunscrevia, para lojistas e consumidores, um “lugar” para a “música preta”
ou “música de pretos” nas paradas de sucessos. O desenvolvimento deste mercado permitiu
o registro de blues mais próximos à execução rural (a voz acompanhada por violão,
fórmula comumente conhecida como Delta Blues, em referência à mítica de sua execução
nas margens do rio Mississippi) por nomes como Blind Lemon Jefferson e Charley Patton
ainda na década de 1920; e Robert Johnson e Lead Belly nos anos 1930. Este último, Lead
Belly, apresentou uma hibridação do blues com elementos do spiritual - gênero que nos
anos 1930 conquistou maior espaço fonográfico, rebatizado pelo termo gospel, com nomes
como Sister Rosetta Tharpe e Mahalia Jackson. No cenário do pós-Segunda Guerra
Mundial, no final da década de 1940, um novo formato de blues ganhou destaque no
mercado das race records. Mais exatamente, a partir de 1948, com o registro por Muddy
Waters das canções “I cant’ be satisfield” e “I feel like going home”, demarcando uma
atualização do Delta Blues, executado com banda completa (bateria, piano, contrabaixo e
gaita de boca) e substituindo o violão pela guitarra elétrica - formato que ficou conhecido
pelo termo Chicago Blues, em uma sonoridade reconhecida como urbana. Neste período
ocorreu a emergência de outra conceituação para referenciar a “música preta”. Conforme o
jornalista Florent Mazzoleni, “Difundido pelo jornalista Jerry Wexler em 1949, o termo
rhythm’n’blues pôs fim ao uso da humilhante expressão race records para designar as
paradas de sucesso das músicas negras.”30
harmonia de vozes) do The Platters, dos então populares (entre o público negro, bom
recordar!) Chicago blues de Muddy Waters e Howling Wolf ao rock’n’roll (novo formato
de música urbana, com forte apelo entre o público jovem, caracterizado pela temática
adolescente em canções dançantes de andamento acelerado) de Chuck Berry e Little
Richards. E, assim como a categoria race records foi sucedida pela rhythm’n’blues como
forma de definir lugares para a divisão racial no mercado da música gravada, na década de
1960 a terminologia black music reforçou a divisão racial no mercado fonográfico, então
fortalecido pelo sucesso da música jovem.
31
Sobre o papel pioneiro das gravações de Domino, desde 1949, para o que viria a ser denominado
rock’n’roll, ver RIBEIRO, Helton. Fats Domino. Coleção Folha Soul & Blues. vol. 22. 2015.
32
Uma narrativa detalhada deste processo está em MAZZOLENI, Florent. As raízes do rock . 2012.
33
Sobre o surgimento da juventude (branca) como identidade social e público consumidor, ver SAVAGE,
Jon. A criação da juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX. 2009.
15
The Rolling Stones, The Animals, The Who, etc) ou os da “reação americana” (The Byrds,
The Beach Boys, The Mamas and the Papas, etc), ambos formados por jovens brancos. O
rock era consolidado como produto e a expressão musical de uma faixa etária, o público
adolescente, mas ficava subentendido pelos “rostos” deste símbolo etário que o destinatário
da identificação era a adolescência branca.
34
MAGALHÃES, Maria C. P. F; SOUZA, Ana G. R. Identidade cultural na música negra: o exemplo do soul
e do rap. In: Anais do III Congresso Internacional de HIstória da UFG/Jataí: História e Diversidade
Cultural. Textos Completos. 2012, p. 4.
35
Esta frase faz alusão a uma reflexão do filósofo francês Jacques Ranciére, que propôs a identificação de
uma “política da escrita” a partir da “partilha do sensível”: “Pelo termo de constituição estética deve -se
entender aqui a partilha do sensível que dá forma à comunidade. Partilha significa duas coisas: a participação
em um conjunto comum e, inversamente, a separação, a distribuição em quinhões. Uma partilha do sensível
é, portanto, o modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão
de partes exclusivas. Antes de ser um sistema de formas constitucionais ou de relações de poder, uma ordem
política é uma certa divisão das ocupações, a qual se inscreve, por sua vez, em uma configuração do sensível:
em uma relação entre os modos do fazer, os modos do ser e os do dizer; entre a distribuição dos corpos de
acordo com as atribuições e finalidades e a circulação o sentido; entre a ordem do visível e do dizível.” In:
16
sucedida por rhythm’n’blues, o novo cenário demarcou o quinhão das comunidades negras
pelo termo black music, a designar a produção musical produzida por e para as pessoas
negras em geral e, em particular, a parcela jovem, com o soul e o funk - gênero criado e
popularizado pelo cantor soul James Brown ainda nos anos 1960, que priorizava os
elementos rítmicos e dançantes. E, do mesmo modo que qualquer ouvinte do rock
reconhece no gênero uma pluralidade de estilos internos, a caracterizar sonoridades tão
díspares como das bandas The Beatles, The Rolling Stones, Pink Floyd, The Doors, The
Stooges, Yes, Jethro Tull, Led Zeppelin e Black Sabbath, entre várias outras consagradas
nas décadas de 1960 e 1970; o universo da black music dos gêneros soul e funk no mesmo
período desenvolveu sonoridades diversas, como as de Sam Cooke, Otis Redding, James
Brown, Aretha Franklin, The Miracles (grupo no qual surgiu Smokey Robinson), The
Impressions (no qual surgiu Curtis Mayfield), The Supremes (no qual surgiu Diana Ross),
Sly & The Family Stone, Marvin Gaye, Stevie Wonder, Jackson 5 (onde surgiu Michael
Jackson), Nina Simone, The Love Unlimited Orchestra (criada por Barry White), The
Temptations, Isaac Hayes, entre vários outros, passando por execuções dançantes,
agressivas ou lentas, e uma diversidade temática, com letras românticas e contestatórias. 36
37
FRIEDLANDER, Paul apud MAGALHÃES, Maria; SOUZA, Ana. Identidade cultural na música negra.
2012, p. 5.
38
VIANNA, Hermano. O baile funk carioca. 1987, p. 45, 46.
39
CALADO, Carlos. Curtis Mayfield. Coleção Folha Soul & Blues. Vol. 8. 2015, p. 18-19.
18
me chame de macaco,40 branquelo), lançado em 1969 no consagrado álbum Stand de Sly &
The Family Stone. Essa relação entre política e autoestima insere na definição de
“empoderamento” de Joice Berth:
Não apenas nas letras explícitas das canções, mas o fato em si de várias pessoas
negras aparecerem em posições de destaque na indústria do entretenimento, e não mais
apenas em posições profissionais subalternas, contribuía para esse fortalecimento da
autoestima, aspecto potencializado pela difusão dos aparelhos de televisão. Formas
específicas de dançar, se vestir e de valorização das características físicas, como o cabelo
crespo, compunham o chamado Orgulho Negro (Black Pride), um dos elementos para a
conquista do Poder Negro (Black Power), em um compromisso comum pelo fim da
segregação racial e pela causa antirracista.
40
“Nigger” é um termo altamente pejorativo com o qual as pessoas racistas buscam ofender pessoas negras.
Por isso, para uma tradução da ideia da canção, a opção do termo “macaco” pareceu mais precisa do que
“negro”.
41
BERTH, Joice. O que é empoderamento? 2018, p. 15.
19
42
“Ao proclamar uma única natureza para todos os homens, dada por Deus, proclamou também que todos os
homens são irmãos. Mas ao fazer isto, apesar de todas as tentativas de separar o reino de deus dos reinos dos
homens, evidenciou o abismo existente entre a igualdade dos homens perante Deus e a cruel desigualdade do
homem perante o homem.” GENOVESE, Eugene. A terra prometida. 1988, p. 264. A Parte II do livro, “A
pedra e a Igreja”, analisa a leitura do cristianismo feita por pessoas negras desde o período escravista. É
emblemático, aliás, que o título original da obra, publicada nos EUA em 1974, é Roll, Jordan, Roll, nome de
uma canção spiritual.
20
negava a presença do racismo. É válido, portanto, que esta introdução situe a quem leia a
tese sobre a compreensão fornecida a alguns conceitos displicentemente citados no
decorrer deste parágrafo.
43
HALL, Stuart. Que “negro” é esse na cultura negra? In: Da diáspora: identidades e mediações culturais.
2003, p. 317-330.
44
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 2005, p. 86.
45
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. 2012, p. 88.
46
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. 2012, p. 16.
47
MUNANGA Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. 2012, p. 16.
21
melhor definida por eles como uma “identidade social politizada”. 48 Ou ainda, como
prefere esta pesquisa, como “identificação”.
48
BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia, M. Introdução - Cidadania e direitos: aproximações e relações.
In: Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos. 2012, p. 12.
49
SCHWARCZ, Lilia. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário. Cor e raça na sociabilidade brasileira.
2012, p.30-36.
50
HOOKS, bell. E eu não sou uma mulher?. Mulheres negras e feminismo. 2020, p.16.
51
ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. 2010.
52
Segundo Francisco Bethencourt, “a expansão europeia d eu origem a um corpo coerente de ideias e práticas
associadas à hierarquia dos povos de diferentes continentes.” In: BETHENCOURT, Francisco. Racismos.
Das cruzadas ao século XX. 2018, p. 39. Essa hierarquia, no argumento do autor, manifestou em preconceito
e ação discriminatória em relação à ascendência étnica, motivados por projetos políticos. Esse
comportamento hierárquico e preconceituoso define, para o autor, o racismo, que antecede a formulação das
teorias raciais, também chamadas de racismo científico. Para uma leitura específica sobre as teorias raciais,
ver também: TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. 1993.
22
53
SKINNER, Quentin. Motivos, intenções e interpretação. In: Visões da Política: Sobre os métodos
históricos. 2002, p. 142.
23
determinaram que essas mudanças tivessem lugar.”54 E, assim, em cada contexto, eles
buscam identificar certas “‘questões paradigmáticas’ ou modos de enfrentar essas questões,
comuns a vários autores mais ou menos contemporâneos – uma comunidade de ‘falantes’
de uma linguagem política, que a atualiza através de suas intervenções particulares”. 55
A opção por uma exposição tão longa – para um texto introdutório - das
possibilidades e limites da metodologia do contextualismo linguístico serve para justificar
54
POCOCK, John. G. A. El Momento Maquiavélico. El pensamento político florentino y la tradición
republicana atlântica. 2002. p. 142. Livre tradução minha.
55
ARAÚJO, Cícero. Apresentação. Um “giro linguístico” na história das idéias políticas. In: POCOCK.
John. G. A. Linguagens do ideário político. Sergio Miceli (org.). 2013, p. 11.
56
ARAÚJO, Cícero. Apresentação. Um “giro linguístico” na história das idéias políticas. In: POCOCK.
John. G. A. Linguagens do ideário político. Sergio Miceli (org.). 2013, p. 09.
57
SANTOS, Saulo. Fundamentos de pragmática. Apoio pedagógico. 06/06/2018. Disponível em
<https://grad.letras.ufmg.br/arquivos/monitoria/20180606%20-%20Pragm%C3%A1tica%20-
%20Aula%2003%20-%20Atos%20de%20fala.pdf> Acesso 31/01/2021.
58
CRESPO, Enrique B. Intención, convención y contexto. In: El giro contextual. Cinco ensayos de Quentin
Skinner, y seis comentarios. 2007, p. 305-366. Mas também presente nos outros textos de comentadores. Para
a teoria original, ver AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer. Palavras e ação. Trad. Danilo Marcondes. 1990.
24
de antemão que esta tese apresenta as mesmas limitações quanto à recepção das obras
analisadas. Ao propor a identificação das linguagens políticas antirracistas e os atos de fala
produzidos em algumas canções, não há o objetivo de identificar os efeitos causados nos
ouvintes diante da escuta de tais canções. Decerto alguns ouvintes podem refletir, se
informar e elaborar críticas à realidade vivida, enquanto outros podem apenas se entreter
com as melodias, assim como a leitura de um livro não garante mudanças efetivas em
quem o lê. O potencial da proposta está na possibilidade de identificar em produções
culturais, seja algumas formas de literatura, seja em alguns formatos musicais, a
capacidade de expressão de ideias políticas, formas de intervenção na realidade vivida. Há
diferenças entre as “formas de dizer” características ao suporte livro e o suporte canção - e
as especificidades da música gravada enquanto produto cultural serão abordadas em tópico
específico desta introdução -, mas cabe adiantar que ambos preservam uma condição
híbrida enquanto produtos de uma indústria de bens culturais e formas de expressão de
autoras e autores que, a partir das características do formato, podem expressar discursos. A
dimensão comercial, portanto, não impede que se identifique no produto final registrado, o
livro publicado ou a canção gravada, a difusão de mensagens na obra. Na performance da
canção, os atos de fala realizados permitem a leitura também como discurso e, portanto, a
existência de uma intenção autoral que permanece no produto final.
59
LORDE, Audre, Carta aberta a Mary Daly. In: Irmã Outsider. 2020, p. 86.
25
60
Alusão à referência à linguagem musical presente em: AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para
todo canto: as religiões afro-brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34,
2006, p. 233.
61
Os critérios de representação racial no Brasil diferem-se de outras regiões, como os EUA, por gradações a
partir da cor da pele. Entre o reconhecimento como pessoa “negra” ou “branca”, há um espectro cromático
“pardo” amplo, que altera a percepção individual do racismo. Ver: SCHWARCZ, Lilia. Nem preto, nem
branco, muito pelo contrário. 2012. Contudo, conforme os critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), e antigas demandas do Movimento Negro, a categoria “negro” inclui pessoas pretas e
pardas.
62
O reconhecimento de um silenciamento histórico, sendo a dimensão racial geralmente reconhecida nos
debates sociais e acadêmicos a partir da fala de pessoas brancas do sexo masculino, e a importância das
pessoas negras – e particularmente mulheres negras – falarem em primeira pessoa é tema do artigo da
historiadora GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, L. A. et al.
Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília, ANPOCS n. 2, p.
223-244, 1983.
26
exclusão (ainda que com diferenças próprias a cada cenário local), realiza interlocuções
transnacionais com ideias panafricanas e afro diaspóricas. E é nesse ambiente intelectual
que a pesquisa identificou uma maneira de compreender, elaborar e comunicar as
experiências raciais brasileiras que articula, como principal canal de interlocução e uma
matriz cultural, a experiência estadunidense - a comunidade política do continente
americano de maior impacto cultural global no século XX -, que está sendo proposta na
tese pelo conceito de Linguagem Política do Orgulho Negro.
63
“A performance do texto é sua performance como parole em um contexto de langue.” Ideia desenvolvida
em POCOCK, John. Introdução. O estado da arte. In: Linguagens do ideário político. 2013, p. 23-62.
64
O conceito de Linguagem Política do Orgulho Negro foi originalmente desenvolvido em MORAIS, Bruno
V. L. “Sim, sou um negro de cor.” Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no Brasil dos anos 60.
2016. Particularmente no tópico “Nossa história está na cara, na pele, no ca belo pixaim”, p. 66-123. Contudo,
referia ao que agora está sendo chamado de Linguagem Negra Antirracista, os diversos aspectos e
abordagens que compõem uma reivindicação igualitária e contradiscurso na Modernidade, uma produção
mais ampla do que o termo Orgulho Negro (que alude ao estadunidense Black Pride) sugere. Esta tese,
portanto, refina o conceito.
27
65
SANSONE, Lívio. Orelha do livro GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência.
2° edição. 2012.
66
WEINSTEIN, Barbara. Pensando a história fora da nação: a historiografia da América Latina e o viés
transnacional. In: Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 14, 2013, p. 17.
67
WEINSTEIN, Barbara. Pensando a história fora da nação. 2013, p. 17.
68
CARVALHO, Marina Helena M.; PRATES, Thiago. Para além das fronteiras: histórias transnacionais,
conectadas, cruzadas e comparadas. In: Temporalidades – Revista de História, ed. 21, v. 8, n.2, 2016, p. 9.
28
69
GILROY, Paul. O Atlântico negro. 2012, p. 54. Sobre o argumento de Peter Linebaugh, foi desenvolvido
posteriormente em LINEUBAGH, Peter; REDIKER, Marcus . A hidra de muitas cabeças. Marinheiros,
escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. 2008.
70
GILROY, Paul. O Atlântico negro. 2012, p. 175.
29
Assim, os países receptores do mercado escravista moderno, como Brasil, Estados Unidos
e os que integram a região do Caribe, a partir da experiência e efeitos da escravidão, teriam
questões passíveis de serem consideradas como próximas por suas comunidades negras,
estimulando a interlocução e tecendo uma identificação transnacional. Esta identificação
inclui influências e experiências das comunidades negras em África, mas tece maior
vínculo a partir da realidade diaspórica, com maior repercussão e interlocução no Brasil
das experiências estadunidenses – maior repercussão justificada pelo status preponderante
conquistado pelos EUA na segunda metade do século XX. E as formas de comunicação
desta linguagem política operaram em um contexto linguístico brasileiro conformado pela
ideia de “democracia racial”.
(autóctone).71 E, ainda no século XIX, a retórica da harmonia racial foi mobilizada para
reprimir a organização de pessoas negras, conforme o parecer de rejeição do Conselho de
Estado do Império ao estatuto da Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de
Cor no ano de 1875:
Os homens de cor, livres, são no Império cidadãos que não formam classe
separada, e quando escravos não têm direito a associar-se. A Sociedade especial
é pois dispensável e pode trazer os inconvenientes da criação do antagonismo
social e político: dispensável, porque os homens de cor devem ter e de fato têm
admissão nas Associações Nacionais, como é seu direito e muito convém à
harmonia e boas relações entre os brasileiros.72
Se coube a Gilberto Freyre nos anos 1930 conceder ao discurso de “paraíso racial”
brasileiro a terminologia “democracia”, ainda conforme Antônio Guimarães, foi na década
de 1940 que intelectuais impactados pela leitura freyriana - particularmente Arthur Ramos
71
IGLESIAS, Francisco. Segundo Momento: 1838-1931. In: Historiadores do Brasil. 2000, p. 65-72.
72
GOMES, Flávio. Negros e política (1888-1937). 2005, p. 9.
73
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 146.
74
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 146-147.
31
75
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 149.
76
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 158.
77
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 149-157.
78
STARLING, Heloísa; SCHWARCZ, Lilia. M. “Lendo canções e arriscando um refrão”. In: Revista USP,
n.68. 2005-2006, p. 230.
79
Janet de Almeida e Regional Benedito Lacerda. Pra que discutir com madame/ Por essa vez passa.
Compacto. Continental. 78rpm. 1945.
32
No início dos anos 1950, “pela primeira vez o preconceito foi objeto de penalização
no país através de lei específica.”80 A Lei n°1390, de 3 de julho de 1951, popularmente
conhecida por “Lei Afonso Arinos”, no artigo primeiro “constitui contravenção penal,
punida nos termos desta lei, a recusa, por parte de estabelecimento comercial ou de ensino
de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno
por preconceito de raça ou de cor”, definindo no parágrafo único, que “será considerado
agente da contravenção o diretor, gerente ou responsável pelo estabelecimento.”81 E nas
justificativas da formulação da lei e nos debates legislativos para a sua aprovação, aparece
a compreensão da harmonia racial brasileira. Afonso Arinos de Melo Franco, em um livro
de memórias publicado em 1965 justificou sua ideia da lei a uma postura antinazista desde
a juventude, quando “uma repugnância crescente me invadia contra o racismo”82 e a
episódios de discriminação sofridos por seu motorista negro, José Augusto: “Isto era
demais, no Brasil, sobretudo considerando que os agentes da injustiça eram quase sempre
gringos, ignorantes de nossas tradições e insensíveis aos nossos velhos hábitos de
fraternidade racial.”83
Nos debates para a aprovação da Lei Afonso Arinos, Gilberto Freyre, então um
deputado federal de vertente conservadora, utilizou a ideia de “democracia” ao manifestar
apoio à proposta de lei de seu companheiro de partido: “Numa tal campanha deve-se pôr
em relevo o que há de antibrasileiro, antidemocrático e anticristão, tanto no racismo da
direita quanto no racismo da esquerda que se tenta desenvolver entre nós.”84 A escritora
Rachel de Queiroz endossou o projeto em artigo publicado no periódico Diário de
Notícias, afirmando que ele criava uma barreira de legalidade “às pretensões racistas em
desenvolvimento nesse país”.85 Assim, a fim de barrar “a tentativa de desenvolvimento do
racismo” no Brasil, a lei foi aprovada e, nas palavras de Afonso Arinos, “Não fosse o povo
80
GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo
Franco. In: Topoi, v. 14, n.26. 2013, p. 34.
81
< https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/128801/lei-afonso-arinos-lei-1390-51 > Acesso
27/01/2021.
82
GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo
Franco. 2013, p. 34.
83
GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo
Franco. 2013, p. 35.
84
FREYRE, Gilberto. Tribuna da Imprensa, 19 jul. 1950, p.3. Apud. GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O
antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo Franco. 2013, p. 35.
85
QUEIROZ, Rachel. Diário de Notícias, 15 jul. 1951. Apud. GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O
antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo Franco. 2013, p. 37.
33
brasileiro instintivamente infenso aos preconceitos de raça e a tramitação de uma lei como
a minha teria provocado verdadeiras batalhas.”86
No caso que nos interessa mais de perto aqui, a democracia ‘social e étnica’ de
que falava Freyre, em 1943, ou a ‘democracia social e racial’ como disse
Bastide, em 1944, transformam-se, nos anos 1950, em democracia racial tout
court, em referência direta aos conflitos raciais que começam a desmantelar o
racismo legal do Estados Unidos.87
86
GRIN, Mônica; MAIO, Marcos C. O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo
Franco. 2013, p. 43.
87
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 157, 158.
88
MAIO, Marcos. O Projeto Unesco e a agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. 1999, p.
143.
89
MAIO, Marcos. O Projeto Unesco e a agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. 1999, p.
142.
90
MAIO, Marcos. O Projeto Unesco e a agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. 1999, p.
143.
91
GUIMARÃES, Antônio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 158, 159.
34
Da estrutura da tese.
A tese está formulada em três capítulos com justificativa de recorte simples, cada
qual articulado a partir de um contexto da formulação da Black Music Brasileira e de
difusão da Linguagem Política do Orgulho Negro neste formato da canção brasileira. Cada
capítulo apresenta uma construção com certa medida de independência, contendo
introdução própria, desenvolvimento e conclusão parcial. Os capítulos são construídos a
partir de um argumento central que se conecta e fornece densidade e sustentação à questão
geral da tese.
36
98
DABDAB, José A. T. Dionisismo, poder e sociedade na Grécia até o fim da época clássica. 2004, p. 17.
99
< https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/11/20/homem-negro-e-espancado-ate-a-morte-
em-supermercado-do-grupo-carrefour-em-porto-alegre.ghtml> Acesso 25/01/2021.
41
100
< https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADcia/presidentes -da-c%C3%A2mara-
e-senado-denunciam-racismo-no-caso-da-morte-de-jo%C3%A3o-alberto-1.524178> Acesso 25/01/2021.
101
< https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/11/20/ mourao-lamenta-assassinato-de-homem-negro-em-
mercado-mas-diz-que-no-brasil-nao-existe-racismo.ght ml> Acesso 25/01/2021.
102
< https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/12/11/policia-indicia -seis-por-morte-de-cidadao-
negro-no-carrefour-em-porto-alegre-rs.ghtml> Acesso 25/01/2021.
103
Esta é a definição do conceito de racismo tomada como ponto de partida de análise do robusto livro de
BETHENCOURT, Francisco. Racismos. Das cruzadas ao século XX. 2018, p. 21.
42
ter sido uma das primeiras ocasiões de mobilização do termo, com grande difusão
midiática, por líderes políticos brasileiros, jornalistas e pelo judiciário.
marxista russo Mikhail Bakthin, no início do século XX, apresentou as palavras, os signos
linguísticos, como arena da luta de classes, reivindicando atenção às diferenças na
enunciação conforme o grupo social do interlocutor, tendo em vista que a língua, para o
falante, não se apresenta como norma rígida, mas como comunicação. 104 A mobilização
das palavras como mais uma arena das lutas políticas é particularmente importante para os
chamados novos movimentos sociais, ou “movimentos de identidade”, com o intuito de
fixar ganhos políticos e jurídicos. Retratando o feminismo, a historiadora estadunidense
Rebecca Solnit destaca esse fato, em um tópico significativamente intitulado “Nossas
palavras são nossas armas”:
O termo ‘assédio sexual’, por exemplo, foi criado nos anos 1970, usado pela
primeira vez no sistema legal nos anos 1980, recebeu status legal pela Suprema
Corte em 1986, e ganhou cobertura generalizada da mídia em 1991, no turbilhão
ocorrido depois que Anita Hill testemunhou contra seu antigo chefe, Clarence
Thomas, nas audiências do Senado para a indicação dele à Suprema Corte. 105
No tocante às lutas antirracistas, o recorte do terceiro capítulo desta tese, entre 1978
e 1988, é o cenário no qual as militâncias e intelectualidade negra difundiram o movimento
que levou à consolidação do significado do vocábulo “racismo” como “preconceito
combinado à discriminação racial”; potencializando a difusão de outros importantes
vocábulos políticos antirracistas, como o que fortaleceu a denúncia do “mito da
democracia racial” e o “genocídio do negro brasileiro”, e as manifestações em prol de uma
“segunda abolição”.108 Estes termos repercutiram com intensidade nas lutas antirracistas
104
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 1977, p. 9-103.
105
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. 2017, p. 162, 163.
106
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. 2017, p. 170.
107
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. 2017, p. 140.
108
Os termos “segunda abolição” e “mito da democracia” tiveram sua difusão inicial em momento anterior
ao recorte temporal do terceiro capítulo da tese, retrocedendo às décadas de 1950 e 1960, respectivamente,
como será referenciado no capítulo. Contudo, a densidade política obtida no contexto da redemocratização e
com a emergência pública do Movimento Negro Unificado é potencializada em manifestações nas ruas.
44
Da documentação fonográfica.
109
HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de História. 2012, p. 64.
45
O chamado Big Five, grupo formado pelas companhias EMI, Polygram, BMG-
Ariola, Sony Music e Warner Music, hegemônico desde o início da década de
1990, passou por uma mudança significativa em 1998, quando a Philips vendeu a
Polygram para o Grupo Seagram-Universal, fazendo surgir a Universal Music.
(...) A mesma lógica parece ter animado a fusão, em novembro de 2003, da BMG
com a Sony Music, originando a Sony & BMG Music Enternainment. 111
110
DIAS, Márcia. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008. 2 ed.,
p. 183.
111
DIAS, Márcia. Os donos da voz. 2008. p. 184, 185.
112
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0308200127.ht m> Acesso 20/01/2021.
46
(Negra. EMI. 2003), Wilson Simonal (Wilson Simonal na Odeon [1961-1971]. Universal.
2004), Jorge Ben (Salve Jorge. Universal. 2010), Gilberto Gil (Palco. Warner. 2002), Luiz
Melodia (Três tons de Luiz Melodia. Universal. 2013), Emílio Santiago (Três tons de
Emílio Santiago. Universal. 2014) e Sandra de Sá (Sandra de Sá - anos 80. Discobertas.
2016). Caixas que contém, além dos álbuns com reprodução dos encartes e informações
originais, comumente faixas bônus extraídas de discos compactos e, algumas vezes, textos
explicativos produzidos para o lançamento. Mesmo o único artista estudado na tese que
teve sua produção lançada por pequenas gravadoras do cenário independente, Itamar
Assumpção, teve sua obra completa acessada via uma caixa (Caixa Preta. Sesc Brasil.
2010).
Além dos discos acessados por meio das caixas, a maioria das obras estudadas na
tese foram adquiridos em reedições no formato CD que reproduzem os fonogramas e
também o material gráfico dos álbuns, e também trazendo, eventualmente, faixas bônus
com canções lançadas em compactos contemporâneos ao disco. E, por fim, alguns discos
tiveram o contato limitado ao acesso nas plataformas digitais - contudo, foram apenas
alguns títulos, de menor relevância para a pesquisa. Vale, contudo, esclarecer a quem leia
estas páginas a diferença entre os formatos de discos compactos e álbuns. Quando se fala
da circulação comercial, no Brasil, da música gravada no suporte dos discos, antes do
advento dos CDs, destaca-se três formatos: o “compacto simples”, com espaço para uma
música geralmente de três a cinco minutos em cada lado, totalizando duas canções (na
indústria anglófona, Single), o “compacto duplo”, com espaço para a duração de duas
músicas em cada lado (Extended Play, EP) e o “álbum” (Long Play, LP), em geral com
quinze a vinte minutos de música por lado.
Negro]”, de Toni Tornado), situação na qual a tese se dedicará à análise dos compactos em
seu contexto de lançamento. Salvo esses últimos casos, o álbum será o formato
privilegiado, posto que este, com a maior capacidade de tempo de gravação, permite a
melhor expressão autoral, “uma vez que torna o artista mais importante que o disco.”113 O
sentido da escala de importância no caso, é possível exemplificar, está na diferença entre o
público consumidor que procura, em uma loja, “o disco da canção ‘Primavera’” e aquele
que busca “o disco Tim Maia de 1970”.
113
DIAS, Márcia. Os donos da voz. 2008. p. 61.
48
Embora a análise proposta para a presente tese não persiga a força entoativa da
canção ou o gesto cancional, a ênfase de Luiz Tatit na dimensão de fala é estimulante,
assim como sua afirmação que os artistas “preparavam suas canções para a gravação, mas
não deixavam de usá-las como veículo direto de comunicação”. 120 Afinal, compreensão
114
HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de História. 2012, p. 41.
115
TATIT, Luiz. O século da canção. 2008, p. 41.
116
TATIT, Luiz. O século da canção. 2008, p. 34.
117
TATIT, Luiz. O século da canção. 2008, p. 151.
118
NAPOLITANO, Marcos. História & música popular. 2002, p. 11.
119
TATIT, Luiz. O século da canção. 2008, p. 69.
120
TATIT, Luiz. O século da canção. 2008, p. 42.
49
similar foi expressa por Wilson Simonal, em reportagem publicada em março de 1967
sobre sua canção antirracista “Tributo a Martin Luther King”, na qual afirma, a respeito do
processo de criação: “Acho que a música, em primeiro lugar, foi feita para divertir. Mas é
evidente que através da música você pode fazer um movimento de contestação, de
informação.”121
121
Correio da Manhã. Rio de Janeiro. 04 de dezembro de 1970. Caderno anexo, p. 03. O cantor ressaltou a
importância do potencial de comunicação no qual justificou o seu movimento de contestação ou informação.
122
DARNTON, Roberto. As notícias de Paris: uma pioneira sociedade da informação. In: Os dentes falsos de
George Washington: Um guia não convencional para o século XVIII. 2005, p. 40-90.
50
no leitor ou, para esta tese, no ouvinte. 123 Assim, entre as muitas pessoas envolvidas em
meio à “história da canção popular e da audiência”, a tese priorizará os artistas, sobretudo
os intérpretes das obras estudadas. E essas obras terão sua leitura estabelecida como
discursos, formas de intervenção no mundo em que vivem, em diálogo com o seu contexto.
Discursos que em alguns casos são potencializados a partir do conceito defendido no disco
no qual foram inseridos. A música e os discos apresentam peculiaridades que os diferencia
da literatura em suas possibilidades como suporte e veículo de ideias políticas, e, para esta
tese, tais peculiaridades podem potencializar a mensagem, a partir da entoação, melodia, o
conceito do disco e a arte gráfica.
123
Ver nota de rodapé 58.
51
O censo de 1950 foi o último a nos fornecer indicadores sociais básicos relativos
à educação e ao setor da atividade econômica da mulher negra. A partir daí,
pode-se constatar: seu nível de educação é muito baixo (a escolaridade atinge, no
máximo, o segundo primário ou fundamental) e o analfabetismo é predominante.
Do ponto de vista da atividade econômica, apenas cerca de 10% atuam na
agricultura e/ou na indústria (sobretudo têxtil, e em termos de Sudeste -Sul); os
90% restantes estão concentrados no setor de serviços pessoais. 126
124
A apresentação da metáfora do “efeito polinizador” para abordar a distribuição na indústria fonográfica
está em MORAIS, Bruno. “Sim, sou um negro de cor”. 2016, p. 167-176.
125
GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da
mulher. In: Por um feminismo afro-latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 44.
126
GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da
mulher. In: Por um feminismo afro-latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 40.
52
Por fim, cabe avisar que o autor da tese decidiu adotar duas liberdades na
explicitação das referências da pesquisa, ambas justificadas por uma certa dose de
compromisso político e didático. Nas breves experiências de atuação docente para com a
graduação, foi notável o interesse de estudantes pela indicação de referências bibliográficas
escritas por mulheres e por pessoas negras, homens e mulheres. Com o objetivo de facilitar
a localização das mulheres na bibliografia mobilizada, a opção foi adotar a referência no
texto e em notas com a inclusão sempre do primeiro nome, tendo em vista que a suposta
universalidade do sobrenome muitas vezes oblitera a autoria feminina.127 Quanto à
produção intelectual negra, as possibilidades de destaque são um pouco mais difusas. A
opção, portanto, foi de demarcar na bibliografia final da tese em sublinhado as referências
escritas por pessoas negras. Apesar da consciência dos limites e dificuldades inerentes a
esta opção - particularmente na produção brasileira, país no qual os critérios de
classificação racial são fluídos e a identificação torna-se confusa e circunstancial entre a
população miscigenada -, essa opção foi inspirada no que o jurista Silvio Almeida ressaltou
como a “discriminação positiva, definida como a possibilidade de atribuição de tratamento
diferenciado a grupos historicamente discriminados com o objetivo de corrigir
desvantagens causadas pela discriminação negativa – a que causa prejuízos e
desvantagens.”128
127
Agradeço ao historiador e amigo Cássio Bruno de Araújo Rocha por essa sugestão, em uma conversa
informal ocorrida muitos anos atrás, mas estimulante e marcante.
128
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? 2018, p. 26.
53
Capítulo Um:
De 1960 a 1969:
Os “primórdios” da Black Music brasileira e da Linguagem Política do
Orgulho Negro na canção brasileira.
Introdução.
129
Elza Soares. O que se cala (Douglas Germano). Deus é Mulher. Álbum. Deckdisc, 2018. Faixa 01.
Observação: Esta tese foi finalizada e entregue à banca antes do falecimento da Elza, em 20/01/2022.
130
<https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/24/elza-soares-comemora-90-anos-com-
negao-negra-com-flavio-renegado-ouca.htm> Acesso 06/03/2021.
131
Após uma queda ocorrida durante uma apresentação musical em 1999, Elza Soares passou a se locomove r
com dificuldade, o que foi agravado no decorrer dos dez anos seguintes, com uma operação na coluna
vertebral, uma cirurgia na região lombar, outras duas operações seguidas devido a uma diverticulite aguda,
uma colostomia e um acidente de carro. Ver CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 309-345.
132
<https://web.archive.org/web/20160629121012/http://www.jornaldepiracicaba.com.br/ cultura/2016/03/a_
mulher_do_fim_do_mundo> Acesso 06/03/2021.
133
< http://g1.globo.com/musica/noticia/2016/06/veja-os-vencedores-do-27-premio-da-musica-
brasileira.html> Acesso 06/03/2021.
134
< https://gshow.globo.com/Musica/noticia/paula-fernandes-leva-grammy-latino-de-melhor-album-de-
musica-sertaneja.ghtml> Acesso 06/03/2021.
55
estúdio lançado por Elza, consolidou um processo de rejuvenescimento de seu público, que
ocorria desde o impacto da regravação da canção “A Carne”, lançada pela cantora no
álbum Do cóccix até o pescoço (2002), e que possibilitou o reavivamento de uma carreira
bastante fragilizada no decorrer dos vinte anos anteriores.
A guinada na carreira de Elza foi catalisada pela união, em torno da artista, dos
jovens empresários Pedro Loureiro e Juliano Almeida e do produtor musical (e baterista)
Guilherme Kastrup, que criaram uma bem sucedida estratégia de renovação comercial para
a cantora.135 Musicalmente, o projeto incluía um “rejuvenescimento” da sonoridade, enfim
abandonando a identidade estética que desde os anos 1960 supostamente limitava a artista
ao posto de sambista (o que há décadas era criticado pela cantora como uma clausura),
agora fundindo o samba ao rap, guitarras e música eletrônica, num formato que foi
etiquetado comercialmente como “vanguarda paulista”; e uma mudança temática,
abordando enfaticamente a negritude e questões de gênero, como a denúncia à violência
doméstica – temas associados à trajetória publicamente conhecida da artista. 136 A outra
dimensão da estratégia incluía a valorização da imagem pública da artista e divulgação de
sua trajetória biográfica a partir de duas iniciativas. A primeira foi o convite a um
conhecido jornalista para escrever um novo livro biográfico: Zeca Camargo (então
apresentador do programa dominical Fantástico na Rede Globo), que publicou a obra Elza
(2018), com grande divulgação nas mídias. 137 A segunda iniciativa foi outro convite, desta
vez à produtora cultural Andrea Alves, da empresa Sarau Agência, para produzir um
grande espetáculo teatral biográfico sobre a cantora. Também intitulado Elza, o espetáculo
estreou em 2019 e rodou o Brasil, com texto inédito de Vinícius Calderoni, dialogando
com produções teóricas do Feminismo Negro (Conceição Evaristo e Angela Davis), e uma
equipe numerosa, incluindo quatro pessoas na direção, elenco de sete atrizes/cantoras, seis
musicistas e uma ampla equipe técnica, e amparado no repertório dos dois discos mais
recentes da cantora, A mulher do fim do mundo (2015) e Deus é mulher (2018).138
135
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 309-345.
136
< https://www.nsctotal.com.br/noticias/elza-soares-de-vitima-de-violencia-domestica-a-deusa-na-sapucai>
Acesso 06/03/2021.
137
< https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/aos -80-anos-elza-soares-anuncia-biografia-preparem-
se/> Acesso 06/03/2021.
138
<https://palcoteatrocinema.com.br/2019/01/25/elza -no-imperator/> Acesso 06/03/2021.
56
139
O potencial para diferentes efeitos narrativos diante de uma mesma história de vida permite ressaltar,
conforme Bourdieu, que a “construção da noção da trajetória como série de posições sucessivamente
ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando
sujeito a incessantes transformações.” [p. 189]. Ver BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO,
Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & Abusos da História Oral. 2006, p. 183-191.
140
Para um apanhado geral e introdutório, ver AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. 2019.
141
LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (org.)
Pensamento feminista. Conceitos fundamentais. 2019, p. 357-77.
142
Título que evoca um momento emblemático da trajetória inicial da cantora, e amplamente mobilizado nas
referências biográficas sobre ela, quando a então adolescente amadora Elza participou do programa de
calouros de Ary Barroso e foi questionada pelo apresentador, jocosamente, sobre sua aparência e de onde ela
teria surgido, no que prontamente respondeu “do mesmo lugar que você, ‘Seu’ Ary: o Planeta Fome”. Ver o
capítulo 3 de CAMARGO, Zeca. Elza. 2019.
57
143
SOLIDADE, Luana Lise Carmo da. Blues e Samba traduzindo corpos de mulheres negras em
performances de Billie Holiday e Elza Soares. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal da Bahia, 2017,
p. 18.
144
SOUZA, Francielle Neves. A desconstrução dos mitos sobre a mulher negra: um olhar sobre Elza Soares,
Tássia Reis e Mc Soffia. Monografia (Graduação em Jornalismo). Universidade Federal de Ouro Preto, 2018.
145
EVANGELISTA, Lucas Ramalho. “Minha fé quem faz sou eu”: identidade e religião em “Deus é
Mulher” (2018). Monografia (História). Universidade de Brasília, 2019.
146
ALMEIDA, Alexandre B.; FARIAS, Michele W. S. Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim: a
violência doméstica exteriorizada por Elza Soares na canção Maria da Vila Matilde. In: Anais Intecom. XIX
Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste . Fortaleza. CE. 29/06 a 01/07/2017, p. 1-10.
CORAÇÃO, Cláudio R.; SOUZA, Francielle. N. de. Da tensão ao sublime: potencialidades estéticas da
canção “Mulher do fim do mundo”, de Elza Soares. Revista Extraprensa, v. 12, n. 2, p. 94-113, jan./jun.
2019. LIMA, Lilian C. B.; SILVA, Gabriela C. Discurso biográfico de (re)existência negra na poética sonora
e imagética de “A mulher do fim do mundo”, de Elza Soares. In: Revista Philologus, Ano 26, n. 78 Supl. Rio
de Janeiro: CiFEFiL, set./dez. 2020, p. 1423-1440. ALVES, Lidiane C.; FIUZA, Adriana A. F. Elza Soares e
a insubmissão das Marias da Vila Matilde: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. In: Revista
Feminismos. Vol.8, N.2, Maio – Agosto 2020, p. 194-206.
58
marca os trabalhos da artista desde seu primeiro sucesso, “Se acaso você chegasse”,
lançado em compacto em dezembro de 1959, a partir da hibridação do Samba de Gafieira
com elementos da vertente jazzística New Orleans, da qual o nome mais consagrado é o
trompetista e cantor negro estadunidense Louis Armstrong.
O linguista, compositor, cantor e violonista Luiz Tatit iniciou seu livro O século da
canção explicando o título da obra ao atribuir ao século XX a “criação, consolidação e
discriminação de uma prática artística que além de construir a identidade sonora do país, se
pôs em sintonia com a tendência mundial de traduzir os conteúdos humanos relevantes em
pequenas peças formadas de melodia e letra.”147 A junção de melodia e letra que configura
o formato canção, segundo o autor, ocorre no Brasil em uma prática cultural que mistura
elementos de origem africana, europeia e indígena.
147
TATIT, Luiz. O século da canção. 2004, p. 11.
148
HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de história. 2012, p. 31.
149
CANCLINI, Nestor G. As culturas híbridas em tempos de globalização. In: Culturas Híbridas: estratégias
para entrar e sair na modernidade. 2008, p. XVIII-XIX.
150
MÁXIMO, João. Discoteca Brasileira do Século XX - 1900-1949. 2007, p. 7.
60
151
MÁXIMO, João. Discoteca Brasileira do Século XX - 1900-1949. 2007, p. 5.
152
MÁXIMO, João. Discoteca Brasileira do Século XX - 1900-1949. 2007, p. 21.
153
MÁXIMO, João. Discoteca Brasileira do Século XX - 1900-1949. 2007, p. 8.
154
CALADO, Carlos. Pixinguinha. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v.4] 2010, p. 27.
155
CALADO, Carlos. Pixinguinha. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v.4] 2010, p. 28.
61
para o argumento desta tese, ao propiciar encontros com o jazz. Após uma temporada em
Paris, em 1922: “os Batutas trouxeram algumas novidades, especialmente nos aspectos do
visual do conjunto e de sua instrumentação (Pixinguinha acrescentou o saxofone à sua
flauta e Donga trocou o violão pelo banjo)”; assim, conforme Carlos Calado: “Era evidente
a influência do jazz, gênero que naquele momento vivia uma fase de grande popularidade
na Europa.”156 A evidência de tal influência, cabe ressaltar, deve-se não apenas à adoção
de instrumentos como saxofone e banjo, mas sim de uma forma de tocar jazzística.
156
CALADO, Carlos. Pixinguinha. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v.4] 2010, p. 29.
157
FLÉCHET, Anaïs. Madureira chorou... em Paris: a música popular brasileira na França do século XX.
2017, p. 54.
158
NETO, Lira. Uma história do samba: volume 1 (As origens). 2017, p. 135.
62
Oito Batutas, estendendo-se ao Rei do Samba, Sinhô - como na gravação de “Não sou baú”
pela Jazz Band Sul-Americano, de Romeu Silva (1925), e de “Viva a Penha” (1926) e
“Quem falla de mim tem paixão” (1927) pela American Jazz Band Silvio de Souza.159 Na
obra de Pixinguinha, dois grandes clássicos da música nacional, consagrados até os dias
atuais, foram criticados à época por explicitarem a interlocução com o jazz, conforme o
jornalista Carlos Calado:
O argumento que a presente tese busca incluir neste tópico é que o formato canção,
fixado e difundido pelo suporte fonograma, ao potencializar a difusão de mensagens
159
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil nos anos 1960. Dissertação (Mestrado. História). Universidade Federal de Minas Gerais.
2016, p. 194.
160
CALADO, Carlos. Pixinguinha. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v.4] 2010, p. 34, 35.
161
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil nos anos 1960. Dissertação (Mestrado. História). Universidade Federal de Minas Gerais.
2016, p. 188.
162
ABREU, Martha; DANTAS, Carolina V. É chegada “a ocasião da negrada bumbar”: as comemorações da
Abolição, música e política na Primeira República. In: Vária História. 2011, p. 101. Grifo Nosso.
63
O argumento apresentado neste tópico inicial da tese é que entre os temas políticos
documentados desde os primeiros anos da indústria fonográfica, aparece a expressão da
Linguagem Política Negra Antirracista: denúncias de mazelas sociais a partir das vivências
cotidianas, que evidenciam e veiculam publicamente as limitações e contradições do
163
ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. 2010, p. 65-101.
164
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O samba, a opinião e outras bossas. In: CAVALCANTI,
Berenice, STARLING, Heloisa, e EISENBERG (orgs.). Decantando a República, v. 1: inventário histórico e
político da canção moderna brasileira. 2004, p. 66.
165
NAPOLITANO, Marcos. História & Música - história cultural da música popular. 2002, p. 08. Também
o jornalista Franlin Martins demarcou: “o fato é que, nestes 101 anos, a nossa música não só marcou de perto
a política como mostrou enorme agilidade para responder com rapidez aos diferentes episódios que surgiam.”
Em: MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República.
Volume 1 - de 1902 a 1964. 2015, p. 17.
64
166
ABREU, Martha. O “crioulo Dudu”: participação política e identidade negra nas histórias de um músico
cantor (1890-1920). In: Topoi, vo. 11, n. 20. 2010, p. 94.
167
MÁXIMO, João. Sinhô. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 25], 2010, p. 20.
168
MÁXIMO, João. Sinhô. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 25], 2010, p. 23.
169
MÁXIMO, João. Sinhô. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 25], 2010, p. 23, 24.
170
NETO, Lira. Uma história do samba: volume 1 (as origens). 2017, p. 171.
65
Nas primeiras canções gravadas por Carmem Miranda houve registros da temática
religiosa afro-brasileira. Em 1930, na segunda gravação de Carmem, a “marcha
carnavalesca Yaya, Yoyo, tendo do outro lado Burucutum, incursão em tema afro (com a
consultoria de seu babalaô Assumano) do rei do samba Sinhô, sob o pseudônimo J.
Curanji,”172 Burucuntum estou tendo o que der/ congar na folia não é pra qualquer,
ressaltava o refrão. Segundo o jornalista Tárik de Souza, Carmem retornou ao tema em
1932 em “Feitiço Gorado”, também de Sinhô: Mas eu que sou do Ogum a filha do
coração/ Já despachei com Exum essa maldita paixão. Fora das canções de Sinhô o tema
também se fez presente, como “Sete Flechas”, de Freitas Guimarães gravada por Francisco
Alves, em 1928: Até meu nome/ já botaram na macumba/ Pois me contaram/ lá não fui
nem vi/ que a macumba é da boa/ no ponto de Catumbi. Estas primeiras décadas do século
XX também instituíram um padrão de racialização no mercado fonográfico no qual pessoas
negras predominam na composição, mas intérpretes são pessoas brancas, ou de pele clara.
A chegada dos anos 1930, porém, apresentou mais mudanças para o samba do que a
tecnologia de gravação elétrica. E, conforme João Máximo: “Foi por pura coincidência -
mas coincidência que não deixa de intrigar os historiadores - o fato de o samba da Cidade
Nova, o dos volteios do maxixe, praticamente desaparecer quando Sinhô morre, em 1930,
duas semanas antes do que seria seu 31° aniversário.”173 Assim como o sucesso “Pelo
Telefone” aparece como um marco da consolidação da vertente Cidade Nova, o sucesso da
gravação de “Com que roupa?” no carnaval de 1931 - composta e gravada por Noel Rosa,
171
NETO, Lira. Uma história do samba: volume 1 (as origens). 2017, p. 170.
172
SOUZA, Tárik de. Livreto do box Carmem Miranda. RCA/BMG. 1998, p. 7.
173
MÁXIMO, João. Discoteca Brasileira do Século XX - 1900-1949. 2007, p. 27.
66
O outro tipo de samba nasce e evolui a partir dos morros, ocupados depois da
Abolição por descendentes bantos egressos do Vale do Paraíba. Mais lento, de
frases melódicas mais longas, um certo acento nostálgico, não para dançar, mas
para cantar em rodas ao pé do barraco ou, quando a polícia permitisse, nos
blocos que desfilavam em fevereiro.174
Sobre a transição entre os dois modelos de samba, uma das interpretações de maior
influência foi publicada em 2001 no livro Feitiço Decente, do escritor Carlos Sandroni. Se
o termo proposto pelo escritor para retratar a vertente de samba do Cidade Nova -
“paradigma do tresillo” - não se consolidou na bibliografia sobre a música brasileira, o
termo proposto para retratar a vertente hegemônica a partir dos anos 1930 tornou-se uma
referência nas obras sobre o tema: “paradigma do Estácio”. As primeiras gravações de
compositores da vertente ocorreram com Francisco Alves, em 1928: “A malandragem” de
Bide, e “Me faz carinhos”, de Ismael Silva - canção que abordava a linguagem antirracista
ao referenciar o preconceito capaz de perpassar as escolhas amorosas, preterindo as
pessoas negras retintas: Se eu fosse homem branco/ Ou por outra mulatinho/ talvez eu
tivesse sorte/ de gozar os teus carinhos. Muitos dos sambas desta nova vertente foram
lançados por novas gravadoras surgidas da expansão da indústria fonográfica. Contudo, a
transição musical não ocorreu de forma tão abrupta quanto, por vezes, a bibliografia
sugere; e os fonogramas documentam os pontos de encontro entre as duas vertentes:
174
MÁXIMO, João. Noel Rosa (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v. 1). 2010, p. 16, 17.
175
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor”: Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil dos anos 1960. 2016, p. 196. Para as referências que sustentaram essa análise, ver
67
É importante esclarecer que a diferença entre as duas vertentes do samba não está
no predomínio da execução ao violão - que já constava em disco desde o Crioulo Dudu,
mas foi melhor captada com a tecnologia de gravação elétrica. O próprio Sinhô introduziu
em disco a performance “voz e violão” para o samba ao realizar a primeira gravação de seu
aluno Mário Reis, em 1928, com as canções “Que vale a nota sem o carinho da mulher” e
“Carinhos de vovô”, valorizando a interpretação contida e o canto falado de Mário em um
duo de violões, executados por Sinhô e Donga. 177 Também Carmem Miranda teve em seu
primeiro padrinho musical, o compositor e violonista Josué de Barros, acompanhante em
duo de violões em sua estreia em disco na gravadora RCA com as canções “Triste Jandaia”
e “Dona Balbina”, composições de Josué de Barros, lançadas em janeiro de 1930. 178 Não
sendo, portanto, no destaque dado ao violão, a diferença entre o samba Cidade Nova e o do
Paradigma do Estácio está na orientação rítmica. Segundo João Máximo:
CALADO, Carlos. Pixinguinha (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v. 4). 2010; GIRON, Luiz
A. Livreto do box Mário Reis, um cantor moderno. BMG, 2004; VIANNA, Luiz Fernando. Ismael Silva.
(Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v. 21). 2010.
176
JUBRAN, Omar. Livreto box Noel Pela Primeira Vez. FUNARTE. 2001, p. 22.
177
<https://dicionariompb.com.br/mario-reis/dados-artisticos> Acesso 13/03/2021.
178
SOUZA, Tárik. Livreto box Carmem Miranda. RCA/BMG. 1998, p. 7. Sobre as duas canções citadas,
ver, no mesmo box, CD1, faixas 01 e 02.
68
samba, mas maxixe, e deu como modelo o seu “Se você jurar”. Donga rebateu,
garantindo que “Se você jurar” não era samba, mas marcha. Samba, para a turma
de Sinhô, tinha as mesmas síncopes, as mesmas baixarias herdadas do maxixe.
Samba, para os bambas do Estácio, era mais lento, de notas longas, não para
dançar, como os dos baianos, mas para se cantar nos desfiles dos blocos que
dariam nas primeiras escolas.179
A argumentação deste tópico da tese, contudo, visa destacar que apesar dessas
marcantes diferenças, nos primeiros anos da década de 1930, pelo menos, os fonogramas
documentaram uma aproximação entre os dois gêneros, com as composições e
instrumentos do Paradigma do Estácio convivendo com as influências jazzísticas operadas
pela vertente Cidade Nova. No repertório inicial de Carmem Miranda, entre as gravações
lançadas em 1932, aquelas gravadas com acompanhamento do Grupo do Canhoto (“E
depois”, “Bamboleô”, “Quando me lembro”, “Mulato de qualidade”, “Por causa de você”,
por exemplo) e com a American Jazz (“Nosso amô veio dum sonho”, por exemplo)
destacam solos e contrapontos de trompetes e saxofones, advindos do encontro do samba
com o jazz.180 A partir de janeiro de 1933, grande parte das gravações da cantora passaram
a ser acompanhadas por Diabos do Céu e o Grupo da Guarda Velha, dirigidas e arranjadas
por Pixinguinha. A trajetória de Mário Reis entre 1932 e 1935, na gravadora Victor/RCA,
também foi marcada por Pixinguinha e o livreto escrito por Luís Antônio Giron para o box
Mário Reis. Um cantor moderno, esclarece sobre as gravações:
Com a Diabos do Céu e o Grupo Guarda Velha, Carmem Miranda e Mário Reis,
entre 1932 e 1935, lançaram, sozinhos ou como dupla, canções de compositores hoje
canônicos da sonoridade do Estácio, como Cartola, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Assis
179
MÁXIMO, João. Sinhô (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v. 25). 2010, p. 40.
180
Box Carmem Miranda. RCA/BMG. 1998, CD2, faixas 01 a 11.
181
GIRON, Luiz A. Livreto do box Mário Reis, um cantor moderno. BMG, 2004, p. 10.
69
Valente, Ary Barroso, Braguinha, Nássara, Bide, Marçal, Kid Pepe etc. 182 A transição entre
as sonoridades do samba, porém, não foi a única ou mais impactante mudança vivida pela
sociedade brasileira na década de 1930. Um sobressalto atingiu a jovem República do
Brasil no final do ano de 1930, com um movimento armado de golpe de Estado realizado
concomitantemente em diversas regiões do país. O golpe de Estado impediu a posse do
presidente eleito Julio Prestes, subindo ao poder federal uma junta militar que, em seguida,
cedeu o poder ao então governador (ou, nos termos da época, “presidente do estado”) do
Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas. A partir de então, o Brasil passou a viver um governo
autoritário, que legislava por decretos (principalmente até 1934, quando foi promulgada
uma nova Constituição) e que nomeou interventores para o controle executivo dos estados
da União. O quadro ditatorial foi agravado em mais um Golpe de Estado, realizado por
Vargas, com a promulgação da Constituição de 1937, que impediu as eleições
presidenciais então previstas, que possibilitariam a transição do poder federal. Assim,
Getúlio Vargas consolidou um governo autoritário, que foi intitulado de Estado Novo.
182
Além do box citado, dedicado à Mario Reis, o Box Carmem Miranda. RCA/BMG. 1998, também já
citado, encobre a produção da cantora entre os anos de 1930 e 1933 em três CDs que englobam 66
fonogramas.
183
Marcos Rodrigues dos Santos. O que pretendem os frentenegrinos brasileiros com o nome de “Frente
Negra Brasileira”. A voz da Raça, 3 (62) fevereiro, 1937, p. 1. Apud. PINTO, Regina Pahim. O movimento
negro em São Paulo: luta e identidade. 2013, p. 89.
184
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento. [Coleção Retratos do Brasil Negro] 2009, p. 47.
70
outros estados, como Minas Gerais e Espírito Santo.”185 Porém, apesar de se tornar uma
organização negra de caráter massivo, contando com milhares de integrantes pelo país, a
FNB teve vida curta e suas atividades foram encerradas em dezembro de 1937 com a
proibição das organizações sociais imposta pelo Estado Novo de Vargas. 186
Vale a pena lembrar, ainda, o “milagre” operado nos anos 1930, quando a
mestiçagem de mácula se transforma na nossa mais profunda redenção. A partir
de então a capoeira e o candomblé viraram “nacionais”, do mesmo modo qu e o
samba e o próprio futebol, o qual era destituído de sua identidade inglesa e se
transformava - como em um passe de mágica - numa marca de brasilidade.189
185
PINTO, Regina Pahim. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. 2013, p. 110.
186
PINTO, Regina Pahim. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. 2013, p. 92. Para uma visão
geral sobre a FNB e ramificações, BACELAR, Jefferson. A Frente Negra Brasileira na Bahia. In: Afro-Ásia,
n° 17. 1996, p. 73-85.
187
Sobre o Trabalhismo a mais consagrada referência bibliográfica é GOMES, Angela de Castro. A Invenção
do Trabalhismo. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. (1°ed. 1988) Sobretudo entre as páginas 175 e
264.
188
“A princípio conhecida como ‘comida de escravos’, a feijoada se converte em ‘prato nacional’,
carregando consigo a representação simbólica da mestiçagem. O feijão (preto ou marrom) e o arroz (branco)
remetem metaforicamente aos dois grandes segmentos formadores da população.” SCHWARCZ, Lilia
Moritz. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. 2012, p. 58, 59.
189
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Imaginar é difícil (porém necessário). In: ANDERSON, Benedict.
Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. 2017, p. 16.
71
No Brasil, a nação foi formada por um amálgama de crioulos, cuja origem étnica
e racial foi “esquecida” pela nacionalidade brasileira. A nação permitiu que uma
penumbra cúmplice encobrisse ancestralidades desconfortáveis. 190
Contudo, o processo não teria ocorrido sem resistências por parte de setores da
sociedade mais preconceituosos e/ou relutantes às culturas negras, que propunham a
190
GUIMARÃES, Antônio S. A. Racismo e Antirracismo no Brasil. 3° ed. 2009 (1° ed. 1999), p. 47, 48.
191
GUIMARÃES, Antônio S. A. Racismo e Antirracismo no Brasil. 3° ed. 2009 (1° ed. 1999), p. 64.
192
PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. 2015, p.73.
72
“higienização” e moralização do samba. 193 Apesar dos detratores, porém, o samba foi
alçado à condição de símbolo musical mais expressivo da nacionalidade brasileira; e o
período de emergência, fixação e consolidação do “Paradigma do Estácio”, os anos 1930,
fixou-se como os “anos de ouro” da música popular brasileira. E, assim, transformado em
símbolo da cultura nacional, a consagração do samba como prática cultural eclipsou a
vertente anterior e seu histórico de hibridações com o jazz surgido em Nova Orleans. As
obras acadêmicas de análise da transformação do samba em símbolo nacional tomam como
objeto privilegiado a produção dos morros cariocas, como a interpretação marxista de
Magno Bissoli Siqueira em Samba e identidade nacional: das origens à era Vargas (2012)
ou a leitura apologética à harmonia racial, seguindo as teorias de Gilberto Freyre, proposta
por Hermano Vianna em O Mistério do samba (2012).
Para o que mais interessa ao argumento deste tópico da presente tese quanto aos
temas do cancioneiro popular, porém, as mudanças surgidas a partir do novo cenário
político fomentaram, progressivamente, uma importante modificação no contexto
linguístico a partir do qual a Linguagem Política Negra Antirracista das canções podia
intervir no debate público. Apresentando de forma esquemática: se no período entre os
anos de 1900 e 1930 a linguagem antirracista nas canções intervia em um contexto
conformado pelas contradições e limitações da igualdade prometida pelo discurso
republicano; no período seguinte, a partir da década de 1930, a linguagem antirracista nas
canções opera sob o contexto da fixação da representação de “democracia racial” como
discurso oficial das relações raciais brasileiras – a afirmar que a igualdade entre pessoas
negras e brancas já estava instituída. A modificação é expressiva posto que, no primeiro
cenário, é possível ler as ações políticas realizadas através das canções como parte da
reivindicação por cidadania de uma expressiva parcela da população brasileira excluída das
benesses prometidas pela República; e, no segundo cenário, o tema das canções é inserido
em um contexto no qual o discurso oficial apresenta a “harmonia racial”, e a tomada como
símbolos nacionais de elementos culturais de origem negra, como coroação da inexistência
de discriminação racial e preconceito no país. É este o momento de construção e fixação da
“democracia racial como contexto” discursivo para os atos de fala nas canções.
193
PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. 2015, p.75.
73
promoveu políticas públicas voltadas para as necessidades específicas das parcelas negras
da sociedade. Contudo, mesmo nesta inclusão cultural, a adoção de algumas práticas
culturais negras (como o samba e a culinária, notadamente a feijoada), coexistiu com a
perseguição e repressão explícita às religiões de matriz afro-brasileira.194 Neste cenário, o
impacto da temática das religiosidades afro na linguagem negra antirracista veiculada pelas
canções adquire particular relevância. Esta temática nos sambas foi estudada mais
profundamente em um projeto desenvolvido por o grupo de pesquisas comandado pelos
antropólogos da Universidade de São Paulo Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva. E o
projeto resultou no artigo: Foi conta para todo canto: as religiões afro-brasileiras nas
letras do repertório musical popular brasileiro. Analisando uma seleção de sambas
lançados entre 1928 e 1994, os antropólogos concluem:
Sobre o diálogo das religiões afro-brasileiras expresso nas canções pelo plano
discursivo, Rita Amaral e Vagner Silva destacam que os sambas: “Descrevem, entre outros
temas, a pobreza, os amores, traições, a malandragem, a comida, o jogo, a política, e,
permeando tudo isso, frequentemente, o papel da macumba e do feitiço como instrumentos
de interferência em favor próprio nas vicissitudes do dia-a-dia.”196 Verticalizando nos
temas afro-religiosos no período da ditadura Vargas, argumentam que: “Os candomblés e
umbanda surgem, nas canções deste período, ainda, como ambientes significativos para a
sociabilidade e auto-afirmação dos grupos pobres, negros e mestiços, associados aos
morros e subúrbios.”197 Destacam o repertório de Carmem Miranda a partir de “Etc”,
composição de Assis Valente, lançada em 1933, que contém o verso Meu pai é o homem
da muamba/ O grande e conhecido candomblé (Bahia). E prosseguem: “Outro tema
194
A respeito, ver OLIVEIRA, Nathalia Fernandes de Oliveira. A repressão policial às religiões de matriz
afro-brasileiras no Estado Novo (1937-1945). Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade
Federal Fluminense, 2015.
195
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 233.
196
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 193.
197
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 234.
74
escolhido por ela e que tem íntima relação com o candomblé foi o da comida vendida pelas
baianas, que incluía os mesmos quitutes oferecidos aos orixás e conhecidos como ‘comidas
de santo’.”198 Os autores aqui se referem à gravação de “No tabuleiro da baiana”,
composição do mineiro - e tão branco quanto a Carmem, além de oriundo das classes
médias e graduado em Direito - Ary Barroso, lançada em 1936. Para os termos desta tese,
aqui a voz de Carmem não veicula a Linguagem Política Negra Antirracista, embora a
canção possa ser compreendida como um exemplo de uma linguagem antirracista. “Nos
tabuleiros das baianas havia o acarajé com vatapá (comida volitiva de Iansã), a canjica, o
ekô, o ebô e o mungunzá (de Oxalá), o abará (de Xangô), o amalá ou caruru (de Xangô e
de Ibeji), entre outras.” No período dessa performance, Carmem passa a difundir uma
imagem estereotipada de baiana, que a tornou um símbolo nacional. O artigo ainda destaca
“Yaô” (Pixinguinha/Gastão Vianna), gravada por Pixinguinha em 1938:
Esta música, gravada num período em que as religiões afro -brasileiras eram
reprimidas até com violência, refere-se a uma festa de iaô (cerimônia iniciática
do candomblé) aludindo à sociabilidade que se estabelece nos terreiros. Usa para
isso termos africanos como iaô (iniciada), akikó (galo), adié (galinha), jacutá
(terreiro) e nomes de orixas e outras entidades espirituais como Oxalá, Ogum,
Preto-velho, Xangô, etc. (...) Percebe-se, ainda, nessa composição, valores
religiosos sendo afirmadas para o próprio grupo e para a sociedade mais ampla,
um dos pelos quais parcelas de significado religioso foram, aos poucos,
transmitidas para outros espaços, mais abertos, da cultura. 199
198
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 202.
199
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro-brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 195, 196.
75
200
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 203.
201
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner G. Foi conta para todo canto: as religiões afro -brasileiras nas letras do
repertório musical popular brasileiro. In: Afro-Ásia, 34, 2006, p. 203.
76
assim como outros termos, para descrever as características físicas das pessoas”
(Frazier 1942: 292, tradução e itálicos meus).202
De fato, a ideia de “cor”, apesar de afetada pela estrutura de classe (daí por que o
“dinheiro embranquece”, assim como a educação), funda-se sobre uma noção
particular de “raça”. Tal noção, ainda que gire em torno da dicotomia
branco/negro, tal como no mundo anglo-saxônico, é específica na maneira como
define “branco”. No Brasil, o “branco” não se formou pela exclusiva mistura
étnica de povos europeus, como ocorreu nos Estados Unidos com o “caldeirão
étnico”; ao contrário, como “branco” contamos aqueles mestiços e mulatos
claros que podem exibir os símbolos dominantes da europeidade: formação cristã
e domínio das letras.
202
GUIMARÃES, Antônio S. A. Racismo e Antirracismo no Brasil. 3° ed. 2009 (1° ed. 1999), p. 45.
203
GUIMARÃES, Antônio S. A. Racismo e Antirracismo no Brasil. 3° ed. 2009 (1° ed. 1999), p. 50,51.
77
Alegre, capital do Rio Grande do Sul, surgiu a União dos Homens de Cor que, em 1948
(apenas três anos após o fim do Estado Novo, portanto) havia ramificado por outros dez
estados brasileiros: Minas Gerais, Santa Catarina, Bahia, Maranhão, Ceará, São Paulo,
Espírito Santo, Piauí, Paraná e o distrito federal. 204 E no ano seguinte, 1944, foi fundado
em São Paulo, por iniciativa de Abdias Nascimento, o Teatro Experimental do Negro.
Conforme Sandra Almada: “A iniciativa, longe de limitar-se a levar negros aos palcos
brasileiros, envolveu uma série de projetos e atividades destinados a elevar a autoestima, a
escolaridade e conscientização da população negra do país”. 205 Ainda segundo a autora:
“Mais que encenação de peças, uma quantidade surpreendente de realizações políticas,
científicas, educacionais e culturais foi desenvolvida com o esforço do pessoal do TEN.”206
Iniciativas que, com a redemocratização do país, após o Estado Novo, adquiriram maior
intensidade. A cientista social Joselina da Silva destacou o renascimento das organizações
negras no período e destacou que elas: “Lutavam também pelo ‘alevantamento moral da
gente negra’ que pode ser traduzido como medidas que objetivavam à ascensão social e à
destruição do mito da inferioridade racial (fruto das teorias racistas do século anterior que
continuavam a permear o imaginário nacional).”207 Portanto, a expressão de temas
antirracistas nas canções não representava o único suporte de tal linguagem política.
204
SILVA, Joselina da. A União dos Homens de Cor: aspectos do movimento negro dos anos 40 e 50. In:
Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, n°2, 2003, p. 224, 225.
205
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento. [Coleção Retratos do Brasil Negro] 2009, p. 19.
206
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento. [Coleção Retratos do Brasil Negro] 2009, p.69.
207
SILVA, Joselina da. A União dos Homens de Cor: aspectos do movimento negro dos anos 40 e 50. In:
Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, n°2, 2003, p. 219.
78
pardo Nelson Gonçalves, foi um sucesso popular de 1953, com os versos não devia e por
isso me condeno, sendo do morro e moreno, amar a deusa do asfalto. 208 No enredo de
“Deusa do asfalto” o insucesso romântico mais uma vez é atribuído ao fenótipo, a cor da
pele (moreno), e à sugerida classe social (sendo do morro), possibilitando interpretações
sociais do verso conclusivo em desalento: quem me abraça é a negra solidão.
Discordamos desta visão preconceituosa que define a gafieira como sendo local
de gente ralé, que comete gafes ou atos involuntários. Acreditamos que este
cenário mudou consideravelmente a partir dos anos 60 do século XX, deixando
208
Nelson Gonçalves. Deusa do asfalto. Lançada em 1953. Composição de Adelino Moreira que é a sétima
registrada entre as canções mais populares (tocadas ou vendidas) no Brasil em 1953 segundo a página
<https://asmusicasmaistocadas.wordpress.com/2013/09/28/musicas -cancoes-mais-populares-tocadas-ou-
vendidas-no-brasil-em-1953-2/> Acesso 20/03/2021.
209
TINHORÃO, José Ramos. As gafieiras. In: Os sons que vem da rua. 2005, p. 207.
79
Mas qual seria o estilo de samba executado nesses salões, que ficou conhecido
como “samba de gafieira”? O autor da presente tese, em trabalho anterior - a dissertação
“Sim, sou um negro de cor” -, levantou a hipótese que os ambientes das gafieiras, a partir
do sucesso fonográfico do “Paradigma do Estácio”, configuraram “espaços de permanência
para a estética e linguagem do samba da Cidade Nova”. 211 A dissertação de Ana Maria de
São José, a partir do estudo das formas de dança, possibilitou uma confirmação da hipótese
levantada brevemente no trabalho anterior e melhor desenvolvida no decorrer deste tópico,
ao indicar sobre a vertente de samba de Cidade Nova/Praça Onze: “Esse samba tinha uma
grande influência do maxixe e desse samba surgiu posteriormente o samba dançado a dois,
o samba de gafieira.”212
210
SÃO JOSÉ, Ana Maria de. Samba de Gafieira: corpos em contato na cena social carioca. Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas). Universidade Federal da Bahia. 2005, p. 83, 84.
211
MORAIS, Bruno Vinícius L. de. “Sim, sou um negro de cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil dos anos 1960. Dissertação (História). Universidade Federal de Minas Gerais. 2016, p. 198.
212
SÃO JOSÉ, Ana Maria de. Samba de Gafieira: corpos em contato na cena social carioca . Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas). Universidade Federal da Bahia. 2005, p. 109. Sublinhado nosso.
213
SÃO JOSÉ, Ana Maria de. Samba de Gafieira: corpos em contato na cena social carioca . Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas). Universidade Federal da Bahia. 2005, p.94, 95. Itálico do original.
214
SÃO JOSÉ, Ana Maria de. Samba de Gafieira: corpos em contato na cena social carioca. Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas). Universidade Federal da Bahia. 2005, p.112.
80
215
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008, p.
41.
81
realizada entre os compositores Noel Rosa e Wilson Baptista - que trocaram farpas em
músicas compostas (e, na maioria, gravadas) entre 1933 e 1935. 216
Destaca-se ainda, para os interesses desta tese, o sucesso do cantor Ataulfo Alves,
por exemplificar um rompimento com o que foi assinalado no tópico anterior deste
capítulo como “um padrão de racialização no mercado fonográfico”. Este artista negro, de
origem pobre, era um compositor reconhecido quando se destacou como intérprete ao
lançar o compacto, em dezembro de 1940, “Alegria na casa de pobre/ Leva meu samba”. A
consagração popular veio em 1942, com a sua “Ai, que saudades da Amélia”. Começava,
assim, a trajetória que Hugo Sukman definiu como de “um sambista atípico”. Além de
compositor gravado por intérpretes como Carmem Miranda, Orlando Silva, Cyro Monteiro
e Dalva de Oliveira, Ataulfo foi o responsável pelo registro e fixação em fonogramas da
tradição de origem africana do “canto e resposta”, ou “canto responsorial”, através do
acompanhamento de vocais femininos como o grupo Ataulfo Alves e suas Pastoras. E
ainda se destacou na administração de sua carreira, estabelecendo-se como produtor de si
próprio, editor de suas músicas e “fundador e dirigente de uma das principais sociedades
216
ALZUGUIR, Rodrigo. Polêmica e amizade. In: Wilson Baptista: o samba foi sua glória. 2013, p. 135-155.
217
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008, p.
61.
