MÓDULO 2 - Fundamentos Da Psiquiatria

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SAÚDE MENTAL

E ASSISTÊNCIA
FARMACÊUTICA
Unidade 1
Fundamentos da
Psiquiatria
CEO

DAVID LIRA STEPHEN BARROS

DIRETORA EDITORIAL

ALESSANDRA FERREIRA

GERENTE EDITORIAL

LAURA KRISTINA FRANCO DOS SANTOS

PROJETO GRÁFICO

TIAGO DA ROCHA

AUTORIA

MARIANA MARTINS GARCIA


Mariana Martins Garcia
AUTORIA

Olá! Sou formada em Farmácia pela Universidade Federal


do Paraná e mestra em Ciências Farmacêuticas pela mesma
instituição. Já atuei em farmácia de dispensação, farmácia
hospitalar, prática clínica e manipulação de nutrição parenteral e
quimioterapia, além de ser palestrante e professora. Passei por
empresas como Droga Raia, Hospital da Polícia Militar, Stiefel,
CEQNEP e Equilibra. Atualmente sou professora conteudista em
instituições de Ensino Superior. Sou apaixonada pelo que faço e
adoro transmitir minha experiência de vida àqueles que estão
iniciando em suas profissões. Por isso fui convidada pela Editora
Telesapiens a integrar seu elenco de autores independentes.
Estou muito feliz em poder ajudar você nesta fase de muito
Unidade 1

estudo e trabalho. Conte comigo!

4 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


ÍCONES
Unidade 1

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 5


Conceito histórico da Reforma Psiquiátrica brasileira........... 9
SUMÁRIO

Os transtornos mentais no passado................................................................. 9

Evolução da assistência à saúde mental........................................................13

Assistência à saúde mental no Brasil..............................................................17

Práticas psiquiátricas.............................................................. 23
Procedimentos durante a Antiguidade...........................................................23

Afogamento.......................................................................................................... 25

Cirurgia ginecológica...........................................................................26

Hidroterapia..........................................................................................26

Berço de Utica......................................................................................26
Unidade 1

Cadeira giratória...................................................................................27

Lobotomia.............................................................................................27

Choque cardiazólico...........................................................................................28

Eletroconvulsoterapia........................................................................................ 28

Insulinoterapia.................................................................................................... 29

Cubículo ou cela forte........................................................................................30

Lençol de contenção e camisa de força.........................................................31

Praxiterapia.......................................................................................................... 31

Medicamentos..................................................................................................... 32

Legislação referente à Reforma Psiquiátrica brasileira....... 34


Era da institucionalização..................................................................................34

Processo de desinstitucionalização.................................................................35

Portaria MS/GM n.º 106/2000............................................................38

Lei Antimanicomial n.º 10.216/2001.................................................39

Portaria n.º 336/GM/2002..................................................................41

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Últimas legislações e o retrocesso da Luta antimanicomial.......................42

Decreto n.º 7.179/2010.......................................................................42

Portaria n.º 3.588/2017 ......................................................................43

Nota Técnica do Ministério da Saúde n.º 11/2019........................43

Lei n.º 13.840/2019..............................................................................44

Reforma Psiquiátrica brasileira.............................................. 46


Início do movimento........................................................................................... 46

Movimento antimanicomial...............................................................................49

Assistência à saúde mental nos últimos anos (2010-2019)........................52

Unidade 1

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 7


Vamos conhecer a história dos tratamentos para saúde
mental, considerada pelos autores antigos como loucura e
APRESENTAÇÃO

atualmente denominada transtornos mentais pelos médicos.


Inicialmente, o problema de saúde mental era visto, assim como
todas as doenças, como manifestações de maus espíritos ou como
um castigo pelos pecados cometidos. Por isso, as pessoas eram
tratadas com práticas de exorcismo que, muitas vezes, levavam à
morte. Quando o foco deixou de ser religioso, a sociedade passou
a acreditar que esses indivíduos eram um problema e deveriam
ser excluídos do convívio, o que gerou a criação de manicômios.
Começou, então, a internação dos pacientes nesse tipo de
instituição, com profissionais da saúde na busca de tratamentos
para curar as doenças mentais. Por muitos anos, foram utilizados
tratamentos físicos que, hoje, são considerados desumanos, e,
Unidade 1

por isso, os próprios profissionais da saúde se engajaram em um


movimento para a humanização dos tratamentos e a minimização
das internações. Esses movimentos tiveram inúmeras conquistas
em relação às mudanças na assistência à saúde mental por meio
de legislações para a regulamentação desses procedimentos.
Porém, nos últimos anos, novas legislações representaram um
retrocesso das conquistas. Ao longo desta unidade letiva, você
vai mergulhar neste universo!

