Escola Atraente Irene Lisboa 1926

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Antologia

A Escola Atraente

Irene Lisboa
Revista Escolar, Ano 6.º, N.º 10, 405-419
Dezembro de 1926

A instância do Grémio dos Professores Primários Officiais, proferi na


Sociedade de Geografia, a 5 de junho de 1926, as seguintes palavras:
Feito que me foi o convite e dado título da palestra – sublinhado o
assunto – um recurso se me oferecia: pensar, lembrar, ordenar, dar luz às
faces vivas e mortas das minhas observações pessoais.
Encarei o propósito do Grémio sob este aspecto: curiosidade e inte-
resse.
Nobre propósito, mas de difícil satisfação. Saber de uma professora
engrenada no maquinismo escolar, que significa escola atraente, escola sem
peias, nova, liberal?
Ocasião magnífica era esta para quem versado nos problemas da
educação os simplifica com seguros juízos, ocasião de comunicar ideais e de
elucidar.
A mim, obscura e desafeita ao formalismo das conclusões há-de cus-
tar-me a acilhar, a manter o espírito sob acicate. Amparando-me, porém, à
memória falarei do que fiz e do que vi, dos meus erros e tentativas. Quando
me referir à “escola atraente” sairei dos meus estreitos âmbitos e aludindo
aos meus erros darei o passo das pequenas conquistas e reconsiderações.
Sujeita continuo e continuarei a tatear, a sentir o chão falso, mas já
me surpreendo de quando em quando a olhar para trás.
Quando entrei para as escolas sentia-me embaraçada, atordoada.
Não sabia como ensinar, nem que ensinar, própriamente. Pôsto um pé fir-
mei-me, parecia-ma que tudo se cifrava nisto: amar as crianças e dominá-
las. As escolas não pedem muito mais, de facto: metodização de trabalho,
insuflação de regras, espírito de disciplina. E, quem excede estas normas
evitando as humilhações e acarinhando, regosija-se.
A mestra nova que tem o luxo de aborrecer a rotina julga que dá
grandes saltos a cada momento: aboliu as cópias, proibiu as delações, castiga

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pouco e aconselha, estabelece as composições escritas e orais, os cálculos e


os problemas dos alunos, etc.
E, se vê a classe animada, palpável nos seus esforços, contenta-se.
A minha simplicidade trazia-me satisfeita às vezes.
Passei para o ensino infantil. Criaram-se as primeiras “classes Prepa-
ratórias” anexas às escolas de ensino primário geral e uma delas coube-me
em sorte.
Direi de passagem que tive gôsto de me ver sem programa nem horá-
rios. O tempo escolar todo meu para retalhar e ocupar à vontade…
Continuei a ensinar: Antes ensinava umas coisas, agora outras: A
recortar bonecos, a fazê-los por dobragem, a desenhar, a cantar, dançar, a
jogar, etc.
Eu via gosto nos pequenos aprendizes e tirava disso estímulo. Multi-
plicava-me, fazia da minha imaginação o jardim da classe, alegria e recurso
dos apetites dos alunos. Também… numa casa armada de carteiras, sem
material de jogar nem ocupações forçadas, com vontade de agradar e de
excitar… natural era que caísse no excesso da prestidigitação.
Veio com o tempo a ameaça de fadiga, o apaziguamento da imagina-
ção sobre excitada, e mais ou melhor atenção para as crianças desobrigadas.
Muitas perguntavam-me ‘e agora?’ e aquela expectativa das maravi-
lhas começou a preocupar-me. Relaxei os excitantes, entrei a diminuir-me:
Os recreios vigiados pouco estimulados; menos trabalhos manuais e
cada vez mais pueris; os passeios mais curtos e mais frequentes (conforme o
tempo) e sujeitos às contingências exteriores, não às chamadas à observa-
ção, a rodas ou a jogos; menos aparato para excitações sensoriais; despreo-
cupação de ensinar a calcular e a falar bem; menos canto; menos imposi-
ções, enfim.
Abrandada disciplina da atividade e do prazer, observadas as crian-
ças com mais isenção, alargavam-se as deficiências da escola.
A casa grande e desconsolada, escadas para subir e descer, falta de
jardim, de animais domésticos, de ocupações caseiras. A pobreza das crian-
ças sempre evidente e subsistentes as suas necessidades e o mau aspecto
físico.

