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Peticionamento - Existe?
José Maria da Costa
quarta-feira, 7 de dezembro de 2022
Atualizado às 08:44

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O leitor João Guilherme Ponzoni Marcondes envia à coluna Gramatigalhas


a seguinte mensagem:

"Caro professor, em consulta ao Vocabulário Ortográfico da Língua


Portuguesa disponibilizado no sítio eletrônico da Academia Brasileira de
Letras, descobri que lá não se registra a palavra 'peticionamento', a qual
vem sendo amplamente empregada no meio jurídico e inclusive dá
nome ao procedimento obrigatório para qualquer manifestação
processual atualmente, por meio do assim chamado 'peticionamento
eletrônico'. Como devemos resolver a questão de nos referir a tal
procedimento, dada a nomenclatura utilizada pelos Tribunais?".

Envie sua dúvida


1) Um leitor anota que, em consulta ao Vocabulário Ortográfico da
Língua Portuguesa disponibilizado no sítio eletrônico da Academia
Brasileira de Letras, descobriu que nele não se registra a palavra
peticionamento, a qual vem sendo amplamente empregada no
meio jurídico e até mesmo dá nome ao procedimento obrigatório
para qualquer manifestação processual atualmente, por meio do
assim chamado "peticionamento eletrônico". E indaga como resolver
a questão de referência a tal procedimento, dada a nomenclatura
utilizada pelos Tribunais.
2) Num primeiro plano de premissas, pode-se dizer, em termos
práticos, que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa é uma
espécie de dicionário que lista as palavras reconhecidas oficialmente
como pertencentes à língua portuguesa, bem como lhes fornece a
grafia oficial.
3) Também conhecido pela sigla VOLP, seu objetivo é reconhecer a
existência e consolidar a grafia dos vocábulos, além de classificá-los
pelo gênero (masculino ou feminino) e categoria morfológica
(substantivo, adjetivo...).
4) Difere dos dicionários convencionais, por não explicar usualmente
o significado dos termos que registra.
5) É elaborado pela Academia Brasileira de Letras, que tem a
delegação e a responsabilidade legal de editá-lo, desde a vetusta Lei
Eduardo Ramos, de n. 726, de 8 de dezembro de 1900, delegação
essa confirmada por diversos outros diplomas legais posteriores.
6) Finalizando as considerações quanto a essa primeira premissa,
reitera-se que, incumbido por legislação específica para sua
confecção, quem o elabora goza de autoridade para, nesse campo,
dizer o Direito, motivo por que, ao consultá-lo, legem habemus e
devemos prestar-lhe obediência, como é nossa obrigação também
com respeito aos outros diplomas legais. E qualquer discussão ou
divergência entre o VOLP e os dicionaristas há de ficar para o plano
da ciência, não consistindo, todavia, em válvula que permita o
descumprimento de suas determinações.
7) Dizendo de outro modo, é preciso realçar que os estudiosos da
língua e os dicionaristas, sem sombra de dúvida, prestam relevantes
serviços ao vernáculo. Não são eles, porém, as autoridades para dizer,
com valor oficial, sobre a existência ou não de algum vocábulo em
nosso idioma, bem como sobre sua grafia e suas peculiaridades, ou
mesmo sobre sua correção no idioma. Essa atribuição cabe, com
exclusividade, à Academia Brasileira de Letras, de modo que, na
divergência entre os gramáticos, filólogos e dicionaristas de um lado,
e o VOLP de outro, há de prevalecer, nesse campo, o que registra
este último.
8) Num segundo plano no campo das premissas, é preciso atentar ao
que seja um neologismo. Napoleão Mendes de Almeida o vê
consistindo "no emprego de palavras novas, criadas pela ciência, por
organizações modernas (telégrafo, autódromo, astronauta, telex,
xerox) ou de palavras antigas tomadas em sentido novo
(computador, satélite)".
9) A dupla exigência para formação do neologismo (estruturação
adequada em nosso idioma + ausência de sinônimo perfeito em
nossa língua) encontra-se em diversos estudiosos, além de expressa
em lição do mesmo Napoleão Mendes de Almeida: "Para que se
justifique, o neologismo deve, antes de tudo, ser necessário e, depois,
formado de acordo com o gênio da língua. Não sendo conveniente
nem corretamente formado, o neologismo passa a ser barbarismo".1
10) Exatamente por causa dessa dupla exigência para a formação de
um neologismo - estruturação adequada no idioma + ausência de
sinônimo - foi que, anos atrás, apesar da defesa de alguns