8 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Olá. Seja muito bem-vindo à Unidade 1. Nosso objetivo
é auxiliar você no desenvolvimento das seguintes competências

OBJETIVOS
profissionais até o término dessa etapa de estudos:

1. Explicar a evolução histórica da Psiquiatria no Brasil.

2. Identificar o funcionamento da Estratégia de Saúde da


Família e da atenção psicossocial.

3. Apontar as abordagens terapêuticas na atenção psicos-


social.

4. Interpretar o funcionamento do Centro e da Rede de


Atenção Psicossocial.

Então? Preparado para uma viagem sem volta rumo ao


conhecimento? Ao trabalho!

Unidade 1

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 9


Conceito histórico da Reforma
Psiquiátrica brasileira
Ao final deste capítulo, você será capaz de enten-
der a evolução da assistência à saúde mental no
mundo e no Brasil. Vamos conhecer os procedi-
OBJETIVO mentos que eram utilizados no passado, majori-
tariamente relacionados à exclusão social. Depois,
vamos estudar a quebra de paradigmas relaciona-
dos aos transtornos mentais e às mudanças nos
tratamentos utilizados, ocorrida em razão de mo-
vimentações sociais e dos próprios profissionais
da saúde. E então? Motivado para aprofundar seus
conhecimentos? Então, vamos lá!
Unidade 1

Os transtornos mentais no
passado
Os primeiros relatos sobre problemas psicossociais foram
encontrados na Antiguidade grega e romana. Naquela época,
tanto os transtornos físicos como os mentais eram tratados como
manifestações sobrenaturais, sob forte influência religiosa.

Quando você for aprofundar seus conhecimentos


histórico sobre este tema, verá muitos textos sobre
os transtornos mentais. Esses textos têm caracte-
DEFINIÇÃO rísticas filosóficas e denominam este transtorno de
loucura, por isso, vamos adotar este termo no de-
correr do capítulo.

A influência religiosa se manteve forte durante a Inquisi-


ção. Nessa época, a loucura era entendida como manifestações
demoníacas e satânicas, consideradas uma expressão de bru-
xaria. Devido à alta influência da Igreja, os indivíduos que não
concordavam com a ideologia cristã, chamados de hereges, eram

10 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


considerados loucos, bruxos ou feiticeiros, sendo todos perse-
guidos pela própria Igreja (MILLANI; VALENTE, 2008; FIQUEIRE-
DO, DELEVATI; TAVARES, 2014; TILIO, 2007).

As pessoas com transtornos mentais não rece-


biam tratamento, mas eram perseguidas como se
fizessem parte de seitas e, muitas vezes, mortas da
EXPLICANDO
MELHOR mesma forma que aquelas que iam contra a ideo-
logia cristã da época.

Nos transtornos mentais associados a uma possessão de-


moníaca, utilizavam-se técnicas de exorcismo para livrar o indiví-
duo do obsessor. Entre elas estava a trepanação, a qual consistia
em fazer uma perfuração no crânio com uma pedra pontiaguda,
por onde os demônios abandonariam o corpo. A figura a seguir,

Unidade 1
quadro retratado por Hieronymus Bosh, chamado “A extração da
pedra da loucura”, mostra o procedimento de trepanação. Vale
ressaltar que nessa época não existia anestesia para nenhum
tipo de procedimento.
Figura 1 - “A extração da pedra da loucura” de Hieronymus Bosh

Fonte: Wikimedia Commons

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 11


Com o declínio da supremacia da Igreja, esse enfoque
diabólico se extinguiu, prevalecendo a teoria patológica na qual o
delírio era uma marca da insanidade, influenciada por Hipócrates.

No período Renascentista, existiam as Naus dos Loucos,


embarcações nas quais os indivíduos eram colocados e lançados
ao mar, sendo considerado um ritual de libertação da sociedade
em relação aos “doidos”, evitando que ficassem vagando pelas
cidades. Dessa forma, eles tornavam-se prisioneiros de sua
própria partida, tendo como sua prisão o seu próprio mundo.

A loucura foi inserida no universo moral no século XV,


sendo muitas vezes representadas em obras de arte e na literatura.
Contudo, devido às mudanças decorrentes do crescimento das
cidades no século XVII, além da industrialização e do poder das
Unidade 1

relações políticas, voltou-se ao modelo de exclusão do indivíduo.

Dessa forma, foram criados, primeiro na Europa, estabe-


lecimentos para a internação onde se aprisionavam não apenas
pessoas com transtornos mentais, mas também pessoas com
doenças venéreas, libertinos, bandidos, enfim, todos aqueles
que eram considerados fonte de desorganização moral da so-
ciedade. Assim, foi fundado em 1656 o Hospital Geral, em Paris,
não tendo caráter de tratamento médico, mas o de uma estrutu-
ra parcialmente jurídica. Em 1676, foram criadas instituições por
toda a França a partir de uma ordem real, tendo cada cidade o
seu Hospital Geral, período que ficou conhecido como a Grande
Internação.