218
Dorival Caymmi. Canções Praieiras. Odeon, 1954. Relançamento box Caymmi Amor e Mar. EMI, 2000.
82
219
SUKMAN, Hugo. Ataulfo Alves. (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 5). 2010, p. 10.
220
Um estudo verticalizado do posicionamento de Simonal quanto à questão racial é o tema da dissertação:
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor”. 2016. Particularmente os capítulos 02 e 03.
221
MAIO, Marcos Chor. O projeto UNESCO e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50.
In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 14. Núm. 41. Out/1999. P. 141-158. SANTOS, Fernanda
B. A temática racial no debate internacional e a conceituação do termo estabelecida pela UNESCO na década
de 1950. Revista Thema. 2014.
<https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/artigos/SegundoGoverno/QuestaoRacial> 07/05/2019.
222
MAIO. O projeto UNESCO e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. 1999.
223
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1940-1949/constituicao-1946-18-julho-1946-365199-
publicacaooriginal-1-pl.html>
83
Uma primeira entre essas novas sonoridades foi o gênero rock and roll. O sucesso
no mercado jovem estadunidense da canção “Rock Around The Clock”, lançada pelo
grupo Bill Halley and His Comets, em 1954, levou ao convite à cantora de samba-canção
Nora Ney, que dominava o idioma inglês, a gravar uma versão brasileira da canção. Deste
modo, em 1955, Nora Ney lançou o primeiro disco de rock gravado no Brasil. Em 1957, a
pianista Carolina Cardoso de Menezes compôs o primeiro rock brasileiro, a instrumental
“Brasil Rock”, no mesmo ano em que Cauby Peixoto, cantor também identificado aos
sambas-canções, lançou a primeira canção rock gravada com letra em português no Brasil,
“Rock and roll em Copacabana”. Mas o primeiro grande nome do rock no Brasil foi Celly
Campello, que estreou em um compacto lançado em 1958, dividido com seu irmão Tony
Campello, com as músicas “Perdoa-me (Forgive-me)” e “Belo rapaz (Handsome Boy)”.
Outros compactos vieram até o lançamento, em setembro de 1959, do primeiro álbum de
Celly, Estúpido Cupido. Junto ao rock, foi difundido no Brasil dos anos 1950 o Doo Wop,
estilo de música negra executado por grupos de harmonias vocais, em canções românticas
ou dançantes, particularmente através do grupo vocal Os Golden Boys, formado pelos
irmãos Ronaldo, Roberto e Renato Corrêa e José Maria - todos negros -, que estreou em
1958, com os compactos “Sino de Belém/Natal das crianças” e “Wake up little Susie/Meu
romance com Laura”, estreando em LP com Os Golden Boys, em 1959.224
Apesar de ser um gênero de black music, o Doo Wop foi adotado no Brasil como
“música jovem”, ou Pop, e até onde identificado durante esta pesquisa, assim como o rock
and roll, sem expressão da linguagem antirracista nas letras.
224
< https://dicionariompb.com.br/golden-boys/discografia> Acesso 30/03/2021. Sobre Carolina Cardoso de
Menezes (1916-1999), a compositora foi mapeada na pesquisa de pós -doutorado “Cartografia das
compositoras brasileiras nos séculos XIX XX”, realizada pela historiadora Carô Murgel na UNICAMP.
84
foram escolhidos dois marcos fixados em fonograma: um que remonta ao final da década
de 1940, e um segundo, dez anos depois, no final da década de 1950. Da década de 1940 é
possível localizar precursores notáveis, particularmente o cantor e pianista Farnésio Dutra
e Silva, o Dick Farney, que desde o final da década de 1930, alternava em palco execuções
de música erudita e a vertente jazzística swing, além da execução de standards. Conforme
o jornalista Carlos Calado no glossário jazzístico da Coleção Folha Clássicos do Jazz,
standard é a “forma clássica de canção norte-americana que se integrou ao repertório
básico do jazz”, já o Swing, “é o nome do estilo de jazz desenvolvido no início dos anos
30, centrado nas big bands, que dominaram os salões de dança dos EUA”, 225 estilo que se
tornou um símbolo da nacionalidade estadunidense na década de 1930 e, por isso, era
executado por músicos brancos e negros, perpassando (sem romper) a segregação racial
reproduzida pela indústria fonográfica no país. Em 1946, Dick Farney começou a gravar
músicas em português entre seu estilo jazzístico e o samba-canção, como o disco compacto
“Copacabana/ Barqueiro do Rio São Francisco”. Conforme o jornalista Ruy Castro:
Além de Dick, havia o seu grande rival em identidade musical, Lucio Alves, que
tinha em seu repertório apenas canções gravadas em português;227 e o pianista e cantor
Johnny Alf, que estreou em 1952, com o compacto “De cigarro em cigarro/Falseta”. 228
Único negro entre os três artistas citados, Alf ficou em uma posição marginalizada na
comparação com Dick Farney e Lucio Alves. Conforme Ruy Castro: “Johnny Alf já era
cult para toda uma geração, e ninguém sabia. Nem ele”229 Entre os admiradores desses três
artistas estão duas figuras que permitem introduzir o segundo marco escolhido por esta tese
para situar a Bossa Nova: Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Esse segundo marco
fonográfico foi possível com o advento do formato LP e o conceito de álbum: o disco
Canção do amor demais, com a cantora Elizeth Cardoso 230 . Como apresentado pelo
225
Para ambas as definições, ver CALADO, Carlos. Nat King Cole. (Coleção Folha Clássicos do Jazz, vol.
1). 2007, p. 50. Mesmas definições repetidas em inúmeros volumes desta coleção.
226
CASTRO, Ruy. Dick Farney. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 2) 2008, p. 26.
227
< https://dicionariompb.com.br/lucio-alves/discografia> Acesso 31/07/2021.
228
< https://dicionariompb.com.br/johnny-alf/discografia> Acesso 31/03/2021.
229
CASTRO, Ruy. Johnny Alf. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 8) 2008, p. 7.
230
A artista também teve o nome grafado como Elizete e Elisete à época, mas Elizeth era a forma principal.
85
jornalista Lauro Lisboa Garcia, o álbum “Lançado pelo selo Festa, em agosto de 1958,
destaca o violão de João Gilberto e sua revolucionária batida de bossa nova, em duas
canções, além dos arranjos de Jobim.”231 O LP abria com “Chega de saudade”, canção
regravada em compacto por João Gilberto.
“Em 1958, o cantor João Gilberto lançou o disco Chega de Saudade e instaurou o
movimento bossa nova, a primeira reviravolta musical, operada integralmente no domínio
da canção popular,”232 avaliou o linguista Luiz Tatit. Após este disco compacto, João
Gilberto lançou em 1959 o seu primeiro álbum, também intitulado Chega de Saudade. A
interpretação de João apresentou tanto uma forma contida de explorar a voz, atenuando a
emotividade expressa nas canções, quanto uma batida de violão que se tornou um símbolo
de modernização na música popular brasileira. E, embora o intérprete fosse baiano, tornou-
se o mais representativo nome de um movimento cultural encabeçado pela classe média
branca carioca. O movimento bossa nova foi considerado, por formadores de opinião e
uma parcela do público, como uma roupagem sofisticada para o samba, tornando-o
propício à valorização e consumo das classes média e alta brasileiras. A “roupagem
sofisticada” se deu através da exclusão da forte instrumentação percussiva característica
dos sambas e da entoação emotiva característica do samba-canção, valorizando os silêncios
na estrutura da canção.233 Assim, apesar de angariar enorme respeito na crítica
especializada e impactado gerações de músicos, sofreu e ainda sofre críticas como uma
forma de “embranquecimento” do samba. 234 A crítica é explicitada no livro Apropriação
Cultural, do antropólogo e babalorixá Rodney William:
231
GARCIA, Lauro Lisboa. Canção do Amor Demais. (Coleção Folha Tributo a Tom Jobim, v. 17) 2013, p.
4. Embora o disco seja um marco do que viria a ser chamado de Bossa Nova, predomina em sua execução a
sonoridade samba-canção, conforme a personalidade artística de Elizeth Cardoso.
232
TATIT, Luiz. O século da canção. 2004, p. 49. Itálico do original.
233
Para uma análise musicológica da contribuição de João Gilberto e, particularmente, de sua interpretação
de "Pra que discutir com madame", ver: MENEZES, Enrique V. A música tímida de João Gilberto.
Dissertação (Mestrado). Departamento de Belas Artes. USP, São Paulo, 2012.
234
O intelectual José Ramos Tinhorão destacou-se na denúncia de elitismo da Bossa Nova des de 1961,
quando iniciou a coluna "Primeiras lições de samba", no Jornal do Brasil. Ver: LAMARÃO, Luisa Q. As
muitas histórias da MPB. As ideias de José Ramos Tinhorão. Dissertação (Mestrado). Departamento de
História, UFF, Rio de Janeiro, 2008. Ou, mais recentemente, WILLIAM, Rodney. Apropriação Cultural.
2019, p. 145-158.
235
WILLIAM, Rodney. Apropriação Cultural. 2019, p. 153.
86
O linguista Luiz Tatit, ao analisar a execução musical de João Gilberto afirma que
ele: “Dissolveu a influência do cool jazz nos acordes percussivos estritamente programados
para o acompanhamento da canção, sem dar espaço à improvisação.”236 A antropóloga
Santuza Cambraia Naves afirma, ao referenciar os artigos publicados nos anos 1960 pelo
poeta Augusto de Campos e os músicos Júlio Medaglia e Gilberto Mendes: “Assim,
segundo eles, ao introduzir um registro musical intimista semelhante ao do cool jazz, a
bossa nova harmonizar-se-ia com o ideário de racionalidade, despojamento e
funcionalismo que teria caracterizado várias manifestações culturais do período.”237
Também o historiador e crítico literário estadunidense Christopher Dunn pontua sobre os
artistas da Bossa Nova: “Eram todos ávidos apreciadores dos vocalistas norte-americanos,
em especial Frank Sinatra, Billy Eckstine e Sarah Vaughan, e dos artistas de jazz da costa
oeste dos Estados Unidos, como Chet Baker, Stan Getz e Gerry Mulligan, além de Miles
Davis.”238 Por fim, no verbete Cool jazz do glossário jazzístico do jornalista Carlos Calado
a referência reaparece:
236
TATIT, Luiz. O século da canção. 2004, p. 50.
237
NAVES, Santuza C. Da Bossa Nova à Tropicália: contenção e excesso na música popula r. In: Revista
Brasileira de Ciências Sociais - vol. 15, n° 43, junho/2000, p. 35.
238
DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim. 2009, p. 47.
239
CALADO, Carlos. Chet Baker. (Coleção Folha Clássicos do Jazz; v. 7) 2007, p. 48, 49.
87
realizadas entre 1949 e 1950 (compiladas pela gravadora Capitol Records no LP Birth of
the Cool, em 1957), a proposta de articular a sonoridade do jazz a influências da música
erudita europeia foi desenvolvida e predominantemente executada por músicos brancos,
como os saxofonistas Gerry Mulligan e Lee Konitz (que participaram das gravações de
Miles), e o trompetista e cantor Chet Baker. Aliás, a influência de Baker é percebida no
Brasil também por sua forma de cantar, conforme destacado por Carlos Calado: “Seus
vocais suaves e contidos, quase sussurrados, chegaram a influenciar até músicos
brasileiros, como os tropicalistas Caetano Veloso e Gal Costa ou vários adeptos da Bossa
Nova.”240 Desta forma, o cool foi uma das mais influentes variantes criadas a partir do Bep
Bop: estilo jazzístico síntese do “Jazz Moderno”, surgido no início da década de 1940, por
nomes (negros) como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Sarah Vaughan e
o próprio Miles Davis, e que “comparado ao jazz tradicional, exibe ritmos mais complexos
e harmonias mais dissonantes.”241 Introduzindo influências da música erudita e executado
por músicos brancos, o cool, ou “jazz da costa oeste”, foi considerado como “jazz de
brancos”, no contexto segregacionista dos Estados Unidos da América.242
240
CALADO, Carlos. Chet Baker. (Coleção Folha Clássicos do Jazz; v. 7) 2007, p. 8.
241
CALADO, Carlos. Chet Baker (Coleção Folha Clássicos do Jazz). 2007, p. 47.
242
CALADO, Carlos. Chet Baker. (Coleção Folha Jazz, vol. 7). 2007, p. 27-29.
88
243
FAOUR, Rodrigo. Elza Soares. (Coleção Folha Grandes Vozes, v. 9) 2012, p. 13.
244
Sobre a trajetória de Sylvia Telles, designada por Ruy Castro “a madrinha da bossa nova”, ver CASTRO,
Ruy. Sylvia Telles. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 15) 2008.
245
Uma narração romanceada do momento de criação do scat é contada, em quadrinhos, em SANIN, Camilo.
Louis Armstrong. Coleção BD Jazz. Uma banda desenhada. Lisboa. Éditions Nocturne. 2003.
246
CAMARGO, Zeca. Elza. Ed. Leya. 2019, p. 165.
247
Antes do compacto referenciado, Elza já havia gravado o compacto “Brotinho/Pra que é que pobre quer
dinheiro?” pelo selo independente Rony, também em 1959, e sem obter repercussão.
248
Louis Armstrong and his All Stars. Mack the knife/Back o’town blues. Single. 45rpm. Columbia/Phillips.
1956.
89
frente. Um artista de forte recepção no Brasil desde os anos 1930, como abordado pelo
jornalista Ruy Castro, ao referenciar a formação musical de Dick Farney: “E havia também
a onipresença de Bing Crosby e Louis Armstrong, os dois cantores mais influentes do
planeta na primeira metade do século - um, inclusive, influenciando o outro.”249 Se Elza
não conhecia Armstrong, os executivos da Odeon decerto o reconheciam e a sugestão da
gravação não parece indicar mera coincidência. E a versão de Elza da canção trazia ainda
mais elementos jazzísticos do que em “Se acaso você chegasse”, ao encerrar a percussão a
uma bateria com execução focada nos pratos do instrumento, um piano solista conduzindo
a canção, além do destaque ao naipe de sopros e às intervenções em scat da Elza.
249
CASTRO, Ruy. Dick Farney. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 2) 2008, p. 15.
250
Fundo: IBOPE. Série PD. Pesquisa venda de discos. Notação: PD 001-37. Arquivo Edgard Leuenroth.
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. UNICAMP. É necessário pontuar que o acervo estudado apresenta
muitas limitações, o que influencia diretamente nas possibilidades de interpretação para a pesquisa. Não há
registro de números de vendas, apenas da ordem de vendagem. E, para a década de 1960, consta apenas
dados dos anos 1960, 1961 e 1965, apenas em São Paulo; 1966, 1967, 1968 e 1969 apenas em São Paulo e
Rio de Janeiro. Pesquisa ainda limitada, devido à pandemia Covid-19, à consulta do acervo online <
https://www.ael.ifch.unicamp.br/>
251
FRÓES, Marcelo. Encarte para a reedição do álbum. Elza Soares. Elza Soares. Odeon. 1960.
Relançamento Elza Soares/A Bossa Negra. In: box Elza Negra, v. 1. 2003.
90
Hianto de Almeida e Macedo Netto. E pouco após começou a gravação do álbum de Elza
Soares, conforme expresso por Marcelo Fróes:
Elza Soares se vingou da vida adversa que teve até bem pouco tempo, cantand o.
Ela mesma é quem diz: “Tenho 21 anos, fui mãe de seis filhos, encarei muita
fábrica de sabão e cantava no clubinho do bairro por “duzentas pratas” a sessão;
se eu não fosse alegre, o que seria de mim?” A responsabilidade da bossa, do
balanço de Elza Soares, da sua voz de trombone rouco, não tem uma resposta tão
direta. Correrão nas veias de seu corpo ágil e agitado. Elza Soares, a toda -bossa
ou bossa-negra, como diz a capa, além de excepcional firmeza, divide com uma
precisão matemática de anel no dedo. É musical demais – e sua alegria de cantar
é autêntica porque encerra uma lição de vida. ELZA É O MORRO QUE
DESCEU PARA O ASFALTO… BATEU NA PORTA DO RITMO, E ALI
RESOLVEU MORAR… Elza é vizinha de um doutor trombone chamado
ASTOR e com ele (vocês terão certeza isso) se entendeu às mil maravilhas. Elza
252
FRÓES, Marcelo. Encarte para a reedição do álbum. Elza Soares. Elza Soares. Odeon. 1960.
Relançamento Elza Soares/A Bossa Negra. In: box Elza Negra, v. 1. 2003.
253
Para o potencial das capas de disco como objeto de reflexão acadêmica, ver RODRIGUES, Jorge Caê.
Anos Fatais: design, música e Tropicalismo. 2007 e VIDAL, Erick de Oliveira. As capas da Bossa Nova:
Encontros e desencontros dessa história visual (LPs da Elenco, 1963). (Mestrado em História) – UFJF. 2008.
254
Cesar Villela em LAUS, Egeu. Apud. VIDAL, Erick de O. As capas da Bossa Nova. 2008, p. 87.
91
Soares é a garganta de lixa com voz de passarinho sem nome. Sabe tudo e muito
mais...255
Fig. 1. Capa e contra-capa LP Elza Soares. Se acaso você chegasse. Odeon. 1960. Extraído de:
<https://brazilliance.wordpress.com/2016/12/11/song-no-96-teleco-teco-no-2-nelsinho-oldemar-magalhaes-1960/>
Acesso 28/08/2019.
filósofa Djamila Ribeiro, não se limita à vivência pela individualidade, mas do que essas
experiências trazem de opressões estruturais, do locus social do qual a cantora emerge;257
ainda que o texto não denuncie ou critique desigualdades de raça, classe e gênero.
A única canção presente no primeiro álbum de Elza Soares cuja temática expressa a
Linguagem Política Negra Antirracista é “Nego tu... nego vós... nego você”, composição
de Hianto de Almeida e Macedo Netto, os mesmos autores de “Era bom”. A letra dessa
canção diversifica as localizações sociais da população negra (ou, ao menos, dos homens
negros), ao abordar a inserção de uma classe média negra (o nego vós e o nego você) que
257
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? 2017, p. 67, 68.
258
STARLING, Heloisa. SCHWARCZ, Lilia. Lendo canções e arriscando um refrão. In: Revista USP, n° 68.
2005-2006, p. 19.
259
DAVIS, Angela. O legado da escravidão: parâmetros para uma nova condição da mulher. In: Mulheres,
raça e classe. 2016, p. 19. (Livro originalmente publicado em 1981.)
260
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político -econômica. In: Por
um feminismo Afro-latino-americano: ensaios intervenções e diálogos. 2020, p. 53. (Texto original de 1982.)
93
Existe um nego tu, / existe um nego você/ Existe um nego vós que é um nego
bem, / vamos ver se me convém/ Pois se o caso é pele escura a minha é também/
Um tal de nego vós, / tem banca de doutor/ E anda de colete no verão também/
Nego vós não me convém/ Porque o olho incoletado não me fica bem/ Nego
você/ trabalha no comércio/ E uma casa do instituto um dia ele tem/ Vai se
instalar/ lá na zona Norte onde ele se dá bem, / também não me convém/ Eu sei
que o nego tu, / só tem na vida um bem/ O escudo do Flamengo é tudo o que ele
tem/ Não trabalha e vive bem/ Apesar de tudo isso ele me convém.261
O qualificativo “negra” que diferencia a Bossa de Elza Soares, portanto, indica uma
proposta híbrida entre o samba e o jazz que não está baseada na contenção de arranjos e
interpretações vocais ou nas influências do cool jazz. A música de Elza foi identificada ao
Samba de Gafieira, vertente que, conforme explorado no tópico anterior deste capítulo,
rebatizou o primeiro gênero de samba registrado em fonograma, o Cidade Nova, que
durante a década de 1920 havia hibridado com o jazz criado em Nova Orleans, nos EUA.
Porém, na Bossa Negra de Elza, ao enfatizar o diálogo com o estilo New Orleans, essa
interlocução jazzística foi ainda situada explicitamente dentro da segregação racial na
primeira forma de execução de jazz fixada em fonogramas (Dixieland, por artistas brancos,
261
Elza Soares. Nego tu... nego vós... nego você. (Hianto de Almeida/Macedo Netto). Elza Soares. Odeon.
1960. Faixa 5, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=rorKSQb4-Ec>
94
e New Orleans, por negros, nas race records). Afinal, assumia a identificação com Louis
Armstrong - o mais emblemático nome do estilo New Orleans – através do scat (ainda com
Elza compartilhando com Louis de uma voz rouca) e da regravação de “Mack the Knife”.
Mas o disco nasceu por causa do Ronaldo Bôscoli. Na época ele escrevia para a
revista ‘O Cruzeiro’. Ele achou que eu seria uma figura importante,
representativa da raça negra, e disse assim: ‘é isso o que eu estou procurando!
Você vai ser a representante que a gente tanto buscou! E vamos fazer um disco
que vai se chamar ‘A Bossa Negra’.” 263
262
FAOUR, Rodrigo. Elza Soares. (Coleção Folha Grandes Vozes; v. 9) 2012, p. 14.
263
Trecho do encarte à reedição do LP de Elza Soares. A Bossa Negra. Álbum. Odeon. 1960. Dubas/EMI.
2003
264
Para uma breve exposição biográfica: <http://dicionariompb.com.br/ronaldo-boscoli/dados-artisticos>
95
interpretar a realidade social que não viviam, a dos setores pobres. 265 A perspectiva
artística defendida pelo grupo de Carlos Lyra era de uma “Bossa nova nacionalista”, que se
propunha uma espécie de aliança social através da “ida ao povo” pelos intelectuais, a partir
da produção cultural. Conforme o historiador Marcos Napolitano, tal intuito expressava
uma orientação política e intelectual, posto que “[Antonio] Gramsci pressupunha um
‘contínuo intercâmbio’ entre a ‘língua popular’ e a das ‘classes cultas’, ponto de apoio da
cultura nacional-popular que visava, no limite, fundamentar a contra-hegemonia e selar
uma aliança de classes progressista.”266
Ao ser apadrinhada por uma figura como Ronaldo Bôscoli, Elza já iniciou a carreira
fonográfica amparada pela promessa de sonoridade moderna da Bossa Nova e com uma
localização na polêmica que dividiu a proposta musical – e afetou Elza por razões pessoais.
Uma cantora do mesmo bairro, com a qual tinha alguma rivalidade, Alaíde Costa, também
uma cantora negra, foi apadrinhada por Carlos Lyra na década de 1950, durante a polêmica
deste com Bôscoli, e com o apoio de Lyra estreou com o compacto “Conselhos/Domingo
de amor”, em 1957, e lançou o LP Gosto de você, pela RCA, em 1959, em sonoridade
265
Sobre a divisão da Bossa Nova, ver a parte dois da obra de Rui Castro. CASTRO. O grande feriado. In:
Chega de saudade: a história e as histórias da bossa nova. 2 ed. 1998, p. 213 a 422. Ou HERMETO, Miriam.
Canção popular brasileira e ensino de história. 2012, p. 112, 113. Quanto a dimensão de classe, o
historiador Marcos Napolitano ressalta a dimensão de ruptura promovida pela Bossa Nova como inserção da
classe média mais alta, universitária, no plano de criação e consumo de música popular in: NAPOLITANO,
Marcos. Seguindo a canção. Engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). 2010, p. 14.
266
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção. Engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-
1969). 2010, p. 6.
267
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 124.
268
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 124.
96
próxima ao samba canção.269 A produção de Elza, contudo, também foi desde o início
apresentada a partir da condição racial. Se a Bossa Nova representava o amor e o cotidiano
na perspectiva de uma classe média branca oriunda dos bairros nobres do Rio de Janeiro, a
“bossa-negra”, anuncia o encarte, “é autêntica porque encerra uma lição de vida”, a lição
do “morro que desceu do asfalto”, através das dificuldades enfrentadas por uma mulher
pobre e negra.
Esta sonoridade, entre o samba de gafieira e o new orleans (estilo jazzístico para o
qual o trombone é um instrumento característico), que definiu a sonoridade apresentada
por Elza Soares, foi repetida no segundo álbum, A Bossa Negra, que, conforme Marcelo
Fróes, “foi gravado entre 4 e 7 de outubro, novamente com direção musical do maestro
269
Sobre a rivalidade entre as artistas e o posicionamento na polêmica da Bossa Nova, ver SANTHIAGO,
Ricardo. Solistas Dissonantes. História (oral) de cantoras negras. 2009, p. 244-253. Sobre a discografia da
cantora, < https://dicionariompb.com.br/alaide-costa/discografia> Acesso 05/04/2021.
97
Astor”.270 A equipe de gravação repete os mesmos nomes do trabalho anterior e, desta vez,
a contracapa apresenta, antes das letras das músicas, apenas o breve informativo: “A
magnífica voz de Elza e o calor de sua interpretação tornam mais espetacular ainda esta
coleção de grandes sambas.” O LP já começa com um solo de scat, introduzindo a canção
“Boato”, com percussão forte e naipe de sopros no qual destaca a sonoridade do trombone
em contraponto aos sopros que soam em uníssono. Prossegue entre regravações de canções
lançadas nos anos 1930 (“Tenha pena de mim”, gravada por Aracy de Almeida, em 1937)
e anos 1950 (como “Cadeira vazia”, gravada por Francisco Alves, em 1950, “Fala
baixinho”, gravada por Maria Izabel em 1959, e “Beija-me”, gravada por Lúcio Alves em
1959, entre outras), tocadas na sonoridade que então caracterizava os trabalhos de Elza. E,
conforme Marcelo Fróes, “O sucesso daquele segundo LP foi igualmente enorme, sendo
bastante trabalhado no primeiro semestre de 1961.”271
No segundo Long Playing lançado por Elza Soares no ano de 1960, predomina o
tema romântico, com uma única canção de temática que toque o tema racial. Esta única
exceção, “As polegadas da mulata”, mais uma composição da dupla Hianto de Almeida e
Macedo Netto, porém, novamente retratou a representação sexualizada das “mulatas”: sem
a moreneza da mulata rebolando a gente vai/ aos poucos até desanimando/ mulata é só
quem tem aquela graça natural/ de quem nasceu pro rebolado.../ Pois a cor dessa figura/
quem pintou foi mãe Natura/ pra deixar o branco todo assanhado.
270
FRÓES, Marcelo. Encarte para a reedição do álbum. Elza Soares. A Bossa Negra. Odeon. 1960.
Relançamento Elza Soares/A Bossa Negra. In: box Elza Negra, v. 1. 2003.
271
FRÓES, Marcelo. Encarte para a reedição do álbum. Elza Soares. A Bossa Negra. Odeon. 1960.
Relançamento Elza Soares/A Bossa Negra. In: box Elza Negra, v. 1. 2003. Os dados do IBOPE quanto ao
ano de 1960, em SP, consta apenas até o mês de junho, apenas referenciando os compactos. Já o ano de 1961,
em SP, consta o período de janeiro a maio apenas, e consta A Bossa Negra de Elza Soares em segundo lugar
nas vendas entre os discos 33rpm no mês de fevereiro, e em todos os demais meses os compactos “Boato” e
“As polegadas da mulata”. Instituto Edgar Leurenroth. Fundo: IBOPE. Série: Pesquisa de Venda de Discos.
Notação: PD 002.
272
STARLING, Heloísa. SCHWARCZ, Lilia. Lendo canções e arriscando um refrão. 2005-2006, p. 19.
98
273
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afro-latino-
americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 80. (texto originalmente publicado em 1983).
274
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afro-latino-
americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 76.
99
De tal modo, a leitura do Brasil como uma democracia racial imune não apenas a
atos discriminatórios, mas também a preconceitos cotidianos, predomina nos discursos
oficiais do período. Uma pesquisa preliminar, realizada para esta tese, nos discursos
disponíveis online dos presidentes da República do Brasil no decorrer da década de 1960
demonstrou que em todas as alusões à dimensão racial no país identificadas, apenas
representações sobre a harmonia racial e a inexistência de preconceitos e conflitos
aparecem. A constatação da força da leitura do Brasil como uma “democracia racial”, aliás,
precisa ser contraposta ao silêncio do governo federal a qualquer referência à cultura negra
no país – afinal, não foi localizada qualquer fala ou discurso presidencial que retrate o
tema, mesmo na data 13 de maio (então a data destinada para a questão racial no
calendário oficial brasileiro, como “Dia da Abolição”), por exemplo.
275
STARLING, Heloísa. SCHWARCZ, Lilia. Lendo canções e arriscando um refrão. 2005-2006, p. 19.
276
NASCIMENTO, Beatriz. A Mulher Negra no Mercado de Trabalho. In: Beatriz Nascimento, Quilombola
e Intelectual: possibilidade nos dias da destruição. 2018, p. 83. Texto originalmente publicado no Jornal
Último Hora, em 25 de julho de 1976. A escolha por res saltar, no corpo do texto, a data de publicação tanto
desse texto de Beatriz quanto o de Lélia é para enfatizar que, embora sejam pautas por vezes consideradas
recentes, estavam colocadas pelas autoras citadas no recorte temporal estudado na presente tese.
277
17 de setembro de 1960. Agradecendo o título de cidadão do recife, conferido pela câmara de vereadores
da cidade. Discursos proferidos no quinto ano do mandato presidencial, 1960, p. 336. Disponível em:
<https://biblioteca2.presidencia.gov.br/repositorioinstitucional/> Acesso 07/05/2019.
100
278
DIGOLIN, Kimberly A.; ASSIS, Jonathan A.; AGATA, Débora. O continente africano na política externa
brasileira: de Jânio Quadros a Lula da Silva. In: Cadernos do Tempo Presente, n. 24, jun./jul. 2016, p. 94-
109. Disponível em: <http://www.seer.ufs.br/index.php/tempo> Acesso 08/05/2019.
279
Mensagem ao Congresso Nacional remetida pelo Presidente da República na Abertura da Sessão
Legislativa de 1961. Discursos selecionados do presidente Jânio Quadros, p. 19. Disponível em:
<http://www.portalentretextos.com.br/download/livros-
online/discursos_selecionados_do_presidente_jan io_quadros.pdf> Acesso 08/05/2019.
280
Mensagem ao Congresso Nacional remetida pelo Presidente da República na Abertura da Sessão
Legislativa de 1961. Discursos selecionados do presidente Jânio Quadros, p. 25.
281
Informe 21/06/1961. Ministério das Relações Exteriores GP/MRE/172. Discursos selecionados do
presidente Jânio Quadros. p. 56.
101
282
Discurso do Presidente Jânio Quadros veiculado pela “Voz do Brasil” Palácio da Alvorada, 31 de janeiro
de 1961. Discursos selecionados do presidente Jânio Quadros. P. 17.
283
Sobre a trajetória de João Goulart, GOMES, Ângela de Castro, FERREIRA, Jorge. Jango: as múltiplas
faces. 2007. Para uma leitura verticalizada no cenário de eleição e renúncia de Jânio Quadros e o complexo
momento de posse de João Goulart, NAPOLITANO, Marcos 1964. História do Regime Militar Brasileiro.
2014, p. 30-35.
284
Discurso na sessão de instalação da LI Conferência Interparlamentar. Brasília, 24 de outubro de 1962.
Discursos selecionados do presidente João Goulart. P. 52. Grifo meu. Disponível em:
<http://funag.gov.br/biblioteca/download/641-Discursos_joao_goulart.pdf> Acesso 08/05/2019.
285
GUIMARÃES, Antonio S. A. Classes, raças e democracia. 2002, p. 160.
102
Meus agradecimentos a quantos, pela sua presença, participam este ano, no Rio
de Janeiro, da comemoração do Dia de Camões, vindo ouvir a palavra de quem,
adepto da ‘vária cor’ camoniana, tanto se opõe à mística da ‘negritude’ como ao
mito da ‘branquitude’: dois extremos sectários que contrariam a já
brasileiríssima prática da democracia racial através da mestiçagem: uma prática
que nos impõe deveres de particular solidariedade com outros povos mestiços.
Sobretudo com os do Oriente e os das Áfricas Portuguesas. Principalmente com
os das Áfricas negras e mestiças marcadas pela presença lusitana. 288
Venha aqui, meu senhor/ venha ver/ minha gente do morro/ sofrer/ e a nossa
dor/ ninguém quer entender/ Só vê o que há ruim/ vê bandido em qualquer
morador/ Não vê pai, não vê mãe, nem amor/ Ninguém nos vê como gente/ E
assim/ Só vê o que há de ruim. O morro está cansado/ de trabalhar e não ter./
Venha ver, meu senhor/ Venha ver/ Sem recurso esse povo/ morrer/ e a nossa
dor/ resolvemos deixar/ Nas mãos do senhor.289
286
Sobre o Movimento Négritude, ver BERND, Zilá. O que é negritude. 1988. REIS, Raíssa Brescia.
Negritude em dois tempos: emergência e instituição de um movimento (1931-1956). Dissertação (História),
UFMG, 2014.
287
GUIMARÃES, Antonio S. A. Classes, raça e democracia. 2002, p. 160. ALMADA, Silvia. Abdias
Nascimento. (Coleção Retratos do Brasil Negro). 2009, p. 92. O uso do termo “vocábulo” nesta tese, como
no caso de “democracia racial”, referenciada nesse momento, é como uma categoria analítica mobilizada na
História Intelectual, conforme a bibliografia mobilizada nesta tese. Por isso não se confunde com apenas uma
palavra.
288
FREYRE, Gilberto. O Brasil em face das Áfricas negras e mestiças. 1962. Apud. GUIMARÃES, Antonio
S. A. Classes, raças e democracia. 2002, p. 160.
289
Elza Soares. “Cantiga do morro” (Hianto de Almeida/Macedo Netto). O Samba é Elza Soares. Álbum.
Odeon. 1961. Faixa 02, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=sxk0pdO0l78>
103
Elza, esse terceiro disco, portanto, trouxe o cotidiano de preconceito nos estereótipos
dirigidos aos habitantes dos morros, a desumanização a partir do estigma da criminalidade
(vê bandido em qualquer morador/ não vê pai, não vê mãe, nem amor/ Ninguém nos vê
como gente) que convive com e fortalece a situação de carestia (venha ver/ sem recurso
esse povo/ morrer). Os estereótipos citados contribuem para a manutenção da situação de
exclusão da população dos morros, na maioria integrada por pessoas negras. O arranjo da
canção ressalta os instrumentos percussivos, com o piano e o naipe de sopros executados
de forma mais discreta enquanto Elza canta acompanhada pelo cantor Monsueto Menezes.
A performance vocal da cantora apresenta a letra de uma forma pungente, diferenciando do
estilo vocal até então registrado por ela, aproximando-se da forma vocal comum ao samba-
canção. A música também não ressalta elementos jazzísticos, inclusive por não apresentar
nenhuma intervenção de scat.
O terceiro álbum de Elza, O samba é Elza Soares, gravado no Rio de Janeiro entre
13 e 29 de abril de 1961 e lançado em junho daquele ano, possivelmente causou alguma
surpresa ao ouvinte. Afinal, apenas na quarta faixa do disco, próximo de encerrar o Lado A
do álbum, que aparece o primeiro uso da técnica do scat, em diálogo com o solo do
trombone, já na introdução da faixa “Bom mesmo é estar de bem”. Das doze faixas que
integram o disco, aliás, somente três apresentam o uso do scat, indiciando, talvez, a busca
por alguma mudança na personalidade musical então expressa na produção musical da
artista. Contudo, os arranjos das canções do disco ainda privilegiavam a roupagem
instrumental da Bossa Negra, com o uso intensivo dos naipes de sopro, privilegiando solos
de trombone ou trompete, além do piano, e contrabaixo e bateria, junto à forte
instrumentação percussiva que reforça o ritmo de samba. O texto de apresentação do
álbum, de autoria de Ismael Corrêa, valoriza a produção dos arranjos que definiu esse
primeiro momento da Bossa Negra. A pedido de Elza, conforme explicitado, o texto é
dedicado ao diretor musical e trombonista, de modo que finaliza concluindo: “Astor
assimilou tão bem o estilo de Elza e de tal maneira valorizou com suas orquestrações as
gravações da estreia de hoje que não hesitamos em creditar 50% do sucesso de Elza a
Astor. Artisticamente, são dois apaixonados, um pelo talento do outro.”290
290
CORRÊA, Ismael. Texto de contra-capa. O samba é Elza Soares. Álbum. Odeon. 1961.
104
ano, a artista lançou apenas um compacto de uma música (um disco 78rpm) e um
compacto duplo, incluindo quatro canções: “Maria, Maria, Maria” (Billy Blanco), “Praga”
(Fernando Cesar), “Galã enganador” (Haroldo Barbosa/Luiz Reis) e uma regravação da já
clássica “Escurinho” (Geraldo Pereira). Entre essas, a primeira canção é relevante para o
argumento desta tese. “Maria, Maria, Maria” já inicia com os sopros em destaque, em
acompanhamento de piano e percussão, com solos de trombone e os característicos scats
de Elza. Diz a letra da canção:
Maria que nasceu Maria Terezinha/ Maria que desceu do morro pra cozinha/
Maria virou Mária, virou Mariá/ Maria que cuidava muito bem da louça/ Um
dia descobriu-se, descobriram a moça/ Um dono de boate logo a fez brilhar/
Maria já não faz o que é mandada/ Agora é jambete, já não é mulata/ Trocou a
luz de vela pelo refletor/ Maria não tem mais problema financeiro/ Trabalha
muito menos, ganha mais dinheiro/ Enquanto ela deu duro, não deram valor/
Mil Marias nesta vida/ Louras e de outros matizes/ Acontecem no cenário
mundial/ Imperatrizes e atrizes/ Marias que tiveram glória/ rebolando pela
história universal/ Maria toda nossa que venceu na vida/ Sob o signo da bossa
nasceu aplaudida/ Numa terça-feira gorda em que Portela venceu/ Maria não
tem mais complexo nem nada/ Está realizada e eu sem empregada/ É mais uma
escurinha que embranqueceu.291
A canção feita pelo compositor branco Billy Blanco aborda, novamente, elementos
identificáveis com a trajetória pessoal de Elza Soares apresentada ao público no texto de
seu primeiro álbum e, assim, evoca elementos da questão racial no Brasil. A canção narra,
através da interpretação empolgada de Elza (é uma canção dançante), a história da
ascensão social de Maria Terezinha, que, oriunda de uma favela, trabalha como empregada
doméstica (desceu do morro pra cozinha e cuidava muito da louça) e tem a oportunidade
para substituir a condição profissional para o ramo artístico (um dono de boate logo a fez
brilhar e trocou a luz de vela pelo refletor), conquistando sucesso aparentemente como
cantora (venceu na vida sob o signo da bossa nasceu aplaudida). A transição profissional
de Maria Terezinha, na canção, insere-se nos lugares sociais, demarcados nos efeitos
linguísticos, destinados às pessoas negras do sexo feminino no Brasil, conforme a análise
de Lélia Gonzalez: “O processo de exclusão da mulher negra é patenteado, em termos de
sociedade brasileira, pelos dois papéis sociais que lhe são atribuídos: ‘domésticas’ ou
‘mulatas’.”292 É notório, para prosseguir na aproximação com a reflexão da intelectual, que
a consagração da artista na canção é apresentada em meio às Marias que tiveram glória
rebolando pela história universal. Argumenta Lélia Gonzalez:
291
Elza Soares. Maria, Maria, Maria/ Praga/ Galã enganador/ Escurinho . Compacto duplo. Odeon. 1962.
<https://www.youtube.com/watch?v=x0Fui3QPi_g>
292
GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da
mulher. In: Por um feminismo afro-latino americano. 2020, p. 44. Texto originalmente publicado em 1979.
105
A profissão de mulata é exercida por jovens negras que, num processo extremo
de alienação imposto pelo sistema, submetem-se à exposição de seus corpos
(com o mínimo de roupa possível) através do “rebolado”, para o deleite do
voyeurismo dos turistas e representantes da burguesia nacional. Sem se
aperceberem, elas são manipuladas, não só como objetos sexuais mas como
provas concretas da ‘democracia racial’ brasileira; afinal, são tão bonitas e tão
admiradas!293
O texto do qual foi extraído o trecho acima foi apresentado por Lélia Gonzalez em
um congresso nos EUA, em 1979, e publicado em português em 1982 no livro Lugar de
mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual, em diálogo com avanços e
limites dos movimentos feministas no tocante à questão racial no Brasil, um país no qual o
sistema capitalista apresenta marcas profundas tanto dos séculos de escravismo, quanto do
ideal de “democracia racial”. O texto fornece reflexões relevantes sobre a realidade das
mulheres negras e o estereótipo sexualizado ligado à categoria “mulata”, muito presente
nas canções gravadas por Elza, conforme tem sido demonstrado neste tópico.
293
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica. In: Por
um feminismo afro-latino americano. 2020, p. 59. Texto original de 1979, publicado em 1982.
294
< https://michaelis.uol.com.br/busca?id=KPmVw> Acesso 14/04/2021.
295
SCHWARCZ, Lilia. Nem preto nem branco, muito pelo contrário. 2012, p. 95.
296
SCHWARCZ, Lilia. Nem preto nem branco, muito pelo contrário. 2012, p. 70.
106
Entre dezembro de 1962 e janeiro de 1963, Elza retornou aos estúdios de gravação
e em março de 1963 foi lançado o quarto álbum da cantora, Sambossa. O título, com certo
ar de novo movimento musical, talvez indiciasse uma mudança de direcionamento
expressa pelos créditos presentes na contracapa do disco. Apesar de toda a valorização no
álbum anterior a Astor Silva, o maestro e trombonista a quem foi creditado “50% do
sucesso de Elza”, neste quarto LP a direção artística foi de José Ribamar e a coordenação
artística de Milton Miranda, sem nenhuma indicação da presença de Astor. Contudo, a
audição do álbum não apresenta grandes diferenças da “sambossa” para a “bossa-negra” –
apenas pela percussão ser reduzida à bateria na maioria das faixas -, com o destaque para
os timbres do piano, naipe de sopros e solos de trombone. Do compacto anterior, a canção
“Maria, Maria, Maria” foi escolhida para relançamento no álbum, que abria com uma
regravação de “Rosa Morena”, canção de Dorival Caymmi, originalmente lançada pelo
conjunto Anjos do Inferno e presente como oitava faixa do emblemático álbum de estreia
de João Gilberto, Chega de saudade. Enquanto a versão de João Gilberto destacava seu
canto contido e a batida de violão, com uma instrumentação percussiva de fundo, bastante
297
Sobre o estilo de samba criado por Geraldo Pereira e uma breve biografia do compositor, ver: VIANNA,
Luiz Fernando. Geraldo Pereira. (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 23). 2010.
298
Ver o capítulo 8 de CAMARGO, Zeca. Elza. 2018.
107
Não fala com pobre,/ Não dá mão a preto,/ Não carrega embrulho!/ Pra quê
tanta pose, doutor?/ Pra quê esse orgulho?/ A bruxa que é cega/ Esbarra n a
gente/ E a vida estanca/ Um enfarte lhe pega, doutor/ E acaba esta banca!/ A
vaidade é assim,/ Põe o bobo no alto/ E retira a escada,/ Mas fica por perto/
Esperando sentada/ Mais cedo ou mais tarde/ Ele acaba no chão!/ Mais alto o
coqueiro/ Maior é o tombo do côco/ Afinal todo mundo é igual/ Quando o tombo
termina/ Com terra por cima/ E na horizontal!299
Para além das duas composições de Billy Blanco escolhidas para compor o
repertório do quarto álbum de Elza Soares, uma terceira a apontar uma dimensão racial foi
selecionada para encerrar o disco, “Mulata de verdade”, de Sergio Malta. Vê se mora no
desenho/ dessas curvas que eu tenho/ nesse fogo que eu retenho/ pois se pega faz
enlouquecer/ E é por isso/ que a mulata de verdade/ é melhor que a liberdade/ pra se ter,
pra se usar/ E é por isso/ que a mulata é uma beleza/ é igual a natureza/ que se vê/ e
ninguém pode explicar.300 A canção é mais um exemplo no repertório de Elza, portanto,
que reafirma e naturaliza o estereótipo de sexualidade à categoria “mulata” e sua atribuição
à figura da cantora, por a letra ser em primeira pessoa.
300
Elza Soares. Mulata de verdade (Sergio Malta). Sambossa. Álbum. Odeon. 1963. Faixa 06, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=e8q8g76ls8I>
109
Jorge Duilio Lima Meneses, de nome artístico Jorge Ben, lançou o primeiro disco
compacto em 1963, um dos primeiros lançamentos da gravadora Philips, interpretando
suas composições “Mas que nada” e “Por causa de você, menina”. 302 Conforme texto da
jornalista Ana Maria Bahiana na reedição de 2009 do primeiro LP de Jorge, as canções do
primeiro compacto foram lançadas com “boa receptividade comercial, mas massacradas
pela crítica como ‘infantil’ e ‘primitivo’. Tratamento idêntico foi reservado a Samba
Esquema Novo, onde o violão percussivo de Jorge e sua voz peculiar desenhavam mesmo
301
LOUZEIRO, José. Elza – cantando para não enlouquecer. 2010, p. 139. Itálico do original.
302
Jorge Ben. Mas que nada/Por causa de você, menina. Compacto. Philips. 1963.
110
um novo esquema para o samba, meio maracatu, meio afro, meio rock.”303 Os dois sambas
valorizavam, assim, a batida de violão de Jorge - que explora as possibilidades rítmicas do
instrumento -, em arranjos produzidos pelo saxofonista J. T. Meirelles, com forte presença
de instrumentos de sopro. O primeiro álbum de Jorge Ben foi gravado e lançado no mesmo
ano de 1963. O disco revelava uma pretensão ambiciosa, afinal, o título Samba Esquema
Novo apresentava uma dimensão de manifesto. A capa sugeria o ambiente intimista da
proposta “um banquinho, um violão”, com uma foto de Jorge, sozinho, em fundo bege,
sentado (embora não apareça o local onde esteja sentado, como se estivesse “no ar”),
tocando seu violão (fig. 2). Na contracapa, um extenso texto de Armando Pittigliani
(fig.2),304 produtor do disco e assessor de imprensa da multinacional gravadora Philips,
apresentava o cantor e compositor e seu estilo:
(...) Na sua “batida” tanto se destaca o “baixo” como o “desenho ritmico” de sua
pontuação na maneira toda sua de tocar. Um exemplo disso é o fato de várias
faixas deste disco não contarem com o contra-baixo na orquestração. Somente o
violão de Jorge já dá a necessária marcação dispensando, portanto, aquele
instrumento de ritmo. O “balanço” do acompanhamento repousa quase sempre
no seu violão. (…) Jorge Ben canta o que compõe, o que sente e o que sonha. Há
em suas letras e melodias toda a nostalgia do sangue negro, todo o encanto da
poesia pura e simples do brasileiro autêntico, todo o ritmo empolgante de quatro
séculos de civilização baseada numa miscigenação de raças onde o negro
africano tem papel preponderante. Da Etiópia vieram seus ancestrais. De nobre
linhagem indígena Jorge tirou de sua vó o sobrenome Ben. 305
303
Trecho da contracapa à reedição em CD de Jorge Ben. Samba Esquema Novo. Álbum. Philips. 1963.
Universal Music. 2009. Negrito do original.
304
Sobre Pittigliani, ver reportagem de Luiz Fernando Vianna. Memórias de um inventor de histórias da
MPB. O Globo. Cultura. 25/02/2012. <https://oglobo.globo.com/cultura/memorias -de-um-inventor-de-
historias-da-mpb-4059256> Acesso 30/05/2019
305
Trecho do texto original do LP de Jorge Ben. Samba Esquema Novo. Álbum. Philips. 1963.
111
Fig. 2. Capa e contra-capa LP Jorge Ben. Samba esquema novo. Philips. 1963. Extraído de:
<https://www.musicontherun.net/2017/01/discos -para-historia-samba-esquema-novo-jorge-ben-1963.html>
Acesso 28/08/2019.
306
REIS, Alexandre. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações raciais na obra de
Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p. 44.
307
PAIVA, Carlos E. A. Black Pau: a soul music no Brasil anos 1970. Tese (Doutorado) Ciências Sociais.
Universidade do Estado de São Paulo. 2015, p. 29.
308
Trecho da contracapa à reedição em CD de Jorge Ben. Samba Esquema Novo. Universal Music. 2009.
112
termo “civilizado”, operado por Ana M. Bahiana ao referir ao padrão da Bossa Nova,
indicia um vocabulário valorativo que conforma o debate sobre o “embranquecimento” do
samba; afinal, contrapõe às formas anteriores de execução do samba, como no texto de
apresentação do LP, que retrata a elas como “música popular primitiva”.
309
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977. p, 182.
310
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977. p, 215.
113
311
HOBSBAWM, Eric. História social do jazz. Trad.: Ângela Noronha. 6 ed. rev. e ilust. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2009. p, 82
312
OLIVEIRA, Luciana Xavier. O swing do samba: uma compreensão do gênero samba-rock a partir da obra
de Jorge Benjor. Dissertação (mestrado em Comunicação). Universidade Federal da Bahia. 2008, p. 152.
313
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977. p, 178.
114
“música moderna negra” na década de 1960 foi lançada por Wilson Simonal de Castro,
artista que iniciou carreira fonográfica pela gravadora Odeon, lançando em dezembro de
1961 um compacto no qual interpretava o chácháchá “Terezinha” (Carlos Imperial) e o
rock “Biquinis e borboletas” (Britinho/Fernando César). Um segundo compacto, em junho
de 1962, incluiu “Eu te amo” e “Beija, meu bem” (Carlos Imperial). Ambos lançamentos
sem repercussão no mercado. Assim sendo, diferente de Elza e Jorge, Simonal não
apresentou sucesso imediato com sua primeira oportunidade de gravação em uma grande
gravadora e testou alguns gêneros musicais antes de produzir uma espécie de bossa negra.
O primeiro álbum de Wilson Simonal, Tem ‘Algo Mais’, foi gravado e lançado em
1963, com arranjos de Lyrio Panicalli e apresentando um artista identificado à Bossa Nova,
embora, como sugerido pelo título, anunciando “algo mais”: a potência vocal, o swing e
certas doses de malandragem (entendida como uma forma de interpretar mais cadenciada e
cheia de “ginga”) atribuídas à performance do cantor. Corroborando a sugestão, o
relativamente longo texto de apresentação do álbum na contracapa do disco, escrito por
Ricardo Galeno, parte de uma metáfora de uma revolução comportamental em curso (“o
Brasil já não está dormindo de pijama”) para apresentar o artista a partir da correlação com
um contexto de inovações:
O Brasil já não está dormindo de pijama listrado, como dormia nos dias de
ontem. Há uma espécie de revolução, em que a grande maioria toma parte, isso
para desespero e nariz torcido da minoria quadrada, que não dispensa o pijama,
que cronometra tudo, que “standardiza” tudo, que até pra ir a uma simples ses são
de cinema tem dia estabelecido. O Brasil dos dias de hoje é outro. É
revolucionário. Há uma insurreição violenta contra os padrões preestabelecidos,
tanto que o vestir das moças e dos rapazes, as conversas que eles conversam, as
músicas que preferem, a literatura que absorvem, dizem bem da revolução
existente e que, fatalmente, derrubará os retrógrados tirando -lhes, em praça
pública, o indefectível pijama. [...]
“WILSON SIMONAL TEM “ALGO MAIS” é um disco para o Brasil que tirou
o pijama e não, evidentemente, para o Brasil que continua de pijama. E, como
diz o título da produção de Milton Miranda, responsável pelo tudo de bom que
há no disco, é uma produção feita de “por enquanto”, porque a coisa ficava
avançada demais e a própria maioria teria que parar pra pensar e até mesmo
estudar esse Wilson Simonal admirável, que nasceu avançado e que tem algo
mais pra dar em matéria de intepretação moderna do moderno cancioneiro
popular brasileiro. “Por enquanto”, Wilson Simonal é tudo isso. Aqui está um
“monstro” que canta, que tem o que dar à música nova do Brasil musical que
surge. […] Esta produção, senhores, representa um tratado definitivo da BOSSA
NOVA.314
314
Trecho do texto original do LP de Wilson Simonal. Tem algo mais. Álbum. Odeon. 1963.
115
315
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. 1995, p. 313.
316
Ver os capítulos 10 e 11, respectivamente “Revolução Social” e “Revolução Cultural” de HOBSBAWM,
Eric. Era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. 1995, p. 282-336.
317
ALEXANDRE, Ricardo. O “Pai João” (1938-1960). In: Nem vem que não tem: a vida e o veneno de
Wilson Simonal. 2009, p. 13-35.
116
Conforme o glossário jazzístico de Carlos Calado, o verbete hard bop define uma
“corrente moderna do jazz, mais praticada em Nova York e na costa oeste dos EUA, na
318
ALEXANDRE, Ricardo. Encarte. Wilson Simonal. 1963-1964 (Tem ‘algo mais’. A nova dimensão do
samba. Odeon. 1963, 1964, respectivamente). In: Box Wilson Simonal na Odeon (1961-1971). EMI, 2004.
Cd 1.
319
ALEXANDRE, Ricardo. Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 52-53.
320
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor.” Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil dos anos 1960. 2016, p. 166.
321
GOMES, Marcelo Silva. Samba-jazz aquém e além da bossa nova: três arranjos para Céu e Mar de
Johnny Alf. Tese (doutorado em Música). Universidade Estadual de Campinas. 2010, p. 60.
322
GOMES, Marcelo Silva. Samba-jazz aquém e além da bossa nova: três arranjos para Céu e Mar de
Johnny Alf. Tese (doutorado em Música). Universidade Estadual de Campinas. 2010. p. 94.
117
década de 50. Diferentemente do que pode sugerir o termo ‘hard’ (difícil), suas harmonias
e melodias são mais simples do que as do bebop.”323 A difusão dessa corrente do jazz
moderno é comumente associada ao Funky, que, conforme o glossário de Carlos Calado, é
um “estilo de jazz criado na segunda metade dos anos 50, com forte influência do gospel e
do blues. A partir dos anos 60, quando se popularizou, passou a ser chamado de soul
jazz.”324 A relação com o cool é explicitada por Carlos Calado em outro texto:
Mas é certo que, personalidades à parte, o hard bop trazia intensidade sonora,
vontade de expressar sentimentos mais profundos e uma maneira visceral de
tocar que quase haviam se perdido no jazz do final dos anos 40, quando o cool
jazz e outros estilos influenciados pela música clássica européia deram uma
racional “esfriada” na cena do jazz. Ao enfatizar novamente o blues e o gospel
como raízes essenciais do jazz, o hard bop se estabeleceu, de certo modo, como
um bebop mais espontâneo, mais pé-no-chão.325
O hard bop representava uma influência contraposta à vertente jazzística cool Jazz,
que influenciara a Bossa Nova no Brasil e que, conforme argumentado no início deste
tópico, era um formato executado predominantemente por músicos brancos com impacto
no mercado fonográfico a partir na década de 1950, por nomes como Chet Baker e Stan
Getz. Paralelo ao sucesso comercial e repercussão do cool, músicos negros
produziram uma contraposição ao que consideravam como “frieza” do gênero. Realçando
o sentimento do Blues e da vertente religiosa gospel, esses músicos reafirmaram as
matrizes da música negra estadunidense no jazz, em sintonia com o contexto histórico
estadunidense da década de 1950, no qual acirrava as lutas antirracistas contra a política
segregacionista existente no país. Assim, há uma leitura política nas variações jazzísticas
com o surgimento do Hard Bop e o Soul jazz (ou Funky), que chegaram aos fonogramas
ainda na década de 1950, destacando nomes como Art Blakey e os Jazz Messengers,
Horace Silver Quintet, Lee Morgan e os primórdios de John Coltrane. 326
323
CALADO, Carlos. Horace Silver (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 10). 2007, p. 49.
324
CALADO, Carlos. Horace Silver (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 10). 2007, p. 49.
325
CALADO, Carlos. Art Blakey (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 5). 2007. p, 31-32.
326
Sobre a questão racial entre o Cool e o Hard Bop no jazz ver CALADO, Carlos. Coleção Folha: Clássicos
do Jazz. 2007. 20 Volumes. Particularmente os volumes 05, 07, 10 e 11.
118
Lúcio Alves, que ele se lembrava de ter ouvido. Cantava agora mais baixo, dando a nota
exata, sem vibrato, estilo Chet Baker, que era coqueluxe à época.”327
Todavia, embora o cool tenha apresentado maior impacto no Brasil dos anos 1950,
através da repercussão cultural e fonográfica da Bossa Nova, o hard bop também foi
difundido em terras brasileiras na virada dos anos 1950 para 1960. Inspirados por Johnny
Alf, um músico negro, tido como um dos precursores da Bossa Nova e que apresentava em
suas interpretações a influência do jazzista estadunidense negro Nat King Cole - 328
considerado um pioneiro da introdução de elementos do gospel no jazz nos anos 1930 -,329
os artistas influenciados pelo hard bop tiveram suas performances conhecidas como
“Samba-jazz” ou “Hard Bossa Nova”. Entre estes, conquistaram destaque inicialmente
grupos instrumentais, como o Tamba Trio, liderado pelo pianista Luiz Eça, o Milton
Banana Trio, liderado pelo baterista que empresta o nome ao trio (e que foi casado com
Elza Soares antes da relação dela com Garrincha) e o Copa 5, liderado pelo saxofonista J.
T. Meirelles. Para a consolidação do Samba-jazz, a referência de maior impacto, porém,
não seria um grupo ou indivíduo, mas o local de encontro e atuação dos músicos do
gênero, o Beco das Garrafas: uma agremiação de boates cariocas que possibilitava uma
performance mais livre dos músicos e também a troca de influências e a experimentação.330
No Beco, além da interlocução com o subgênero hard bop, os músicos participantes
articulavam ainda a referência a uma tradição de samba mais popular, dançante e também
com hibridações jazzísticas, desenvolvida em salões: o Samba de Gafieira. Novamente
citando Marcelo Gomes: “[Roberto] Menescal (2007) relata que muitos dos envolvidos
com o SJ, como o próprio Raul de Souza, Dom Um, Edison Machado, entre outros,
moravam na Zona Norte do Rio e tocavam em orquestras e gafieiras.”331
também distantes do “jazz de brancos” do estilo cool e reforçando o recorte racial, mas
através da adoção da vertente jazzística hard bop.
Devido às escolhas de sonoridade new orleans e hard bop, assim como a expressão
de temática antirracista em algumas letras, o argumento da presente tese defende retratar
tanto a produção de Elza quanto o samba-jazz realizado por artistas negros enquanto uma
“Bossa Negra” – tomando de empréstimo o termo dado à produção inicial gravada por
Elza. Tanto Jorge Ben quanto Simonal iniciaram a atuação artística, no início dos anos
1960, no ambiente musical do Beco das Garrafas: “Foi ali que Armando Pittigliani,
produtor da gravadora Philips, descobriu o ainda adolescente Jorge Ben tocando violão”, 332
e estimulou a gravação de seu Samba Esquema Novo, disco que teve arranjos de J. T.
Meirelles e acompanhamento do próprio e seu conjunto Copa 5. Também foi no Beco que
Wilson Simonal lapidou a proposta esboçada no disco Tem ‘algo mais’.
332
MENDES, Vinicius. Os melancólicos dias finais do Beco das Garrafas, joia da noite carioca onde Elis
estreou nos palcos. 15/07/2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/os-
melancolicos-dias-finais-do-beco-das-garrafas-joia-da-noite-carioca-onde-elis-estreou-nos-palcos.ghtml>
Acesso 03/06/2019.
333
CASTRO, Ruy. Wilson Simonal (Coleção Folha: 50 anos de Bossa Nova, v. 17). 2008, p. 23.
ALEXANDRE, Ricardo. Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 55-59.
120
Mesquita, declarou sobre Simonal: “Ele era mais um músico entre nós, e seu instrumento
era a voz.”334
Fig. 3. Capa e contra-capa LP Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. Odeon. 1964. Extraído de:
<https://orfaosdoloronix.wordpress.com/category/wilson-simonal/> Acesso 28/08/2019.
334
ALEXANDRE, Ricardo. Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009. p, 58.
335
Sergio Lobo. Texto original do LP de Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. Álbum. Odeon. 1964.
336
Sergio Lobo. Texto original do LP de Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. Álbum. Odeon. 1964.
121
baixo. A instrumentação em todas as faixas traz forte destaque para a bateria e o naipe de
sopros, notadamente os solistas saxofone e trompete, e o acompanhamento de piano e
contrabaixo. A performance vocal do cantor nas faixas é potente e exibicionista de técnica,
e os vários momentos de uso do scat não remetem ao estilo de Elza Soares, rouco,
semelhante à criação de Louis Armstrong, mas à elaboração da técnica por cantores do
chamado jazz moderno, como a cantora de swing e hard bop Sarah Vaughan. Assim, as
regravações de canções da Bossa Nova, como “Samba do avião”, “Ela é carioca” e “Garota
de Ipanema”, indicam caminhos do samba-jazz pela execução vocal e instrumental.
Esta noite quando eu vi Nanã/ Vi a minha deusa ao luar./ Toda noite eu olhei
Nanã,/ a coisa mais linda de se olhar./ Que felicidade achar enfim/ Essa deusa
vinda só pra mim, Nanã/ E agora eu só sei dizer/ Toda minha vida é Nanã/ É
Nanã/ Nanã/ Esta noite dos delírios meus/ Vi nascer um outro amanhã/ Meio dia
com um novo sol/ Sol da luz que vem de Nanã./ Adorar Nanã é ser feliz/ Tenho a
paz no amor e tudo o que eu quis/ E agora eu só sei dizer/ Toda a minha vida é
Nanã/ É Nanã/ É Nanã...339
337
LOBO, Sergio. Encarte do disco. Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. Álbum. Odeon. 1964.
338
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p, 179.
339
Wilson Simonal. Nanã. A nova dimensão do samba. Álbum. Odeon. 1965. Faixa 01, lado A.
< https://www.youtube.com/watch?v=FjcGr9oluqQ>
122
aquele, com gente espiando um banho de Nanã’, recorda Moacir.”340 Moacir justificou,
segundo os autores, por seu conhecimento e respeito devocional à Nanã enquanto Orixá, a
rejeição à letra de Vinícius, e coube a Mário Telles a produção da letra definitiva, gravada
por Simonal, ainda conforme os autores: “em grande interpretação, respeitando os graves
desse tema singular.” Mário, um compositor branco, irmão da cantora Sylvia Telles,
produziu uma letra respeitosa e reverente à Orixá, seguindo a intenção do compositor
Moacir Santos. A performance de Simonal em “Nanã” acentua o arranjo crescente da
canção, que destaca a bateria e o naipe de sopros, com solos de saxofone, marcando, desde
a primeira faixa, a orientação de sonoridade apresentada como A nova dimensão do samba.
Subi lá no morro só pra ver o que o negro tem/ Pra sambar gostoso e fazer
samba como ninguém/ Negro sambando esquece da dor/ Negro transporta pro
samba o amor/ E faz sambar muita gente que nunca sambou/ Negro se inspira
na negra que passa/ Não é poeta sem a sua cachaça, que ele não bebe sem antes
saudar a Xangô.341
“Samba Esquema Novo” é a terminologia mais usada. Jorge Ben, o nome mais
aplaudido. Seus sambas, os mais ouvidos em toda parte. E é pouco. O valor da
criação de um estilo puramente brasileiro (da “puxada” do violão à inspiração da
composição das letras e melodias, ele é todo verde-amarelo) é realmente
incalculável. (...)
Sua carreira artística tem sido das mais rápidas e consagradoras já registradas por
artista nacional. Em apenas três meses decorridos do lançamento do seu primeiro
disco, alcançava ele o sucesso absoluto em todo o país. Vários foram os prêmios
e troféus conquistados por Jorge Ben em 1963. Entre outros, assinalamos: Troféu
Euterpe, do matutino “O Correio da Manhã”, na pessoa do crítico especializado
Claribalte Passos, dedicado ao “Cantor Revelação do Ano”; ainda como a
“Revelação do Ano”, indicado do cronista de “O Globo”, Sylvio Tullio Cardoso;
em São Paulo, teve oportunidade de receber o troféu já famoso do “Show da
Balança”, promovido pelos alunos da Universidade Mckenzie; além de vários
outros ainda não recebidos quando da confecção desta contracapa.344
343
MORAIS, Bruno Vinícius L. “Sim, sou um negro de cor.” Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho
Negro no Brasil dos anos 1960. 2016. p, 206.
344
Armando Pittigliani. Texto de apresentação. Jorge Ben. Sacudin Ben Samba. Álbum. Odeon. 1964.
345
“Engraçado é que o criticam em um dos seus pontos mais fortes: a letra dos seus sambas. (...) No ‘Samba
Esquema Novo’, as palavras ‘balançam’ ritmicamente em bem feitas divisões melóricas. Antonio Carlos
124
Jobim é um dos poucos a enxergar mais esta virtude no samba de Jorge ‘Sacudin’ Ben.” Armando Pittigliani.
Texto de apresentação. Jorge Ben. Sacudin Ben Samba. Álbum. Odeon. 1964.
346
Armando Pittigliani. Texto de apresentação. Jorge Ben. Sacudin Ben Samba. Álbum. Odeon. 1964.
125
quem tem amor tem coração/ capoeira é que não dá pé, não/ Pois quem é filho de Deus/
deve ajudar os companheiros seus/ mesmo sofrendo, mesmo chorando/ negro tem que
levar a vida cantando. Esta segunda canção expressa um elemento interessante pelo
vocabulário das composições de Jorge Ben: assim como foi destacado outrora, que o autor
não usa o termo “mulata”, há a fuga do termo “homem de cor”, optando por “negro”.
A faixa 5, “Gimbo”, pede certa redistribuição de renda (tira gimbo de quem tem/ e
dá gimbo a quem não tem) utilizando uma palavra de origem africana que designa
“moeda” (gimbo),347 e finaliza com repetições da expressão “emoriô”, que, segundo o
então Ministro da Cultura do Brasil em 2004, o célebre cantor e compositor Gilberto Gil:
“com toda a arte afro-brasileira, Emoriô não é uma tradução literal da matriz Yorubá, nem
uma citação fundamentalista, mas a lembrança do jeito africano de produzir a beleza.”348 Já
segundo a historiadora Rafaela Capelossa Nacked, embasada em obra de Nei Lopes, “a
palavra ‘Emoriô’ é, em iorubá, uma frase que se escreve como ‘E mo ri O’ e significa ‘Eu
te vejo’. No caso, o ‘O’ maiúsculo é que enfatiza referência a um Ser Superior, digno de
reverência, daí a associação a [o ‘pai dos orixás’] Oxalá.”349
347
JUSKULKI, Ana. 2018. Apud GOULART, Lauren C. Cultura africana: um desafio para a educação
infantil. Monografia (Pedagogia). Universidade Regional do Noroeste do Estad o do Rio Grande do Sul.
2018, p. 16.
348
“Ministro Gilberto Gil sobre a exposição África no CCBB”, em < http://cultura.gov.br/ministro-gilberto-
gil-sobre-a-exposicao-africa-no-ccbb-36032/> Acesso 18/04/2021.
349
NACKED, Rafaela C. Chocolate e mel: negritude, antirracismo e controvérsia nas músicas de Gilberto
Gil (1972-1985). Dissertação (História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2015, p, 71.
126
de suas longas vidas, e que se constitui como uma resposta às diferentes formas de
manifestação do racismo em nosso país.”350
A alusão a “preto velho” ainda aparece na última faixa do disco de Jorge, “Não
desanima, João”: Não desanima, não, viu, João? / Pois você é um menino/ que já não
precisa mais sofrer/ pois a lei do ventre livre/ veio lhe salvar/ Preto velho, sim/ está
cansado, precisa descansar. O tema da canção evoca a lembrança da escravidão, uma
herança comum que configura uma espécie de “memória da pele”351 para as comunidades
negras diaspóricas. A composição faz referência à libertação do sofrimento pelo menino
João com a Lei do Ventre Livre, assinada em 28 de setembro de 1871 e que proclamou a
libertação de filhos de escravizadas nascidos a partir daquela data – embora estes ainda
permanecessem sob guarda e usufruto dos “proprietários” destas escravizadas até
completarem 18 anos. Tal lei, contudo, conforme o historiador Alexandre Reis, em análise
desta canção, “abarca não só a liberdade dos filhos, mas também outras práticas como o
direito a acumulação de pecúlio para compra de alforria e a não separação de cônjuges e
filhos menores de doze anos, entre outros.”352 Na canção, o personagem João é motivado
pela possibilidade de liberdade e o acesso ao estudo, contrapondo a um preto velho que
ainda não pode descansar.
O segundo álbum lançado por Jorge Ben no ano de 1964 foi Ben é Samba Bom e,
conforme o texto de Ana Maria Bahiana para a reedição em Cd de 2009, “é essencialmente
uma continuação, em conteúdo e estilo, de Sacudin Ben Samba: sambas supersuingados e
uma dose farta de bossa nova – Jorge chega a gravar Oba-la-lá, sucesso de João
Gilberto.”353 Cabe destacar, inclusive, que a regravação escolhida foi de uma das raras
composições de João Gilberto registradas em fonograma. A autora identifica nesse álbum
indícios da mudança de orientação que a carreira de Jorge irá tomar no final da década: “A
350
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político econômica. In: Por
um feminismo afro-latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p, 54. Texto original de 1982.
351
A metáfora de “memória da pele” como uma forma de ligação identitária para os sujeitos identificados
pelo “significante ‘negro’” na realidade diaspórica foi apresentado em MORAIS, Bruno Vinícius L. “ Não sou
racista”: Racismo, racialismo, o Orgulho Negro e os seus efeitos políticos sociais. In: “Sim, sou um negro de
cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no Brasil dos anos 1960. 2016, p. 126: “Ou seja,
reconhecer-se e ser reconhecido não apenas herdeiro de um histórico traumático nacional (demarcado pela
escravidão, assim como pela ‘memória nacional’ da colonização, do Império, da República e os diversos
eventos integrantes desta identidade brasileira), mas também de uma comunidade que o ap roximava de
experiências coletivas de preconceito nacionais e estrangeiras, compartilhadas em uma ‘memória da pele’.”
352
REIS, Alexandre. Depois que o primeiro homem maravilhosamente pisou na lua. In: Anais do XV
Encontro Regional de História da ANPUH-Rio. 2012, p. 7. Disponível em:
< http://www.encontro2012.rj.anpuh.org/site/anaiscomplementares > Acesso 06/06/2019.
353
Ana M. Bahiana. Texto de apresentação. Jorge Ben. Ben é Samba bom. Philips. 1964. CD. Universal.
2009.
127
jazzística Descalço no parque e a animada Zope zope também trazem sinais visíveis do
estilo-Jorge, enquanto Dandara, hei e Guerreiro do rei antecipam o Ben afro dos anos
70.”354 A diferença de proposta e sonoridade, em linhas gerais, é que as duas últimas
canções citadas focam mais no violão e nos instrumentos de percussão, apesar de contar
com naipe de sopros, enquanto as demais canções seguem a sonoridade samba-jazz,
destacando violão, bateria, piano e sopros, com solos de saxofone. O texto original da
contracapa, provavelmente escrito pelo produtor Armando Pittigliani (não creditado) foca,
novamente, na repercussão dos lançamentos anteriores, conforme o trecho:
Sempre foi difícil para qualquer artista criar um estilo próprio e – sobretudo -
autêntico, baseado em sua própria música popular, sem buscar ‘inspiração’ em
ritmos ou linhas melódicas alienígenas. Pois está o valor de JORGE BEN. (...)
