O Barqueiro
O Barqueiro
O Barqueiro
Título: O Barqueiro
Título original: Ferryman
Autor: Claire McFall
Traduzido do inglês por Elsa T. S. Vieira
Edição: José Prata / Lua de Papel
Revisão: Catarina Sacramento
Capa: Rui Rosa / Lua de Papel
ISBN: 9789892343099
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Conta-me tudo!
Dylan riu alto e depois tapou a boca com a mão quando viu a mulher
sentada em frente a fitá-la com ar ainda mais feroz. Katie era sempre assim,
nunca se deixava enganar pelos disfarces dela.
Ok, talvez um bocadinho. Estou a tentar não
pensar muito nisso.
A enviar...
Silêncio.
Devia haver gritos, choros, qualquer coisa, pensou Dylan.
Mas havia apenas silêncio.
A escuridão era tão absoluta que mais parecia um manto pesado a sufocá-
la. Por um instante de pânico, pensou que estava cega. Desorientada, tentou
abanar a mão à frente da cara. Não viu nada, mas conseguiu espetar um dedo
no olho. O choque da dor fê-la pensar por um momento. Iam a passar num
túnel — era por isso que estava escuro.
Os seus olhos não descortinavam sequer o mais ínfimo pontinho de luz.
Tentou levantar-se da cadeira ao lado da sua, onde caíra de lado, mas algo a
estava a prender. Rodou para a direita e conseguiu deslizar para o chão entre
os bancos. A sua mão tocou em algo quente e peganhento. Afastou-a
rapidamente e limpou-a nas calças, tentando não pensar no que poderia ser. A
mão direita fechou-se sobre um pequeno objeto — o telemóvel que tinha na
mão quando o mundo se virara de pernas para o ar. Ansiosa, apanhou-o e
virou-o. O alívio invadiu-a, rapidamente seguido pela desilusão. O ecrã
estava apagado. Tocou-lhe freneticamente, com a esperança a dissipar-se.
Estava morto.
Dylan rastejou para o corredor da carruagem, tentou pôr-se em pé e bateu
com a cabeça em qualquer coisa.
— Bolas! Ai! — Voltou a agachar-se. Levou a mão à cabeça, que latejava
agora ferozmente no sítio onde batera. Não parecia estar a sangrar, mas doía
como tudo. Desta vez com mais cuidado, tornou a endireitar-se, usando as
mãos para guiar a cabeça até um sítio seguro. Estava tão escuro que nem
sequer conseguia ver onde tinha batido.
— Está aí alguém? — chamou, timidamente. Não houve qualquer resposta,
nem ouvia o som dos outros passageiros a moverem-se. A carruagem estava
cheia, onde estaria toda a gente? A poça de líquido junto da sua cadeira veio-
lhe à cabeça, mas afastou-a rapidamente.
— Está aí alguém? — tentou de novo, agora mais alto. — Alguém me
ouve? Socorro!
A sua voz falhou um pouco na última palavra, quando o pânico começou a
mostrar as garras. Com a respiração acelerada, tentou pensar, apesar do medo
que se apoderava dela. A escuridão era claustrofóbica e levou as mãos à
garganta, como se algo a estivesse a estrangular. Estava completamente
sozinha, rodeada de...
Não queria pensar nisso. Tudo o que sabia era que não suportava ficar
naquela carruagem nem mais um segundo.
Sem pensar, precipitou-se para a frente, aos tropeções, passando por cima
do que encontrava no caminho. Pisou algo macio e escorregadio. A sola do
ténis não conseguiu agarrar-se ao chão e deslizou. Horrorizada, tentou
levantar a perna e afastá-la do objeto estranhamente esponjoso, mas o outro
pé não encontrou um sítio direito e seguro onde pousar. Quase em câmara
lenta, sentiu-se a resvalar para o chão, para cima das coisas assustadoras que
lá se encontravam.
Não!
Com uma exclamação abafada, esticou os braços para se proteger enquanto
tombava. Uma das mãos encontrou um poste e os seus dedos apertaram-se
sobre ele, travando-lhe abruptamente a queda com um esticão nos músculos
do ombro. O impulso lançou-a para a frente e bateu com o pescoço no metal
frio.
Ignorando a dor no pescoço, Dylan agarrou-se ao poste com ambas as
mãos, sentindo que era o seu elo de ligação à realidade. Poste, disse-lhe o
cérebro. O poste está ao pé da porta. O alívio inundou-a e conseguiu pensar
um pouco mais claramente. Era por isso que estava sozinha. Já toda a gente
devia ter saído, e não tinham dado por ela porque estava enterrada debaixo
dos sacos daquela mulher estúpida. Devia ter-me sentado ao lado dos fãs dos
Rangers, pensou, com uma risada fraca.
Sem confiar no seu sentido de orientação na escuridão, deslizou a mão ao
longo da partição ligada ao poste, à espera de encontrar a porta aberta. Os
seus dedos esticaram-se, mas não encontrou nada. Avançou um pouco mais e,
por fim, tocou na porta. Estava fechada.
Que estranho, pensou. Deviam ter saído todos pela porta na outra ponta da
carruagem. Era mesmo típico da sorte dela. Este raciocínio lógico acalmou-a
e ajudou-a a pensar mais claramente. Sem querer voltar para trás, correndo o
risco de pisar mais coisas desagradavelmente moles, procurou, aos apalpões,
o botão que abria a porta. Os seus dedos encontraram-no e pressionaram, mas
a porta não se abriu.
— Raios — murmurou. Provavelmente a eletricidade falhara durante o
acidente. Olhou para trás por cima do ombro, um gesto inútil, uma vez que
não conseguia ver nada. A sua imaginação preencheu as lacunas, enchendo o
caminho através da carruagem de bancos virados, malas, vidros partidos das
janelas e coisas moles e escorregadias que, na sua mente, estavam a
solidificar-se em membros e corpos. Não, recusava-se a voltar por ali.
Encostou ambas as mãos à porta do comboio e empurrou com força.
Embora a porta resistisse, sentiu-a dar um bocadinho de si. Com algum
esforço, achava que conseguiria forçá-la. Recuou, respirou fundo e lançou-se
para a frente, atingindo a porta com a sola do pé esquerdo, com todas as suas
forças. O estrondo pareceu muito alto naquele espaço confinado, ecoando-lhe
nos ouvidos, e sentiu uma pontada de dor no tornozelo e no joelho. Apesar
disso, sentia agora ar fresco na cara, o que lhe deu esperança. Com as mãos,
confirmou-o: uma das laterais da porta fora arrancada da calha. Se
conseguisse fazer o mesmo à outra, ficaria um espaço suficiente para
conseguir sair. Desta vez recuou dois passos e atirou-se contra a porta com
toda a força que conseguiu reunir. A porta guinchou, quando o metal raspou
em metal, antes de finalmente ceder.
A fresta não era grande, mas, felizmente, Dylan também não o era. Virou-
se de lado e espremeu o corpo pela abertura. Ouviu algo a rasgar-se quando o
fecho do casaco ficou preso entre o seu corpo e a porta, mas subitamente
estava livre, a cair para os carris. Sentiu um instante de medo, mas os seus
ténis pisaram gravilha após uma curta queda e a sensação de claustrofobia
dissipou-se como se alguém lhe tivesse desenrolado uma corrente do
pescoço.
O túnel estava tão escuro como o comboio. O acidente devia ter acontecido
mesmo no meio. Dylan olhou primeiro para um lado, depois para o outro. De
nada adiantou. Não via qualquer luz e, além do sussurro suave do ar naquele
espaço fechado, só ouvia silêncio.
Um, dó, li, tá, pensou. Com um suspiro, virou para a direita e começou a
andar. Tinha de ir dar a algum lado.
Sem uma luz para a guiar, tropeçou várias vezes e o seu progresso era
lento. De vez em quando, sentia algo pequeno a fugir apressadamente junto
aos seus pés. Esperava que não houvesse ratazanas no túnel. Tudo o que fosse
mais pequeno do que um coelho causava-lhe um medo irracional. Uma
aranha na casa de banho podia desencadear meia hora de histeria até
conseguir convencer Joan a vir salvá-la. Se alguma coisa lhe passasse por
cima do pé, num sítio destes, sabia que os seus instintos de fuga levariam a
melhor. Contudo, naquela escuridão e com o terreno irregular, provavelmente
cairia de rosto no chão.
O túnel parecia não ter fim. Estava prestes a dar meia-volta para
experimentar a outra direção quando viu o que lhe pareceu ser um pontinho
de luz à distância. Na esperança de que fosse uma saída, ou um socorrista
com uma lanterna, acelerou o passo, desesperada por estar novamente onde
houvesse luz. Demorou muito tempo, mas, aos poucos, o pontinho
transformou-se num arco. Para além deste, via apenas uma ligeira claridade,
mas era suficiente.
Quando saiu finalmente do túnel, caía uma chuva miudinha e Dylan riu-se,
deliciada, erguendo o rosto para as pequenas gotas. A escuridão do túnel
fizera-a sentir-se suja, e parecia-lhe agora que as leves gotículas estavam a
lavar parte do terror. Respirou fundo, pôs as mãos nas ancas e estudou o que
a rodeava.
A paisagem estava deserta, à exceção dos carris, que se estendiam por entre
um cenário selvagem. Era evidente que Glasgow ficara muito para trás. No
horizonte, avistou grandes montanhas imponentes. Nuvens baixas escondiam-
lhe os cumes mais altos. Era uma palete de cores desbotadas, urze roxa a lutar
por espaço com grandes extensões de fetos castanhos. Pequenos maciços de
árvores cresciam em padrões irregulares nas encostas mais baixas de colinas
cobertas de pinheiros escuros. As encostas mais próximas do túnel não eram
tão íngremes, mas sim montes ondulantes revestidos de relva alta. Não se via
qualquer estrada ou povoação, nem sequer uma quinta isolada. Dylan mordeu
o lábio enquanto estudava a cena. Parecia selvagem e pouco hospitaleira.
Estava à espera de encontrar uma confusão de carros da Polícia e
ambulâncias estacionados em ângulos descuidados, na pressa de chegarem à
cena do acidente. Devia haver bandos de homens e mulheres com coletes de
cores fluorescentes, prontos para correrem para ela e a confortarem, para
verificarem se ela estava ferida e para lhe fazerem perguntas. A área à saída
do túnel devia estar apinhada de grupos de sobreviventes, pálidos e enrolados
em mantas para se protegerem do vento cortante. Na verdade, não havia
nenhuma destas coisas. O seu rosto transformou-se numa máscara de
confusão e inquietação. Onde estava toda a gente?
Virou-se e olhou para a boca escura do túnel. Não havia outra explicação:
devia ter saído pelo lado errado. Deviam estar todos na outra extremidade.
Lágrimas de frustração e cansaço saltaram-lhe dos olhos. A perspetiva de
tornar a entrar na escuridão, de ter de passar novamente pelo comboio cheio
dos corpos inertes e sem vida dos menos afortunados, era aterradora. Mas não
tinha como ir à volta. O solo coberto de urze, talhado no sopé de uma série de
colinas maciças, erguia-se de ambos os lados como penhascos
intransponíveis.
Ergueu os olhos para cima, como que a suplicar a Deus para alterar a
situação, mas tudo o que viu foram as nuvens cor de chumbo a deslizar
lentamente pelo céu. Com um soluço, olhou de novo para a paisagem deserta
à sua frente, desesperada por algum sinal de civilização que a pudesse salvar
de ter de voltar a entrar no túnel escuro. Levou a mão à testa para proteger os
olhos da chuva e do vento e perscrutou o horizonte. E foi então que o viu.
QUATRO
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Por fim, Dylan chegou junto dele e conseguiu vê-lo melhor. O seu palpite
quanto à idade fora certeiro; seria, no máximo, um ano mais velho do que ela.
Vestia calças de ganga, uma camisola azul-escura de aspeto quente, com a
palavra Broncos à frente em letras cor de laranja, e calçava ténis. Era difícil
calcular a sua altura, assim dobrado, mas não parecia pequeno nem magro.
Estava bastante bronzeado e tinha algumas sardas a salpicar-lhe o nariz. O
seu rosto estava fixo numa expressão dura e desinteressada e, assim que
Dylan se aproximou mais, virou os olhos para a paisagem deserta. Mesmo
depois de ela estar mesmo à sua frente, não mudou de expressão nem virou o
rosto para ela. Era muito desconcertante e Dylan agitou-se, sem saber o que
dizer.
— Olá, chamo-me Dylan — murmurou por fim, de olhos postos no chão.
Enquanto esperava por resposta, deslocou o peso de um pé para o outro e
olhou na mesma direção que ele, tentando perceber o que ele estava a
observar.
— Tristan — respondeu ele passado algum tempo. Lançou-lhe um olhar
rápido e continuou a fitar a distância.
Aliviada por lhe ter pelo menos respondido, Dylan tentou novamente
iniciar uma conversa.
— Imagino que também vinhas no comboio. Estou tão contente por não ser
a única aqui! Devo ter desmaiado na carruagem e quando acordei estava
sozinha. — Disse tudo isto muito depressa, nervosa com a receção gelada do
rapaz. — Todos os outros passageiros já tinham saído e, pelos vistos,
ninguém reparou que eu ainda lá estava. Havia uma mulher com uma data de
sacos estúpidos... fiquei debaixo deles. Quando saí, não consegui perceber
para que lado tinham ido todos, mas nós os dois devemos ter saído pelo lado
errado do túnel. Aposto que os Bombeiros e a Polícia e as outras pessoas
todas estão do outro lado.
— Comboio? — Ele virou-se para ela e Dylan viu-lhe pela primeira vez os
olhos. Eram frios e azuis. Azul-cobalto. Sentiu-se como se aqueles olhos
fossem capazes de lhe congelar o sangue, se estivessem furiosos, mas a sua
expressão naquele momento era apenas curiosa. Estudaram-na durante meio
segundo antes de se virarem para a boca do túnel. — Claro. O comboio.
Dylan olhou para ele, expectante, mas o rapaz não parecia ter intenções de
continuar a falar. Mordeu o lábio e amaldiçoou a sua sorte por a única outra
pessoa à vista ser um rapaz adolescente. Um adulto saberia o que fazer. Além
disso, embora lhe custasse admiti-lo, rapazes como este deixavam-na
nervosa. Pareciam tão seguros e confiantes, e ela acabava sempre por se
engasgar e fazer figura de idiota.
— Talvez devêssemos voltar a atravessar o túnel até ao outro lado? —
sugeriu. Essa perspetiva não parecia tão terrível como antes, agora que tinha
companhia. Assim podiam encontrar-se com todos os outros passageiros e as
equipas de emergência e talvez ela ainda conseguisse salvar o fim de semana
com o pai.
O rapaz voltou novamente para ela toda a força do seu olhar e Dylan teve
de se conter para não recuar um passo. Os olhos dele eram magnéticos e
pareciam trespassá-la e ver o seu íntimo. Sentiu-se exposta, quase nua, sob
aquele olhar. Inconscientemente, cruzou os braços sobre o peito.
— Não, não podemos ir por aí. — O tom dele era desinteressado, como se
não estivesse nada preocupado com a situação em que se encontravam. Como
se não se importasse de ficar sentado naquela encosta para sempre.
Bom, pensou Dylan, eu não posso ficar aqui.
Depois de a fitar durante mais alguns instantes, o rapaz virou-se de novo
para as montanhas. Dylan mordeu o lábio enquanto tentava pensar em
qualquer coisa para dizer.
— Então tens um telemóvel para podermos ligar a alguém, a Polícia,
talvez? O meu deixou de funcionar no acidente. E se calhar devia ligar à
minha mãe. Quando ela souber o que aconteceu vai-se passar. É
superprotetora e vai querer saber que eu estou bem para poder dizer-me «Eu
bem te avisei»... — Dylan calou-se.
Desta vez ele nem sequer olhou para ela.
— Os telefones não funcionam aqui.
— Oh. — Agora estava a ficar aborrecida. Estavam presos do lado errado
do túnel, sem adultos por perto e sem forma de contactar ninguém, e ele não
estava a ajudar nada. Contudo, era a única pessoa por perto. — Bom, então o
que havemos de fazer?
Em vez de responder, ele levantou-se subitamente. Em pé, era muito mais
alto do que ela, muito mais alto do que ela julgara. Baixou os olhos para ela,
com um leve sorriso irónico nos lábios, e começou a andar.
Dylan abriu e fechou a boca algumas vezes, sem emitir qualquer som.
Ficou imóvel e muda, estupefacta com este estranho rapaz. Tencionaria
simplesmente deixá-la ali? Rapidamente teve a sua resposta. A cerca de dez
metros, ele parou e olhou para ela.
— Vens?
— Aonde? — perguntou Dylan, relutante em deixar o local do acidente de
comboio. Com certeza que ficar ali era a coisa mais sensata a fazer, não?
Como é que alguém os encontraria, se se afastassem? Além disso, como é
que ele sabia aonde ia? Já era final da tarde e em breve ficaria escuro. O
vento soprava com mais força e estava frio; ela não queria perder-se e ter de
passar a noite ao relento.
Porém, a confiança dele fê-la duvidar de si própria. Ele pareceu ver a
indecisão no seu rosto. Lançou-lhe um olhar condescendente e disse, com a
voz a escorrer superioridade:
— Bom, eu não vou ficar aqui sentado à espera. Tu podes ficar, se quiseres.
Viu Dylan absorver o comentário, avaliando a reação dela.
Dylan arregalou os olhos, com medo de ficar sozinha, à espera. E se a noite
caísse e não aparecesse mais ninguém?
— Acho que devíamos ficar os dois aqui — começou a dizer, mas ele já
estava a abanar a cabeça.
Como se fosse uma grande maçada, regressou até junto dela e fitou-a, tão
perto que Dylan conseguia sentir o hálito dele no rosto. Ergueu os olhos para
os dele e sentiu o mundo à sua volta desaparecer. O olhar dele era dominador;
não teria conseguido afastar os olhos, mesmo que quisesse.
— Vem comigo — ordenou ele, e o seu tom deixava pouca margem para
negociações. Era uma ordem e esperava que ela lhe obedecesse.
Com a mente estranhamente vazia, não passou pela cabeça de Dylan
desobedecer. Acenou com a cabeça, entorpecida, e começou a andar atrás
dele.
O rapaz, Tristan, nem sequer esperou por ela e acelerou o passo, subindo a
colina, afastando-se do túnel. Ficara surpreendido com a força de vontade
dela; esta tinha uma certa força interior. Apesar disso, teria de o seguir.
CINCO
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— Tristan, isto é ridículo.
— O que foi agora? — Virou-se para ela, claramente exasperado.
— Estamos a caminhar há horas.
— E depois?
— Bem, o comboio teve o acidente apenas uma hora a norte de Glasgow.
Não há sítio nenhum nesta parte da Escócia em que pudéssemos começar a
andar, andar tanto tempo como nós andámos, e não encontrar nada.
Ele olhou para Dylan, avaliando-a com ar astuto.
— E aonde queres chegar?
— Só podemos estar a caminhar em círculos. Se soubesses mesmo aonde
vamos, já lá teríamos chegado. — Dylan pôs as mãos nas ancas, preparada
para discutir, mas para sua surpresa a expressão de Tristan era quase aliviada.
Isso confundiu-a. — Não podemos simplesmente continuar a andar —
concluiu.
— Tens alguma ideia melhor?
— Sim, a minha ideia melhor era ficar junto da entrada do túnel, onde
alguém nos teria encontrado.
Ele sorriu outra vez. A preocupação dessa manhã há muito que
desaparecera, e o Tristan arrogante e trocista estava de volta.
— Agora é tarde — ripostou e, virando-se, continuou a andar.
Dylan olhou para as costas dele, incrédula. Era tão rude e presunçoso que
não parecia verdade.
— Não, Tristan, estou a falar a sério. Para!
Tentou adicionar um tom de autoridade à sua voz, mas até ela própria
reconhecia que parecia mais desespero.
Mesmo a dez metros de distância, ouviu o suspiro de impaciência dele.
— Quero voltar para trás.
Tristan virou-se novamente para ela e Dylan percebeu que estava a ter
grande dificuldade em manter uma expressão calma.
— Não.
Olhou para ele, de boca aberta. Quem é que este tipo pensava que era,
afinal? Era um rapaz da idade dela, não a sua mãe. Por que raio ele julgava
poder dar-lhe ordens desta maneira? Cruzou os braços sobre o peito e
preparou-se para uma discussão.
— Como assim, não? Não podes decidir aonde eu vou ou não. Ninguém te
nomeou comandante. Estás tão perdido como eu. Quero voltar para trás. —
Enunciou muito bem cada sílaba da última frase, como se a força das palavras
pudesse torná-las realidade.
— Não podes voltar para trás, Dylan. Já desapareceu.
Baralhada com as palavras dele, Dylan franziu a testa e apertou os lábios.
— O que queres dizer? O que é que desapareceu? — As afirmações
enigmáticas de Tristan começavam a irritá-la.
— Nada, está bem? Não foi nada. — Abanou a cabeça e pareceu estar a
debater-se para encontrar as palavras certas. — Ouve, confia em mim. — Os
seus olhos trespassaram os dela. — Já viemos até aqui. Demoraria imenso
tempo voltar para trás e encontrar outra vez o túnel. Eu sei mesmo aonde
estou a ir. Garanto-te.
Indecisa, Dylan deslocou o peso de um pé para o outro. Queria
desesperadamente regressar ao local do acidente, certa de que estaria lá
alguém com autoridade, alguém capaz de resolver isto. Por outro lado, nunca
o conseguiria encontrar sozinha e estava morta de medo de ficar abandonada
no meio do nada. Ele pareceu pressentir a sua indecisão. Aproximou-se dela,
até estar quase a tocar-lhe, e dobrou os joelhos para ela o conseguir olhar nos
olhos. Dylan queria afastar-se, mas estava paralisada, como um coelho com a
luz de uns faróis. Ecos agitaram-se na sua memória, mas ele estava
demasiado perto e perdeu o fio ao raciocínio.
— Temos de ir por este lado — murmurou ele. — Tens de vir comigo. —
Fitou-a atentamente, até ver as pupilas dela dilatarem-se ao ponto de quase
cobrirem a íris verde, e sorriu de forma satisfeita. — Vamos — ordenou.
Sem pensar, os pés de Dylan obedeceram.
Andaram, e andaram, e andaram. Estavam a atravessar terreno pantanoso
que, de alguma forma, parecia ser sempre a subir. As pernas de Dylan ardiam
e cada passo que dava era acompanhado pela sensação desagradável de água
fria dentro dos ténis. As calças de ganga largas estavam ensopadas quase até
aos joelhos e arrastavam-se a cada passo.
Tristan, contudo, parecia indiferente aos seus olhares furiosos e aos seus
resmungos. Manteve um ritmo implacável, sempre cerca de um metro à
frente dela, calado e determinado. De vez em quando, se ela tropeçasse,
virava a cabeça, mas assim que via que ela estava bem prosseguia com a sua
marcha de forma resoluta.
Dylan começou a sentir-se cada vez mais desconfortável. O silêncio entre
eles era como uma parede de tijolo, totalmente impenetrável. Parecia-lhe que
ele estava ressentido por se ver preso a ela, como se Dylan fosse uma irmã
mais nova inconveniente de quem prometera de má vontade cuidar. Não
havia nada a fazer senão aceitar esse papel e segui-lo, como a menina
mimada a quem não estavam a fazer a vontade. Dylan sentia-se demasiado
intimidada para tentar confrontá-lo com este comportamento hostil. Baixou o
queixo para o peito e suspirou. De olhos postos na erva alta, tentando em vão
localizar os buracos e os torrões de terra que a queriam fazer tropeçar,
resmungou baixinho, infeliz, e continuou a seguir Tristan.
No cimo de mais uma colina, ele parou finalmente.
— Precisas de descansar um pouco?
Dylan ergueu os olhos, ligeiramente desorientada depois de estar há tanto
tempo de cabeça baixa.
— Sim, era bom. — Depois de um silêncio tão prolongado, achou que
devia responder num murmúrio, mas o vento que soprava à volta deles levou
as palavras assim que lhe saíram da boca. No entanto, ele pareceu
compreender, porque se dirigiu a uma grande rocha que se erguia entre a erva
e a urze e encostou-se a ela numa pose descontraída. Olhou para a paisagem,
como se estivesse de sentinela.