Os tratamentos começaram no século XVIII, no chamado


Hotel Dieu. Nessa instituição, os pacientes eram separados por
sexo, sem condições adequadas e sem assistência médica, e os
tratamentos consistiam em banhos, sangrias e purgações para
buscar a cura (MILLANI; VALENTE, 2008; FIQUEIREDO; DELEVATI;
TAVARES, 2014; TILIO, 2007).

12 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Figura 2 - Hotel Dieu, França

Fonte: Wikimedia Commons

Unidade 1
Um dos hospitais mais antigos da Europa, o Hotel
Dieu é datado de cerca de 651 d.C. Era uma ins-
tituição polivalente que atendia os pobres e os
VOCÊ SABIA? doentes, oferecendo comida e abrigo, bem como
cuidados médicos. Foi danificado pelo fogo em
1772 e parcialmente reconstruído até o reinado
de Napoleão. As camas eram colocadas em todos
os quartos disponíveis e, às vezes, havia até seis
pacientes em uma cama de solteiro. Tornou-se o
hospital mais insalubre e desconfortável da Fran-
ça, talvez até da Europa. O número de leitos no
Hotel Dieu permaneceu inalterado até 1400, mas,
com a criação de novos hospitais, começou a re-
ceber menos pacientes, de modo que todos agora
tinham sua própria cama. Hoje, continua sendo o
primeiro centro de atendimento a casos de emer-
gência em Paris, com aproximadamente 350 leitos.
O Hotel Dieu era popular entre os médicos, pois
admitia casos interessantes. Embora transformada
em uma instituição médico-científica, sua natureza
religiosa original é mantida viva em seu nome: a
“Hospedaria de Deus”.

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 13


Evolução da assistência à saúde
mental
A tentativa de tratamento humanizado aconteceu com a
fundação de asilos, cujo objetivo era o de reconstruir uma casa de
família fictícia para os internos, porém ainda com característica
de controle social e moral.

Entre os estudiosos da época, podemos destacar Phillippe


Pinel, pela característica humanitária de seu tratamento baseado
em estudos e observações a partir do comportamento. Por meio
de seus estudos, Pinel constatou que os transtornos mentais eram
resultado de tensões sociais e psicológicas excessivas, podendo
Unidade 1

ter como causa a hereditariedade ou, ainda, acidentes físicos,


extinguindo a crença na possessão demoníaca. Dessa forma, ele
rompeu paradigmas descrevendo a existência de vários tipos de
psicose e seus sintomas e incluiu o contato próximo e amigável
ao indivíduo como parte da terapia.

Os médicos que se dedicavam a conhecer as


doenças mentais e acompanhar esses pacientes
eram chamados de alienistas.
VOCÊ SABIA?

14 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Figura 3 - Phillippe Pinel: o alienista

Unidade 1
Fonte: Wikimedia Commons

Pinel separava os indivíduos em alas, de acordo com o


perfil do transtorno mental, para reconhecer, nomear e estudar
as doenças. Esse foi o começo de uma mudança e da evolução
da medicina em relação a esses transtornos (MILLANI; VALENTE,
2008; FIQUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2014; TILIO, 2007). Apesar
da rápida disseminação da doutrina de Pinel, ela foi ofuscada
por tratamentos inadequados em manicômios, deixando de ser
recurso terapêutico e voltando a ser instrumento de segregação
social.

Dessa forma, mesmo a loucura passando ao domínio da


ciência, o tratamento não ficou mais humanizado. Afinal, segundo
estudiosos da época, o que diferenciava o ser humano dos

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 15


animais era a razão; por isso, esses indivíduos eram considerados
animais e tratados com ameaças, algemas, bofetadas e muita
disciplina. Portanto, o medo desses castigos funcionava como
mecanismos de controle.

Essas instituições eram chamadas de manicômios, asilos


ou hospitais, com ambientes precários e de verdadeiro terror,
além dos tratamentos considerados hoje desumanos. Todo esse
aparato funcionava sob a justificativa de fazer uma limpeza na
sociedade, retirando dela indivíduos considerados desprezíveis
e desajustados, com comportamentos indesejáveis. Esses
pacientes eram infantilizados, tendo como castigo viver com sua
culpa e excluídos da sociedade.

Entre os tratamentos estavam o confinamento em salas


Unidade 1

escuras, acorrentados, injeção de metrazol para provocar con-


vulsão, esterilização, castração, privação da alimentação, vio-
lência mental e física, indução ao coma provocado por insulina,
cadeira giratória, eletrochoque, berço de Utica, hibernação, uso
de camisa de força e até mesmo assassinato pelos próprios fun-
cionários das instituições. Nas mulheres, especificamente, havia
a retirada de útero.