Poucos artistas no Brasil podem se orgulhar de já terem vendido cem mil LPs em
poucos meses de carreira fonográfica. Pois Jorge Ben já ultrapassou esta
fabulosa cifra em pouco mais de seis meses de vida artística e cada novo
lançamento seu resulta em novos ‘recordes’ de vendagem. (...) Este é o seu
terceiro LP e, como de hábito, conta com alguns dos melhores arranjadores do
gênero como: Meirelles, Nelsinho e Gaya.355
A referência a uma recepção bem sucedida dos trabalhos de Jorge agora incluíram
números, com a cifra de cem mil cópias vendidas “em pouco mais de seis meses de vida
artística”. Apesar do texto dizer que “cada novo lançamento seu resulta em novos
‘recordes’ de vendagem”, é possível questionar o sucesso de vendagem do segundo álbum,
afinal, conforme o texto de Ana Maria Bahiana para a reedição em Cd do Sacudin Ben
Samba, “esta segunda coleção de composições suas não rendeu sucessos estrondosos como
Samba Esquema Novo”.356 Neste terceiro LP, apenas uma canção foi identificada nesta
pesquisa por abordar alguma referência a elementos culturais associados às comunidades
negras, a faixa 4 do Lado B, “Dandara, Hei”, cuja letra diz: Dandara, hei/ Dandara,
Dandara/ Boca mais linda/ que deus no mundo botou/ mas fica feia, pois/ não quer o meu
amor/ Moça de Luanda/ Toma jeito/ Veja o que faz, o que diz/ Moça de Luanda/ toma jeito
se quiser ser feliz. A musa da canção é apresentada como moça de Luanda, situando-a na
cidade portuária e mais importante da região africana de Angola, então em luta por
independência contra Portugal. E o nome da musa, Dandara, remete a uma figura simbólica
da luta antirracista e do Feminismo Negro, a liderança do Quilombo de Palmares e esposa
de Zumbi. Segundo a Enciclopédia Negra, escrita por Flávio Gomes, Jaime Lauriano e
354
Ana M. Bahiana. Texto de apresentação. Jorge Ben. Ben é Samba bom. Philips. 1964. CD. Universal.
2009.
355
Texto de contracapa (autoria não creditada). Jorge Ben. Ben é Samba Bom. Álbum. Philips. 1964.
356
Ana M. Bahiana. Texto de apresentação. Jorge Ben. Sacudin Ben Samba. Philips. 1964. Cd. Universal,
2009.
128
Lilia Schwarcz, as pesquisas documentais sobre Palmares não trazem nenhuma referência
ao nome Dandara, cuja primeira referência localizada foi em um romance de João Felício
dos Santos, Ganga-Zumba, editado em 1962, apenas dois anos antes do disco com a
canção de Jorge. Contudo, conforme os autores:
O ano de 1964 trouxe, ainda, mais um álbum de Elza Soares, que então enfrentava,
conforme já explicitado, fortes problemas com a opinião pública. Na roda do samba foi
gravado entre outubro e novembro de 1963, mas somente lançado no ano seguinte. Foi o
primeiro álbum lançado por Elza que não continha um texto de apresentação, apenas os
créditos e as letras.
O novo álbum de Elza novamente não contava com o maestro e trombonista Astor
Silva, indiciando que a saída daquele a quem foi creditado “50% do sucesso” da Bossa
Negra era definitiva. Contudo, a direção musical do disco foi de Lyrio Panicalli, o mesmo
diretor musical dos dois álbuns então lançados por Wilson Simonal, companheiro de Elza
na Odeon. Já a orquestração, ficou por conta de Severino Araújo e a direção artística foi
mantida com Milton Miranda. A sonoridade do disco manteve a forte presença do naipe de
sopros, o maior destaque nas canções, substituindo os solos de trombone por eventuais
solos de flauta ou trompete. A percussão na maioria das canções foi reduzida a bateria ou
pandeiros e o timbre do piano continuou como destaque, seja no acompanhamento ou em
solos, assim como os usos de scat pela cantora. A sonoridade sugere uma aproximação
com o samba-jazz. Entre regravações de canções lançadas nas décadas de 1940 e 1950 e
novas composições, a temática predominante no disco foi a romântica. Contudo, foi o
primeiro álbum lançado por Elza a não reproduzir a representação sexualizada da categoria
“mulata”. Aliás, a faixa de abertura do Lado B, “Nega”, composição de Afonso Teixeira e
357
GOMES, Flávio; LAURIANO, Jaime; SCHWARCZ, Lilia. Enciclopédia negra. 2021, p. 146, 147.
129
Waldemar Teixeira, diz Nêgo/ não despreze tua nêga/ não me deixe tão sozinha/ do
contrário eu vou morrer/ de dor/ Nêgo/ se tu não tens compaixão/ vou mandar fazer/
despacho/ pra conseguir teu coração/ mas diz pretinho, nêgo/ Há muito tempo tu devias
entender/ que tua vida/ é a razão do meu viver. O termo “nêgo”, enunciação informal de
“negro”, é cantado com ternura, mas dada a difusão do termo como expressão afetuosa
entre casais das camadas populares no Brasil, não configura necessariamente um vocábulo
de posicionamento racial. A única canção que aborda certa dimensão racial inequívoca no
disco é a quarta faixa do Lado B, “Princesa Izabel”, composição de Izidro Quintanilha e
Lourenço Quintanilha que contrapõe preconceito racial à ascensão social:
Você fala de preto/ que o preto é isto/ que o preto é aquilo/ Preto tem muita
linha/ ele sempre teve estilo/ muita gente fala/ sacode carola/ Preto hoje é
doutor/ preto é senador/ e joga muita bola/ hoje todo preto é bem contente/ leva
a vida diferente/ a rezar e olhar para o céu/ quando vem chegando a t ardezinha/
ele acende uma vela/ e faz uma prece, agradece/ à Princesa Izabel .358
358
Elza Soares. Princesa Izabel (Lourenço Quintanilha/ Izidro Quintanilha). Na roda do samba. Álbum.
Odeon. 1964. Faixa 04, Lado. B. < https://www.youtube.com/watch?v=LTMzJn2czVA >
359
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raça e democracia. 2012, p. 158.
130
foi possível através de um “golpe branco” que, novamente segundo Marcos Napolitano,
configurou um mérito de engenharia política, estabelecendo a limitação do poder político
do presidente da República através da “solução parlamentarista”.365
365
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 34-35.
366
Esta seria a “segunda onda do anticomunismo”, analisada em MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda
contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo, Perspectiva: FAPESP, 2002.
367
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. 2006, p, 10.
368
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O Segundo Grande Surto Anticomunista: 1961-1964. In: Em guarda contra o
“Perigo Vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). 2002, p. 231-278.
132
bancária, eleitoral, tributária, etc.) apresentadas como “reformas de base”. Tal projeto
político ganhou forças com a vitória de Jango no plebiscito que findou com o
parlamentarismo, em janeiro de 1963, retomando os maiores poderes do presidencialismo.
O cenário estimulou também o imaginário de setores da esquerda radical, que novamente
mobilizou o vocabulário revolucionário, conforme demonstrado por Marcos Napolitano:
“As esquerdas reafirmaram seu projeto político a partir do tema das reformas, que para
alguns era o começo da ‘Revolução Brasileira’.”369 O acirramento da politização atingiu as
Forças Armadas, com episódios de sublevação nos quartéis, e foi em meio a esta situação
específica que ocorreu o Comício do Automóvel Clube, em que Elza Soares cantou.
E também este golpe de Estado, justificado por parte dos apoiadores como um
“contragolpe preventivo” - os que acreditavam estar às portas de um governo comunista -,
se apropriou do vocabulário revolucionário, como expresso no Ato Institucional n°1, de 9
de abril de 1964, desde a primeira frase: “É indispensável fixar o conceito do movimento
civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que
houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das
369
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 37.
370
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 58.
371
Para uma boa síntese de todo esse cenário, ver: NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar
brasileiro. 2014. Capítulos 1 e 2 (“Utopia e agonia do governo Jango” e “O carnaval das direitas: o golpe
civil-militar”), p. 13-67.
133
372
Ato Institucional n°1. < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.ht m> Acesso 19/04/2021.
373
NAPOLITANO, Marcos. O mito da “ditabranda”. In: 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p.
69-95.
374
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 1964, p. 18. A presente tese segue a
reflexão sobre a natureza do regime de Marcos Napolitano em tal obra: “A coalização antirreformista saiu
vencedora, enquanto a coalização reformista de esquerda foi derrotada. Entretanto, não endosso a visão de
que o regime político subsequente tenha sido uma ‘ditadura civil-militar’ ainda que tenha tido entre os seus
sócios e beneficiários amplos setores sociais que vinham de fora da caserna, pois os militares sempre se
mantiveram no centro decisório do poder.”, p. 11.
134
375
GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, raça e democracia. 2012, p. 162.
376
GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, raça e democracia. 2012, p. 162, nota de rodapé 13.
377
GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, raça e democracia. 2012, p. 163.
378
Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm#art 12> Acesso 04/06/2019. Grifos do autor.
135
379
Constituição de 1946. Disponível em <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1940-
1949/constituicao-1946-18-julho-1946-365199-publicacaooriginal-1-pl.html> Acesso 04/06/2019. Grifos do
autor.
380
Desenvolvimento para integração social e econômica do povo discurso proferido no palácio do congresso,
em Brasília, a 26 de maio de 1966, durante a convenção da aliança renovadora nacional (arena) que
homologou seu nome como candidato ã presidência da república, para suceder ao marechal Humberto de
Alencar Castello Branco. In: Discursos Costa e Silva, p. 65. Disponível em:
<http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes -oficiais/catalogo/costa-e-silva/costa-e-silva-
pronunciamentos-do-presidente-discursos-mensagens-e-entrevistas-1966/view> Acesso 04/06/2019.
381
Discursos Costa e Silva, p. 74. Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes -
oficiais/catalogo/costa-e-silva/costa-e-silva-pronunciamentos-do-presidente-discursos-mensagens-e-
entrevistas-1966/view> Acesso 04/06/2019.
136
A identificação dos modos de leitura da questão racial por parte das forças de
Estado brasileiras em contextos autoritários foi tema de pesquisa da historiadora Karin
Kossling na dissertação As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do
DEOSP/SP (1964-1983). Com a pesquisa, a autora constatou que a vigilância aos
movimentos negros por parte do DEOSP (Departamento de Operações Especiais) e do
DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) em São Paulo remontam aos anos 1930,
“sustentada por uma visão policial que classificava essas associações como ‘introdutoras’
da questão racial no Brasil e, por consequência, geradora de conflitos que poderiam
desestabilizar a ‘democracia racial brasileira’.”382 A perspectiva apresentada no discurso de
Costa e Silva, conforme apontado acima, compartilha de tal leitura racial e fornece indícios
da orientação expressa no Ato Institucional n°2.
Palavra que ferindo o que Angola tem de mais democrático - a sua democracia
social através daquela mestiçagem que vem sendo praticada por numerosos luso-
angolanos, ao modo brasileiro – fere o Brasil; e torna ridícula - supremamente
ridícula - a solidariedade que certos diplomatas, certos políticos e certos
jornalistas do Brasil de hoje pretendem, alguns do alto de responsabilidade
oficiais, que parta de uma população em grande parte mestiça, como a brasileira,
382
KOSSLING, Karin Sant Anna. As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do DEOPS/SP
(1964-1983). Dissertação (Mestrado em História). Universidade de São Paulo. 2007, p. 09.
137
Contudo - para trazer de volta a este texto a atenção ao objeto principal da pesquisa
-, enquanto o Estado brasileiro consolidava em uma ditadura militar, completando o
segundo ano desde o golpe civil-militar, 1965 representou mais um ano fértil para a
produção da Bossa Negra. Em janeiro Elza Soares iniciou as gravações para seu próximo
álbum, que foram finalizadas em março e o LP, intitulado Um show de Elza, lançado em
maio de 1965. O disco novamente trazia a direção musical de Lyrio Panicalli, direção
artística de Milton Miranda e as orquestrações ficaram a cargo do maestro Nelsinho. A
sonoridade do álbum, no entanto, na maioria das canções evocava o samba-canção,
predominando no arranjo orquestras de cordas e interpretações vocais pungentes, que não
recordavam o estilo vocal consagrado pela cantora. Cinco das doze canções do álbum,
porém, referenciavam a identidade musical associada à cantora, juntando às cordas o naipe
de sopros e diálogos entre os scats de Elza e o timbre do trombone, como na regravação de
“Samba da minha terra” – um clássico do repertório de Dorival Caymmi, lançado em 1940
e com várias regravações, inclusive a de João Gilberto, em 1961. O disco também
registrava uma composição de Garrincha, o samba “Pé redondo”, cuja performance
destacou muitos scats e duetos com trombone. Nenhuma canção referenciou o tema racial.
O texto da contracapa do disco, escrito por Jotapê, chama a atenção por ser o primeiro
texto de seus LPs que faz referência às comparações do canto de Elza com o de Louis
Armstrong: “E muita gente andou descobrindo que a cantora possuía um ‘scat singing’
383
FREYRE, Gilberto. O Brasil em face das Áfricas negras e mestiças. (1962). Apud. GUIMARÃES,
Antonio S. A. Classes, raça e democracia. 2012, p. 162. As grafias “afroracistas” e “afrorracistas” seguem o
texto.
138
Assim como Elza Soares, Jorge Ben também lançou em 1965 um dos álbuns menos
louvados em sua discografia, Big Ben. O LP original não apresentou texto de apresentação
na contracapa, mas, no texto para a reedição do álbum em Cd, em 2009, Ana Maria
Bahiana pontua sobre o trabalho: “Big Ben, seu álbum dessa fase, não tem o mesmo brilho
384
Jotapê. Texto do encarte. Elza Soares. Na roda do samba. Álbum. Odeon. 1964.
385
Não confundir com o consagrado compositor e intérprete Noel de Medeiros Rosa, mais conhe cido como
Noel Rosa. Este Noel Rosa de Oliveira nasceu no morro do Salgueiro em 1920 e faleceu em 1988. Teve sua
primeira canção gravada em 1948, “Falam de mim”. Para uma breve biografia,
<http://dicionariompb.com.br/noel-rosa-de-oliveira/dados-artisticos>
386
Elza Soares. O neguinho e a senhorita/O que passou, passou . Compacto. Odeon. 1965.
< https://www.youtube.com/watch?v=QDWaZjyI8Y4>
139
Em duas das canções de Big Ben havia a valorização da cultura negra. As canções
fazem novas referências à religiosidade afro-brasileira, o que, conforme tem sido destacado
no decorrer deste tópico, pode ser considerada uma temática frequente na produção de
Jorge Ben. A terceira faixa do Lado B do disco, “Maria Conga”, composição de Nélio da
Silva, repete a referência apresentada na canção “A tamba”, composição de Jorge lançada
no Samba Esquema Novo, que evocava a Conga está chamando. Maria Conga é o nome de
uma falange, uma entidade religiosa da religião afro-brasileira Umbanda, e a narrativa da
canção gira em torno do Aluá que, conforme Alexandre Reis dos Santos, é “uma bebida
fermentada feita à base de cereais, principalmente milho e frutas, servida em algumas
festas religiosas de matriz africana e, segundo Nei Lopes, tem origem em costumes dos
povos bantos.”389
Já chegou Maria Conga vendendo aluá/ Aluá de Maria Conga eu vou comprar/
Pois aluá de Maria Conga é bom e pode acabar/ Maria Conga, tem dó de mim/
Maria Conga, não faz assim/ Maria Conga, traz um pouquinho pra mim/ Aluá de
Maria Conga.390
Encerrando este álbum, a sexta faixa do Lado B é uma composição de Jorge Ben,
“Agora ninguém chora mais”, que cita a divindade Iansã quando diz Menino que é bom
não cai/ pois é protegido de Iansã. O arranjo da canção, em forte acento samba-jazz,
destaca as performances de uma vigorosa bateria e do violão – executados por Dom Um
Romão e Jorge –, entrecortados por um piano solista.
Chorava todo mundo/ Mas agora ninguém chora mais/ Chora mais/ Chorava
mãe, chorava pai/ Na hora da partida/ Mas era uma beleza/ Em vez de tristeza/
Chorava mãe, chorava pai/ Chorava todo mundo mas agora ninguém chora
mais/ pois o menino voltou/ Voltou homem, voltou doutor/ Menino que é bom
387
Ana M. Bahiana. Texto de apresentação. Jorge Ben. Big Ben. Álbum. Rosenblit. 1965. Cd. Universal.
2009.
388
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”: negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p.
56.
389
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”: Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2012, p.
119.
390
Jorge Ben. Maria Conga. Big Ben. Álbum. Phillips. 1965. Faixa 03, lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=CTGcC7OXrV8>
140
não cai/ Pois já nasceu com a estrela/ E sempre a mente sã/ Menino que é bom
não cai/ Pois é protegido de Iansã/ Chorava todo mundo/ Mas agora ninguém
chora mais.391
391
Jorge Ben. Agora ninguém chora mais. Big Ben. Álbum. Phillips. 1965. Faixa 06, lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=NkUXLki5ACk>
392
RODRIGUES, José Carlos. Introdução. In: CACCCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-
brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 19.
393
RODRIGUES, José Carlos. Introdução. In: CACCCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-
brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 7.
141
Todavia, se Elza Soares e Jorge Ben apresentaram no ano de 1965 discos de menor
expressão em sua discografia, o contrário pode ser dito de Simonal que, em tal ano, lançou
dois álbuns que demonstram o período mais fértil e consagrado de sua produção até então.
Segundo o texto de Ricardo Alexandre para o relançamento desses dois discos em 2004:
Se, em seus dois primeiros LPs, o garoto de Areia Branca simulava o bom gosto
de seus novos amigos jazzistas, pouco mais de dois anos depois ele já dominava
os pequenos truques de interpretação da música moderna, deixando aflorar sua
marca pessoal – a do fã de soul music e das big bands americanas, interpretando
com a malícia dos subúrbios cariocas, falando as gírias das ruas.
Os dois álbuns que lançou em 1965 são o registro do auge desse processo,
quando Simonal aprendeu a desvendar cada milímetro de sua extensão vocal e
cantou sobre arranjos cada vez mais ousados, feitos sob medida para ele e para
seu já famoso ‘swing’. O LP Wilson Simonal (...) segue reinventando “Marina”,
de Dorival Caymmi, transformando Zé Keti em um hardbop e mergulhando
Durval Ferreira (outro bossanovista do subúrbio) em Henry Mancini. São deste
álbum as únicas colaborações entre Simonal e o ‘rei do samba jazz’, o
saxofonista J. T. Meirelles.396
conforme apresentado anteriormente, indicia da transição do hard bop para o soul jazz
entre as influências jazzísticas. Na escuta do primeiro dos discos lançados em 1965, Wilson
Simonal, essa característica nos arranjos pode ser identificada na ênfase blues das
sonoridades de “Só tinha de ser com você”, “Marina”, e “Juca Bobão”, que recriaram as
canções, tamanha a diferença em relação às gravações anteriores - de Tom Jobim, lançada
no ano anterior, para a primeira canção, e Dick Farney e Dorival Caymmi, nas décadas de
1940 e 1950, para a segunda. O disco tinha texto de apresentação de Ronaldo Bôscoli, que
sintetizava a então trajetória artística de Simonal e declarava: “A Bossa já teve a vez do
violãozinho tímido, a vez do ‘genial’ João Gilberto. Agora chegou a vez de Simonal. A vez
da voz.”397 Já o texto de Ricardo Alexandre para a reedição do álbum, destaca a presença
do saxofonista J. T. Meirelles, o mesmo que trabalhava nos álbuns de Jorge Ben; e cabe
destacar a referência à transformação de “Zé Keti em um hardbop”, alusão à única
representante da linguagem política negra antirracista.
Quatro anos após a gravação de “Cantiga do morro” por Elza Soares, a temática dos
morros reapareceu com Simonal. Foi a segunda faixa do Lado B do LP, que reuniu as
canções “Opinião/O morro não tem vez/ Batucada surgiu”. “Opinião” foi originalmente
lançada em 1964 pelo compositor, o sambista Zé Keti, e no mesmo ano foi regravada no
segundo LP de Nara Leão, então conhecida como “musa da Bossa Nova”. Compondo o
repertório do espetáculo Show Opinião em 1964, estrelado por Nara, Zé Keti e João do
Vale - peça considerada a primeira grande obra artística de resistência ao golpe de Estado
efetuado em abril do mesmo ano -, a canção ficou consolidada na memória social sobre o
período como um clássico da resistência à ditadura militar. Segundo obra do jornalista
Franklin Martins, no segundo volume da sua trilogia Quem foi que inventou o Brasil? A
música popular conta a história da República: “Muito mais que uma canção, Opinião
passou à história como uma marca de resistência ao regime militar.”398 Recepção que pode
ser melhor esclarecida com uma citação de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello:
Além do título de uma peça que, como foi dito, reuniu no palco Nara Leão, Zé
Keti e João do Vale, o samba “Opinião” inspirou os nomes de um jornal, de um
teatro, do grupo que encenou a peça e do segundo elepê de Nara, lançado no
final de 64. Simbolizando uma resistência ao processo de remoção de favelas,
que então executava o governo do Estado da Guanabara, “Opinião” é uma
canção de protesto explícito (“Podem me prender/ podem me bater/ podem até
deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro eu não saio
não...”), que, cantada numa época de forte repressão, funcionou como desafio à
397
Ronaldo Bôscoli. Texto de contracapa. Wilson Simonal. Wilson Simonal. Álbum. Odeon. 1965.
398
MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República.
Volume II - de 1964 a 1985. 2015, p. 52.
143
Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer. Que eu
não mudo de opinião. Daqui do morro eu não saio, não/ O morro não tem vez e
o que ele fez já foi demais. Olhem bem vocês, quando derem vez ao morro toda
cidade vai cantar/ Batucada surgiu, nem um branco ficou. Que ser branco é ter
cor... E pouco amor. Canta amor que é mais branco o sorriso do negro, que
nasceu só sem cor, cheio de amor. E vai vivendo vendo a vida terminar.
Chorando tanto por quem nunca pôde amar/ O morro não tem vez e o que ele fez
já foi demais. Olhem bem vocês, quando derem vez ao morro toda cidade vai
cantar/ A batucada surgiu, nem um branco ficou.400
Simonal, crescido na favela Praia do Pinto - que passou por um violento processo
de remoção, anos após a gravação de Simonal -, reforçou a mensagem original da letra
através da seleção de versos de outras canções, como o morro não tem vez (Tom Jobim) e
batucada surgiu nem um branco ficou (Marcos e Paulo S. Valle). Demarcou, assim, que
nos versos podem me bater, podem me prender, que eu não mudo de opinião. Daqui do
399
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza H. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, vol. 2: 1958-
1985. São Paulo: Ed. 34, 1998., p. 86-88.
400
Wilson Simonal. Medley: Opinião/O morro não tem vez/Batucada surgiu. Wilson Simonal. Álbum.
Odeon. 1965. Faixa 02, Lado B. <https://www.youtube.com/watch?v=KvfycjLpZTA > As barras de divisão
foram aqui utilizadas para demarcar as canções presentes no medley e não os versos, como nas outras
citações musicais.
401
Para uma biografia de Zé Keti, ver <http://dicionariompb.com.br/ze-keti/b iografia >
402
PESTANA, Marco e OAKIM, Juliana. A ditadura nas favelas cariocas. In: Rio de Janeiro (estado).
Comissão da Verdade do Rio. Relatório. Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2015, p. 118-126.
144
morro eu não saio, não!, o “morro” retratado não é metáfora à resistência ao exílio político
ou convocação de enfrentamento à ditadura. Afinal, a canção “transfigurada em hino da
resistência à ditadura, inadvertidamente, teve a válida e importantíssima causa de oposição
ao golpe silenciando e deixando subterrânea à memória nacional a mensagem original.”403
A versão de Simonal apresentou um arranjo e performance que a transformaram em um
samba-jazz de forte influência hard-bop, conforme destacado por Ricardo Alexandre. A
mudança permitiu à canção sugerir, ainda, um diálogo, a partir da sonoridade, entre a
experiência social das comunidades faveladas brasileiras, mote do tema poético da canção,
com a experiência de marginalidade nos guetos estadunidenses, representada pelas
comunidades negras do hard bop.404
O segundo álbum gravado por Wilson Simonal em 1965 foi lançado em novembro
do mesmo ano. S’imbora manteve a identificação samba-jazz, na interlocução com o hard
bop e obteve bom resultado comercial, posto que, conforme dados do IBOPE da cidade de
São Paulo, o LP esteve como quinto no índice de vendas.405 Esse álbum, o quarto da
carreira de Simonal, apresentou, como nos outros dois, arranjos de Lyrio Panicalli e Eumir
Deodato, mas incluiu o maestro negro Erlon Chaves. Tal qual expresso no disco anterior, o
instrumental incluiu piano, um eventual e discreto violão ou guitarra semiacústica tocado
como instrumento rítmico, bateria, contrabaixo e um numeroso naipe de sopros, com solos
de saxofone, trompete e, em menor proporção, flauta. Portanto, uma instrumentação de
orquestra de jazz, as Big Bands, bem mais “encorpada” do que a utilizada nos discos de
Jorge Ben – que apresentavam grupos instrumentais menores. A instrumentação escolhida,
portanto, demonstra diferenças na execução do samba-jazz entre os artistas.
de potentes riffs (frases curtas e repetitivas) dos metais.”406 Os vocais no estilo comumente
destacavam scats, notadamente com o cantor Jimmy Rushing. Durante a década de 1950, a
orquestra foi reagrupada com dezesseis integrantes e maior liberdade para os músicos
solistas, agora extraídos entre instrumentistas de jazz moderno - herdeiros do be bop, como
os adesistas da vertente hard bop - o formato denominado “O novo testamento”. 407
Isto foi Ebó/ Foi lá na Bahia que eu achei teu amor/ Lá no pelourinho que é
ladeira da dor/ Onde escravo no tronco penou muitos anos atrás/ Onde agora,
escravo que sou, também sofro demais/ Sinto teu açoite de feitor sobre mim/ Oh,
valei-me agora, meu Senhor do Bonfim/ Dá-me um pouco de paz, Oxalá, dá-me
um pouco de fé/ Que eu estou amarrado a um olhar, um olhar candomblé/ Isto
foi Ebó, na ladeira está/ Vou descer agora e dizer a meu Babalorixá/ Que eu não
vivo só.408
406
RIBEIRO, Helton. Count Basie (Coleção Folha. Lendas do Jazz, v. 8) 2017, p. 08.
407
RIBEIRO, Helton. Count Basie. (Coleção Folha Lendas do Jazz; v. 8) 2017, p. 32-33.
408
Wilson Simonal. Ladeira do Pelourinho. S’imbora. Álbum. Odeon. 1965. Faixa 1, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=gaQi8iC36c8>
409
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977, p. 107.
146
O ano de 1966 chegou trazendo importantes modificações nas carreiras dos três
nomes então identificados neste capítulo como representantes da Bossa Negra. A pioneira
Elza Soares voltou aos estúdios da Odeon no final de março para iniciar novas gravações,
que foram concluídas em maio do ano, de modo que em junho foi lançado o álbum Com a
Bola Branca. O disco repetiu a parceria entre Milton Miranda, Lyrio Panicalli e o maestro
Nelsinho, mas agora com uma aproximação ao samba-jazz. Talvez devido à presença de
Lyrio, a sonoridade deste disco é próxima à executada nos discos de Simonal, porém, com
maior ênfase no ritmo de samba, efetuando uma identificação mais forte com a vertente
Samba de Gafieira. O ritmo é ditado por uma bateria vigorosa, que disputa o destaque nos
arranjos com a orquestra de instrumentos de sopro. A identificação com o samba de
gafieira é explicitada já na segunda canção do disco, “Estatuto de gafieira”, mais uma
composição de Billy Blanco gravada por Elza. A adesão ao samba-jazz por Elza, realizada
a partir da sonoridade das gafieiras, valorizou a personalidade musical desenvolvida pela
cantora, sobretudo em seus quatro primeiros discos, ao fornecer uma base instrumental
sólida para os duetos entre a técnica scat e solos de trombone.
O texto de contracapa do disco Com a Bola Branca não faz referência às mudanças
de sonoridade, seja deste trabalho ou do anterior da cantora, limitando-se a ressaltar a
relação de Elza com o samba. A faixa de abertura do disco, “Quizumba”, composição de
Serrinha, aproxima, na temática e narrativa, da canção “Ladeira do pelourinho”, analisada
acima, ao trazer os versos: Eu preciso ir na Macumba/ pra tirar essa Quizumba/ que
jogaram em cima de mim/ não é praga de madrinha/ procurei andar na linha/ (...) Na
Bahia tem o Senhor do Bonfim/ vou pedir a ele tirar a Quizumba de cima de mim. O termo
de origem africana “quizumba” no português brasileiro “significa ‘confusão’”, 412 ao qual o
eu-lírico da canção buscará resolver na “Macumba” (“nome que os leigos usam para os
410
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros. 1977, p. 200, 201.
411
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros. 1977, p. 60.
412
PETTER, Margarida. O léxico compartilhado pelo português angolano, brasileiro e moçambicano. In:
Revista Veredas, n° 9. 2008, p. 71.
147
cultos que empregam a magia negra e que os adeptos de Umbanda de Linha branca
chamam Quimbanda. Nome genérico que os leigos usam para designar cultos afro-
brasileiros.”413 ) com o intermédio do Senhor do Bonfim - que, nos cultos afro-brasileiros, é
sincretizado a Oxalá, como anteriormente pontuado.
Outra canção destaca no disco de Elza Soares de 1966, embora não pela temática
racial, mas pela abordagem da temática de gênero: a faixa que encerra o Lado A do LP, “A
vida como ela é”, composição de Julio D. de Castro. A canção, com destaque nos naipes de
metais e uma interpretação vigorosa da cantora (sem teor pungente), diz: Você andou lendo
demais/ ‘A vida como ela é’/ Meu caso é muito amor, rapaz/ não me bata mais porque/ eu
me aborreço e abandono você/ Nelson Rodrigues sempre diz, mas não faz/ infelizmente
convenceu você/ que a mulher gosta de apanhar/ não é nada disso, você pode crer/ me
bata mais e vai se arrepender. A letra da canção, portanto, faz um explícito combate à
violência doméstica com referência à coluna diária publicada pelo dramaturgo Nelson
Rodrigues entre 1950 e 1961 no jornal Última Hora. Devido ao sucesso e longevidade da
série, do longo número de contos, foi publicada em 1961 uma seleção como Cem contos
escolhidos - A vida como ela é, em dois volumes, pela editora J. Ozon. 414
413
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977, p. 166.
414
RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é... 3.ed. 2012, p. 09 (Nota do editor).
415
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p.
52.
148
finais do último tópico. Ou, ao menos, as mudanças sinalizadas por Jorge e Simonal, posto
que Elza, em seu trabalho de 1966, aproximou-se do samba-jazz. O disco seguinte da
cantora, O máximo em samba, foi gravado entre maio e junho de 1967 e lançado em junho
do mesmo ano e, embora com a mesma equipe que esteve na produção do disco anterior,
retomou a sonoridade consolidada pela artista nos primeiros álbuns. O repertório do novo
LP era calcado em sambas lançados originalmente nos anos 1930 e 1940 e executados com
os destaques aos instrumentos de percussão, naipes de sopros e solos de trombone da
Bossa Negra de Elza, mas sem o vigor nas execuções que caracterizava a sonoridade
samba-jazz, a partir do hard bop. Apesar deste retorno, o disco pouco explorava a técnica
dos scats (uso somente na canção “Devagar com a louça”) e em nenhuma faixa aparecia
qualquer referência à temática racial. E, em agosto, a cantora já retornou aos estúdios, onde
iniciou mais uma série de regravações de sambas clássicos, agora interpretados em dueto
com o famoso cantor Miltinho, em uma sonoridade de samba mais convencional - focada
no violão e percussão, deixando o piano e os instrumentos de sopro com discrição nos
arranjos -, saindo em agosto o disco Elza, Miltinho e Samba.
416
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p.
59.
150
417
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p.
141.
418
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977. p, 187.
419
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977, p. 183.
420
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977, p. 182.
421
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-
1969). 2010, p. 44.
151
422
NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 2008, p. 56.
423
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-
1969). 2010, p. 72.
424
Para uma referência sobre os primórdios da Jovem Guarda, inclusive com relatos quanto ao impacto da
Bossa Nova entre Roberto e Erasmo Carlos, a tentativa de ambos de inserção e a sensação de rejeição nos
círculos bossanovistas no início dos anos 1960, ver CARLOS, Erasmo. Minha fama de mau. 2009.
152
Roberto) e bateria. A temática predominante das canções era romântica e certa rebeldia
juvenil, a partir da realidade urbana, além da apologia aos carros (temas associados ao
cinema estadunidense voltado ao público adolescente, como a produção dos anos 1950
estrelada pelos ícones juvenis James Dean e Marlon Brando) em canções como “É
proibido fumar”, “O calhambeque”, e as já citadas “Rua Augusta” e “Eu sou terrível”.
Eu tinha a certeza de que não era ‘da patota’. Todo mundo me respeitava, disso
eu não tinha dúvida, mas era sempre como se eu fosse uma exceção. Eu era a
neguinha que tinha chegado lá e todo mundo só olhava pra mim como se eu
fosse boa para cantar samba e pronto. Aquele era o lugar onde eles podiam olhar
para mim e se sentir confortáveis.425
425
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 203. A percepção de um “lugar social” circunscrito às pessoas negras
no universo profissional do entretenimento no Brasil também foi denunciada por Simonal, no ano de 1970:
“Se fosse branco, eu teria feito sucesso há muito mais tempo. (...) Porque a imagem do negro é aquele tipo
marginal. Preto tem que ficar tocando pandeiro, caixa de fósforos, ficar fazendo palhaçada no palco. Como
eu faço um gênero que o pessoal acha que é gênero de branco, como eu sou um show-man, então, dizem que
fiquei pretensioso, sou metido a importante. Isto é uma consequência do preconceito racial e a gente tem que
denunciar.” Correio da manhã. Caderno anexo. 04 de dezembro de 1970, p. 03.
426
CAMARGO, Zeca. Elza. 2018, p. 207.
153
427
Wilson Simonal. A Banda/ Disparada/ Quem samba fica/ Máscara negra. Compacto duplo. Odeon. 1966.
Para uma análise detalhada dessas gravações e suas orientações jazzísticas, ver MORAIS, Bruno Vinícius L.
de. “Sim, sou um negro de cor.” Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no Brasil. 2016, p. 160-
167.
428
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 101.
429
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 101.
154
era um pastor negro de vertente protestante Batista, Martin Luther King, e o gospel era
uma base musical da religiosidade cristã dos negros nos Estados Unidos da América. Mas,
para quem conheça o gênero, fica evidente que os spirituals não são necessariamente
canções “pesadas”, como atestam as discografias de duas das mais emblemáticas cantoras
do gênero, Sister Rosetha Tharpe (considerada, por sua performance na guitarra elétrica,
uma pioneira do rock and roll – mesmo que a sua música fosse criada “para louvar o
Senhor”) ou a jazzística Mahalia Jackson. Sobretudo no decorrer dos anos 1950 e 1960, os
spirituals e o gospel executados nos cultos dentro das igrejas protestantes passaram a
expressar mensagens antirracistas de adesão aos Direitos Civis - seja em canções de
andamento lento ou as dançantes, “suingadas” -, posto que, assim como Luther King,
outros pastores engajaram-se na luta. De tal forma, o pedido de Simonal, que compôs este
spiritual, de ter um arranjo animado não destoa do gênero ou do tema. Quanto à letra,
embora Ronaldo Bôscoli seja reconhecido como avesso à vertente engajada da música
brasileira, sua composição apresentou forte densidade política:
Sim, sou um negro de cor/ meu irmão de minha cor/ o que te peço é luta, sim,
lutar mais/ Que a luta está no fim/ Cada negro que for/ outro negro virá para
lutar/ Com sangue ou não, com uma canção também se luta, irmão/ Ouve minha
voz/ Luta por nós/ Luta negra demais é lutar pela paz/ Para sermos iguais. 430
“Tributo a Martin Luther King”, como a canção foi intitulada, foi gravada em 28
de fevereiro de 1967, mas, segundo Ricardo Alexandre, “a música foi imediatamente retida
pela censura, que condicionou sua liberação a uma série de ‘esclarecimentos’ que se
estenderiam por quatro meses.”431 Assim, a canção só foi lançada comercialmente em
junho do mesmo ano, pela gravadora Odeon, em um compacto duplo, com “Deixe quem
quiser falar”, “Ela é demais” e “Está chegando a hora”. Contudo, quando do lançamento do
fonograma, a canção já era conhecida pelo grande público. A primeira apresentação da
composição ocorreu ainda em março, quando Simonal foi convidado para abrir o show de
entrega do troféu Roquete Pinto, destinado aos “melhores artistas do ano”, um espetáculo
exibido em horário nobre pela TV Record. O elenco incluía os Golden Boys (cuja carreira
foi fortalecida com o sucesso da Jovem Guarda, com a qual sua sonoridade doo wop foi
associada), Vanderléa, Elis Regina e Roberto Carlos. Simonal comemorava o impacto
comercial da Pilantragem e do álbum Vou deixar cair... Era esperado, portanto, que o
cantor executasse um de seus recentes sucessos, “Carango”, “Mamãe passou açúcar em
430
Wilson Simonal. Tributo a Martin Luther King/Deixa quem quiser falar/Ela é demais/Está chegando a
hora. Compacto duplo. Odeon. 1967. Faixa 01, lado A. <
https://www.youtube.com/watch?v=NYppRXA4_0s >
431
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem.” A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 101.
155
mim” ou “Meu limão, meu limoeiro”. No entanto, anunciou uma canção ainda não lançada
comercialmente, conhecida apenas pelo público de seus shows mais recentes. Enquanto
sua banda de apoio, o Som 3, esboçava a introdução, o cantor, bastante sério, dirigiu-se à
plateia, apresentando, em tom didático, o tema da canção:
Eu compus uma música de parceria com meu amigo Ronaldo Bôscoli e intitulei
“Tributo a Martin Luther King”. Martin Luther King é um negro norte -
americano. O mérito maior de Martin Luther King é lutar cada vez mais pela
igualdade dos direitos das raças. Essa música, eu peço permissão a vocês, porque
eu dediquei ao meu filho, esperando que no futuro ele não encontre nunca
aqueles problemas que eu encontrei, e tenho às vezes encontrado, apesar de me
chamar Wilson Simonal de Castro.432
“Na época – acho que posso dizer isso agora –, Simonal estava muito atento à
criação do Partido dos Panteras Negras nos Estados Unidos”, lembra o pianista.
“Era algo que dizia muito a ele, que estava se transformando em um astro, mas
pouco tempo antes era obrigado a entrar pelas portas de trás nos lugares em que
queria ir. Esse assunto sempre estava em pauta nos shows, ou como uma piada
leve, ou em um texto sério. E ele ficou encantando com Martin Luther King e
acompanhava em detalhes a luta dele como ativista dos direitos dos negros.” 433
432
Texto transcrito a partir da cena registrada em vídeo. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=FH0Ws4Sw0ZE> Último acesso em 07/06/2019.
433
ALEXANDRE, Ricardo. Livreto do box de cds Wilson Simonal na Odeon (1961-1971). EMI. 2004
156
apenas das comunidades negras estadunidenses. Portanto, o tema da canção não faz um
comentário sobre uma realidade estrangeira, mas aborda o reconhecimento de uma questão
compartilhada. Esse movimento é realizado com o sujeito da canção partindo da primeira
pessoa do singular (sim, sou um negro de cor), dirigindo à segunda do singular (meu irmão
de minha cor o que te peço é luta, sim) para sintetizar na primeira do plural, (luta por nós.
Para sermos iguais). Franklin Martins, em verbete sobre a canção, ressalta:
O compacto com “Tributo a Martin Luther King”, como já informado, foi lançado
em junho de 1967, embora a canção fosse executada em shows do cantor e no programa de
tv supracitado. Um vestígio da consagração da canção entre o público do cantor está no
próximo lançamento de Simonal, o LP duplo, gravado ao vivo, Show em Simonal. O LP foi
gravado em 24 de junho de 1967 - mesmo mês em que foi lançado o compacto -, e lançado
comercialmente pela Odeon em outubro de 1967. A penúltima faixa do álbum era uma
regravação de “Tributo a Martin Luther King” e o fonograma registra a empolgação da
plateia, que acompanha, cantando, por toda a letra da canção. 435 No texto de apresentação
da reedição em Cd deste disco, Ricardo Alexandre esclarece sobre o espetáculo registrado:
434
MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República.
Volume II - de 1964 a 1985. 2015, p. 78, 79.
435
Wilson Simonal. Show em Simonal. (Álbum duplo. Odeon. 1967). Cd. EMI. 2004, faixa 18.
436
Ricardo Alexandre, texto do encarte. Wilson Simonal. Show em Simonal (Odeon. 1967). Cd. EMI, 2009.
157
437
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: Ibope. Série: PD. Pesquisa de venda de discos. Notação: PD
005.
438
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: Ibope. Série: PD. Pesquisa de venda de discos. Notação: PD
006.
158
da obra de Audre Lorde, Irmã Outsider: “Nos Estados Unidos é comum que as pessoas
negras se tratem ‘irmão’, seguindo a lógica de que a experiência de ser um negro em
diáspora os une como uma família.”439 A fraternidade é mobilizada na canção através do
evocativo a uma luta comum, em prol da reivindicação por igualdade (luta negra demais/
para sermos iguais). A canção marca, portanto, a interlocução entre as comunidades
negras estadunidenses e as brasileiras expressa na sonoridade e no tema da composição.
Nos conceitos mobilizados por esta tese, o ato de fala realizado no discurso de
Simonal ao entoar o spiritual “Tributo a Martin Luther King” marca uma nova etapa de
expressão da Linguagem Política Negra Antirracista elaborada na canção brasileira: a
consolidação da Linguagem Política do Orgulho Negro a partir das letras das canções.
439
LORDE, Audre. Irmã Outsider. Ensaios e conferências. 2020, p. 30 Versão original de 1984. (Nota da
tradutora).
440
NASCIMENTO, Elisa Larkin. 2003, p. 27. Apud. ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento [Coleção
Retratos do Brasil Negro]. 2009, p. 16, nota de rodapé 2.
159
Apesar dos antecedentes, segundo a pesquisa realizada para esta tese, na canção
brasileira, “Tributo a Martin Luther King” é pioneira ao conciliar tal interlocução
transnacional, a partir da realidade dos EUA, tanto em sonoridade quanto em letra.
441
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento [Coleção Retratos do Brasil Negro]. 2009, p. 16.
442
DOMINGUES, Petrônio. “Este samba selvagem”: o charleston na arena transatlântica. In: GOMES,
Flávio dos Santos; DOMINGUES, P. Da nitidez e invisibilidade. Legados do pós-emancipação no Brasil.
2013, p, 198.
443
FERNÁNDEZ, Marta. Aimé Césaire: as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em
versos. In: TOLEDO, Áureo (org.). Perspectivas pós coloniais e decoloniais em relações internacionais.
2021, p. 46.
160
Nas páginas que seguem apresentamos duas reportagens sobre faces diversas do
mesmo problema: o da antifraternidade. Numa, o jornalista conta o que viu nos
Estados Unidos. Noutra, uma pequena equipe corre algumas capitais do Brasil
para espiar como anda o preconceito de cor por essas bandas, testando as
diferenças de reação em face de um branco e de um negro. (...) Seria cômodo e
tranquilo tratar apenas da tragédia americana. Não nos limitamos, todavia, a falar
dos Estados Unidos porque não queremos contribu ir, ainda que pelo silêncio,
para que aconteça um dia aqui o que está agora desgraçadamente acontecendo lá.
Preferimos a incomodidade e os riscos de ser mal compreendidos, mal julgados,
acusados de estar fazendo justamente aquilo contra que estamos dispost os a
lutar, de atiçar o ódio de raça que queremos extirpado antes de nascer. (...) A
444
GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. 2009, p. 61.
445
Realidade. Editora Abril. Ano II. Número 19. Outubro de 1967, p. 11.
161
446
Realidade. Editora Abril. Ano II. Número 19. Outubro de 1967, p. 21.
447
Realidade. Editora Abril. Ano II. Número 19. Outubro de 1967, p. 22.
448
Realidade. Editora Abril. Ano II. Número 19. Outubro de 1967, p. 22.
449
A título de exemplo, Ivair Alves dos Santos informa: “O mundo chegava para mim através da revista
Realidade. E teve um número que foi especificamente sobre racismo. Aquele número foi demolidor. Eu tinha
os mesmos 16, 17 anos quando li. Foi um impacto grande, uma das leituras que marcaram muito a minha
trajetória.” In: ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amílcar Araújo. Histórias do movimento negro no Brasil:
depoimentos ao CPDOC. 2007, p. 72.
162
brasileiro em uma ditadura militar que, a cada momento, demonstrava-se mais autoritária.
Agravando os riscos, abordar a discriminação racial no Brasil poderia configurar subversão
e ameaçar a “integração nacional”, conforme o imaginário das forças do Estado quanto às
ameaças à Segurança Nacional. Era a releitura de uma lei original de janeiro de 1953, que
configurava crime contra a ordem política e social “Fazer publicamente propaganda [...] de
ódio de raça, de religião ou de classe”,450 agora parte de uma nova legislação autoritária:
450
KOSSLING, Karin Sant’Anna. As lutas anti-racistas dos afro-descendentes sob a vigilância do DEOSP
(1964-1983). Mestrado (História). Universidade de São Paulo. 2007, p. 16.
451
KOSSLING, Karin Sant’Anna. As lutas anti-racistas dos afro-descendentes sob a vigilância do DEOSP
(1964-1983). Mestrado (História). Universidade de São Paulo. 2007, p. 41-43.
452
Constituição da República Federativa do Brasil de 1967.
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm> Acesso 24/04/2021.
163
453
MORAES FILHO, B. “Elementos básicos da nacionalidade as instituições” In: Segurança e
Desenvolvimento, ano XVII, n. 130, Rio de Janeiro: Associação dos Diplomados da Escola Superior de
Guerra, 1968, p.53. Apud KOSSLING, Karin Sant’Anna. As lutas anti-racistas dos afro-descendentes sob a
vigilância do DEOSP (1964-1983). Mestrado (História). Universidade de São Paulo. 2007, p. 84. [A citação
está transcrita aqui conforme consta na dissertação]
454
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm> Acesso 24/04/2021. A referência
historiográfica sobre o AI-5 é extensa e o diálogo será aprofundado no decorrer do próximo capítulo desta
tese. Para uma leitura pontual e sintética, ver NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar
brasileiro. 2014, p. 83-94.
164
disco curto com mais uma série de regravações de canções mais antigas, em dueto. Ambos
os álbuns sem abordar o tema racial.
Jorge Ben teve no ano de 1968 mais um momento de pausa na carreira, sem lançar
nenhum trabalho fonográfico. Já Simonal, consolidava, com sucesso comercial, o formato
da Pilantragem. Em novembro de 1967 o cantor já havia lançado o seu segundo álbum do
ano, Alegria, Alegria, que apresentou as temáticas juvenis ou mesmo infantis de sua
proposta musical em canções como “Escravos de Jó”, “Vesti Azul” e “Nem vem que não
tem”, além de regravações de canções dos anos 1930 e 1940, como “Agora é cinza” e “Aos
pés da Cruz”, releituras de canções de Festival, como “Belinha”, entre outras, em arranjos
que destacavam a sonoridade jazzística e dançante. Em agosto de 1968, o álbum Alegria,
Alegria, vol. 2. ou Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga, repetiu a
fórmula e apresentou, entre outras, “Sá Marina”, canção que angariou sucesso à época, e
“Zazueira”, composição de Jorge Ben – o início de uma parceria e amizade entre Jorge e
Simonal. Os dois LPs de Simonal evidenciaram a seu público que o caminho apontado em
“Tributo a Martin Luther King” não demonstrava uma reorientação da carreira em direção
a um repertório dito engajado.
assim dizer, um compacto lançado por Elza em junho de 1969 incluiu uma versão de
“Chove Chuva”, de Jorge Ben, regravada com uma discreta - mas inovadora para a
sonoridade então registrada nos discos da cantora - guitarra elétrica.
Em meados dos anos 60, uma série de escolhas infelizes haviam descarrilhado a
carreira ascendente de Jorge Ben Jor. (...) E foi exatamente a Tropicália que
contribuiu para o resgate de Jorge, que se viu contratado por Guilherme Araújo e
incluído no elenco do programa de TV “Divino, Maravilhoso”. Não que os
tropicalistas influenciassem Jorge - era o contrário, a música de Ben surgia para
eles como a mais perfeita síntese de sua proposta estética. 456
455
NAPOLITANO, Marcos. A república das bananas: o tropicalismo no panorama da MPB. In: Seguindo a
canção. Engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). 2010.
456
Ana Maria Bahiana. Texto de contracapa. Jorge Ben. Jorge Ben. Álbum. Philips. 1969. Cd. Universal,
2009.
166
assinados por Rogério Duprat, maestro responsável pelos audaciosos arranjos das canções
tropicalistas. O disco marcou, ainda, o retorno de Jorge à gravadora Philips, com assinatura
do texto de contracapa ficando a cargo, novamente, de Armando Pittigliani que destacou:
“A rítmica marcante de suas composições aliada ao incrível ‘balanço’ negróide de seu
violão ‘sui generis’ tornaram suas singelas letras meras pontuações de ritmo integradas em
um todo essencialmente selvagem e, ao mesmo tempo, lírico.”457 Contudo, apesar dos
arranjos do disco explorarem riffs do naipe de sopros, enriquecendo a execução realizada
pelo violão de Jorge, a sonoridade resultante não era próxima ao samba-jazz, tampouco
explicitava a incorporação de outras vertentes da Black Music estadunidense. A
originalidade da proposta musical criada por Jorge Ben a partir de 1969 – aliás, a fase mais
celebrada de sua discografia -, portanto, neste momento inicial, apesar de representar o
desenvolvimento do processo de hibridações realizado pelo artista, não é considerada pela
pesquisa desta tese como exemplo da sonoridade da Black Music Brasileira.
457
Armando Pittigliani. Texto de contracapa. Jorge Ben. Jorge Ben. Álbum. Philips. 1969.
458
CARMICHAEL, Stockely; HAMILTON, Charles V. Poder Negro, la politica de liberación em Estados
Unidos. 1976 (Edição mexicana).
167
e dignidade/ de me libertar/ por isso, sem preconceito eu canto. Além de trazer palavras
em inglês no diálogo com o irmão de cor - referenciando a fraternidade diaspórica negra
destacada parágrafos atrás -, a conexão entre o primeiro homem que pisou na lua (em
1969, o astronauta estadunidense branco Neil Armstrong realizou o feito), a dignidade e
libertação de preconceitos a partir dos direitos evoca o contexto racial dos EUA.
459
OLIVEIRA, Luciana Xavier de. O swing do samba: uma compreensão do gênero samba-rock a partir da
obra de Jorge Ben Jor. Dissertação (Comunicação). Universidade Federal da Bahia. 2008, p. 125.
168
A produção musical de Wilson Simonal entre 1968 e 1969 não voltou a expressar a
Linguagem Política do Orgulho Negro. Contudo, os discos do cantor registram a
interlocução com a Black Music estadunidense, a partir da incorporação explícita dos
gêneros soul e funk. E em uma produção influente, afinal, segundo o biógrafo Ricardo
Alexandre sobre o ano de 1969, em comparação entre Simonal e o campeão em vendas de
discos, Roberto Carlos: “Naquele momento, o que se via era as vendagens de Roberto
caindo de 500 mil para 300 mil discos, e as de Simonal orbitando entre 500 e 600 mil.”460
460
ALEXANDRE, Ricardo. Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 147.
461
CALADO, Carlos. James Brown. [Coleção Folha Soul & Blues, v, 3] 2015, p. 19.
462
CALADO, Carlos. James Brown. [Coleção Folha Soul & Blues, v, 3] 2015, p. 22.
169
James Brown não era o único cantor soul com grande impacto comercial no
período. Apenas no ano de 1967, o cantor negro Otis Redding consagrou-se no Monterey
Pop Festival, cantando no mesmo palco que astros brancos do rock, como Janis Joplin, The
Byrds, Canned Heat e Country Joe and The Fish e havia feito uma bem sucedida turnê na
Europa. Conforme Carlos Calado, no livreto Otis Redding: “Já em outubro desse mesmo
ano, os leitores da influente revista britânica Melody Maker elegeram Otis Redding como
‘vocalista n°1 do mundo.’ Pela primeira vez em dez anos, esse prêmio deixou de ser
entregue a Elvis Presley”,463 um indicativo do impacto do artista para além das plateias
negras de seu país. A carreira deste cantor, contudo, foi interrompida em dezembro de
1967, com o desastre aéreo que o matou.
Para além do sucesso da soul music, o impacto da proposta funk, recém criada por
James Brown, foi particularmente sentido em 1968. Tal impacto ocorreu com uma canção
composta por Brown a partir das revoltas ocorridas em bairros negros dos EUA após o
assassinato de Martin Luther King, em 4 de abril de 1968. Lançada em agosto, “Say it
loud, I'm black, I'm proud” era um funk dançante, com letra combativa. Novamente citando
Carlos Calado: “O impacto dessa canção ficou estampado nos hit parades: ‘Say it loud’
frequentou os primeiros lugares da parada de rhythm & blues durante três meses, além de
chegar ao décimo lugar na parada pop.”464
De tal forma, a adoção por Simonal dos gêneros pop da black music, soul e,
sobretudo, funk, explicitava a interlocução com uma produção recente de músicos negros
estadunidenses, ainda que fosse um desenvolvimento mais simples para um músico que já
se ancorava nas vertentes jazzísticas soul jazz e funky - com as quais os gêneros de música
pop citados dialogavam. E, assim como Simonal demonstrou estar atento a esses gêneros,
setores da indústria fonográfica brasileira também identificaram o potencial comercial da
música jovem (pop) negra oriunda dos Estados Unidos. O pianista Dom Salvador, músico
negro consagrado nos trios de samba-jazz, e figura que obteve enorme influência para a
música brasileira, esclareceu sobre isso em entrevista, ao comentar a respeito do impacto
do produtor Hélcio Milito para sua carreira:
Depois, fiz o disco Dom Salvador em 69, em que participaram alguns músicos
como o Cassiano, o baixista Paulo César Barros, o Laércio de Freitas e o Durval
Ferreira. Nessa época, o Hélcio tinha recém-chegado dos EUA. Estava tendo um
movimento lá fora da black music e ele voltou com a idéia de que eu era o cara
463
CALADO, Carlos. Otis Redding [Coleção Folha Soul & Blues, v. 10] 2015, p. 08.
464
CALADO, Carlos. James Brown. [Coleção Folha Soul & Blues, v, 3] 2015, p. 08, 09.
170
que poderia fazer um negócio desse no Brasil. Ele me mostrou um discos do Sly
& The Family Stone, Blood Sweat & Tears, Chicago e Kool & The Gang. Eu
achei que poderia fazer uma mistura. Aí surgiu o Abolição, a concepção foi dele
e a idéia foi minha. Eu fiz uma mistura, até choro a gente tocava. 465
Hélcio Milito, antes de ser produtor musical, foi baterista do grupo de samba-jazz
Tamba Trio, liderado pelo pianista Luiz Eça. E, conforme mencionado por Salvador, já
como produtor musical, Hélcio o convidou para formular no Brasil uma sonoridade soul e
funk, na linha da realizada pelos artistas estadunidenses citados. Uma primeira iniciativa
em prol do redirecionamento da carreira de Salvador foi a sugestão de Hélcio para a
mudança de seu nome artístico, conforme é explicitado na mesma entrevista com o
pianista, quando, perguntando sobre a origem do apelido “Dom”, diz: “O Hélcio Milito,
baterista do Tamba Trio, foi quem me deu esse apelido. Ele é um cara visionário, muito
inteligente. Disse que eu deveria procurar um nome mais artístico e sugeriu Dom. Eu
gostei e assim ficou.”466
Salvador vinha de uma carreira sólida como instrumentista, tendo tocado com Jorge
Ben, Quarteto em Cy e Simonal e atuado como pianista de Elis Regina na gravação do
álbum Samba eu canto assim, lançado em 1965. Entre 1965 e 1966, lançou quatro álbuns
autorais e instrumentais de Bossa Negra pelas gravadoras Philips e Mocambo. Na Philips,
em discos creditados ao Rio 65 Trio (Salvador ao piano, Sergio Barroso no baixo e Edison
Machado na bateria) lançou em 1965 o álbum Rio 65 Trio (que inclui sua composição mais
conhecida, “Meu fraco é café forte”) e A Hora e a vez da M.P.M (disco no qual o texto de
contracapa, de autoria de Armando Pittigliani, diz: “Mas a principal diferença entre o ‘iê-
iê-iê’ e a música moderna é que aquele, como uma mulher bonita e sem dotes de
inteligência, atrai mas não prende, enquanto a MPM tem mais profundidade, mais ‘miolo’,
mais base.”). E na Mocambo, creditados ao Salvador Trio (Salvador, Edson Lobo no baixo
e Victor Manga na bateria), lançou o LP Salvador Trio, em 1965, e (com a mesma
formação do Rio 65 Trio), Tristeza, em 1966. Os três primeiros discos seguiam a cartilha
do samba-jazz, notavelmente o primeiro, cujas performances, mesmo em canções já
conhecidas (“Desafinado”, “Minha namorada”) pouco evocavam o ritmo do samba, soando
mais nitidamente hard bop. O último disco citado, Tristeza, aproximou à sonoridade da
Jovem Guarda, com Salvador executando um órgão elétrico (em performance com
similitudes à de Lafayete, organista da banda de Roberto Carlos à época), mas também
465
Tatiana Queiroz. Após 35 anos, Dom Salvador grava disco brasileiro e se apresenta no Rio . Publicado em
27/07/2007. Disponível em: <http://www.musitec.com.br/revistas/?c=2472> Acesso 04/05/2020.
466
Tatiana Queiroz. Após 35 anos, Dom Salvador grava disco brasileiro e se apresenta no Rio . Publicado em
27/07/2007. Disponível em: <http://www.musitec.com.br/revistas/?c=2472> Acesso 04/05/2020.
171
O retorno aos estúdios por Salvador, na CBS, em 1969, documentou o avanço das
mudanças apresentadas em seu último disco, acrescidas das influências sugeridas por
Hélcio Milito. O álbum instrumental Dom Salvador apresentava o pianista a partir da
identificação transnacional, afinal, o título do texto de contracapa anunciava: “Dom
Salvador. Síntese brasileira da música negra no mundo”. É interessante destacar a
construção da narrativa sobre a mudança de sonoridade do artista no texto de apresentação
do disco, pois diz que no “tempo em que ficou sem gravar, Dom Salvador aproveitou para
fazer uma pesquisa racional e em profundidade sobre a música do nosso tempo, buscando
um caminho que dissesse alguma coisa e que estivesse de acordo com o gosto do
público.”467 Concluindo o apagamento da sugestão do produtor Hélcio Milito em sua dose
de direcionamento comercial, o texto afirma: “Salvador considera este disco a sua primeira
oportunidade real para gravar o que queria e como queria. E é grato à CBS por isso.” Os
músicos participantes não são creditados no LP, mas, conforme informado pelo músico no
trecho de entrevista citado acima, incluiu o baixista branco Paulo César Barros (do grupo
de rock Renato & Seus Blue Caps, e que também tocava com Roberto Carlos e Erasmo
Carlos) e o jovem guitarrista paraibano negro Cassiano, então do grupo Os Diagonais. A
sonoridade do disco foi predominantemente elétrica, com uma guitarra rítmica onipresente
(sem solos), bateria estilo rock ou soul, contrabaixo elétrico em marcação convencional, e
destacando duetos entre piano (acústico ou elétrico) e órgão elétrico. Em duas canções, o
arranjo elétrico foi acrescido do uso de cuíca: “Folia de Reis” e “O Rio”. E cabe pontuar a
versão de “País tropical”, então sucesso de Simonal composta por Jorge Ben.
467
Texto de contracapa. Autoria não creditada. Dom Salvador. Dom Salvador. Álbum. CBS. 1969.
172
Pilantragem, com o qual gravou dois discos, 468 antes de enfim lançar o novo disco como
líder, em 1969. O conjunto Impacto 8 incluía o saxofonista e flautista Oberdan Magalhães,
os pistonistas (trompetistas) Bill Vogen e Sérgio, o baixista Romildo, o violonista e
guitarrista Fredera e o baterista Robertinho Silva, além do vocalista Betinho. O disco
intercala execuções instrumentais e com vocal, e repertório amparado em regravações de
músicas estadunidenses, como “I’ve got a feelin”, de James Brown (“I feel good”) e
“Cantaloupe Island” do pianista negro de jazz Herbie Hancock.
Em 1969, Eva foi convidada para lançar carreira solo. Seu primeiro álbum foi
lançado pela gravadora Odeon com texto de contracapa escrito por Wilson Simonal:
“Algum tempo atrás quando apareceu o Trio Esperança, todo mundo ficou vidrado. O Trio
é um tremendo sucesso. Embora as três vozes irmãs se harmonizassem divinamente,
poucas pessoas percebiam que ali se estava formando a futura ‘maior cantora do
Brasil’.”469 As canções do álbum apresentavam baladas soul de arranjos discretos, entre
naipe de sopros, guitarra elétrica discreta, órgão, bateria, contrabaixo e piano, mas cujo
destaque maior era concedido à voz da cantora. A canção que ficou mais conhecida do
disco - e uma das mais emblemáticas de toda a carreira da cantora - é a faixa de abertura, a
balada soul “Casaco Marrom (Bye, Bye, Ceci)”.
468
< https://dicionariompb.com.br/raul-de-souza/dados-artisticos> Acesso 25/04/2021.
469
Wilson Simonal. Texto de contracapa. Eva. Eva 2001. Álbum. Odeon. 1969.
173
tempo e no espaço” possibilitado pelas telas dos aparelhos televisores, a letra da canção faz
uma alusão à questão racial nos EUA no verso: vim da Casa Branca, da causa negra, sem
me cansar. O verso sugere uma identificação do viajante andarilho que narra a canção com
a Linguagem Política do Orgulho Negro, ao apontar sua origem na causa negra e na
residência oficial do presidente da República estadunidense e sede oficial do poder
Executivo do país. No entanto, a temática não é explorada ou desenvolvida na letra da
canção, que apresenta imagens desconexas, aparentando uma bricolagem das referências
pop que se apresentam diante este andarilho.
Fig. 4: Eva. Eva 2001. Odeon. 1969. Extraído de: < https://immub.org/album/eva-2001> Acesso 26/04/2021.
A proposta deste primeiro capítulo constituiu em situar a leitora ou leitor desta tese
quanto ao objeto e tema desta pesquisa: a Black Music Brasileira e a expressão da
Linguagem Política do Orgulho Negro. Para tal intuito, o argumento defendido neste
capítulo é que o desenvolvimento da Black Music no Brasil ocorreu durante a década de
1960 e entre artistas de impacto no mercado fonográfico, tendo como pioneira Elza Soares.
A partir da Bossa Negra, foi localizada uma proposta alternativa à Bossa Nova, que
promovia hibridações do samba – sobretudo o subgênero Samba de Gafieira – com
sonoridades jazzísticas da Black Music estadunidense: as vertentes New Orleans, Hard
Bop, Soul Jazz e Funky. Na segunda metade da década ocorreu a consolidação da
Linguagem Política do Orgulho Negro, com a gravação do spiritual “Tributo a Martin
Luther King”, por Wilson Simonal. A canção marcou tanto a apropriação de interlocuções
mais explícitas das sonoridades estadunidenses, a partir não mais da hibridação, mas da
incorporação (sedimentando, de tal modo, a formulação de uma Black Music brasileira);
como a expressão de letras que articulavam a realidade das comunidades negras
estadunidenses e suas formas de reivindicação, à realidade de exclusão das comunidades
negras brasileiras, identificando uma experiência compartilhada.
estilo Cidade Nova, articulou hibridações com o gênero jazzístico New Orleans, em uma
sonoridade conservada entre as décadas de 1930 a 1960 nos ambientes das Gafieiras.
Também desde a década de 1920 a pesquisa identificou exemplos da expressão do
antirracismo por parte de compositores negros na música popular brasileira, no que foi
denominado Linguagem Política Negra Antirracista. A tradição de sonoridade do Samba
de Gafieira sustentou a produção de Elza Soares e do samba-jazz, no que foi etiquetado
como Bossa Negra a partir de 1960, o recorte inicial da tese.
Por fim, seguindo, sobretudo, a trajetória dos artistas associados à Bossa Negra, a
pesquisa localizou as primeiras evidências de incorporação no Brasil das sonoridades de
música jovem (ou, conforme atribuídas à época, música pop) soul e funk. Mas as canções
também evidenciaram os elementos de uma nova forma de expressão do antirracismo na
canção brasileira, o que a tese denominou de Linguagem Política do Orgulho Negro.
Capítulo Dois:
De 1970 a 1978:
Introdução.
O olhar retrospectivo para as duas primeiras décadas do século XXI explicita uma
interessante reação da indústria fonográfica perante a crise no mercado de CDs: a reedição
do catálogo de álbuns de artistas de maior expectativa comercial a partir da criação de
livretos, com comercialização ampliada em bancas de jornais. O público consumidor de
CDs originais – termo difundido à época para qualificar aqueles produzidos pela indústria
fonográfica, diferenciando, assim, das reproduções caseiras, então chamadas de “CDs
piratas” ou a reprodução nas plataformas digitais – passou a ser seduzido por coleções que
ofereciam um fácil acesso à grande parte da produção de determinado cantor ou cantora.
As coleções traziam também um livreto explicando o contexto de cada disco reproduzido,
tudo isso facilitado pela distribuição semanal de um exemplar nas bancas de jornais de
todo o país e com um valor acessível (em média, de R$7,99 a R$19,99 cada livro-CD, em
todo o período de 20 anos do recorte citado). Concluindo a estratégia de vendas, além das
edições isoladas de cada álbum em livro-CD, comumente há a oferta de uma caixa fechada
e personalizada incluindo a coleção completa então produzida (o chamado box).
470
Wilson Simoninha. Rei da luta (Jair Oliveira). Melhor. Álbum. Som Livre. 2008. Faixa 04.
471
< http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/08/colecao-reune-20-cds-comentados-de-chico-
buarque.html> Acesso 06/05/2021.
178
Tim Maia 1970, como o disco ficou conhecido é, segundo muitos críticos, o
álbum responsável pela introdução e popularização do soul, a moderna música
negra americana, no Brasil. Mais que importar o ritmo, Tim tropicalizou-o,
472
< https://oglobo.globo.com/cultura/colecao-de-discos-de-tim-maia-vendida-em-bancas-com-album-
inedito-2821686> Acesso 06/05/2021.
473
< https://www.discogs.com/pt_BR/label/1062398-Cole%C3%A7%C3%A3o-Milton-Nascimento> Acesso
06/05/2021.
474
< https://musicapave.com/artigos/box-de-livros-cds-celebram-as-carreiras-de-caetano-e-gil/> Acesso
06/05/2021.
475
< https://tomjobim.folha.com.br/colecao.html> Acesso 06/05/2021.
476
< https://promoelis.folha.com.br/#about> Acesso 06/05/2021.
179
477
GANDRA, José Ruy. Tim Maia 1970. (Coleção Tim Maia, v. 1). Abril Coleções. 2011, p. 7. Grifo nosso.
478
MIGUEL, Antonio C. Guia da MPB em CD: uma discoteca básica da música popular brasileira. 1999, p.
9.
479
MIGUEL, Antonio. Guia da MPB em CD: uma discoteca básica da música popular brasileira. 1999, p.
254. Grifo nosso.
480
PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. SEBADELHE, Zé Octávio. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 33.
481
OLIVEIRA, Luciana Xavier. A cena musical da Black Rio. Estilo e mediações nos bailes soul dos anos
1970. 2018, p. 89.
180
music se faria ouvir com o lançamento do primeiro disco de Tim Maia, as investidas
sonoras de Jorge Ben e a consagração performática de Tony Tornado no V Festival
Internacional da Canção (V FIC).”482 A dissertação em Música de Eloá Gabrielle
Gonçalves, Banda Black Rio: o soul no Brasil da década de 1970, informa que “Um dos
exemplos importantes de se ressaltar quando se trata dos precursores da soul music e do
funk no Brasil é o cantor e compositor Tim Maia. Em 1959, o artista que seria tido como
um dos ‘pais do soul brasileiro’ iniciava sua estadia nos EUA, que durou cerca de cinco
anos.”483 Retrocedendo ao ano de 1979, na crítica musical também é localizada tal
atribuição, como em Importação e assimilação: rock, soul e discotheque, artigo da
jornalista Ana Maria Bahiana publicado por Adauto Novaes na obra panorâmica Anos 70:
No trecho citado acima, Ana Maria Bahiana localiza a referência de Tim Maia
ainda na década de 1960, antecipando, portanto, em relação ao lançamento do primeiro LP
gravado pelo artista e a conquista de enorme sucesso popular. A mesma localização
temporal foi feita por Luciano Marsiglia na reportagem Desarmado e Perigoso: como o
movimento Black Rio apavorou a ditadura militar (Orgulho Negro. 1976-1977), publicada
na edição especial “História do Rock Brasileiro. Anos 70”, da revista Super Interessante,
de novembro de 2004. Ao mencionar sobre a difusão da sonoridade na indústria
fonográfica da segunda metade da década de 1970, a reportagem menciona: “A Phonogram
tinha dois tradutores do soul: Tim e Cassiano. Desde 1968, Tim difundia o gênero.”485
Conforme será abordado neste segundo capítulo da tese, as duas publicações referenciam a
trajetória artística de Tim Maia, que lançou dois discos compactos entre os anos de 1968 e
1969 sem repercussão comercial e apareceu em quadros do programa televisivo Jovem
Guarda, antes de conseguir lançar o LP de estreia.
482
PAIVA, Carlos Eduardo Amaral de. Black Pau: a soul music no Brasil nos anos 1970. Tese (Doutorado
em Ciências Sociais). Universidade Estadual Paulista. 2015, p. 5.
483
GONÇALVES, Eloá Gabrielle. Banda Black Rio: o soul no Brasil na década de 1970. Dissertação
(Mestrado em Música). Universidade Estadual de Campinas. 2011, p. 32.
484
BAHIANA, Ana Maria. Importação e assimilação: rock, soul e discotheque. In: NOVAES, Adauto. Anos
70: ainda sob a tempestade. [original de 1979] 2005, p. 59.
485
MARSIGLIA, Luciano. Desarmado e perigoso: como o movimento Black Rio apavorou a ditadura
militar. In: Revista Super Interessante [Coleção História do Rock Brasileiro, vol.02.]. Novembro de 2004, p.
66.
181
Esse elemento é destacado já na introdução deste capítulo para fugir a uma possível
ilusão quanto à relação entre as mensagens das canções e o público atingido pela
vendagem dos discos. Infelizmente, a pesquisa realizada para esta tese não foi capaz de
acessar os dados sobre as canções executadas nas rádios, o que poderia informar sobre o
consumo, ou acesso às canções, por aquelas pessoas que não tinham condições econômicas
para comprar discos. Para exemplificar a dimensão sobre o acesso aos discos, em um relato
instigante disponibilizado na internet, de autoria creditada a 'O Eremita, ao informar sobre
a “Cena rockeira no Brasil nos anos 70”, o autor, que apresenta sua família no período
182
como situada na classe média baixa, informa: “Os discos eram muito caros. Pouca gente
tinha condição de ter muitos discos. Comprar um LP, pelo menos no meu ambiente, era um
acontecimento. A gente anunciava: ‘tal dia eu vou comprar um disco!’.”486
Embora não seja o objetivo desta pesquisa analisar a recepção das músicas e discos,
mas sim os discursos emitidos no formato canção (por isso a concentração da tese apenas
em músicas efetivamente lançadas, e na forma como foram gravadas), serão referenciados
na tese os dados obtidos através da pesquisa no acervo do IBOPE491 e outros obtidos
486
O Eremita. Discografia comentada do Deep Purple. Os discos de estúdio . [1° versão de 2012] Versão
10.2. Janeiro de 2021, p. 11. Disponível em: < http://www.arquivosdoeremita.com.br/> Acesso 06/05/2021.
487
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 1988, p. 121.
488
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 1988, p. 127.
489
DIAS, Marcia T. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008, p.
56.
490
DIAS, Marcia T. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008, p.
56.