gramáticos, acabou sendo condenado o emprego da palavra
imexível, feito por um ex-ministro. Por um lado, sua formação estava
integralmente de acordo com as regras de nossa língua, quer quanto
ao prefixo, quer quanto ao sufixo utilizados. Deu-se, porém, que já
havia no idioma sinônimos perfeitos para o vocábulo, representados
pelas palavras intangível e intocável. A demora ou recusa, aliás,
quanto à inserção de novos vocábulos em nosso idioma, com
frequência esbarra exatamente nessa desnecessidade, quando há
palavra que corresponda com perfeição a seu significado, o que
parece acontecer atualmente com expertise (experiência, perícia,
preparo) e performance (desempenho).
11) Quanto à excessiva aversão a que se incorporem palavras novas ao
nosso léxico, é de se meditar nas palavras judiciosas de Júlio
Nogueira, o qual, então, falava especificamente do francês: "Acaso a
nossa língua pode apresentar palavras tiradas dos próprios celeiros
para exprimirem todas as ideias concernentes à arte da navegação,
da guerra, das modas, do esporte e tantas outras? Não sejamos, pois,
intolerantes e, principalmente, parciais como nos temos revelado em
desfavor das contribuições que recebemos desde tempos remotos
de uma das mais cultas línguas do universo, senão a mais culta".2
12) Também não se olvide a lição de José Oiticica: "Se o neologismo
necessário é bem feito, enriquece a língua, aumentando-lhe o poder
de expressão e a maleabilidade; não assim o neologismo descabido,
capaz de usurpar as funções de boas palavras ou construções
clássicas. Pior ainda o vezo das novidades léxicas e sintáticas".3
13) Com base nessas duas premissas, passa-se ao raciocínio acerca da
dúvida trazida pelo leitor: (i) é certo que o vocábulo peticionamento
não é registrado pelo VOLP, o que, em princípio, demonstra que ele
não existe oficialmente em nosso idioma; (ii) antes de condená-lo,
porém, deve-se ver se ele se ajusta aos requisitos normalmente
exigidos para permitir seu uso na condição de um neologismo; (iii)
num primeiro aspecto, pode-se dizer que tem ele uma estruturação
adequada em nosso idioma, já que, advindo de peticionar e tendo
como cognato peticionário (vocábulos esses regularmente
constantes do VOLP), é formado nos mesmos moldes de tantos
outros substantivos de estruturação similar, como abafamento,
branqueamento, descontentamento, enfrentamento,
pronunciamento; (iv) num segundo aspecto, uma atenta análise faz
concluir que ele preenche o requisito de ausência de sinônimo em
nossa língua; (v) em realidade, para o fim do que se indaga na dúvida
do leitor, peticionamento é o ato de peticionar, de apresentar
formalmente uma petição em autos de processo judicial; (vi) e, para
portar esse conteúdo semântico, não servem os vocábulos
normalmente dados como sinônimos em tal situação, os quais têm
sentido aproximado, mas não totalmente substitutivo; (vii)
analisando apenas os verbos mais chegados com significação
semelhante, vê-se que, por um lado, tecnicamente falando em
termos processuais, peticionar é algo mais e/ou particularmente
diverso de expor, expressar, exprimir ou manifestar; (viii) por outro
lado, peticionar pode abranger outras funções além de exigir, pedir,
reclamar, requerer, rogar, solicitar ou suplicar.
14) E, assim, voltando à consideração direta da dúvida do leitor,
podem-se fazer as seguintes ponderações: (i) por um lado, é certo
que o VOLP não registra o vocábulo peticionamento, e este, assim,
não existe oficialmente em nosso idioma; (ii) por outro lado,
preenche tal palavra claramente a dupla exigência para a formação
do neologismo em nossa língua (estruturação adequada em nosso
idioma + necessidade de seu emprego ante a ausência de sinônimo
perfeito em nossa língua); (iii) sendo assim, pode perfeitamente ser
empregado peticionamento em nosso idioma na condição de real
neologismo e para os fins pretendidos na expressão técnica
peticionamento eletrônico; (iv) e o leitor pode crer que, num futuro
não distante, a ABL vai inserir tal palavra oficialmente em nosso
idioma, registrando-a normalmente no VOLP.
__________
1 ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo:
Editora Caminho Suave Ltda., 1981, p. 208.

2 NOGUEIRA, Júlio. A Linguagem Usual e a Composição. 13. ed. Rio de Janeiro:


Livraria Freitas Bastos, 1959, p. 53.

3 OITICICA, José. Manual de Estilo. 7. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,
1954, 33-34.

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