Somos às vezes como cegos que recuperam a vista e acham o mundo


vasio… Que oferece a escola às crianças livres de pressões? Como as satisfaz?
E como as considera?

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A Escola Atraente

A escola alheia-se, vagamente, sob um aspecto sentimental e particu-


lar é que sabe do que falta ou que conviria aos seus tutelados. Sufoca-a a
preocupação de preparar os espíritos, de tabelar o ensino, e receia os esca-
pes…
Longe está de fomentar uma boa sociedade, de gente pequena, embo-
ra.
Não cura de saber o que mais agrada ou aborrece, não melhora as
situações precárias: doença, fome, nudez, não proporciona gosos nem inti-
midades.
V.V. Exªas melhor saberão que eu as reais deficiências da Escola.
Retomo, pois, o meu fio.

Instituí na minha classe a ”roda do lenço”; êste nome deram-lho as


crianças. Depois de todas chegarem, de manhã, faz-se uma roda. Escôlho
uma das crianças mais asseiadas, que vai para o meio de lenço na mão.
Todas as outras mostram o lenço e à ordem de assoar – dada pela do meio –
assoam-se.
Guardados os lenços, a que manda – hoje mando eu, costumam elas
dizer – passa a revista às unhas, à cara, ao fato, etc. As excluídas vão para os
lavatórios ou ao corte das unhas.
No entanto, estimuladas pelo interêsse da distinção ou pelo receio
dos reparos, se muitas se lembram do lenço ou capricham no fato, no pen-
teado, etc., outras há que raramente merecem mandar. Duas meninas, Alda
e Deolinda, imaginativas, com a paixão do desenho e dos jogos, sociáveis,
amorosas, teem sido incapazes de se apresentar limpas dias seguidos, e há
mais casos.
¿De que servem a estas crianças os exemplos e os conselhos? De
vexame, quási.
A Escola gesticula e arenga muitas vezes para um pôço. ¿Que sabe
das vidas particulares? Conhece as mães das crianças, os seus hábitos, as
suas faltas? Quantas vezes se arroga poderes vãos ou tem exigências absur-
das.
Lembro-me da resposta de uma mulher dada a uma professora que a
aconselhava a não mandar a filha à Cantina por estar convalescente de uma
infecção intestinal. ¿ E a senhora julga que ela tem melhor lá em casa?’
Geralmente as crianças desaparecem e reaparecem e com o vago
prestar de contas – estive doente – fica tudo solucionado.

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A Escola não oferece assistência médica, nem sequer acompanha o


aluno além da porta. A Escola é rígida, indiferente. Não supre as faltas do
lar, não dá saúde, não é generosa, enfim.

Se V. V. Exªas me permitem, sem pretender remediar as faltas nem


improvisar soluções para os problemas complexos da assistência, higiene,
horários, ensino, interêsses, actividades, visionarei uma escola em funcio-
namento. É qualquer, não importa distinguir.
Reparo: Tempos de aulas, tempos de recreio, compartimentos isola-
dos, mapas, caixas métricas, carteiras e quadros.
Nos tempos de aula os alunos submetidos a aprender conservam-se
dependentes do mestre, do quadro e do livro. Aceitam, por via de regra, con-
ceitos indiscutíveis e chamados a discorrer amuam ou desvariam. Teem um
campo visual obrigado: a parede fronteira, nela se projecta o mestre e se
esquina o quadro. Devem ser atentos, pautar os esforços, não se precipitar
nem atrasar.
São freqüentes os desequilíbrios, mas o professor esforça-se por
manter a classe nivelada, daí depende toda a boa ou má probabilidade de
tornar aceite o seu ensino.
Quebra-se a uniformidade da classe, às vezes, por mais tenaz e vigi-
lante que seja a acção do seu director, estabelecendo-se os grupos: atrasados,
adiantados, diligentes, preguiçosos, como queiram…
¿Mas são realmente estas as naturais distinções ou diferenciações
que poderiam caracterisar os temperamentos? ¿Fica-se por elas conhecendo
qual é o aluno mais activo e o mais imaginoso? ¿Se êste é metódico, se aquele
é desordenado, se um é paciente e outro é volúvel?...
E, na verdade ¿ que importava ao mestre um conhecimento tão deli-
cado das qualidades dos seus alunos se delas não podia tirar o bom partido?
Uma escola é, bem ou mal comparada, um armazém de ferragem, de
lenha e de papel. Lá se agita um povo que não altera a feição antiga do lugar
e as horas regulam isócronas por um mostrador comum. Assim: agora é a
gramática, depois é a aritmética e a botânica, a história, o desenho, etc…
Nunca o professor sujeito às praxes escolares, sem liberdade, peiado,
contido, irá muito além deste desiratum: ensinar, impor.
Ensinar não é bem procurar o que mais pode convir aos alunos no
momento ou no local, o que os pode interessar; nem ver se uns precisam de
umas ocupações e certos estímulos e outros de diferentes; se há uns que
hesitam e pedem apoio e outros, mais independentes, o recusam.