Dylan não tinha energia para procurar um sítio seco. Deixou-se cair no
chão onde estava. Quase instantaneamente, a humidade ensopou-lhe as
calças, mas já estava tão fria e molhada que mal deu pela diferença. Estava
demasiado cansada para pensar, demasiado cansada para discutir. Exausta e
sem ânimo, estava disposta a seguir cegamente Tristan para onde ele quisesse
levá-la. Talvez tivesse sido esse o plano dele desde o princípio, pensou, mal-
humorada.
Era estranho; algures, no fundo da sua mente, sabia que havia várias coisas
erradas. Havia o facto de estarem a andar há quase dois dias sem verem
absolutamente ninguém, o facto de ela não ter comido nem bebido nada
desde o acidente e, apesar disso, não ter fome nem sede, e finalmente — o
mais assustador de tudo — o facto de não falar com a mãe nem com o pai há
quarenta e oito horas e de eles não fazerem ideia de que ela estava bem. De
alguma forma, estes pensamentos estavam a incomodá-la, mas apenas
vagamente, como leves sacudidelas na cauda de um cavalo de guerra a
galope. Não conseguia concentrar-se neles.
De súbito, Tristan olhou para ela e Dylan estava demasiado absorvida nos
seus pensamentos para conseguir disfarçar e afastar os olhos a tempo.
— O que foi? — perguntou ele.
Dylan mordeu o lábio enquanto tentava decidir qual, do milhão de
perguntas que tinha, devia fazer primeiro. Era muito difícil falar com ele, e
ainda não tinha feito uma única pergunta sobre ela. Não estaria minimamente
curioso? Provavelmente estava arrependido de não se ter posto a caminho
mal saíra do túnel, em vez de ficar à espera de encontrar mais alguém. Dylan
não sabia se isso não teria sido melhor também para ela. Podia ter ficado ao
pé do túnel e, se ninguém aparecesse, acabaria por arranjar coragem para
voltar a entrar e o atravessar até ao outro lado. A esta hora já estaria em casa,
a discutir com Joan sobre a próxima viagem a Aberdeen.
À sua esquerda, ouviu-se subitamente um uivo distante. Era agudo e
queixoso, como um animal em sofrimento. O som pareceu ecoar nas colinas,
o que lhe conferia uma qualidade sinistra. Dylan estremeceu.
— O que foi aquilo? — perguntou a Tristan.
Ele encolheu os ombros, aparentemente despreocupado.
— Um animal qualquer. Introduziram aqui uns lobos há algum tempo. Não
te preocupes — acrescentou com um sorriso, olhando para a expressão
nervosa dela. — Têm muitos veados para comer. Não se vão incomodar
contigo.
Depois olhou para o céu, que estava a escurecer. Sem que Dylan se tivesse
apercebido, era quase crepúsculo. Com certeza que não tinham caminhado
tanto tempo? Cruzou os braços no peito para se aquecer. O vento parecia
subitamente mais forte, soprando-lhe madeixas de cabelo para a cara,
fazendo-as dançar perante os seus olhos como sombras ondulantes. Tentou
afastá-las, mas os seus dedos encontraram apenas ar.
Tristan desencostou-se da rocha e os seus olhos perscrutaram a
aproximação da noite.
— Seja como for, é melhor continuarmos — disse. — Não queremos estar
no cimo de uma colina quando anoitecer.
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Nessa noite ficaram noutra casinha, mais uma casa segura no caminho
através das terras perdidas. A tarde passara rapidamente, enquanto
marchavam a um ritmo que levou Dylan a pensar que Tristan estaria a tentar
recuperar o tempo perdido durante a discussão. Chegaram à casa mesmo
antes de o Sol desaparecer no horizonte. No último quilómetro, Dylan achou
que conseguia ouvir uivos distantes, embora fosse difícil ter a certeza por
causa do vento. Tristan acelerara ainda mais o passo, pegando-lhe na mão
para a ajudar, e confirmando as suspeitas dela de que o perigo não estava
longe.
Assim que entraram na casa, ele relaxou instantaneamente. Os músculos do
maxilar, que estavam contraídos numa expressão preocupada, suavizaram-se
num sorriso lento, e a sua testa alisou-se.
Aquela casa era muito parecida com as outras: mobílias partidas espalhadas
por uma única divisão espaçosa. Havia duas janelas de ambos os lados da
porta, e mais duas na parede das traseiras. Eram compostas por pequenos
painéis de vidro e havia vários partidos em cada janela, deixando entrar o
vento, que assobiava ruidosamente dentro da casa. Tristan apanhou uns
pedaços de qualquer coisa ao lado da cama e começou a tentar tapar os
buracos, enquanto Dylan se dirigiu a uma cadeira e se sentou, exausta do
esforço desse dia.
Se não precisava de dormir, porque se sentia tão cansada? Não percebo,
pensou. Doíam-lhe os músculos, ou pareciam doer. Para tentar distrair-se
desses pensamentos confusos, observou Tristan a trabalhar.
Depois de acabar de vedar as janelas, ele acendeu a lareira. Demorou muito
mais tempo do que na noite anterior, arrumando muito bem os troncos e
partindo galhos mais finos, que dispôs numa pirâmide perfeita. Mesmo
depois de o fogo crepitar alegremente, não saiu de junto da lareira. Agachou-
se e olhou para as chamas como se estivesse hipnotizado. Dylan tinha a
certeza de que ele estava a evitá-la — algo que era praticamente impossível,
uma vez que estavam ambos presos na mesma divisão. Decidiu tentar
recorrer ao humor para o arrancar à sua reflexão.
— Se isto é tudo criado por mim, porque é que as casas são todas tão
horríveis? A minha imaginação não podia ter arranjado sítios melhores para
descansar? Talvez qualquer coisa com um jacuzzi, ou uma televisão?
Tristan virou-se para ela com um leve sorriso forçado. Dylan fez uma
careta, sem mais ideias para o arrancar àquele estado de espírito sombrio.
Viu-o atravessar a sala e sentar-se do outro lado da pequena mesa. Imitou a
posição dela e ficaram ali sentados, cara a cara, separados por meio metro,
com os cotovelos em cima da mesa. Olharam um para o outro durante um
instante. Tristan apercebeu-se do embaraço nos olhos dela e, com algum
esforço, ofereceu-lhe um sorriso genuíno. O gesto encorajou Dylan.
— Ouve — começou —, o que eu disse há bocado...
— Não te preocupes — interrompeu ele abruptamente.
— Mas... — Dylan abriu a boca para continuar, mas tornou a fechá-la sem
dizer nada.
Tristan viu o arrependimento, o sentimento de culpa e — pior do que tudo
— a pena nos olhos dela. Por um lado, dava-lhe uma espécie de prazer
perverso ver que ela se preocupava o bastante com o sofrimento dele para
sentir pena, mas havia também um sentimento irritante de frustração por ela o
estar a obrigar a pensar em coisas que há muito aceitara. Pela primeira vez
em muito tempo, sentia-se desgostoso com a sua sorte. Com aquela prisão
circular interminável a que a sua vida se resumia. Todas aquelas almas
egoístas que tinham mentido, traído, desperdiçado a vida que lhes fora
concedida; uma dádiva pela qual ele ansiava e que nunca poderia ter.
— Como é? — perguntou Dylan subitamente.
— Como é o quê?
Viu-a franzir os lábios e procurar a melhor forma de formular a pergunta.
— Guiar todas essas pessoas, levá-las até ao outro lado, e depois vê-las
desaparecer, ou atravessar, ou o que quer que seja. Deve ser difícil. Aposto
que algumas nem sequer o merecem.
Tristan olhou para ela, estupefacto com a pergunta. Ninguém, nem uma
única alma das milhares delas que conduzira, alguma vez lhe perguntara isso.
E como havia de responder? A verdade era dura, mas não queria mentir-lhe.
— Ao princípio, não pensava muito nisso. Tinha um trabalho a fazer, e
fazia-o. Parecia-me ser a coisa mais importante do mundo, proteger cada
alma, mantê-las em segurança. Demorei muito tempo a começar a ver
algumas dessas almas por aquilo que realmente eram. Quem realmente
tinham sido, como pessoas. Deixei de ter pena delas; deixei de ser amável.
Não o mereciam. — A voz de Tristan escorria amargura. Respirou fundo,
empurrando o ressentimento para baixo e disfarçando-o com a fachada de
indiferença que aperfeiçoara ao longo do tempo. — Elas atravessam e eu
tenho de as ver desaparecer. As coisas são assim.
E eram assim há já muito tempo. Depois aparecera esta alma, e era tão
diferente que estava a afastá-lo do papel que habitualmente representava.
Fora horrível com ela — trocista, condescendente —, mas era algo que não
conseguia evitar. Ela desequilibrava-o, não sabia porquê. Não era nenhum
anjo, Tristan sabia disso — via-o nos milhões de memórias diferentes de
Dylan que redemoinhavam na sua cabeça —, mas havia nela algo de
invulgar... não, de especial. Sentiu a culpa agitar-se-lhe no estômago quando
ela mudou de posição na cadeira, pouco à vontade, com a compaixão e a
tristeza por ele espelhadas no rosto.
— Vamos falar de outra coisa — sugeriu, para lhe poupar os sentimentos.
— Está bem — concordou Dylan rapidamente, contente com a
oportunidade de mudar de assunto. — Fala-me mais sobre ti.
— O que queres saber?
— Hum — disse ela, revendo a lista de perguntas que lhe andavam às
voltas na cabeça a tarde toda. — Fala-me sobre a forma mais estranha que já
usaste.
Ele sorriu assim que ouviu o pedido e Dylan percebeu que fora a pergunta
certa para aligeirar o ambiente.
— O Pai Natal — respondeu ele.
— O Pai Natal? Porquê?
Ele encolheu os ombros.
— Era um menino pequeno. Morreu na noite de Natal, num acidente de
automóvel. Tinha apenas cinco anos e o Pai Natal era a pessoa em quem mais
confiava. Tinha estado sentado ao colo dele num centro comercial, poucos
dias antes, e era uma das suas memórias preferidas. — Uma centelha de
humor brilhou-lhe nos olhos. — Tinha de estar sempre a abanar a barriga e a
gritar «Ho! Ho! Ho!» para o manter contente. Ficou muito desiludido quando
descobriu que o Pai Natal não conseguia cantar «Jingle Bells» em voz
afinada.
Dylan riu-se ao imaginar o rapaz sentado à frente dela vestido de Pai Natal.
Depois apercebeu-se de que ele não estaria apenas vestido de Pai Natal, ele
seria o Pai Natal.
— Sabes o que é mais estranho, para mim? — perguntou Dylan. Ele
abanou a cabeça. — É olhar para ti e pensar que és da minha idade, mas saber
que, na realidade, és um adulto. Não, ainda mais velho do que um adulto.
Mais velho do que todas as pessoas que alguma vez conheci.
Tristan sorriu de forma compreensiva.
— Não me dou muito bem com adultos — continuou ela. — Gostam muito
de me dar ordens. Mais ou menos como tu, na verdade. — Soltou uma
gargalhada.
Ele riu-se também; era um som agradável.
— Bom, se isso ajudar, não me sinto como um adulto. E tu não pareces
uma criança. Pareces apenas tu.
Dylan sorriu.
— Mais alguma pergunta?
— Fala-me... fala-me sobre a tua primeira alma.
Tristan fez um sorriso contrito. Não conseguia recusar-lhe nada.
— Bom, foi há muito tempo — começou. — Era um homem, um jovem, na
verdade. Chamava-se Gregor. Queres ouvir a história?
Dylan assentiu com um aceno veemente.
Fora há muito tempo, mas Tristan ainda recordava todos os pormenores. A
sua primeira memória de existir era estar a andar numa paisagem de um
branco brilhante. Não havia chão, nem paredes, nem céu. O facto de estar a
caminhar era o único indício de que existia sequer alguma superfície. Depois,
do nada, começaram a aparecer detalhes. O chão sob os seus pés era, de
repente, um caminho de terra batida. Ergueram-se sebes de ambos os lados,
altas e selvagens e agitadas pelo som de criaturas vivas. Era de noite, o céu
por cima dele era negro, salpicado de estrelas cintilantes. Tristan percebeu
que reconhecia todas estas coisas, que sabia o nome de tudo. Também sabia
aonde ia, e por que razão ali estava.
— Havia um fogo — disse. — Vi uma grande nuvem de fumo a erguer-se
para o céu, e era para aí que me dirigia. Estava a percorrer o caminho quando,
do nada, dois homens passaram por mim a correr. Passaram tão perto que
senti a deslocação do ar, mas eles não me viram. Quando cheguei ao local do
incêndio, vi que os dois homens estavam a tentar tirar água de um poço, mas
os seus esforços eram em vão. Não conseguiam derrotar um fogo daqueles.
Era um autêntico inferno. Seria impossível alguém sobreviver a um desastre
daqueles. E era por isso que eu ali estava, claro.
Sorriu ligeiramente a Dylan, que o escutava fascinada.
— Lembro-me de me sentir... não nervoso, mas inseguro. Deveria entrar
para o ir buscar, ou ficar ali à espera? Ele saberia quem eu era, ou teria de o
convencer a acompanhar-me? O que havia de fazer, se ele ficasse
desorientado ou furioso?
»Por fim, acabou por ser fácil. Ele atravessou a parede da casa em chamas
e parou à minha frente, completamente incólume, sem sinais de queimaduras.
»Devíamos começar a viagem, mas o Gregor não parecia querer partir.
Estava à espera de alguma coisa. Não... de alguém.
Dylan pestanejou, confusa.
— Ele conseguia vê-los?
Tristan assentiu.
— Eu não — murmurou ela, baixando os olhos, pensativa. — Não vi
ninguém. Estava... estava sozinha. — A sua voz morreu na última palavra.
— As almas ainda conseguem ver a vida que estão a deixar durante um
bocadinho. Depende do momento da morte — explicou ele. — Tu estavas
inconsciente quando morreste e, quando a tua alma acordou, era tarde
demais. As outras pessoas já tinham ficado para trás.
Dylan olhou para ele com tristeza. Depois engoliu em seco.
— O que aconteceu ao Gregor?
— Começaram a chegar mais pessoas e, embora olhasse para elas com
pesar, o Gregor não saiu de junto de mim. Depois uma mulher apareceu a
correr pelo caminho, com as saias arregaçadas para conseguir correr, o rosto
contorcido numa expressão de horror. Gritou o nome dele. Foi um som
torturado, lancinante. Passou pela multidão de espectadores e fez menção de
correr para dentro da casa, mas outro homem segurou-a. Depois de se debater
durante alguns segundos, ela abandonou-se nos braços dele, a chorar
histericamente.
— Quem era? — sussurrou Dylan, cativada pela história.
Tristan encolheu os ombros.
— A mulher do Gregor, presumo, ou uma amante.
— O que aconteceu a seguir?
— A parte mais difícil. Esperei, enquanto o Gregor a via gritar e chorar
com uma expressão de agonia no rosto. Estendeu um braço para ela, mas
apercebeu-se de que não a conseguia confortar e ficou ao meu lado. Alguns
segundos depois, virou-se para mim e disse: «Estou morto, não estou?»
Acenei afirmativamente, com medo de não conseguir falar. Ele perguntou se
tinha de ir comigo, olhando de novo para a mulher em pranto, e eu disse que
sim. Depois perguntou-me para onde íamos e eu entrei em pânico —
confessou Tristan. — Não sabia o que dizer.
— O que lhe respondeste?
— Disse-lhe: «Sou apenas o barqueiro. Não sou eu que decido.»
Felizmente, ele aceitou essa resposta e eu virei-me e comecei a afastar-me. O
Gregor lançou um último olhar à mulher e seguiu-me.
— Pobrezinha — murmurou Dylan, pensando na mulher que ficara para
trás, sozinha. — Esse homem, o Gregor, sabia que estava morto. Percebeu
logo. — Parecia incrédula.
— Bem — respondeu Tristan —, ele tinha acabado de atravessar a parede
de uma casa em chamas. Além disso, naquele tempo, as pessoas eram muito
mais religiosas. Não questionavam a Igreja e acreditavam naquilo que ela
lhes ensinava. Viam-me como um mensageiro dos Céus... um anjo, suponho
que se poderia dizer. Não ousavam questionar-me. Hoje em dia, as pessoas
dão muito mais trabalho. Parecem estar todas convencidas de que têm
direitos. — Revirou os olhos.
— Hum... — Dylan ergueu os olhos, sem saber bem como fazer a pergunta
seguinte.
— O que é? — Tristan percebeu a hesitação dela.
— Quem eras tu para ele?
— Apenas um homem. Lembro-me de ser alto e musculado, com barba. —
Fez uma pausa ao ver a expressão dela. Tinha os lábios apertados para conter
o riso. — Naquela altura, a maior parte dos homens tinha barbas grandes e
fartas. E também bigode. Gostei bastante. Era confortável e quente.
Desta vez ela não conseguiu conter o riso, mas este extinguiu-se
rapidamente.
— E quem foi a tua pior alma? — perguntou, baixinho.
— Tu. — Ele sorriu, mas o sorriso não lhe chegou aos olhos.
ONZE
Dylan não sabia quanto tempo tinha ficado deitada no chão. Não conseguia
tirar os olhos da porta. A qualquer momento Tristan ia entrar por ela,
descomposto pelo vento, ofegante, mas incólume. Ia sorrir e assumir o
controlo. Tinha de ser. Sentia o coração a partir-se no peito e os músculos
como que transformados em pedra. Completamente esgotado do esforço, o
seu corpo começou a tremer.
Após o que talvez não tenha sido mais do que alguns minutos, mas que lhe
pareceu uma eternidade, o frio do chão trespassou-a até aos ossos. Os
membros trémulos começaram a ficar presos e percebeu que precisava de os
mexer.
Gemeu e sentou-se, sem se atrever a afastar os olhos da porta. Tristan
chegaria a qualquer momento, desde que ela continuasse a olhar. Algures, no
fundo da sua mente, uma vozinha disse-lhe que isto era ridículo, mas
agarrou-se a essa convicção porque era a única coisa que estava a impedir
que o pânico lhe subisse pela garganta e brotasse num grito.
Dylan conseguiu apoiar as pernas trémulas e, com a ajuda da ombreira da
porta, pôs-se em pé. Agarrada à madeira podre, cambaleante, ficou de pé no
limiar. Ouvia gritos e sussurros lá fora, apesar de a casa segura amortecer o
ruído. Com os pés firmemente plantados no interior, inclinou a cabeça para
fora e perscrutou a noite em busca de um vislumbre de olhos azuis ou cabelo
loiro e revolto. Os seus olhos não encontraram nada, mas os ouvidos foram
acometidos por uma rajada de guinchos furiosos quando os demónios
tentaram atacá-la e se viram frustrados pela barreira da casa segura. Com uma
exclamação chocada, recuou a cabeça e o ruído diminuiu de imediato.
Dylan recuou lentamente, sem tirar os olhos da porta. Os pés embateram
em algo no chão e quase tropeçou. Afastou os olhos da porta por uma fração
de segundo, mas a escuridão era quase total e não conseguia ver o que pisara.
Mais uma vaga de terror. Não aguentava passar uma noite ali, sozinha, às
escuras. Enlouqueceria.
Fogo. Havia sempre uma lareira nestas casas. Mas teria de virar costas à
porta, o que significava enfrentar o facto de que Tristan podia estar perdido.
Não, disse a si própria. Ele voltaria. Só tinha de acender a lareira, para estar
pronta quando ele chegasse. Aos apalpões, encontrou do lado oposto uma
lareira de pedra, como esperava. De joelhos, procurou com os dedos. Sentiu
cinzas e pedaços de madeira em cima da grelha. À esquerda, encontrou
alguns troncos secos, mas não havia fósforos, nem um interruptor eletrónico
como na lareira de sua casa.
— Por favor — sussurrou, consciente de que estava a suplicar a um objeto
inanimado para funcionar, mas sem se conseguir conter. — Por favor, preciso
mesmo disto. — Com a última palavra, a sua compostura desmoronou-se.
Com o peito contraído por soluços convulsivos, fechou os olhos e as
primeiras lágrimas deslizaram-lhe pelas faces.
Um crepitar fê-la abrir novamente os olhos, momentaneamente assustada, e
susteve a respiração, chocada com o que via. Havia chamas na lareira. Eram
pequenas e vacilantes sob a corrente de ar da porta aberta, mas recusavam-se
a extinguir-se. Dylan estendeu a mão e pegou em dois troncos. Colocou-os
delicadamente sobre a grade, sem respirar, com medo de se atrapalhar e
apagar as pequenas chamas.
O fogo aguentou-se, mas continuava a estremecer por causa do vento.
Dylan virou-se e olhou para a porta. Fechá-la parecia ser fechar a porta à
esperança — a Tristan. Mas não podia perder o lume. Sentindo-se como se
estivesse a andar em câmara lenta, levantou-se e dirigiu-se à porta. Aí, parou
por um instante enquanto se debatia com o impulso de sair a correr para a
noite para o procurar. Porém, isso significaria entregar-se aos demónios, e
Tristan não havia de querer que ela o fizesse. Sem conseguir olhar, fechou os
olhos e depois a porta.
Quando ouviu o estalido do trinco, algo se partiu dentro de si. Cega pelas
lágrimas, cambaleou pela sala até encontrar o que lhe pareceu ser uma cama.
Atirou-se para cima dela e cedeu às emoções. O pânico apoderou-se dela.
Combateu o impulso desesperado de desatar a correr e a gritar e a partir
coisas.
— Oh, meu Deus, meu Deus, meu Deus — repetiu uma e outra vez, entre
soluços. O que havia de fazer agora? Sem Tristan, não sabia para onde ir.
Acabaria por se perder e vaguear até ser de noite, altura em que seria presa
fácil para os demónios. Ou teria de ficar ali e esperar? Mas quem a viria
buscar? Se não precisava de comer nem de beber, ficaria ali à espera
eternamente, como a princesa amaldiçoada de um conto de fadas ridículo, na
esperança de que um príncipe a viesse salvar?
A solidão e o medo trouxeram ao de cima sentimentos que não tivera
oportunidade de enfrentar desde o acidente. A imagem da mãe passou-lhe
pela cabeça. Já teriam feito o funeral dela? Imaginou a mãe a receber o
telefonema no hospital, viu a expressão desesperada no seu rosto, as
sobrancelhas perfeitamente arranjadas a franzirem-se, a mão a cobrir a boca
como se pudesse impedir a verdade de entrar. Dylan pensou em todas as
discussões que haviam tido, em todas as crueldades que lhe dissera sem
realmente as sentir, e em todas as coisas que lhe queria dizer e nunca dissera.
A sua última conversa fora uma discussão por ela querer ir ver o pai. Ainda
se lembrava de dizer à mãe que o ia visitar, lembrava-se da expressão no
rosto dela. Joan fitara a filha como se esta a tivesse traído.
Este pensamento encadeou-se noutro. O pai. Como teria ele reagido? Quem
lhe teria contado? Teria chorado a morte de uma filha que nunca chegara
realmente a conhecer?
De súbito, a situação em que se encontrava, a sua morte, atingiu-a com toda
a força. Não era justo. O seu futuro, a família, os amigos... tudo perdido para
sempre. E agora o seu barqueiro também? Não, ele não era apenas um
barqueiro. Era Tristan. Levado de junto dela, como tudo o resto. Dylan
pensava já não ter mais lágrimas para chorar, mas, quando o rosto dele lhe
veio à cabeça, brotaram ainda mais, quentes e salgadas nas suas faces.
Foi a noite mais longa que Dylan alguma vez passara. Sempre que fechava
os olhos, imagens perturbadoras enchiam-lhe a mente: Joan, Tristan, uma
figura paterna sem rosto, aterrorizadora, fragmentos do pesadelo no comboio.
Por fim, lentamente, a noite passou. O fogo na lareira diminuiu de
intensidade e a escuridão lá fora dissolveu-se numa luz suave filtrada pelas
janelas, mas Dylan nem reparou. Continuou a olhar para o lume até as cores
quentes do calor desaparecerem em cinzas cinzentas e os pedaços de madeira
carbonizada estarem apenas a fumegar sobre a grelha. O seu corpo parecia
ter-se transformado em pedra. Estava em estado de choque e refugiou-se no
torpor.
Só a meio da manhã lhe ocorreu que a luz significava que podia sair
daquele refúgio, que era, de alguma forma, também uma prisão. Podia
procurar Tristan. E se ele estivesse caído algures no vale, ferido e a esvair-se
em sangue? E se estivesse à espera de que ela o fosse procurar?
Olhou para a porta, ainda fechada contra os terrores das terras perdidas.
