O Barqueiro

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Ficha Técnica

Título: O Barqueiro
Título original: Ferryman
Autor: Claire McFall
Traduzido do inglês por Elsa T. S. Vieira
Edição: José Prata / Lua de Papel
Revisão: Catarina Sacramento
Capa: Rui Rosa / Lua de Papel
ISBN: 9789892343099

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
Tel.: (+351) 214 272 200
Fax: (+351) 214 272 201

© 2017, Claire McFall


Publicado original e inicialmente em 2013 pela Templar Publishing. Publicado em 2017 pela Floris Books.
Esta edição foi publicada com o acordo de Margot Edwards Rights Consultancy, U.K., a trabalhar em nome da Ben
Illis Agency, U.K. e juntamente com a RDC Literary Agency
em Espanha.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
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www.leya.pt
O Barqueiro
Claire McFall

Traduzido do inglês por


Elsa T. S. Vieira
PRÓLOGO

Sentou-se na encosta e esperou.


Mais um dia, mais um trabalho. À sua frente, os carris ferrugentos
desapareciam nas profundezas da boca do túnel. Na penumbra cinzenta do
dia nublado, a luz mal penetrava para além do arco de pedra da abertura. Os
seus olhos nunca se afastaram da entrada. Estava expectante, mas enfadado.
Não sentia o frémito da excitação nem qualquer centelha de interesse.
Há muito que deixara de sentir curiosidade. Agora, a única coisa que
interessava era completar a tarefa. Os seus olhos frios e clínicos pareciam
desprovidos de vida.
O vento soprou, agitando o ar gelado à sua volta, mas ele não sentiu o frio.
Estava concentrado, vigilante.
A qualquer momento...
UM

As primeiras gotas pesadas de chuva anunciaram-se, tamborilando um


ritmo irregular no telhado de chapa por cima da plataforma do comboio.
Dylan suspirou e escondeu mais o rosto na gola do grosso casaco de inverno,
tentando aquecer o nariz gelado. Sentia os pés a ficarem entorpecidos, e bateu
com as botas no cimento rachado para repor a circulação. Olhou para os
carris pretos e reluzentes, cobertos de pacotes de batatas fritas, latas
ferrugentas de refrigerante Irn Bru e pedaços de chapéus de chuva partidos. O
comboio estava quinze minutos atrasado e ela, na sua ansiedade, chegara dez
minutos mais cedo. Não podia fazer mais nada senão esperar, olhar e sentir o
calor do corpo a dissipar-se lentamente.
Enquanto a chuva começava a cair com mais intensidade, o desconhecido
ao lado dela tentou, em vão, ler o seu jornal gratuito, embrenhado num artigo
sobre uma macabra série de homicídios no West End. O telhado era uma
fraca proteção contra a chuva, e as gotas caíam sobre o jornal, explodindo e
espalhando a tinta em manchas ilegíveis. Com um resmungo audível, o
homem dobrou-o e enfiou-o debaixo do braço. Olhou em volta, à procura de
outra distração, e Dylan desviou imediatamente o olhar. Não queria ter de
fazer conversa de circunstância.
Não fora um dia bom. Por algum motivo, o despertador não tocara e, para
dizer a verdade, a partir daí tinha sido sempre a piorar.

::::

— Acorda! Levanta-te! Vais chegar atrasada. Estiveste outra vez ao


telefone até às tantas ontem à noite? Se não consegues organizar-te sozinha,
terei de assumir um papel muito mais ativo na tua vida social, e garanto-te
que não vais gostar!
A voz da mãe ecoou, invadindo um sonho com um atraente desconhecido.
O tom agudo tinha capacidade de cortar vidro, por isso o subconsciente de
Dylan não era grande adversário. A mãe continuou a queixar-se enquanto
percorria o comprido corredor, mas Dylan já deixara de a ouvir. Estava a
tentar lembrar-se do sonho, guardar alguns pormenores para mais tarde.
Caminhava lentamente... uma mão quente na sua... no ar um aroma
embriagante a folhas e a terra molhada. Dylan sorriu, sentindo o calor
borbulhar-lhe no peito, mas o frio matinal dissolveu a imagem antes que
conseguisse fixar o rosto dele na mente. Com um suspiro, abriu os olhos e
espreguiçou-se, regalada no calor e aconchego do grosso edredão, e depois
olhou para o relógio na mesa de cabeceira.
Oh, céus.
Ia chegar tão atrasada. Correu pelo quarto e tentou atabalhoadamente reunir
roupas suficientes para compor um uniforme escolar completo. Passou a
escova pelo cabelo castanho, pelos ombros, criando a habitual juba frisada.
Uma vida de cabelo indomável. Dylan nem sequer olhou para o seu reflexo
enquanto escondia o cabelo num carrapito discreto. Era um mistério para ela
como é que as outras raparigas conseguiam criar penteados perfeitos e
artísticos. Mesmo quando se esforçava por esticar o cabelo com o secador,
dois segundos ao ar livre era quanto bastava para o cabelo rebelde voltar ao
seu estado natural.
Estava fora de questão não tomar banho, mas hoje tinha de se contentar
com uma voltinha rápida debaixo do chuveiro, sob uma água que estava
sempre a escaldar, por mais botões que pressionasse ou torneiras que rodasse.
Limpou-se com uma toalha áspera e enfiou a saia preta, a camisa branca e a
gravata verde que compunham o uniforme. Com a pressa, prendeu uma unha
falhada no último par de collants e fez uma malha enorme. Rangeu os dentes,
atirou os collants para o lixo e correu, de pernas nuas, até à cozinha.
Uma olhadela rápida ao frigorífico revelou que não havia nada que pudesse
comer em movimento. Não tinha tempo para ir ao café. Teria de aguentar a
fome. Pelo menos ainda tinha dinheiro suficiente no cartão da escola para
uma refeição decente. Era sexta-feira, o que geralmente significava peixe
frito com batatas fritas — embora, claro, nunca houvesse sal, vinagre ou
mesmo ketchup. Nem pensar em tal coisa, naquela escola fanática pela saúde,
pensou Dylan, revirando os olhos.
— Fizeste a mala?
Dylan virou-se e viu a mãe, Joan, à porta da cozinha. Já estava vestida com
o uniforme para o longo turno de doze horas no hospital.
— Não. Trato disso depois da escola. O comboio é só às cinco e meia...
tenho muito tempo. — Metediça como de costume, pensou Dylan. Às vezes,
parecia que a mãe não conseguia conter-se.
Joan ergueu as sobrancelhas com ar desaprovador, o que lhe aprofundou as
rugas que tinha na testa, apesar dos cremes e tónicos caros que aplicava todas
as noites.
— És tão desorganizada — começou Joan. — Devias ter tratado disso
ontem à noite, em vez de estares na conversa com os teus amigos...
— Está bem! — interrompeu Dylan, irritada. — Está descansada que eu
trato disso.
Joan parecia ter muito mais coisas a dizer, mas simplesmente abanou a
cabeça e virou-lhe costas. Era fácil adivinhar o motivo para o mau humor da
mãe. Ela desaprovava veementemente esta viagem de fim de semana de
Dylan, para visitar o pai, o homem que Joan prometera em tempos amar e
respeitar até que a morte os separasse — ou a vida, neste caso.
Com um palpite de que a mãe ainda não tinha desistido do assunto, Dylan
calçou-se, vestiu o casaco, pegou na mala e correu pelo corredor, tentando
ignorar os ruídos do estômago vazio. Parou à porta para gritar um adeus
obrigatório — respondido apenas com silêncio — antes de sair para a chuva.
Ao fim de quinze minutos de caminhada, o seu casaco de inverno barato já
desistira de lutar contra a chuva e Dylan sentia a água a infiltrar-se na camisa.
Um pensamento súbito e horrível fê-la estacar abruptamente no passeio,
apesar da chuva. Camisa branca. Chuva. Camisa molhada. Lembrou-se de
remexer na gaveta da roupa interior à procura de um soutien lavado e de
encontrar apenas um — azul-escuro.
Soltou uma imprecação que lhe teria valido um castigo, caso a mãe
estivesse por perto. Não tinha tempo de voltar a casa. Na verdade, mesmo
assim, já ia chegar atrasada.
Fantástico.
De cabeça baixa, correu sobre as poças na rua principal, passando pelas
lojas de instituições de solidariedade, por sonhos fracassados com montras
entaipadas, por cafés com mobílias baratas e bolos ridiculamente caros, e por
uma ou duas casas de apostas. Não valia a pena tentar evitar as poças, porque
já tinha os pés completamente encharcados; essa era a menor das suas
preocupações. Pensou por um momento em atravessar a estrada e esconder-se
no parque até Joan sair para o trabalho, mas sabia que não seria capaz de o
fazer. Não tinha coragem. Resmungando entre dentes uma série de queixas
intercaladas com obscenidades, virou para uma rua lateral e dirigiu-se aos
portões da Academia Kaithshall.
A escola, um edifício de três pisos com salas em variados estados de
degradação, fora, Dylan tinha a certeza disso, concebida para sufocar
qualquer entusiasmo, criatividade e, mais importante ainda, espírito. A
primeira aula era na sala da professora Parson, no último piso — mais um
cubo de aspeto desolador que a professora tentara animar com posters e
trabalhos expostos nas paredes. Estranhamente, os seus esforços só tornavam
o espaço ainda mais deprimente — principalmente agora, apinhado com
trinta clones que tagarelavam sobre parvoíces insignificantes como se fossem
dramas devastadores.
A entrada tardia de Dylan atraiu olhares de censura. Assim que se sentou, a
voz aguda e lamurienta da professora ergueu-se acima do ruído da sala.
— Dylan. Casaco.
Era espantoso como os alunos tinham de ser bem-educados com os
professores, mas o contrário já não acontecia, pensou Dylan.
— Tenho frio. Está um gelo lá fora. — E cá dentro, pensou, mas não o
disse em voz alta.
— Não me interessa. Casaco.
Dylan pensou em resistir, mas sabia que seria inútil. Além disso, mais
queixas só iam atrair as atenções para ela, algo que, regra geral, tentava
evitar. Com um suspiro, debateu-se com o fecho de plástico e despiu o
casaco. Um olhar rápido confirmou os seus receios. A blusa ensopada estava
transparente e, por baixo, o soutien azul-escuro parecia brilhar como um
farol. Encolheu-se na cadeira e perguntou a si própria durante quanto tempo
conseguiria ficar invisível.
A resposta era cerca de quarenta e cinco segundos.
Começou tudo pelas raparigas, claro. Ouviu risinhos algures à sua
esquerda.
— O que é? — perguntou a voz trocista e áspera de David «Dove»
Macmillan por entre os risos.
Dylan olhou resolutamente para o quadro, mas na sua mente visualizou
uma imagem clara como água de Cheryl e das amiguinhas a sorrirem,
deliciadas, enquanto apontavam para ela com as unhas perfeitamente
arranjadas. Dove era tão obtuso que precisaria de mais alguns segundos para
perceber sequer para onde elas estavam a apontar, e nunca perceberia qual era
a piada se não lhe dessem uma pista gigantesca. Cheryl trataria disso,
murmurando muito baixinho «Olha o soutien dela», ou talvez com um gesto
adequadamente obsceno. A linguagem gestual estava mais ao nível dos
imbecis dos rapazes desta turma.
— Ha! — Mais uma vez, viu mentalmente Dove a cuspir saliva e Irn Bru
para cima da secretária, agora que finalmente percebera o que se passava. —
Ei, Dylan, estou a ver-te as mamas!
Dylan fez uma careta e encolheu-se ainda mais na cadeira, enquanto os
risinhos se transformavam agora em gargalhadas. Até a professora se estava a
rir. Cabra.
Desde que Katie partira, ninguém naquela escola parecia estar sequer no
mesmo planeta que Dylan, quanto mais ser da mesma espécie. Eram ovelhas,
todos. Os rapazes vestiam fato de treino, ouviam hip-hop e passavam a noite
no parque de skate. Não a andar de skate, claro, apenas a vandalizar as coisas
e a beber qualquer bebida alcoólica a que conseguissem deitar a mão. As
raparigas eram ainda piores. Cinco camadas de maquilhagem que as
deixavam cor de laranja, e vozes agudas e maliciosas copiadas de dramas
adolescentes americanos. As doze embalagens de laca que os seus «visuais»
exigiam pareciam ter-lhes transformado o cérebro em papa, porque não
conseguiam ter uma conversa que não fosse sobre bronzeamento, música pop
pirosa ou — o mais aflitivo de tudo — qual dos Casanovas de fato de treino
era o mais atraente. Claro que havia outras pessoas diferentes, mas
geralmente eram também solitários, que tentavam chegar ao fim do dia sem
chamar a atenção da multidão.
Katie fora a sua única companheira. Conheciam-se desde a escola primária
e passavam o tempo a troçar discretamente dos colegas e a maquinar formas
de se escapulirem dali. No ano passado, tudo mudara. Os pais de Katie
tinham decidido que, uma vez que se odiavam, chegara a altura de ir cada um
para o seu lado. Odiavam-se desde que Dylan conhecia Katie, por isso não
compreendia por que raio tinha de ter sido agora. De qualquer maneira, Katie
fora forçada a escolher entre viver com o pai alcoólico em Glasgow, ou
mudar-se para outro lado com a mãe obsessiva. Dylan não invejava as opções
dela. Apanhada entre a espada e a parede, ela escolhera ir com a mãe, para
uma aldeiazinha perdida em Lanarkshire chamada Lesmahagow. Bem podia
ter-se mudado para o outro lado do mundo. Desde a sua partida, a vida
tornara-se muito mais difícil e muito mais solitária. Dylan tinha saudades da
amiga. Katie, para começar, não se teria rido da sua camisa transparente.
Embora a camisa já estivesse seca a meio da primeira aula, os danos
estavam feitos. Aonde quer que fosse, os rapazes do seu ano — e alguns que
nem sequer conhecia — seguiam-na e riam-se, faziam comentários
sarcásticos e tentavam puxar-lhe o elástico do soutien (só para confirmar que
ainda lá estava). À hora de almoço, Dylan não aguentava mais. Estava farta
de rapazes a gozarem com ela, farta dos olhares trocistas das raparigas e farta
de professores que fingiam ser cegos e surdos. Quando a campainha tocou ao
fim da quarta aula, passou pela cantina, ignorando o cheiro a peixe e batatas
fritas e as pontadas de fome no estômago, e saiu da escola no meio da
multidão que se dirigia ao quiosque de batatas fritas ou à padaria. Quando
chegou ao fim da fila de lojas, simplesmente continuou a andar.
Tinha o coração acelerado quando chegou às ruas onde os alunos nunca se
aventuravam à hora de almoço — a menos, claro, que estivessem a pensar
fazer exatamente o que ela ia fazer. Nunca faltara às aulas antes, nunca
pensara sequer nisso. Era uma aluna séria e tímida. Calada, aplicada, mas não
particularmente inteligente. Todos os seus sucessos tinham sido conquistados
graças a trabalho árduo, o que era fácil para quem não tinha amigos. Naquele
dia, porém, ia tornar-se uma rebelde. Quando fizessem a chamada no início
da aula depois de almoço, haveria um «F» de «Faltou» ao lado do seu nome.
Mesmo que ligassem para o hospital, não havia nada que Joan pudesse fazer.
Quando o turno dela acabasse, a filha estaria a caminho de Aberdeen. Dylan
tentou afastar a inquietação. Hoje tinha coisas mais importantes em que
pensar.
Em casa, a primeira coisa que fez foi despir a camisa que lhe causara tanto
embaraço. Atirou-a para o cesto da roupa suja e abriu o roupeiro para
examinar as suas roupas. Qual seria a indumentária mais indicada para
conhecer o pai? Tinha de causar uma boa primeira impressão. Nada muito
revelador que a fizesse parecer reles; nada com personagens de desenhos
animados que lhe desse um ar infantil. Algo bonito e adulto. Procurou.
Afastou as roupas para ver o que estava escondido por trás. Por fim, foi
obrigada a admitir que não tinha nada que coincidisse com essa descrição.
Pegou numa t-shirt azul desbotada com o nome da sua banda preferida à
frente e por cima enfiou um casaco cinzento com capuz e fecho de correr.
Despiu a saia do uniforme e substituiu-a por umas calças de ganga
confortáveis. Para terminar, calçou uns velhos ténis Nike. Inspecionou-se no
espelho de corpo inteiro no quarto de Joan. Teria de servir.
A seguir, tirou um velho saco de viagem do armário no hall e abriu-o em
cima da cama. Guardou mais umas calças de ganga e duas t-shirts, roupa
interior, e depois os sapatos pretos da escola e uma saia verde, para o caso de
o pai a querer levar a jantar fora, ou coisa do género. Na bolsa de fora,
arrumou o telemóvel, a carteira e alguns artigos de higiene.
Por fim, pegou num último objeto muito importante. Egbert, o seu ursinho
de peluche. Estava cinzento da idade e bastante usado, sem um olho e com
um pequeno rasgão nas costas a deixar sair o enchimento. Nunca venceria um
concurso de beleza, mas estava com ela desde que era bebé e quando o tinha
perto de si sentia-se mais segura e reconfortada. Queria levá-lo, mas o pai
podia ficar com a ideia de que ela era uma criança. Apertou o ursinho contra
o peito, indecisa. Depois voltou a colocá-lo em cima da cama e olhou para
ele. Parecia devolver-lhe o olhar, indesejado e abandonado. Dylan sentiu-se
instantaneamente culpada, pegou-lhe e arrumou-o cuidadosamente em cima
das roupas. Fechou o saco, depois abriu-o e tornou a tirar o ursinho. Desta
vez, ele caiu de cara para baixo em cima da cama e não pôde fitá-la
acusadoramente com o seu único olho. Fechou o saco e saiu do quarto com
passo decidido.
Exatamente vinte segundos depois, entrou a correr e pegou no ursinho.
— Desculpa, Egbert — murmurou, dando-lhe um beijo rápido antes de o
enfiar novamente no saco e sair a correr de casa.
Se se despachasse, talvez conseguisse apanhar um comboio mais cedo e
fazer uma surpresa ao pai. Este pensamento impeliu-a pelas escadas abaixo e
ao longo da rua molhada. Havia um café a caminho da estação; talvez
pudesse entrar rapidamente e comprar um hambúrguer para se aguentar até à
hora de jantar. Dylan acelerou o passo, já com água na boca só de pensar
nisso, mas ao passar em frente aos portões de ferro altos do parque, algo a fez
estacar bruscamente. Olhou através das grades de ferro para a paisagem
verdejante, sem ter bem a certeza do que estava a ver.
Déjà vu.
Semicerrou os olhos, tentando perceber o que despoletara a sensação. Um
vislumbre de cabelo loiro revolto espreitou entre os ramos de um grande
carvalho. Por um segundo, Dylan viu aquele mesmo cabelo em volta de um
rosto em que a única feição nítida eram os olhos de um azul-cobalto
chocante. O sonho.
Susteve a respiração, com o coração subitamente acelerado, mas uma
risada de rapaz despedaçou a ilusão. A cabeça virou-se e revelou uma boca
trocista a soprar uma nuvem de fumo, com um cigarro preso entre os lábios.
Dove Macmillan, com os amigos. Dylan franziu o nariz, irritada, e afastou-se
antes que ele a conseguisse ver.
Abanou a cabeça para afastar os restos do sonho e atravessou a estrada, de
olhos postos no cartaz pintado à mão por cima do café.
DOIS

— É revoltante. Um escândalo. — O desconhecido na plataforma do


comboio decidira obviamente que, uma vez que ler o jornal à chuva não era
uma possibilidade, devia concentrar-se na segunda melhor opção: queixar-se.
Dylan olhou para ele de lado. Não queria mesmo envolver-se numa
discussão com este senhor de meia-idade, de fato, e acabar arrastada para
uma conversa desinteressante até chegar a Aberdeen. Encolheu os ombros,
um gesto que quase se perdeu dentro da parka volumosa.
Ele continuou, sem se deixar deter pela falta de entusiasmo da sua
interlocutora.
— Quer dizer, pelos preços que eles cobram, o mínimo era cumprirem os
horários. Mas não! Escandaloso. Estou aqui à espera há vinte minutos, e já se
sabe que quando finalmente aparecer, não haverá um único lugar sentado.
Um serviço péssimo.
Dylan olhou em volta. A plataforma não estava suficientemente apinhada
para ela poder desaparecer no meio das pessoas.
O homem de fato virou-se para ela.
— Não acha?
Obrigada a responder diretamente, Dylan tentou ser o mais neutra possível.
— Hum.
Ele pareceu entender a resposta como um convite para continuar a sua
invetiva.
— Era melhor quando os comboios eram públicos. Aí sabíamos com o que
podíamos contar. Eram manobrados por bons trabalhadores, trabalhadores
honestos. Tem sido sempre a piorar. Geridos por uma data de charlatães.
Escandaloso.
Onde é que está o comboio?, pensou Dylan, desesperada por se ver livre
desta fantochada social. E ali estava ele, a aproximar-se lentamente como um
cavaleiro numa armadura enferrujada. Uma centelha de esperança num dia
repleto de embaraço e tormento.
Baixou-se para pegar no saco. Tal como a maioria das suas coisas, estava
debotado e mostrava muitos sinais de uso. Quando o pôs ao ombro, ouviu o
som de algo a rasgar-se e fez uma careta. No espírito deste dia, só faltava
mesmo a costura abrir-se e espalhar-lhe a roupa interior pelo chão da estação.
Felizmente, aguentou-se, e Dylan deu alguns passos em frente com o resto
dos passageiros enquanto o comboio abrandava até se imobilizar. Olhou
rapidamente na direção em que o desconhecido de fato estava a andar e
correu para outra porta.
Depois de entrar na carruagem, olhou para a esquerda e para a direita
tentando identificar os malucos — bêbedos, anormais, pessoas que queriam
contar a história da sua vida e filosofar sobre o sentido da existência — que
pareciam sentir uma atração inexplicável por ela sempre que andava de
transportes públicos. Hoje, com tanta coisa em que pensar, queria mesmo
evitá-los. Procurou os lugares vagos na carruagem: havia um junto a uma
mãe com um bebé aos berros, com a cara encarnada, franzida e furiosa. Outro
em frente de dois adolescentes embriagados com camisolas azuis dos
Rangers. Estavam a beber de uma garrafa maldisfarçada que parecia ser
vinho fortificado Buckfast, e cantavam alto e muito desafinados.
A única outra opção era no meio da carruagem, junto de uma mulher gorda
que espalhara os sacos de compras pelos lugares do lado e da frente, de modo
a deixar bem claro que não queria companhia. Contudo, apesar da expressão
mal-humorada, era a opção mais atraente.
— Com licença — murmurou Dylan, aproximando-se dela.
A mulher suspirou audivelmente, para enfantizar o seu desagrado, mas
afastou os sacos e Dylan, depois de despir o casaco, tirar o telemóvel e os
auriculares do saco e o colocar no compartimento de bagagem por cima do
banco, sentou-se. Fechou os olhos, pôs os auriculares nos ouvidos e
aumentou o volume, deixando a batida pesada da sua banda de indie rock
preferida abafar o mundo à sua volta. Imaginou a mulher dos sacos a olhar
para ela, furiosa com aquela música horrível, e a imagem fê-la sorrir.
Demasiado baixo para Dylan conseguir ouvir, o comboio gemeu e acelerou
em direção a Aberdeen.
Sem abrir os olhos, pensou no fim de semana que se aproximava. Nervos e
entusiasmo debateram-se pelo controlo das borboletas na sua barriga,
enquanto pensava no momento em que desceria do comboio e procuraria o
homem que era praticamente um estranho para ela. Tinham sido precisos
meses de persuasão e pressão sobre Joan para ela lhe dar o número de
telefone de um tal James Miller, o seu pai. Dylan lembrava-se de como a mão
lhe tremia quando marcara o número, desligara, tornara a ligar e novamente a
desligar. E se ele não quisesse falar com ela? E se tivesse já outra família? E
se, pior do que tudo o resto, se revelasse uma enorme desilusão? Um bêbedo
ou um criminoso? A mãe não lhe podia dar mais detalhes. Não falava com
ele, nunca. James desaparecera quando ela lho pedira e nunca mais voltara a
incomodar mãe ou filha, tal como Joan lhe pedira. Dylan tinha cinco anos, na
altura, e na década seguinte o rosto do pai tornara-se menos do que uma
memória.
Após dois dias de turbilhão interior, Dylan ligara-lhe a meio do dia, num
canto sossegado do recreio da escola ainda não reclamado pelos fumadores,
pelos casais de namorados ou pelos gangues. A sua esperança era de que ele
estivesse ocupado e não pudesse atender. Resultou. Depois de seis toques,
com o coração quase a saltar-lhe do peito, a chamada foi para o gravador de
mensagens e Dylan apercebeu-se subitamente de que não pensara no que
diria neste caso. Em pânico, deixou uma mensagem hesitante e desconexa.
— Olá, estou a ligar para James Miller. Fala a Dylan. A tua filha. — Que
havia de dizer mais? — Ah... a minha mãe deu-me o teu número. A Joan,
quero eu dizer. Pensei que, talvez, pudéssemos encontrar-nos... talvez. E
conversar. Se quiseres. — Respirou fundo. — O meu número é...
Depois de desligar, fez uma careta embaraçada. Que idiota! Como é que se
esquecera de ter uma mensagem preparada? Parecera uma imbecil. Bom,
agora não podia fazer mais nada senão esperar. E esperara. Passara a tarde
agoniada. Não se lembrava de nada das aulas de Biologia e Inglês. Em casa,
vira televisão, distraidamente, sem mudar sequer de canal quando começaram
as estúpidas telenovelas. E se ele não ligasse? Já teria ouvido a mensagem? E
se não a recebesse? Dylan imaginara uma mão de mulher a pegar no telefone,
a ouvir a mensagem e depois a levar lentamente o dedo com a unha pintada
de vermelho ao botão de «Apagar». Demasiado assustada para voltar a ligar,
só lhe restava cruzar os dedos e manter o telemóvel consigo.
Demorou um dia inteiro, um dia que lhe pareceu um mês, mas ele ligou. Às
quatro da tarde, quando ela se dirigia a casa depois de mais um dia chuvoso
na escola, com as meias ensopadas e os ombros cada vez mais molhados,
sentiu o telemóvel a vibrar na algibeira. Era agora. O seu coração parou por
um instante quando tirou o telemóvel do bolso. Olhou rapidamente para o
número no ecrã, que o confirmou: era um indicativo de Aberdeen. Deslizou o
polegar no ecrã e levou o telemóvel ao ouvido.
— Estou? — A sua voz parecia rouca e embargada. Tentou pigarrear
silenciosamente.
— Dylan? Dylan, fala James. Miller. Quer dizer, o teu pai.
Silêncio. Diz qualquer coisa, Dylan, pensou. Diz qualquer coisa, pai. O
silêncio estendeu-se entre eles, mas, na tensão do momento, era um silêncio
gritante.
— Ouve. — A voz dele atravessou o silêncio e dissipou-o. — Estou tão
contente por teres ligado. Há muito tempo que queria procurar-te. Temos
muita coisa para pôr em dia.
Dylan fechou os olhos e sorriu. Respirou fundo e começou a falar.
Depois disso, foi muito fácil. Sentia-se à vontade a falar com ele, como se o
conhecesse desde sempre. Falaram até o telemóvel de Dylan ficar sem
bateria. Ele queria saber tudo a respeito dela: a escola, os seus passatempos,
com quem se dava, quais eram os seus filmes preferidos e que tipo de livros
gostava de ler. E sobre rapazes — embora não houvesse muito a dizer sobre
esse tema, tendo em conta a seleção disponível em Kaithshall. Em troca,
falou-lhe sobre a sua vida em Aberdeen, onde vivia com Anna, uma cadela.
Não tinha mulher nem filhos. Não havia complicações. E queria que ela o
fosse visitar.
Isto fora exatamente há uma semana. Durante sete dias, Dylan lutara com
os nervos e o entusiasmo desse encontro iminente, enquanto tentava não
discutir com Joan, que deixara bem claro que desaprovava esta tentativa de
Dylan retomar o contacto com o pai. Dylan ainda nem sequer contara a Katie.
Sentada no comboio, nervosa, abriu as mensagens no telemóvel.
Katie! Como vão as coisas?
A nova escola ainda é uma porcaria?

A escola é nova, mas os imbecis são os


mesmos. Só que estes são imbecis da
província.

Ainda bem que para o ano, por esta altura,


vamos para a universidade. Estou morta por
sair daqui!

Como vão as coisas na gloriosa Kaithshall?


Horríveis. Mas tenho novidades!

Conta-me tudo!

Liguei ao meu pai.

Dylan enviou a mensagem e esperou, com o coração acelerado. Queria que


Katie dissesse alguma coisa simpática; queria que alguém lhe dissesse que
estava a fazer a coisa certa. Houve uma pausa que pareceu durar uma
eternidade antes de aparecerem as reticências que significavam que Katie
estava a escrever uma resposta.
E como correu?

Uma resposta cautelosa. A amiga não queria dizer um disparate qualquer


sem saber mais.
Por acaso, muito bem! Ele quer encontrar-se
comigo! Pareceu-me muito simpático ao
telefone!

Não sei porque é que a Joan o odeia tanto.

Quem sabe? Os pais são esquisitos. Olha


para os meus, doidos varridos!

Então ele vai visitar-te?

Não, vou eu ter com ele. Agora mesmo.

O quê? Isso foi rápido! Estás assustada?

Não. Estou superempolgada. Porque havia


de estar assustada?

A resposta chegou instantaneamente.


Mentirosa. Estás toda borrada!

Dylan riu alto e depois tapou a boca com a mão quando viu a mulher
sentada em frente a fitá-la com ar ainda mais feroz. Katie era sempre assim,
nunca se deixava enganar pelos disfarces dela.
Ok, talvez um bocadinho. Estou a tentar não
pensar muito nisso.

Acho que tenho medo de desistir, se pensar


muito no que estou a fazer!

Vai correr tudo bem. Tens de o conhecer, de


qualquer maneira. E, se a tua mãe
realmente o odeia, é capaz de ser boa ideia
mantê-los em cidades diferentes!

Como é que vais?


De comboio?

Sim, ele comprou-me o bilhete. Diz que quer


compensar dez anos de tempo perdido.

Dylan tinha o bilhete de comboio na mão. Ficara de avisar o pai quando


fosse a caminho.
Abriu uma mensagem nova.
Pai, estou no comboio. Consegui apanhar
um mais cedo. Estou ansiosa por te ver ☺
Dylan

Quando pressionou «enviar», a janela ao seu lado ficou negra. Fantástico,


pensou, um túnel. No ecrã do telemóvel — um presente de Natal caro que
Joan pagara com vários turnos extra no hospital — ficaram duas palavras.

A enviar...

A mensagem repetiu-se três vezes antes de surgir uma janela de alerta.

Mensagem não enviada.

— Raios — murmurou Dylan. Irracionalmente, tentou levantar o telemóvel


acima da cabeça, apesar de saber que era inútil dentro do túnel: o sinal nunca
passaria através de tanta rocha.
E era assim que estava, de braço no ar como uma pequena Estátua da
Liberdade, quando tudo aconteceu. A luz desapareceu, o som explodiu e o
mundo acabou.
TRÊS

Silêncio.
Devia haver gritos, choros, qualquer coisa, pensou Dylan.
Mas havia apenas silêncio.
A escuridão era tão absoluta que mais parecia um manto pesado a sufocá-
la. Por um instante de pânico, pensou que estava cega. Desorientada, tentou
abanar a mão à frente da cara. Não viu nada, mas conseguiu espetar um dedo
no olho. O choque da dor fê-la pensar por um momento. Iam a passar num
túnel — era por isso que estava escuro.
Os seus olhos não descortinavam sequer o mais ínfimo pontinho de luz.
Tentou levantar-se da cadeira ao lado da sua, onde caíra de lado, mas algo a
estava a prender. Rodou para a direita e conseguiu deslizar para o chão entre
os bancos. A sua mão tocou em algo quente e peganhento. Afastou-a
rapidamente e limpou-a nas calças, tentando não pensar no que poderia ser. A
mão direita fechou-se sobre um pequeno objeto — o telemóvel que tinha na
mão quando o mundo se virara de pernas para o ar. Ansiosa, apanhou-o e
virou-o. O alívio invadiu-a, rapidamente seguido pela desilusão. O ecrã
estava apagado. Tocou-lhe freneticamente, com a esperança a dissipar-se.
Estava morto.
Dylan rastejou para o corredor da carruagem, tentou pôr-se em pé e bateu
com a cabeça em qualquer coisa.
— Bolas! Ai! — Voltou a agachar-se. Levou a mão à cabeça, que latejava
agora ferozmente no sítio onde batera. Não parecia estar a sangrar, mas doía
como tudo. Desta vez com mais cuidado, tornou a endireitar-se, usando as
mãos para guiar a cabeça até um sítio seguro. Estava tão escuro que nem
sequer conseguia ver onde tinha batido.
— Está aí alguém? — chamou, timidamente. Não houve qualquer resposta,
nem ouvia o som dos outros passageiros a moverem-se. A carruagem estava
cheia, onde estaria toda a gente? A poça de líquido junto da sua cadeira veio-
lhe à cabeça, mas afastou-a rapidamente.
— Está aí alguém? — tentou de novo, agora mais alto. — Alguém me
ouve? Socorro!
A sua voz falhou um pouco na última palavra, quando o pânico começou a
mostrar as garras. Com a respiração acelerada, tentou pensar, apesar do medo
que se apoderava dela. A escuridão era claustrofóbica e levou as mãos à
garganta, como se algo a estivesse a estrangular. Estava completamente
sozinha, rodeada de...
Não queria pensar nisso. Tudo o que sabia era que não suportava ficar
naquela carruagem nem mais um segundo.
Sem pensar, precipitou-se para a frente, aos tropeções, passando por cima
do que encontrava no caminho. Pisou algo macio e escorregadio. A sola do
ténis não conseguiu agarrar-se ao chão e deslizou. Horrorizada, tentou
levantar a perna e afastá-la do objeto estranhamente esponjoso, mas o outro
pé não encontrou um sítio direito e seguro onde pousar. Quase em câmara
lenta, sentiu-se a resvalar para o chão, para cima das coisas assustadoras que
lá se encontravam.
Não!
Com uma exclamação abafada, esticou os braços para se proteger enquanto
tombava. Uma das mãos encontrou um poste e os seus dedos apertaram-se
sobre ele, travando-lhe abruptamente a queda com um esticão nos músculos
do ombro. O impulso lançou-a para a frente e bateu com o pescoço no metal
frio.
Ignorando a dor no pescoço, Dylan agarrou-se ao poste com ambas as
mãos, sentindo que era o seu elo de ligação à realidade. Poste, disse-lhe o
cérebro. O poste está ao pé da porta. O alívio inundou-a e conseguiu pensar
um pouco mais claramente. Era por isso que estava sozinha. Já toda a gente
devia ter saído, e não tinham dado por ela porque estava enterrada debaixo
dos sacos daquela mulher estúpida. Devia ter-me sentado ao lado dos fãs dos
Rangers, pensou, com uma risada fraca.
Sem confiar no seu sentido de orientação na escuridão, deslizou a mão ao
longo da partição ligada ao poste, à espera de encontrar a porta aberta. Os
seus dedos esticaram-se, mas não encontrou nada. Avançou um pouco mais e,
por fim, tocou na porta. Estava fechada.
Que estranho, pensou. Deviam ter saído todos pela porta na outra ponta da
carruagem. Era mesmo típico da sorte dela. Este raciocínio lógico acalmou-a
e ajudou-a a pensar mais claramente. Sem querer voltar para trás, correndo o
risco de pisar mais coisas desagradavelmente moles, procurou, aos apalpões,
o botão que abria a porta. Os seus dedos encontraram-no e pressionaram, mas
a porta não se abriu.
— Raios — murmurou. Provavelmente a eletricidade falhara durante o
acidente. Olhou para trás por cima do ombro, um gesto inútil, uma vez que
não conseguia ver nada. A sua imaginação preencheu as lacunas, enchendo o
caminho através da carruagem de bancos virados, malas, vidros partidos das
janelas e coisas moles e escorregadias que, na sua mente, estavam a
solidificar-se em membros e corpos. Não, recusava-se a voltar por ali.
Encostou ambas as mãos à porta do comboio e empurrou com força.
Embora a porta resistisse, sentiu-a dar um bocadinho de si. Com algum
esforço, achava que conseguiria forçá-la. Recuou, respirou fundo e lançou-se
para a frente, atingindo a porta com a sola do pé esquerdo, com todas as suas
forças. O estrondo pareceu muito alto naquele espaço confinado, ecoando-lhe
nos ouvidos, e sentiu uma pontada de dor no tornozelo e no joelho. Apesar
disso, sentia agora ar fresco na cara, o que lhe deu esperança. Com as mãos,
confirmou-o: uma das laterais da porta fora arrancada da calha. Se
conseguisse fazer o mesmo à outra, ficaria um espaço suficiente para
conseguir sair. Desta vez recuou dois passos e atirou-se contra a porta com
toda a força que conseguiu reunir. A porta guinchou, quando o metal raspou
em metal, antes de finalmente ceder.
A fresta não era grande, mas, felizmente, Dylan também não o era. Virou-
se de lado e espremeu o corpo pela abertura. Ouviu algo a rasgar-se quando o
fecho do casaco ficou preso entre o seu corpo e a porta, mas subitamente
estava livre, a cair para os carris. Sentiu um instante de medo, mas os seus
ténis pisaram gravilha após uma curta queda e a sensação de claustrofobia
dissipou-se como se alguém lhe tivesse desenrolado uma corrente do
pescoço.
O túnel estava tão escuro como o comboio. O acidente devia ter acontecido
mesmo no meio. Dylan olhou primeiro para um lado, depois para o outro. De
nada adiantou. Não via qualquer luz e, além do sussurro suave do ar naquele
espaço fechado, só ouvia silêncio.
Um, dó, li, tá, pensou. Com um suspiro, virou para a direita e começou a
andar. Tinha de ir dar a algum lado.
Sem uma luz para a guiar, tropeçou várias vezes e o seu progresso era
lento. De vez em quando, sentia algo pequeno a fugir apressadamente junto
aos seus pés. Esperava que não houvesse ratazanas no túnel. Tudo o que fosse
mais pequeno do que um coelho causava-lhe um medo irracional. Uma
aranha na casa de banho podia desencadear meia hora de histeria até
conseguir convencer Joan a vir salvá-la. Se alguma coisa lhe passasse por
cima do pé, num sítio destes, sabia que os seus instintos de fuga levariam a
melhor. Contudo, naquela escuridão e com o terreno irregular, provavelmente
cairia de rosto no chão.
O túnel parecia não ter fim. Estava prestes a dar meia-volta para
experimentar a outra direção quando viu o que lhe pareceu ser um pontinho
de luz à distância. Na esperança de que fosse uma saída, ou um socorrista
com uma lanterna, acelerou o passo, desesperada por estar novamente onde
houvesse luz. Demorou muito tempo, mas, aos poucos, o pontinho
transformou-se num arco. Para além deste, via apenas uma ligeira claridade,
mas era suficiente.
Quando saiu finalmente do túnel, caía uma chuva miudinha e Dylan riu-se,
deliciada, erguendo o rosto para as pequenas gotas. A escuridão do túnel
fizera-a sentir-se suja, e parecia-lhe agora que as leves gotículas estavam a
lavar parte do terror. Respirou fundo, pôs as mãos nas ancas e estudou o que
a rodeava.
A paisagem estava deserta, à exceção dos carris, que se estendiam por entre
um cenário selvagem. Era evidente que Glasgow ficara muito para trás. No
horizonte, avistou grandes montanhas imponentes. Nuvens baixas escondiam-
lhe os cumes mais altos. Era uma palete de cores desbotadas, urze roxa a lutar
por espaço com grandes extensões de fetos castanhos. Pequenos maciços de
árvores cresciam em padrões irregulares nas encostas mais baixas de colinas
cobertas de pinheiros escuros. As encostas mais próximas do túnel não eram
tão íngremes, mas sim montes ondulantes revestidos de relva alta. Não se via
qualquer estrada ou povoação, nem sequer uma quinta isolada. Dylan mordeu
o lábio enquanto estudava a cena. Parecia selvagem e pouco hospitaleira.
Estava à espera de encontrar uma confusão de carros da Polícia e
ambulâncias estacionados em ângulos descuidados, na pressa de chegarem à
cena do acidente. Devia haver bandos de homens e mulheres com coletes de
cores fluorescentes, prontos para correrem para ela e a confortarem, para
verificarem se ela estava ferida e para lhe fazerem perguntas. A área à saída
do túnel devia estar apinhada de grupos de sobreviventes, pálidos e enrolados
em mantas para se protegerem do vento cortante. Na verdade, não havia
nenhuma destas coisas. O seu rosto transformou-se numa máscara de
confusão e inquietação. Onde estava toda a gente?
Virou-se e olhou para a boca escura do túnel. Não havia outra explicação:
devia ter saído pelo lado errado. Deviam estar todos na outra extremidade.
Lágrimas de frustração e cansaço saltaram-lhe dos olhos. A perspetiva de
tornar a entrar na escuridão, de ter de passar novamente pelo comboio cheio
dos corpos inertes e sem vida dos menos afortunados, era aterradora. Mas não
tinha como ir à volta. O solo coberto de urze, talhado no sopé de uma série de
colinas maciças, erguia-se de ambos os lados como penhascos
intransponíveis.
Ergueu os olhos para cima, como que a suplicar a Deus para alterar a
situação, mas tudo o que viu foram as nuvens cor de chumbo a deslizar
lentamente pelo céu. Com um soluço, olhou de novo para a paisagem deserta
à sua frente, desesperada por algum sinal de civilização que a pudesse salvar
de ter de voltar a entrar no túnel escuro. Levou a mão à testa para proteger os
olhos da chuva e do vento e perscrutou o horizonte. E foi então que o viu.
QUATRO

Estava sentado numa colina à esquerda da entrada do túnel, com as mãos


sobre os joelhos, a olhar para ela. Desta distância, tudo o que conseguia
perceber era que se tratava de um rapaz, provavelmente adolescente, com
cabelo loiro agitado pelo vento. Não se levantou, nem sequer sorriu quando a
viu a olhar para ele, continuando simplesmente a fitá-la.
Havia algo estranho na forma como ali estava sentado, uma figura solitária
neste lugar isolado. Dylan não conseguia perceber como ele ali chegara, a
menos que também estivesse no comboio. Acenou-lhe, grata por ter alguém
com quem partilhar este horror, mas ele não devolveu o aceno. Pareceu-lhe
vê-lo endireitar um pouco as costas, mas estava tão distante que era difícil ter
a certeza.
Sem tirar os olhos dele, com receio de que desaparecesse, Dylan deslizou
pela gravilha ao lado dos carris e saltou por cima de uma pequena vala cheia
de água e ervas daninhas. Havia uma cerca de arame farpado a separar os
carris do campo. Dylan segurou cuidadosamente no arame de cima, entre dois
dos nós metálicos afiados, e puxou-o para baixo o máximo que conseguiu. O
arame baixou o suficiente para ela poder passar por cima dele, com cuidado.
Ficou com o pé preso ao passar a segunda perna e quase caiu, mas conseguiu
segurar-se e manter o equilíbrio. Os arames cortaram-lhe a palma da mão,
perfurando a pele. Dylan inspecionou rapidamente as gotículas de sangue e
esfregou a mão na perna. Uma grande mancha nas calças fê-la olhar melhor.
Tinha uma grande mancha vermelha na parte de fora da coxa. Fitou-a por um
instante antes de se lembrar que limpara a mão às calças depois de a sujar
naquela coisa peganhenta no chão da carruagem. Ao perceber o que era,
empalideceu e sentiu o estômago às voltas.
Sacudiu a cabeça para se livrar das imagens doentias que lhe rodopiavam
no cérebro, virou costas à cerca e fixou novamente os olhos no seu alvo. Ele
estava sentado na encosta, cerca de cinquenta metros acima dela. Àquela
distância já conseguia distinguir-lhe o rosto, por isso sorriu, num
cumprimento.
Ele não retribuiu.
Constrangida com a receção gélida, Dylan subiu a encosta em direção a ele
de olhos postos no chão. A escalada era difícil e, pouco depois, estava
ofegante. O terreno era íngreme e a relva alta estava molhada e era difícil
caminhar sobre ela. De olhos baixos, concentrou-se nos pés, o que lhe dava
uma desculpa para não ter de estabelecer contacto visual enquanto não fosse
absolutamente necessário.

::::

Com olhos frios, o rapaz na colina avaliou a rapariga que se aproximava


dele. Estava a observá-la desde que ela saíra do túnel, emergindo da
escuridão como um coelho assustado a sair de uma toca. Em vez de gritar
para lhe chamar a atenção, simplesmente esperara que ela o visse. A dada
altura, temera que ela voltasse a entrar no túnel e pensara em chamá-la, mas
depois vira-a mudar de ideias e, assim, contentara-se em esperar
silenciosamente. Acabaria por reparar nele.
E tinha razão. Ela avistou-o e ele viu o alívio invadir-lhe os olhos enquanto
acenava energicamente. Não acenou de volta. Viu a expressão dela vacilar
um pouco, mas depois começou a dirigir-se a ele. Movia-se de forma pouco
ágil, ficando presa no arame farpado e tropeçando na erva molhada. Quando
se aproximou o suficiente para lhe ver o rosto, ele virou-o para o lado e ficou
a ouvi-la aproximar-se.
Contacto estabelecido.

::::

Por fim, Dylan chegou junto dele e conseguiu vê-lo melhor. O seu palpite
quanto à idade fora certeiro; seria, no máximo, um ano mais velho do que ela.
Vestia calças de ganga, uma camisola azul-escura de aspeto quente, com a
palavra Broncos à frente em letras cor de laranja, e calçava ténis. Era difícil
calcular a sua altura, assim dobrado, mas não parecia pequeno nem magro.
Estava bastante bronzeado e tinha algumas sardas a salpicar-lhe o nariz. O
seu rosto estava fixo numa expressão dura e desinteressada e, assim que
Dylan se aproximou mais, virou os olhos para a paisagem deserta. Mesmo
depois de ela estar mesmo à sua frente, não mudou de expressão nem virou o
rosto para ela. Era muito desconcertante e Dylan agitou-se, sem saber o que
dizer.
— Olá, chamo-me Dylan — murmurou por fim, de olhos postos no chão.
Enquanto esperava por resposta, deslocou o peso de um pé para o outro e
olhou na mesma direção que ele, tentando perceber o que ele estava a
observar.
— Tristan — respondeu ele passado algum tempo. Lançou-lhe um olhar
rápido e continuou a fitar a distância.
Aliviada por lhe ter pelo menos respondido, Dylan tentou novamente
iniciar uma conversa.
— Imagino que também vinhas no comboio. Estou tão contente por não ser
a única aqui! Devo ter desmaiado na carruagem e quando acordei estava
sozinha. — Disse tudo isto muito depressa, nervosa com a receção gelada do
rapaz. — Todos os outros passageiros já tinham saído e, pelos vistos,
ninguém reparou que eu ainda lá estava. Havia uma mulher com uma data de
sacos estúpidos... fiquei debaixo deles. Quando saí, não consegui perceber
para que lado tinham ido todos, mas nós os dois devemos ter saído pelo lado
errado do túnel. Aposto que os Bombeiros e a Polícia e as outras pessoas
todas estão do outro lado.
— Comboio? — Ele virou-se para ela e Dylan viu-lhe pela primeira vez os
olhos. Eram frios e azuis. Azul-cobalto. Sentiu-se como se aqueles olhos
fossem capazes de lhe congelar o sangue, se estivessem furiosos, mas a sua
expressão naquele momento era apenas curiosa. Estudaram-na durante meio
segundo antes de se virarem para a boca do túnel. — Claro. O comboio.
Dylan olhou para ele, expectante, mas o rapaz não parecia ter intenções de
continuar a falar. Mordeu o lábio e amaldiçoou a sua sorte por a única outra
pessoa à vista ser um rapaz adolescente. Um adulto saberia o que fazer. Além
disso, embora lhe custasse admiti-lo, rapazes como este deixavam-na
nervosa. Pareciam tão seguros e confiantes, e ela acabava sempre por se
engasgar e fazer figura de idiota.
— Talvez devêssemos voltar a atravessar o túnel até ao outro lado? —
sugeriu. Essa perspetiva não parecia tão terrível como antes, agora que tinha
companhia. Assim podiam encontrar-se com todos os outros passageiros e as
equipas de emergência e talvez ela ainda conseguisse salvar o fim de semana
com o pai.
O rapaz voltou novamente para ela toda a força do seu olhar e Dylan teve
de se conter para não recuar um passo. Os olhos dele eram magnéticos e
pareciam trespassá-la e ver o seu íntimo. Sentiu-se exposta, quase nua, sob
aquele olhar. Inconscientemente, cruzou os braços sobre o peito.
— Não, não podemos ir por aí. — O tom dele era desinteressado, como se
não estivesse nada preocupado com a situação em que se encontravam. Como
se não se importasse de ficar sentado naquela encosta para sempre.
Bom, pensou Dylan, eu não posso ficar aqui.
Depois de a fitar durante mais alguns instantes, o rapaz virou-se de novo
para as montanhas. Dylan mordeu o lábio enquanto tentava pensar em
qualquer coisa para dizer.
— Então tens um telemóvel para podermos ligar a alguém, a Polícia,
talvez? O meu deixou de funcionar no acidente. E se calhar devia ligar à
minha mãe. Quando ela souber o que aconteceu vai-se passar. É
superprotetora e vai querer saber que eu estou bem para poder dizer-me «Eu
bem te avisei»... — Dylan calou-se.
Desta vez ele nem sequer olhou para ela.
— Os telefones não funcionam aqui.
— Oh. — Agora estava a ficar aborrecida. Estavam presos do lado errado
do túnel, sem adultos por perto e sem forma de contactar ninguém, e ele não
estava a ajudar nada. Contudo, era a única pessoa por perto. — Bom, então o
que havemos de fazer?
Em vez de responder, ele levantou-se subitamente. Em pé, era muito mais
alto do que ela, muito mais alto do que ela julgara. Baixou os olhos para ela,
com um leve sorriso irónico nos lábios, e começou a andar.
Dylan abriu e fechou a boca algumas vezes, sem emitir qualquer som.
Ficou imóvel e muda, estupefacta com este estranho rapaz. Tencionaria
simplesmente deixá-la ali? Rapidamente teve a sua resposta. A cerca de dez
metros, ele parou e olhou para ela.
— Vens?
— Aonde? — perguntou Dylan, relutante em deixar o local do acidente de
comboio. Com certeza que ficar ali era a coisa mais sensata a fazer, não?
Como é que alguém os encontraria, se se afastassem? Além disso, como é
que ele sabia aonde ia? Já era final da tarde e em breve ficaria escuro. O
vento soprava com mais força e estava frio; ela não queria perder-se e ter de
passar a noite ao relento.
Porém, a confiança dele fê-la duvidar de si própria. Ele pareceu ver a
indecisão no seu rosto. Lançou-lhe um olhar condescendente e disse, com a
voz a escorrer superioridade:
— Bom, eu não vou ficar aqui sentado à espera. Tu podes ficar, se quiseres.
Viu Dylan absorver o comentário, avaliando a reação dela.
Dylan arregalou os olhos, com medo de ficar sozinha, à espera. E se a noite
caísse e não aparecesse mais ninguém?
— Acho que devíamos ficar os dois aqui — começou a dizer, mas ele já
estava a abanar a cabeça.
Como se fosse uma grande maçada, regressou até junto dela e fitou-a, tão
perto que Dylan conseguia sentir o hálito dele no rosto. Ergueu os olhos para
os dele e sentiu o mundo à sua volta desaparecer. O olhar dele era dominador;
não teria conseguido afastar os olhos, mesmo que quisesse.
— Vem comigo — ordenou ele, e o seu tom deixava pouca margem para
negociações. Era uma ordem e esperava que ela lhe obedecesse.
Com a mente estranhamente vazia, não passou pela cabeça de Dylan
desobedecer. Acenou com a cabeça, entorpecida, e começou a andar atrás
dele.
O rapaz, Tristan, nem sequer esperou por ela e acelerou o passo, subindo a
colina, afastando-se do túnel. Ficara surpreendido com a força de vontade
dela; esta tinha uma certa força interior. Apesar disso, teria de o seguir.
CINCO

— Espera! Aonde é que estamos a ir? — Dylan, ofegante, parou de andar e


firmou os pés no chão, de braços cruzados. Seguira-o cegamente até ali, mas
já estavam a andar há vinte minutos em silêncio absoluto, sabe Deus em que
direção, e ele não dissera uma palavra depois daquele seco «Vem comigo».
Todas as perguntas e dúvidas, todas as razões para ficar à entrada do túnel,
que se tinham desvanecido inexplicavelmente da cabeça de Dylan quando ele
lhe ordenara que o seguisse, voltaram naquele momento com toda a força.
Ele deu mais alguns passos antes de parar e olhar para ela com as
sobrancelhas erguidas.
— O quê?
— O quê?! — repetiu Dylan, e a sua voz subiu uma oitava, incrédula. —
Acabamos de escapar a um acidente de comboio em que todas as outras
pessoas parecem ter desaparecido. Não faço ideia de onde estamos e estás a
levar-nos para o meio do nada, na direção oposta do sítio onde nos vão
procurar!
— Quem é que imaginas que está à nossa procura? — Aquele meio sorriso
arrogante surgiu-lhe novamente nos lábios.
Dylan franziu a testa por um instante, confusa com aquela estranha
pergunta, antes de se lançar mais uma vez nos seus argumentos.
— Bom, a Polícia, para começar. Os meus pais. — Sentiu um pequeno
frémito de prazer por poder dizer a palavra no plural pela primeira vez. —
Quando o comboio não aparecer na próxima estação, não achas que a
companhia ferroviária vai querer saber onde é que ele está?
Ergueu as sobrancelhas, secretamente satisfeita com a força do seu
raciocínio, e esperou que ele respondesse.
Ele riu-se. Era um som quase musical, mas tinha subjacente uma sugestão
de troça. Aquela reação voltou a confundi-la e a enfurecê-la. Dylan franziu os
lábios, à espera de saber qual era a piada, mas ele não a explicou. Limitou-se
a sorrir. O sorriso alterou-lhe todo o rosto, trazendo algum calor à sua frieza
natural. Apesar disso, havia algo que não estava bem naquele sorriso. Parecia
sincero, mas não lhe chegava aos olhos. Esses continuavam frios e distantes.
Tristan aproximou-se de Dylan e baixou-se ligeiramente para ela poder
olhá-lo nos olhos, aquele azul chocante fixo no verde assustado dos dela. A
proximidade deixava-a pouco à vontade, mas não recuou.
— Se eu te dissesse que não estás onde pensas que estás, o que dirias? —
perguntou ele.
— O quê? — Dylan sentia-se completamente confusa e um pouco
intimidada. A arrogância dele era irritante. Estava constantemente a troçar
dela e depois dizia coisas disparatadas como aquela. Qual poderia ser o
objetivo desta pergunta, senão baralhá-la e fazê-la duvidar de si própria?
— Esquece — disse ele com uma risada, ao ver a expressão dela. — Vira-
te. Achas que conseguias voltar a encontrar o túnel?
Dylan olhou para trás por cima do ombro. A paisagem era deserta e
desconhecida. Parecia-lhe tudo igual. Colinas áridas e varridas pelo vento até
onde a vista alcançava, mergulhando para vales profundos onde a vegetação
florescia abrigada da ventania constante. Não havia sinais da entrada do
túnel, nem sequer dos carris. Isso era estranho; não se tinham afastado assim
tanto. Sentiu um aperto no peito quando se apercebeu de que não fazia ideia
da direção de onde tinham vindo, e de que estaria completamente perdida se
Tristan a deixasse naquele momento.
— Não — murmurou, percebendo o quanto confiara neste desconhecido
pouco amistoso.
Tristan riu-se ao ver a compreensão refletida no rosto dela.
— Nesse caso, parece que tens de ficar comigo. — E recomeçou a andar.
Dylan ficou onde estava, dividida, mas à medida que a distância começou a
aumentar entre eles, os seus pés pareceram mexer-se por vontade própria,
com medo de ficarem sozinhos. Passou por cima de um pequeno grupo de
pedras e correu entre a relva alta até cobrir a distância que os separava. Ele
continuou a avançar à mesma velocidade, sem se preocupar com o facto de as
pernas compridas o fazerem andar mais depressa do que ela.
— Sabes sequer para onde estamos a ir? — perguntou ela, ofegante,
tentando acompanhá-lo.
Mais uma vez, aquele sorrisinho irritante.
— Sim.
— Como? — Para conseguir acompanhar o ritmo dele, estava reduzida a
perguntas monossilábicas.
— Porque já aqui estive antes — respondeu ele.
Parecia muito confiante e assumira completamente o controlo da situação
— e dela. Embora detestasse admiti-lo, Dylan não tinha outra opção senão
confiar nele.
— Podes abrandar um pouco, por favor? — As pernas de Dylan, pouco
habituadas a exercício, já estavam a arder.
— Oh, desculpa — disse Tristan e, apesar da sua frieza, parecia estar a ser
sincero. Abrandou para um passo mais moderado.
Dylan suspirou, agradecida, e continuou o seu interrogatório.
— Há alguma cidade perto? Algum sítio onde os telefones funcionem?
— Não há nada neste deserto — murmurou Tristan.
Dylan mordeu o lábio, preocupada. Quanto mais a noite se aproximava,
mais preocupada sabia que a mãe ficaria. Uma das condições de Joan para a
deixar fazer esta viagem fora ela comprometer-se a ligar assim que chegasse
e estivesse com o pai. Não tinha a certeza de quanto tempo passara — era
evidente que tinha estado algum tempo inconsciente no comboio —, mas a
esta hora Joan já devia saber do acidente. Se ligasse para o telemóvel de
Dylan e ela não atendesse, começaria a ficar preocupada.
Imaginou também o pai à espera dela na estação. Talvez pensasse que ela
desistira da viagem, que tivera medo. Isso seria horrível. Não, deviam estar a
informar as pessoas na estação de que o comboio tivera um acidente. O que
ainda era pior. Tinha de avisar o pai e a mãe de que estava bem. O mais certo
era que, quando toda aquela confusão estivesse resolvida, seria tarde demais
para ir passar o fim de semana a Aberdeen. Esperava que ele não se
importasse de lhe comprar outro bilhete. Na verdade, o mínimo que a
companhia podia fazer era oferecer-me um bilhete de graça, pensou. Por
outro lado, depois disto, Joan ainda teria menos vontade de a deixar ir. Talvez
o pai pudesse ir visitá-la a Glasgow.
Nesse momento, ocorreu-lhe outra coisa. Se não havia nenhuma cidade
perto e se a tarde estava a chegar ao fim, o que fariam quando escurecesse?
Olhou em volta, à procura de sinais de civilização. Tristan tinha razão:
nada.
— Disseste que já tinhas estado aqui — começou. Tinham acabado de subir
uma colina e estavam a descer uma secção particularmente íngreme do outro
lado, portanto Dylan falou sem tirar os olhos do chão, com o cuidado de ver
onde punha os pés. Se tivesse olhado para o rosto de Tristan, teria visto a
expressão desconfiada e cautelosa que lhe passou pelos olhos. — Quando é
que isso foi, exatamente?
O rapaz que caminhava ao lado dela manteve um silêncio absoluto.
— Tristan?
Tantas perguntas, tão cedo. Tristan pensou que era mau sinal. Tentou
aligeirar o ambiente com uma risada, mas Dylan apertou os lábios e, desta
vez, olhou para ele. Tristan tentou arvorar uma expressão mais convincente.
— Fazes sempre tantas perguntas? — disse, com uma sobrancelha erguida.
Dylan, ofendida, calou-se. Virou a cara e olhou para o céu, onde as nuvens
eram agora de um cinzento turvo que escurecia mais a cada minuto. Então era
isso, percebeu Tristan.
— Tens medo do escuro? — perguntou-lhe.
Ela franziu o nariz e ignorou-o.
— Ouve — disse ele —, não conseguiremos chegar ao nosso destino antes
de anoitecer. Infelizmente, temos de passar a noite ao relento.
Dylan fez uma careta. Não tinha qualquer experiência de acampar, mas
estava bastante certa de que qualquer atividade que envolvesse dormir na rua,
sem acesso a cozinha, casa de banho ou uma cama quente, não era para ela.
— Não temos tenda. Nem sacos-cama. Nem comida — queixou-se. — Se
calhar devíamos regressar ao túnel e ver se anda alguém à nossa procura.
Ele revirou os olhos, novamente arrogante e condescendente.
— É tarde demais para isso! Acabaríamos a vaguear perdidos na escuridão.
Eu conheço um sítio abrigado. Havemos de sobreviver. Já passaste por pior
do que isso hoje.
Estranhamente, Dylan não tinha ainda pensado muito no acidente de
comboio. Assim que saíra do túnel, Tristan assumira o controlo de forma tão
absoluta que ela se limitara a segui-lo. Ainda por cima, fora tudo tão rápido
que nem sequer tinha a certeza do que realmente acontecera.
— Estás a ver ali? — perguntou ele, arrancando Dylan aos seus
pensamentos e apontando para as ruínas de uma pequena casa a cerca de
oitocentos metros, aninhada num vale estreito no sopé da colina. Parecia estar
abandonada há muito tempo, com um muro de pedra meio desfeito a
demarcar o limite. O telhado tinha vários buracos, a porta e as janelas há
muito tinham desaparecido e parecia que não seriam precisos mais de dez
anos para o resto das paredes se desmoronar.
— Queres ficar ali esta noite? Olha para aquilo! Está a cair aos bocados.
Quer dizer, só tem meio telhado! Vamos morrer congelados!
— Não vamos nada. — A voz de Tristan escorria desdém. — Praticamente
nem está a chover. Deve parar daqui a pouco, e estaremos muito mais
abrigados lá em baixo.
— Eu não vou ficar ali. — Dylan estava decidida. Não conseguia imaginar
nada menos confortável do que passar a noite numa casa húmida, fria e em
ruínas.
— Vais, sim. A menos que queiras seguir caminho sozinha. Em breve será
de noite. Boa sorte. — Falou em tom frio e Dylan não teve dúvidas de que
estava a ser sincero. O que havia ela de fazer?