491
Os dados disponíveis no acervo digitalizado do Arquiv o Edgar Leurenroth, da Unicamp, informam apenas
do consumo nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, em todo o recorte do capítulo (1970-1978) e da
cidade de Recife, entre 1971 e 1977. Os dados também não informam percentuais ou números de vendas,
183
através da bibliografia lida. Tais dados ajudam a apontar álbuns que conquistaram maior
repercussão e sucesso comercial, justificando o investimento da indústria fonográfica em
mais artistas, com a expectativa de angariar grandes vendas. Mas, conforme ressaltado nos
parágrafos anteriores, deve-se ter em mente que o consumo de discos é uma fonte histórica
limitada, posto que retrate, sobretudo, setores das classes médias e elites econômicas. E
ainda pode-se ressaltar, além da localização econômica do consumo, a incerteza quanto à
cultura de consumo de discos, de modo que o grande número de vendas de um
determinado disco de um determinado artista não significa que a maior parte desse público
permaneçerá acompanhando toda a produção seguinte lançada por esse/a artista. Afinal,
conforme destacado por Sam Inglis, na obra O livro do disco. Harvest. Neil Young:
Qualquer que seja o ano, há sempre um punhado de álbuns que vendem milhões
de cópias não porque atraem os fãs de música, mas porque de alguma maneira
provocam uma reação emocional em ouvintes casuais. É relativamente fácil
vender discos a leitores religiosos de revistas de música que passam as tardes de
sábado vasculhando as prateleiras das lojas de disco. O problema é que não há
muitas pessoas desse tipo. O Santo Graal da indústria fonográfica não são os
discos que recebem críticas entusiasmadas e a admiração de um exército de
especialistas, mas aqueles que são comprados por pessoas que só compram um
disco por ano.492
Tais pontos estão sendo ressaltados para reafirmar que o maior interesse no sucesso
comercial de artistas e álbuns informa, a esta tese, sobre o potencial de incentivo à
indústria fonográfica para gravar outros LPs e artistas considerados de proposta musical
similar. Portanto, embora a vendagem forneça indícios do alcance da difusão (devido ao
pressuposto que discos com maiores vendas contenham músicas mais tocadas nas
emissoras de rádio), o argumento do capítulo prioriza o “efeito polinizador” da indústria
em difundir discursos da Linguagem Política do Orgulho Negro. Essa perspectiva orientou
a análise do lançamento de uma maior quantidade de artistas e obras, posto que o mercado
fonográfico da Black Music Brasileira foi ampliado sobretudo entre 1975 e 1977, após o
sucesso e visibilidade de alguns artistas no início da década, como Tim Maia e Toni
Tornado. A atenção aos anos 1970 revela também a difusão de uma forma de se portar e
vestir, uma moda soul, ou black, que se caracterizava por roupas e penteados informados
por uma forma de expressar a “cultura negra”.
São esses elementos, e a dimensão política que perpassa por eles, que serão
estudados no decorrer das próximas páginas.
apenas a colocação nas listas de mais vendidos do período. Fundo: Ibope. Série: PD Pesquisa de Venda de
Discos.
492
INGLIS, Sam. O livro do disco. Harvest. Neil Young. Trad. Diogo Henriques. Ed. Cobogó. 2016, p. 51.
184
No Brasil, segundo a biografia “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de
Wilson Simonal, escrita pelo jornalista Ricardo Alexandre: “Quando King foi assassinado,
em abril de 1968, a TV Record montou um programa chamado Tributo a Martin Luther
King. Conduzido por Simonal e produzido por Miele e Bôscoli, o show reuniu 15 negros
493
Mundo em 1968: ativista negro Martin Luther King é assassinado nos EUA. Folha de São Paulo.
04/04/2018. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/04/mundo-em-1968-ativista-
negro-martin-luther-king-e-assassinado-nos-eua.shtml> Acesso 13/05/2021.
494
Mundo em 1968: ativista negro Martin Luther King é assassinado nos EUA. Folha de São Paulo.
04/04/2018. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/04/mundo-em-1968-ativista-
negro-martin-luther-king-e-assassinado-nos-eua.shtml> Acesso 13/05/2021.
495
HOBSBAWM, Eric. Maio de 1968. In: Pessoas Extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. 1998, p.
305-323.
185
no mesmo palco.”496 Entre os artistas reunidos, a cantora Rosa Marya Colin, apadrinhada
por Simonal, declarou: “No Brasil o racismo toma a forma mais odiosa, pois é social, com
uma aceitação aparente”; já Simonal, segundo o jornalista, “preferiu falar pouco ‘para não
transformar Luther King em objeto’ e fez a sua parte cantando, lendo discursos do pastor e
apresentando o programa.”497 Não foi possível localizar quais discursos foram lidos por
Simonal no programa, mas, para o público interessado em tal leitura, em junho de 1968 a
editora Expressão e Cultura publicou Grito de Consciência, livro que incluiu a transcrição
em português de cinco emissões radiofônicas de Luther King, transmitidas entre novembro
e dezembro de 1967 no Canadá. Já no primeiro discurso transcrito nessa obra é possível
recordar de “Tributo a Martin Luther King” e compreender o potencial político da
sonoridade spiritual na canção; afinal, segundo Luther King: “Os nossos spirituals, hoje
tão apreciados no mundo inteiro, frequentemente eram códigos. Referíamo-nos ao ‘céu’
que nos esperava e os feitores não percebiam que não estávamos falando do reino de Deus.
Céu significava o Canadá, e os negros cantavam sua esperança de chegar até lá”,
explicando o uso da canção religiosa como expressão de expectativas e até de instruções
cifradas para fugas rumo a uma região na qual não imperava a instituição escravista. 498
Ainda em junho de 1968, Elza Soares gravou uma versão de “Tributo a Martin
Luther King”, embora o lançamento da regravação, por razão desconhecida, ficou
arquivado até 1970.499 Também em 1968 foi publicado O Negro Revoltado, livro
organizado por Abdias Nascimento que “reúne vários trabalhos apresentados ao I
Congresso do Negro Brasileiro, promovido pelo Teatro Experimental do Negro, no Rio de
Janeiro, entre 26 de agosto e 4 de setembro de 1950.”500 Curiosamente, essa edição não foi
mencionada na biografia Abdias Nascimento, escrita por Sandra Almada, mas o ano de
1968 é referenciado no livro pelo auto exílio do intelectual nos EUA, que duraria treze
anos: “Foi nesse ano que Abdias partiu para um exílio ‘voluntário’, isto é, condicionado
pela situação de insegurança gerada pela ‘revolução’ de 1964 com seus inquéritos policiais
militares (IPMs) arbitrários, abrindo caminho para as torturas e assassinatos de
oposicionistas.”501 É interessante destacar esse cenário intelectual da produção antirracista
496
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 102.
497
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 102,
103.
498
KING, Martin Luther. Impasses nas relações raciais. In: Grito de Consciência. 1968, p. 15, 16.
499
Marcelo Fróes. Texto do Encarte. Elza, Miltinho e Samba, vol. 3/Sambas e mais sambas. Odeon. CD Elza
Soares 1969/1970. Box. Negra, vol. 7. 2003, p. 06.
500
NASCIMENTO, Abdias do. O Negro Revoltado. 2. ed. 1982, p. 59.
501
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento. [Coleção Retratos do Brasil Negro]. 2009, p. 92,93.
186
O ano de 1968 ainda apresentou o destaque de artistas da Black Music nos dados de
vendas de discos no Brasil, com o lançamento de compactos de Otis Redding (a partir de
maio, com “The dock of the bay”) e Aretha Franklin (a partir de novembro, com a gospel
“I say a little prayer”) entre as mais vendidas nas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo. 502
O “rei da juventude” brasileira, Roberto Carlos, lançou nesse ano o álbum O inimitável,
marca de uma transição de sonoridade, deixando a “Jovem Guarda” rumo ao que é
considerada a maturidade musical do artista. Nesse álbum, elementos da black music
aparecem em canções como “Se você pensa” (na execução da guitarra e do naipe de
sopros), “Eu te amo, te amo, te amo” (no naipe de sopros e nos arranjos vocais de fundo),
“As canções que você fez para mim” (vocais de fundo e no solo de órgão elétrico) e nas
canções soul dançantes “Ciúme de você” e “Não há dinheiro que pague” (ambas com
execuções de guitarra funkeada, naipe de sopros e inflexão vocal soul).503 No lado
Tropicalista da cena musical brasileira, o álbum de estreia de Gal Costa foi gravado em
1968, mas lançado pela gravadora Philips em março de 1969. O LP Gal Costa, embora
comprometido com as hibridações com o rock, apresenta elementos de Black Music na
regravação de “Se você pensa” (execução da guitarra e o naipe de sopros), “Vou
recomeçar”, outra composição de Roberto e Erasmo Carlos (na condução do contrabaixo
elétrico e da bateria), e no naipe de sopros de “A coisa mais linda que existe”. 504
502
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação:
PD 007 e PD 008.
503
Roberto Carlos. O inimitável. Álbum. CBS. 1968. CD. Columbia/Sony Music. 2015.
504
Gal Costa. Gal Costa. Álbum. 1969. Philips. CD. Universal Music. 2010.
505
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação:
PD 009 e PD 010.
187
sua maior rival na proposta musical, a Stax Records (na qual gravava Otis Redding, citado
no parágrafo anterior).
A Motown foi fundada em 1959 pelo empresário negro Berry Gordin Jr. e angariou
forte projeção durante a década de 1960, quando ajudou a moldar as características do que
foi chamado de Pop Music, a partir da Black Music, através de uma fórmula de produção
musical em estilo “linha de montagem”. Os artistas que gravavam pela Motown
executavam canções com um mesmo grupo de instrumentistas de estúdio (chamados The
Funk Brothers) e de um mesmo grupo de compositores, chamados The Corporation (Brian
Holland, Edward Holland Jr., Lamont Dozier, Smokey Robinson e o próprio Berry Gordin
Jr.). Assim, segundo o jornalista e crítico musical Mauro Ferreira: “Na primeira metade
dos anos 1960, a companhia já dominava as paradas de soul, R&B e até pop, no caso do
repertório das Supremes.”506 Enquanto a Motown muitas vezes priorizava arranjos
“adocicados”, com o uso de cordas e vocais de apoio doo wop, a Stax Records, fundada em
1957 pelos irmãos brancos Jim Stewart e Estelle Axton, sem fixar compositores, focava as
execuções no gospel, blues, soul e funk através da banda de estúdio Booker T. & The
M.G.’s (formado pelos negros Booker T. Jones no órgão e piano elétrico e Al Jackson Jr.
na bateria, e os brancos Steve Crooper na guitarra e Donald “Duck” Dunn no contrabaixo),
que também lançava discos próprios, e o grupo de sopros The Bar-Keys.507
A gravação de “Não vou ficar” por um grande vendedor de discos, como Roberto
Carlos, concedeu maior projeção ao nome de Tim Maia. Ou, ao menos, maior projeção
dentro da indústria fonográfica. Assim, em 1969 foi lançado um segundo compacto por
Tim (que nessa época ainda não assinava o sobrenome), com as canções em inglês “What
you want to Bet?/These are the songs”, mas também sem angariar maior repercussão.
508
Sobre a trajetória de Tim Maia, MOTTA, Nelson. Vale tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 28-
65.
509
ALONSO, Gustavo. Simonal. Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga: Wilson Simonal
e os limites de uma memória tropical. 2011, p. 467. Os Diagonais. Os Diagonais. Álbum. CBS. 1969.
189
510
OLIVEIRA, Claudio Jorge P. Disco é cultura. A expansão do mercado fonográfico brasileiro nos anos
1970. Dissertação (Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais). Fundação Getúlio Vargas. 2018, p. 06.
511
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência da
cultura política. In: REIS FILHO, Daniel, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo P. S. (org.) A ditadura que
mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. 2014, p. 51.
512
Sobre à censura aos cantores esquerdistas (ou s impatizantes), NAPOLITANO, Marcos. A MPB sob
suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981). In: Revista
Brasileira de História, v. 24, n°47, p. 103-126. 2004. Para a censura sob outros gêneros musicais, ARAÚJO,
Paulo C. Eu não sou cachorro não. Música popular cafona e ditadura militar. 7° ed. 2010. Sobretudo entre as
páginas 51 e 152.
513
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do Regime Militar Brasileiro. 2014, p. 99.
190
Nas mudanças por que passava o cenário musical, o ano de 1970 assinalou o
surgimento de uma nova aclimatação estética, o assim chamado soul b rasileiro.
Seu porta-estandarte, um certo Sebastião Rodrigues Maia, conhecido por Tim
Maia, por coincidência, tinha acabado de gravar um ‘single’ na Polydor, o selo
mais popular da mesma gravadora [Philips], e Nelson Motta vibrou com o que
ouviu.
514
< https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/01/02/ha-50-anos-tim-maia-fez-o-
brasil-dancar-ao-som-do-soul.ghtml> Acesso 14/05/2021. Negritos do original.
515
SOUZA, Tárik. Em pleno verão (1970). [Coleção Folha O melhor de Elis Regina; v. 13] 2014, p. 18, 19.
516
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 42.
517
MOTTA, Nelson. Noites Tropicais. Apud. SOUZA, Tárik. Em pleno verão (1970). 2014, p. 17.
191
compositor, através da gravação de uma canção sua por um grande nome da indústria
fonográfica em 1969, Roberto Carlos, Tim Maia obteve o reconhecimento também como
intérprete em seu dueto com outro grande nome da indústria fonográfica brasileira, Elis
Regina, em 1970, abrindo caminho para a oportunidade de gravar seu próprio LP.
“Foi uma batalha quase aflitiva até que Tim Maia conseguisse, enfim, lançar seu
primeiro LP. Em compensação, o disco retirou-o instantaneamente do semianonimato para
transformá-lo em um dos intérpretes mais populares e queridos do Brasil.”, 518 apresentou o
jornalista José Ruy Gandra ao introduzir o texto de um livreto sobre o álbum de estreia de
Tim. Segundo o jornalista, ainda em 1970, as “canções Azul da Cor do Mar, Primavera e
Coroné Antonio Bento bombavam nas rádios cariocas, paulistas e de todo o Brasil,”519
indiciando o sucesso do álbum no mercado fonográfico. Além dessas três canções, o LP
aproveitava “Jurema”, do último compacto, e apresentava as composições “Flamengo”
(Tim Maia), “Cristina” e “Cristina n°2” (Tim Maia e Carlos Imperial), “Risos” (Fábio e
Paulo Imperial), e outras três composições de Cassiano, além de “Primavera”: “Você
Fingiu”, “Eu amo você” (parceria com Silvio Rochael, também co-autor de “Primavera”) e
“Padre Cícero”, parceria com Tim. Encerrando o álbum, uma composição de Cláudio
Roditi, “Tributo a Booker Pitman”, uma homenagem, cantada em inglês, ao trompetista
estadunidense negro de jazz que, na década de 1960, lançou alguns álbuns no Brasil em
parceria com sua filha brasileira, a cantora Eliana Pittman.
Na biografia Vale Tudo. O som e a fúria de Tim Maia, o autor, Nelson Motta,
ressalta sobre as gravações do primeiro álbum de Tim, que o cantor e compositor ditou “as
frases de metais chupadas da gravação de Otis Redding de ‘Respect’ pontuando o ritmo à
518
GANDRA, José Ruy. Tim Maia (1970). [Coleção Tim Maia; v. 1] 2011, p. 7.
519
GANDRA, José Ruy. Tim Maia (1970). [Coleção Tim Maia; v. 1] 2011, p. 9.
520
Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1970. CD. Abril Coleções. 2011.
192
Fig. 5. Capa e contra-capa LP Tim Maia. Tim Maia. Polydor. 1970. Extraído de:
<https://www.musicontherun.net/2017/05/discos -para-historia-tim-maia-tim-maia-1970.html> Acesso 31/08/2019.
521
MOTTA, Nelson. Vale tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 77.
522
MOTTA, Nelson. Vale tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 77.
523
MOTTA, Nelson. Vale tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 82-85.
193
se mais um canal de difusão para a voz de Tim, contribuindo para estimular uma atenção
aos discos do intérprete entre os telespectadores. 524
524
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/irmaos -coragem-1a-versao/> Acesso
16/05/2021.
525
GANDRA, José Ruy. Tim Maia. Tim Maia 1970. [Coleção Tim Maia; v. 1] 2011, p. 27.
526
Aparentemente, este crédito ainda se refere a Mariá. Embora o nome no compacto estimule a recordação
da cantora Áurea Martins, não foram localizadas referências que sustentem a participação dela no V FIC,
sendo que sua primeira gravação fonográfica é atribuída ao ano de 1972. <
https://dicionariompb.com.br/aurea-martins/discografia> Acesso 17/05/2021.
194
Fig. 6: Dom Salvador e Grupo Abolição no V FIC. Ao lado, Luis Antônio, Dom salvador e Luis
Antônio e Mariá e Luis Antônio. Imagens extraídas do blog:
< http://festivaisdacancao.blogspot.com/2009/01/abolio-1860-1980.ht ml> Acesso 17/05/2021.
gravação representa mais uma aproximação entre o funk e o baião, como Salvador já havia
feito em seu álbum de 1969, Dom Salvador, na gravação instrumental de “Asa Branca”
(Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira) - evidenciando que Tim Maia não estava sozinho ao
trazer aproximações entre tais gêneros na canção, como às vezes é colocado em textos
sobre seu LP de estreia.
A canção que venceu a fase nacional do V FIC foi “BR-3”, balada soul composta
por Antônio Adolfo e Tibério Gaspar (compositores de várias músicas gravadas por
Simonal no decorrer da segunda metade da década de 1960, como o sucesso de 1968, “Sá
Marina”). Foi interpretada pelo estreante Toni Tornado, cantor de voz muito similar à de
Luiz Antônio, do Abolição (passível de ser confundida). Junto a Toni, o apoio vocal doo
wop do Trio Ternura (formado pelos irmãos Jussara, Robson e Jurema. Tal como ocorria
com o Trio Esperança, eram associados à Jovem Guarda) vestindo túnicas coloridas –
mesma vestimenta do grupo Abolição. Além da performance soul nos vocais e arranjos –
que apresentavam variações de andamento na canção, ora lento, ora acelerado –, a
coreografia executada por Toni destacou ao público do festival os passos de uma forma de
dançar difundida pelo cantor estadunidense James Brown.
O cantor paulista Antônio Viana Gomes, Toni Tornado (atual Tony Tornado),
iniciou a carreira artística na virada dos anos 1950 para os anos 1960 de forma amadora, e,
assim como Simonal, Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Tim Maia, ao lado do agitador
cultural Carlos Imperial, um entusiasta do rock no Brasil. Segundo a historiadora Amanda
196
O primeiro disco gravado por Toni Tornado foi lançado pela gravadora Odeon em
1970, na esteira da vitória no V FIC, um compacto duplo contendo quatro canções que
transitavam entre as sonoridades soul e funk: “Nada de novo/ Dez Leis/ Sou negro/ Meu
mundo caiu”. Os arranjos destacavam o intenso uso do naipe de sopros, guitarra rítmica,
contrabaixo, bateria, piano acústico solista e o forte e grave vocal de Toni, acompanhado
por vocais de apoio (exceto em “Meu mundo caiu”). Destaca-se no disco a composição
“Sou negro”, de Getúlio Cortês, tanto pela repercussão à época quanto pelo argumento da
presente tese, devido à letra de temática expressiva da linguagem política negra antirracista
e, sendo uma canção funk, a sonoridade a identifica com a linguagem do Orgulho Negro. O
autor, Getúlio Cortês, é um compositor negro associado à Jovem Guarda, tendo sido o
autor de “Negro Gato”, canção lançada por Roberto Carlos. A letra de “Sou negro” diz:
Nessa vida/ nada se leva/ não sei por que vocês tem tanto orgulho assim/ Você
sempre/ me despreza/ sei que sou negro, mas ninguém vai rir de mim/ Sou negro,
sim/ Mas ninguém vai rir de mim/ Vê se entende/ Vê se ajuda/ O meu caráter
não está na minha cor/ O que eu quero/ não se iluda/ o que eu procuro é
conseguir o seu amor/ Sou negro, sim/ Mas ninguém vai rir de mim.529
527
ALVES, Amanda P. O Poder Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade em
Tony Tornado (1970). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 11.
528
ALVES, Amanda P. O Poder Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade em
Tony Tornado (1970). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 17.
529
Toni Tornado. Sou Negro (Getúlio Cortês). Nada de novo/Dez leis/Sou negro/Meu mundo caiu . Compacto
duplo. Odeon. 1970. Lado B, faixa 01. < https://www.youtube.com/watch?v=cN-NSLBOrvw>
197
A canção “Sou Negro” era um funk bem ao estilo de James Brown (como “Say it
loud I'm black, I’m proud”), o que significa ser uma canção dançante, de andamento
acelerado, e com interpretação vocal potente, enfatizando a dimensão afirmativa da letra,
sobretudo do refrão Sou negro, sim, mas ninguém vai rir de mim (se fosse uma balada
lenta, por exemplo, a mensagem da canção transmitiria uma dimensão sofrida, de lamento,
e não o teor afirmativo). A performance vocal foi potencializada pelo arranjo, que destaca
a guitarra elétrica rítmica e com os vocais femininos de apoio reforçando os versos e o
naipe de sopros enfatizando a força do refrão. A dissertação de Amanda Palomo Alves,
citada acima, ao estudar a produção de Toni Tornado e a recepção de suas obras entre as
forças repressivas do Estado brasileiro, localizou que essa canção teve sua mensagem
antirracista potencializada pela performance gestual do cantor. Toni reforçou a conexão
com as lutas antirracistas estadunidenses ao reproduzir gestos rituais politizados que foram
associados ao imaginário do movimento Poder Negro (Black Power) dos EUA. Por essa
associação, gerou uma advertência pela repressão da Ditadura, conforme noticiado em
edição da Revista Veja de outubro de 1970:
530
Revista Veja, edição 109, sete de outubro de 1970, p. 84. Apud. ALVES, Amanda Palomo. O Poder
Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade em Tony Tornado (1970). Dissertação
(Mestrado em História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 22. (Negrito na referência do original)
198
O ápice comercial conquistado pela Black Music brasileira, a partir do ano de 1970,
conforme será abordado no decorrer deste segundo capítulo, transitou por dois caminhos já
sinalizados pelos dois artistas que surgiram com maior expressão dentro do gênero em tal
ano: Tim Maia e Toni Tornado. Nas canções lançadas por Tim, em discos de grande
repercussão comercial em vendagens, o tema predominante aborda relações amorosas e o
sofrimento do desamor, além de questões prosaicas. Nas canções de Toni, embora também
priorizando o desamor, o tema antirracista adquiria maior projeção. Ambas as propostas, é
importante ressaltar, apresentaram grande importância para a consolidação e difusão do
gênero Black Music no Brasil – e também eram temáticas pelas quais transitavam os
artistas Black dos EUA. Portanto, embora a análise desta tese concentre-se nas mensagens
antirracistas difundidas nas canções, não há pretensão de sugerir hierarquia nos temas e
reconhece-se que o sucesso comercial viabilizou um maior número de gravações.
apareceram Sly & Family Stone (o funk “Thank You”) e The Jackson 5 (a balada soul “I’ll
be there”).531
531
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Ven da de Discos. Notação:
PD 011 e PD 012.
532
Arquivo Edgar Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação:
PD 011 e PD 012.
200
Enquanto no álbum lançado por Jorge Ben houve a valorização da mulher preta, no
LP de Elza Soares, Sambas e mais sambas, o estereótipo de sexualização a partir da
categoria “mulata” apareceu de forma contundente. A última canção gravada para o álbum,
“Tributo a Dom Fuas” (gravada em 26 de novembro de 1969, sendo que o álbum foi
lançado em janeiro de 1970) era uma composição de Carlos Imperial e Fernando César e
representou a adoção por Elza da sonoridade da Pilantragem, difundida por Simonal.
Conduzida pelo piano acústico, a canção inclui contrabaixo, bateria e um naipe de sopros e
foi cantada por Elza com muitos scats. O homenageado é uma figura apresentada como um
guerreiro nobre português, associada à mitologia católica e à Reconquista Cristã por
Portugal no século XII. Fuas foi citado por Luís de Camões na epopeia Os Lusíadas, nos
versos: “um Egas, e um Dom Fuas, que de Homero/ A cítara para eles só cobiço”534 e “É
Dom Fuas Roupinho, que na terra/ e no mar resplandece juntamente/ com o fogo que
acendeu junto da serra/ de Abila, nas galés de Maura gente.”535
My name is Elza Soares: a fera do Mané/ Sou carioca, sambista, diplomada por
90 milhões de brasileiros/ nasci num dia de sol sem fim/ e canto nas noites
533
Jorge Ben. Mulher Brasileira (Jorge Ben). Força Bruta. Álbum. Philips. 1970. CD. Universal. 2009.
534
CAMÕES, Luiz Vaz. Os Lusíadas. São Paulo: L&PM. 2008. I-XII.
535
CAMÕES, Luiz Vaz. Os Lusíadas. São Paulo: L&PM. 2008. Estrofe 17 do canto VIII.
201
536
Elza Soares. Tributo a Dom Fuas (C. Imperial/ F. Cesar). Sambas e mais sambas. Álbum. Odeon. 1970.
Faixa 04, Lado B. CD. Elza, Miltinho e Samba vol. 3/Sambas e mais sambas. [Box Negra, vol. 7]. EMI,
2003.
<https://www.youtube.com/watch?v=0p5r3Ga6v1Y>
537
Elza Soares. Seu José (Silvio. Cesar). Sambas e mais sambas. Álbum. Odeon. 1970. Faixa 05, Lado B.
CD. Elza, Miltinho e Samba vol. 3/Sambas e mais sambas. [Box Negra, vol. 7]. EMI, 2003.
202
ano o álbum Simonal, que também não apresentou nenhuma canção que evocasse a
temática antirracista, mas representou um avanço na sonoridade de black music adotada
pelo cantor, afastando por completo da Pilantragem. Conforme Ricardo Alexandre, em
texto para a reedição em CD de tal álbum, Simonal sinalizou uma mudança de orientação
artística: “Rareiam as recriações, desaparecem as galhofas juvenis tipo ‘Escravos de Jó’,
emergem novos compositores e, principalmente, estabelece-se um novo padrão de black
music local, em fina sintonia com o funk planetário, mas tão brasileiro quanto à
pilantragem.”538 Nesse álbum, em que predomina a sonoridade soul, Simonal e o Som 3
explicitaram a adoção de contrabaixo, piano e órgão elétricos, destacando o baião-soul
“Severino Nonô” (cujo título no encarte do LP é “Destino e desatino de Severino Nonô na
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro [Oh, Yeah]”) e o soul “Moro no fim da rua”,
conduzido por guitarra elétrica executada pelo ex-Os Diagonais, Hyldon.
Encerrando o intenso (para a black music brasileira) ano de 1970, houve o impacto
dos compactos lançados por Simonal. Conforme os dados do IBOPE, em outubro destacou
em vendas o compacto duplo “Brasil, eu fico” lançado no mesmo mês e que incluía “Hino
do festival internacional/Brasil, eu fico/Que cada um cumpra com o seu dever”; e em
dezembro destacou o compacto duplo “Resposta”, lançado em novembro e que incluía
“Brasil, eu fico/Canção num.21/Resposta/ Que cada um cumpra com o seu dever.”,
portanto, basicamente repetindo o mesmo repertório. Essas canções apresentaram ainda
mais explicitamente a abordagem soul e funk por Simonal e o Som 3, agora incluindo uma
guitarra distorcida, particularmente no funky “Que cada um cumpra com o seu dever”. As
canções foram reunidas por um conceito que Simonal declarou como “nativista”: a
abordagem patriótica. Ainda em dezembro de 1970, em entrevista ao jornal Correio da
Manhã, Simonal declarou: “Aquelas músicas que eu gravei – Brasil, eu fico e Que cada
um cumpra com o seu dever – não são músicas comerciais, são nativistas. (...) Essas
músicas foram para denunciar a falta de crédito do pessoal no Brasil.”539
538
ALEXANDRE, Ricardo. Texto de apresentação para a reedição em CD. Simonal/Jóia, Jóia. [Wilson
Simonal. 1970/1971. Box Wilson Simonal na Odeon (1961-1971). CD 07]. EMI. 2004.
539
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 04/12/1970 (sexta-feira). Caderno anexo, p. 03. Itálico do original.
203
quem não gostar e for do contra que vá pra..., seguindo do naipe de sopros censurando, ao
mesmo tempo em que sugerindo, um corrente “palavrão”.540 Abordagem também seguida
em “Resposta”: Pois eu sou um amante/ um amante do meu país/ eu sei onde é meu lugar/
eu sei onde ponho o meu nariz,541 e na composição de Simonal, que convocava ao
compromisso patriótico toda a população brasileira, a partir de tipos sociais, como nos
versos: seja tua tia, seu amigo, seu irmão/ cada um cumpra com o seu dever/ seja
brigadeiro, cabo velho, capitão/ cada um cumpra com o seu dever/ (...) seja no governo,
no trabalho, na canção/ cada um cumpra com o seu dever.542 O título e refrão “Cada um
cumpra com o seu dever” alude a um lema da Marinha brasileira, consagrado pelo
Almirante Barroso na Batalha de Riachuelo de 11 de junho de 1865, “O Brasil espera que
cada um cumpra com o seu dever”, referência icônica para as Forças Armadas, posto
celebrarem em 11 de junho a Data Magna da Marinha. 543
A composição das canções nativistas “Brasil, eu fico” e “Resposta” por Jorge Ben e
sua gravação por Simonal, junto à sua própria composição “Que cada um cumpra com o
seu dever”, contudo, tiveram como motivação imediata um episódio particular do ano de
1970. O compacto inseria-se em uma polêmica estabelecida entre os dois artistas e o
540
Wilson Simonal. Brasil, eu fico. (Jorge Ben). Brasil, eu fico/Canção n°21/Resposta/Que cada um cumpra
com o seu dever. Compacto duplo. Odeon. 1970. Faixa 01, Lado A.
< https://www.youtube.com/watch?v=aonfA5zYWro>
541
Wilson Simonal. Resposta. (Jorge Ben). Brasil, eu fico/Canção n°21/Resposta/Que cada um cumpra com
o seu dever. Compacto duplo. Odeon. 1970. Faixa 01, Lado B.
542
Wilson Simonal. Que cada um cumpra com o seu dever. (Wilson Simonal). Brasil, eu fico/Canção
n°21/Resposta/Que cada um cumpra com o seu dever. Compacto duplo. Odeon. 1970. Faixa 02, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=lknJDup4UXM>
543
O termo, junto ao “Sustentar o fogo que a vitória é nossa”, constam como “Sinais de Barroso” na
mitologia da Marinha brasileira. “Anualmente, no dia 11 de junho, a Marinha do Brasil comemora o grande
feito do Almirante Barroso na Batalha Naval do Riachuelo, ocasião em que são içados nos mastros de todo s
os navios e organizações de terra os históricos sinais utilizados pelo Chefe Naval durante o confronto.”
<https://www.marinha.mil.br/dphdm/historia/almirante-barroso/sinais-de-barroso> Acesso 21/05/2021.
544
Segundo o historiador Carlos Fico, a criação de tal slogan foi obra Operação Bandeirantes. FICO, Carlos.
A pluralidade das censuras e das propagandas da ditadura. IN: FICO, Carlos (org.). 1964-2004 – 40 anos do
golpe: ditadura militar e resistências no Brasil. 2004, p. 273.
204
545
Juca Chaves. Paris Tropical (J. Chaves). Paris tropical/ E no fundo era igual às outras. Compacto. RGE.
1970. < https://www.youtube.com/watch?v=XDYlbQxJhdM>
546
Juca Chaves. Take me back to Piauí. (J. Chaves). Take me back to Piauí/ Vou viver num arco íris.
Compacto. RGE/Sdruws. 1970. < https://www.youtube.com/watch?v=E5XnDHstRws >
547
Wilson Simonal. Resposta. (Jorge Ben). Brasil, eu fico/Canção n°21/Resposta/Que cada um cumpra com
o seu dever. Compacto duplo. Odeon. 1970. Fx. 01, Ld. B. <
https://www.youtube.com/watch?v=Ty9J8VRa998>
548
A análise mais aprofundada desse compacto e das aproximações de Simonal com a ditadura, inclusive sua
defesa do regime em entrevistas, foi realizada em MORAIS, Bruno Vinícius L. de. “Sim, sou um negro de
cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no Brasil dos anos 1960 . Dissertação. 2016, p. 65-77.
205
549
MORAIS, Bruno Vinícius L. de. Um antirracismo liberal conservador? Orgulho Negro e a denúncia do
racismo por Wilson Simonal nos anos 1960. In: BOHOSLAVSKI, Ernesto, MOTTA, Rodrigo P. S.,
BOISARD, Stéphane (orgs.) Pensar as direitas na América Latina. 2019, p. 245-265.
550
A tese, defendida na Universidade Federal Fluminense, foi publicada com o mesmo título pela editora
Record, em 2011, com o autor assinando apenas como Gustavo Alonso.
551
QUADRAT, Samantha, ROLLEMBERG, Denise (org.). Construção social dos regimes autoritários. Vol.
2. 2013. Um dos capítulos da obra, aliás, foi escrito por Gustavo Alonso Ferreira, estudando o Simonal.
206
Wilson Simonal, contudo, não foi o único artista no período a ecoar a representação
do “Brasil grande” a partir dos acordes da Black Music Brasileira. O Trio Ternura, que
obteve maior visibilidade após sua atuação junto a Toni Tornado no V FIC com a canção
“BR-3”, lançou seu segundo álbum, Trio Ternura (o primeiro foi lançado em 1968 em
estilo doo wop), adotando explicitamente a sonoridade soul em todo o LP. Nele havia a
canção “Por isso eu digo: Brasil, eu fico”, composição de Fábio e Paulo Imperial. Lá no
alto/ da montanha/ Jesus Cristo/ no altar/ lá do alto/ tudo é mar/ são as cores do meu Rio
a passar/ por isso eu digo, Brasil, eu fico. As histórias desse mundo/ eu ouvi e desisti de
sonhar/ vou vivendo/ acordado/ são as cores do meu Rio a passar. A letra desse soul é
apologética a um cartão-postal do país, a paisagem do Rio de Janeiro, a partir da estátua do
Cristo Redentor, mas a ampla repetição do refrão por isso eu digo, Brasil, eu fico, denuncia
a opção dos compositores e intérpretes em adotar e ecoar um slogan da propaganda política
do regime ditatorial.554 O LP Trio Ternura foi lançado em 1971 pela gravadora CBS, com
produção do músico, compositor e, então, diretor artístico Raul Seixas, que assinou uma
das canções do álbum, “Vê se dá um jeito nisso”. Também o ex-Os Diagonais, Hyldon,
integrou o elenco de compositores, com “Vou morar no teu sorriso”. O disco não apresenta
texto de contracapa ou crédito aos músicos que participaram, mas explicita o
desenvolvimento da sonoridade soul no Brasil. No entanto, em nenhuma das composições
foi identificada qualquer referência à temática racial.
552
Entre uma farta produção do autor desenvolvendo esse argumento, destaca-se REIS FILHO, Daniel A.
Ditadura e democracia no Brasil. 2014, uma versão ampliada do livro originalmente publicado em 2000.
553
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0209200428.htm> Acesso 20/05/2021. Para uma análise
profunda, FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. 1997.
554
Trio Ternura. Por isso eu digo: Brasil, eu fico. (Fábio/Paulo Imperial). Trio Ternura. Álbum. CBS. 1971.
Faixa 06, Lado A. CD. Sony Music, provável 2010. < https://www.youtube.com/watch?v=E-0uqHwF7tQ>
207
555
ARAÚJO, Paulo C. De armas, bandeiras e lápis nas mãos. In: Eu não sou cachorro, não. Música popular
cafona e ditadura militar. 7° edição. 2010, p. 211-231.
556
CORDEIRO, Janaína Martins. Anos de chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o gov erno
Médici. In: Estudos Históricos. vol. 22, n°43, janeiro-junho. 2009, p. 88.
557
CORDEIRO, Janaína Martins. Por que lembrar? A memória coletiva sobre o governo Médici e a ditadura
em Bagé. In: AARÃO REIS, Daniel, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo P. S. A ditadura que mudou o
Brasil. 50 anos do golpe de 1964. 2014., p. 198, 199.
208
Nas ruas do Greenwich Village, em Nova York, Tim veria pela primeira vez
jovens negros com orgulhosas carapinhas eriçadas e adereços africanos,
testemunharia outras demonstrações de orgulho da raça e de rebeldia que jamais
imaginou na Tijuca. E sentiria na pele, muito mais do que no Brasil, a chibata da
discriminação.
No Brasil, Tim sempre se acreditara e se dissera mulato, mas logo descobriu que
ali não havia essas sutilezas, se não era branco, negro era. 559
Assim, ao retornar ao Brasil, Tim compôs e gravou a canção que faz um balanço de
sua percepção da experiência racial nos países, estabelecendo, por um lado, uma conexão
transnacional (em uma só voz/ que diz/ somos irmãos), e, por outro lado, reafirmando o
ideal de harmonia racial de um Brasil imune à discriminação (sem distinção de cor).
Segundo o livreto Tim maia. 1971, escrito por José Ruy Gandra, Tim “insistiu para
que a romântica balada soul Meu País, que recheara seu primeiro compacto simples,
também constasse no novo disco. Tim queria regravá-la para aproveitar os recursos
técnicos que não tivera na versão original.”560 O disco no qual a canção foi lançada, o
segundo álbum de Tim, é, até os dias atuais, um dos mais celebrados de sua discografia,
incluindo “A festa do Santo Reis”, “Não quero dinheiro (só quero amar)”, “Um dia eu
chego lá” e “É por você que eu vivo”, além das regravações de “Não vou ficar” lançada
por Roberto Carlos em 1969 e “Você”, lançada por Eduardo Araújo em 1968, para citar as
558
Tim Maia. Meu país (Tim Maia). Tim Maia. Álbum. 1971. Polydor. Faixa 05, Lado B. Reedição CD.
Abril Coleções. 2011. Faixa 11. < https://www.youtube.com/watch?v=dn9AUZW0dFA >
559
MOTTA, Nelson. Vale tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 45.
560
GANDRA, José Ruy. Tim Maia. 1971. (Coleção Tim Maia; v. 2) 2011, p. 22.
209
canções que se tornaram mais famosas. Ainda segundo o livreto: “Em 1971, a Philips
reinava no mercado fonográfico brasileiro. Seu elenco reunia a nata da MPB. (...) Nenhum
desses medalhões da MPB impediu que, em 1971, Tim Maia se tornasse o maior vendedor
de discos da gravadora.”561 O disco foi lançado pela Polydor, como o álbum anterior, um
selo pertencente à gravadora Philip.
O segundo álbum de Tim Maia manteve a banda que fora reunida para a gravação
do primeiro LP, mas com uma expressiva diferença. Genival Cassiano, que gravou todas as
guitarras e contribuiu com algumas composições do disco anterior, não participou do
segundo, sendo substituído pelo seu ex-companheiro de Os Diagonais, Hyldon, nas
guitarras-base (parceiro de Tim na composição “I don’t know what to do with myself”,
inclusa no álbum) e por Paulo (mais conhecido como Paulinho Guitarra) nas guitarras solo,
artista que formulou um padrão de sonoridade para a produção de Tim a partir desse álbum
- e que durou por toda a década de 1970 - no qual o soul e funk do compositor eram
executados com um timbre de guitarra agressivo, mais próximo à escutada nos discos de
artistas da Black Music estadunidense como Sly & The Family Stone ou Isaac Hayes,
diferente dos timbres de guitarra executados por Cassiano no primeiro álbum de Tim, que
remetiam mais à execução da Black Music de Curtis Mayfield. Os timbres de guitarra de
Cassiano, porém, puderam ser melhor escutados em 1971, assim como sua voz, com o
lançamento pela RCA de seu primeiro LP solo, Imagem e Som, que, apesar de conter uma
versão do compositor para o sucesso “Primavera” e referências a Tim em algumas letras,
não obteve repercussão. O disco não apresentou nenhuma referência à temática racial.
Hoje é o dia de Santo Reis/ Anda meio esquecido, mas é o dia da Festa do Santo
Reis/ Eles chegam tocando/ Sanfona e violão/ Os pandeiros de fita/ carregam
sempre na mão/ eles vão levando/ Levando o que pode/ Se deixar com eles/ Eles
levam até os bodes/ É os bodes da gente/ é os bodes, mé. 562
561
GANDRA, José Ruy. Tim Maia. 1971. (Coleção Tim Maia; v. 2) 2011, p. 33.
562
Tim Maia. A Festa de Santo Reis (Márcio Leonardo). Tim Maia. Álbum. 1971. Polydor. Faixa 01, Lado
A. Reedição CD. Abril Coleções. 2011. Faixa 11. < https://www.youtube.com/watch?v=b5EZudzb45U >
210
Devido à forte devoção aos Santos Reis no Brasil o dia 6 de janeiro era
considerado feriado nacional, assim como ainda é na Espanha, Itália e
Alemanha, sendo mencionado nos calendários destes países como o dia da
Epifania ou dos Reis Magos. Jornais, como O Estado de São Paulo, revela m por
meio de notas publicadas em 1909 e 1944 que diversos estabelecimentos
paralisavam suas atividades, pois, além de feriado, era um dia Santo de Guarda,
em que os católicos tinham o dever de ir à missa e participar das festividades.
Portanto, a canção gravada por Tim, ao ressaltar que Hoje é o dia de Santo Reis/
Anda meio esquecido, mas é o dia da Festa de Santo Reis, abordava uma memória recente,
buscando enfatizar uma tradição importante ao catolicismo popular e que recentemente – a
pouco mais de três anos – havia perdido o status de feriado nacional.
Outra estreia na Black Music brasileira ocorrida, em LP, em 1971, foi de Dom
Salvador e Abolição, com o álbum Som, Sangue e Raça, que se tornou o único lançamento
do grupo. O disco, lançado na gravadora CBS, documentou um encontro das duas
formações instrumentais que haviam gravado discos com a sonoridade soul e funk nos fins
dos anos 1960, conforme informado no último tópico do primeiro capítulo desta tese, nos
discos Dom Salvador e International Hot. Oriundo do conjunto criado por Raul de Souza,
563
Folias de Minas Gerais/ Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – Belo
Horizonte: Iepha (Cadernos do Patrimônio), 2018, p. 7.
564
Folias de Minas Gerais/ Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – Belo
Horizonte: Iepha (Cadernos do Patrimônio), 2018, p. 20.
211
Fig. 8: Capa e contracapa Som, Sangue e Raça. (Salvador é o primeiro à esquerda, de jeans azul) Extraído de
[Acesso 21/05/2021]: < https://flabbergasted-vibes.org/2010/12/06/dom-salvador-e-abolicao-som-sangue-e/>
565
Dom Salvador e Abolição. Evo (Dom Salvador/Pedro Santos). Som, Sangue e Raça. Álbum. CBS. 1971.
Faixa 01, Lado B. Reedição em CD. Sony Music. Data não localizada, provável 2010. Faixa 07.
566
< https://www.youtube.com/watch?v=RuJSQAhb9HY> Acesso 21/05/2021.
212
Entre as estreias em LP do ano de 1971, porém, talvez a mais ansiada à época tenha
sido a do ganhador do FIC no ano anterior, Toni Tornado. Lançado pela Odeon, o álbum
homônimo, Toni Tornado, apresentava o selo “Disco é Cultura”. Embora não apresentasse
os nomes dos instrumentistas participantes, o LP informava na contracapa os cinco
orquestradores, incluindo Dom Salvador nas composições “Dei a partida” (de Getúlio
Cortês) e “O repórter informou” (de Hyldon). O disco trouxe a faixa “BR-3”, abrindo o
Lado B, mas não incluiu nenhuma das quatro canções lançadas no compacto duplo do ano
anterior. Portanto, o público de Tornado foi apresentado a onze novas gravações, incluindo
sua versão de “Uma vida”, de Salvador. O álbum apresentava canções de temática
diversificada, todas executadas nas sonoridades funk e soul (com forte inclinação gospel),
sendo que a abertura, “Juízo Final”, composição soul de Pedrinho e Renato Corrêa
(integrantes, brancos, do grupo de rock A Bolha), tornou-se um manifesto antirracista da
Linguagem Política do Orgulho Negro na voz de Toni, ao retratar a discriminação racial: O
dia da verdade/ o juízo final/ o fim desse mundo/ cheio de guerras/ O início de um mundo
de paz/ Bebedouro mata a sede, não escolhe cor/ Não escolhe cor porque irmão/ o dia da
verdade, o juízo final/ Eu preciso crer/ eu preciso crer no fim de tudo isso.567
Renato Corrêa, um dos compositores de “Juízo final” era atuante nos festivais da
canção e foi um dos compositores de “Casaco Marrom”, gravada por Eva. A canção “Juízo
final” seguiu a sonoridade característica da produção musical de Toni Tornado, com
arranjo elétrico soul, destacando guitarra, contrabaixo, bateria, naipe de sopros e vocais
femininos de apoio que entoavam, em inclinação gospel, o verso: o dia da verdade/ o juízo
final. A letra não oferece uma narrativa elaborada, mas informa a compreensão de um
contexto de guerras que poderia ser pacificado pela igualdade racial (bebedouro mata a
sede, não escolhe cor). A referência ao bebedouro como símbolo para retratar a
discriminação racial denuncia uma alusão de pouca densidade argumentativa para o
contexto racial brasileiro, mas de forte evocação à realidade estadunidense. Conforme a
dissertação de Amanda Palomo Alves, ao analisar a mensagem dessa canção: “Ademais,
durante vários anos, o bebedouro foi marca distintiva da segregação racial nos Estados
Unidos ao distinguirem aqueles destinados aos brancos daqueles reservados aos negros
(‘colored’).”568 É notável que nem a letra da composição ou a interpretação vocal de Toni
567
Toni Tornado. Juízo Final (Pedrinho/Renato Corrêa). Toni Tornado. Álbum. Odeon. 1971. Faixa 01, Lado
A. < https://www.youtube.com/watch?v=_v3w7CUDAT0>
568
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade
em Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 104.
213
569
Toni Tornado. Papai, não foi esse o mundo que você falou (Roberto Carlos/Erasmo Carlos). Toni
Tornado. Álbum. Odeon. 1971. Faixa 03, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=1hHt5D3TgoE>
214
A composição dos irmãos Marcos e Paulo Sergio Valle, performada por Elis
Regina, além de adotar a sonoridade soul, articula a temática racial, de intenção
antirracista, na letra. O título ecoa um slogan desenvolvido nos movimentos negros
estadunidenses que evoca a apologia à estética corporal das pessoas negras, afirmando a
beleza de elementos fenotípicos como a cor da pele, os cabelos crespos e os lábios grossos,
de modo a confrontar um ideal de beleza hegemônico que valoriza apenas o padrão estético
570
CARNEIRO, Ana M. Signos da Política representações da subversão: a Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. 2013, p. 83, 84.
571
Sobre os festivais, ver MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo. Ed. 34.
2003.
572
Elis Regina. Black is Beautiful (Marcos Valle/Paulo S. Valle). Ela. Álbum. Philips. 1971. Faixa 02, Lado
A. No mesmo ano, Marcos Valle também gravou a canção ressaltando: “eu quero uma dama de cor”.
215
e os fenótipos associados às pessoas brancas (pele alva, cabelos lisos e nariz fino, por
exemplo). Ou, conforme definição produzida para o termo “Black is beautiful” pelas
editoras brasileiras do livro Irmã Outsider: ensaios e conferências, da poeta estadunidense
Audre Lorde: “Movimento cultural criado por pessoas afrodescendentes nos Estados
Unidos, no início dos anos 1960, com a intenção de acabar com a ideia racista de que
características físicas típicas de pessoas negras são inerentemente feias.”573
A atenção das forças repressivas do Estado à figura de Toni Tornado também era
intensificada pela política de combate às drogas ilícitas. Conforme abordado por Ana
Marília Carneiro, a canção “BR-3” foi apresentada na coluna do jornalista Ibrahim Sued
como “uma apologia às drogas por muitos motivos, dentre eles os trechos que
mencionavam a BR-3 como gíria para a veia principal do braço para a aplicação de
573
LORDE, Audre. Irmã Outsider: ensaios e conferências. 2020, p. 125. Nota de rodapé, 26 (N.E.).
574
Uma reflexão sobre a densidade política associada ao gesto do punho cerrado será realizada no terceiro
tópico deste capítulo, dedicado à politização da estética na Linguagem Política do Orgulho Negro.
216
575
CARNEIRO, Ana M. Signos da Política representações da subversão: a Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. 2013, p. 85.
576
CARNEIRO, Ana M. Signos da Política representações da subversão: a Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. 2013, p. 86.
577
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade
em Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 87.
217
sede do DOPS de forma clandestina, pela amizade do artista com alguns policiais),
contudo, o efeito foi contrário, potencializando a difusão do episódio. 578 Em meio a esse
episódio, Simonal saiu da gravadora Odeon, assinando contrato com a Philips. O episódio
provavelmente eclipsou o lançamento do que poderia ter sido considerada uma segunda
canção explicitamente engajada na pauta racial por Simonal, na linha de “Tributo a Martin
Luther King”. Dois meses antes da repercussão do caso do contador, Simonal lançou, em
junho de 1971, seu primeiro compacto com o conjunto Simonautas, que incluía outra
composição sua em parceria com Ronaldo Bôscoli, “África, África”: África ê. África.
Mostra meu passado que eu não vi passar./ Oh, lelê./ África ê. África. Quem tá do meu
lado pode se chegar./ Meus antepassados vão querer saber./ Quem tem guia forte, quem é
pra valer./ Toda luz do mundo sai do Sol de lá./ África, meu sangue, África, África.579 Uma
canção, portanto, na qual Simonal reivindicava sua ancestralidade africana e sugeria o seu
apagamento no pedido: África, mostra meu passado que eu não vi passar.
Já Eva, lançou em 1971 o LP Cartão Postal pela Odeon, no qual assumia o nome
artístico Evinha (através do qual era conhecida desde os anos 1960), mantendo a
sonoridade soul de sua carreira solo, mas sem apresentar a temática racial nas letras.
578
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 200-
235. MORAIS, Bruno V. L. “Sim, sou um negro de cor”: Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro
no Brasil dos anos 1960. Dissertação (História). UFMG. 2016, p. 35-44.
579
Wilson Simonal. África, África (Wilson Simonal/Ronaldo Bôscoli). Compacto simples. Na galha do
cajueiro/Ouriço/África, África. Odeon. 1971.
580
Ana Maria Bahiana. Texto de contracapa. Jorge Ben. Negro é lindo. Álbum. Philips. 1971. Reedição em
CD, Universal Music. 2009. Negrito do original.
581
Jorge Ben. Cassius, Marcelo Clay. (Jorge Ben). Negro é lindo. Álbum. Philips. 1971. Faixa 03, Lado A.
218
Conforme o historiador Alexandre Reis dos Santos, na dissertação “Eu quero ver
quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações raciais na obra de Jorge Ben
(1963-1976): “Mohammed Ali era um polêmico boxeador estadunidense e um ativo
militante pelos direitos civis dos negros. Nascido Cassius Marcellus Clay, se converteu ao
islamismo e então mudou de nome, pois considerava o anterior um ‘nome de escravo’.”582
A conversão do boxeador ao islamismo, na década de 1960, foi relacionada ao impacto e
influência do líder negro Malcolm X, então um militante da Nação do Islã, grupo que
evocava o rompimento com o cristianismo (e a rejeição dos nomes de batismo) entre a
comunidade negra como uma libertação da herança escravista.583 Um dos episódios da
militância do boxeador que angariou maior repercussão foi a sua recusa ao alistamento
militar obrigatório para servir na invasão dos EUA ao Vietnam. O pugilista declarou: “Não
tenho nenhum problema com os vietcongues. Eles nunca me chamaram de crioulo.”584
582
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014,
p. 78.
583
Sobre Malcolm e a Nação do Islã, ver MARABLE, Manning. Malcolm X. Uma vida de reinvenções. 2013.
584
REMICK, David. 2011: 11. Apud. SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”.
Negritude, política e relações raciais na obra de Jorge Ben (1963 -1976). Dissertação. UFF. 2014, p. 108.
585
Jorge Ben. Negro é lindo. (Jorge Ben). Negro é lindo. Álbum. Philips. 1971. Faixa 03, Lado A.
586
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 81.
219
587
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa Venda de Discos. Notaç ão: PD
013.
588
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa Venda de Discos. Notação: PD
014 (SP) e PD 016 (Recife, anos 1971 e 1972).
220
em dezembro, com o LP Wilson Simonal, lançado pela Philips. Para o ano de 1972, os
dados de vendas em Recife são interessantes por incluir, junto ao “Título do LP”, o “Título
da Música”, de modo que a informação do LP Tim Maia é fortalecida pela música “Pelo
amor de Deus” (o que significa se tratar do terceiro álbum homônimo do artista, lançado
em 1972) e o LP Jorge Ben, pela música “Fio maravilha” (informando se tratar do álbum
Ben, também lançado em 1972).589 O acervo para esse ano não contém nenhum registro da
cidade do Rio de Janeiro e, além dos dados de Recife, constam apenas três microfilmagens
intituladas “Relação das gravações mais vendidas durante o ano de 1.972 em São Paulo”,
nas quais, nos 20 compactos duplos, “Você”, de Tim Maia, aparece em 4° e nos 20 Long-
Playings, Tim Maia n°2 está em 12° (ou seja, o segundo álbum de Tim, lançado em 1971),
configurando Tim como o único artista do recorte desta tese a pontuar. Da Black Music dos
EUA, que nenhum artista apareceu nos dados de Recife, em SP apareceu Michael Jackson
(“Ben”, 16°, e “Got to be there”, em 18° na lista de compactos simples).590
Tim Maia, terceiro LP gravado pelo artista, lançado pela Polydor em 1972, manteve
a sonoridade desenvolvida por Tim no álbum anterior, com os seus souls e baiões-soul
enriquecidos pelos solos de Paulinho, mas para este disco o instrumental foi fortalecido
pela adoção dos músicos do grupo Dom Salvador e Abolição. O LP de Tim foi gravado por
duas bases de instrumentistas, uma creditada pela localização “Rio” e outra “São Paulo”.
Os músicos do Rio eram os oriundos do Abolição: Salvador (piano), Luiz Carlos (bateria),
Rubens (baixo), Oberdan (sax e flauta) e Sérgio (trombone), além de Garoto (vibrafone),
Waldir e Barrosinho (pistons), Paulinho (guitarra solo) e o próprio Tim (guitarra e violão
base), conforme informado no encarte do LP. Já o grupo São Paulo, mantinha Luiz Carlos,
Rubens, Sérgio, Waldir, Paulinho e Tim, incluindo Carlos da Fé (piano, piano elétrico e
órgão), Aparecido Bianchi (vibrafone), Chacal (tumba, congas e percussão), Isidoro
Longano (sax e flauta), Antônio Arruda (sax) e Paulinho (piston). Os dois grupos contando
com o amparo de orquestra de cordas, alguns instrumentistas convidados e os vocais de
apoio de Sérgio e dos ex-Os Diagonais, Genival (Cassiano) e Amaro. O álbum apresentou
três canções em inglês: uma regravação de “These are the songs”, “My little girl” e “Where
is my other half?”, também gravada em português no álbum com o título “Lamento”. 591
589
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa Venda de Discos. Notação: PD
016.
590
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa Venda de Discos. Notação: PD
020 (SP anos 1972 e 1973).
591
Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1972. Reedição em CD, Universal Music. 2010.
221
Dom Salvador também produziu os arranjos dos álbuns lançados por Elza Soares
em 1972, Elza pede passagem e Sangue, suor e raça - disco de duetos com o sambista
Roberto Ribeiro -, lançados em março e dezembro, respectivamente. Após ter residido na
Itália entre 1970 e 1971, Elza retornou ao Brasil e retomou a carreira na Odeon. O primeiro
contato com o LP Elza pede passagem, através da capa sugere uma mudança na sonoridade
da artista rumo ao soul e funk devido à sua aparência. Afinal, a adoção do penteado black
power, valorizando o volume dos cabelos crespos, da calça boca de sino e os movimentos
captados nas fotos de capa e contracapa aproximavam-na da “moda soul”. A ausência de
um texto informativo para o consumidor poderia ser compensada pela inclusão de Salvador
como orquestrador. Porém, a audição do disco evidencia que não ocorreu expressivas
mudanças na sonoridade de Elza, apenas com a maior exploração do timbre do contrabaixo
elétrico em algumas composições (“Cheguendengo” e “Amor perfeito”), além da guitarra e
órgão elétrico em algumas canções, que ainda assim eram associadas ao samba (mas não à
Bossa Negra). Essa tendência seguiu no álbum seguinte, Sangue, suor e raça, gravado com
o então popular sambista Roberto Ribeiro, disco de sonoridade de samba mais tradicional
(mesmo em “Swing Negrão”, composição de Elza que abre o disco, como uma breve
introdução citando a canção “Brasil pandeiro”), apenas com o contrabaixo elétrico um
pouco mais forte em algumas canções. Também não há referências antirracistas.
Fig. 9. Capa e contracapa. Elza pede passagem. 1972. Extraído de (Acesso 23/05/2021):
<https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-1312546998-vinil-lp-elza-soares-elza-pede-passagem-disco-
1972-lacrado-_JM>
regência por parte de Dom Salvador, o que permite concluir, portanto, que o pianista,
embora não tenha lançado um novo trabalho solo, teve participação expressiva na
sonoridade difundida em tal ano. Para a produção de Toni, os arranjos de Salvador (e
talvez sua presença ao piano) proporcionaram uma maior referência blues no disco, como
destacado em “Não grile minha cuca” (de Toni) e “Uma ideia” (Marcos Valle/Paulo Sérgio
Valle). O álbum também registrou maior atuação de Toni como compositor, que assina
oito das onze canções e apenas em uma delas tendo um parceiro (Major em “Podes crer,
amizade”), sendo as duas atuações como intérprete restantes apresentadas em “Mané
Beleza” (Chico Anísio/Arnaud Rodrigues) e “Sinceridade” (Tim Maia).
Entre as onze canções, apenas a composição dos irmãos Valle aborda alguma
referência antirracista (os mesmos autores de “Black is beautiful”): Quando eu nasci/ vim
sem pedir/ antes eu fui uma ideia/ só uma ideia/ de minha mãe e um pai/ de construir
alguém que só soubesse amar/ Eu aprendi minha lição/ eu sei que a sombra das mãos joga
no chão/ a mesma cor/ Oh, que ideia!592 A canção repete algumas vezes o verso Pai, olhe,
olhe para mim, que, acompanhado por uma sonoridade que transita entre o blues e o
gospel, evoca uma dimensão de mensagem religiosa. Conforme a dissertação da
historiadora Amanda Palomo Alves: “Depreendemos que o verso ‘eu sei que a sombra das
mãos joga no chão a mesma cor’, explicita a acepção de que todos os homens são iguais,
indiferente da cor da pele.”593
Fig. 10. Capa e contracapa. Toni Tornado. 1972. Extraído de (Acesso 23/05/2021):
< https://woodstocksound.wordpress.com/2014/06/10/toni-tornado-discografia/>
592
Toni Tornado. Uma ideia. (Marcos Valle/Paulo S. Valle). Toni Tornado. Álbum. Odeon. 1972. Faixa 03,
Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=jhL9FhmQZrs >
593
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade
em Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual de Maringá. 2010, p. 107.
223
Encerrando a análise sobre o ano de 1972, Evinha não lançou nenhum álbum e
Simonal lançou o seu primeiro LP na gravadora Philips (que constou nos dados de vendas
em Recife no ano), Se dependesse de mim, que sucedeu o seu primeiro lançamento na nova
gravadora, o compacto simples “Noves fora/Paz e arroz”. Os discos demostravam que a
filiação de Simonal ao soul e funk, agora com maior adoção de guitarra, não exibia sinais
de influência dos novos artistas da Black Music Brasileira, mantendo a sonoridade
identificável em seus últimos trabalhos desde 1969; e as gravações não apresentaram
referência à questão racial. O álbum aproveitou a composição “Noves fora” do compacto,
já “Paz e arroz”, canção de Jorge Ben, foi lançada no LP do compositor em 1972, Ben,
com algumas modificações na letra, em um álbum que marcou o fim da parceria de Jorge
com o Trio Mocotó. Segundo Ana Maria Bahiana, em texto para a reedição do álbum em
CD: “Ben marca o apogeu de Jorge Ben Jor como um alquimista de ritmos, um
explorador da impensada fronteira entre samba, blues e soul.”594 A hibridação entre
gêneros da black music e os ritmos do samba permanecem realizando um produto original
de difícil classificação - embora apontado como imiscuído ao blues e soul -, de modo que a
mudança mais explícita na sonoridade foi a exploração mais intensa do violão (exceto em
“Paz e arroz”, tocada na guitarra) como instrumento de ritmo e solista, e o menor destaque
à percussão e ao acompanhamento de orquestra (de cordas e sopro). Quanto à temática,
este álbum de Jorge também não apresentou referências à linguagem antirracista.
594
Ana M. Bahiana. Texto para a reedição. Jorge Ben. Ben. Álbum. Philips. 1972. CD. Universal Music.
2009.
224
“Cosa nostra” e “Bicho do mato”). Conforme texto de Ana Maria Bahiana para a reedição
em CD: “Jorge Ben Jor lançou esse novo conceito de álbum (para a época): vinte e uma
canções compactadas em sete faixas, cada qual um pout-pourri de músicas aparentadas
rítmica e conceitualmente, cobrindo dez anos de sucesso.”595 O consumidor ouvinte
seduzido pelos lançamentos de Jorge após sua revalorização em 1969 era apresentado às
composições da primeira fase de sua carreira sem riscos de rejeição da sonoridade samba-
jazz, e quem acompanhava sua carreira desde o álbum de 1963 poderia ouvir versões
atualizadas de suas composições, mais próximas às execuções ao vivo na época,
diferenciando do efeito de uma coletânea com os fonogramas originais.
Toni Tornado em 1973 lançou apenas um compacto simples, contendo o baião (que
incluía instrumentos elétricos, mas não chegava a ser um baião-soul ou funk) “Odorico” e o
soul “Mole, Mole, Fácil, Fácil”, composições de sua autoria.596 A primeira, uma explícita
referência ao personagem Odorico Paraguaçu, protagonista da telenovela O bem amado, a
primeira em cores da televisão brasileira, exibida às 22h pela Rede Globo entre 22/01/1973
e 03/10/1973. A composição de Toni não compôs a trilha sonora da novela, cuja trilha
nacional foi integralmente composta por Vinícius de Moraes e Toquinho - e na trilha
internacional havia “Masterpiece” do grupo de black music estadunidense (doo wop, soul e
funk) The Temptation.597 Já o Trio Ternura e Tim Maia participaram da trilha sonora da
telenovela Rosa dos Ventos, exibida pela TV Tupi às 19h entre 16/07 e 17/11 de 1973, com
as canções “Sempre Primavera” e “Paz”, respectivamente, comercializadas no LP com a
trilha sonora da novela, lançado em 1973 pela gravadora Sinter. 598 A telenovela da Tupi
estreou no mesmo mês que chegou às lojas o quarto álbum de Tim, Tim Maia (1973) que
não incluiu a faixa presente na trilha, mas apresentou duas canções de expressivo impacto
na carreira do cantor: “Réu confesso” e “Gostava tanto de você”. Exceto pelo guitarrista
Paulinho, o disco não manteve os instrumentistas presentes no álbum anterior (oriundos do
grupo Dom Salvador e Abolição) e também não apresentou a temática racial.599
O Trio Ternura, por sua vez, lançou em 1973 dois discos compactos de interesse
para a proposta da presente tese. Desde o álbum de 1971, o grupo lançou mais quatro
595
Ana M. Bahiana. Texto de reedição. Jorge Ben. 10 anos depois. Álbum. Philips. 1973. CD Universal.
2009.
596
Toni Tornado. Odorico/Mole, mole, fácil, fácil. Compacto. Odeon. 1973.
597
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/o -bem-amado/trilha-sonora/> Acesso
24/05/21.
598
< http://teledramaturgia.com.br/rosa-dos-ventos/> Acesso 24/05/2021.
599
Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1973. Reedição em CD. Abril. 2011.
225
compactos. Dois em 1971, na CBS, que repetiam as faixas “Por isso eu digo, Brasil, eu
fico/Ah! Se eu pudesse”, oriundas do LP; e os compactos soul “O mensageiro/Razão de
ser” e “Sempre primavera/Canção sem rima”, em 1972, ambos pela Polydor e de tema
romântico. Os compactos lançados em 1973 diversificaram a temática, incluindo
referências religiosas de matriz afro, sobretudo em composições de Umberto Silva, pai dos
irmãos integrantes do trio.
600
Trio Ternura. Oxalá/A hora grande. Compacto. Polydor. 1973.
601
Trio Ternura. A gira (Umberto Silva/Beto Scala). A gira/Last tanto in Paris. Compacto. Polydor. 1973.
602
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 131.
603
Acesso 24/05/2021: < https://noize.com.br/raridade-soul-brasileiro-trio-ternura-ganha-relancamento-em-
vinil/?fbclid=IwAR1HiaRKavb3rRzfaTNA2QAWfS4xOKxNiOe5aql0hXVBFiM V6Iljq1jHb1A#1>
226
604
Ricardo Moreira. Texto de encarte. Box. Três Tons de Luiz Melodia. Universal Music. 2013.
605
Luiz Melodia. Pérola Negra. Álbum. Philips. 1973. Reedição em CD. Universal Music. 2013.
606
< https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/07/28/discos-para-descobrir-em-
casa-apresentamos-nosso-cassiano-cassiano-1973.ghtml> Acesso 24/05/2021.
227
Cassiano.607 Contudo, foi mais um disco que não angariou repercussão. A sonoridade soul
mais suave, porém - em diferença aos arranjos mais enérgicos dos discos de Tim Maia,
Toni Tornado ou Abolição - também marcou Evinha, o quarto LP lançado pela cantora,
que incluiu uma versão em português para “Ben”, de Michael Jackson (canção de sucesso
comercial no Brasil desde o ano anterior, conforme os dados do IBOPE).608
607
Cassiano. Apresentamos nosso Cassiano. Álbum. Odeon. 1973.
608
Evinha. Evinha. Álbum. Odeon. 1973.
609
ALEXANDRE, Ricardo. “Nem vem que não tem”. A vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 228.
610
Wilson Simonal. Rio Grande do Sul na Festa do Preto Forro (Nilo Mendes/Dario Marciano). Olhaí
balandro. é rufo no birrolho grinza! Álbum. Philips. 1973. Faixa 06, Lado B.
611
Waldinar Ranulpho. Texto de contracapa. Elza Soares. Elza Soares. Álbum. Odeon. 1973.
228
612
Elza Soares. Dia da graça. (Candeia). Elza Soares. Álbum. Odeon. 1973. Faixa 04, Lado A. CD EMI,
2003.
229
destaque por todo o ano. A partir de maio começou o grande destaque da balada soul
“Killing me softly” de Roberta Flack (1° lugar nos compactos), que também constou por
todo o ano, e Marvin Gaye (25° no compacto “Don’t mess with mister ‘T’”). No segundo
semestre, Gladys Night & The Pips (“Everything you’ll ever need”, “Neither one of us” e
“For once in my lip”, nos compactos) e Kool and the Gang (“Funk stuff” nos compactos)
aparecem nos índices, confirmando o bom momento, na recepção brasileira, para
lançamentos da black music estadunidense.613
Em Recife, Tim Maia (2° lugar) e Jorge Ben aparecem em destaque desde janeiro
nos LPs, e permanecem constando várias vezes ao ano, e Evinha (compacto “Como vai
você”, em maio), Trio Ternura (compacto “A gira”, em maio) e o estreante Luiz Melodia
(LP Luiz Melodia, como foi creditado Pérola Negra, consta em 11° em junho) apareceram
uma vez. No cenário internacional, Michael Jackson (LP Michael Jackson e o compacto
“Ben”), Stevie Wonder (compacto “You are the sunshine of my life” e LP Stevie Wonder).
Já em São Paulo, os resultados são mais parecidos com o do RJ, porém, o maior destaque
foi de Jorge Ben (LP e compacto “Fio maravilha” e os compacto duplos “Lá vem
salgueiro” e “Bahia, berço do Brasil”), por todo o ano, Tim Maia apareceu muitas vezes
(LP e compacto “Canário do reino”), Simonal constou apenas na virada de maio a junho,
mas com o compacto “Homem de verdade”. Da produção internacional, Michael Jackson,
Stevie Wonder, Gladys Night & The Pips, Roberta Flack e, estreando em dezembro, o
baladista Barry White (compacto “Love’s theme”) constam, confirmando o impacto no
Brasil da produção soul lenta e romântica estadunidense.614
613
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação:
PD 019.
614
Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação:
PD 018 (Recife) e PD 020 (SP).
230
O baiano Hyldon foi o único artista consagrado nos anos 1970 na sonoridade da
black music brasileira que obteve destaque comercial em 1974, além do grande vendedor
de discos Tim Maia, que se manteve nos cinco primeiros lugares de LPs por quase todo o
ano nas três cidades - provavelmente com o álbum lançado em 1973 que demonstrou seu
vigor comercial com a manutenção do destaque em um ano (1974) no qual o artista não
lançou discos. Tim ainda apareceu várias vezes entre os cinco primeiros em vendas com o
compacto duplo “Tim Maia”. Dos artistas consagrados na década de 1960, Jorge Ben foi o
maior destaque comercial nas três cidades, constando entre os 20 mais vendidos em LP por
todo o ano (10 anos depois e, a partir de maio, também com A tábua esmeralda (que logo
subiu para os cinco mais vendidos). Simonal, que em janeiro ainda constava em LP no RJ,
pontuou com o LP Simonal em novembro e dezembro (RJ e Recife). Elza constou em
compacto em julho (“Salve a mocidade”) e LP em novembro e dezembro (Elza Soares)
apenas no RJ. E Evinha em LP (Eva) em julho e agosto apenas em Recife. 616
615
Hyldon. As dores do mundo/Sábado e domingo. Compacto. Polydor. 1974.
616
Dados de todo o parágrafo: Arquivo Edgard Leurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de
Venda de Discos. Notação: PD 021 (Recife) e PD 022 (RJ) e PD 023 (SP).
231
Angola, Congo, Benguela,/ Monjolo, Cabinda, Mina,/ Quiloa, Rebolo/ Aqui onde
estão os homens/ Há um grande leilão/ Dizem que nele há uma princesa à
venda/ Que veio junto com seus súditos/ Acorrentados num carro de boi/ Eu
quero ver/ Angola, Congo, Benguela/ Monjolo, Cabi nda, Mina,/ Quiloa, Rebolo/
Aqui onde estão os homens/ De um lado cana de açúcar/ Do outro lado o
cafezal/ Ao centro senhores sentados/ Vendo a colheita do algodão tão branco/
Sendo colhidos por mãos negras/ Eu quero ver/ Quando Zumbi chegar/ O que
vai acontecer/ Zumbi é senhor das guerras/ É senhor das demandas/ Quando
Zumbi chega, Zumbi é quem manda/ Eu quero ver.619
617
Wilson Simonal. Wilson Simonal. Philips. Álbum. 1974. Elza Soares. Elza Soares. Álbum. Tapecar. 1974.
Evinha. Eva. Álbum. Odeon. 1974.
618
Ana Maria Bahiana. Texto de contracapa. Jorge Ben. A tábua de esmeralda. Álbum. Philips. 1974. CD.
Universal Music. 2009.
619
Jorge Ben. Zumbi (Jorge Ben). A tábua de esmeralda. Álbum. Philips. 1974. Lado B, faixa 02.
< https://www.youtube.com/watch?v=ge5BZjVVKpQ >
232
dos Palmares. Segundo Alexandre Reis dos Santos: “A canção começa fazendo menção a
algumas das principais localidades do continente africano que exportaram escravos para o
Brasil: Angola, Congo e Benguela. Os nomes destas localidades foram ressignificados no
Brasil, ganhando uma função semântica identitária para designar o indivíduo.”620 A
instituição escravista que submete integrantes da realeza e seus súditos à condição de
mercadoria (à venda (...) acorrentados num carro de boi) para o trabalho forçado nas
plantações dos latifúndios (cana de açúcar e cafezal) será confrontada pela chegada de
Zumbi, o senhor das guerras e das demandas. Quanto ao arranjo, a comunicóloga Luciana
Oliveira ressalta: “na faixa Zumbi, o arranjo vocal do coral é feito em um tom épico, que
acompanha o cantor, também lembrando os spirituals, cantos de fé religiosa e canções de
trabalho entoadas pelos escravos norte-americanos”,621 o que, para a autora, estabelece tal
faixa como exemplo da conexão entre o samba e o rhythm’n’blues formando o samba-rock.