Tristan estava lá fora, mas os espetros também. Seriam as sombras do vale
suficientemente profundas e escuras para a poderem atacar? Ou a luz da
manhã seria forte o bastante para a manter em segurança?
Quando pensou em sair para as terras perdidas, sozinha... todo o seu ser se
encolheu perante a ideia.
Mas Tristan estava lá fora.
— Levanta-te, Dylan — disse a si própria. — Não sejas patética.
Içou da cama o corpo cansado, queixoso por causa do exercício da véspera,
e dirigiu-se à porta. Parou com a mão na maçaneta, respirou fundo duas vezes
e tentou segurar, rodar e puxar a porta. Os seus dedos, contudo, recusavam-se
a obedecer.
— Deixa-te de coisas — murmurou.
Tristan precisava dela.
Agarrando-se a esse pensamento, abriu a porta.
O ar ficou-lhe preso nos pulmões quando parou de respirar. O seu coração
parou por uma fração de segundo e, quando recomeçou a bater, foi ao dobro
da velocidade. Os seus olhos esforçaram-se por compreender o que viam.
As terras perdidas que, nos últimos dias, lhe tinham parecido quase
acolhedoras, tinham desaparecido.
Não havia colinas, nem as ervas altas salpicadas de gotas de orvalho que
lhe molhavam as calças de ganga e que tanto dificultavam a subida das
encostas. O céu cor de chumbo desaparecera e o trilho pavimentado que a
conduzira à segurança na noite anterior também.
Agora, o mundo era feito de tons ofuscantes de vermelho. As duas colinas
ainda lá estavam, mas cobertas de terra encarnada. Não havia vegetação; as
encostas íngremes eram perfuradas por rochas afiadas e irregulares, que
brotavam do solo em formações bizarras. O caminho de gravilha fora
substituído por uma espécie de estrada negra e brilhante que parecia ser feita
de alcatrão a ferver. Borbulhava constantemente, como se estivesse vivo. O
céu era cor de sangue, com nuvens negras que corriam para o horizonte. O
Sol era uma bola incandescente, como um bico de fogão em brasa.
Mas isso não era o mais assustador. A deslizar pela superfície, a subir as
colinas, a percorrer o caminho, havia centenas e centenas do que pareciam
ser... bem, Dylan nem sequer tinha palavras para os descrever. Eram
humanos e ao mesmo tempo pareciam informes, apenas um leve contorno a
identificar idade e género. Dylan olhou com mais atenção para os que
estavam mais próximos. Não pareciam vê-la, nem sequer estar conscientes
uns dos outros. Estavam concentrados apenas numa coisa — seguir a esfera
reluzente que irradiava em frente de cada um deles.
Cada figura era acompanhada por uma legião de espetros negros, que
pairavam sobre as suas cabeças e esvoaçavam à volta deles. Dylan susteve a
respiração, em pânico, mas embora os espetros enchessem o ar em volta das
estranhas figuras, mantinham a distância. Era por causa das esferas, percebeu
ela subitamente. Os espetros não queriam aproximar-se daquelas bolas de luz
pulsante, embora o seu brilho diminuísse nas zonas de maior sombra, reparou
Dylan, e nesses sítios os demónios se atrevessem a voar mais perto. Enquanto
observava esta cena, as engrenagens do seu cérebro começaram a rodar.
Ela era uma daquelas coisas. O que via eram as terras perdidas reais. E
Tristan era a sua esfera. Sem a esfera, poderia sequer sair daquela casa em
segurança? Se tentasse, os demónios conseguiriam atacá-la, apesar de ser dia?
A única forma de ter a certeza era tentar. Teria coragem de o fazer? Baloiçou-
se ligeiramente no limiar da porta enquanto pensava nisso. Não. Inclinou o
corpo para a frente e ouviu os silvos e uivos dos espetros. Era suficiente.
Horrorizada, recuou e fechou a porta com força. Encostou-se a ela, como se
assim conseguisse impedir os espetros de entrar. A sua força durou apenas
alguns segundos, e por fim escorregou até ao chão, pôs os braços à volta das
pernas e escondeu o rosto nos joelhos.
— Tristan, preciso de ti — murmurou. — Preciso de ti! — A voz falhou-
lhe e desfez-se em lágrimas. — Onde estás?
Estava encurralada. Não só não sabia para onde tinha de ir como, se
pusesse um pé fora da casa, seria apanhada pelos demónios. O único lugar
seguro era aqui, mas quanto tempo podia esperar por Tristan?
Os minutos passaram. Após algum tempo, Dylan recompôs-se um pouco.
Levantou-se e puxou uma cadeira para junto da janela. Sentou-se, pôs os
braços cruzados no parapeito e apoiou a cabeça neles. A paisagem era a
mesma que vira da porta. Um deserto carmesim salpicado de almas que
seguiam cegamente os seus guias, por sua vez seguidas pelos demónios. Era
uma visão fascinante, de certa forma. Ver os demónios dava-lhe voltas ao
estômago, quando se lembrava da sensação das suas garras.
A perspetiva de ter de os enfrentar outra vez fazia-a transpirar. Sabia que
não conseguiria sair da casa hoje. Era possível que Tristan estivesse lá fora,
tentando regressar para junto dela. Tinha de se agarrar a essa esperança.
Podia esperar pelo menos mais um dia.
Após um ocaso brilhante de laranjas, vermelhos e roxos, o céu ficou negro.
Com a escuridão surgiram os gritos e silvos em redor da casa. Dylan acendeu
a lareira, desta vez com fósforos que encontrara na prateleira. O processo foi
muito mais demorado do que na noite anterior, mas por fim conseguiu fazer
com que a chama crescesse e devorasse os galhos. Agora os troncos maiores
tinham ateado e o lume crepitava, fornecendo calor e uma luz reconfortante.
Abandonara o seu posto junto da janela. A escuridão assustava-a e não sabia
quem estaria lá fora, a observá-la. Assim, deitou-se na cama e olhou para as
chamas até os olhos se fecharem e mergulhar na semi-inconsciência.
::::
Quando Dylan acordou, horas mais tarde, ainda era escuro lá fora. Olhou
para o teto e, por breves instantes, foi como se pudesse estar em qualquer
lado. No seu quarto apinhado em casa, rodeada de posters e ursinhos de
peluche, ou num quarto desconhecido em Aberdeen, a preparar-se para mais
um dia de conversa com o pai. Mas não estava em nenhum desses sítios.
Estava numa casa segura. E estava morta. Sentiu um aperto no peito. Não
conseguia respirar.
A casa estava quente. O lume que construíra tão cuidadosamente ainda
ardia na lareira e fazia as sombras dançarem nas paredes, mas não fora isso
que a despertara. Virou-se de lado para olhar para as chamas e viu o
verdadeiro motivo pelo qual acordara. Havia uma silhueta recortada contra a
luz da lareira, imóvel. O medo invadiu-a e ficou paralisada, mas, quando os
seus olhos se ajustaram, o contorno começou a ganhar forma e era uma forma
familiar. Uma forma que Dylan temera não voltar a ver.
QUINZE
::::
Felizmente, chegaram à casa segura seguinte bem antes de o Sol se pôr. Era
outra casinha de pedra e Dylan começou a questionar se o aspeto das casas
seguras faria parte da sua projeção. Seriam a sua ideia de santuário, de lar?
Tentou pensar onde podia ter feito essa ligação. O apartamento onde vivia —
onde vivera — com Joan ficava num prédio de pedra vermelha rodeado por
uma série de edifícios idênticos. A avó vivera no campo antes de morrer, mas
numa vivenda moderna, com jardins muito bem arranjados e enfeitados com
leões e gnomos de pedra ridículos. Não se lembrava de mais lado nenhum
que lhe fizesse lembrar um lar.
Exceto... bom, o pai mencionara a casa dele ao telefone. Uma pequena
casinha de pedra, dissera ele. Antiquada, com espaço apenas para ele e Anna,
a cadela. Seria esta a imagem que a sua mente estava a conjurar desse local?
Talvez o subconsciente estivesse a tentar dar-lhe um pouco daquilo que
esperara ter, mas nunca conseguira alcançar. Por um momento, imaginou a
porta a abrir-se e um homem a sair. Era atraente, forte e com uma expressão
bondosa. Sorriu perante esse pensamento, mas depois apercebeu-se de que
não passava disso mesmo. Nunca vira sequer uma fotografia do pai, não se
lembrava de como ele era antes de as deixar. Abanou a cabeça para afastar
aqueles pensamentos difíceis e seguiu Tristan até à porta.
Embora ligeiramente degradado, havia algo de reconfortante naquele
espaço — era quase como chegar a casa depois de uma viagem longa e dura.
A porta era de carvalho maciço, gasta pelas intempéries mas forte. As janelas
estavam cobertas do tipo de sujidade que se acumula com a exposição
prolongada ao tempo feroz da Escócia, mas eram de madeira e pareciam em
bom estado. Não havia jardim, mas um pequeno caminho de pedra levava à
porta. Entre as fendas, espreitavam ervas daninhas e relva, mas ainda não
tinham reclamado completamente o terreno.
Por dentro, a casa não parecia tão abandonada e desorganizada como as
anteriores, e Dylan pensou se isso se deveria ao facto de ela estar a ficar mais
à vontade nas terras perdidas. Havia uma cama com uma mesinha ao lado, em
cima desta uma vela grande, e ainda uma velha cómoda. No meio da divisão
havia uma mesa com cadeiras, em frente da lareira, e do outro lado uma
pequena cozinha com um lava-loiça lascado e sujo. Dylan aproximou-se,
olhou para as torneiras antiquadas e perguntou-se se funcionariam. Ainda
tinha as calças de ganga cobertas de lama e o casaco cinzento de fecho de
correr que escolhera em casa, antes de toda esta loucura começar, estava
coberto de nódoas, manchas de lama e pequenos rasgões. Nem sequer queria
pensar em como estaria a sua cara.
Embora as torneiras estivessem enferrujadas e o lava-loiça sujo de lama,
Dylan estava otimista quando rodou a torneira da água fria. Ao princípio não
aconteceu nada, mas depois ouviu um rangido e um gorgolejar. Recuou,
desconfiada, precisamente quando a torneira deitou um jorro de água
castanha. Após alguns segundos, o fluxo estabilizou num fio de água que
parecia bastante límpida.
— Oh, sim! — exclamou Dylan, ansiosa por poder lavar-se pela primeira
vez em vários dias. Experimentou a torneira de água quente, que deitou
também água turva durante alguns segundos antes de se tornar limpa, mas
não aquecia. Molhou a cara, estremecendo com o frio. Divertida, encheu as
mãos de água e virou-se para a atirar a Tristan. Depois estacou abruptamente,
com a água a escorrer entre os dedos para o chão de pedra. A casa estava
vazia.
— Tristan! — gritou, em pânico. A porta estava aberta e, embora ainda
houvesse luz, a noite aproximava-se rapidamente. Atrever-se-ia a sair? Não
podia ficar outra vez sozinha. Esse pensamento foi o que a decidiu. Começou
a andar precisamente quando Tristan apareceu à porta.
— O que foi? — perguntou ele com ar inocente.
— Onde diabo te enfiaste? — exigiu Dylan saber, com o alívio a
transformar-se rapidamente em raiva.
— Estava aqui fora. — Olhou para o rosto aflito dela. — Desculpa. Não
queria assustar-te.
— Eu... fiquei preocupada, só isso — murmurou, sentindo-se agora
estúpida. Virou-se e apontou para o lava-loiça atrás de si. — As torneiras
aqui funcionam.
Tristan fez um meio sorriso e olhou para a porta.
— Ainda temos vinte minutos de luz. Eu fico aqui fora para te dar um
pouco de privacidade. Não me afasto da porta — prometeu. — Podes ir
falando comigo. — Sorriu de forma tranquilizadora e voltou a sair.
Dylan aproximou-se da porta e espreitou lá para fora. Ele estava sentado
numa pedra. Ergueu os olhos e viu-a a olhar para ele.
— Podes fechar a porta, se quiseres. Mas prometo não espreitar, se
preferires deixá-la aberta. — Piscou o olho e Dylan ficou constrangida.
Sem sair de onde estava, imaginou lavar-se — e estava desesperada por se
lavar como devia ser — com a porta aberta e ele ali tão perto. Constrangedor.
Mas depois pensou em fechar a porta e ficar sozinha lá dentro. O terror de ser
abandonada ainda estava demasiado fresco. O mero pensamento fazia-lhe o
coração palpitar de medo. Encostou a porta, apenas para ocultar o rosto
sorridente de Tristan, mas sem a fechar completamente. Pelo sim, pelo não.
Sem afastar os olhos da porta, despiu-se rapidamente e, com uma lasca de
sabão que encontrou no lava-loiça, começou a lavar-se o mais depressa
possível. A água estava gelada, e pensou em chamar Tristan para acender a
lareira, mas sabia que quando ele acabasse já seria de noite e ambos teriam de
ficar dentro de casa. Cerrou os dentes para os impedir de bater e tentou ser
minuciosa e rápida. Depois não havia outra opção senão tornar a vestir as
roupas sujas. Dylan franziu o nariz enquanto enfiava as calças cobertas de
lama. Estava a vestir a t-shirt quando Tristan bateu à porta. Embora a t-shirt
fosse larga e nada transparente, Dylan pegou no casaco cinzento e vestiu-o à
pressa, puxando o fecho até acima.
— Já está? — Ele enfiou a cabeça na porta. — É só porque está a
escurecer.
— Já estou despachada — murmurou ela.
Tristan entrou e fechou firmemente a porta.
— Vou acender a lareira.
Dylan assentiu, agradecida. Ainda estava a tremer por causa da água
gelada. Mais uma vez, ele demorou pouquíssimo tempo até as chamas
rugirem sobre a grelha. Levantou-se e observou-a.
— Como te sentes? Melhor?
Ela acenou afirmativamente.
— Só gostava de ter uma muda de roupa limpa — suspirou.
Tristan sorriu e aproximou-se da cómoda.
— Há aqui algumas coisas. Não sei se serão do tamanho ideal, mas
podíamos tentar lavar as tuas roupas, se quiseres. Toma. — Atirou-lhe uma t-
shirt e umas calças de fato de treino. Eram um pouco grandes, mas a
perspetiva de lavar as suas roupas era muito atraente.
— Não há roupa interior, lamento — acrescentou Tristan.
Dylan refletiu um pouco e decidiu que passar sem roupa interior por uma
noite era um pequeno preço a pagar para poder vestir roupa limpa no dia
seguinte. Contudo, tinha de mudar de roupa e estava demasiado escuro para
pedir a Tristan que saísse. Saltitou de um pé para o outro, apertando as roupas
contra o peito. Tristan apercebeu-se do desconforto dela.
— Eu vou para ali — disse, atravessando a divisão até estar junto do lava-
loiça. — Podes mudar de roupa ao pé da cama. — Virou-se para a pequena
janela da cozinha. Dylan correu para a cama e, depois de olhar rapidamente
para Tristan, despiu-se o mais depressa que conseguiu.
Tristan não tirou os olhos da janela, mas a escuridão lá fora e a luz da
lareira transformavam o vidro num espelho. Viu Dylan despir primeiro o
casaco, depois tirar a t-shirt por cima da cabeça. A sua pele era lisa e pálida, e
os ombros fortes estreitavam para uma cintura delicada. Quando ela despiu as
calças de ganga, Tristan fechou os olhos, tentando conservar algum vestígio
de cavalheirismo. Contou mentalmente até trinta — devagar, fazendo
coincidir cada número com uma inspiração — e quando voltou a abrir os
olhos, ela estava vestida com as roupas demasiado grandes, a olhar para as
costas dele. Virou-se e sorriu.
— Ficam-te bem — comentou.
Ela corou e puxou a t-shirt. Sentia-se embaraçada por não ter soutien e
cruzou os braços sobre o peito.
— Queres ajuda para lavar a roupa? — ofereceu ele.
Dylan arregalou os olhos, aterrada com o pensamento de ele ver a sua
roupa interior puída. Oh, porque é que não morrera num conjunto
maravilhoso da Victoria Secret?
— Não é preciso, obrigada. — Pegou nas roupas sujas que deixara em cima
da cama e apertou-as contra o corpo enquanto se dirigia ao lava-loiça,
tentando esconder o soutien e as cuecas no centro da trouxa. Atirou tudo para
cima do balcão e passou cinco minutos a esfregar o lava-loiça com um velho
esfregão para tentar limpar a lama, antes de desenrolar a corrente enferrujada
e tapar o ralo. Abriu ambas as torneiras no máximo — embora a água da
torneira de água quente continuasse gelada —, mas o fluxo era fraco. Ia
demorar imenso tempo a encher o lava-loiça.
Enquanto esperava, o calor da lareira atraiu-a para o meio da sala. Tristan
já estava sentado numa das cadeiras, confortavelmente recostado, com os pés
em cima de um banco. Dylan sentou-se na outra e puxou os joelhos até ao
peito. Pôs os braços à volta das pernas e olhou para Tristan. Estava na altura
de ouvir o resto da história.
— Então — disse, baixinho.
Ele olhou para ela.
— Então?
— Conta-me o resto, Tristan.
Tristan sentiu um arrepio pela forma como ela disse o seu nome.
— O que aconteceu quando te puxaram para baixo?
Ele olhou para as chamas, mas Dylan sentiu que não estava a vê-las; estava
novamente lá fora, com os demónios.
— Estava escuro. — Falou em voz baixa, em tom hipnótico, e Dylan
conseguiu imediatamente visualizar tudo o que ele descrevia. — Puxaram-me
através do solo e não conseguia respirar. A terra encheu-me a boca e o nariz.
Se não soubesse que era impossível, julgaria estar a morrer. Pareceu durar
para sempre, a descer, a descer, cada vez mais fundo. Por fim, a força dos
demónios puxou-me através de algo e comecei a cair. Eles estavam
novamente a arranhar-me, a cacarejar um riso deliciado e a esvoaçar rente a
mim, fazendo-me dar cambalhotas e piruetas no ar. Depois bati em qualquer
coisa, uma coisa dura. Senti-me como se tivesse partido todos os ossos do
corpo. Não parti, claro, mas a dor... nunca senti nada assim. Os demónios
envolveram-me e não conseguia sequer defender-me. — Tristan interrompeu-
se e olhou para a cozinha. — O lava-loiça está quase a transbordar.
Precisava de fazer uma pausa, de organizar os pensamentos. Aquilo
desconcertava-o. Tristan nunca tinha sido apanhado antes, nunca fora
dominado pelos demónios. Dissera a Dylan que a prioridade era proteger a
alma, e era verdade, mas apenas até um certo ponto. A autopreservação
levava sempre a melhor e, assim, às vezes perdiam-se almas. Mas não esta
alma. Sacrificar-se-ia a si próprio para a manter em segurança; estas dores
eram um pequeno preço a pagar.
— Oh! — Dylan estava tão fascinada pelas palavras dele e pela expressão
dos seus olhos que se esquecera da água a correr. Saltou da cadeira e, com
alguma dificuldade, fechou as torneiras enferrujadas. Mergulhou o sabão no
lava-loiça e esfregou-o vigorosamente entre as mãos, para tentar fazer alguma
espuma. Depois de estar satisfeita, mergulhou as roupas na água e deixou-as
de molho, voltando para a cadeira em frente de Tristan. Fitou-o com ar
expectante.
Ele sorriu.
— Como conseguiste escapar? — perguntou ela.
— Foste tu — respondeu ele.
— O quê? — Dylan fitou-o, estupefacta.
— Tu precisavas de mim. Isso trouxe-me de volta. Na verdade, não sabia
que era possível... nunca tinha acontecido... mas tu chamaste-me. E eu ouvi.
Ouvi e, quando dei por mim, estava novamente à entrada do vale. Salvaste-
me, Dylan. — Olhou para ela com carinho e estupefação.
Dylan abriu a boca, mas o choque roubou-lhe as palavras. Teve uma súbita
memória de estar encolhida no chão, encostada à porta, a chorar por Tristan.
Teria sido isso?
— Porque demoraste tanto tempo? — murmurou. — Esperei por ti o dia
inteiro.
— Desculpa — murmurou ele baixinho. — Quando dei por mim, estava do
lado oposto do vale. Eu... — agitou-se, pouco à vontade. — Custava-me um
bocadinho a andar. Demorei o dia todo a chegar junto de ti.
— Fiquei tão contente quando te vi. Estar sozinha foi aterrorizador. Mas,
mais do que isso... — Dylan corou e olhou para as chamas. — Estava com
medo de que estivessem a fazer-te mal, onde quer que estivesses. E estavam.
— Esticou a mão para lhe tocar no rosto ferido, mas ele desviou-se.
— Temos de tirar as tuas roupas da água, caso contrário não estarão secas a
tempo — disse.
Dylan baixou rapidamente a mão para o colo. Olhou para os joelhos, com
as faces em brasa e o estômago às voltas. Tristan viu o embaraço e a dor da
rejeição no rosto dela e sentiu uma pontada de remorso. Abriu a boca para
dizer qualquer coisa, mas Dylan já estava junto ao lava-loiça, a esfregar
vigorosamente as roupas para esconder a humilhação.
Grata por ter uma tarefa que a obrigava a não olhar para ele, Dylan
espremeu meticulosamente cada gota de água da roupa.
— Eu ajudo-te a pendurá-las. — Tristan aproximara-se por trás dela e a sua
voz junto ao ouvido fê-la dar um salto e deixar cair o soutien no chão de
pedra. Ele baixou-se para o apanhar, mas ela foi mais rápida.
— Obrigada, mas não é preciso — murmurou, passando por ele.
Não havia corda ou suporte para as roupas, por isso Dylan virou as cadeiras
e pendurou as roupas nas costas e braços das mesmas para secarem junto à
lareira. Tentou encontrar um sítio discreto para pendurar as cuecas, mas
acabou por desistir e colocou-as num sítio onde tinha a certeza que secariam.
Com as cadeiras ocupadas, não tinham onde se sentar a não ser a cama.
Tristan já lá estava, recostado numa pose indolente e a olhar para ela com
uma expressão estranha no rosto.
Na verdade, estava a lutar com a sua consciência. Dylan era apenas uma
criança — em comparação com ele, pouco mais do que um bebé, na
realidade. Os sentimentos que tinha por ela eram inapropriados, errados. Por
outro lado, seria ele assim tão mais velho do que ela, quando vivia num
mundo onde nunca realmente vivera, nunca crescera? E o que é a idade,
quando se pensa e sente para a eternidade? Mesmo assim, como seu protetor,
estaria a aproveitar-se da vulnerabilidade dela se manifestasse os seus
sentimentos, independentemente da questão da idade.
Ela também sentia algo por ele — parecia-lhe vê-lo nos seus olhos. Mas
podia estar enganado. Podia ser apenas o medo de ficar sozinha. A confiança
que ela depositava nele podia derivar apenas da necessidade — que mais
podia ela fazer? Talvez a sua necessidade de estar perto dele, de lhe tocar,
fosse apenas o anseio por conforto que uma criança sente quando tem medo.
Mas ele não tinha a certeza.
Havia ainda uma última consideração a ter em conta, e era definitiva. Ele
não podia segui-la para onde ela ia. Teria de a deixar na fronteira ou, mais
precisamente, ela teria de o deixar. Se Dylan sentia realmente alguma coisa
por ele, dar-lhe agora o que em breve teria de lhe tirar seria cruel. Não a faria
passar por isso. Não podia mostrar o que sentia. Olhou para ela, viu aqueles
olhos verdes, escuros como a floresta, a fitá-lo também, e sentiu um nó na
garganta. Era o seu guia e protetor. Nada mais. Ainda assim, podia confortá-
la. Pelo menos podia fazer isso. Sorriu e estendeu os braços.
Dylan aproximou-se timidamente e subiu para a cama, enroscando-se ao
lado dele. Distraidamente, Tristan acariciou-lhe o braço, causando-lhe um
arrepio interior. Apoiou a cabeça no ombro dele e sorriu. Como era possível
que aqui, no meio de todo este caos e medo, depois de ter perdido
absolutamente tudo, ela se sentisse subitamente... completa?
DEZASSETE
::::
— Pronta para a fase final da viagem? — perguntou Tristan, com uma nota
de humor forçado na voz. Estavam do lado de fora da casa, a preparar-se para
seguir caminho.
— Sim — respondeu Dylan com um sorriso tenso. — Para onde?
— Por aqui. — Tristan começou a contornar a casa, afastando-se do lago.