Apesar da brutalidade, novas instituições eram abertas,


e as que já existiam eram superlotadas, piorando cada vez
mais as condições de saúde do indivíduo. Isso causava certo
alívio às famílias que não teriam mais que lidar com eles, pois
os abandonavam nessas instituições, deixando-os esquecidos
até a morte (MILLANI; VALENTE, 2008; FIQUEIREDO, DELEVATI;
TAVARES, 2014; TILIO, 2007).

Em meados do século XIX, o médico Jean-Martin Charcot


assumiu a direção do hospital La Salpêtrière, tornando-o um
centro de estudos psiquiátricos e recebia estudantes de todo o
mundo para assistir suas aulas sobre doenças mentais e seus

16 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


experimentos. Entre esses estudantes, estava Sigmund Freud,
especializado em neurologia, que conheceu a terapia de hipnose
com Charcot, e, desde então, começou a trabalhar na evolução
da Psicanálise.

A partir do século XX, começou a busca do entendimento


da fala da loucura, com construções teóricas complexas: o diá-
logo entre o indivíduo transtornado e o indivíduo pesquisador,
desde que fosse capaz de desvendar e interpretar a fala do lou-
co, por meio de uma linguagem especializada. Então, as escolas
se dividiram em duas vertentes: a psicanalista e a organicista;
a primeira entendia os transtornos mentais como psicológicos,
enquanto a segunda estava relacionada à fisiologia e à anatomia.

A Psicanálise iniciou com a hipnose, mas, posteriormente,

Unidade 1
Freud percebeu que a não utilização dessa técnica permitia que
o paciente falasse livremente sobre o que vinha à memória, cujo
processo passou a ser chamado de associação livre, o qual traria
a reconstrução do trauma original e com acesso ao inconsciente,
criando o conceito de cura pela fala.

Em contrapartida, estudiosos organicistas buscavam me-


dicamentos capazes de atuar no tratamento dos transtornos
mentais. Na década de 1950, o primeiro medicamento conhecido
e utilizado foi a clorpromazina que acalmava os pacientes psi-
cóticos. Posteriormente, outros medicamentos antidepressivos
e benzodiazepínicos começaram a ser usados, cuja eficácia com-
provada levou a uma mudança na psiquiatria (MILLANI; VALENTE,
2008; FIQUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2014; TILIO, 2007).

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 17


Assistência à saúde mental no
Brasil
O primeiro hospital psiquiátrico fundado no Brasil foi o
Hospício Pedro II, inaugurado em 1852, na cidade do Rio de Janei-
ro. Em seguida, o número de instituições cresceu, mas sem pla-
nejamento, com todas elas superlotadas e insalubres. A estrutu-
ra grandiosa do Pedro II representava a fortaleza simbólica para
enfrentar as forças desagregadoras do jogo político no início da
independência do país.

Nesse contexto, o Brasil se tornava o primeiro país da


América Latina a fundar uma instituição com base no alienismo,
Unidade 1

nome dado ao estudo dos transtornos mentais na França. A nova


instituição alienista demonstrava de forma clara ao mundo que
o Brasil começava a desenvolver ciência. Em 1838, na França, foi
promulgada uma lei que colocava hospícios e asilos na posição
de vanguarda da medicina hospitalar, pois exibir um hospício
de tamanha grandeza demonstrava a modernidade científica e
tecnológica de uma nação.

Além disso, na mesma época, eram valorizadas as causas


morais da loucura, a própria civilização era considerada fonte do
adoecimento mental. Portanto, o Hospício Pedro II anunciava a
participação brasileira no mundo civilizado e científico da época.
Posteriormente, foi renomeado como Hospício Nacional dos
Alienados, quando se desvencilhou da administração da Santa
Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, ficando subordinado à
Administração Pública (RAMOS; TEIXEIRA, 2012).

O Hospício Nacional dos Alienados passou pela adminis-


tração de vários diretores, entre eles podemos destacar o psi-
quiatra baiano Juliano Moreira, que teve seu foco no combate

18 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


intelectual ao racismo científico, contestando a ideia da época de
que as doenças mentais estavam relacionadas à origem racial e à
miscigenação. Na sua opinião, ele acreditava que os transtornos
mentais tinham origens em fatores físicos e psicossociais relacio-
nadas à dignidade humana, como condições precárias de higiene
e dificuldade de acesso à educação.
Figura 4 - Juliano Moreira

Unidade 1
Fonte: Wikimedia Commons

Esse estudioso, conhecido pela abordagem humanitária,


excluiu o aprisionamento dos indivíduos e incluiu nos hospitais
laboratórios novas técnicas de diagnóstico e tratamento, inse-
rindo a Psicanálise de Freud aos estudos de medicina no Brasil.
Além disso, Moreira fundou o primeiro Manicômio Judiciário do
Brasil em 1911, direcionado ao tratamento de indivíduos que co-
meteram crimes após surtos psicóticos (ODA; DALGALARRONDO,
2000).