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Ensinar, finalmente, não é encaminhar, é, perdoem me a semceri-


mónia, vasar, escorrer.
O aluno serve de recipiente e o professor doseia a sabedoria.

Estávamos dentro de uma Escola, se V. V. Ex.ª bem se lembram. É a


hora do recreio.
Em todas as crianças que vão saindo das classes aparentes manifes-
tações de desentorpecimento, de reacção.
Agora as correrias, os atropelos, a balbúrdia. E os ralhos, os gritos, as
navéns de poeira.. Estabelece-se, enfim, uma acalmia, um esbôço de equilí-
brio. Pronto, toca novamente para entrar. Guardam-se os lunchs, refazem-se
as formaturas.
Se o mestre tarda voam os cadernos e os livros na classe e repetem-se
as corridas. Surde quem manda, há uma reviravolta de actividades. Todos os
alunos serenam e se dispõem a imitar, a obedecer.
Nesse dia ou noutro, determinando o programa, correm êles com o
mestre as sete partidas. Imóveis, mas figurando e avaliando coisas estra-
nhas.
Raramente se relacionam os assuntos, cada lição, obrigada ao horá-
rio, fecha a porta sôbre si, a que vem não lhe toma a deixa.
Na Escola toda a criança se submete a um viver artificial, é estudan-
te.
Leva anos a aprender frases, tudo a desvia dos seus pequenos inte-
rêsses.
Pouco aproveitará do que ouve e do que copia, está presa e contraria-
da. Não parte, não mexe, não apalpa, não discute, não tem preferências…
tem deveres, é subordinada.
Aprenderá a ler, escrever e contar, se não fôr de inteligência ou
memória rebeldes, e mais umas coisas literárias, ornamentais, que pouco
servem e pouco duram.
Criaram os dogmas escolares o tipo estudante e êste tipo afecto à
Escola afasta-se do comum. O rapaz, a rapariga quando deixam de ser estu-
dantes, ao cabo da escolaridade ou nos intervalos diários de vida livre, teem
umas ocupações tão distintas das escolares e umas formas tão diferentes de
actuar que chegam a parecer outros. Não pareçam estas minhas afirmações
gratuitas, são correntes.

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A Escola acalcanha as crianças, a trôco de as formar e preparar para


um futuro indefinido obriga-as a renúncias. Deixarão de ter gostos, de ser
consoante eram, vão refazer-se.

Obtém a escola, por bem ou por mal, a sujeição do aluno e não raro o
seu apêgo e amor. Ele sente saüdades nas férias e nos termos dos cursos, é-
lhe grato, manifesta aquele humaníssimo interesse de conservar as ligações
de refazer o feito, de manter o equilíbrio moral.
Não se julgue pelo que digo, e é velho, que a Escola por mais desagra-
dável e mal conduzida é sempre boa… Não, a Escola dificilmente se humani-
za e condescende, as crianças é que são boas e plásticas.
A Escola analisando o seu poder devia realmente desdobrar-se,
amplificar as suas vistas; não assestar um óculo para o futuro, mas catar e
esmiuçar o presente.
Trabalho de tanto valor! Poder contentar, realmente, sem iludir… As
multidões de crianças que se aglomeram nas más casas, sem liberdade nem
agrados, mirificamente postas em condições de ser felizes… Ser a Escola o
lugar das satisfações, das respostas, dos bons impulsos, de jogar, de conver-
sar, de trabalhar, de descobrir, de viver…
Os 4 ou 5 anos actualmente obscurecidos por regras de ler, escrever e
contar, vividos humanamente! Os aprendizados não seriam castigos, evitar-
se-iam os logros.