Dylan olhou uma última vez para a água. Parecia novamente calma e
tranquila, a superfície a ondular suavemente, cintilando onde o sol acariciava
a crista das pequenas ondas. Lembrou-se dos horrores que se escondiam no
lago e estremeceu, correndo atrás de Tristan como se pudesse deixar as más
recordações para trás. Ele estava parado do outro lado da casa, à espera dela.
Avaliou a distância com uma mão encostada à testa a proteger os olhos do
sol.
— Estás a ver aquilo?
Dylan olhou na direção que ele indicava. A paisagem era árida e lisa. Um
pequeno riacho corria em direção ao horizonte. Do lado esquerdo, um
caminho seguia paralelo ao curso de água. Além de alguns arbustos, não
havia mais nada para ver.
Dylan ergueu uma sobrancelha, confusa.
— Ah... não.
O seu tom de voz fê-lo virar-se para ela com um sorriso. Revirou os olhos.
— Vê melhor.
— Tristan, não vejo nada. Estás a falar de quê?
Ele suspirou, mas Dylan percebeu que gostava de se sentir superior.
Colocou-se atrás dela e inclinou-se sobre o seu ombro. A respiração dele
aqueceu-lhe o pescoço, deixando-lhe a pele a arder.
— Olha para o horizonte. — Apontou novamente. — Não vês um brilho
tremeluzente?
Dylan semicerrou os olhos. O horizonte era muito distante. Conseguia
distinguir um leve clarão onde a terra se encontrava com o céu azul, mas
podia facilmente ser uma ilusão de ótica causada pela luz ou apenas pelo
facto de ela estar a esforçar-se por ver alguma coisa.
— Nem por isso — admitiu.
— Bom, é para aí que vamos. É a junção entre as terras perdidas e... além
delas.
— Oh! — exclamou ela. — E depois o que acontece?
Ele encolheu os ombros.
— Como te disse, nunca lá fui. Aquele sempre foi o fim do meu caminho.
— Eu sei, mas o que viste? Quer dizer, é uma escadaria para os céus, ou o
quê?
Tristan fitou-a, incrédulo, e quando falou estava claramente a conter o riso.
— Achas que há uma escada rolante gigante que desce do céu?
— Bom, não sei — resmungou ela, embaraçada e irritada.
— Desculpa — disse ele, com um sorriso. — As almas desaparecem,
simplesmente. Dão um passo e desaparecem.
Dylan franziu o nariz. Via que ele estava a dizer a verdade, mas não era
muito útil.
— Vamos, temos de ir. — Deu-lhe um pequeno empurrão para a fazer
andar.
Dylan olhou de novo para o horizonte, esforçando-se por distinguir o tal
brilho. Estaria a ver alguma coisa? Era difícil ter a certeza. Mas o esforço
fazia-lhe doer a cabeça, portanto desistiu e contentou-se em olhar,
macambúzia, para o percurso que tinham pela frente. Parecia ser um longo
caminho. Não era a subir, pelo menos, mas era longo.
— Já que é o último dia... — começou.
— Não vou levar-te às cavalitas — atalhou Tristan rapidamente. Com
passos largos, ultrapassou-a e começou a caminhar à frente dela.
Mal-humorada, Dylan seguiu-o.
— Sabes, quase me afoguei, ontem — continuou, certa de que ele não a
levaria às costas, mas nada contente com a perspetiva de um dia inteiro de
caminhada. Sentia as pernas perras e uma dor no peito. Ardia-lhe a garganta
por ter vomitado e de tanto tossir para limpar os pulmões.
Tristan olhou para ela com uma expressão estranha no rosto, mas depois
virou-se para a frente e continuou a andar.
— Está bem, sei que provavelmente não teria morrido, uma vez que já
estou morta, mas mesmo assim foi traumatizante.
Desta vez ele parou, mas não se virou. Dylan apanhou-o com três passos.
Algo na postura dele a deixou desconfiada.
— Sim, terias. — Era um murmúrio, mas suficientemente alto para lhe
chegar aos ouvidos.
— O quê?
Tristan olhou para o céu, respirou fundo e virou-se para ela.
— Terias morrido. — Pronunciou cada palavra lenta e claramente, e a
informação trespassou o cérebro de Dylan.
— Podia ter morrido outra vez? Pensei que morta fosse morta!
Ele abanou a cabeça.
— Mas como? Para onde iria? Não estou a... — Calou-se, sem saber o que
dizer.
— Podes morrer aqui. A tua alma, quero eu dizer. Quando estás viva, a
alma é protegida pelo corpo. Quando morres, perdes essa segurança. Ficas
vulnerável.
— E o que acontece quando a alma morre?
— Desapareces — respondeu ele simplesmente.
Dylan olhou para o céu, chocada ao perceber o quão perto estivera do
oblívio total. Aceitara a morte do corpo sem se queixar muito porque, bom,
ela ainda aqui estava. Saber que podia ter desaparecido completamente —
que podia ter perdido a oportunidade de tornar a ver as pessoas que contava
reencontrar um dia — chocou-a de tal forma que ficou sem palavras.
— Vamos. Desculpa, mas não há tempo para parar, temos de seguir
viagem. Não há mais casas seguras, Dylan.
Ouvi-lo chamá-la pelo nome despertou-a do seu transe.
— Está bem — murmurou. Sem olhar para ele, começou a andar. Embora
lhe doessem as pernas e estivesse exausta, não queria ser apanhada ali fora ao
escurecer.
Tristan olhou para ela. Tinha a cabeça erguida e caminhava com passo
rápido, mas coxeava um pouco e de vez em quando esfregava distraidamente
a garganta. Sabia que ela ainda devia estar a sofrer depois do trauma da
véspera.
— Espera. — Correu até junto dela.
Dylan parou e virou-se, à espera dele. Tristan ultrapassou-a e depois parou.
Sorriu e virou-se de costas para ela.
— Salta.
— O quê?
Ele revirou os olhos, impaciente.
— Salta!
— Oh! — O rosto de Dylan iluminou-se com o alívio. Segurou-se aos
ombros dele e saltou-lhe para as costas, prendendo as pernas à volta da
cintura dele e os braços à volta do pescoço. Tristan enfiou os braços debaixo
dos joelhos dela e começou a andar.
— Obrigada — sussurrou-lhe ela ao ouvido.
— Só porque me estavas a dar pena — brincou ele.
Dava passos longos e determinados que baloiçavam suavemente Dylan.
Não demorou muito tempo a começar a sentir-se dorida e desconfortável às
cavalitas dele. Doíam-lhe os braços da força com que lhe segurava os ombros
e estava a ficar magoada no sítio onde ele a agarrava, debaixo dos joelhos.
Mesmo assim, era muito melhor do que andar. Tentou relaxar os músculos e
concentrar-se no prazer que era estar tão perto de Tristan. Ele tinha ombros
largos e fortes e lidava com o peso extra como se ela fosse feita de penas.
Encostou o rosto ao pescoço dele e inspirou profundamente, saboreando o
seu cheiro almiscarado. O cabelo claro de Tristan agitava-se com o
movimento e fazia-lhe cócegas na cara. Combateu a vontade de passar os
dedos por ele.
— Quando chegarmos — disse ele subitamente, sobressaltando-a —, tens
de descer e caminhar por ti própria.
Ela apertou-o mais, instintivamente.
— Pensei que vinhas comigo!
— E vou — assegurou ele de imediato —, mas tens de dar os passos com
as tuas próprias pernas. Eu vou atrás de ti.
— Não podes ir primeiro?
— Não. Não podes entrar no outro mundo atrás de alguém; tens de dar o
passo por ti própria. É uma daquelas coisas — acrescentou, como se isso
explicasse tudo.
— Mas tu vens logo atrás de mim? — insistiu ela, nervosa.
— Prometo. Já te disse que sim.
— Tristan — gritou ela, em tom subitamente entusiasmado. — Já consigo
ver!
Cerca de oitocentos metros à frente deles, o ar parecia mudar. O chão do
outro lado era exatamente igual, mas estranhamente distorcido, como se o
estivessem a ver através de um vidro grosso. O local onde o vidro tocava no
chão parecia de facto tremeluzir ligeiramente. Dylan sentiu o estômago
apertado. Tinham chegado.
— Põe-me no chão — pediu, num murmúrio.
— O quê?
— Quero andar.
Tristan soltou-lhe as pernas e ela deslizou pelas costas dele até ao chão.
Tinha os pés e a parte inferior das pernas dormentes, e esticou os braços
tensos. Depois endireitou os ombros e virou-se para enfrentar o final da sua
viagem. Sem olhar para trás, para Tristan, começou a andar.
Tinha o coração acelerado e aos saltos no peito. Sentia a adrenalina a
correr-lhe nas veias. Embora ainda há pouco lhe doessem os braços e as
pernas, sentia-se agora como se os membros não lhe pertencessem e não os
controlasse completamente. Respirou fundo, tentando não hiperventilar. O
chão parecia voar sob os seus pés. À medida que se aproximavam, era mais
fácil distinguir a união entre os dois mundos, agora a pouco mais de cem
metros. A paisagem para além desse ponto estava ligeiramente desfocada,
como se estivesse a vê-la através dos óculos de outra pessoa. Começou a
sentir-se tonta e por isso tentou olhar para o chão, espreitando apenas de vez
em quando para ver a que distância se encontrava da linha tremeluzente no
caminho.
Tristan manteve-se deliberadamente um passo atrás dela, observando-a
com atenção. Embora Dylan não olhasse para ele nem lhe dirigisse a palavra,
tinha a sensação de que ela estava perfeitamente consciente dos movimentos
dele. A cinco metros da linha divisória, ela parou.
Olhou para a frente, com a respiração calma. Tinha o rosto tenso e os lábios
apertados. Tristan via a tensão em todos os músculos do corpo dela.
— Estás bem? — perguntou.
Ela virou-se para ele com os olhos muito abertos. Tristan pensara que ela
parecia calma, mas via agora que estava aterrorizada.
No entanto, não era bem isso. Dylan estava a sentir emoções que nunca
experimentara antes. A tensão do momento trouxera ao de cima várias coisas
e fizera-a concentrar-se naquilo que realmente importava. Não sabia o que
havia do outro lado daquela linha e, embora ele tivesse prometido segui-la,
havia algo que precisava de dizer primeiro.
A ideia assustava-a, e sabia que, ao dizê-lo, estava a tornar-se mais
vulnerável a nível emocional do que alguma vez estivera na vida, mas apesar
disso estava determinada. Os últimos dias tinham-lhe ensinado muito sobre si
própria; não era a mesma rapariga que hesitara sobre se havia ou não de levar
o ursinho de peluche na sua viagem. Era mais forte, mais corajosa. Enfrentara
perigos, confrontara os seus medos, e Tristan desempenhara um papel muito
importante nisso. Protegera-a, confortara-a, guiara-a e abrira-lhe os olhos
para sentimentos que nunca antes vivera. Era importante dizer-lhe como se
sentia, apesar de isso a deixar com o estômago às voltas e as faces a arder.
Diz de uma vez, ordenou a si própria.
— Amo-te.
Os seus olhos não deixaram o rosto dele, tentando avaliar a sua reação. As
palavras pareceram ficar suspensas no ar entre eles. Dylan tinha todos os
nervos à flor da pele, as hormonas a latejarem-lhe nas veias. Não tencionara
dizer a palavra assim, sem preâmbulos, mas a necessidade fora mais forte.
Esperou vê-lo sorrir ou franzir a testa, os seus olhos brilharem ou ficarem
distantes, mas Tristan permaneceu impassível. Sentiu o coração a bater num
ritmo irregular que a fez temer que pudesse parar a qualquer instante. À
medida que o silêncio se prolongava, começou a tremer enquanto o seu corpo
se preparava para a rejeição.
Ele não sentia o mesmo. Claro que não, pensou. Ela era apenas uma
criança. Interpretara mal as palavras e o toque dele. Sentiu os olhos a arder e
tentou conter as lágrimas. Cerrou os dentes e fechou as mãos com força,
sentindo as unhas cravarem-se nas palmas. Não era suficiente. A dor no peito
era agonizante, como facas em brasa que a trespassavam de um lado a outro.
Sobrepunha-se a todas as outras sensações e era difícil respirar.
Tristan olhou para ela enquanto lutava contra si próprio. Ele também a
amava; sabia-o em todas as fibras do seu ser. O que não sabia era se devia
dizer-lho ou não. Passaram vários segundos e ele continuava indeciso. Viu-a
abrir mais os olhos, ouviu a sua respiração tornar-se irregular, e percebeu que
ela estava a interpretar o seu silêncio da pior forma possível. Estava
convencida de que ele não a amava. Fechou os olhos, tentando colocar as
coisas em perspetiva. Se a deixasse pensar assim, talvez não lhe custasse
tanto atravessar. Não dizer nada era a decisão certa. Decidido, abriu os olhos
e fixou os dela, um mar de verde cintilante.
Não. A dor, o sofrimento, a rejeição... não podia deixar que fossem essas as
últimas memórias que Dylan teria dele. Tinha de lhe dar esta verdade, por
mais que isso custasse a ambos. Com medo de ter a voz a tremer, abriu a
boca.
— Eu também te amo, Dylan.
Ela fitou-o por um instante e o tempo parou. Enquanto processava as
palavras, sentiu o coração dar um salto triunfante. Ele amava-a. Soltou a
respiração numa espécie de risada e sorriu, radiante, com os olhos a brilhar.
A dor no peito dissolveu-se, substituída por um calor reconfortante. Deu um
passo em frente, hesitante, até sentir a respiração dele no rosto; a respiração
de Tristan também estava acelerada. O azul dos olhos dele ardia, penetrando
nela e fazendo-a tremer. Inclinou-se para ele, tão perto que conseguia ver
cada uma das sardas que lhe salpicavam o nariz e as faces, e depois parou.
— Espera — disse, recuando. — Beija-me do outro lado.
— Não — disse Tristan, em voz baixa e rouca. Subitamente, tinha a mão
dela na sua e apertava-a com uma força invencível. — Agora.
Com uma mão, puxou-a para si, e com a outra segurou-lhe na nuca,
enfiando os dedos no cabelo dela. Dylan sentiu-se toda arrepiada e o seu
protesto pouco sincero morreu-lhe nos lábios. Ele acariciou-lhe o pescoço
com o polegar e encostou a testa à dela. Sem pestanejar, Dylan viu-o
percorrer a distância que os separava, enquanto lhe largava a mão e o pescoço
e enrolava os braços à volta dela, puxando-a ainda para mais perto. Dylan
inclinou ligeiramente a cabeça para trás e fechou os olhos, à espera.
Tristan hesitou. Libertado das profundezas daqueles olhos verdes como
uma floresta, as dúvidas surgiram-lhe novamente. Aquilo estava errado.
Aquilo não era permitido. Na verdade, tudo o que sentia por ela estava
errado. Não devia ser capaz de se sentir assim; não devia sequer ser possível.
Mas sentia. E esta seria a sua única oportunidade de sentir aquilo por que os
humanos viviam e matavam. Fechou os olhos e encostou os lábios aos de
Dylan.
Eram macios. Foi o seu primeiro pensamento. Macios, doces e trémulos.
Sentiu os dedos dela fecharem-se no tecido do seu casaco, as suas mãos a
tremerem levemente contra ele. Ela entreabriu os lábios, movendo-os contra
os dele. Ouviu-a soltar um leve gemido e o som causou-lhe um frémito no
ventre. Apertou-a mais, a boca pressionada contra a dela. O coração parecia
querer saltar-lhe do peito e não conseguia respirar. A única coisa de que tinha
consciência era do calor dela, da suavidade dela. Sentiu-a tornar-se mais
ousada, pôr-se em bicos de pés para se chegar mais a ele, levantar as mãos e
agarrar-lhe nos ombros, no rosto. Copiou o movimento, acariciando-lhe o
cabelo, o queixo. Tentando memorizá-la.
Nos braços de Tristan, Dylan sentia-se tonta, leve. Com os olhos fechados,
o mundo à sua volta parecia não existir. Apenas a boca de Tristan,
pressionada contra a sua, e as mãos dele, que a seguravam e lhe acariciavam
gentilmente a pele. Sentia o sangue a cantar nas veias e, quando ele
finalmente se afastou, mal conseguia respirar. Ele segurou-lhe o rosto nas
mãos e fitou-a durante um longo momento, de olhos a cintilar. Depois
inclinou novamente a cabeça e beijou-a suavemente nos lábios mais uma,
duas vezes. Sorriu, um sorriso lânguido que fez com que os músculos no
ventre de Dylan se contraíssem.
— Tinhas razão — disse ela, num sussurro. — Antes foi melhor.
Virou-lhe costas e inspecionou a linha. Agora, não lhe parecia nada
ameaçadora. Tristan amava-a e iria com ela para onde quer que fosse. Com
dez passos confiantes, chegou junto da divisória. Olhou para baixo e
saboreou a sensação. Era o seu último momento nas terras perdidas. Podia
dizer adeus aos demónios, às escaladas e às noites mal dormidas em casas
arruinadas. Levantou o pé esquerdo e fez uma pausa, mesmo sobre a linha.
Depois respirou fundo e atravessou.
Do outro lado, parou, a estudar o que a rodeava. Parecia tudo igual. O ar
continuava quente, com uma leve brisa, o caminho de terra ainda rangia
levemente quando mexia os pés. O sol brilhava no céu e as montanhas ainda
se erguiam no horizonte. Franziu um pouco a testa, curiosa mas não
excessivamente preocupada. Estava à espera de algo mais dramático.
Rodou sobre si própria à procura de Tristan, com um sorriso nervoso nos
lábios que rapidamente lhe ficou paralisado no rosto. Mãos geladas
apertaram-lhe o coração e abriu a boca num murmúrio aterrado.
— Não!
O caminho estava deserto.
Deu um passo em frente, mas a linha tremeluzente desaparecera. Esticou os
braços, procurando com as mãos o sítio onde Tristan estivera apenas
segundos antes. Mas os seus dedos encontraram somente uma parede
invisível, sólida e impenetrável.
Atravessara e não podia voltar atrás. Tristan desaparecera. Estava
novamente sozinha.
Começou a tremer, com uma mistura arrepiante de adrenalina, choque e
horror a percorrer-lhe as veias. Cambaleou e caiu de joelhos, com as mãos
sobre a boca como se conseguisse impedir os soluços de sair. Mas era
impossível: eles transbordaram, primeiro como gemidos baixos e ofegantes e
depois como gritos de agonia. Uma dor ardente rasgou-lhe o peito. As
lágrimas deslizaram-lhe pelas faces e caíram na terra.
Ele mentira-lhe. As promessas de a acompanhar não tinham passado de
engano e traição, e ela fora uma idiota por acreditar. Este devia ter sido o
plano dele desde o princípio. Recordou como ele às vezes lhe sorria, de olhos
a brilhar, mas depois ficava subitamente com uma expressão fria e
indiferente. Ele sabia. Mas... e quando lhe dissera que a amava? Estaria a
mentir?
Não, não acreditava nisso. Todas as fibras do seu ser lhe diziam que era
verdade: ele amava-a. Ela amava-o e ele amava-a, mas nunca poderiam estar
juntos.
Percebeu, consternada, que já não conseguia visualizar claramente o rosto
dele. Os pormenores estavam a desaparecer, como grãos de areia soprados
pelo vento. Não se lembrava do tom exato do cabelo dele, nem da forma da
sua boca. Um som angustiado escapou-lhe dos lábios e o sofrimento
incendiou-lhe todos os nervos. Como sabia que estava sozinha, que não havia
ninguém que pudesse testemunhar o seu desespero, entregou-se à angústia
que a dominava.
Bateu com os punhos na parede invisível, frustrada, depois encostou-lhe a
palma da mão e desejou com todas as suas forças que se desfizesse e a
deixasse voltar atrás.
::::
::::
— Dylan.
Apercebeu-se de alguém a chamar o seu nome, mas não se virou. Tal como
na noite que passara sozinha na casa segura, não conseguia afastar os olhos
da paisagem à sua frente. Se deixasse de olhar, Tristan estaria realmente
perdido para sempre.
Quem é que queria enganar? Já o perdera. Ele desaparecera e não ia voltar.
Simplesmente ainda não estava preparada para aceitar essa realidade. Dylan
fixou o caminho com uma expressão de desafio. Mordeu o lábio inferior com
força suficiente para perfurar a pele e sentir o sabor de sangue. Não o sentiu,
contudo. Tinha todos os sentidos entorpecidos.
— Dylan.
Estremeceu quando a voz a chamou de novo. Não conseguia perceber se
era masculina ou feminina, velha ou nova. Não parecia impaciente nem
urgente. Era acolhedora.
Mas ela não queria ser acolhida.
— Dylan.
Dylan soprou, agora irritada. A voz ia continuar a chamá-la até ela
responder. Lentamente, com relutância, virou-se.
Por um segundo pestanejou, confusa. Não estava ali nada. Abriu a boca
para chamar, na esperança de que a voz voltasse a falar, mas depois fechou-a
lentamente. Que lhe importava?
Estava prestes a retomar a vigilância, de olhos postos no caminho, na
esperança vã de que Tristan reaparecesse miraculosamente, mas quando virou
a cabeça houve algo estranho e inesperado que lhe chamou a atenção. Uma
luz, a brilhar. Por um segundo o seu coração parou, ao pensar nas esferas que
vira a flutuar na paisagem cor de sangue das terras perdidas, mas não era a
mesma coisa. A luz cresceu e mudou, alongando-se, ganhando forma. Sorriu-
lhe e a expressão era de boas-vindas. Dois olhos dourados, sem pupilas mas
calorosos e não assustadores, observaram-na e esperaram. Estavam num rosto
perfeito, rodeado por um halo de luz. O corpo parecia humano, mas não
completamente. Como os vislumbres das almas que vira, estava ali, mas não
estava; parecia desfocado.
Nem sequer percebia se era um homem ou uma mulher. Era um ser
andrógino, mas a profundidade da voz quando a chamara pelo nome fê-la
pensar que seria provavelmente masculino.
— Bem-vinda — disse, em voz melodiosa.
Dylan franziu a testa, aborrecida ao vê-lo sorrir de forma tão
condescendente, como se ela devesse estar feliz por ali estar.
— Quem és tu?
— O meu nome é Caeli. Estou aqui para te receber. Bem-vinda a casa.
A casa? A casa! Isto não era a sua casa. A sua casa era o sítio que acabara
de deixar. Duas vezes.
— Deves ter perguntas para fazer. Por favor, vem comigo.
Lenta e determinadamente, Dylan abanou a cabeça. O ser — era injusto
chamar-lhe coisa, mas não era decididamente uma pessoa — fitou-a com ar
ligeiramente confuso.
— Quero voltar — disse Dylan calmamente.
A confusão transformou-se em compreensão.
— Lamento muito. Não podes voltar. O teu corpo desapareceu. Nada
temas, em breve verás novamente os teus entes queridos.
— Não, não é isso que quero dizer. As terras perdidas. Quero voltar para as
terras perdidas. — Dylan olhou em volta, para a charneca que ainda a
rodeava. Espreitou rapidamente por cima do ombro e confirmou que o
semicírculo de colinas ainda lá estava. Parecia que continuava no mesmo
sítio, simplesmente bloqueada por aquela parede invisível. — Quero... —
começou, mas depois não conseguiu terminar.
O ser, Caeli, lançou-lhe um olhar incrédulo.
— Já fizeste a travessia.
Dylan franziu ainda mais o sobrolho. Ele não estava a compreender o que
ela queria dizer.
— Onde está o meu barqueiro? Onde está o Tristan? — Engasgou-se um
pouco ao dizer o nome dele.
— Já não precisas dele. A sua função está concluída. Por favor, vem
comigo. — Desta vez, o ser virou-se e apontou para trás de si. Um pouco
mais à frente aparecera uma entrada, um portão de grades, como o portão de
um recinto para o gado. Parecia ridículo ali a pairar, sem uma cerca de cada
lado.
Dylan cruzou os braços e ergueu o queixo.
— Não — disse, entre os dentes cerrados. — Quero o Tristan. Não saio
daqui enquanto não o vir.
— Lamento muito, mas não é possível.
— Porquê? — inquiriu Dylan.
Caeli, aparentemente, não estava a compreender a pergunta.
— Não é possível. Por favor, vem comigo.
Deu um passo para o lado e apontou novamente para o portão, com um
sorriso paciente, à espera. Dylan teve a sensação de que ele ficaria ali à
espera, calmo e sereno, até ela se mexer.
O que faria Caeli se ela o ignorasse, se tentasse retroceder, voltar ao lago?