::::

Ao perto, a casa não parecia muito melhor. A Natureza estava a recuperar o


domínio do jardim; tiveram de abrir caminho entre espinheiros, cardos e tufos
de erva compacta só para chegar à porta. Depois de entrarem, as coisas
melhoraram ligeiramente. Mesmo sem janelas ou porta, o interior estava
consideravelmente protegido do vento e o telhado, de um dos lados, estava
quase intacto. Mesmo que chovesse durante a noite, tinham uma hipótese
razoável de se manterem secos. No entanto, o local parecia ter sido saqueado.
O proprietário anterior deixara alguns dos seus bens e poucas peças de
mobília, mas estava quase tudo partido e espalhado pelo chão.
Tristan entrou à frente. Endireitou uma mesa e uma cadeira e virou um
balde ao contrário para se sentar. Fez sinal a Dylan para ficar com a cadeira.
Ela sentou-se com cuidado, meio convencida de que a cadeira se partiria
debaixo dela. Não aconteceu, mas mesmo assim não conseguia relaxar. Sem
o uivo do vento, estavam envoltos num silêncio desconfortável. Ainda por
cima, já não tinha o terreno perigoso para se distrair. Não havia nada a fazer
senão ficar ali sentada e tentar não olhar para Tristan. Sentia-se incrivelmente
constrangida, encurralada dentro de um espaço tão confinado com um
perfeito desconhecido. Por outro lado, o trauma do dia começava a apoderar-
se dela, e estava desesperada para falar do que acontecera. Olhou para Tristan
e tentou pensar em alguma coisa para quebrar o silêncio.
— O que achas que aconteceu? Com o comboio, quero eu dizer?
— Não sei. Um acidente qualquer. Talvez o túnel tenha abatido, ou coisa
do género. — Encolheu os ombros e olhou para um ponto acima da cabeça
dela. Tudo na sua linguagem corporal indicava que não queria falar sobre o
assunto, mas Dylan não tencionava desistir tão facilmente.
— Mas o que aconteceu às outras pessoas? Não podemos ser os únicos
sobreviventes! O que aconteceu na tua carruagem? — Os seus olhos ardiam
com curiosidade.
Ele encolheu novamente os ombros, distante e desinteressado.
— O mesmo que na tua, calculo. — Afastou o olhar e Dylan percebeu que
ele estava pouco à vontade. Não conseguia perceber por que razão ele não
queria falar no assunto.
— Porque estavas lá? — Ele ergueu abruptamente a cabeça ao ouvir a
pergunta, sobressaltado, e Dylan explicou melhor: — Aonde ias, no
comboio? Visitar alguém? — De súbito, desejou não ter perguntado nada.
Viu nos olhos dele uma centelha de algo que não lhe agradou, um brilho
defensivo.
— A minha tia vive no nordeste. — Disse-o em tom definitivo, para pôr
fim à conversa.
Dylan tamborilou com os dedos na mesa enquanto pensava. Visitar uma tia
parecia um motivo bastante inocente, mas perguntou-se se não haveria aqui
algo mais sinistro. Por que outro motivo estaria ele a ser tão misterioso, tão
dissimulado? Estaria isolada no meio do nada com um criminoso? Ou estava
apenas a ser paranoica, depois do choque daquele dia?
— O que havemos de comer? — perguntou, mais para mudar de assunto do
que outra coisa, porque o silêncio dele era enervante.
— Tens fome? — Ele parecia um pouco surpreendido.
Dylan pensou melhor e percebeu, para sua surpresa, que a resposta era não.
A última vez que comera fora a caminho da estação, um hambúrguer
engolido à pressa, empurrado por uma Diet Coke morna. Isso fora há muitas
horas. Embora fosse magra, normalmente comia como um cavalo. Joan
costumava dizer, a brincar, que um dia ela acordaria e pesaria cento e vinte
quilos. Talvez a perda de apetite fosse um dos sintomas do choque.
— Precisamos, pelo menos, de água — disse, embora, assim que acabou de
falar, se apercebesse de que também não tinha sede.
— Bom, há um riacho lá atrás — respondeu ele, em tom bem-humorado.
— Não sei é se estará muito limpo.
Dylan pensou em beber água de um riacho com lama e insetos; não era
uma perspetiva atraente. Além disso, pensou: se beber água, vou precisar de
ir à casa de banho, e não me parece que haja aqui alguma. As nuvens estavam
a trazer a noite invulgarmente depressa, e a ideia de ir lá fora sozinha era
atemorizadora. Havia urtigas e espinheiros, e ainda por cima ficaria
demasiado assustada para se afastar muito, portanto ainda teria de se
preocupar com a possibilidade de estar ao alcance da audição dele. Seria
simplesmente demasiado embaraçoso.
Ele pareceu ler-lhe os pensamentos. Embora tivesse virado a cara para a
janela, Dylan percebeu pelos movimentos da face que estava a rir-se dela.
Semicerrou os olhos, furiosa, e virou-se na direção oposta, olhando para o
buraco onde estivera em tempos a janela na parede das traseiras. Não via
praticamente nada, apenas o contorno das montanhas à distância. A
aproximação da noite estava a deixá-la nervosa.
— Achas que estamos em segurança aqui? — perguntou.
Ele fitou-a novamente, com uma expressão inescrutável.
— Não te preocupes — respondeu, baixinho —, não há nada aqui.
A sensação de isolamento que havia nessas palavras era tão arrepiante
como a perspetiva de coisas desconhecidas a vaguearem na escuridão, e
Dylan estremeceu involuntariamente.
— Tens frio? — Não esperou por resposta. — Há ali uma lareira. Tenho
fósforos, provavelmente consigo acendê-la.
Levantou-se e aproximou-se da lareira de pedra, que se encontrava debaixo
do único pedaço de telhado intacto. A chaminé devia ter fortalecido a parede,
porque era a parte da casa que se encontrava mais bem conservada. Ainda
havia alguns troncos espalhados ao lado da lareira, que ele apanhou e dispôs
cuidadosamente numa espécie de pirâmide. Dylan observou-o enquanto
trabalhava, cativada pela sua concentração silenciosa. Quando enfiou a mão
no bolso, Tristan olhou para ela e Dylan virou-se rapidamente para a janela.
Sentiu-se corar e esperou que ele não a tivesse apanhado a observá-lo. Uma
risada proveniente da lareira confirmou que não tinha essa sorte, e agitou-se
na cadeira, envergonhada. Ouviu-o acender um fósforo e viu uma pequena
nuvem de fumo. Imaginou-o a encostar o fósforo aos troncos e a tentar atear
as chamas, mas manteve os olhos resolutamente afastados da direção da
lareira.
— A menos que haja um vendaval repentino, estaremos mais quentes
dentro de alguns minutos. — Levantou-se e atravessou a sala para regressar
ao seu banco improvisado.
— Obrigada — murmurou Dylan, sinceramente. Estava grata pela lareira;
afastava a escuridão que se infiltrava por todo o lado. Virou-se um pouco e
olhou para as chamas, vendo-as saltar sobre os troncos. Pouco depois, o calor
começou a espalhar-se, envolvendo-os a ambos.
Tristan continuou a olhar para a janela, apesar de não haver nada para ver.
Dylan, que esgotara a sua coragem a tentar iniciar conversas que ele
extinguira antes de se poderem desenvolver, não se atreveu a interromper-lhe
a contemplação. Cruzou os braços em cima da mesa, apoiou o queixo neles e
olhou para o fogo. A dança das chamas hipnotizou-a e, pouco tempo depois,
sentiu as pálpebras fecharem-se.
Enquanto a cortina do sono descia sobre ela, escutou o vento a soprar do
outro lado das paredes meio desfeitas. Embora não conseguisse sentir o frio
do seu toque, ouviu-o uivar ao passar por fendas e recantos, à procura de uma
forma de entrar. O som era fantasmagórico, assustador. Estremeceu, inquieta,
mas tentou controlar o movimento antes que Tristan reparasse.
Era só o vento, nada mais.
SEIS

Quando abriu os olhos, Dylan estava novamente no comboio. Pestanejou,


confusa por um momento, mas depois aceitou esta reviravolta bizarra dos
acontecimentos com um encolher de ombros quase impercetível. O comboio
estremeceu e abanou nos carris e depois estabilizou numa vibração suave.
Voltou a fechar os olhos e encostou a cabeça ao banco.
Pareceu-lhe ter passado apenas um segundo, mas, quando abriu os olhos,
algo estava diferente. Perplexa, franziu a testa. Devia ter adormecido outra
vez. As luzes fortes da carruagem feriram-lhe os olhos, obrigando-a a
semicerrá-los. Sacudiu um pouco a cabeça para afastar as teias de aranha e
agitou-se no banco, desconfortável. Os sacos da sua companheira de viagem
estavam a ocupar uma quantidade ridícula de espaço e havia algo num saco
de compras cor de laranja que estava a espetar-se-lhe nas costelas de forma
dolorosa.
Lembrou-se de ter prometido ao pai que lhe diria quando estivesse no
comboio e, com alguma dificuldade, tirou o telemóvel do bolso. Um dos
sacos deslocou-se quando o fez e aproximou-se perigosamente da beira do
assento antes de a mulher sentada à sua frente esticar o braço e o empurrar
para trás. Dylan ouviu-a soprar, irritada, mas ignorou-a. Passou o dedo no
ecrã para o ligar e começou a escrever.
Pai, estou no comboio. Consegui apanhar
um mais cedo. Estou ansiosa por te ver ☺
Dylan

Um solavanco súbito fez-lhe saltar o telemóvel da mão. Tentou apanhá-lo


com a outra, mas só lhe tocou de raspão, o que o fez rodopiar pelo ar e, com
um som horrível, cair no chão.
— Raios — resmungou entre dentes. Apalpou o chão durante alguns
segundos até encontrar o telemóvel. Estava peganhento; algum idiota devia
ter entornado sumo. Dylan endireitou-se com o telemóvel na mão para
inspecionar os danos.
Em vez de sumo, o telemóvel estava coberto de uma substância espessa e
vermelha que escorria pelo ecrã e pingava lentamente sobre as suas calças de
ganga, como pequenas explosões. Ergueu o rosto e olhou para a mulher à sua
frente pela primeira vez. Os olhos da mulher fitaram-na, sem vida. O sangue
escorria-lhe da cabeça e tinha os lábios cinzentos abertos num grito mudo.
Dylan olhou em volta, aflita, e viu os dois fãs dos Rangers que tentara evitar
ao entrar no comboio. Estavam abraçados um ao outro, com as cabeças
encostadas, num ângulo que parecia completamente errado. Outro solavanco
do comboio fê-los tombar para a frente como fantoches, com as cabeças
presas ao pescoço apenas por fios de tendão. Dylan abriu a boca para gritar
enquanto o mundo se desmoronava.
Começou por um guincho hediondo, um som que fez doer os dentes a
Dylan e lhe deixou todos os nervos do corpo em franja, enquanto metal
colidia com metal e era destroçado. As luzes piscaram e o comboio pareceu
elevar-se e sacudir-se sob os seus pés. Foi projetada para a frente com uma
força incrível, diretamente contra a mulher monstruosa à sua frente. Os
braços da morta pareciam preparados para a abraçar e a sua boca abriu-se
mais num sorriso aterrorizador.

::::

— Dylan! — A voz, inicialmente desconhecida, trouxe-a de volta à


consciência. — Dylan, acorda! — Alguém estava a abanar-lhe o ombro, com
força.
Arquejante, Dylan levantou a cabeça da mesa e encontrou um par de olhos
azuis preocupados.
— Estavas a gritar — disse Tristan num tom que, para variar, parecia
realmente ansioso.
O terror do sonho ainda estava bem presente. O sorriso morto da mulher
pairava em frente dos olhos de Dylan e a adrenalina corria-lhe pelas veias.
Mas não era real. Não era. Gradualmente, a sua respiração abrandou à medida
que a realidade solidificava à sua volta.
— Pesadelo — murmurou, envergonhada. Endireitou-se, evitando o olhar
dele, e olhou em redor. O fogo há muito que se extinguira, mas a primeira
claridade da manhã começava a iluminar o céu e conseguia nesse momento
ver claramente o que a rodeava.
A casa parecia mais fria sob a luz matinal. As paredes tinham sido pintadas
de um tom creme a dada altura, no passado, mas a tinta há muito desbotara e
começara a descascar. Os buracos do telhado e das janelas em falta tinham
deixado a humidade infiltrar-se nas paredes e havia agora manchas de bolor
verde espalhadas na superfície. O abandono indiferente dos bens e mobílias
era, de alguma forma, triste. Dylan imaginou alguém, em tempos, a arrumar
carinhosamente na sala objetos carregados de significado e emoção.
Por alguma razão bizarra, a ideia deixou-lhe um nó na garganta e as
lágrimas encheram-lhe os olhos e ameaçaram derramar-se pelas suas faces. O
que se passava com ela?
— Devíamos ir andando — disse Tristan, interrompendo-lhe os
pensamentos e trazendo-a de volta ao presente.
— Está bem. — Estava rouca com a emoção e Tristan olhou para ela.
— Está tudo bem?
— Sim. — Dylan respirou fundo e tentou sorrir. Não era um sorriso muito
convincente, mas esperava que ele não a conhecesse bem o suficiente para
perceber. Tristan semicerrou ligeiramente os olhos, mas acenou com a
cabeça.
— Então qual é o plano? — perguntou ela em tom animado, tentando
ultrapassar o momento embaraçoso. Resultou, de certa forma.
Com um meio sorriso, ele dirigiu-se à porta.
— Caminhamos. Naquela direção. — Apontou e depois pôs as mãos nas
ancas e esperou que ela se juntasse a ele.
— Agora? — perguntou Dylan, incrédula.
— Sim — respondeu ele secamente, e saiu da casa.
Dylan olhou para a porta, estupefacta. Não podiam simplesmente pôr-se a
andar, sem beber um trago de água do riacho, sem tentar encontrar comida,
sem sequer lavar rapidamente a cara. O que faria ele se ela ficasse ali e se
recusasse a segui-lo? Provavelmente continuaria a andar.
— Raios — murmurou Dylan, levantando-se rapidamente e correndo atrás
dele de forma atabalhoada.

::::
— Tristan, isto é ridículo.
— O que foi agora? — Virou-se para ela, claramente exasperado.
— Estamos a caminhar há horas.
— E depois?
— Bem, o comboio teve o acidente apenas uma hora a norte de Glasgow.
Não há sítio nenhum nesta parte da Escócia em que pudéssemos começar a
andar, andar tanto tempo como nós andámos, e não encontrar nada.
Ele olhou para Dylan, avaliando-a com ar astuto.
— E aonde queres chegar?
— Só podemos estar a caminhar em círculos. Se soubesses mesmo aonde
vamos, já lá teríamos chegado. — Dylan pôs as mãos nas ancas, preparada
para discutir, mas para sua surpresa a expressão de Tristan era quase aliviada.
Isso confundiu-a. — Não podemos simplesmente continuar a andar —
concluiu.
— Tens alguma ideia melhor?
— Sim, a minha ideia melhor era ficar junto da entrada do túnel, onde
alguém nos teria encontrado.
Ele sorriu outra vez. A preocupação dessa manhã há muito que
desaparecera, e o Tristan arrogante e trocista estava de volta.
— Agora é tarde — ripostou e, virando-se, continuou a andar.
Dylan olhou para as costas dele, incrédula. Era tão rude e presunçoso que
não parecia verdade.
— Não, Tristan, estou a falar a sério. Para!
Tentou adicionar um tom de autoridade à sua voz, mas até ela própria
reconhecia que parecia mais desespero.
Mesmo a dez metros de distância, ouviu o suspiro de impaciência dele.
— Quero voltar para trás.
Tristan virou-se novamente para ela e Dylan percebeu que estava a ter
grande dificuldade em manter uma expressão calma.
— Não.
Olhou para ele, de boca aberta. Quem é que este tipo pensava que era,
afinal? Era um rapaz da idade dela, não a sua mãe. Por que raio ele julgava
poder dar-lhe ordens desta maneira? Cruzou os braços sobre o peito e
preparou-se para uma discussão.
— Como assim, não? Não podes decidir aonde eu vou ou não. Ninguém te
nomeou comandante. Estás tão perdido como eu. Quero voltar para trás. —
Enunciou muito bem cada sílaba da última frase, como se a força das palavras
pudesse torná-las realidade.
— Não podes voltar para trás, Dylan. Já desapareceu.
Baralhada com as palavras dele, Dylan franziu a testa e apertou os lábios.
— O que queres dizer? O que é que desapareceu? — As afirmações
enigmáticas de Tristan começavam a irritá-la.
— Nada, está bem? Não foi nada. — Abanou a cabeça e pareceu estar a
debater-se para encontrar as palavras certas. — Ouve, confia em mim. — Os
seus olhos trespassaram os dela. — Já viemos até aqui. Demoraria imenso
tempo voltar para trás e encontrar outra vez o túnel. Eu sei mesmo aonde
estou a ir. Garanto-te.
Indecisa, Dylan deslocou o peso de um pé para o outro. Queria
desesperadamente regressar ao local do acidente, certa de que estaria lá
alguém com autoridade, alguém capaz de resolver isto. Por outro lado, nunca
o conseguiria encontrar sozinha e estava morta de medo de ficar abandonada
no meio do nada. Ele pareceu pressentir a sua indecisão. Aproximou-se dela,
até estar quase a tocar-lhe, e dobrou os joelhos para ela o conseguir olhar nos
olhos. Dylan queria afastar-se, mas estava paralisada, como um coelho com a
luz de uns faróis. Ecos agitaram-se na sua memória, mas ele estava
demasiado perto e perdeu o fio ao raciocínio.
— Temos de ir por este lado — murmurou ele. — Tens de vir comigo. —
Fitou-a atentamente, até ver as pupilas dela dilatarem-se ao ponto de quase
cobrirem a íris verde, e sorriu de forma satisfeita. — Vamos — ordenou.
Sem pensar, os pés de Dylan obedeceram.
Andaram, e andaram, e andaram. Estavam a atravessar terreno pantanoso
que, de alguma forma, parecia ser sempre a subir. As pernas de Dylan ardiam
e cada passo que dava era acompanhado pela sensação desagradável de água
fria dentro dos ténis. As calças de ganga largas estavam ensopadas quase até
aos joelhos e arrastavam-se a cada passo.
Tristan, contudo, parecia indiferente aos seus olhares furiosos e aos seus
resmungos. Manteve um ritmo implacável, sempre cerca de um metro à
frente dela, calado e determinado. De vez em quando, se ela tropeçasse,
virava a cabeça, mas assim que via que ela estava bem prosseguia com a sua
marcha de forma resoluta.
Dylan começou a sentir-se cada vez mais desconfortável. O silêncio entre
eles era como uma parede de tijolo, totalmente impenetrável. Parecia-lhe que
ele estava ressentido por se ver preso a ela, como se Dylan fosse uma irmã
mais nova inconveniente de quem prometera de má vontade cuidar. Não
havia nada a fazer senão aceitar esse papel e segui-lo, como a menina
mimada a quem não estavam a fazer a vontade. Dylan sentia-se demasiado
intimidada para tentar confrontá-lo com este comportamento hostil. Baixou o
queixo para o peito e suspirou. De olhos postos na erva alta, tentando em vão
localizar os buracos e os torrões de terra que a queriam fazer tropeçar,
resmungou baixinho, infeliz, e continuou a seguir Tristan.
No cimo de mais uma colina, ele parou finalmente.
— Precisas de descansar um pouco?
Dylan ergueu os olhos, ligeiramente desorientada depois de estar há tanto
tempo de cabeça baixa.
— Sim, era bom. — Depois de um silêncio tão prolongado, achou que
devia responder num murmúrio, mas o vento que soprava à volta deles levou
as palavras assim que lhe saíram da boca. No entanto, ele pareceu
compreender, porque se dirigiu a uma grande rocha que se erguia entre a erva
e a urze e encostou-se a ela numa pose descontraída. Olhou para a paisagem,
como se estivesse de sentinela.
Dylan não tinha energia para procurar um sítio seco. Deixou-se cair no
chão onde estava. Quase instantaneamente, a humidade ensopou-lhe as
calças, mas já estava tão fria e molhada que mal deu pela diferença. Estava
demasiado cansada para pensar, demasiado cansada para discutir. Exausta e
sem ânimo, estava disposta a seguir cegamente Tristan para onde ele quisesse
levá-la. Talvez tivesse sido esse o plano dele desde o princípio, pensou, mal-
humorada.
Era estranho; algures, no fundo da sua mente, sabia que havia várias coisas
erradas. Havia o facto de estarem a andar há quase dois dias sem verem
absolutamente ninguém, o facto de ela não ter comido nem bebido nada
desde o acidente e, apesar disso, não ter fome nem sede, e finalmente — o
mais assustador de tudo — o facto de não falar com a mãe nem com o pai há
quarenta e oito horas e de eles não fazerem ideia de que ela estava bem. De
alguma forma, estes pensamentos estavam a incomodá-la, mas apenas
vagamente, como leves sacudidelas na cauda de um cavalo de guerra a
galope. Não conseguia concentrar-se neles.
De súbito, Tristan olhou para ela e Dylan estava demasiado absorvida nos
seus pensamentos para conseguir disfarçar e afastar os olhos a tempo.
— O que foi? — perguntou ele.
Dylan mordeu o lábio enquanto tentava decidir qual, do milhão de
perguntas que tinha, devia fazer primeiro. Era muito difícil falar com ele, e
ainda não tinha feito uma única pergunta sobre ela. Não estaria minimamente
curioso? Provavelmente estava arrependido de não se ter posto a caminho
mal saíra do túnel, em vez de ficar à espera de encontrar mais alguém. Dylan
não sabia se isso não teria sido melhor também para ela. Podia ter ficado ao
pé do túnel e, se ninguém aparecesse, acabaria por arranjar coragem para
voltar a entrar e o atravessar até ao outro lado. A esta hora já estaria em casa,
a discutir com Joan sobre a próxima viagem a Aberdeen.
À sua esquerda, ouviu-se subitamente um uivo distante. Era agudo e
queixoso, como um animal em sofrimento. O som pareceu ecoar nas colinas,
o que lhe conferia uma qualidade sinistra. Dylan estremeceu.
— O que foi aquilo? — perguntou a Tristan.
Ele encolheu os ombros, aparentemente despreocupado.
— Um animal qualquer. Introduziram aqui uns lobos há algum tempo. Não
te preocupes — acrescentou com um sorriso, olhando para a expressão
nervosa dela. — Têm muitos veados para comer. Não se vão incomodar
contigo.
Depois olhou para o céu, que estava a escurecer. Sem que Dylan se tivesse
apercebido, era quase crepúsculo. Com certeza que não tinham caminhado
tanto tempo? Cruzou os braços no peito para se aquecer. O vento parecia
subitamente mais forte, soprando-lhe madeixas de cabelo para a cara,
fazendo-as dançar perante os seus olhos como sombras ondulantes. Tentou
afastá-las, mas os seus dedos encontraram apenas ar.
Tristan desencostou-se da rocha e os seus olhos perscrutaram a
aproximação da noite.
— Seja como for, é melhor continuarmos — disse. — Não queremos estar
no cimo de uma colina quando anoitecer.

::::

Era impressionante o quanto escurecera num espaço de tempo


ridiculamente curto. Dylan quase não conseguia ver onde punha os pés ao
descer a colina. A encosta estava coberta de gravilha que lhe deslizava sob os
pés, e de pedras escorregadias por causa da chuva. Tentou caminhar com
passos pequenos e cuidadosos, mantendo sempre um pé firmemente apoiado
no chão enquanto apalpava terreno com o outro. Era um processo lento e
sentia a impaciência de Tristan. Ainda assim, ele caminhava agora ao lado
dela, com um braço meio levantado, pronto para a agarrar se ela caísse, e isso
era reconfortante. Por cima do som do vento e da sua própria respiração,
Dylan ouvia ocasionalmente os uivos distantes de animais na noite.
— Alto. — Tristan esticou o braço à frente dela. Chocada com a paragem
abrupta, Dylan virou-se para ele, de olhos muito abertos. Ao ver a postura
dele, sentiu um arrepio de apreensão.
Tristan estava imóvel como uma estátua, absolutamente alerta. Cada
músculo do seu corpo estava tenso, preparado para a ação. Os seus olhos
perscrutavam atentamente a cena à sua frente, movendo-se ligeiramente de
um lado para o outro. Tinha o sobrolho franzido, a boca franzida numa
expressão preocupada. O que quer que fosse, não era bom.
SETE

— O que é? — Dylan virou-se na direção para onde Tristan estava a olhar,


mas não conseguia ver nada de fora do normal na penumbra. Distinguia
apenas o contorno das montanhas à distância e o trilho que estavam a descer.
Olhou durante muito tempo, mas parecia tudo calmo. Estava prestes a abrir a
boca para perguntar o que ele tinha visto quando Tristan levantou a mão e lhe
fez sinal para estar calada.
Dylan fechou a boca e observou-o. Ele continuava imóvel, com os olhos a
perscrutar a escuridão. Dylan olhou novamente para onde ele estava virado,
mas continuava a não ver nada. No entanto, a tensão era contagiosa e sentiu
um aperto no peito. O seu coração começou a bater mais depressa e teve de
se concentrar em inspirar pelo nariz para manter o controlo da respiração.
Tristan olhou fixamente para a frente mais um instante e depois virou-se
para ela. Por uma fração de segundo, os seus olhos brilharam vividamente,
como chamas azuis. Dylan susteve a respiração. Mas no segundo seguinte
estavam negros como carvão e pensou que talvez o tivesse imaginado.
O vento parecia soprar com mais intensidade à volta deles. O barulho nos
ouvidos de Dylan era alto, mas apesar disso detetou um uivo distante. Os
mesmos sons animais que ouvira antes. Tristan podia ter dito que não havia
motivo para se preocupar, mas a sua postura rígida dizia outra coisa.
— Lobos? — perguntou ela num sussurro, demasiado assustada para
levantar a voz.
Ele assentiu com um aceno.
Dylan olhou para a paisagem à frente deles e procurou silhuetas escuras
entre a erva. Continuava tudo calmo. Inconscientemente, a ansiedade
empurrara-a para mais perto dele em busca de proteção, e conseguiu agora
murmurar-lhe ao ouvido:
— O que vamos fazer?
— Há uma cabana de madeira abandonada ao fundo desta colina —
respondeu ele, também num murmúrio, mas em tom urgente. — Temos de lá
chegar. E temos de ir um bocadinho mais depressa, Dylan.
— Mas onde estão eles? — perguntou ela baixinho.
— Agora não interessa; temos de nos despachar.
As palavras assustaram Dylan. Tentou ver na escuridão, dividida entre
querer e não querer que o perigo se revelasse. A escuridão estava a adensar-
se, de alguma forma. Até o chão sob os pés dela era agora apenas uma
sombra negra. Se tentasse caminhar mais depressa, cairia e provavelmente
arrastaria Tristan consigo.
— Tristan, não vejo nada. — O medo fez-lhe fraquejar a voz.
— Eu seguro-te — disse ele, e a certeza na sua voz transmitiu-lhe coragem
e aqueceu o frio no seu peito. Ele pegou-lhe na mão, entrelaçou os dedos nos
dela e apertou. Dylan apercebeu-se, sobressaltada, de que era a primeira vez
que se tocavam. Apesar do horror do momento, sentiu-se quase nervosa com
o contacto. A mão dele era muito quente e forte. Dylan sentiu-se
imediatamente segura. A confiança dele, evidente em cada palavra, em cada
gesto, transmitiu-lhe também confiança.
— Vamos — disse ele.
Começou a conduzi-la a um ritmo muito mais acelerado do que antes.
Dylan tentou acompanhá-lo, mas não via nada e tropeçou várias vezes,
desequilibrada na encosta íngreme. A dada altura, pisou uma zona de gravilha
que lhe deslizou sob o pé. Tentou apoiar-se com o outro, mas aterrou num
ângulo estranho. Obrigada a apoiar todo o seu peso nele, sentiu os músculos
do tornozelo esticarem e uma dor súbita quando a articulação torceu debaixo
dela. Com um gemido, sentiu-se a cair, a perna a perder as forças. Mas a mão
de Tristan segurava firmemente na sua e ele esticou o braço, puxando-a e
travando-lhe a queda antes de ela bater com a cabeça no chão. Nesse
momento, pareceu-lhe impossivelmente forte. Com um braço, puxou-a de
novo para cima, quase a levantando do solo antes de a voltar a apoiar nos pés.
No segundo seguinte, estava novamente a incentivá-la a continuar.
— Estamos quase lá — disse ele, ligeiramente ofegante.
Dylan olhou para a frente e conseguiu ver os contornos indistintos de uma
estrutura, não muito longe. Era, tal como Tristan dissera, uma cabana de
madeira. À medida que se aproximavam, os detalhes tornaram-se visíveis. A
porta estava intacta, desta vez, com uma janela de vidro de cada lado. O
telhado formava um vértice e havia uma chaminé inclinada de um dos lados.
Ao ritmo a que Tristan estava a andar, chegariam lá em poucos minutos.
O terreno tornou-se menos inclinado e Dylan caminhou de forma mais
confiante. O tornozelo doía-lhe a cada passo, mas tinha a certeza de que
estava apenas torcido, não partido. Tristan puxou-a com mais força, até
estarem quase a correr.
— Muito bem, Dylan. Não pares.
Os uivos animais estavam agora mais altos, mais próximos. Era uma
orquestra constante de som. Dylan não conseguia calcular quantas seriam as
criaturas que os rodeavam. Ainda não vislumbrara qualquer lobo, apesar de
estar constantemente a olhar para a esquerda e para a direita. De qualquer
maneira, estavam quase lá. Iam conseguir. A cabana parecia muito mais
robusta do que a casa em ruínas onde tinham sido forçados a dormir na noite
anterior. Nessa, seria impossível impedir os lobos de entrar. Estavam agora
tão perto que Dylan quase conseguia ver o reflexo do seu próprio rosto
assustado no vidro da janela.
Foi então que o sentiu. Começou como um frio à volta do coração, e depois
o ar pareceu ficar congelado nos seus pulmões. Na escuridão não os
conseguia ver; distinguia apenas o movimento no ar, sombras sobre sombras.
Giravam e rodopiavam à frente dela e sentiu o ar agitar-se contra a sua pele
enquanto a cercavam. A testar, a saborear o ar.
Não eram lobos.
— Estão aqui. — A voz de Tristan estava carregada de temor, e falou tão
baixo que as palavras pareciam não ser destinadas aos ouvidos dela. No
entanto, Dylan ouviu-as e assustaram-na mais do que qualquer outra coisa.
Havia algo estranho na forma como ele falara. Era como se soubesse que
estas criaturas se aproximavam, como se soubesse o que eram. Que segredos
estava a esconder-lhe?
Algo roçou nela. Embora Dylan tenha conseguido afastar a cabeça
suficientemente depressa, a coisa raspou-lhe no rosto, deixando um rasto
ardente na cana do nariz e na face. Passou a mão pela cara e sentiu-a
molhada. Estava a sangrar.
— Tristan, o que está a acontecer? — gritou, projetando a voz por cima do
vento e dos uivos, que se erguiam agora num crescendo assustador,
intercalados com gritos e silvos. O gelo no seu peito fazia com que fosse
difícil respirar.
Da penumbra, uma sombra destacou-se e dirigiu-se a ela. Não teve tempo
para reagir, para se desviar do caminho, nem sequer para se preparar. Mas o
impacto que esperava não aconteceu. Espantosamente, a sombra pareceu
passar através dela. Não sabia se o tinha ou não imaginado, mas sentiu-a
como uma seta de gelo a trespassar-lhe o corpo. Largou Tristan e levou
ambas as mãos ao peito, à espera de encontrar uma ferida, ou um buraco, mas
o casaco estava completamente intacto.
— Dylan, não! Não me largues a mão!
Sentiu-o estender o braço para ela e procurou-lhe a mão, mas não a
encontrou. Depois, de repente, sentiu-se agarrada pelo que pareciam ser
centenas de mãos tão insubstanciais como fumo. Eram fortes, contudo, e com
a força dos números sentiu que a puxavam para baixo. Instintivamente, agitou
os braços para tentar enxotá-las, mas as suas mãos não encontraram nada no
ar. O que se passava? Não eram animais nem pássaros. Parou de se mexer e
sentiu as coisas insubstanciais voltarem imediatamente. Como podia lutar
contra algo em que não conseguia tocar? Sob a força combinada das
criaturas, as suas pernas dobraram-se e caiu por terra.
— Dylan!
Embora ele estivesse mesmo ao seu lado, a voz de Tristan parecia muito
distante. Mal o ouvia, por cima do barulho de rosnados e guinchos jubilantes.
As criaturas cobriam-na agora totalmente. Sentia-as nos braços, nas pernas,
na barriga, até na cara. Onde quer que lhe tocassem, deixavam um ardor,
como metal gelado sobre pele. Cada vez eram mais as que lhe atravessavam o
corpo, gelando-lhe os ossos. Não havia qualquer adrenalina no medo dela.
Pelo contrário, o terror enfraqueceu-a. Não tinha forças para lutar contra o
invencível.
— Tristan — murmurou. — Ajuda-me.
A sua voz tinha menos força do que um sussurro. Sentia-se fraca, como se
algo lhe tivesse sugado a energia. Era difícil recusar o peso das mãos que a
empurravam. Para baixo, para baixo, até ao chão e depois, espantosamente,
através dele. A terra e rocha não pareciam tão sólidas como deviam. Dylan
sentiu que conseguiria atravessá-las como se fossem líquidas.
— Dylan! — A voz de Tristan parecia estar debaixo de água. Era distorcida
e indistinta. — Dylan, ouve-me!
Apercebeu-se de uma nota de pânico e quis confortá-lo. Sentia-se quase
calma, sem peso e tranquila; ele devia estar calmo também.
Uma mão agarrou-lhe bruscamente na parte da frente do casaco,
magoando-a. O ar à sua volta encheu-se de silvos furiosos e Dylan
concordava — a mão devia deixá-la ir. O punho sacudiu-a com mais força e
depois içou-a para cima. Sentiu-se como se estivesse a ser puxada por forças
opostas.
Os silvos intensificaram-se e as mãos que a puxavam transformaram-se em
garras ferozes, cravando-se pelo seu corpo como agulhas. Rasgaram-lhe as
roupas e enredaram-se no seu cabelo, puxando-lhe a cabeça para trás e
arrancando-lhe dos lábios um grito de dor. Os atacantes desconhecidos
pareceram gostar disso, e os silvos transformaram-se em risos cacarejados,
um guincho ameaçador que penetrou no coração de Dylan e o gelou.
De súbito, foi levantada do chão. A mão que lhe segurava no casaco puxou-
a até ficar direita e um braço passou sob os seus joelhos e ergueu-a no ar.
Com os pés a abanar e a cabeça tombada para trás, demorou algum tempo a
reunir forças para a levantar. Sabia que estava nos braços de Tristan. Não
tinha tempo para se sentir embaraçada, apesar de ele a ter apertada contra o
peito para a proteger, porque as criaturas não tinham desistido da luta.
Puxavam-lhe os pés e rodeavam Tristan. Tentaram agarrar nas roupas e no
cabelo dele; esvoaçaram furiosas à frente do seu rosto. Ignorando-as, ele
começou a correr. As garras perderam a força, mas não pararam de a tentar
apanhar. Dylan sentia as criaturas a passarem rente a ela, suficientemente
perto para lhe arranharem a pele, mas não a conseguiram agarrar enquanto
Tristan se precipitava em direção à cabana.
Os gritos atingiram um pico febril à medida que se aproximavam do abrigo.
As criaturas perceberam que estavam prestes a perder a sua presa e
redobraram os esforços. Tristan parecia indiferente aos ataques, que se
concentraram em Dylan, na sua cabeça e no seu cabelo, puxando e
arranhando. Tentou esconder a cara no ombro de Tristan.
Estavam quase lá. Os pés de Tristan ecoaram sobre um caminho
pavimentado ao percorrer os últimos metros. Sem a largar, conseguiu de
alguma forma abrir a porta e lançar-se para o interior. Dylan ouviu um coro
ensurdecedor de gritos. Não havia palavras, mas a emoção era clara naquele
clamor estridente: estavam furiosas.
OITO

Dylan soube o preciso instante em que cruzaram a ombreira da porta para a


segurança da cabana, porque o barulho cessou imediatamente. Tristan bateu
com a porta atrás deles e pousou-a de imediato no chão, como se o corpo dela
nos seus braços o estivesse a queimar. Deixou-a ali no meio da sala, de boca
aberta e em estado de choque, aproximou-se rapidamente da janela e olhou lá
para fora.
A cabana, tal como a casa em ruínas da noite anterior, estava escassamente
mobilada. Havia um banco encostado à parede oposta e Dylan cambaleou até
ele. Deixou-se cair pesadamente na madeira áspera e escondeu o rosto nas
mãos, com os soluços abafados entre os dedos enquanto tentava controlar o
medo que ainda lhe corria nas veias. Tristan olhou para ela, com uma
expressão impenetrável, mas manteve-se no seu posto de vigia junto à janela.
Dylan afastou as mãos do rosto e examinou os braços. Mesmo na escuridão
quase total, conseguia ver arranhões cruzados em toda a sua pele. Alguns
eram muito leves, mas outros tinham penetrado mais fundo, trazendo
gotículas de sangue à superfície. Ardia-lhe a pele toda. No entanto, mal sentiu
a dor com a adrenalina que lhe percorria as veias, fazendo-lhe tremer as
mãos.
A cabana tinha uma lareira e, minutos depois, Tristan afastou-se da janela e
inclinou-se sobre ela. Não havia troncos, e Dylan não ouviu o som de um
fósforo a acender, mas pouco depois viu o fogo a arder sobre a grelha. A luz
tremeluzente conferia à cabana uma atmosfera fantasmagórica, com as
sombras a dançarem nas paredes. Dylan não questionou o aparecimento
súbito do fogo. Tinha pensamentos muito mais importantes — impossíveis —
a debaterem-se por espaço na cabeça. Aquelas ideias que andavam a
incomodá-la no fundo da mente estavam agora a lutar para vir ao de cima, a
exigir serem ouvidas.
Ficaram assim durante muito tempo — Tristan como uma estátua,
novamente junto da janela, Dylan enrolada numa bola em cima do banco,
gemendo e chorando baixinho de vez em quando — os efeitos da vaga de
adrenalina. Não se ouvia nada lá fora. O que quer que aquelas criaturas
fossem, pareciam ter-se retirado, por agora.
Por fim, Dylan levantou a cabeça.
— Tristan.
Ele não olhou para ela. Parecia estar a preparar-se para alguma coisa.
— Tristan, olha para mim. — Dylan esperou e, por fim, ele virou
lentamente a cabeça, aparentemente contrariado. — O que foi aquilo?
Tentou manter a voz calma, mas estava rouca de chorar e fraquejou um
pouco quando falou. Os seus olhos verdes brilharam, ainda molhados de
lágrimas, mas não os desviou dele, suplicando-lhe silenciosamente que
dissesse a verdade. Tristan tinha reconhecido aquelas criaturas, o que quer
que fossem. Estava a falar consigo próprio quando dissera «Estão aqui», e
sabia o que ia acontecer quando ela lhe largou a mão. Como é que sabia? Que
mais estava a esconder-lhe?
Tristan suspirou. Sabia que aquele momento chegaria. Adiara-o o mais
possível. Mas agora não havia truques ou charadas capazes de disfarçar o que
acontecera. Dylan vira e sentira aquelas coisas. Não podia explicá-las com
uma desculpa qualquer sobre animais selvagens. Não lhe restava outra opção
senão ser honesto com ela. Não sabia bem por onde começar, como lhe
explicar de maneira que ela compreendesse, como lhe dar a notícia e, ao
mesmo tempo, causar o mínimo de sofrimento possível.
Com relutância, atravessou a sala e sentou-se no banco ao seu lado. Não
olhou para ela, mas sim para os dedos cruzados, como se estivesse à espera
de aí encontrar as respostas.
Normalmente, quando revelar a verdade se tornava uma necessidade
inevitável, simplesmente dizia o que tinha a dizer sem preâmbulos.
Convencera-se de que um choque forte mas breve era melhor do que arrastar
a situação penosamente. Porém, na realidade, fazia-o dessa forma porque lhe
era indiferente. Por mais que eles chorassem, se lamentassem, suplicassem ou
tentassem negociar, não havia maneira de mudar nada. Limitava-se a desligar
a sua atenção e esperava até eles aceitarem o inevitável, e depois podiam
prosseguir num entendimento mútuo. Mas desta vez... desta vez não queria
fazer isso.
Sentado perto dela, tão perto que conseguia sentir-lhe a respiração no rosto,
virou a cabeça e fitou os olhos verdes de Dylan, de um verde denso e
profundo que lhe fazia lembrar florestas, e sentiu um aperto no estômago.
Não queria magoá-la. Não sabia bem porquê, mas sentia um desejo de a
proteger, mais do que alguma vez sentira por qualquer um dos outros.
— Dylan, não fui franco contigo — começou.
Viu as pupilas dela dilatarem-se ligeiramente, mas não houve outra reação.
Ela já sabia disso, percebeu. Só não sabia o que ele estava a esconder.
— Eu não vinha no comboio.
Fez uma pausa e avaliou a reação dela. Esperava ser interrompido por uma
rajada de perguntas, exigências e acusações, mas ela simplesmente esperou,
imóvel como pedra. Os seus olhos eram lagos de receio e incerteza; estava
com medo do que ele lhe ia dizer, mas decidida, apesar disso, a ouvi-lo.
— Eu estava... — A voz de Tristan tremeu e extinguiu-se. Como havia de o
dizer? — Estava à tua espera.
Ela franziu a testa, confusa, mas não disse nada e ele ficou grato por isso.
Parecia-lhe mais fácil dizer as palavras que tinha de dizer sem ouvir a voz
dela. No entanto, recusou-se a fazer-lhe a descortesia de não a olhar nos
olhos.
— Tu não foste a única a sobreviver ao acidente, Dylan. — A sua voz era
agora um sussurro, como se pudesse suavizar o golpe ao baixar o volume. —
Foste a única que não sobreviveu.
Pronunciou claramente as palavras, mas estas pareceram flutuar no cérebro
de Dylan, recusando-se a solidificar. Afastou os olhos dos dele para tentar
processar o que ele lhe estava a dizer. Fixou um azulejo partido no chão.
Tristan agitou-se ao lado dela, pouco à vontade, à espera de uma reação.
Passou um minuto, depois outro. Ela não se mexeu. Só um leve tremor nos
lábios a impedia de parecer uma estátua.
— Lamento muito, Dylan — acrescentou, não por ter de o dizer, mas
porque realmente lamentava. Embora não compreendesse o motivo, detestava
fazê-la sofrer, gostava de poder poupá-la a isso. Mas era impossível desfazer
o que estava feito. Ele não tinha poder para tal e, mesmo que pudesse, seria
errado fazê-lo. Não lhe cabia a ele assumir o papel de Deus. Viu-a pestanejar
duas vezes e percebeu que a compreensão estava a tornar-se realidade dentro
dela. A qualquer instante começaria a torrente de emoção. Mal se atrevia a
respirar. Tinha medo das lágrimas dela.
Porém, Dylan surpreendeu-o.
— Estou morta? — perguntou ela, finalmente.
Ele assentiu com um aceno, sem confiar na sua própria voz. À espera de
uma explosão de angústia, ergueu os braços para ela. Contudo, ela
permaneceu estranhamente calma. Acenou com a cabeça, suspirou e depois
um leve sorriso passou-lhe pelo rosto.
— Acho que, se calhar, já sabia, de certa forma.
Não, não era bem isso, pensou Dylan. Não sabia mesmo... mas algures, no
fundo da mente, o seu subconsciente estava a registar todas as coisas erradas,
todas as coisas que não encaixavam. E, embora não soubesse explicar porquê,
não sentia qualquer terror, agora que finalmente sabia a verdade. Apenas
alívio.
Pensou que nunca mais voltaria a ver a mãe, ou Katie, que nunca chegaria a
conhecer o pai, pensou na relação que nunca poderiam ter, que nunca teria
uma carreira, nem se casaria, nem teria filhos. Sentiu a tristeza invadir-lhe o
coração, mas acima desses pensamentos infelizes havia uma sensação de paz
interior. Se fosse verdade, e ela sentia nos ossos que era, então estava feito e
era imutável. Ainda aqui estava, e continuava a ser ela, e isso era algo
merecedor de gratidão.
— Onde estou? — perguntou baixinho.
— Nas terras perdidas — respondeu Tristan. Ela ergueu os olhos para ele, à
espera de mais. — É a terra entre mundos. Tens de a atravessar. Toda a gente
tem. Cada um, o seu deserto pessoal. É o lugar onde as pessoas descobrem a
verdade, que morreram, e aceitam esse facto.
— E aquelas coisas? — Dylan apontou para a janela. — O que são?
Embora o barulho tivesse desaparecido, Dylan tinha a certeza de que as
criaturas não se tinham ido embora. Estavam apenas à espera, pacientemente,
na esperança de terem outra oportunidade de atacar.
— Demónios, penso que lhes podes chamar assim. Criaturas necrófagas,
espetros. Tentam apanhar as almas durante a travessia. Quanto mais nos
aproximamos do outro lado, piores se tornarão os ataques, porque eles vão
ficando mais desesperados.
— O que é que eles fazem? — A sua voz era pouco mais do que um
sussurro.
Tristan encolheu os ombros. Não queria responder.
— Diz-me — insistiu ela. Era importante saber, estar preparada. Não
queria continuar na ignorância.
Ele suspirou.
— Se te apanhassem, o que não vai acontecer, puxavam-te para baixo.
Nunca mais voltamos a ver aqueles que eles conseguem apanhar.
— E o que acontece lá em baixo? — perguntou Dylan com uma
sobrancelha levantada.
— Não sei exatamente — respondeu Tristan baixinho.
Ela fez uma careta, insatisfeita, mas sentiu que ele estava a ser franco.
— Sei que, quando acabam contigo — continuou ele —, te tornas um
deles. Uma criatura das trevas, esfaimada, louca. Monstros de fumo.
Dylan olhou para o vazio. Estava horrorizada com a perspetiva de se tornar
uma daquelas coisas. Estridentes, desesperadas, violentas; eram criaturas
detestáveis.
— Estamos em segurança aqui dentro?
— Sim — respondeu Tristan rapidamente, como se quisesse tranquilizá-la
o máximo que podia. — Estas estruturas são casas seguras. Eles não
conseguem entrar.
Dylan aceitou calmamente a resposta, mas Tristan sabia que haveria mais
perguntas, mais verdades que ela precisava de saber. E ele responderia, em
tudo o que pudesse. Ela merecia isso, pelo menos.
— E tu?
Foi tudo o que disse, mas estas duas pequenas palavras implicavam mil
perguntas. Quem era ele? Que vida levara? Qual era o seu lugar neste
mundo? Tristan estava proibido de revelar a maior parte destas respostas e, na
verdade, não as sabia todas, mas havia algumas coisas que podia dizer-lhe,
algumas coisas que ela tinha o direito de saber.
— Eu sou um barqueiro — começou. Estava a olhar para as mãos, mas
lançou-lhe um rápido olhar de relance. A expressão dela era meramente
curiosa. Respirou fundo e continuou: — Guio as almas através das terras
perdidas e protejo-as dos demónios. Revelo-lhes a verdade, e depois deixo-as
aonde elas têm de ir.
— E onde é isso?
Uma pergunta essencial.
— Não sei — admitiu, com um sorriso triste. — Nunca lá estive.
Dylan fitou-o, incrédula.
— Mas como sabes que é o sítio certo? Deixas as pessoas e vens-te
embora? Tanto quanto sabes, podes estar a deixá-las nos portões do Inferno!
Ele acenou com ar compreensivo, mas o seu tom era seguro quando disse:
— Simplesmente sei.
Ela franziu os lábios, pouco convencida, mas não insistiu. Tristan soltou a
respiração, aliviado. Não queria mentir-lhe, mas havia coisas que não estava
pura e simplesmente autorizado a partilhar.
— Quantas pessoas é que já... — Dylan fez uma pausa, sem saber bem
como formular a pergunta — ... guiaste para o outro lado?
Ele ergueu o rosto e, desta vez, havia sem qualquer dúvida uma certa
tristeza nos seus olhos.
— Francamente, não sei dizer. Milhares, centenas de milhares,
provavelmente. Já faço isto há muito tempo.
— Quantos anos tens?
Esta era uma pergunta a que ele podia responder, mas não queria. Sentia
que, se ela soubesse a verdade, se soubesse há quanto tempo ele estava ali —
não a aprender, a crescer e a viver como qualquer outro ser humano, mas
simplesmente a existir —, então a frágil ligação que tinham estabelecido
quebrar-se-ia. Ela vê-lo-ia como um velho, alguém estranho e diferente, e
percebeu que não queria isso. Tentou fazer uma piada.
— Quantos anos me dás? — Esticou os braços e submeteu-se à inspeção
dela.
— Dezasseis — respondeu Dylan —, mas não pode ser. Foi a idade com
que morreste? Não envelheces, é isso?
— Em termos técnicos, nunca cheguei a viver — respondeu ele, com uma
expressão melancólica, que rapidamente deu lugar a um ar mais reservado. Já
deixara escapar mais do que devia. Felizmente, ela pareceu perceber isso pelo
rosto dele e não fez mais perguntas.
Dylan olhou em volta e estudou devidamente aquilo que a rodeava pela
primeira vez. A cabana era formada por uma única divisão comprida, com
peças de mobiliário desirmanadas e com aspeto de gastas e abandonadas.
Mesmo assim, era muito melhor do que a casa da noite anterior. As portas e
janelas estavam intactas e o fogo que ardia na lareira aquecera o espaço. Ao
lado do banco havia uma cama velha, sem mantas mas com colchão. Embora
parecesse já ter visto melhores dias e estivesse salpicado de nódoas diversas,
naquele momento parecia extremamente convidativo. Havia também uma
mesa de cozinha e um lava-loiça do outro lado.
Com movimentos rígidos, Dylan levantou-se — devia estar sentada
naquele banco duro há mais tempo do que pensava — e dirigiu-se à pequena
cozinha. Sentia-se suja, desconfortável. Queria lavar-se, mas o lava-loiça não
parecia ser usado há anos. Ambas as torneiras estavam cobertas de ferrugem.
Mesmo assim, agarrou numa e tentou abri-la. Não aconteceu nada, por isso
experimentou a outra. Quando viu que esta também estava perra, fez mais
força, sentindo as arestas da torneira a cravarem-se na palma da mão. Sentiu
algo começar a ceder e torceu com mais força, a esperança a crescer dentro
de si. Com um som dissonante e um baque, a torneira partiu-se na mão dela,
o metal corroído pela ferrugem.
— Ups... — Virou-se para Tristan com uma careta e mostrou-lhe a torneira
partida.
Ele sorriu e encolheu os ombros.
— Não te preocupes.
Dylan acenou, com a culpa aliviada, e atirou a parte partida para dentro do
lava-loiça. Depois dirigiu-se à cama. Sentia os olhos de Tristan sobre ela e,
quando se virou e sentou no colchão, percebeu que ele estava a estudá-la
atentamente.
— O que foi? — perguntou, com um leve sorriso. Agora que a verdade
viera ao de cima, sentia-se, estranhamente, muito mais à vontade junto dele.
Era como se o segredo fosse uma parede a separá-los.
Tristan não conseguiu evitar um sorriso.
— Estou apenas estupefacto com a tua reação, mais nada. Nem uma
lágrima. — Calou-se abruptamente quando o sorriso dela desapareceu,
substituído por uma expressão triste.
— De que adianta chorar? — Suspirou, com a sabedoria de uma alma
muito mais antiga. — Vou tentar dormir.
— Estás segura. Eu fico de vigia.
E sentia-se realmente segura, sabendo que ele estava ali, alerta. O seu
protetor.
— Ainda bem que és tu — murmurou, já meio a dormir.
Tristan fitou-a com ar confuso, sem compreender o que ela queria dizer,
mas as palavras deixaram-no contente. Ficou a vê-la dormir durante muito
tempo, a ver as sombras da lareira tremeluzirem e dançarem no rosto dela,
tranquilo na inconsciência do sono. Sentiu uma estranha vontade de lhe tocar,
de acariciar a face macia e afastar o cabelo que lhe caíra para os olhos, mas
não se mexeu de onde estava sentado. Devia ser a juventude e a
vulnerabilidade dela que estavam a despertar tais sentimentos. Ele era o seu
guia, um protetor temporário. Nada mais.

::::

Dylan sonhou novamente, nessa noite. Embora o encontro com os


demónios lhe tivesse dado alimento mais do que suficiente para um pesadelo,
em vez disso sonhou com Tristan.
Não estavam nas terras perdidas, mas num local que dava a Dylan a
estranha sensação de já ali ter estado. Era uma floresta. Estava repleta de
grandes carvalhos com troncos retorcidos e ramos largos e compridos, que se
entrelaçavam e formavam uma abóbada por cima deles. Era de noite, mas o
luar passava entre as árvores e as sombras ondulavam com o movimento das
folhas. A brisa suave agitou-lhe o cabelo, que lhe fez cócegas no pescoço e
nos ombros. Um tapete de folhas sussurrou-lhes sob os pés enquanto
caminhavam. Devia ter chovido há pouco tempo, porque o ar cheirava a
humidade e a Natureza. Algures, à sua esquerda, ouviu o som harmonioso de
um riacho. Era maravilhoso.
No sonho, Tristan segurava-lhe na mão enquanto caminhavam,
contornando lentamente os troncos, sem seguir uma rota determinada, num
caminho sinuoso para lado nenhum. A pele dela parecia arder onde a mão
dele lhe tocava, mas tinha medo de mexer sequer os dedos, pois não queria
que ele a soltasse.
Não disseram nada, mas não era um silêncio desconfortável. Estavam
satisfeitos apenas com a proximidade um do outro e as palavras teriam
arruinado a paz daquele lugar maravilhoso.
Na cabana, enquanto dormia, Tristan viu-a sorrir.
NOVE

Com a primeira luz da manhã, os raios de sol entraram pelas janelas da


cabana e, mesmo filtrados pela poeira e sujidade dos vidros, eram
suficientemente fortes para acordar Dylan. Agitou-se debilmente, afastou o
cabelo da cara e esfregou os olhos. Por um momento, não se lembrou onde
estava e ficou imóvel, a estudar o que a rodeava.
A cama era estranha e estreita, o colchão cheio de altos. O teto por cima
dela tinha traves de madeira maciça que pareciam estar ali há uma centena de
anos. Pestanejou duas vezes, tentando orientar-se.
— Bom-dia. — A voz suave veio da sua esquerda e fê-la virar bruscamente
a cabeça nessa direção.
— Ai! — O movimento rápido esticou-lhe um músculo do pescoço.
Enquanto esfregava a cãibra, Dylan olhou na direção da voz e começou a
lembrar-se de tudo. — Bom-dia — respondeu baixinho, com um rubor a
invadir-lhe as faces. Embora tivessem partilhado tanto na noite anterior,
naquele dia sentia-se novamente constrangida e insegura.
— Dormiste bem? — A pergunta normal e educada de Tristan parecia, de
alguma forma, deslocada: delicadeza no meio da loucura. Não conseguiu
conter um sorriso.
— Sim, e tu?
Ele sorriu.
— Eu não preciso de dormir. Uma das coisas estranhas das terras perdidas.
Tu também não precisas, na verdade. A tua mente simplesmente acha que
deve dormir, por isso dormes. Acabará por se esquecer. Demora algum tempo
a adaptar-se.
Ela fitou-o, sem palavras, por um momento.
— Não preciso de dormir?
Ele abanou a cabeça.
— Nem de dormir, nem de comer, nem de beber. O teu corpo é apenas uma
projeção da tua mente. O teu corpo real ficou no comboio.
Dylan abriu e fechou a boca algumas vezes. Isto parecia um filme de ficção
científica bizarro. Teria ido parar ao Matrix? O que Tristan lhe estava a dizer
parecia incrível, inacreditável, mas quando olhou para as mãos apercebeu-se
de que, embora estivessem cobertas de lama, a pele estava lisa e intacta. Os
arranhões profundos deixados pelos espetros tinham sarado.
— Hum — foi tudo o que conseguiu dizer. Olhou para a janela. — É
seguro sair?
Não sabia se os monstros — demónios — da noite anterior continuavam a
ser uma ameaça durante o dia.
— Sim, eles não gostam muito da luz do sol. Claro que, se estivesse um dia
escuro e nublado, podiam vir à superfície, caso estivessem suficientemente
desesperados. — Tristan olhou para a expressão assustada dela. — Mas hoje
não deve haver problema. Está sol. — Apontou para a janela.
— Então e agora?
— Continuamos a viagem. Ainda temos muito para andar. A próxima casa
segura fica a dezasseis quilómetros, e a escuridão aqui cai muito depressa. —
Olhou para a janela de sobrolho franzido, como se estivesse a repreender o
tempo por os colocar em perigo.
— Morri no inverno das terras perdidas? — Dylan tinha nos olhos uma
expressão ligeiramente divertida, mas também intrigada. Queria saber mais
sobre este estranho lugar.
Tristan olhou para ela enquanto debatia o que podia ou não dizer-lhe. Os
guias deviam conduzir as almas através das terras perdidas e nada mais. A
maioria das almas, depois de descobrir onde estava e o que lhes acontecera,
ficava demasiado absorta na sua mágoa e autocomiseração para mostrar
grande interesse naquele caminho entre o mundo real e o fim. Dylan era
diferente de todas as outras almas que já encontrara. Aceitara a verdade
calmamente, sem explosões emocionais. Agora, os olhos que o examinavam
eram simplesmente curiosos, interrogativos. Um pouco mais de informação
talvez tornasse mais fácil para ela aceitar e compreender, disse a si próprio.
Porém, na realidade, queria partilhar a verdade com ela. Queria uma forma de
estarem mais próximos. Respirou fundo e fez a sua opção.
— Não. — Sorriu. — A culpa é tua.
Teve de morder o lábio para não se rir. A reação dela foi exatamente a que
ele esperava: perplexa e um bocadinho indignada. Franziu a testa e apertou os
lábios e semicerrou os olhos em fendas verdes.
— Minha? Como é que a culpa é minha? Não fiz nada!
Ele riu-se.
— O que quero dizer é que as terras perdidas são aquilo que fazes delas. —
Os olhos de Dylan abriram-se muito, cintilando sob o sol, numa expressão
confusa. — Anda — continuou ele. Levantou-se da cadeira, dirigiu-se à porta
e abriu-a. — Explico-te pelo caminho.
O ar estava quente quando Dylan saiu de casa, mas uma brisa soprava em
volta da cabana, agitando-lhe o cabelo. O sol brilhava, tornando mais intensas
as cores das terras perdidas. Havia gotas de orvalho a refletirem a luz na erva
molhada, que naquele dia parecia de um verde mais vibrante. As montanhas
recortavam-se contra o céu azul, em arestas bem definidas. Tudo parecia ter
sido lavado e Dylan respirou fundo, regozijando-se na frescura matinal.
Porém, no horizonte, nuvens escuras ocultavam o céu. Esperou que o sol as
expulsasse antes que pudessem apoderar-se daquele dia tão bonito.
Desceu o caminho atrás de Tristan, tentando evitar os cardos e espinheiros
que nasciam entre as pedras rachadas. Tristan esperou a alguns metros,
saltitando de um pé para o outro como se estivesse ansioso por começar a
andar.
Dylan fez uma careta. Mais caminhada. O facto de compreender para onde
iam e porque era tão importante lá chegar não tornava a viagem mais
atraente.
— Porque é que as terras perdidas não podiam ser um bocadinho menos
íngremes? — resmungou ao aproximar-se de Tristan.
Ele sorriu, mas não respondeu. Simplesmente deu meia-volta e começou a
andar. Dylan suspirou e arregaçou um pouco as calças de ganga, na esperança
de que não ficassem encharcadas tão depressa, mas sabia que era um gesto
inútil.
A viagem começou do lado oposto da cabana, por um estreito trilho de
terra que serpenteava através de um bonito prado de erva alta, aninhado entre
colinas. Havia flores silvestres: gotas escondidas de roxo, amarelo e
vermelho num oceano de verde. Dylan queria ir devagar, absorver o cenário e
esticar as mãos, deixando a erva e as flores fazerem-lhe cócegas nos dedos.
Para Tristan, contudo, o prado era apenas mais um obstáculo a ultrapassar,
e marchou através do esplendor que o rodeava sem olhar para o lado.
Demoraram cerca de dez minutos a atravessá-lo e Dylan rapidamente se viu
no sopé da primeira colina do dia. Tristan já tinha começado a subir e ela
apressou-se a acompanhá-lo.
— Então — começou Dylan assim que conseguiu apanhar os passos largos
dele —, porque é que isto... — indicou a paisagem com um gesto — ...é tudo
culpa minha?
— Também é culpa tua o facto de ser sempre a subir — riu-se Tristan.
— Claro, só podia ser — resmungou Dylan, já ofegante e irritada com as
respostas enigmáticas de Tristan.
Em vez de ficar aborrecido, ele riu-se. Ela franziu mais o sobrolho.
— Já te disse há bocado que o teu corpo é uma projeção da tua mente. Com
as terras perdidas passa-se a mesma coisa, de certa forma. — Fez uma pausa
para lhe segurar no cotovelo quando ela tropeçou. Estava tão concentrada no
que ele estava a dizer, que se esquecera de olhar para os pés. — Quando
saíste do túnel, esperavas estar a meio caminho de Aberdeen... algures nas
Terras Altas, num lugar remoto, com colinas, selvagem... e foi isso que as
terras perdidas se tornaram. Não gostas de exercício, por isso a caminhada
deixa-te mal-humorada. Este lugar reage àquilo que sentes. Quando ficaste
zangada, isso trouxe a nuvem, o vento... e a escuridão. Quanto mais sombria
estiver a tua mente, mais longas e escuras serão as noites. — Olhou para ela
tentando avaliar a sua reação. Dylan devolveu o olhar, atenta a cada palavra.
Um sorriso malicioso iluminou o rosto de Tristan. — Aliás, até eu tenho este
aspeto por tua causa.
Ela franziu a testa e baixou a cabeça para se concentrar no chão,
processando o que ele estava a dizer, mas também incapaz de lhe olhar para o
rosto.
— Porquê? — perguntou finalmente, sem conseguir encontrar sentido neste
último comentário.
— Bom, o guia deve parecer seguro à alma. Têm de confiar em nós, de nos
seguir. Assumimos automaticamente uma forma que seja atraente aos vossos
olhos.
Dylan manteve a cara virada para baixo, mas arregalou os olhos e ficou
vermelha como um tomate, o que a denunciou.
— Portanto — prosseguiu Tristan, terrivelmente divertido —, se eu fiz as
coisas bem, deves ter um fraquinho por mim.
Dylan estacou, de mãos nas ancas, cada vez mais corada.
— O quê? Isso é... ora, mas que... não tenho nada! — concluiu, em tom
acalorado.
Ele deu mais alguns passos e depois virou-se com um sorriso enorme no
rosto.
— Não tenho! — repetiu ela.
O sorriso abriu-se mais.
— Está bem.
— És mesmo... — Dylan não conseguiu encontrar insultos apropriados e
recomeçou a andar, batendo com os pés no chão, furiosa. Nem sequer se
virou para ver se ele a seguia. As nuvens negras que cobriam o horizonte dez
minutos antes estavam agora mais perto, começando a escurecer a atmosfera.
Tristan ergueu os olhos e franziu a testa ao notar a mudança. Correu atrás
de Dylan, sem se deixar atrapalhar pela subida íngreme.
— Desculpa — disse, assim que a apanhou. — Estava só a meter-me
contigo.
Dylan não se virou nem deu sinais de o ter ouvido.
— Dylan, para, por favor. — Estendeu a mão e segurou-lhe no braço.
Ela tentou libertar-se, mas ele não a soltou.
— Larga-me — ordenou ela entre dentes, com o embaraço a intensificar a
sua fúria.
— Deixa-me explicar — pediu ele, em tom gentil e quase suplicante.
Pararam, virados um para o outro. Dylan estava ofegante, mas Tristan
emanava calma e apenas os seus olhos estavam circunspectos. Olhou
rapidamente para o céu: as nuvens estavam quase negras. Começaram a cair
gotas de chuva, gotas gordas e pesadas de água fria que deixavam manchas
escuras e circulares nas roupas deles.
— Ouve — começou ele —, sei que é cruel. Desculpa. Mas, percebes,
temos de fazer com que vocês nos sigam. Se se recusarem a vir connosco, se
se afastarem sozinhos... bom, tu viste aquelas coisas. Não durarias um dia
sem mim, e nunca encontrarias o caminho até ao outro lado mesmo que elas
não te apanhassem. Vaguearias por aqui para sempre.
Perscrutou-lhe os olhos, à procura de uma reação, mas a expressão dela
continuou impassível.
— Eu apareço numa forma que acho que pode ajudar. Às vezes, como
aconteceu contigo, escolho uma forma que seja atraente, outras vezes uma
forma que seja intimidante, conforme o que me parece melhor para convencer
aquela pessoa específica.
— Como é que sabes? — perguntou Dylan, curiosa.
Tristan encolheu os ombros.
— Simplesmente sei. Eu conheço-vos. O vosso passado, aquilo de que
gostam e não gostam. Os vossos sentimentos, sonhos e esperanças.
Dylan arregalou os olhos enquanto ele falava. O que saberia sobre ela,
nesse caso? Engoliu em seco enquanto uma lista de segredos e momentos
privados lhe passava pela cabeça, mas Tristan ainda não tinha acabado.
— Às vezes, assumo a forma de alguém que perderam, como um cônjuge.
— Ao ver o rosto dela, percebeu imediatamente que tinha falado demais.
— Finges ser alguém que a pessoa ama, a sua alma gémea, para a enganar e
a levar a acreditar em ti? — Dylan cuspiu as palavras, revoltada. Como podia
ele usar as memórias mais preciosas de alguém, brincar com as suas emoções
daquela maneira? Pensar nisso deixava-a agoniada.
A expressão dele endureceu.
— Não é uma brincadeira, Dylan. — Falou em tom baixo e apaixonado. —
Se aquelas coisas te apanharem, estás perdida para sempre. Fazemos o que é
preciso.
Chovia agora com mais intensidade, as gotas a ressaltarem no chão. O
cabelo de Dylan estava encharcado e a água escorria-lhe pelo rosto como
lágrimas fantasma. O vento também soprava com mais força, varrendo a
montanha e explorando todos os orifícios das roupas deles. Dylan estremeceu
e cruzou os braços no peito numa tentativa vã de se aquecer.
— E qual é o teu verdadeiro aspeto? — quis saber, ansiosa por ver para
além das mentiras, por conhecer o verdadeiro rosto dele.
Uma mudança de emoção tremeluziu nos olhos de Tristan, mas Dylan
estava demasiado presa na sua indignação para reparar. Ele não respondeu e
Dylan ergueu as sobrancelhas, impaciente. Finalmente, ele baixou os olhos
para o chão.
— Não sei — murmurou.
O choque dissipou a fúria de Dylan.
— Como assim?
Tristan ergueu o rosto para ela e a tristeza pareceu turvar-lhe o azul dos
olhos. Encolheu os ombros e disse:
— Apareço a cada alma da forma mais adequada. Mantenho essa forma até
receber a alma seguinte. Não sei o que era antes de receber a minha primeira
alma, se é que era alguma coisa. Existo porque vocês precisam de mim.
Enquanto Dylan o fitava, a chuva começou a abrandar. A piedade encheu-
lhe o peito e estendeu a mão para o confortar. Raios de sol romperam as
nuvens. Tristan afastou-se do toque dela e a tristeza foi substituída por uma
máscara de indiferença. Dylan viu a expressão dele fechar-se.
— Lamento muito — murmurou ela.
— Temos de ir. — Tristan olhou para o horizonte e pensou na distância que
ainda tinham de percorrer. Dylan acenou sem dizer nada e subiu a colina atrás
dele.