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 19


Você já ouviu a expressão “ficou pinel!”? Em geral,
a frase é usada em tom de brincadeira, mas algu-
mas vezes a utilizamos para dizer que a pessoa
VOCÊ SABIA? está agindo como louca. Consegue imaginar por
que surgiu este termo? Se respondeu por causa de
Phillipe Pinel, você acertou! O Hospício Pedro II foi
batizado com outros nomes no decorrer da histó-
ria e, em 1965, passou a se chamar, pela segunda
vez, Instituto Philippe Pinel, em homenagem ao
psiquiatra. Por ser um sobrenome curto e diferen-
te, rapidamente entrou na lista de expressões po-
pulares.

Houve o surgimento de outros hospícios e, em todos eles,


Unidade 1

o tratamento iniciava com a reclusão, entendendo a necessidade


de retirar da sociedade os doentes. A medicalização era uma
importante etapa do tratamento dessas pessoas, porém, além
de haver excesso de medicação, havia relatos de tratamentos
como o eletrochoque, a hidroterapia e até a lobotomia, hoje
considerados desumanos.

No Brasil, também aconteceu a internação não apenas


de indivíduos com transtornos mentais, mas indigentes, mães
solteiras e até criminosos, ou seja, indivíduos que eram caracte-
rizados como problema para a sociedade, como aconteceu nos
países da Europa (FIQUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2014; TILIO,
2007).

Outra personagem marcante na história da assistência


à saúde mental do Brasil foi a médica Nise da Silveira, cuja
história esteve relacionada à luta social e feminista, chegando
até a ser presa na ditadura varguista. Em 1944, ela assumiu seu
cargo no Centro Psiquiátrico em Engenho de Dentro, onde se
deparou com tratamentos frequentes como eletrochoque, coma

20 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


induzido por insulina e a lobotomia, além das altas doses de
psicofármacos em todos os pacientes. A médica acreditava que
o tratamento medicamentoso deveria ser utilizado em surtos
agudos e discordava dos tratamentos físicos por considerá-los
maus tratos.

Dada esta situação, Nise da Silveira procurou por alter-


nativas: buscou conhecimento nos tratados convencionais eu-
ropeus como Psicanálise, Filosofia, Literatura, Artes Plásticas e
a Terapia Ocupacional, além da Psicologia Analítica. Encontrou
fundamentos teóricos necessários para capacitar monitores
para o setor de Terapia Ocupacional, a qual cresceu rapidamen-
te dentro dessa instituição, que começou a ter atividades como
costura, jardinagem, teatro, sapataria, salão de beleza, carpinta-

Unidade 1
ria e atividades expressivas como modelagem em argila, pintura
etc. A partir desse crescimento, foi possível organizar mostras
dos trabalhos feitos pelos pacientes em todo o país e no exterior
(CARVALHO; AMPARO, 2006; FIQUEIREDO; DELEVATI; TAVARES,
2014; TILIO, 2007).

Denúncias recebidas contra a violência em hospícios e


as péssimas condições de trabalhos nas instituições psiquiátri-
cas no final da década de 1970 fizeram com que Nise da Silvei-
ra iniciasse o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
(MTSM), com o intuito de combater as internações que eram rea-
lizadas de forma arbitrária e automática, as quais privavam o pa-
ciente da liberdade, mantendo-o em cativeiro, como um seques-
tro autorizado. Com as reivindicações, começou a integração de
diversas áreas da saúde nas instituições a partir da inserção da
Psicologia na Saúde Pública, embora isso ainda era insuficiente
para iniciar o processo de desospitalização.

As propostas de reforma chegaram ao governo, levando


à criação de diretrizes para a área da Saúde Mental no final da

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 21


década de 1980, defendendo o limite de internação, reintegração
familiar, tratamento fora do hospital e pesquisas epidemiológicas.

Aconteceram grandes eventos para discussão do tema,


e o Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil surgiu em
1987, no I Encontro Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental,
com o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. O objetivo
era reestabelecer a relação do indivíduo com o próprio corpo, o
direito e a capacidade do uso da palavra, entre outros. Tudo isso
para a reinserção do indivíduo à sociedade.

Nessa época, o Brasil estava em mudanças, representa-


das pelos movimentos sociais de várias áreas – e, em especial,
da Saúde - por meio de conferências. Na área da Saúde Mental,
entre as discussões e novas experiências, o trabalho interdiscipli-
Unidade 1

nar era um dos pontos defendidos.