Tentaria impedi-la? Levantou-se e recuou um passo cuidadosamente,
estudando a reação dele. Caeli continuou a sorrir, mas inclinou ligeiramente a
cabeça e uma expressão perplexa cruzou-lhe o rosto. Outro passo. Ele
continuou imóvel. A observar. Pelos vistos, Dylan era livre de o ignorar.
Tirou os olhos do ser por um momento e arriscou olhar novamente para
trás. As colinas ainda lá estavam. Pareceu-lhe conseguir distinguir ao longe a
silhueta da última casa segura, indistinta através da separação entre mundos.
Não havia sinal dos espetros, nem indícios de perigo. Podia ficar lá.
Mas de que adiantaria? Tristan não estava lá. Provavelmente já passara
para o próximo trabalho, a próxima alma. O mais certo era que já se tivesse
esquecido dela.
Não!, gritou uma pequena parte da sua mente. Ele disse que te amava. E
estava a ser sincero.
Talvez. Ou talvez não. Não tinha como saber a verdade. E, se Tristan não ia
voltar, de que adiantava ficar ali?
Com um suspiro, Dylan descruzou os braços e deixou-os cair ao lado do
corpo. Sentiu as mãos a latejar quando o sangue recomeçou a circular nos
dedos. Nem se tinha apercebido da força com que as fechara.
— Está bem — murmurou, dando um passo, depois outro, na direção de
Caeli. — Está bem.
O ser sorriu-lhe calorosamente e esperou que ela estivesse junto dele antes
de se virar e começar a percorrer o caminho.
Chegaram junto do portão, mas, quando Caeli o abriu, não foram só as
grades enferrujadas que se mexeram. Era como se Caeli estivesse a abrir um
buraco no mundo. No sítio onde estivera o portão, estava agora uma janela
para um lugar completamente diferente.
— Por favor — disse Caeli baixinho, fazendo sinal a Dylan para passar.
— Onde estamos? — perguntou ela, do outro lado.
Era uma sala gigantesca, quase sem proporções. Não conseguia ver as
paredes, mas tinha a sensação de ser interior. O chão era incolor, limpo.
— Esta é a sala dos registos. Pensei que seria um bom sítio para
começarmos, para encontrarmos as almas que chegaram antes de ti. Os que
morreram e atravessaram as terras perdidas.
— Como? — Apesar de tudo, Dylan estava intrigada.
Assim que a palavra lhe deixou os lábios, o limiar da sala contraiu-se,
formando paredes definidas, forradas do chão ao teto de estantes carregadas
de livros pesados. Uma carpete materializou-se sob os seus pés, espessa e
escura, criada para um efeito de grandiosidade e para abafar o som de passos.
Teve uma estranha sensação de déjà vu ao olhar em volta: a imagem
despertava ecos de uma visita que fizera com Joan a uma biblioteca. Aos seus
olhos de criança de dez anos, o espaço parecera cavernoso e silencioso, quase
como um labirinto. Perdera-se e fora encontrada a chorar ao lado de uma
mesa por um simpático empregado de limpeza. Seria isto outra projeção da
sua mente, como as terras perdidas?
Caeli falou suavemente ao lado dela.
— Suponho que tens familiares ou amigos que gostarias de reencontrar? —
Esperou um momento. — Queres que te ajude a encontrar alguém? A tua avó
Moore? A tia Yvonne?
Dylan olhou para ele, chocado por saber os nomes dos seus familiares.
— Consegues encontrar qualquer pessoa?
— Qualquer pessoa que tenha concluído a viagem, sim. Temos registos de
todas as almas. Cada barqueiro tem um livro com as almas que conduziu.
O quê? Dylan olhou para as paredes enquanto processava as palavras de
Caeli. Mas não estava a pensar em encontrar a avó nem a tia, que tinha
morrido de cancro da mama há três anos. Tinha outra ideia.
Virou-se para o ser, com uma luz inesperada nos olhos.
— Quero ver o livro do Tristan.
Caeli ficou em silêncio alguns instantes antes de responder:
— Não é esse o objetivo deste lugar...
— O livro do Tristan — repetiu Dylan com firmeza.
O ser não parecia nada satisfeito, e as suas feições mostraram uma mistura
de preocupação e desaprovação, mas conduziu-a ao longo de inúmeras
estantes carregadas de livros até chegarem a um canto sombrio. Estendeu a
mão para uma prateleira, vazia à exceção de um livro enorme. Era de um
verde desbotado, com as páginas tingidas de dourado. Os cantos pareciam
gastos, como se mil dedos tivessem já aberto aquela capa e folheado as
páginas.
— Aqui tens o livro do teu barqueiro — disse Caeli, pousando-o numa
mesa vazia. — Posso saber o que procuras?
Dylan não respondeu, já que ela própria não estava certa da resposta.
Estendeu a mão e abriu a capa. No interior, encontrou um livro de registo. A
página estava coberta de entradas, fila após fila de almas registadas numa
bonita caligrafia. Um nome, uma idade e uma data em cada linha. Não a data
de nascimento, percebeu Dylan, chocada. Era a data da morte.
Sem dizer nada, folheou o livro. Nome após nome, após nome. Centenas.
Milhares. Inúmeras almas que deviam a sua existência neste plano a Tristan.
Passou várias páginas de cada vez até encontrar papel em branco. Depois
folheou em sentido contrário à procura da última entrada. A dela. Era bizarro,
ver o seu nome escrito numa caligrafia mais elegante do que ela alguma vez
teria conseguido fazer. Seria a letra de Tristan? Não, não podia ser. Ao lado
do nome, a data em que ela apanhara o comboio. Tocou com o dedo na linha
vazia por baixo e perguntou a si própria que nome preencheria aquele espaço.
Onde estava Tristan naquele momento? Já teria chegado à primeira casa
segura?
Dylan suspirou e continuou a folhear o livro, abrindo-o em páginas ao
acaso. Não queria pensar em Tristan a conduzir outra alma. Era o seu
barqueiro. Era dela. Sorriu tristemente. Não era fácil acreditar nisso, perante
aquele livro. Passou os olhos pela página. Franziu a testa.
— O que é isto? — perguntou, apontando para uma linha perto do fim da
página. A entrada fora riscada e o nome estava praticamente ilegível por trás
do risco preto e grosso.
Não obteve resposta. Dylan olhou para a esquerda, para ver se fora
abandonada, mas o ser ainda ali estava. Não estava a olhar para ela, e parecia
ter o olhar perdido no vazio.
— Desculpa... Caeli? — Hesitou um pouco antes de o chamar pelo nome.
— O que significa isto? Porque foi este nome riscado?
— Essa alma não está aqui — respondeu ele, ainda sem a fitar.
Não está aqui? Seriam as almas perdidas para os espetros? Se procurasse,
encontraria ali o menino de que Tristan lhe falara, o que morrera de cancro,
que ele deixara cair ao fugir dos demónios? Abriu a boca para perguntar, mas
Caeli virou-se e fitou-a, com um sorriso radiante que a silenciou.
— Porque estás interessada neste livro, Dylan? Se me disseres, posso
ajudar-te.
Desarmada por aquele olhar dourado, Dylan perdeu momentaneamente o
fio do raciocínio. O mistério da entrada riscada ficou esquecido no fundo da
sua mente.
— Conheces todas as almas que aqui estão? — Apontou para o livro.
O ser inclinou a cabeça num gesto afirmativo.
— Estou à procura de uma pessoa, mas não sei como se chama. Era um
soldado. Um soldado nazi. — Dylan pestanejou, um pouco surpreendida
consigo própria. Não fora por isso que pedira para ver o livro, mas a ideia
surgira-lhe na mente e percebeu imediatamente que, pelo menos de forma
inconsciente, esse fora o seu plano desde o início. Queria falar com alguém
que também conhecera Tristan. Queria falar sobre ele com alguém que o
conhecesse como ela. O jovem soldado da Segunda Guerra Mundial fora a
alma que mais a impressionara de todas as histórias que Tristan lhe contara.
Esperava que o ser abanasse a cabeça e lhe dissesse que precisava de mais
informações, mas, para sua surpresa, ele aproximou-se da mesa e folheou as
páginas com confiança até encontrar o que procurava.
— Aqui está. — Caeli apontou para a penúltima linha. — Esta é a alma que
procuras.
Dylan olhou para o nome manuscrito.
— Jonas Bauer — murmurou. — Dezoito anos. Morto a 12 de fevereiro de
1941. É ele?
Caeli assentiu.
Dylan mordeu o lábio enquanto pensava. Dezoito anos. Pouco mais velho
do que ela. Por algum motivo, quando o imaginara, vira-o como um homem.
Mas era um rapaz que podia ainda estar na escola. Pensou brevemente nos
alunos mais velhos de Kaithshall. O capitão da escola, os delegados de turma.
Eram rapazinhos imaturos e patetas. Não conseguia imaginá-los de uniforme,
de arma em punho. Não conseguia imaginá-los a enfrentar fosse quem fosse,
sabendo que essa decisão seria uma sentença de morte.
Dezoito anos. Um rapaz e um homem. Quem teria Tristan sido para ele?
Como teria convencido Jonas a segui-lo?
Dylan ergueu os olhos da página e virou-se para Caeli.
— Quero falar com ele.
VINTE E DOIS
Caeli não discutiu nem perguntou a Dylan qual era o motivo por trás deste
estranho pedido. Simplesmente estendeu o braço. Dylan hesitou e olhou uma
última vez para a página antes de o seguir. Algo lhe chamou a atenção —
mesmo ao fundo da página estava outra daquelas entradas estranhas. Mais
uma alma riscada.
Não teve tempo para questionar Caeli sobre as linhas eliminadas. Ele
conduziu-a até uma porta escura, talvez de mogno, com bonitos painéis
trabalhados. A maçaneta era pequena e redonda, cor de bronze. Dylan não se
lembrava de a porta ali estar antes. Franziu a testa e esfregou os olhos,
desorientada.
— Isso estava...
Caeli sorriu, à espera do resto da pergunta, mas Dylan não terminou a frase.
Não importava, na realidade. A porta estava ali agora e era nisso que tinha de
se concentrar. Era tudo muito confuso.
— Por aqui?
Caeli acenou afirmativamente. Dylan esperou que ele a abrisse, não por
estar habituada a gestos de cavalheirismo, mas porque ele parecia estar no
comando das operações.
Caeli, contudo, não se mexeu. Seria mais uma daquelas coisas que tinha de
fazer sozinha, como atravessar a fronteira nas terras perdidas? Olhou para o
ser para confirmar e, hesitante, estendeu a mão e fechou-a sobre a maçaneta.
Esta rodou facilmente e Caeli recuou de maneira a dar-lhe espaço para abrir a
porta. Dylan assim fez, e lançou-lhe mais um olhar nervoso antes de cruzar o
limiar da porta e observar o que a rodeava.
Uma rua. Dylan sentiu-se imediatamente mais à vontade. Os edifícios eram
muito diferentes dos que conhecia: completamente distintos dos prédios
vermelhos de Glasgow. Filas de casinhas de primeiro andar, muito bonitas,
com relvados bem tratados e canteiros de flores. Estacionados em frente às
casas ou junto do passeio, viu carros quase todos pretos e reluzentes, com
capôs curvos e compridos e plataformas prateadas de lado. Parecia um
cenário retirado dos filmes antigos que Joan a obrigava a ver quando alguma
das vizinhas idosas ia jantar com elas. O sol iluminava o céu e havia no ar um
zumbido agradável de atividade.
Dylan avançou sobre um caminho pavimentado que atravessava um
relvado bem arranjado. Ouviu um estalido atrás de si e, quando se virou, viu a
porta a fechar-se. Parecia ter saído de um dos edifícios: uma vivenda com
janelas de lucerna e as paredes exteriores forradas com madeira escura. Caeli
desaparecera, mas Dylan teve a sensação de que bastava lembrar-se de qual
era a porta para regressar novamente à sala de registos.
Parou um instante a memorizar o vaso de flores amarelas e cor de laranja à
direita do degrau e o número nove em bronze preso à parede por cima da
caixa de correio. Certa de que conseguiria voltar a encontrar a casa, virou-se
para a rua à sua frente. Ouviu um tinido metálico, que tentou reconhecer. Era
uma espécie de zumbido, contudo, por baixo, conseguia ouvir o ritmo de uma
melodia. Parecia um rádio mal sintonizado. Seguiu o som, contornando os
carros, até que encontrou um par de pernas a espreitar por baixo de um
veículo preto reluzente. Ali o som era mais forte e viu que estava certa: em
cima do carro, encontrava-se um rádio antigo. Um dos pés abanava ao ritmo
da música, uma canção antiga que Dylan não reconhecia.
Pensou que talvez tivesse encontrado Jonas.
— Olá — disse, inclinando-se para espreitar para baixo do carro. Não
conseguia ver muito, apenas a continuação das pernas.
O pé parou de abanar. Após um segundo, ouviu algo a raspar no chão e um
corpo saiu de baixo do carro, encimado por um rosto sujo de óleo. Dylan
esperou enquanto ele se punha em pé.
A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi que ele tinha cara de bebé.
Faces redondas e suaves por baixo de olhos azuis brilhantes; o cabelo loiro
estava muito bem penteado, com risco ao lado, mas várias madeixas tinham
saído do lugar e estavam espetadas para todos os lados, o que o fazia parecer
ainda mais infantil. Era um rosto estranho para estar em cima de um corpo
tão alto e largo.
Dylan tinha a certeza de que era a alma que procurava. Não era como ela o
imaginara, mas era decididamente ele, Jonas. Lembrou-se subitamente de que
ele era alemão e perguntou a si própria se conseguiria falar com ele. Estudara
francês na escola, mas a única coisa que sabia em alemão era contar até
cinco.
— Não sei se me compreendes... — começou.
Ele sorriu, revelando dentes um pouco tortos.
— Não estás cá há muito tempo, pois não? — Mal se notava o sotaque
alemão.
— Oh! — Dylan corou, ao perceber que dissera uma parvoíce. —
Desculpa, não. Acabo de chegar.
O sorriso abriu-se um pouco mais.
— Eu compreendo-te, está descansada.
— És o Jonas. — Não era uma pergunta, mas ele confirmou com um aceno.
— Chamo-me Dylan.
— Olá, Dylan.
Na pausa que se seguiu, Jonas observou-a com uma expressão de surpresa
delicada e bastante intrigada. Dylan fez uma careta e saltitou de um pé para o
outro. Porque pedira para falar com ele? O que queria perguntar-lhe? Estava
tão confusa, tão desorientada, que não conseguia organizar os pensamentos.
— Pedi para te ver — começou, sentindo que era necessária uma
explicação. — Queria... falar contigo. Fazer-te algumas perguntas, se não te
importares.
Jonas esperou pacientemente e ela entendeu que era um sinal para
continuar.
— Queria falar sobre o teu barqueiro.
Foi evidente que Jonas não estava à espera disso. Pestanejou, franziu a
testa, porém, com um gesto seco do queixo indicou-lhe que continuasse.
Dylan mordeu a língua. O que queria saber, afinal?
— Chamava-se Tristan — disse. O melhor era começar pelo mais simples.
— Não. — Jonas abanou a cabeça lentamente, com ar pensativo, como se
estivesse a tentar recordar coisas de há muito tempo. — Não, chamava-se
Henrik.
— Oh — murmurou Dylan, tentando disfarçar o desapontamento, sem
grande sucesso. Talvez não fosse ele. Talvez Caeli se tivesse enganado.
— Como é que ele era?
— Não sei. Normal, acho eu. — Jonas encolheu os ombros, como se fosse
uma pergunta complicada. — Parecia um soldado como os outros. Alto,
cabelo castanho, uniforme.
Cabelo castanho? Isso também não estava certo.
— Lembro-me... — Sorriu subitamente. — Lembro-me de que tinha uns
olhos azuis como eu nunca tinha visto. Meti-me com ele, disse-lhe que
parecia o nazi perfeito, com aqueles olhos. Eram de um tom muito estranho.
— Azul-cobalto — murmurou Dylan, vendo a cor na sua mente tão
claramente como se ele estivesse à frente dela. O rosto à volta dos olhos
estava algo indistinto, mas o calor gelado daquele olhar ainda a arrepiava. Era
ele; era Tristan. Sorriu levemente. Pelo menos havia uma coisa que era real.
Talvez ele mudasse de nome para cada alma, escolhendo algo que julgava
que agradaria às almas. Lembrou-se do que ele lhe dissera, sobre como as
convencia a irem com ele. Corou ao recordar que Tristan lhe dissera que ela
devia ter um fraquinho por ele. Gostara do nome Tristan; parecera-lhe antigo,
misterioso. Muito diferente dos Davids e Darrens e Jordans de Kaithshall.
Seria apenas mais uma parte do trabalho dele, outra peça na maquinação?
Sentiu o peito apertado quando se apercebeu, com uma vaga de tristeza, que
era bem possível que nem sequer soubesse o verdadeiro nome dele. Se é que
tinha nome.
— Exato — concordou Jonas, com um sorriso. — Azul-cobalto. É uma boa
descrição.
— Como... como é que ele era? — Inconscientemente, Dylan levou a mão
à boca e começou a roer uma unha. Agora que estava a chegar às perguntas
importantes, sentia-se subitamente nervosa, incerta de querer mesmo as
respostas, com medo de ouvir algo que não lhe agradasse.
— Como assim? — Jonas franziu a testa, perplexo.
Dylan respirou fundo e torceu os lábios. Não sabia bem como dizer o que
queria.
— Era... era simpático? Cuidou de ti?
Em vez de lhe responder, Jonas inclinou a cabeça para o lado e estudou-a
atentamente com os olhos azuis: menos brilhantes do que os de Tristan, mas
bastante intensos.
— Porque estás a fazer essas perguntas?
— O quê? — murmurou Dylan, tentando ganhar tempo. Recuou um passo,
até colidir com outro carro estacionado.
— O que queres realmente saber, Dylan?
Era estranho ouvir o seu nome naquele sotaque estrangeiro. Parecia bizarro,
deslocado. Não parecia ser dela. De certa forma, condizia com a sua
disposição invulgar.
— Dylan? — chamou Jonas, despertando-a da sua distração.
— Sinto falta dele — admitiu de olhos postos no chão, apanhada de
surpresa. Após alguns segundos, ergueu a cabeça e viu Jonas a olhar para ela,
com uma expressão simultaneamente compreensiva e confusa. — Passámos
por muita coisa juntos e... e sinto a falta dele.
— Quando é que chegaste? — perguntou Jonas.
— Agora. Quer dizer, mesmo antes de te vir procurar. Há uma hora, talvez?
— Será que ainda podia sequer medir o tempo em horas?
A pequena ruga entre os olhos de Jonas aprofundou-se quando franziu mais
a testa.
— E vieste logo aqui, procurar-me? Não tens familiares que queres visitar?
Pessoas da tua vida que julgavas nunca mais voltar a ver?
Dylan afastou o rosto antes de responder, um pouco envergonhada da
verdade.
— Não quero falar com eles. Quero ver o Tristan.
— O que aconteceu na tua viagem?
— O quê? — Surpreendida com a pergunta, virou-se para Jonas.
Ele estava encostado ao carro, de braços cruzados, com um semblante
perplexo enquanto tentava compreender.
— Quando conheci o Henrik... desculpa, o teu Tristan — corrigiu-se —,
percebi que estava morto. Percebi quase imediatamente quem ele era, o que
tinha acontecido. Fiquei contente por ter a companhia dele na viagem, mas
quando chegou ao fim separámo-nos. E pronto. Eu segui o meu caminho, ele
seguiu o dele. Se me lembrar dele, é com afeto, sim, mas não posso dizer que
sinto a sua falta.
Dylan olhou para ele, desapontada. Jonas não compreendia. Não podia
compreender. Na verdade, podia provavelmente falar com todas as almas no
livro de Tristan e não encontrar outra que tivesse sentido o que ela sentira,
que soubesse como era ter esta dor dilacerante dentro de si, como se lhe
faltasse uma parte essencial.
Era, ao mesmo tempo, um pensamento reconfortante e deprimente.
Dylan virou-se. Jonas continuava a encará-la com uma expressão piedosa e
era difícil ver o seu reflexo patético naquele olhar. Naquele momento só
queria ir-se embora dali, encontrar um sítio sossegado onde se esconder e
lidar com o turbilhão de pensamentos que lhe paralisavam o cérebro.
— Ouve, obrigada por me ouvires. Vou... vou deixar-te voltar ao teu carro.
Estás a arranjá-lo?
— Sim. — Jonas sorriu, e as faces rechonchudas quase lhe esconderam os
olhos. — Sempre quis ter um carro, quando estava vivo. — A escolha de
palavras incomodou Dylan, mas conservou uma expressão impassível. —
Agora posso brincar à vontade. Quer dizer, suponho que trabalharia bem,
independentemente do que eu lhe fizesse. Mesmo assim, gosto de fingir que
estou a fazer alguma diferença. Fiquei tão empolgado quando atravessei e o
vi que, ao princípio, quase nem reparei que estava outra vez em Estugarda!
— Sorriu tristemente a Dylan. — Pelo menos, é uma coisa boa deste lugar...
voltar para casa.
Para casa. Lá estava essa palavra outra vez. Uma sombra encobriu os olhos
de Dylan e ela franziu os lábios, aborrecida.
— Eu não vou para casa.
— Como assim? — Jonas olhou para ela de lado.
— A sala dos registos pode levar-nos a qualquer lado, certo?
— Bom, sim. — Jonas continuava a não perceber. — Mas quando
atravessaste a divisória, nas terras perdidas... — Fez uma pausa e estudou-a
com a cabeça inclinada. — Não voltaste para casa?
Era a vez de Dylan ficar confusa.
— Fiquei onde estava, quer dizer, pareciam ser as terras perdidas na
mesma.
— Tens a certeza? — insistiu ele.
Dylan olhou para ele com as sobrancelhas erguidas. Tinha a certeza, sim.
— Absoluta. Estava exatamente no mesmo sítio, só que o Tris... o meu
barqueiro tinha desaparecido.
— Isso não está certo — disse-lhe Jonas, com a testa franzida de
preocupação. — Todas as outras pessoas com quem falei... a minha família,
os meus amigos... no seu primeiro instante no além, deram por si no sítio que
consideravam como a sua casa.
Dylan não sabia o que dizer. Supôs que devia sentir-se mal por não ter sido
transportada para sua casa, ou para a casa da avó.
Mas não se sentia mal. Sentia-se confortada. O lugar dela era com Tristan,
era o que o cérebro estava a dizer-lhe. Por mais que tivesse detestado as terras
perdidas — o frio, o vento, as escaladas! — era aí que ele estava.
O lugar dela não era aqui. Não se integrava, como sempre.
— Eu não devia estar aqui — murmurou, mais para si própria do que para
Jonas. Afastou-se dele. Queria estar sozinha. Sozinha para pensar, para
chorar. Forçou uma nota de boa disposição na voz: — Bom, diverte-te com o
teu carro. Obrigada mais uma vez. — Antes de acabar de dizer a última
palavra já estava a caminho, com passos rápidos, à procura do vaso, do
número nove.
— Ei! Ei, espera!
Com um sopro impaciente, Dylan parou e, depois de um segundo, virou-se.
Jonas deu alguns passos na direção dela. A preocupação envelhecia-lhe o
rosto, fazia-o parecer quase adulto.
— Não vais tentar, pois não? — Falou em voz tão baixa que Dylan quase
não percebeu.
— Tentar o quê?
Jonas olhou para um lado e para o outro antes de responder. Dylan ergueu
as sobrancelhas, intrigada.
— Voltar — sussurrou ele.
— O quê? — gritou Dylan, aproximando-se automaticamente até estarem
cara a cara. — Como assim, voltar?
Voltar para onde? Para as terras perdidas? Estaria ele a dizer que havia uma
maneira de o fazer?
Jonas mandou-a calar com um gesto de aviso, enquanto olhava em volta.
Dylan ignorou o seu pânico, mas baixou a voz quando repetiu a pergunta.
— Como assim, voltar? Pensava que era impossível voltar.
— E é — respondeu Jonas imediatamente, mas com uma expressão
dissimulada.
— Mas?... — insistiu Dylan.
— Mas nada. — Jonas tentou afastar-se, mas Dylan seguiu-o.
— Houve quem tentasse? — perguntou. Depois a inspiração atingiu-a
como um relâmpago. — Os nomes riscados! — Estaria errada antes? Seriam
almas perdidas não no caminho até aqui, mas no caminho de regresso? Era
possível.
— Não podes voltar. — Jonas repetiu as palavras de Caeli quase como se a
resposta estivesse programada, mas não conseguiu manter a expressão
inocente.