::::

Passaram o resto da manhã a caminhar em silêncio, cada um perdido nos


seus pensamentos. Tristan estava zangado. Zangado consigo próprio por ter
troçado dela e por ter iniciado a conversa que fizera o rosto de Dylan
contorcer-se numa expressão de revolta e repugnância. Ela fizera-o sentir-se
traiçoeiro, como um impostor vulgar. Não esperava que ela compreendesse,
mas Dylan vira os demónios, sabia o que estava em jogo. Às vezes era
necessário ser cruel; às vezes, os fins justificavam os meios.
Dylan, por seu lado, estava a sentir-se culpada e cheia de pena. Sabia que o
magoara quando o acusara de ser insensível. Não tencionara falar de forma
tão agressiva, mas a ideia de alguém fingir ser uma mãe, um pai ou, pior
ainda, o amor da vida de outra pessoa... era um pensamento aterrador. Mas
talvez ele tivesse razão; aqui, as consequências eram assustadoras. Era uma
questão de vida ou morte. Mais ainda do que vida ou morte. Muito para além
das discussões mesquinhas que lhe tinham parecido tão importantes na sua
vida anterior.
Estava também a tentar imaginar como seria não ter uma identidade
própria. Ser definido inteiramente por aqueles que o rodeavam, nunca ter um
momento seu. Nem sequer conhecer o seu próprio rosto. Não conseguia
imaginar tal coisa e, para variar, sentiu-se contente por ser ela própria.
Ao meio-dia fizeram uma pausa, a meio da encosta de uma colina, num
pequeno ressalto que os abrigava do vento e de onde tinham uma vista
assombrosa da paisagem. Havia um manto espesso de nuvens no céu, mas
não pareciam conter chuva. Dylan sentou-se no chão de pedra, sem se
importar com o frio que lhe atravessou as calças de ganga. Esticou as pernas
e encostou-se à colina. Tristan não se sentou. Ficou de pé à beira do
parapeito, a olhar para a paisagem, de costas para ela. Podia parecer um gesto
protetor, mas Dylan estava bastante certa de que ele estava apenas a evitar
conversar. Roeu uma unha, ansiosa por fazer as pazes com ele, mas sem
saber como. Não queria voltar a falar no assunto, com medo de ainda tornar
as coisas piores, mas não lhe ocorria nada para dizer que não parecesse falso.
Como havia de recuperar o estado de espírito anterior? Recuperar aquele
Tristan brincalhão e descontraído? Não sabia.
Ele virou-se e disse bruscamente:
— Está na hora de seguir caminho.
DEZ

Nessa noite ficaram noutra casinha, mais uma casa segura no caminho
através das terras perdidas. A tarde passara rapidamente, enquanto
marchavam a um ritmo que levou Dylan a pensar que Tristan estaria a tentar
recuperar o tempo perdido durante a discussão. Chegaram à casa mesmo
antes de o Sol desaparecer no horizonte. No último quilómetro, Dylan achou
que conseguia ouvir uivos distantes, embora fosse difícil ter a certeza por
causa do vento. Tristan acelerara ainda mais o passo, pegando-lhe na mão
para a ajudar, e confirmando as suspeitas dela de que o perigo não estava
longe.
Assim que entraram na casa, ele relaxou instantaneamente. Os músculos do
maxilar, que estavam contraídos numa expressão preocupada, suavizaram-se
num sorriso lento, e a sua testa alisou-se.
Aquela casa era muito parecida com as outras: mobílias partidas espalhadas
por uma única divisão espaçosa. Havia duas janelas de ambos os lados da
porta, e mais duas na parede das traseiras. Eram compostas por pequenos
painéis de vidro e havia vários partidos em cada janela, deixando entrar o
vento, que assobiava ruidosamente dentro da casa. Tristan apanhou uns
pedaços de qualquer coisa ao lado da cama e começou a tentar tapar os
buracos, enquanto Dylan se dirigiu a uma cadeira e se sentou, exausta do
esforço desse dia.
Se não precisava de dormir, porque se sentia tão cansada? Não percebo,
pensou. Doíam-lhe os músculos, ou pareciam doer. Para tentar distrair-se
desses pensamentos confusos, observou Tristan a trabalhar.
Depois de acabar de vedar as janelas, ele acendeu a lareira. Demorou muito
mais tempo do que na noite anterior, arrumando muito bem os troncos e
partindo galhos mais finos, que dispôs numa pirâmide perfeita. Mesmo
depois de o fogo crepitar alegremente, não saiu de junto da lareira. Agachou-
se e olhou para as chamas como se estivesse hipnotizado. Dylan tinha a
certeza de que ele estava a evitá-la — algo que era praticamente impossível,
uma vez que estavam ambos presos na mesma divisão. Decidiu tentar
recorrer ao humor para o arrancar à sua reflexão.
— Se isto é tudo criado por mim, porque é que as casas são todas tão
horríveis? A minha imaginação não podia ter arranjado sítios melhores para
descansar? Talvez qualquer coisa com um jacuzzi, ou uma televisão?
Tristan virou-se para ela com um leve sorriso forçado. Dylan fez uma
careta, sem mais ideias para o arrancar àquele estado de espírito sombrio.
Viu-o atravessar a sala e sentar-se do outro lado da pequena mesa. Imitou a
posição dela e ficaram ali sentados, cara a cara, separados por meio metro,
com os cotovelos em cima da mesa. Olharam um para o outro durante um
instante. Tristan apercebeu-se do embaraço nos olhos dela e, com algum
esforço, ofereceu-lhe um sorriso genuíno. O gesto encorajou Dylan.
— Ouve — começou —, o que eu disse há bocado...
— Não te preocupes — interrompeu ele abruptamente.
— Mas... — Dylan abriu a boca para continuar, mas tornou a fechá-la sem
dizer nada.
Tristan viu o arrependimento, o sentimento de culpa e — pior do que tudo
— a pena nos olhos dela. Por um lado, dava-lhe uma espécie de prazer
perverso ver que ela se preocupava o bastante com o sofrimento dele para
sentir pena, mas havia também um sentimento irritante de frustração por ela o
estar a obrigar a pensar em coisas que há muito aceitara. Pela primeira vez
em muito tempo, sentia-se desgostoso com a sua sorte. Com aquela prisão
circular interminável a que a sua vida se resumia. Todas aquelas almas
egoístas que tinham mentido, traído, desperdiçado a vida que lhes fora
concedida; uma dádiva pela qual ele ansiava e que nunca poderia ter.
— Como é? — perguntou Dylan subitamente.
— Como é o quê?
Viu-a franzir os lábios e procurar a melhor forma de formular a pergunta.
— Guiar todas essas pessoas, levá-las até ao outro lado, e depois vê-las
desaparecer, ou atravessar, ou o que quer que seja. Deve ser difícil. Aposto
que algumas nem sequer o merecem.
Tristan olhou para ela, estupefacto com a pergunta. Ninguém, nem uma
única alma das milhares delas que conduzira, alguma vez lhe perguntara isso.
E como havia de responder? A verdade era dura, mas não queria mentir-lhe.
— Ao princípio, não pensava muito nisso. Tinha um trabalho a fazer, e
fazia-o. Parecia-me ser a coisa mais importante do mundo, proteger cada
alma, mantê-las em segurança. Demorei muito tempo a começar a ver
algumas dessas almas por aquilo que realmente eram. Quem realmente
tinham sido, como pessoas. Deixei de ter pena delas; deixei de ser amável.
Não o mereciam. — A voz de Tristan escorria amargura. Respirou fundo,
empurrando o ressentimento para baixo e disfarçando-o com a fachada de
indiferença que aperfeiçoara ao longo do tempo. — Elas atravessam e eu
tenho de as ver desaparecer. As coisas são assim.
E eram assim há já muito tempo. Depois aparecera esta alma, e era tão
diferente que estava a afastá-lo do papel que habitualmente representava.
Fora horrível com ela — trocista, condescendente —, mas era algo que não
conseguia evitar. Ela desequilibrava-o, não sabia porquê. Não era nenhum
anjo, Tristan sabia disso — via-o nos milhões de memórias diferentes de
Dylan que redemoinhavam na sua cabeça —, mas havia nela algo de
invulgar... não, de especial. Sentiu a culpa agitar-se-lhe no estômago quando
ela mudou de posição na cadeira, pouco à vontade, com a compaixão e a
tristeza por ele espelhadas no rosto.
— Vamos falar de outra coisa — sugeriu, para lhe poupar os sentimentos.
— Está bem — concordou Dylan rapidamente, contente com a
oportunidade de mudar de assunto. — Fala-me mais sobre ti.
— O que queres saber?
— Hum — disse ela, revendo a lista de perguntas que lhe andavam às
voltas na cabeça a tarde toda. — Fala-me sobre a forma mais estranha que já
usaste.
Ele sorriu assim que ouviu o pedido e Dylan percebeu que fora a pergunta
certa para aligeirar o ambiente.
— O Pai Natal — respondeu ele.
— O Pai Natal? Porquê?
Ele encolheu os ombros.
— Era um menino pequeno. Morreu na noite de Natal, num acidente de
automóvel. Tinha apenas cinco anos e o Pai Natal era a pessoa em quem mais
confiava. Tinha estado sentado ao colo dele num centro comercial, poucos
dias antes, e era uma das suas memórias preferidas. — Uma centelha de
humor brilhou-lhe nos olhos. — Tinha de estar sempre a abanar a barriga e a
gritar «Ho! Ho! Ho!» para o manter contente. Ficou muito desiludido quando
descobriu que o Pai Natal não conseguia cantar «Jingle Bells» em voz
afinada.
Dylan riu-se ao imaginar o rapaz sentado à frente dela vestido de Pai Natal.
Depois apercebeu-se de que ele não estaria apenas vestido de Pai Natal, ele
seria o Pai Natal.
— Sabes o que é mais estranho, para mim? — perguntou Dylan. Ele
abanou a cabeça. — É olhar para ti e pensar que és da minha idade, mas saber
que, na realidade, és um adulto. Não, ainda mais velho do que um adulto.
Mais velho do que todas as pessoas que alguma vez conheci.
Tristan sorriu de forma compreensiva.
— Não me dou muito bem com adultos — continuou ela. — Gostam muito
de me dar ordens. Mais ou menos como tu, na verdade. — Soltou uma
gargalhada.
Ele riu-se também; era um som agradável.
— Bom, se isso ajudar, não me sinto como um adulto. E tu não pareces
uma criança. Pareces apenas tu.
Dylan sorriu.
— Mais alguma pergunta?
— Fala-me... fala-me sobre a tua primeira alma.
Tristan fez um sorriso contrito. Não conseguia recusar-lhe nada.
— Bom, foi há muito tempo — começou. — Era um homem, um jovem, na
verdade. Chamava-se Gregor. Queres ouvir a história?
Dylan assentiu com um aceno veemente.
Fora há muito tempo, mas Tristan ainda recordava todos os pormenores. A
sua primeira memória de existir era estar a andar numa paisagem de um
branco brilhante. Não havia chão, nem paredes, nem céu. O facto de estar a
caminhar era o único indício de que existia sequer alguma superfície. Depois,
do nada, começaram a aparecer detalhes. O chão sob os seus pés era, de
repente, um caminho de terra batida. Ergueram-se sebes de ambos os lados,
altas e selvagens e agitadas pelo som de criaturas vivas. Era de noite, o céu
por cima dele era negro, salpicado de estrelas cintilantes. Tristan percebeu
que reconhecia todas estas coisas, que sabia o nome de tudo. Também sabia
aonde ia, e por que razão ali estava.
— Havia um fogo — disse. — Vi uma grande nuvem de fumo a erguer-se
para o céu, e era para aí que me dirigia. Estava a percorrer o caminho quando,
do nada, dois homens passaram por mim a correr. Passaram tão perto que
senti a deslocação do ar, mas eles não me viram. Quando cheguei ao local do
incêndio, vi que os dois homens estavam a tentar tirar água de um poço, mas
os seus esforços eram em vão. Não conseguiam derrotar um fogo daqueles.
Era um autêntico inferno. Seria impossível alguém sobreviver a um desastre
daqueles. E era por isso que eu ali estava, claro.
Sorriu ligeiramente a Dylan, que o escutava fascinada.
— Lembro-me de me sentir... não nervoso, mas inseguro. Deveria entrar
para o ir buscar, ou ficar ali à espera? Ele saberia quem eu era, ou teria de o
convencer a acompanhar-me? O que havia de fazer, se ele ficasse
desorientado ou furioso?
»Por fim, acabou por ser fácil. Ele atravessou a parede da casa em chamas
e parou à minha frente, completamente incólume, sem sinais de queimaduras.
»Devíamos começar a viagem, mas o Gregor não parecia querer partir.
Estava à espera de alguma coisa. Não... de alguém.
Dylan pestanejou, confusa.
— Ele conseguia vê-los?
Tristan assentiu.
— Eu não — murmurou ela, baixando os olhos, pensativa. — Não vi
ninguém. Estava... estava sozinha. — A sua voz morreu na última palavra.
— As almas ainda conseguem ver a vida que estão a deixar durante um
bocadinho. Depende do momento da morte — explicou ele. — Tu estavas
inconsciente quando morreste e, quando a tua alma acordou, era tarde
demais. As outras pessoas já tinham ficado para trás.
Dylan olhou para ele com tristeza. Depois engoliu em seco.
— O que aconteceu ao Gregor?
— Começaram a chegar mais pessoas e, embora olhasse para elas com
pesar, o Gregor não saiu de junto de mim. Depois uma mulher apareceu a
correr pelo caminho, com as saias arregaçadas para conseguir correr, o rosto
contorcido numa expressão de horror. Gritou o nome dele. Foi um som
torturado, lancinante. Passou pela multidão de espectadores e fez menção de
correr para dentro da casa, mas outro homem segurou-a. Depois de se debater
durante alguns segundos, ela abandonou-se nos braços dele, a chorar
histericamente.
— Quem era? — sussurrou Dylan, cativada pela história.
Tristan encolheu os ombros.
— A mulher do Gregor, presumo, ou uma amante.
— O que aconteceu a seguir?
— A parte mais difícil. Esperei, enquanto o Gregor a via gritar e chorar
com uma expressão de agonia no rosto. Estendeu um braço para ela, mas
apercebeu-se de que não a conseguia confortar e ficou ao meu lado. Alguns
segundos depois, virou-se para mim e disse: «Estou morto, não estou?»
Acenei afirmativamente, com medo de não conseguir falar. Ele perguntou se
tinha de ir comigo, olhando de novo para a mulher em pranto, e eu disse que
sim. Depois perguntou-me para onde íamos e eu entrei em pânico —
confessou Tristan. — Não sabia o que dizer.
— O que lhe respondeste?
— Disse-lhe: «Sou apenas o barqueiro. Não sou eu que decido.»
Felizmente, ele aceitou essa resposta e eu virei-me e comecei a afastar-me. O
Gregor lançou um último olhar à mulher e seguiu-me.
— Pobrezinha — murmurou Dylan, pensando na mulher que ficara para
trás, sozinha. — Esse homem, o Gregor, sabia que estava morto. Percebeu
logo. — Parecia incrédula.
— Bem — respondeu Tristan —, ele tinha acabado de atravessar a parede
de uma casa em chamas. Além disso, naquele tempo, as pessoas eram muito
mais religiosas. Não questionavam a Igreja e acreditavam naquilo que ela
lhes ensinava. Viam-me como um mensageiro dos Céus... um anjo, suponho
que se poderia dizer. Não ousavam questionar-me. Hoje em dia, as pessoas
dão muito mais trabalho. Parecem estar todas convencidas de que têm
direitos. — Revirou os olhos.
— Hum... — Dylan ergueu os olhos, sem saber bem como fazer a pergunta
seguinte.
— O que é? — Tristan percebeu a hesitação dela.
— Quem eras tu para ele?
— Apenas um homem. Lembro-me de ser alto e musculado, com barba. —
Fez uma pausa ao ver a expressão dela. Tinha os lábios apertados para conter
o riso. — Naquela altura, a maior parte dos homens tinha barbas grandes e
fartas. E também bigode. Gostei bastante. Era confortável e quente.
Desta vez ela não conseguiu conter o riso, mas este extinguiu-se
rapidamente.
— E quem foi a tua pior alma? — perguntou, baixinho.
— Tu. — Ele sorriu, mas o sorriso não lhe chegou aos olhos.
ONZE

Nessa noite, Dylan dormiu pouco. Ficou acordada a pensar em almas, em


Tristan e nos outros barqueiros que deviam existir, e no local para onde se
dirigia. Supôs que o corpo estava a habituar-se a não precisar de dormir, mas
na verdade havia tantos pensamentos a debaterem-se na sua mente que não
teria conseguido dormir de qualquer maneira.
Suspirou e agitou-se na poltrona velha e desconfortável.
— Estás acordada — disse Tristan baixinho, na semiobscuridade, à
esquerda dela.
— Sim — murmurou Dylan. — Tenho muita coisa na cabeça.
Seguiu-se um longo momento de silêncio.
— Queres conversar?
Dylan virou-se para Tristan. Ele estava sentado numa cadeira, a olhar para
a noite, mas quando sentiu os olhos dela sobre si virou-se também.
— Talvez ajude — sugeriu.
Dylan mordeu o lábio e pensou nisso. Não queria lamentar a sua má sorte,
quando a dele era tão pior. Mas tinha um milhão de incertezas às voltas na
cabeça e Tristan talvez conseguisse responder pelo menos a algumas. Ele
sorriu-lhe de forma encorajadora.
— Estava a pensar no que há para além das terras perdidas — começou ela.
— Ah. — Uma expressão de compreensão passou pelo rosto de Tristan.
Fez uma careta. — Não posso mesmo ajudar-te com isso.
— Eu sei — respondeu ela baixinho.
Tentou não mostrar a sua frustração, mas era algo que lhe estava a causar
cada vez mais ansiedade. Para onde iria? Depois de ver os demónios que se
escondiam nas trevas, preparados para a arrastar para baixo, duvidava que o
seu destino fosse um sítio mau. Devia ser bom; por que outro motivo os
demónios quereriam impedi-la de lá chegar? E devia ser um sítio. Se o
destino fosse o esquecimento eterno, qual seria o objetivo de atravessar as
terras perdidas?
— É só isso que está a preocupar-te?
Nem por sombras. Dylan soltou uma risada abafada. No entanto, não durou
muito. Olhou para as chamas que faziam dançar a sua luz sobre o velho chão
de pedra rachada. Era uma imagem estranhamente familiar.
— Aqueles demónios — começou.
— Não precisas de te preocupar com eles — disse-lhe Tristan com firmeza.
— Não permitirei que te façam mal.
Parecia extremamente confiante e, quando ergueu os olhos, Dylan viu que
os dele estavam bem abertos e brilhantes e que tinha o maxilar contraído de
forma resoluta. Acreditou nele.
— Está bem.
O silêncio prolongou-se novamente entre ambos, mas havia mais
pensamentos a fervilhar na mente de Dylan.
— Sabes o que mais me custa aceitar?
— O quê?
— Que tu não sejas realmente como és. Quer dizer — continuou, ao
perceber que não estava a fazer sentido —, eu consigo ver-te. Consigo tocar-
te. — Levantou a mão com os dedos esticados na direção dele, mas não teve
coragem de estabelecer contacto efetivo. — Mas aquilo que vejo, aquilo que
sinto, não és mesmo tu.
— Lamento muito. — Era impossível não ouvir a melancolia na voz de
Tristan.
Dylan mordeu a língua quando se apercebeu de que estava a ser insensível.
Para o compensar, acrescentou:
— Mas o teu aspeto não importa, na realidade. Quem és, está na tua cabeça
e no teu coração, sabes? Na tua alma.
Tristan fitou-a com uma expressão impenetrável.
— Achas que tenho uma alma? — perguntou baixinho.
— Claro que tens — respondeu Dylan muito depressa, mas com
sinceridade. Tristan percebeu-o no rosto dela e sorriu. Ela retribuiu o sorriso,
mas este transformou-se num enorme bocejo. Tapou a boca com a mão,
envergonhada.
— Parece que o meu corpo ainda acha que precisa de dormir — disse,
constrangida.
Tristan acenou com a cabeça.
— Provavelmente vais sentir-te péssima amanhã, exausta. Mas é tudo
psicológico...
O silêncio tornou-se mais profundo, quase palpável.
Dylan abraçou os joelhos, enroscada na poltrona, e olhou para a lareira.
Pensou que devia dizer alguma coisa, mas não lhe ocorria nada que não fosse
estúpido. Além disso, pensou, talvez ele quisesse estar sossegado. Nunca
devia conseguir estar mais sozinho do que nesta situação.
— Suponho que é mais fácil ao princípio — murmurou, pensativa.
— O que queres dizer? — Tristan virou-se para ela.
Dylan não olhou para ele, continuando a observar as chamas que a estavam
a hipnotizar.
— Ao princípio — disse —, quando as almas dormem. Aposto que te sabe
bem ter um pouco de paz e sossego. Deves ficar cansado de ter de estar
sempre a falar com elas.
Hesitou no fim da frase, porque lhe ocorreu subitamente que era isso que
ela era: uma delas.
Tristan não disse nada durante algum tempo e ela encolheu-se,
interpretando o silêncio dele da pior maneira possível. Claro que era apenas
mais uma alma para ele. Mortificada, contorceu-se na cadeira.
— Vou calar-me — prometeu.
Tristan sorriu.
— Não tens de fazer isso.
No entanto, ela tinha razão. Ele preferia realmente o princípio da viagem,
quando as almas dormiam e podia estar quase sozinho. O sono era como uma
cortina que o protegia, mesmo que apenas por algumas horas, do egoísmo e
da ignorância deles. Estava perplexo por esta... esta rapariga ter a compaixão
e o altruísmo necessários para pensar nos sentimentos dele, nas necessidades
dele. Olhou para ela, toda encolhida na cadeira, com ar de quem queria
afundar-se nas velhas almofadas e desaparecer. Sentiu-se compelido a apagar
o rubor embaraçado das faces dela.
— Queres ouvir outra história? — perguntou.
— Se quiseres — respondeu Dylan timidamente.
Tristan lembrou-se de algo.
— Há bocado perguntaste-me qual foi a pior alma que já conduzi —
começou ele —, e não fui sincero. Não és tu. — Fez uma breve pausa e
lançou-lhe um olhar de relance.
— Não? — Dylan apoiou a cabeça nos joelhos e fitou-o com olhar
divertido.
— Não — garantiu ele. Depois o tom brincalhão desapareceu-lhe da voz.
— Foi uma criança, um menino.
— Uma criança? — perguntou Dylan.
Tristan fez que sim com a cabeça.
— Como é que ele morreu?
— Cancro — murmurou Tristan, incapaz de contar a história em voz mais
alta do que isso. — Devias tê-lo visto, deitado na cama. De partir o coração.
Era pequeno e frágil, pálido, careca por causa da quimioterapia.
— Quem foste tu para ele? — perguntou Dylan gentilmente.
— Um médico. Disse-lhe... — Tristan sufocou um soluço, sem saber se se
atrevia a confessar isto. — Disse-lhe que podia fazer com que a dor
desaparecesse, que podia fazer com que ele se sentisse novamente bem. O
rosto dele iluminou-se. Saltou da cama e disse-me que já se sentia melhor.
Tristan odiava conduzir crianças. Embora o seguissem de mais boa vontade
que os adultos, e confiassem mais facilmente nele, eram também as que mais
lhe custavam. Não se queixavam, embora ele achasse que eram quem mais
tinha esse direito. Que injustiça, morrer antes de ter oportunidade de crescer,
de viver.
— Tristan. — A voz dela fê-lo levantar a cabeça, que baixara para o peito.
— Não tens de me contar, se não quiseres.
Mas ele queria. Não sabia porquê; não era uma história agradável nem
tinha um final feliz. Queria partilhar com ela algo de seu. Algo de
significativo.
— Saímos do hospital juntos e ele não via o sol há tanto tempo que não
conseguia tirar os olhos dele. O primeiro dia correu bem; chegámos
facilmente à casa segura e eu entretive-o com truques de magia: fazer
aparecer fogo do nada, mexer as coisas sem lhes tocar. O que me lembrei
para lhe captar a atenção. No dia seguinte, ele estava cansado. A mente ainda
pensava que estava doente, mas ele queria andar. Há meses que não
conseguia andar, de tão doente que estava. Não consegui dizer-lhe que não. E
devia ter dito.
Tristan baixou novamente a cabeça, envergonhado.
— Fomos demasiado lentos. Quando o Sol se pôs, eu já o levava ao colo,
mas não foi suficiente. Corri. Corri o mais depressa que consegui, com o
pobre menino aos saltos nos meus braços. Ele chorava. Sentia a minha
ansiedade e ouvia os uivos dos demónios. Confiou em mim. E eu não fui
digno dessa confiança.
Dylan quase tinha medo de perguntar. Mas não podia deixar a história
assim.
— O que aconteceu?
— Tropecei — respondeu Tristan em voz rouca, com os olhos a brilharem
na claridade difusa das chamas. — Tropecei e deixei-o cair. Larguei-o para
amparar a minha queda. Só por um segundo. Uma fração de segundo. Mas foi
o suficiente. Os espetros apanharam-no e arrastaram-no para baixo com eles.
A sua voz morreu, mas o silêncio era quebrado pela sua respiração
irregular, como se chorasse, embora tivesse as faces secas. Dylan olhou para
ele. Sem pensar no que estava a fazer, esticou a mão e fechou-a sobre a dele.
A sala estava quente, mas a pele dele era fria. Dylan deslizou os dedos pelas
costas da mão dele. Tristan olhou para ela por um instante, com uma
expressão grave, e depois virou a mão e entrelaçou os dedos nos dela. Com o
polegar, traçou círculos lentos na palma da sua mão. Fazia cócegas, mas
Dylan preferia ter ficado sem mão do que puxá-la.
Tristan ergueu os olhos para ela, com as sombras a dançarem-lhe no rosto.
— Amanhã é um dia perigoso — murmurou. — Os demónios estão a
reunir-se lá fora.
— Pensei que tinhas dito que eles não conseguiam entrar? — A voz de
Dylan estava estrangulada com o pânico súbito. O facto de ele estar a avisá-la
significava certamente que estava preocupado. E se Tristan estava
preocupado, então o perigo devia ser muito real. Sentiu um aperto no
estômago.
— Não conseguem — garantiu ele, com ar sério —, mas sabem que temos
de sair, mais cedo ou mais tarde.
— Estaremos seguros? — A sua voz ergueu-se num tom embaraçosamente
agudo.
— Não deve haver problema de manhã, quando o Sol está alto — disse ele
—, mas à tarde vamos passar por um vale, e está sempre mais escuro lá em
baixo. É aí que eles atacarão.
— Como sabes? Não tinhas dito que a paisagem era da minha cabeça?
— Sim, mas há um terreno subjacente que é sempre igual e sobre o qual tu
projetas a tua paisagem. É por isso que as casas seguras estão sempre no
mesmo sítio. E o vale vai estar lá. Está sempre lá.
Dylan mordeu o lábio, curiosa mas cautelosa, e decidiu fazer a pergunta de
qualquer maneira.
— Já... já alguma vez perdeste alguém no vale?
Ele ergueu o rosto para ela.
— Não vou perder-te a ti.
Dylan ouviu a resposta tácita à sua pergunta e apertou os lábios, tentando
esconder a ansiedade.
— Não tenhas medo — acrescentou ele, sentindo a mudança na atmosfera.
Apertou-lhe suavemente os dedos e Dylan corou.
— Eu estou bem — respondeu, demasiado depressa.
Tristan não se deixou enganar por essa afirmação. Levantou-se da cadeira e
agachou-se em frente dela, sem lhe largar a mão. Fixou-a diretamente nos
olhos quando falou. Dylan queria desesperadamente afastar o olhar, mas
estava hipnotizada.
— Não vou perder-te — repetiu ele. — Confia em mim.
— Eu confio — respondeu Dylan, e desta vez as suas palavras eram
sinceras.
Ele acenou, satisfeito, endireitou-se e largou-lhe a mão. Dylan enfiou-a
entre os joelhos, para não mostrar que estava a tremer, com a pele da palma
da mão a arder. Tentou acalmar a respiração enquanto via Tristan aproximar-
se de uma das janelas e olhar para a noite. Queria chamá-lo, afastá-lo do
vidro escuro e dos demónios que se encontravam do outro lado, mas ele sabia
muito mais sobre eles do que ela. Ainda assim, nada conseguiria arrastá-la
para tão perto daquelas coisas. Afundou-se um pouco mais na poltrona, com
um arrepio.
— É sempre a mesma coisa — disse Tristan subitamente. Contudo, não se
virou, e Dylan pensou que estivesse a falar consigo próprio. Ele levantou a
mão e encostou-a ao vidro. O barulho dos espetros lá fora duplicou
imediatamente de intensidade.
— O quê? — perguntou, na esperança de lhe chamar a atenção e o fazer
tirar a mão da janela. Os uivos e guinchos estavam a assustá-la.
Para seu alívio, ele baixou a mão e virou-se.
— Os demónios — disse-lhe. — Estão sempre mais esfaimados, mais
vorazes, quando é uma alma... — Fez uma pausa. — Uma alma como tu.
Dylan franziu a testa. Pelo tom com que o dissera, parecia que ela tinha
alguma coisa errada.
— O que queres dizer com uma alma como eu?
Tristan observou-a durante um momento.
— Os espetros apoderam-se de qualquer alma de boa vontade. Mas as
almas puras são como um banquete para eles.
Almas puras? Dylan repetiu as palavras mentalmente algumas vezes,
tentando perceber o que queria ele dizer. Pura não era exatamente uma
palavra que usaria para se descrever; e a mãe de certeza que concordaria com
ela.
— Não sou pura — negou, por fim.
— És, sim — garantiu ele.
— Não sou — discordou Dylan. — Pergunta à minha mãe, ela está sempre
a dizer que...
— Não estou a dizer que és perfeita — interrompeu Tristan. — Uma alma
pura... é um inocente. — Dylan abanou a cabeça, pronta para voltar a negar
as palavras dele. Mas depois ele disse uma palavra que fez a sala explodir em
chamas: — Uma virgem.
Dylan abriu e fechou a boca algumas vezes, sem conseguir dizer nada.
Tristan estava a observá-la atentamente, mas ela parecia ter perdido o
controlo sobre os músculos do rosto e o sangue afluiu-lhe às faces e pintou-as
de carmim.
— O quê? — conseguiu finalmente balbuciar.
— Virgens — repetiu ele.
Dylan esforçou-se por não revirar os olhos numa tentativa de disfarçar o
seu embaraço. Não precisava mesmo que ele tivesse repetido aquela palavra.
— Sempre que uma alma jovem e virgem chega às terras perdidas, os
espetros ficam mais agressivos, mais perigosos. — Olhou para ela,
certificando-se de que estava a prestar atenção. — Querem-te a ti... a ti,
especificamente. Para eles, a tua alma seria um festim. Mais desejável, mais
deliciosa do que o sabor amargo de uma alma que viveu tempo demais.
Dylan olhou para ele, estupefacta. O que ele estava a dizer não conseguia
penetrar na confusão da sua mente. Não conseguia ir além daquela palavra.
Virgem. Como diabo é que ele sabia isso? Estaria escrito na sua testa? Mas
depois lembrou-se de que ele lhe tinha dito que conhecia todas as almas. Por
dentro e por fora. Encolheu-se, constrangida. E a forma como os lábios dele
estremeciam enquanto assistia à aflição dela; estava a rir-se. Seria nisso que
pensava enquanto lhe segurava na mão? Que ela era pura e inocente? Uma
virgem?!
Morta de vergonha, contorceu-se na poltrona, mas não era suficiente.
Continuava sob o olhar dele, como uma formiga debaixo de uma lupa. Saltou
da poltrona e, com o impulso, deu alguns passos e parou virada para a janela
pela qual Tristan estava a olhar antes. Aproximou-se, evitando
deliberadamente o reflexo dele, e encostou a testa ao vidro gelado, tentando
refrescar o rosto em brasa.
DOZE

Quando saíram, de manhã, os espetros tinham desaparecido. Dylan olhou


em volta, com os olhos muito abertos e assustados, e suspirou de alívio. No
entanto, sabia que ainda tinham de atravessar o vale.
Estava uma manhã escura. Os raios de sol não conseguiam penetrar na
neblina densa. Tristan olhou lentamente em volta e depois sorriu a Dylan,
com uma expressão compreensiva.
— Estás nervosa. — Não era uma pergunta.
Dylan olhou para a neblina e compreendeu.
— Fui eu que fiz isto?
Ele acenou afirmativamente. Aproximou-se dela e segurou-lhe nas mãos.
— Olha para mim — ordenou. — Não precisas de ter medo. Eu vou
proteger-te. Prometo. — Dobrou ligeiramente as pernas para conseguir
encará-la. Dylan tentou resistir àquele olhar e sentiu o sangue afluir-lhe ao
rosto.
— És engraçada quando coras — riu-se ele, e as suas palavras fizeram o
rubor triplicar. — Vamos.
Largou-lhe uma das mãos quando se virou, mas continuou a segurar na
outra, que puxou gentilmente.
Dylan cambaleou atrás dele, vagamente consciente de que a neblina estava
a dissipar-se e os raios de sol a surgir. Achou que compreendia porquê, o que
fez com que o seu rubor demorasse muito tempo a desaparecer. Dois minutos
mais tarde, já se tinha convencido a si própria de que as palavras de Tristan
não passavam de uma estratégia para a animar e dissipar a neblina,
diminuindo o risco de serem atacados pelos demónios. Ainda assim, ele
continuou a segurar-lhe firmemente na mão enquanto avançavam.
No cimo da primeira colina, Tristan parou e inspecionou o terreno. Fixou o
olhar em algo à esquerda e apontou nessa direção.
— Vês aquelas duas colinas? — Dylan fez que sim com a cabeça. — O
vale que temos de atravessar fica entre elas.
— Ainda é longe — disse Dylan, pouco convencida. Já era meio da manhã
e as colinas pareciam muito distantes. Com certeza que seria noite antes de lá
chegarem, não? Não lhe apetecia nada ser apanhada ali quando estivesse
escuro.
— É uma ilusão de ótica. É muito mais perto do que parece. Chegaremos lá
dentro de uma hora, mais ou menos. Vai correr tudo bem, desde que
continues bem-disposta. — Sorriu-lhe e apertou-lhe a mão.
Dylan sentiu o sol brilhar um pouco mais. Era humilhante ter as suas
emoções expostas daquela maneira, pensou.
Um caminho estreito e sinuoso descia a colina, largo apenas para uma
pessoa de cada vez. Tristan foi à frente, soltando-lhe finalmente a mão
enquanto passava por cima de pedras e ervas altas. Dylan seguiu-o com passo
lento e cauteloso, ligeiramente inclinada para trás para compensar o ângulo
da descida, dando passos pequenos e arrastados enquanto procurava apoios
seguros para os pés. Levava os braços esticados para o lado, para se
equilibrar e para se amparar, no caso de cair.
Demoraram cerca de meia hora a chegar ao fundo da colina e Dylan
suspirou de alívio quando o terreno endireitou e conseguiu esticar as pernas e
dar passos mais largos e rápidos. Ali, as duas colinas que ladeavam o vale
agigantavam-se acima deles. Tristan tinha razão, pareciam agora muito mais
perto. Tudo o que os separava do sopé das colinas e do vale era uma zona
nivelada e pantanosa. Viam-se poças a reluzir aqui e ali e maciços de juncos
espalhados entre elas. Dylan praguejou silenciosamente, imaginando a água
fria e lamacenta que em breve lhe ensoparia as meias. Olhou para Tristan.
— Suponho que levar-me às cavalitas não faça parte dos teus deveres de
guia? — perguntou, esperançosa.
Ele lançou-lhe um olhar fulminante e ela suspirou. Enfiou as mãos nos
bolsos e baloiçou-se sobre os calcanhares, relutante em dar o primeiro passo.
— Não podemos descansar aqui um bocadinho? — pediu.
— Que grande ideia. — Tristan franziu a testa e olhou para ela, pouco
impressionado. — Podemos esperar até meio da tarde e entrar no vale ao cair
da noite. Vamos viver perigosamente!
— Está bem, era só uma sugestão — resmungou Dylan, e deu o primeiro
passo no pântano. Ouviu o som do ténis a pisar a lama. Fez uma careta, mas o
pé ainda estava seco e quente. Não por muito tempo, pensou com os seus
botões enquanto avançava.
O pântano não tinha mais do que três quilómetros, mas progrediram
lentamente. Abrir caminho entre as poças e os juncos, e sobre lama na qual,
em certos sítios, Dylan ficava enterrada até aos tornozelos, era difícil. Tristan
parecia ter muito menos problemas. Os seus pés encontravam mais
facilmente terreno firme e, mesmo quando Dylan pisava o mesmo sítio que
ele, tinha a certeza de que se afundava mais. E a lama tresandava, ainda por
cima, um fedor como ela nunca sentira antes. Era pútrida e uma vaga de
cheiro nauseabundo erguia-se a cada passo.
Mais ou menos a meio, encontraram uma zona mais lamacenta do que o
restante. Dylan enterrou um pé quase até ao joelho e, quando tentou puxá-lo,
não conseguiu. Deu balanço e tentou libertar-se várias vezes. Sem sucesso.
— Tristan! — gritou, apesar de ele estar poucos metros à sua frente.
Ele virou-se.
— O que é?
Dylan ergueu ambos os braços num gesto de impotência.
— Estou presa.
Uma expressão maliciosa passou-lhe pelo rosto.
— E o que queres que eu faça?
— Não te armes em engraçadinho, puxa-me! — Apoiou as mãos nas ancas,
irritada. Ele sorriu e abanou a cabeça. Dylan decidiu tentar outra abordagem.
Baixou os braços, inclinou a cabeça e olhou para ele por entre as pestanas,
fazendo beicinho.
— Por favor? — implorou.
Ele riu-se mais, mas começou a dirigir-se a ela.
— És patética — brincou. Agarrou-lhe nos braços, firmou os joelhos e o
corpo, inclinou-se para trás e puxou. Dylan ouviu um som molhado, mas o pé
continuou preso.
— Bolas — disse ele, ofegante. — Como é que fizeste isso?
— Dei um passo — retorquiu ela, ligeiramente indignada com a atitude
trocista de Tristan.
Ele aproximou-se mais. Prendeu os braços à volta da cintura dela e apertou-
a com força, com o corpo completamente encostado ao dela. Dylan susteve a
respiração por um segundo, com o coração acelerado. Só esperava que ele
não o conseguisse ouvir. Cingindo-a com força, Tristan puxou-a para trás.
Dylan sentiu a lama começar a soltar-lhe as pernas. Com um som repugnante
e molhado, o pântano libertou-a finalmente. Agora livre, a força de Tristan
projetou-a para a frente. Soltou um pequeno gritinho agudo e ele cambaleou,
tentando manter o equilíbrio. A água lamacenta salpicou-lhes a cara e o
cabelo.
Tristan apertou mais os braços, tentando impedir que caíssem ambos na
lama. Com alguns passos atabalhoados, conseguiu finalmente recuperar o
equilíbrio. Quando olhou para baixo, viu o rosto pintalgado de lama de Dylan
a observá-lo e ficou momentaneamente preso no verde deslumbrante
daqueles olhos quando ela se riu.
Segura nos braços de Tristan, Dylan cambaleou, ainda um pouco insegura
nas pernas e um pouco tonta. Sorriu-lhe, perdendo a timidez por alguns
instantes. Ele estava a olhar para ela. O momento prolongou-se e o riso
morreu na garganta de Dylan. De súbito, custava-lhe a respirar. Ofegante,
entreabriu os lábios.
No instante seguinte, ele largou-a. Afastou-se e olhou para as colinas.
Dylan fitou-o, confusa. O que fora aquilo? Parecera-lhe que ele a queria
beijar, mas agora nem sequer conseguia olhar para ela. Era muito intrigante e
bastante embaraçoso. Teria feito figura de parva? Não tinha a certeza.
Desviou o olhar para o único local seguro: o chão.
— Temos de continuar — disse ele, em voz estranhamente rouca.
— Certo — murmurou Dylan, ainda meio aturdida. Ele continuou a
chapinhar na lama e ela seguiu-o.
Tristan acelerou o passo, tentando colocar alguma distância entre eles para
ter tempo de pensar. Estava perplexo. Durante décadas, talvez até séculos —
era difícil medir a passagem do tempo nas terras perdidas — protegera e
guiara as almas na sua viagem. Ao princípio, simpatizara com cada uma
delas, ouvira as suas histórias e tentara confortá-las quando choravam as suas
vidas e futuros perdidos e, claro, quando sentiam a mágoa de deixar para trás
aqueles que amavam. Cada alma que se despedia dele com um aceno no final
da viagem levava consigo um pedacinho dele, arrancava-lhe um pouco do
coração. Passado algum tempo, tornara-se mais duro. Já não se abria a eles e
assim não conseguiam magoá-lo. Nos últimos anos, conduzir almas fora
pouco mais do que um trabalho monótono. Falava o mínimo possível e
tentava esconder a verdade tanto tempo quanto conseguisse. Fora uma
máquina sem sentimentos. Um GPS para os mortos.
Esta rapariga, de alguma maneira, conseguira alcançar aquilo que ele fora
antes; sentia-o voltar ao de cima. Ela descobrira a verdade
extraordinariamente cedo e aceitara-a com mais maturidade do que muitos
que tinham passado uma vida inteira na Terra. Tratava-o como uma pessoa.
Aqui, nas terras perdidas, isso era raro. As almas estavam, regra geral,
demasiado absortas na sua própria morte para lhes ocorrer sequer que o guia
era alguém. Ela era uma alma que valia a pena proteger. Uma alma de quem
valia a pena cuidar. Uma alma a quem ele queria dar um pedaço de si.
Mas havia algo mais do que isso. Não conseguia definir o sentimento.
Quando a segurara nos braços, algo dentro dele se agitara. Sentimentos
estranhos, sentimentos que o tinham deixado a pensar nela e não no Sol que
começava a baixar perigosamente no céu. Sentia-se quase... humano. Não
podia estar certo. Tristan não tinha outra palavra para isto. Humano.
Mas não era. Abanou a cabeça, sobressaltado. Este tipo de sentimento era
perigoso; podia fazer com que se distraísse. Podia pôr Dylan em perigo. Era
preciso sufocá-lo.
— Tristan. — A voz de Dylan despertou-o dos seus pensamentos. —
Tristan, está a ficar escuro. Se calhar devíamos esperar e atravessar o vale
amanhã, não?
Ele abanou a cabeça e continuou a andar.
— Não podemos — respondeu. — Não há nenhuma casa segura deste lado.
Temos de ir o mais depressa que conseguirmos.
Dylan ouviu o pânico mal contido na voz dele e sentiu o coração apertado.
Sabia que o seu próprio medo não ajudaria nada — na verdade, podia piorar
muito a situação —, mas não conseguia controlar-se.
Depois de mais dez minutos no pântano, o solo tornou-se mais firme sob os
pés deles. A erva já suportava o peso de Dylan quando a pisava. Tentou
limpar alguma da lama que lhe revestia os ténis. Não se atrevia a parar para
os limpar como deve ser, pois sentia a impaciência de Tristan. Pelo menos as
poças eram agora menos frequentes e Dylan ficou espantada ao ver, quando
ergueu os olhos, que já estavam à sombra das duas colinas. À sua frente
estendia-se o vale sobre o qual Tristan a avisara.
Parecia vulgar. Era atravessado por um caminho bastante largo e, de ambos
os lados, as encostas subiam numa inclinação suave. Dylan estava à espera de
uma ravina estreita, claustrofóbica e apertada. Sentiu-se aliviada, mas um
mero olhar para a postura tensa de Tristan fez com que o coração lhe desse
novamente um salto no peito. Recordou a si própria que ele era muito melhor
juiz do perigo que tinham pela frente. Com uma careta, tentou andar mais
depressa, cobrindo a distância que os separava.
Dylan estava ansiosa para começar a travessia, queria avançar o mais
depressa possível, mas Tristan fez uma pausa. Parecia estar a preparar-se.
Dylan fitou-o disfarçadamente. Estaria a pensar nas outras almas que levara
por aqui, algumas das quais perdera? Quantas? Nervosa, Dylan estendeu os
dedos e fechou-os sobre a mão dele. Ergueu o rosto para ele com um sorriso
tímido e apertou-lhe a mão. Ele devolveu o sorriso, tenso, e olhou novamente
para o vale, com uma expressão quase de desafio.
— Estamos quase lá — murmurou, tão baixinho que Dylan perguntou a si
própria se ele teria tencionado sequer que ela ouvisse.
TREZE

Devia ter sido uma caminhada relativamente agradável pelo vale. O


caminho era largo e liso, feito de pequenas pedrinhas que fizeram lembrar a
Dylan passeios no campo ao longo de linhas ferroviárias abandonadas.
Ondulava graciosamente pelo vale entre as duas colinas, cujas encostas
subiam de ambos os lados num ângulo suave, cobertas de relva e flores
silvestres. Parecia um quadro. Pelo menos, se não levassem em conta as
falésias escarpadas e lisas que se erguiam acima das encostas relvadas e
curvavam para dentro à medida que subiam, entalando o céu até este não ser
mais do que uma estreita faixa de luz. A escuridão abateu-se sobre eles.
Dylan estremeceu quando a sombra fria a engoliu.
Ao seu lado, Tristan manteve-se em silêncio, tenso, caminhando com passo
rápido e olhando constantemente à volta. O stresse dele despertou o dela.
Não se atrevia a olhar para o que a rodeava. Manteve os olhos resolutamente
virados para a frente e rezou para que conseguissem chegar ao outro lado sem
incidentes. Com a visão periférica, distinguiu o esvoaçar indistinto de
morcegos. Não, percebeu, não eram morcegos. Espetros. Deslizaram pela
escarpa rochosa e começaram a voar em círculos por cima deles. Dylan
apertou os dedos de Tristan com mais força e tentou não olhar para eles.
Contudo, não conseguia ignorá-los. Deu por si atenta aos uivos familiares e
sinistros que associava agora aos demónios, mas desta vez esse som agudo
não ecoava no vale. Havia, porém, outros ruídos.
— Estás a ouvir isto? — perguntou, tensa.
Tristan acenou afirmativamente, com o rosto sério.
Parecia o ribombar suave de mil sussurros. Embora não se distinguissem
palavras concretas, era, apesar disso, um som ameaçador.
— O que é? — perguntou ela com voz trémula. Virou bruscamente a
cabeça, perscrutando o céu e os penhascos, à procura da origem do som.
— Não vem de cima — explicou Tristan. — É por baixo de nós.
Ao princípio, o único som que Dylan conseguia ouvir era o dos seus passos
sobre a gravilha e pedrinhas do caminho, mas agora que estava atenta
percebeu que aquele silvo fantasmagórico vinha, de facto, do chão.
— Tristan, o que está a acontecer? — perguntou, tão baixinho que quase
não se ouviu a si própria.
— Os demónios estão a reunir-se por baixo de nós. Assim que virem uma
oportunidade para atacar, vão erguer-se em massa. É o que fazem aqui.
Sempre.
— Porquê? — murmurou Dylan.
— Estamos no coração das terras perdidas — respondeu Tristan. — É aqui
que eles se escondem, aos milhares. As sombras neste vale quase nunca
desaparecem. Sabem que terão uma oportunidade.
— Que tipo de oportunidade? — perguntou ela com voz estrangulada.
— Assim que penetrarmos nas sombras o suficiente, atacarão. — Disse-o
em tom casual, mas havia também uma nota de pânico que assustou Dylan
mais do que as palavras.
— O que podemos fazer?
Ele soltou uma risada seca e desprovida de humor.
— Nada.
— Não devíamos correr? — Dylan não era grande corredora. Embora fosse
magra, não estava em boa forma. Sempre dissera que só correria se viesse
alguém atrás dela. Pelos vistos essa exceção aplicava-se agora, pensou.
— Só quando tiver de ser. Poupa as energias para quando precisares
mesmo delas — aconselhou ele, com um leve sorriso que se extinguiu
depressa.
— Segura-te a mim, Dylan. Não me largues. E quando eu te disser para
correres, corre. Segue sempre o caminho e ao chegares ao fim do vale
encontrarás outra casa segura. Corre para ela e não olhes para trás. Assim que
entrares, ficarás em segurança.
— E tu, onde estarás? — sussurrou, ansiosa.
— Mesmo atrás de ti — garantiu ele em tom sério.
Dylan tinha os olhos arregalados de pânico. Tentou concentrar-se no
caminho à sua frente. Apertou a mão de Tristan com tanta força que sentia os
dedos a latejar. O ribombar soava agora mais próximo e parecia que o chão
estava a borbulhar, a derreter para deixar passar os demónios. Demorou
algum tempo até os seus olhos compreenderem o padrão no solo e, por fim,
percebeu que eram sombras. Sombras escuras. Sentiu a respiração acelerada e
viu que o vale estava a escurecer à volta deles, os penhascos cada vez mais
juntos. Quanto tempo faltaria para os demónios se libertarem?
O ar pareceu gelar instantaneamente. Uma rajada de vento soprou através
do vale e fez o cabelo de Dylan esvoaçar-lhe à volta do rosto. A brisa
sussurrou-lhe aos ouvidos, fazendo eco do som vindo do solo, e Dylan
distinguiu os uivos nítidos de outros demónios, algures por cima deles.
Estavam a cercá-los por todos os lados.
Por uma fração de segundo, sentiu-se como se o tempo tivesse parado e
estivesse suspensa à beira do caos. Tinha todos os nervos do corpo em franja
e a adrenalina a correr-lhe nas veias. Sentiu um formigueiro nos músculos,
prontos para responder às ordens dela. Respirou fundo e o ar que lhe invadiu
os pulmões troou-lhe nos ouvidos.
Antes de conseguir soltar a respiração, antes de conseguir sequer
pestanejar, o tempo recomeçou a andar e tudo aconteceu ao mesmo tempo, ou
assim lhe pareceu. O chão fumegou quando incontáveis demónios
irromperam através da superfície como cobras negras e insubstanciais, a
contorcerem-se, a sibilarem e a rodopiarem no ar. Os uivos vindos de cima
desceram do céu, mergulhando e deslizando à volta dela. Centenas. Milhares.
O ar estava negro com espetros, cegando-a. Dylan abriu a boca, incrédula;
não era nada como aquilo que vira antes. O seu coração gelou quando um dos
demónios lhe deslizou através do peito e saiu pelas costas. Coisas sem cara
enredaram-se no seu cabelo e puxaram-na e empurraram-na, causando
pontadas de dor no couro cabeludo, como picadas de agulha. Garras tentaram
agarrar-lhe nos ombros e braços, arrastá-la.
— Dylan, corre! — A voz de Tristan cortou a confusão de som e
movimento e soou no centro do cérebro dela.
Corre, repetiu ela a si própria. Corre! Mas não conseguia mexer-se. Tinha
as pernas paralisadas, como se se tivessem esquecido do que era movimento.
Sempre se rira das vítimas nos filmes de terror que ficavam paralisadas pelo
medo e sucumbiam ao machado do assassino, mas aqui estava ela,
inegavelmente imobilizada pelo medo.
Um puxão na mão fê-la tombar para a frente e as suas pernas entraram em
ação. Apanharam-na antes de ela cair e começaram a impeli-la para a frente.
Corre, corre, corre, pensou, acelerando o mais depressa que conseguia pelo
caminho, com a mão colada à de Tristan. Os demónios estridentes
esvoaçavam à volta dela, mas não conseguiam agarrá-la.
O caminho estendia-se à sua frente e, embora não conseguisse ver a casa,
sabia que não podia estar muito longe. Já não devia faltar muito. Estava a
correr com todas as suas forças e sabia que não conseguiria manter o ritmo
durante muito tempo. As pernas já lhe ardiam e protestavam a cada passo.
Quando levantava os pés, sentia-os cada vez mais pesados. A sua respiração
era ofegante e irregular, e sempre que inspirava uma pontada de dor
trespassava-lhe o peito. Mexeu os braços de forma rítmica para ajudar, mas
sentia-se abrandar a cada passo. As garras dos demónios começavam a
conseguir agarrá-la, puxando-a para trás e atrasando-lhe ainda mais o passo.
Sabia que não teria hipóteses, a menos que a casa estivesse muito perto.
Algo lhe puxou a mão com força suficiente para quase a fazer cair para
trás. Dylan gritou ao sentir o ombro saltar da articulação e, um segundo
depois, percebeu o que acontecera. Tinha ambas as mãos fechadas em
punhos. Punhos vazios.
— Tristan! Tristan, socorro! — Tossiu debilmente.
— Dylan, corre! — ouviu-o gritar. Já não estava ao lado dela. Para onde
fora? Não se atrevia a olhar em volta, à procura dele, com medo de cair.
Concentrou-se antes em fazer o que ele lhe dissera: correr. Correr o mais
depressa que conseguia.
O que era aquilo? Diretamente à sua frente, a cerca de quatrocentos metros,
viu uma silhueta quadrada indistinta. Só podia ser a casa. Soluçou, aliviada, e
tentou incentivar os músculos exaustos a fazerem um derradeiro esforço.
— Vá lá, vá lá, vá lá, VÁ LÁ! — murmurou entre dentes, ordenando ao
corpo para continuar. Ignorou a dor e mexeu as pernas ainda mais depressa,
forçando-as a percorrer os últimos metros. A porta já estava aberta,
convidando-a a entrar.
— Tristan, estou a vê-la! Tristan! — Mas esse último pensamento morreu-
lhe na garganta quando vários demónios mergulharam sobre ela ao mesmo
tempo e penetraram no seu corpo. Pareciam não ter substância, e contudo
conseguia senti-los a agarrarem-lhe o coração. Vacilou e tropeçou e começou
a ter dificuldade em controlar os membros.
— Não — arquejou. — Não, não, por favor. Já estou quase lá! Quase lá!
Era impossível mover-se. Mãos frias apertaram-na por dentro e torceram,
gelando-a até aos ossos e roubando-lhe o ar. Cada fibra do seu ser queria
apenas parar, deitar-se no chão e deixar os demónios arrastarem-na
gentilmente para baixo, onde estaria escuro e ela podia dormir. Um sítio onde
podia parar de lutar e ter paz.
De súbito, as palavras de Tristan explodiram-lhe dentro da cabeça. Corre
para ela e não olhes para trás. Assim que entrares, ficarás em segurança.
Com estas palavras veio uma imagem do rosto dele.
Foi a pura força de vontade que a fez avançar, passo a passo, em direção à
porta aberta. Cada movimento era agonizante, cada inspiração uma punhalada
de dor. O seu corpo gritava-lhe para parar, para desistir, mas persistiu,
obstinada. À medida que se aproximava, os gritos, uivos e silvos
intensificaram-se. Os demónios redobraram o seu ataque, puxando e rasgando
e arranhando. Rodopiaram-lhe à volta da cara e tentaram cegá-la. A poucos
metros da porta, Dylan caiu de joelhos, exausta. Fechou os olhos com força,
obrigou os pulmões doridos a inspirarem o ar e começou a rastejar. O chão
era frio debaixo das suas mãos, pequenas pedras arranhavam-lhe a pele e
cravavam-se-lhe nos joelhos. Mexe-te, pensou, desesperada. Não pares.
Percebeu de imediato assim que cruzou a ombreira da porta. O ruído cessou
instantaneamente e o frio gelado dentro dela dissolveu-se numa dor surda.
Esgotada, deixou-se cair no chão, ofegante.
— Tristan, conseguimos — gemeu, incapaz de levantar a cabeça do chão.
Ele não respondeu. E não ouvia ninguém a respirar atrás de si, nem mais
movimentos na casa. O gelo no seu coração regressou, multiplicado por dez.
Tinha medo de se virar.
— Tristan? — murmurou.
Dylan virou-se de costas. Ficou ali deitada por um momento, demasiado
assustada para abrir os olhos, receosa do que veria. Por fim, a necessidade de
saber levou a melhor. Forçou as pálpebras a abrirem-se e inspecionou o que
tinha à sua frente.
Não.
Sem conseguir falar, soltou um gemido infeliz. A porta estava vazia, a noite
lá fora era negra.
Tristan não conseguira.
CATORZE

Dylan não sabia quanto tempo tinha ficado deitada no chão. Não conseguia
tirar os olhos da porta. A qualquer momento Tristan ia entrar por ela,
descomposto pelo vento, ofegante, mas incólume. Ia sorrir e assumir o
controlo. Tinha de ser. Sentia o coração a partir-se no peito e os músculos
como que transformados em pedra. Completamente esgotado do esforço, o
seu corpo começou a tremer.
Após o que talvez não tenha sido mais do que alguns minutos, mas que lhe
pareceu uma eternidade, o frio do chão trespassou-a até aos ossos. Os
membros trémulos começaram a ficar presos e percebeu que precisava de os
mexer.
Gemeu e sentou-se, sem se atrever a afastar os olhos da porta. Tristan
chegaria a qualquer momento, desde que ela continuasse a olhar. Algures, no
fundo da sua mente, uma vozinha disse-lhe que isto era ridículo, mas
agarrou-se a essa convicção porque era a única coisa que estava a impedir
que o pânico lhe subisse pela garganta e brotasse num grito.
Dylan conseguiu apoiar as pernas trémulas e, com a ajuda da ombreira da
porta, pôs-se em pé. Agarrada à madeira podre, cambaleante, ficou de pé no
limiar. Ouvia gritos e sussurros lá fora, apesar de a casa segura amortecer o
ruído. Com os pés firmemente plantados no interior, inclinou a cabeça para
fora e perscrutou a noite em busca de um vislumbre de olhos azuis ou cabelo
loiro e revolto. Os seus olhos não encontraram nada, mas os ouvidos foram
acometidos por uma rajada de guinchos furiosos quando os demónios
tentaram atacá-la e se viram frustrados pela barreira da casa segura. Com uma
exclamação chocada, recuou a cabeça e o ruído diminuiu de imediato.
Dylan recuou lentamente, sem tirar os olhos da porta. Os pés embateram
em algo no chão e quase tropeçou. Afastou os olhos da porta por uma fração
de segundo, mas a escuridão era quase total e não conseguia ver o que pisara.
Mais uma vaga de terror. Não aguentava passar uma noite ali, sozinha, às
escuras. Enlouqueceria.
Fogo. Havia sempre uma lareira nestas casas. Mas teria de virar costas à
porta, o que significava enfrentar o facto de que Tristan podia estar perdido.
Não, disse a si própria. Ele voltaria. Só tinha de acender a lareira, para estar
pronta quando ele chegasse. Aos apalpões, encontrou do lado oposto uma
lareira de pedra, como esperava. De joelhos, procurou com os dedos. Sentiu
cinzas e pedaços de madeira em cima da grelha. À esquerda, encontrou
alguns troncos secos, mas não havia fósforos, nem um interruptor eletrónico
como na lareira de sua casa.
— Por favor — sussurrou, consciente de que estava a suplicar a um objeto
inanimado para funcionar, mas sem se conseguir conter. — Por favor, preciso
mesmo disto. — Com a última palavra, a sua compostura desmoronou-se.
Com o peito contraído por soluços convulsivos, fechou os olhos e as
primeiras lágrimas deslizaram-lhe pelas faces.
Um crepitar fê-la abrir novamente os olhos, momentaneamente assustada, e
susteve a respiração, chocada com o que via. Havia chamas na lareira. Eram
pequenas e vacilantes sob a corrente de ar da porta aberta, mas recusavam-se
a extinguir-se. Dylan estendeu a mão e pegou em dois troncos. Colocou-os
delicadamente sobre a grade, sem respirar, com medo de se atrapalhar e
apagar as pequenas chamas.
O fogo aguentou-se, mas continuava a estremecer por causa do vento.
Dylan virou-se e olhou para a porta. Fechá-la parecia ser fechar a porta à
esperança — a Tristan. Mas não podia perder o lume. Sentindo-se como se
estivesse a andar em câmara lenta, levantou-se e dirigiu-se à porta. Aí, parou
por um instante enquanto se debatia com o impulso de sair a correr para a
noite para o procurar. Porém, isso significaria entregar-se aos demónios, e
Tristan não havia de querer que ela o fizesse. Sem conseguir olhar, fechou os
olhos e depois a porta.
Quando ouviu o estalido do trinco, algo se partiu dentro de si. Cega pelas
lágrimas, cambaleou pela sala até encontrar o que lhe pareceu ser uma cama.
Atirou-se para cima dela e cedeu às emoções. O pânico apoderou-se dela.
Combateu o impulso desesperado de desatar a correr e a gritar e a partir
coisas.
— Oh, meu Deus, meu Deus, meu Deus — repetiu uma e outra vez, entre
soluços. O que havia de fazer agora? Sem Tristan, não sabia para onde ir.
Acabaria por se perder e vaguear até ser de noite, altura em que seria presa
fácil para os demónios. Ou teria de ficar ali e esperar? Mas quem a viria
buscar? Se não precisava de comer nem de beber, ficaria ali à espera
eternamente, como a princesa amaldiçoada de um conto de fadas ridículo, na
esperança de que um príncipe a viesse salvar?
A solidão e o medo trouxeram ao de cima sentimentos que não tivera
oportunidade de enfrentar desde o acidente. A imagem da mãe passou-lhe
pela cabeça. Já teriam feito o funeral dela? Imaginou a mãe a receber o
telefonema no hospital, viu a expressão desesperada no seu rosto, as
sobrancelhas perfeitamente arranjadas a franzirem-se, a mão a cobrir a boca
como se pudesse impedir a verdade de entrar. Dylan pensou em todas as
discussões que haviam tido, em todas as crueldades que lhe dissera sem
realmente as sentir, e em todas as coisas que lhe queria dizer e nunca dissera.
A sua última conversa fora uma discussão por ela querer ir ver o pai. Ainda
se lembrava de dizer à mãe que o ia visitar, lembrava-se da expressão no
rosto dela. Joan fitara a filha como se esta a tivesse traído.
Este pensamento encadeou-se noutro. O pai. Como teria ele reagido? Quem
lhe teria contado? Teria chorado a morte de uma filha que nunca chegara
realmente a conhecer?
De súbito, a situação em que se encontrava, a sua morte, atingiu-a com toda
a força. Não era justo. O seu futuro, a família, os amigos... tudo perdido para
sempre. E agora o seu barqueiro também? Não, ele não era apenas um
barqueiro. Era Tristan. Levado de junto dela, como tudo o resto. Dylan
pensava já não ter mais lágrimas para chorar, mas, quando o rosto dele lhe
veio à cabeça, brotaram ainda mais, quentes e salgadas nas suas faces.
Foi a noite mais longa que Dylan alguma vez passara. Sempre que fechava
os olhos, imagens perturbadoras enchiam-lhe a mente: Joan, Tristan, uma
figura paterna sem rosto, aterrorizadora, fragmentos do pesadelo no comboio.
Por fim, lentamente, a noite passou. O fogo na lareira diminuiu de
intensidade e a escuridão lá fora dissolveu-se numa luz suave filtrada pelas
janelas, mas Dylan nem reparou. Continuou a olhar para o lume até as cores
quentes do calor desaparecerem em cinzas cinzentas e os pedaços de madeira
carbonizada estarem apenas a fumegar sobre a grelha. O seu corpo parecia
ter-se transformado em pedra. Estava em estado de choque e refugiou-se no
torpor.
Só a meio da manhã lhe ocorreu que a luz significava que podia sair
daquele refúgio, que era, de alguma forma, também uma prisão. Podia
procurar Tristan. E se ele estivesse caído algures no vale, ferido e a esvair-se
em sangue? E se estivesse à espera de que ela o fosse procurar?
Olhou para a porta, ainda fechada contra os terrores das terras perdidas.
Tristan estava lá fora, mas os espetros também. Seriam as sombras do vale
suficientemente profundas e escuras para a poderem atacar? Ou a luz da
manhã seria forte o bastante para a manter em segurança?
Quando pensou em sair para as terras perdidas, sozinha... todo o seu ser se
encolheu perante a ideia.
Mas Tristan estava lá fora.
— Levanta-te, Dylan — disse a si própria. — Não sejas patética.
Içou da cama o corpo cansado, queixoso por causa do exercício da véspera,
e dirigiu-se à porta. Parou com a mão na maçaneta, respirou fundo duas vezes
e tentou segurar, rodar e puxar a porta. Os seus dedos, contudo, recusavam-se
a obedecer.
— Deixa-te de coisas — murmurou.
Tristan precisava dela.
Agarrando-se a esse pensamento, abriu a porta.
O ar ficou-lhe preso nos pulmões quando parou de respirar. O seu coração
parou por uma fração de segundo e, quando recomeçou a bater, foi ao dobro
da velocidade. Os seus olhos esforçaram-se por compreender o que viam.
As terras perdidas que, nos últimos dias, lhe tinham parecido quase
acolhedoras, tinham desaparecido.
Não havia colinas, nem as ervas altas salpicadas de gotas de orvalho que
lhe molhavam as calças de ganga e que tanto dificultavam a subida das
encostas. O céu cor de chumbo desaparecera e o trilho pavimentado que a
conduzira à segurança na noite anterior também.
Agora, o mundo era feito de tons ofuscantes de vermelho. As duas colinas
ainda lá estavam, mas cobertas de terra encarnada. Não havia vegetação; as
encostas íngremes eram perfuradas por rochas afiadas e irregulares, que
brotavam do solo em formações bizarras. O caminho de gravilha fora
substituído por uma espécie de estrada negra e brilhante que parecia ser feita
de alcatrão a ferver. Borbulhava constantemente, como se estivesse vivo. O
céu era cor de sangue, com nuvens negras que corriam para o horizonte. O
Sol era uma bola incandescente, como um bico de fogão em brasa.
Mas isso não era o mais assustador. A deslizar pela superfície, a subir as
colinas, a percorrer o caminho, havia centenas e centenas do que pareciam
ser... bem, Dylan nem sequer tinha palavras para os descrever. Eram
humanos e ao mesmo tempo pareciam informes, apenas um leve contorno a
identificar idade e género. Dylan olhou com mais atenção para os que
estavam mais próximos. Não pareciam vê-la, nem sequer estar conscientes
uns dos outros. Estavam concentrados apenas numa coisa — seguir a esfera
reluzente que irradiava em frente de cada um deles.
Cada figura era acompanhada por uma legião de espetros negros, que
pairavam sobre as suas cabeças e esvoaçavam à volta deles. Dylan susteve a
respiração, em pânico, mas embora os espetros enchessem o ar em volta das
estranhas figuras, mantinham a distância. Era por causa das esferas, percebeu
ela subitamente. Os espetros não queriam aproximar-se daquelas bolas de luz
pulsante, embora o seu brilho diminuísse nas zonas de maior sombra, reparou
Dylan, e nesses sítios os demónios se atrevessem a voar mais perto. Enquanto
observava esta cena, as engrenagens do seu cérebro começaram a rodar.
Ela era uma daquelas coisas. O que via eram as terras perdidas reais. E
Tristan era a sua esfera. Sem a esfera, poderia sequer sair daquela casa em
segurança? Se tentasse, os demónios conseguiriam atacá-la, apesar de ser dia?
A única forma de ter a certeza era tentar. Teria coragem de o fazer? Baloiçou-
se ligeiramente no limiar da porta enquanto pensava nisso. Não. Inclinou o
corpo para a frente e ouviu os silvos e uivos dos espetros. Era suficiente.
Horrorizada, recuou e fechou a porta com força. Encostou-se a ela, como se
assim conseguisse impedir os espetros de entrar. A sua força durou apenas
alguns segundos, e por fim escorregou até ao chão, pôs os braços à volta das
pernas e escondeu o rosto nos joelhos.
— Tristan, preciso de ti — murmurou. — Preciso de ti! — A voz falhou-
lhe e desfez-se em lágrimas. — Onde estás?
Estava encurralada. Não só não sabia para onde tinha de ir como, se
pusesse um pé fora da casa, seria apanhada pelos demónios. O único lugar
seguro era aqui, mas quanto tempo podia esperar por Tristan?
Os minutos passaram. Após algum tempo, Dylan recompôs-se um pouco.
Levantou-se e puxou uma cadeira para junto da janela. Sentou-se, pôs os
braços cruzados no parapeito e apoiou a cabeça neles. A paisagem era a
mesma que vira da porta. Um deserto carmesim salpicado de almas que
seguiam cegamente os seus guias, por sua vez seguidas pelos demónios. Era
uma visão fascinante, de certa forma. Ver os demónios dava-lhe voltas ao
estômago, quando se lembrava da sensação das suas garras.
A perspetiva de ter de os enfrentar outra vez fazia-a transpirar. Sabia que
não conseguiria sair da casa hoje. Era possível que Tristan estivesse lá fora,
tentando regressar para junto dela. Tinha de se agarrar a essa esperança.
Podia esperar pelo menos mais um dia.
Após um ocaso brilhante de laranjas, vermelhos e roxos, o céu ficou negro.
Com a escuridão surgiram os gritos e silvos em redor da casa. Dylan acendeu
a lareira, desta vez com fósforos que encontrara na prateleira. O processo foi
muito mais demorado do que na noite anterior, mas por fim conseguiu fazer
com que a chama crescesse e devorasse os galhos. Agora os troncos maiores
tinham ateado e o lume crepitava, fornecendo calor e uma luz reconfortante.
Abandonara o seu posto junto da janela. A escuridão assustava-a e não sabia
quem estaria lá fora, a observá-la. Assim, deitou-se na cama e olhou para as
chamas até os olhos se fecharem e mergulhar na semi-inconsciência.