620
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p.
140.
621
OLIVEIRA, Luciana Xavier. O swing do samba: uma compreensão do gênero samba-rock a partir da obra
de Jorge Ben Jor. Dissertação (Comunicação Social). Universidade Federal da Bahia. 2008, p. 144.
622
CARDOSO, Marcos. O movimento negro em Belo Horizonte: 1978-1998. 2011 [publicação em livro], p.
66.
623
PEREIRA, Amílcar. O mundo negro. 2013, p. 28.
233
Referência talvez considerada similar à época foi lançada por um dos artistas da
black music brasileira dos quais os lançamentos em 1974 não constaram nos dados do
IBOPE, o Trio Ternura. O compacto “Filhos de Zambi/Meu caso com você” foi lançado
pela gravadora RCA/Victor e a primeira canção, uma composição de Umberto Silva e José
Ribamar manteve a orientação dos dois compactos anteriores ao trazer a sonoridade de
tambores acompanhada de contrabaixo elétrico e guitarra e bateria funk com os vocais do
trio entoando o refrão ele vai girar por toda a canção, enquanto Jussara e Jurema cantam
juntas a letra. A referência a Zambi em canção já havia aparecido em canção em 1965, no
álbum A música de Edu Lobo por Edu Lobo, na faixa “Zambi”, composta para a trilha
sonora da peça teatral “Arena canta Zumbi” e que intercalava os termos Zambi e Zumbi. 624
Essa leitura pode ser justificada no verbete “Zumbi” da obra Enciclopédia Negra onde
consta, em documentos de 1678: “Um desses guerreiros foi capturado por dois filhos do
rei, sendo ele ‘um macho chamado Zambi’. (...) Segundo notícias, os embates teriam
deixado ferido ‘com uma bala o general das armas, que se chamava Zambi, que quer dizer
Deus da Guerra, negro de singular valor”. 625 Em outro verbete da obra, em referência a
Palmares, consta: “Da família real, os nomes de destaque são Acaiuba e Toculo, filhos de
Ganga-Zumba, além de Acaiuba Zambi, filho de Zumbi.”626 Contudo na canção do Trio
Ternura os versos não sugerem referência a Palmares: já abençoou filhos de Zambi/ lá na
casa de meu pai muito ele tem que fazer/ ele vai girar./ (...) sua missão nunca se encerra/
no espaço e na terra/ sem nos esquecer jamais.627
624
Edu Lobo. Zambi (Edu Lobo/Vinícius de Moraes). A música de Edu Lobo por Edu Lobo. Álbum. Elenco.
1965. Faixa 06, Lado B. Também gravada sob o título “Zambi no açoite” no LP: Arena conta Zumbi. Texto e
trilha sonora da peça. Álbum. Som Maior. 1965. Sobre a peça teatral:
< http://memoriasdaditadura.org.br/pecas/arena-conta-zumbi/> Acesso 25/05/2021.
625
GOMES, Flávio dos. LAURIANO, Jaime, SCHWARCZ, Lilia. Enciclopédia negra. 2021, p. 579.
626
GOMES, Flávio dos. LAURIANO, Jaime, SCHWARCZ, Lilia. Enciclopédia negra. 2021, p. 25.
627
Trio Ternura. Filhos de Zambi. (Umberto Silva/José Ribamar). Filhos de Zambi/Meu caso com você.
Compacto simples. RCA/Victor. 1974. Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=Y4NUOFZHv Gg>
628
Martinho da Vila. Festa de Umbanda. (tradicional). Canta, canta, minha gente. Álbum. RCA/Victor.
1974. Faixa 06, Lado B.
234
Entre 1974 e 1975, Luiz Melodia colhia os frutos do seu primeiro LP, Pérola
Negra. E de sua carreira como compositor, afinal, após a gravação da canção “Pérola
629
< https://monkeybuzz.com.br/materias/revisitando-meus-classicos-canta-canta-minha-gente-1974/>
Acesso 25/05/2021.
630
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com a origem das palavras. 1977, p. 255.
631
Quinteto Ternura. Quinteto Ternura. Álbum. RCA/Victor. 1974.
632
Toni Tornado. Cabeça Oca/I say goodbye. Compacto. Odeon. 1974.
235
Negra” por Gal Costa, em 1971, a consagrada cantora Angela Maria a regravou em seu
álbum Angela, de 1972, em um arranjo jazzístico de Big Band (estilo swing), bastante
diferente da sonoridade rockeira em baixo, guitarra e bateria da versão de Gal. 633 Também
em 1972, sua composição “Estácio, Holly Estácio” foi lançada por Maria Bethânia no
álbum Drama-Anjo Exterminado, em versão que valorizava a sonoridade de bolero, mais
próxima ao samba-canção.634 Em 1973, após o lançamento do primeiro álbum de Luiz
Melodia, sua própria versão de “Estácio, Holly Estácio” foi incluída pela gravadora
Fontana na coletânea em LP Máximo de Sucessos, junto a Raul Seixas, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Fagner, Sergio Sampaio e Gal Costa.635
Nem tudo nesse primórdio da carreira fonográfica, porém, foi positivo. Com o
impacto inicial, segundo Luiz, em entrevista a seu biógrafo Toninho Vaz, a gravadora
queria rápido um segundo álbum e ele não se sentia preparado. Sugeriram-lhe “um álbum
só de sambas, pois queriam me fazer um sambista. Não deu certo e eu passei a ser
considerado um cara difícil.”636 Conforme expresso no primeiro disco de Luiz, o cantor
estabelecia identificação com o samba, mas também com diversos outros gêneros musicais,
particularmente a “música jovem”, com o rock, o soul e o funk. Nessa época de
desentendimento com a Philips, Luiz se aproximou de vários músicos e funcionários da
indústria fonográfica com os quais jogava futebol informalmente, o que contribuiu na
articulação de seu rompimento com a primeira gravadora e contratação pela Som Livre - a
iniciativa fonográfica do grupo Globo. Luiz aproximou também de Oberdan Magalhães,
saxofonista e flautista que integrou o grupo Dom Salvador & Abolição, participou do
terceiro álbum de Tim Maia e já participava de fusões da black music com a música
brasileira desde o final da década de 1960. Oberdan acompanhou o cantor nos shows e o
ajudou a formar uma banda de apoio. O primeiro registro dos dois encontros, com a Som
Livre e com Oberdan, foi o compacto “Ébano/Maria particularmente”, lançado em 1975,
canções em sonoridade elétrica, destacando as passagens de guitarra, órgão elétrico e os
naipes de sopros.637 A canção “Ébano” foi lançada por Luiz no Festival Abertura, da Rede
Globo de São Paulo, acompanhado pela banda formada por Oberdan Magalhães.
633
Angela Maria. Pérola Negra. (Luiz Melodia). Angela. Álbum. Som. 1972. Faixa 06, Lado A.
634
Maria Bethânia. Estácio, Holly Estácio. (Luiz Melodia). Drama-Anjo Exterminado. Álbum. Philips. 1972.
Faixa 05, Lado B.
635
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 66.
636
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 67.
637
Luiz Melodia. Ébano/Maria particularmente. Compacto. Som Livre. 1975.
236
638
CÓRDOVA, Magno Cirqueira. Rompendo as entranhas do chão: cidade e identidade de migrantes do
Ceará e do Piauí na MPB dos anos 70. Dissertação (História). Universidade de Brasília. 2006., p. 69.
639
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 23.
640
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 26.
237
Foi através do contrato com a Philips que Luiz saiu da casa em São Carlos,
passando a morar em uma casa alugada pela gravadora, junto ao baixista Rubão Sabino
(integrante de Dom Salvador & Abolição) e o guitarrista Renato Piau. E, após as
vendagens do disco Pérola Negra, comprou um carro modelo Fusca, evidência da ascensão
social.642 Contudo, oriundo de um núcleo familiar que não experimentou o abandono
paterno e no qual o “chefe de família” tinha um emprego fixo e estável, a realidade
familiar de Luiz não era compartilhada por muitas das famílias pobres negras posto que,
conforme pontuado pela historiadora Beatriz Nascimento no artigo “A mulher negra e o
amor”: “Via de regra, nas camadas mais baixas da população cabe à mulher negra o
verdadeiro eixo econômico onde gira a família negra. Essa família, grosso modo, não
obedece aos padrões patriarcais, muito menos os padrões modernos de constituição
nuclear.”643 Todavia, a origem de Luiz é exemplar quanto à reflexão da intelectual Lélia
Gonzalez no artigo “Mulher negra”, ao analisar dados do período do chamado “milagre
econômico”: “Isso significa que o número de membros das famílias negras inseridos na
força de trabalho é muito maior que o das famílias brancas para a obtenção do mesmo
rendimento familiar”, o que permite à autora concluir, como ocorreu a Luiz: “Um dos
efeitos desse trabalhar mais e ganhar menos implica lançar mão do trabalho do menor. (...)
Por aí se entende por que nossas crianças mal conseguem cursar o primeiro grau.”644
A realidade de pouco acesso a bens materiais vivida pela família de Luiz Carlos dos
Santos, nome de batismo de Luiz Melodia, é representativa para amplas parcelas da
sociedade brasileira. O recorte temporal do chamado “milagre econômico brasileiro” é
marcado por intensa concentração de renda e ampliação das desigualdades sociais. Tal
recorte, consagrado entre os anos de 1969 e 1973, finaliza justamente quando a situação
641
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 29.
642
VAZ, Toninho. Meu nome é ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 59-63.
643
NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra e o amor. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e intelectual:
possibilidade nos dias da destruição. 2018, p. 355. Artigo originalmente publicado em 1990.
644
GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e
diálogos. 2020, p. 99. Artigo originalmente publicado em 1984.
238
econômica de Luiz inicia melhora, após o contrato com a gravadora Philips e o lançamento
do primeiro disco. Porém, não é possível compreender os resultados econômicos obtidos
pelo regime sem dimensionar os custos estabelecidos e apontar quem os pagou. Conforme
problematizado na introdução deste segundo capítulo da tese, se, ao falar das indústrias do
entretenimento, é possível ilustrar a expansão possibilitada pela modernização autoritário-
conservadora informando que “em 1970, 24% dos domicílios brasileiros tinham
televisão”,645 importa ressaltar a significativa parcela de 76% das residências cuja condição
econômica dos moradores não lhes permitia adquirir um destes aparelhos eletrodomésticos,
como a maioria dos moradores do Morro de São Carlos. Lélia Gonzalez, no texto acima
citado, faz referência a um estudo de Carlos Hasenbalg e Nelson Valle Silva sobre a
concentração de renda e desigualdade do período, concluindo: “Pelo exposto, o
desenvolvimento econômico brasileiro, segundo esses analistas, resultou num modelo de
modernização conservadora excludente.”646
645
Fonte: Mídia dados, SP: Grupo de Mídia, 1996, p. 73 e 145. In: DIAS, Márcia. Os donos da voz. 2008,
p.56.
646
GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e
diálogos. 2020, p. 96. [O livro dos autores referenciado é Industrialização, emprego e estratificação social
no Brasil. Rio de Janeiro. Iuperj, 1984. (Série estudos, 23).]
647
AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de
1988. 2014, p. 74-92.
239
648
O termo “anos de aperto” nesta concepção foi anteriormente usado em MORAIS, Bruno Vinícius L. A
legião dos esquecidos. In: “Sim, sou um negro de cor”: Wilson Simonal e a afirmação do orgulho negro no
Brasil dos anos 1960. Dissertação (História). Universidade Federal de Minas Gerais. 2016, p. 44-61.
649
AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de
1988. 2014, p. 92.
650
SCHWARCZ, Lilia M., STARLING, Heloisa M. Brasil: Uma biografia. 2015, p. 453.
651
SINGER, Paul. O processo econômico. In: AARÃO REIS FILHO, Daniel. (coord.). Modernização,
ditadura e democracia. 1964-2010 [História do Brasil Nação 1808-2010, vol 5]. 2014, p. 187.
240
O ano de 1975, recorte inicial deste tópico do capítulo, foi cenário para uma ampla
pesquisa sobre as consequências do “milagre” em São Paulo e o relatório, publicado em
1976, verticalizou a análise do quadro social. Nas periferias da cidade, 78% da população
alcançava renda familiar até três salários mínimos e 19% de três a seis salários mínimos. 654
O relatório produzido pelos pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e
Processamento (CEBRAP),655 São Paulo 1975: crescimento e pobreza, evidencia algumas
consequências da modernização operada nas camadas urbanas na maior cidade do país.
Uma citação desta obra ajuda a melhor compreender, a partir da situação dos habitantes
das favelas:
652
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do Regime Militar Brasileiro. 2014, p. 149.
653
< https://www.academia.org.br/academicos/edmar-lisboa-bacha/discurso-de-recepcao> Acesso
28/05/2021.
654
CAMARGO, Cândido et al. São Paulo 1975. Crescimento e pobreza. São Paulo: Ed. Loyola. 1976, p. 43.
655
Para a origem do CEBRAP, ver <http://www.cebrap.org.br/v2/contents/view/18> Acesso em 24/06/2019.
241
a) Deterioração das condições de vida dos extratos urbanos de baixa renda . Não
esqueçamos que o deslocamento de grandes contingentes de mão de obra do
campo para os centros urbanos determinou não o crescimento populacional
destes últimos, mas a sua “inchação”, com a consequente formação de bairros
periféricos e de favelas (na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, existiam 757
mil favelados em 1970; em 1980, seu número aumentou para 1 740 000,
passando a constituir cerca de 34% da população do município), onde se pôde
constatar: aumento da mortalidade infantil, aumento dos acidentes de trabalho,
deterioração e crescimento insuficiente da infraestrutura urbana de transportes,
problemas habitacionais e de saneamento básico, altos índices de evasão escolar
no primeiro grau [atual ensino fundamental], insuficiências quanto ao
atendimento médico-hospitalar do sistema previdenciário etc. Desnecessário
dizer que esse subproletariado é constituído majoritariamente por negros.
656
CAMARGO, Cândido et al. São Paulo 1975. Crescimento e pobreza. 1976, p. 37.
657
CAMARGO, Cândido et al. São Paulo 1975. Crescimento e pobreza. 1976, p. 45.
242
658
GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e
diálogos. 2020, p. 95-97.
659
LUNA, Francisco Vidal, KLEIN, Herbert. Transformações econômicas no período militar (1964-1985).
In: AARÃO REIS FILHO, Daniel, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo P. S. A ditadura que mudou o
Brasil: 50 anos do golpe de 1964. 2014, p. 94.
243
conquistarem algum destaque em sua profissão, podem ser incluídos na escassa listagem
da ascensão social, tornando-se integrantes das classes médias ou mesmo altas no período.
Isso permite a eles terem vivido anos de ouro de suas carreiras no período de crescimento
da indústria do entretenimento.
660
BARCINSKI, André. Pavões misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 43.
661
Fonte: ABPD, RJ: 03-95. In: DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e
mundialização da cultura. 2008. p. 60.
244
discos cresce 813%”,662 mas o modelo excludente de modernização operado pelo Estado
indica um acesso extremamente desigual.
Ainda assim, como um grande número de pessoas de menor poder aquisitivo e mais
limitado poder de consumo poderia ter acesso às canções a partir da radiodifusão, importa
destacar que o período da década de 1970 também marcou anos de ouro para a indústria
dos bens de consumo, com expansão da aquisição dos aparelhos de rádio, presentes em
58.9% dos domicílios brasileiros no ano de 1970 e em 76.2% dos domicílios no ano de
1980.663 Como destacado na introdução deste capítulo, é necessário recordar que 23.8%
dos lares não tinham acesso nem aos aparelhos de rádio mais simples; contudo, percebe-se
o grande potencial de difusão da música popular via rádio, em toda forma. Ao ter acesso às
canções Black, estas pessoas ouviam sobre temáticas diversas, sobretudo amores,
desamores e invocações à dança, mas também referências de orgulho racial, como a canção
“Ébano”, de celebração à história e cultura de comunidades negras e de referências às
mazelas de seu cotidiano.
Segundo Marcos Napolitano: “Os anos 1970 podem ser considerados a ‘era de
ouro’ da televisão brasileira. Foi naquela década que a televisão, como sistema de
662
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 1988, p. 127.
663
Fonte: Mídia dados, SP: Grupo de Mídia, 1996, p. 73 e 145. In: DIAS, Marcia. Os donos da voz. 2008,
p.56.
664
Pecado Capital. Trilha sonora original. LP. Som Livre. 1975. “Juventude transviada” era a faixa 01, Lado
B.
245
665
NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 2008 [3 ed], p. 90.
666
BARCINSKI, André. Pavões misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 43.
667
BARCISNKI, André. Pavões misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 9.
668
BARCINSKI, André. Pavões misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 40.
669
BARCINSKI, André. Pavões misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2014, p. 40.
670
DIAS, Marcia T. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2008, p.
55.
246
uma citação de Paulo César de Araújo em Eu não sou cachorro, não. Música popular
cafona e ditadura militar:
Entre os artistas abordados nesta tese, o ano de 1975 foi particularmente um ano de
ouro para Hyldon, que lançou, pela Polydor, um compacto duplo, amparado nas canções
de seus dois compactos anteriores: “As dores do mundo/Na sombra de uma árvore/Na rua,
na chuva, na fazenda/Sábado e domingo.” No mesmo ano foi lançado o primeiro LP do
cantor, Na rua, na chuva, na fazenda, que repetia as cinco canções lançadas em compactos
desde 1973 e acrescentou outras sete composições - mas com destaque às já lançadas.673
Nos dados do acervo IBOPE das cidades de Recife, Rio de Janeiro e São Paulo,
Hyldon consta nas vendas de compacto simples (“Na rua, na chuva, na fazenda”) e, a partir
de junho, com o LP nas três cidades, sendo que o álbum destaca por todo o segundo
semestre nas três regiões, alcançando as cinco primeiras colocações em vendas. Além de
Hyldon, que foi o único artista da Black Music Brasileira a constar, com impacto, nas três
cidades, Tim Maia pontuou no primeiro semestre em Recife (compactos simples “Réu
confesso”, “Do you thing be have you self”, compacto duplo “Gostava de você” e LP Tim
671
ARAÚJO. Eu não sou cachorro, não. Música popular cafona e ditadura militar. 2010. p.19. Conforme
citado em nota de rodapé, “Fontes: respectivamente, Associação Brasileira de Produtores de Discos e
IBINEE; “Discos em São Paulo”, Pesquisa 6, IDART, 1980. Apud. Renato Ortiz. A moderna tradição
brasileira; cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 127-128.
672
Fonte: ABPD, RJ: 03-95. In: DIAS, Marcia T. Os donos da voz. 2008, p. 59.
673
Hyldon. Na rua, na chuva, na fazenda. Álbum. Polydor. 1975.
247
Maia Racional) e Rio de Janeiro (LP Tim Maia Racional) e no segundo semestre apenas
em Recife (em outubro e novembro com o compacto duplo “Imunização racional”). Elza
Soares também pontuou no primeiro semestre nessas duas cidades em LP, porém, em
trabalho de samba tradicional, e no segundo semestre, apenas em RJ. Jorge Ben pontuou
apenas no RJ, em LP (Jorge Ben – provavelmente o A tábua esmeralda, do ano anterior – e
Solta o pavão) e Evinha apenas em SP, no segundo semestre, em compacto simples
(“Perdão amor”). O compacto “Ébano”, de Luiz Melodia, pontuou somente em Recife no
mês de junho. Da Black Music dos EUA, em Recife não houve qualquer registro, mas em
SP e RJ, Barry White foi o artista de maior destaque por todo o ano. Em SP, um expressivo
destaque de Michael Jackson por todo o ano e no RJ, James Brown e Gladys Night no
primeiro semestre e Commodores no segundo. 674
Faixa que inspirou o título de álbum de 1974, “Can’t Get Enough of Your Love,
Babe”, é canção composta e produzida somente por Barry. O arranjo de cordas
da faixa é uma das marcas registradas do som do artista. (...) Sucesso de seu
primeiro álbum de 1973, “I’m Gonna Love You Just a Little More, Baby”
exemplifica o talento do soulman para armar luxuosa cama instrumental e deitar
nela com sua voz sensual de baixo-barítono.675
scats por todo o disco, conforme feito nos dois álbuns anteriores. Jorge Ben lançou o
álbum Solta o Pavão, que, para Ana Maria Bahiana, conforme texto para a reedição do
álbum em CD “é claramente a segunda parte de A Tábua de Esmeralda, de 1974”,676 pela
sonoridade e temas mobilizados, mas sem incluir referências raciais. Wilson Simonal
lançou o álbum Ninguém proíbe o amor, que mantinha a sonoridade do álbum que lançou
no final de 1974, Dimensão 75, afastando do “sambão-jóia” e transitando por sambas e
baladas em diálogo com as sonoridades soul e jazz, mas, assim como no álbum anterior,
sem expressar a temática racial.677 De Toni Tornado e o então Quinteto Ternura, não foram
localizados por esta pesquisa lançamentos no ano.
Fig. 11: Capa e contracapa. Tim Maia Racional. Vol. 2. Álbum. Seroma. 1976. O disco apresenta o mesmo
trabalho gráfico de seu antecessor, lançado em 1975. Extraído de [Acesso 29/05/2021]:
< https://thebestofvinil.blogspot.com/2017/11/tim-maia-racional-2-1975-sero ma.ht ml>
A estranha história narrada na capa antecipa o conteúdo do disco, posto que: “As
letras das músicas racionais, estão ligadas à Energia Racional, a energia pura, limpa e
676
Ana Maria Bahiana. Texto de apresentação. Jorge Ben. Solta o pavão. Álbum. Philips. 1975. Reedição em
CD. Universal Music. 2009.
677
Simonal. Dimensão 75. Álbum. Philips. 1974. Simonal. Ninguém Proíbe o amor. Álbum. RCA. 1975
249
perfeita, por ser do Supermundo, o mundo Supremo a este antimundo, que nós habitamos,
que é o mundo da energia elétrica e magnética, causadora dos males do corpo e dos males
da vida.” A contracapa prossegue na explicação da tese, apresenta o “mapa da formação e
criação do mundo de energia elétrica e magnética” e mais vinte e um mandamentos, as
“eternidades” e “o princípio da degeneração”. Desenhos e explicações ainda buscavam
sistematizar a cosmologia Racional. Por fim, a contracapa informa os títulos e a duração
das nove faixas que integram o LP, todas compostas por Tim Maia Racional, indicando
que o álbum mantinha a tradição do título ser apenas o nome do artista. Não era um álbum
chamado Racional, mas sim o artista que agora atendia por Tim Maia Racional. 678
678
Tim Maia Racional. Tim Maia Racional. Álbum. Seroma. 1975.
679
GANDRA, José R. Tim Maia Racional, vol. 1 (1975). [Coleção Tim Maia; v. 5] Abril Coleções. 2011, p.
9.
250
Recife, São Paulo ou em seu principal local de atuação, o Rio de Janeiro. A penúltima
faixa de Tim Maia Racional Vol. 2, “Guiné-Bissau, Moçambique e Angola Racional” por
vezes é citada como uma abordagem antirracista. Franklin Martins, no segundo volume da
trilogia Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República,
relaciona a canção de Tim com a independência dos três países, conquistada em 1975, após
o secular domínio colonial português: “Embora não fosse dado a compor e cantar músicas
sobre política, ele fez questão de saudar em 1976 a independência da Guiné-Bissau, de
Moçambique e de Angola”.680 O autor justifica sua interpretação pelos versos: Eu vim aqui
pra lhe dizer/ Que eles agora estão/ numa relax, numa tranquila, numa boa/ lendo os
livros da Cultura Racional/ Guiné-Bissau, Moçambique e Angola.681 Porém, a letra indica
que a bonança dos países não se deve à independência política, mas sim à exportação de
livros da Cultura Racional aos países africanos que leem no idioma português. Em todo
caso, a canção registrou uma demonstração de atenção de Tim Maia ao continente
africano.
680
MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República.
Volume II - de 1964 a 1985. 2015, p. 185.
681
Tim Maia Racional. Tim Maia Racional vol. 2. Álbum. Seroma. 1976. Faixa 03, Lado B.
251
Em Guiné-Bissau/ não está legal/ muito menos na Rodésia/ África do Sul/ Pegue
o sangue azul/ mande para as cucuias/ Só assim vão ver/ que o preto é bom/ mas
é valente também/ Meu irmão de cor/ chega de pudor/ pois assim não é possível/
Tome o que é seu/ pois foi quem te deu/ bela natureza triste/ Foi deixar pra lá/
mas assim não dá/ veja o que aconteceu/ vai bem devagar/ vai bem como és/ mas
vai bem objetivo/ Pegue o que é seu/ viva livre em paz/ pois a sua terra é esta/
Sei que és do som/ não és de matar/ mas não vai deixar pra lá. 682
Tim Maia não foi o único dos artistas analisados nesta tese que promoveu uma
aproximação com o continente africano no ano de 1976. Jorge Ben lançou em tal ano o LP
682
Tim Maia. Rodésia (Tim Maia). Tim Maia. Álbum. Polydor. Faixa 03, Lado A. CD. Universal Music.
2010. < https://www.youtube.com/watch?v=Hv6QW6VDO64>
683
MOTTA, Nelson. Vale Tudo. O som e a fúria de Tim Maia. 2007, p. 154.
684
MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República.
Volume II - de 1964 a 1985. 2015, p. 185, 186.
685
GONTIJO, Manoel Magalhães dos Santos. Da Rodésia ao Zimbábue: A Transmutação de Culturas
Políticas e a Identidade dos Colonos. Disponível em:
<https://www.encontro2012.historiaoral.org.br/resources/anais/3/1330812076_ARQUIVO_TRABALHOCO
MPLETO_XIENCONTROABHO2012_ DOC.pdf >
686
<https://atarde.uol.com.br/muito/noticias/2118263-zimbabwe-a-musica-de-bob-marley-que-embalou-ha-
40-anos-a-libertacao-de-um-pais> Acesso 29/05/2021. Bob Marley & The Wailers. Zimbabwe. Single. Island
Records. 1979.
252
África Brasil, mais um dos títulos que se tornariam consagrados em seu repertório. Este
disco marcou a transição de Jorge da execução ao violão, então característica da
sonoridade do artista, para o uso da guitarra elétrica. A adoção de timbres elétricos ocorreu
junto a uma maior aproximação de Jorge com o funk, sonoridade reforçada pelos teclados e
o forte naipe de sopros (incluindo Oberdan Magalhães no sax). Portanto, esse disco marcou
um retorno de Jorge à sonoridade estudada na presente tese. Conforme pontuado por
Luciana Oliveira, Jorge estava “catalisando em seu samba as influências da black music
norte-americana que chegavam ao Brasil.”687 Segundo Ana Maria Bahiana, no texto para
reedição do álbum em CD: “África e futebol estão presentes em todo o disco, na canção
tema para o filme Xica da Silva de Cacá Diegues (...), na faixa título, incendiária e
passional, que encerra o álbum e em mais um gesto de paixão ao Mengo, Camisa 10 da
Gávea, hino de amor a Zico.”688
687
OLIVEIRA, Luciana. O Swing do samba. Uma compreensão do gênero samba-rock a partir da obra de
Jorge Ben Jor. Dissertação (Comunicação Social). Universidade Federal da Bahia. 2008, p. 108.
688
Ana Maria Bahiana. Texto de reedição. Jorge Ben. África Brasil. Álbum. Philips. 1976. CD. Universal
Music. 2009.
689
SANTOS, Alexandre Reis dos. “Eu quero ver quando Zumbi chegar”. Negritude, política e relações
raciais na obra de Jorge Ben. Dissertação (História). Universidade Federal Fluminense. 2014, p. 142-143.
690
OLIVEIRA, Luciana. O Swing do samba. Uma compreensão do gênero samba-rock a partir da obra de
Jorge Ben Jor. Dissertação (Comunicação Social). Universidade Federal da Bahia. 2008, p. 161.
253
atmosfera mais violenta ao refrão Eu quero ver quando Zumbi chegar. É interessante
destacar ainda que a conexão África-Brasil expressa a partir do novo título da canção
expressava uma identificação triangular, ao buscar em um gênero da black music
estadunidense um elo na construção de uma identidade negra pensada a partir da realidade
diaspórica de Zumbi, lido como uma figura simbólica, escapando ao estereótipo
“coisificado” imposto pela instituição escravocrata. Mesma característica que pode ser
identificada na canção-biografia “Xica da Silva” de versos como: de escrava a amante/
mulher/ mulher do fidalgo tratador/ João Fernandes/ A imperatriz do Tijuco/ a dona de
Diamantina/ (...) Mulher rica e invejada/ temida e odiada/ (...) a negra era obrigada a ser
recebida/ como uma grande senhora da corte/ do Rei Luís, entoados enquanto o coro canta
o mote: Xica da Silva. A negra.691
Na segunda metade da década de 1970, além de Tim Maia e Jorge Ben, o Estado
ditatorial brasileiro também efetuava um movimento de aproximação ao continente
africano. O sociólogo Walace Ferreira, no artigo “A África na Política Externa Brasileira:
análise de distanciamentos e aproximações entre as décadas de 1950 e 1980” pontua que
entre 1964 e início dos 1970, o termo chave usado pelas autoridades nas relações exteriores
no país era “interdependência”, que o próprio ditador Castelo Branco explicou durante seu
governo como a necessidade de conexão com algum bloco na ordem mundial bipolar, e,
assim, o Brasil se conectou aos EUA nos campos econômico, militar e político. Porém:
“De 1969 a 1974 (período do governo Médici), a economia brasileira cresceu a um índice
médio de mais de 11% ao ano, de modo que o período do ‘milagre econômico’ criou uma
nova justificativa para as relações com a África.”692 Essa aproximação, contudo, era
contraposta pela relação simbiótica que o Estado brasileiro mantinha com Portugal e sua
política colonialista em solo africano, como exemplificado na escolha do governo pelo
“voto contrário ao reconhecimento da existência de um Estado autônomo instituído na
Guiné-Bissau em 1973.”693
691
Jorge Ben. Xica da Silva (Jorge Ben). África Brasil. Álbum. Philips. 1976. Faixa 01, Lado B. CD.
Universal Music. 2009. < https://www.youtube.com/watch?v=bNEUBlI4G7o> Conforme será explorado no
capítulo três, a difusão dessa canção foi potencializada como trilha sonora do bem sucedido filme Xica da
Silva, produzido por Cacá Diegues e lançado em 1976. Já “África Brasil”:
<https://www.youtube.com/watch?v=gV8V6IR-UI0>
692
FERREIRA, Walace. A África na Política Externa Brasileira: análise de distanciamentos e aproximações
entre as décadas de 1950 e 1980. In: Revista acadêmica de Relações Internacionais. n°4. Vol. 11, 2013, p.
140.
693
FERREIRA, Walace. A África na Política Externa Brasileira: análise de distanciamentos e aproximações
entre as décadas de 1950 e 1980. 2013, p. 139.
254
A estabilidade política que se instaurou quando a facção dos oficiais que apoiava
Médici consolidou seu poder, além da cres cente rescisão das liberdades civis e
da repressão violenta da dissidência no Brasil, produziu um clima no qual a
política externa podia ser conduzida com maior coerência do que a que tinha
existido por mais de uma década.697
694
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 24.
695
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 14.
696
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p.179.
697
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 24.
255
África, Geisel fez com que o Brasil fosse a primeira nação a reconhecer o governo
independente de Angola, embora fosse um regime marxista. Essa decisão foi parte de uma
nova política externa que o regime chamou de ‘pragmatismo responsável.”698
Joel Rufino dos Santos afirma que o fato de haver em geral “pesquisa” e
“cultura” nos nomes das organizações negras surgidas na década de 1970,
mesmo não sendo estas organizações estritamente culturais, se deve, de um lado,
ao impedimento legal de se registrar uma entidade como sendo “racial”, mas
698
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 53.
699
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 12.
700
Entrevista ao autor. PEREIRA, Amílcar A. O Mundo Negro. Relações Raciais e a Constituição do
Movimento negro Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 227.
256
No ano de 1976, enquanto Tim Maia acenava a seus irmãos de cor da Rodésia e
Jorge Ben lançava África Brasil, outro registro da Black Music Brasileira também
valorizava a ancestralidade e uma identificação africana, com Luiz Melodia: Eu sou quase
esse crânio/ tentando ou não tentando/ sou quase nada/ mulato não é questão de engano/
Sou quase nada/ sou descendente mais de africano/ Sou quase nada/ sou forte feito um
nobre humano.703 Em uma sonoridade soul vigorosa, destacando as execuções de guitarra e
bateria, Luiz exaltava que sua existência enquanto mulato, uma pessoa miscigenada
descendente mais de africano, era tão forte quanto um nobre humano. São versos da
canção título de seu segundo álbum, Maravilhas contemporâneas, lançado com o selo
“Disco é Cultura” pela Som Livre.
701
PEREIRA, Amílcar A. O Mundo Negro. Relações Raciais e a Constituição do Movimento negro
Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 220.
702
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico. O Brasil e o desafio da descolonização africana. 1950-1980. 2011, p. 173.
703
Luiz Melodia. Maravilhas contemporâneas (Luiz Melodia). Maravilhas contemporâneas. Álbum. Som
Livre. 1976. Faixa 02, Lado A. Reedição em CD. Som Livre. 2017.
257
no ano a constar nos dados do IBOPE, com bons resultados no primeiro semestre nos
dados de SP, RJ e, principalmente, em Recife, onde pontuou de março a junho. 704 LP mais
celebrado da carreira do cantor, ao lado de Pérola Negra (1973), distanciava do antecessor
(que exibia arranjos minimalistas, algumas faixas com apenas dois instrumentos) ao
apresentar uma sonoridade soul encorpada, e banda completa em todas as faixas, formada
predominantemente por músicos negros. Era o grupo reunido por Oberdan Magalhães (sax
e flauta), que tocou no disco junto ao seu companheiro de Dom Salvador e Abolição, Luiz
Carlos (bateria), Jamil Jonas e Valtencir (contrabaixo), Perinho Santana (guitarras),
Cidinho (piano elétrico), Octavio Brito (sintetizador), Márcio Montarroyos (pistom), entre
outros, além de Melodia ao violão.
704
Arquivo Edgard Leuenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Vendas de Discos. Notação
PD 029 (Recife), PD 030 e PD 031 (RJ) e PD 032 e PD 033 (SP).
705
Hyldon. Deus, a natureza e a música. Álbum. Polydor. 1976.
706
Arquivo EdgarLeurenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Venda de Discos. Notação: PD 029
(Recife), PD 030 e 031 (RJ) e PD 032 e 033 (SP).
707
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/locomotivas/ > Acesso 30/05/2021.
258
708
Texto não creditado. Cassiano. Cuban Soul – 18 Kilates. Álbum. Polydor. 1976.
709
Wilson. Simonal. Navio Negreiro/O amor está no ar/Escola de luto/Esses tempos de agora . Compacto
duplo. RCA. 1976. Wilson Simonal. A vida é só para cantar/Trinta dinheiros. Compacto. RCA. 1976.
710
Trio Ternura. De amor também se morre/Eta eta. Compacto. Tapecar. 1976.
259
homem de cor (Deus Negro)/Osso duro de roer/Fica Comigo/Vou apagar você”, primeiro -
e único - registro fonográfico do cantor lançado pela Copacabana. 711
Talvez ninguém tenha pensando no que eu pensei/ durante a noite que passou/
Ou se pensou, ficou calado pra não ver/ um mundo inteiro reagir/ A minha fé
não modifica e nem se abala/ Mas eu não posso me calar/ Minha pergunta
necessita uma resposta/ Será que alguém me pode dar?/ Você teria por ele esse
mesmo amor/ se Jesus fosse um homem de cor? Talvez ninguém tenha passado o
que eu passei/ e os meus problemas são de cor/ eu q uis pintar meu céu de azul
de amor e paz/ e o mundo inteiro não deixou. 712
711
Toni Tornado. Se Jesus fosse um homem de cor (Deus Negro)/Osso duro de roer/Fica comigo/Vou apagar
você. Compacto duplo. Continental. 1976.
712
Toni Tornado. Se Jesus fosse um homem de cor (Deus Negro). (Claudio Fontana) Se Jesus fosse um
homem de cor (Deus Negro)/Osso duro de roer/Fica comigo/Vou apagar você . Compacto duplo.
Continental. 1976.
260
canção por Toni, em 1976, e sua execução ao vivo. Claudio Fontana, em entrevista
fornecida em 1999 ao historiador Paulo César de Araújo para a pesquisa que resultou no
livro Eu não sou cachorro, não, revelou sobre sua intimação, junto de Toni Tornado, para
depor na Polícia Federal no período:
O relato acima revela uma convocação para esclarecimentos, e não uma prisão,
como temia o compositor. E indicia um aviso velado, pelas forças repressoras do Estado,
de sua atenção sobre o tema, em detrimento do uso aberto da violência. O recorte
documental desta tese circunscreve-se às canções conforme gravadas e veiculadas, nas
quais é possível identificar os atos de fala realizados pelos artistas quanto às linguagens
antirracistas. Portanto, o recrudescimento dos órgãos de censura e sua intervenção em
letras de canções do amplo recorte não integra os temas abarcados nesta pesquisa.
Contudo, os efeitos de tal recrudescimento, elemento ressaltado na memória social e na
historiografia pelo termo anos de chumbo, podem ser percebidos na trajetória de Toni
Tornado. Embora a canção “Se Jesus fosse um homem de cor (Deus negro)” não tenha
sofrido censura, sendo lançada em disco e comercializada, a referência ao preconceito
contradizia a representação oficial sobre a inexistência do preconceito racial no Brasil
justificando a atuação do aparato repressivo ao convocar esclarecimentos do compositor e
do intérprete. Ou seja, a leitura de que abordar o preconceito seria “jogar os negros contra
os brancos” orientava as interpretações do regime sobre a pauta racial, porém, não
implicou que os aparelhos censórios impedissem a circulação desta, assim como das
diversas canções estudadas na presente tese.
713
ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não. Música popular cafona e ditadura militar 2010, p.
331.
261
714
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na pátria verde-e-amarela: musicalidade, política e identidade
em Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual de Maringá. 2010.
715
MORAIS, Bruno V. L. “Sim, sou um negro de cor”. Wilson Simonal e a expressão do Orgulho Negro no
Brasil dos anos 1960. Dissertação (História). Universidade Federal de Minas Gerais. 2016, p. 123-151.
716
MORAIS, Bruno V. L. Um antirracismo liberal conservador? Orgulho Negro e denúncia do racismo por
Wilson Simonal nos anos 1960. In: BOHOSLAVSKY, Ernesto, MOTTA, Rodrigo P. S, BOISARD,
Stéphane. (org.) Pensar as Direitas na América Latina. 2019, p. 245-265.
262
O significante “Black” operado por Lena Frias era oriundo da própria comunidade
que ela analisava: “Um fenômeno de massa raro e desconcertante para os padrões da
época, que envolvia negros e mestiços, na sua maioria de bairros suburbanos do Rio de
Janeiro. Negros não. Eles se chamavam blacks.”717 Ou, para usar as palavras de Lena:
“Uma cidade de cultura própria desenvolve-se dentro do Rio. (...) Uma cidade cujos
habitantes se intitulam a si mesmos de blacks ou de browns; cujo hino é uma canção de
James Brown (...) cujo modelo é o negro americano, cujos gestos copiam, embora sobre a
cópia já se criem originalidades.”718 Por tal significante, a jornalista interpretou e
descreveu os códigos culturais apresentados por ela e registrados pelas lentes fotográficas:
uma “moda black”, “cumprimentos black”, a dança “black” e a “música black” - ou black
music -, os elementos desse Rio de Janeiro alternativo, o “Black Rio”. Conforme os autores
da frase citada no início do parágrafo, os jornalistas Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé
Octávio Sebadelhe, no livro 1976. Movimento Black Rio: “A brilhante matéria de quatro
páginas assinada pela jornalista Lena Frias, com o tenaz ensaio fotográfico de Almir
Veiga, iria batizar o movimento eternamente.” e os autores em seguida ressaltam: “A
extensa matéria com chamada de capa, na edição de um sábado de 1976, publicada como
manchete em um dos jornais de maior circulação nacional, iria tanger a opinião pública de
uma forma que não se poderia presumir.”719
717
PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. SEBADELHE, Zé Octávio. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 11, 12.
718
<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&pasta=ano%20197&pesq=Black%20R
io&pagfis=144015> Acesso 01/06/2021.
719
PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. SEBADELHE, Zé Octávio. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 21.
263
voltaram para a cena soul e funk dos bailes cariocas.”720 Tal impacto, a começar pela
própria imprensa da época, foi objeto da monografia Movimento Black Rio e sua influência
na construção da identidade negra no Rio de Janeiro: um estudo das representações no
Jornal do Brasil (1976-1977), da historiadora Marianna Gomes Muniz, que conclui:
O impacto da reportagem de Lena Frias também possibilitou que ela fosse tornada
um marco para as reflexões acadêmicas sobre a Black Music brasileira ou dos bailes, a
começar pelo trabalho pioneiro do antropólogo Hermano Vianna, O baile funk carioca.
Festas e estilos de vida metropolitanos de 1987.722 Além das três obras mencionadas nos
últimos parágrafos, uma revisão bibliográfica abarcando os bailes e apresentando a
reportagem de Lena como um marco inclui trabalhos de referência como o artigo de
Paulina L. Alberto Quando o Rio era Black: soul music no Brasil dos anos 70, que explora
o impacto e representação dos bailes tanto na imprensa brasileira quanto nos órgãos de
repressão da ditadura.723 Também de 2015, a tese Black Pau: a soul music no Brasil nos
anos 1970 do cientista social Carlos Eduardo Paiva introduz o quarto capítulo, dedicado à
“Black Rio: os bailes e a banda”, a partir da reportagem de Lena. 724 A dissertação Sou
negro e tenho orgulho! Política, identidade e música negra no Black Rio (1970-1980) do
historiador Carlos Eduardo de Freitas e a tese em Comunicação Social A cena musical da
Black Rio. Estilos e mediações nos bailes soul dos anos 1970, de Luciana Xavier de
Oliveira são outros exemplos entre a produção em Ciências Humanas que aborda o evento
cultural dos bailes destacando o marco da reportagem de Lena Frias.725 A repercussão e
sedimentação da reportagem, portanto, é inegável.
720
CASTRO, Maurício Barros de. O Livro do Disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 29.
721
MUNIZ, Marianna Gomes. Movimento Black Rio e sua influência na construção da id entidade negra no
Rio de Janeiro: um estudo das representações no Jornal do Brasil (1976-1977). Monografia (História). PUC.
Paraná. 2018.
722
VIANNA, Hermano P. O baile funk carioca. Festas e estilos de vida Metropolitanos. Dissertação
(Antropologia). Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1987.
723
ALBERTO, Paulina L. Quando o Rio era Black: soul music no Brasil dos anos 70. In: História: Questões
e Debates, Curitiba, volume 63, n° 2, p. 41-89, jul/dez. 2015.
724
PAIVA, Carlos Eduardo de Amaral. Black Pau: a soul music no Brasil dos anos 1970. Tese (Ciências
Sociais). Universidade Estadual Paulista. 2015, p. 118.
725
LIMA, Carlos E. F. Sou negro e tenho orgulho! Política, identidade e música negra no Black Rio (1970-
1980). Dissertação (História). UFF. 2017. OLIVEIRA, Luciana X. A cena musical da Black Rio. Estilos e
mediações nos bailes soul dos anos 1970. Tese (Comunicação Social). UFBA, 2018.
264
Os jovens frequentadores dos bailes blacks não enfrentavam uma realidade dos
anos de chumbo da mesma forma que os militantes das organizações armadas que
confrontavam o regime, portanto. Oriundos das favelas e subúrbios, a repressão sofrida por
estes jovens é a mais sistêmica da realidade brasileira, voltada para a população pobre e,
particularmente, às pessoas negras, ainda que tenha sido intensificada pela sensação de
onipotência de policiais militares em um período no qual o Estado era controlado por uma
ditadura militar.730 Se não são recordados como vítimas dos anos de chumbo – justamente
por serem alvos de uma violência sistêmica, que articula o racismo estrutural da sociedade
brasileira e o controle violento dirigido às camadas populares pelos detentores do poder –,
esta realidade está ainda muito mais distante da memória dos anos de ouro vividos pelas
elites e setores das classes médias, como o empresariado da indústria fonográfica e a classe
artística de sucesso. E os relatos dos frequentadores dos bailes trazem mais dimensões do
cotidiano de anos de aperto.
Os bailes do que foi chamado por Lena Frias de “Black Rio” exibiam uma
racialização do consumo de música jovem. Conforme citado na tese de Carlos Eduardo
Paiva, a partir de uma citação de Carlos Medeiros sobre a organização dos bailes: “as
equipes perceberam que havia dois públicos distintos, um predominantemente negro, curtia
soul music, com destaque para o funk brabo de James Brown, outro, 95% branco, ligado
nas mais diversas correntes de rock.”731 As entrevistas realizadas por Lucas P. Lima com
outros frequentadores ampliam as informações sobre o cotidiano das comunidades negras
dos bailes. Jailson da Silva menciona:
729
PIRES, Thula R. O. Colorindo memórias: ditadura militar e racismo. In: Relatório final Comissão da
Verdade do Rio de Janeiro. 2015, p. 127-138.
730
Sobre a violência policial a essas comunidades, ver: PESTANA, Marco e OAKIM, Juliana. A ditadura nas
favelas cariocas. In: Relatório final Comissão da Verdade do Rio de Janeiro . 2015, p. 118-126.
731
MEDEIROS, Carlos. 1977, p. 16. Apud. PAIVA, Carlos E. A. Black Pau. A soul music no Brasil nos
anos 1970. Tese (Ciências Sociais). UNESP, 2015, p. 126.
266
Então, eu não tinha acesso. A televisão lá em casa foi chegar depois que eu
comecei a trabalhar de carteira assinada, eu fui lá e tirei uma televisão pra casa,
porque o meu poder aquisito era muito baixo, baixo mesmo. Fotos da época, eu
não tenho. Eu não tinha como. (...) A minha infância, adolescência, até os 15
mais ou menos foi bem fraca. Aí eu não posso dizer pra você sobre porque até
pra comprar um jornal era difícil, ou eu compro um pão ou compro um jornal.
Então pra mim a preferência era o pão. (...) Era mais difícil você saber das
notícias, ou então pelo rádio, você tinha um radinho de pilha, aí sim escutava as
notícias (...) O Filó, o Filó é um cara que é estudado, desde nov o ele tá dentro do
movimento, viajava, ele tava sempre dentro do contexto. Pra gente da periferia
não, era mais pra curtir o baile mesmo, escutar a música, dar aquela
paqueradazinha básica, sempre foi dessa forma. Era um encontro para a gente
curtir.732
A produção literária então citada sobre os bailes destaca que, assim como no
programa de Big Boy, as músicas escutadas eram a produção de Black Music
estadunidense. Inclusive, Big Boy e Ademir Lemos (um dos profissionais das equipes de
Som) organizaram coletâneas lançadas em LP reunindo canções do repertório
estadunidense e que constaram entre as mais vendidas nos dados do IBOPE do RJ nos anos
732
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970.
Dissertação (História). PUC Rio de Janeiro. 2018, p. 64.
733
Sobre o Clube Renascença e Dom Filó, ver GIACOMINI, Sonia M. A Alma da Festa. Família, etnicidade
e projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro - o Renascença Clube. 2006, p. 189-246.
734
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970.
Dissertação (História). PUC Rio de Janeiro. 2018, p. 47.
267
1970 e 1971.735 A profissionalização das equipes de som que organizavam os bailes, por
sinal, possibilitou a publicação de diversas coletâneas em LP, amparadas em canções
selecionadas do repertório Black estadunidense.736
735
Arquivo Edgar Leuenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE, Série: Pesquisa de Vendas de Discos. Not ação: PD
011 (1970) e PD 013 (1971).
736
PEIXOTO, Luiz F. L., SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 68-75.
737
PAIVA, Carlos E. A. Black Pau. A soul music no Brasil nos anos 1970. Tese (Ciências Sociais). UNESP,
2015, p. 134.
738
Marcelo Fróes. Texto para relançamento. Gilberto Gil. Refavela. Álbum. 1977. Philips. CD. WEA. 2002.
739
PEIXOTO, Luiz F. L., SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 168.
268
A ideia da direção brasileira da Warner com a Banda Black Rio, contudo, parece
ter pontos de encontro com a proposta da Stax Records com o Booker T. & The MGs: um
grupo de instrumentistas que lançasse trabalhos próprios, mas também atuasse nas
gravações em estúdio de artistas contratados. Esta impressão é sustentada pela produção da
gravadora já no ano de 1977, no qual foi lançado o primeiro LP do grupo, Maria Fumaça
(articulando versões funk de músicas consolidadas como “Na baixa do sapateiro” e “Tico-
tico no fubá” com novas composições dos integrantes da banda) e dois compactos, “Maria
fumaça/Mr. Funky Samba” e “Na baixa do sapateiro/Mr. Funky Samba”, 741 sendo que a
composição “Maria fumaça” foi incluída como faixa de abertura da telenovela
Locomotivas, da Rede Globo, e difundida no LP da trilha sonora. Ainda em 1977, a Banda
Black Rio atuou em “Tapanacara”, funk que abre o álbum O dia em que a terra parou, de
seu compositor, o rockeiro branco Raul Seixas – que desde seu primeiro álbum solo,
lançado cinco anos antes, operava com a sonoridade gospel da Black Music em meio às
suas fusões musicais.742 E o grupo ainda atuou em todas as faixas do primeiro LP de um
estreante da black music brasileira, Carlos Dafé (pianista e organista do álbum Tim Maia,
de 1972), no álbum de soul romântico Pra que vou recordar - e revelando um artista cuja
740
GONÇALVES, Eloá Gabriele. Banda Black Rio: o soul no Brasil na década de 1970. Dissertação
(Música). Universidade Estadual de Campinas. 2011, p. 151.
741
Banda Black Rio. Maria Fumaça. Álbum. Warner. 1977. Maria fumaça/Mr. Funky Samba. Compacto.
Warner. 1977. Na baixa do sapateiro/Mr. Funky Samba. Compacto. Warner. 1977.
742
Raul Seixas. O dia em que a terra parou. Álbum. Warner. 1977. Relançamento em CD. Warner. 1988.
269
voz remete à de Cassiano.743 Tanto Raul quanto Carlos Dafé, recém contratados pela
gravadora e com esses dois álbuns produzidos por Marcos Mazzola.
Outro artista negro contratado em 1977 pela Warner por intermédio de André
Midani e que então acenava para o “Movimento Black Rio” foi um nome consagrado da
MPB: Gilberto Gil. Conforme a historiadora Rafaela Capelossa Nacked, na dissertação
Chocolate e mel: negritude, antirracismo e controvérsia nas músicas de Gilberto Gil
(1972-1985), o artista atribui (como afirmado em entrevista à autora) o desenvolvimento
de sua “consciência racial” ao período que viveu em Londres, na Inglaterra, entre 1969 e
1971 - por efeito de um exílio imposto pela Ditadura Militar brasileira. No seu retorno ao
Brasil, Gil aproximou-se de práticas culturais negras de seu estado de origem, a Bahia, o
que a autora abordou a partir da criação de um conceito: “Bahiaáfricas é um conceito
construído pela autora durante a imersão realizada na obra de Gil e refere-se às práticas de
matrizes africanas praticadas na Bahia, repertório de ampla penetração no cotidiano do
artista, formando um corpo único de ‘tradições não tradicionais’ ao qual ele amplamente se
refere.”744 A autora identificou os elementos para a operação desse conceito na obra de Gil
pela escolha de instrumentos ligados à tradição afro-baiana, como tambores, xequerês e
agogôs e também através do uso, pelo artista, de vocábulos e expressões de origem
africana. Em gravações realizadas em 1973, Gil reverenciou orixás na sua versão de
“Rainha do mar” (composição de Dorival Caymmi para Iemanjá) e na sua composição
(parceria com Caetano Veloso) “Iansã”. 745 Contudo, foi em 1977 que as “Bahiaáfricas”
encontraram o “Black Rio” no discurso musical de Gilberto Gil, manifestando seu ponto de
encontro em Refavela, seu último álbum lançado na Philips.
743
Carlos Dafé. Pra que vou recordar. Álbum. Warner. 1977. CD. WEA. 2000.
744
NACKED, Rafaela Capelossa. Chocolate e mel: negritude, antirracismo e controvérsia nas músicas de
Gilberto Gil (1972-1985). Dissertação (História). PUC São Paulo. 2015, p. 46.
745
As gravações foram arquivadas e lançadas apenas em 1999, após trabalho de pesquisa e edição em CD
feito pelo produtor Marcelo Fróes, resultando no álbum: Gilberto Gil. Cidade de Salvador. Álbum. WEA.
1999.
270
The Beatles ao músico (negro) estadunidense Jimi Hendrix, e não a Black Music. Para a
produção do LP Refavela, a proposta de Gil foi de abordar uma identificação transnacional
de elementos musicais e sociais das comunidades negras no continente africano e na
diáspora. O álbum, portanto, foi produzido a partir de um duplo conceito: primeiro, de
ordem pessoal, ao representar a segunda etapa de um processo de elaboração musical do
reencontro de Gil com suas origens, que começou no álbum Refazenda, de 1975, que
retomava uma herança bucólica de sua formação. Refavela marcava sua identificação com
a negritude. O segundo aspecto era a dimensão social e política que envolve “o conceitual
de Refavela”, conforme explicado por Gil à jornalista Ana Maria Bahiana na reportagem
publicada no jornal O Globo de 10 de julho de 1977: “essa coisa de arte dos trópicos,
comunidades negras contribuintes para a formação de novas etnias e novas culturas no
Novo Mundo – Brasil, Caribe, Nigéria, Estados Unidos –, essas culturas emergentes como
presença forte do dado negro”.746 A identificação do “dado negro”, assim, foi construída
por Gil no LP a partir da experiência de marginalização nas periferias urbanas.
Fig. 12: Gilberto Gil. Refavela. Álbum. Philips. 1977. Disponível em (acesso 03/06/2021):
<https://vinilrecords.com.br/produto/gilberto-gil-refavela/>
No texto de Marcelo Fróes para a reedição do álbum em Cd, em 2002, Gilberto Gil
recorda que: “Era época do movimento Black Rio, com o funk começando por aqui e eu
quis gravar algo como aquela versão de Samba do Avião”, de modo que o artista sintetiza o
álbum Refavela: “O disco era pra isso, para registrar os ‘afrorismos’ que havia na época -
como era a juju music de Balafon e os blocos afro-baianos de Ilê-Ayê.”747 Portanto, a
746
BAHIANA, Ana Maria. “A paz doméstica de Gilberto Gil.” Apud. CASTRO, Maurício Barros de. O livro
do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 15. A reportagem não está disponível no acervo digitalizado do
jornal O Globo, portanto, seu acesso completo é possível nos livros BAHIANA, Ana Maria. Nada será como
antes: MPB nos anos 1970. Civilização Brasileira. 1980. COHN, Sergio. Gilberto Gil – Encontros. Beco do
Azougue. 2007.
747
Marcelo Fróes. Texto para reedição. Gilberto Gil. Refavela. Álbum. Philips. 1977. CD. WEA. 2002.
271
reelaboração do artista ao recordar do disco sugere uma atenção à sonoridade funk a partir
do impacto após a repercussão dos bailes na imprensa em 1976, ignorando a difusão da
sonoridade em discos lançados no Brasil desde 1969, conforme demonstrado na presente
tese. O comentário de Gil demonstra também que a proposta desenvolvida no conceito do
disco não era de aproximar da sonoridade da black music, apenas; mas sim de inseri-la em
meio às manifestações modernas de uma cultura negra pensada como “afrorismos”: um
ponto de conexão entre as experiências sociais de pessoas negras habitantes de diversas
regiões geográficas ao redor do planeta. Para o historiador Maurício Barros de Castro, ao
introduzir a análise do conceito do disco na obra O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela:
“é uma tentativa de captura do seu tempo, um instantâneo das manifestações culturais que
surgiam, em meio às turbulências dos anos 1970, reinventadas nos guetos e periferias de
partes distintas do planeta, conectadas principalmente pela música negra.”748 E assim, a
experiência periférica do Rio de Janeiro, no “Black Rio”, a partir da música, dança e
aparência, era conectada à experiência periférica estadunidense.
748
CASTRO, Maurício Barros de. O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 15.
749
CASTRO, Maurício Barros de. O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 46.
272
artistas negros para tocar no FESTAC – e que atuou por todo o álbum Refavela. O núcleo
central da banda reuniu o contrabaixista Rubens Sabino, que integrou o grupo Dom
Salvador e Abolição e atuou no álbum Tim Maia (1972), o pianista/tecladista Cidinho e o
guitarrista Perinho Santana, ambos oriundos do grupo que acompanhou Luiz Melodia no
disco Maravilhas Contemporâneas. Completava o grupo o percussionista Djalma Correa e
o baterista Robertinho Silva, integrante da banda de apoio de Milton Nascimento - e
substituído no disco por Paulinho Braga. Além de instrumentistas de sopro (trompete, sax,
flauta e trombone) e vocais de apoio.
750
Gilberto Gil. Ilê Ayê (Paulinho Camafeu). Refavela. Álbum. Philips. 1977, faixa 02, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=RnDO0PbsWlQ>
751
CASTRO, Maurício Barros de. O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 74.
752
NACKED, Rafaela Capelossa. Chocolate e mel: negritude, antirracismo e controvérsia nas músicas de
Gilberto Gil (1972-1985). Dissertação (História). PUC São Paulo. 2015, p. 110.
273
Para abrigar os 50 mil negros do mundo inteiro que para lá acorreram, tinha sido
construída uma espécie de vila olímpica com pequenas casas feitas com material
barato e um precário abastecimento de água e luz, que reavivou em mim a
imagem física do grande conjunto habitacional pobre. “Refavela” foi estimulada
por esse reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já
houvesse o compromisso conceitual com o “re” para prefixar o título do novo
trabalho, de motivação urbana, em contraposição a Refazenda, o anterior, de
inspiração rural.755
753
Gilberto Gil. Refavela (Gilberto Gil). Refavela. Álbum. Philips. 1977. Faixa 01, Lado A.
< https://www.youtube.com/watch?v=6cqcr_19TDg>
754
CASTRO, Maurício Barros de. O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 70.
755
CASTRO, Maurício Barros de. O livro do disco. Gilberto Gil. Refavela. 2017, p. 70, 71.
274
“A favela então, nada mais é do que uma representação sobre determinado local, no
qual o estigma atua para delimitá-lo como sendo o que destoa do entorno, que é e contém o
que não deveria ser nem conter na cidade”, concluiu Mário Brum na tese que deu origem
ao livro.757 Essa problematização, assim como o argumento de Gil na canção “Refavela”
poderia representar muito além das comunidades do RJ. Como evidencia o nome Banco
Nacional de Habitação, a política habitacional retratada não se limitou ao Rio de Janeiro. O
livreto de Ermínia Maricato, Política Habitacional no Regime Militar. Do milagre
brasileiro à crise econômica, publicado em 1987, analisou o Sistema Financeiro da
Habitação e o BNH, apontando relações entre os loteamentos clandestinos e o capital
imobiliário. A autora aponta a importância do setor no Brasil: “Além de ocupar até 7,2%
da população economicamente ativa (em 1980), através de empregos formais ou não, a
indústria da construção tem presença destacada no intenso processo de industrialização e
urbanização do país.”758 A obra aponta a importância dada ao setor de habitação pela
ditadura militar tendo em vista o intenso processo de urbanização nas grandes cidades do
país, que “transformou o Brasil, em pouco tempo, de país com população
756
BRUM, Mário. Cidade Alta. Histórias, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.
757
BRUM, Mario S. I. Cidade alta: História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do
Rio de Janeiro. Tese (História). Universidade Federal Fluminense. 2011, p. 320. Sublinhado do original.
758
MARICATO, Ermínia. Política Habitacional no Regime Militar. Do milagre brasileiro à crise econômica.
1987, p. 15.
275
759
MARICATO, Ermínia. Política Habitacional no Regime Militar. Do milagre brasileiro à crise econômica.
1987, p. 22.
760
MARICATO, Ermínia. Política Habitacional no Regime Militar. Do milagre brasileiro à crise econômica.
1987, p. 33.
761
MARICATO, Ermínia. Política Habitacional no Regime Militar. Do milagre brasileiro à crise econômica.
1987, p. 43.
762
SILVA, Marlon L. TOURINHO, Helena L. Z. O Banco Nacional de Habitação e o Programa Minha Casa
Minha Vida: duas políticas habitacionais e uma mesma lógica locacional. In: Cad. Metrop., São Paulo, v. 17,
n. 34, pp. 401-417, nov. 2015.
763
LIBERATO, Rita de Cássia. Cidade e Exclusão: o lugar de moradia dos excluídos. O caso de Belo
Horizonte. Tese (Geografia). PUC Minas. 2007, p. 192.
276
anos de chumbo para os habitantes das favelas que buscaram resistir à remoção. Mas
também agravaram os anos de aperto à comunidade removida, particularmente porque as
casas não eram gratuitas e muitos não tiveram condições de cumprir o pagamento das
prestações, conforme abordado tanto nos trabalhos de Mário Brum quanto no de Ermínia
Maricato anteriormente citados. E além dessas contradições do salto que o preto pobre
tenta dar/ quando se arranca/ de seu barraco/ pro bloco do BNH, a canção de Gil ainda
possibilitava conectar Brasil afora experiências da geração do black jovem, posto a difusão
do fenômeno dos bailes black por outras regiões do país, conforme apontado na revista
Versus de maio/ junho de 1978: “Black Rio, Black São Paulo, Black Porto (Porto Alegre) e
até Black Uái (Belo Horizonte)! Primeiro a descoberta da beleza negra. A vontade de lutar
como negro norte-americano, em busca da libertação do espírito negro, através do soul.”764
Pouco após lançar o álbum Refavela, Gilberto Gil atendeu ao convite de André
Midani e migrou da Philips para a Warner - que passou a ter os direitos do álbum a partir
de 1983. Outro álbum lançado pelo selo Philips em 1977, porém, merece ser abordado
nesta tese. Tal ano marcou a contratação pela gravadora do cantor negro Emílio Santiago,
um intérprete eclético que transitava pelo samba e a MPB promovendo hibridações com a
sonoridade soul em dois discos lançados na gravadora CID: Emílio Santiago (1975) e
Brasileiríssimas (1976). Inaugurando sua trajetória na Philips, Emílio lançou seu terceiro
álbum Comigo é assim, que mantinha a sonoridade eclética, construída a partir de
instrumentação elétrica e elementos soul. Neste disco, Emílio gravou uma composição do
sanfonista Dominguinhos e Anastacia abordando o preconceito racial, a pungente balada
“Preconceito (Pura Tolice)”:
Esse teu jeito de falar de preconceito/ Que na cor da minha pele está a tua
indecisão/ Pura tolice de quem diz que tudo sabe/ Não procura d escobrir a
própria cor do coração/ E o feijão que te alimenta tem cor preta/ Quando falta
em tua mesa, a alegria se desfaz/ A cor da pele, por ser preta, não diz nada/
Examina no teu ego, e a resposta satisfaz/ O preconceito não tem valor/ Quando
se sente que existe amor/ Desligue a mente dessa ilusão/ E veja a cor desse teu
coração.765
764
Versus. Maio/Junho 1978: 42. Apud. PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black
Rio. 2016, p. 98.
765
Emílio Santiago. Preconceito (Pura tolice). (Dominguinhos/Anastácia) Comigo é assim. Álbum. Philips.
1977. Faixa 02, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=KN-TcRgo33c>
277
ditadura militar brasileira. Comigo é assim é atribuído como o primeiro álbum de impacto
comercial de Emílio Santiago, cantor que emergiu do circuito universitário, enquanto
cursava Direito.766 Emílio se projetou a partir da execução de “Nêga”, um samba em
roupagem funk composto por Veve Calazans, lançado nesse álbum e incluído na trilha
sonora da telenovela O astro, da emissora Globo. Sendo um versátil e diversificado
intérprete, Emílio não era um artista identificado diretamente à sonoridade da Black Music,
mas, assim como Luiz Melodia, dialogava com os gêneros Black em parte de seu
repertório, como perceptível neste álbum. E entre os arranjadores deste álbum aparece J. T.
Meirelles, nome destacado no samba-jazz.
Era um grupo que tocava samba na Pavuna. (...) Estava querendo fazer
exatamente aquele estilo, meio Kool and Gang, meio Funkadelic, bem no clima
dos guetos black . (...) A União Black era composta por Ivan Tiririca (baterista),
Lula Barreto, Claudio Café (guitarras), Dom Luiz (voz), Bira (sax e flauta), mas
teve uma formação instável e os seus principais integrantes, Ivan e Lula, optaram
por rescindir contrato com a gravadora antes mesmo de seu primeiro disco sair.
Os dois músicos já tinham um projeto de banda o África Hot Band, mas por
766
Rodrigo Faour. Texto para o box. Três Tons de Emílio Santiago. Universal Music. 2014.
767
PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 170, 171.
278
768
PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 171.
769
União Black. União Black . Álbum. Polydor. 1977. CD. Universal Music. 2001. [Coleção Samba&Soul]
279
770
Entrevista não creditada. Gerson King Combo. Gerson King Combo. Álbum. Polydor/Phonogram. 1977.
771
Entrevista não creditada. Gerson King Combo. Gerson King Combo. Álbum. Polydor/Phonogram. 1977.
280
Fig. 13. Capa e contracapa. Gerson King Combo. Gerson King Combo. Álbum. Polydor. 1977.
Extraído de (Acesso 31/08/2019):
<https://www.musicastoria.com/rock-brasil-musica-jovem-b rasileira -desde-1954-veja-e-
ou%C3%A7a/a1977/>
772
Charles Gavin. Texto para reedição. Gerson King Combo. Gerson King Combo. Álbum. Polydor. 1977.
CD. Universal Music. 2001. [Coleção Samba&Soul]
773
PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 172.
774
PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 169.
775
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970.
Dissertação (História). PUC Rio. 2018, p. 91, 92.
281
samba. No cenário de forte exposição do Black Rio a partir de 1976, parte das críticas
dirigidas ao “fenômeno” midiatizado apontavam uma polarização com o samba. O cerne
da crítica pode ser sintetizado na frase da historiadora Miriam Hermeto no livro Canção
popular brasileira e o ensino de História: palavras, sons e tantos sentidos: “a soul music
no Brasil foi considerada alienante, por críticos que viam ali apenas a importação de
aspectos da cultura musical estadunidense, que roubavam a ‘autenticidade’ da canção
brasileira”.776 Exemplo dessa visão aparece desde o início da década, como em entrevista
publicada na revista Veja, em dezembro de 1970, com um expoente da Bossa-nova e
compositor dos “Afro-sambas”, o músico, poeta e diplomata Vinicius de Moraes: “Há esse
novo som, como esse do Milton Nascimento e do Tim Maia. Mas eu não estou na deles,
não. Gosto é do som brasileiro.”777 No caso de Milton, Vinicius se referia às recentes
hibridações realizadas no repertório gravado pelo artista entre música brasileira e o rock,
particularmente inspirado nos grupos The Beatles e Yes, além do estilo jazzístico Fusion,
que articulava o jazz moderno ao rock.
Essa crítica à “importação” foi agravada com a repercussão dos bailes a partir de
1976. Conforme André Midani: “a longa matéria de quatro páginas ampliava os debates e
punha fogo no confronto entre ‘Velhas Guardas versus Jovens Guardas’, que no fim se
resumia a uma intriga entre o samba e o soul.”778 A polêmica, já existente em meio às
comunidades, conquistou espaço nos jornais e um dos principais palcos de defesa do
samba era o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, fundado pelo
compositor e cantor de sambas, Candeia, 779 objeto de estudo da comunicóloga Íris Agatha
de Oliveira na dissertação Black Soul e “Samba de raiz”: convergências e divergências do
Movimento Negro do Rio de Janeiro 1975-1985.780 Gerson busca contrapor essa oposição,
aproximando os dois gêneros.
776
HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de história : palavras, sons e tantos sentidos.
2012, p. 130.
777
Revista Veja, dezembro de 1970. Apud. GANDRA, José Ruy. Tim Maia (1973). Abril Coleções. São
Paulo: Editora Abril S/A. (Coleção Tim Maia, Vol. 3). 2011, p 30.
778
PEIXOTO, Luiz F. L. SEBADELHE, Zé O. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 108.
779
BUSCÁCIO, Gabriela Cordeiro. “A chama não se apagou”: Candeia e a Gran Quilombo – Movimentos
Negros e escolas de samba nos anos 70. Dissertação (História). UFF. 2005.
780
OLIVEIRA, Íris Agatha de. Black Soul e “Samba de raiz”: convergências e divergências do Movimento
Negro do Rio de Janeiro. 1975-1985. Dissertação (Memória Social). UFRJ. 2014.
282
A terceira faixa do LP, “Andando nos trilhos”, tematiza a rodinha de dança dos
blacks e em “God save the King”, narra o sonho que tinha sido aclamado o rei dos blacks.
Com um riff marcial de guitarra distorcida, “Esse é o nosso black brother” brada: tem que
ser agora, brother/ erga da sua mente adormecida todo o poderio de sabedoria que você
teima em guardar só para si/ semelhante sempre atrai semelhante, brother/ Esse é o nosso
black brother/ (...) eu também sou como você/ um black brother.782 Já “Uma chance”
apresenta a sonoridade convencional funk e versos como: e sentir toda beleza que é ser
black, brother, irmão/ abra o seu coração/ para eu entrar, irmão/ outra chance/ mais uma
chance/ pra te mostrar/ como usar/ a sua mente/ inteligente/ sempre amar/ seu outro igual/
a ser natural/ ser normal/ e não deixar/ se derrotar. 783 As canções do disco, portanto,
abordam mensagens de positivação de elementos de identificação com a expressão cultural
negra do “Black Rio”.
781
Gerson King Combo. Mandamentos Black (Gerson Combo/Pedrinho/Augusto Cesar). Gerson King
Combo. Álbum. Polydor. 1977. Faixa 01, Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=kGknEh80NZc>
782
Gerson King Combo. Esse é o nosso Black Brother (Gerson Combo/Pedrinho/Augusto Cesar). Gerson
King Combo. Álbum. Polydor. 1977. Faixa 04, Lado A. <
https://www.youtube.com/watch?v=9UT8GPuBoLo>
783
Gerson King Combo. Uma chance (R&G Combo/Pedrinho). Gerson King Combo. Álbum. Polydor. 1977.
Faixa 03, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=V9Vj0cAvo8w>
283
através do soul. Esse ato de fala realizado na canção de Gerson permite associações com
um dos bailes mais destacados na bibliografia sobre o “Black Rio”, a “Noite do Shaft” do
Clube Renascença - inspirada em uma produção cinematográfica estadunidense com trilha
sonora de Isaac Hayes -, na qual eram exibidos slides com imagens e frases de afirmação
racial, como “Família negra”.784
Minha mãe é negra/ graças a Deus/ o meu pai é um black também/ graças a
Deus/ e é por isso que o meu corpo treme todo com o soul a balançar/ quando eu
começo mexe tudo, se agita, já não posso parar/ é, brother, desde pequeno isso
acontece comigo/ acho que é hereditário/ porque a mesma coisa aconteceu com
os meus pais/ aquele swinguizinho malandro, velho/ quando ouviam um som
black/ dançavam/ Brother, a minha mãe é negra, o meu pai é um black também,
brother/ e se nascer alguém por aí/ vai ser um black também, como você/ Já tem
um blackinho lá em casa/ Ah, já ia me esquecendo/ o meu avô é black também/ e
a vovó é uma tremenda black que vocês precisam saber quem é.785
No acervo do IBOPE consultado na pesquisa para esta tese constam sobre o ano de
1977 apenas os dados de Recife e eles nos informam que, nos índices de principais vendas
de discos em tal cidade, a farta produção de Black Music apresentada nas últimas páginas
obteve pouco destaque comercial. Gerson King Combo constou apenas em novembro,
atingindo o 5° lugar em compactos duplos (“Mandamentos Black”) em uma semana,
enquanto de julho a outubro, o álbum Refavela de Gilberto Gil migrou da 10° à 5°
colocação de vendas em LP.786 O artista com melhores resultados entre os estudados nesta
tese foi Wilson Simonal, que pontuou entre os cinco primeiros lugares por todo o primeiro
semestre, com os compactos simples e duplo do samba “A vida é só pra cantar”. O bom
resultado comercial da canção motivou o lançamento de um álbum por Simonal em abril
de 1977 pela gravadora RCA, A vida é só pra cantar, no qual o artista regravou várias das
canções de maior destaque em sua carreira, como “Nanã” e “Tributo a Martin Luther
King”.787 Elza Soares também lançou mais um álbum no ano, pela Tapecar, Pilão + Raça
= Elza, primeiro álbum da artista desde 1972 a apresentar scat, apenas em uma faixa
(“Sombra confidente”) em um disco convencional de sambas,788 que não constou nos
índices de vendas analisado. Os dados de venda de Recife em 1977, contudo, já
apresentam indícios de um novo fenômeno fonográfico que marca o fim do “ápice” da
784
PAIVA, Carlos. Black Pau: a soul music no Brasil nos anos 1970. Tese (Doutorado). UNESP. 2015, p.