Na Escola primária tudo gravita em tôrno da leitura, escrita e contas,


negue-o quem quizer. Estou dentro da escola comum e real e a ela me refiro.
Pelos livros e pela palavra se estudam os fenómenos da natureza, os
casos da consciência, os factos que inúmeras vezes se poderiam presencear
ou provocar. ¿Não é lida e decorada a geografia? ¿E a gramática, a higiene, a
educação cívica?
Tem muitas vezes o professor a ilusão de figurar melhor, de produzir
a miragem porque substitui o livro falando. «Eu explico, quem não tiver
entendido, pregunte…” E esfalfa-se de carteira em carteira a vigiar, a insti-
gar, a corrigir.
Assim faz por bem e mais consegue que, mantido num posto fixo, a
ordenar secamente. No entanto, forçado pelas circunstâncias: hábitos esco-
lares, classes numerosas, meio ingrato e desprevenido de estimulantes,
nunca abdica da sua superioridade. Êle procura, êle fornece, êle instrui o
aluno que só erra por desleixo… Êle supre o exercício dos sentidos com a fic-
ção, êle excita, êle acalma… O professor não é encarado pelos alunos como
uma criatura comum e infelizmente mal pode abalançar-se a sê-lo…

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A Escola Atraente

Mas, como eu queria dizer, à roda do ler, escrever e contar se apertam


as actividades escolares.
Lê-se muito, escreve-se muito, fazem-se muitos cálculos, muita con-
tagem. A Escola durante 4 ou 5 anos não faz mais do que obrigar a ler, escre-
ver e contar.
¿Ler coisas agradáveis, aprender a ler com pequeno sacrifício? Não,
aprender a ler… ler…
¿E escrever?
Laboriosamente, também. Primeiro riscos e depois letras, palavras,
cópias, ditados.
¿E contar?
Contar sem contar… Dizer a numeração, apanhar o mecanismo das
operações aritméticas, calcular.
E sôbre êstes três pilares joguentos assenta a cúpula da instrução.
Tudo aprendeu, tudo viu e tudo conheceu o aluno que saiu da Escola
aprovado.
Calculou o valor de muitos hectares de terreno, o volume, o pêso de
muitos hectolitros de água distilada, o preço de víveres, fazendas, prédios,
etc. Escreveu imaginárias descrições, decalcou e copiou desenhos alheios,
aprendeu muitas nomenclaturas, decorou preceitos, datas e regras, excitou
a imaginação sem a demolhar em observações e materialidades, foi à viva
fôrça o ambicioso ludibriado.
Não é meu intento desclassificar processos e métodos, quaisquer que
eles sejam. Só cada professor jungido à sua classe é que sabe a que recursos
se pode ater, e quantas vezes não sofre a inanição, o desânimo de todo o bom
esfôrço…
Mas, não sufoquemos a agitação interior, a comunicação de ideais, a
ânsia e a fé que criam o assento das conquistas e das melhorias.
Se o professor quizer…
Falseará as regulamentações, rejeitará ou não o horário oficial e o
programa, alijará a carga de autoridade quando a achar incómoda, espreme-
rá as didácticas e as mecanizações escolares até lhes encontrar suco vital.
É tudo mais fácil de dizer que de fazer estáveis vós pensando, se por
amabilidade acompanhais a minha parlenda. Também o creio e peço me
desculpais os abusivos conselhos. O mal maior, ao que parece, é a impro-
priedade do que se ensina, o desagregado de matérias, a secura dos assuntos

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que não correspondem à curiosidade e à espectativa dos espíritos em infân-


cia.
Dizem os reformadores que os pequenos remédios, as mèsinhas, não
hão-de sarar o corpo da Escola, combalido de velhice. Terão razão, mas nós
que vivemos num mundo feito, sem a faculdade de abraçar cada ideal novo,
de o implantar, de o defender, havemos de ir dando os passos cautelosos que
nos convenham. E, enfim, trabalhar de sapa é preparar as consciências…
As “Escolas novas” ainda se não contam aos milhares pelo mundo e
os pedagogos que possam dizer “vi” e “vou fazer melhor” também não abun-
dam.