::::

Quando Dylan acordou, horas mais tarde, ainda era escuro lá fora. Olhou
para o teto e, por breves instantes, foi como se pudesse estar em qualquer
lado. No seu quarto apinhado em casa, rodeada de posters e ursinhos de
peluche, ou num quarto desconhecido em Aberdeen, a preparar-se para mais
um dia de conversa com o pai. Mas não estava em nenhum desses sítios.
Estava numa casa segura. E estava morta. Sentiu um aperto no peito. Não
conseguia respirar.
A casa estava quente. O lume que construíra tão cuidadosamente ainda
ardia na lareira e fazia as sombras dançarem nas paredes, mas não fora isso
que a despertara. Virou-se de lado para olhar para as chamas e viu o
verdadeiro motivo pelo qual acordara. Havia uma silhueta recortada contra a
luz da lareira, imóvel. O medo invadiu-a e ficou paralisada, mas, quando os
seus olhos se ajustaram, o contorno começou a ganhar forma e era uma forma
familiar. Uma forma que Dylan temera não voltar a ver.
QUINZE

— Tristan! — exclamou Dylan. Saltou da cama e quase caiu, na pressa de


atravessar a sala. Ele levantou-se quando ela se aproximou e, sem pensar,
Dylan abraçou-o, aliviada, e soluçou baixinho, com o peito a tremer. Aninhou
a cabeça no ombro dele e deixou-se afogar no oceano de segurança e prazer
que a envolveu.
Tristan ficou imóvel por um momento, mas depois fechou os braços à volta
dela e apertou-a com força. Esfregou-lhe as costas com a mão enquanto ela
continuava a chorar no seu peito.
Por fim, Dylan sentiu a vaga de emoções desfazer-se em calma e, com o
embaraço a regressar, afastou-se dele. Não tinha grande experiência de
abraços com rapazes e a sua cabeça era um turbilhão de confusão. Um rubor
aqueceu-lhe as faces, mas não deixou que isso a impedisse de erguer os olhos
para os dele.
— Olá — murmurou.
Ele estava de costas para as chamas, com o rosto oculto pelas sombras.
— Olá — respondeu, com o sorriso evidente na voz.
— Pensei... pensei que estavas perdido. — Com a voz embargada de
emoção, perguntou, desesperada por saber: — O que aconteceu? Vinhas
mesmo atrás de mim.
Houve uma pausa. Dylan perscrutou a escuridão, mas não conseguia ver o
suficiente para decifrar a expressão dele.
— Desculpa — murmurou ele. Pegou-lhe na mão, conduziu-a até à cama e
sentou-se ao lado dela. A luz da lareira iluminou-lhe agora o rosto pela
primeira vez, e Dylan soltou uma exclamação abafada.
— Oh, meu Deus, Tristan! O que te aconteceu?
Tristan estava quase irreconhecível. Tinha um olho inchado e quase
fechado, o outro injetado de sangue. O maxilar estava inchado e negro, e
numa das faces tinha um golpe profundo de cima a baixo. Tentou sorrir, mas
era evidente que lhe doía. Mesmo na escuridão, os seus olhos transmitiam o
sofrimento por que passara. Dylan ergueu a mão para lhe acariciar o rosto,
mas hesitou, com medo de lhe causar ainda mais dor.
— Não importa — respondeu ele. — Não é nada.
Dylan abanou lentamente a cabeça. Não podia dizer que não era nada. O
seu rosto tinha sido massacrado, mutilado. Por causa dela?
— Tristan...
— Chiu... — tranquilizou-a ele. — Já te disse que não é nada. Vejo que
ainda consegues dormir — comentou, numa tentativa óbvia para mudar de
assunto.
Ela assentiu.
— Só para passar o tempo.
— Achas que ainda podes dormir mais um pouco? — Ela abanou a cabeça
antes mesmo de ele concluir a pergunta. — Bom, pelo menos devias deitar-te
e descansar, amanhã temos um longo caminho pela frente.
Dylan fitou-o com olhar suplicante. Sabia que ele estava a tentar evitar
falar sobre onde estivera, mas mais parecia que não queria falar com ela sobre
nada. Sentiu-se rejeitada. Atirara-se para os braços dele e deixara bem
evidente como estava feliz pelo seu regresso. Agora isso parecia uma
estupidez. Com os olhos a arder, cruzou os braços sobre o peito. Como se
adivinhasse as emoções dela, Tristan pegou-lhe numa das mãos e puxou-a
suavemente.
— Vá lá, deita-te. Eu fico aqui contigo.
— Eu... — Dylan estava hesitante, insegura.
A voz dele era um murmúrio baixo na escuridão.
— Deita-te comigo — pediu ele. — Por favor.
Chegou-se para trás até estar encostado à parede e puxou-a para junto do
peito. Ela aninhou-se nele, envergonhada mas com uma sensação de
segurança. Ele parecia não querer falar, mas apenas estar ali deitado ao lado
dela. Dylan sorriu e relaxou pela primeira vez em dois dias.

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À luz da manhã, os ferimentos de Tristan pareciam ainda piores. O olho


esquerdo estava negro e azul, e o maxilar coberto de nódoas negras em tons
de roxo, castanho e amarelo. O corte na face estava a começar a fechar, mas o
sangue seco contrastava fortemente com a pele branca. Tinha também vários
arranhões nos braços. Enquanto a manhã expulsava as trevas da casa, Dylan
passou os dedos por uma ferida particularmente feia que percorria todo o
antebraço de Tristan. Estava ainda deitada nos braços dele e, embora se
sentisse incrivelmente confortável e segura, tinha medo de falar e quebrar o
silêncio.
— Temos de ir andando — murmurou Tristan ao ouvido dela. A sua voz
era suave e baixa, e a respiração dele fez cócegas na orelha de Dylan e
causou-lhe um arrepio na espinha. Embaraçada, saltou da cama e afastou-se
dele, parando no meio da divisão, em frente a uma das janelas. Olhou para
fora e viu que as terras perdidas, as terras perdidas dela, estavam de volta.
— Mudou! — exclamou.
— Como assim? — Tristan ergueu os olhos e fitou-a atentamente.
— Ontem, antes de tu apareceres, espreitei à porta e... e... — Dylan não
sabia bem como descrever o mundo que vira. — Era tudo encarnado... o Sol,
o céu, o chão. E conseguia ver as almas, milhares de almas, a viajarem com
os seus guias. Vi os demónios, estavam por todo o lado... — Abalada pela
memória, a voz de Dylan dissolveu-se num murmúrio.
Tristan fitou-a de testa franzida. Não se lembrava de alguma vez uma alma
ter visto e compreendido tanto sobre este mundo. Nunca uma alma se
separara do seu barqueiro e sobrevivera ao ataque dos demónios. Dylan devia
estar perdida para ele e, contudo, aqui estava ela. Tristan estava estupefacto, e
claramente grato, por a ter à sua frente. Como podia algo aparentemente
ordinário ser tão extraordinário?
— Só vês as verdadeiras terras perdidas quando perdes o guia — disse-lhe.
— Eu sou o recipiente que cria as tuas projeções.
— Então é falso? Tudo o que eu vejo é falso? Está apenas na minha
cabeça? — Tristan já lhe tinha explicado isso, mas Dylan não compreendera
realmente o que significava, até agora. E não lhe agradava. Embora as terras
perdidas que vira na véspera fossem aterradoras, não suportava pensar que
estava a ser enganada por Tristan.
— Dylan — disse ele, com ternura. Não havia maneira de embelezar as
palavras, portanto tentou torná-las menos duras com o seu tom de voz. —
Estás morta. O que vês na tua mente é tudo o que tens. Este lugar é a única
forma que tens de fazer a tua travessia. É o que é real.
Dylan olhou para ele e os seus olhos eram lagos de desespero. Estendeu a
mão para ela, consciente de que ela era frágil, mas também de que era
perigoso adiar mais.
— Anda — disse. — Vamos. — Sorriu-lhe, um sorriso caloroso e
reconfortante que ela retribuiu com lábios trémulos.
Dylan avançou para lhe pegar na mão, com um pequeno arrepio ao
estabelecer contacto, e virou-se para a porta. Esta casa fora, ao mesmo tempo,
refúgio e prisão, e tinha sentimentos contraditórios quanto a deixá-la, mas
Tristan saiu com passo confiante e puxou-a mais uma vez para as terras
perdidas.
Naquele dia não havia sol, mas as nuvens que encobriam o céu eram claras
e fofas. Dylan perguntou a si própria o que isso revelaria sobre o seu estado
de espírito. Se tivesse de o classificar, diria que estava pensativa e curiosa. O
que Tristan lhe dissera sobre as terras perdidas e a mente dela era confuso,
mas, embora não quisesse ser enganada por este cenário artificial, sentia-se
muito mais segura na paisagem de colinas. Claro que a presença de Tristan
também contribuía em muito para esse sentimento. Olhou novamente para a
nuca dele e para os seus ombros fortes. O que lhe teria acontecido? Dylan
sentia-se responsável por cada nódoa negra, por cada arranhão. Afinal de
contas, ele estava ali para a proteger.
— Tristan — começou.
Ele olhou para trás e abrandou o passo até estarem a caminhar lado a lado.
— O que é?
Sob aquele olhar penetrante, Dylan acobardou-se e perguntou outra coisa,
algo em relação ao qual também estava curiosa.
— Aquelas almas todas... eu via-as a andar, mas não estavam a caminhar
na minha direção. Na direção da casa segura, quero eu dizer.
— Pois não.
— Então onde é que ficam? Como é que isso funciona?
Tristan encolheu os ombros casualmente.
— Cada barqueiro tem os seus próprios pontos de segurança, de proteção.
O meu aspeto depende de ti. Mas os sítios onde paramos serão sempre a
minha casa segura.
— Oh. — Dylan ficou alguns minutos em silêncio, mas continuou a olhar
disfarçadamente para Tristan, tentando perceber se poderia colocar a pergunta
que realmente queria fazer.
Ele apanhou-a num desses olhares.
— Queres saber o que me aconteceu — adivinhou.
Dylan assentiu afirmativamente.
Tristan suspirou. A vontade de ser franco e de partilhar com ela debateu-se
com a consciência de que ela não devia saber mais sobre este mundo do que o
absolutamente necessário para a travessia.
— Porque queres saber? — Não era uma pergunta real, apenas uma tática
para tentar ganhar tempo enquanto decidia o que havia de fazer: aquilo que
devia fazer, ou aquilo que queria.
Resultou. Dylan ficou em silêncio enquanto pensava.
— Porque, bom... porque, na verdade a culpa é minha. Estás aqui por
minha causa e se eu tivesse andado mais depressa, ou se tivesse aguentado o
sol mais tempo, ou o fizesse brilhar com mais força, então... então nunca teria
acontecido.
Tristan parecia surpreendido, e estava. Não era a resposta que esperava.
Julgara que o motivo seria mera curiosidade sobre este mundo — aquela
necessidade humana de saber tudo. Mas era porque se preocupava com ele.
Sentiu um calor no peito e soube que a sua decisão estava tomada.
— Não me disseste que eles podiam fazer-te mal — continuou ela
baixinho, com um brilho solidário nos olhos verdes.
— Sim — respondeu ele. — Não conseguem matar-me, mas conseguem
tocar-me.
— Conta-me o que te aconteceu. — Era uma exigência embrulhada em
veludo, e ele não conseguiu resistir mais.
— Eles estavam por todo o lado, e tu ficaste paralisada. Percebi que não
conseguias mexer-te, e tinhas de correr.
Dylan acenou afirmativamente. Lembrava-se dessa parte. Corou,
envergonhada com a memória. Se tivesse corrido logo, se tivesse sido mais
corajosa e não se deixasse paralisar pelo medo, talvez ambos tivessem
conseguido salvar-se.
— Empurrei-te e pareceu-me que estavas a despertar do teu transe. Depois,
quando começámos a correr, pensei que íamos conseguir. — Fez uma careta,
embaraçado. — Não tive intenção de te soltar a mão — murmurou.
Dylan mordeu o lábio, com o sentimento de culpa a subir dentro dela como
náusea. Ele sentia-se mal, estava a culpar-se a si próprio, quando a culpa fora
toda dela.
— Tristan... — tentou interromper, mas ele silenciou-a com um gesto.
— Desculpa, Dylan. Desculpa ter-te soltado. Assim que eles viram que eu
não estava a segurar-te, rodearam-me, colocando-se entre nós. Não consegui
libertar-me para te apanhar. Depois vi que estavas a correr, mas a casa ainda
era longe. Não ias conseguir. — Os seus olhos tinham agora um ar distante,
como se estivesse a reviver o momento. O trejeito dos seus lábios disse a
Dylan que era uma memória dolorosa. O sentimento de culpa intensificou-se
ao perceber que as suas perguntas estavam a magoá-lo novamente. Começou
a questionar os seus motivos. Seria apenas curiosidade? Esperava que não.
— Os demónios estavam por todo o lado — continuou ele. — Tu não
consegues tocar-lhes, mas eu consigo. Sabias disso?
Ela abanou a cabeça, incapaz de falar, sem querer interrompê-lo.
— Corri atrás de ti e puxei tantos quantos consegui. Não fui capaz de os
apanhar a todos; nunca os tinha visto em tão grande número. Não estava a
resultar. Embora consiga tocar-lhes, não consigo fazer-lhes mal. Sempre que
os afastava, eles davam a volta e atacavam de outro ângulo.
Neste ponto interrompeu-se e pareceu estar a debater qualquer coisa
consigo próprio. Dylan não percebeu se estava a tentar decidir se havia de lhe
contar alguma coisa, ou apenas à procura de uma forma de o dizer. Esperou
pacientemente. Tristan ergueu os olhos para o céu. Como se tivesse
encontrado aí a resposta, fez um aceno seco e suspirou.
— Há certas coisas que eu posso fazer nas terras perdidas... coisas que não
são normais, coisas que talvez considerasses magia.
Dylan prendeu a respiração; era o tipo de confissão de que estava à espera,
algo que desse sentido a tudo isto.
— Conjurei um vento. — Fez uma pausa e Dylan franziu a testa, confusa.
Não tinha reparado nisso. — Não o sentiste; era só para os demónios.
— Conjuraste um vento? — perguntou, atónita. — Consegues fazer isso?
Tristan fez uma careta.
— Não é fácil, mas consigo.
— Como assim, não é fácil?
— Requer muita energia e deixa-me esgotado, mas resultou. Eles foram
soprados de um lado para o outro e não conseguiam agarrar-te. — Suspirou.
— Mas não demoraram muito tempo a perceber o que o estava a causar. A
maioria dos demónios deu meia-volta e começou a atacar-me a mim.
— Devias ter parado — atalhou Dylan. — Devias ter parado o vento e... e
lutado com eles, ou...
Tristan abanou a cabeça e interrompeu-a.
— Tinha de me certificar de que tu estavas em segurança. Nas terras
perdidas, tu és a minha principal prioridade. — Sorriu ao ver a expressão
horrorizada no rosto dela. — Eu não posso morrer, e o meu dever é proteger
sempre primeiro a alma, e só depois a mim próprio.
Dylan acenou com a cabeça. Claro que ele não estava a colocar-se em risco
especialmente por ela. Era o seu trabalho.
— Eles tentaram atacar-me, rasgando-me com as garras e voando contra
mim. Não conseguem atravessar-me como fazem contigo. Ainda havia alguns
à tua volta, mas estavas tão perto da casa. Consegui empatá-los até ver que
tinhas cruzado o limiar, mas depois concentraram-se todos em mim, e eram
demasiados. Arrastaram-me para baixo.
Dylan visualizou a cena enquanto ele falava. Os demónios a mergulharem
sobre ele, contornando-o ferozmente, puxando-o e arranhando-lhe o rosto.
Imaginou-o a tentar defender-se, a abanar os braços, a tentar fugir. Viu os
demónios a envolvê-lo num enxame, agarrando-o cada vez com mais força e
puxando-o para baixo, para o solo. Embora, mesmo na sua imaginação, ele
estivesse demasiado longe para o ver, conseguia imaginar claramente a sua
expressão: uma máscara de terror e pânico no rosto, olhos arregalados e boca
aberta num grito mudo de horror. O sangue a escorrer-lhe pelo rosto até ao
olho esquerdo, onde um dos demónios lhe acertara. Na sua mente, viu Tristan
desaparecer lentamente. Quanto o teriam magoado? Quanta dor haveria em
cada golpe, em cada garra? E ele passara por tudo isso por ela.
— A última coisa que ouvi foi a tua voz a chamar por mim. Tentei afastá-
los e ir ter contigo, mas eram demasiados. Pelo menos soube que estavas em
segurança. — Olhou para ela e os olhos azuis trespassaram-na.
Dylan conseguiu apenas olhar também para ele, deslumbrada e perdida,
perdida na profundidade dos seus olhos. Naturalmente, tropeçou nas ervas e
caiu.
— Oh! — exclamou, tombando para a frente. Fechou os olhos e esperou
pela pancada, mas esta não aconteceu. Tristan esticou rapidamente a mão e
agarrou-a pelas costas do casaco, travando-lhe a queda quando estava quase a
bater no chão. Abriu os olhos e observou o caminho. Tal como pensava:
molhado e lamacento. Mal conseguira soltar um suspiro de alívio quando ele
a puxou para cima. Tristan esforçou-se por não se rir, sem grande sucesso.
Dylan endireitou as costas e afastou-se com a pouca dignidade que lhe
restava. Ouviu o riso dele intensificar-se.
— És tão desastrada — brincou ele, apanhando-a com facilidade. Dylan
levantou o queixo e continuou a andar, rezando para não tropeçar outra vez.
— Bom, não admira. Olha para este lugar! As terras perdidas não podiam
ser pavimentadas? — protestou ela, tentando controlar a irritação.
Tristan encolheu os ombros.
— A culpa é tua, lembra-te disso... foste tu que as fizeste assim.
Dylan fez uma careta.
— Detesto caminhadas — resmungou. — E detesto colinas.
— Mas os escoceses não se orgulham tanto das suas colinas? — Lançou-
lhe um olhar divertido.
Agora era a vez de ela encolher os ombros.
— O nosso professor de Educação Física enfiava-nos num autocarro, todos
os anos, levava-nos até ao campo e obrigava-nos a escalar montanhas com
um frio desgraçado. Era uma autêntica tortura. Não sou grande fã de
escalada.
— Ah, estou a ver. — Tristan sorriu. — Bom, vais gostar de saber que já
vamos a mais de metade do caminho. Em breve sairás daqui. — Tencionava
animá-la com a notícia, mas Dylan ficou um pouco abatida ao ouvi-la.
E depois? O que havia para além daquelas terras perdidas? E significaria
isso que nunca mais voltaria a ver Tristan? Esse pensamento era mais aflitivo
do que o medo do desconhecido. Tristan tornara-se a única pessoa no seu
mundo, e não suportava a ideia de perder esta última coisa.
Perdida nos seus pensamentos, chegou ao cimo da colina e, depois de
passarem por cima de algumas pedras, encontraram uma pequena reentrância
natural. O local perfeito para um descanso. Olhou para Tristan com ar
esperançoso e ele sorriu de forma compreensiva, mas abanou a cabeça.
— Hoje não — disse-lhe.
Dylan fez beicinho e olhou para ele com petulância.
— Desculpa — continuou ele. — Não temos tempo, Dylan. Não quero que
sejamos novamente apanhados.
Estendeu a mão num convite mudo. Dylan fitou-a, abatida, mas ele estava
certo. Tinham de tentar ser mais rápidos do que a noite e os espetros que esta
trazia. Não queria que Tristan sofresse mais por causa dela. Assim, pegou na
mão que ele lhe estendia. Estava coberta de arranhões e nódoas negras,
espelhando as marcas agora desvanecidas nos braços dela. Saíram da
reentrância abrigada e ela sentiu a força do vento a assobiar-lhe aos ouvidos,
de tal forma que quase não conseguiram conversar durante a descida. Dylan
estava com esperança de conseguir persuadir Tristan a contar-lhe o que se
passara debaixo da terra, mas parecia que tinha de esperar por um momento
mais tranquilo. Não era história para se contar aos gritos, por cima do vento.
Além do mais, embora estivesse desesperada por saber o que acontecera a
seguir, tinha medo de descobrir que mais ele fora obrigado a suportar. Por
ela.
DEZASSEIS

Felizmente, chegaram à casa segura seguinte bem antes de o Sol se pôr. Era
outra casinha de pedra e Dylan começou a questionar se o aspeto das casas
seguras faria parte da sua projeção. Seriam a sua ideia de santuário, de lar?
Tentou pensar onde podia ter feito essa ligação. O apartamento onde vivia —
onde vivera — com Joan ficava num prédio de pedra vermelha rodeado por
uma série de edifícios idênticos. A avó vivera no campo antes de morrer, mas
numa vivenda moderna, com jardins muito bem arranjados e enfeitados com
leões e gnomos de pedra ridículos. Não se lembrava de mais lado nenhum
que lhe fizesse lembrar um lar.
Exceto... bom, o pai mencionara a casa dele ao telefone. Uma pequena
casinha de pedra, dissera ele. Antiquada, com espaço apenas para ele e Anna,
a cadela. Seria esta a imagem que a sua mente estava a conjurar desse local?
Talvez o subconsciente estivesse a tentar dar-lhe um pouco daquilo que
esperara ter, mas nunca conseguira alcançar. Por um momento, imaginou a
porta a abrir-se e um homem a sair. Era atraente, forte e com uma expressão
bondosa. Sorriu perante esse pensamento, mas depois apercebeu-se de que
não passava disso mesmo. Nunca vira sequer uma fotografia do pai, não se
lembrava de como ele era antes de as deixar. Abanou a cabeça para afastar
aqueles pensamentos difíceis e seguiu Tristan até à porta.
Embora ligeiramente degradado, havia algo de reconfortante naquele
espaço — era quase como chegar a casa depois de uma viagem longa e dura.
A porta era de carvalho maciço, gasta pelas intempéries mas forte. As janelas
estavam cobertas do tipo de sujidade que se acumula com a exposição
prolongada ao tempo feroz da Escócia, mas eram de madeira e pareciam em
bom estado. Não havia jardim, mas um pequeno caminho de pedra levava à
porta. Entre as fendas, espreitavam ervas daninhas e relva, mas ainda não
tinham reclamado completamente o terreno.
Por dentro, a casa não parecia tão abandonada e desorganizada como as
anteriores, e Dylan pensou se isso se deveria ao facto de ela estar a ficar mais
à vontade nas terras perdidas. Havia uma cama com uma mesinha ao lado, em
cima desta uma vela grande, e ainda uma velha cómoda. No meio da divisão
havia uma mesa com cadeiras, em frente da lareira, e do outro lado uma
pequena cozinha com um lava-loiça lascado e sujo. Dylan aproximou-se,
olhou para as torneiras antiquadas e perguntou-se se funcionariam. Ainda
tinha as calças de ganga cobertas de lama e o casaco cinzento de fecho de
correr que escolhera em casa, antes de toda esta loucura começar, estava
coberto de nódoas, manchas de lama e pequenos rasgões. Nem sequer queria
pensar em como estaria a sua cara.
Embora as torneiras estivessem enferrujadas e o lava-loiça sujo de lama,
Dylan estava otimista quando rodou a torneira da água fria. Ao princípio não
aconteceu nada, mas depois ouviu um rangido e um gorgolejar. Recuou,
desconfiada, precisamente quando a torneira deitou um jorro de água
castanha. Após alguns segundos, o fluxo estabilizou num fio de água que
parecia bastante límpida.
— Oh, sim! — exclamou Dylan, ansiosa por poder lavar-se pela primeira
vez em vários dias. Experimentou a torneira de água quente, que deitou
também água turva durante alguns segundos antes de se tornar limpa, mas
não aquecia. Molhou a cara, estremecendo com o frio. Divertida, encheu as
mãos de água e virou-se para a atirar a Tristan. Depois estacou abruptamente,
com a água a escorrer entre os dedos para o chão de pedra. A casa estava
vazia.
— Tristan! — gritou, em pânico. A porta estava aberta e, embora ainda
houvesse luz, a noite aproximava-se rapidamente. Atrever-se-ia a sair? Não
podia ficar outra vez sozinha. Esse pensamento foi o que a decidiu. Começou
a andar precisamente quando Tristan apareceu à porta.
— O que foi? — perguntou ele com ar inocente.
— Onde diabo te enfiaste? — exigiu Dylan saber, com o alívio a
transformar-se rapidamente em raiva.
— Estava aqui fora. — Olhou para o rosto aflito dela. — Desculpa. Não
queria assustar-te.
— Eu... fiquei preocupada, só isso — murmurou, sentindo-se agora
estúpida. Virou-se e apontou para o lava-loiça atrás de si. — As torneiras
aqui funcionam.
Tristan fez um meio sorriso e olhou para a porta.
— Ainda temos vinte minutos de luz. Eu fico aqui fora para te dar um
pouco de privacidade. Não me afasto da porta — prometeu. — Podes ir
falando comigo. — Sorriu de forma tranquilizadora e voltou a sair.
Dylan aproximou-se da porta e espreitou lá para fora. Ele estava sentado
numa pedra. Ergueu os olhos e viu-a a olhar para ele.
— Podes fechar a porta, se quiseres. Mas prometo não espreitar, se
preferires deixá-la aberta. — Piscou o olho e Dylan ficou constrangida.
Sem sair de onde estava, imaginou lavar-se — e estava desesperada por se
lavar como devia ser — com a porta aberta e ele ali tão perto. Constrangedor.
Mas depois pensou em fechar a porta e ficar sozinha lá dentro. O terror de ser
abandonada ainda estava demasiado fresco. O mero pensamento fazia-lhe o
coração palpitar de medo. Encostou a porta, apenas para ocultar o rosto
sorridente de Tristan, mas sem a fechar completamente. Pelo sim, pelo não.
Sem afastar os olhos da porta, despiu-se rapidamente e, com uma lasca de
sabão que encontrou no lava-loiça, começou a lavar-se o mais depressa
possível. A água estava gelada, e pensou em chamar Tristan para acender a
lareira, mas sabia que quando ele acabasse já seria de noite e ambos teriam de
ficar dentro de casa. Cerrou os dentes para os impedir de bater e tentou ser
minuciosa e rápida. Depois não havia outra opção senão tornar a vestir as
roupas sujas. Dylan franziu o nariz enquanto enfiava as calças cobertas de
lama. Estava a vestir a t-shirt quando Tristan bateu à porta. Embora a t-shirt
fosse larga e nada transparente, Dylan pegou no casaco cinzento e vestiu-o à
pressa, puxando o fecho até acima.
— Já está? — Ele enfiou a cabeça na porta. — É só porque está a
escurecer.
— Já estou despachada — murmurou ela.
Tristan entrou e fechou firmemente a porta.
— Vou acender a lareira.
Dylan assentiu, agradecida. Ainda estava a tremer por causa da água
gelada. Mais uma vez, ele demorou pouquíssimo tempo até as chamas
rugirem sobre a grelha. Levantou-se e observou-a.
— Como te sentes? Melhor?
Ela acenou afirmativamente.
— Só gostava de ter uma muda de roupa limpa — suspirou.
Tristan sorriu e aproximou-se da cómoda.
— Há aqui algumas coisas. Não sei se serão do tamanho ideal, mas
podíamos tentar lavar as tuas roupas, se quiseres. Toma. — Atirou-lhe uma t-
shirt e umas calças de fato de treino. Eram um pouco grandes, mas a
perspetiva de lavar as suas roupas era muito atraente.
— Não há roupa interior, lamento — acrescentou Tristan.
Dylan refletiu um pouco e decidiu que passar sem roupa interior por uma
noite era um pequeno preço a pagar para poder vestir roupa limpa no dia
seguinte. Contudo, tinha de mudar de roupa e estava demasiado escuro para
pedir a Tristan que saísse. Saltitou de um pé para o outro, apertando as roupas
contra o peito. Tristan apercebeu-se do desconforto dela.
— Eu vou para ali — disse, atravessando a divisão até estar junto do lava-
loiça. — Podes mudar de roupa ao pé da cama. — Virou-se para a pequena
janela da cozinha. Dylan correu para a cama e, depois de olhar rapidamente
para Tristan, despiu-se o mais depressa que conseguiu.
Tristan não tirou os olhos da janela, mas a escuridão lá fora e a luz da
lareira transformavam o vidro num espelho. Viu Dylan despir primeiro o
casaco, depois tirar a t-shirt por cima da cabeça. A sua pele era lisa e pálida, e
os ombros fortes estreitavam para uma cintura delicada. Quando ela despiu as
calças de ganga, Tristan fechou os olhos, tentando conservar algum vestígio
de cavalheirismo. Contou mentalmente até trinta — devagar, fazendo
coincidir cada número com uma inspiração — e quando voltou a abrir os
olhos, ela estava vestida com as roupas demasiado grandes, a olhar para as
costas dele. Virou-se e sorriu.
— Ficam-te bem — comentou.
Ela corou e puxou a t-shirt. Sentia-se embaraçada por não ter soutien e
cruzou os braços sobre o peito.
— Queres ajuda para lavar a roupa? — ofereceu ele.
Dylan arregalou os olhos, aterrada com o pensamento de ele ver a sua
roupa interior puída. Oh, porque é que não morrera num conjunto
maravilhoso da Victoria Secret?
— Não é preciso, obrigada. — Pegou nas roupas sujas que deixara em cima
da cama e apertou-as contra o corpo enquanto se dirigia ao lava-loiça,
tentando esconder o soutien e as cuecas no centro da trouxa. Atirou tudo para
cima do balcão e passou cinco minutos a esfregar o lava-loiça com um velho
esfregão para tentar limpar a lama, antes de desenrolar a corrente enferrujada
e tapar o ralo. Abriu ambas as torneiras no máximo — embora a água da
torneira de água quente continuasse gelada —, mas o fluxo era fraco. Ia
demorar imenso tempo a encher o lava-loiça.
Enquanto esperava, o calor da lareira atraiu-a para o meio da sala. Tristan
já estava sentado numa das cadeiras, confortavelmente recostado, com os pés
em cima de um banco. Dylan sentou-se na outra e puxou os joelhos até ao
peito. Pôs os braços à volta das pernas e olhou para Tristan. Estava na altura
de ouvir o resto da história.
— Então — disse, baixinho.
Ele olhou para ela.
— Então?
— Conta-me o resto, Tristan.
Tristan sentiu um arrepio pela forma como ela disse o seu nome.
— O que aconteceu quando te puxaram para baixo?
Ele olhou para as chamas, mas Dylan sentiu que não estava a vê-las; estava
novamente lá fora, com os demónios.
— Estava escuro. — Falou em voz baixa, em tom hipnótico, e Dylan
conseguiu imediatamente visualizar tudo o que ele descrevia. — Puxaram-me
através do solo e não conseguia respirar. A terra encheu-me a boca e o nariz.
Se não soubesse que era impossível, julgaria estar a morrer. Pareceu durar
para sempre, a descer, a descer, cada vez mais fundo. Por fim, a força dos
demónios puxou-me através de algo e comecei a cair. Eles estavam
novamente a arranhar-me, a cacarejar um riso deliciado e a esvoaçar rente a
mim, fazendo-me dar cambalhotas e piruetas no ar. Depois bati em qualquer
coisa, uma coisa dura. Senti-me como se tivesse partido todos os ossos do
corpo. Não parti, claro, mas a dor... nunca senti nada assim. Os demónios
envolveram-me e não conseguia sequer defender-me. — Tristan interrompeu-
se e olhou para a cozinha. — O lava-loiça está quase a transbordar.
Precisava de fazer uma pausa, de organizar os pensamentos. Aquilo
desconcertava-o. Tristan nunca tinha sido apanhado antes, nunca fora
dominado pelos demónios. Dissera a Dylan que a prioridade era proteger a
alma, e era verdade, mas apenas até um certo ponto. A autopreservação
levava sempre a melhor e, assim, às vezes perdiam-se almas. Mas não esta
alma. Sacrificar-se-ia a si próprio para a manter em segurança; estas dores
eram um pequeno preço a pagar.
— Oh! — Dylan estava tão fascinada pelas palavras dele e pela expressão
dos seus olhos que se esquecera da água a correr. Saltou da cadeira e, com
alguma dificuldade, fechou as torneiras enferrujadas. Mergulhou o sabão no
lava-loiça e esfregou-o vigorosamente entre as mãos, para tentar fazer alguma
espuma. Depois de estar satisfeita, mergulhou as roupas na água e deixou-as
de molho, voltando para a cadeira em frente de Tristan. Fitou-o com ar
expectante.
Ele sorriu.
— Como conseguiste escapar? — perguntou ela.
— Foste tu — respondeu ele.
— O quê? — Dylan fitou-o, estupefacta.
— Tu precisavas de mim. Isso trouxe-me de volta. Na verdade, não sabia
que era possível... nunca tinha acontecido... mas tu chamaste-me. E eu ouvi.
Ouvi e, quando dei por mim, estava novamente à entrada do vale. Salvaste-
me, Dylan. — Olhou para ela com carinho e estupefação.
Dylan abriu a boca, mas o choque roubou-lhe as palavras. Teve uma súbita
memória de estar encolhida no chão, encostada à porta, a chorar por Tristan.
Teria sido isso?
— Porque demoraste tanto tempo? — murmurou. — Esperei por ti o dia
inteiro.
— Desculpa — murmurou ele baixinho. — Quando dei por mim, estava do
lado oposto do vale. Eu... — agitou-se, pouco à vontade. — Custava-me um
bocadinho a andar. Demorei o dia todo a chegar junto de ti.
— Fiquei tão contente quando te vi. Estar sozinha foi aterrorizador. Mas,
mais do que isso... — Dylan corou e olhou para as chamas. — Estava com
medo de que estivessem a fazer-te mal, onde quer que estivesses. E estavam.
— Esticou a mão para lhe tocar no rosto ferido, mas ele desviou-se.
— Temos de tirar as tuas roupas da água, caso contrário não estarão secas a
tempo — disse.
Dylan baixou rapidamente a mão para o colo. Olhou para os joelhos, com
as faces em brasa e o estômago às voltas. Tristan viu o embaraço e a dor da
rejeição no rosto dela e sentiu uma pontada de remorso. Abriu a boca para
dizer qualquer coisa, mas Dylan já estava junto ao lava-loiça, a esfregar
vigorosamente as roupas para esconder a humilhação.
Grata por ter uma tarefa que a obrigava a não olhar para ele, Dylan
espremeu meticulosamente cada gota de água da roupa.
— Eu ajudo-te a pendurá-las. — Tristan aproximara-se por trás dela e a sua
voz junto ao ouvido fê-la dar um salto e deixar cair o soutien no chão de
pedra. Ele baixou-se para o apanhar, mas ela foi mais rápida.
— Obrigada, mas não é preciso — murmurou, passando por ele.
Não havia corda ou suporte para as roupas, por isso Dylan virou as cadeiras
e pendurou as roupas nas costas e braços das mesmas para secarem junto à
lareira. Tentou encontrar um sítio discreto para pendurar as cuecas, mas
acabou por desistir e colocou-as num sítio onde tinha a certeza que secariam.
Com as cadeiras ocupadas, não tinham onde se sentar a não ser a cama.
Tristan já lá estava, recostado numa pose indolente e a olhar para ela com
uma expressão estranha no rosto.
Na verdade, estava a lutar com a sua consciência. Dylan era apenas uma
criança — em comparação com ele, pouco mais do que um bebé, na
realidade. Os sentimentos que tinha por ela eram inapropriados, errados. Por
outro lado, seria ele assim tão mais velho do que ela, quando vivia num
mundo onde nunca realmente vivera, nunca crescera? E o que é a idade,
quando se pensa e sente para a eternidade? Mesmo assim, como seu protetor,
estaria a aproveitar-se da vulnerabilidade dela se manifestasse os seus
sentimentos, independentemente da questão da idade.
Ela também sentia algo por ele — parecia-lhe vê-lo nos seus olhos. Mas
podia estar enganado. Podia ser apenas o medo de ficar sozinha. A confiança
que ela depositava nele podia derivar apenas da necessidade — que mais
podia ela fazer? Talvez a sua necessidade de estar perto dele, de lhe tocar,
fosse apenas o anseio por conforto que uma criança sente quando tem medo.
Mas ele não tinha a certeza.
Havia ainda uma última consideração a ter em conta, e era definitiva. Ele
não podia segui-la para onde ela ia. Teria de a deixar na fronteira ou, mais
precisamente, ela teria de o deixar. Se Dylan sentia realmente alguma coisa
por ele, dar-lhe agora o que em breve teria de lhe tirar seria cruel. Não a faria
passar por isso. Não podia mostrar o que sentia. Olhou para ela, viu aqueles
olhos verdes, escuros como a floresta, a fitá-lo também, e sentiu um nó na
garganta. Era o seu guia e protetor. Nada mais. Ainda assim, podia confortá-
la. Pelo menos podia fazer isso. Sorriu e estendeu os braços.
Dylan aproximou-se timidamente e subiu para a cama, enroscando-se ao
lado dele. Distraidamente, Tristan acariciou-lhe o braço, causando-lhe um
arrepio interior. Apoiou a cabeça no ombro dele e sorriu. Como era possível
que aqui, no meio de todo este caos e medo, depois de ter perdido
absolutamente tudo, ela se sentisse subitamente... completa?
DEZASSETE

— Conta-me alguma coisa — pediu Dylan em voz rouca por estarem há


tanto tempo sentados num silêncio confortável.
— O que queres saber? — perguntou ele, arrancado aos seus pensamentos.
— Não sei. — Fez uma pausa pensativa. — Fala-me sobre a alma mais
interessante que já conduziste.
Ele riu-se.
— És tu.
Dylan deu-lhe uma cotovelada.
— Estou a falar a sério.
Eu também, pensou ele, mas tentou recordar-se de uma história para a
entreter. Sabia muito bem quão longas as noites podiam ser quando não se
dormia.
— Está bem. Uma vez, conduzi um soldado alemão da Segunda Guerra
Mundial. Tinha sido morto a tiro pelo comandante por desobedecer a uma
ordem.
— Porquê? — quis saber Dylan. O seu conhecimento de História não era
muito bom (optara por Geografia na escola) e não estava a ver como podia
um soldado alemão ser interessante. Se fosse ela, talvez se sentisse tentada a
deixar os demónios ficarem com ele.
— Trabalhava num campo de concentração na Polónia. Não era muito
importante, nada disso, só um soldado vulgar. Tinha apenas dezoito anos. Um
desperdício tão grande.
— O quê? — Dylan não queria acreditar no que ouvia. Tristan teria mesmo
sentido pena deste soldado? — Como conseguiste conduzi-lo, sabendo o que
ele tinha feito?
— Estás a julgá-lo. Os barqueiros não podem deixar-se levar por esses
estereótipos. Cada alma é individual e tem os seus próprios méritos e
defeitos. — Dylan não parecia muito convencida. — Ele alistara-se nas
Forças Armadas porque o pai lhe dissera que desonraria a família caso não
combatesse pela glória da nação. Foi destacado para um campo de
concentração onde viu judeus serem espancados, violados, mortos à fome.
Um dia, o seu superior ordenou-lhe que matasse um velho que tropeçara e,
sem querer, tocara no oficial. O soldado recusou-se. Então o superior matou o
pobre velho e depois mandou fuzilar o soldado nesse mesmo dia.
Dylan olhou para ele, cativada pela história. Tinha os olhos muito abertos e
as sobrancelhas franzidas. O seu desdém transformara-se em pena e
admiração.
— Encontrámo-nos junto aos portões do campo. Ele estava realmente
aliviado por poder escapar, por sair dali. Só conseguia pensar nas coisas que
não pudera impedir. Estava destruído pela culpa. Arrependia-se de não ter
feito frente ao pai, de não ter recusado alistar-se. De não ter protegido mais
inocentes. Por vezes, desejava até nunca ter nascido. Eu nunca tinha visto
uma alma tão desesperada por motivos tão altruístas. Soldado nazi ou não, foi
a alma mais nobre e admirável que já encontrei.
Dylan ficou em silêncio quando ele terminou a história. Estava fascinada,
com um turbilhão de imagens, pensamentos e emoções a rodopiar-lhe na
mente.
— Conta-me outra — pediu. E passaram a noite assim. Tristan entreteve-a
com histórias dos milhares de almas que guiara, selecionando as que a fariam
rir, ou sorrir, ou ficar maravilhada, e guardando para si as que ainda lhe
partiam o coração. Nenhum dos dois se apercebeu da chegada dos primeiros
raios da aurora, mas depois o Sol brilhou, glorioso, e fez Tristan sorrir
tristemente.
— Mais caminhada — resmungou Dylan quando ele saiu da cama e a
puxou.
— Sim — respondeu, com um sorriso. — Mas hoje não há escalada.
— A sério?
— Tirando uma pequena colina que mal é digna desse nome, o resto do
caminho é plano. Mas húmido. — Franziu o nariz.
— Mais pântanos? — queixou-se Dylan, sem conseguir disfarçar o tom
lamuriento da voz. Odiava a lama que sujava tudo e lhe prendia os pés.
— Não é lama... é água.
— Espero que não estejas a pensar em nadar — murmurou ela, dirigindo-se
à lareira agora quase apagada para ver as roupas. Embora não estivessem
muito limpas, estavam secas e ainda mornas. Virou-se para Tristan e apontou
para a porta. — Rua! — ordenou.
Ele revirou os olhos, mas inclinou a cabeça numa vénia obediente e saiu.
Dylan fechou firmemente a porta antes de despir as roupas emprestadas e
voltar a vestir as suas. Estavam tesas por causa do calor da lareira, mas sabia
bem usar roupa lavada. Quase se sentia novamente humana. Ou, pelo menos,
acabada de morrer, pensou com uma risada.
Depois de se vestir, lavou a cara e o pescoço no lava-loiça. Encheu a mão
de água e olhou para ela. O que aconteceria se a bebesse? Olhou para a porta,
mas ainda estava fechada. Podia perguntar a Tristan, mas ele provavelmente
rir-se-ia dela. Olhou novamente para a água. Embora não sentisse sede,
lembrava-se de como era beber, do sabor refrescante, da sensação da água
fresca a descer pela garganta e a cair no estômago vazio, fazendo-a
estremecer. Inclinou-se para a frente e abriu a boca, pronta para experimentar.
— Se fosse a ti, não fazia isso.
A voz de Tristan sobressaltou-a. Deu um salto e entornou a água sobre a
parte da frente do casaco.
— Raios! Quase me causaste um ataque cardíaco! — Fez uma pausa para
recuperar o fôlego. — Porque não posso beber?
Ele encolheu os ombros.
— Ficarias maldisposta e a vomitar. É tóxica. Vem de um poço muito
fundo, e como sabes os espetros vivem debaixo do chão. Eles envenenam a
água.
— Oh! — Dylan fechou a torneira. — Bom, nesse caso, obrigada.
— Não tens de quê.
O seu sorriso era caloroso e genuíno, e fez o coração dela saltar um
batimento. Contudo, com igual rapidez, pareceu ficar-lhe congelado no rosto
e ele virou-se. Confusa, Dylan saiu silenciosamente atrás dele.
Embora o sol estivesse forte, uma brisa fria soprava-lhe contra as costas,
agitando-lhe suavemente o cabelo. Olhou para o céu de testa franzida para lhe
ralhar pelo vento frio, mas foi recompensada apenas por um manto de nuvens
escuras que rapidamente encobriram o sol. Concentrou-se em acompanhar
Tristan, que estava a impor um ritmo acelerado através de um prado relvado.
Pouco depois, ele parou e apontou.
— Bom, aqui está ela. A tua última subida.
Dylan seguiu a direção do dedo dele com os olhos e fez uma careta,
aborrecida.
— «Uma colina que mal é digna desse nome»? — imitou. — Mentiroso! É
enorme!
A colina parecia mais uma montanha. A encosta não subia gentilmente; era
antes uma escarpa agreste com grandes formações rochosas. Dylan lembrou-
se da tentativa desastrosa de Joan para a fazer gostar da vida ao ar livre,
quando a levara numa viagem à montanha Cobbler. Dissera-lhe que seria
mais divertido subirem pela encosta dianteira, uma parede de granito com
trilhos de gravilha estreitos e escorregadios, do que pelo caminho suave e
panorâmico do outro lado. Dylan escorregara nas pedrinhas, esfolara a canela
numa rocha grande e afiada e insistira para voltar imediatamente para casa.
Esta subida não parecia muito melhor.
— Não podemos ir à volta? — perguntou, com um olhar esperançoso.
— Não — respondeu ele com um sorriso.
— E que tal às cavalitas? — sugeriu ela, mas o pedido caiu em saco roto.
Apesar das suas lesões, Tristan atravessou o restante prado sem coxear.
Dylan já reparara que a cara dele estava a cicatrizar rapidamente. Na verdade,
o inchaço à volta do olho era agora apenas uma leve coloração arroxeada na
maçã do rosto. O queixo já não estava às cores, mostrando somente a leve
sombra amarela da nódoa negra a desaparecer.
Dylan correu atrás dele quando chegaram ao sopé da colina, pouco tempo
depois. A subida era tão agreste que até a relva desistira ao fim de alguns
metros. Daí para cima era apenas terra, gravilha e rochas. Aqui e ali, uma
planta mais resistente conseguia nascer entre os pedregulhos, mas, exceto
isso, era terreno inóspito e árido.
Pouco depois, os músculos das pernas de Dylan ardiam com o esforço de
escalar uma encosta tão íngreme. Embora fossem velhos e confortáveis, os
ténis fizeram-lhe uma bolha no calcanhar em sinal de protesto contra o
ângulo invulgar. Mais ou menos a meio, a encosta tornou-se ainda mais
íngreme e viu-se obrigada a usar as mãos para ajudar na escalada. Tristan
insistiu para que ela fosse à frente. Dizia que era para a segurar, caso ela
caísse, mas Dylan desconfiava que ele gostava apenas de a ver atrapalhada.
— Estamos quase lá — disse ele, um metro mais abaixo. — Confia em
mim, quando chegarmos lá acima a vista vai valer a pena.
— Uma ova — resmungou ela entre dentes. Doíam-lhe os braços e as
pernas e tinha os dedos feridos e sujos de terra. Içou-se mais alguns metros,
até uma pequena plataforma, e parou para recuperar o fôlego. Como uma
tola, olhou para baixo e susteve a respiração. A encosta descia abruptamente
sob os seus pés e o prado ficava muito, muito lá em baixo. Cambaleou, tonta
com vertigens, e gemeu quando sentiu o estômago dar uma volta.
— Não olhes para baixo — ordenou Tristan rispidamente, um pouco
abaixo dela, enquanto a via empalidecer. Estava diretamente na linha de fogo,
caso ela vomitasse. Mas não era só isso: se caísse aqui, se rebolasse por esta
encosta acidentada... seria o fim. Morreria. E desta vez ficaria morta para
sempre. Tal como um caracol sem casca, a alma dela era tão vulnerável nas
terras perdidas como o seu corpo fora no mundo real. — Vá, continua! Juro
que estamos quase lá.
Dylan não parecia muito convencida, mas virou-se de novo para a rocha e
continuou a escalar. Não demorou muito a dar por si no cume. Deixou-se cair
em cima de algumas urzes, ofegante. Tristan apareceu instantes depois e
parou de pé junto a ela, sem sequer ter a respiração acelerada. Dylan fitou-o,
irritada. Ele ignorou-a e acenou com a cabeça na direção do horizonte.
— Vês, bem te disse que valia a pena.
Dylan soergueu-se sobre os cotovelos e olhou para a distância. A paisagem
do outro lado da colina tremeluzia, como um milhão de diamantes a
cintilarem ao sol. Semicerrou os olhos, tentando compreender o que estava a
ver. Era como se a superfície reluzente estivesse a ondular. O seu cérebro
confuso tentou aplicar lógica ao que os olhos viam. Ah, água. Era um lago —
um lago gigante que se estendia a sul da colina até onde a vista alcançava.
Era também largo, estendendo-se ao longo de quilómetros para leste e oeste.
Seria impossível contorná-lo, pois demoraria uma eternidade.
— Como é que vamos atravessar isto? — perguntou, estupefacta, quando
recuperou a voz.
— Não te preocupes, não é a nado. — Um sorriso divertido cruzou-lhe o
rosto. Dylan franziu a testa. Por que raio tinha ele de ser sempre tão cheio de
segredos? — Vamos, temos de seguir caminho.
— Argh — gemeu Dylan, sentando-se mesmo contra a vontade dos
músculos cansados. Pôs-se de pé e olhou para a descida. Parecia um pouco
melhor do que a subida, mas não muito. Deste lado, que era mais abrigado,
havia ervas e pequenos arbustos ao longo da encosta, por entre cascatas de
gravilha.
O curto repouso não fazia obviamente parte dos planos de Tristan, que
começou a descer com passo confiante e firme em direção ao lago, sem
sequer olhar para o chão sob os seus pés. Dylan seguiu-o, a deslizar e a
escorregar. Soltou um grito surpreendido quando deslizou cerca de dois
metros, de braços esticados para não cair. Tristan nem sequer olhou para trás,
mas abanou a cabeça, espantado por ela ser tão desastrada. Dylan deitou-lhe a
língua de fora. Tinha a certeza de que ele a poderia levar às cavalitas, se
realmente quisesse.
Ao fundo da colina, a água abria-se à frente deles. Era majestoso, com
pequenas ondas a movimentar a superfície sob a brisa. O lago estendia-se até
ao horizonte e parecia a Dylan estar quase a respirar. Tal como uma coisa
viva, a margem movia-se e murmurava, a água a lamber suavemente uma
estreita faixa de praia feita de pedrinhas pretas e brilhantes. Tirando isso, o
silêncio era total. Fantasmagórico. Não se ouvia o vento e, sem ele, Dylan
apercebeu-se subitamente da ausência de vida selvagem. Não havia gaivotas
a mergulhar sobre a água e a piar enquanto procuravam comida, nem patos a
chapinhar na água rasa. Era tudo muito vazio e, embora magnífico, o lago
deixou Dylan um pouco assustada.
Tristan virou à esquerda ao fundo do caminho de pedras e dirigiu-se a uma
pequena estrutura de madeira. Dylan nem se deu ao trabalho de fazer
perguntas, seguindo-o obedientemente. Era um barracão sem janelas, com o
telhado inclinado. Tristan chegou vários passos à frente dela e abriu duas
grandes portas, revelando o que lá estava dentro.
— Só podes estar a brincar — balbuciou Dylan, horrorizada.
Era um pequeno bote — se é que podia chamar-lhe assim — de madeira.
Em tempos estivera pintado de branco com uma risca vermelha e outra azul,
mas a tinta há muito desaparecera; restavam apenas alguns fragmentos para
comemorar a glória da sua juventude. Estava sobre um pequeno carrinho com
rodas, ao qual se encontrava presa uma corda enrolada. Tristan pegou na
corda com ambas as mãos e puxou. O barco avançou um pouco, com um
gemido sonoro das rodas enferrujadas. Depois virou-se, pôs a corda sobre o
ombro e continuou a puxar. Lentamente, o barco saiu do barracão. À luz do
dia parecia ainda menos seguro do que na penumbra do barracão. A madeira
encontrava-se podre em vários sítios, e algumas das tábuas estavam rachadas
de uma ponta a outra.
— Esperas que eu entre nesta coisa? — queixou-se Dylan.
— Sim — foi a resposta breve e, reparou Dylan com alguma satisfação,
ligeiramente ofegante.
Tristan puxou a embarcação até à beira da água e estendeu a mão.
— Todos a bordo!
Dylan parecia desconfiada.
— O barco ainda está preso ao carrinho.
Ele revirou os olhos.
— Não vamos voltar pelo mesmo caminho, pois não? Vou simplesmente
empurrar o barco para dentro de água até ficar a boiar e se soltar do carrinho.
Se preferires, podes esperar até ter água pela cintura para entrar.
Dylan franziu a testa e apertou os lábios, mas aproximou-se da beira da
água. Agora que estava mais perto, reparou em algo estranho. A água era
preta — não aquele preto que associamos a água durante a noite ou quando o
céu está escuro e encoberto, mas como se fosse feita de alcatrão, apenas mais
fluida. Queria enfiar a mão no lago e ver qual era a sensação, mas não se
atreveu. Por outro lado, Tristan estava a planear entrar na água para empurrar
o barco, portanto não podia ser nada muito venenoso. Esse pensamento
confortou-a enquanto se preparava para navegar naquele estranho lago.
Apoiou um pé na roda do carrinho sob o barco, agarrou-se à borda de
madeira e levantou a perna. Com o impulso, tombou para a frente e magoou o
ombro ao tentar impedir-se de bater com a cara no pequeno banco de
madeira. Endireitou-se com toda a dignidade que conseguiu e tentou
encontrar uma posição confortável no banco estreito. Só havia aquele, e não
fazia ideia onde Tristan tencionava sentar-se. Ou como manobraria o barco.
Ou, mais importante ainda, como o faria andar.
Assim que Tristan viu que ela estava equilibrada e em segurança, começou
a empurrar o barco para dentro de água. Era mais pesado com ela lá dentro, e
sentiu os músculos a arder com o esforço. A água negra estava gelada e
coisas invisíveis enrolaram-se-lhe aos tornozelos, prendendo-lhe os pés e
dificultando cada passo. Por fim, sentiu o bote libertar-se do carrinho e ficar a
flutuar à superfície. Apoiou-se na estrutura do carrinho e saltou agilmente
para dentro do barco. O movimento baloiçou violentamente a embarcação e
salpicou Dylan com gotas geladas. Ela gritou e agarrou-se aos dois lados do
pequeno bote, com os olhos fechados e a cara virada para se proteger da
água.
— Cuidado! — berrou.
— Desculpa — disse ele com um sorriso, sem parecer nada arrependido.
Deixou-se cair noutro banco que Dylan podia jurar que não estava ali há dois
segundos.
Olharam um para o outro por alguns instantes: um rosto aborrecido, o outro
divertido. O barco baloiçava na ondulação suave e o vento estava calmo.
Seria extremamente agradável, com o calor do sol a aquecê-los, se não fosse
a água negra debaixo deles.
DEZOITO

— Bom, isto é agradável — disse Dylan em tom sarcástico, para quebrar o


silêncio e pôr Tristan em movimento.
— Sim — suspirou ele, olhando para o lago.
Talvez uma pergunta direta tivesse melhor resultado, pensou.
— Tristan, como é que vamos chegar ao outro lado?
— Remamos — respondeu ele calmamente. Enfiou a mão debaixo do
banco de Dylan, que afastou rapidamente as pernas para o lado, e tirou dois
remos velhos.
Desta vez, Dylan tinha a certeza absoluta: os remos não estavam ali quando
ela entrara no barco. Tristan prendeu cada remo no respetivo encaixe de
ambos os lados do barco — de onde é que esses tinham aparecido? — e
baixou-os até à água escura. Primeiro, usou apenas um para virar o barco, e
depois começou a remar vigorosamente com os dois braços. Parou por um
instante para despir o casaco e Dylan admirou a forma como os seus
músculos se contraíam enquanto remava; o movimento esticava-lhe a t-shirt
fina de algodão sobre o peito. Manobrou o bote com confiança, as mãos a
segurar os remos com força e firmeza.
Dylan sentiu-se corar e teve dificuldade em controlar a vontade de se
agitar. Engoliu em seco e, quando ergueu o rosto, viu que ele estava a olhar
para ela. Morta de vergonha por ter sido apanhada a devorá-lo com os olhos,
virou a cara para os remos que cortavam a superfície ondulante do lago.
Enquanto observava os movimentos fluidos e circulares, ocorreu-lhe um
pensamento horrível.
— Não estás à espera de que eu reme também, pois não?
Ele soltou uma risada desdenhosa.
— Não! Gostava de lá chegar antes do fim dos tempos, se não te importas.
Dylan ergueu as sobrancelhas, mas, uma vez que estava a conseguir o que
queria, não discutiu mais e olhou para o lago. A colina que tinham descido
parecia ser o centro de um semicírculo montanhoso que contornava metade
do lago. A curvatura proporcionava alguma proteção contra as intempéries.
Talvez fosse por isso que a água estava tão calma, mal baloiçando o pequeno
bote. Contudo, para além das montanhas, não se via mais nada. Era como se
o mundo tivesse desaparecido.
Embora Tristan não estivesse a remar muito depressa, os seus movimentos
fortes impeliam o bote rapidamente através do lago e Dylan já mal conseguia
ver a margem de onde tinham partido. O lado oposto ainda não estava à vista,
e sentiu uma pontada de medo. E se o velho barco começasse a meter água?
Dylan não sabia se conseguiria chegar a terra a nado. A mãe obrigara-a a ter
aulas de natação quando era pequena, mas, assim que crescera o suficiente
para ter consciência do seu próprio corpo, recusara-se a continuar. A
caminhada de quinze metros entre os balneários e a piscina, praticamente
nua, era humilhante.
E havia também a questão de ter de mergulhar nesta água. Dylan não via
nada abaixo da superfície negra. Era impossível calcular a profundidade do
lago, ou saber o que se esconderia dentro dele. Pôs o braço de fora e
mergulhou os dedos. Segundos depois, estavam tão gelados que lhe doíam. A
temperatura do ar estava amena — a água não devia estar tão fria. Não era
normal. Parecia também ligeiramente mais densa do que água. Não
propriamente da consistência de óleo, mas algures entre uma coisa e outra.
Sim, um barco a meter água não seria nada bom, com toda a certeza.
— Se fosse a ti, não fazia isso — disse Tristan, arrancando-a aos seus
pensamentos.
— O quê?
Ele indicou com a cabeça a mão dela, ainda de fora do barco.
— Isso.
Instantaneamente, Dylan levantou a mão e examinou-a com todo o
cuidado, à espera de a encontrar preta ou com um dedo a menos, mas parecia
tudo bem.
— Porquê?
Ele fitou-a com ar sério.
— Nunca se sabe o que pode haver escondido lá em baixo.
Dylan engoliu em seco e pousou as mãos no colo, mas não conseguiu evitar
inclinar-se um pouco para o lado para observar a água, hipnotizada com a
leve ondulação. O único som que se ouvia era o chapinhar ritmado dos
remos.
Tristan olhou para Dylan enquanto ela observava a água. Os seus olhos
estavam bem abertos, refletindo a luz que cintilava na superfície, mas
desfocados. Tinha o rosto tranquilo, a testa lisa, e um leve sorriso iluminava-
lhe as feições. Prendera as mãos firmemente entre os joelhos e a pose fê-lo
sorrir, embora o sorriso desaparecesse rapidamente quando se lembrou
porquê. Fazia bem em dar-lhe ouvidos; havia coisas de pesadelo ocultas sob a
superfície. Criaturas das profundezas. Apesar disso, ela parecia calma e, em
consequência, o tempo condizia com o seu estado de espírito. A este ritmo,
conseguiriam atravessar e estar em segurança muito antes de escurecer. Na
casa segura. Tristan não conseguia pensar em mais nada para além disso.
— Quanto tempo? — murmurou Dylan.
Ele olhou para ela, sem compreender.
— Até chegarmos — esclareceu ela.
— À próxima casa segura? — Espero que seja essa a pergunta dela,
pensou, em pânico.
— Até ao destino final. — Ergueu o rosto e trespassou-o com o olhar.
Tristan não conseguia mentir-lhe.
— Amanhã — respondeu, em voz rouca.
Amanhã. Faltava tão pouco. Mais uma noite, e depois teria de a deixar
partir e nunca mais a veria. Sentiu um nó na garganta ao pensar nisso.
Normalmente, esta travessia do lago era a melhor parte da viagem.
Normalmente, nesta altura estava já ansioso por se ver livre da alma que o
sobrecarregava, desesperado para pôr fim às lamúrias, queixas e
autocomiseração. Mas desta vez não. Seria uma agonia vê-la ir para onde
merecia ir, para um lugar onde ele nunca a poderia acompanhar. Viu Dylan
abrir mais os olhos ao ouvir a resposta. Pareceu-lhe notar um brilho
tremeluzente e, por um momento breve de euforia, e ao mesmo tempo
doloroso, perguntou-se se ela estaria a conter as lágrimas. Desviou o rosto e
concentrou-se no caminho. Não suportava vê-la assim. Com os dedos a
tremer, apertou mais os remos e continuou a conduzi-los cada vez para mais
perto do adeus.
Também Dylan tinha a mente num turbilhão. Estava apavorada por ter de
deixar as terras perdidas. Tristan não podia dar-lhe qualquer indicação do que
a esperava. A pouca educação religiosa que tivera na escola dizia-lhe que ia
para um sítio melhor, mas quem podia saber se isso era verdade ou não?
Podia estar a caminho de qualquer coisa — Céu, Inferno ou talvez apenas
uma eternidade de nada. E teria de fazer essa caminhada — seria sequer uma
caminhada? — sozinha.
As pequenas ondas do lago começaram a crescer, baloiçando mais o barco.
Tristan franziu a testa e aumentou o ritmo dos remos.
Dylan estava tão concentrada nos seus pensamentos que nem se apercebeu
da mudança. Não era só o facto de ter de prosseguir sozinha que a assustava
— era a ideia de ter de deixar Tristan. Esse pensamento causava-lhe uma
pontada de dor no peito e enchia-lhe os olhos de lágrimas. Ele tornara-se seu
protetor, seu conforto, seu amigo. Havia ainda outros sentimentos, uma
vontade de estar perto dele. Sentia-se constantemente consciente da sua
proximidade. Uma mera palavra fazia-lhe o estômago explodir em
borboletas, ou mergulhava-a num pântano de dúvida e tristeza. Pensou se
seria essa a intenção dele, se estaria a brincar com as emoções dela para a
manter sob controlo e facilitar a sua própria vida — mas algo lhe dizia que
não, que era real, e era nesse instinto que confiava.
Não conseguia imaginar não estar com ele. Era como se fossem
companheiros constantes há muito mais do que apenas alguns dias. Olhou
para ele, absorvendo a imagem do seu rosto, tentando memorizar cada
detalhe. O desespero turvou-lhe os pensamentos e o céu pareceu escurecer
instantaneamente. Um vento cortante soprou, agitando-lhe o cabelo. Dylan
não reparou; estava perdida na sua dor. Tristan, contudo, olhou para o céu,
nervoso, e remou ainda mais depressa. Queria atravessar o lago sem
incidentes, pois sabia que Dylan estava nervosa com a travessia. Mas as
emoções dela estavam a trabalhar contra eles. O barco baloiçou e o vento
levantou ondas altas, coroadas de espuma.
— Dylan! Dylan, olha para mim!
Sobressaltada, ela virou-se para ele. Era como se estivesse a regressar de
uma grande distância.
— Tens de te acalmar, Dylan. Olha para o tempo. — Nesta altura, já quase
tinha de gritar para se fazer ouvir sobre o vento. Dylan acenou com a cabeça,
mas Tristan não tinha a certeza se ela compreendera realmente.
Parecia que não. Estava a olhar para ele, mas tudo o que via à frente dos
olhos era Tristan a afastar-se, deixando-a sozinha num mundo de medo e
incerteza. Por dentro, gritou por ele, implorou-lhe que voltasse, mas ele
simplesmente inclinou a cabeça e continuou a andar. No dia seguinte ia
perdê-lo. Nada mais importava.
Os remos eram agora inúteis nas mãos de Tristan. O lago estava tão agitado
que não conseguia continuar a remar. As ondas lançaram uma chuva gelada
sobre eles. Abaixo da superfície, a água parecia fervilhar — era impossível
perceber se devido ao tempo turbulento ou ao despertar de coisas
desconhecidas.
— Dylan, segura-te! — ordenou.
Ela nem olhou para ele, ainda perdida nos seus pensamentos. O pequeno
bote baloiçava violentamente e Tristan estava agarrado aos lados de madeira
com as duas mãos. Dylan, contudo, continuava imóvel, indiferente ao tempo,
como se se tivesse desligado por completo deste mundo.
Uma forte rajada empurrou o barco para o lado. Tristan apertou com mais
força e as tábuas podres partiram-se. O pedaço onde estava agarrado soltou-
se completamente e ficou na sua mão. Isto fê-lo perder o apoio e lançou-o
contra o lado oposto do barco, perturbando o seu delicado equilíbrio. Tristan
sentiu-se subitamente leve e, com horror, percebeu que não podia fazer nada
para impedir o barco de se virar. As ondas negras submergiram-nos.
Tristan saltou, com medo de que o barco lhe caísse em cima, e mergulhou.
A água estava gelada e escura. Apesar de estar logo abaixo da superfície, não
conseguia ver o céu. A corrente rodou-o e puxou-o, baralhando-lhe os
sentidos. Abanou as pernas desesperadamente, tentando deslocar-se na
direção que julgava ser a correta, e pouco depois veio à superfície. Boiou por
alguns segundos, ao lado do barco virado ao contrário, e girou a cabeça de
um lado para o outro, à procura. Contornou o barco, com o pânico a crescer
dentro dele. Não podia perder Dylan; não aqui, nas águas deste lago.
— Dylan! — gritou.
Não houve resposta e não via sinais dela.
Tentou olhar para baixo, mas era impossível. Não havia alternativa: tinha
de voltar a mergulhar.