128.
785
Gerson King Combo. Hereditariedade (R. Combo). Gerson King Combo. Álbum. Polydor. 1977. Faixa 01,
Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=vX7RaIlpZrY>
786
Arquivo Edgar Leuenroth. Unicamp. Fundo: IBOPE. Série: PD Pesquisa de Vendas de Discos. Notação:
PD 034.
787
Simonal. A vida é só pra cantar. Álbum. RCA. 1977. A vida é só pra cantar/Trinta dinheiros. Compacto.
RCA. 1977. A vida é só pra cantar/Cordão/Trinta dinheiros/Coisa de louco . Compacto duplo. RCA. 1977.
788
Elza Soares. Pilão + Raça = Elza. Álbum. Tapecar. 1977.
284
Black Music Brasileira, com o LP Dancin’ Days, lançado pela gravadora Som Livre,
estreando em julho na 6° posição. Era o início da moda disco music.
Se a virada do ano de 1976 para 1977 representou o ponto máximo de uma década
que propiciou o ápice da sonoridade da black music nas sonoridades soul e funk no Brasil,
com ampla repercussão midiática potencializando iniciativas da indústria fonográfica para
novos lançamentos, a virada de 1977 para 1978 foi o apogeu da música Disco. O jornalista
André Barcisnki, no livro Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no
Brasil, ressalta: “A discoteca tomou o mundo em 1977, na esteira do filme Os embalos de
sábado à noite. Mas o gênero já existia desde o início dos anos 1970 – o primeiro artigo a
citar a palavra disco foi publicado em 1973, na revista Rolling Stone” e caracteriza a
sonoridade: “uma música feita para dançar, com vocais cheios de reverb e em falsete,
arranjos orquestrais, uso frequente de ritmos latinos na percussão e um clima de celebração
coletiva. A discoteca era filha do funk de James Brown (...) e de tantos outros gênios dos
sons negros.”789
789
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 87.
790
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 88.
791
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 90.
285
com levadas do gênero que nascia nos clubes noturnos de Nova York naquela época e que
seria rotulado como disco music.”792 Sucesso atestado pelo lançamento da coletânea em LP
Dancin’ Days.
Fig. 14. Dancin Days. The Frenetic Discotheque. LP. Som Livre. 1977. Extraído de (acesso 05/06/2021):
<https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-1401824580-lp -som-livre-the-frenetic-dancin-days-discotheque-
1977-_JM>
Curiosamente, a coletânea em LP Dancin’ Days, lançada pela gravadora Som
Livre, não incluiu qualquer canção de Barry White, apresentando artistas como KC and
The Sunshine Band, Betty Wright e canções como “Soul Dracula”. O sucesso do LP, ao
que parece, estimulou o grupo Globo a lançar uma telenovela dedicada à proposta
discoteca, também intitulada Dancin’ Days,793 exibida entre 10/07/1978 e 27/01/1979.
792
FERREIRA, Mauro. Barry White. [Coleção Folha. Soul&Blues, v. 7] 2015, p. 28.
793
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/dancin -days/> Acesso 05/06/2021.
794
Tim Maia. Tim Maia Disco Club. Álbum. Atlantic. 1978.
286
Lincoln Olivetti ainda atuou com o Trio Ternura, que lançou em 1978 o compacto
“Linda manhã/Simão Pedro”, cuja primeira canção era uma composição disco de autoria
de Lincoln.796 No entanto, não foi apenas entre os artistas que trabalharam com Lincoln
Olivetti que a sonoridade disco foi desenvolvida. A sonoridade apareceu já na faixa de
abertura de Gerson King Combo. Volume II, “Pro que der e vier”, composição de Hyldon e
Pedrinho. Outras canções disco deste segundo álbum de Gerson, lançado em 1978, foram
“Na trilha do coração” e “Por isso vou te amando”, entre funks e baladas soul. O álbum,
embora apresente a mesma instrumentação do trabalho de estreia, documenta expressiva
modificação nas letras e nas performances instrumentais, sem incluir arranjos agressivos
nem letras politizadas.797 O álbum, aliás, foi o último lançado por Gerson até o momento
de redação desta tese. Contudo, há lançamentos em 1978 fora da sonoridade disco. Luiz
Melodia lançou seu terceiro álbum, segundo pela Som Livre, Mico de Circo, novamente
acompanhado pela Banda Black Rio. O LP documenta novas hibridações entre o samba, o
funk e o soul, e a inclusão da sonoridade da rumba em “Mulato Latino”. No soul “O morro
não engana”, os versos subi o morro/ morro do medo/ morro do sonho/ morro do sono/
morro no asfalto,798 demarcam representações contrapostas a respeito da favela, e associa a
violência de assassinatos ao asfalto.
795
Carlos Dafé. Nessa festa de luz (Dafé/Tania Maria). Vice-versa (Dafé). Venha matar saudades. Álbum.
WEA/Warner. 1978. Faixa 02, Lado A. Faixa 02, Lado B.
796
Trio Ternura. Linda manhã/Simão Pedro. Compacto. Continental. 1978.
797
Gerson King Combo. Gerson King Combo. Volume II. Álbum. Polydor. 1978. CD. Universal Music.
2001.
798
Luiz Melodia. O morro não engana (Luiz Melodia/Ricardo Augusto). Mico de circo. Álbum. Som Livre.
1978. CD. Som Livre. 1995. < https://www.youtube.com/watch?v=bllwxaVrFyU >
287
A Banda Black Rio em 1978 lançou seu segundo álbum, após migrar para uma
nova gravadora, a RCA. Além da mudança de gravadora, o grupo apresentou outras
alterações, a começar pela formação, com a substituição do tecladista Cristóvão Bastos por
Jorjão e do baixista Jamil Joanes por Valdecir Nei – que também havia participado do LP
Maravilhas Contemporâneas de Luiz Melodia. Conforme Eloá Gabriele Gonçalves: “Não
mais um disco totalmente instrumental (ao que parece, por sugestão da nova gravadora,
interessada em aumentar as vendagens), Gafieira Universal conta com três canções,
cantadas em forma de coro pelo baterista Luiz Carlos Batera e o novo tecladista, Jorge
(“Jorjão”) Barreto.”799 Das três canções, “Vidigal” apresentava uma mistura da sonoridade
funk com o samba, e uma letra que aborda o contexto do Vidigal, no Rio de Janeiro:
falaram que o morro ’tá ruim pra cachorro que a turma não pode ficar/ (...) Agora esse
papo que não me convence dizendo que o morro não dá/ a corda arrebenta do lado mais
fraco/ só fica quem pode pagar.800
Hyldon, que havia lançado em 1977, sem repercussão, o álbum Nossa História de
amor, teve seu contrato com a Polydor encerrado e não teve nenhum lançamento
fonográfico na década a partir de então. Seu parceiro Cassiano também não teve outro
799
GONÇALVES, Eloá G. Banda Black Rio: o soul no Brasil na década de 1970. Dissertação (Música).
Unicamp. 2011, p. 71.
800
Banda Black Rio. Vidigal (Oberdan Magalhães/Valdecir Nei). Gafieira Universal. Álbum. RCA. 1978,
Faixa 02, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=TZExMIa9u7Q>
801
FERREIRA, Patrícia Dantas. A luta pela permanência das favelas cariocas: o caso da tentativa de
remover o Morro do Vidigal em 1977. < http://www.puc-
rio.br/pibic/relatorio_resumo2015/relatorios_pdf/ccs/SER/SER-Patricia%20Dantas%20Ferreira.pdf> Acesso
05/06/2021.
288
lançamento após o Cuban Soul – 14 Kilates, de 1976. Em 1978, o artista passou por uma
cirurgia de extração de um pulmão, em decorrência de tuberculose, se retirando da cena
pública.802 Confirmando a aparente retração do elenco da black music brasileira, Simonal e
Elza Soares também não realizaram lançamentos em 1978, Toni Tornado permaneceu sem
realizar lançamentos, assim como Dom Salvador, que em meados da década de 1970
migrou para os EUA, onde gravou discos instrumentais - assim como fez Raul de Souza
também em meados da década.
Melhor situação estava Jorge Ben, que, consolidando a transição para a sonoridade
elétrica, iniciada em África-Brasil, de 1976, lançou o álbum A Banda do Zé Pretinho,
agora na gravadora Som Livre, mudança que facilitou a inclusão de umas das faixas em
trilhas sonoras de telenovela da emissora Globo, no caso, o samba-pop “Amante amado”,
na novela Dancin’ days. O LP de Jorge Ben, no entanto, não apresentou canções que
evocassem a temática racial. A canção “Amante amado”, aliás, foi gravada também em
1978 no terceiro álbum de Emílio Santiago na Philips. O LP Emilio registrou o primeiro
fruto do encontro do cantor com o compositor Jorge Aragão, integrante do grupo de samba
Fundo de Quintal, “Cabelo Pixaim”, que em sonoridade samba-funk, dizia: quero o seu
amor, crioula (...) olha eu sou da pele preta/ bem pior pra se aturar/ mas se me der na
veneta/ quero ver alguém amar/ mais do que eu/ ô do cabelo pixaim/ quero ver você/
ligada só em mim.803 Uma canção que evocava o amor interracial e evocava uma musa de
cabelo crespo, popularmente rejeitado pelo termo “pixaim” - mas que na canção não sugere
um uso pejorativo ou ofensivo.
802
< https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2021/04/4920524-cassiano-autor-de----
primavera----esta-internado-em-estado-grave.html> Acesso 05/06/2021.
803
Emilio Santiago. Cabelo Pixaim (Jorge Aragão/Jotabê). Emilio. Álbum. Philips. 1978. Fx 02, Lado A.
< https://www.youtube.com/watch?v=4gwhm6ue7ig>
289
804
Jornal do Brasil. 17 de julho de 1976. Caderno B, p. 1.
<memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?b ib=030015_09&Pesq=black%20rio&pagfis=144015>
805
NAVES, Santuza Cambraia. Canção popular no Brasil: a canção crítica. 2010, p. 129.
290
806
CARNEIRO, Ana Marília. Black is beautiful: braço erguido em punho forte. In: Signos da Política,
representações da subversão. A Divisão de Censura de Diversões Públicas na Ditadura Militar Brasileira.
Dissertação (História). UFMG. 2013, p. 80-101.
807
CARNEIRO, Signos da Política, representações da subversão. A Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Dissertação (História). UFMG. 2013, p. 84.
291
808
CARNEIRO, Signos da Política, representações da subversão. A Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Dissertação (História). UFMG. 2013, p. 88.
809
CARNEIRO, Signos da Política, representações da subversão . A Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Dissertação (História). UFMG. 2013, p. 89.
810
CARNEIRO, Signos da Política, representações da subversão. A Divisão de Censura de Diversões
Públicas na Ditadura Militar Brasileira. Dissertação (História). UFMG. 2013, p. 90.
811
GIRARDET, Raoul. Para uma introdução ao imaginário político. In: Mitos e mitologias políticas. 1987,
p.87
812
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A história política e o conceito de cultura política. In: Anais do X Encontro
Regional da ANPUH/MG. Mariana. 1996, p. 86. O autor produziu um relevante estudo sobre o imaginário
anticomunista no Brasil, MOTTA, Rodrigo P. S. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil
292
espectro constituído pelo imaginário”, tal qual os ritos e os mitos, de modo que o “símbolo
seria uma forma de representação, um tipo de signo, cujo significado não pode ser
apresentado diretamente. O símbolo se refere a um sentido, não a uma coisa tangível. Ele
trabalha com uma ordem de fenômenos invisíveis e virtualmente inefáveis.”813
(1917-1964). 2002. O livro teve uma segunda edição brasileira lançada em 2020, após edições em inglês e em
espanhol.
813
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A história política e o conceito de cultura política. In: Anais do X Encontro
Regional da ANPUH/MG. Mariana. 1996, p. 87.
814
RIVIÉRE, Claude. As liturgias políticas. RJ: Imago, 1989, p. 13. Apud. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A história
política e o conceito de cultura política. In: Anais do X Encontro Regional da ANPUH/MG. Mariana. 1996, p. 87.
815
Grupo paramilitar e, logo, partido político estadunidense surgido em 1968 com o intuito de vigiar e coibir
as violentas ações policiais no país em relação às comunidades negras e também promover assistência social.
Para uma breve introdução aos Panteras, ver: CHAVES, Wanderson. O Partido dos Panteras Negras. In:
Topoi. Rio de Janeiro, v.16, n. 30, p. 359-364, jan./jun. 2015.
293
Fig. 15: Atletas Tommie Smith e John Carlos nas Olímpiadas do México. 1968. Imagem extraída de:
<https://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2015/07/16/bater-continencia-e-direito-erguer-punho-
gesto-punido-tambem-tem-de-ser/>
Angela Davis no Departamento de Polícia do Condado de Marin. San Rafael, EUA. 1971. Imagem extraída
de:
<https://flashbak.com/iconisingangela-davis-fbi-flyers-radical-chic-art-393334/angela-davis-sanrafael-usa/>
[...] dia 25 Ago 70, 5ª feira – Programa “Alô Brasil aquêle abraço”, TV GLOBO,
Canal 4 – Rio, marca a presença do cantor negro Tony Tornado, que voltara dos
Estados Unidos, interpretando uma canção de protesto do negro americano
contra a discriminação racial existente em nosso país, com o lançamento inédito
do gesto-símbolo do “poder negro” (comunista), êste representado pelo punho
direito cerrado, braço estendido para o alto.816
816
Ministério do Exército – Gabinete do Ministro - Centro de Informações do Exército S/103.2. Apud.
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na pátria verde-e-amarela: musicalidade, política e identidade em
Tony Tornado (1970). Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual do Maringá. 2010, p. 99. Sublinhado
nosso.
817
ALVES, Amanda Palomo. O Poder Negro na Pátria Verde e Amarela: musicalidade, política e
identidade em Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual do Maringá. 2010, p. 64.
818
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 199.
819
OLIVEIRA, Luciana Xavier. A cena musical da Black Rio. Estilo e mediações nos bailes soul dos anos 1970.
Dissertação (Comunicação Social). Universidade Federal da Bahia. 2018, p. 189.
295
Este breve tópico não pretende aprofundar a discussão teórica nas linguagens da
moda. As teorias no campo da Moda são amplas, remontando ao final do século XIX e
início do XX e é necessário reconhecer a escassa, se não nula, familiaridade com o estado
da arte por parte do presente autor. A proposta deste tópico, porém, retoma, como ponto de
partida, o argumento da cientista social Maria Eduarda A. Guimarães, no artigo “Moda,
cultura e identidades”, que afirma: “no século 20 a moda se consolidará como veículo [de]
transmissão de idéias e ideais, ‘transformando-se num veículo estético para as experiências
sobre o gosto, como um meio político de expressão das dissidências, da revolta e das
reformas sociais.’”820
820
GUIMARÃES, Maria Eduarda Araujo. Moda, cultura e identidades. 2008, In: IV Encontro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura. 2008. UFBA, p. 6 (citando Wilson, 1989).
821
Sobre a categoria analítica “elementos materiais da cultura”, em substituição ao termo “cultura material”,
ver: MENESES, José Newton Coelho. Apresentação: culturas alimentares, práticas e artefatos. In: Varia
Historia, vol. 32, núm. 58, Jan/Abr. 2016, p. 15-20.
822
Para a abordagem semiótica da cultura as categorias culturais e como teia de s ignificados, GEERTZ,
Clifford. Uma descrição densa. In: A interpretação das culturas. 2008, p. 3-27. LAPLATINE; TRINDADE.
O que é imaginário? 1997.
296
823
ALVES, Amanda P. O Poder Negro na Pátria Verde e Amarela: musicalidade, política e identidade em
Tony Tornado (1970). Dissertação (História). Universidade Estadual do Maringá. 2010, p. 76.
824
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 199.
825
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 217, 218.
826
GIACOMINI, Sonia Maria. A alma da festa. Família, etnicidade e projetos num clube social da Zona
Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 211. Itálicos do original.
297
O livro de Sonia Giacomini ressalta sobre a moda soul que: “No caso aqui
estudado, o cabelo também é visto como marca ou sinal que melhor e mais decididamente
que qualquer outro, expressariam – ou negariam – o orgulho negro.”829 Ao referenciar um
diálogo operado pela moda entre o costume dominante em uma sociedade e a tradição de
referência de certo grupo, a antropóloga destaca: “O penteado soul é um exemplo desse
duplo diálogo: o volume, a textura e a produção do penteado expressam, ao mesmo tempo,
o compromisso com o que se representa como sendo o costume ancestral e marcam a
diferença face ao rejeitado penteado do padrão eurocêntrico.”830 O que a autora define por
“penteado soul” é mais comumente definido como “penteado black power” e apareceu na
imagem da filósofa Angela Davis apresentada acima e em várias capas de discos retratadas
no decorrer deste capítulo. Esse penteado, no contexto histórico retratado nesta tese,
configurou-se no mais emblemático e difundido símbolo no imaginário antirracista da
Linguagem Política do Orgulho Negro. E os artistas da Black Music estadunidense tiveram
papel expressivo para a difusão do penteado, como exemplificado abaixo em capas de LPs
de Michael Jackson e Sly & The Family Stone.
827
GIACOMINI, Sonia Maria. A alma da festa. Família, etnicidade e projetos num clube social da Zona
Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 212.
828
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 190.
829
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 203.
830
GIACOMINI, Sonia Maria. A (re)invenção da negritude. In: A alma da festa. Família, etnicidade e
projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Renascença Clube. 2006, p. 201.
298
Fig. 16. Michael Jackson. Ben. LP. 1972. Extraído de [Acesso 07/06/1971]:
<https://www.amazon.com/MICHA EL-JACKSON-BEN-viny l-record/dp/B00Q7D5IVA>
Sly & The Family Stone. Fresh. LP. 1973. Extraído de [Acesso 07/06/2021]:
< https://www.amazon.com.br/Fresh-Audio-Sly-Family-Stone/dp/B00000250F>
831
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. 1999. p. 101, 102.
832
VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação 1959 [1932]:45. Apud GUIMARÃES, Antonio S. A. Racismo e
Antirracismo no Brasil. 1999. p. 103.
299
Oracy Nogueira (1985 [1954]), por seu turno, argumentou que, no Brasil, era a
marca de cor (a aparência física) que contava em termos de distinção social, e
não a origem biológica (raça), como nos Estados Unidos. Mais tarde, será
apoiado nesses estudos que Carl Degler (1991 [1971]) formulará a famosa tese
do “mulato como válvula de escape”, segundo a qual a ascensão social dos
mulatos e mestiços resultava na sua cooptação por um regime de desigualdade
social, privando os negros de uma liderança política mais preparada e educada.834
833
PIERSON, Donald. Brancos e pretos na Bahia. 1971: 38. Apud. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo.
Racismo e Antirracismo no Brasil. 1999. p. 104. Sublinhado nosso.
834
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. 1999. p. 111.
835
MUNANGA, Kabengele. Prefácio. In: GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos
da identidade negra. 2008, p. 16.
300
antropóloga e pedagoga Nilma Lino Gomes: “O cabelo ‘afro’, também considerado por
alguns como black power, foi considerado um estilo político pelo movimento de
contestação dos negros desencadeado a partir da década de 60.”836 E complementa
explicando o que seriam as características de tal penteado: “O black power é mais
associado ao estilo de cabelo ‘crespo natural’ bem cheio (às vezes chamado
pejorativamente de tipo ‘capacete’) e com cortes redondos ou quadrados (também
chamado de estilo ‘marmitão’).”837 A autora ainda historiciza o uso do estilo:
Dado o exposto nas últimas páginas, compreende-se a forte carga simbólica para a
luta antirracista atribuída ao uso do penteado black power e sua densidade afirmativa do
Orgulho Negro. Porém, assim como apontado na abordagem musical, os elementos visuais
da moda soul podem ser localizados em pessoas brancas, sinalizando um gosto pessoal.
Em sua adoção por pessoas negras é que estes elementos visuais são investidos de uma
simbologia que lhes fornece dimensão política, antirracista. Portanto, é apenas em seu uso
por pessoas negras que a presente tese compreende a moda Black enquanto uma expressão
da Linguagem Política do Orgulho Negro: a aparência, através da pigmentação da pele e
demais características físicas de identificação social ao “significante ‘negro’” é o elemento
central para a politização do símbolo e para a atribuição de dimensão política.
Uma pessoa branca usando os elementos da moda black/soul apresenta uma opção
estética que não irá referenciar, em seu corpo, à mesma força política que uma pessoa
negra. Tal adoção, contudo, pode assinalar um gosto pessoal ou um desejo de aproximação
à estética soul. Afinal, um desejo de aproximação à estética soul é o que sugere a adoção
do penteado black power na capa do álbum Maravilhosa, da cantora Wanderléa, lançado
em 1972 pela gravadora Polydor. Oriunda da sonoridade rock da Jovem Guarda nos anos
1960, a cantora buscou modificar sua imagem artística na década de 1970, adotando a
sonoridade soul. Tal modificação é anunciada aos potenciais consumidores e ouvintes na
capa do disco, através da adoção deste elemento visual associado à cena da Black Music –
836
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2008, p. 193.
837
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2008, p. 193.
Nota de rodapé 5.
838
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2008, p. 196.
301
839
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. 2017, p.
80.
302
A mudança visual dos artistas, expressa nas capas dos discos, pode representar uma
intenção de informar ao público quanto à roupagem estética das canções, indiciando uma
aproximação à sonoridade da Black Music, tal qual sugerido para o LP de Wanderléa.
Diante do desuso de textos nas contracapas dos LPs, a dimensão atrativa e de informação
nos trabalhos gráficos das capas tem sua importância ampliada para o produto cultural
disco. Essa possibilidade, porém, não invalida a hipótese da tese, de que tal adoção visual
possa também se associar à dimensão política de uma maneira de se apresentar ao mundo,
amparada na expressão de uma forma de identificação negra transnacional.
303
Fig. 18: Elza Soares A Bossa Negra. LP. 1960. Sangue, suor e raça. LP. 1974. Extraído de:
< http://armazemmemoria.co m.br/elza-soares/>
Fig. 19: Jorge Ben. Ben é samba bom. Álbum. Philips. 1964. Extraída da página:
<https://www.amazon.com.br/LP-Jorge-Ben-Samba-Bo m/dp/B00MA9W Y9O>
Jorge Ben. Ben. Álbum. Philips. 1972. Extraída da página:
<https://en.wikipedia.org/wiki/Ben_(Jorge_Ben_album)>
Fig. 20: Tim. What you want to bet?/These are the songs. Compacto. CBS. 1968. Extraída da página:
<https://www.diogodiscos.com.br/pd-613065-compacto-tim-maia-what-you-want-to-bet-these-are-the-songs-
2018.html >
Tim Maia.. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1973. Extraída da página:
< https://armazemdovinil.com/produto/disco-de-vinil-tim-maia-t im-maia-1973/>
304
Fig. 21: Trio Ternura. Trio Ternura. LP. 1971. CBS. Filhos de Zambi/Meu caso com você. Compacto. 1973.
Extraídas da página:
<http://jgsaudade.blogspot.com/2013/06/trio-ternura.html>
Fig. 22. Dom Salvador. Salvador Trio. LP. 1965. Mocambo. Dom Salvador. LP. 1969. CBS. Extraídas da
página: < https://www.discogs.com/>
Fig. 23. Dom Salvador. My Family. LP. 1976. Muse Records. Lançado apenas nos EUA. Extraído da página:
<https://www.discogs.com/>
Fig. 24. Wilson Simonal Wilson Simonal. LP. 1965. Odeon. Se dependesse de mim. LP. 1972. Philips.
Extraídas da página: < https://www.discogs.com/>
305
A proposta deste segundo capítulo da tese foi analisar o recorte temporal no qual
ocorreu o ápice da produção da Black Music Brasileira, a partir das sonoridades soul e
funk, sendo, por isso, mais abordado pela historiografia que debruçou sobre tal produção
musical. O capítulo buscou demonstrar que, nesse período da produção da Black Music
realizada no Brasil, houve o registro de um expressivo número de canções que abordaram
temáticas da linguagem negra antirracista e da Linguagem Política do Orgulho Negro.
Capítulo Três:
De 1978 a 1988:
Introdução.
A proposta de análise da Black Music Brasileira que vem sendo realizada nesta tese
é amparada em um entendimento alargado de atuação política, para além das lutas pelo
poder de Estado. Tal entendimento legitimou inserir esta pesquisa em uma abordagem de
História Cultural do Político ao estudar a circulação de ideias antirracistas na canção em
uma maneira específica de identificação entre pessoas negras no Brasil: a Linguagem
Política do Orgulho Negro. Buscou-se nas inovações da História Política, agora atenta aos
elementos do cotidiano, do cultural e do simbólico, uma compreensão mais abrangente
para as abordagens e objetos da política e também um rico terreno de investigação: a esfera
do político.841
840
Caetano Veloso e Gilberto Gil. As camélias da segunda abolição (Caetano Veloso/Gilberto Gil). Dois amigos,
um século de música. Álbum. Warner/WEA. 2015.
841
Parte da elaboração que se segue foi preliminarmente apresentada em: MORAIS, Bruno Vinícius L. de. A
MPB e a reivindicação antirracista no Brasil durante a ditadura militar: uma proposta de abordagem teórico -
conceitual. In: CUNHA, André Lescovitz et al (org.). O fazer historiográfico na contemporaneidade. 1ed.
Curitiba: Setor de Ciências Humanas, 2019, v. 01, p. 151-170.
842
NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) -
ensaio histórico. 2017, p. 322.
309
no próprio cenário fonográfico brasileiro com Tim Maia, Jorge Ben(jor) e Tony Tornado,
acabou por criar redes capilares e invisíveis aos olhos da mídia hegemônica e da esquerda
intelectual, com implicações culturais e políticas amplas.”843 A presente tese busca, na
ampliação do conceito “política”, analisar as implicações da forma de expressão identitária
negra dos artistas Black, a partir da difusão da Linguagem Política do Orgulho Negro,
através da qual foi compreendida e comunicada essa forma de expressão - seja na canção
ou em outros canais de comunicação.
843
NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) -
ensaio histórico. 2017, p. 322.
844
FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.).
Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. 1997. 5 ed, p. 97-138.
845
BOBBIO, Norberto. Política. In: In: BOBBIO, MATEUCCI, PASQUINO. Dicionário de Política. Coord.
Trad. João Ferreira. Brasília. Ed. Univ. de Brasília. 1998, p. 954-962.
846
Para uma abordagem geral e de época, SINGER, Paul; BRANT, Vinicius Caldeira (orgs.) São Paulo: O
povo em movimento. 1980. Para uma abordagem teórica de referência na sociologia dos movimentos sociais,
GOHN, Maria da Glória Marcondes. Novas teorias dos movimentos sociais. 2008.
310
847
CAPELATO, Maria Helena Rolim. História Política. In: Estudos Históricos. Núm. 17. 1996, p. 162.
848
DUARTE, Adriano Luiz, MEKSENAS, Paulo. História e Movimentos Sociais: possibilidades e impasses
na constituição do campo do conhecimento. In: Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 12, n. 1, p. 119-139, 2008.
849
BARCELOS, Luiz Claudio. Mobilização racial no Brasil: uma revisão crítica. In: Afro-Ásia. Salvador,
Bahia. No. 17, 1996, p. 189.
311
canção -esta tese buscou amparo na conceituação sugerida pelo historiador Pierre
Rosanvallon. Esse autor, nos artigos do livro Por uma História do Político, propõe a
identificação de uma “esfera do político” como o espaço onde são gerados e disputam
ideais e representações que conformam o social, a vida em comum. Ambiente
diferenciado, assim, embora em diálogo constante, do espaço da gestão do social através
do Estado, a “esfera da política”. 850 Por não idealizar a conquista do poder de Estado, o
campo de atuação política primordial das lutas antirracistas, seja nos movimentos
organizados, nas ruas ou canções, é a esfera do político.
A opção por introduzir este terceiro capítulo a partir de uma breve pontuação a
respeito da ampliação das abordagens na História Política justifica-se pelo
desenvolvimento que será tomado na redação do texto. Dos três capítulos desta tese, é
neste último que será melhor explorada a identificação de uma atuação antirracista que
transita entre a esfera do político e a esfera da política, localizada, a partir de diferentes
marcos analíticos, no ano de 1978 e no decorrer dos dez anos seguintes. De tal forma, a
partir dos marcos do impacto da Disco Music e do redirecionamento da indústria
fonográfica, o primeiro movimento do capítulo irá manter o trajeto desenvolvido nos dois
capítulos anteriores, ao explorar o cancioneiro da Black Music Brasileira lançado entre os
anos de 1978 e 1988, uma atuação operada na esfera do político.
850
ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. 2010.
312
Assim como na citação acima, na busca desesperada por encontrar alguma maneira
de responder à questão levantada – paralela ao objeto, mas central ao tema desta tese –, a
forma encontrada foi recorrer a alguns dos dicionários publicados no Brasil entre as
décadas de 1930 e 1980, a fim de identificar os significados dados ao vocábulo “racismo”.
Com esses verbetes, foi cotejado o significado operado em documentos das forças
repressivas do Estado e outras fontes. Identificado um significado “consensual”, a leitura
da produção intelectual antirracista lançada entre 1978 e 1986 - além de Abdias, por nomes
como Joel Rufino, Lélia Gonzalez, Neusa dos Santos e Kabengele Munanga - permite
acompanhar um esforço de ressignificação do vocábulo “racismo”, que vai ao encontro das
mensagens difundidas nas canções abordadas no decorrer da tese. A atuação política em
torno da ressignificação do termo, no argumento desta tese, amplia a sustentação da
rejeição do ideário da “democracia racial” como um mito.
851
HOBSBAWM, Eric. A história de baixo pra cima. In: Sobre a História. Ensaios. 1998, p. 220.
313
Em síntese, como nos ensina a “nova história intelectual”, não é no plano dos
conteúdos referencias dos discursos (as “ideias”) que é possível observar os tipos
de distorções que tais discursos apresentam como resultado dos traslados
contextuais. De fato, as “ideias” não conservam os vestígios das alterações nas
suas condições de enunciação. Para encontrá-los, devemos trasladar nosso
enfoque ao plano da dimensão pragmática da linguagem e seus usos. Ou seja,
devemos reconstruir o conjunto de relações comunicativas dentro do qual um
determinado enunciado foi produzido. Efetivamente, as enunciações, ao
contrário das “ideias”, que são abstratas e genéricas por definição, são fatos
plenamente históricos, sempre singulares. E o que os singulariza não está no que
diz, mas sim em sua dimensão retórica, o que a tradição retó rica medieval
chamava de “circunstâncias”: quem fala, a quem se fala, como o diz, em qual
marco de relações de poder etc.” 852
A produção musical gravada e lançada a partir de 1978 registra tal ano como marco
de um declínio da Black Music Brasileira na indústria fonográfica, em consonância ao
impacto comercial da Disco Music. A ascensão e apogeu da Discotheque – Discoteca ou
apenas Disco – no Brasil foi analisada no livro Pavões Misteriosos: 1974-1983: A
explosão da música pop no Brasil, de André Barcinski, no qual o autor destaca o impacto
do grupo As Frenéticas - contratado pela gravadora Warner, dirigida por André Midani e
recém-inaugurada no Brasil.
852
PALTI, Elias; COSTA, Adriane Vidal. Prefácio – Os lugares das ideias na América Latina. In: idem
[Orgs] História Intelectual e circulação de ideias na América Latina nos séculos XIX e XX. 2021, p. 6.
314
As paradas dos discos mais vendidos em 1977 dão uma ideia do domínio da
discoteca no Brasil. Dos cinquenta mais vendidos no país pelo menos vinte,
incluindo LPs e compactos, estavam associados ao gênero, entre baladas lentas
para dançar agarradinho e músicas mais aceleradas e animadas. O segundo disco
mais vendido do ano - e que só perdia para o de Roberto Carlos – foi I love to
love, de Tina Charles. (...) Em 1978, o domínio foi ainda maior: mais de 60% dos
compactos e LPs que lideraram as paradas estavam associados à discoteca. (...)
Já a produção brasileira vendeu muito com Perigosa (Frenéticas), Amante Latino
(Sidney Magal), A noite vai chegar (Lady Zu), Quem é ele (Miss Lene) e Tim
Maia Disco Club (Tim Maia).854
853
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2008, p.
80.
854
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos: 1974-1983: A explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 95,
96.
855
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos: 1974-1983: A explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 97.
856
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos: 1974-1983: A explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 115.
857
MOTTA, Nelson. Caia na gandaia. In: Coleção História do Rock Brasileiro. Vol. 02. Super Interessante.
2004, p. 69, 70.
315
Antes havia o povo da black music, que vinha desde o começo dos anos 70, com
o Tim Maia, o Cassiano, o Fábio, logo em seguida com o pessoal que formaria a
Banda Black Rio, o Hyldon, os bailes funks de subúrbio. Isso tudo já vinha de
bem antes, mas aí era o funk-soul carioca. A disco music começou no Brasil com
as Frenéticas, que nem tinham muito a ver com funk e com soul. Pelo contrário,
era uma espécie de disco-rock.858
858
MOTTA, Nelson. Caia na gandaia. In: Coleção História do Rock Brasileiro. Vol. 02. Super Interessante.
2004, p. 71.
859
DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2008,
p. 21, 22.
860
TATIT, Luiz. O século da canção. 2004, p. 231.
316
visual dos artistas.”861 O autor aproxima do argumento de Luiz Tatit, ao ressaltar que o
processo de “profissionalização”, em cenário de crise econômica, limitou oportunidades de
gravação:
Eu era visto como um Midas da música, tudo o que eu via dava certo, e aí
chegou o dia em que tudo o que eu via dava errado. Isso aconteceu porque o
comportamento do mercado mudou. No período 1968/1976 o que fazia sucesso
era o discurso do artista. O importante era o personagem e o que o personagem
falava. Quando chegou em 77, uma das grandes mudanças que começaram a se
desenhar é que o personagem ficou relegado a um segundo plano diante da
música. Aí eu vi que tinha passado anos sem olhar direito para a música, sem
sacar se ela fazia sucesso ou não.864
com executivos da indústria fonográfica. O artista foi um dos pioneiros da cena rockeira
que se tornou um “carro chefe” do mercado fonográfico oitentista. Tendo iniciado carreira
um pouco mais velho que a maior parte de seus companheiros de geração musical, Marcelo
(que gravou o primeiro álbum na faixa dos 30 anos, enquanto na cena rockeira
predominava adolescentes na casa dos 20 anos ou menos) sugere um gesto de maturidade a
resistência à direcionamentos artísticos - que propiciou o rompimento de seu primeiro
contrato artístico com a Som Livre que impôs a alteração do nome da banda pouco após o
lançamento do primeiro LP, em 1983. E destaca como uma rara exceção a atuação
profissional de André Midani: “Agora ele se aposentou, mas ele se destacava
culturalmente, intelectualmente, nas atitudes, na forma que encontrou para conduzir a
Warner. Eu percebia nele uma busca pela liberdade artística que nunca mais encontrei em
grandes gravadoras.”865 A avaliação de Marcelo Nova ganha maior força por ser um livro
de memórias publicado em 2017, após o artista transitar por diversas gravadoras e estar,
desde 1998, na cena de gravação independente - na qual lançou 9 álbuns.
Na leitura do autor da presente tese, a atuação das gravadoras no Brasil nas décadas
de 1960 e 1970, a partir de produtores e diretores artísticos, por vezes expressava
estratégias de acomodação com os governos da ditadura militar. O uso do conceito é
inspirado na reflexão do historiador Rodrigo Patto Sá Motta no artigo A estratégia de
acomodação na ditadura brasileira e a influência da cultura política: “acomodação
permite expressar melhor a ideia de que mesmo em uma ditadura houve oportunidades
para acomodar intelectuais e acadêmicos do campo oposicionista, em um jogo de mútuas
865
BARCINSKI, André. Marcelo Nova - O galope do tempo: conversas com André Barcinski. 2017, p. 114.
318
866
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A estratégia de acomodação na ditadura brasileira e a influência da cultura
política. In: páginas, año 8 - n° 17. 2016, p. 16.
867
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A estratégia de acomodação na ditadura brasileira e a influência da cultura
política. In: páginas, año 8 - n° 17. 2016, p. 17.
868
FERREIRA, Mauro. The Commodores. [Coleção Folha. Soul & Blues] 2015, p. 30.
869
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/dona-xepa/> Acesso 09/08/2021.
319
Imaginação, contando com doze canções na sonoridade de baladas soul, mas nenhuma
delas evocando as linguagens antirracistas - a temática do LP transita entre romântica e
existencial.870 O artista, com este trabalho, conquistou o prêmio Globo de Ouro na
categoria Melhor Disco do Ano 1979. 871
Outra estreia da Black Music Brasileira em LP no ano foi a de Zezé Motta, artista
então amplamente conhecida por sua atuação como protagonista no filme Xica da Silva,
produção dirigida por Cacá Diegues. O filme, baseado em fatos reais, abordou uma
escravizada que estabeleceu relação amorosa com uma autoridade portuguesa nas Minas
Gerais setecentistas e tornou-se uma mulher poderosa na região. Conforme a sinopse
disponibilizada pelo Museu da Imagem e do Som: “O filme foi um grande sucesso de
bilheteria no ano de seu lançamento (1976) e, de forma alegre e carnavalizada, não deixa
de evocar a luta do povo brasileiro contra os poderosos.”872 Um livro biográfico sobre a
artista foi publicado em 2018, Zezé Motta: Um canto de luta e resistência, escrita pelo ator
Cacau Hygino, mas uma síntese representativa da biografia de Zezé foi escrita por Lélia
Gonzalez, “possivelmente em meados de 1984”, uma “transcrição original encontrada no
Memorial Lélia Gonzalez”:873
Todos a conhecemos como a atriz promissora que despontou em Roda Viva, sob
a direção de José Celso Martinez; que se afirmou em Arena canta Zumbi,
dirigida por [Augusto] Boal, ou na novela Beto Rockfeller. Todos sabemos que
atingiu o estrelato, arrebatando público e crítica, com sua magnífica
interpretação em Xica da Silva, de Carlos Diegues, a ponto de os críticos de
Chicago poucos meses atrás terem comentado: “Basta de Evita! Agora queremo s
Xica”.
Mas muitos poucos de nós a conhecemos como aquela criança que, vinda de
Campos com os pais e o irmão, morou no morro do Pavãozinho e estudou em
colégio interno para crianças pobres. Ou como a adolescente que ajudava a mãe
na costura, ouvindo rádio o dia inteiro, e que depois cantava as músicas ouvidas
para o pai, a fim de que este as transformasse em partituras a serem distribuídas
entre os membros do conjunto de músicos profissionais que dirigia. Poucos
sabem que essa mesma adolescente começou a tomar consciência da situação dos
deserdados e oprimidos, pobres e negros como ela própria quando fez o ginasial
no colégio João XXIII, na Cruzada São Sebastião. Mas nada disso a fazia
desistir. Ao entrar para o segundo grau (curso de contabilidade), foi trabalhar
como operária ao mesmo tempo que estudava teatro com Maria Clara Machado.
870
Don Beto. Nossa Imaginação. Álbum. Som Livre. 1978. Relançamento em CD: Som Livre. 2006.
871
< https://www.morganmusic.com.br/site/?page_id=3540> Acesso 09/08/2021.
872
< https://acervo.mis-sp.org.br/video/xica-da-silva-direcao-de-caca-diegues> Acesso 09/08/2021.
873
GONZALEZ, Lélia. Fontes. in: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e
diálogos. 2020, p. 366.
320
Vida dura de jovem negra pobre, numa sociedade onde os espaços reservados
para mulheres, negros e pobres são aqueles da exclusão. 874
O primeiro álbum gravado por Zezé Motta foi lançado em 1975, um LP de Gerson
Conrad, que a convidou para dividir os vocais com ele na maioria das canções. Gerson foi
integrante do grupo de rock e MPB Secos & Molhados, conjunto de enorme popularidade
em 1973 e 1974, quando lançou dois álbuns antes do fim de sua formação clássica - que
contava com Gerson, o vocalista Ney Matogrosso e o vocalista, violonista e compositor
principal, João Ricardo. O LP Gerson Conrad & Zezé Motta foi lançado pela Som Livre
pouco após a dissolução do conjunto, contando com quatorze composições do cantor e
violonista Gerson Conrad em parceria com Paulinho Mendonça, 876 canções que
apresentavam “na imagem do meio rural e na vida saudável longe dos centros urbanos seu
principal arquétipo.”877
O álbum com Gerson Conrad não teve grande repercussão, situação oposta à que
ocorreu à produção cinematográfica Xica da Silva. Produzido pela estatal Embrafilme, o
filme foi um sucesso de bilheteria e de crítica, conquistando os prêmios de Melhor Filme,
874
GONZALEZ, Lélia. Fontes. in: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e
diálogos. 2020, p. 228.
875
SANTHIAGO, Ricardo. Solistas dissonantes: história (oral) de cantoras negras. 2009, p. 201.
876
Gerson Conrad e Zezé Motta. Gerson Conrad & Zezé Motta. Álbum. Som Livre. 1975. Relançamento em
CD. Som Livre. 2006.
877
< http://www2.portoalegre.rs.gov.br/cantrizes/default.php?reg=1&p_secao=27> Acesso 09/08/2021.
321
Melhor Direção e Melhor Atriz para Zezé Motta no Festival de Brasília (1976); Melhor
Filme, Melhor Direção, Melhor Atriz para Zezé Motta no Prêmio Air France de Cinema
(1976); o Prêmio Coruja de Ouro do INC – Instituto Nacional de Cinema – de Melhor
Atriz para Zezé Motta, Melhor Atriz Coadjuvante para Elke Maravilha, Melhor Fotografia
e Melhor Coreografia (1976); e o Prêmio Governador do Estado de São Paulo de Melhor
Atriz e Melhor Montagem (1977).878 A repercussão nos cinemas propiciou oportunidades
para Zezé enquanto cantora, como nas viagens de divulgação do filme. O seu livro
biográfico ressalta: “Zezé fez muitos shows nos Estados Unidos. Os cartazes anunciavam:
‘show de Zezé Motta, a estrela do filme ‘Xica da Silva’.”879 No Brasil, Zezé concedeu
diversas entrevistas nas quais anunciava seu desejo de cantar, sendo procurada por
gravadoras e pelo empresário Guilherme Araújo, que trabalhava com Caetano Veloso,
Maria Bethânia, Gal Costa e o antigo vocalista dos Secos & Molhados, Ney Matogrosso,
que passou a empresaria-la em 1977.880
878
< http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/> Acesso 09/08/2021.
879
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 91. O impacto midiático do filme à
época e sua repercussão educativa foram estudados na tese FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Cinema,
história pública e educação: circularidade do conhecimento histórico em Xica da Silva (1976) e Xico Rei
(1985). Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais.
2014.
880
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 107.
881
Zezé Motta. Pecado original/Dores de amores. Compacto. Warner/WEA. 1978. A gravação de Emílio foi
lançada no álbum O canto crescente de Emílio Santiago. LP. Philips. 1978.
322
lançadas pelos compositores nos álbuns Pérola Negra (1973) e Refavela (1977).882 E,
enfim, um LP, que aproveitava as seis canções lançadas nos compactos e incluía outras
cinco composições.
882
Zezé Motta. Rita baiana/Trocando em miúdos/Magrelinha/Baba Alapalá . Compacto duplo.
Warner/WEA. 1978.
883
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 109.
884
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2008, p.
95.
885
As Frenéticas. Caia na gandaia. Álbum. Warner/WEA. 1977.
323
Muito prazer, eu sou Zezé/ Mas você pode me chamar como quiser/ Eu tenho
fama de ser maluquete/ Ninguém me engana, nem joga confete/ Mas pra quem
gosta de amar e segredo/ eu sou um prato cheio/ Eu quero dar uma colher/ Eu
sou Zezé, da terra do Sol/ da lua de mel/ da cor do café/ Muito pra zer, eu sou
Zezé/ uma rainha, uma escrava, uma mulher/ uma mistura de raça e cor/ uma
vida dura, mas cheia de sabor/ é que hoje em dia estou mais atrevida/ muito
mais sabida/ Meu nome é Zezé, mas pode chamar de Xica, se quiser. 886
A letra da canção “Muito prazer, Zezé” repercute o impacto da atuação no filme Xica
da Silva para a carreira de Zezé Motta, visto que a composição destinada a ser uma
apresentação da cantora a associa à personagem; seja de forma sugerida, nos versos muito
prazer, eu sou Zezé/ uma rainha, uma escrava, uma mulher ou no trecho final, quando
autoriza o/a ouvinte a chamá-la por Xica. A dimensão racial também foi evocada por Rita e
Roberto nos versos que caracterizam a intérprete como da cor do café e uma mistura de
raça e de cor. A execução instrumental e vocal da canção concede uma dimensão alegre,
que é reforçada pela inclusão de risadas por Zezé durante o canto. Características de
composição e performance que aparecem também em outra canção feita para Zezé, por
Moraes Moreira, “Crioula”: Quando eu penso nela/ na forma de canção/ eu imagino um
som/ que revele/ o tom de sua pele/ Crioula/ Quando eu penso nela/ o meu coração bate
num swing/ que se passa da cabeça aos pés/ que corre no sangue/ swing que é natural da
raça.887
Três das canções gravadas no álbum Zezé Motta, contudo, abordam temáticas raciais
a partir de linguagens antirracistas. “O morro não engana”, de Luiz Melodia e Ricardo
Augusto, lançada pelo compositor no mesmo ano no álbum Mico de Circo, conforme foi
abordado no capítulo anterior, traz uma representação sobre as favelas que inverte a
associação dos morros com a violência urbana nos versos morro do medo/ morro do sono/
morro do sonho/ morro no asfalto. A composição explora a polissemia do termo “morro”
ao associar o medo, o sono e o sonho ao morro enquanto espaço geográfico, em
886
Zezé Motta. Muito prazer, Zezé (R. Lee/ R. Carvalho). Zezé Motta. Álbum. Warner. 1978. Fx. 01, Lado
A.
<https://www.youtube.com/watch?v=QxsNnT_VG6U>
887
Zezé Motta. Crioula (Moraes Moreira). Zezé Motta. Álbum. Warner. 1978. Fx. 01, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=z6TYL-rQVE4>
324
As duas canções que encerram o álbum de estreia Zezé Motta retratam a religiosidade
de matriz africana, a partir do culto a orixás. “Dengue”, composta por Leci Brandão
(sambista que então se destacava a partir de uma renovação do samba, realizada por
artistas envolvidos com a escola de samba Cacique de Ramos), não evoca as sonoridades
da Black Music, sendo executada apenas por cinco percussionistas, o baixo elétrico de
Liminha e coro. A letra, Olha que dengue/ olha que calma/ Oxum me entende/ Oxum me
acalma/ Na cachoeira toda danada/ toda faceira, toda enfeitada/ Oloriê salve o tesouro/
Ora iê, iê ô/ Dona do ouro,888 celebra a orixá que, conforme o Dicionário de cultos afro-
brasileiros, é: “Deusa das águas doces – rios, lagos, cachoeiras – bem como da riqueza e
da beleza. Deusa menina, faceira, a mais jovem e preferida esposa de Xangô, portanto uma
das rainhas de Oyó, segundo os mitos”, 889 em verbete que prossegue descrevendo a
indumentária e colares característicos da divindade, que justificam na canção a referência
toda enfeitada. E a faixa que encerra o LP, “Babá Alapalá” é uma reverência a Xangô
selecionada do repertório composto e gravado por Gilberto Gil no projeto Refavela:
Aganjú, Xangô, Alapalá/ Xangô, Aganjú. Embora as duas versões utilizem a mesma
instrumentação (baixo, guitarra, bateria, percussão e violão, além de acompanhamento de
coro), a gravação de Gil sugere influências da sonoridade nigeriana Juju Music, sobretudo
pela execução da guitarra, enquanto a de Zezé aproxima da sonoridade Black,
principalmente nas performances do baixo e bateria. 890 Sobre o tema da composição,
Maurício Barros de Castro, em Refavela. O livro do disco, ressalta:
“Babá Alapalá” é marcada pela pergunta que se repete, do filho para o pai, do pai
para o avô, do avô para o bisavô, do bisavô para o tataravô: “Onde está?” É uma
pergunta sobre a ancestralidade que se tentou apagar com o tráfico de africanos
escravizados, uma empreitada desumana que sequestrou cerca de 12 milhões de
indivíduos de suas famílias, de suas nações de origem, e os acorrentou
amontoados em diversos tipos de embarcações negreiras que rumaram,
principalmente, para o chamado “Novo Mundo”. É sobre est e desmantelo da
888
Zezé Motta. Dengue (Lecy Brandão). Zezé Motta. Álbum. Warner/Wea. 1978.
<https://www.youtube.com/watch?v=aN0oyTOlrVA >
889
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 202.
890
Zezé Motta. Babá Alapalá (Gilberto Gil). Zezé Motta. Álbum. Warner. 1978. Fx. 06, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=CbAcMUxq2T0>
325
Com o sucesso que eu estava fazendo, a Warner achou que eu ia vender milhões,
mas não foi bem assim... Essas coisas são imprevisíveis e acabei vendendo
menos do que a gravadora esperava. Eles acharam que tinha alguma coisa errada
com meu trabalho: disseram que eu tinha que direcioná-lo, que devia ter um
rótulo e que esse rótulo seria o samba.
Esperneei pra cá e pra lá, mas no disco Negritude topei gravar alguns sambas.
Mesmo assim, sempre rejeitei o rótulo de sambista - não porque tivesse algo
contra o samba, mas porque sabia que a gravadora queria que eu gravasse samba
por ser negra. Eu achava isso, vamos dizer, meio estranho... Parecia uma
ditadura com o artista negro.892
Ou seja, o resultado comercial menor que o esperado diante da fama de Zezé Motta
após o filme Xica da Silva, mesmo que em uma forma de atuação artística totalmente
distinta (a musical) e em uma primeira experiência, instigou a pressão da indústria
fonográfica em impor rumos específicos à carreira da cantora. Tal redirecionamento, como
foi percebido por Zezé, buscava circunscrever sua carreira ao posto de sambista - um lugar
social criado pelo preconceito e discriminação racial. Conforme ressaltado pela artista, o
preconceito não está na gravação de sambas (o seu primeiro LP flertava com o gênero no
choro “Rita baiana”), mas na imposição, a despeito da identidade musical que Zezé
buscava conceder à sua carreira.
891
CASTRO, Maurício Barros de. Refavela. O livro do disco. 2017, p. 85.
892
SANTHIAGO, Ricardo. Solistas dissonantes: história (oral) de cantoras negras. 2009, p. 207.
893
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 187.
326
sensual do que por outros atributos.”894 Crítica que a atriz e cantora não compartilhava:
“Zezé até compreendia a reflexão. Sempre se falou por aqui sobre o negro como exótico,
da sensualidade, que o homem negro é muito viril, que a mulher negra é mais sensual.
Bom, baseado nisso tudo, Zezé começou a dizer: ‘Gente, não cobrem de Xica da Silva
atitudes de Angela Davis’.”895
894
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 103. Tais críticas foram exploradas
e analisadas por FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Cinema, história pública e educação: circularidade do
conhecimento histórico em Xica da Silva (1976) e Chico Rei (1985). Tese (Educação). UFMG. 2014, p. 280-
300.
895
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 103.
896
É válido enfatizar que o argumento nesse momento não é que para os movimentos negros da época - ou
para o autor desta tese - gravar um disco apenas de sambas fosse aderir ao preconceito e discriminação racial.
Como afirmado desde a introdução desta tese, há important es nomes e produções no samba comprometidas
com a luta antirracista. No período da década de 1970, destaca-se, por exemplo, a atuação do cantor e
compositor Candeia, com a criação da Escola de Samba Quilombo – como mencionado no capítulo anterior.
Tampouco está sendo feito aqui um julgamento de valor do álbum Negritude, de Zezé - um dos melhores de
sua carreira, na opinião do autor desta tese. Neste caso do segundo álbum de Zezé, apenas está sendo
destacada a concessão aberta pela artista diante de uma pres são que ela mesma compreendia como ecoando
orientações racistas da indústria.
897
HYGINO, Cacau. Zezé Motta: Um canto de luta e resistência. 2018, p. 117.
327
Fig. 25: Capa e contracapa. Zezé Motta. Negritude. LP. Atlantic/WEA. Extraído de:
< https://www.antikarius.com.br/produto/599232/zeze-motta-negritude-lpusado>
Trago no meu peito as marcas do açoite/ Na pele cor de noite que o bronze
esculturou/ Tenho no meu sangue o elã da madrugada/ De cada encruzilhada
que Angola me deixou/ Sou filha do atabaque, dos sons dos retirantes/ Do
Congo dos amantes caçados no Sudão/ Das músicas de Gana, das flautas de
Uganda/ Das festas de Luanda, tambores do Gabão/ E desses ancestrais, da
Argélia ao Senegal/ Nasceu meu carnaval e dele sou herdeira/ E mostro com
orgulho ao mundo, à Terra inteira/ Meu ritmo, meu viço, de Negra Brasileira.899
898
Zezé Motta. Pensamento Iorubá (Moraes Moreira). Negritude. Álbum. Warner/Atlantic. 1979. Fx.4, Lado
A.
899
Zezé Motta. Negritude (I. Maria/P. C. Feital). Negritude. Álbum. Atlantic/WEA. 1979. Fx. 4, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=1yOvTq5S_rU>
328
Brother, vem dançar/ que a banda começou/ É o samba soul/ que outro brother
me ensinou/ Venha se embalar nessa marcação/ é muito importante/ o clima
dessa união/ Vem dançar, irmão/ é a vez do samba soul/ Este é o momento certo/
dessa libertação/ se a gente usar a força/ dessa canção/ Samba é soul e soul é
samba/ ambos são negros como eu/ e importantes como a noite/ temos as
mesmas origens/ Brasil/ África.902
A canção “Hora de União”, composição de Antônio Silva, foi gravada por Lady Zu
em um dueto com o cantor Totó Mugabe e em sua letra realiza um manifesto pela
aproximação entre o samba e o soul - dialogando, portanto, com as oposições entre os
admiradores dos dois gêneros, conforme retratado no capítulo anterior. A canção utiliza o
termo Brother, comum nos círculos dos frequentadores dos bailes Black e estabelece uma
interessante conexão entre Brasil, Estados Unidos e o continente africano ao pregar que
900
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/sem-lenco-sem-documento/> Acesso
13/08/2021
901
< http://culturabrasil.cmais.com.br/especiais/por-onde-andarao/de-zuleide-a-lady-zu> Acesso 13/08/2021.
902
Ladu Zu. Hora de União (Antônio Silva). Participação: Totó Mugabe. Fêmea brasileira. Álbum. Philips.
1979. Faixa 04, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=AUqyrgDoLLs >
329
samba é soul e soul é samba/ ambos são negros como eu (...) temos as mesmas origens/
Brasil/ África. Tal como na música “Negritude”, lançada no mesmo ano por Zezé Motta,
há uma identificação construída a partir de um diálogo transnacional com o continente
africano, mas pelo gênero musical – aqui, em “Hora de União”, explicitado na letra e
música como soul –, conecta também aos EUA.
No álbum Fêmea Brasileira, consta ainda outro dueto, entre Lady Zu e o guitarrista e
cantor Luis Vagner, no samba-soul “Boneca de pixe” que retrata um diálogo conjugal de
um casal negro. Luiz introduz: venho empurrando quase toda a gente, Preta/ Pra ver meu
benzinho, você, meu benzinho, e canta o primeiro refrão: Da cor do azeviche, da
jacoticaba/ boneca de pixe, é tu que me acaba/ sou preto e meu gosto, ninguém me
contesta/ mas há muito branco com pinta na testa; e Zu responde: tem português assim nas
minhas águas/ Que culpa eu tenho de ser boa mulata/ Nego se tu aborrece minhas
mágoas/ ah, eu te dou a lata e o segundo refrão - os mesmos versos, cantados em primeira
pessoa do singular.903 A canção é executada na sonoridade soul, sendo que o refrão é
entoado na cadência do samba. Não foi localizado pelo autor desta tese um significado
para a expressão branco com pinta na testa. É notável, porém, a busca por uma positivação
estética das referências raciais: cor do azeviche, da jaboticaba e o uso carinhoso dos
termos Preta e Boneca de Pixe; embora a letra retome, como autodefinição, a “categoria
mulata”. Ainda que o diálogo alcance ameaças de agressão física - quando Zu ameaça o
término da relação no verso eu te dou a lata, Luiz responde: se tu me engana vai haver
banzé/ eu te sapeco um rabo de arraia/ E te dou no pé - predomina na composição uma
representação que celebra uma relação amorosa afetuosa entre o par negro.
Fig. 26. Capa e contracapa. Lady Zu. Fêmea brasileira. LP. Philips. 1979. Extraídas de:
<http://knrecords.com/?pid=109291358>
903
Lady Zu. Boneca de pixe. Participação Luis Vagner. Fêmea brasileira. Philips. 1979. Faixa 06, Lado A.
<https://www.youtube.com/watch?v=2keKg_7v6OA>
330
O segundo álbum de Lady Zu, uma artista consagrada na sonoridade Disco, registrou
a aproximação da cantora com as sonoridades soul e funk, documentando, assim, a difusão
da Black Music entre artistas oriundos de outras vertentes musicais no Brasil. Algo similar
ocorreu na carreira de Gilberto Gil que, conforme abordado no capítulo anterior,
aproximou das sonoridades da Black Music no álbum Refavela, lançado em 1977. Essa
aproximação se manteve nos próximos álbuns de Gil, conforme atestado pela jornalista
Ana Maria Bahiana nesse ano de 1979, no texto Importação e assimilação: Rock, soul,
discotheque: “a soul music veio marcar e interessar muitos trabalhos, sendo citada por
Caetano Veloso no LP Bicho (1977), incorporando-se totalmente às novas produções de
Gilberto Gil (Refavela, 1977, Nightingale, 1978, Realce, 1979)”.904 O texto foi
originalmente publicado no mesmo ano em que Gil lançou Realce, o último LP da trilogia
iniciada com Refazenda, em 1975. Nightingale, o lançamento anterior do artista, foi
produzido para o mercado estadunidense, reproduzindo canções lançadas no Refavela e
“Maracatu atômico”, lançada em 1973, e apresentando a faixa inédita “Sarará Miolo”, que
no Brasil foi apresentada no álbum Realce.
Sara, sara, sara, Sarará/ Sarará miolo/ Sara, sara, sara cura/ Dessa doença de
branco/ de querer cabelo liso/ já tendo cabelo louro/ Cabelo duro é preciso/ que é pra ser
você, crioulo,905 entoa os versos da canção “Sarará Miolo”, a segunda faixa de Realce. É
uma canção que dialoga com elementos do soul na sonoridade, e na temática faz uma
positivação dos cabelos crespos (mobilizando o termo pejorativo cabelo duro) e do
vocábulo crioulo, contrapondo a imposição social do processo de branqueamento em alisar
os cabelos. Realce, o álbum, tal como os outros dois da trilogia, difundia um conceito,
conforme exposto por Gil: “como um terceiro movimento, ‘Realce’ tinha a coisa da música
associada à cultura de massa, e ao brilho anônimo das pessoas na época da disco music”.906
Por isso, “Realce”, a canção, exaltava quanto mais purpurina melhor e, no texto escrito por
Gil na contracapa do álbum, é explicado: “Realce, uma maneira de dizer a luz geral.
Denominar o brilho anônimo, como um salário mínimo de cintilância a que todos tivessem
direito. Como a noite de discoteque após o dia de trabalho. Realce, uma maneira de dizer o
904
BAHIANA, Ana Maria. Importação e assimilação: rock, soul, discotheque. In: NOVAES, Adauto. Anos
70. Ainda sob a tempestade. 2005, p. 59.
905
Gilberto Gil. Sarará Miolo (Gilberto Gil). Realce. Álbum. Warner. 1979. <
https://www.youtube.com/watch?v=UskIGl19oB4>
906
Livreto. Gilberto Gil. Realce. Warner. 1979. (Coleção Gilberto Gil. 70 Anos. Vol. 1). Innovant. 2011, p.
6.
331
bem estar.” Seguindo tal conceito, a canção apresentava uma sonoridade disco e foi
gravada nos EUA, com músicos estadunidenses.
A aproximação de Gil com a Black Music foi explicitada no álbum Realce em mais
uma regravação de um clássico do cancioneiro brasileiro em versão funk, “Marina”, de
Dorival Caymmi - tal como foi feito com “Samba do avião” em Refavela. Segundo
Gilberto Gil, nas lembranças sobre o LP para os textos da Coleção Gilberto Gil 70 anos, de
2011, a gravação causou polêmica: “Porque muita gente achou que eu não podia ter feito
isso – funkeando ‘Marina’ e gritando daquele jeito – mas foi uma das que mais fez
sucesso! Os jovens adoravam aquela levada!”.907 A expressão de uma linguagem
antirracista, porém, ocorre na composição “Logunedé”, faixa de difícil caracterização
quanto à sonoridade, na qual Gil volta a afirmar a religiosidade de matriz africana e
apresenta uma divindade que, conforme o Dicionário de Cultos Afro-brasileiros é: “Orixá
filho de Ibualama ou Inlé (Oxóssi) e Oxum Pandá. Reúne as naturezas do pai e da mãe,
sendo seis meses jovem caçador e, nos outros seis, bela ninfa dos bosques que só come
peixe.”908 A letra de Gil proclama: É de Logunedé a doçura/ Filho de Oxum, Logunedé,
tanta ternura/ Logunedé é demais/ sabido, puxou aos pais/ astúcia de caçador/ paciência
de pescador/ Logunedé é demais/ Logunedé é depois/ Que Oxóssi encontra a mulher/ Que
a mulher decide ser/ A mãe de todo prazer.909
O álbum de 1979, Realce, documenta a adoção por Gilberto Gil de outra sonoridade
que expressa uma conexão transnacional entre experiências de comunidades negras no
continente americano: o reggae. Antonio Carlos Miguel, no livro Guia de MPB em CD:
uma discoteca básica da música popular brasileira, alega sobre Gil: “Admirador do
trabalho do cantor e compositor Bob Marley, foi um dos principais responsáveis pela
introdução do ritmo jamaicano no Brasil.”910 O antropólogo inglês Paul Gilroy, no livro O
Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência, apresenta a difusão do reggae como
exemplo da “inovação cultural transnacional diaspórica” a partir de Londres, e atribui a
inspiração para o surgimento do ritmo jamaicano ao sucesso do grupo estadunidense de
907
Livreto. Gilberto Gil. Realce. Warner. 1979. (Coleção Gilberto Gil. 70 Anos. Vol. 1.) Innovant. 2011, p.
21.
908
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 164.
909
Gilberto Gil. Logunedé (Gilberto Gil). Realce. Warner. 1979. Faixa 04, Lado B. <
https://www.youtube.com/watch?v=rgwQx9eLRRY>
910
MIGUEL, Antonio C. Guia de MPB em CD: uma discoteca básica da música popular brasileira. 1999,
p.131
332
doo wop e soul The Impressions no Caribe.911 Argumento instigante para pensar o contato
de Gilberto Gil com o gênero durante o seu período de exílio em Londres. Mas também no
Brasil a difusão do reggae é sugerida a partir do impacto da Black Music anglófona,
conforme referenciado pelo historiador Amílcar Araújo Pereira na obra O Mundo Negro:
Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil, ao
retratar as influências do contato com a música soul para a construção de identidades
negras no Brasil. Uma entrevista com o militante Carlos Alberto Medeiros, citada pelo
historiador, explícita essa conexão no Brasil: “Eu falo do soul e seus filhotes. O reggae é
um filhote do soul – o Bob Marley era cantor de soul.”912
911
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. 2012, p. 197.
912
PEREIRA, Amílcar Araújo. O Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 171.
913
Gilberto Gil. Não chore mais/Macapá. Compacto. Warner. 1979.
914
Livreto. Gilberto Gil. Realce. Warner. 1979. (Coleção Gilberto Gil. 70 Anos. Vol. 1.) Innovant. 2011, p.
13.
915
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. 2014, p.
386.
333
916
< https://www.vagalume.com.br/news/2012/03/22/jorge-ben-jor-completa-70-anos-confira-algumas-das-
revolucoes-que-ele-fez-em-nossa-musica.html> e < https://blogdomauroferreira.blogspot.com/2009/12/salve-
jorge-e-sua-obra-fundamental-para.html> Acesso 15/08/2021.
917
Jorge Ben. Menina Crioula (Jorge Ben). Salve simpatia. Álbum. Som Livre. 1979. Faixa 02, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=CWUtAwKMV-U>
918
Boca Livre. Boca Livre. Álbum. Independente. 1979. Reedição em CD. Warner. 1998.
919
COSTA, I. C. Apud. DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização
da cultura. 2008, p. 136.
334
de 80 mil cópias (feito notável para um álbum que não teve o apoio de uma grande
gravadora e distribuído de ‘porta em porta’).”920
920
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 204.
921
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 203. Importante não
confundir essa “vanguarda paulista” da nomenclatura dada ao trabalho de Elza Soares a partir de 2015,
conforme citado na introdução do primeiro capítulo desta tese.
922
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2008,
p.140.
923
DIAS, Marcia T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e a mundialização da cultura. 2008,
p.142.
335
artísticas. De tal forma, as gravações lançadas pela cena independente muitas vezes
apresentavam maior grau de ousadia e experimentação, como os casos dos nomes da
“vanguarda paulista”: Arrigo Barnabé, o Grupo Rumo, Premeditando o Breque e Itamar
Assumpção – o único negro entre os artistas independentes então citados. E, no caso de
Itamar Assumpção, a experimentação de sua produção musical incluía um uso expressivo
das sonoridades da Black Music. O artigo Música popular experimental: Itamar
Assumpção, a vanguarda paulista e a tropicália, de Sean Stroud, informa sobre o cenário
de liberdade criativa na produção independente, ao comparar a boa recepção de crítica ao
primeiro lançamento fonográfico de Itamar e a dificuldade do artista de se inserir nas
grandes gravadoras:
O que é bem intrigante é como essa aprovação unânime da imp rensa da música
de Assumpção estava diametralmente oposta à maneira como ele foi rejeitado
categoricamente por inúmeros grandes selos musicais durante o final da década
de 1970. Essa rejeição centrava-se na percepção da falta do elemento comercial
em sua música e no fato de os executivos fonográficos serem incapazes de
classificá-lo adequadamente. Segundo o próprio Assumpção, quando fazia
audições para os executivos fonográficos, eles com frequência lhe perguntavam
se não tinha “alguns sambas” em seu repertório, além da música mais
idiossincrática que tocava para eles.924
924
STROUD, Sean. Música popular experimental: Itamar Assumpção, a vanguarda paulista e a tropicália.
Trad.: Saulo Adriano. In: Revista USP, São Paulo, n.87, p. 86-97, set/nov. 2010, p. 91.
925
STROUD, Sean. Música popular experimental: Itamar Assumpção, a vang uarda paulista e a tropicália.
Trad.: Saulo Adriano. In: Revista USP, São Paulo, n.87, p. 86-97, set/nov. 2010, p. 90.
336
Fig. 27. Capa e contracapa. Itamar Assumpção. Beleléu Leléu Eu. Álbum. Selo Lira Paulista. 1980. Extraídas
de: < https://www.fatiadodiscos.com.br/pd-79cdb0-lp-itamar-assumpcao-e-banda-isca-de-policia-
beleleu.html>
O álbum Beleléu Leléu Eu. Isca de Polícia, de Itamar Assumpção, apresenta como
faixa síntese e principal a composição “Nego Dito”, não apenas por seu resultado no
Festival Feira da Vila Madalena e gravação pela Continental, mas também por apresentar o
personagem que conduz a história narrada no álbum. Desde a primeira faixa do álbum,
“Vinheta I”, a audição do disco fornece a apresentação do protagonista: Benedito João dos
926
SILVA, Rosa Aparecida do Couto. Itamar Assumpção e a encruzilhada urbana: negritude e
experimentalismo na vanguarda paulista. Tese (His tória). Universidade Estadual Paulista. 2020, p. 24.
927
SILVA, Rosa Aparecida do Couto. Itamar Assumpção e a encruzilhada urbana: negritude e
experimentalismo na vanguarda paulista. Tese (História). Universidade Estadual Paulista. 2020, p. 25.
337
Santos Silva, Beleléu/ Vulgo Nego Dito, Nego Dito, Cascavé.928 Esses mesmos versos de
apresentação são repetidos no final do Lado A do disco, na “Vinheta 2”, na abertura do
Lado B, na “Vinheta 3” e, enfim, na faixa final do álbum, “Nego Dito”, que narra mais
detalhadamente sobre a persona.
928
Itamar Assumpção. Vinheta I (Itamar Assumpção). Beleléu Leléu Eu. Isca de Polícia. Álbum. Selo Lira
Paulistana. 1980. Faixa 01, Lado A.
929
SILVA, Rosa Aparecida do Couto. Itamar Assumpção e a encruzilhada urbana: negritude e
experimentalismo na vanguarda paulista. Tes e (História). Universidade Estadual Paulista. 2020, p. 19, 20.
930
Itamar Assumpção. Luzia (Itamar Assumpção). Beleléu Leléu Eu. Isca de Polícia. Álbum. Selo Lira
Paulistana. 1980. Faixa 02, Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=V1BDQxxccGo>
931
Itamar Assumpção. Fico Louco (Itamar Assumpção). Beleléu Leléu Eu. Isca de Polícia. Álbum. Selo Lira
Paulistana. 1980. Faixa 04, Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=H6cKOPM_onU>
338
Silva Beleléu, Vulgo Nego Dito.932 O álbum de estreia de Itamar Assumpção não veicula as
linguagens antirracistas pela temática das canções, mas é expressivo na interlocução com a
Black Music a partir da produção independente. Para a historiadora Rosa Aparecida do
Couto Silva, porém, a faixa “Nego Dito” traz importantes elementos de representações
sociais dirigidas às pessoas negras no Brasil, posto “que concatena em si alguns
estereótipos colados à imagem de negras e negros, considerados violentos, imprevisíveis e
pouco confiáveis.”933 No entanto, conforme será apresentado neste tópico, a referência à
figura do Nego Dito, Beleléu, em outros trabalhos de Itamar permitirá aprofundar a
reflexão sobre representações raciais.
A audição do álbum Dengo exibe um retorno de Zezé a uma sonoridade eclética, aos
moldes da exibida em seu LP de estreia. A temática predominante é a do romance, como
nas baladas “Remendos”, “Cais escuro” e “Sem essa”, e no samba “Fez bobagem”. E
também faixas de reflexões existenciais, como em “Bola de meia, bola de gude”, composta
por Milton Nascimento e Fernando Brant e gravada no mesmo ano pelo grupo de rock
progressivo 14 Bis. Interlocuções com a sonoridade soul apareciam no baixo e guitarra de
“Sete faces”, de Gonzaguinha, e no baixo e piano elétricos e nos arranjos de metais de
“Oxum”, composição de Johnny Alf em veneração a orixás, que abre o Lado B do disco:
932
Itamar Assumpção. Nego Dito (Itamar Assumpção). Beleléu Leléu Eu. Isca de Polícia. Álbum. Selo Lira
Paulistana. 1980. Faixa 06, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=9zczdWyVO_Y>
933
SILVA, Rosa Aparecida do Couto. Itamar Assumpção e a encruzilhada urbana: negritude e
experimentalismo na vanguarda paulista. Tese (História). Universidade Estadual Paulista. 2020, p. 34.