As “Escolas novas” acreditadas, deslindadas do mito, bandeira de


pensadores, são para nós, mestres, as vagas promessas, o desejo. A imagina-
ção empurra-nos, mas tudo é inconsistente e desconhecido para nos servir
de apôio.
De “Escolas novas” se tem escrito e falado bastante; fácil é a qualquer
traçar um quadro pelos alheios.
A “Escola nova” assentará sempre em bom local e será alegre, orde-
nada, à vista de água, de jardins e de árvores. O seu interior é agradável e o
viver entre mestres e alunos familiar. Admitirá a mais inteligente reciproci-
dade de actos e de propósitos, melhor, um espírito de simpatia generalizado.
As funções da comunidade serão escolhidas ou distribuídas sem
arbitrarismos. Todos os elementos prestimosos e activos consoante as ida-
des, gostos e disposições.
O trabalho manual de oficina, de classe ou de campo pôsto em plano
primário, fonte de observações imediatas, de equilíbrio de funções, de gostos
simples e sãos.
O trabalho intelectual sempre estribado em observações e possíveis
concretizações. Permitir que o tempo e o meio exerçam sôbre o espírito
franca influência. Bastam às crianças para isso companhias inteligentes e a
liberdade de se manifestarem.
Jogar, trabalhar e brincar sem imposição, a gôsto, segundo hábitos
que pareçam racionais. Haver esquemas de conduta semanal, mensal ou
trimestral à vontade de mestres e alunos, preponderando a vontade dos
mestres ou a dos alunos segundo a idade dêstes.
A Escola fomentando entre os alunos o sentimento das responsabili-
dades pelos direitos dados, o respeito dos interesses colectivos e individuais,
a criação de organismos escolares tais como: associações, caixas, grupos.

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A Escola Atraente

Ser a Escola encarada como um organismo social não imitante ou


dependente dos círculos dos adultos, mas com relações estreitas e naturais
com o mundo e sujeito às suas influências. Representar sem ludíbrios o
campo de expansão dos corpos e espíritos a formar. Permitir a revelação das
tendências, a escolha de actividades, o desenvolvimento das aptidões. Des-
cobrir virtudes, manter harmonias… Tornar felizes, sãos e hábeis os seus
tutelados. Nunca figurar como um quadro de normas infalíveis, impostas
sem ensaio, mas sim como um permanente laboratório de experiências e
adaptações. Fugir a aconselhar por hábito, liberalizar instrução e educação.
Se educar comporta desenvolver sentimentos, deverá a boa Escola
rodear-se de estímulos materiais e morais que provoquem a compreensão, o
culto da beleza, da bondade e da sinceridade.
A “Escola Nova” não é o paraízo dos justos, a meu ver, dela não é eli-
minado o trabalho e a pena. Mas o trabalho será condicionado às fôrças dos
pequenos trabalhadores e por eles bem aceite. O gôsto e o esfôrço não se
encontrarão dissociados, como frequentemente acontece, mas irmanados de
molde a reduzir os descontentes.
Este meu crivo tosco e largo não deve espuar as melhores caracterís-
ticas de uma “Escola Nova”, joeira ideias e sem muita responsabilidade…

As nossas Escolas, tornando à vaca fria, são desconsoladas e não


teem cunho seu. Não aconchegam, não cativam, são escolas…
A Escola não é a casa! Há-de haver quem opine.
Evidentemente. Mas, dispensar-se-iam escolas se o meio familiar
fosse considerado bastante às necessidades expansivas, sociais, das crian-
ças. Qualquer parente de boa vontade ensinaria a ler e escrever.
A Escola não é a casa, segundo a minha e a geral consciência, mas
lucraria em se aproximar da casa.
Se no lar pode haver conforto e boa ordenação, correspondendo cada
objecto à solicitação dos olhos, tendo cada lugar sua particularidade, porque
há de a Escola, onde as crianças gastam parte da sua infância, manter-se
impessoal e sêca?
As crianças na Escola vivem contrafeitos. Se lá tivessem ao menos os
seus cantos e prateleiras, brinquedos, utensílios próprios e se sentissem com
a liberdade de arrumar e enfeitar! Ao menos, digo… quando esta aspiração
corre mundo a esbarrar e a tropeçar em mil obstáculos…
As crianças em suas casa prestam muitos serviços, tornam se úteis,
mórmente as pobres. Chegando à Escola não apanham um papel. É o divór-
cio das ocupações, a vida aos retalhos, prematura, infelizmente.