— Como é que o fizeram? — pressionou ela, avançando de novo.
Silêncio total da parte do jovem alemão.
— Como, Jonas?
Ele apertou os lábios e fitou-a durante alguns instantes.
— Não sei.
Dylan lançou-lhe um olhar observador, demasiado dominada pela
esperança para ser tímida.
— Estás a mentir.
— Não estou a mentir, Dylan. Não sei como se faz. Mas sei que é suicídio.
Dylan soltou uma risada amargurada.
— Já estou morta.
— Sabes o que quero dizer — respondeu Jonas depois de a fitar
longamente.
Dylan pensou nisso por um segundo. Morta. Mesmo morta. Desaparecida
para sempre. Era assustador. Sentiu o coração aos saltos ao pensar nisso. Por
outro lado... de que adiantava estar aqui? Sim, a determinada altura a mãe,
Katie, o pai — todos fariam a travessia. Podia recuperar a sua vida anterior,
ou uma estranha versão da mesma. E podia continuar a ser tão solitária e
desenquadrada como fora antes; antes das terras perdidas.
Não valia a pena esperar uma vida inteira por isso. Se soubesse que Tristan
também viria, talvez conseguisse suportar ficar. Mas isso não ia acontecer.
Ele nunca, nunca estaria ali com ela. Esse pensamento trespassou-a como
uma faca e fechou os olhos com a dor. Tristan. Ainda se lembrava com uma
clareza cristalina da sensação ardente dos lábios dele nos dela, de estar
apertada nos seus braços. Como era irónico que nunca se tivesse sentido tão
viva como nesse momento!
Valeria a pena correr o risco do oblívio eterno para o tornar a sentir?
Sim.
— Como podes ter a certeza disso, se nem sequer sabes como se faz? —
desafiou Dylan. Recusava-se a ser desencorajada pelo negativismo dele,
depois de lhe ter dado um fragmento de esperança a que se agarrar.
— Não, Dylan. Não compreendes. — Jonas abanou a cabeça, com as mãos
levantadas e uma expressão de alarme. — Há aqui almas que já viram passar
séculos. Viram centenas, talvez milhares de almas tentarem voltar para trás,
regressar para junto da mulher ou dos filhos. Nem uma única voltou para
contar a história. Viste os espetros, sabes o que eles fazem.
Dylan mordeu o lábio com ar pensativo.
— Como sabes? Que houve quem tentasse?
Ele abanou a mão.
— Rumores.
Rumores. Dylan deu um passo em frente e trespassou-o com o olhar. Jonas
tentou recuar, mas não tinha para onde ir. Dylan fitou-o, determinada.
— Rumores de quem?
VINTE E TRÊS
Ela vivia numa casa de madeira que Dylan só podia descrever como uma
barraca, rodeada por quilómetros e quilómetros de planícies. Era um lugar
isolado e selvagem, com cães a ladrar e nuvens de trovoada por cima. Eliza.
A alma mais antiga que Jonas conhecia. Se alguém poderia dar-lhe respostas,
era Eliza.
Para levar Dylan até lá, Jonas atravessara simplesmente uma das portas da
sua rua. Num momento estavam rodeados por edifícios e, no momento
seguinte, por areia e ervas secas. Dylan viu-o fechar o portão feito de tábuas
velhas presas com pregos enferrujados.
— Já aqui tinhas estado? — perguntou, quando ele apontou na direção da
casa da velha mulher, onde uma luz forte brilhava atrás da janela. Estava
muito mais escuro ali, e aquele brilho quente era reconfortante.
— Não. — Jonas abanou a cabeça. — Mas não conheço mais ninguém que
possa ajudar-te.
Lançou-lhe um olhar estranho e Dylan percebeu que ele estava com
esperança de que Eliza a conseguisse dissuadir. Olhou para a casa velha, um
pouco nervosa.
— Quem é ela? — quis saber. — Como é que sabe destas coisas?
— Já cá está há muito tempo — foi a resposta de Jonas.
Dylan franziu os lábios num esgar insatisfeito. Não era grande resposta,
mas percebeu que era tudo o que Jonas sabia.
Jonas subiu para o alpendre de madeira e bateu à porta, mas Dylan ficou
para trás. Embora tivesse confrontado Jonas sem hesitação, sentia-se agora
tímida perante a perspetiva de falar com outra alma. Talvez por ser uma alma
antiga, de adulto. Talvez porque Eliza nunca conhecera Tristan. Fosse qual
fosse o motivo, tinha vontade de recuar e não de avançar. Se não tivesse
vindo com Jonas, sabia que não teria coragem de ir mais além.
Pensou em mudar de ideias, em dizer a Jonas para esquecer o assunto.
Tristan parecia-lhe ainda mais distante nesta paisagem estranha e inclemente.
Mas depois uma voz dentro de casa disse «Entre» e Jonas abriu a porta e fez-
lhe sinal para entrar. Dylan não tinha alternativa senão obedecer.
Por dentro, a casa era um pouco mais agradável, o que a acalmou
ligeiramente. Havia uma lareira acesa, e as paredes estavam decoradas com
peças tricotadas. Era uma cabina de uma divisão só, com a cama encostada à
parede mais distante e uma pequena cozinha por baixo da janela do outro
lado. No meio estava sentada uma mulher muito velha, enrolada em mantas e
a baloiçar-se suavemente numa cadeira de baloiço antiquada. Dylan
continuou a olhar em volta em vez de devolver o olhar curioso da mulher, e
pensou distraidamente que talvez as casas seguras das terras perdidas fossem
assim antes de se terem degradado com o tempo.
— Eliza — começou Jonas —, esta é a Dylan, e...
— Queres saber como voltar para trás — interrompeu ela, terminando a
frase de Jonas com voz débil e sussurrada, mas quando Dylan virou a cabeça
e olhou para ela, surpreendida por ter adivinhado tão depressa a razão da sua
visita, os olhos da mulher eram penetrantes e alerta.
— Como é que... — começou Dylan, mas não concluiu a pergunta sob o
olhar astuto de Eliza.
— Procuram-me sempre quando querem saber isso. Já vi uma centena de
almas como tu, minha querida — disse, sem azedume.
— Sabe dizer-me como posso fazê-lo? — perguntou Dylan.
Eliza estudou-a em silêncio durante algum tempo. Por fim, disse:
— Senta-te.
Dylan franziu a testa. Não queria sentar-se. Estava agitada, tensa. Queria
andar de um lado para o outro, movimentar-se e libertar parte da tensão que
lhe fazia estremecer os músculos. Queria descobrir o que a mulher sabia e
pôr-se a caminho.
Eliza olhou para ela como se soubesse exatamente o que Dylan estava a
pensar. Indicou mais uma vez a única outra cadeira existente na sala.
— Senta-te.
Dylan sentou-se na beira da cadeira, com as mãos entaladas entre os
joelhos para as impedir de tremer. Fixou o olhar na mulher e nem viu Jonas
empoleirar-se discretamente na beira de uma mesa atrás dela.
— Diga-me o que sabe — exigiu.
— Não sei nada — respondeu a velha. — Mas ouvi dizer coisas.
— Qual é a diferença?
Eliza sorriu-lhe, mas havia no seu semblante uma tristeza melancólica.
— A diferença é a certeza.
Isto fez Dylan hesitar, mas apenas por um instante.
— Nesse caso, conte-me o que ouviu dizer. Por favor.
Eliza agitou-se na cadeira e ajeitou melhor os xailes que lhe cobriam os
ombros.
— Ouvi dizer — começou, com ênfase na primeira palavra — que é
possível atravessar as terras perdidas em sentido contrário.
— Como? — sussurrou Dylan.
— Já percebeste como este lugar funciona. Só tens de abrir a porta certa.
— E onde é que ela está? — A pergunta brotou dos lábios de Dylan antes
mesmo de Eliza terminar de falar.
A mulher pareceu divertida pela avidez dela, e os seus lábios estremeceram
num arremedo de sorriso.
— Qualquer porta.
— O quê? — O tom de Dylan era cortante, impaciente. — Como assim?
— Qualquer porta te levará até lá. Não tem que ver com a porta, mas sim
contigo.
— Isso não pode estar certo. — Dylan abanou a cabeça, aborrecida. — Se
qualquer porta servisse, toda a gente tentaria.
— Não, estás enganada — contradisse Eliza gentilmente.
— Claro que sim! — explodiu Dylan. Estava a ficar zangada, a achar que
isto fora uma perda de tempo.
— Não — repetiu Eliza. — Porque, quando a maioria das pessoas tenta
abrir a porta... e tens razão, são muitas as que tentam... sempre que a tentam
abrir, a porta tranca-se.
— É este lugar — murmurou Dylan. — É como uma prisão. Não nos deixa
sair.
Eliza abanou a cabeça.
— Sei que a maior parte das pessoas não quer voltar — continuou Dylan
—, mas deviam poder fazê-lo, se quisessem.
— Estás enganada — insistiu Eliza. — Não é este lugar. São as almas; elas
é que se travam a si próprias.
— Como? Porquê? — Dylan inclinou-se ainda mais para a frente.
— Não querem realmente partir. Não, não é bem isso. Querem partir, mas,
mais do que isso, não querem morrer. No fundo, sabem que atravessar
novamente as terras perdidas será provavelmente a sua morte, e é essa
perspetiva que as detém. Porque sabem que, se forem pacientes, voltarão a
ver os seus entes queridos. Não podem correr o risco de tentar e falhar.
Dylan ouviu o aviso implícito nas palavras. Mas o que Eliza não sabia era
que, por mais que ela esperasse, Tristan nunca voltaria para ela.
— E como é que fazemos a porta abrir-se?
Eliza abriu as mãos, como se a resposta fosse óbvia.
— Tens de desejar voltar, mais do que desejas a sobrevivência da tua alma.
Dylan pensou nisso. Seria o caso dela? Achava que sim. E, ao que parecia,
não perderia nada em experimentar abrir a porta para ter a certeza. Mas,
mesmo que voltasse para as terras perdidas, o que faria depois? Como
encontraria Tristan no meio de todas aquelas esferas e almas? Duvidava que
Eliza lhe pudesse dizer isso. Teria alguma vez existido uma alma que
quisesse voltar para junto do seu barqueiro? E o que faria quando o
encontrasse? Para Dylan, tanto lhe fazia que ela e Tristan viessem para aqui
ou regressassem ao mundo real. Até podiam ficar a viver nas terras perdidas.
Estremeceu quando pensou em tornar a enfrentar os espetros, mas fá-lo-ia, se
isso significasse que podia estar com Tristan.
Eliza suspirou, arrancando Dylan aos seus pensamentos.
— São sempre os mais jovens que querem voltar — murmurou. — Sempre.
— Nunca se sentiu tentada? — perguntou Dylan, momentaneamente
distraída.
Eliza abanou a cabeça e uma sombra sofredora encobriu-lhe os olhos.
— Não, rapariga. Eu já era velha, sabia que não teria de esperar muito até o
meu marido se juntar a mim.
— Onde é que ele está? Está aqui? — perguntou Dylan, antes de perceber
que estava a ser indelicada.
— Não. — A voz de Eliza era um sussurro tão baixo que quase
desapareceu. — Não, ele não conseguiu atravessar as terras perdidas.
— Lamento muito — murmurou Dylan de olhos baixos, envergonhada.
O rosto de Eliza fechara-se e as lágrimas ameaçaram derramar-se dos seus
olhos, mas depois recompôs-se, endireitou as costas e fungou.
— Suponho que queres saber o que acontece quando conseguires voltar —
disse.
Dylan encolheu os ombros. Não estava mais ansiosa por voltar à sua vida
anterior do que estaria por voltar para ali. No entanto, seria estranho não
parecer interessada. Não estava certa de querer confessar as suas verdadeiras
intenções a Eliza. Seria diferente de contar a Jonas.
— Ouvi dizer... — Mais uma vez, Eliza tentou fazer Dylan compreender os
riscos que correria. — Ouvi dizer que, se conseguires regressar ao teu corpo,
consegues tornar a entrar nele.
— Ainda lá estará? — Dylan fez uma careta de horror, esquecendo, por um
instante, que isso não fazia parte dos seus planos. — Com certeza que já o
devem ter levado. A minha mãe já me deve ter enterrado. Oh, meu Deus, não
voltaria a aparecer no caixão, pois não? E se ela me cremou? — O pânico e a
repugnância transformaram-lhe as últimas palavras num guincho agudo.
— Dylan, o tempo parou. Para ti, pelo menos. O teu corpo estará
exatamente onde o deixaste.
Dylan acenou com a cabeça. Fazia sentido. Estavam a começar a formar-se
planos na sua mente. Conseguia ver-se a remar através do lago, a atravessar o
vale. Pensou no terreno vermelho-sangue, no céu chamuscado, mas nem
mesmo essas imagens terríveis a conseguiam demover. Sabia que ia tentar. Ia
conseguir abrir a porta, de alguma maneira, e ia tentar. Encontraria Tristan.
Sorriu para si própria. Quando ergueu a cabeça, viu Eliza a observá-la
atentamente.
— Há mais qualquer coisa — disse a velha mulher, devagar. — Alguma
coisa que não estás a dizer-me. — Os seus olhos perscrutaram o rosto de
Dylan. Era desconfortável, como se estivesse a tentar ver dentro dela. Dylan
fez uma careta e conteve a vontade de desviar o rosto. — Tu não queres
voltar — disse ela, pensativa. — Não queres voltar para o teu corpo, pelo
menos. Do que estás à procura, Dylan?
De que adiantava mentir? Dylan mordeu o lábio e decidiu confiar nela. De
qualquer maneira, já se decidira, independentemente do que Eliza pudesse
dizer-lhe. Talvez a velha mulher até a conseguisse ajudar.
— Quero encontrar o meu barqueiro — admitiu, baixinho.
O rosto de Eliza ficou impassível. Apenas um ligeiro franzir dos lábios
revelou as suas emoções enquanto refletia sobre as intenções de Dylan.
— Isso é mais difícil — disse, após um minuto penoso.
O coração de Dylan começou a correr.
— Mas não é impossível?
— Talvez não seja impossível.
— O que tenho de fazer?
— Tens de o encontrar.
Dylan pestanejou algumas vezes, confusa. Isso não era difícil. Ele estava a
conduzir outra alma. Bastava-lhe esperar numa das casas seguras e — mais
cedo ou mais tarde — ele apareceria.
Depois lembrou-se. Lembrou-se de ver os contornos fantasmagóricos a
moverem-se na paisagem cor de sangue. Lembrou-se das hordas de espetros
negros que os seguiam a cada passo. E das esferas. As esferas brilhantes que
iluminavam o caminho, que davam às almas algo para seguir, que as
mantinham seguras. Seria isso tudo o que Tristan era para ela agora, uma
esfera luminosa? Se assim fosse, como conseguiria distingui-lo dos milhares
de outros?
Saberás, disse uma vozinha no fundo da sua mente. Mas só o disse uma
vez. Muito baixinho. Porque o resto do seu cérebro consciente atacou esta
vozinha com toda a força do seu desdém. Isto não era um filme romântico
lamechas. Era a vida real. Se Tristan fosse uma daquelas coisas, se ela não o
conseguisse ver nem ouvir, nunca conseguiria identificá-lo.
— Como posso encontrá-lo? — perguntou. — Eu vi os outros barqueiros
nas terras perdidas. Não são pessoas, são apenas...
— Luz — terminou Eliza por ela. Dylan assentiu, já que era uma descrição
tão boa como outra qualquer. — No entanto — continuou —, ele ainda é o
teu barqueiro. Mesmo que já tenha conduzido outra alma depois disso.
Mesmo que já tenha conduzido mil almas. Se o vires, deves vê-lo como
sempre o viste.
Os olhos de Dylan iluminaram-se. Então havia uma hipótese... era possível.
Ouviu Jonas pigarrear atrás dela e virou-se com um sorriso radiante. Fora
apenas um palpite que a levara a procurá-lo — quanto tempo teria demorado
a descobrir estas respostas sozinha? Quantos longos anos teria Eliza
demorado a compreender como este lugar funcionava?
— Como sabe todas essas coisas? — perguntou-lhe Dylan, ainda
sorridente.
A velha mulher suspirou.
— Já te disse... e não podes mesmo esquecer-te disto, Dylan... não as sei.
Acredita em mim. É um risco tremendo. — As suas dúvidas não conseguiam
destruir o entusiasmo súbito de Dylan, por mais que estivesse decidida a
tentar. — Mesmo que o encontres... o teu barqueiro... durante quanto tempo
achas que conseguirás escapar aos demónios?
— Ficaremos nas casas seguras — disse Dylan. — Eles não podem entrar.
— Tens a certeza? Estás a mudar as regras do jogo, Dylan. Como sabes que
as casas seguras ainda lá estarão, ainda funcionarão para ti? E os deveres do
teu barqueiro para com as outras almas?
Dylan franziu a testa, apanhada desprevenida pelas palavras de Eliza.
— Bom, então não ficaremos nas terras perdidas — afirmou, mas já não
falou em tom tão confiante.
Eliza riu-se, mas tinha uma expressão de comiseração no rosto.
— E para onde irão?
— Ele pode vir comigo? — Foi uma pergunta tímida, sussurrada. O
coração de Dylan, que ainda há pouco batia tão depressa, estava agora como
que suspenso, com medo da resposta.
— Para onde?
— Para aqui. Para lá. Para qualquer lado. Tanto faz.
— Este não é o lugar dele.
— Nem o meu — retorquiu Dylan. Tentou ignorar a forma condescendente
como Eliza lhe sorriu.
— E o lugar dele também não é contigo. Ele não é humano, Dylan. Não
sente o que nós sentimos, não sangra.
— Sangra, sim — retorquiu Dylan baixinho. Queria dizer a Eliza que ele
também conseguia sentir, que ele a amava, mas sabia que a velha mulher não
acreditaria nela. Não queria ter de defender as palavras de Tristan quando não
tinha a certeza de ela própria acreditar completamente nelas.
— O quê? — perguntou Eliza, parecendo insegura pela primeira vez.
— Ele sangra — repetiu Dylan. — Quando... quando os demónios o
apanharam, quando o arrastaram para baixo, feriram-no. Mas ele voltou para
mim. E vinha coberto de arranhões e nódoas negras.
— Nunca ouvi falar de nada assim — admitiu Eliza lentamente. Olhou para
Jonas, que estava atrás de Dylan, e ele também abanou a cabeça.
— Eu vi — insistiu Dylan. Inclinou-se para a frente e olhou para Eliza. —
Será que ele pode ir comigo? Se não puder ser para aqui, então de volta? Ao
mundo real?
A alma antiga baloiçou-se na cadeira enquanto pensava nisso. Por fim,
abanou a cabeça. O coração de Dylan gelou.
— Não sei — disse ela. — Talvez. É o máximo que posso dizer. É um
risco. — Fitou Dylan com uma expressão dura. — Achas que vale a pena
corrê-lo?
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::::
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— Estou morta.
Não era uma pergunta, pelo que Tristan não se deu ao trabalho de
responder. Continuou a olhar para as chamas que dançavam na lareira e o
mergulhavam numa espécie de transe semiconsciente. Detestava aquela parte.
Detestava as lágrimas e os gemidos e as súplicas. Tinham chegado quase ao
vale sem que a mulher se tivesse apercebido do que se passava. E podiam ter
conseguido alcançar a divisória — uma proeza que Tristan nunca conseguira,
com os milhares de almas que conduzira —, se não fossem os espetros. Esta
alma, esta mulher, era tão tímida, tão dócil e obediente que nem por uma vez
questionara a palavra de Tristan. Tornara-se até quase irritante, como se fosse
uma folha em branco, completamente vazia. Mas, pelo menos, era
conveniente.
Os espetros, contudo, nunca deixariam uma pessoa tão inocente e ingénua
passar pelas terras perdidas sem lutarem por ela. Tinham-se atrevido a
enfrentar o sol, recorrendo às sombras de árvores e arbustos para montar o
seu ataque. Fora fácil escapar-lhes, mas tinham feito muito barulho. E Tristan
não podia fazer nada para impedir que a mulher olhasse na direção do som.
— O que me aconteceu? — A voz dela era um sussurro assustado.
Tristan pestanejou, regressando ao presente, e virou-se para ela. A mulher
tinha os ombros curvados e os olhos muito abertos, os braços apertados à
volta do peito, como se tentasse abraçar-se a si própria. Olhou para ela e para
a sua expressão patética e obrigou-se a não sentir absolutamente nada. De
qualquer modo, era o barqueiro dela e tinha de lhe responder.
— A tua casa foi assaltada. O ladrão apunhalou-te enquanto dormias.
— E aquelas... coisas, lá fora, o que são?
— Demónios, espetros. — Não disse mais do que isso. Não queria ter de
dar grandes explicações.
— O que querem fazer comigo?
— Se te apanharem, devoram-te a alma e tornas-te um deles. — Tristan
afastou o rosto para não ter de ver o terror no dela. Mesmo contra vontade,
começava a sentir pena dela, e não podia dar-se a esse luxo. Nunca mais.
O silêncio que se seguiu prolongou-se tanto que Tristan quase se virou para
olhar para a mulher. Depois ouviu um leve soluço. Ela estava a chorar, e isso
era algo que não queria ver.
— Ao princípio, pensei que me ias assaltar, sabes? — disse ela baixinho,
em tom mais calmo do que ele esperava. Soltou uma risada desprovida de
humor. — Quando te vi em frente da minha casa, pensei que fosses um dos
bandidos do bairro e que me quisesses roubar. Estive quase a chamar a
Polícia.
Tristan acenou com a cabeça sem olhar para ela. Era a forma como estava
vestido: a sua idade, o seu rosto. Não era a aparência certa para esta mulher.
Devia ter sido alguém mais velho, um cavalheiro de ar distinto. O tipo de
homem em quem ela confiasse. Não devia ser o mesmo rapaz que fora buscar
Dylan ao comboio.
Porque não mudara? Não fazia sentido. Nunca tinha mantido a mesma
forma de uma alma para a outra. E depois, quando estavam a deixar a rua da
casa da mulher, podia jurar que vira alguém a olhar para ele. Não
compreendia o que se passava, mas não lhe agradava. Assim era mais difícil
esquecer Dylan, tentar deixar a dor para trás.
— O que teria acontecido — perguntou ela, por fim —, se eu tentasse fugir
de ti?
Tristan falou sem desviar o olhar das chamas.
— Eu ter-te-ia detido.
Em silêncio, a mulher refletiu nestas palavras. Tristan tentou perder-se
novamente num semitranse, mas não conseguia desligar os pensamentos. Deu
por si a desejar que a mulher falasse, só para aliviar a tensão. Momentos
depois, ela fez-lhe a vontade.
— Para onde vamos?
Claro que tinha de fazer essa pergunta. Tristan formulara uma resposta
modelo há muitos anos.
— Estou a guiar-te através das terras perdidas. Quando concluíres a
viagem, estarás em segurança.
— E onde é que estarei? — insistiu ela.
— Além.
Além. Eles seguiam sempre para além. E ele voltava para trás. Há muito
que se reconciliara com esta grande injustiça e que isso deixara de o
incomodar. Até...
Abriu a boca, enquanto uma mensagem começava a formar-se na sua
mente. A mulher tinha uma eternidade pela frente, com certeza que podia
perder alguns momentos para procurar uma alma, se ele lho pedisse? Porém,
antes de conseguir decidir o que queria dizer, fechou novamente a boca.
Dylan estava onde ele nunca a conseguiria alcançar. Nem com as mãos,
nem com palavras. E de que adiantava enviar-lhe uma mensagem, quando ela
não tinha forma de lhe responder?
Suspirou.
— Amanhã temos uma viagem perigosa pela frente — começou.
O vale seria complicado. Tinha de se concentrar. Tinha de ser o barqueiro.
::::
As terras perdidas não estavam mais frescas sob a primeira luz da manhã.
Dylan estava à porta da casa segura há já algum tempo, a debater consigo
própria. Já havia espetros lá fora, a esvoaçar sobre a superfície do lago, como
pássaros. Mais uma vez, não se tinham aproximado dela. A casa segura
parecia estar a funcionar. Podia ficar ali. Ficar ali, em segurança, e esperar
por Tristan. Mas, e se ele não conseguisse chegar até lá? E se a alma que
conduzia fosse demasiado velha, ou demasiado lenta? Além disso, estava
ansiosa por o ver. A ideia de esperar, fosse o tempo que fosse, era agonizante.
Tinha de o encontrar.