::::

Dylan estava perdida. O choque de cair na água despertara-a da sua


paralisia temporária, mas apanhara-a completamente desprevenida e o frio
tirou-lhe o ar. Água negra entrou-lhe imediatamente para a boca e nariz. O
instinto bloqueou-lhe a traqueia, impedindo que a aspirasse para os pulmões.
Cuspiu a água e fechou firmemente a boca, mas já estava desesperada por ar.
Tentou dizer a si própria que o corpo não era real e, por isso, não precisava
de respirar. Não adiantou: os pulmões continuaram a arder. Abriu os olhos,
mas não conseguia ver nada. A água ardia, mas, com esforço, manteve-os
abertos, na esperança de ver o céu ou o rosto de Tristan à sua frente.
Correntes turbulentas sacudiam-na por todos os lados, fazendo-a rodopiar.
Não fazia ideia de para onde ficava a superfície, por isso nadou às cegas, à
espera de um milagre. Cada braçada era um esforço monumental. O peso das
roupas atrapalhava-lhe os movimentos e doíam-lhe os braços e as pernas.
Algo passou rente à sua barriga. Encolheu o estômago e, ao fazê-lo, expeliu
mais um pouco do seu ar precioso. A coisa deslizou-lhe junto ao braço e
enrolou-se a ele, como se quisesse ver de que se tratava. Outra coisa roçou-
lhe na face, algo com uma textura áspera que lhe arranhou a pele. Em pânico,
Dylan debateu-se debaixo de água, enxotando cegamente coisas invisíveis.
De súbito, o lago fervilhava com criaturas vivas e o terror apoderou-se dela.
É agora, pensou. O fim.
Sempre tivera medo de se afogar, com pesadelos recorrentes a esse respeito
durante a infância. Mais um motivo para evitar a piscina. O medo fê-la
continuar a defender-se dos atacantes desconhecidos com os braços e as
pernas, mas o frio e a falta de ar estavam a enfraquecê-la. A necessidade de
respirar tornava-se insustentável. Tinha os lábios tão apertados quanto
conseguia, mas todas as fibras do seu ser lhe exigiam que inspirasse.
Algo lhe agarrou no cabelo e puxou, e o choque e a surpresa fizeram-na
esquecer-se momentaneamente de manter a boca fechada. Abriu-a e os
pulmões, gratos, inalaram. A água tóxica invadiu-os. Engasgou-se e tentou
inspirar ar, a sufocar. Mais líquido fétido lhe inundou a garganta. Esbugalhou
os olhos, aterrada. Sentiu os ouvidos estalarem em protesto contra a
profundidade. A seguir à dor, veio um tinido constante. Um grito mudo
distorceu-lhe o rosto e começou a perder os sentidos. A última coisa de que
se apercebeu foi de uma das criaturas a agarrar-lhe na perna e a puxá-la para
baixo, cada vez mais para baixo, para as profundezas do lago.
DEZANOVE

Pela segunda vez, Tristan rompeu a superfície da água. Puxou Dylan e


segurou a cabeça dela junto ao seu ombro, acima das ondas. Ela tinha os
olhos fechados e as feições inertes. Dentro dele, o alívio debatia-se com a
ansiedade. Tivera tanta sorte por a encontrar naquela água turva, quando os
seus dedos roçaram na bainha das calças dela. Sem sequer perder tempo a
endireitá-la, agarrara-a com firmeza e nadara em direção à superfície. Mas
temia que fosse tarde demais. Estaria ela realmente morta?
A margem oposta era agora visível e nadou o mais depressa que conseguiu
nessa direção. Não demorou muito tempo e, pouco depois, os seus pés
tocaram no fundo do lago quando a água se tornou menos profunda junto à
margem.
Cambaleou pela praia pedregosa, com o corpo inerte de Dylan nos braços.
Deixou-se cair de joelhos a alguns metros da beira da água e pousou-a
cuidadosamente no chão. Agarrou-lhe nos ombros e sacudiu-a levemente,
tentando acordá-la.
— Dylan! Dylan, estás a ouvir-me? Abre os olhos.
Ela não reagiu. O cabelo molhado estava colado à cara. Tristan afastou
cuidadosamente cada madeixa. Nos lóbulos das orelhas dela cintilavam
pequenas pedras roxas em que ele nunca tinha reparado. Inclinou-se e
colocou a face quase encostada aos lábios dela. Não a ouvia respirar, mas
sentia-o. Não estava morta. O que faço agora?, pensou, desorientado.
— Acalma-te — disse a si próprio. — Ela engoliu muita água.
Pegou-lhe no ombro e puxou-a até ficar deitada de barriga para baixo, com
o peito em cima dos joelhos dele. Abriu a mão e bateu-lhe nas costas, para a
tentar fazer expulsar a água.
Resultou. O líquido começou a escorrer-lhe da boca, depois ela engasgou-
se e finalmente vomitou uma grande quantidade de água negra. Enquanto ela
tossia, ofegante, Tristan suspirou de alívio.
::::

Dylan voltou a si com uma súbita e terrível consciência da posição em que


se encontrava. Estava deitada de barriga para baixo em cima das pernas de
Tristan. Tentou apoiar as mãos para se levantar e, ao perceber o que ela
queria, Tristan ajudou-a. Com o auxílio dele, conseguiu pôr-se de gatas,
ofegante, e expulsar o resto da água. Tinha um sabor repugnante na boca,
como se a água estivesse poluída com coisas pútridas, mortas e em
decomposição. Na verdade, estava mesmo, recordou, ao lembrar-se das mãos
e dentes que a tinham tentado puxar para baixo. Uma combinação de choque
e frio atingiu-a ao mesmo tempo e começou a tremer violentamente.
— T-t-tristan — gaguejou, com os lábios roxos.
— Estou aqui — respondeu ele, ansioso.
Dylan estendeu a mão e dois braços fortes seguraram-na e puxaram-na para
ele. Abraçou-a contra o corpo e começou a esfregar-lhe os braços e as costas
para a aquecer. Ela aninhou a cabeça no pescoço dele, tentando aproveitar ao
máximo o seu calor corporal.
— Está tudo bem, meu anjo. — A expressão carinhosa saiu-lhe tão
naturalmente que até o surpreendeu.
Dylan sentiu um calor invadi-la ao ouvir estas palavras, e a vaga súbita de
emoção, a juntar à adrenalina do trauma que acabara de sofrer, dominou-a.
As lágrimas encheram-lhe os olhos e deslizaram-lhe pelas faces, quentes
contra a pele gelada. Não conseguiu conter-se mais. Os soluços sacudiram-
lhe o corpo e chorou com gemidos infelizes.
O som trespassou o coração de Tristan e, instintivamente, apertou-a mais e
abanou-a gentilmente.
— Está tudo bem, está tudo bem — repetiu, uma e outra vez.
Dylan compreendeu, mas parecia incapaz de se controlar. Sossegava por
um instante, tranquila nos braços dele, mas depois os soluços recomeçavam
do nada e não conseguia contê-los.
Por fim, chorou tudo o que tinha a chorar. Tristan continuou imóvel,
cingindo-a contra si, como se estivesse com medo de a fazer chorar outra vez.
Por fim, o céu que escurecia obrigou-o a falar.
— Temos de começar a andar, Dylan — murmurou-lhe ao ouvido. — Não
te preocupes, não é longe.
Soltou-a e foi como se o calor gerado pela sua proximidade se tivesse
evaporado. Dylan recomeçou a tremer, mas, felizmente, não a chorar. Tentou
levantar-se, mas não tinha força nas pernas. O quase afogamento deixara-a
esgotada; os membros cansados não tinham mais vontade de lutar. No dia
seguinte ficaria sem Tristan. Esse pensamento sobrepunha-se a todos os
outros. Fazia mais sentido simplesmente deitar-se ali e deixar que os
demónios a levassem. A dor física seria um alívio bem-vindo da agonia que a
destruía por dentro.
Tristan, agora em pé, baixou-se e enfiou as mãos debaixo dos braços dela.
Puxou-a para cima como se não pesasse nada e pôs o seu braço direito sobre
os ombros dele. Segurou-a pela cintura e levou-a assim, meio a andar, meio
arrastada, por um caminho de terra estreito que levava da praia a uma
pequena casa.
— Vou acender a lareira para te aquecer — prometeu.
Dylan acenou apenas com a cabeça, entorpecida; o frio era o menos
importante, apenas uma irritação que mal a incomodava.
A porta da casa era velha e a proximidade da água fizera a madeira inchar.
Tristan teve de a largar para conseguir abri-la e ela ficou encostada à parede,
a olhar para o chão. Ele rodou a maçaneta e empurrou a porta com o ombro.
Ao princípio rangeu e resistiu, mas por fim cedeu, fazendo-o cambalear para
o interior. Dylan não se mexeu. Entrar significava dar início à sua última
noite juntos; assinalava o princípio do fim. Apercebeu-se vagamente de um
guincho agudo algures à sua esquerda, mas não sentiu medo.
Tristan também ouviu o barulho de dentro de casa, onde estava a acender a
lareira. Virou-se e reparou que Dylan não entrara atrás dele.
— Dylan? — chamou. O silêncio causou-lhe um arrepio. Levantou-se de
um salto e com três passos estava à porta. Ali estava ela, onde a deixara,
apoiada na parede de pedra e a fixar o vazio com olhos sombrios.
— Anda. — Dobrou ligeiramente os joelhos para a fitar. Apesar disso, os
olhos de Dylan continuaram desfocados. Só quando lhe pegou na mão é que
ela pareceu ter consciência da presença dele. Viu a tristeza gravada em cada
traço do rosto dela. Tentou sorrir de forma tranquilizadora e reconfortante,
mas os músculos pareciam ter-se esquecido de como o fazer e pareceu-lhe
errado forçá-los. Puxou-a gentilmente pela mão e ela seguiu-o em silêncio.
Conduziu-a para o interior e sentou-a na única cadeira disponível, que
colocara em frente do lume, e quando fechou a porta, a temperatura dentro da
casa começou a subir. Olhou para a lareira e ficou chocado ao ver como
Dylan parecia pequena. Tinha as pernas juntas, as mãos cruzadas sobre o
colo, a cabeça inclinada, como se estivesse a dormir ou a rezar. Era como ver
um invólucro vazio num lar de terceira idade, um corpo à espera do fim.
Detestava vê-la assim, tão sozinha, e atravessou a sala para estar com ela.
Não havia mais cadeiras, por isso sentou-se de pernas cruzadas num tapete
velho e esfarrapado em frente da lareira. Olhou para ela com vontade de dizer
alguma coisa. Qualquer coisa para quebrar o silêncio. Algo que lhe trouxesse
novamente um sorriso ao rosto. Mas o quê?
— Não consigo — murmurou ela, erguendo a cabeça e fitando-o com olhos
ardentes mas aterrorizados.
— O quê? — perguntou ele, tão baixo que mal se ouviu por cima do
crepitar das chamas. Todo o seu ser lhe gritava para não ter esta conversa,
para mudar de assunto; não conseguia lidar com a tristeza dela além da sua.
Mas ela precisava de falar, portanto ia ouvi-la.
— Não consigo fazer isto sozinha. A parte final da viagem, ou o que quer
que seja. Tenho muito medo. Eu... eu preciso de ti. — Esta última parte foi a
mais difícil de dizer, mas também a mais verdadeira. Dylan aceitara a morte
com uma calma que até a si própria surpreendera, e chorara apenas
brevemente por aqueles que deixara para trás. Com certeza que, se ela estava
a fazer esta viagem, eles também a fariam, um dia. A seu tempo, voltaria a
vê-los.
Tristan, contudo, deixá-la-ia amanhã e desapareceria da vida dela para
sempre. Passaria à alma seguinte e em breve ela não seria mais do que uma
memória distante, na melhor das hipóteses. Dylan pedira-lhe para lhe contar
histórias sobre algumas das almas que guiara, e vira-o franzir o rosto
enquanto tentava desencantar memórias há muito esquecidas. Tantos lhe
tinham passado pelas mãos que não havia um rosto que se destacasse mais do
que os outros. E ela não suportava a ideia de ele a esquecer, quando Tristan
se tornara tudo para ela.
Não, não tinha vontade alguma de fazer essa viagem final. Não podia, não
conseguia deixá-lo para trás.
— Não posso ficar aqui, contigo? — perguntou timidamente, sem grande
esperança.
Ele abanou a cabeça e ela baixou os olhos, tentando desesperadamente
conter as lágrimas. Não seria mesmo possível, ou era ele que não queria?
Tinha de saber, mas ao mesmo tempo temia ouvir a resposta que não queria.
— Não — disse Tristan, com um esforço monumental para falar em tom
calmo. — Se ficasses aqui, os espetros acabariam por te apanhar e por se
apoderar de ti. — Apontou para o exterior. — É demasiado perigoso.
— É só por isso? — Se não tivesse visto os lábios dela mexerem-se, não
saberia que ela tinha falado, tão suave era a sua voz. Porém, apesar de
murmuradas, as palavras penetraram nele e gelaram-lhe o coração. Era este o
momento para lhe dizer que não queria saber dela, e para o fazer de modo a
que ela acreditasse que o sentia. Seria muito mais fácil para ela dar o último
passo se pensasse que ele lhe viraria costas sem qualquer lamento.
A pausa fê-la erguer o rosto, com os olhos verdes preparados para o
sofrimento, os dentes a morderem o lábio inferior para o impedir de tremer.
Parecia tão frágil, como se uma palavra mais dura pudesse esmagá-la. A
determinação de Tristan evaporou-se; não podia magoá-la daquela maneira.
— Sim — respondeu. Pegou-lhe no pulso e puxou-a para o chão, para se
sentar com ele no tapete esfarrapado. Depois pousou-lhe a mão na face e
acariciou a pele macia com o polegar. O rosto dela aqueceu sob o seu toque e
Dylan corou levemente. — Não podes ficar aqui, por muito que eu queira.
— Queres? — A esperança iluminou-lhe o rosto.
O que estava ele a fazer? Não devia dar-lhe esperança agora, consciente de
que teria de lha tirar novamente. Não devia, mas não conseguiu evitar.
Pensou em todas as facetas que ela lhe mostrara: assustada mas aliviada ao
sair do túnel, aborrecida e contrariada quando ele a obrigara a caminhar o dia
todo e a dormir em casas arruinadas todas as noites, zangada e ofendida
quando ele troçara dela, embaraçada quando ficara presa na lama, alegre
quando acordara e vira que ele conseguira voltar. Cada memória fazia-o
sorrir, e guardou-as ciosamente para quando ela o deixasse e não houvesse
mais momentos.
— Digamos apenas que me habituei a ti. — Riu-se, ainda a sorrir pelas
memórias. Ela não conseguiu sorrir também; ainda estava demasiado carente,
demasiado nervosa. — Mas, Dylan, amanhã tens de seguir para o teu destino.
Conquistaste-o. É o teu lugar.
— Tristan, não posso. Não consigo — suplicou.
Ele suspirou.
— Então... eu vou contigo. Até ao fim — disse.
— Prometes? — perguntou ela rapidamente, desesperada por o prender
com as palavras.
Tristan olhou-a nos olhos e assentiu com um aceno.
Por um momento, ela pareceu confusa.
— Pensei que tinhas dito que não podias.
— Não devo, mas vou. Por ti.
Dylan estudou-lhe o rosto. Levantou a mão e pousou-a sobre a dele,
segurando-a contra a sua face.
— Juras? Juras que não me deixas?
— Juro.
Dylan sorriu, hesitante. Ainda tinha a mão na dele e o calor do toque
pareceu a Tristan queimá-lo até aos ossos. Quando ela o soltou, sentiu
imediatamente falta daquele calor, mas depois ela estendeu a mão, com os
dedos suspensos no ar a centímetros do rosto dele. Sentiu um formigueiro na
pele em antecipação, mas a expressão dela era de incerteza e parecia
demasiado assustada para lhe tocar. Sorriu-lhe de forma encorajadora.
O coração de Dylan saltava-lhe no peito, acelerando por um instante,
depois parando por frações de segundo. O braço que tinha no ar estava
dorido, mas por cima desse latejar surdo havia um formigueiro nas pontas dos
dedos que era quase uma dor; uma dor que só desapareceria com o toque nas
faces de Tristan, na sua testa, nos seus lábios. No entanto, estava nervosa.
Nunca lhe tinha tocado assim, desta maneira.
Viu-o sorrir levemente e os seus dedos pareceram então mover-se por
vontade própria, como que atraídos por um íman. Moldou a mão à curva do
rosto dele e sentiu-o contrair os músculos do maxilar. Os olhos dele eram de
um azul forte, demasiado luminoso para a penumbra da sala, mas não
assustadores. Pareciam-lhe hipnóticos, e Dylan não conseguia afastar os seus.
Tristan tirou a mão do rosto dela e pousou-a sobre a que acariciava o seu,
prendendo-a à sua própria face. Passaram quatro, cinco, seis segundos de
silêncio, e depois Dylan inspirou bruscamente, inconsciente de que estivera
até então com a respiração suspensa.
O som quebrou o feitiço. Tristan recuou, apenas um centímetro, mas
afastou os dedos dela com os seus. Os seus olhos, no entanto, continuavam
calorosos, e, em vez de a soltar, levou a mão dela aos lábios e beijou-a
levemente na pele macia dos nós dos dedos.
Depois disso não falaram muito, satisfeitos por estarem junto um do outro
num silêncio confortável. Dylan tentou abrandar o tempo, saborear cada
momento. Contudo, por mais que tentasse, era como querer conter um
furacão com um lenço de papel. O tempo passou com uma velocidade
espantosa e ela nem quis acreditar quando viu a luz do dia começar a entrar
pelas janelas. A lareira há muito que se apagara, não sem antes lhe secar as
roupas e aquecer o corpo gelado. Eles, porém, continuavam a olhar para a
grade, onde o carvão dos troncos queimados fumegava. Tristan mudara de
posição durante a noite e passara-lhe o braço sobre os ombros, puxando-a
para si e aninhando-a contra o corpo. Estavam de costas para as janelas e,
embora ambos conseguissem ver a luz a derramar-se sobre os ombros deles e
a iluminar a parede oposta, incidindo na tinta amarela descascada e num
velho quadro tão coberto de pó e sujidade que o tema era praticamente
invisível, não se viraram.
Por fim, os raios de sol intensificaram-se, fazendo tremeluzir as partículas
de poeira como pó de ouro sob a luz. Tristan foi o primeiro a mexer-se. Não
queria enfrentar aquele dia. Pensou no que prometera a Dylan e a inquietação
apertou-lhe o peito. A sua mente debateu-se com o que era possível, o que era
correto e aquilo que queria. Nenhuma dessas coisas parecia poder coexistir
com as outras.
Dylan, por outro lado, estava surpreendentemente calma. Passara grande
parte da noite a pensar no que aconteceria nesse dia e chegara à conclusão de
que não podia fazer muito mais a não ser dar estes últimos passos e ver aonde
a levariam. Tristan estaria ao seu lado. Isso bastava. Conseguiria enfrentar
fosse o que fosse desde que estivesse com ele. E estaria. Ele prometera.
VINTE

— Pronta para a fase final da viagem? — perguntou Tristan, com uma nota
de humor forçado na voz. Estavam do lado de fora da casa, a preparar-se para
seguir caminho.
— Sim — respondeu Dylan com um sorriso tenso. — Para onde?
— Por aqui. — Tristan começou a contornar a casa, afastando-se do lago.
Dylan olhou uma última vez para a água. Parecia novamente calma e
tranquila, a superfície a ondular suavemente, cintilando onde o sol acariciava
a crista das pequenas ondas. Lembrou-se dos horrores que se escondiam no
lago e estremeceu, correndo atrás de Tristan como se pudesse deixar as más
recordações para trás. Ele estava parado do outro lado da casa, à espera dela.
Avaliou a distância com uma mão encostada à testa a proteger os olhos do
sol.
— Estás a ver aquilo?
Dylan olhou na direção que ele indicava. A paisagem era árida e lisa. Um
pequeno riacho corria em direção ao horizonte. Do lado esquerdo, um
caminho seguia paralelo ao curso de água. Além de alguns arbustos, não
havia mais nada para ver.
Dylan ergueu uma sobrancelha, confusa.
— Ah... não.
O seu tom de voz fê-lo virar-se para ela com um sorriso. Revirou os olhos.
— Vê melhor.
— Tristan, não vejo nada. Estás a falar de quê?
Ele suspirou, mas Dylan percebeu que gostava de se sentir superior.
Colocou-se atrás dela e inclinou-se sobre o seu ombro. A respiração dele
aqueceu-lhe o pescoço, deixando-lhe a pele a arder.
— Olha para o horizonte. — Apontou novamente. — Não vês um brilho
tremeluzente?
Dylan semicerrou os olhos. O horizonte era muito distante. Conseguia
distinguir um leve clarão onde a terra se encontrava com o céu azul, mas
podia facilmente ser uma ilusão de ótica causada pela luz ou apenas pelo
facto de ela estar a esforçar-se por ver alguma coisa.
— Nem por isso — admitiu.
— Bom, é para aí que vamos. É a junção entre as terras perdidas e... além
delas.
— Oh! — exclamou ela. — E depois o que acontece?
Ele encolheu os ombros.
— Como te disse, nunca lá fui. Aquele sempre foi o fim do meu caminho.
— Eu sei, mas o que viste? Quer dizer, é uma escadaria para os céus, ou o
quê?
Tristan fitou-a, incrédulo, e quando falou estava claramente a conter o riso.
— Achas que há uma escada rolante gigante que desce do céu?
— Bom, não sei — resmungou ela, embaraçada e irritada.
— Desculpa — disse ele, com um sorriso. — As almas desaparecem,
simplesmente. Dão um passo e desaparecem.
Dylan franziu o nariz. Via que ele estava a dizer a verdade, mas não era
muito útil.
— Vamos, temos de ir. — Deu-lhe um pequeno empurrão para a fazer
andar.
Dylan olhou de novo para o horizonte, esforçando-se por distinguir o tal
brilho. Estaria a ver alguma coisa? Era difícil ter a certeza. Mas o esforço
fazia-lhe doer a cabeça, portanto desistiu e contentou-se em olhar,
macambúzia, para o percurso que tinham pela frente. Parecia ser um longo
caminho. Não era a subir, pelo menos, mas era longo.
— Já que é o último dia... — começou.
— Não vou levar-te às cavalitas — atalhou Tristan rapidamente. Com
passos largos, ultrapassou-a e começou a caminhar à frente dela.
Mal-humorada, Dylan seguiu-o.
— Sabes, quase me afoguei, ontem — continuou, certa de que ele não a
levaria às costas, mas nada contente com a perspetiva de um dia inteiro de
caminhada. Sentia as pernas perras e uma dor no peito. Ardia-lhe a garganta
por ter vomitado e de tanto tossir para limpar os pulmões.
Tristan olhou para ela com uma expressão estranha no rosto, mas depois
virou-se para a frente e continuou a andar.
— Está bem, sei que provavelmente não teria morrido, uma vez que já
estou morta, mas mesmo assim foi traumatizante.
Desta vez ele parou, mas não se virou. Dylan apanhou-o com três passos.
Algo na postura dele a deixou desconfiada.
— Sim, terias. — Era um murmúrio, mas suficientemente alto para lhe
chegar aos ouvidos.
— O quê?
Tristan olhou para o céu, respirou fundo e virou-se para ela.
— Terias morrido. — Pronunciou cada palavra lenta e claramente, e a
informação trespassou o cérebro de Dylan.
— Podia ter morrido outra vez? Pensei que morta fosse morta!
Ele abanou a cabeça.
— Mas como? Para onde iria? Não estou a... — Calou-se, sem saber o que
dizer.
— Podes morrer aqui. A tua alma, quero eu dizer. Quando estás viva, a
alma é protegida pelo corpo. Quando morres, perdes essa segurança. Ficas
vulnerável.
— E o que acontece quando a alma morre?
— Desapareces — respondeu ele simplesmente.
Dylan olhou para o céu, chocada ao perceber o quão perto estivera do
oblívio total. Aceitara a morte do corpo sem se queixar muito porque, bom,
ela ainda aqui estava. Saber que podia ter desaparecido completamente —
que podia ter perdido a oportunidade de tornar a ver as pessoas que contava
reencontrar um dia — chocou-a de tal forma que ficou sem palavras.
— Vamos. Desculpa, mas não há tempo para parar, temos de seguir
viagem. Não há mais casas seguras, Dylan.
Ouvi-lo chamá-la pelo nome despertou-a do seu transe.
— Está bem — murmurou. Sem olhar para ele, começou a andar. Embora
lhe doessem as pernas e estivesse exausta, não queria ser apanhada ali fora ao
escurecer.
Tristan olhou para ela. Tinha a cabeça erguida e caminhava com passo
rápido, mas coxeava um pouco e de vez em quando esfregava distraidamente
a garganta. Sabia que ela ainda devia estar a sofrer depois do trauma da
véspera.
— Espera. — Correu até junto dela.
Dylan parou e virou-se, à espera dele. Tristan ultrapassou-a e depois parou.
Sorriu e virou-se de costas para ela.
— Salta.
— O quê?
Ele revirou os olhos, impaciente.
— Salta!
— Oh! — O rosto de Dylan iluminou-se com o alívio. Segurou-se aos
ombros dele e saltou-lhe para as costas, prendendo as pernas à volta da
cintura dele e os braços à volta do pescoço. Tristan enfiou os braços debaixo
dos joelhos dela e começou a andar.
— Obrigada — sussurrou-lhe ela ao ouvido.
— Só porque me estavas a dar pena — brincou ele.
Dava passos longos e determinados que baloiçavam suavemente Dylan.
Não demorou muito tempo a começar a sentir-se dorida e desconfortável às
cavalitas dele. Doíam-lhe os braços da força com que lhe segurava os ombros
e estava a ficar magoada no sítio onde ele a agarrava, debaixo dos joelhos.
Mesmo assim, era muito melhor do que andar. Tentou relaxar os músculos e
concentrar-se no prazer que era estar tão perto de Tristan. Ele tinha ombros
largos e fortes e lidava com o peso extra como se ela fosse feita de penas.
Encostou o rosto ao pescoço dele e inspirou profundamente, saboreando o
seu cheiro almiscarado. O cabelo claro de Tristan agitava-se com o
movimento e fazia-lhe cócegas na cara. Combateu a vontade de passar os
dedos por ele.
— Quando chegarmos — disse ele subitamente, sobressaltando-a —, tens
de descer e caminhar por ti própria.
Ela apertou-o mais, instintivamente.
— Pensei que vinhas comigo!
— E vou — assegurou ele de imediato —, mas tens de dar os passos com
as tuas próprias pernas. Eu vou atrás de ti.
— Não podes ir primeiro?
— Não. Não podes entrar no outro mundo atrás de alguém; tens de dar o
passo por ti própria. É uma daquelas coisas — acrescentou, como se isso
explicasse tudo.
— Mas tu vens logo atrás de mim? — insistiu ela, nervosa.
— Prometo. Já te disse que sim.
— Tristan — gritou ela, em tom subitamente entusiasmado. — Já consigo
ver!
Cerca de oitocentos metros à frente deles, o ar parecia mudar. O chão do
outro lado era exatamente igual, mas estranhamente distorcido, como se o
estivessem a ver através de um vidro grosso. O local onde o vidro tocava no
chão parecia de facto tremeluzir ligeiramente. Dylan sentiu o estômago
apertado. Tinham chegado.
— Põe-me no chão — pediu, num murmúrio.
— O quê?
— Quero andar.
Tristan soltou-lhe as pernas e ela deslizou pelas costas dele até ao chão.
Tinha os pés e a parte inferior das pernas dormentes, e esticou os braços
tensos. Depois endireitou os ombros e virou-se para enfrentar o final da sua
viagem. Sem olhar para trás, para Tristan, começou a andar.
Tinha o coração acelerado e aos saltos no peito. Sentia a adrenalina a
correr-lhe nas veias. Embora ainda há pouco lhe doessem os braços e as
pernas, sentia-se agora como se os membros não lhe pertencessem e não os
controlasse completamente. Respirou fundo, tentando não hiperventilar. O
chão parecia voar sob os seus pés. À medida que se aproximavam, era mais
fácil distinguir a união entre os dois mundos, agora a pouco mais de cem
metros. A paisagem para além desse ponto estava ligeiramente desfocada,
como se estivesse a vê-la através dos óculos de outra pessoa. Começou a
sentir-se tonta e por isso tentou olhar para o chão, espreitando apenas de vez
em quando para ver a que distância se encontrava da linha tremeluzente no
caminho.
Tristan manteve-se deliberadamente um passo atrás dela, observando-a
com atenção. Embora Dylan não olhasse para ele nem lhe dirigisse a palavra,
tinha a sensação de que ela estava perfeitamente consciente dos movimentos
dele. A cinco metros da linha divisória, ela parou.
Olhou para a frente, com a respiração calma. Tinha o rosto tenso e os lábios
apertados. Tristan via a tensão em todos os músculos do corpo dela.
— Estás bem? — perguntou.
Ela virou-se para ele com os olhos muito abertos. Tristan pensara que ela
parecia calma, mas via agora que estava aterrorizada.
No entanto, não era bem isso. Dylan estava a sentir emoções que nunca
experimentara antes. A tensão do momento trouxera ao de cima várias coisas
e fizera-a concentrar-se naquilo que realmente importava. Não sabia o que
havia do outro lado daquela linha e, embora ele tivesse prometido segui-la,
havia algo que precisava de dizer primeiro.
A ideia assustava-a, e sabia que, ao dizê-lo, estava a tornar-se mais
vulnerável a nível emocional do que alguma vez estivera na vida, mas apesar
disso estava determinada. Os últimos dias tinham-lhe ensinado muito sobre si
própria; não era a mesma rapariga que hesitara sobre se havia ou não de levar
o ursinho de peluche na sua viagem. Era mais forte, mais corajosa. Enfrentara
perigos, confrontara os seus medos, e Tristan desempenhara um papel muito
importante nisso. Protegera-a, confortara-a, guiara-a e abrira-lhe os olhos
para sentimentos que nunca antes vivera. Era importante dizer-lhe como se
sentia, apesar de isso a deixar com o estômago às voltas e as faces a arder.
Diz de uma vez, ordenou a si própria.
— Amo-te.
Os seus olhos não deixaram o rosto dele, tentando avaliar a sua reação. As
palavras pareceram ficar suspensas no ar entre eles. Dylan tinha todos os
nervos à flor da pele, as hormonas a latejarem-lhe nas veias. Não tencionara
dizer a palavra assim, sem preâmbulos, mas a necessidade fora mais forte.
Esperou vê-lo sorrir ou franzir a testa, os seus olhos brilharem ou ficarem
distantes, mas Tristan permaneceu impassível. Sentiu o coração a bater num
ritmo irregular que a fez temer que pudesse parar a qualquer instante. À
medida que o silêncio se prolongava, começou a tremer enquanto o seu corpo
se preparava para a rejeição.
Ele não sentia o mesmo. Claro que não, pensou. Ela era apenas uma
criança. Interpretara mal as palavras e o toque dele. Sentiu os olhos a arder e
tentou conter as lágrimas. Cerrou os dentes e fechou as mãos com força,
sentindo as unhas cravarem-se nas palmas. Não era suficiente. A dor no peito
era agonizante, como facas em brasa que a trespassavam de um lado a outro.
Sobrepunha-se a todas as outras sensações e era difícil respirar.
Tristan olhou para ela enquanto lutava contra si próprio. Ele também a
amava; sabia-o em todas as fibras do seu ser. O que não sabia era se devia
dizer-lho ou não. Passaram vários segundos e ele continuava indeciso. Viu-a
abrir mais os olhos, ouviu a sua respiração tornar-se irregular, e percebeu que
ela estava a interpretar o seu silêncio da pior forma possível. Estava
convencida de que ele não a amava. Fechou os olhos, tentando colocar as
coisas em perspetiva. Se a deixasse pensar assim, talvez não lhe custasse
tanto atravessar. Não dizer nada era a decisão certa. Decidido, abriu os olhos
e fixou os dela, um mar de verde cintilante.
Não. A dor, o sofrimento, a rejeição... não podia deixar que fossem essas as
últimas memórias que Dylan teria dele. Tinha de lhe dar esta verdade, por
mais que isso custasse a ambos. Com medo de ter a voz a tremer, abriu a
boca.
— Eu também te amo, Dylan.
Ela fitou-o por um instante e o tempo parou. Enquanto processava as
palavras, sentiu o coração dar um salto triunfante. Ele amava-a. Soltou a
respiração numa espécie de risada e sorriu, radiante, com os olhos a brilhar.
A dor no peito dissolveu-se, substituída por um calor reconfortante. Deu um
passo em frente, hesitante, até sentir a respiração dele no rosto; a respiração
de Tristan também estava acelerada. O azul dos olhos dele ardia, penetrando
nela e fazendo-a tremer. Inclinou-se para ele, tão perto que conseguia ver
cada uma das sardas que lhe salpicavam o nariz e as faces, e depois parou.
— Espera — disse, recuando. — Beija-me do outro lado.
— Não — disse Tristan, em voz baixa e rouca. Subitamente, tinha a mão
dela na sua e apertava-a com uma força invencível. — Agora.
Com uma mão, puxou-a para si, e com a outra segurou-lhe na nuca,
enfiando os dedos no cabelo dela. Dylan sentiu-se toda arrepiada e o seu
protesto pouco sincero morreu-lhe nos lábios. Ele acariciou-lhe o pescoço
com o polegar e encostou a testa à dela. Sem pestanejar, Dylan viu-o
percorrer a distância que os separava, enquanto lhe largava a mão e o pescoço
e enrolava os braços à volta dela, puxando-a ainda para mais perto. Dylan
inclinou ligeiramente a cabeça para trás e fechou os olhos, à espera.
Tristan hesitou. Libertado das profundezas daqueles olhos verdes como
uma floresta, as dúvidas surgiram-lhe novamente. Aquilo estava errado.
Aquilo não era permitido. Na verdade, tudo o que sentia por ela estava
errado. Não devia ser capaz de se sentir assim; não devia sequer ser possível.
Mas sentia. E esta seria a sua única oportunidade de sentir aquilo por que os
humanos viviam e matavam. Fechou os olhos e encostou os lábios aos de
Dylan.
Eram macios. Foi o seu primeiro pensamento. Macios, doces e trémulos.
Sentiu os dedos dela fecharem-se no tecido do seu casaco, as suas mãos a
tremerem levemente contra ele. Ela entreabriu os lábios, movendo-os contra
os dele. Ouviu-a soltar um leve gemido e o som causou-lhe um frémito no
ventre. Apertou-a mais, a boca pressionada contra a dela. O coração parecia
querer saltar-lhe do peito e não conseguia respirar. A única coisa de que tinha
consciência era do calor dela, da suavidade dela. Sentiu-a tornar-se mais
ousada, pôr-se em bicos de pés para se chegar mais a ele, levantar as mãos e
agarrar-lhe nos ombros, no rosto. Copiou o movimento, acariciando-lhe o
cabelo, o queixo. Tentando memorizá-la.
Nos braços de Tristan, Dylan sentia-se tonta, leve. Com os olhos fechados,
o mundo à sua volta parecia não existir. Apenas a boca de Tristan,
pressionada contra a sua, e as mãos dele, que a seguravam e lhe acariciavam
gentilmente a pele. Sentia o sangue a cantar nas veias e, quando ele
finalmente se afastou, mal conseguia respirar. Ele segurou-lhe o rosto nas
mãos e fitou-a durante um longo momento, de olhos a cintilar. Depois
inclinou novamente a cabeça e beijou-a suavemente nos lábios mais uma,
duas vezes. Sorriu, um sorriso lânguido que fez com que os músculos no
ventre de Dylan se contraíssem.
— Tinhas razão — disse ela, num sussurro. — Antes foi melhor.
Virou-lhe costas e inspecionou a linha. Agora, não lhe parecia nada
ameaçadora. Tristan amava-a e iria com ela para onde quer que fosse. Com
dez passos confiantes, chegou junto da divisória. Olhou para baixo e
saboreou a sensação. Era o seu último momento nas terras perdidas. Podia
dizer adeus aos demónios, às escaladas e às noites mal dormidas em casas
arruinadas. Levantou o pé esquerdo e fez uma pausa, mesmo sobre a linha.
Depois respirou fundo e atravessou.
Do outro lado, parou, a estudar o que a rodeava. Parecia tudo igual. O ar
continuava quente, com uma leve brisa, o caminho de terra ainda rangia
levemente quando mexia os pés. O sol brilhava no céu e as montanhas ainda
se erguiam no horizonte. Franziu um pouco a testa, curiosa mas não
excessivamente preocupada. Estava à espera de algo mais dramático.
Rodou sobre si própria à procura de Tristan, com um sorriso nervoso nos
lábios que rapidamente lhe ficou paralisado no rosto. Mãos geladas
apertaram-lhe o coração e abriu a boca num murmúrio aterrado.
— Não!
O caminho estava deserto.
Deu um passo em frente, mas a linha tremeluzente desaparecera. Esticou os
braços, procurando com as mãos o sítio onde Tristan estivera apenas
segundos antes. Mas os seus dedos encontraram somente uma parede
invisível, sólida e impenetrável.
Atravessara e não podia voltar atrás. Tristan desaparecera. Estava
novamente sozinha.
Começou a tremer, com uma mistura arrepiante de adrenalina, choque e
horror a percorrer-lhe as veias. Cambaleou e caiu de joelhos, com as mãos
sobre a boca como se conseguisse impedir os soluços de sair. Mas era
impossível: eles transbordaram, primeiro como gemidos baixos e ofegantes e
depois como gritos de agonia. Uma dor ardente rasgou-lhe o peito. As
lágrimas deslizaram-lhe pelas faces e caíram na terra.
Ele mentira-lhe. As promessas de a acompanhar não tinham passado de
engano e traição, e ela fora uma idiota por acreditar. Este devia ter sido o
plano dele desde o princípio. Recordou como ele às vezes lhe sorria, de olhos
a brilhar, mas depois ficava subitamente com uma expressão fria e
indiferente. Ele sabia. Mas... e quando lhe dissera que a amava? Estaria a
mentir?
Não, não acreditava nisso. Todas as fibras do seu ser lhe diziam que era
verdade: ele amava-a. Ela amava-o e ele amava-a, mas nunca poderiam estar
juntos.
Percebeu, consternada, que já não conseguia visualizar claramente o rosto
dele. Os pormenores estavam a desaparecer, como grãos de areia soprados
pelo vento. Não se lembrava do tom exato do cabelo dele, nem da forma da
sua boca. Um som angustiado escapou-lhe dos lábios e o sofrimento
incendiou-lhe todos os nervos. Como sabia que estava sozinha, que não havia
ninguém que pudesse testemunhar o seu desespero, entregou-se à angústia
que a dominava.
Bateu com os punhos na parede invisível, frustrada, depois encostou-lhe a
palma da mão e desejou com todas as suas forças que se desfizesse e a
deixasse voltar atrás.

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Tristan estava do outro lado, a vê-la ceder ao desespero. Tal como um


polícia do outro lado de um espelho falso, sabia que ela não o conseguia ver.
O seu logro funcionara e a dor que lhe causara estava bem evidente no rosto
dela. Dylan sabia que ele lhe mentira, que planeara este fim. Sabia que não o
tornaria a ver. Embora isso lhe despedaçasse o coração, obrigou-se a ver cada
lágrima, a ouvir cada soluço e cada grito. Queria correr para ela, confortá-la,
abraçá-la e limpar-lhe as lágrimas. Sentir novamente o calor dela nos seus
braços, a sua suavidade. Levantou a mão, desolado, e encostou-a à dela —
com uma parede de vidro a separá-los. Tristan tentou forçar os pés a
atravessar a linha, mas sem sucesso. Não podia atravessar.
Cedera à vontade de lhe dizer que a amava, deixara-a ter esperança, e era
este o seu castigo. Causara-lhe este sofrimento e assistiria agora a cada
segundo dele. Só queria que ela percebesse que, apesar de todas as mentiras e
fingimentos, o amor que sentia por ela era honesto e real.
Sempre soubera que não podia atravessar com ela. A sua promessa fora um
truque, uma maquinação perversa a fim de lhe dar a coragem necessária para
dar o último passo. Fora preciso um grande esforço para a fazer acreditar,
para ver a sua gratidão e alívio, para a deixar confiar nele, sempre sabendo
que este momento chegaria. Beijá-la e apertá-la nos braços e saber que não
podia ficar com ela. Saber que, quando ela cruzasse aquela linha e olhasse
para trás, descobriria a sua traição.
Através do véu entre mundos, viu-a chorar. Ela chamava o nome dele e as
lágrimas deslizavam-lhe pelas faces. Sentiu a vergonha, o desprezo por si
próprio e o desespero crescerem dentro de si. Queria desesperadamente virar
o rosto, esconder dos olhos as consequências das suas ações, mas recusou-se
a fazê-lo.
— Desculpa — murmurou, embora soubesse que ela não o conseguia
ouvir, mas na esperança de que pudesse compreender, de alguma forma.
Embora cada segundo lhe parecessem horas de tortura, por fim Dylan
começou a dissipar-se. Os contornos do seu belo corpo começaram a
tremeluzir e a ficar desfocados e ela foi perdendo substância, desaparecendo
gradualmente até ser pouco mais do que fumo. Tristan viu-a a deixá-lo,
pouco a pouco. Enquanto ela se tornava uma neblina, tentou memorizar cada
pormenor do seu rosto, fixar no coração a tonalidade exata dos olhos dela.
— Adeus — murmurou, desejando com todas as suas forças poder ir com
ela. Pestanejou mais uma vez e ela desapareceu.
Olhou para o chão onde a vira pela última vez, engoliu o nó que tinha na
garganta e respirou fundo. Virou costas à divisória e começou a andar.
VINTE E UM

Enquanto Tristan caminhava, tudo o que o rodeava desapareceu


lentamente, substituído por uma paisagem branca. Ele mal reparou. As
montanhas dissolveram-se em areia que flutuou e se evaporou numa neblina
fina. O caminho que percorria transformou-se numa superfície branca e lisa
que se estendia até onde o olhar alcançava, em todas as direções. Uma luz
branca encandeava-o, suspensa por cima dele.
Depois a luz perdeu intensidade e começaram a formar-se partículas de cor,
que redemoinharam em torno da cabeça de Tristan e pousaram no chão,
criando o mundo que a sua próxima missão, a próxima alma, estava prestes a
deixar. Formou-se alcatrão sob os seus pés, negro e brilhante da chuva.
Edifícios brotaram do chão de ambos os lados. As janelas iluminavam jardins
maltratados, adornados por ervas daninhas e cercas partidas. Os carros
estacionados junto ao passeio eram velhos e enferrujados. Música pesada e
gargalhadas roucas derramavam-se das portas abertas. Todo o cenário
transmitia uma sensação de pobreza e negligência. Era uma imagem
deprimente.
Tristan não sentiu qualquer entusiasmo com a perspetiva de recolher a
próxima alma. Nem sequer sentiu o desdém e indiferença a que se habituara
nos últimos anos. Sentia apenas a dor torturante da perda.
Parou na penúltima casa ao fundo da rua. No meio dos edifícios degradados
e maltratados, este parecia surpreendentemente bem conservado. Tinha a
relva bem aparada e rodeada por canteiros de flores. O caminho até à porta
pintada de vermelho era feito de lajes com pássaros gravados. Só havia uma
janela iluminada, num quarto no primeiro andar. Tristan sabia que era aí que
se encontrava a próxima alma, prestes a abandonar o corpo. Não entrou na
casa. Esperou cá fora.
Vários transeuntes olharam para o desconhecido parado em frente ao
número vinte e quatro. Viam que ele não era daqui. Contudo, não era o tipo
de vizinhança onde se desafiassem rostos desconhecidos, portanto seguiram
caminho sem fazer comentários. Tristan, de olhos perdidos no nada, nem
reparou nos olhares; não se apercebeu de que as pessoas o conseguiam ver.
Estava cego aos olhares curiosos e surdo aos murmúrios abafados.
Já sabia tudo o que precisava de saber sobre a pessoa que ali morava. Ali
passara os últimos dez anos, sozinha, saindo muito pouco, exceto para ir
trabalhar e visitar a mãe, que morava do lado oposto da cidade. Não convivia
com os vizinhos, que a consideravam snobe e arrogante, quando na realidade
ela simplesmente tinha medo. Acabara de ser morta à facada na cama, por um
ladrão que esperava encontrar mais valores do que ela possuía e a assassinara
por raiva. Dentro em pouco ela acordaria, levantar-se-ia da cama e faria a sua
rotina matinal habitual. Quando saísse, seria recebida por Tristan e, de uma
maneira ou de outra, iria com ele.
Toda esta informação estava agora assimilada na mente de Tristan. Factos e
histórias entrecruzavam-se para compor o conhecimento de que precisava
para fazer o seu trabalho. Sabia-o, mas não pensou nisso. A viagem desta
alma seria concluída porque era essa a sua função. Não sentiria pena desta
criatura infeliz. Não lhe ofereceria compreensão ou conforto. Limitar-se-ia a
conduzi-la, nada mais.
A Lua estava diretamente por cima dele, uma luz branca e fria que
procurava e bania as sombras. Tristan sentia-se exposto, como se todas as
suas emoções e pensamentos estivessem à vista de toda a gente. Sabia que
podia ter de esperar horas antes de a alma aparecer. Perguntou-se durante
quanto tempo conseguiria continuar com isto. Todas as fibras do seu ser
queriam escapar, esconder-se, entregar-se à dor e à tristeza. O seu cérebro
ordenou aos pés que se movessem, que abandonassem o seu posto e
continuassem a andar até ter deixado a tristeza para trás.
Mas não conseguia.
Pela segunda vez, as lágrimas encheram-lhe os olhos azuis. Claro que não
lhe era permitido fugir. Havia um ordenamento superior, um esquema mais
vasto. E a sua dor, o seu desespero, o seu desejo de abandonar esta
responsabilidade não significavam nada. Não controlava o seu próprio
destino. Nem sequer controlava os próprios pés.