No final da década de 1980, surgiram serviços como Cen-


tros de Atenção Psicossocial (Caps) e os Núcleos de Atenção Psi-
cossocial (Nasp), proporcionando consultas médicas, atendimen-
tos psicológicos, serviço social, terapia ocupacional, entre outros,
dando o início à Reforma Psiquiátrica brasileira (CARVALHO; AM-
PARO, 2006; FIQUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2014; TILIO, 2007).

22 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Esse capítulo foi muito importante, certo? Vimos a
evolução dos tratamentos psiquiátricos no mundo
e no Brasil. Em suma, vimos que, ao longo da his-
RESUMINDO tória humana, as sociedades enfrentaram doenças
mentais de várias maneiras. Nos primórdios da
civilização documentada, as pessoas com trans-
tornos mentais eram vistas como seres que per-
sonificavam a manifestação divina e, em algumas
culturas, eram nomeados por esse motivo. A linha
do tempo de nosso desenvolvimento mostra a
extrema marginalização dessas pessoas, que pas-
saram a ser considerados seres sujos, transgres-
sores, pecadores, quando a sociedade passou a
interpretar a materialização do demônio por meio
da manifestação da doença relacionada à saúde

Unidade 1
mental. Eles eram vistos como um problema es-
trutural das cidades, mas nunca como pessoas
cujos direitos são estritamente limitados pela po-
pulação e pelas autoridades. Com o surgimento do
modelo manicomial no século XVIII, agrupavam e
aprisionavam as pessoas com transtornos men-
tais com outros doentes em prédios isolados da
cidade, submetiam-nos a tratamento profissional
e tinham seus documentos recolhidos. Com a evo-
lução da própria humanidade, muitos tratamentos
da época passaram a ser considerados desumanos
e, por isso, os movimentos sociais e dos próprios
profissionais da saúde foram essenciais para essa
mudança, não apenas dos tratamentos em si, mas
também da visão da sociedade em relação ao indi-
víduo com transtornos mentais. E então? Qual sua
impressão sobre as formas de tratamento nos sé-
culos passados? Consegue perceber a importância
dessa evolução?

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 23


Práticas psiquiátricas
Ao final deste capítulo, você será capaz de com-
preender a evolução das práticas psiquiátricas,
desde as primeiras, hoje consideradas desumanas,
OBJETIVO até as atuais e como chegamos até aqui. Motivado
para mais esta aventura? Então, vamos lá!

Procedimentos durante a
Antiguidade
Para entender o que está acontecendo agora, é neces-
sário examinar como a psiquiatria foi “criada”, desenvolvida e
“aceita”. Mas quando você fala sobre a história de algo não pode
Unidade 1

simplesmente declarar os fatos, pois acontecimentos relevantes


devem ser analisados ​​para realizar pesquisas críticas e reflexivas
sobre as realidades socioculturais da época.

Políticas de Saúde Mental historicamente negligenciadas


e subestimadas tiveram como eixo central tratamentos com
medidas extremamente degradantes de caráter paliativo. Vale
lembrar que essas características estavam de acordo com prática
médica disponível na época, conhecida por criar mecanismos
estranhamente famosos justamente por suas atrocidades (como
a lobotomia no cérebro, ou seja, o corte da conexão cerebral que
liga o lobo frontal ao tálamo, com o objetivo de tornar o paciente
mais complacente).

Ademais, havia prisões e a falsa associação de pessoas a


doenças mentais não diagnosticadas simplesmente porque de-
sagradavam os poderosos oligarcas do passado – como os ho-
mossexuais, as mulheres independentes, as crianças rebeldes
etc. Isso reforçou ainda mais o estigma negativo social.

24 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Assim como em outras áreas do conhecimento da ciência,
o período conhecido por “Idade das Trevas” também influenciou
a condução da psiquiatria na Antiguidade, uma vez que havia um
menosprezo da doença relacionada à saúde mental. Dessa for-
ma, recorria-se a ideias religiosas mágicas para tratar e lidar com
doenças e transtornos mentais. E acredita-se que tais práticas te-
nham sido exercidas por feiticeiros e feiticeiras até próximo aos
tempos modernos.

A melancolia/loucura havia adquirido uma imagem alie-


nada da fé e da graça divina, uma imagem do pecado que a trans-
formava em catástrofe das forças do mal. Portanto, não apenas
a melancolia, mas qualquer perda da razão era considerada pe-
cado, pois a sua presença era sinal de punição ou ausência de

Unidade 1
Deus.

A crença na relação mente-corpo prevaleceu por muito


tempo até que a ética cristã medieval começou a dominar o Oci-
dente, o que provocou uma mudança fundamental no conceito
de loucura. Qualquer comportamento incomum era considerado
resultado de pecado ou possessão demoníaca, e em muitos des-
ses casos a solução era a morte ou o exílio.

Foi uma época de exorcismo, intolerância, perseguição às


pessoas com transtornos mentais, queima na fogueira e incitação
às atrocidades, que não terminaram até o alvorecer dos tempos
modernos, quando os manicômios brutais foram estabelecidos.