Mas o lago... Quase se afogara, da última vez. Caíra para a água, onde se
debatera enquanto as criaturas das profundezas brincavam com ela, puxavam,
empurravam, rasgavam. Se não fosse Tristan, nunca teria saído daquela água.
Lembrava-se do sabor dela. Fétida, estagnada, poluída. E espessa, como óleo
sobre a sua língua. E isso fora nas terras perdidas como ela as criara, com
urze e colinas.
Nestas terras perdidas ardentes era ainda pior. A água fervilhava, venenosa
e fumegante. Não parecia suficientemente substancial para suportar o peso do
velho bote, mas este continuava onde o tinham deixado, a baloiçar à
superfície. Era um alívio. Dylan temera que se tivesse afundado, ou que
tivesse dado à costa feito em pedaços. Mas ali estava ele.
No meio do lago.
Suspirou enquanto pensava. Só tinha duas opções: entrar na água para o ir
buscar, ou contornar o lago. Caminhar era muito mais apetecível do que
entrar na água negra e oleosa, com as coisas escondidas nas profundezas
turvas. Mas era um longo caminho. Estaria a correr contra o sol e não estava
certa de conseguir vencer a corrida.
Portanto, era apenas uma escolha entre o que seria pior: a água ou a noite?
Tristan achara que o pequeno bote era a melhor opção, apesar dos perigos
do lago. Isso devia significar que o caminho por terra era demasiado longo —
e, nesta versão das terras perdidas, demasiado quente — para o conseguir
fazer antes de anoitecer. E ela já sobrevivera uma vez às águas geladas do
lago. E nunca tinha estado fora de uma casa segura durante a noite.
O lago, então. O ranger dos seus pés sobre as pedrinhas da margem era o
único som que se ouvia enquanto descia a leve inclinação até à água. Ainda
era muito cedo para se verem outras almas. Deviam estar todas a sair das suas
casas seguras, tal como ela, preparando-se para atravessar o lago. Pensara
nelas durante as longas horas em que esperara pelo nascer do dia, enquanto
tentava sem sucesso bloquear os gritos dos espetros. Não conseguia ver as
outras casas seguras, mas sabia que deviam ser perto. De certa forma, Dylan
estava contente por estar sozinha. As outras almas deixavam-na pouco à
vontade. Eram sinistras... estranhas. E, embora soubesse que era ridículo,
tinha inveja delas por ainda terem os seus barqueiros, quando ela precisava de
ir à procura do dela.
E não tinha a mais pequena ideia de como o faria. Mas recusava-se a pensar
nisso ainda. Um passo de cada vez — era a única maneira de sobreviver
naquele lugar. E o próximo passo era atravessar o lago.
Quase desistiu à beira da água. As pequenas ondas que rebentavam na areia
molharam-lhe as biqueiras dos ténis. Avançar significava deixar o líquido
repugnante tocar-lhe na pele e dar às criaturas escondidas uma oportunidade
de a apanharem. Dylan hesitou, mordendo o lábio, mas não havia mesmo
alternativa. Era ir em frente ou voltar para trás. Respirou fundo e forçou-se a
avançar.
Um frio gelado e um calor ardente. As duas sensações atingiram Dylan em
simultâneo. O líquido, mais denso do que água, lutava contra cada um dos
seus passos. Cobriu-lhe os joelhos, depois as ancas. Embora não conseguisse
ver o leito do lago, foi arrastando os pés com cuidado, sobre a mistura
instável de areia e pedras. Até aí, tudo bem. Era extremamente desagradável,
mas continuava em pé e ainda não sentira as garras de nenhum demónio.
Mais alguns passos e teve de levantar os braços para não molhar as mãos.
Sentiu a água negra na barriga, agoniada. Esperava conseguir chegar ao
pequeno bote antes de ficar sem pé.
Fixou os olhos nele. Não estava realmente no meio do lago, mas ainda
tinha o comprimento de uma piscina a separá-la dele. As suas esperanças de
não ter de nadar dissiparam-se ao dar mais um passo que a deixou com água
pelo peito, e o passo seguinte com água pelo pescoço. Levantou o queixo,
tentando manter a boca fora de água, mas os vapores nauseabundos entraram-
lhe pelo nariz, causando-lhe vómitos. Estava a tremer de frio, de tal forma
que quase não sentiu algo a deslizar lentamente em volta da sua perna
esquerda, e depois do tornozelo direito. E da barriga.
Quase.
— Merda! — gritou. Baixou os braços violentamente para tentar espantar o
que quer que estivesse a agarrar-lhe no casaco. Sentiu escamas ásperas
roçarem-lhe nos dedos antes de a criatura se afastar. Pouco depois, contudo,
apareceu novamente por trás dela e puxou-a pelo capuz do casaco, que lhe
apertou a garganta à frente.
Dylan debateu-se com as mãos e os pés. Gotas de água oleosa salpicaram-
lhe o cabelo, as faces, entraram-lhe nos olhos e na boca. A cuspir, cega,
arrancou o casaco das mandíbulas da criatura e precipitou-se para a frente, na
direção do bote, tentando nadar e lutar ao mesmo tempo. Era deselegante e
cansativo, mas conseguiu impedir as criaturas de a agarrarem e estava cada
vez mais perto do barco. Quase lá. Esticou o braço para se agarrar à beira do
bote. Já o apanhara. Mas depois, subitamente, não conseguia respirar. Três
dos demónios tinham cravado os dentes no casaco e a força combinada dos
três era demasiada para se conseguir libertar.
Eles mergulharam no lago gelado, puxando-a consigo. Dylan abriu a boca
para gritar precisamente quando a água se fechou sobre a sua cabeça,
entrando-lhe pela boca, densa e tóxica. Em pânico, soltou todo o ar que tinha
nos pulmões, demasiado desesperada por limpar a boca para conseguir
pensar. Assim que os seus pulmões se contraíram, lutaram para inspirar.
Dylan fechou a boca com força e combateu o desejo de respirar. Enquanto
isso, estava cada vez mais fundo, e desta vez não tinha Tristan para a salvar.
Tristan. Viu o rosto dele na sua mente com uma clareza absoluta. Isso deu-
lhe forças para lutar. Abriu o fecho do casaco, torceu-se e conseguiu despi-lo,
e depois agitou as pernas desesperadamente para voltar à superfície. Subiu e
subiu, durante um tempo que lhe pareceu interminável. Com certeza que não
estava assim tão fundo! Estaria a nadar na direção errada? A descer ainda
mais? Não conseguia controlar por muito mais tempo a necessidade de
respirar.
Precisamente quando pensava que ia perder os sentidos, a sua cabeça
rompeu a superfície e inspirou grandes golfadas de ar. Apalpou, às cegas, à
procura do barco, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelo rosto, deixando
rastos na cola negra que lhe cobria a pele. Segurou-se com ambas as mãos e
conseguiu içar-se para dentro do bote.
Ficou deitada no fundo da embarcação durante um momento, de cara para
baixo, ofegante, a tentar perceber se tinha alguma coisa agarrada aos
tornozelos antes de se virar para enfrentar os horrores, mas não sentia nada
além do frio. Com dificuldade, virou-se e sentou-se no banco de madeira
duro. Todo o corpo lhe tremia, tanto do frio como do choque, e sentia a
cabeça a andar à roda. Estava também ensopada, com as roupas cobertas
daquela água viscosa. Mas estava viva.
Agora tinha de remar. Não havia remos, uma vez que o barco se virara da
última vez, mas lembrou-se de que também dessa vez o barco não tinha
remos — ao princípio. Dylan fechou os olhos, esticou as mãos e procurou
com os dedos.
— Vá lá, vá lá — murmurou, arranhando as tábuas. — Fizeste-o pelo
Tristan. Como raio queres que atravesse?
Nada. Dylan abriu os olhos e olhou para o lago. Eram pelo menos
oitocentos metros até à outra margem, e o ar estava completamente calmo,
sem qualquer vento que pudesse empurrá-la — de qualquer maneira, não
tinha vela. E nem pensar que ia tentar nadar. Nada a conseguiria arrancar de
dentro deste barco.
— Raios! — gritou, com a voz muito estridente no meio do silêncio. —
Odeio este lugar! Dá-me lá o raio dos remos!
Bateu no lado do barco, e depois virou-se e atirou-se de novo para cima do
banco, completamente perdida.
Os remos estavam muito bem encaixados nos seus apoios, à espera dela.
Dylan fitou-os, estupefacta.
— Oh! — exclamou. Depois olhou para o céu, insegura. — Obrigada?
Não sabia com quem estava a falar, se é que havia alguém, e sentiu-se
idiota, apesar de não haver ninguém por perto para a ver. Pegou nos remos,
mergulhou-os na água negra e começou a remar.
Remar era difícil. Dylan recordava-se vagamente de Tristan se ter rido dela
quando lhe perguntara se ele queria que ela remasse, dizendo qualquer coisa
sobre não querer ficar no lago para sempre. Não parecia muito difícil quando
era ele a fazê-lo, mas Dylan estava a achar quase impossível. O bote não ia na
direção que ela queria, e tentar movê-lo sobre a água coberta daquela
estranha neblina era como tentar puxar o peso do mundo. Pior ainda, as suas
mãos estavam sempre a escorregar nos remos e ao fim de dez minutos já
tinha uma bolha na parte de dentro do polegar. O seu progresso era muito,
muito lento.
Mais ou menos a meio do caminho, algo a distraiu momentaneamente das
dores nos braços. Um barco passou por ela na direção oposta. Deslizava
lentamente sobre a água, com os seus ocupantes a tremeluzirem, indistintos.
Depois de esse primeiro barco passar apareceu outro, e outro. Pouco depois, a
superfície do lago estava coberta de pequenos botes, uma frota indolente que
criava uma espécie de nevoeiro a pairar sobre o lago.
Era muito mais difícil não olhar para estas almas. Dylan tinha de estar
virada na direção de onde eles vinham. Tentou manter os olhos na proa do
seu próprio barco, mas era uma luta combater a vontade de olhar para cima.
Principalmente quando um dos barcos teve problemas. A água à volta do
seu bote continuou calma, mas, mesmo sem levantar a cabeça, Dylan
percebeu o que se passava. Primeiro, o barulho mudou. Em vez do som suave
da água a embater na madeira e do murmúrio distorcido de uma centena de
conversas, ouviu um lamento agudo. Não era o som gutural dos espetros, mas
sim proveniente de uma das almas. Dylan tinha a certeza. Depois havia a luz.
O discreto brilho branco das esferas mal se notava sob a luz incandescente e
vermelha do Sol. Porém, da direção do grito, a esfera mais próxima brilhou
intensamente. Era como se, de repente, ela tivesse tirado uns óculos de lentes
coloridas e o mundo parecesse momentaneamente normal.
Viu imediatamente o barco. Estava mesmo à sua frente, talvez a cem
metros dela, e baloiçava de um lado para o outro como se estivesse a ser
atacado por um furacão. Era difícil de ver, porque a esfera que flutuava no
centro do barco brilhava tanto que lhe feria os olhos. Mesmo assim, não
conseguiu desviar o olhar. Era como se a esfera estivesse a chamá-la. Não,
compreendeu de súbito. Estava a chamar a sua alma... mas a alma estava a
ignorá-la.
A alma estava a olhar para a água.
Perante os olhos de Dylan, a água ergueu-se e formou uma silhueta
distorcida que, de onde ela estava, parecia uma garra. A garra destacou-se do
lago, separou-se, e transformou-se numa dezena, não, duas dezenas de
criaturas mais pequenas. Como morcegos.
As criaturas do lago.
Formaram um enxame sobre a alma e o barco começou aos saltos, quase a
virar. Como se tivessem estado à espera de autorização, alguns espetros que
esvoaçavam por cima, arriscando o sol, juntaram-se ao ataque.
— Não! — gritou Dylan, vendo, um segundo antes de acontecer, que o
barco ia virar.
Mal a palavra lhe escapou dos lábios tapou a boca com a mão, mas era
tarde demais. Tinham-na ouvido. As criaturas do lago continuaram a puxar a
outra alma para as profundezas, indiferentes à esfera, que estava agora a
pulsar furiosamente. Depois os espetros lançaram-se sobre ela. Sem esfera,
sem barqueiro para a proteger, não precisavam de esperar pela escuridão para
se banquetearem com ela.
— Raios! Maldição! Idiota!
Dylan começou a remar como uma louca, mergulhando os remos na água o
mais depressa que conseguia e empurrando-os com toda a sua força. Mas não
era suficiente. Nem de longe. Os espetros voavam rente aos vapores como se
se alimentassem deles. No tempo em que ela remou três vezes, já tinham
percorrido metade da distância. Conseguia ouvir os seus rosnidos de
antecipação.
Era agora. Ia morrer.
Dylan parou de remar e parou de respirar. Olhou para eles, à espera. Sabia
exatamente qual seria a sensação quando lhe trespassassem o peito: como
gelo no coração. Nos seus últimos segundos, perguntou-se quanto tempo
duraria e se doeria muito.
Quando os demónios percorreram os últimos metros, fechou os olhos. Não
queria ver-lhes as caras.
Mas não aconteceu nada.
Eles ainda ali estavam, tinha a certeza disso. Conseguia ouvi-los, a silvar e
a rosnar e a guinchar, mas não sentia nada. Nada, além do bater do seu
coração e do suor gelado que lhe deslizava pelas costas, apesar do calor
intenso do sol sanguinolento. Confusa, Dylan entreabriu os olhos, deixando
penetrar um raio de luz vermelha sob a pálpebra.
Eles ainda ali estavam; conseguia vê-los à sua volta. Fechou os olhos com
força outra vez, franzindo o rosto. Porque não estavam a atacar? Era difícil de
aceitar, difícil de acreditar que podiam estar tão perto e não lhe tocar... só
porque tinha os olhos fechados? Mas não havia outra explicação. Quase sem
se atrever a respirar, Dylan estendeu os braços e, às apalpadelas, procurou os
remos. Com muito cuidado, mergulhou-os na água e começou a remar. Uma
remada de cada vez, foi avançando através da água. Os rosnidos
transformaram-se num trovão, mas era um som de frustração e nada lhe
tocou.
— Não olhes, não olhes, não olhes — entoou Dylan entre dentes,
murmurando as palavras ao ritmo dos remos, a tremer com o esforço. Pior
ainda, não conseguia ver para onde ia, e sabia que não era boa remadora o
suficiente para remar em linha reta. Quem sabia onde iria parar, mas, desde
que fosse fora de água, dar-se-ia por feliz. Tentou lembrar-se da distância que
ia desde a praia até à casa segura do outro lado da colina. Não lhe parecera
muito; só uma colina. Só uma colina. Só uma colina. Concentrou-se nesse
pensamento. Nisso, e em manter os olhos fechados.
Um solavanco atrás dela quase deitou por terra todo o seu trabalho árduo.
Por um segundo, pensou que os espetros estavam a atacar. Abriu os olhos
instintivamente, em pânico, antes de os obrigar a fecharem-se de novo.
Apanhou um breve vislumbre de algo escuro a mergulhar em direção a ela
antes de apertar novamente as pálpebras, franzindo todo o rosto para as
manter fechadas. Tentou remar, tornar a mergulhar os remos na água, mas
eles bateram em qualquer coisa dura e lançaram um choque doloroso para
ambos os seus pulsos. Depois ouviu algo a raspar, um som estridente que lhe
lançou vagas de adrenalina pelas veias antes de o cérebro conseguir
raciocinar.
Era a praia. Conseguira chegar a água rasa. O bote já não baloiçava
suavemente; estava encalhado na areia.
Sair do bote de olhos fechados não era fácil. Mesmo encalhado, como
estava, o pequeno barco inclinou-se e abanou quando ela se mexeu, fazendo-a
gritar e perder o equilíbrio. Depois, quando se atirou sobre a borda, a queda
pareceu-lhe assustadoramente longa. Quando os seus pés tocaram no chão, o
choque lançou-lhe agonia e frio pelas pernas acima.
Estava na água.
VINTE E SEIS
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Quando o dia nasceu, o céu estava limpo e azul. Dylan, à porta da casa
segura, olhou para cima, grata. Estas terras perdidas eram mil vezes melhores
do que a fornalha no deserto que tivera de atravessar antes. Tristan também
sorriu quando espreitou atrás dela e viu o tempo.
— Sol — comentou, olhando para o azul brilhante.
Dylan sorriu-lhe maliciosamente. Os olhos dela eram de um verde muito
mais vibrante e belo do que as tonalidades da vegetação. Tristan não
conseguiu conter um sorriso, apesar do peso que tinha no estômago.
Aquilo não ia resultar, mas Dylan recusava-se pura e simplesmente a
acreditar nisso. Estava com medo de ver a desilusão dela, a desilusão que
sabia, no fundo do coração, ser inevitável, portanto tentou afastar esses
pensamentos de momento. Ela estava ali, em segurança, e Tristan queria
tentar aproveitar este tempo extra que podia passar com ela. Era mais do que
alguma vez ousara sonhar.
Só esperava que não acabasse com uma pena a desenhar delicadamente um
traço sobre o nome dela numa página do seu livro.
— Vamos — disse Dylan, saindo para o caminho à frente dele. O vale
parecia largo e convidativo, banhado pela luz da manhã, mas Tristan ficou à
porta, a vê-la afastar-se.
Dylan percorreu cerca de cem metros antes de se aperceber de que não
ouvia os passos dele atrás de si. Tristan viu-a parar, com a cabeça meio
inclinada, à espera de o ouvir. Um segundo depois, girou sobre si própria,
com alarme nos olhos, até que o viu exatamente onde o deixara.
— Vamos — repetiu, com um sorriso encorajador.
Ele apertou os lábios.
— Não sei se consigo — gritou ele em resposta. — Vai contra tudo, contra
todas as regras.
— Tenta — pediu Dylan.
Tristan suspirou, exasperado. Prometera-lhe que tentaria. Fechou os olhos e
concentrou-se nos pés. Mexam-se, pensou. Não estava à espera que
acontecesse nada; esperava ficar pregado ao chão por uma pressão
invencível.
No entanto, desceu facilmente para o caminho.
Tristan estacou de imediato. Mal se atrevia a respirar, à espera de um
relâmpago, de uma dor súbita. Qualquer coisa para o castigar por estar a
desobedecer às suas ordens tácitas. Mas não aconteceu nada. Incrédulo e
desconfiado, continuou a andar em direção a Dylan.
— É estranho — confessou em voz baixa quando chegou junto dela. —
Estou sempre à espera de que alguma coisa me impeça de continuar.
— Mas por enquanto nada?
— Por enquanto nada.
— Ótimo! — Encorajada, Dylan entrelaçou os dedos nos dele e começou a
andar. Após um leve puxão, Tristan seguiu-a.
O vale não representou qualquer dificuldade. Na verdade, foi quase uma
caminhada agradável. Podiam ser apenas um casal de jovens, a passear no
campo de mão dada. Não havia sinais dos espetros, nem sons. Era aflitivo
saber que eles estavam ali, a pairar junto ao seu ombro, à espera de que ela
perdesse a concentração e se afastasse da sua esfera. Queria perguntar a
Tristan o que estava ele a ver, se eram as colinas verdes cobertas de erva e
urze que ela via, ou as terras perdidas como verdadeiramente eram. Algo,
contudo, a impediu de o fazer. Temia que, se falasse nisso, se chamasse a
atenção para o assunto, a miragem se desintegrasse e dessem por si
novamente sob o sol vermelho escaldante. Sabia que essa paisagem seria
muito mais difícil de atravessar. Não — olhos que não veem, coração que não
sente, pensou.
Para além do vale estendia-se o vasto pântano. O tempo ameno não fizera
nada para secar as poças de água estagnada ou a lama grossa. Dylan olhou
para o cenário com desagrado, lembrando-se de como a lama lhe sugara os
pés. Depois da tranquilidade do vale, era um poderoso lembrete de que estava
ainda nas terras perdidas, de que o perigo continuava a rondá-la.
Ao seu lado, Tristan soltou um suspiro teatral. Olhou para ele, confusa, e
viu que ele tinha um brilho divertido nos olhos. Com um sorriso paciente, ele
sugeriu:
— Cavalitas?
— És maravilhoso — respondeu ela.
Tristan revirou os olhos, mas virou-se para ela lhe saltar para as costas.
— Obrigada — murmurou-lhe ao ouvido, depois de estar em posição.
— Bem podes agradecer — respondeu ele em tom contrariado, mas ela viu
as suas faces contraírem-se num sorriso.
Sentia-se pesada às costas dele, e os braços rapidamente ficaram cansados
da força que fazia para se segurar, mas Tristan nunca se queixou enquanto
atravessava o lamaçal. Mesmo com o peso extra, parecia não se afundar.
Pouco depois, o pântano era apenas uma memória distante e Dylan deu por si
a olhar para a colina enorme que a aguardava pacientemente. Franziu o nariz
e soprou, irritada; duvidava que conseguisse convencer Tristan a levá-la às
cavalitas pela encosta acima.
— Em que estás a pensar? — perguntou ele.
Dylan não queria admitir as suas maquinações, por isso fez uma pergunta
que já tinha há algum tempo na cabeça.
— Estava a pensar... para onde foste? Depois de me deixares?
Ela contara-lhe todos os pormenores da sua história na noite anterior, mas
evitara propositadamente fazer essa pergunta. Não quisera abordar o assunto
do que ele fizera, de como a enganara. Como a traíra.
Tristan percebeu qual era a verdadeira pergunta.
— Desculpa — disse. — Desculpa ter feito o que fiz.
Dylan fungou baixinho, decidida a não se deixar afetar. Não queria que ele
se sentisse culpado, que soubesse como ficara magoada com a sua traição.
Pelo menos ele não assistira ao seu desespero.
— Não faz mal — murmurou, e apertou-lhe o ombro.
— Faz, sim — discordou ele. — Menti-te, e lamento muito. Mas pensei...
pensei que seria o melhor para ti. — As últimas palavras foram ditas em voz
embargada e Dylan sentiu um nó na garganta. — Quando te vi a chorar,
quando te ouvi a gritar por mim... — Hesitou. — Doeu-me mais do que tudo
o que os espetros alguma vez me fizeram.
— Conseguias ver-me? — perguntou Dylan baixinho.
Ele acenou afirmativamente.
— Só durante um ou dois minutos. — Soltou uma risada seca. —
Normalmente, é a minha parte preferida. Um minuto inteiro em que não sou
responsável por ninguém a não ser por mim. E consigo ver um pouco do
além. Apenas um vislumbre. Do sítio que cada alma considera ser a sua casa.
Dylan, às costas dele, ficou tensa. Lembrava-se de Jonas lhe ter dito que
fora instantaneamente transportado para casa, para Estugarda.
— Isso não aconteceu comigo — recordou-lhe. — Eu não deixei as terras
perdidas.
— Eu sei — suspirou ele.
— Porquê? — questionou ela, pensativa. — Porque será que não fui parar a
lado nenhum?
Contou três dos passos longos e confiantes de Tristan antes de ele lhe
responder.
— Não sei — murmurou, mas faltava às suas palavras a entoação da
verdade.
Assim que o solo se tornou mais firme, Tristan colocou-a no chão. Ao
princípio, Dylan fez beicinho, sentindo falta do calor de estar aninhada contra
ele — e do luxo de não ter de caminhar —, mas ele pegou-lhe na mão e
sorriu. Dylan sorriu também, mas o sorriso rapidamente lhe desapareceu do
rosto quando olhou para a encosta íngreme que tinham pela frente.
— Sabes, detesto mesmo escaladas — reafirmou.
Tristan apertou-lhe os dedos num gesto de conforto e fitou-a com olhar
melancólico.
— Podemos sempre voltar para trás. — Apontou para o pântano.
— Nunca conseguiríamos regressar a tempo — respondeu Dylan. O sol
ainda brilhava forte no céu azul, mas iniciara já a sua curva descendente.
— Pois não — concordou Tristan em voz baixa.
— E não há nada para mim naquela direção — concluiu ela. — Não
voltarei se não puderes vir comigo.
Tristan fez uma careta, mas não tentou discutir.
— Vamos lá, então — disse, e começou a andar.
Caminharam e subiram, e pouco depois Dylan estava ofegante e com as
pernas doridas. Quanto mais subiam, mais o vento soprava, e, à medida que a
tarde progredia, pequenas nuvens começaram a formar-se por cima deles.
Apesar do frio que acompanhava a mudança do tempo, Dylan estava a
transpirar e teve de tirar a mão da de Tristan, envergonhada por ter a palma
húmida. Embora a manhã tivesse sido quente e luminosa, sentiu o
desconforto familiar a instalar-se à medida que o orvalho frio lhe ensopava as
calças.