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Se lhes dessem a escolher entre a vida escolar e a de casa, tenho que


elas se inclinariam para a de casa que lhes permite movimentação e ocupa-
ções simples. Não é crível que a modôrra sobre as carteiras tente criaturas
instáveis.
A vida das crianças na Escola devia ser alegre, activa, natural, seme-
lhante quanto possível à das famílias. E a Escola literalmente oferecer o que
o lar não tem ou não pode dar.
¿Manifestam-se antagonismos entre grandes e pequenos? ¿Os filhos
preguntam e os pais não respondem?
¿Parte-se e perde-se e há ralhos? ¿Impacientam-se as crianças, curio-
sas e activas, quando são contrariadas? ¿Tornam-se rebeldes e indóceis?
¿Falta-lhes, finalmente, a sociedade dos seus semelhantes, a partilha dos
gostos, a agitação livre, a disputa, o direito de primazia?
A Escola, que supre o lar, nas possíveis medidas, apresenta-se e não
diz: proíbo-te, cala-te, obedece me, mas ¿ fala, que desejas? ¿que te falta?
E ainda: não és fraco, nem inábil, eras me indispensável… estimo a
tua presença, constranger pouco. Conta aos teus pais o que aqui fazes, trá-
los cá.
Ora a Escola diria estas coisas pelas bôcas de todos os alunos e mes-
tres que bem se entendessem e amassem.
Diria ou dirá. A terra é grande e os benefícios cubiçados teem sempre
raís.

Tomarei agora por tema a rua.


Sermonando os pequenos vádios a Escola finge ignorar que a rua
com todos os seus perigos é a nesga do mundo livre, o campo dos jogos, a
mestra da sagacidade…
Sempre que uma criança diz: é da minha rua, foi na minha rua, fala
da sua rua como a via de todo o trânsito e o lugar dos mais impressivos
espectáculos.
A rua antepõe-se à Escola com grandes valores desprezados e aboca-
nhados.
A Escola devia espiá-la por intermédio das crianças e copiar-lhe as
boas artes.
A rua é franca e chama a toda a hora sete sentidos espertos para a
defeza e observação, cria os seres da oportunidade, expeditos e inventivos.
Mas, como é de grandes e de pequenos e a inocência destes se cor-
rompe com as gírias grosseiras e outros maus exemplos – pedincha, furto,

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A Escola Atraente

pancadas, etc., - deixa a desejar no capítulo moral… e também não faculta


modos de trabalho contínuo, responsável.
A rua podia inspirar a Escola pelo que tem de liberal e variado. Não
era a invasão de veículos e peões pelos pátios escolares, entende-se, era a
persuasão, o conselho de que as crianças a ver sem pressões se habituavam a
distinguir e a aplicar-se melhor.
É muito vago este alvitre, mas V. V. Exas bem compreendam que o
móbil da minha palestra é aludir como possa aos atractivos da Escola e não
pontuar as suas formas de remodelação.

Queria eu dizer que participando a Escola das qualidades dos meios


familiares à criança perderia a rigidez que a mantém incomunicativa e
superficial.
“A minha Escola”, frase habitual na boca das crianças, devia signifi-
car “Escola do meu coração”. Relevam V. V. Exas a pieguice que pretende
englobar todos os gostos e boas satisfações.
Sensíveis ou insensíveis as mudanças na Escola deviam aspirar sem-
pre a atrair o aluno e a aligeira-lhe os labores. E assim será…
Vejam V. V Exas ¿ o canto, os trabalhos manuais, os jogos, o desenho
não eram ainda há poucos anos olhados como luxos? ¿Quem os cultivava em
Escolas sem ser a título de experiência? E hoje fazem parte dos programas.
Se não teem a aplicação regular das mais disciplinas é porque ainda não são
considerados de importância indiscutível mas, enfim, estão introduzidos e
com o tempo firmarão os seus direitos.
Das metodologias se dirá também que tendem a amenizar-se, que se
tornam mais capciosas.
As crianças nestas eras democráticas ganham o seu quinhão de aten-
ções e de respeito. Abençoados os pedagogistas e os sociólogos que se afadi-
gam a abrir caminhos limpos, a arredar o lixo do tempo…

Cada professor na sua Escola imprime o cunho dos seus hábitos ou


do seu interêsse e, fácil lhe é, interrogando-se, avaliar se pode mais, se tem
virtudes por experimentar. Ouvindo e vendo sem fazer muitas preguntas,
observando sem paixão, surpreenderá os íntimos gostos, os temperamentos.
Daí por diante abrem-se-lhe caminhos.
Verdade é que as classes são desagradáveis e atravancadas de cartei-
ras convidando as crianças à imobilidade e à espectativa. Só uma imagina-
ção esperta descobrirá os poucos palmos de chão livre…