Antes de Hipócrates inventar o conceito de “doença


mental”, todos os males que afetavam a humanidade – a perda
da razão ou a doença física – eram obras dos deuses como
punição ou vingança. O doente, o louco, o abatido, o triste pagam
pelos erros de si ou de seus ancestrais. Logo, a partir do mito se
construiu uma interpretação dos sofrimentos da doença.

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 25


Ao longo dos anos, a psiquiatria propôs várias modalida-
des de tratamento. Semelhante à psiquiatria biológica praticada
hoje, há registros do uso de ervas e alucinógenos com agentes
físicos. No entanto, foi a psicofarmacologia que fez o maior avan-
ço terapêutico neste campo no século XX.

No entanto, antigamente, métodos grotescos e até tor-


turantes eram usados para
​​ tratar ou controlar comportamentos
sociais “inadequados” em pacientes psicóticos. Cadeiras girató-
rias, prisões, diferentes tipos de hidroterapia e até aparelhos
complexos de eficácia questionável foram testados.

Como já vimos, na Antiguidade, as doenças físicas e as


doenças mentais eram vistas como atuação de forças externas,
geralmente demônios, no indivíduo e, por isso, eram tratadas
Unidade 1

pela Igreja com métodos de exorcismo e, quando não curadas


dessa forma, a morte era a solução.

Com a instituição dos hospícios, o foco do tratamento não


era a pessoa, mas a doença. Dessa forma, as instituições tinham
por responsabilidade eliminar os sintomas de desordem mental.
Para isso, os tratamentos utilizados iniciavam com a internação
e exclusão da sociedade. Dentro das instituições, utilizavam-
se métodos como hidroterapia, administração excessiva de
medicamentos, até aplicação de estímulos elétricos ou o uso
de procedimentos cirúrgicos. Vamos conhecer alguns desses
tratamentos (GUIMARÃES et al., 2013; BORENSTEIN, 2007).

Afogamento
O paciente era colocado em um caixão com furos e sub-
merso em água: esperava-se que todo o ar saísse de dentro do
caixão, observando quando não apareciam mais bolhas; depois,
o paciente era retirado e reanimado. Acreditava-se que, quando

26 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


as funções vitais cessavam, a reanimação possibilitava que o pa-
ciente voltasse à vida de forma mais adequada e ajustada peran-
te a moral da sociedade (GUIMARÃES et al., 2013; BORENSTEIN,
2007).

Cirurgia ginecológica
Por acreditar que clitóris e útero estavam relacionados
com a histeria feminina, era realizada a retirada desses órgãos
como tratamento (GUIMARÃES et al., 2013; BORENSTEIN, 2007).

Hidroterapia
Para os psiquiatras da época, o banho prolongado indu-

Unidade 1
ziria à fadiga psicológica e estimularia secreções dos rins e da
pele, podendo reestruturar as funções cerebrais. O tratamento
consistia em enrolar o paciente em uma rede e mantê-lo em uma
banheira apenas com a cabeça de fora e coberto por uma lona,
podendo permanecer por horas – ou até mesmo por dias – em
água gelada e fervente alternadamente (GUIMARÃES et al., 2013;
BORENSTEIN, 2007).

Berço de Utica
Na cidade de Utica, no estado de Nova Iorque, os pacien-
tes eram forçados a ficar em um berço de madeira ou metal fe-
chado de todos os lados, sem possibilidade de se movimentar,
para evitar a interação com outros indivíduos. O berço era usado
apenas em pacientes agressivos (GUIMARÃES et al., 2013; BO-
RENSTEIN, 2007).

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 27


Cadeira giratória
Na época, era considerada um tratamento humanizado
e, por isso, a cadeira giratória era sempre complementada com
outras terapias como hidroterapia e a lobotomia frontal. A cadei-
ra era girada até o paciente desmaiar, pois acreditava-se que, ao
rodar, curaria a esquizofrenia por “embaralhar” o cérebro (GUI-
MARÃES et al., 2013; BORENSTEIN, 2007).

Lobotomia
Já vimos no tópico anterior sobre a trepanação na Anti-
guidade para a “retirada dos maus espíritos” como um método
Unidade 1

de exorcismo, porém esse procedimento perdurou por anos nas


instituições, uma vez que foi aprimorado e se tornou um pro-
cedimento cirúrgico chamado de lobotomia. O procedimento
consistia em fazer inicialmente uma abertura na parte frontal do
crânio e, posteriormente, utilizando a cavidade ocular para che-
gar até os lobos frontais, por meio do orbitoclast (instrumento
semelhante ao picador de gelo) e de um martelo.
Figura 5 - Procedimento de lobotomia

Fonte: Wikimedia Commons

28 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Nesse procedimento, a conexão entre os lobos frontais e
o restante do cérebro era cortada. Apesar de a maioria dos pro-
cedimentos terminarem em morte ou em estado vegetativo, os
sobreviventes se tornavam pessoas apáticas devido ao desliga-
mento da resposta cerebral das emoções e adquiriam problemas
motores.