::::

— Dylan.
Apercebeu-se de alguém a chamar o seu nome, mas não se virou. Tal como
na noite que passara sozinha na casa segura, não conseguia afastar os olhos
da paisagem à sua frente. Se deixasse de olhar, Tristan estaria realmente
perdido para sempre.
Quem é que queria enganar? Já o perdera. Ele desaparecera e não ia voltar.
Simplesmente ainda não estava preparada para aceitar essa realidade. Dylan
fixou o caminho com uma expressão de desafio. Mordeu o lábio inferior com
força suficiente para perfurar a pele e sentir o sabor de sangue. Não o sentiu,
contudo. Tinha todos os sentidos entorpecidos.
— Dylan.
Estremeceu quando a voz a chamou de novo. Não conseguia perceber se
era masculina ou feminina, velha ou nova. Não parecia impaciente nem
urgente. Era acolhedora.
Mas ela não queria ser acolhida.
— Dylan.
Dylan soprou, agora irritada. A voz ia continuar a chamá-la até ela
responder. Lentamente, com relutância, virou-se.
Por um segundo pestanejou, confusa. Não estava ali nada. Abriu a boca
para chamar, na esperança de que a voz voltasse a falar, mas depois fechou-a
lentamente. Que lhe importava?
Estava prestes a retomar a vigilância, de olhos postos no caminho, na
esperança vã de que Tristan reaparecesse miraculosamente, mas quando virou
a cabeça houve algo estranho e inesperado que lhe chamou a atenção. Uma
luz, a brilhar. Por um segundo o seu coração parou, ao pensar nas esferas que
vira a flutuar na paisagem cor de sangue das terras perdidas, mas não era a
mesma coisa. A luz cresceu e mudou, alongando-se, ganhando forma. Sorriu-
lhe e a expressão era de boas-vindas. Dois olhos dourados, sem pupilas mas
calorosos e não assustadores, observaram-na e esperaram. Estavam num rosto
perfeito, rodeado por um halo de luz. O corpo parecia humano, mas não
completamente. Como os vislumbres das almas que vira, estava ali, mas não
estava; parecia desfocado.
Nem sequer percebia se era um homem ou uma mulher. Era um ser
andrógino, mas a profundidade da voz quando a chamara pelo nome fê-la
pensar que seria provavelmente masculino.
— Bem-vinda — disse, em voz melodiosa.
Dylan franziu a testa, aborrecida ao vê-lo sorrir de forma tão
condescendente, como se ela devesse estar feliz por ali estar.
— Quem és tu?
— O meu nome é Caeli. Estou aqui para te receber. Bem-vinda a casa.
A casa? A casa! Isto não era a sua casa. A sua casa era o sítio que acabara
de deixar. Duas vezes.
— Deves ter perguntas para fazer. Por favor, vem comigo.
Lenta e determinadamente, Dylan abanou a cabeça. O ser — era injusto
chamar-lhe coisa, mas não era decididamente uma pessoa — fitou-a com ar
ligeiramente confuso.
— Quero voltar — disse Dylan calmamente.
A confusão transformou-se em compreensão.
— Lamento muito. Não podes voltar. O teu corpo desapareceu. Nada
temas, em breve verás novamente os teus entes queridos.
— Não, não é isso que quero dizer. As terras perdidas. Quero voltar para as
terras perdidas. — Dylan olhou em volta, para a charneca que ainda a
rodeava. Espreitou rapidamente por cima do ombro e confirmou que o
semicírculo de colinas ainda lá estava. Parecia que continuava no mesmo
sítio, simplesmente bloqueada por aquela parede invisível. — Quero... —
começou, mas depois não conseguiu terminar.
O ser, Caeli, lançou-lhe um olhar incrédulo.
— Já fizeste a travessia.
Dylan franziu ainda mais o sobrolho. Ele não estava a compreender o que
ela queria dizer.
— Onde está o meu barqueiro? Onde está o Tristan? — Engasgou-se um
pouco ao dizer o nome dele.
— Já não precisas dele. A sua função está concluída. Por favor, vem
comigo. — Desta vez, o ser virou-se e apontou para trás de si. Um pouco
mais à frente aparecera uma entrada, um portão de grades, como o portão de
um recinto para o gado. Parecia ridículo ali a pairar, sem uma cerca de cada
lado.
Dylan cruzou os braços e ergueu o queixo.
— Não — disse, entre os dentes cerrados. — Quero o Tristan. Não saio
daqui enquanto não o vir.
— Lamento muito, mas não é possível.
— Porquê? — inquiriu Dylan.
Caeli, aparentemente, não estava a compreender a pergunta.
— Não é possível. Por favor, vem comigo.
Deu um passo para o lado e apontou novamente para o portão, com um
sorriso paciente, à espera. Dylan teve a sensação de que ele ficaria ali à
espera, calmo e sereno, até ela se mexer.
O que faria Caeli se ela o ignorasse, se tentasse retroceder, voltar ao lago?
Tentaria impedi-la? Levantou-se e recuou um passo cuidadosamente,
estudando a reação dele. Caeli continuou a sorrir, mas inclinou ligeiramente a
cabeça e uma expressão perplexa cruzou-lhe o rosto. Outro passo. Ele
continuou imóvel. A observar. Pelos vistos, Dylan era livre de o ignorar.
Tirou os olhos do ser por um momento e arriscou olhar novamente para
trás. As colinas ainda lá estavam. Pareceu-lhe conseguir distinguir ao longe a
silhueta da última casa segura, indistinta através da separação entre mundos.
Não havia sinal dos espetros, nem indícios de perigo. Podia ficar lá.
Mas de que adiantaria? Tristan não estava lá. Provavelmente já passara
para o próximo trabalho, a próxima alma. O mais certo era que já se tivesse
esquecido dela.
Não!, gritou uma pequena parte da sua mente. Ele disse que te amava. E
estava a ser sincero.
Talvez. Ou talvez não. Não tinha como saber a verdade. E, se Tristan não ia
voltar, de que adiantava ficar ali?
Com um suspiro, Dylan descruzou os braços e deixou-os cair ao lado do
corpo. Sentiu as mãos a latejar quando o sangue recomeçou a circular nos
dedos. Nem se tinha apercebido da força com que as fechara.
— Está bem — murmurou, dando um passo, depois outro, na direção de
Caeli. — Está bem.
O ser sorriu-lhe calorosamente e esperou que ela estivesse junto dele antes
de se virar e começar a percorrer o caminho.
Chegaram junto do portão, mas, quando Caeli o abriu, não foram só as
grades enferrujadas que se mexeram. Era como se Caeli estivesse a abrir um
buraco no mundo. No sítio onde estivera o portão, estava agora uma janela
para um lugar completamente diferente.
— Por favor — disse Caeli baixinho, fazendo sinal a Dylan para passar.
— Onde estamos? — perguntou ela, do outro lado.
Era uma sala gigantesca, quase sem proporções. Não conseguia ver as
paredes, mas tinha a sensação de ser interior. O chão era incolor, limpo.
— Esta é a sala dos registos. Pensei que seria um bom sítio para
começarmos, para encontrarmos as almas que chegaram antes de ti. Os que
morreram e atravessaram as terras perdidas.
— Como? — Apesar de tudo, Dylan estava intrigada.
Assim que a palavra lhe deixou os lábios, o limiar da sala contraiu-se,
formando paredes definidas, forradas do chão ao teto de estantes carregadas
de livros pesados. Uma carpete materializou-se sob os seus pés, espessa e
escura, criada para um efeito de grandiosidade e para abafar o som de passos.
Teve uma estranha sensação de déjà vu ao olhar em volta: a imagem
despertava ecos de uma visita que fizera com Joan a uma biblioteca. Aos seus
olhos de criança de dez anos, o espaço parecera cavernoso e silencioso, quase
como um labirinto. Perdera-se e fora encontrada a chorar ao lado de uma
mesa por um simpático empregado de limpeza. Seria isto outra projeção da
sua mente, como as terras perdidas?
Caeli falou suavemente ao lado dela.
— Suponho que tens familiares ou amigos que gostarias de reencontrar? —
Esperou um momento. — Queres que te ajude a encontrar alguém? A tua avó
Moore? A tia Yvonne?
Dylan olhou para ele, chocado por saber os nomes dos seus familiares.
— Consegues encontrar qualquer pessoa?
— Qualquer pessoa que tenha concluído a viagem, sim. Temos registos de
todas as almas. Cada barqueiro tem um livro com as almas que conduziu.
O quê? Dylan olhou para as paredes enquanto processava as palavras de
Caeli. Mas não estava a pensar em encontrar a avó nem a tia, que tinha
morrido de cancro da mama há três anos. Tinha outra ideia.
Virou-se para o ser, com uma luz inesperada nos olhos.
— Quero ver o livro do Tristan.
Caeli ficou em silêncio alguns instantes antes de responder:
— Não é esse o objetivo deste lugar...
— O livro do Tristan — repetiu Dylan com firmeza.
O ser não parecia nada satisfeito, e as suas feições mostraram uma mistura
de preocupação e desaprovação, mas conduziu-a ao longo de inúmeras
estantes carregadas de livros até chegarem a um canto sombrio. Estendeu a
mão para uma prateleira, vazia à exceção de um livro enorme. Era de um
verde desbotado, com as páginas tingidas de dourado. Os cantos pareciam
gastos, como se mil dedos tivessem já aberto aquela capa e folheado as
páginas.
— Aqui tens o livro do teu barqueiro — disse Caeli, pousando-o numa
mesa vazia. — Posso saber o que procuras?
Dylan não respondeu, já que ela própria não estava certa da resposta.
Estendeu a mão e abriu a capa. No interior, encontrou um livro de registo. A
página estava coberta de entradas, fila após fila de almas registadas numa
bonita caligrafia. Um nome, uma idade e uma data em cada linha. Não a data
de nascimento, percebeu Dylan, chocada. Era a data da morte.
Sem dizer nada, folheou o livro. Nome após nome, após nome. Centenas.
Milhares. Inúmeras almas que deviam a sua existência neste plano a Tristan.
Passou várias páginas de cada vez até encontrar papel em branco. Depois
folheou em sentido contrário à procura da última entrada. A dela. Era bizarro,
ver o seu nome escrito numa caligrafia mais elegante do que ela alguma vez
teria conseguido fazer. Seria a letra de Tristan? Não, não podia ser. Ao lado
do nome, a data em que ela apanhara o comboio. Tocou com o dedo na linha
vazia por baixo e perguntou a si própria que nome preencheria aquele espaço.
Onde estava Tristan naquele momento? Já teria chegado à primeira casa
segura?
Dylan suspirou e continuou a folhear o livro, abrindo-o em páginas ao
acaso. Não queria pensar em Tristan a conduzir outra alma. Era o seu
barqueiro. Era dela. Sorriu tristemente. Não era fácil acreditar nisso, perante
aquele livro. Passou os olhos pela página. Franziu a testa.
— O que é isto? — perguntou, apontando para uma linha perto do fim da
página. A entrada fora riscada e o nome estava praticamente ilegível por trás
do risco preto e grosso.
Não obteve resposta. Dylan olhou para a esquerda, para ver se fora
abandonada, mas o ser ainda ali estava. Não estava a olhar para ela, e parecia
ter o olhar perdido no vazio.
— Desculpa... Caeli? — Hesitou um pouco antes de o chamar pelo nome.
— O que significa isto? Porque foi este nome riscado?
— Essa alma não está aqui — respondeu ele, ainda sem a fitar.
Não está aqui? Seriam as almas perdidas para os espetros? Se procurasse,
encontraria ali o menino de que Tristan lhe falara, o que morrera de cancro,
que ele deixara cair ao fugir dos demónios? Abriu a boca para perguntar, mas
Caeli virou-se e fitou-a, com um sorriso radiante que a silenciou.
— Porque estás interessada neste livro, Dylan? Se me disseres, posso
ajudar-te.
Desarmada por aquele olhar dourado, Dylan perdeu momentaneamente o
fio do raciocínio. O mistério da entrada riscada ficou esquecido no fundo da
sua mente.
— Conheces todas as almas que aqui estão? — Apontou para o livro.
O ser inclinou a cabeça num gesto afirmativo.
— Estou à procura de uma pessoa, mas não sei como se chama. Era um
soldado. Um soldado nazi. — Dylan pestanejou, um pouco surpreendida
consigo própria. Não fora por isso que pedira para ver o livro, mas a ideia
surgira-lhe na mente e percebeu imediatamente que, pelo menos de forma
inconsciente, esse fora o seu plano desde o início. Queria falar com alguém
que também conhecera Tristan. Queria falar sobre ele com alguém que o
conhecesse como ela. O jovem soldado da Segunda Guerra Mundial fora a
alma que mais a impressionara de todas as histórias que Tristan lhe contara.
Esperava que o ser abanasse a cabeça e lhe dissesse que precisava de mais
informações, mas, para sua surpresa, ele aproximou-se da mesa e folheou as
páginas com confiança até encontrar o que procurava.
— Aqui está. — Caeli apontou para a penúltima linha. — Esta é a alma que
procuras.
Dylan olhou para o nome manuscrito.
— Jonas Bauer — murmurou. — Dezoito anos. Morto a 12 de fevereiro de
1941. É ele?
Caeli assentiu.
Dylan mordeu o lábio enquanto pensava. Dezoito anos. Pouco mais velho
do que ela. Por algum motivo, quando o imaginara, vira-o como um homem.
Mas era um rapaz que podia ainda estar na escola. Pensou brevemente nos
alunos mais velhos de Kaithshall. O capitão da escola, os delegados de turma.
Eram rapazinhos imaturos e patetas. Não conseguia imaginá-los de uniforme,
de arma em punho. Não conseguia imaginá-los a enfrentar fosse quem fosse,
sabendo que essa decisão seria uma sentença de morte.
Dezoito anos. Um rapaz e um homem. Quem teria Tristan sido para ele?
Como teria convencido Jonas a segui-lo?
Dylan ergueu os olhos da página e virou-se para Caeli.
— Quero falar com ele.
VINTE E DOIS

Caeli não discutiu nem perguntou a Dylan qual era o motivo por trás deste
estranho pedido. Simplesmente estendeu o braço. Dylan hesitou e olhou uma
última vez para a página antes de o seguir. Algo lhe chamou a atenção —
mesmo ao fundo da página estava outra daquelas entradas estranhas. Mais
uma alma riscada.
Não teve tempo para questionar Caeli sobre as linhas eliminadas. Ele
conduziu-a até uma porta escura, talvez de mogno, com bonitos painéis
trabalhados. A maçaneta era pequena e redonda, cor de bronze. Dylan não se
lembrava de a porta ali estar antes. Franziu a testa e esfregou os olhos,
desorientada.
— Isso estava...
Caeli sorriu, à espera do resto da pergunta, mas Dylan não terminou a frase.
Não importava, na realidade. A porta estava ali agora e era nisso que tinha de
se concentrar. Era tudo muito confuso.
— Por aqui?
Caeli acenou afirmativamente. Dylan esperou que ele a abrisse, não por
estar habituada a gestos de cavalheirismo, mas porque ele parecia estar no
comando das operações.
Caeli, contudo, não se mexeu. Seria mais uma daquelas coisas que tinha de
fazer sozinha, como atravessar a fronteira nas terras perdidas? Olhou para o
ser para confirmar e, hesitante, estendeu a mão e fechou-a sobre a maçaneta.
Esta rodou facilmente e Caeli recuou de maneira a dar-lhe espaço para abrir a
porta. Dylan assim fez, e lançou-lhe mais um olhar nervoso antes de cruzar o
limiar da porta e observar o que a rodeava.
Uma rua. Dylan sentiu-se imediatamente mais à vontade. Os edifícios eram
muito diferentes dos que conhecia: completamente distintos dos prédios
vermelhos de Glasgow. Filas de casinhas de primeiro andar, muito bonitas,
com relvados bem tratados e canteiros de flores. Estacionados em frente às
casas ou junto do passeio, viu carros quase todos pretos e reluzentes, com
capôs curvos e compridos e plataformas prateadas de lado. Parecia um
cenário retirado dos filmes antigos que Joan a obrigava a ver quando alguma
das vizinhas idosas ia jantar com elas. O sol iluminava o céu e havia no ar um
zumbido agradável de atividade.
Dylan avançou sobre um caminho pavimentado que atravessava um
relvado bem arranjado. Ouviu um estalido atrás de si e, quando se virou, viu a
porta a fechar-se. Parecia ter saído de um dos edifícios: uma vivenda com
janelas de lucerna e as paredes exteriores forradas com madeira escura. Caeli
desaparecera, mas Dylan teve a sensação de que bastava lembrar-se de qual
era a porta para regressar novamente à sala de registos.
Parou um instante a memorizar o vaso de flores amarelas e cor de laranja à
direita do degrau e o número nove em bronze preso à parede por cima da
caixa de correio. Certa de que conseguiria voltar a encontrar a casa, virou-se
para a rua à sua frente. Ouviu um tinido metálico, que tentou reconhecer. Era
uma espécie de zumbido, contudo, por baixo, conseguia ouvir o ritmo de uma
melodia. Parecia um rádio mal sintonizado. Seguiu o som, contornando os
carros, até que encontrou um par de pernas a espreitar por baixo de um
veículo preto reluzente. Ali o som era mais forte e viu que estava certa: em
cima do carro, encontrava-se um rádio antigo. Um dos pés abanava ao ritmo
da música, uma canção antiga que Dylan não reconhecia.
Pensou que talvez tivesse encontrado Jonas.
— Olá — disse, inclinando-se para espreitar para baixo do carro. Não
conseguia ver muito, apenas a continuação das pernas.
O pé parou de abanar. Após um segundo, ouviu algo a raspar no chão e um
corpo saiu de baixo do carro, encimado por um rosto sujo de óleo. Dylan
esperou enquanto ele se punha em pé.
A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi que ele tinha cara de bebé.
Faces redondas e suaves por baixo de olhos azuis brilhantes; o cabelo loiro
estava muito bem penteado, com risco ao lado, mas várias madeixas tinham
saído do lugar e estavam espetadas para todos os lados, o que o fazia parecer
ainda mais infantil. Era um rosto estranho para estar em cima de um corpo
tão alto e largo.
Dylan tinha a certeza de que era a alma que procurava. Não era como ela o
imaginara, mas era decididamente ele, Jonas. Lembrou-se subitamente de que
ele era alemão e perguntou a si própria se conseguiria falar com ele. Estudara
francês na escola, mas a única coisa que sabia em alemão era contar até
cinco.
— Não sei se me compreendes... — começou.
Ele sorriu, revelando dentes um pouco tortos.
— Não estás cá há muito tempo, pois não? — Mal se notava o sotaque
alemão.
— Oh! — Dylan corou, ao perceber que dissera uma parvoíce. —
Desculpa, não. Acabo de chegar.
O sorriso abriu-se um pouco mais.
— Eu compreendo-te, está descansada.
— És o Jonas. — Não era uma pergunta, mas ele confirmou com um aceno.
— Chamo-me Dylan.
— Olá, Dylan.
Na pausa que se seguiu, Jonas observou-a com uma expressão de surpresa
delicada e bastante intrigada. Dylan fez uma careta e saltitou de um pé para o
outro. Porque pedira para falar com ele? O que queria perguntar-lhe? Estava
tão confusa, tão desorientada, que não conseguia organizar os pensamentos.
— Pedi para te ver — começou, sentindo que era necessária uma
explicação. — Queria... falar contigo. Fazer-te algumas perguntas, se não te
importares.
Jonas esperou pacientemente e ela entendeu que era um sinal para
continuar.
— Queria falar sobre o teu barqueiro.
Foi evidente que Jonas não estava à espera disso. Pestanejou, franziu a
testa, porém, com um gesto seco do queixo indicou-lhe que continuasse.
Dylan mordeu a língua. O que queria saber, afinal?
— Chamava-se Tristan — disse. O melhor era começar pelo mais simples.
— Não. — Jonas abanou a cabeça lentamente, com ar pensativo, como se
estivesse a tentar recordar coisas de há muito tempo. — Não, chamava-se
Henrik.
— Oh — murmurou Dylan, tentando disfarçar o desapontamento, sem
grande sucesso. Talvez não fosse ele. Talvez Caeli se tivesse enganado.
— Como é que ele era?
— Não sei. Normal, acho eu. — Jonas encolheu os ombros, como se fosse
uma pergunta complicada. — Parecia um soldado como os outros. Alto,
cabelo castanho, uniforme.
Cabelo castanho? Isso também não estava certo.
— Lembro-me... — Sorriu subitamente. — Lembro-me de que tinha uns
olhos azuis como eu nunca tinha visto. Meti-me com ele, disse-lhe que
parecia o nazi perfeito, com aqueles olhos. Eram de um tom muito estranho.
— Azul-cobalto — murmurou Dylan, vendo a cor na sua mente tão
claramente como se ele estivesse à frente dela. O rosto à volta dos olhos
estava algo indistinto, mas o calor gelado daquele olhar ainda a arrepiava. Era
ele; era Tristan. Sorriu levemente. Pelo menos havia uma coisa que era real.
Talvez ele mudasse de nome para cada alma, escolhendo algo que julgava
que agradaria às almas. Lembrou-se do que ele lhe dissera, sobre como as
convencia a irem com ele. Corou ao recordar que Tristan lhe dissera que ela
devia ter um fraquinho por ele. Gostara do nome Tristan; parecera-lhe antigo,
misterioso. Muito diferente dos Davids e Darrens e Jordans de Kaithshall.
Seria apenas mais uma parte do trabalho dele, outra peça na maquinação?
Sentiu o peito apertado quando se apercebeu, com uma vaga de tristeza, que
era bem possível que nem sequer soubesse o verdadeiro nome dele. Se é que
tinha nome.
— Exato — concordou Jonas, com um sorriso. — Azul-cobalto. É uma boa
descrição.
— Como... como é que ele era? — Inconscientemente, Dylan levou a mão
à boca e começou a roer uma unha. Agora que estava a chegar às perguntas
importantes, sentia-se subitamente nervosa, incerta de querer mesmo as
respostas, com medo de ouvir algo que não lhe agradasse.
— Como assim? — Jonas franziu a testa, perplexo.
Dylan respirou fundo e torceu os lábios. Não sabia bem como dizer o que
queria.
— Era... era simpático? Cuidou de ti?
Em vez de lhe responder, Jonas inclinou a cabeça para o lado e estudou-a
atentamente com os olhos azuis: menos brilhantes do que os de Tristan, mas
bastante intensos.
— Porque estás a fazer essas perguntas?
— O quê? — murmurou Dylan, tentando ganhar tempo. Recuou um passo,
até colidir com outro carro estacionado.
— O que queres realmente saber, Dylan?
Era estranho ouvir o seu nome naquele sotaque estrangeiro. Parecia bizarro,
deslocado. Não parecia ser dela. De certa forma, condizia com a sua
disposição invulgar.
— Dylan? — chamou Jonas, despertando-a da sua distração.
— Sinto falta dele — admitiu de olhos postos no chão, apanhada de
surpresa. Após alguns segundos, ergueu a cabeça e viu Jonas a olhar para ela,
com uma expressão simultaneamente compreensiva e confusa. — Passámos
por muita coisa juntos e... e sinto a falta dele.
— Quando é que chegaste? — perguntou Jonas.
— Agora. Quer dizer, mesmo antes de te vir procurar. Há uma hora, talvez?
— Será que ainda podia sequer medir o tempo em horas?
A pequena ruga entre os olhos de Jonas aprofundou-se quando franziu mais
a testa.
— E vieste logo aqui, procurar-me? Não tens familiares que queres visitar?
Pessoas da tua vida que julgavas nunca mais voltar a ver?
Dylan afastou o rosto antes de responder, um pouco envergonhada da
verdade.
— Não quero falar com eles. Quero ver o Tristan.
— O que aconteceu na tua viagem?
— O quê? — Surpreendida com a pergunta, virou-se para Jonas.
Ele estava encostado ao carro, de braços cruzados, com um semblante
perplexo enquanto tentava compreender.
— Quando conheci o Henrik... desculpa, o teu Tristan — corrigiu-se —,
percebi que estava morto. Percebi quase imediatamente quem ele era, o que
tinha acontecido. Fiquei contente por ter a companhia dele na viagem, mas
quando chegou ao fim separámo-nos. E pronto. Eu segui o meu caminho, ele
seguiu o dele. Se me lembrar dele, é com afeto, sim, mas não posso dizer que
sinto a sua falta.
Dylan olhou para ele, desapontada. Jonas não compreendia. Não podia
compreender. Na verdade, podia provavelmente falar com todas as almas no
livro de Tristan e não encontrar outra que tivesse sentido o que ela sentira,
que soubesse como era ter esta dor dilacerante dentro de si, como se lhe
faltasse uma parte essencial.
Era, ao mesmo tempo, um pensamento reconfortante e deprimente.
Dylan virou-se. Jonas continuava a encará-la com uma expressão piedosa e
era difícil ver o seu reflexo patético naquele olhar. Naquele momento só
queria ir-se embora dali, encontrar um sítio sossegado onde se esconder e
lidar com o turbilhão de pensamentos que lhe paralisavam o cérebro.
— Ouve, obrigada por me ouvires. Vou... vou deixar-te voltar ao teu carro.
Estás a arranjá-lo?
— Sim. — Jonas sorriu, e as faces rechonchudas quase lhe esconderam os
olhos. — Sempre quis ter um carro, quando estava vivo. — A escolha de
palavras incomodou Dylan, mas conservou uma expressão impassível. —
Agora posso brincar à vontade. Quer dizer, suponho que trabalharia bem,
independentemente do que eu lhe fizesse. Mesmo assim, gosto de fingir que
estou a fazer alguma diferença. Fiquei tão empolgado quando atravessei e o
vi que, ao princípio, quase nem reparei que estava outra vez em Estugarda!
— Sorriu tristemente a Dylan. — Pelo menos, é uma coisa boa deste lugar...
voltar para casa.
Para casa. Lá estava essa palavra outra vez. Uma sombra encobriu os olhos
de Dylan e ela franziu os lábios, aborrecida.
— Eu não vou para casa.
— Como assim? — Jonas olhou para ela de lado.
— A sala dos registos pode levar-nos a qualquer lado, certo?
— Bom, sim. — Jonas continuava a não perceber. — Mas quando
atravessaste a divisória, nas terras perdidas... — Fez uma pausa e estudou-a
com a cabeça inclinada. — Não voltaste para casa?
Era a vez de Dylan ficar confusa.
— Fiquei onde estava, quer dizer, pareciam ser as terras perdidas na
mesma.
— Tens a certeza? — insistiu ele.
Dylan olhou para ele com as sobrancelhas erguidas. Tinha a certeza, sim.
— Absoluta. Estava exatamente no mesmo sítio, só que o Tris... o meu
barqueiro tinha desaparecido.
— Isso não está certo — disse-lhe Jonas, com a testa franzida de
preocupação. — Todas as outras pessoas com quem falei... a minha família,
os meus amigos... no seu primeiro instante no além, deram por si no sítio que
consideravam como a sua casa.
Dylan não sabia o que dizer. Supôs que devia sentir-se mal por não ter sido
transportada para sua casa, ou para a casa da avó.
Mas não se sentia mal. Sentia-se confortada. O lugar dela era com Tristan,
era o que o cérebro estava a dizer-lhe. Por mais que tivesse detestado as terras
perdidas — o frio, o vento, as escaladas! — era aí que ele estava.
O lugar dela não era aqui. Não se integrava, como sempre.
— Eu não devia estar aqui — murmurou, mais para si própria do que para
Jonas. Afastou-se dele. Queria estar sozinha. Sozinha para pensar, para
chorar. Forçou uma nota de boa disposição na voz: — Bom, diverte-te com o
teu carro. Obrigada mais uma vez. — Antes de acabar de dizer a última
palavra já estava a caminho, com passos rápidos, à procura do vaso, do
número nove.
— Ei! Ei, espera!
Com um sopro impaciente, Dylan parou e, depois de um segundo, virou-se.
Jonas deu alguns passos na direção dela. A preocupação envelhecia-lhe o
rosto, fazia-o parecer quase adulto.
— Não vais tentar, pois não? — Falou em voz tão baixa que Dylan quase
não percebeu.
— Tentar o quê?
Jonas olhou para um lado e para o outro antes de responder. Dylan ergueu
as sobrancelhas, intrigada.
— Voltar — sussurrou ele.
— O quê? — gritou Dylan, aproximando-se automaticamente até estarem
cara a cara. — Como assim, voltar?
Voltar para onde? Para as terras perdidas? Estaria ele a dizer que havia uma
maneira de o fazer?
Jonas mandou-a calar com um gesto de aviso, enquanto olhava em volta.
Dylan ignorou o seu pânico, mas baixou a voz quando repetiu a pergunta.
— Como assim, voltar? Pensava que era impossível voltar.
— E é — respondeu Jonas imediatamente, mas com uma expressão
dissimulada.
— Mas?... — insistiu Dylan.
— Mas nada. — Jonas tentou afastar-se, mas Dylan seguiu-o.
— Houve quem tentasse? — perguntou. Depois a inspiração atingiu-a
como um relâmpago. — Os nomes riscados! — Estaria errada antes? Seriam
almas perdidas não no caminho até aqui, mas no caminho de regresso? Era
possível.
— Não podes voltar. — Jonas repetiu as palavras de Caeli quase como se a
resposta estivesse programada, mas não conseguiu manter a expressão
inocente.
— Como é que o fizeram? — pressionou ela, avançando de novo.
Silêncio total da parte do jovem alemão.
— Como, Jonas?
Ele apertou os lábios e fitou-a durante alguns instantes.
— Não sei.
Dylan lançou-lhe um olhar observador, demasiado dominada pela
esperança para ser tímida.
— Estás a mentir.
— Não estou a mentir, Dylan. Não sei como se faz. Mas sei que é suicídio.
Dylan soltou uma risada amargurada.
— Já estou morta.
— Sabes o que quero dizer — respondeu Jonas depois de a fitar
longamente.
Dylan pensou nisso por um segundo. Morta. Mesmo morta. Desaparecida
para sempre. Era assustador. Sentiu o coração aos saltos ao pensar nisso. Por
outro lado... de que adiantava estar aqui? Sim, a determinada altura a mãe,
Katie, o pai — todos fariam a travessia. Podia recuperar a sua vida anterior,
ou uma estranha versão da mesma. E podia continuar a ser tão solitária e
desenquadrada como fora antes; antes das terras perdidas.
Não valia a pena esperar uma vida inteira por isso. Se soubesse que Tristan
também viria, talvez conseguisse suportar ficar. Mas isso não ia acontecer.
Ele nunca, nunca estaria ali com ela. Esse pensamento trespassou-a como
uma faca e fechou os olhos com a dor. Tristan. Ainda se lembrava com uma
clareza cristalina da sensação ardente dos lábios dele nos dela, de estar
apertada nos seus braços. Como era irónico que nunca se tivesse sentido tão
viva como nesse momento!
Valeria a pena correr o risco do oblívio eterno para o tornar a sentir?
Sim.
— Como podes ter a certeza disso, se nem sequer sabes como se faz? —
desafiou Dylan. Recusava-se a ser desencorajada pelo negativismo dele,
depois de lhe ter dado um fragmento de esperança a que se agarrar.
— Não, Dylan. Não compreendes. — Jonas abanou a cabeça, com as mãos
levantadas e uma expressão de alarme. — Há aqui almas que já viram passar
séculos. Viram centenas, talvez milhares de almas tentarem voltar para trás,
regressar para junto da mulher ou dos filhos. Nem uma única voltou para
contar a história. Viste os espetros, sabes o que eles fazem.
Dylan mordeu o lábio com ar pensativo.
— Como sabes? Que houve quem tentasse?
Ele abanou a mão.
— Rumores.
Rumores. Dylan deu um passo em frente e trespassou-o com o olhar. Jonas
tentou recuar, mas não tinha para onde ir. Dylan fitou-o, determinada.
— Rumores de quem?
VINTE E TRÊS

Ela vivia numa casa de madeira que Dylan só podia descrever como uma
barraca, rodeada por quilómetros e quilómetros de planícies. Era um lugar
isolado e selvagem, com cães a ladrar e nuvens de trovoada por cima. Eliza.
A alma mais antiga que Jonas conhecia. Se alguém poderia dar-lhe respostas,
era Eliza.
Para levar Dylan até lá, Jonas atravessara simplesmente uma das portas da
sua rua. Num momento estavam rodeados por edifícios e, no momento
seguinte, por areia e ervas secas. Dylan viu-o fechar o portão feito de tábuas
velhas presas com pregos enferrujados.
— Já aqui tinhas estado? — perguntou, quando ele apontou na direção da
casa da velha mulher, onde uma luz forte brilhava atrás da janela. Estava
muito mais escuro ali, e aquele brilho quente era reconfortante.
— Não. — Jonas abanou a cabeça. — Mas não conheço mais ninguém que
possa ajudar-te.
Lançou-lhe um olhar estranho e Dylan percebeu que ele estava com
esperança de que Eliza a conseguisse dissuadir. Olhou para a casa velha, um
pouco nervosa.
— Quem é ela? — quis saber. — Como é que sabe destas coisas?
— Já cá está há muito tempo — foi a resposta de Jonas.
Dylan franziu os lábios num esgar insatisfeito. Não era grande resposta,
mas percebeu que era tudo o que Jonas sabia.
Jonas subiu para o alpendre de madeira e bateu à porta, mas Dylan ficou
para trás. Embora tivesse confrontado Jonas sem hesitação, sentia-se agora
tímida perante a perspetiva de falar com outra alma. Talvez por ser uma alma
antiga, de adulto. Talvez porque Eliza nunca conhecera Tristan. Fosse qual
fosse o motivo, tinha vontade de recuar e não de avançar. Se não tivesse
vindo com Jonas, sabia que não teria coragem de ir mais além.
Pensou em mudar de ideias, em dizer a Jonas para esquecer o assunto.
Tristan parecia-lhe ainda mais distante nesta paisagem estranha e inclemente.
Mas depois uma voz dentro de casa disse «Entre» e Jonas abriu a porta e fez-
lhe sinal para entrar. Dylan não tinha alternativa senão obedecer.
Por dentro, a casa era um pouco mais agradável, o que a acalmou
ligeiramente. Havia uma lareira acesa, e as paredes estavam decoradas com
peças tricotadas. Era uma cabina de uma divisão só, com a cama encostada à
parede mais distante e uma pequena cozinha por baixo da janela do outro
lado. No meio estava sentada uma mulher muito velha, enrolada em mantas e
a baloiçar-se suavemente numa cadeira de baloiço antiquada. Dylan
continuou a olhar em volta em vez de devolver o olhar curioso da mulher, e
pensou distraidamente que talvez as casas seguras das terras perdidas fossem
assim antes de se terem degradado com o tempo.
— Eliza — começou Jonas —, esta é a Dylan, e...
— Queres saber como voltar para trás — interrompeu ela, terminando a
frase de Jonas com voz débil e sussurrada, mas quando Dylan virou a cabeça
e olhou para ela, surpreendida por ter adivinhado tão depressa a razão da sua
visita, os olhos da mulher eram penetrantes e alerta.
— Como é que... — começou Dylan, mas não concluiu a pergunta sob o
olhar astuto de Eliza.
— Procuram-me sempre quando querem saber isso. Já vi uma centena de
almas como tu, minha querida — disse, sem azedume.
— Sabe dizer-me como posso fazê-lo? — perguntou Dylan.
Eliza estudou-a em silêncio durante algum tempo. Por fim, disse:
— Senta-te.
Dylan franziu a testa. Não queria sentar-se. Estava agitada, tensa. Queria
andar de um lado para o outro, movimentar-se e libertar parte da tensão que
lhe fazia estremecer os músculos. Queria descobrir o que a mulher sabia e
pôr-se a caminho.
Eliza olhou para ela como se soubesse exatamente o que Dylan estava a
pensar. Indicou mais uma vez a única outra cadeira existente na sala.
— Senta-te.
Dylan sentou-se na beira da cadeira, com as mãos entaladas entre os
joelhos para as impedir de tremer. Fixou o olhar na mulher e nem viu Jonas
empoleirar-se discretamente na beira de uma mesa atrás dela.
— Diga-me o que sabe — exigiu.
— Não sei nada — respondeu a velha. — Mas ouvi dizer coisas.
— Qual é a diferença?
Eliza sorriu-lhe, mas havia no seu semblante uma tristeza melancólica.
— A diferença é a certeza.
Isto fez Dylan hesitar, mas apenas por um instante.
— Nesse caso, conte-me o que ouviu dizer. Por favor.
Eliza agitou-se na cadeira e ajeitou melhor os xailes que lhe cobriam os
ombros.
— Ouvi dizer — começou, com ênfase na primeira palavra — que é
possível atravessar as terras perdidas em sentido contrário.
— Como? — sussurrou Dylan.
— Já percebeste como este lugar funciona. Só tens de abrir a porta certa.
— E onde é que ela está? — A pergunta brotou dos lábios de Dylan antes
mesmo de Eliza terminar de falar.
A mulher pareceu divertida pela avidez dela, e os seus lábios estremeceram
num arremedo de sorriso.
— Qualquer porta.
— O quê? — O tom de Dylan era cortante, impaciente. — Como assim?
— Qualquer porta te levará até lá. Não tem que ver com a porta, mas sim
contigo.
— Isso não pode estar certo. — Dylan abanou a cabeça, aborrecida. — Se
qualquer porta servisse, toda a gente tentaria.
— Não, estás enganada — contradisse Eliza gentilmente.
— Claro que sim! — explodiu Dylan. Estava a ficar zangada, a achar que
isto fora uma perda de tempo.
— Não — repetiu Eliza. — Porque, quando a maioria das pessoas tenta
abrir a porta... e tens razão, são muitas as que tentam... sempre que a tentam
abrir, a porta tranca-se.
— É este lugar — murmurou Dylan. — É como uma prisão. Não nos deixa
sair.
Eliza abanou a cabeça.
— Sei que a maior parte das pessoas não quer voltar — continuou Dylan
—, mas deviam poder fazê-lo, se quisessem.
— Estás enganada — insistiu Eliza. — Não é este lugar. São as almas; elas
é que se travam a si próprias.
— Como? Porquê? — Dylan inclinou-se ainda mais para a frente.
— Não querem realmente partir. Não, não é bem isso. Querem partir, mas,
mais do que isso, não querem morrer. No fundo, sabem que atravessar
novamente as terras perdidas será provavelmente a sua morte, e é essa
perspetiva que as detém. Porque sabem que, se forem pacientes, voltarão a
ver os seus entes queridos. Não podem correr o risco de tentar e falhar.
Dylan ouviu o aviso implícito nas palavras. Mas o que Eliza não sabia era
que, por mais que ela esperasse, Tristan nunca voltaria para ela.
— E como é que fazemos a porta abrir-se?
Eliza abriu as mãos, como se a resposta fosse óbvia.
— Tens de desejar voltar, mais do que desejas a sobrevivência da tua alma.
Dylan pensou nisso. Seria o caso dela? Achava que sim. E, ao que parecia,
não perderia nada em experimentar abrir a porta para ter a certeza. Mas,
mesmo que voltasse para as terras perdidas, o que faria depois? Como
encontraria Tristan no meio de todas aquelas esferas e almas? Duvidava que
Eliza lhe pudesse dizer isso. Teria alguma vez existido uma alma que
quisesse voltar para junto do seu barqueiro? E o que faria quando o
encontrasse? Para Dylan, tanto lhe fazia que ela e Tristan viessem para aqui
ou regressassem ao mundo real. Até podiam ficar a viver nas terras perdidas.
Estremeceu quando pensou em tornar a enfrentar os espetros, mas fá-lo-ia, se
isso significasse que podia estar com Tristan.
Eliza suspirou, arrancando Dylan aos seus pensamentos.
— São sempre os mais jovens que querem voltar — murmurou. — Sempre.
— Nunca se sentiu tentada? — perguntou Dylan, momentaneamente
distraída.
Eliza abanou a cabeça e uma sombra sofredora encobriu-lhe os olhos.
— Não, rapariga. Eu já era velha, sabia que não teria de esperar muito até o
meu marido se juntar a mim.
— Onde é que ele está? Está aqui? — perguntou Dylan, antes de perceber
que estava a ser indelicada.
— Não. — A voz de Eliza era um sussurro tão baixo que quase
desapareceu. — Não, ele não conseguiu atravessar as terras perdidas.
— Lamento muito — murmurou Dylan de olhos baixos, envergonhada.
O rosto de Eliza fechara-se e as lágrimas ameaçaram derramar-se dos seus
olhos, mas depois recompôs-se, endireitou as costas e fungou.
— Suponho que queres saber o que acontece quando conseguires voltar —
disse.
Dylan encolheu os ombros. Não estava mais ansiosa por voltar à sua vida
anterior do que estaria por voltar para ali. No entanto, seria estranho não
parecer interessada. Não estava certa de querer confessar as suas verdadeiras
intenções a Eliza. Seria diferente de contar a Jonas.
— Ouvi dizer... — Mais uma vez, Eliza tentou fazer Dylan compreender os
riscos que correria. — Ouvi dizer que, se conseguires regressar ao teu corpo,
consegues tornar a entrar nele.
— Ainda lá estará? — Dylan fez uma careta de horror, esquecendo, por um
instante, que isso não fazia parte dos seus planos. — Com certeza que já o
devem ter levado. A minha mãe já me deve ter enterrado. Oh, meu Deus, não
voltaria a aparecer no caixão, pois não? E se ela me cremou? — O pânico e a
repugnância transformaram-lhe as últimas palavras num guincho agudo.
— Dylan, o tempo parou. Para ti, pelo menos. O teu corpo estará
exatamente onde o deixaste.
Dylan acenou com a cabeça. Fazia sentido. Estavam a começar a formar-se
planos na sua mente. Conseguia ver-se a remar através do lago, a atravessar o
vale. Pensou no terreno vermelho-sangue, no céu chamuscado, mas nem
mesmo essas imagens terríveis a conseguiam demover. Sabia que ia tentar. Ia
conseguir abrir a porta, de alguma maneira, e ia tentar. Encontraria Tristan.
Sorriu para si própria. Quando ergueu a cabeça, viu Eliza a observá-la
atentamente.
— Há mais qualquer coisa — disse a velha mulher, devagar. — Alguma
coisa que não estás a dizer-me. — Os seus olhos perscrutaram o rosto de
Dylan. Era desconfortável, como se estivesse a tentar ver dentro dela. Dylan
fez uma careta e conteve a vontade de desviar o rosto. — Tu não queres
voltar — disse ela, pensativa. — Não queres voltar para o teu corpo, pelo
menos. Do que estás à procura, Dylan?
De que adiantava mentir? Dylan mordeu o lábio e decidiu confiar nela. De
qualquer maneira, já se decidira, independentemente do que Eliza pudesse
dizer-lhe. Talvez a velha mulher até a conseguisse ajudar.
— Quero encontrar o meu barqueiro — admitiu, baixinho.
O rosto de Eliza ficou impassível. Apenas um ligeiro franzir dos lábios
revelou as suas emoções enquanto refletia sobre as intenções de Dylan.
— Isso é mais difícil — disse, após um minuto penoso.
O coração de Dylan começou a correr.
— Mas não é impossível?
— Talvez não seja impossível.
— O que tenho de fazer?
— Tens de o encontrar.
Dylan pestanejou algumas vezes, confusa. Isso não era difícil. Ele estava a
conduzir outra alma. Bastava-lhe esperar numa das casas seguras e — mais
cedo ou mais tarde — ele apareceria.
Depois lembrou-se. Lembrou-se de ver os contornos fantasmagóricos a
moverem-se na paisagem cor de sangue. Lembrou-se das hordas de espetros
negros que os seguiam a cada passo. E das esferas. As esferas brilhantes que
iluminavam o caminho, que davam às almas algo para seguir, que as
mantinham seguras. Seria isso tudo o que Tristan era para ela agora, uma
esfera luminosa? Se assim fosse, como conseguiria distingui-lo dos milhares
de outros?
Saberás, disse uma vozinha no fundo da sua mente. Mas só o disse uma
vez. Muito baixinho. Porque o resto do seu cérebro consciente atacou esta
vozinha com toda a força do seu desdém. Isto não era um filme romântico
lamechas. Era a vida real. Se Tristan fosse uma daquelas coisas, se ela não o
conseguisse ver nem ouvir, nunca conseguiria identificá-lo.
— Como posso encontrá-lo? — perguntou. — Eu vi os outros barqueiros
nas terras perdidas. Não são pessoas, são apenas...
— Luz — terminou Eliza por ela. Dylan assentiu, já que era uma descrição
tão boa como outra qualquer. — No entanto — continuou —, ele ainda é o
teu barqueiro. Mesmo que já tenha conduzido outra alma depois disso.
Mesmo que já tenha conduzido mil almas. Se o vires, deves vê-lo como
sempre o viste.
Os olhos de Dylan iluminaram-se. Então havia uma hipótese... era possível.
Ouviu Jonas pigarrear atrás dela e virou-se com um sorriso radiante. Fora
apenas um palpite que a levara a procurá-lo — quanto tempo teria demorado
a descobrir estas respostas sozinha? Quantos longos anos teria Eliza
demorado a compreender como este lugar funcionava?
— Como sabe todas essas coisas? — perguntou-lhe Dylan, ainda
sorridente.
A velha mulher suspirou.
— Já te disse... e não podes mesmo esquecer-te disto, Dylan... não as sei.
Acredita em mim. É um risco tremendo. — As suas dúvidas não conseguiam
destruir o entusiasmo súbito de Dylan, por mais que estivesse decidida a
tentar. — Mesmo que o encontres... o teu barqueiro... durante quanto tempo
achas que conseguirás escapar aos demónios?
— Ficaremos nas casas seguras — disse Dylan. — Eles não podem entrar.
— Tens a certeza? Estás a mudar as regras do jogo, Dylan. Como sabes que
as casas seguras ainda lá estarão, ainda funcionarão para ti? E os deveres do
teu barqueiro para com as outras almas?
Dylan franziu a testa, apanhada desprevenida pelas palavras de Eliza.
— Bom, então não ficaremos nas terras perdidas — afirmou, mas já não
falou em tom tão confiante.
Eliza riu-se, mas tinha uma expressão de comiseração no rosto.
— E para onde irão?
— Ele pode vir comigo? — Foi uma pergunta tímida, sussurrada. O
coração de Dylan, que ainda há pouco batia tão depressa, estava agora como
que suspenso, com medo da resposta.
— Para onde?
— Para aqui. Para lá. Para qualquer lado. Tanto faz.
— Este não é o lugar dele.
— Nem o meu — retorquiu Dylan. Tentou ignorar a forma condescendente
como Eliza lhe sorriu.
— E o lugar dele também não é contigo. Ele não é humano, Dylan. Não
sente o que nós sentimos, não sangra.
— Sangra, sim — retorquiu Dylan baixinho. Queria dizer a Eliza que ele
também conseguia sentir, que ele a amava, mas sabia que a velha mulher não
acreditaria nela. Não queria ter de defender as palavras de Tristan quando não
tinha a certeza de ela própria acreditar completamente nelas.
— O quê? — perguntou Eliza, parecendo insegura pela primeira vez.
— Ele sangra — repetiu Dylan. — Quando... quando os demónios o
apanharam, quando o arrastaram para baixo, feriram-no. Mas ele voltou para
mim. E vinha coberto de arranhões e nódoas negras.
— Nunca ouvi falar de nada assim — admitiu Eliza lentamente. Olhou para
Jonas, que estava atrás de Dylan, e ele também abanou a cabeça.
— Eu vi — insistiu Dylan. Inclinou-se para a frente e olhou para Eliza. —
Será que ele pode ir comigo? Se não puder ser para aqui, então de volta? Ao
mundo real?
A alma antiga baloiçou-se na cadeira enquanto pensava nisso. Por fim,
abanou a cabeça. O coração de Dylan gelou.
— Não sei — disse ela. — Talvez. É o máximo que posso dizer. É um
risco. — Fitou Dylan com uma expressão dura. — Achas que vale a pena
corrê-lo?

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Tristan estava sentado na cadeira da casa segura, imóvel, a ver a mulher


dormir. Embora fosse uma adulta — celebrara o trigésimo sexto aniversário
apenas um mês antes — parecia muito jovem, enroscada na cama estreita.
Tinha o cabelo castanho e comprido caído sobre os ombros, e a franja a tocar-
lhe nas pestanas. Por baixo da pele azulada e fina das pálpebras, conseguia
ver os olhos dela a moverem-se, a assistirem aos seus sonhos. Não tinha
espaço no cérebro atormentado para pensar no que ela estaria a ver; estava
apenas feliz por ela ter os olhos fechados. Quando estavam abertos, quando
estavam a olhar para ele, eram exatamente do tom de verde certo e do tom de
verde errado, e não suportava olhar para eles.
Suspirou, levantou-se da cadeira, espreguiçou-se e aproximou-se da janela.
Estava escuro lá fora, mas isso não era problema para ele. Era fácil distinguir
as formas ondulantes, sombras sobre sombras, que contornavam a pequena
casa, a farejar, a provar. À espera. Estavam frustrados. Não tinham
conseguido ainda sequer tocar na alma que ele conduzia. Nem nesse dia, nem
no anterior, nem no dia antes desse. Na verdade, estava a ser a travessia mais
fácil que fazia há muito, muito tempo. Sorriu tristemente ao pensar em como
Dylan teria preferido as ruas a direito desta paisagem urbana degradada.
Dylan não ficaria incomodada com os prédios abandonados que faziam a
mulher olhar para cima de três em três segundos.
Pensava sempre nela assim, «a mulher». Não queria pensar no nome dela.
Era apenas um trabalho, para ele, não uma pessoa, apesar de ser simpática e
alegre. A sua boa disposição enchia o ar de calor e mantinha o céu azul. Era
também submissa, e engolira as mentiras que ele lhe dissera sem as
questionar. Todas as noites tinham chegado à casa segura com tempo mais do
que suficiente. E ainda bem, porque a mente de Tristan não estava
concentrada na sua missão.
Vazio. Era tudo o que conseguia. Vazio e sem emoções. Sem pensar. Se
estivesse concentrado, talvez sentisse pena da mulher. Parecia simpática; era
educada, amável, tímida. O que lhe acontecera era digno de comiseração —
assassinada enquanto dormia por um ladrãozeco de meia-tigela —, mas
Tristan não tinha nada para lhe dar.
Um barulho atrás de si fê-lo virar a cabeça. Era apenas a mulher, a tossir
baixinho enquanto se virava na cama. Observou-a atentamente durante um
momento, apreensivo, mas ela não acordou. Ainda bem. Não lhe parecia que
conseguisse enfrentar uma conversa.
Olhar para a escuridão da noite era distração suficiente. Depois de algum
tempo a tamborilar com os dedos no parapeito da janela, Tristan voltou a
sentar-se na cadeira e retomou a sua vigília. Calculou que teria ainda uma
hora, talvez duas, antes de o Sol nascer. Esperava que a mulher dormisse até
lá.
Isso dava-lhe muito tempo para pensar. Há seis horas que estava ali
sentado, sozinho com os seus pensamentos, e conseguira evitar pensar nela.
Sorriu tristemente. Era um recorde. Era também o máximo que conseguiria.
Fechou os olhos e procurou nas suas memórias até encontrar a que pretendia.
Olhos do mesmo tom de verde que os da alma que dormia a sono solto ao seu
lado, mas num rosto diferente. O sorriso de Tristan abriu-se mais e deixou-se
levar por aquilo que era, para ele, o mais parecido possível com um sonho.
VINTE E QUATRO

— O que vais fazer?


Tinham deixado a velha Eliza na sua velha casa e Dylan, sem outro sítio
para onde ir, seguira Jonas até à rua que sabia agora ser uma reconstituição de
uma rua em Estugarda, a cidade onde ele vivera em criança, antes da sua
curta carreira militar. Estavam sentados no capô do carro dele, com o rádio
ainda a tocar canções antigas que Dylan não reconhecia.
Soltou a respiração e tentou organizar os pensamentos.
— Vou voltar.
Jonas fitou-a com expressão grave e cautelosa.
— Tens a certeza de que é a opção correta?
— Não. — Dylan sorriu sem alegria. — Mas vou fazê-lo, mesmo assim.
— Podes morrer — avisou Jonas.
O sorriso desapareceu do rosto dela.
— Eu sei — disse, baixinho. — Eu sei. Devia ficar aqui, esperar pela
minha mãe, pelos meus amigos. Encontrar os meus familiares. Devia
simplesmente aceitar. Sei que devia...
— Mas não o vais fazer — concluiu Jonas.
Dylan fez uma careta e olhou para as mãos, que estavam apertadas uma na
outra. Que mais podia dizer? Jonas não compreenderia. E não podia censurá-
lo. Até ela própria tinha dificuldade em perceber como é que a opção certa
podia ser também a opção errada.
— A minha mãe sempre me disse que eu era teimosa — confessou, e
depois sorriu. — O Tristan dizia o mesmo.
— Sim? — Jonas riu-se.
Ela acenou afirmativamente.
— Acho que, ao princípio, o irritei muito. Estava constantemente a dizer-
lhe que o caminho não era aquele.
Era engraçado, agora, recordar aqueles primeiros dias. Quantas vezes o
obrigara a parar para a convencer a segui-lo?
— Ele contou-te a história do Pai Natal? — perguntou Jonas, divertido.
— Sim! — riu-se Dylan. Que estranho! Quando imaginara a história, fora
num contexto moderno. Imaginara a casa do Pai Natal no centro comercial da
baixa. Seria igual nos anos 30? Ou antes? — Ele tinha muita consideração
por ti, sabes? Quando me contou a tua história, disse que eras admirável. E
nobre.
— Disse? — Jonas parecia contente, e abriu um sorriso radiante quando
Dylan acenou afirmativamente para confirmar a verdade das suas palavras.
— Também o acho admirável — afirmou com ar pensativo. — O trabalho
que ele faz, sempre a mesma coisa, uma e outra vez. Não teve muita sorte no
destino que lhe calhou em sorte.
— Pois não — murmurou Dylan.
Nada disto era justo. Nem o que acontecera a Jonas, nem o que lhe
acontecera a ela. Tristan merecia estar livre desse... bom, «emprego» não era
propriamente a palavra certa. Num emprego, as pessoas recebiam um salário.
E podiam despedir-se, ir-se embora. Não, o que Tristan tinha era uma
obrigação. E já sofrera o bastante.
— Quando é que vais tentar? — perguntou Jonas, interrompendo os seus
pensamentos.
Dylan fez uma careta. Não tinha a certeza. O seu primeiro pensamento foi
que devia esperar pela manhã. Seria melhor, pois dava-lhe um dia inteiro de
luz para tentar chegar a uma casa segura. Mas depois ocorreu-lhe outra coisa.
Tristan dissera-lhe que já não precisava de dormir — e há quanto tempo
estava acordada? Não se sentia cansada. Haveria sequer algo semelhante a
uma noite neste lugar? O Sol continuava na mesma posição que estava antes
de irem falar com Eliza.
Assim, se o tempo não era objeção, a resposta seria quando achasse que
estava pronta. E quando seria isso?
Nunca.
Agora.
Pensou naquilo que enfrentava: uma porta que podia não se abrir; se se
abrisse, as terras perdidas, um exército de espetros, uma busca desesperada
para encontrar Tristan, como uma agulha num palheiro. Era uma lista
aterrorizadora que a deixou a tremer.
E o que podia fazer para se preparar? Absolutamente nada.
Dylan sentiu uma pontada de puro terror. Seria realmente capaz de fazer
isto? A sua determinação vacilou e o seu lado prático lutou desesperadamente
contra a ideia de ser obliterada, apagada da realidade. Do outro lado da porta
esperavam-na céus sanguinolentos e demónios esvoaçantes. Porque ia fazer
uma coisa dessas?
Tristan. Os seus olhos tão, tão azuis. O calor da sua mão forte na dela. A
suavidade dos seus lábios, a queimarem-na até à alma.
— Nada como o presente.
Uma porta qualquer, dissera Eliza. Qualquer porta a levaria aonde queria ir,
desde que tivesse a certeza de que queria lá chegar. Dylan sabia qual era a
porta que ia escolher.

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Menos de dez minutos depois estava em frente dela, a inspirar o aroma


embriagante das flores amarelas e cor de laranja, a semicerrar os olhos para
se proteger da luz refletida no número de metal reluzente pendurado no
centro da porta. Era a porta que a trouxera para o mundo de Jonas, onde quer
que fosse. Parecia adequado que fosse a porta usada para o deixar.
Dylan contemplou a pequena maçaneta redonda. Tudo o que precisava de
fazer era pensar no sítio para onde queria ir e, quando abrisse a porta, estaria
lá. Fixou na mente uma visão das terras perdidas: as colinas altas e
ondulantes, o vento gelado, o céu coberto de nuvens. Começou a estender a
mão, mas deteve-se. Não estava certo. Essas não eram as verdadeiras terras
perdidas. Sem Tristan, sabia o que ia encontrar. Com um arrepio, conjurou
outra imagem, a imagem de uma paisagem em diferentes tonalidades de
vermelho. Era para aí que se dirigia.
Com os dentes cerrados em concentração, esticou novamente a mão.
— Dylan. — Jonas segurou-lhe no pulso e obrigou-a a parar.
Com um leve suspiro de alívio, secretamente contente pela possibilidade de
adiar por alguns instantes, Dylan virou-se para ele.
— Como é que morreste?
— O quê? — Completamente apanhada de surpresa pela pergunta, Dylan
só conseguiu olhar para ele de boca aberta.
— Como é que morreste? — repetiu Jonas.
— Porquê? — quis ela saber, confusa.
— Bom, é só porque... se conseguires voltar, e espero mesmo que
consigas... — sorriu-lhe — ...voltarás para o teu corpo, tal como eras. O que
te aconteceu, terá acontecido de qualquer maneira. Por isso estava apenas a
pensar... como é que morreste?
— Um acidente de comboio — murmurou Dylan com os lábios dormentes.
Jonas acenou com ar pensativo.
— Quais foram os teus ferimentos?
— Não sei.
Estava tudo tão escuro quando acordara, e tão silencioso. E ela não fazia
ideia de que estava morta. Se houvesse luz na carruagem, o que teria visto?
Estaria o seu corpo caído sobre o banco? Teria ficado esmagada? Estaria
decapitada?
Se os ferimentos fossem dessa gravidade, conseguiria sequer voltar?
Dylan abanou a cabeça para afastar aqueles pensamentos mórbidos antes
que lhe roubassem a coragem. Já tinha decidido, recordou a si própria. Ia
fazê-lo.
— Não sei — repetiu —, mas não importa. — Tristan era tudo o que
importava. — Adeus, Jonas.
— Boa sorte. — Tentou sorrir e Dylan percebeu que ele achava que ela não
ia sobreviver. Virou costas àquela expressão de dúvida, mas ele falou
novamente. — Ah, só mais uma coisa.
Desta vez Dylan suspirou, frustrada.
— O que é? — perguntou, sem se virar, com a mão ainda estendida para a
maçaneta.
— Se o encontrares, diz-lhe que eu disse olá. — Uma pausa. — Espero que
sobrevivas, Dylan. Talvez nos voltemos a ver.
Depois de se despedir, afastou-se. Dylan sentiu um ligeiro frémito de
pânico quando se virou e viu a distância a aumentar entre eles.
— Não vais ficar a ver?
O que realmente queria era pedir-lhe que fosse com ela, mas não podia
fazer isso. Nunca o faria.
Ele abanou a cabeça e continuou a recuar.
— Não quero ver — confessou. Acenou-lhe e sorriu uma última vez e
depois afastou-se com passo rápido. Dylan viu-o atravessar a estrada,
contornando os carros, até desaparecer dentro de uma casa. E ficou sozinha.
A rua parecia estranhamente silenciosa. Hostil. Quase foi fácil virar-lhe
costas e encarar a porta pela terceira e última vez. Com o coração aos saltos e
gotículas de suor sobre o lábio superior, estendeu a mão para a maçaneta.
Conjurou mentalmente a visão de pesadelo, banhada de vermelho-sangue, e
quando os dedos tocaram na maçaneta sentiu os lábios a tremer ao
murmurarem «Terras perdidas, terras perdidas» uma e outra vez. Agarrou na
maçaneta redonda, respirou fundo e rodou.
Dylan estava à espera de que não acontecesse nada. Pensara deparar-se
com uma força inamovível; uma fechadura que nunca conseguiria arrombar.
Estava honestamente à espera de ter de estar ali horas, à procura da sua
coragem, da sua convicção, até ter a certeza, a certeza absoluta, de que era
aquilo que queria fazer.
Mas a porta abriu-se facilmente sob a sua mão.
Estupefacta, puxou-a e espreitou para o outro lado.
As terras perdidas.
As terras perdidas ardentes e vermelhas. O céu estava raiado de laranja
escuro e violeta. Era já meio da tarde, o que a assustou.
O caminho que seguira naquele último dia com Tristan — quando ainda
acreditava que ele viria com ela, quando o Sol ainda brilhava — estendia-se à
sua frente. Em vez da terra e areia castanha, era negro como breu. Parecia
ondular, como se houvesse algo a borbulhar abaixo da superfície. E reluzia
ligeiramente, como melaço.
Dylan susteve a respiração, levantou o pé e pousou-o delicadamente. O
caminho sustentou-a. Após um instante de hesitação, deu outro passo. Os
seus dedos soltaram a porta. Não precisava de se virar para saber que se tinha
fechado. Soube o exato segundo em que isso aconteceu.
Porque já não estava sozinha.
Almas. Assim que regressou ao reino dos barqueiros, viu-se rodeada por
almas. Eram exatamente como ela as recordava: indistintas, sombrias. Como
fantasmas, a ondular ligeiramente. Tinham rostos, corpos, mas pareciam estar
ali e não estar, ao mesmo tempo. O mesmo se aplicava às suas vozes. Quando
as observara da casa segura, estava demasiado distante, e protegida pelas
paredes da casa, para as conseguir ouvir. Mas agora estava rodeada por uma
cacofonia de vozes. Nada do que diziam era claro. Era como se estivesse a
ouvir debaixo de água, ou com um copo encostado à parede. E, à volta delas,
a contorná-las com intenção maligna, havia espetros.
Dylan soltou uma exclamação abafada, mas os demónios não se
interessaram por ela. Apesar disso, assustavam-na. Olhou automaticamente
por cima do ombro e viu a porta, firmemente fechada. Deveria tentar voltar?
Não.
— Vai, Dylan — disse a si própria. — Mexe-te.
As suas pernas obedeceram e começou a avançar num passo rápido, quase
a correr. Tentou ao máximo manter os olhos fixos à sua frente, num
semicírculo de montanhas à distância. Sabia que estas montanhas
contornavam um lago, à beira do qual havia uma casa segura.
O caminho era sulfuroso. Vapores pairavam acima dele como uma neblina
e redemoinhavam à volta dos pés de Dylan, em gavinhas que pareciam
prontas para solidificar e a agarrar, caso se demorasse demasiado tempo. Não
sabia se era apenas imaginação, mas já sentia os pés a ficarem quentes, como
se o calor passasse através das solas dos ténis. O ar era também quente, de
forma incomodativa. Era como Dylan imaginava que seria estar no meio de
um deserto, sem uma brisa para agitar o calor peganhento. Sabia a areia e
cinzas, e já tinha a boca seca. Tentou respirar pelo nariz e os pulmões
arderam, famintos por mais oxigénio. Sabia que estava quase a hiperventilar,
mas não se conseguia controlar.
Só tinha de chegar à primeira casa segura. Era tudo o que tinha de fazer, e
não queria pensar para além disso. Só precisava de chegar à primeira casa
segura.
Cerrou as mãos em punhos e olhou para a frente. Sentia a tentação, muito
forte, de olhar para as almas, de ver quem passava, mas algum sexto sentido
lhe disse que isso seria perigoso.
Pelo canto do olho via as sombras trémulas dos espetros. Sem a luz da
esfera brilhante para as atrair, pareciam não reparar nela. Mas, se reparassem,
Dylan não tinha um barqueiro para a proteger. Seria presa fácil.
— Não olhes, não olhes — repetiu entre dentes enquanto se apressava.
Caminhou e caminhou, sempre em frente, sem olhar para mais nada a não
ser as colinas à distância. Viu-as ficarem cada vez maiores e cada vez mais
escuras enquanto o Sol se aproximava do horizonte.

::::

Dylan chegou à casa segura precisamente quando o Sol, incandescente


como um carvão em brasa, começou a tocar na crista escarpada da colina
mais alta. Estava ofegante, sem fôlego, não de cansaço, embora tivesse
andado cada vez mais depressa em perseguição da luz, mas devido ao stresse
de manter sempre os olhos virados para a frente. As almas tinham continuado
a passar por ela rapidamente, mas apanhara apenas fragmentos de conversas,
frases e palavras desconexas, de vez em quando gritos lancinantes.
Quanto mais o dia avançava, mais depressa as almas à sua volta tentavam
viajar. Dylan sentira a urgência nelas, vira pelo canto do olho vislumbres de
luz branca deslumbrante — muito bela na penumbra — a incentivá-las a
avançar. Estas almas estavam a brincar com o perigo, a abusar da sorte. O
caminho até à divisória era longo para fazer antes de a noite chegar, e os
barqueiros sabiam-no.
E os espetros também. Emitiam um som como Dylan nunca tinha ouvido.
Gritos e gargalhadas fundiam-se uns nos outros. Ódio e júbilo: desespero e
excitação. O som gelou-a até aos ossos. E era quase impossível não olhar,
não se virar para a origem do som para ver que tipo de criatura podia estar tão
alegre e, ao mesmo tempo, tão torturada. Ficou tremendamente aliviada
quando viu a casa segura. Neste deserto cor de sangue, temera que a casa não
estivesse lá, ou que não fosse a mesma. Mas ali estava ela, um oásis no meio
do deserto, e quando Dylan se atirou contra a porta estava quase a chorar.
A noite passou lentamente.
Acendeu a lareira e deitou-se na cama. Fechou os olhos. Queria dormir.
Não porque estivesse cansada, mas para se esconder. Para passar o tempo.
Contudo, o sono escapou-lhe. Passou as horas a ouvir os risos de êxtase dos
espetros que se banqueteavam com as almas que tinham sido demasiado
lentas, aquelas cujos barqueiros tinham falhado.
VINTE E CINCO

— Estou morta.
Não era uma pergunta, pelo que Tristan não se deu ao trabalho de
responder. Continuou a olhar para as chamas que dançavam na lareira e o
mergulhavam numa espécie de transe semiconsciente. Detestava aquela parte.
Detestava as lágrimas e os gemidos e as súplicas. Tinham chegado quase ao
vale sem que a mulher se tivesse apercebido do que se passava. E podiam ter
conseguido alcançar a divisória — uma proeza que Tristan nunca conseguira,
com os milhares de almas que conduzira —, se não fossem os espetros. Esta
alma, esta mulher, era tão tímida, tão dócil e obediente que nem por uma vez
questionara a palavra de Tristan. Tornara-se até quase irritante, como se fosse
uma folha em branco, completamente vazia. Mas, pelo menos, era
conveniente.
Os espetros, contudo, nunca deixariam uma pessoa tão inocente e ingénua
passar pelas terras perdidas sem lutarem por ela. Tinham-se atrevido a
enfrentar o sol, recorrendo às sombras de árvores e arbustos para montar o
seu ataque. Fora fácil escapar-lhes, mas tinham feito muito barulho. E Tristan
não podia fazer nada para impedir que a mulher olhasse na direção do som.
— O que me aconteceu? — A voz dela era um sussurro assustado.
Tristan pestanejou, regressando ao presente, e virou-se para ela. A mulher
tinha os ombros curvados e os olhos muito abertos, os braços apertados à
volta do peito, como se tentasse abraçar-se a si própria. Olhou para ela e para
a sua expressão patética e obrigou-se a não sentir absolutamente nada. De
qualquer modo, era o barqueiro dela e tinha de lhe responder.
— A tua casa foi assaltada. O ladrão apunhalou-te enquanto dormias.
— E aquelas... coisas, lá fora, o que são?
— Demónios, espetros. — Não disse mais do que isso. Não queria ter de
dar grandes explicações.
— O que querem fazer comigo?
— Se te apanharem, devoram-te a alma e tornas-te um deles. — Tristan
afastou o rosto para não ter de ver o terror no dela. Mesmo contra vontade,
começava a sentir pena dela, e não podia dar-se a esse luxo. Nunca mais.
O silêncio que se seguiu prolongou-se tanto que Tristan quase se virou para
olhar para a mulher. Depois ouviu um leve soluço. Ela estava a chorar, e isso
era algo que não queria ver.
— Ao princípio, pensei que me ias assaltar, sabes? — disse ela baixinho,
em tom mais calmo do que ele esperava. Soltou uma risada desprovida de
humor. — Quando te vi em frente da minha casa, pensei que fosses um dos
bandidos do bairro e que me quisesses roubar. Estive quase a chamar a
Polícia.
Tristan acenou com a cabeça sem olhar para ela. Era a forma como estava
vestido: a sua idade, o seu rosto. Não era a aparência certa para esta mulher.
Devia ter sido alguém mais velho, um cavalheiro de ar distinto. O tipo de
homem em quem ela confiasse. Não devia ser o mesmo rapaz que fora buscar
Dylan ao comboio.
Porque não mudara? Não fazia sentido. Nunca tinha mantido a mesma
forma de uma alma para a outra. E depois, quando estavam a deixar a rua da
casa da mulher, podia jurar que vira alguém a olhar para ele. Não
compreendia o que se passava, mas não lhe agradava. Assim era mais difícil
esquecer Dylan, tentar deixar a dor para trás.
— O que teria acontecido — perguntou ela, por fim —, se eu tentasse fugir
de ti?
Tristan falou sem desviar o olhar das chamas.
— Eu ter-te-ia detido.
Em silêncio, a mulher refletiu nestas palavras. Tristan tentou perder-se
novamente num semitranse, mas não conseguia desligar os pensamentos. Deu
por si a desejar que a mulher falasse, só para aliviar a tensão. Momentos
depois, ela fez-lhe a vontade.
— Para onde vamos?
Claro que tinha de fazer essa pergunta. Tristan formulara uma resposta
modelo há muitos anos.
— Estou a guiar-te através das terras perdidas. Quando concluíres a
viagem, estarás em segurança.
— E onde é que estarei? — insistiu ela.
— Além.
Além. Eles seguiam sempre para além. E ele voltava para trás. Há muito
que se reconciliara com esta grande injustiça e que isso deixara de o
incomodar. Até...
Abriu a boca, enquanto uma mensagem começava a formar-se na sua
mente. A mulher tinha uma eternidade pela frente, com certeza que podia
perder alguns momentos para procurar uma alma, se ele lho pedisse? Porém,
antes de conseguir decidir o que queria dizer, fechou novamente a boca.
Dylan estava onde ele nunca a conseguiria alcançar. Nem com as mãos,
nem com palavras. E de que adiantava enviar-lhe uma mensagem, quando ela
não tinha forma de lhe responder?
Suspirou.
— Amanhã temos uma viagem perigosa pela frente — começou.
O vale seria complicado. Tinha de se concentrar. Tinha de ser o barqueiro.