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Irene Lisboa

Mas, enfim, permitir que os alunos escolham as suas companhias,


que circulem na classe, que vão à janela e ao quadro, que se distraiam com
estampas e caixinhas, que falem, que se contraditem e se zanguem até, é
repudiar aquela bitola que media todas as virtudes pela capacidade de sujei-
ção.
Com esta relativa liberdade outros bens podem surgir. ¿A leitura de
qualquer livro recreativo apresentado pelo professor ou por algum aluno?
¿Um jôgo, uma narrativa ou um passeio oportunos? A escolha dos trabalhos,
dos assuntos de lição? ¿ As conversas, as cópias e as imitações francas, as
coisas novas para mostrar ou descrever?
Em vez de me pôr a dar voltas concêntricas em tôrno da “liberdade
condicionada”, prefiro ocupar-me das disciplinas recreativas, dos passeios,
dos museus e das festas.

É costume intensificarem-se os trabalhos manuais para abrilhanta-


rem as exposições escolares e ensaïarem-se cantos, exercícios gimnásticos e
danças para as festas. Dêstes labores esporádicos, intensivos, resulta geral-
mente a fadiga e o desequilíbrio da classe. Depois veem ainda as pressas, a
febre de recuperar o perdido e o recuo de umas disciplinas para o avanço de
outras. As crianças sujeitas a estas jigas-jogas é que pagam, sem culpas…
Porém cantar e dançar, cultivar as habilidades manuais e jogar podia
e devia entrar regularmente na semana lectiva. Não era em um só dia, por
atacado, ou espectaculosamente. Era hoje e amanhã, após uma lição mais
exgotante, para aclamar, para bem dispor, ou de permeio com as disciplinas
que até agora tem rejeitado os auxílios estranhos.
Estranhos ou novos, aqueles que se reconhece já, poderem provocar
mais agrado e boas excitações.
Estão introduzidos e aceites, geralmente, os jogos sensoriais para os
inícios o cálculo, da leitura e da escrita e emprega-se a modelação e o dese-
nho sob qualquer pretexto e a todo o momento durante as aulas.
Fazem-se “croquis” do que se vê e do que se viu – melhor se represen-
ta muitas vezes desenhando que parolando – e também se modela o que ape-
tece ou convém.
Estas formas de exteriorização do pensamento, acessíveis até a
crianças de 5 anos e de menos, empregadas durante a escolaridade tornam
os alunos bons observadores, equilibrados. Modelar e desenhar emparelham
com ler e escrever quanto ao valor educativo, e quantas, quantas vezes lhes
servem de bordão!

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A Escola Atraente

Não falo dos trabalhos de papel, de cortiça e de arame, etc., que per-
tencem aos programas da instrução primária, para poupar aos meus Ex.mos
e benévolos ouvintes delongas enfadonhas.
Falarei dos museus. A palavra museu é bafienta, arrasta consigo uma
figuração de tranquilidade absoluta. Museus significa: lugar de reserva,
vitrines invioláveis, paredes enfeitadas.
E quem não tem vitrines nem objectos dignos de apartar para todo o
sempre fica julgando… O que fica julgando não sei, sei só que nas Escolas o
museu escolar é qualquer dúzia de pedras, de frascos, de inutilidades. Têm-
se por obrigação e as histórias vagas que lhes dizem respeito esquecem.
Um museu escolar – não vou dar novidades – deve ser qualquer coisa
de andar na mão. É toda a casta de coisas bonitas e feias que as crianças
apanham e guardam, as flores que estampam, os insectos que caçam, as
colecções de conchas e de penas, os inúmeros objectos que ficam evocando
os lugares e as circunstâncias. Segundo as idades e o grau de cultura serão
as crianças melhores ou piores seleccionadoras, mas como o museu indivi-
dual ou da classe serve para conservar os documentos e inspirar o espírito de
pesquisa e de observação, não é considerado inútil por lhe faltar sciência.
Numa caixa de papelão se pode armar um museu e qualquer aluno das pri-
meiras classes pode ser seu dono e apresentante. Cumpre aos mestres favo-
recer a tendência de colecionar, tão expontânea nas crianças. E oferecer-
lhes meios de verem e reconhecerem.
V.V. Exas estão notando que eu me encaminho para as saídas, para os
passeios, para as visitas a locais escolhidos.