— Não podemos abrandar? — pediu. — Talvez descansar um pouco?
— Não — respondeu Tristan secamente, mas quando Dylan se virou para
ele, surpreendida, viu que ele estava a olhar para o céu, não para ela. Tinha o
rosto franzido numa expressão de inquietação. — Em breve será de noite.
Não quero que sejas apanhada ao relento.
— Só um minuto — implorou Dylan. — Ainda nem sequer os ouvimos.
Porém, mal as palavras lhe saíram dos lábios, o sussurro do vento mudou.
Surgiu uma segunda melodia, esta mais aguda e lancinante. Uivos e
guinchos. Os espetros.
Tristan também ouviu.
— Vamos, Dylan — ordenou e, ignorando-a quando tentou desviar-se,
pegou-lhe na mão com força e começou a subir rapidamente a encosta.
VINTE E OITO
Tristan sabia que Dylan estava cansada. Ouvia-o nos seus passos pesados,
na respiração esforçada; sentia-o no braço que ficava para trás e o obrigava a
puxá-la a cada passo. Sabia-o, e sentia-se mal, mas se fossem apanhados
naquela colina quando as sombras se instalassem, os espetros não lhes dariam
tréguas. Dylan quase parecia ter perdido o medo deles — ou talvez achasse
apenas que ele conseguiria protegê-la da fome das criaturas —, mas fazia mal
em não dar importância ao perigo. Embora Dylan não o sentisse, os espetros
estavam furiosos. Não só não a tinham conseguido apanhar na sua travessia,
como ela estava agora de volta. E vencera-os. Sozinha. Sem um barqueiro
que a protegesse das suas garras frenéticas.
Os demónios estavam decididos a fazê-la pagar por essa arrogância.
Tristan pensou nas garantias que lhe fizera em tempos — que nunca a
perderia, que nunca deixaria que os espetros a apanhassem. Na altura, estava
perfeitamente confiante disso; agora, não tinha tanta certeza. Graças a Dylan,
o jogo mudara, ele mudara, e não conhecia as novas regras. Contudo, parecia-
lhe que estava a começar a compreender algumas coisas, o que em nada
acalmava os seus receios.
Quando chegou ao cimo da colina, parou por um instante para Dylan
recuperar o fôlego. Não era o pico mais alto que tinham pela frente, se
fizessem o que Dylan queria e conseguissem chegar ao comboio, mas era alto
o suficiente para Tristan conseguir ver a paisagem que se estendia ao longo
de quilómetros em todas as direções.
Viu o coração pulsante dos outros barqueiros a deslocarem-se em sentido
contrário pelas encostas e vales sinuosos, cada um deles tentando levar as
suas almas em segurança, tal como ele estava a fazer. Era estranho;
normalmente não reparava neles. Mas agora sentia-se como um grão de areia
no oceano, a lutar contra a corrente. Todos os seus instintos lhe diziam que
voltasse para trás, para se juntar à peregrinação em direção à linha divisória,
mas contrariou tais instintos.
Com a noite a aproximar-se, seguir nesse sentido significaria a morte de
Dylan.
— Vamos. — Recomeçou a andar. — Estamos quase lá, Dylan. A casa
segura fica no sopé desta colina.
— Eu sei — disse ela calmamente, com a respiração controlada.
Claro que sabia, já lá estivera. Tristan sorriu para si próprio e começou a
descer a encosta, com os pés à procura de um caminho seguro entre a
gravilha.
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Apesar das suas garantias a Tristan, Dylan estava nervosa por regressar ao
túnel do comboio, por tentar voltar a entrar no seu corpo. Pensou no que
Jonas lhe dissera, como a avisara de que encontraria tudo exatamente como
estava quando ela morrera. Quem lhe dera que a carruagem não estivesse tão
escura. Não fazia ideia da gravidade dos seus ferimentos, do que lhe
arrancara a alma da sua concha física. Não fazia ideia das dores que ia sentir
quando acordasse.
E finalmente — o pior de tudo — tinha medo de acordar sozinha. De
conseguir regressar ao mundo, à vida, apenas para descobrir que Tristan
estava certo: não podia ir com ela. Não sabia o que faria se isso acontecesse.
Só podia esperar, rezar para que o destino não fosse assim tão cruel.
Era uma jogada muito arriscada e sentia o estômago às voltas sempre que
pensava nisso, mas não havia alternativa, não havia outra opção. Tristan
estava absolutamente convicto de que não conseguia — não conseguia
mesmo, fisicamente — atravessar para além da linha, e recusava-se a deixá-la
ficar aqui, nas terras perdidas. Que outro sítio lhes restava?
Nenhum.
Eram muitas preocupações, mas, apesar disso, o Sol manteve-se bem alto
no céu ao longo do último dia de caminhada, sem uma nuvem à vista. Dylan
não via outra explicação para isso, a não ser o facto de estar com Tristan.
Acontecesse o que acontecesse, desde que estivesse com ele conseguiria
sobreviver e lidar com todos os obstáculos.
Dylan estava à espera de reconhecer o final da viagem, de conseguir
identificar pontos de referência que lhe indicassem que estavam a chegar, que
lhe permitissem ir-se habituando aos nervos e excitação. Porém, a última
colina era igual à anterior, e à outra antes dessa, e de repente deram por si no
último cume, a olhar para os carris enferrujados.
Tinham chegado. Fora ali que ela morrera. Olhou para a linha de comboio e
quis sentir alguma coisa. Perda ou tristeza — dor, até. No entanto, sentia
apenas a náusea crescente do medo e da ansiedade, os mesmos nervos que
passara o dia inteiro a combater. Tentou afastá-los; a sua decisão estava
tomada.
Enfiou a mão no bolso das calças de ganga e acariciou as pétalas acetinadas
da flor silvestre que Tristan lhe dera. Murchara entretanto, mas Dylan
recusara-se a deitá-la fora e conservara-a como se fosse um talismã. Algo que
a ligava às terras perdidas, que a ligava a Tristan. Só esperava que fosse
suficiente para os manter juntos.
Respirou fundo, tentando acalmar-se.
— Chegámos.
Sabia que não precisava de o dizer. Tristan com certeza vira os carris; eram
a única coisa diferente na paisagem árida.
— Chegámos — concordou ele.
Não parecia nervoso como ela estava. Nem ansioso. Parecia triste. Como se
estivesse convencido de que não ia resultar. Dylan não se deixou abalar pelo
cinismo dele; já era suficientemente difícil silenciar as suas próprias dúvidas.
— E agora, seguimos a linha? — perguntou.
Tristan assentiu com um aceno.
— Está bem. — Abanou os braços para a frente e para trás algumas vezes,
enquanto ganhava coragem. — Muito bem, vamos a isso.
Tristan não se mexeu e ela percebeu que estava à espera de que ela
liderasse. Respirou fundo uma vez, outra. Os pés não lhe pareciam bem.
Estavam pesados, custava-lhe erguê-los da relva molhada de orvalho. Seria
apenas medo, ou estariam as terras perdidas relutantes em deixá-la partir?
— Vai resultar — murmurou, tão baixo que nem Tristan a ouviu. —
Vamos conseguir.
Pressionou os lábios numa linha determinada e começou a andar. Pegou na
mão de Tristan com firmeza e, passo a passo, arrastou-o atrás de si. Ele
estava agora a coxear, com uma mão sempre colada ao local da ferida. Mas
havia de ficar bom. Se conseguisse levá-lo só mais um bocadinho — até ao
mundo dela —, sabia que ele ia ficar bom. Obrigou-se a acreditar nisso.
Desceram a colina até Dylan conseguir pisar as chulipas. Depois trocou um
olhar com Tristan, virou-se e começou a seguir a linha de comboio. Os carris
faziam uma curva que, ao princípio, não os deixava ver a boca do túnel, mas
depois, de repente, ali estava. Uma colina gigante, imóvel à frente deles. Os
carris pareciam dirigir-se a ela e desaparecer: como uma estrada para lado
nenhum. No entanto, quanto mais se aproximavam, mais o arco escuro no
sopé da colina parecia crescer, até Dylan conseguir ver claramente onde o
comboio entrara na montanha. Entrara, mas não voltara a sair.
Um buraco negro. Alto e largo, parecia chamar por ela. Estremeceu, com
os cabelos da nuca arrepiados. E se, e se, e se? As dúvidas sussurravam
ferozmente na sua mente, mas tentou ignorá-las. Levantou o queixo e
continuou a andar.
— Dylan. — Tristan estacou e obrigou-a a virar-se para ele. — Dylan, isto
não vai resultar.
— Vai...
— Não, não vai. Não posso ir para o teu mundo. Não é o meu lugar. O meu
lugar é aqui, mais nada. — Parecia estar a suplicar, meio zangado, meio
desesperado.
Dylan mordeu a língua e olhou para ele. Pela primeira vez, parecia
realmente um rapaz de dezasseis anos, pequeno e inseguro. Contudo, em vez
de a assustar, a incerteza dele deu-lhe coragem.
— Porque vieste, então? — desafiou.
Tristan levantou o ombro, cada vez mais parecido com um adolescente
atrapalhado.
— Tristan? Porque vieste?
— Porque... porque... — Soltou o ar num sopro exasperado. — Porque te
amo. — Baixou a cabeça ao dizê-lo e não viu o choque e a alegria no rosto de
Dylan. Um instante depois, ergueu os olhos. — Quero que estejas certa,
Dylan. Mas não estás.
— Prometeste-me que tentavas — recordou-lhe ela. — Tem fé.
Tristan soltou uma risada irónica.
— E tu, tens?
— Tenho esperança. — Corou. — E amor. — Trespassou-o com os olhos
verdes. — Confia em mim.
Viera de muito, muito longe por esta oportunidade, e não ia voltar atrás
agora, sem pelo menos tentar. Além disso, não podiam ficar aqui. Tristan
estava ferido. Não sabiam o que lhe acontecera, mas as terras perdidas
estavam a fazer-lhe mal. Não era este o lugar dele. Tinha de sair daqui. Dylan
repetiu isso a si própria e tentou não dar ouvidos à vozinha no fundo da
mente que dizia que as feridas dele, o seu sofrimento, estavam a acontecer
porque ela estava a tentar obrigá-lo a deixar as terras perdidas. Endireitou os
ombros e penetrou na escuridão. Tristan não tinha alternativa senão segui-la;
ela recusava-se a largar-lhe a mão.
O negrume era desorientador, ao início, e os passos deles ecoavam no
espaço confinado. O ar cheirava a mofo. Dylan estremeceu.
— Há espetros aqui? — murmurou. O ar estava silencioso, mas com
certeza que eles se esconderiam num sítio tão escuro e isolado.
— Não — respondeu Tristan. — Geralmente não se aproximam tanto do
teu mundo. Estamos seguros.
Era um pequeno conforto, mas suficiente para dissipar os arrepios que
percorriam Dylan e a faziam bater os dentes.
— Consegues ver alguma coisa? — perguntou, incomodada com o silêncio.
— Estamos perto do comboio?
— Sim — respondeu Tristan. — Está mesmo à nossa frente, a poucos
metros.
Dylan abrandou. Estava tão escuro que mal conseguia ver a mão à frente da
cara, e não queria bater contra o comboio.
— Para — disse Tristan. Ela obedeceu de imediato. — Estica o braço. Já
chegámos.
Dylan esticou cuidadosamente o braço e tocou em algo frio e duro. O
comboio.
— Ajuda-me a encontrar a porta — ordenou.
Tristan conduziu-a pelo cotovelo ao longo de alguns metros.
— Aqui — disse, pegando-lhe na mão e pousando-a na porta, à altura do
ombro dela. Dylan apalpou e sentiu a textura de terra e borracha debaixo dos
dedos. Era o degrau por baixo da porta aberta. Estava muito alto, apercebeu-
se. Teriam de trepar.
— Estás pronto? — perguntou. Não obteve resposta, mas ainda sentia a
mão de Tristan no seu braço. — Tristan?
— Pronto — sussurrou ele.
Dylan aproximou-se e preparou-se para trepar. Tirou a mão de Tristan do
seu cotovelo e apertou-a com a sua. Não tencionava correr riscos; não ia
largá-lo, por mais que isso lhe atrapalhasse os movimentos. Não se deixaria
enganar novamente.
— Espera. — Ele puxou-a, com força suficiente para a virar para si. Passou
o outro braço à volta da cintura dela e puxou-a para si. O chão do túnel era
irregular e, para variar, a cara dele estava à altura da dela. Dylan sentiu a
respiração dele na face. — Ouve, eu... — começou a dizer, e depois
silenciou-se. Ouviu-o respirar fundo uma, duas vezes. Segurou-lhe no queixo.
— Pelo sim, pelo não — murmurou.
Tristan beijou-a como se estivesse a despedir-se dela. A sua boca
pressionou avidamente a de Dylan e apertou-a com tanta força que ela quase
não conseguia respirar. Depois de afastar os lábios, enfiou-lhe a mão no
cabelo e puxou-a ainda mais para si. Dylan fechou os olhos com força e
tentou lutar contra as lágrimas.
Não era um adeus, não era. Não seria a última vez que sentia o calor do
corpo dele, o seu cheiro, o seu abraço. Não era.
Iam partilhar um milhão de beijos como este.
— Pronto? — perguntou de novo, agora ofegante.
— Não — respondeu Tristan com um sussurro, na escuridão. Estava rouco
e parecia quase assustado.
Dylan sentiu o estômago apertado.
— Nem eu. — Tentou sorrir, mas os músculos não funcionavam. Às cegas,
procurou novamente a mão dele. Não ia perdê-lo.
Sem o largar, içou-se através da porta meio aberta e depois virou-se para
ajudar Tristan. Foi difícil e bateu com a mão na porta, o que lhe deixou os
nós dos dedos a latejar, mas pouco depois estavam os dois em pé na
carruagem, cegos e sem fôlego.
— Dylan — murmurou Tristan, junto do ouvido dela. — Espero que tenhas
razão.
Dylan sorriu. Também esperava.
— Não sei como havemos de fazer isto — disse, baixinho. — Acho que
temos de encontrar o meu corpo. Eu estava mais ou menos a meio da
carruagem.
Com cuidado, começou a avançar. A carruagem estava silenciosa, mas
sentia o coração a troar-lhe nos ouvidos, tão alto que mal ouvia a respiração
de Tristan um passo atrás dela. Tinha o estômago às voltas. E se isto não
resultasse? E se o seu corpo estivesse tão ferido que não havia recuperação
possível?
E o que estava no chão entre a sua alma e o seu corpo? Sobre o que tinham
ainda de passar? Sangue? Membros decepados? Os sacos daquela mulher
estúpida? Dylan riu-se ao pensar nisso, uma risada tensa. Virou-se para
partilhar a piada com Tristan e sentiu o ténis girar com demasiada facilidade.
Havia qualquer coisa oleosa debaixo do seu pé. E não era sumo entornado,
tinha a certeza disso. Repugnada, tentou levantar o pé, mas ficou com o
calcanhar preso em alguma coisa. Desequilibrada, tentou apoiar melhor o
outro pé, mas havia algo no caminho. O seu peso puxou-a para a frente, num
ângulo precário, e depois caiu.
Dylan teve tempo apenas para inspirar uma vez. Esticou os braços,
desesperada por se segurar antes de cair no chão. Estendeu as duas mãos.
Duas mãos vazias.
TRINTA E UM
Gritos.
Devia haver silêncio. Um silêncio tranquilo, solene e mortal.
Mas havia apenas gritos.
Dylan abriu os olhos e ficou instantaneamente cega. Uma luz branca forte
penetrou-lhe no cérebro. Tentou desviar-se, mas a luz seguiu-a, com uma
fração de segundo de atraso, e eclipsou a escuridão atrás dela. Fitou-a, de
boca aberta.
Tão subitamente como surgira, a claridade desapareceu. Dylan ficou
encandeada e pestanejou para tentar afastar as manchas de cor nos olhos.
Sobressaltou-se quando um rosto surgiu no seu campo de visão e o encheu.
Era pálido, coberto de suor e manchado de vermelho. Um homem, com a
barba por fazer, os lábios a moverem-se com urgência. Dylan tentou
concentrar-se no que ele estava a dizer, mas tinha um apito agudo nos
ouvidos e não conseguia ouvir mais nada.
Abanou a cabeça e forçou a mente a concentrar-se nos lábios do homem.
Lentamente, percebeu que ele estava a repetir as mesmas palavras, uma e
outra vez.
— Estás a ouvir? Olha para mim. Estás a ouvir? Estás a ouvir?
Agora que sabia o que ele estava a dizer, Dylan apercebeu-se de que estava
a ouvi-lo. Na verdade, ele estava a gritar, com voz rouca e tensa. Como é que
não o ouvira antes?
— Sim — murmurou, com a boca cheia de um líquido demasiado quente e
espesso para ser saliva. Engoliu e sentiu um sabor metálico na língua.
O homem pareceu aliviado. Apontou novamente a pequena lanterna para o
rosto dela, o que a fez fechar os olhos sob a forte luz branca, e depois
inspecionou-lhe o corpo com a ajuda da luz. Dylan viu-o fixar-se nas pernas
dela, com uma expressão ansiosa. Levantou a cabeça.
— Consegues mexer os braços e as pernas? Estás a sentir isto?
Dylan concentrou-se. O que estava a sentir?
Um fogo ardente. Dor. Agonia. Tortura. Parou de respirar, com medo até
do mais pequeno movimento. O que se passava com ela?
Doía-lhe tudo. Simplesmente... tudo. Sentia a cabeça a latejar, o peito preso
numa faixa de ferro demasiado apertada. Onde devia ter o estômago, havia
uma poça de lava derretida, que queimava como ácido. E por baixo disso?
Fechou os olhos e tentou sentir as pernas. Onde estavam? Talvez não as
conseguisse sentir apenas por causa das vagas de dor agonizante que vinham
de todo o lado. Em pânico, sentiu o coração começar a bater muito depressa e
todas as dores no seu corpo latejavam ao ritmo deste batimento
descontrolado. Tentou mexer os pés, mudar de posição; estava tão
desconfortável.
— Mmm... — Era algo entre um gemido e um grito. Movera as pernas
apenas um pouco, talvez um centímetro, mas a explosão de agonia que a
percorreu foi suficiente para lhe tirar o ar.
— Está bem, está bem, minha querida. — O homem tinha a testa franzida,
a lanterna fina presa nos dentes, e as mãos a mexerem algures abaixo da
cintura de Dylan. Parou o que estava a fazer e limpou a mão ao casaco.
Aquilo era sangue? Sangue das pernas dela? Sentiu a respiração acelerada e
cada vez que inspirava era como uma facada no peito.
— Minha querida? — O homem estava a sacudir-lhe o ombro. Dylan fez
um esforço para olhar para ele e tentou pensar através do terror. — Como te
chamas?
— Dylan — gemeu ela.
— Dylan, tenho de te deixar por um minuto. Mas volto já, prometo.
Sorriu-lhe, levantou-se e começou a percorrer a carruagem. Enquanto o via
afastar-se, Dylan apercebeu-se de que o espaço apertado estava repleto de
homens e mulheres de casacos fluorescentes: bombeiros, polícias,
paramédicos. Estavam, na sua maioria, debruçados sobre os bancos ou os
espaços entre eles, a falar, a tratar, a confortar, com expressões graves nos
rostos.
Só Dylan parecia estar sozinha.
— Espere — pediu, com voz rouca, mas era tarde demais. Levantou a mão
na direção onde ele desaparecera, mas esse pequeno esforço deixou-a
exausta. Dobrou o braço e deixou cair a mão sobre o rosto. Estava molhada.
Afastou-a um pouco e olhou para ela, a brilhar sob a luz artificial de lanternas
e luzes de emergência.
O que acontecera? Onde estava Tristan?
Lembrava-se de cair, de esticar os braços para se amparar, preocupada
apenas em não cair em cima dos corpos no chão.
Largara-o. Largara-o para se salvar a si própria, para não cair de cara em
cima do sangue, dos detritos da morte.
Largara-o.
Doíam-lhe os pulmões, mas não conseguiu conter um vómito. Arderam-lhe
os olhos e sentiu a garganta apertada. Os seus ferimentos passaram
misericordiosamente para segundo plano e as lágrimas deslizaram-lhe pelo
rosto.
Largara-o.
— Não — murmurou, entre os lábios secos. — Não, não, não.
Freneticamente, tentou mudar de posição e enfiou a mão no bolso,
ignorando as dores lancinantes que cada movimento causava, os dedos à
procura, desesperadamente. O seu coração parou por uma fração de segundo.
Estava ali. A flor. Se a flor conseguira atravessar... onde estava ele? Porque
não estava deitado ao lado dela?
Tê-lo-ia perdido quando lhe largara a mão?
— Muito bem, aqui está ela. Dylan? — Ouvir o seu nome distraiu-a por um
momento destes pensamentos. — Dylan, vamos colocar-te em cima desta
prancha, minha querida. Está bem? Temos de te levar para a ambulância.
Vamos dar-te qualquer coisa para as dores. Estás a compreender? Dylan,
acena se me estás a compreender, querida.
Ela acenou obedientemente. Estava a compreender. Uma ambulância.
Medicamentos para as dores era boa ideia — podiam ajudar a apagar o fogo
que lhe ardia na barriga. Mas não fariam nada pelo buraco aberto no seu
peito, pela agonia de se sentir tão vazia. O que fizera?
Os homens demoraram algum tempo a colocá-la na feia maca amarela.
Puseram-lhe uma gola de plástico no pescoço, que a obrigava a olhar para o
teto. Os homens foram simpáticos, tentaram tranquilizá-la e não a magoar
mais do que o necessário. Dylan quase nem os ouviu. Só com grande esforço
conseguia responder às perguntas deles, forçar «sim» e «não» por entre os
lábios dormentes. Ficou contente quando começaram a levantá-la, quando
deixou de precisar de os ouvir e já não tinha de falar.
Tirá-la da carruagem pareceu demorar muito tempo, mas, assim que ouviu
os pés deles na gravilha do chão do túnel, sentiu-os acelerarem o passo.
Pareciam ansiosos por a tirar dali o mais depressa possível. Dylan devia
sentir-se assustada com isso, mas não conseguia.
O ar mudou à medida que era transportada ao longo do túnel. Uma leve
brisa começou a cortar a humidade estagnada e por fim sentiu um ligeiro
chuvisco que lhe arrefeceu a testa. Tentou olhar para trás, ver a que distância
estava da boca do túnel, mas o suporte no pescoço e as faixas que lhe
prendiam os ombros não a deixavam mover muito, e quando tentava rolar os
olhos sentia pontadas de dor na cabeça. Mesmo assim, avistou um halo
desfocado de luz natural antes de relaxar novamente na maca, ofegante.
Estava quase fora do túnel.
Com passos cuidadosos, os dois homens levaram Dylan para o cinzento
baço de um fim de tarde de outono. Viu o arco de pedra, cortado de forma
elegante na encosta da colina, afastar-se lentamente, o abismo voraz reduzido
a uma mancha escura e silenciosa. A cerca de dez metros da entrada do túnel,
viraram-na e começaram a subir a inclinação ao lado da linha. E foi então que
ela o viu.
Estava sentado à esquerda da entrada do túnel, com as mãos à volta dos
joelhos, a olhar para ela. A esta distância, a única coisa que Dylan conseguia
ver era que era um rapaz, provavelmente adolescente, com cabelo cor de areia
que o vento fazia esvoaçar à volta do rosto.
— Tristan — sussurrou. O alívio e a alegria cresceram-lhe no peito.
Devorou a imagem dele, aqui, no mundo dela.
Ele conseguira.
Alguém se atravessou entre eles, cortando-lhe a linha de visão. Um
bombeiro. Dylan viu-o inclinar-se e pôr uma manta sobre os ombros de
Tristan. Disse-lhe qualquer coisa, uma pergunta. Viu Tristan abanar a cabeça.
Lentamente, de forma algo atrapalhada, levantou-se da relva. Disse mais
qualquer coisa ao bombeiro e começou a andar na direção dela. Mesmo antes
de chegar ao seu lado, sorriu.
— Olá — murmurou, esticando a mão para acariciar suavemente a manta
que a cobria. Procurou-lhe os dedos e apertou-os.
— Olá — murmurou ela. Os seus lábios estremeceram quando tentou
sorrir. — Estás aqui.
— Estou aqui.
AGRADECIMENTOS
INTRUSOS
Um romance da série «O Barqueiro»
UM
CONTINUA...