::::

As terras perdidas não estavam mais frescas sob a primeira luz da manhã.
Dylan estava à porta da casa segura há já algum tempo, a debater consigo
própria. Já havia espetros lá fora, a esvoaçar sobre a superfície do lago, como
pássaros. Mais uma vez, não se tinham aproximado dela. A casa segura
parecia estar a funcionar. Podia ficar ali. Ficar ali, em segurança, e esperar
por Tristan. Mas, e se ele não conseguisse chegar até lá? E se a alma que
conduzia fosse demasiado velha, ou demasiado lenta? Além disso, estava
ansiosa por o ver. A ideia de esperar, fosse o tempo que fosse, era agonizante.
Tinha de o encontrar.
Mas o lago... Quase se afogara, da última vez. Caíra para a água, onde se
debatera enquanto as criaturas das profundezas brincavam com ela, puxavam,
empurravam, rasgavam. Se não fosse Tristan, nunca teria saído daquela água.
Lembrava-se do sabor dela. Fétida, estagnada, poluída. E espessa, como óleo
sobre a sua língua. E isso fora nas terras perdidas como ela as criara, com
urze e colinas.
Nestas terras perdidas ardentes era ainda pior. A água fervilhava, venenosa
e fumegante. Não parecia suficientemente substancial para suportar o peso do
velho bote, mas este continuava onde o tinham deixado, a baloiçar à
superfície. Era um alívio. Dylan temera que se tivesse afundado, ou que
tivesse dado à costa feito em pedaços. Mas ali estava ele.
No meio do lago.
Suspirou enquanto pensava. Só tinha duas opções: entrar na água para o ir
buscar, ou contornar o lago. Caminhar era muito mais apetecível do que
entrar na água negra e oleosa, com as coisas escondidas nas profundezas
turvas. Mas era um longo caminho. Estaria a correr contra o sol e não estava
certa de conseguir vencer a corrida.
Portanto, era apenas uma escolha entre o que seria pior: a água ou a noite?
Tristan achara que o pequeno bote era a melhor opção, apesar dos perigos
do lago. Isso devia significar que o caminho por terra era demasiado longo —
e, nesta versão das terras perdidas, demasiado quente — para o conseguir
fazer antes de anoitecer. E ela já sobrevivera uma vez às águas geladas do
lago. E nunca tinha estado fora de uma casa segura durante a noite.
O lago, então. O ranger dos seus pés sobre as pedrinhas da margem era o
único som que se ouvia enquanto descia a leve inclinação até à água. Ainda
era muito cedo para se verem outras almas. Deviam estar todas a sair das suas
casas seguras, tal como ela, preparando-se para atravessar o lago. Pensara
nelas durante as longas horas em que esperara pelo nascer do dia, enquanto
tentava sem sucesso bloquear os gritos dos espetros. Não conseguia ver as
outras casas seguras, mas sabia que deviam ser perto. De certa forma, Dylan
estava contente por estar sozinha. As outras almas deixavam-na pouco à
vontade. Eram sinistras... estranhas. E, embora soubesse que era ridículo,
tinha inveja delas por ainda terem os seus barqueiros, quando ela precisava de
ir à procura do dela.
E não tinha a mais pequena ideia de como o faria. Mas recusava-se a pensar
nisso ainda. Um passo de cada vez — era a única maneira de sobreviver
naquele lugar. E o próximo passo era atravessar o lago.
Quase desistiu à beira da água. As pequenas ondas que rebentavam na areia
molharam-lhe as biqueiras dos ténis. Avançar significava deixar o líquido
repugnante tocar-lhe na pele e dar às criaturas escondidas uma oportunidade
de a apanharem. Dylan hesitou, mordendo o lábio, mas não havia mesmo
alternativa. Era ir em frente ou voltar para trás. Respirou fundo e forçou-se a
avançar.
Um frio gelado e um calor ardente. As duas sensações atingiram Dylan em
simultâneo. O líquido, mais denso do que água, lutava contra cada um dos
seus passos. Cobriu-lhe os joelhos, depois as ancas. Embora não conseguisse
ver o leito do lago, foi arrastando os pés com cuidado, sobre a mistura
instável de areia e pedras. Até aí, tudo bem. Era extremamente desagradável,
mas continuava em pé e ainda não sentira as garras de nenhum demónio.
Mais alguns passos e teve de levantar os braços para não molhar as mãos.
Sentiu a água negra na barriga, agoniada. Esperava conseguir chegar ao
pequeno bote antes de ficar sem pé.
Fixou os olhos nele. Não estava realmente no meio do lago, mas ainda
tinha o comprimento de uma piscina a separá-la dele. As suas esperanças de
não ter de nadar dissiparam-se ao dar mais um passo que a deixou com água
pelo peito, e o passo seguinte com água pelo pescoço. Levantou o queixo,
tentando manter a boca fora de água, mas os vapores nauseabundos entraram-
lhe pelo nariz, causando-lhe vómitos. Estava a tremer de frio, de tal forma
que quase não sentiu algo a deslizar lentamente em volta da sua perna
esquerda, e depois do tornozelo direito. E da barriga.
Quase.
— Merda! — gritou. Baixou os braços violentamente para tentar espantar o
que quer que estivesse a agarrar-lhe no casaco. Sentiu escamas ásperas
roçarem-lhe nos dedos antes de a criatura se afastar. Pouco depois, contudo,
apareceu novamente por trás dela e puxou-a pelo capuz do casaco, que lhe
apertou a garganta à frente.
Dylan debateu-se com as mãos e os pés. Gotas de água oleosa salpicaram-
lhe o cabelo, as faces, entraram-lhe nos olhos e na boca. A cuspir, cega,
arrancou o casaco das mandíbulas da criatura e precipitou-se para a frente, na
direção do bote, tentando nadar e lutar ao mesmo tempo. Era deselegante e
cansativo, mas conseguiu impedir as criaturas de a agarrarem e estava cada
vez mais perto do barco. Quase lá. Esticou o braço para se agarrar à beira do
bote. Já o apanhara. Mas depois, subitamente, não conseguia respirar. Três
dos demónios tinham cravado os dentes no casaco e a força combinada dos
três era demasiada para se conseguir libertar.
Eles mergulharam no lago gelado, puxando-a consigo. Dylan abriu a boca
para gritar precisamente quando a água se fechou sobre a sua cabeça,
entrando-lhe pela boca, densa e tóxica. Em pânico, soltou todo o ar que tinha
nos pulmões, demasiado desesperada por limpar a boca para conseguir
pensar. Assim que os seus pulmões se contraíram, lutaram para inspirar.
Dylan fechou a boca com força e combateu o desejo de respirar. Enquanto
isso, estava cada vez mais fundo, e desta vez não tinha Tristan para a salvar.
Tristan. Viu o rosto dele na sua mente com uma clareza absoluta. Isso deu-
lhe forças para lutar. Abriu o fecho do casaco, torceu-se e conseguiu despi-lo,
e depois agitou as pernas desesperadamente para voltar à superfície. Subiu e
subiu, durante um tempo que lhe pareceu interminável. Com certeza que não
estava assim tão fundo! Estaria a nadar na direção errada? A descer ainda
mais? Não conseguia controlar por muito mais tempo a necessidade de
respirar.
Precisamente quando pensava que ia perder os sentidos, a sua cabeça
rompeu a superfície e inspirou grandes golfadas de ar. Apalpou, às cegas, à
procura do barco, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelo rosto, deixando
rastos na cola negra que lhe cobria a pele. Segurou-se com ambas as mãos e
conseguiu içar-se para dentro do bote.
Ficou deitada no fundo da embarcação durante um momento, de cara para
baixo, ofegante, a tentar perceber se tinha alguma coisa agarrada aos
tornozelos antes de se virar para enfrentar os horrores, mas não sentia nada
além do frio. Com dificuldade, virou-se e sentou-se no banco de madeira
duro. Todo o corpo lhe tremia, tanto do frio como do choque, e sentia a
cabeça a andar à roda. Estava também ensopada, com as roupas cobertas
daquela água viscosa. Mas estava viva.
Agora tinha de remar. Não havia remos, uma vez que o barco se virara da
última vez, mas lembrou-se de que também dessa vez o barco não tinha
remos — ao princípio. Dylan fechou os olhos, esticou as mãos e procurou
com os dedos.
— Vá lá, vá lá — murmurou, arranhando as tábuas. — Fizeste-o pelo
Tristan. Como raio queres que atravesse?
Nada. Dylan abriu os olhos e olhou para o lago. Eram pelo menos
oitocentos metros até à outra margem, e o ar estava completamente calmo,
sem qualquer vento que pudesse empurrá-la — de qualquer maneira, não
tinha vela. E nem pensar que ia tentar nadar. Nada a conseguiria arrancar de
dentro deste barco.
— Raios! — gritou, com a voz muito estridente no meio do silêncio. —
Odeio este lugar! Dá-me lá o raio dos remos!
Bateu no lado do barco, e depois virou-se e atirou-se de novo para cima do
banco, completamente perdida.
Os remos estavam muito bem encaixados nos seus apoios, à espera dela.
Dylan fitou-os, estupefacta.
— Oh! — exclamou. Depois olhou para o céu, insegura. — Obrigada?
Não sabia com quem estava a falar, se é que havia alguém, e sentiu-se
idiota, apesar de não haver ninguém por perto para a ver. Pegou nos remos,
mergulhou-os na água negra e começou a remar.
Remar era difícil. Dylan recordava-se vagamente de Tristan se ter rido dela
quando lhe perguntara se ele queria que ela remasse, dizendo qualquer coisa
sobre não querer ficar no lago para sempre. Não parecia muito difícil quando
era ele a fazê-lo, mas Dylan estava a achar quase impossível. O bote não ia na
direção que ela queria, e tentar movê-lo sobre a água coberta daquela
estranha neblina era como tentar puxar o peso do mundo. Pior ainda, as suas
mãos estavam sempre a escorregar nos remos e ao fim de dez minutos já
tinha uma bolha na parte de dentro do polegar. O seu progresso era muito,
muito lento.
Mais ou menos a meio do caminho, algo a distraiu momentaneamente das
dores nos braços. Um barco passou por ela na direção oposta. Deslizava
lentamente sobre a água, com os seus ocupantes a tremeluzirem, indistintos.
Depois de esse primeiro barco passar apareceu outro, e outro. Pouco depois, a
superfície do lago estava coberta de pequenos botes, uma frota indolente que
criava uma espécie de nevoeiro a pairar sobre o lago.
Era muito mais difícil não olhar para estas almas. Dylan tinha de estar
virada na direção de onde eles vinham. Tentou manter os olhos na proa do
seu próprio barco, mas era uma luta combater a vontade de olhar para cima.
Principalmente quando um dos barcos teve problemas. A água à volta do
seu bote continuou calma, mas, mesmo sem levantar a cabeça, Dylan
percebeu o que se passava. Primeiro, o barulho mudou. Em vez do som suave
da água a embater na madeira e do murmúrio distorcido de uma centena de
conversas, ouviu um lamento agudo. Não era o som gutural dos espetros, mas
sim proveniente de uma das almas. Dylan tinha a certeza. Depois havia a luz.
O discreto brilho branco das esferas mal se notava sob a luz incandescente e
vermelha do Sol. Porém, da direção do grito, a esfera mais próxima brilhou
intensamente. Era como se, de repente, ela tivesse tirado uns óculos de lentes
coloridas e o mundo parecesse momentaneamente normal.
Viu imediatamente o barco. Estava mesmo à sua frente, talvez a cem
metros dela, e baloiçava de um lado para o outro como se estivesse a ser
atacado por um furacão. Era difícil de ver, porque a esfera que flutuava no
centro do barco brilhava tanto que lhe feria os olhos. Mesmo assim, não
conseguiu desviar o olhar. Era como se a esfera estivesse a chamá-la. Não,
compreendeu de súbito. Estava a chamar a sua alma... mas a alma estava a
ignorá-la.
A alma estava a olhar para a água.
Perante os olhos de Dylan, a água ergueu-se e formou uma silhueta
distorcida que, de onde ela estava, parecia uma garra. A garra destacou-se do
lago, separou-se, e transformou-se numa dezena, não, duas dezenas de
criaturas mais pequenas. Como morcegos.
As criaturas do lago.
Formaram um enxame sobre a alma e o barco começou aos saltos, quase a
virar. Como se tivessem estado à espera de autorização, alguns espetros que
esvoaçavam por cima, arriscando o sol, juntaram-se ao ataque.
— Não! — gritou Dylan, vendo, um segundo antes de acontecer, que o
barco ia virar.
Mal a palavra lhe escapou dos lábios tapou a boca com a mão, mas era
tarde demais. Tinham-na ouvido. As criaturas do lago continuaram a puxar a
outra alma para as profundezas, indiferentes à esfera, que estava agora a
pulsar furiosamente. Depois os espetros lançaram-se sobre ela. Sem esfera,
sem barqueiro para a proteger, não precisavam de esperar pela escuridão para
se banquetearem com ela.
— Raios! Maldição! Idiota!
Dylan começou a remar como uma louca, mergulhando os remos na água o
mais depressa que conseguia e empurrando-os com toda a sua força. Mas não
era suficiente. Nem de longe. Os espetros voavam rente aos vapores como se
se alimentassem deles. No tempo em que ela remou três vezes, já tinham
percorrido metade da distância. Conseguia ouvir os seus rosnidos de
antecipação.
Era agora. Ia morrer.
Dylan parou de remar e parou de respirar. Olhou para eles, à espera. Sabia
exatamente qual seria a sensação quando lhe trespassassem o peito: como
gelo no coração. Nos seus últimos segundos, perguntou-se quanto tempo
duraria e se doeria muito.
Quando os demónios percorreram os últimos metros, fechou os olhos. Não
queria ver-lhes as caras.
Mas não aconteceu nada.
Eles ainda ali estavam, tinha a certeza disso. Conseguia ouvi-los, a silvar e
a rosnar e a guinchar, mas não sentia nada. Nada, além do bater do seu
coração e do suor gelado que lhe deslizava pelas costas, apesar do calor
intenso do sol sanguinolento. Confusa, Dylan entreabriu os olhos, deixando
penetrar um raio de luz vermelha sob a pálpebra.
Eles ainda ali estavam; conseguia vê-los à sua volta. Fechou os olhos com
força outra vez, franzindo o rosto. Porque não estavam a atacar? Era difícil de
aceitar, difícil de acreditar que podiam estar tão perto e não lhe tocar... só
porque tinha os olhos fechados? Mas não havia outra explicação. Quase sem
se atrever a respirar, Dylan estendeu os braços e, às apalpadelas, procurou os
remos. Com muito cuidado, mergulhou-os na água e começou a remar. Uma
remada de cada vez, foi avançando através da água. Os rosnidos
transformaram-se num trovão, mas era um som de frustração e nada lhe
tocou.
— Não olhes, não olhes, não olhes — entoou Dylan entre dentes,
murmurando as palavras ao ritmo dos remos, a tremer com o esforço. Pior
ainda, não conseguia ver para onde ia, e sabia que não era boa remadora o
suficiente para remar em linha reta. Quem sabia onde iria parar, mas, desde
que fosse fora de água, dar-se-ia por feliz. Tentou lembrar-se da distância que
ia desde a praia até à casa segura do outro lado da colina. Não lhe parecera
muito; só uma colina. Só uma colina. Só uma colina. Concentrou-se nesse
pensamento. Nisso, e em manter os olhos fechados.
Um solavanco atrás dela quase deitou por terra todo o seu trabalho árduo.
Por um segundo, pensou que os espetros estavam a atacar. Abriu os olhos
instintivamente, em pânico, antes de os obrigar a fecharem-se de novo.
Apanhou um breve vislumbre de algo escuro a mergulhar em direção a ela
antes de apertar novamente as pálpebras, franzindo todo o rosto para as
manter fechadas. Tentou remar, tornar a mergulhar os remos na água, mas
eles bateram em qualquer coisa dura e lançaram um choque doloroso para
ambos os seus pulsos. Depois ouviu algo a raspar, um som estridente que lhe
lançou vagas de adrenalina pelas veias antes de o cérebro conseguir
raciocinar.
Era a praia. Conseguira chegar a água rasa. O bote já não baloiçava
suavemente; estava encalhado na areia.
Sair do bote de olhos fechados não era fácil. Mesmo encalhado, como
estava, o pequeno barco inclinou-se e abanou quando ela se mexeu, fazendo-a
gritar e perder o equilíbrio. Depois, quando se atirou sobre a borda, a queda
pareceu-lhe assustadoramente longa. Quando os seus pés tocaram no chão, o
choque lançou-lhe agonia e frio pelas pernas acima.
Estava na água.
VINTE E SEIS

Quando se apercebeu disso, o terror quase acabou novamente com ela.


Entreabriu os olhos e viu os espetros a esvoaçarem à volta da sua cabeça
como um enxame de moscas. Fechou-os rapidamente, mas ainda sentia o gelo
da água do lago nos joelhos. Seria imaginação, ou havia algo a deslizar entre
os seus tornozelos, enrolando-se como uma cobra a preparar-se para apertar?
Horrorizada, levantou o pé esquerdo até ficar fora de água, mas a criatura, ou
o que quer que fosse, simplesmente passou para a outra perna. Desta vez não
havia dúvidas: estava ali qualquer coisa.
Com um gritinho, Dylan entrou em ação. Chapinhou em direção à margem,
de olhos fechados, atrapalhada porque, a cada passo, tinha de tirar o pé da
água e sacudi-lo para se livrar do que lá estava. Sabia que não devia olhar e,
tal como acontecera na carruagem de comboio onde tudo isto começara, a sua
mente preencheu as lacunas. Imaginou uma mistura entre uma enguia e um
caranguejo com pinças cortantes, ou com uma boca enorme, como um
tamboril, repleta de dentes afiados como lâminas. Agoniada e em pânico,
correu e só parou quando ouviu o ranger de pedras debaixo dos pés.
Desorientada e exausta, caiu de gatas no chão e passou as mãos sobre as
pedras. Terra, pensou. Estou em terra. Estou em segurança.
Porém, ainda com medo de abrir os olhos, estava completamente perdida.
Sabia que havia um caminho que subia a colina, mas isso fora nas suas terras
perdidas. Aqui podia não ser igual. E, mesmo que fosse, como havia de o
encontrar, se não podia abrir os olhos?
Dylan franziu o rosto, angustiada, e uma lágrima escapou-se entre as
pálpebras fechadas com força, deslizando-lhe pelo rosto até lhe cair sobre a
mão. Tinha os lábios e os ombros a tremer. Estava encurralada. Presa. Que
distância teriam percorrido as outras almas até se encontrarem nesta situação?
Ficou onde estava durante dez minutos, dez preciosos minutos de luz do
dia, até lhe ocorrer um pensamento. Talvez pudesse ver... desde que não
olhasse. Se conseguisse manter a cabeça baixa, sem olhar para mais nada
senão o chão, resistindo a todo o custo à tentação de virar o olhar para as
coisas que gritavam pela sua atenção... Se conseguisse fazer isso...
Era uma ideia melhor do que ficar ali à espera da noite. A escuridão, o frio,
os gritos; sabia que não sobreviveria a isso.
Respirou fundo e abriu os olhos com cuidado. Concentrada apenas em
olhar para baixo, esperou. Demorou apenas três segundos. Um espetro voou
rente ao chão e subiu em direção à cara dela. Dylan pestanejou — uma reação
automática —, mas conseguiu não seguir o movimento com o olhar e
continuar concentrada no chão. No último segundo, o espetro desviou-se,
rosnando-lhe venenosamente ao ouvido ao passar, tão perto que a deslocação
do ar lhe agitou o cabelo.
— Sim! — exclamou Dylan baixinho.
Mas um espetro era fácil. Os outros demónios, ao se aperceberem de que
ela tinha aberto os olhos, tentaram a mesma abordagem, mergulhando sobre
ela, um após outro. O ar era um turbilhão confuso de negro que lhe
dificultava a visão, mas Dylan ignorou-os. Com as mãos esticadas ao lado do
corpo para se equilibrar, desorientada pelo movimento constante, pôs-se em
pé. Um arrepio percorreu-a ao sentir o ar a vibrar à sua volta.
Virou a cabeça lentamente de um lado para o outro, à procura do caminho.
Devia ser perto do telheiro do bote, mas já não conseguia ver o pequeno
barracão. Se não havia barracão, não havia caminho, mas precisaria
realmente dele? Sabia que tinha de subir; devia ser suficiente. Teria de ser,
porque a tarde estava a passar a uma velocidade assustadora.
De olhos baixos, concentrou-se nas pedrinhas escorregadias e depois, à
medida que se afastava da água, na terra avermelhada. Havia tufos de plantas
a crescer na encosta, mas não a urze e ervas altas a que se habituara. Estas
eram roxas e pretas, com folhas que terminavam em espigões aguçados e
caules adornados com espinhos. E tinham um cheiro, um fedor pungente a
podridão e decomposição. Agora que estava a afastar-se do lago, o calor das
terras perdidas atacou-a com renovado fervor. As suas roupas secaram e
ficaram tesas, manchadas do negro do lago, e começaram a colar-se-lhe ao
corpo à medida que a transpiração as humedecia de novo. Sentia a cabeça a
arder sob o brilho inclemente do sol.
Era horrível. Não conseguia respirar e, de poucos em poucos segundos, os
espetros mergulhavam sobre ela, tentando apanhá-la distraída. Não se atrevia
a levantar a cabeça para avaliar o seu progresso, mas doíam-lhe as pernas e as
costas por estar dobrada. Assustada, com dores e exausta, Dylan começou a
chorar. Os espetros riram-se, como se conseguissem sentir como ela estava
perto de desistir, de sucumbir. Dylan tentou recompor-se, com as lágrimas a
turvarem-lhe a visão e os passos cada vez mais incertos.
Quando a gravilha finalmente deu lugar ao terreno rochoso perto do cimo
da colina, o pé de Dylan bateu numa pedra que se recusou a sair da frente e
ela tropeçou. Esticou os braços com uma exclamação abafada, focando os
olhos no chão enquanto caía.
As mãos ampararam a maior parte da queda, e depois bateu com o peito no
chão. Levantou a cabeça e viu-se cara a cara com um espetro. Só teve tempo
para ver o seu rosto minúsculo e franzido distorcer-se num esgar de
satisfação antes de se precipitar sobre ela. O gelo invadiu-a, como se tivesse
mergulhado no lago.
Depois de ter visto um, parecia impossível não olhar para os outros, e os
demónios atacaram em massa, puxando-a e agarrando-a, penetrando nela até
aos ossos. Com Dylan caída por terra, os espetros já tinham metade da
batalha ganha. Sentiu-se a afundar, a deslizar para baixo como se o solo
compacto se tivesse transformado em areias movediças.
— Não! — gritou. — Não, não, não!
Não chegara até ali para morrer naquele momento. Mais uma vez, o rosto
de Tristan dançou-lhe perante os olhos, e o azul vívido dos seus olhos era o
remédio perfeito neste inferno cor de sangue. Foi como uma lufada de ar
fresco que a galvanizou. Com um esforço monumental, apoiou os pés no
chão e levantou-se violentamente, sacudindo os espetros que se agarravam às
suas mãos e cabelo. Depois desatou a correr.
Doíam-lhe as pernas, tinha os pulmões em brasa, e as garras de inúmeros
espetros cravavam-se profundamente na t-shirt ensopada de suor e no cabelo.
Olhou para o cimo da colina e lutou contra eles. Os espetros uivaram e
rosnaram, voando em torno dela como abelhas furiosas. Mas Dylan não
parou. Chegou ao cimo e a descida seria muito mais fácil.
Na verdade, demasiado fácil. E rápida — demasiado rápida. Os pés quase
não conseguiam acompanhar o corpo puxado pela gravidade na encosta
íngreme. Ao contrário dos espetros, esta era uma batalha que não podia
ganhar — nem queria. Em vez disso, deixou-se ir, acelerando pela encosta
abaixo, concentrada apenas em aguentar-se de pé. Se caísse ali, era o fim. A
rebolar não conseguiria controlar para onde olhava.
De súbito, a casa segura apareceu. Estava ali, mesmo à sua frente. A
inclinação tornou-se menos pronunciada, o que lhe permitia controlar melhor
a velocidade. Estava tão perto; ia conseguir. Os espetros também o
perceberam e redobraram os seus esforços, voando tão perto da cara dela que
Dylan sentia as asas a cortarem-lhe as faces, e enrolando-se às suas pernas
para a fazer tropeçar. Mas era tarde demais. Dylan tinha os olhos postos na
casa segura e nada que eles fizessem conseguiria afastá-los do seu destino.
Contornou a esquina da casa a toda a velocidade e lançou-se contra a porta.
Sabia que não precisava de o fazer, mas fechou-a com força assim que se viu
no interior. A calma instalou-se de imediato. Ficou parada no meio da
divisão, a inspirar oxigénio para os pulmões esgotados e a tremer da cabeça
aos pés.
— Consegui — murmurou. — Consegui.
Durante algum tempo, teve calor, aquecida por dentro pelo pânico e pela
adrenalina que era como ácido nas suas veias, mas na penumbra interior o ar
rapidamente arrefeceu. Pouco depois, tremia de frio.
Esfregou os braços nus. Era mais do que o frio que a fazia tremer. As
sombras dos espetros do outro lado da janela deslocavam-se sobre o chão da
casa. Tentou ignorá-las, mas não era fácil. O som dos seus uivos trespassava-
lhe o cérebro e, com o silêncio dentro da pequena casa de pedra, não havia
nada para lhe distrair os ouvidos.
Deixou-se cair numa das cadeiras e apertou os joelhos contra o peito para
se aquecer. Mas não era suficiente, e pouco depois estava a bater os dentes.
Levantou-se e, com movimentos rígidos, dirigiu-se à lareira. Não havia
fósforos para acender o lume, como na casa segura anterior, mas lembrou-se
de como os remos tinham aparecido do nada no barco. Com a madeira que
encontrou num cesto ao lado da lareira, construiu um triângulo sobre a grelha
e fitou-o com concentração.
— Por favor? — implorou baixinho. — Por favor, preciso mesmo disto.
Não aconteceu nada. Dylan fechou os olhos e repetiu mentalmente a sua
súplica patética, sustendo a respiração e cruzando os dedos. Ouviu um
estalido, seguido por um crepitar. Quando abriu os olhos, viu chamas.
— Obrigada — murmurou automaticamente. Era desconfortável estar
ajoelhada no chão de pedra fria, mas não se mexeu. O fogo era pequeno e não
aquecia muito. Tinha de pôr os dedos mesmo em cima das pequenas chamas
para sentir o seu calor delicioso. A luz também a fez ficar onde estava,
enquanto as sombras se alongavam lá fora. Desejou ter algumas velas para
acender.
Aos poucos, o fogo cresceu, dissolvendo os arrepios que ainda percorriam
o corpo de Dylan. Franziu o nariz quando sentiu o cheiro fétido do lago a
erguer-se das roupas quentes. Sentia-se imunda, e nem imaginava qual seria o
seu aspeto. Olhou em volta e viu o grande lava-loiça e a cómoda. Era a casa
segura onde conseguira lavar as roupas na viagem anterior. Sabia que tinha
gastado o sabão todo, mas mesmo que só as pudesse passar por água sentir-
se-ia melhor. Mais limpa. E desta vez não tinha Tristan para a ver vestida
com as roupas largas e desirmanadas que tinham encontrado numa das
gavetas.
Sorriu ao lembrar-se da vergonha que sentira, com a roupa interior
pendurada nas cadeiras à vista dele.
Sem as histórias de Tristan, pareceu-lhe demorar muito mais tempo a
encher o lava-loiça e, sem o resto de sabão, não sabia se conseguiria tirar
alguma coisa das manchas pretas nauseabundas que lhe cobriam a roupa. De
qualquer maneira, esfregou-as o melhor que conseguiu e pendurou-as nas
costas das cadeiras. Vestiu as roupas largas da cómoda e, ignorando a cama
onde se aconchegara no calor de Tristan, sentou-se num pedaço de carpete
desbotada ao lado da lareira. De qualquer modo, não valia a pena deitar-se.
Aqui, sozinha, com os uivos constantes dos espetros lá fora, não conseguiria
dormir de certeza.
A noite arrastou-se. Dylan tentou não pensar e deixou as chamas induzirem
uma espécie de torpor, como Tristan lhe dissera que costumava fazer
enquanto as almas dormiam. Não era fácil — cada som a fazia saltar e virar a
cabeça para as janelas negras —, mas, por fim, a alvorada cor de sangue
despertou-a. Gemeu quando se levantou do tapete. Ficara com os músculos
perros e doridos durante a noite. Com cuidado, tentando reduzir os
movimentos ao mínimo, despiu as roupas emprestadas e tornou a enfiar as
suas roupas rasgadas e ainda tesas. Pareciam horrivelmente sujas na mesma,
mas cheiravam um bocadinho melhor. Demorou-se um pouco a fazer a dobra
nas calças de ganga, para impedir que a lama sulfurosa as ensopasse tão
depressa. Depois tratou do cabelo, que tentou apanhar num carrapito
apertado.
Sabia que o que estava realmente a fazer era a adiar. Tinha de voltar a sair e
enquanto ali ficava estava a desperdiçar a luz do dia. No entanto, sabia que o
dia ia ser duro. Conseguira atravessar o lago, sim, mas agora tinha de tentar
encontrar a próxima casa segura numa paisagem totalmente estranha e sem
pontos de referência, nesta terra vermelha de arbustos enegrecidos. E tinha de
viajar sem olhar para as outras almas, para as esferas que as guiavam ou para
os espetros que se acumulavam em torno delas. Oh! E, de alguma maneira,
tinha de fazer tudo isto enquanto procurava a sua própria esfera, que podia ou
não ter o aspeto de Tristan.
Impossível. Completamente impossível.
Apoiou-se na cadeira à sua frente, subitamente acometida de um pânico
avassalador, e fechou os olhos com força para tentar conter as lágrimas. De
nada servia chorar; fora ela quem se colocara nesta posição. Ir em frente ou
voltar para trás. Eram essas as suas opções. O barco ainda lá estava, agora
convenientemente encalhado na areia. Podia voltar a atravessar o lago,
refugiar-se na última casa segura e atravessar novamente a divisória amanhã.
E então ficaria total, absoluta e eternamente sozinha.
Dylan respirou fundo e fez um esforço para soltar lentamente o ar. Engoliu
em seco e afastou da mente o medo e a insegurança. Imaginou o rosto de
Tristan quando a visse e percebesse que ela voltara por ele. Imaginou a
sensação dos seus braços à volta dela, quando a abraçasse. O cheiro dele.
Com essa imagem firmemente gravada na mente, atravessou a sala e abriu a
porta.
Assim que pôs os pés fora da proteção da casa, os espetros que a
aguardavam deram início à sua dança cruel, um redemoinho caótico que
pretendia obrigá-la a olhar para eles. Ignorou-os e manteve os olhos fixos no
horizonte, sem ver. Era como olhar através do para-brisas de um carro
enquanto a chuva caía sobre o vidro. Custava-lhe fazer o esforço para não
focar o olhar, e fazia-lhe doer a cabeça, mas era mais fácil do que estar
sempre a olhar para baixo. Os seus olhos desfocados percorreram a linha de
picos e vales, tentando encontrar algo que reconhecesse — um trilho, um
ponto de referência, qualquer coisa.
Nada. Tinha quase a certeza de que nunca estivera ali antes. O terror
apoderou-se novamente dela e quase se desconcentrou, perturbada por um
demónio que sibilava perto do seu ouvido de forma ameaçadora. No último
instante, conseguiu combater o impulso de se virar para ele. Pensa, disse a si
própria. Tem de haver alguma coisa.
Mas não havia. Nada a não ser rochas aguçadas e o solo sanguinolento.
Isso, e os primeiros contornos de almas a flutuar em direção a ela à distância.
— De onde é que vocês vêm? — pensou alto.
De uma casa segura. Cada uma delas devia ter passado a noite numa casa
segura, claro. E todas pareciam vir mais ou menos da mesma direção. A
única coisa sensata a fazer, pensou, era dirigir-se a elas e esperar que o seu
rasto a deixasse pelo menos perto de onde tinha de estar.
Dylan começou a andar com passo decidido. Tentou não pensar no facto de
estar a deixar para trás a única casa segura de cuja localização tinha a certeza.
Isso só faria com que o medo voltasse a entrar, e com medo era mais difícil
defender-se dos espetros.
Tristan. Podia encontrar Tristan hoje. Repetiu uma e outra vez esse
pensamento, como um mantra silencioso. Deu-lhe força. Força para continuar
a andar quando o chão começou a subir à sua frente, e força para não parar
quando o Sol atingiu o zénite e parecia haver fogo a chover em cima dela.
Força para ignorar as sombras que esvoaçavam na sua visão periférica.
Pouco depois começou a passar pelas primeiras sombras que caminhavam
em sentido contrário. Eram difíceis de ignorar: muitas iam a chorar e a
lamentar-se, e cada um dos seres tremeluzentes que via sem rugas no rosto ou
a ondular perto do chão era uma alma perdida demasiado cedo. Uma criança,
que não estava preparada para morrer. Faziam-na lembrar-se do menino com
cancro que Tristan transportara, embora tivesse de recordar a si própria que
essa alma trágica podia muito bem ser agora um dos espetros esfaimados.
Apesar de tudo, olhou para cada uma das almas. Tinha de o fazer. Porque
qualquer uma podia estar a ser conduzida pela esfera dela, pelo seu barqueiro.
Contudo, nenhuma das bolas de luz pulsante a atraiu e, à medida que se
cruzava com cada vez mais almas, as suas esperanças começaram a dissipar-
se. Estava realmente à procura de uma agulha num palheiro. Se conseguisse
chegar até ao comboio sem encontrar Tristan, não sabia o que faria.
Foi um choque para Dylan quando se deparou com a casa segura. Não
estava à espera de que estivesse tão perto, nem sequer tinha a certeza de ir na
direção certa. As almas eram agora muito menos frequentes, mas o sol ainda
lhe queimava a testa com os seus raios furiosos. A pequena casinha de pedra
estava quase escondida à sombra de duas grandes montanhas escarpadas que
se erguiam acima dela. Se Dylan estivesse a prestar atenção, teria visto o que
ficava mais à frente e reconhecido o sítio onde se encontrava. Tal como
Tristan dissera, o vale estava sempre ali.
Dylan chorou de alívio quando viu as paredes em ruínas da casa, as suas
janelas partidas com madeira apodrecida. Acelerou para um passo de corrida,
apesar das dores nas pernas, para perfazer os últimos metros. Esgotada,
entrou aos tropeções e atirou-se para cima da cama. Apoiou os cotovelos nos
joelhos, o queixo nas mãos, e olhou em volta.
Por mais satisfeita que estivesse por ter conseguido chegar, não gostava de
ali estar. Esta era a casa onde passara um dia e duas noites sozinha,
desesperada, à espera de Tristan. Ver a lareira de ferro forjado, a cadeira onde
passara um dia inteiro sentada a olhar para as verdadeiras terras perdidas — a
primeira vez que as vira — trazia uma vaga de memórias e emoções. Pânico.
Medo. Isolamento.
Não. Sacudiu a cabeça para se libertar do desespero que ameaçava
estrangulá-la. Desta vez era diferente. Ela era diferente. Fez um esforço para
se levantar, pegou na cadeira e puxou-a para junto da porta. Abriu-a e sentou-
se mesmo à entrada, a olhar para fora, para os espetros e para o vale vermelho
de sangue.
De manhã, entraria no vale e procuraria Tristan. Desta vez, jurou a si
própria, não se deixaria dominar pelo medo. Desta vez era ela quem o ia
encontrar.
VINTE E SETE

— Tens de andar um pouco mais depressa.


Tristan olhou para trás, na direção da mulher, e depois ergueu o rosto para
o céu cada vez mais escuro com um esgar de preocupação. Tinham demorado
muito tempo a atravessar o pântano. Demasiado tempo. Não restava muita luz
e ainda faltava atravessar o vale todo. A culpa não era dela; tivera muitas
dificuldades em se deslocar na lama espessa e através das ervas altas.
Precisara de ajuda, mas Tristan não quisera tocar-lhe.
Agora, contudo, arrependia-se de não o ter feito. O ar à volta deles estava
repleto de uivos sinistros. Os espetros ainda estavam escondidos, mas já se
encontravam por perto. A luz também mudara. Uma densa camada de nuvens
pairava sobre eles, o que significava que a luz do dia se extinguiria mais
cedo. De certa forma, era de esperar. Não podia pedir que a mulher
conservasse o seu estado de espírito calmo e satisfeito, agora que sabia que
estava morta.
Ela não falara muito mais sobre o assunto. Chorara, mas em silêncio. Como
se não quisesse incomodá-lo. Mais uma coisa pela qual estava grato. Esta
alma estava realmente a facilitar-lhe as coisas tanto quanto era possível.
Sentia-se mal por estar a ser tão frio e distante com ela. Mas não conseguiria
avançar de outra forma. Nunca teriam chegado até ali se não fosse assim.
— Por favor, Marie. — Tristan detestava tratá-la pelo nome. — Temos de
nos despachar.
— Desculpa — pediu ela, de cabeça baixa. — Desculpa, Tristan.
Tristan fez uma careta. Estupidamente, dera a Marie o mesmo nome que
usara com Dylan. Estava demasiado sufocado pela dor para inventar outro, e
condizia com a aparência à qual parecia estar preso. Mas era horrível. De
cada vez que ela o dizia, ouvia a voz de Dylan.
Ela começou a caminhar mais depressa, mas Tristan olhou para as sombras
que se acumulavam de forma ameaçadora à frente deles e percebeu que não
seria suficiente.
Suspirou e rangeu os dentes.
— Vamos lá. — Segurou-lhe no cotovelo e acelerou o passo, obrigando-a a
andar mais depressa, até estar a correr. Correu também e, porque era mais
fácil, largou-lhe o cotovelo e pegou-lhe na mão para a puxar. Os uivos
intensificaram-se e o ar agitou-se quando os espetros começaram a descer,
libertados pela escuridão crescente e pelas sombras cada vez mais profundas.
A mulher apercebeu-se da mudança e os seus dedos apertaram mais os de
Tristan. Sentiu o medo dela, a confiança total que depositava nele. Era
angustiante. Teve de combater a vontade de lhe largar a mão e fugir, mas não
dos espetros: dela.
— Não falta muito, Marie — encorajou. — A casa segura fica entre
aquelas duas colinas. Vamos conseguir.
Ela não respondeu, mas Tristan ouviu os seus passos acelerarem quando
começou a correr mais depressa. Aliviado, correu também.
— Tristan! — A palavra quase foi levada pelo vento antes de lhe chegar
aos ouvidos, mas apanhou ainda o seu eco e ergueu a cabeça, sobressaltado.
— Tristan!
Estaria a sua mente a pregar-lhe partidas? Ou seria esta alguma nova
tortura que os demónios tinham engendrado para o distrair, para o fazer
perder a concentração? Porque era a única forma de esta voz poder existir
ainda nas terras perdidas. Já partira. Ela já partira.
— Tristan!
— Não é ela, não é ela — sussurrou, apertando mais a mão da mulher.
Dylan seguira o seu caminho e ele tinha um trabalho a fazer. Tinha de levar
esta mulher até à casa segura. Estavam quase lá. Quase lá. Levantou a cabeça
e fixou os olhos na casa. A porta estava aberta.
— Tristan!
Havia alguém à porta, a acenar-lhe. Apenas uma silhueta, nada mais do que
isso, mas soube logo quem era. Não podia ser; não podia ser, de maneira
alguma. Mas era.
Estupefacto, Tristan largou a mão da mulher.

::::

Dylan levou a mão à boca quando se apercebeu, tarde demais, do que


fizera.
Vira-o a entrar no vale. Uma esfera, muito mais brilhante do que todas as
outras. Chamara-lhe a atenção e atraíra-a, como uma traça é atraída pela luz.
À medida que se concentrava nela, começaram a acontecer coisas estranhas.
O vermelho intenso da paisagem árida, os tons roxos e avermelhados do
crepúsculo, começaram a piscar, a cor a aparecer e a desaparecer como numa
televisão mal sintonizada. O vermelho sangue transformou-se nos verdes,
castanhos e lilases da paisagem escocesa.
Dylan saltou da cadeira e precipitou-se para a porta, com as pontas dos pés
a pisarem a ombreira. Os espetros uivaram em antecipação, mas ela não
avançou mais e ficou apenas a olhar.
Tristan. Conseguia vê-lo. A ele. Não era uma bola de luz pulsante, mas
uma pessoa, um corpo, um rosto. Dylan sorriu e inspirou como se não
respirasse desde que... desde que ele a deixara. À medida que a imagem se
tornava mais nítida, viu que Tristan vinha a correr, a puxar alguma coisa. A
paisagem deixou de piscar e solidificou no deserto de urze que ela conhecera
antes. As outras almas desapareceram e os espetros dissiparam-se em meras
sombras. Só os seus silvos e uivos a impediram de sair a correr ao encontro
dele.
Enquanto olhava, percebeu que ele vinha a puxar outra alma. Dylan não
conseguia ver quem era. Estava distorcida, não tão transparente como as
outras almas, mas ainda assim menos do que real. Meio aqui, meio ali. Uma
mulher. Ela também vinha a correr. Dylan sentiu uma pontada de ciúmes
quando viu que vinham de mãos dadas.
Foi então que gritou, gritou o nome dele. Teve de o fazer uma, duas, três
vezes antes de ter a certeza de que ele a ouvira, mas por fim Tristan olhou
para a casa. Ela acenou, encantada e frenética — e ele viu-a. Dylan
percebera-o na expressão dele. Choque. Horror. Alegria. Tudo ao mesmo
tempo.
E depois ele soltou a mão da outra mulher.
Foi instantâneo. As sombras rodopiantes que esvoaçavam acima eles, como
uma pequena nuvem de trovoada, precipitaram-se sobre a mulher num
enxame fervilhante. Ela entrou em pânico e começou a agitar os braços.
Dylan viu, ainda com a mão sobre a boca, os demónios agarrarem-se a ela.
Era mais horrível, mais sólido e mais real do que quando vira a alma a ser
puxada para as profundezas do lago.
E a culpa era toda dela.
Os espetros agarraram no cabelo da mulher, nos seus braços, atacaram-lhe
o tronco, tudo num abrir e fechar de olhos. Tristan virou-se quase de
imediato, percebeu o que estava a acontecer e Dylan viu-o tentar salvá-la.
Estendeu os braços e pareceu puxar o ar, mas sem sucesso; os demónios
continuaram o seu ataque. Tristan avançou a custo, arrancando espetro após
espetro de cima dela, mas os demónios limitavam-se a dar a volta e atacar de
outro ângulo.
Dylan ficou parada à porta, com a mão estendida em solidariedade, e viu a
alma ser arrastada para debaixo da superfície.
O sentimento de culpa abateu-se sobre ela, esmagando-a sob o seu peso.
Ela matara esta mulher. Quem quer que ela fosse, Dylan matara-a. Seria
casada? Teria filhos? Estaria a contar voltar a vê-los? Passou-lhe pela cabeça
a imagem de Eliza, eternamente à espera de alguém que nunca chegaria. E
tudo porque ela gritara. Tapou novamente a boca com a mão para não voltar a
chamá-lo. Era tarde demais. A mulher estava morta.
O que fizera?
Tristan não se virou para ela, ficando imóvel a olhar para o chão no sítio
onde a alma desaparecera. Parecia não reparar nos espetros que ainda o
circundavam como tubarões, de dentes arreganhados, prontos para
despedaçar a sua presa.
Continuou sem reação quando um deles desceu e lhe arranhou o ombro. E
quando o segundo colidiu com o seu rosto. Dylan olhou, de boca aberta. Seria
sangue, aquilo que lhe escorria pelo rosto? Porque é que Tristan não se
mexia? Porque não fazia nada para se defender?
Porque não corria para a casa segura? Para ela?
Outro espetro atacou, e mais um. Depois mais juntaram-se a eles. Pareciam
encantados com a apatia da sua vítima. Sem se aperceber do que estava a
fazer, Dylan saiu de casa e correu pelo caminho antes de o cérebro ter noção
das suas ações. Estava agora muito escuro. A lareira dentro de casa, atrás
dela, brilhava muito mais do que a pouca luz que restava ao dia. Se ele não se
mexesse, se não conseguisse chegar até ele...
— Tristan! — exclamou, ofegante, voando em direção a ele. — Tristan, o
que estás a fazer?
Os espetros esvoaçaram em torno da cabeça dela, mas nunca fora tão fácil
ignorar os seus movimentos.
— Tristan!
Por fim, ele pareceu despertar. Virou-se, ainda rodeado de sombras negras,
e o seu rosto, primeiro vazio, ganhou vida, como se estivesse a despertar de
um transe. Estendeu a mão quando ela chegou junto dele.
— Dylan — sussurrou. Depois assumiu o controlo. — Corre!
O que quer que o paralisara antes, desaparecera. Fechou a mão sobre o
braço dela, com força suficiente para a magoar, e correu em direção à casa.
Metro após metro, Tristan empurrou e lutou contra as garras e os dentes
ávidos. De cabeça baixa e dentes cerrados, com a mão firmemente fechada
sobre o braço de Dylan, conduziu-os de volta à casa segura.
— Que raio estás a fazer aqui? — inquiriu, assim que entraram. O clamor
dos espetros era agora apenas ruído de fundo e a casa estava calma e
tranquila, tirando a fúria que parecia emanar de cada um dos poros de Tristan.
— O quê? — Dylan olhou para ele, confusa. Não estaria contente de a ver?
O fogo gelado nos olhos dele dizia que não. Fitou-a com um olhar
fulminante. Não era uma ilusão da luz e era assustador.
— O que estás a fazer aqui, Dylan?
— Eu... — Dylan abriu e fechou a boca, mas não conseguiu dizer nada.
Não fora assim que imaginara o reencontro.
— Não devias estar aqui — continuou Tristan. Começou a andar de um
lado para o outro, agitado, passando a mão pelo cabelo. — Eu levei-te até à
divisão, tu atravessaste. Não devias voltar para trás.
Uma estranha sensação apoderou-se de Dylan. Sentiu as faces a arder e o
estômago às voltas. O coração batia-lhe de forma tão irregular que quase
doía. Baixou os olhos antes que Tristan conseguisse ver as lágrimas grossas
que lhe deslizavam pelas faces.
— Desculpa — murmurou, de olhos postos no chão de pedra. — Cometi
um erro.
Percebia-o agora. As palavras dele tinham sido apenas mentiras para a
fazer atravessar em segurança. Não fora sincero em nada do que lhe dissera.
Pensou na alma que ele trazia consigo momentos antes, a mulher que ela
matara acidentalmente com a sua estupidez; pensou em como vinham de
mãos dadas a fugir do perigo. Teria aquela mulher engolido as mentiras de
Tristan tão facilmente como Dylan? De olhos baixos, sentiu-se subitamente
infantil, egoísta.
— Dylan. — Tristan disse novamente o seu nome, mas agora em tom
muito mais gentil. A mudança de tom deu-lhe coragem suficiente para erguer
o rosto. Ele tinha parado e estava a estudá-la com olhos muito mais suaves.
Embaraçada, limpou a cara e fungou. Tentou desviar-se quando ele se
aproximou, mas Tristan só parou quase encostado a ela. — O que estás a
fazer aqui?
As mesmas palavras, mas desta vez uma pergunta murmurada e não uma
acusação. Esta era mais fácil de responder, se fechasse os olhos, se não
tivesse de olhar para ele.
— Voltei.
Ele suspirou.
— Não devias poder fazer isso. — Pausa. — Porque voltaste, Dylan?
Dylan engoliu em seco, confusa. Agora que a fúria dele desaparecera,
agora que estava a tocar-lhe, sentiu-se novamente desorientada. Só havia uma
maneira de descobrir a verdade. Respirou fundo.
— Por ti. — Esperou por uma reação, mas nada. Pelo menos, nada que ela
conseguisse ouvir. Manteve os olhos fechados. — Estavas a ser sincero
quando me disseste... tudo o que me disseste?
Outro suspiro. Mas podia ser um suspiro de frustração, de embaraço, de
remorsos. Dylan esperou, a tremer. Sentiu algo quente na face. A mão dele?
— Não te menti, Dylan. Pelo menos em relação a isso.
Ao processar o significado das palavras, a respiração de Dylan tornou-se
mais acelerada. Ele fora sincero. Sentia o mesmo que ela. Curvou os lábios
num sorriso tímido, mas conteve o calor que lhe crescia no peito. Ainda não
tinha a certeza absoluta de poder entregar-se a essa sensação.
— Abre os olhos.
Subitamente tímida, Dylan hesitou um instante e depois, com um suspiro,
ergueu os olhos até encontrar os dele. Estava mais perto do que ela
imaginara; suficientemente perto para a respiração de ambos se misturar.
Ainda com a mão no rosto dela, Tristan aproximou o rosto até os lábios de
ambos se tocarem, com os olhos azuis ainda fixos nos seus. Após um
instante, recuou e apertou-a contra o peito.
— Não te menti, Dylan — murmurou-lhe ao ouvido —, mas não devias
estar aqui.
Dylan ficou tensa e tentou afastar-se, mas ele apertou-a mais.
— Não mudou nada. Não posso ir contigo e tu não podes ficar aqui. Viste o
que aconteceu àquela mulher. Mais cedo ou mais tarde, acontecer-te-ia o
mesmo. É demasiado perigoso.
Dylan susteve a respiração e sentiu mais uma avalanche de culpa abater-se
sobre ela.
— Eu matei aquela mulher — murmurou com a boca encostada ao ombro
dele. As palavras foram quase inaudíveis, mas Tristan ouviu-as.
— Não. — Abanou a cabeça, roçando os lábios no pescoço dela e
arrepiando-a com esse toque. — Fui eu que a matei. Larguei-lhe a mão.
— Por minha causa...
— Não, Dylan — interrompeu Tristan, desta vez com mais firmeza. — Ela
era responsabilidade minha. Fui eu que a perdi. — Respirou fundo e os seus
braços apertaram-se mais à volta dela. — É isso que este lugar é. Um inferno.
Não podes ficar.
— Quero ficar contigo — implorou Dylan.
Tristan abanou novamente a cabeça, paciente.
— Aqui não.
— Então volta comigo — suplicou ela.
— Já te disse, não posso. Nunca posso ir para além... — Tristan soltou uma
exclamação frustrada e contraiu os maxilares.
— E o outro lado? — Dylan recuou novamente, lutando contra o abraço
dele quando a tentou segurar. — O meu mundo. Se atravessássemos o resto
das terras perdidas até ao comboio, podíamos...
Tristan olhou para ela, com as sobrancelhas franzidas numa expressão
exasperada. Abanou lentamente a cabeça e pousou o dedo nos lábios dela.
— Também não posso fazer isso.
— Alguma vez tentaste?
— Não, mas...
— Então não sabes. A alma com quem falei disse que...
— Com quem é que falaste? — Os olhos de Tristan semicerraram-se.
— Uma mulher muito velha, Eliza. Foi ela quem me disse como podia
voltar. Disse que talvez fosse possível, se...
— Talvez — repetiu Tristan com ar duvidoso. — Dylan, é impossível
voltar atrás.
— E tu tens a certeza?
Ele hesitou. Não tinha a certeza, percebeu Dylan. Simplesmente acreditava
nisso. Não era a mesma coisa.
— Não valerá a pena tentar? — Dylan mordeu o lábio, ansiosa. Se ele
quisesse mesmo, mesmo dizer aquilo que lhe dissera antes, se a amasse
realmente, não quereria tentar?
Tristan abanou a cabeça de um lado para o outro, com um semblante grave
e abatido.
— É um risco demasiado grande — disse. — Acreditaste nessa mulher
porque ela te disse o que querias ouvir, Dylan. A única coisa de que tenho a
certeza é que corres perigo aqui. Se ficares nas terras perdidas, a tua alma não
sobreviverá. Amanhã, vamos atravessar outra vez o lago.
Dylan estremeceu, e não era apenas a perspetiva de atravessar novamente o
lago que a arrepiava. Recuou um passo, cruzou os braços e o seu rosto era
agora uma máscara obstinada.
— Não vou voltar para lá. Pelo menos, sozinha. Vou regressar ao comboio.
Vem comigo, por favor... — As últimas palavras eram uma súplica
desesperada. Voltar para o comboio sem ele seria perfeitamente inútil. Tudo
isto, tudo o que arriscara, fora com a intenção de estar com Tristan. Não tinha
a certeza de que o conseguiria encontrar, mas fizera-o na mesma. Porque não
estaria ele disposto a correr também um risco? Por ela?
Viu Tristan humedecer os lábios e engolir; viu a hesitação no seu rosto. Ele
estava a vacilar. O que podia dizer para o ajudar a decidir-se, para o levar a
ceder?
— Por favor, Tristan. Não podemos tentar, pelo menos? Se não resultar...
— Se não resultasse, os espetros podiam ficar com ela. Não tencionava tornar
a atravessar a divisão sozinha. Mas talvez fosse melhor não lhe dizer isso. —
Se não resultar, podes trazer-me de volta. Mas podemos tentar, pelo menos?
Ele fez um esgar, dividido.
— Não sei se posso — disse. — Não sou eu que escolho... quer dizer, não
tenho livre-arbítrio, Dylan. Os meus pés não me pertencem. Às vezes, fazem-
me ir aonde tenho de ir. Como... — Baixou a cabeça. — Como quando me
fizeram afastar-me de ti.
Dylan pensou nisso.
— Ainda és o meu barqueiro. Se eu fugisse de ti, se não conseguisses
convencer-me a acompanhar-te e eu fugisse, terias de me seguir?
— Sim — respondeu ele, sem compreender aonde ela queria chegar.
Dylan sorriu.
— Nesse caso, eu vou à frente.
Dylan sabia que Tristan não estava completamente convencido, mas pelo
menos não tentou dissuadi-la. Sentaram-se lado a lado na cama estreita e ele
ouviu-a descrever tudo o que lhe acontecera desde que a deixara na linha
divisória. Estava fascinado com todos os pormenores, já que nunca vira
nenhuma das coisas que ela vivera — nunca soubera o que acontecia às almas
que conseguia conduzir até ao seu destino. Sorriu quando ela lhe falou sobre
Jonas, embora uma sombra lhe tenha escurecido os olhos quando confessou
que fora Jonas quem a ajudara a regressar às terras perdidas. Também
mostrou grande interesse por Caeli, e os seus olhos abriram-se numa
expressão de surpresa quando Dylan lhe falou dos livros na sala de registos.
— Viste o livro das minhas almas? — perguntou.
Dylan assentiu.
— Foi assim que encontrei o Jonas.
Tristan pensou nisso por um momento.
— Ainda tinha muitas páginas vazias?
Dylan fitou-o, perplexa com a pergunta.
— Não tenho a certeza — respondeu. — Talvez um terço.
Tristan acenou com a cabeça e depois viu a confusão no rosto dela.
— Estava só a pensar se... se o meu trabalho acabaria depois de encher o
livro.
Dylan não sabia o que responder a tais palavras, nem como reagir à
expressão penosamente triste que lhe passou pelo rosto quando as disse.
— É estranho — continuou ele após um longo momento de silêncio. —
Nem sequer consigo decidir se gostaria de o ver ou não. Se tivesse
oportunidade disso, quero eu dizer. Como me sentiria se visse todos aqueles
nomes?
— Orgulhoso — afirmou Dylan. — Devias sentir-te orgulhoso. Todas
aquelas almas, todas aquelas pessoas, estão vivas graças a ti. Oh, sabes o que
quero dizer — acrescentou quando Tristan lhe lançou um olhar divertido pela
escolha de palavras. Se ainda pensavam e sentiam, com certeza que estavam
vivas, não?
— Suponho que consegui transportar mais almas do que aquelas que perdi,
depois de tudo pesado.
Dylan prendeu a respiração quando se lembrou dos nomes cortados.
— Vi alguns nomes com um traço por cima — admitiu baixinho.
Ele acenou com a cabeça.
— Suponho que sejam as almas perdidas. As almas que os espetros
levaram. Ainda bem que ficaram registadas em algum lado, e é justo que os
seus nomes estejam ligados a quem foi responsável por as perder.
Dylan conteve um soluço. Tristan virou-se para ela, de semblante
preocupado e curioso, e ela teve de confessar o que estava a pensar.
— Nesse caso, devia haver um livro para mim — murmurou.
— Porquê? — Tristan parecia confuso, sem compreender o que estava por
trás da angústia nos olhos dela.
— Hoje — explicou Dylan, com voz rouca. — Foi culpa minha. A alma
daquela mulher devia ficar ligada ao meu nome.
— Não. — Tristan virou-se e segurou-lhe no rosto com as duas mãos. —
Não, já te disse. O que aconteceu foi culpa minha.
Lágrimas grossas e quentes derramaram-se dos olhos de Dylan e
deslizaram sobre os dedos dele enquanto ela abanava a cabeça.
— Não, minha — murmurou.
Ele limpou-lhe as faces com os polegares e puxou-a gentilmente para si até
estarem encostados, testa com testa. O sentimento de culpa ainda atormentava
Dylan, mas parecia subitamente menos avassalador, agora que não conseguia
respirar, que sentia a pele arrepiada onde quer que ele lhe tocasse; agora que
o sangue lhe fervia nas veias.
— Chiu — confortou-a Tristan, julgando que ela estava a chorar. Sorriu e
depois percorreu os últimos milímetros que os separavam. Lentamente, com
ternura, abriu-lhe a boca com a sua e os seus lábios roçaram suavemente nos
dela. Afastou-a de si por um instante para a fitar com o fogo cobalto dos
olhos, antes de a encostar à parede enquanto procurava beijos cada vez mais
profundos e ávidos.

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Quando o dia nasceu, o céu estava limpo e azul. Dylan, à porta da casa
segura, olhou para cima, grata. Estas terras perdidas eram mil vezes melhores
do que a fornalha no deserto que tivera de atravessar antes. Tristan também
sorriu quando espreitou atrás dela e viu o tempo.
— Sol — comentou, olhando para o azul brilhante.
Dylan sorriu-lhe maliciosamente. Os olhos dela eram de um verde muito
mais vibrante e belo do que as tonalidades da vegetação. Tristan não
conseguiu conter um sorriso, apesar do peso que tinha no estômago.
Aquilo não ia resultar, mas Dylan recusava-se pura e simplesmente a
acreditar nisso. Estava com medo de ver a desilusão dela, a desilusão que
sabia, no fundo do coração, ser inevitável, portanto tentou afastar esses
pensamentos de momento. Ela estava ali, em segurança, e Tristan queria
tentar aproveitar este tempo extra que podia passar com ela. Era mais do que
alguma vez ousara sonhar.
Só esperava que não acabasse com uma pena a desenhar delicadamente um
traço sobre o nome dela numa página do seu livro.
— Vamos — disse Dylan, saindo para o caminho à frente dele. O vale
parecia largo e convidativo, banhado pela luz da manhã, mas Tristan ficou à
porta, a vê-la afastar-se.
Dylan percorreu cerca de cem metros antes de se aperceber de que não
ouvia os passos dele atrás de si. Tristan viu-a parar, com a cabeça meio
inclinada, à espera de o ouvir. Um segundo depois, girou sobre si própria,
com alarme nos olhos, até que o viu exatamente onde o deixara.
— Vamos — repetiu, com um sorriso encorajador.
Ele apertou os lábios.
— Não sei se consigo — gritou ele em resposta. — Vai contra tudo, contra
todas as regras.
— Tenta — pediu Dylan.
Tristan suspirou, exasperado. Prometera-lhe que tentaria. Fechou os olhos e
concentrou-se nos pés. Mexam-se, pensou. Não estava à espera que
acontecesse nada; esperava ficar pregado ao chão por uma pressão
invencível.
No entanto, desceu facilmente para o caminho.
Tristan estacou de imediato. Mal se atrevia a respirar, à espera de um
relâmpago, de uma dor súbita. Qualquer coisa para o castigar por estar a
desobedecer às suas ordens tácitas. Mas não aconteceu nada. Incrédulo e
desconfiado, continuou a andar em direção a Dylan.
— É estranho — confessou em voz baixa quando chegou junto dela. —
Estou sempre à espera de que alguma coisa me impeça de continuar.
— Mas por enquanto nada?
— Por enquanto nada.
— Ótimo! — Encorajada, Dylan entrelaçou os dedos nos dele e começou a
andar. Após um leve puxão, Tristan seguiu-a.
O vale não representou qualquer dificuldade. Na verdade, foi quase uma
caminhada agradável. Podiam ser apenas um casal de jovens, a passear no
campo de mão dada. Não havia sinais dos espetros, nem sons. Era aflitivo
saber que eles estavam ali, a pairar junto ao seu ombro, à espera de que ela
perdesse a concentração e se afastasse da sua esfera. Queria perguntar a
Tristan o que estava ele a ver, se eram as colinas verdes cobertas de erva e
urze que ela via, ou as terras perdidas como verdadeiramente eram. Algo,
contudo, a impediu de o fazer. Temia que, se falasse nisso, se chamasse a
atenção para o assunto, a miragem se desintegrasse e dessem por si
novamente sob o sol vermelho escaldante. Sabia que essa paisagem seria
muito mais difícil de atravessar. Não — olhos que não veem, coração que não
sente, pensou.
Para além do vale estendia-se o vasto pântano. O tempo ameno não fizera
nada para secar as poças de água estagnada ou a lama grossa. Dylan olhou
para o cenário com desagrado, lembrando-se de como a lama lhe sugara os
pés. Depois da tranquilidade do vale, era um poderoso lembrete de que estava
ainda nas terras perdidas, de que o perigo continuava a rondá-la.
Ao seu lado, Tristan soltou um suspiro teatral. Olhou para ele, confusa, e
viu que ele tinha um brilho divertido nos olhos. Com um sorriso paciente, ele
sugeriu:
— Cavalitas?
— És maravilhoso — respondeu ela.
Tristan revirou os olhos, mas virou-se para ela lhe saltar para as costas.
— Obrigada — murmurou-lhe ao ouvido, depois de estar em posição.
— Bem podes agradecer — respondeu ele em tom contrariado, mas ela viu
as suas faces contraírem-se num sorriso.
Sentia-se pesada às costas dele, e os braços rapidamente ficaram cansados
da força que fazia para se segurar, mas Tristan nunca se queixou enquanto
atravessava o lamaçal. Mesmo com o peso extra, parecia não se afundar.
Pouco depois, o pântano era apenas uma memória distante e Dylan deu por si
a olhar para a colina enorme que a aguardava pacientemente. Franziu o nariz
e soprou, irritada; duvidava que conseguisse convencer Tristan a levá-la às
cavalitas pela encosta acima.
— Em que estás a pensar? — perguntou ele.
Dylan não queria admitir as suas maquinações, por isso fez uma pergunta
que já tinha há algum tempo na cabeça.
— Estava a pensar... para onde foste? Depois de me deixares?
Ela contara-lhe todos os pormenores da sua história na noite anterior, mas
evitara propositadamente fazer essa pergunta. Não quisera abordar o assunto
do que ele fizera, de como a enganara. Como a traíra.
Tristan percebeu qual era a verdadeira pergunta.
— Desculpa — disse. — Desculpa ter feito o que fiz.
Dylan fungou baixinho, decidida a não se deixar afetar. Não queria que ele
se sentisse culpado, que soubesse como ficara magoada com a sua traição.
Pelo menos ele não assistira ao seu desespero.
— Não faz mal — murmurou, e apertou-lhe o ombro.
— Faz, sim — discordou ele. — Menti-te, e lamento muito. Mas pensei...
pensei que seria o melhor para ti. — As últimas palavras foram ditas em voz
embargada e Dylan sentiu um nó na garganta. — Quando te vi a chorar,
quando te ouvi a gritar por mim... — Hesitou. — Doeu-me mais do que tudo
o que os espetros alguma vez me fizeram.
— Conseguias ver-me? — perguntou Dylan baixinho.
Ele acenou afirmativamente.
— Só durante um ou dois minutos. — Soltou uma risada seca. —
Normalmente, é a minha parte preferida. Um minuto inteiro em que não sou
responsável por ninguém a não ser por mim. E consigo ver um pouco do
além. Apenas um vislumbre. Do sítio que cada alma considera ser a sua casa.
Dylan, às costas dele, ficou tensa. Lembrava-se de Jonas lhe ter dito que
fora instantaneamente transportado para casa, para Estugarda.
— Isso não aconteceu comigo — recordou-lhe. — Eu não deixei as terras
perdidas.
— Eu sei — suspirou ele.
— Porquê? — questionou ela, pensativa. — Porque será que não fui parar a
lado nenhum?
Contou três dos passos longos e confiantes de Tristan antes de ele lhe
responder.
— Não sei — murmurou, mas faltava às suas palavras a entoação da
verdade.
Assim que o solo se tornou mais firme, Tristan colocou-a no chão. Ao
princípio, Dylan fez beicinho, sentindo falta do calor de estar aninhada contra
ele — e do luxo de não ter de caminhar —, mas ele pegou-lhe na mão e
sorriu. Dylan sorriu também, mas o sorriso rapidamente lhe desapareceu do
rosto quando olhou para a encosta íngreme que tinham pela frente.
— Sabes, detesto mesmo escaladas — reafirmou.
Tristan apertou-lhe os dedos num gesto de conforto e fitou-a com olhar
melancólico.
— Podemos sempre voltar para trás. — Apontou para o pântano.
— Nunca conseguiríamos regressar a tempo — respondeu Dylan. O sol
ainda brilhava forte no céu azul, mas iniciara já a sua curva descendente.
— Pois não — concordou Tristan em voz baixa.
— E não há nada para mim naquela direção — concluiu ela. — Não
voltarei se não puderes vir comigo.
Tristan fez uma careta, mas não tentou discutir.
— Vamos lá, então — disse, e começou a andar.
Caminharam e subiram, e pouco depois Dylan estava ofegante e com as
pernas doridas. Quanto mais subiam, mais o vento soprava, e, à medida que a
tarde progredia, pequenas nuvens começaram a formar-se por cima deles.
Apesar do frio que acompanhava a mudança do tempo, Dylan estava a
transpirar e teve de tirar a mão da de Tristan, envergonhada por ter a palma
húmida. Embora a manhã tivesse sido quente e luminosa, sentiu o
desconforto familiar a instalar-se à medida que o orvalho frio lhe ensopava as
calças.
— Não podemos abrandar? — pediu. — Talvez descansar um pouco?
— Não — respondeu Tristan secamente, mas quando Dylan se virou para
ele, surpreendida, viu que ele estava a olhar para o céu, não para ela. Tinha o
rosto franzido numa expressão de inquietação. — Em breve será de noite.
Não quero que sejas apanhada ao relento.
— Só um minuto — implorou Dylan. — Ainda nem sequer os ouvimos.
Porém, mal as palavras lhe saíram dos lábios, o sussurro do vento mudou.
Surgiu uma segunda melodia, esta mais aguda e lancinante. Uivos e
guinchos. Os espetros.
Tristan também ouviu.
— Vamos, Dylan — ordenou e, ignorando-a quando tentou desviar-se,
pegou-lhe na mão com força e começou a subir rapidamente a encosta.
VINTE E OITO

Tristan sabia que Dylan estava cansada. Ouvia-o nos seus passos pesados,
na respiração esforçada; sentia-o no braço que ficava para trás e o obrigava a
puxá-la a cada passo. Sabia-o, e sentia-se mal, mas se fossem apanhados
naquela colina quando as sombras se instalassem, os espetros não lhes dariam
tréguas. Dylan quase parecia ter perdido o medo deles — ou talvez achasse
apenas que ele conseguiria protegê-la da fome das criaturas —, mas fazia mal
em não dar importância ao perigo. Embora Dylan não o sentisse, os espetros
estavam furiosos. Não só não a tinham conseguido apanhar na sua travessia,
como ela estava agora de volta. E vencera-os. Sozinha. Sem um barqueiro
que a protegesse das suas garras frenéticas.
Os demónios estavam decididos a fazê-la pagar por essa arrogância.
Tristan pensou nas garantias que lhe fizera em tempos — que nunca a
perderia, que nunca deixaria que os espetros a apanhassem. Na altura, estava
perfeitamente confiante disso; agora, não tinha tanta certeza. Graças a Dylan,
o jogo mudara, ele mudara, e não conhecia as novas regras. Contudo, parecia-
lhe que estava a começar a compreender algumas coisas, o que em nada
acalmava os seus receios.
Quando chegou ao cimo da colina, parou por um instante para Dylan
recuperar o fôlego. Não era o pico mais alto que tinham pela frente, se
fizessem o que Dylan queria e conseguissem chegar ao comboio, mas era alto
o suficiente para Tristan conseguir ver a paisagem que se estendia ao longo
de quilómetros em todas as direções.
Viu o coração pulsante dos outros barqueiros a deslocarem-se em sentido
contrário pelas encostas e vales sinuosos, cada um deles tentando levar as
suas almas em segurança, tal como ele estava a fazer. Era estranho;
normalmente não reparava neles. Mas agora sentia-se como um grão de areia
no oceano, a lutar contra a corrente. Todos os seus instintos lhe diziam que
voltasse para trás, para se juntar à peregrinação em direção à linha divisória,
mas contrariou tais instintos.
Com a noite a aproximar-se, seguir nesse sentido significaria a morte de
Dylan.
— Vamos. — Recomeçou a andar. — Estamos quase lá, Dylan. A casa
segura fica no sopé desta colina.
— Eu sei — disse ela calmamente, com a respiração controlada.
Claro que sabia, já lá estivera. Tristan sorriu para si próprio e começou a
descer a encosta, com os pés à procura de um caminho seguro entre a
gravilha.