É estúpido levar crianças à frente de um monumento só porque êle


represente descobertas ou conquistas, ou mostrar-lhes paramentos e qua-
dros antes de elas terem a curiosidade de tais assuntos. São as falsas lições
de coisas, o teatro com pano de fundo e um único actor: o mestre.
Mas, fora estes exageros, quantas coisas lindas e agradáveis para
mostrar!
Um passeio pode ser sempre uma festa, tanto que ver e que mexer e
que descobrir! Mas à vontade… e para bons sítios…
As crianças das escolas públicas vivem tão necessitadas de ver árvo-
res e água! Trazem uma bebedeira de alegria quando voltam das saídas e
falam que tempos do que fizeram e viram. Pena é que os passeios se não
repitam a miúde, normalmente, como hábito escolar. Por via de regra tudo o
que se não faz parece difícil de fazer e os passeios ainda estão no número
dos actos incómodos. Os meios de transporte são caros… os jardins são lon-
ge… nunca faltam impedimentos. Mas os professores de boa vontade ven-

Investigar em Educação - II ª Série, Número 4, 2015 167


Irene Lisboa

cem-nos, geralmente. E aproveitam do melhor modo o entusiasmo dos alu-


nos.
Na classe, depois, provocam os relatos, as conversas animadas e
impressivas, as evocações.
Fora conversar à vontade, as crianças que teem o hábito de guardar
recordações apresentam-nas. São observadas e historiadas, ficam documen-
tando o passeio.
Também se fazem as descrições escritas ou desenhadas, ao gosto dos
alunos, e depois do intervalo conveniente de horas ou de um dia a sua apre-
ciação crítica.
Quem não contrafaz as crianças com exigências de estilo e de exacti-
dão obtém delas manifestações encantadoras de graça e de personalismo.
A Escola mal mobilada e feia permite estas liberdades e ainda outras.
V. V. Exas mentalmente as estarão enumerando, e eu só vejo a recuar os
espantalhos de terror que antigamente coagiam as crianças ao silencio e à
dissimulação: as carapuças, os letreiros nas costas, as palmatoadas e as
reguadas, as repreensões severas, as lições de cór, as obrigações penosas e
estéreis.

Deve haver por êsse mundo interessantíssimas Escolas – sociedades


de crianças – onde viver seja criar fôrças de amar, de querer, de gosar.
Onde os olhos e as mãos façam inventários repetidos ao que topem
sem haver quem peça contas, sem o flagelo da ampulheta: passa o tempo…
está exgotado o assunto…
Escolas onde não se coma por esmola, onde se brinque e onde se
repouse convenientemente, com mobiliário comum, roupas, plantas e ani-
mais domésticos e todos os chamarizes possíveis dos interêsses francos,
naturais. Escolas não consideradas fábricas de escreventes, leitores e mate-
máticos.
Mas quantos quadros idealistas e romances ainda serão precisos para
as impor e generalizar!
Vale a pena a qualquer, para se não secar de impotência ou desman-
dar-se, olhar à roda, seccionar o círculo da vida e repisá-lo.
Por mim… Quando me encontro entre os vinte ou trinta petizes, ale-
gres e pobres, que me chamam mãe por engano e riem, que me pedem histó-
rias e brincadeiras, que me contam mil puerilidades e julgam que os passa-
rinhos os entendem, considero a vida espiritual deles muito mais desafoga-
da que a minha, em criança.

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A Escola Atraente

Eu não andava descalça nem mal vestida e não passava fome, mas
sofria atritos sem conta e era rebelde e triste.
Mais elástica, realmente, é a norma disciplinar actual que permite às
professoras alegrar os seus alunos e amá-los.
Estas e outras observações eu faço pensando que dos pequenos pode-
res algum benefício urde sempre.
Não se dirá, senhores, que atraente seja toda a escola onde o espírito
afectivo paire, que ele transfigure recintos e cubra falhas. Mas sem êle muito
bons propósitos sairiam pecos…
Tudo fica por dizer sôbre a escola atraente. Quem não viu, não sabe, e
fantasia, é o que me acontece.

Irene Lisboa

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