339
Oxum, senhora bonita/ Xangô não lhe resistiu/ Oxum, senhora bendita/ Meu canto de fé/
Por seu encanto sentiu/ Eu estava na cachoeira/ e o sol logo refletiu/ e em pingos
resplandecentes/ de ouro, seu leque surgiu/ Ora yê yê Oxum, minha mãe.934 E também no
forte baixo elétrico do baião “Poço fundo”, composição de Gilberto Gil na qual o eu-lírico
reflete sobre a imagem de si diante do ser desejado: Será que assim mereço parecer/ uma
montanha negra/ consagrada ao rito/ dos pactos de amor/ que faço em mim/ pareço com
uma pedra bruta/ preta de granito/ mereço mesmo parecer assim? (...) Pergunto porque
embora a aparência um pouco fria/ nunca estou feia/ nunca estou vazia.935 As referências
a uma montanha negra e à pedra preta de granito, cantadas por uma mulher negra e
compostas por um homem negro explicitam um teor racial que afetam a representação de si
e o olhar do outro em uma relação conjugal.
O compositor da faixa “Poço fundo”, Gilberto Gil, em 1980 não lançou um álbum. O
artista enfrentava uma separação conjugal e anunciou um ano com poucas apresentações -
embora realizou alguns shows com o cantor jamaicano Jimmy Cliff, um expressivo nome
do reggae, e gravaram em dupla um programa especial para a TV Globo. 936 Tim Maia
lançou pela Polydor mais um álbum homônimo, como sucessor de Reencontro, disco
lançado na EMI Odeon em 1979, sem repercussão. Como nos antecessores, Tim Maia
(1980) foi um LP de roupagem disco, com doses de soul e funk e participação expressiva
de Lincoln Olivetti, no qual saiu uma composição que se tornou célebre no repertório do
cantor, “Você e eu, eu e você (juntinhos)”. 937 O disco ainda trouxe uma participação de
Cassiano, que fez vocais de apoio e tocou guitarra na sua composição “Não fique triste”.
Mas, assim como no LP anterior, não trazia referências raciais nas letras das composições.
Alguns artistas da Black Music Brasileira referenciados nos capítulos anteriores e que
não haviam feito lançamentos fonográficos em 1979 retornaram em 1980. Elza Soares
lançou seu primeiro e único álbum pela gravadora CBS. O LP Elza negra, negra Elza
apresentava doze canções distribuídas em dez faixas (a última faixa reunia três
composições), cinco delas compostas por Gerson Alves, que também assinou a produção
artística do álbum. Como no álbum anterior, Pilão+raça = Elza, de 1977, apenas uma
faixa do LP de 1980 apresentava scats, “É isso aí”. Predomina a sonoridade convencional
934
Zezé Motta. Oxum (Johhny Alf). Dengo. Álbum. Atlantic/WEA. 1979. Faixa 01, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=5djb8hJvBlI>
935
Zezé Motta. Poço Fundo (Gilberto Gil). Dengo. Álbum. Atlantic/WEA. 1979. Faixa 05, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=tbszuJW1meI>
936
< https://gilbertogil.com.br/bio/gilberto-gil/> Acesso 17/08/2021.
937
Tim Maia. Reencontro. Álbum. Emi-Odeon. 1979. Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1980.
340
Deus quando criou o mundo/ fez tudo como devia ser/ criou uma filosofia/
crescer, multiplicar e morrer/ Criou os dez mandamentos/ para o mundo ser fiel/
assim seja a vossa vontade/ com sinceridade como é lá no céu/ Não devemos
criticar nossos semelhantes/ Devem se manter distante das coisas alheias
também/ Não deve haver distinção de ambiente nem cor/ tanto o negro como o
branco tem o mesmo sangue/ sente a mesma dor/ No ambiente em que vive um
branco/ pode haver um negro a mais/ O importante na vida/ aqui somos todos
iguais/ E quando acontece uma guerra/ morre o negro e morre o branco/ chora
toda a humanidade/ sem saber a cor do pranto/ a mente fica confusa/ a guerra é
um desespero/ e não se escolhe pela cor/ gente pra morrer primeiro. 939
Embora a maioria das composições de Gerson Alves gravadas por Elza no álbum de
1980 fossem sambas de sonoridade considerada mais convencional à época, na canção
“Oração de duas raças” utilizou-se a sonoridade gospel, de origem estadunidense. Assim, a
mensagem antirracista que prega a igualdade entre pessoas negras e pessoas brancas era
comunicada na canção em interlocução com a Linguagem Política do Orgulho Negro.
Luiz Melodia lançou seu quarto álbum, Nós, em uma terceira gravadora. Após estrear
na Philips, em 1973, e lançar os dois álbuns seguintes na Som Livre, em 1976 e 1978,
agora o artista gravava pela Warner. O álbum abre com “Ilha de Cuba”, composição de
Papa Kid em sonoridade latina, com arranjos e teclados por Lincoln Olivetti. Contudo, a
sonoridade que predomina no álbum é da Black Music, como o blues (“Segredo”) e
particularmente o Soul. Os músicos são ligados à Banda Black Rio, como o saxofonista
Oberdan Magalhães (que toca em 7 das 9 canções do LP), o baterista Luiz Carlos, o
baixista Jamil Joanes e o trombonista Serginho Trombone. Como característico da
produção do artista, a sonoridade soul é hibridada a outros gêneros, em um álbum que
destaca os trabalhos de guitarra realizados por Perinho Santana, em todas as faixas. O disco
não apresentou composições que abordassem linguagens antirracistas, embora Luiz
938
Elza Soares. Timbó (Ramon Russo). Elza negra, negra Elza. Álbum. CBS. 1980. Faixa 03, Lado A.
939
Elza Soares. Oração de duas raças (G. Alves). Elza negra, negra Elza. Álbum. CBS. 1980. Faixa 5, Lado
A. < https://www.youtube.com/watch?v=W5o8MnbT930>
341
Alô/ aqui é o Mão Branca/ eu liguei pra dizer que/ esses bandidos, soltos, cruéis
e vagabundos que andam perturbando por aí/ Daqui pra frente é bom tomar
muito cuidado porque o Mão Branca está aqui/ Eles se escondem e pensam que
estão muito seguros, mas sou o dono da situação/ estou lá em cima, lá em baixo,
na frente, atrás do muro, sozinho valho mais que um esquadrão/ Eles assaltam,
batem, matam e violentam, criando um império do terror/ mas são covardes,
fracos, vivem implorando: “Mão Branca, não me mate, por favor”/ Há... É,
gente boa! /Vou dançar todos eles! / (Mas quem é que está falando, quem é
você? /Quem sou eu? Deixa comigo, vou mostrar quem sou!) /A bandidagem
agora, é bom sair das ruas, estou limpando a área pra valer/ Quem tiver culpa,
se manda, ou manda comprar velas, porque vai ser o próximo a morrer/ Olho de
Lince, Pelado, e um forte Manto Negro, são homens que me seguem até o fim/
São gente fina, não gostam de muita violência, mas hoje a gente tem que ser
assim/ Rá, tá, tá! Pá, pá! Zim, ká, ti, bum! São sons que você tem que acostumar/
Essa é a busca que toca a dança do Mão Branca, botando os bandidos pra
dançar/ Ah, há, há, há/ Quero avisar que na baixada estão esperando pelo
Senhor dois presuntinhos desovados... à moda da casa/ É bom ir conferir agora!
/Aqui me despeço, mas amanhã tem mais!941
A longa letra é recitada na canção de forma similar ao gênero musical Rap, com a
base musical em sonoridade funk. A canção interpretava e nitidamente exaltava uma figura
temida do período, posto que Mão Branca era o nome de um Grupo de Extermínio,
formado por policiais e que operava na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Lucas
Pedretti Lima, na dissertação Bailes Soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na
década de 1970, ao pesquisar a documentação da Censura Federal, localizou nos primeiros
meses de 1980 ao menos quatro músicas sobre o Mão Branca: “Todas as obras possuíam
letras semelhantes, com elogios à atuação dos assassinos e menções à prática que o grupo
possuía de ligar para as delegacias e jornais a fim de avisar onde haviam deixado
940
Luiz Melodia. Negro Gato (G. Cortês). Nós. Álbum. Warner 1980. Fx. 05, Lado A. CD. Discobertas,
2012.
941
Mão Branca (G. King Combo). Melô do Mão Branca (Rocha, Carmem, Barro). Compacto. Sinter. 1980.
< https://www.youtube.com/watch?v=tqcShL0WZps >
342
942
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes Soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970.
Dissertação (História). Pontífica Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. 2018, p. 114.
943
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes Soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970.
Dissertação (História). Pontífica Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. 2018, p. 115.
944
Segundo dados do Infopen, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo e, nesta, 64% são
negros e 55% jovens – que são 21,5% da população brasileira. Ver: BORGES, Juliana. O que é
encarceramento em massa? 2018, p. 13, 14.
945
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afro-latino-
americano. Ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 83. Texto original de 1983.
343
Na produção fonográfica do ano 1980 também há o retorno da Banda Black Rio, que
lançou seu terceiro álbum - e último no recorte desta tese -, Saci Pererê, o segundo pela
RCA Victor; além do compacto simples Saci Pererê/Amor natural, lançado pela mesma
gravadora. Esse álbum apresenta uma mudança na sonoridade da banda, com a inclusão de
três baladas (“De onde vem”, “Amor natural” e “Tem que ser agora”), além de manter a
adoção da Disco Music, em particular na música “Miss Cheryl” e na balada “De onde
vem” - composta por Lincoln Olivetti e Ronaldo Barcellos. A canção “Amor natural”
integrou a trilha sonora da telenovela Marina, exibida pela Rede Globo entre 26/05/1980 e
08/11/1980.946 As faixas cantadas no disco apresentavam dois vocalistas, creditados como
Abóbora e Gerson, e nova mudança na formação do grupo, agora com Décio Cardoso no
baixo, Paulinho Braga na bateria e Carlos Darcy no trombone; mantendo o líder Oberdan
Magalhães nos saxofones, Barrosinho no trompete, Claudio Stevenson na guitarra e Jorjão
Barreto no teclado e vocais.
Das nove músicas que integraram o álbum Saci Pererê, seis apresentavam letra
cantada (“Saci Pererê”, “De onde vem”, “Amor natural”, “Profissionalismo é isso aí”,
“Broto sexy” e “Tem que ser agora”) e em nenhuma delas apareciam referências à temática
racial. Contudo, a gravação de “Profissionalismo é isso aí”, composição de João Bosco e
Aldir Blanc que na performance da Banda Black Rio tornou-se um samba-funk, retomava a
temática marginal da criminalidade, mas trazendo elementos interessantes sobre o
cotidiano econômico na época:
Era eu e mais dez num pardieiro/ no Estácio de Sá/ fazia biscate o dia inteiro/
pra não desovar/ E quanto mais apertava o cinto/ mais magro ficava com as
calças caindo/ Sem nem pro cigarro, nenhum pra rangar/ Falei com os dez no
pardieiro/ do jeito que tá, com a vida pela hora da morte e vai piorar/ Imposto,
inflação, cheirando a assalto/ juntamo as família na mesma quadrilha/ nos
organizamo pra contra assaltar/ Fizemos a divisão dos trabalhos/ Mulher,
suadouro, trotuá/ Pivete nas missas, nos sinais/ marmanjo, no arrocho, pó,
chantagem/ balão apagado, tudo o que pintar/ (...) Tenteia, tenteia/ com berro e
saliva fizemo o pé-de-meia/ (...) Hoje tenho status, mordomo, contatos/ pertenço
à situação/ Mas não esqueço os velhos tempos/ Domingo numa so lenidade/ uma
otoridade me abraçou/ bati-lhe a carteira, nem notou/ levou meu relógio e eu
nem vi/ já não há lugar pra amador.947
Através de uma letra bem humorada escrita por Aldir Blanc, a canção
“Profissionalismo é isso aí” abordou a adoção de diversas atividades criminosas como
opção encontrada por um grupo de pessoas para amenizar, ou solucionar, uma situação de
carência. E os últimos versos indicados da canção ainda sinalizam para a corrupção de
946
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/marina-1980/> Acesso 17/08/2021.
947
Banda Black Rio. Profissionalismo é isso aí (J. Bosco/A. Blanc). Saci Pererê. RCA/Victor. 1980. Faixa 2,
Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=-q5jRwFB0bM>
344
Em 1963, o pastor e liderança do Movimento pelos Direitos Civis nos EUA, Martin
Luther King, afirmou em um discurso que o modelo de segregação racial vigente pelas
Leis Jim Crow no sul do país manifestava-se no norte democrático do país através dos
acessos desiguais e precários à empregos, moradia e escolas públicas. 950 A percepção da
desigualdade em uma sociedade na qual pessoas negras são preteridas apesar do
pressuposto de igualdade cabe perfeitamente para o Brasil, como argumentado em diversos
948
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 274.
949
GRANGEIA, Mario L. Pátria amada, não idolatrada: o Brasil no rock dos anos 1980/1990. In:
FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia A N. (orgs.). O Brasil Republicano. Vol. 5. O tempo da Nova
República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-2016). 2018, p. 367.
950
LUTHER KING, Martin. Discurso no comício pela liberdade no Cabo Hall. Um apelo à consciência: os
melhores discursos de Martin Luther King. 2006, p. 63-64.
345
Na canção “Profissionalismo é isso aí”, a Banda Black Rio canta o refrão que narra
com berro e saliva fizemo o pé-de-meia, que significa que pela violência (berro é gíria para
arma de fogo) e falcatruas (saliva) conseguiram construir o fundo econômico que sustentou
o status conquistado pelo narrador. No entanto, coincidentemente, outro significado para a
expressão “pé-de-meia” foi veiculado com atuação da Banda Black Rio no ano 1980,
através da canção “Pé de meia”, faixa de abertura de Demônio Colorido, LP de estreia da
cantora Sandra Sá. Os versos da composição de Sandra ressignificavam a expressão: De
hoje em diante, juro, não falo mais nada/ vou ficar na minha, pode ficar sossegado/ que eu
vou resolver a minha loucura/ eu não sou meia pra ficar no pé de ninguém.953 A faixa é
um soul dançante, com o arranjo por Lincoln Olivetti – que também arranjou no disco a
faixa “É”, composição de tema existencialista de Gilberto Gil, produzida para o álbum
conceitual Refavela, que o compositor lamentou ter de ficar de fora na seleção final do
repertório.954 Das doze faixas do LP de Sandra Sá, outras cinco apresentaram arranjos de
Oberdan Magalhães, duas do guitarrista Perinho Santana, duas do pianista Antônio Adolfo
e as duas últimas por Serginho Trombone.
951
GONZALEZ, Lélia. A juventude negra brasileira e a questão do desemprego. In: Por um feminismo afro-
latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 46. Original de 1979.
952
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político econômica. In: Por
um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 67. Original de 1982.
953
Sandra Sá. Pé de meia (Sandra Sá). Demônio Colorido. Álbum. RGE. 1980. Faixa 01, Lado A.
954
CASTRO, Maurício Barros. O livro do disco. Refavela. 2017, p. 60.
346
O disco foi lançado via selo Disco é Cultura, com direção artística e produção por
Durval Ferreira, que escreveu um texto para a contracapa: “Dentre os novos e bons valores
da MPB, dos últimos dois anos, a voz e a força dessa jovem Sandra Sá, carioca de 24 anos,
me impressionaram vivamente. Me chamaram a atenção principalmente a maneira especial
com que ela trabalha suas letras e sua interpretação personalíssima”. 956 É interessante que,
embora o produtor apresente Sandra como um valor da MPB, a sonoridade predominante
do álbum de estreia é abertamente a Black Music Brasileira, a partir do soul e do funk. A
canção que concedeu notoriedade para Sandra, “Demônio colorido”, composição da
própria, já era uma balada soul-pop, com temática romântica versando um amor lésbico:
Mas eu vou lhe guardar/ com a força de uma camisa/ me despir do pavor/ lhe chamar de
amiga/ 24 horas por dia/ tentando meu juízo/ foi unanimemente eleita/ meu demônio
colorido.957
Fig. 28. Capa e contracapa. Sandra Sá. Demônio Colorido. RGE. 1980. Extraídas de:
< http://djmessias2.blogspot.com/2011/02/1980-sandra-de-sa-demonio-colo rido.ht ml>
955
Para os dados biográficos da artista, ver <http://dicionariompb.com.br/sandra-de-sa/dados-artisticos>
Acesso 11/07/2019.
956
Durval Ferreira, texto de apresentação na contracapa. Sandra Sá. Demônio Colorido. Álbum. RGE. 1980.
957
Sandra Sá. Demônio Colorido (Sandra Sá). Demônio colorido. Álbum. RGE. 1980. Faixa 06, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=gUT4_W_jacA >
347
958
Sandra Sá. Mucama (Ronaldo Malta). Demônio Colorido. Álbum. RGE. 1980. Faixa 04, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=PY04ObA5wZ8>
959
Djavan. Luanda (Djavan). Seduzir. Álbum. EMI. 1981. Faixa 03, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=YE7Ypft_P7o >
348
da canção celebra: A chuva já chegou/ obrigada, meu Deus/ a chuva chegou este mês/ as
coisas que eu plantei crescem/ por causa da chuva já crescem.960
Fig. 29. Capa e contracapa. Djavan. Seduzir. Álbum. EMI. 1981. Extraído de:
< http://dvinil.com.br/produto/djavan-seduzir-1981-emi/>
A partir de 1981, Djavan passou a atuar com um grupo musical fixo, denominado
Sururu de Capote – nome retirado de uma das faixas de seu disco anterior, Alumbramento.
E desde então as composições do artista transitaram entre sambas, outros ritmos regionais
do Brasil e interlocuções com sonoridades da Black Music estadunidense, como o jazz, o
soul e o blues – particularmente nas baladas do artista alagoano. Quanto às temáticas das
composições escritas ou gravadas pelo artista, o diálogo transnacional, como assinalado no
LP Seduzir, foi realizado com o continente africano, ainda que, por vezes, em sonoridades
estadunidenses. No entanto, esse não foi o caso das canções assinaladas acima, “Luanda” e
“Nvula”, que não foram executadas através das sonoridades da Black Music.
Djavan, como Gilberto Gil, integra nesta tese a lista de artistas negros identificados
pelo estabelecimento de diálogos com a Black Music no decorrer da carreira,
documentando, nos fonogramas gravados e lançados por eles, a difusão da sonoridade
entre a chamada MPB. Outros artistas comumente associados à MPB trouxeram
incorporações diluídas da Black Music, sem compromisso de identificação restrita a tais
sonoridades, como Luiz Melodia, Emílio Santiago, Zezé Motta e Itamar Assumpção, mas
estes, conforme demonstrado nesta tese, apresentaram tais diálogos desde o seu primeiro
LP. Assim, as carreiras de artistas que promovem uma incorporação diluída da Black
Music diferem de artistas cuja identidade musical é reconhecida como estabelecida na
Black Music Brasileira, como Sandra Sá que, apesar do texto do produtor Durval Ferreira
960
Djavan. Nvula (Felipe Mukenga). Seduzir. Álbum. EMI. 1981. Faixa 05, Lado B. Para a letra traduzida,
ver: < https://djavan.com.br/discografia/seduzir/> Acesso 18/08/2021.
349
para o primeiro álbum associá-la à MPB, ficou conhecida como “a rainha do soul
brasileiro”.961
Como e por que acabaram os bailes soul? A partir de fins da década de 1970, o
Black Rio começou a perder lugar para a música disco. Além disso, autores
apontam outras razões para esse fim: excesso de atenção da mídia, disputa com o
samba, perseguição policial. Ainda não está claro, na literatura, quais fatores
tiveram mais ou menos peso.964
No livro 1976. Movimento Black Rio, dedicado ao estudo dos bailes, os jornalistas
Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octavio Sebadelhe demonstram que o arrefecimento dos
bailes soul operou com a substituição do gênero musical por outras formas musicais, como
a supracitado disco e, particularmente, o charme. É a origem dos Bailes Funk do modo
como ficaram nacionalmente conhecidos a partir dos anos 1990 e 2000. Conforme os
autores, na década de 1980 “a galera dançava o passinho sincronizado, no estilo de eventos
que ficariam reconhecidos como bailes charme”; uma continuidade direta do fenômeno
961
Tal epíteto sobre Sandra pode ser facilmente encontrado em diversas referências sobre a artista, como na
página da Fundação Cultural Palmares, < http://www.palmares.gov.br/?page_id=26901> Acesso 19/08/2021.
962
MUNIZ, Marianna Gomes. Movimento Black Rio e sua influência na construção da identidade negra no Rio de
Janeiro: um estudo das representações no Jornal do Brasil (1976-1977). Monografia (História). Pontifícia
Universidade Católica (PUC) Paraná. 2018, p. 49.
963
VIANNA, Hermano. O Baile Funk Carioca. 1988, p. 32. Apud. MUNIZ, Marianna Gomes. Movimento
Black Rio e sua influência na construção da identidade negra no Rio de Janeiro: um estudo das representações no
Jornal do Brasil (1976-1977). Monografia (História). Pontifícia Universidade Católica (PUC) Paraná. 2018, p. 49.
964
LIMA, Lucas P. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 . Dissertação
(História). Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. 2018, p. 66.
350
difundido nos anos 1970, posto que: “Entre todas as derivações que se seguiram, os bailes
charme carregariam a influência direta dos bailes black, na sua ambiência e na reunião de
um público composto, na sua maioria, por negros e mestiços - mas que se espraiaria por
diversos pontos da cidade durante os anos 1980 e 1990.”965
Sinalizando para esse cenário de declínio da Black Music Brasileira, o ano de 1981
apresentou uma produção fonográfica tímida do gênero ou de suas influências. Para além
da reorientação de Djavan, Gilberto Gil lançou o LP Luar (a gente precisa ver o luar),
primeiro da parceria do artista com o produtor Liminha, que marcaria a produção de Gil
nos anos 1980. A sonoridade do disco avançava no diálogo com o pop estadunidense
realizado em Realce, com ecos soul e funk (nas linhas de baixo de Jamil Joanes e arranjos
de sopros por Oberdan Magalhães, saxofonista do LP, além de outros integrantes da Banda
Black Rio) e elementos disco (com os arranjos e teclados de Lincoln Olivetti e Robson
Jorge). O álbum apresentou canções que se tornaram canônicas no repertório do artista,
como “Palco”, “Flora” e “Se eu quiser falar com Deus”, e na faixa “Axé Babá”, fazia
reverência ao orixá: meu pai Oxalá.966
A maioria dos artistas estudados nesta tese, no entanto, não lançaram álbuns em
1981. Além de Gilberto Gil e Djavan, Jorge Ben lançou o álbum Bem-vinda Amizade, seu
décimo nono LP e, assim como o antecessor, Alô, Alô como vai? (1980), não apresentou a
temática negra antirracista. O repertório de Bem-vinda Amizade destacou a canção
“Curumim chama Cunhatã que vou contar”, popularmente conhecida pelo refrão, todo dia
era Dia de Índio, que manifesta uma atenção do artista às agressões sofridas pelos povos
indígenas no Brasil.967 Já o intérprete Emílio Santiago lançou em tal ano seu oitavo álbum,
Amor de Lua, na mesma gravadora que os cinco discos anteriores, Philips. 968 Conforme
apontado pelo jornalista Mauro Ferreira: “com arranjos de Antonio Adolfo, João Donato e
José Roberto Bertrami (1946-2012), Amor de Lua foi disco formatado com repertório
inédito de alto nível, dominado pelo samba e quase sempre à altura da voz grave e
aconchegante de Emílio Santiago.”969 Assim como não explicitava hibridações com as
sonoridades da Black Music, o álbum também não apresentou letras com a temática
965
SEBADELHE, Zé Octavio; PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 191.
966
Gilberto Gil. Axé Babá (Gilberto Gil). Luar (a gente precisa ver o luar). LP. Warner. 1981. Fx. 02, Ld. B.
967
Jorge Ben. Curumim chama Cunhatã que vou contar (J. Ben). Bem-vinda Amizade. Álbum. Som Livre.
1981
968
Emilio Santiago. Amor de Lua. Álbum. Philips. 1981.
969
< https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/06/26/discos-para-descobrir-em-
casa-amor-de-lua-emilio -santiago-1981.ght ml> Acesso 19/08/2021.
351
antirracista. Por fim, 1981 documentou o retorno de Hyldon ao mercado fonográfico, com
Sabor de Amor, lançado pela Continental, álbum marcado pelas baladas soul características
do artista, mas também canções soul mais dançantes, como a faixa de abertura,
“Vadiagem”, mas sem expressar temáticas raciais. 970
O ano de 1982, contudo, apresentou gravações mais expressivas para o estudo desta
tese. Itamar Assumpção lançou seu segundo álbum, novamente uma gravação
independente, um disco ao vivo emblematicamente intitulado Às próprias custas S. A. O
álbum explicitava a sonoridade elétrica e a interlocução com a Black Music apresentada no
primeiro LP, inclusive na regravação de “Não vou ficar”, de Tim Maia - a gravação em
estúdio que encerra o álbum, como faixa bônus. O disco apresentou um longuíssimo (para
os padrões de um disco) texto no encarte, manuscrito pelo próprio Itamar. O texto foi
escrito no formato de uma declaração judicial, iniciando com o nome completo e números
de documentos de Itamar, concluindo com “Devo confessar que assino esta confissão
debaixo do maior pau, meu irmão. Assinado: Itamar de Assumpção... sob pressão”; e faz
uma apresentação da trajetória artística do cantor, ressaltando um episódio no qual foi
preso injustamente acusado de ter roubado o seu próprio equipamento musical. 971 A injusta
abordagem policial - difícil de não ser associada ao fato de Itamar ser um homem negro -
concede maior sentido ao batismo do conjunto como Isca de Polícia. Embora o texto faça
uma referência como Beleléu, a narração e assinatura é feita sob o nome de Itamar
Assumpção, e a - também assim denominada - Banda Isca aparece não mais ligada ao
personagem Nego Dito, Beleléu, mas como banda de apoio de Itamar Assumpção.
Diferente das canções assinaladas dos discos de Djavan e Gilberto Gil em 1981, no
segundo álbum de Itamar Assumpção as composições que trazem referências raciais
estavam executadas em sonoridades que evocavam a Black Music. A faixa de abertura de
Às próprias custas S.A foi uma versão, com elementos de rock e soul, de “Negra Melodia”,
gravada originalmente por um de seus compositores, Jards Macalé, em 1977, como uma
homenagem a Luiz Melodia. Negra Melodia/ que vem do sangue do coração/ I know how
to dance/ dance like a young black/ American black do Brás do Brasil/ (...) O meu pisante
colorido, o meu barraco lá do Morro do São Carlos/ Meu cachorro Paraíba, minha
970
Hyldon. Sabor de Amor. Álbum. Continental. 1981.
971
Texto de encarte do álbum. Itamar Assumpção. Às próprias custas. S. A. Álbum. Selo Lira Paulistana.
1981.
352
Houve um tempo em que a terra gemia e um povo tremia de tanto apan har/
Tanta chibata no lombo que muitos morriam no mesmo lugar/ Deu bandeira,
dançou na primeira, dançou capoeira, dançou na bobeira, dançou na maior/
Deu canseira, sambou na poeira, tossiu na fileira, dançou pra danar/ O meu pai,
minha mãe, minha avó, tanta gente tristonha que veio de lá/ Minha avó já
morreu, o meu pai lá se foi, só ficou minha mãe pra rezar. Deu bandeira.../ Vez
em quando eu me lembro dos fatos que meu avô contava nas noites de frio/ Não
chorava, porém, não sorria, mentir, não mentia, fing ir, fingir não fingiu. Deu
bandeira.../ Liberdade além do horizonte, morreu tanta gente de tanto sonhar.
(Quem foi?) Foi Zumbi/ A Princesa Isabé assinou um papé, dia 13 de maio de
972
Itamar Assumpção. Negra Melodia (Jards Macalé/Waly Salomão). Às próprias custas S.A. Álbum. Selo
Lira Paulistana. Faixa 01, Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=wbuiGx4VLtQ>
973
Itamar assumiu sua identificação com Luiz Melodia em composição lançada em 1993: Nasceste no Rio,
Estácio, eu em São Paulo, Tietê/ Os nossos passos compassos afirmam ter tudo a ver/ Não só na tonalidade,
também no jeitão de ser/ Circula pela cidade que sou cover de você/ Tu és Perola Negra já desde setenta e
dois/ eu inventei Beleléu só oito anos depois/ Além desta pele preta, coisa comum em nós dois/ Ideias,
músicas, letras, não são só feijão com arroz/ Dizem formamos de fato um belo par de malditos/ te chamam
de Negro Gato, me tratam de Nego Dito/ E já que talento é inato, isto já estava escrito/ Num mundo cheio de
Cratos, nós somos São Beneditos/ No mais sambamos de tudo/ Funk, Soul, Blues, Jazz, Rock and roll/ (...) Só
falta contar agora o que que houve outro dia/ assim que entrei num bar desses de periferia/ alguém começou
a gritar, jurar que me conhecia/ mas no lugar de Itamar, disparou Luiz Melodia. Itamar Assumpção & As
Orquídeas do Brasil. Quem é cover de quem? (Itamar Assumpção). Bicho de sete cabeças. Vol.1. (1993). CD.
SESC. 2010. Faixa 04.
974
VAZ, Toninho. Meu nome é Ébano: A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 129.
353
1888/ desamassa, amassa, amassa, amassa... e agora? Como é que ficou aqui
agora? Deixa pra lá.975
Outra canção emblemática para o tema desta tese lançada em 1982, “Olhos
coloridos” é a faixa de abertura do segundo álbum da cantora e compositora Sandra Sá. O
LP Sandra Sá também teve a direção artística e produção por Durval Ferreira e, tal como
seu antecessor, foi lançado pela gravadora RGE. O álbum, desde a contracapa, valorizava
os companheiros de Sandra nesse trabalho, ao trazer uma foto da cantora junto a um grupo
de homens, incluindo Claudio Stevenson e Oberdan Magalhães, da Banda Black Rio e o
compositor Macau, todos eles identificados com o nome abaixo de sua imagem na foto.
Macau compôs a faixa “Olhos coloridos”, canção que, conforme Luiz Felipe L. Peixoto e
Zé Octávio Sebedelhe, no livro 1976. Movimento Black Rio, tornou-se hino “que ficaria
eternizado na história blackriana, música que até hoje leva multidões a comoção.”977 Os
jornalistas, em sequência, informam sobre o momento no qual Macau e Sandra se
conheceram:
975
Itamar Assumpção. Batuque (I. Assumpção). Às próprias custas. S.A. Álbum. Selo Lira Paulistana. 1982.
Faixa 02, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=19ZWNpptchA>
976
Itamar Assumpção. Denúncia dos Santos Silva Beleléu (I. Assumpção). Às próprias custas. S.A. Álbum.
Selo Lira Paulistana. 1982. Faixa 05, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=wXjhWBoUUvc>
977
SEBADELHE, Zé Octavio; PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 209.
354
Macau lembra do dia em que conheceu Sandra por intermédio do grande músico
e produtor Durval Ferreira, que ouviu pela primeira vez a música “Olhos
coloridos” em fita demo e fez a conexão imediata para a voz da cantora, quando
gravavam o seu segundo LP. “Eu tinha composto a música em 1973, quando
fazia parte da banda Paulo Bagunça e a Tropa Maldita. Quando Durval me
apresentou à Sandra, parecia que a conhecia de outra dimensão, foi como se
tivéssemos tido um reencontro de outras vidas”, recorda-se o compositor
Macau.978
Macau tinha sido preso nos anos 1970, sem motivos, em uma exposição de
escolas públicas no Estádio de Remo da Lagoa, e a experiência indigesta serviu
de inspiração para a música. Diz-se que foi uma prisão injusta porque não havia
flagrante e, na ocasião, as únicas coisas encontradas com ele foram a cor da pele
e o cabelo estilo africano. Era o que bastava. Passeou de camburão a noite toda,
com os policiais rindo de seu cabelo e de suas roupas. Acabou sendo resgatado
no dia seguinte por um padre da Pastoral Penal da Igreja Católica. Macau
reconhece que a barra pesada política e o preconceito racial eram os principais
obstáculos para negros sobreviverem com dignidade na “sociedade carioca”. “O
Luiz já era um nome da MPB, mas o caminho era difícil. A gente era alvo fácil
da polícia, que sempre agia com truculência. Eu, Luiz e Papa Kid éramos três
negões circulando pela cidade.” 980
O relato de Macau sobre a abordagem policial que resultou em sua prisão injusta,
que inspirou a composição de “Olhos coloridos”, aproxima-se do relato de prisão
manuscrito por Itamar Assumpção no encarte de seu segundo LP, também lançado em
1982. De tal forma, o desabafo de Macau dizendo que ele, Luiz e Papa Kid, enquanto
homens negros “circulando pela cidade”, tornavam-se “alvo fácil da polícia” e sua
truculência, explica o sentido do termo Isca de Polícia, escolhido por Itamar para batizar
sua banda de apoio. E o episódio narrado explica também a força dos versos da
composição escolhida para abrir o segundo álbum de Sandra. O funk foi introduzido pelo
acompanhamento solista do violão rítmico de Macau, ao qual juntam baixo, percussão,
bateria, guitarra e naipe de sopros, além de vocais de apoio:
978
SEBADELHE, Zé Octavio; PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 209,
210.
979
SEBADELHE, Zé Octavio; PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. 1976. Movimento Black Rio. 2016, p. 210.
980
VAZ, Toninho. Meu nome é Ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 93.
355
981
Sandra Sá. Olhos coloridos (Macau). Sandra Sá. Álbum. RGE. 1982. Faixa 01, Lado A.
<https://www.youtube.com/watch?v=bo1pg3AJ2wQ>
982
VAZ, Toninho. Meu nome é Ébano. A vida e a obra de Luiz Melodia. 2020, p. 92.
983
Sandra Sá. Preciso urgentemente falar com Cassiano (Fábio/P. Imperial). Sandra Sá. Álbum. RGE. 1982.
Faixa 01, Lado B.
984
< https://djavan.com.br/discografia/luz/> Acesso 20/08/2021.
356
característica gaita de Stevie Wonder – solista por toda a canção. De tal forma, o álbum
Luz, desde a primeira música, explicitou a manutenção de interlocuções com a black music,
sonoridade já sinalizada pelo nome do produtor do LP, conforme mencionado. O disco
tornou-se um dos mais consagrados de Djavan, com canções consagradas em seu
repertório, como “Sina”, “Pétala” e “Açaí”, mas em nenhuma há referências raciais. 985
Tim Maia também retornou à produção independente para lançar, em 1982, Nuvens,
álbum que contou com a participação de Hyldon ao violão na regravação da sua “Na rua,
na chuva, na fazenda” e no dueto vocal em “Sol brilhante”, de Rubens Sabino e Tim Maia,
além do violão de Cassiano na sua balada soul “Nuvens”.988 Segundo Mauro Ferreira, esse
disco pode “ser considerado o marco final do auge artístico desse cantor e compositor”,
posto que, “Após Nuvens, Tim adocicaria progressivamente o soul com o mel falsificado
de baladas industrializadas.”989 O jornalista se refere ao redirecionamento musical de Tim,
que, a partir de 1983, reconquistou o sucesso comercial com o LP O descobridor dos sete
mares, lançado pela pequena gravadora Lança, e que rendeu o sucesso da faixa título e da
balada “Me dê motivos”.990 Estas gravações após 1983, portanto, não se enquadram no
objeto desta tese.
985
Djavan. Luz. Álbum. CBS. 1982.
986
Wilson Simonal. Alegria tropical. Álbum. WM. 1982. Wilson Simonal. Simonal. Álbum. WM. 1983.
987
ALEXANDRE, Ricardo. Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal. 2009, p. 262.
988
Tim Maia. Nuvens. Álbum. Seroma. 1982.
989
< https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/04/01/discos-para-descobrir-em-
casa-nuvens-tim-maia-1982.ght ml> Acesso 20/08/2021.
990
Tim Maia. O descobridor dos sete mares. Álbum. Lança. 1983.
357
Banda Um, segundo LP do artista com a produção de Liminha. Segundo Antonio Carlos
Miguel, no livro Guia de MPB em CD: uma discoteca básica da música popular
brasileira: “Lançado no fim de 1982, esse é o melhor disco de Gil nos anos 80, incluindo
canções como ‘Deixar você’, ‘Drão’, ‘Andar com fé’, ‘Metáfora’ e a sua versão para
‘Esotérico’ (esta lançada em 1976 no disco dos Doces Bárbaros, que dividiu com Bethânia,
Gal e Caetano).”991 O LP não incluiu canções de temática antirracista, porém, na
celebração de valores comunitários, evoca elementos do Candomblé na segunda faixa do
LP, a pop “Afoxé E´”, que menciona a devoção do negro e a benção de Oxalá. Segundo
Gil: “O afoxé como uma forma, celebradíssima, de candomblé de rua - lúdica, em vez de
religiosa.”, mas adverte: “Não é, contudo, o objeto da crença - não é Deus - que é
comentado na canção, ou o que nela comove, mas o humano, demasiadamente humano; o
compromisso do homem com a comunidade.”992 Quanto à sonoridade do álbum, Um
Banda Um marca a ampliação da incorporação do reggae na produção musical de Gil, em
hibridações ecléticas com o pop, os ritmos afro-baianos e a bossa nova.
O contato de Gilberto Gil com o reggae, conforme abordado antes neste capítulo,
iniciou no exílio londrino. Mauricio Barros de Castro, em O livro do disco. Refavela,
ressalta: “No contexto londrino, o encontro com o reggae ganhava contornos políticos.”993
A difusão do gênero musical associava-se à descolonização do Terceiro Mundo, com a
independência da ex-colônia inglesa Jamaica, em 1962. Pensando “nos espaços periféricos
para onde foram empurrados os negros - os guetos dos Estados Unidos, da Europa, do
Caribe e da América do Sul”, o autor ressalta a conexão transnacional de pessoas negras a
partir da música: “Nesses lugares marginais surgiram formas musicais diaspóricas
contemporâneas, criadas entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970, como o funk,
o rap e o reggae.”994 A percepção de uma identidade construída pela situação global de
exclusão teria afetado Gil: “Artista negro, exilado na Europa por uma ditadura militar da
América Latina, Gil tinha muitos motivos para se identificar com a condição marginal e
periférica dos músicos caribenhos na capital da Inglaterra.”995 Tal reflexão aproxima da
realizada por Carlos E. Paiva na tese Black Pau: a soul music no Brasil nos anos 1970, a
991
MIGUEL, Antonio Carlos. Guia de MPB em CD: uma discoteca básica da música popular brasileira.
1999, p. 134. Gilberto Gil. Um Banda Um. Álbum. Warner. 1982.
992
< https://gilbertogil.com.br/producoes/detalhes/um-banda-um/> Acesso 20/08/2021.
993
CASTRO, Mauricio Barros. O livro do disco. Refavela. 2017, p. 39.
994
CASTRO, Mauricio Barros. O livro do disco. Refavela. 2017, p. 40.
995
CASTRO, Mauricio Barros. O livro do disco. Refavela. 2017, p. 40.
358
partir da discussão proposta pelo teórico jamaicano Stuart Hall sobre a aproximação de
identidades subalternas no processo de globalização:
Como exemplo o autor assinala que nos anos 1970 o significante black forneceu
um foco de identificação que abrangia tanto as comunidades afro -caribenhas,
quanto as comunidades asiáticas em território britânico. O fato é que, apesar de
não representarem culturalmente a mesma coisa, essas comunidades eram vistas
e tratadas “como a mesma coisa” pela cultura dominante. A exclusão dessas
comunidades formulava um “eixo comum de equivalências”. 996
Ainda, dentro da estetização da raça que apela para o uso do cabelo na textura
crespa natural, encontramos mais um estilo: o rastafari. Nesse ponto, retomo as
análises de Mercer (1994, p. 126). Segundo o autor, na realidade rastafari é uma
996
PAIVA, Carlos Eduardo. Black Pau. A soul music no Brasil nos anos 1970. Tese (Ciências Sociais).
Universidade Estadual Paulista. 2015, p. 73.
997
Luiz Melodia. O sangue não nega (L. Melodia/R. Augusto). Felino. Álbum. Ariola. 1983. Fx. 01, Lado A.
998
GOMES, Nilma L. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2008, p. 200.
359
Fig. 30. Capa e contracapa. Luiz Melodia. Felino. Álbum. Ariola. 1983. Extraídas de:
< https://genius.com/albums/Luiz-melodia/Felino>
O ano de 1983 marcou o retorno de Carlos Dafé à indústria fonográfica, que lançou
seu quarto álbum, De repente, pela gravadora RCA, disco que contava com arranjos feitos
por músicos que fazem ou fizeram parte da Banda Black Rio: o saxofonista Oberdan
Magalhães, o guitarrista Claudio Stevenson e o baterista Luiz Carlos, além de José Roberto
Bertrami, João W. Plinta, Pique e Reinaldo Arias. As dez faixas do LP diferenciavam dos
dois últimos do artista ao afastarem do samba e apresentarem a sonoridade predominante
de baladas soul. No entanto, nenhuma das faixas abordaram temáticas raciais. 1000 Arranjos
de Reinaldo Arias, Claudio Stevenson e Oberdan Magalhães também apareceram no
terceiro álbum de Sandra Sá, Vale tudo, que contou, ainda, com arranjos de Serginho
Trombone e Tim Maia e, em metade do disco, arranjos por Lincoln Olivetti. Tim arranjou
e cantou na faixa título, de sua autoria, canção de roupagem disco que se tornou o primeiro
grande sucesso de Sandra.1001 O disco também apresentou “Candura”, composição de
Cassiano e Denny King. A balada soul “Onda negra”, composição de Irineia Maria e
arranjo de Lincoln Olivetti, celebra: Uma forma de beleza/ colorido de real valor/ um
calor, uma energia boa/ uma onda negra de amor.1002 Única faixa do LP que sugeriu uma
dimensão racial ao positivar a cor negra na letra amorosa.
Gilberto Gil lançou em 1983 seu terceiro álbum na parceria com o produtor
Liminha, Extra, mantendo o direcionamento de sonoridade dos últimos dois discos,
articulando o pop a outros gêneros, como o reggae da faixa título. A sonoridade funk ecoa
na faixa pop “Funk-se quem puder”, cujo trecho funk-se quem puder/ se é hora da barca
virar/ não entre em pânico/ jogue-se rápido/ nade de volta à mãe África, aborda a conexão
tríplice transnacional entre a ascendência africana expressa no Brasil a partir de um gênero
musical estadunidense.1006 O disco também apresentou a canção “Punk da periferia” que
polemizava com a expressão de cultura jovem Punk, que integrava a nova forma de rock
para a qual então se direcionava a indústria fonográfica, comercializada pelos termos Rock
Nacional ou Rock Brasileiro.
1003
Emílio Santiago. O amigo de Nova York (Macau/Durval Ferreira). Mais que um momento. Álbum.
Philips. 1983. Faixa 01, Lado A. < https://www.youtube.com/watch?v=78ixTH78q BU>
1004
Emílio Santiago. Nego John (Carlos Conceição). Mais que um momento. Álbum. Philips. 1983. Faixa 01,
Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=yZa_zPt07LE>
1005
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 182.
1006
Gilberto Gil. Funk-se quem puder (Gilberto Gil). Extra. Álbum. Warner. 1983. Faixa 01, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=NdlwRakOeks >
361
Uma aproximação explícita com o Rock Brasileiro foi realizada por Sandra Sá em
seu quarto álbum, lançado pela Som Livre. Neste LP, Sandra Sá, a cantora gravou
acompanhada do grupo Barão Vermelho o rock “Sem conexão com o mundo exterior”,
composição de dois membros do conjunto, Frejat e Cazuza. Conforme indicado no texto do
encarte do álbum, de autoria não creditada, a cantora mostrava-se eclética, “Forte, inteira,
sem rótulos ou medos”; e distanciando da identificação restrita à Black Music Brasileira:
1007
Pena Schidt. Entrevista à autora. DIAS, Marcia. T. Os donos da voz. Indústria fonográfica e
mundialização da cultura. 2008, p. 89.
1008
DIAS, Marcia. T. Os donos da voz. Indústria fonográfica e mundialização da cultura. 2008, p. 89.
362
“Sandra neste LP incorpora e transcende seu passado de ‘rainha do funk’ (...) esta ousada
garota do subúrbio carioca de Pilares se revela completa, cantando de blues a samba-
enredo, de rock a pontos de candomblé.”1009 Sandra estreou na Som Livre com sua
gravação do samba “Enredo do meu samba”, composição de Dona Ivone Lara e Jorge
Aragão, dois nomes expressivos da escola de samba Cacique de Ramos, gravada para ser
tema de abertura da telenovela Partido Alto, exibida pela Rede Globo entre 07/05/1984 e
23/11/1984.1010 Mudar de gravadora concedeu maior visibilidade ao trabalho de Sandra,
contudo, pôs fim à parceria da cantora com Durval Ferreira, produtor dos três discos
anteriores da cantora, compositor de algumas faixas e quem a apresentou ao compositor
Macau. O novo trabalho foi produzido pro Guto Graça Mello.
Também pela gravadora Som Livre, foi lançado em 1984 o vigésimo primeiro
álbum de Jorge Ben, Sonsual, sucessor de Dádiva, de 1983. Em Dádiva, a faixa de
abertura, “Eu quero ver a rainha”, apresentou um dueto de Jorge com Tim Maia, mas
nenhuma faixa foi expressiva para o estudo da presente tese. Sonsual seguiu as mesmas
características, contudo, conforme assinalado na dissertação do musicólogo Alam D’Ávila
do Nascimento, “Para Animar a Festa”. A música de Jorge Ben Jor: “Em três versos da
letra de ‘Irene Cara Mia’, terceira faixa deste LP, Jorge apresenta uma interessante síntese
1009
Texto de encarte. Sandra Sá. Sandra Sá. Álbum. Som Livre. 1984.
1010
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/partido -alto/> Acesso 21/08/2021.
363
de sua música: ‘minha música suburbana urbana/ com raízes africanas e oriental/ com
ligeiro toque universal’.”1011 Emílio Santiago lançou a sequência de Mais que um
momento, o álbum Tá na hora, também amparado na Black Music, porém, conforme
assinalado pelo jornalista Mauro Ferreira: “Mas já é um álbum empapuçado dos
sintetizadores que deram o tom tecnopop dos anos 1980.”1012 A faixa “Revelação” é uma
parceria de Macau com Nelson Motta, porém, não apresentava referências raciais, assim
como as demais faixas deste que foi o último LP de Emílio lançado no recorte desta tese.
Em 1988 o artista lançaria seu próximo álbum, Aquarela Brasileira, que, conforme Mauro
Ferreira: “Com discos de repertórios pautados por medleys de sucessos alheios, a série
gerou sete volumes lançados entre 1988 e 1994 pela gravadora Som Livre, e deu a Emílio
o sucesso popular contínuo que ele nunca tinha obtido até então”. 1013
Zezé Motta também lançou em 1984 seu último álbum no recorte desta tese, o
quarto de sua carreira, Frágil Força, pela gravadora Pointer. A faixa título, “Frágil força” é
um blues pop composto pelo “padrinho artístico” de Zezé, Luiz Melodia. O LP teve a
produção de Elodi e o acompanhamento e arranjos por uma banda musical fixa, o Grupo
Água Marinha, composto por Luiz Lopes (piano elétrico, acústico e teclados), Albino
Infanttozzi (bateria e percussão), Pedro Infanttozzi (baixo) e, nas guitarras, Don Beto – que
lançou o álbum Nossa Imaginação em 1978, conforme mencionado no início deste
capítulo. A sonoridade do disco era reforçada por vocais de apoio e um naipe de sopros.
1011
NASCIMENTO, Alam D’Ávila do. “Para animar a festa”. A música de Jorge Ben Jor. Dissertação
(Música). Universidade Estadual de Campinas. 2008, p. 46. Jorge Ben. Sonsual. Álbum. Som Livre. 1984.
1012
< http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/post/cinco-albuns-voltam-ao-catalogo-com-outros-
tons-da-aquarela-de-emilio.html> Acesso 21/08/2021.
1013
< http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/post/cinco-albuns-voltam-ao-catalogo-com-outros-
tons-da-aquarela-de-emilio.html> Acesso 21/08/2021.
1014
Zezé Motta. Negrito (Belizário/Paulinho Rezende). Frágil Força. Álbum. Pointer. 1984. Faixa 01, Lado
A. < https://www.youtube.com/watch?v=P2yy_lllAsk>
364
essa força da negra mulher/ ser bendita filha de Odé/ tem que ter Axé/ a dança dessa
menina/ me encanta e me fascina/ corpo negro, vem, me fala/ vem, invade a minha
alma.1015 Canção que reverencia o orixá caçador Odé ao ressaltar a força da mulher negra.
As canções “Angorá”, “Romântico” e “Prateia” ainda retomavam elementos da sonoridade
soul, mas sem abordar dimensões raciais.
Em 1984, Gilberto Gil compôs uma série de canções para o filme Quilombo, de
Cacá Diegues. As canções celebraram o Quilombo dos Palmares, as lideranças Ganga
Zumba e Zumbi e a figura de Dandara. No entanto, a trilha foi lançada em álbum apenas
no mercado europeu, pela WEA.1016 De tal forma, não sendo lançado no Brasil durante a
década de 1980, o LP Quilombo não compõe a documentação fonográfica desta tese. O
álbum lançado por Gil no Brasil em 1984 foi Raça Humana, mantendo as sonoridades pop
e reggae apresentadas nos álbuns anteriores e a produção de Liminha, mas, conforme
assumido por Gil, aproximando ao Rock Brasileiro. 1017 O LP apresentou outras canções
que ficaram consagradas no repertório do artista, como “Tempo rei” e “Vamos fugir” e
documentou Gil utilizando apenas guitarras, diferenciando dos discos anteriores, no qual o
artista tocava predominantemente violões.
O branco inventou que o negro/ quando não suja na entrada/ vai sujar na saída,
ê/ Imagina só/ que mentira danada, ê/ Na verdade a mão escrava/ passava a
1015
Zezé Motta. Dança (Djalma Luz). Frágil Força. Álbum. Pointer. 1984. Faixa 01, Lado B.
< https://www.youtube.com/watch?v=T9nake_9m_8>
1016
< https://gilbertogil.com.br/bio/gilberto-gil/> Acesso 21/08/2021.
1017
< https://gilbertogil.com.br/producoes/detalhes/raca-humana/> Acesso 22/08/2021.
1018
< https://gilbertogil.com.br/producoes/detalhes/raca-humana/> Acesso 22/08/2021.
365
vida limpando/ o que o branco sujava, ê/ imagina só/ o que o negro penava/ Eta
branco sujão/ Mesmo depois de abolida a escravidão/ negra é a mão/ de quem
faz a limpeza/ lavando a roupa encardida, esfregando o chão/ negra é a mão da
pureza/ Negra é a vida consumida ao pé do fogão/ negra é a mão/ nos
preparando a mesa/ limpando as manchas do mundo com água e sabão/ negra é
a mão/ da imaculada nobreza.1019
Djavan lançou pela gravadora CBS seu sexto álbum em 1984, Lilás, que desde a
faixa título, abrindo o disco, expressava a sonoridade pop, novamente em gravação
realizada nos EUA. Conforme texto sobre o LP na página oficial do artista na WEB,
“Nesse álbum, o que se ouve é a mesma sensibilidade poética e musical de sempre com
uma linguagem totalmente pop e atualizada para os padrões internacionais da época.”1020
No entanto, a partir da segunda faixa, “Infinito”, é perceptível a influência soul,
particularmente nas linhas de baixo elétrico, nítidas em várias canções do álbum, assim
como execuções de guitarra funk. A faixa “Obi” é um samba em sonoridade mais
convencional que faz referência à África e a orixás, como Obá e Logunedé (com a sua
saudação, Logun), e pelo próprio título da canção, pois Obi, segundo o Dicionário de
Cultos Afro-brasileiros, é: “Fruto da palmeira africana (...) É imprescindível no
candomblé, onde é oferecido aos orixás ou usado na adivinhação simples”.1021
1019
Gilberto Gil. A mão da limpeza (Gilberto Gil). Raça Humana. Álbum. Warner. 1984. Faixa 02, Lado B.
<https://www.youtube.com/watch?v=3nId4SUxlns >
1020
<https://djavan.com.br/discografia/lilas/> Acesso 22/08/2021.
1021
CACCIATORE, Olga G. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. 1977, p. 184.
1022
Carlos Dafé. Um estranho no ninho/Deixa pra lá. Compacto. RGE. 1984.
1023
< https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/livre-para-voar/trilha-sonora/> Acesso
22/08/21.
366
e sem apresentar temas raciais.1024 Elza Soares também retornou ao mercado fonográfico
com um novo LP, após um hiato de cinco anos. A cantora obteve notoriedade nos círculos
da MPB em 1984, por seu dueto com Caetano Veloso no samba-rap “Língua”, lançada no
álbum Velô do compositor. O novo álbum de Elza, Somos todos iguais, ao ser intitulado
por uma das faixas, diferenciou da tendência dos últimos álbuns de Elza,
Pilão+Raça=Elza (1977) e Elza Negra, Negra Elza (1980), nos quais os títulos pareciam
evocar uma afirmação racial enquanto negra, talvez em busca de distanciar do estereótipo
de “mulata” fixado à cantora na década de 1960.
Somos todos iguais foi lançado pela gravadora Som Livre mas, conforme
informado na contracapa do LP, com Elza Soares “cedida” pela Recarey. A sequência
inicial do álbum, “Osso, pele e pano”, “Mais uma vez” e “Da fuga de sua verdade”,
evidenciava a manutenção na sonoridade mais convencional de sambas, conforme
predominante nas gravações de Elza desde o início da década de 1970. Contudo, a cantora
gravou outros gêneros musicais, como a salsa “Somos todos iguais”; a versão de um
standard jazzístico, “Sophisticated Lady”, dueto com Caetano Veloso e com letra em
inglês e português; o blues jazzístico “Exagero”; o rock “Milagres”, de Frejat e Cazuza, do
Barão Vermelho; e o samba-jazz “Daquele amor, nem me fale”. Demonstrava um trabalho
mais eclético do que os anteriores de Elza. A cantora ainda regravou “Heróis da liberdade”,
originalmente gravada por ela em 1969 e que tematiza a memória da escravidão e da busca
pela liberdade pelas pessoas escravizadas – aqui, cantada em voz e violão, e nos segundos
finais, a entrada de forte percussão de samba enredo.1025
Gilberto Gil lançou em 1985 seu décimo sexto álbum de estúdio, Dia Dorim, Noite
Neon. O disco aprofundou a aproximação do artista com o Rock Brasileiro através da
citação a vários nomes do gênero em “Roque Santeiro, o Rock” e na participação de
Herbert Vianna, do grupo Paralamas do Sucesso, na guitarra do blues “Seu olhar”. O disco
encerrou a parceria de Gil com o produtor Liminha e também a produção do artista no
recorte desta tese. O LP seguinte de inéditas de Gil saiu somente em 1989, O Eterno Deus
Mu Dança, produzido por Celso Fonseca; mas nesse intervalo o cantor lançou duas trilhas
sonoras de filmes, Jubiabá (1986) e Um trem para as estrelas (1987), um disco ao vivo em
voz e violão, Em concerto (1987) e duas gravações para o mercado internacional, a
coletânea Soy Loco por ti América e o Ao vivo em Tóquio - lançado apenas no Japão. O
1024
Carlos Dafé. O trem da gente. Álbum. Acorde. 1985.
1025
Elza Soares. Somos todos iguais. Álbum. Som Livre. 1985.
367
relativo intervalo na produção do artista dialogava com o contexto nacional. O Brasil vivia
um processo de reabertura política que, em 1985, proporcionou a eleição indireta de um
primeiro presidente civil após vinte e um anos de ditadura militar. Gilberto Gil ingressou
na esfera da política, primeiro na gestão da Fundação Gregório de Matos, órgão municipal
de cultura de Salvador (1987) e depois como vereador em Salvador pelo Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). 1026
No álbum Dia Dorim, Noite Neon, Gilberto Gil lançou “Oração pela Libertação da
África do Sul”, um manifesto que evidenciava as amplas conexões transnacionais das
culturas negras e da luta antirracista. Afinal, a composição é um reggae, gênero jamaicano
que Gil conheceu com migrantes negros do país na Inglaterra, mas se tornou mundialmente
conhecido pela indústria fonográfica dos EUA, e que aqui tematiza a luta antirracista na
África do Sul, composta em português por um artista brasileiro. Portanto, a composição
indicia interlocuções entre comunidades negras de quatro países em dois continentes:
Brasil, Jamaica, EUA (das Américas do Sul, Central e do Norte) e África do Sul (África).
A música foi introduzida pelo aviso de Gil: Esta música é dedicada ao físico nuclear
Mário Schenberg, quem encomendou a composição a Gil, como explicado pelo artista:
“[ele] queria uma música sobre a África do Sul. Eu ainda disse: ‘Nós temos feito protestos,
manifestações, assinado manifestos contra o apartheid e tal.’ E ele: ‘Mas não é o suficiente;
é preciso uma canção’.”1027 Embora o motivo para a composição tenha sido uma
encomenda, tal fato não diminui a expressão antirracista do ato realizado pelo artista e
tampouco a intenção de intervenção política dos versos:1028
Se o rei Zulu já não pode andar nu/ salve a batina do bispo Tutu/ Ó Deus do céu
da África do Sul/ tornai vermelho todo o sangue azul/ Já que vermelho tem sido
todo o sangue derramado/ todo corpo, todo irmão chicoteado/ Senhor da selva
africana, irmã da selva americana/ nossa selva brasileira de Tupã/ fazei com
que o chicote seja por fim pendurado/ revogai da intolerância a lei/ devolvei o
chão a quem no chão foi criado/ Ó Cristo Rei, branco de Oxalufã/ zelai por
nossa negra flor pagã/ sabei que o Papa já pediu perdão/ varrei do mapa toda a
escravidão.1029
1026
< https://gilbertogil.com.br/bio/gilberto-gil/> Anos 1987 e 1988. Acesso 23/08/2021.
1027
< https://gilbertogil.com.br/producoes/detalhes/dia-dorim-noite-neon/> Acesso 23/08/2021.
1028
Esse argumento retoma a reflexão de Quentin Skinner quanto às intervenções políticas realizadas na
produção intelectual como ato de fala. Para o autor: “Falar de motivos de um autor implica, invariavelmente,
falar de uma condição que antecedeu e está relacionada de forma contingente – o nascimento das suas obras”
(p. 138). Enquanto as “intenções permite-nos caracterizar aquilo que o autor estava a fazer – ou seja, ser
capaz de afirmar que ele ou ela pretendiam, por exemplo, atacar ou defender um argumento em particular,
criticar ou desenvolver uma tradição específica de discu rso, e por aí diante.” SKINNER, Q. Motivos,
Intenções e Interpretação. In: Visões da política. Sobre os métodos históricos. 2002, p. 142.
1029
Gilberto Gil. Oração pela Libertação da África do Sul (Gilberto Gil). Dia Dorim Noite Neon. Álbum.
Warner. 1985. Faixa 02, Lado B. < https://www.youtube.com/watch?v=JkJbGr-_mB0>
368
A expressão de apoio à luta contra a segregação racial na África do Sul por artistas
negros articulados à Black Music Brasileira também foi identificada nos últimos trabalhos
de Djavan no recorte temporal desta tese. Em 1986, o artista alagoano lançou Meu Lado,
álbum gravado com sua banda, Sururu de Capote, no Rio de Janeiro - diferenciando de Luz
e Lilás, gravados em Los Angeles, nos EUA. 1032 O LP ficou conhecido pela faixa “Meu
bem querer”, que, segundo a página oficial de Djavan na WEB: “é uma balada de acento
blues, com letra ultra-romântica.”; e, conforme a página: “No esforço internacional de
combater o Apartheid, que em 1986 ainda separava oficialmente brancos ricos e negros
pobres e oprimidos na África do Sul, Djavan gravou o ‘Hino da Juventude Negra da África
1030
PEREIRA, Analúcia D. A Revolução Sul-Africana. Classe ou raça, revolução social ou libertação
nacional? 2012, p. 23.
1031
PEREIRA, Analúcia D. A Revolução Sul-Africana. Classe ou raça, revolução social ou libertação
nacional? 2012, p. 117.
1032
Djavan. Meu lado. Álbum. Sony Music. 1986.
369
do Sul’, acompanhado de grupo vocal daquele país.”1033 O Hino da Juventude Negra foi
gravado no idioma original como faixa de encerramento do álbum, intitulado, assim, “So
Bashiya Ba Hlala Ekhaya” (traduzido ao português, “Vamos deixar nossos pais”). A
penúltima faixa do LP era o hino do Congresso Nacional Africano, “Nkosi Sikelel’ L-
Afrika” (“Abençoe a África, oh! Senhor”). 1034 Ambas foram gravadas em respeito à
sonoridade original, sem diálogos com outros gêneros.
O álbum Não é azul mas é mar foi o último lançamento de Djavan no recorte desta
tese - seu próximo disco saiu em 1989 e com o enorme sucesso “Oceano”. O álbum
também foi um dos dois únicos identificados pela pesquisa desta tese para o ano de 1987.
O outro foi o sexto álbum de Luiz Melodia, Claro, lançado pela gravadora Continental,
com produção de Oscar Paolillo, arranjos e instrumentistas não creditados e no qual a
única faixa que trazia alguma referência racial foi “Malandrando”, samba em sonoridade
convencional ao gênero, que faz referência a Tia Ciata como “mãe preta”, citando a
memória da escravidão e a figura do “mulato” como legítimo da nação. 1037 No entanto, se
1033
<https://djavan.com.br/discografia/meu-lado/> Acesso 23/08/2021.
1034
Traduções dos títulos extraídas da página oficial do artista, na qual também constam as letras traduzidas.
<https://djavan.com.br/discografia/meu-lado/> Acesso 23/08/2021
1035
< https://djavan.com.br/discografia/nao-e-azul-mas-e-mar/> Acesso 23/08/2021.
1036
Djavan. Soweto (Djavan). Não é azul mas é amor. Álbum. Sony Music. 1987. Faixa, 01, Lado A.
<https://www.youtube.com/watch?v=wrC-orL1cik>
1037
Luiz Melodia. Malandrando (L. Melodia/ Perinho Santana/ Silvio Lana). Claro.LP. Continental. Fx 2, Ld
B
370
1987 houve apenas dois álbuns, em 1986 ainda teve outros registros, além dos de Gilberto
Gil e Djavan, abordados acima.
Sandra Sá retornou com álbum lançado pela gravadora RCA, dirigido por Miguel
Plopschi e produzido pelo mais eficaz compositor de sucessos radiofônicos da década, o
hitmaker Michael Sullivan. Segundo André Barcinski: “O domínio de Sullivan e Massadas
na cena musical ganhou um forte empurrão com a chegada do executivo Miguel Plopschi à
gravadora RCA, em 1983.”1038 E o LP de Sandra parece confirmar o argumento. Sandra Sá
iniciava com duas composições de Michael Sullivan e Paulo Massadas que reforçavam a
característica das produções da dupla: canções que respeitavam a identidade musical dos
intérpretes, mas com apelo e – geralmente – sucesso comercial:1039 a balada soul “Retratos
e canções” e o funk “Joga fora”, ambas em arranjos com maior diálogo com o pop. Tim
Maia já tinha estourado nas paradas de sucesso com composições da dupla em seu
redirecionamento à sonoridade pop, com as baladas “Me dê motivo” (1983) e, em dueto
com Gal Costa, “Um dia de domingo” (1985). E as duas canções interpretadas por Sandra
nesse disco de 1986 também conquistaram sucesso, assim como a balada soul “Solidão”
(Chico Roque/Carlos Colla) e o funk antirracista “Olhos coloridos” (Macau), que se tornou
mais conhecido (e sua mensagem mais difundida) ao ser regravado neste LP de destaque
na discografia da artista.1040 As outras faixas do disco, porém, eram na sonoridade pop da
época, sem diálogo com a Black Music.
A sonoridade pop então em voga, evidenciada pelos timbres eletrônicos e forte uso
de sintetizadores, também apareceu imiscuída ao samba em Ben Brasil, álbum lançado por
Jorge Ben em 1986, seu último registro na gravadora Som Livre e último também no
recorte desta tese. Embora na faixa “O amante vigilante africano” evocasse a ascendência
africana e saudasse salve Oxalá, e em “A fonte de Paulus V” saudasse o machado de
Oxóssi, o disco não apresenta maiores expressões antirracistas e pouco das sonoridades da
Black Music.1041
Por fim, o ano de 1986 apresentou o terceiro álbum gravado por Itamar Assumpção,
Sampa Midnight – Isto não vai ficar assim. O disco também foi lançado através do cenário
independente, mas pelo selo Mifune Produções Artísticas, posto que o Selo Lira
1038
BARCINSKI, André. Pavões Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2015, p. 201.
1039
Sobre a dupla de compositores e seu enorme sucessos nos anos 1980, ver: BARCINSKI, André. Pavões
Misteriosos. 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil. 2015, p.199-207.
1040
Sandra Sá. Sandra Sá. Álbum. RCA. 1986.
1041
Jorge Ben. Ben Brasil. Álbum. Som Livre. 1986.
371
1042
Sobre o selo Lira Paulistana, ver FRIAS, Gabriela Miranda de. “Entre o sim e o não existe um vão”: um
estudo sobre Itamar Assumpção e o álbum Sampa Midnight (1986). Dissertação (Filosofia). Universidade de
São Paulo. 2020, p. 41, 42. Itamar Assumpção. Sampa Midnight. Álbum. Mifune Produções Artísticas. 1986.
1043
Tal como feito com Luiz Melodia, Itamar Assumpção declarou sua relação com Elza Soares em música.
Contudo, a gravação Elza Soares foi lançada postumamente. Desde que me entendo por gente/ Elza Soares
da vida/ das armas brancas, químicas, quentes/ Música é a preferida/ eu disse/ Desde que me entendo por
gente/ eu sambo, eu faço o que gosto/ my soul is black, meu sangue é quente/ eu quando gosto, me enrosco .
In: Itamar Assumpção. Pretobrás II. Maldito vírgula. SESC. 2010. Faixa 14. Caixa Preta.
1044
FRIAS, Gabriela Miranda de. “Entre o sim e o não existe um vão”: um estudo sobre Itamar Assumpção e
o álbum Sampa Midnight (1986). Dissertação (Filosofia). Universidade de São Paulo. 2020, p. 99.
1045
SILVA, Rosa Aparecida Couto. Itamar Assumpção e a encruzilhada urbana: negritude e
experimentalismo na vanguarda paulista. Tese (História). Universidade Estadual Paulista. 2020, p. 113.
372
Elza Soares também retornou em 1988 com o álbum Voltei, encerrando sua
produção no recorte desta tese com um disco voltado para as composições e sonoridade do
samba de tipo partido alto.1046 Já Sandra de Sá gravou um novo álbum que registrou a
mudança de seu nome, incluindo o conectivo “de”. O LP Sandra de Sá, lançado em 1988
pela RCA, repetiu a direção artística de Miguel Plopschi e a produção de Michael Sullivan.
Embora houvessem três composições da dupla Sullivan e Massadas, a canção que se
tornou mais conhecida do LP foi “Bye, Bye Tristeza”, de Carlos Colla e Marcos Valle.
Quanto às linguagens antirracistas, a conexão com o continente africano apareceu na
quarta faixa do LP, “África”, em sonoridade pop-soul: África, mulher de raça antiga/
África, mistério e magia/ África, selvagem... amiga/ África, negra tão bonita/ (...) Sinto em
mim tua música, tua força de guerreira/ Zimbabwe, celebrando uma imagem
homogeneizada e estereotipada (mistério e magia, selvagem...), mas positiva do continente
africano.1047 E a canção finalizou evocando o país que Tim Maia havia cantado em 1976,
Zimbabwe - quando ainda era a Rodésia, sob domínio da minoria branca.
Sou negro, sim, não tenho vergonha, não/ Desde a abolição que eu luto/ Luz do
cometa luz. Reluz. Sobre nossas cabeças/ A minha cor não deve influir no nosso
amor/ Porque o negro é nascido da flor/ Vá, diga para ele, se a cor da pele é
limpa demais/Vá, diga para eles que a cor da pele é limpa demais! 1049
1046
Elza Soares. Voltei. Álbum. RGE. 1988.
1047
Sandra de Sá. África (Gil Gerson/César Rossini). Sandra de Sá. Álbum. RCA. 1988. Faixa 04, Lado A .
<https://www.youtube.com/watch?v=GQny0n9rasQ>
1048
<http://www.cultne.com.br/central-africana-pioneira-do-reggae-no-brasil-no-cultne/> Acesso
15/07/2019.
1049
Central Africana e Sandra de Sá. Sou negro, sim. Central Africana. Álbum. PluG. 1988. Faixa 02, lado
A.
<https://www.youtube.com/watch?v=Zyq8TiXF9xo>
373
transitando entre o questionamento deste estigma (Vá, diga para ele, se a cor da pele é
limpa demais) para a afirmação oposta ao estigma (Vá, diga para eles que a cor da pele é
limpa demais!), dialogando, assim, com a composição de Gilberto Gil, “A cor da limpeza”.
Embora não seja uma gravação incluída na discografia oficial de Sandra de Sá, a seleção
de “Sou negro, sim” para esta tese é justificada pela escolha da participação da intérprete
para o dueto com o vocalista Papa Ricky interferir na estética mobilizada à canção – um
soul, em um álbum dedicado ao reggae brasileiro.
Outro projeto coletivo de 1988 foi lançado pelo selo Kuarup Discos, Quarteto
Negro, que marcou o retorno de Zezé Motta aos registros fonográficos, acompanhada dos
saxofones e clarinete de Paulo Moura, Djalma Corrêa nas percussões e Jorge Degas, no
violão e baixo. Zezé canta a faixa “Zumbi”, composição de Gilberto Gil e Waly Salomão
da trilha sonora de Quilombo. No filme, lançado em 1984, dirigido por Cacá Diegues, Zezé
Motta interpretou a personagem Dandara, companheira do líder Zumbi e Tony Tornado
interpretou Ganga Zumba, antecessor de Zumbi na liderança de Palmares. Evocando a
imagem de resistência dos quilombos, a canção “Zumbi” trouxe o refrão: A felicidade do
negro é uma felicidade guerreira e os versos Minha espada espalha o sol da guerra/ Meu
1050
Carlinhos Trumpete/Lady Zu/Tony Bizarro/Tony Tornado/Luiz Vagner. Alma negra. LP. Continental.
1988
1051
Tony Tornado. Manifesto (T. Tornado/Gene Araujo). Alma Negra. LP. Continental. 1988. Faixa 5, Lado
A. O artista, a essa época, já assinava com “y” no disco. < https://www.youtube.com/watch?v=1iM7sMAAh-
Q>
374
quilombo incandescendo a serra (...) Brasil, meu Brasil brasileiro/ meu grande terreiro,
meu berço e nação/ Zumbi protetor, guardião padroeiro/ Mandai a alforria pro meu
coração.1052 Canção representativa para o objetivo geral do álbum coletivo. O disco foi
produzido como uma homenagem ao centenário da abolição da escravidão, com a proposta
de misturar sonoridades africanas, da música popular brasileira e sopros jazzísticos.
1052
Quarteto Negro. Zumbi (G.Gil/W. Salomão). Quarteto Negro. Álbum. Curau Discos. 1988. Fx 1, Lado B.
1053
< https://www.youtube.com/watch?v=1NC0YsHQqk8> Acesso 23/08/2021.
1054
O Pasquim, julho de 1969, n°4. Apud. ALONSO, Gustavo. Quem não tem swing morre com a boca cheia
de formiga: Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical. 2011, p. 411-423.