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Apesar dos receios de Tristan, desceram rapidamente a encosta. Tristan


conseguiu fechar a porta da casa segura sobre os uivos de frustração dos
espetros antes de estar escuro o suficiente para Dylan os conseguir ver. Com
um suspiro aliviado, encostou a cabeça à madeira da porta por um instante
antes de ir acender a lareira. Dylan ficou parada à janela, a olhar para o
exterior. Não se mexeu, nem mesmo quando ele se aproximou por trás dela e
a abraçou pela cintura.
— Para onde estás a olhar? — murmurou-lhe ele ao ouvido.
— Para nada — respondeu ela baixinho, e franziu a testa. — Mas não é
verdade, pois não? Eles devem estar aqui. Consegues vê-los?
— Aos espetros?
— Não. — Dylan abanou a cabeça. — As outras almas, os outros
barqueiros.
Tristan ficou em silêncio algum tempo e, por fim, respondeu:
— Sim, consigo vê-los.
Dylan assentiu com um gesto e refletiu acerca dessa informação. Tristan
apoiou a cabeça no ombro dela e viu-a apertar os lábios pelo canto do olho.
— É tarde — disse ela.
— Sim — concordou. Cingiu-a mais contra si. — Mas estamos em
segurança aqui dentro.
As suas palavras não apagaram a expressão preocupada do rosto de Dylan.
— Eles não conseguem entrar, Dylan. Os espetros. Sabes disso. Estamos
perfeitamente seguros, garanto-te.
— Eu sei.
— Então o que se passa?
— Quantas almas ainda estão lá fora? — Virou-se e Tristan viu as chamas
da lareira refletidas nos olhos dela.
Fitou-a por um instante, depois olhou para a janela e perscrutou a paisagem
do outro lado.
— Não muitas — disse. — A maioria já deve estar em segurança nas suas
casas.
Dylan virou-se de novo para a janela. Levantou a mão e encostou-a
lentamente ao vidro. Os espetros lá fora começaram a sibilar e Tristan teve
vontade de lhe puxar o braço para baixo. Não queria que pensassem que ela
estava a provocá-los.
— Podes ajudar-me a vê-los também? — perguntou Dylan,
inesperadamente. — Como os via antes, quando estava sozinha?
— Porquê?
Ela encolheu os ombros.
— Gostava de os ver, só isso.
Parecia um pedido bastante inofensivo, mas Tristan estava alarmado com o
semblante dela: continuava de testa franzida e lábios cerrados. Suspirou e
puxou-a mais para si, encostando a têmpora à dela. Concentrou-se na janela e
forçou a mente a afastar a miragem, revelando o inferno por trás. Dylan
soltou uma exclamação abafada e Tristan percebeu que tinha resultado.
— Consigo vê-los! — exclamou ela. — Tal como antes! — Após uma
pausa, perguntou: — O que estão a fazer?
A voz de Tristan era grave.
— A correr.
Estavam na casa segura há poucos minutos, nem sequer tempo suficiente
para o lume da lareira estar a arder com força, mas nesse espaço de tempo a
tarde transformara-se em noite e a luz dera lugar à escuridão. Havia ainda três
almas visíveis, que tremeluziam furiosamente enquanto os seus barqueiros
tentavam fazê-las percorrer mais depressa o último trecho do caminho.
Tristan fez um esgar angustiado; nem todos iam conseguir.
Abruptamente, afastou-se de Dylan, que deixou imediatamente de ver a
paisagem vermelha.
— Ei, não! — exclamou, virando-se para ele. — Quero continuar a ver!
— Não.
— Tristan, quero continuar a ver.
— Não, não queres, Dylan. Garanto-te.
Ela empalideceu. Tristan viu-a engolir em seco enquanto processava as
palavras dele.
— Quem é que está lá fora? — perguntou, em voz rouca.
Ele pressionou os lábios, relutante.
Dylan deu um passo na direção dele e repetiu a pergunta.
— Quem é que está lá fora, Tristan?
Ele suspirou e olhou novamente para o exterior — onde ainda conseguia
ver claramente os três retardatários — para não ver a reação dela.
— Um velho, uma mulher e... — Calou-se.
— E?...
— Um bebé. Uma menina que ainda mal sabe andar.
Dylan levou a mão à boca e correu para a janela, onde encostou a cara ao
vidro.
— Onde é que ela está? — exigiu saber. — Ainda está lá fora? Quero ver,
Tristan! Deixa-me ver!
Ele abanou a cabeça e Dylan viu a sua expressão no reflexo do vidro.
— Tristan!
— Não, Dylan. — Cruzou os braços, determinado. Já era suficientemente
mau ele conseguir ver. Não deixaria Dylan assistir a este horror. A mulher
desaparecera, agora em segurança na sua casa. O velho, contudo, já tinha sido
puxado para baixo; havia apenas dois ou três espetros a assinalar o local onde
o tinham dominado.
Restava apenas a criança, que estava a conseguir aguentar-se de alguma
forma, mas não por muito mais tempo.
— O que está a acontecer? — Bateu com a mão na janela e Tristan deu um
salto, sobressaltado. O vidro vibrou sob a força da pancada, mas não se
partiu. — Deixa-me ver, Tristan!
O que estava a acontecer? A menina estava tão cercada por espetros que
Tristan mal a conseguia ver — apenas um contorno, encolhida nos braços do
seu barqueiro. E, embora estivesse longe demais para isso, Tristan conseguia
ver a sua expressão assustada, a boca aberta num grito, os olhos fechados
com força e as lágrimas que lhe molhavam as faces. O rosto aterrorizado
gravou-se na sua mente, mais uma memória que sabia que nunca perderia.
— Tristan! — O grito agudo de Dylan chamou-lhe a atenção. — O que se
passa?
— Estão cercados — murmurou ele.
Dylan mordeu o lábio, num esgar desesperado, e encostou-se mais ao vidro
como se conseguisse alcançá-los assim. De súbito girou sobre si própria e
olhou para ele. Tristan levantou as mãos e recuou dois passos. Sabia o que ela
ia dizer.
— Tens de os ajudar!
Ele abanou a cabeça.
— Não posso.
— Porque não?
— Simplesmente não posso. Cada barqueiro é responsável pela alma que
transporta e por mais nenhuma.
Dylan fitou-o, furiosa e incrédula.
— Mas isso é ridículo!
— É como é — respondeu ele, acaloradamente.
Dylan virou-lhe costas e ele sentiu uma pontada de mágoa com a revolta
dela. Não era culpa sua; não era ele quem fazia as regras.
— Ainda estão muito longe? — perguntou ela baixinho.
Tristan voltou a olhar para a janela. Eles ainda ali estavam.
— Não — disse-lhe. — Mas não vão conseguir. Há demasiados espetros.
Demasiados. Dylan fechou os olhos, com o vidro frio a entorpecer-lhe a
testa. Lembrou-se da sensação dos espetros a puxarem, a arranharem, a
morderem. A trespassá-la, deixando para trás gelo e terror. Pensou na pobre
criança a passar por isso e os seus olhos encheram-se de lágrimas. Não era
justo. Não estava certo!
Como podia Tristan permitir que isto acontecesse?
De súbito, ocorreu-lhe uma ideia louca. Não estavam longe da casa, dissera
Tristan. Por isso não precisavam de muito tempo. Um minuto ou dois seria
suficiente. Talvez até meros segundos. Só precisava de encontrar maneira de
distrair os espetros...
Correu para a porta, com a adrenalina a inundar-lhe o corpo. Uma distração
de poucos segundos; não precisavam de mais. E ela podia dar-lhes isso.
— Dylan! — Tristan gritou o seu nome e ela ouviu-o a mexer-se, sentiu os
seus dedos a roçarem-lhe na nuca quando tentou apanhá-la, mas era tarde
demais. Dylan já saíra de casa.
Não sabia para onde ir, nem onde estava a alma em dificuldades, por isso
resolveu correr em frente, afastando-se da casa segura a direito. Ouviu passos
pesados atrás de si quando Tristan a seguiu. Ainda o ouvia chamar pelo seu
nome, com pânico e fúria na voz. Um milissegundo depois, todos os outros
sons desapareceram e os seus ouvidos encheram-se de silvos e uivos. O ar à
sua volta era um turbilhão de movimento e Dylan sentiu-se como se estivesse
submersa em água gelada. Tinha os braços arrepiados, mas continuou a
correr. Se os espetros estavam em cima dela, isso queria dizer que estava a
resultar.
Do nada, algo a agarrou com uma força imbatível, muito mais substancial
do que tudo o que alguma vez sentira com os espetros. E não era frio, mas
sim quente. Dylan percebeu o que era um segundo antes de Tristan lhe gritar
ao ouvido, furioso:
— Que raio estás a fazer, Dylan?
Ignorou-o e resistiu quando ele tentou puxá-la para trás. Os seus olhos
perscrutaram a paisagem, mas em vão.
— Ainda aqui estão? Consegues vê-los?
— Dylan! — Tristan era demasiado forte para ela. Forçou-a a recuar, um
passo de cada vez, enquanto ela continuava a debater-se. — Dylan, para!
Era difícil distinguir o que eram os espetros e o que era Tristan, mas Dylan
sentia-se como se estivesse a ser atacada por todos os lados. Ardia-lhe o
rosto, sentia madeixas de cabelo serem arrancadas do couro cabeludo, e não
conseguia respirar porque os braços de Tristan lhe apertavam o peito.
Tropeçou na perna de Tristan e sentiu-se a tombar para o chão. Os espetros
gargalharam, encantados, e pela primeira vez Dylan percebeu o que estava a
fazer, o que estava a arriscar.
A sua vida. O tempo que tinha com Tristan.
Há quanto tempo estava ali fora? Um minuto? Talvez alguns segundos
mais? Teria de ser suficiente. Abruptamente, deixou que Tristan a arrastasse
de novo para a casa segura e para a luz reconfortante da lareira.
Pela segunda vez, Tristan fechou a porta com força. Encostou-se à madeira,
ofegante, tentando conter o pânico que lhe fazia o coração bater de forma
descontrolada. Dylan cambaleara até ao meio da sala e Tristan sentia os olhos
dela sobre si. Fez um esforço para controlar a fúria.
— Eles conseguiram? — perguntou ela baixinho.
— O quê? — Virou bruscamente a cabeça e olhou para ela.
— A menina e o barqueiro. Conseguiram? Pensei... pensei que se criasse
uma distração...
Tristan fitou-a de boca aberta.
— Era isso que estavas a fazer? A sacrificar-te por uma desconhecida? —
A sua voz subiu de tom. — Dylan! — Sem palavras, acabou por se calar.
— Conseguiram ou não? — insistiu ela, em tom levemente acusador.
— Sim — sussurrou ele entre dentes.
Um sorriso tímido espalhou-se no rosto de Dylan. O gesto só serviu para
irritar Tristan ainda mais. A sobrevivência do barqueiro e da alma da criança
seriam para ela uma justificação, prova de que fizera a coisa certa. Rangeu os
dentes.
— Nunca, nunca mais faças uma coisa destas! — ordenou. — Tens a noção
de como estiveste perto de ser levada?
Dylan baixou a cabeça, finalmente mostrando alguns remorsos.
— Desculpa — murmurou, agora a tremer, com mais medo da fúria dele do
que tivera de deixar de existir. — Mas tinha de fazer alguma coisa. Não podia
deixar que eles levassem mais alguém.
Os seus olhos encheram-se de lágrimas antes de conseguir ver a expressão
de Tristan suavizar-se.
VINTE E NOVE

A fúria de Tristan demorou muito tempo a passar, ou assim pareceu a


Dylan. Ele sentou-se numa das cadeiras, de braços cruzados, a olhar para a
lareira, e cortou rapidamente as poucas tentativas que ela fez de encetar
conversa. Por fim, Dylan retirou-se para a cama estreita e desconfortável,
onde se deitou de lado, com o braço a servir de almofada, e olhou para a
silhueta dele.
Não estava arrependida. Parte do sentimento de culpa que trazia consigo
desde que causara a perda da pobre mulher dissipara-se. Sabia que nunca
poderia trazer essa alma de volta, mas pelo menos a presença dela ali tinha
feito também algo de bom. E não estava ferida, não fora levada. Portanto, na
verdade, Tristan não tinha motivos para estar tão zangado, pensou.
Mas Tristan não estava zangado. Enquanto fitava o coração das chamas não
sentia o calor da fúria, apenas o peso gelado da dúvida e da incerteza. Estava
preocupado. Estavam a mais de meio caminho do comboio, já tinham
ultrapassado os obstáculos mais perigosos e ainda não conseguira convencer
Dylan a parar, a regressar à segurança da sua nova vida para além da linha
divisória. Não percebia por que razão não estava a discutir com ela, por que
razão a deixava arrastá-lo para cada vez mais longe do sítio onde devia estar.
A resposta, contudo, era óbvia, o que o frustrava ainda mais.
Queria que ela estivesse certa.
Fraqueza, era o que era. Era fraco e estava a ceder, a deixar entrar a
esperança de que, ao fim da viagem, pudessem ficar juntos. Fraqueza. E esta
noite isso quase a matara. Porém, ao olhar por cima do ombro para a forma
como ela o fitava, de olhos bem abertos e desafiadores, o corpo a gritar por
conforto, Tristan soube que não conseguiria dizer-lhe que não, nem assumir o
controlo e obrigá-la a segui-lo. Podia fazê-lo, sabia que sim. Já o fizera no
passado.
Podia; mas não o faria.
Suspirou, empurrou a cadeira com o pé e levantou-se.
— Há espaço para dois nessa coisa? — perguntou, aproximando-se dela e
apontando para a cama.
Dylan sorriu, aliviada, e encostou-se à parede para lhe dar espaço para se
esticar. Quando se deitou ao lado dela, os seus corpos ficaram encostados da
cabeça aos pés e teve de se segurar à cintura dela para não cair da cama.
Dylan não se importava, aparentemente. Sorriu mais e corou.
— Lamento mesmo o que fiz há bocado — murmurou. Depois fez uma
careta e reformulou a frase. — Lamento ter-te preocupado.
Tristan sorriu. Não era a mesma coisa, nem por sombras. Contudo,
provavelmente era o único pedido de desculpa a que teria direito.
— E não voltarei a fazê-lo — acrescentou ela. — Prometo.
— Ainda bem — resmungou ele, e beijou-a ao de leve na testa. —
Descansa — murmurou. — Amanhã temos um longo caminho pela frente.
Deitou-se de costas e puxou Dylan para o seu peito. Ela aninhou a cabeça
no ombro dele, sorridente. O que diria Katie se a visse agora? Nem
acreditaria. Se ela e Tristan conseguissem mesmo voltar, seria uma conversa
digna de se ouvir. E depois, na escola. Tentou imaginar Tristan sentado ao
seu lado nas aulas, a fazer os trabalhos, a ver os aviões de papel voarem sobre
a sua cabeça. O que pensaria dos idiotas de Kaithshall? Dylan conseguia
imaginar a sua expressão horrorizada. Riu-se baixinho, mas recusou-se a
explicar a Tristan porquê quando ele levantou a cabeça e a fitou com ar
curioso.

::::

De manhã, uma leve neblina pairava sobre as terras perdidas, ocultando os


picos mais altos. Tristan não fez qualquer comentário, mas puxou as mangas
do casaco para baixo, de modo a cobrir os braços. Depois olhou para Dylan.
A t-shirt dela era fina e estava rasgada em alguns sítios. Não lhe daria grande
proteção contra o frio matinal.
— Toma — disse, despindo o casaco. — Veste isto.
— Tens a certeza? — perguntou Dylan, mas já estava a enfiar os braços nas
mangas. Grata, colocou o capuz grosso na cabeça e puxou as mangas até lhe
taparem as mãos. — Oh, muito melhor — disse, com um arrepio quando
sentiu o calor do corpo dele na sua pele.
Tristan sorriu enquanto a admirava de cima a baixo. Ela devolveu o sorriso,
divertida, consciente de que provavelmente parecia uma criança com roupa
de adulto. O casaco ficava-lhe ridiculamente grande, mas era confortável e,
quando baixou a cabeça para aquecer o nariz, apercebeu-se de que tinha o
cheiro dele.
— Pronta? — perguntou Tristan.
Dylan olhou para a colina mais próxima, o cume ainda escondido pelo
nevoeiro, e assentiu com má vontade.
Caminharam a bom ritmo, passando a manhã a subir a encosta. Embora o
nevoeiro estivesse a levantar, não chegou a dissipar-se por completo, pelo
que o dia continuou frio. Apesar de Dylan ter dito a Tristan que ia à frente
para que ele tivesse de a seguir, foi ele quem abriu caminho. Tinha de ser —
Dylan não fazia ideia da direção que devia seguir. Tentou recordar-se de
quando fizera este caminho em sentido oposto. Já saberia nesta altura que
estava morta?
Ficou surpreendida quando os seus olhos avistaram algo familiar, algo que
realmente reconhecia.
— Oh! — exclamou, e estacou abruptamente.
Tristan deu mais dois passos e depois parou também e fitou-a com
curiosidade.
— O que foi?
— Eu conheço este lugar — disse ela. — Eu lembro-me.
Um prado. Coberto de ervas de um verde luxuriante e salpicado de flores
silvestres em tons de roxo, amarelo e vermelho. Um trilho de terra estreito e
sinuoso atravessava-o de forma elegante.
— Estamos quase a chegar à casa segura — disse ela. E, na verdade, assim
que o disse, ergueu a cabeça e ali estava ela, ao fundo do pasto. A pequena
casa de madeira onde ficara a saber por que motivo só ela saíra daquela
carruagem de comboio.
Embora o sol estivesse tapado, a luz ainda era forte e, para variar, não
precisavam de se apressar. Tristan parecia estar a gostar de simplesmente
passear, com os dedos entrelaçados nos dela. O caminho era demasiado
estreito para caminharem lado a lado, mas quando as pernas de ambos
roçavam nas flores, os seus aromas delicados erguiam-se e perfumavam o ar.
Era perfeito como um quadro, como um sonho.
Esse pensamento despertou algo no fundo da memória de Dylan. Outro
sonho, em que caminhava de mão dada com um desconhecido atraente. O
último sonho que tivera antes de morrer. O cenário era diferente: a floresta
húmida substituída aqui pela beleza tranquila do prado, mas a sensação de
felicidade, de plenitude, era a mesma. E, embora o homem do sonho não
tivesse um rosto nítido, Dylan soube instintivamente que era Tristan. Teria a
sua mente alguma pista de que tudo isto ia acontecer? De que estava
destinado a acontecer? Parecia impossível, mas...
— Sabes, tenho uma teoria — disse baixinho, sem querer perturbar a paz
do momento.
— Diz lá — encorajou Tristan, em tom ligeiramente desconfiado.
— Sobre o que aconteceu quando eu atravessei a divisória.
— Sim?
— Bom, acho que... — Apertou um pouco mais a mão de Tristan. — Acho
que fiquei nas terras perdidas porque era onde estava destinada a ficar.
— Não estás destinada a ficar aqui — atalhou ele rapidamente.
— Não, eu sei. — Sorriu, recusando deixar-se afetar pela expressão séria
do rosto dele. — Mas acho que estava destinada a ficar contigo.
Silêncio.
Dylan não olhou para Tristan para avaliar a sua reação. Olhou em volta,
absorvendo a beleza do cenário. Sabia que tinha razão. E, com essa certeza,
vinha uma paz interior, uma satisfação. De súbito sentiu-se em casa ali, num
sítio onde não tinha o direito de estar.
— Sabes, vai ser engraçado — disse em tom pensativo, para quebrar o
silêncio de Tristan, para não ter de o ouvir dizer-lhe que estava errada.
— O quê? — murmurou ele. Largou-lhe a mão, mas passou-lhe o braço
sobre os ombros, os dedos a brincarem com uma madeixa do cabelo dela.
Dylan teve dificuldade em concentrar-se com os arrepios que a percorriam,
mas Tristan olhou para ela, à espera de uma resposta.
— Voltar a ser normal — disse ela. — Sabes, comer e beber e dormir.
Falar com pessoas. Voltar à minha velha vida, fingir que isto nunca
aconteceu. — Depois ocorreu-lhe um pensamento. — Vou... vou lembrar-me
de tudo, não vou?
Tristan demorou algum tempo a responder. Depois sentiu-o encolher os
ombros.
— Não sei — admitiu ele. — Estás a tentar fazer algo que nunca ninguém
conseguiu fazer. Não imagino o que acontecerá, Dylan.
— Nós estamos a tentar fazer algo que nunca ninguém conseguiu fazer —
corrigiu ela.
Ele não disse nada, mas viu-o pressionar os lábios e franzir ligeiramente a
testa.
Dylan suspirou. Talvez fosse melhor se não se lembrasse. Seria muito mais
fácil tornar a ser aluna de Kaithshall, apenas uma rapariga que discutia com a
mãe e tinha de conviver com os idiotas do bairro. Neste momento, não
conseguia imaginar-se a fazer nenhuma dessas coisas novamente.
Talvez fosse melhor não se lembrar.
Depois percebeu que havia uma coisa que tinha de recordar. Virou a cabeça
e apanhou Tristan a olhar para ela. A sua expressão fê-la pensar que ele
conseguia ler-lhe os pensamentos.
— Aconteça o que acontecer, vou lembrar-me de ti — murmurou ela.
Não tinha a certeza se estava a tranquilizá-lo a ele ou a si própria.
Tristan sorriu com uma expressão triste.
— Espero que sim — disse. Depois beijou-a, baixando a cabeça e roçando
os lábios nos dela. Quando se afastou, Dylan percebeu que ele tinha qualquer
coisa na mão, delicadamente presa entre o polegar e o indicador. Uma flor,
com o caule delicado quase dobrado sob o peso das pétalas roxas. — Toma
— disse, prendendo-a no cabelo dela. — Realça-te a cor dos olhos.
Passou os dedos no rosto dela e baixou a mão. Dylan corou furiosamente
até ficar vermelha como um tomate. Tristan riu-se e pegou-lhe de novo na
mão. Com uma leve pressão, puxou-a um pouco mais depressa na direção da
cabana. Pelo sim, pelo não.
Essa noite, na opinião de Dylan, passou demasiado depressa e, ao mesmo
tempo, demasiado devagar. Queria saborear cada segundo com Tristan, mas
de cada vez que paravam temia que ele tentasse encontrar outras maneiras,
outros argumentos para a convencer a voltar para trás. Contudo, Tristan
parecia bem-disposto, a rir e a brincar, e, embora Dylan não estivesse
completamente convencida de que este estado de espírito era genuíno, não
conseguiu evitar deixar-se levar. Tristan até a convenceu a dançar, ao som de
uma canção que cantou ele próprio — ligeiramente desafinado — pois não
havia outra música senão os silvos e uivos distantes dos espetros.
Dylan ficou surpreendida quando a luz começou a mudar lá fora, mas não
perdeu tempo a pressionar Tristan para seguirem caminho. Ele, contudo, fez
as coisas com calma. Apagou muito bem todas as brasas na lareira e depois,
apesar de não haver mais motivos para adiar, recusou-se terminantemente a
deixar que Dylan abrisse a porta antes de o Sol espreitar sobre as colinas
distantes a leste.
— E agora, já podemos ir? — insistiu Dylan assim que os primeiros raios
de luz entraram finalmente pelas janelas.
— Está bem, está bem! — respondeu Tristan, mas estava a sorrir com
condescendência e a abanar a cabeça perante a impaciência dela. — Antes,
era eu quem não te conseguia pôr a andar de manhã. Praticamente tinha de te
arrastar porta afora.
Dylan sorriu e lembrou-se de como amuara, se queixara e lamentara.
— Devo ter-te feito a vida num inferno, ao princípio.
Ele riu-se.
— Talvez miserável seja uma palavra muito forte. Um pesadelo, se calhar...
— E piscou-lhe o olho.
— Pesadelo! — Dylan deixou o seu posto de sentinela junto à porta para
lhe dar um empurrão. — Não sou um pesadelo! — Depois virou-se e olhou
para as colinas sem fim das terras perdidas. — Parece que nesta direção está a
ser mais rápido. Como se fosse sempre a descer. — Encolheu os ombros e
lançou um olhar de irritação fingido a Tristan. — Vá, vamos lá despachar!
O entusiasmo de Dylan durou até mais ou menos metade da encosta da
primeira colina. Depois as pernas começaram a doer-lhe e sentiu uma pontada
de lado que piorava cada vez que respirava. Era a vez de Tristan a pressionar,
fazendo ouvidos moucos às suas queixas e súplicas constantes por uma
pausa.
— Lembras-te de quanto tempo demorámos a chegar à casa da última vez?
— explodiu, quando os queixumes de Dylan lhe esgotaram finalmente a
paciência. — Os espetros apanharam-nos e quase te perdi. Ainda falta muito,
e isto foi ideia tua — recordou-lhe.
Dylan fez-lhe uma careta e deitou a língua de fora quando ele lhe virou
costas. Ainda por cima, não estava muito entusiasmada com a ideia de passar
a noite na última casa segura, que estava completamente em ruínas, sem
telhado e apenas com uma parede completa de pé. Era também o último
obstáculo real entre eles e o túnel, e Dylan sabia, simplesmente sabia, que
Tristan a ia usar como uma última oportunidade para a fazer mudar de ideias.
Não estava enganada. Assim que se encontraram em segurança dentro da
«casa», com os espetros reduzidos a murmúrios lá fora e a lareira a crepitar
alegremente, Tristan sentou-se em frente dela e fitou-a com ar muito sério.
Dylan suspirou, mas manteve o rosto impassível.
— Dylan... — Tristan hesitou e mordeu o interior da bochecha. — Dylan,
há qualquer coisa errada.
Ela franziu os lábios e conteve um gemido.
— Ouve, já falámos sobre isto. Prometeste que ias tentar, Tristan, e já
viemos até aqui... Não podemos voltar para trás agora sem...
Ele ergueu a mão para a silenciar.
— Não estou a falar disso.
— Então?
— Há qualquer coisa errada... comigo.
— Como assim? — Olhou para ele, subitamente nervosa. — O que se
passa contigo?
— Não sei. — Ele soltou uma risada trémula.
— Sentes-te mal? Estás doente?
— Não...
Mas estava hesitante, inseguro. Dylan sentiu-se gelada por dentro.
— Tristan, não compreendo.
— Olha para isto — disse ele baixinho. Levantou a camisola e revelou o
abdómen.
Primeiro, Dylan ficou distraída pela linha fina de pelos macios e dourados
que descia abaixo do umbigo de Tristan, mas rapidamente percebeu o que ele
queria dizer.
— Quando é que fizeste isso? — sussurrou.
Tristan tinha um golpe vermelho, em carne viva, que descia num
ziguezague irregular do lado direito do tronco. A pele à volta estava inchada e
inflamada e rodeada de cortes mais pequenos.
— No outro dia, quando os espetros te estavam a atacar.
Dylan fitou-o silenciosamente. Não lhe ocorrera que as suas ações
pudessem ferir Tristan, mas agora, ao vê-lo fazer uma careta quando mudou
de posição, percebeu que ele estava com dores. Como conseguira esconder-
lhe isto durante dois dias? Estaria tão obcecada consigo própria que nem dera
por nada?
— Desculpa — murmurou. — A culpa foi minha.
Ele baixou a camisola e escondeu o ferimento.
— Não. — Abanou a cabeça. — Não é disso que estou a falar, Dylan. É a
ferida.
Dylan fitou-o, sem perceber.
— Não está a cicatrizar — explicou ele. — Já devia ter desaparecido. Já fui
atacado antes, mas desaparecia sempre num dia ou dois. Mas agora... é como
se eu fosse... como se... — Fez um esgar.
Dylan continuou a olhar para ele, estupefacta. Quereria dizer como se fosse
humano?
— E não é tudo — prosseguiu ele. — Quando te d-deixei — disse,
tropeçando na palavra —, quando passei à alma seguinte, à Marie, não
mudei.
— O quê? — tentou Dylan dizer, mas não saiu qualquer som.
— Fiquei assim, exatamente com esta forma. — Fez uma pausa. — Nunca
tinha acontecido tal coisa.
Ficaram em silêncio alguns instantes enquanto Dylan refletia sobre as
palavras dele.
— O que achas que significa?
— Não sei — murmurou ele, determinado a esconder a esperança,
esperança que não queria admitir nem a si próprio. Riu-se. — Eu nem sequer
devia estar aqui.
— Porque não? — Dylan franziu a testa, confusa.
Ele encolheu os ombros, como se fosse óbvio.
— Quando perdi a Marie, devia ter sido levado para a próxima alma.
— Mas... mas eu estava lá.
— Eu sei. — Acenou com a cabeça. — E, ao princípio, pensei que talvez
tivesse sido por isso, que tinha de ficar até te entregar novamente em
segurança no teu destino. Mas talvez não seja isso. Talvez eu esteja... —
Hesitou, à procura da palavra. — Talvez esteja avariado, ou coisa do género.
— Sorriu brevemente. — Quer dizer, não devia conseguir voltar para trás
desta maneira. Não está certo, Dylan.
— Talvez não estejas avariado — disse ela lentamente. — Mas sim
consertado. Se calhar, como disseste, depois de fazeres o suficiente, de
conduzires um número de almas suficiente, o trabalho chegou ao fim.
— São muitos «ses». — Sorriu-lhe. — Não sei. Não sei o que significa.
Dylan não parecia partilhar a incerteza e a cautela dele. Endireitou-se mais
na cadeira, com os olhos a brilhar e um sorriso radiante no rosto.
— Bem... tirando isso... — apontou para o local da ferida de Tristan que,
apercebia-se agora, ele estava a proteger com o braço direito — ...parece estar
tudo a correr bem para o nosso lado. Talvez devêssemos simplesmente
aceitar e não questionar.
— Talvez — disse ele, embora com uma expressão desconfiada. Um
pensamento incomodativo não lhe saía da cabeça. Quanto mais avançavam
nas terras perdidas em sentido contrário ao habitual, piores os seus ferimentos
pareciam estar. Dylan pensava estar a lutar para regressar à vida. Tristan não
conseguia deixar de pensar se não seria outro o destino reservado para ele.
TRINTA

Apesar das suas garantias a Tristan, Dylan estava nervosa por regressar ao
túnel do comboio, por tentar voltar a entrar no seu corpo. Pensou no que
Jonas lhe dissera, como a avisara de que encontraria tudo exatamente como
estava quando ela morrera. Quem lhe dera que a carruagem não estivesse tão
escura. Não fazia ideia da gravidade dos seus ferimentos, do que lhe
arrancara a alma da sua concha física. Não fazia ideia das dores que ia sentir
quando acordasse.
E finalmente — o pior de tudo — tinha medo de acordar sozinha. De
conseguir regressar ao mundo, à vida, apenas para descobrir que Tristan
estava certo: não podia ir com ela. Não sabia o que faria se isso acontecesse.
Só podia esperar, rezar para que o destino não fosse assim tão cruel.
Era uma jogada muito arriscada e sentia o estômago às voltas sempre que
pensava nisso, mas não havia alternativa, não havia outra opção. Tristan
estava absolutamente convicto de que não conseguia — não conseguia
mesmo, fisicamente — atravessar para além da linha, e recusava-se a deixá-la
ficar aqui, nas terras perdidas. Que outro sítio lhes restava?
Nenhum.
Eram muitas preocupações, mas, apesar disso, o Sol manteve-se bem alto
no céu ao longo do último dia de caminhada, sem uma nuvem à vista. Dylan
não via outra explicação para isso, a não ser o facto de estar com Tristan.
Acontecesse o que acontecesse, desde que estivesse com ele conseguiria
sobreviver e lidar com todos os obstáculos.
Dylan estava à espera de reconhecer o final da viagem, de conseguir
identificar pontos de referência que lhe indicassem que estavam a chegar, que
lhe permitissem ir-se habituando aos nervos e excitação. Porém, a última
colina era igual à anterior, e à outra antes dessa, e de repente deram por si no
último cume, a olhar para os carris enferrujados.
Tinham chegado. Fora ali que ela morrera. Olhou para a linha de comboio e
quis sentir alguma coisa. Perda ou tristeza — dor, até. No entanto, sentia
apenas a náusea crescente do medo e da ansiedade, os mesmos nervos que
passara o dia inteiro a combater. Tentou afastá-los; a sua decisão estava
tomada.
Enfiou a mão no bolso das calças de ganga e acariciou as pétalas acetinadas
da flor silvestre que Tristan lhe dera. Murchara entretanto, mas Dylan
recusara-se a deitá-la fora e conservara-a como se fosse um talismã. Algo que
a ligava às terras perdidas, que a ligava a Tristan. Só esperava que fosse
suficiente para os manter juntos.
Respirou fundo, tentando acalmar-se.
— Chegámos.
Sabia que não precisava de o dizer. Tristan com certeza vira os carris; eram
a única coisa diferente na paisagem árida.
— Chegámos — concordou ele.
Não parecia nervoso como ela estava. Nem ansioso. Parecia triste. Como se
estivesse convencido de que não ia resultar. Dylan não se deixou abalar pelo
cinismo dele; já era suficientemente difícil silenciar as suas próprias dúvidas.
— E agora, seguimos a linha? — perguntou.
Tristan assentiu com um aceno.
— Está bem. — Abanou os braços para a frente e para trás algumas vezes,
enquanto ganhava coragem. — Muito bem, vamos a isso.
Tristan não se mexeu e ela percebeu que estava à espera de que ela
liderasse. Respirou fundo uma vez, outra. Os pés não lhe pareciam bem.
Estavam pesados, custava-lhe erguê-los da relva molhada de orvalho. Seria
apenas medo, ou estariam as terras perdidas relutantes em deixá-la partir?
— Vai resultar — murmurou, tão baixo que nem Tristan a ouviu. —
Vamos conseguir.
Pressionou os lábios numa linha determinada e começou a andar. Pegou na
mão de Tristan com firmeza e, passo a passo, arrastou-o atrás de si. Ele
estava agora a coxear, com uma mão sempre colada ao local da ferida. Mas
havia de ficar bom. Se conseguisse levá-lo só mais um bocadinho — até ao
mundo dela —, sabia que ele ia ficar bom. Obrigou-se a acreditar nisso.
Desceram a colina até Dylan conseguir pisar as chulipas. Depois trocou um
olhar com Tristan, virou-se e começou a seguir a linha de comboio. Os carris
faziam uma curva que, ao princípio, não os deixava ver a boca do túnel, mas
depois, de repente, ali estava. Uma colina gigante, imóvel à frente deles. Os
carris pareciam dirigir-se a ela e desaparecer: como uma estrada para lado
nenhum. No entanto, quanto mais se aproximavam, mais o arco escuro no
sopé da colina parecia crescer, até Dylan conseguir ver claramente onde o
comboio entrara na montanha. Entrara, mas não voltara a sair.
Um buraco negro. Alto e largo, parecia chamar por ela. Estremeceu, com
os cabelos da nuca arrepiados. E se, e se, e se? As dúvidas sussurravam
ferozmente na sua mente, mas tentou ignorá-las. Levantou o queixo e
continuou a andar.
— Dylan. — Tristan estacou e obrigou-a a virar-se para ele. — Dylan, isto
não vai resultar.
— Vai...
— Não, não vai. Não posso ir para o teu mundo. Não é o meu lugar. O meu
lugar é aqui, mais nada. — Parecia estar a suplicar, meio zangado, meio
desesperado.
Dylan mordeu a língua e olhou para ele. Pela primeira vez, parecia
realmente um rapaz de dezasseis anos, pequeno e inseguro. Contudo, em vez
de a assustar, a incerteza dele deu-lhe coragem.
— Porque vieste, então? — desafiou.
Tristan levantou o ombro, cada vez mais parecido com um adolescente
atrapalhado.
— Tristan? Porque vieste?
— Porque... porque... — Soltou o ar num sopro exasperado. — Porque te
amo. — Baixou a cabeça ao dizê-lo e não viu o choque e a alegria no rosto de
Dylan. Um instante depois, ergueu os olhos. — Quero que estejas certa,
Dylan. Mas não estás.
— Prometeste-me que tentavas — recordou-lhe ela. — Tem fé.
Tristan soltou uma risada irónica.
— E tu, tens?
— Tenho esperança. — Corou. — E amor. — Trespassou-o com os olhos
verdes. — Confia em mim.
Viera de muito, muito longe por esta oportunidade, e não ia voltar atrás
agora, sem pelo menos tentar. Além disso, não podiam ficar aqui. Tristan
estava ferido. Não sabiam o que lhe acontecera, mas as terras perdidas
estavam a fazer-lhe mal. Não era este o lugar dele. Tinha de sair daqui. Dylan
repetiu isso a si própria e tentou não dar ouvidos à vozinha no fundo da
mente que dizia que as feridas dele, o seu sofrimento, estavam a acontecer
porque ela estava a tentar obrigá-lo a deixar as terras perdidas. Endireitou os
ombros e penetrou na escuridão. Tristan não tinha alternativa senão segui-la;
ela recusava-se a largar-lhe a mão.
O negrume era desorientador, ao início, e os passos deles ecoavam no
espaço confinado. O ar cheirava a mofo. Dylan estremeceu.
— Há espetros aqui? — murmurou. O ar estava silencioso, mas com
certeza que eles se esconderiam num sítio tão escuro e isolado.
— Não — respondeu Tristan. — Geralmente não se aproximam tanto do
teu mundo. Estamos seguros.
Era um pequeno conforto, mas suficiente para dissipar os arrepios que
percorriam Dylan e a faziam bater os dentes.
— Consegues ver alguma coisa? — perguntou, incomodada com o silêncio.
— Estamos perto do comboio?
— Sim — respondeu Tristan. — Está mesmo à nossa frente, a poucos
metros.
Dylan abrandou. Estava tão escuro que mal conseguia ver a mão à frente da
cara, e não queria bater contra o comboio.
— Para — disse Tristan. Ela obedeceu de imediato. — Estica o braço. Já
chegámos.
Dylan esticou cuidadosamente o braço e tocou em algo frio e duro. O
comboio.
— Ajuda-me a encontrar a porta — ordenou.
Tristan conduziu-a pelo cotovelo ao longo de alguns metros.
— Aqui — disse, pegando-lhe na mão e pousando-a na porta, à altura do
ombro dela. Dylan apalpou e sentiu a textura de terra e borracha debaixo dos
dedos. Era o degrau por baixo da porta aberta. Estava muito alto, apercebeu-
se. Teriam de trepar.
— Estás pronto? — perguntou. Não obteve resposta, mas ainda sentia a
mão de Tristan no seu braço. — Tristan?
— Pronto — sussurrou ele.
Dylan aproximou-se e preparou-se para trepar. Tirou a mão de Tristan do
seu cotovelo e apertou-a com a sua. Não tencionava correr riscos; não ia
largá-lo, por mais que isso lhe atrapalhasse os movimentos. Não se deixaria
enganar novamente.
— Espera. — Ele puxou-a, com força suficiente para a virar para si. Passou
o outro braço à volta da cintura dela e puxou-a para si. O chão do túnel era
irregular e, para variar, a cara dele estava à altura da dela. Dylan sentiu a
respiração dele na face. — Ouve, eu... — começou a dizer, e depois
silenciou-se. Ouviu-o respirar fundo uma, duas vezes. Segurou-lhe no queixo.
— Pelo sim, pelo não — murmurou.
Tristan beijou-a como se estivesse a despedir-se dela. A sua boca
pressionou avidamente a de Dylan e apertou-a com tanta força que ela quase
não conseguia respirar. Depois de afastar os lábios, enfiou-lhe a mão no
cabelo e puxou-a ainda mais para si. Dylan fechou os olhos com força e
tentou lutar contra as lágrimas.
Não era um adeus, não era. Não seria a última vez que sentia o calor do
corpo dele, o seu cheiro, o seu abraço. Não era.
Iam partilhar um milhão de beijos como este.
— Pronto? — perguntou de novo, agora ofegante.
— Não — respondeu Tristan com um sussurro, na escuridão. Estava rouco
e parecia quase assustado.
Dylan sentiu o estômago apertado.
— Nem eu. — Tentou sorrir, mas os músculos não funcionavam. Às cegas,
procurou novamente a mão dele. Não ia perdê-lo.
Sem o largar, içou-se através da porta meio aberta e depois virou-se para
ajudar Tristan. Foi difícil e bateu com a mão na porta, o que lhe deixou os
nós dos dedos a latejar, mas pouco depois estavam os dois em pé na
carruagem, cegos e sem fôlego.
— Dylan — murmurou Tristan, junto do ouvido dela. — Espero que tenhas
razão.
Dylan sorriu. Também esperava.
— Não sei como havemos de fazer isto — disse, baixinho. — Acho que
temos de encontrar o meu corpo. Eu estava mais ou menos a meio da
carruagem.
Com cuidado, começou a avançar. A carruagem estava silenciosa, mas
sentia o coração a troar-lhe nos ouvidos, tão alto que mal ouvia a respiração
de Tristan um passo atrás dela. Tinha o estômago às voltas. E se isto não
resultasse? E se o seu corpo estivesse tão ferido que não havia recuperação
possível?
E o que estava no chão entre a sua alma e o seu corpo? Sobre o que tinham
ainda de passar? Sangue? Membros decepados? Os sacos daquela mulher
estúpida? Dylan riu-se ao pensar nisso, uma risada tensa. Virou-se para
partilhar a piada com Tristan e sentiu o ténis girar com demasiada facilidade.
Havia qualquer coisa oleosa debaixo do seu pé. E não era sumo entornado,
tinha a certeza disso. Repugnada, tentou levantar o pé, mas ficou com o
calcanhar preso em alguma coisa. Desequilibrada, tentou apoiar melhor o
outro pé, mas havia algo no caminho. O seu peso puxou-a para a frente, num
ângulo precário, e depois caiu.
Dylan teve tempo apenas para inspirar uma vez. Esticou os braços,
desesperada por se segurar antes de cair no chão. Estendeu as duas mãos.
Duas mãos vazias.
TRINTA E UM

Gritos.
Devia haver silêncio. Um silêncio tranquilo, solene e mortal.
Mas havia apenas gritos.
Dylan abriu os olhos e ficou instantaneamente cega. Uma luz branca forte
penetrou-lhe no cérebro. Tentou desviar-se, mas a luz seguiu-a, com uma
fração de segundo de atraso, e eclipsou a escuridão atrás dela. Fitou-a, de
boca aberta.
Tão subitamente como surgira, a claridade desapareceu. Dylan ficou
encandeada e pestanejou para tentar afastar as manchas de cor nos olhos.
Sobressaltou-se quando um rosto surgiu no seu campo de visão e o encheu.
Era pálido, coberto de suor e manchado de vermelho. Um homem, com a
barba por fazer, os lábios a moverem-se com urgência. Dylan tentou
concentrar-se no que ele estava a dizer, mas tinha um apito agudo nos
ouvidos e não conseguia ouvir mais nada.
Abanou a cabeça e forçou a mente a concentrar-se nos lábios do homem.
Lentamente, percebeu que ele estava a repetir as mesmas palavras, uma e
outra vez.
— Estás a ouvir? Olha para mim. Estás a ouvir? Estás a ouvir?
Agora que sabia o que ele estava a dizer, Dylan apercebeu-se de que estava
a ouvi-lo. Na verdade, ele estava a gritar, com voz rouca e tensa. Como é que
não o ouvira antes?
— Sim — murmurou, com a boca cheia de um líquido demasiado quente e
espesso para ser saliva. Engoliu e sentiu um sabor metálico na língua.
O homem pareceu aliviado. Apontou novamente a pequena lanterna para o
rosto dela, o que a fez fechar os olhos sob a forte luz branca, e depois
inspecionou-lhe o corpo com a ajuda da luz. Dylan viu-o fixar-se nas pernas
dela, com uma expressão ansiosa. Levantou a cabeça.
— Consegues mexer os braços e as pernas? Estás a sentir isto?
Dylan concentrou-se. O que estava a sentir?
Um fogo ardente. Dor. Agonia. Tortura. Parou de respirar, com medo até
do mais pequeno movimento. O que se passava com ela?
Doía-lhe tudo. Simplesmente... tudo. Sentia a cabeça a latejar, o peito preso
numa faixa de ferro demasiado apertada. Onde devia ter o estômago, havia
uma poça de lava derretida, que queimava como ácido. E por baixo disso?
Fechou os olhos e tentou sentir as pernas. Onde estavam? Talvez não as
conseguisse sentir apenas por causa das vagas de dor agonizante que vinham
de todo o lado. Em pânico, sentiu o coração começar a bater muito depressa e
todas as dores no seu corpo latejavam ao ritmo deste batimento
descontrolado. Tentou mexer os pés, mudar de posição; estava tão
desconfortável.
— Mmm... — Era algo entre um gemido e um grito. Movera as pernas
apenas um pouco, talvez um centímetro, mas a explosão de agonia que a
percorreu foi suficiente para lhe tirar o ar.
— Está bem, está bem, minha querida. — O homem tinha a testa franzida,
a lanterna fina presa nos dentes, e as mãos a mexerem algures abaixo da
cintura de Dylan. Parou o que estava a fazer e limpou a mão ao casaco.
Aquilo era sangue? Sangue das pernas dela? Sentiu a respiração acelerada e
cada vez que inspirava era como uma facada no peito.
— Minha querida? — O homem estava a sacudir-lhe o ombro. Dylan fez
um esforço para olhar para ele e tentou pensar através do terror. — Como te
chamas?
— Dylan — gemeu ela.
— Dylan, tenho de te deixar por um minuto. Mas volto já, prometo.
Sorriu-lhe, levantou-se e começou a percorrer a carruagem. Enquanto o via
afastar-se, Dylan apercebeu-se de que o espaço apertado estava repleto de
homens e mulheres de casacos fluorescentes: bombeiros, polícias,
paramédicos. Estavam, na sua maioria, debruçados sobre os bancos ou os
espaços entre eles, a falar, a tratar, a confortar, com expressões graves nos
rostos.
Só Dylan parecia estar sozinha.
— Espere — pediu, com voz rouca, mas era tarde demais. Levantou a mão
na direção onde ele desaparecera, mas esse pequeno esforço deixou-a
exausta. Dobrou o braço e deixou cair a mão sobre o rosto. Estava molhada.
Afastou-a um pouco e olhou para ela, a brilhar sob a luz artificial de lanternas
e luzes de emergência.
O que acontecera? Onde estava Tristan?
Lembrava-se de cair, de esticar os braços para se amparar, preocupada
apenas em não cair em cima dos corpos no chão.
Largara-o. Largara-o para se salvar a si própria, para não cair de cara em
cima do sangue, dos detritos da morte.
Largara-o.
Doíam-lhe os pulmões, mas não conseguiu conter um vómito. Arderam-lhe
os olhos e sentiu a garganta apertada. Os seus ferimentos passaram
misericordiosamente para segundo plano e as lágrimas deslizaram-lhe pelo
rosto.
Largara-o.
— Não — murmurou, entre os lábios secos. — Não, não, não.
Freneticamente, tentou mudar de posição e enfiou a mão no bolso,
ignorando as dores lancinantes que cada movimento causava, os dedos à
procura, desesperadamente. O seu coração parou por uma fração de segundo.
Estava ali. A flor. Se a flor conseguira atravessar... onde estava ele? Porque
não estava deitado ao lado dela?
Tê-lo-ia perdido quando lhe largara a mão?
— Muito bem, aqui está ela. Dylan? — Ouvir o seu nome distraiu-a por um
momento destes pensamentos. — Dylan, vamos colocar-te em cima desta
prancha, minha querida. Está bem? Temos de te levar para a ambulância.
Vamos dar-te qualquer coisa para as dores. Estás a compreender? Dylan,
acena se me estás a compreender, querida.
Ela acenou obedientemente. Estava a compreender. Uma ambulância.
Medicamentos para as dores era boa ideia — podiam ajudar a apagar o fogo
que lhe ardia na barriga. Mas não fariam nada pelo buraco aberto no seu
peito, pela agonia de se sentir tão vazia. O que fizera?
Os homens demoraram algum tempo a colocá-la na feia maca amarela.
Puseram-lhe uma gola de plástico no pescoço, que a obrigava a olhar para o
teto. Os homens foram simpáticos, tentaram tranquilizá-la e não a magoar
mais do que o necessário. Dylan quase nem os ouviu. Só com grande esforço
conseguia responder às perguntas deles, forçar «sim» e «não» por entre os
lábios dormentes. Ficou contente quando começaram a levantá-la, quando
deixou de precisar de os ouvir e já não tinha de falar.
Tirá-la da carruagem pareceu demorar muito tempo, mas, assim que ouviu
os pés deles na gravilha do chão do túnel, sentiu-os acelerarem o passo.
Pareciam ansiosos por a tirar dali o mais depressa possível. Dylan devia
sentir-se assustada com isso, mas não conseguia.
O ar mudou à medida que era transportada ao longo do túnel. Uma leve
brisa começou a cortar a humidade estagnada e por fim sentiu um ligeiro
chuvisco que lhe arrefeceu a testa. Tentou olhar para trás, ver a que distância
estava da boca do túnel, mas o suporte no pescoço e as faixas que lhe
prendiam os ombros não a deixavam mover muito, e quando tentava rolar os
olhos sentia pontadas de dor na cabeça. Mesmo assim, avistou um halo
desfocado de luz natural antes de relaxar novamente na maca, ofegante.
Estava quase fora do túnel.
Com passos cuidadosos, os dois homens levaram Dylan para o cinzento
baço de um fim de tarde de outono. Viu o arco de pedra, cortado de forma
elegante na encosta da colina, afastar-se lentamente, o abismo voraz reduzido
a uma mancha escura e silenciosa. A cerca de dez metros da entrada do túnel,
viraram-na e começaram a subir a inclinação ao lado da linha. E foi então que
ela o viu.
Estava sentado à esquerda da entrada do túnel, com as mãos à volta dos
joelhos, a olhar para ela. A esta distância, a única coisa que Dylan conseguia
ver era que era um rapaz, provavelmente adolescente, com cabelo cor de areia
que o vento fazia esvoaçar à volta do rosto.
— Tristan — sussurrou. O alívio e a alegria cresceram-lhe no peito.
Devorou a imagem dele, aqui, no mundo dela.
Ele conseguira.
Alguém se atravessou entre eles, cortando-lhe a linha de visão. Um
bombeiro. Dylan viu-o inclinar-se e pôr uma manta sobre os ombros de
Tristan. Disse-lhe qualquer coisa, uma pergunta. Viu Tristan abanar a cabeça.
Lentamente, de forma algo atrapalhada, levantou-se da relva. Disse mais
qualquer coisa ao bombeiro e começou a andar na direção dela. Mesmo antes
de chegar ao seu lado, sorriu.
— Olá — murmurou, esticando a mão para acariciar suavemente a manta
que a cobria. Procurou-lhe os dedos e apertou-os.
— Olá — murmurou ela. Os seus lábios estremeceram quando tentou
sorrir. — Estás aqui.
— Estou aqui.
AGRADECIMENTOS

Um obrigada enorme e sentido às seguintes pessoas, que deram vida a O


Barqueiro:
O meu marido, Chris, por acreditar em mim e ser o meu «crítico» oficial.
Amo-te. Sou eternamente grata a Clare e Ruth por lerem tudo tão depressa e
por me dizerem que adoraram! O meu amor e gratidão para os meus pais,
Cate e John, por me apoiarem e me ensinarem a gostar de histórias.
A Ben Ills, o meu agente, por me dar a mão e me elogiar tanto. Obrigada
também a Helen Boyle e toda a equipa da Templar por terem fé em O
Barqueiro e me ajudarem a transformá-lo em algo muito melhor do que teria
conseguido fazer sozinha.
Para quem é de ‘Gow e está a ler isto — olá, tenho saudades vossas.
Portem-se bem (e não se esqueçam de arrumar as cadeiras!). Obrigada por me
ensinarem a levar as outras pessoas para o mundo do faz-de-conta.
E, por fim, obrigada a Dylan e Tristan por aparecerem na minha cabeça e
insistirem para que eu os pusesse no papel.
Claire McFall
PODERÁ HAVER AMOR DEPOIS DA MORTE?
Leia a seguir um excerto exclusivo de

INTRUSOS
Um romance da série «O Barqueiro»
UM

Dylan flutuava numa nuvem morna. De olhos fechados, deitada de costas,


com um colchão mole por baixo e as mantas macias puxadas até ao queixo.
Estava confortável, aconchegada e era assim que queria ficar.
Infelizmente, várias vozes intrometeram-se no seu sossego e uma delas não
estava disposta a deixar-se ignorar muito mais tempo.
— E quem és tu, afinal, meu rapaz? — As palavras de Joan eram geladas.
Dylan conhecia o tom de voz da mãe, conhecia-o muito bem. Fora alvo dele
nem sabia quantas vezes. O que nunca ouvira antes, contudo, era a ansiedade
e medo que o tornavam ainda mais cortante.
— Estou com a Dylan.
Ao ouvir esta segunda voz, os olhos de Dylan abriram-se de imediato. Não
conseguia fazer outra coisa. Atravessara as terras perdidas por aquele timbre
quente, enfrentara criaturas mais mortíferas e aterrorizadoras do que tudo o
que poderia ter imaginado no mundo dos vivos. Não havia nada que não
fizesse...
Se bem que havia uma coisa que não podia fazer. Com o pescoço preso
numa gola de plástico rijo, não conseguia virar-se e ver Tristan — confirmar
com os seus próprios olhos que ele ainda estava ali. Mesmo assim, tentou,
com o plástico duro a cravar-se na clavícula, e virou os olhos tão para cima
que ficou com dor de cabeça. Mas, para sua frustração, ele continuava fora do
seu campo de visão.
— Ah, sim? — Uma pausa carregada de desconfiança que fez Dylan
encolher-se. — Tem graça, mas nunca ouvi falar de ti. — Sons de
movimento. — Doutor, porque permitiu que este rapaz tivesse acesso à
minha filha? — A voz a subir em volume e em irritação. — Ela está
inconsciente. Sabe-se lá o que ele lhe podia ter feito!
Dylan já ouvira o bastante. Embaraçada, tentou gritar, mas tudo o que lhe
saiu foi um sussurro rouco:
— Mãe!
Teve de esperar alguns segundos para que o rosto de Joan lhe surgisse
subitamente à frente dos olhos.
— Dylan! Como te sentes? — Joan parecia ter envelhecido cem anos.
Tinha os olhos injetados de sangue e olheiras escurecidas pelo rímel borrado.
O carrapito apertado em que prendia sempre o cabelo estava meio desfeito,
com madeixas caídas ao lado do rosto. Ainda tinha o uniforme de enfermeira
por baixo de um casaco de malha largo e Dylan apercebeu-se de que era o
mesmo que ela tinha vestido nessa manhã, quando se despedira dela — não,
quando tinham discutido em vez de se despedirem...
Contudo, para Dylan, isso fora há vários dias.
Sem aviso, as lágrimas começaram a deslizar-lhe pelas faces,
desaparecendo entre o cabelo espalhado na almofada.
— Mãe! — repetiu, com a cara franzida e um ardor nos olhos, nariz e
garganta.
— Está tudo bem, querida. Estou aqui. — Os dedos da mãe fecharam-se
sobre a sua mão esquerda e, embora Joan tivesse a mão fria, Dylan sentiu-se
confortada. Fungou e tentou levantar a mão direita para limpar a cara, mas
um puxão e uma pontada de dor impediram-na. Dylan soltou uma
exclamação surpreendida e tentou erguer a cabeça para olhar para o corpo.
Porém, além do suporte no pescoço, tinha uma faixa sobre os ombros que não
a deixava mover-se mais do que um ou dois centímetros — e doía.
— Não te mexas, meu amor — consolou Joan. — Estás no hospital.
Tiveste um acidente grave e tens de ficar muito quietinha. — Apertou
gentilmente a mão de Dylan. — Tens soro neste braço. O melhor é... — a voz
tremeu-lhe — ...o melhor é ficares o mais sossegada que conseguires, está
bem?
Não, não estava bem, pensou Dylan. Sentia-se impotente, ali deitada. E não
conseguia ver Tristan.
Outra pessoa inclinou-se sobre o campo de visão de Dylan do outro lado.
Era ele? Não, apenas um médico com um sorriso simpático. Parecia tão
cansado como Joan.
— Sei que provavelmente não te sentes muito confortável assim, Dylan,
mas temos de avaliar a extensão dos teus ferimentos antes de te deixarmos
mexer mais. Pode haver uma lesão na coluna, por isso precisamos de ter
muito cuidado.
Um pânico súbito invadiu Dylan quando se lembrou do que sucedera no
comboio.
— As minhas pernas? — murmurou.
Lembrou-se da agonia de estar caída sob os destroços do acidente, a
sensação de fogo que lhe percorrera as pernas a cada respiração, a cada
ínfimo movimento. E agora não havia... nada. Um mar de entorpecimento.
Tentou abanar os dedos dos pés, mas era impossível dizer se estavam ou não
a mover-se.
— O que aconteceu às minhas pernas?
— Ainda aqui estão. — O médico levantou ambas as mãos num gesto
tranquilizador, com o mesmo sorriso estampado no rosto. Baixou uma delas e
pousou-a na cama. Dylan não conseguia ver se ele estava a tocar-lhe ou não;
se estava, ela não sentia nada.
— Eu não... não consigo...
— Acalma-te, Dylan. — Uma ordem impossível de seguir. — Não há
motivo para alarme. Temos de fazer uma radiografia às tuas pernas, mas estás
sob efeito de uma dose elevada de analgésicos e tivemos de te colocar
ligaduras apertadas. É por isso que não tens muita sensação, está bem?
Dylan olhou para o médico por um instante, analisando as palavras, e
decidiu que podia respirar.
— Mãe. — Engoliu em seco e tossiu. A garganta parecia lixa. Tentou mais
uma vez, sem sucesso, levantar a cabeça. — O Tristan está aqui?
Joan apertou os lábios. Virou ligeiramente a cabeça, como se estivesse a
desviar-se de algum cheiro desagradável.
O pânico cresceu, gelado, no peito de Dylan. Começou a debater-se com as
coisas que a prendiam à cama.
— Ele... — Apoiou os cotovelos na cama e tentou forçar as correias que a
prendiam. — Onde...
— Estou aqui. — Melhor do que apenas a voz, o rosto de Tristan apareceu
diante dela. Estava ao lado do médico, o mais afastado possível de Joan.
Tristan. O alívio e a alegria percorreram Dylan como um rio. Ele estava ali.
Conseguira mesmo atravessar. Ambos tinham conseguido.
Tristan fez menção de pegar na mão de Dylan, a que tinha o soro, mas um
som seco de Joan fê-lo parar. Dylan, que precisava de sentir o toque dele,
ignorou a pressão desagradável da agulha do soro e procurou-lhe a mão,
fechando os dedos sobre os dele.
Tristan apertou-lhe a mão, e doía, mas Dylan sorriu.
— Estás aqui — murmurou.
Depois foi invadida pela memória de dizer essas mesmas palavras, deitada
numa maca, enquanto os paramédicos a retiravam dos destroços do comboio.
Recordou a sensação de o ver ali, no mundo, vivo e sólido e real, depois de
pensar que o perdera. As lágrimas encheram-lhe novamente os olhos.
— Estás a ver? Vês? — Joan esticou-se sobre a cama e tentou sacudir a
mão de Tristan. — Estás a deixá-la perturbada! Larga-a!
— Não! Mãe! — Dylan apertou mais a mão de Tristan e esticou o outro
braço para afastar Joan. — Para com isso.
— Está visto que a enfeitiçaste — acusou Joan. — Apanhaste-a confusa e
vulnerável...
— Mãe!
Joan ignorou Dylan, de olhos fixos em Tristan.
— Quero que saias daqui — declarou com firmeza. Depois virou-se para o
médico. — Ele não é da família, por isso não tem qualquer direito de estar
aqui.
— Enfermeira McKenzie... — começou o médico, mas não conseguiu dizer
muito mais.
— Não. Eu conheço as regras. Há oito anos que trabalho aqui. Não sei
quem deixou entrar este rapaz, mas...
— Não vás — implorou Dylan, concentrada em Tristan. Ele também não
estava a dar importância a Joan, com a mão apertada à volta da dela, o
penetrante olhar azul fixo em Dylan como se estivesse a tentar memorizar-lhe
todas as feições.
Apertou-lhe a mão com mais força, causando uma pontada de dor, e
abanou ligeiramente a cabeça.
— Não vou a lado nenhum.
Joan ainda estava a discutir com o médico, mas, com Tristan a olhar para
ela, Dylan não ouviu nada. De cada vez que pestanejava, temia que ele
tivesse desaparecido. Que fosse puxado de novo para as terras perdidas,
chamado ao seu dever interminável. Não parecia real que ele tivesse
conseguido escapar tão facilmente aos grilhões da sua servidão.
— Ainda não acredito que estás aqui — disse-lhe.
— Onde querias que estivesse? — Lançou-lhe um sorriso de esguelha, com
ar perplexo.
— Sabes o que quero dizer.
— Estamos destinados a ficar juntos — declarou ele, aproximando-se mais.
— Para onde quer que vás, é para onde eu irei também.

CONTINUA...

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