375
“Você é racista?” e Simonal responde: “Não, eu não sou racista, minha mulher é loura, sou
vidrado em loura, em olho verde, olho azul, e não é necessidade de afirmação (...) Mas o
Pelé foi o mais inteligente, porque gênio é em todos os sentidos...”1055 A essa resposta,
outro jornalista do periódico, Jaguar, pergunta “Como é que você encara o preconceito
racial no Brasil?” e Simonal diz:
Acho meio frescura, mas no duro ele existe. (...) E então, por que existe o
racismo? Eu me lembro que quando estava no colégio, eu estudava que a raça
negra era inferior, que o branco era mais bonito, era superior, etc. (...) Quando eu
canto o charme e a beleza negros, não é que eu seja racista, é apenas para provar
para a maioria destes crioulinhos idiotas, que em vez de estudar ficam aí se
marginalizando, que enquanto existirem esses conceitos e o condicionamento do
povo em relação à beleza branca e sua superioridade, este negócio vai existir, vai
demorar um pouco para mudar. Mas para mudar não é com poder negro, pantera
negra e outras frescuras, muda é com educação e o negro mostrando que tem
capacidade de se impor.1056
Os trechos citados acima da entrevista com Wilson Simonal são instigantes quanto
ao entendimento demonstrado pelo cantor para o termo “racismo” e também o
demonstrado por jornalistas de O Pasquim. Afinal, a pergunta “Você é racista?” surge após
o cantor escolher um jogador de futebol de pele mais escura, um negro retinto – na
terminologia atual. Porém, a pergunta seguinte, de Jaguar, não usa o termo “racismo”, mas
“preconceito racial” para questionar Simonal sobre a situação brasileira. Em ambas as
respostas do cantor, no entanto, o termo “racismo” é mobilizado com significados
próximos: primeiro ao justificar suas opções na avaliação da técnica futebolística e no par
afetivo (e enfatizando não ser “necessidade de afirmação”); e em seguida, ao justificar que
a existência de preconceito racial no Brasil deve-se a um “condicionamento”, introjetado
desde a infância, a partir das escolas, que prega a superioridade e a beleza das pessoas
brancas. De tal forma, no argumento de Simonal, ele não seria racista ao preferir o
esportista de pele mais escura, sendo uma avaliação justificada pela habilidade individual
do atleta. E esta “neutralidade” da avaliação, para o cantor, seria similar à sua preferência
por mulheres louras – e é curioso que o cantor não associe tal preferência ao
condicionamento para a superioridade da beleza branca. A despeito de seu gosto, Simonal
alega que seu discurso sobre o charme e a beleza negra em canções não seria “racista”, mas
1055
O Pasquim, julho de 1969, n°4. Apud. ALONSO, Gustavo. Quem não tem swing morre com a boca cheia
de formiga: Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical. 2011, p. 418.
1056
O Pasquim, julho de 1969, n°4. Apud. ALONSO, Gustavo. Quem não tem swing morre com a boca cheia
de formiga: Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical. 2011, p. 419.
376
Sem dúvida alguma “Black is beautiful” é uma música perigosa ainda que seja
top nas paradas de sucesso [...] Que os irmãos Valle ou Elis Regina queiram um
homem de cor, do Congo ou daqui, e que achem horríveis os brancos da rua do
Ouvidor, ninguém tem nada a ver com isso. Mas dessas divagações pode nascer
o desentendimento dos verdes brasileiros. Com isso pode desencadear-se aqui,
uma onda racista, uma guerra entre brancos e negros, coisa que jamais o
brasileiro pensou. Em contrapartida, só nos resta uma alternativa. Ou nós, os
brancos pintamos a cara de preto e que nessa onda entrem também “os homens
horríveis da rua do Ouvidor” ou vamos imprimir nossos cart ões de visita com o
novo slogan “White is beautiful”.1058
1057
Uma exploração mais detalhada desta reportagem e de outras de Wilson Simonal abordan do o
preconceito racial e o racismo foi realizada pelo autor desta tese em: MORAIS, Bruno Vinícius Leite de.
“Não sou racista”: Racismo, racialismo, o Orgulho Negro e os seus efeitos políticos e sociais. In: “Sim, sou
um negro de cor”. Wilson Simonal e a afirmação do Orgulho Negro no Brasil dos anos 1960. Dissertação
(História). Universidade Federal de Minas Gerais. 2016, p. 78-151.
1058
FIGUEIREDO, Lenita. 1971, p. 20. APUD. PAIVA, Carlos Eduardo A. Black Pau: a soul music no
Brasil nos anos 1970. Tese (Ciências Sociais). Universidade Estadual de São Paulo. 2015, p. 112. Sublinhado
meu.
377
somos nós negros mesmo que estamos fazendo, eu acho.”1059 O integrante referia à
produção dos bailes Black serem preferencialmente voltadas para o público de pele negra.
Embora as organizações dos bailes não impedissem a entrada de pessoas brancas, a
manifestação de um direcionamento de público e certos relatos de impressão de menor
receptividade aos frequentadores brancos foi entendida como segregação e expressa pelo
entrevistado a partir do vocábulo “racismo”.
1059
Lena Frias. O Orgulho (importado) de ser negro no Brasil. Jornal do Brasil. 17 de julho de 1976.
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib =030015_09&Pesq=black%20rio&pagfis=144019 >
1060
ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o Rock e o Brasil dos anos 80. 2002, p. 63. Sublinhado meu.
378
aqueles que lutavam contra o racismo no Brasil como ‘propagadores do racismo negro’
não era nenhuma novidade naquele momento (...) A expressão ‘racismo negro’, aliás,
aparece com recorrência nos arquivos dos órgãos de inteligência e informação da
ditadura.”1061 Apesar de informar da recorrência da expressão “racismo negro” na
documentação do período, os autores não explicam sobre a compreensão e difusão social
do termo à época, nem sobre diferenças quanto ao significado que os próprios autores estão
trazendo ao mobilizar o termo. Em outro trabalho acadêmico, a dissertação Configurações
do racismo nas redes sociais, Kamila Dutra Pena traça uma explicação para o termo como
uma reação aos movimentos negros dos anos 1970: “Em relação a luta negra contra o
racismo, parte da sociedade sentindo-se ameaçada pela luta negra de igualdade, começou a
propagar a existência de um racismo reverso/inverso, ou seja, o racismo do negro contra o
branco.”1062 Explicação, contudo, que não é capaz de esclarecer a difusão da compreensão
do termo “racismo” apresentada nos exemplos iniciais deste tópico.
Na bibliografia consultada para a pesquisa desta tese (e em toda até então lida
durante a formação intelectual do historiador que escreve estas linhas) não foi encontrada
um texto que buscasse explicar sobre a diferença da compreensão e usos do termo
“racismo” no Brasil. No entanto, durante os vinte e oito anos que compõem o recorte
temporal desta tese, foi possível identificar uma disputa pelo vocábulo e diferentes
significados para o termo. A compreensão predominante no recorte da pesquisa, conforme
os exemplos acima, indicia o significado de “racismo” como discurso de poder e prática
política que prega a supremacia de um grupo étnico sobre outros e a segregação. Diferente,
assim, do significado aparentemente hegemônico atualmente, que compreende “racismo”
também como um discurso de poder e prática política e social de inferiorização de um
grupo étnico e sua discriminação. A transição entre os dois significados hegemônicos
pareceu, para esta pesquisa, ter como momento emblemático o período após 1978,
particularmente no decorrer da década de 1980.
Este tópico do terceiro capítulo da tese visa apontar para a modificação no vocábulo
“racismo”, apresentando como hipótese o impacto de obras literárias de pensamento
político negro antirracista, ainda que sem a pretensão de aprofundar no estudo da alteração
1061
PEREIRA, Amilcar A. SANTOS NETO, Agenor B. “Legítimos propagadores do racismo negro?” O
Movimento Negro Contemporâneo e a luta contra o racismo durante a ditadura civil-militar no Brasil. In:
DELLAMORE, Carolina; AMATO, Gabriel; BATISTA, Natália. (orgs.) A ditadura aconteceu aqui: a
história oral e as memórias do regime militar brasileiro. 2017, p. 68.
1062
PENA, Kamila Duarte. Configurações do racismo nas redes sociais. Dissertação (Gestão em
Organizações Aprendentes). Universidade Federal da Paraíba. 2017, p. 19.
379
1063
SKINNER, Quentin. A ideia de um Léxico Cultural. In: Visões da política: sobre os métodos históricos.
2002, p. 224 e p. 227, respectivamente.
1064
BETHENCOURT, Francisco. Racismos. Das Cruzadas ao século XX. 2018, p. 21.
380
1065
BETHENCOURT, Francisco. Racismos. Das Cruzadas ao século XX. 2018, p. 28.
1066
ÁVILA, Fernando B. de. Pequena enciclopédia de moral e civismo. Fundação Nacional de Material
Escolar. Ministério da Educação e Cultura. 1967. Reedição 1972, p. 552.
1067
GALVÃO, Ramiz. Vocabulario Etymologico, orthographico e prosodico. 1909 (sem informações
editoriais).
381
A definição apresentada acima nos dicionários também era veiculada nas instituições
de ensino, a partir dos materiais didáticos. Foi citada, parágrafos acima, a Pequena
enciclopédia de moral e civismo, publicada pela FENAME, uma instituição que, conforme
as pesquisas da historiadora Juliana Miranda Filgueiras, foi criada em 1967 pelo Ministério
da Educação e Cultura do governo ditatorial brasileiro para “produzir e distribuir materiais
1068
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. 1999, p. 66.
1069
MOREIRA, José Francisco. Dicionário Mor da Língua Portuguesa. 1967. BUENO, Francisco S. Grande
Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa. 1974. FERREIRA, Aurélio Buarque de H. Novo
Dicionário da Língua Portuguesa. 1975. FERNANDES, Francisco. Dicionário Brasileiro Globo. 1984.
382
1070
FILGUEIRAS, Juliana Miranda. A produção didática de educação moral e cívica: 1970-1993. In:
Cadernos de Pesquisa: Pensamento Educacional (Curitiba. Impresso), v. 3. 2008, p. 83.
1071
FILGUEIRAS, Juliana Miranda. Os Processos De Avaliação De Livros Didáticos No Brasil (1938 -
1984). Tese (Educação: História, Política, Sociedade). Pontifícia Universidade Católica De São Paulo. 2011,
p. 222.
1072
ÁVILA, Fernando B. de. Pequena enciclopédia de moral e civismo. Fundação Nacional de Material
Escolar. Ministério da Educação e Cultura. 1967. Reedição 1972, p. 552.
1073
VALLE, Diniz A. Guia de Civismo. Destinado ao Ensino Médio. Ministério da Educação e Cultura.
Brasil. 1969. Disponível em: <http://www.livrosgratis.com.br/download_livro_36616/guia_de_civismo >
383
1074
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967-366980-
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1075
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Fundo Políticas Públicas, Setor DGIE, Notação 250. Apud.
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 .
Dissertação (História). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2018, p. 89.
1076
LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 .
Dissertação (História). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2018, p. 90 e p. 91.
1077
O Globo, “Racismo”, 26 de abril de 1977. Apud. LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência
nos subúrbios cariocas na década de 1970. Dissertação (História). Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. 2018, p. 89.
384
receio de encontro de ativistas negros. 1078 Contudo, para além das forças repressivas do
Estado e das publicações de órgãos oficiais de educação, a compreensão do termo
“racismo” circunscrita à afirmação de valores de um grupo racial também informava outros
setores da sociedade brasileira, inclusive pessoas negras, conforme exemplificado no início
deste tópico. Porém, a afirmação da estética de pessoas brancas ou a existência de espaços
circunscritos a esse grupo social não eram igualmente identificados como “racismo”, posto
a naturalização de tais elementos pelos grupos dominantes - predominantemente formado
por pessoas brancas - por toda a trajetória do Estado brasileiro. Assim, conforme o
sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães:
1078
Rio de Janeiro (Estado). Comissão da Verdade do Rio. Relatório. 2015, p. 127-139. Disponível em:
<https://documentosrevelados.com.br/wp-content/uploads/2015/12/cev-rio-relatorio-final.pdf>
1079
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. 1999, p. 66.
1080
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Negro e Racismo. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual:
Possibilidades nos dias da destruição. 2018, p. 54, 55.
385
1081
POCOCK, John. G. A. Introdução. O estado da arte. In: Linguagens do ideário político. 2013, p. 28, 29.
1082
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. 1996, p. 13.
1083
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento (Retratos do Brasil Negro). 2009, p. 96.
386
contatos com ideias pan-africanistas e, a partir de 1974, “passou a residir na Nigéria, onde
trabalhou como professor visitante na Universidade de Ifé. Isso permitiu que ele
participasse, em 1977, do Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas –
Festac 77.”1084 Foi, portanto, para o mesmo festival no qual Gilberto Gil apresentou e
concebeu o álbum conceitual Refavela, que Abdias escreveu o artigo cujo título traduzido
ao português seria “Democracia Racial no Brasil: mito ou realidade?”, proibido de ser
apresentado no colóquio do evento, mas publicado no país em quatro edições do jornal
Daily Sketch, durante o mês de fevereiro de 1977.1085
1084
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento (Retratos do Brasil Negro). 2009, p. 110.
1085
NASCIMENTO, Abdias. Prólogo: A história de uma rejeição. In: O genocídio do negro brasileiro.
Processo de um racismo mascarado. 2018, p. 33.
387
Uma síntese do argumento de Abdias Nascimento pode ser realizada através de duas
citações da obra. No nono capítulo, o autor proclama: “Devemos compreender ‘democracia
racial’ como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não
tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África
do Sul, mas institucionalizado de forma eficaz”. 1087 E na Conclusão, ao apontar:
“Caracteriza-se o racismo brasileiro por uma aparência mutável, polivalente, que o torna
único; entretanto, para enfrentá-lo, faz-se necessário travar a luta característica de todo e
qualquer combate antirracista e antigenocida.”. 1088 Entre as inovações do argumento de
Abdias Nascimento está a apresentação do preconceito e discriminação raciais no Brasil
(definidos por “racismo” e assegurados pelo ideal de democracia racial) como uma ação
institucional de longa duração.
1086
NASCIMENTO, Abdias. Prólogo: A história de uma rejeição. In: O genocídio do negro brasileiro.
Processo de um racismo mascarado. 2018, p. 15.
1087
NASCIMENTO, Abdias. Prólogo: A história de uma rejeição. In: O genocídio do negro brasileiro.
Processo de um racismo mascarado. 2018, p. 111.
1088
NASCIMENTO, Abdias. Prólogo: A história de uma rejeição. In: O genocídio do negro brasileiro.
Processo de um racismo mascarado. 2018, p. 169.
1089
ALMEIDA, Silvio. O que é Racismo Estrutural? 2018, p. 29-32.
1090
CARMICHAEL, Stockely, HAMILTON, Charles V. Poder Negro. La política de liberación en Estados
Unidos. México. Siglo Veintiuno. 1976.
388
genocídio do negro brasileiro, além das conexões transnacionais nos argumentos sobre o
racismo, conforme citado acima.
Estamos saindo das salas de reuniões, das salas de conferências e estamos indo
para as ruas. Um novo passo foi dado na luta contra o racismo.
(...)
Casos como estes são rotina em nosso país, que se diz democrático.
(...)
1091
Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial. Carta aberta à população contra o racismo. Apud.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. Processo de um racismo mascarado. 2018, p. 166-
8.
389
A Coleção Primeiros Passos iniciou com cinco títulos publicados em 1980. Com o
sucesso comercial dessas primeiras publicações, ainda em 1980 foram lançados novos
títulos, entre os quais o sétimo da coleção, O que é Racismo. O livro inicia com a definição
do termo encontrada por um estudante francês ao abrir “seu Petit Larousse um dicionário
de prestígio universal: ‘Racismo. s.m. Sistema que afirma a superioridade racial de um
grupo sobre outros, pregando, em particular o confinamento dos inferiores numa parte do
país (segregação racial).”1095 E prossegue mobilizando o significado convencionalmente
usado também nos dicionários brasileiros, associando às teorias raciais e aos regimes
políticos de segregação, como o apartheid sul-africano e a Alemanha sob governo nazista.
1092
ROLLEMBERG, Marcello. Um circo de letras: a Editora Brasiliense no contexto sócio -cultural dos anos
80. In: Anais Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplin ares da Comunicação XXXI
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação . 2008, p. 10.
1093
GALUCIO, Andrea Xavier. Civilização Brasileira e Brasiliense: trajetórias editoriais, empresários e
militância política. Tese (História). Universidade Federal Fluminen se. 2009, p. 273.
1094
IUMATI, Paulo Teixeira. Reviravoltas no mercado editorial. In: Brasiliense, 50 anos. 1993. s/p
1095
SANTOS, Joel Rufino dos. O que é Racismo. 1980, p. 13.
390
A publicação de O que é racismo por Joel Rufino dos Santos significou uma
expressiva ação no sentido de difundir a compreensão do vocábulo “racismo” associado ao
preconceito e discriminação raciais, capaz de confrontar o ideário de “democracia racial”.
Compreensão que, como demonstrado acima, amparava o MUCDR. Como parte da
Primeiros Passos, uma iniciativa editorial de sucesso da Brasiliense, o livro conseguia
atingir um público mais amplo, contribuindo no processo de ressignificação com uma
argumentação desenvolvida a partir de uma linguagem simples e acessível, conforme a
proposta da coleção.
1096
SANTOS, Joel Rufino. O que é Racismo. 1980, p. 64-82.
1097
SANTOS, Joel Rufino. O que é Racismo. 1980, p. 45. Grifos do autor.
1098
Para esses dados da atuação profissional e política, ver: RATTS, Alex. RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez.
(coleção Retratos do Brasil Negro). 2010, p. 166.
1099
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 299-301.
391
O livro Lugar de Negro, publicado pela editora Marco Zero, foi distribuído em três
textos, o primeiro de autoria de Lélia Gonzalez e os dois últimos de Carlos Hasenbalg,
porém, em número de páginas, cada autor escreve cerca de metade do livro. O capítulo de
Lélia, “O movimento negro na última década”, é desenvolvido a partir de cinco tópicos: “O
golpe de 64, o novo modelo econômico e a população negra”, “Movimento ou movimentos
negros?”, “Experiências e tentativas”, “A retomada político-ideológica” (no qual fala sobre
a música soul e os bailes black), e “O Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial”. O primeiro tópico apresenta a exclusão da população pobre e negra
das benesses do “milagre econômico”, com os dados do aumento da marginalização desses
grupos sociais, assim como o aumento da migração rumo aos centros urbanos, que a autora
atribui ao desemprego no campo. Este tópico sintetiza o argumento geral antecipado pelo
título do livro, ao defender que os modos de dominação no Brasil parecem coincidir em
uma reinterpretação da teoria do “lugar natural” de Aristóteles. O “lugar natural” do grupo
branco dominante são moradias amplas, espaçosas, em belos lugares e protegidos por
diferentes formas de policiamento:
1100
RATTS, Alex. RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. (coleção Retratos do Brasil Negro). 2010, p. 89.
1101
GONZALEZ, Lélia. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 15, 16.
Sublinhado meu.
1102
GONZALEZ, Lélia. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 54.
392
a autora, o Movimento Negro surgido em 1978 representaria uma nova etapa na denúncia e
luta contra o “lugar de negro” no Brasil, ao articular na luta raça e classe. Vale ser
destacado nesse texto a reprodução do argumento do militante negro Milton Barbosa,
publicado no jornal Versus em novembro de 1978, no qual fala sobre a Lei Afonso Arinos:
“Nós, negros, sempre desconfiamos desta lei, pois temos certeza que, apesar de ser uma lei
que deveria garantir o direito do negro lutar contra o racismo, nunca funcionou contra os
racistas. Deveria ser usada contra nós.”1103 Este argumento auxilia a autora a apresentar um
termo para ressignificar o que as fontes policiais e alguns jornais chamavam por “racismo
negro”: “Quanto aos aspectos negativos, deixando de lado o já tradicional ‘racismo às
avessas’ de que somos acusados sempre que nós, negros, partimos para a denúncia do
racismo e da discriminação, pintaram outras acusações como as de divisionistas,
revanchistas, etc e tal”.1104 O texto de Lélia Gonzalez ainda reproduz alguns documentos
do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, como a “Carta aberta à
população contra o racismo” e a “Carta de princípios” da organização.
1103
GONZALEZ, Lélia. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 56.
1104
GONZALEZ, Lélia. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 61.
1105
HASENBALG, Carlos. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 69.
1106
HASENBALG, Carlos. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 99.
1107
HASENBALG, Carlos. In: GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 113.
393
1108
COSTA, Jurandir F. Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUZA, Neusa Souza. Tornar-se
negro. Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 1983, p. 5.
1109
SOUZA, Neusa Souza. Tornar-se negro. Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em
ascensão social. 1983, p. 17, 18.
1110
SOUZA, Neusa Souza. Tornar-se negro. Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em
ascensão social. 1983, p. 19. Sublinhado meu.
1111
SOUZA, Neusa S. Tornar-se negro. Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão
social. 1983, p. 77.
394
Um último livro selecionado para este tópico da presente tese enquanto exemplar da
literatura de pensamento político antirracista produzida por intelectuais negros é
Negritude: usos e sentidos, escrito pelo antropólogo Kabengele Munanga e publicado em
1986, pela editora Ática. A síntese presente na contracapa da edição original demarca a
proposta da obra: “Resultado da história colonial, a negritude é uma resposta racial negra a
uma agressão racial branca. (...) Neste livro o leitor encontrará uma visão mais ampla da
problemática da negritude, estudada enquanto conceito e movimento.” E também apresenta
o autor: “nascido no Zaire [atual Congo], doutorou-se em Antropologia na USP, onde
leciona.” A estrutura do livro é dividida em Introdução e cinco capítulos: “Condições
históricas”, “Tentativas de assimilação dos valores culturais do branco”, “O negro recusa a
assimilação”, “Diferentes acepções e rumos da negritude”, e “Críticas”, além de um
“Vocabulário crítico” no final.
Em primeiro lugar é importante frisar que a negritude, embora tenha sua origem
na cor da pele negra, não é essencialmente de ordem biológica. De outro modo, a
identidade negra não nasce do simples fato de tomar consciência da diferença de
pigmentação entre brancos e negros ou negros e amarelos. A negritude e/ou a
identidade negra se referem à história comum que liga de uma maneira ou de
outra todos os grupos humanos que o olhar do mundo ocidental “branco” reuniu
sob o nome de negros. A negritude não se refere somente à cultura dos povos
1112
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Reedição 2012, p. 15.
1113
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Reedição 2012, p. 16. Sublinhado meu.
395
A contribuição das obras brevemente abordadas no decorrer deste tópico, escritas por
Abdias Nascimento, Joel Rufino dos Santos, Lélia Gonzalez, Neusa S. Souza e Kabengele
Munanga, permite compreender o pensamento político antirracista produzido por
intelectuais negros a partir da reflexão de Nilma Lino Gomes em O Movimento Negro
Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Nesta obra, a pedagoga propõe
que a atuação do movimento negro, assim como dos negros em movimento (uma
militância negra e antirracista que não integra uma entidade ou organização específica):
“reeduca e emancipa a sociedade, a si próprio e ao Estado, produzindo novos
conhecimentos e entendimentos sobre as relações étnico-raciais e o racismo no Brasil, em
conexão com a diáspora africana.”1115
1114
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Reedição 2012, p. 20.
1115
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
2017, p. 38.
396
A hipótese levantada neste tópico da presente tese é que tal produção literária
lançada a partir do ano 1978 teve impacto para a produção de conhecimentos que
fundamentaram a ressignificação do termo “racismo”, necessária para fortalecer a denúncia
da “democracia racial” enquanto um mito. O conteúdo do termo “racismo” expresso
através das linguagens antirracistas abarcava o preconceito e a discriminação racial,
argumentando ser unidirecional; uma agressão branca sofrida pelas pessoas negras. De tal
modo, inviabilizava a leitura de um “racismo negro”, tal como realizada pelos órgãos de
repressão, que seria, assim, uma tentativa de propor um “racismo às avessas”. Afinal, o
preconceito e discriminação estão inseridos em uma estrutura de dominação,
institucionalizada pelo Estado, que visa a circunscrição de um “lugar de negro”, na
exclusão, e, em última instância, “o genocídio do negro brasileiro”, seja cultural ou mesmo
físico - tal como países com políticas segregacionistas.
Linguagem é poder. (...) Pode-se usar o poder das palavras para enterrar o
significado, ou então para desenterrá-lo e fazê-lo vir à tona. Se você não tem
palavras para nomear um fenômeno, uma emoção, uma situação, não poderá
falar a respeito, o que significa que não poderá se reunir com outras pessoas para
tratar do problema, e muito menos mudar a situação. 1117
1116
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. 2017, p. 162.
1117
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. 2017, p. 165, 166.
397
1118
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
2017, p. 28.
398
1119
NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) -
Ensaio histórico. 2017, p. 322, 323.
1120
Uma abordagem ampla de ambos os movimentos pode ser lida em PINTO, Regina Pahim. O Movimento
Negro em São Paulo: Luta e identidade. 2013, 437 p. E uma abordagem comparativa curta, em:
DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. In: Tempo (UFF),
vol. 23, 2007.
1121
GONZALEZ, Lélia. In: GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. 1982, p. 31.
1122
ALBERTI, Verena. PEREIRA, Amilcar A. (orgs.) Influências externas e circulação de referenciais. In:
Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. 2007, p. 69-130.
1123
PEREIRA, Amilcar A. O Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 168-173.
399
A carta aberta do então MUCDR em convocação para o ato de 7 de julho de 1978 foi
também publicizada no mesmo ano no livro O genocídio do negro brasileiro, de Abdias
Nascimento e, em 1982, em Lugar de Negro de Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg. Outros
documentos, incluindo a Carta de Princípios, o Hino do MNU e diversas declarações,
foram publicados pela organização na obra celebrativa 1978-1988. 10 anos de luta contra
o racismo. E trechos do Estatuto e do Programa de Ação estão disponíveis nos estudos O
Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998, do militante do MNU e historiador
Marcos Cardoso e a dissertação em História de Marcelo Leolino da Silva, A História no
discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da História como estratégia de
combate ao racismo.1125
A leitura dos documentos produzidos pelo MNU permite estabelecer outras conexões
com o movimento Soul: não apenas das canções da Black Music estadunidense na
circulação de referenciais e dos bailes Black enquanto espaços de sociabilidade; mas
1124
DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. In: Tempo
(UFF), vol. 23, 2007, p. 113, 114.
1125
Movimento Negro Unificado. 1978-1988. 10 anos de luta contra o racismo. 1988. CARDOSO, Marcos.
O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978 -1998. 2011. SILVA, Marcelo Leolino da. A História no
discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da História como estratégia de combate ao
racismo. Dissertação (História). Universidade Estadual de Campinas. 2007.
400
Nos três capítulos que abarcam os vinte e oito anos do recorte temporal desta tese, os
atos de fala das linguagens negras antirracistas expressos nas canções evidenciaram alguns
tópicos recorrentes, passíveis de serem agregados em blocos temáticos. Por serem blocos
esquemáticos, os temas das canções não ficam necessariamente circunscritos a apenas um
deles, mas a enumeração de tais blocos irá facilitar o argumento deste tópico final.
Como exemplos nos blocos temáticos, foram identificadas canções que travavam de:
1) o preconceito racial no cotidiano, como “O neguinho e a senhorita”, “A banca do
distinto”, “Se Jesus fosse um homem de cor (Deus negro)”, “Preconceito”, “Oração de
duas raças” e “A mão da limpeza”; 2) representações da mulher negra, como em “Maria,
Maria, Maria”, “Crioula” e “Menina mulher da pele preta”; 3) representações da favela e
denúncia das remoções, como em “Cantiga do morro”, o medley “Opinião/O morro não
tem vez/Batucada surgiu”, “Refavela” e “Vidigal”; 4) memória da escravidão, como em
“Não desanima não, João”, “Ladeira do Pelourinho”, “Zumbi/África Brasil”, “Xica da
Silva”, “Rio Grande do Sul na Festa do Preto Forro” e “Negritude”; 5) afirmação da
religiosidade afro-brasileira, em “Ladeira do Pelourinho”, “Maria Conga”, “Nanã”,
“Babá Alapalá”, “Filhos de Zambi”, “Logunedé”, “A gira”, e várias outras; 6)
identificação em diálogo transnacional afro diaspórico, como em “Tributo a Martin
Luther”, “Brother”, “Cassius Marcellus Clay” e “Amigo de Nova York”; 7) ascendência
africana, em “Maravilhas Contemporâneas”, “Negritude” e “África”; 8) celebração a
Zumbi e o Quilombo dos Palmares, em “Zumbi/ África Brasil” de Jorge Bem, “Zumbi”
com Zezé Motta e “Batuque”; 9) a positivação da estética negra, como em “Sou Negro”,
“Negro é lindo”, “Ilê Aiyê”, “Hereditário”, “Olhos Coloridos” e “Sou negro, sim”; e 10) a
denúncia dos regimes segregacionistas no continente africano, em “Rodésia”, e em
particular, a oposição ao apartheid em “Oração pela libertação da África do Sul”, o “Hino
do Congresso Nacional Africano” e “Soweto”.
401
- Discriminação racial
- Marginalização racial, política, econômica, social e cultural do povo negro
- Péssimas condições de vida
- Desemprego
- Subemprego
- Discriminação na admissão em empregos e perseguição racial no trabalho
- Condições subhumanas de vida dos presidiários
- Permanente repressão, perseguição e violência policial
- Exploração sexual, econômica e social da mulher negra
- Abandono e mal tratamento dos menores, negros em sua maioria
- Colonização, descaracterização, esmagamento e comercialização de nossa
cultura
- Mito da democracia racial
1126
Movimento Negro Unificado. 1978-1988. 10 anos de luta contra o racismo. 1988, p. 18, 19.
402
repertório de questões com similaridades aos blocos temáticos das canções. Conforme
Marcos Cardoso:
1127
CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 55.
1128
PEREIRA, Amilcar Araujo. O Mundo Negro. Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 232.
403
1129
SILVA, Marcelo Leolino da. A História no discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da
História como estratégia de combate ao racismo. Dissertação (História). Universidade Estadual de Campinas.
2007, p. 96-117..
1130
SILVA, Marcelo Leolino da. A História no discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da
História como estratégia de combate ao racismo. Dissertação (História). Universidade Estadual de Campinas.
2007, p. 61.
1131
SILVA, Marcelo Leolino. A História e a identidade negra nas fontes primárias do MNU. In: Congresso
Internacional de História. Jataí. Universidade Federal de Goiás. 2016, p. 04 e p. 06.
1132
SILVA, Marcelo Leolino. A História e a identidade negra nas fontes primárias do MNU. In: Congresso
Internacional de História. Jataí. Universidade Federal de Goiás. 2016, p. 07.
404
1133
SILVA, Marcelo Leolino. A História e a identidade negra nas fontes primárias do MNU. In: Congresso
Internacional de História. Jataí. Universidade Federal de Goiás. 2016, p. 09.
1134
PEREIRA, Amilcar Araujo. O Mundo Negro. Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo. 2013, p. 262, 263.
1135
SILVA, Marcelo Leolino. A História e a identidade negra nas fontes primárias do MNU. In: Congresso
Internacional de História. Jataí. Universidade Federal de Goiás. 2016, p. 10.
1136
SILVA, Marcelo Leolino. A História e a identidade negra nas fontes primárias do MNU. In: Congresso
Internacional de História. Jataí. Universidade Federal de Goiás. 2016, p. 07.
405
das remoções a partir da carestia e do direito à moradia. 1137 Questões, portanto, que
permitem a recordação de diversas letras de canções abordadas no decorrer desta tese,
conforme os blocos temáticos pontuados. Aliás, o compartilhamento de pautas extrapola os
temas identificados nos blocos citados, posto que a denúncia da violência policial aos
negros e agressão aos presidiários, por exemplo, remetem ao Itamar Assumpção, com a
construção do personagem Nego Dito e a banda Isca de Polícia.
Alguns dos artistas abordados nesta tese, porém, apresentaram uma relação mais
estreita com a organização do movimento negro. O caso mais expressivo foi o da atriz e
cantora Zezé Motta, uma integrante fundadora do Movimento Negro Unificado. Em
entrevista a Ricardo Santhiago, Zezé revela: “Considero a Lélia [Gonzalez] minha guru,
porque foi a partir daí que percebi que tínhamos que fazer alguma coisa em vez de ficar
reclamando da vida ou esperar por uma atitude paternalista”; e a artista e militante comenta
ao historiador sobre sua atuação no MNU: “Tenho muito orgulho da minha geração do
1137
Uma elaboração da época analisando os novos movimentos sociais, incluindo capítulos sobre
“Movimentos de Bairro”, “O feminino e o feminismo” e “Organizações negras”, está em: SINGER, Paul.
BRANT, Vinícius C. (orgs.). São Paulo: o povo em movimento. 1980.
406
1138
SANTHIAGO, Ricardo. Solistas dissonantes: história (oral) de cantoras negras. 2009, p. 209.
1139
PEREIRA, Amilcar Araujo. O Mundo Negro. Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo. 2013, p. 105.
1140
Lélia Gonzalez. Entrevista concedida a Carlos Alberto M. Pereira e Heloisa B. Hollanda, publicada em
PEREIRA, Carlos A. M; HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Patrulhas Ideológicas. 1980. In: GONZALEZ,
Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2020, p. 294.
407
movimentos sociais des de sua gestação no curso da década de 70. Eles foram
vistos pelas suas linguagens, pelos lugares de onde se manifestavam, pelos
valores que professavam, como indicadores da emergência de novas identidades
coletivas.1141
“Os movimentos sociais são produtores e articuladores dos saberes construídos pelos
grupos não hegemônicos e contra hegemônicos da nossa sociedade”, 1142 afirmou Nilma
Lino Gomes ao propor a compreensão do Movimento Negro como um sistematizador de
saberes. A importância da circulação de saberes produzidos pelos novos movimentos
sociais pode ter constituído particular impacto nesses dez anos a partir da eclosão, em
1978. Afinal, sendo o período entre 1978 e 1988 conhecido como a “reabertura
democrática” do Estado brasileiro, a atuação e os saberes dos diversos movimentos sociais
contribuíram para substanciar o conteúdo da “democracia” a ser instituída. De tal forma, é
estimulante pensar tal contribuição a partir de dois cenários: o recorte entre 1978 e 1985,
no processo de uma reabertura política, lenta e gradual, ainda em meio ao regime ditatorial;
e no recorte entre 1986 e 1988, o contexto de sedimentação da transição democrática, já
em um governo civil, mas oriundo de uma eleição indireta e com sua legitimidade
associada à construção de uma nova Constituição.
1141
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências e lutas dos trabalhadores da
Grande São Paulo – 1970-1980. 1988, p. 26.
1142
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
2017, p. 29.
408
1143
PEREIRA, Amílcar Pereira. O Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro
Contemporâneo no Brasil. 2013, p. 258.
1144
CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 45.
1145
CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 94 e p. 101.
1146
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. 2012, p. 169.
409
sintonia com o movimento pela redemocratização do país.”1147 Nessa mesma obra, como
colocado no primeiro capítulo da presente tese, Antonio S. A. Guimarães apresentou a
formulação do ideal de “democracia racial” nas décadas de 1930 e 1940 como um
qualificativo do modelo democrático brasileiro, a compensar a inexistência de democracia
política na ditadura de Getúlio Vargas. 1148 Durante a ditadura militar, o amparo do discurso
oficial do Estado no vocábulo “democracia racial” sugeria uma intencionalidade similar. E
assim, ao denunciar a inexistência de “democracia racial” no Brasil e reivindicá-la, os
movimentos negros rejeitavam um fundamento ideológico da ditadura ao mesmo tempo
que acrescentavam um conteúdo para a redemocratização.
Para o governo, o país já era democrático, posto que fiel aos valores cristãos e
ocidentais e defensor da liberdade individual e da livre-iniciativa contra o
“totalitarismo de esquerda”, mas não abria mão dos instrumentos de repressão,
até que um novo sistema de valores estivesse internalizado. (...) O governo
entendia democracia como mero debate de ideias e ‘críticas construtivas.” (...)
1147
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. 2012, p. 167, 168.
1148
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. 2012, p. 141-148.
1149
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 234.
410
1150
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. 2014, p. 241, p. 242 e p. 248.
1151
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. 2012, p. 175.
411
O movimento negro vem contribuindo para que o movimento sindical rompa seu
silêncio histórico e passe a discutir a questão racial que atinge pelo menos 40,2%
da força de trabalho do país, na perspectiva de unir os trabalhadores e dar maior
legitimidade à ideia de solidariedade de classe, tendo em vista que quem divide
os trabalhadores é o racismo. Ao mesmo tempo em que trabalha para dest ruir o
mito da democracia racial, o movimento negro tem atuado no sentido de que,
para além dos discursos bem intencionados, os partidos políticos de esquerda
passem a ter uma prática política que considere a eliminação do racismo como
parte da luta política pela democracia e pelo socialismo.1153
A atuação dos movimentos negros junto aos partidos e à gestão do Estado, a esfera
da política, foi intensa nos anos 1980. Em meio à renovação partidária do processo de
abertura política, alguns nomes da intelectualidade e militância negra adentraram na vida
político-partidária. Por exemplo, Abdias Nascimento retornou ao Brasil em 1981, após
treze anos em exílio, e filiou ao Partido Democrático Trabalhista (PDT) - partido do campo
progressista liderado por Leonel Brizola -, no qual foi eleito e atuou como deputado federal
entre 1983-1986. “A proposição de projetos de lei definindo o racismo como crime de lesa-
humanidade e a criação de mecanismos de ação compensatória para os negros brasileiros
1152
SILVA, Luiz Inácio Lula da. A mistificação da democracia racial. Folha de São Paulo. 16/02/1988.
Apud. CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 103, 104.
1153
JUNIOR, Hédio Silva. Democracia: a contribuição do movimento negro. In: Revista Tempo e Presença,
n. 227. 1988. Apud. CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 133.
412
1154
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento (Coleção Retratos do Brasil Negro). 2009, p. 120.
1155
Sobre a atuação partidária de Lélia, ver: RATTS, Alex, RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez (Retratos do Brasil
Negro). 2010, p. 113-125. Sobre Benedita da Silva, ver: < https://www.ebiografia.com/benedita_da_silva/>
1156
RATTS, Alex, RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez (Retratos do Brasil Negro). 2010, p. 125.
1157
SANTOS, Natalia Neris da S. A voz e a palavra do Movimento Negro na Assembleia Nacional
Constituinte (1987/1988): um estudo da demanda por direitos. Dissertação (Direito). Fundação Getúlio
Vargas. 2015.
413
cenário. Por exemplo, a síntese realizada pelos organizadores quanto ao capítulo sete,
“(Des) venturas do Poder Constituinte no Brasil, 1964-1986”, ajuda a situar o debate no
contexto:
O texto de Antonio Sérgio Rocha defende que o período que vai de 1964 a 1986
apresenta três versões de Poder Constituinte, cada um deles evocando um tipo
específico de legitimidade. Inicialmente, há o apelo a um Poder Constituinte
Revolucionário. A partir de 1979, no âmbito do projeto de distensão política,
desencadeia-se um amplo debate entre partidários governistas de uma reforma da
constituição autoritária e os proponentes oposicionistas de uma assembleia
constituinte originária. A questão vai entrar na formação e no funcionamento da
Nova República, período em que se formula o conceito de Poder Constituinte
Instituído - base doutrinária para a determinação de um Congresso
Constituinte.1158
1158
HOLLANDA, Cristina Buarque. VEIGA, Luciana Fernandes. AMARAL, Oswaldo E. Introdução. In: A
Constituição de 88: trinta anos depois. 2018, p. 09. Para o capítulo referenciado, ver p. 181-202 do livro.
1159
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 3.
1160
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 3.
414
Constituinte, que a autora atribui à intensão mobilização social. Assim, a ANC contou com
quatro mecanismos de participação extraparlamentar: a possibilidade de encaminhar
sugestões; uma quantia de cinco a oito reuniões de cada subcomissão a serem destinadas às
audiências públicas; o mecanismo de emendas populares; e a possibilidade de o público
assistir sessões, da galeria. A estrutura da ANC foi dividida em oito Comissões Temáticas,
compostas cada uma por sessenta e três membros titulares e igual número de suplentes, e
cada uma ligada a três Subcomissões Temáticas, compostas por vinte e um membros. As
pautas das chamadas “minorias” foram discutidas na sétima comissão, a Comissão da
Ordem Social, que incluía a Subcomissão dos Negros, populações Indígenas, Deficientes e
Minorias, e, segundo a autora, considerada a “espinha dorsal das demais comissões” por
parlamentares.1161
Assim, ainda conforme a Natália Neris S. Santos, “Ademais, chama a atenção neste
momento do processo a preocupação por parte do movimento social em garantir ‘algo mais
que a igualdade formal no texto da Constituição’”; de modo que “O Movimento Negro
1161
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 5-8.
1162
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 10.
1163
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 11.
415
A defesa de parte das pautas antirracistas descritas acima pode ser identificada no
discurso de Lélia Gonzalez na Constituinte, “O negro e a sua situação”, realizado a convite
da deputada Benedita da Silva (PT). O pronunciamento da intelectual ocorreu na sétima
Reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e
1164
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 11.
1165
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 12-17.
1166
PITANGUY, Jacqueline. A carta das mulheres brasileiras aos constituintes: memórias para o futuro. In:
HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. 2019, p. 88.
416
1167
GONZALEZ, Lélia. Discurso na Constituinte. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios,
intervenções e diálogos. 2020, p. 251-252.
417
1168
Discurso transcrito e disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-
presidentes/jose-sarney/discursos/1988/23.pdf/view> Acesso em 11/09/2021.
1169
RIOS, Flavia. Lélia Gonzales. (Retratos do Brasil Negro). 2010, p. 91.
1170
Sobre as marchas, ver RIOS, Flavia. Lélia Gonzales. (Retratos do Brasil Negro). 2010, p. 91-92. RIOS,
Flávia. O protesto negro no Brasil contemporâneo (1978-2010). In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política,
São Paulo, 85: 41-79, 2012. ALBERTI, Verena. PEREIRA, Amilcar A. Histórias do Movimento Negro no
Brasil: depoimentos ao CPDOC. 2007, p. 252-270.
1171
RIBEIRO FRANCISCO, Flávio Thales. Da segunda abolição ao fim da democracia racial: interpretações
historiográficas sobre a presença do negro na história republicana do Brasil. In: Estudios del ISHIR, 20, 2018,
pp. 35-52. <http://revista.ishir-conicet.gov.ar/ojs/index.php/revistaISHIR> SANTOS, Patrick S. dos. O Negro
na Revolução Socialista Brasileira: uma análise das expectativas de Florestan Fernandes. In: Mosaico, vol.
12, n°19, 2020, p. 7-31.
1172
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática. 1990, p. 91.
418
Contudo, apesar da oposição das forças repressivas do Estado, as pressões das ruas
foram canalizadas pela atuação do Movimento Negro na Assembleia Nacional
Constituinte, pressionando, por sua vez, os parlamentares que se declaravam
comprometidos com a luta antirracista. E com atuação em particular dos parlamentares da
chamada “A bancada negra”: Edmilson Valentim (PT/RJ), Carlos Alberto Caó (PDT/RJ),
1173
LIMA, Lucas P. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 . Dissertação
(História). PUC RJ. 2018, p. 95.
1174
Arquivo Nacional, BR_DFANBSB_2M_0_0_0034_003_d0001de0001. Apud. LIMA, Lucas P. Bailes
soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970 . Dissertação (História). PUC RJ. 2018,
p. 96,97.
419
Paulo Paim (PT/RS) e Benedita da Silva (PT/RJ).1175 Uma atuação que, segundo Natália
Neris da Silva Santos, potencializou as reivindicações dos anos 1990 e 2000 e revelou “que
a gramática dos direitos passou definitivamente a integrar o repertório do Movimento
Negro a partir de 1988, da luta pela aprovação de legislação à mobilização por sua efetiva
implementação.”1176
O breve comentário acima foi colocado na presente tese para reforçar o argumento
de que as lutas do Movimento Negro e outros movimentos sociais formam um elemento
central – e possivelmente decisivo - para os avanços fixados na legislação do período.
Porém, o esforço para que tais avanços fossem fixados não ocorreu sem resistências. A
pesquisa de Natália Neris S Santos revela que a Subcomissão que discutiu o tema racial
“fora um espaço desvalorizado, com baixa frequência de parlamentares e que recebeu
pouca atenção na mídia”, exigindo estratégias dos movimentos negros para garantir o
quórum mínimo, além de enfrentar limitações para a discussão das pautas pela divisão na
qual foi estruturada a ANC compartilhar a Subcomissão com outras minorias, o que
resultou que na etapa da Comissão de Sistematização, algumas demandas foram
obliteradas em prol de soluções mais generalizadas. 1177 Conforme o artigo “A trajetória das
políticas sociais nos 30 anos desde a Constituição de 1988”, escrito pelas cientistas
políticas Telma Menicucci e Gabriela Lotta:
1175
SANTOS, Natália Neris S. A voz e a palavra do Movimento Negro na Assembleia Nacional Constituinte
(1987-1988): um estudo das demandas por direitos. Dissertação (Direito). FGV. 2015, p. 205.
1176
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 22.
1177
SANTOS, Natália Neris da Silva. A voz e a palavra do movimento negro na Assembleia Nacional
Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos. Dissertação (Direito). FGV. 2015, p. 174-
178.
420
A Constituição é uma arma na mão de todos os cidadãos, que devem saber usá -la
para encaminhar e conquis tar propostas mais igualitárias. (...) Só existe cidadania
se houver a prática da reivindicação, da apropriação de espaços, da pugna para
fazer valer os direitos do cidadão. (...) Mas o primeiro pressuposto dessa prática
é que esteja assegurado o direito de reivindicar os direitos, e que o conhecimento
deste se estenda cada vez mais a toda a população. 1179
1178
MENICUCCI, Telma. LOTTA, Gabriela. A trajetória das políticas sociais nos 30 anos desde a
Constituição de 1988. In: HOLLANDA, Cristina B. VEIGA, Luciana F. AMARAL, Oswaldo E. A
Constituição de 88: trinta anos depois. 2018, p. 73.
1179
COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é Cidadania. 1991 (8° reimpressão, 1999), p. 7 e p. 10.
1180
BOTELHO, André. SCHWARCZ, Lilia M. Introdução - Cidadania e direitos: aproximações e relações.
In: Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos. 2012, p. 16, 17.
1181
BOTELHO, André. SCHWARCZ, Lilia M. Introdução - Cidadania e direitos: aproximações e relações.
In: Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos. 2012, p. 21.
421
Natalia Neris da Silva Santos constata que “A Constituinte fora de fato o momento
em que a temática [dos movimentos negros] insere-se na agenda governamental
brasileira.”1183 A autora realiza em sua pesquisa um balanço da fixação do tema antirracista
no texto constitucional, concluindo que: “Ao estudarmos o texto final da Constituição
notamos que a mesma incorporou os pleitos relativos aos seguintes temas: criminalização,
relações diplomáticas, cultura, educação e questão quilombola. (...) A incorporação de tais
dispositivos na CF é uma importante conquista do Movimento Negro.”1184
Assim, Natalia Neris S Santos destaca no artigo o que denominou por “Legado da
tematização no texto constitucional e infraconstitucional: avanços e persistências”,
abordando “As demandas incorporadas no texto constitucional”: nos Princípios
Fundamentais, artigo 4°, o parágrafo VII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; nos
1182
BOTELHO, André. SCHWARCZ, Lilia M. Introdução - Cidadania e direitos: aproximações e relações.
In: Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos. 2012, p. 25.
1183
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 20.
1184
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 19, 20.
422
Direitos e Garantias Fundamentais - Dos Direitos Sociais, o artigo 5°, parágrafo XLII – a
prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, suje ito à pena de
reclusão, nos termos da lei, e o artigo 7°, inciso XXX - proibição de diferença de
salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade,
cor ou estado civil; em Da Ordem Social – Da educação da cultura e do desporto da
cultura, artigo 215, parágrafo 1° - O Estado protegerá as manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional, e parágrafo 2° - A lei disporá sobre a fixação de datas
comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnico nacionais ; e o
artigo 216, parágrafo 5° - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores
de reminiscências históricas dos antigos quilombos; nas Disposições Constitucionais
Gerais, o artigo 242, parágrafo 1° - O ensino da História do Brasil levará em conta as
contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro; e no
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, artigo 68: Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.1185
Outro tópico presente nos blocos temáticos apontados nas canções, porém, também
encontrou espaço no texto da Constituição Federal de 1988: a questão das remoções
forçadas nas favelas. O Banco Nacional de Habitação (BNH), criado pela ditadura militar e
1185
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 19, 20. Negritos da autora.
423
através do qual foram construídos os blocos habitacionais que Gilberto Gil apontou como
“refavelas” na canção homônima, “foi extinto pelo Decreto-Lei n°2.291, de 21 de
dezembro de 1986, do então presidente da República José Sarney, que também transferiu a
função de coordenador do SFH [Sistema Financeiro da Habilitação] para a Caixa
Econômica Federal e a de regulador para o Banco Central.”1186 No entanto, a mudança
mais expressiva ocorreu através do texto constitucional, conforme apontado por Adauto
Lúcio Cardoso e Rosana Denadi na introdução do livro que organizaram, Urbanização de
favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC:
A penalização do crime de racismo foi consolidada com a Lei 7.716 de 1989, que
no artigo 20 previa a reclusão para “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”1189 E, apesar dos limites
de aplicação apontados acima, atestou uma associação entre “racismo” e preconceito e
discriminação.
1186
< http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/banco-nacional-da-habitacao-bnh>
1187
CARDOSO, Adauto L. DENADI, Rosana. Apresentação. In: CARDOSO, Adauto L. DENADI, Rosana.
(orgs.) Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. 2018, p. 09.
1188
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário. Cor e raça na sociabilidade
brasileira. 2012, p. 79.
1189
< https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas -e-produtos/direito-facil/edicao-
semanal/injuria-racial-x-racismo > Acesso 12/09/2021.
424
Para além dos limites quanto às pautas antirracistas, a República brasileira surgida
em 1989, após a “transição democrática”, sugere a fixação de um conceito formal de
“democracia”, mais restrito do que outras opções em disputa apresentadas neste tópico.
Pode-se pontuar o significado fixado citando a definição das historiadoras Denise
Rollemberg e Samantha Quadrat em A construção social dos regimes autoritários:
legitimidade, consenso e consentimento no século XX: “Um sistema de governo para ser
democrático deve apresentar eleições regulares, sem fraudes e realmente competitivas,
liberdade de imprensa e organização, alternância no poder, independência dos três poderes
e o direito de qualquer cidadão votar e ser votado.”1191
Para o autor da presente tese, a difusão das ideias políticas e das linguagens negras
antirracistas no léxico político brasileiro, veiculadas através das canções e sistematizadas
pelos movimentos negros, contribuiu para que a consagração do “cidadão negro” na
redemocratização não se limitasse à mera conquista do exercício do voto. A um conceito
de “cidadão” que poderia significar o sinônimo de “eleitor”, os Movimentos Sociais se
esforçaram para fixar o sentido de “destinatário de um catálogo de direitos”. 1192
1190
SANTOS, Natalia Neris S. Vozes negras no Congresso Nacional: o Movimento Negro e a Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988. In: 39° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS. 2015, p. 21. Itálicos da autora.
1191
QUADRAT, Samantha & ROLLEMBERG, Denise (orgs.). A construção social dos regimes autoritários:
legitimidade, consenso e consentimento no século XX. 2010, p. 18.
1192
A inspiração para a reflexão sobre as lutas sociais em torno dos conteúdos da “democracia” e
“cidadania”, em contraposição ao esforço de grupos dominantes por sintetizar tais conceitos ao mero
exercício do voto, é atribuída à argumentação, pensando na realidade francesa, de ROSANVALLON, Pierre.
La consagración del ciudadano. Historia del sufragio universal en Francia. Trad. Ana Garcia Bergua.
Instituto Mora. 1999.
425
Considerações finais:
Pretensão e água benta, cada um toma o que quer. Esse verso integra a canção “É
um quê que a gente tem”, afirmação dos “bambas” do samba, composta por Ataulfo Alves
e Joaquim Homem, e lançada em fonograma na gravação de Carmem Miranda, nos idos de
1941. O verso, contudo, é cabível para introduzir as considerações finais desta longa tese.
Afinal, concluindo essas quase 450 páginas, pode-se assumir que a tese foi além do seu
propagado recorte temporal de 1960 a 1988, ao conceder, em seu primeiro capítulo, muitas
páginas para abordar, ainda que brevemente, o cenário entre o início do século XX e 1959.
Esse alongamento - nesta conclusão é lícito admitir - foi consciente e justificado. O autor
destas páginas considera que há um marco de ruptura estabelecido entre 1888 e 1889, com
a abolição da escravidão e a proclamação da República no Brasil, que possibilitou surgir
um movimento negro contemporâneo, situado em um cenário no qual, ao menos em teoria,
prometia a qualquer indivíduo, branco ou negro, ser igualmente cidadão. Assim, pensar
possibilidades de leitura da história do Brasil republicano a partir das lutas antirracistas era
uma das motivações mais amplas deste autor. Pretensão e água benta, cada um toma o que
quer. E se alguma dessas possibilidades for considerada instigante, sinto-me realizado.
Para situar a escolha do tema e objeto, esta tese apresentou resultados de pesquisas
motivadas por inquietações surgidas no processo de mestrado, ao analisar a expressão
antirracista na produção musical de Wilson Simonal na década de 1960. A obra gravada
pelo artista revelava hibridações com os gêneros musicais hard bop, souljazz, funky, blues,
soul e funk, uma incorporação da Black Music. Constatação que inspirou o questionamento
quanto a outros artistas negros que dialogavam com a música negra estadunidense na
mesma década. A listagem inicial de artistas “pioneiros/as” em tais hibridações nos anos
1960, junto à abordagem de alguns nomes consagrados na sonoridade soul no Brasil dos
anos 1970, foi realizada para a oferta de uma disciplina optativa para o curso de graduação
em História da UFMG, oferecida no segundo semestre de 2015: “Black Music à Brasileira:
identidade negra na Música Popular Brasileira durante a Ditadura Militar.” Portanto, a
primeira produção do autor desta tese em aproximação com o objeto e tema deu-se pelos
estimulantes caminhos da docência, compartilhada com e enriquecida por estudantes.
A trajetória de pesquisa exposta nos parágrafos acima explica a escolha por colocar
o subtítulo: “A Linguagem Política do Orgulho Negro na Black Music Brasileira (1960-
1988)”. O conceito de Linguagem Política do Orgulho Negro na pesquisa compreende uma
428
forma de identificação da experiência de ser uma pessoa negra no Brasil que promove
diálogos com as experiências de pessoas negras estadunidenses. Tais diálogos, registrados
em canção a partir de 1967, com a gravação de “Tributo a Martin Luther King” por
Simonal, expressaram nas letras o movimento de interlocução transnacional identificado
nas sonoridades estudadas durante a pesquisa. Portanto, embora antes de 1967 canções já
veiculassem o antirracismo, a diferença identificada na pesquisa a partir de tal ano foi a
expressão da Linguagem Política do Orgulho Negro nas letras – ainda que, por todo o
recorte da tese, tenha predominado expressões da Linguagem Política Negra Antirracista.
De tal modo, a pesquisa identificou politização nas sonoridades e nas letras, ambas
passíveis de veicular as linguagens antirracistas.
Torna-se importante enfatizar que, tanto para a análise da produção da Black Music
Brasileira quanto, principalmente, para a análise das questões raciais e da luta antirracista,
a pesquisa apresentaria reflexões mais frágeis se não estivesse amparada em uma ampla
bibliografia de produção recente. Espera-se que quem leia as páginas dessa tese se atente à
data de publicação dos trabalhos citados, pois, confirmará que uma expressiva parcela das
obras teve a publicação posterior ao ingresso do autor no curso de doutorado (2017),
particularmente com publicações entre 2018 e 2021. A mobilização da produção recente -
ou mesmo de publicação contemporânea à escrita da tese - enriqueceu a pesquisa e as
análises e é necessário reconhecer que a ampliação de pesquisas e obras sobre racismo
deve ser compreendida entre os resultados das políticas públicas realizadas durante os
governos federais do Partido dos Trabalhadores no Brasil, com a ampliação do acesso ao
ensino universitário às parcelas marginalizadas e as ações de inclusão das comunidades
negras. E um efeito também da implementação da Lei 10.639, de janeiro de 2003, que
429
1193
< https://oglobo.globo.com/cultura/cultuado-soulman-pernambucano-dos-anos-70-di-melo-redescoberto-
em-clipe-dos-black-eyed-peas-disco-novo-filme-2755946> Acesso 13/09/2021.
1194
Conforme Adriane Vidal Costa: “A princípio, como aponta Claudio Maiz (2009), as redes são por sua
natureza elásticas e porosas e podem formar, nesse sentido, um complexo ema ranhado, um mapa de conexões
que atravessa fronteiras, blocos, regiões e põe em contato sujeitos situados em posições distintas entre si e
permite um novo tipo de intercâmbio.” COSTA, Adriane. V. Darcy Ribeiro e o Centro de Estudios de
Participación Popular (CENTRO) em Lima: redes intelectuais e circulação de ideias. In: PALTI, Elias;
COSTA; Adriane Vidal. História Intelectual e circulação de ideias na América Latina nos séculos XIX e XX .
2021, p. 87.
430
compositor após o álbum Refavela, de 1977, sendo sugestivo que canções compostas para
esse disco tenham sido incluídas nos álbuns de estreia de Zezé Motta (“Babá Alapalá”), em
1978, e Sandra Sá (“É”), em 1980. Além disso, a gravação por Gil de “Ilê Ayê/Mundo
Negro” tornou-se um clássico da Black Music Brasileira, estimulando várias regravações.
na reflexão sobre o impacto das ideias políticas antirracistas, levantando a hipótese de sua
atuação no sentido de fixar um significado mais complexo para o termo “racismo”. A tese
sugeriu que, ao designar não apenas uma doutrina de hierarquia racial (tal como pensado
hegemonicamente até a década de 1970), mas também os sistemáticos preconceitos e
discriminações raciais, o vocábulo “racismo” permitiu ao Movimento Negro expressar
mais enfaticamente a reivindicação jurídica por punição aos atos excludentes e também as
demandas por ações políticas de inclusão.
1195
O autor redigiu esta tese durante a pandemia do Coronavírus, descoberto em Wuhan, cidade da República
Popular da China e constatou em diversas ocasiões a dificuldade de veículos midiáticos em denominar os
atos e discursos de preconceito e discriminação sofridos pelo povo chinês, ou de ascendência chinesa. O
vocábulo mais comumente utilizado para expressar tais atos tem sido “xenofobia”. Assim como, no caso dos
judeus, fixou-se o termo antissemitismo.
432
Enquanto isso, a afirmação de valores, figuras e da estética negra foi compreendida como
contravenção, instaurando conflitos e a desarmonia no corpo social brasileiro. Uma
representação da realidade racial no país, referendada pelo ideário da “democracia racial”,
que negava a existência de segregação, discriminação e preconceito racial no Brasil.
Uma pretensão do último capítulo da tese, portanto, foi explicitar algumas dessas
ideias antirracistas compartilhadas, reforçando as conexões de temáticas expressas através
das Linguagens Políticas Antirracistas nos movimentos sociais, na representação política
da Constituinte, na literatura antirracista e nas canções da Black Music Brasileira.
Por fim, é difícil escrever sobre os temas desta tese sem refletir quanto ao cenário
político brasileiro atual. A ascensão de discursos de extrema direita no Brasil possibilitou a
eleição de Jair Bolsonaro ao cargo de presidente da República, em 2018, de modo que a
maior parte desta pesquisa e a redação do texto da tese ocorreram enquanto o historiador
acompanhava – com preocupação e lamento – as ações desse governo. O cenário político
brasileiro a partir de então tem convivido com inúmeros ataques e ameaças aos valores de
“democracia” consolidados durante a década de 1980 e os fixados na Constituição de 1988.
1198
CARDOSO, Marcos. O Movimento Negro em Belo Horizonte. 1978-1998. 2011, p. 77.
434
Conceição Evaristo, e músicas/os como Leci Brandão, Alaíde Costa, Martinho da Vila e
Milton Nascimento. Entre os artistas estudados no decorrer desta tese, foram excluídas/os
Elza Soares, Gilberto Gil, Sandra de Sá e Zezé Motta. 1199 Uma iniciativa que evidencia,
portanto, que no cenário brasileiro do governo Bolsonaro, deve-se desconfiar dos nomes
que a Fundação Cultural Palmares optar por homenagear, contraditoriamente.
1199
< http://www.palmares.gov.br/?p=57158> Acesso 30/09/2021.
435
Documentação fonográfica:
Louis Armstrong and his All Stars. Mack the knife/Back o’town blues. Single. 45rpm. Columbia/Phillips.
1956.
Elza Soares. Se acaso você chegasse/Mack the knife. Compacto. Odeon. 1959.
Elza Soares. A Bossa Negra. Álbum. Odeon. 1960. CD. Dubas/EMI. 2003.
Elza Soares. O samba é Elza Soares. Álbum. Odeon. 1961. CD. Dubas/EMI. 2003.
Elza Soares. Maria, Maria, Maria/ Praga/ Galã enganador/ Escurinho . Compacto duplo. Odeon. 1962.
Jorge Ben. Mas que nada/Por causa de você, menina. Compacto. Philips. 1963.
Jorge Ben. Samba Esquema Novo. Álbum. Philips. 1963. CD. Universal Music. 2009.
Wilson Simonal. Tem algo mais. Álbum. Odeon. 1963. CD. EMI. 2004.
Wilson Simonal. A nova dimensão do samba. Álbum. Odeon. 1964. CD. EMI. 2004.
Jorge Ben. Sacudin Ben Samba. Álbum. Odeon. 1964. CD. Universal Music. 2009.
Jorge Ben. Ben é Samba bom. Álbum. Philips. 1964. CD. Universal Music. 2009.
Elza Soares. Na roda do samba. Álbum. Odeon. 1964. CD. Dubas/EMI. 2003.
Box. Elza Soares. Negra. 2003. CD (12 vol.) Reedição. EMI 2012.
Elza Soares. Um show de Elza. Álbum. Odeon. 1965. CD. Dubas/EMI. 2003.
Elza Soares. O neguinho e a senhorita/O que passou, passou. Compacto. Odeon. 1965.
Jorge Ben. Big Ben. Álbum. Rosenblit. 1965. Cd. Universal. 2009.
436
Wilson Simonal. 1965 (Wilson Simonal/S’imbora. Odeon). Box Wilson Simonal na Odeon (1961-1971).
EMI. 2004. CD 2.
Elza Soares. Com a bola branca. Álbum. Odeon. 1966. CD. Dubas/EMI. 2003.
Wilson Simonal. Tá por fora/Mamãe passou açúcar em mim. Compacto. Odeon. 1966.
Wilson Simonal. Vou deixar cair… Álbum. Odeon. 1966. CD. EMI. 2004.
Elza Soares. O máximo em samba. Álbum. Odeon. 1967. CD. Dubas/EMI. 2003.
Elza Soares; Miltinho. Elza, Miltinho e Samba. Álbum. Odeon. 1967. CD. Dubas/EMI. 2003.
Jorge Ben. O Bidú - silêncio no Brooklin. Álbum. Beverly/Rozenblit. 1967. CD. Universal Music. 2009.
Wilson Simonal. A Banda/ Disparada/ Quem samba fica/ Máscara negra. Compacto duplo. Odeon. 1966.
Wilson Simonal. Tributo a Martin Luther King/Deixa quem quiser falar/Ela é demais/Está chegando a hora .
Compacto duplo. Odeon. 1967.
Wilson Simonal. Show em Simonal. Álbum duplo. Odeon. 1967. CD. EMI. 2004.
Elza Soares. Elza Soares. Baterista: Wilson das Neves. Álbum. 1968. Odeon. CD. Dubas/EMI. 2003.
Elza Soares; Miltinho. Elza, Miltinho e Samba. Vol. 2. Álbum. Odeon. 1968. CD. Dubas/EMI. 2003.
Wilson Simonal. Alegria, Alegria. Álbum. Odeon. 1967. CD. EMI. 2004.
Wilson Simonal. Alegria, Alegria. Vol. 2. ou Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga .
Álbum. Odeon. 1968. CD. EMI. 2004.
Elza Soares. Elza, carnaval & samba. Álbum. Odeon. 1969. CD. Dubas/Emi. 2003.
Elza Soares; Miltinho. Elza, Miltinho e Samba. Vol. 3. Álbum. Odeon. 1969. CD. Dubas/EMI. 2003.
Jorge Ben. Jorge Ben. Álbum. Philips. 1969. CD. Universal, 2009.
Wilson Simonal. Alegria, Alegria vol.3 ou Cada um tem o disco que merece. Álbum. Odeon. 1969. CD. EMI.
2004.
Wilson Simonal. Alegria, Alegria vol. 4 ou Homenagem à graça, à beleza, ao charme e ao veneno da mulher
brasileira. Álbum. Odeon. 1969. CD. EMI. 2004.
Livretos:
CALADO, Carlos. Pixinguinha. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v.4] 2010.
MÁXIMO, João. Sinhô. [Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 25], 2010.
MÁXIMO, João. Noel Rosa (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira, v. 1). 2010.
SUKMAN, Hugo. Ataulfo Alves. (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 5). 2010.
CALADO, Carlos. Nat King Cole. (Coleção Folha Clássicos do Jazz, vol. 1). 2007.
CASTRO, Ruy. Dick Farney. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 2) 2008.
CASTRO, Ruy. Lucio Alves. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 9) 2008.
CASTRO, Ruy. Johnny Alf. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 8) 2008.
GARCIA, Lauro Lisboa. Canção do Amor Demais. (Coleção Folha Tributo a Tom Jobim, v. 17) 2013.
CASTRO, Ruy. Sylvia Telles. (Coleção Folha 50 anos de bossa nova; v. 15) 2008.
CASTRO, Ruy. Nara Leão. (Coleção Folha 50 anos de Bossa Nova; v. 6) 2008.
VIANNA, Luiz Fernando. Geraldo Pereira. (Coleção Folha Raízes da Música Popular Brasileira; v. 23).
2010.
CALADO, Carlos. Horace Silver (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 10). 2007.
CALADO, Carlos. Art Blakey (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 5). 2007.
CALADO, Carlos. Nat King Cole (Coleção Folha Clássicos do Jazz, v. 1). 2007.
CASTRO, Ruy. Wilson Simonal (Coleção Folha: 50 anos de Bossa Nova, v. 17). 2008.
CALADO, Carlos. James Brown. [Coleção Folha Soul & Blues, v, 3] 2015.
CALADO, Carlos. Otis Redding [Coleção Folha Soul & Blues, v. 10] 2015.
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2003.
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Informe 21/06/1961. Ministério das Relações Exteriores GP/MRE/172. Discursos selecionados do presidente
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Discurso do Presidente Jânio Quadros veiculado pela “Voz do Brasil” Palácio da Alvorada, 31 de janeiro de
1961. Discursos selecionados do presidente Jânio Quadros.
<http://www.portalentretextos.com.br/download/livros-
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em Brasília, a 26 de maio de 1966, durante a convenção da aliança renovadora nacional (arena ) que
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Páginas da WEB:
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negra-com-flavio-renegado-ouca.htm>
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sertaneja.ghtml>
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439
< https://dicionariompb.com.br/lucio-alves/discografia>
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Documentação fonográfica:
Roberto Carlos. O inimitável. Álbum. CBS. 1968. CD. Columbia/Sony Music. 2015.
Gal Costa. Gal Costa. Álbum. 1969. Philips. CD. Universal Music. 2010.
Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1970. CD. Abril Coleções. 2011.
Toni Tornado. Nada de novo/Dez leis/Sou negro/Meu mundo caiu. Compacto duplo. Odeon. 1970.
Wilson Simonal. Brasil, eu fico/Canção n°21/Resposta/Que cada um cumpra com o seu dever. Compacto
duplo. Odeon. 1970.
Juca Chaves. Paris tropical/ E no fundo era igual às outras. Compacto. RGE. 1970.
Juca Chaves. Take me back to Piauí/ Vou viver num arco íris. Compacto. RGE/Sdruws. 1970.
Trio Ternura. Trio Ternura. Álbum. CBS. 1971. CD. Sony Music. 2010(?).
Tim Maia. What you want to bed/These are the songs. Compacto. CBS. 1968.
Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1971. Reedição CD. Abril Coleções. 2011.
Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1972. CD. Universal Music. 2010.
Elza Soares e Roberto Ribeiro. Sangue, suor e raça. Álbum. Odeon. 1972.
Tim Maia. Tim Maia. Álbum. Polydor. 1973. CD. Abril Coleções. 2011.
Luiz Melodia. Pérola Negra. Álbum. Philips. 1973. CD. Universal Music. 2013.
Trio Ternura. Filhos de Zambi/Meu caso com você. Compacto. RCA/Victor. 1974.
Edu Lobo. A música de Edu Lobo por Edu Lobo. Álbum. Elenco. 1965.
Arena conta Zumbi. Texto e trilha sonora da peça. Álbum. Som Maior. 1965.
Hyldon. As dores do mundo/Na sombra de uma árvore/Na rua, na chuva, na fazenda/Sábado e domingo .
Compacto duplo. Polydor. 1975.
Tim Maia. Tim Maia Racional. Álbum. Seroma. 1975. CD. Abril Coleções. 2011.
Tim Maia. Tim Maia Racional. vol. 2. Álbum. Seroma. 1975. CD. Abril Coleções 2011.
Tim Maia. Tim Maia em inglês. Álbum. Seroma. 1976 [polêmica com 1978]. Abril Coleções 2011.
Bob Marley & The Wailers. Zimbabwe. Single. Island Records. 1979.
Luiz Melodia. Maravilhas contemporâneas. Álbum. Som Livre. 1976. CD. Som Livre. 2017.
Simonal. Navio Negreiro/O amor está no ar/Escola de luto/Esses tempos de agora . Cpcto duplo. RCA. 1976.
Toni Tornado. Se Jesus fosse um homem de cor (Deus Negro)/Osso duro de roer/Fica comigo/Vou apagar
você. Compacto duplo. Continental. 1976.
Livretos:
GANDRA, José Ruy. Tim Maia 1970. (Coleção Tim Maia, v. 1). Abril Coleções. 2011.
FERREIRA, Mauro. Diana Ross & The Supremes. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 6]. 2015.
CALADO, Carlos. Stevie Wonder. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 1]. 2015.
CALADO, Carlos. Marvin Gaye. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 2]. 2015.
GARCIA, Lauro Lisboa. Jackson 5. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 5]. 2015.
FERREIRA, Mauro. Gladys Knight & The Pips. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 11]. 2015.
FERREIRA, Mauro. Smokey Robinson. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 15]. 2015.
CALADO, Carlos. Oti sRedding. [Coleção Folha Soul & Blues, v. 10]. 2015.
SOUZA, Tárik. Em pleno verão (1970). [Coleção Folha O melhor de Elis Regina; v. 13] 2014.
GANDRA, José Ruy. Tim Maia. 1971. (Coleção Tim Maia; v. 2) 2011.
FERREIRA, Mauro. Barry White. [Coleção Folha. Soul & Blues; v. 7] 2015.
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<https://oglobo.globo.com/cultura/colecao-de-discos-de-tim-maia-vendida-em-bancas-com-album-inedito-
2821686>
<https://www.discogs.com/pt_BR/label/1062398-Cole%C3%A7%C3%A 3o-Milton-Nascimento>
<https://musicapave.com/artigos/box-de-livros-cds-celebram-as-carreiras-de-caetano-e-gil/>
<https://tomjobim.folha.com.br/colecao.html>
<https://promoelis.folha.com.br/#about>
443
<http://www.arquivosdoeremita.com.br/>
<https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/04/mundo-em-1968-ativista-negro-martin-luther-king-e-
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<https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-1312546998-vinil-lp-elza-soares-elza-pede-passagem-disco-
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1200
Conforme anunciado na introdução desta tese, o autor optou por demarcar em sublinhado as autoras e
autores socialmente identificados enquanto negros. Contudo, diante da impossibilidade de contato pe ssoal
com cada nome, o critério foi tomado enquanto a percepção do autor. Do mesmo modo, foram assinalados
aqueles que o autor conseguiu localizar imagens (quando já não os conheça). Portanto, reconhece -se a
possibilidade de equívocos e o autor deixa liberdade para contato para correções, através do email pessoal:
[email protected]
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