O estudo desse procedimento gerou, na época, um prê-


mio Nobel de medicina para o médico português António Egas
Moniz; por isso, essa prática perdurou como tratamento por sé-
culos (FIQUEIREDO; DELEVATI; TAVARES, 2014; TILIO, 2007).

Choque cardiazólico

Unidade 1
Utilizava-se o medicamento cardiozol via endovenosa, le-
vando o paciente à convulsão de forma rápida e violenta, a ponto
de causar fraturas graves, entre elas, fratura espinhal, por isso,
foi utilizada por pouco tempo, sendo substituída pela eletrocon-
vulsoterapia (GUIMARÃES et al., 2013; BORENSTEIN, 2007).

O uso de convulsões para o tratamento da loucura


iniciou com Paracelsus no século XVI, o qual usa-
va cânfora via oral. Essa prática foi esquecida por
SAIBA MAIS muitos anos, sendo retomada em 1934 pelo neu-
ropsiquiatra húngaro Ladislas von Meduna, o qual
a usou inicialmente via intramuscular e posterior-
mente passou para uma substância menos tóxica,
o metrazol, também conhecido como cardiazol,
intravenosa.

Eletroconvulsoterapia
Desde o início de sua utilização, a eletroconvulsoterapia
(ECT) foi vista como eficaz para diminuir a agitação e amenizar os
sintomas psicóticos. Também chamada de eletrochoque, a ECT

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 29


era empregada para o tratamento da esquizofrenia, consistindo
na passagem de uma corrente alternada através da caixa cra-
niana do paciente, provocando convulsões imediatas. Durante
a passagem da corrente elétrica, havia perda da consciência e
espasmos musculares generalizados, características de uma cri-
se convulsiva; posteriormente, o sono de alguns minutos, e, em
seguida, o paciente acordava espontaneamente, de forma tran-
quila, observando-se a saída do quadro psiquiátrico agudo, sem
recordar o que aconteceu.

Essa técnica era utilizada para conter o paciente e apagar


suas memórias, sendo uma experiência traumatizante para os
indivíduos; por isso, em alguns casos, era usada para castigar e
controlar os internos da instituição.
Unidade 1

Com o início do uso de psicofármacos, a ECT teve um


declínio em seu uso, porém, nos últimos anos, sua prática
voltou a ganhar destaque para alguns tratamentos específicos,
utilizando anestésicos a partir do consentimento do paciente
ou do seu responsável. Esse procedimento é normatizado pelo
Conselho Federal de medicina com a Resolução n.º 1.640/2002
e com estudos, como o realizado pelo Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostrando ser um bom
método para a remissão de sintomas graves (GUIMARÃES et al.,
2013; BORENSTEIN, 2007).

Insulinoterapia
A introdução da insulinoterapia aconteceu em 1933 pelo
médico polonês Manfred Sakel, o qual causou uma convulsão
por meio de uma dose excessiva de insulina acidentalmente.
Contudo, ele percebeu que era um tratamento eficaz para
pacientes com psicose e com esquizofrenia. No entanto, entrou
em desuso quando os estudos mostraram que não levava à cura

30 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


dos transtornos, apenas à melhora momentânea (GUIMARÃES et
al., 2013; BORENSTEIN, 2007).
Figura 6 - Paciente em choque insulínico

Unidade 1
Fonte: Wikimedia Commons

Cubículo ou cela forte


Quando os pacientes se encontravam em quadros extre-
mos de agitação e agressividade eram levados para um quarto
ou uma cela individual muito pequenos, com portas reforçadas e
abertura para que os profissionais pudessem observá-los quan-
do necessário e entregar comida. No ambiente, havia um lugar
para que o indivíduo fizesse suas necessidades fisiológicas. Não
havia um tempo delimitado de clausura, podendo ser de poucas
horas até dias; e, em alguns casos, os profissionais a utilizavam
como castigo aos pacientes (GUIMARÃES et al., 2013; BORENS-
TEIN, 2007).

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 31


Lençol de contenção e camisa de
força
Tanto o lençol de contenção quanto a camisa de força
serviam para conter pacientes agressivos, porém, havia risco de
machucar o paciente, no momento de colocar o lençol, e, no caso
da camisa, riscos de queda do paciente. Ambos foram introduzidos
nas instituições por Pinel, no século XIX, para substituir algemas
e celas fortes nos manicômios, já que foram considerados como
uma contenção física menos dolorosa (GUIMARÃES et al., 2013;
BORENSTEIN, 2007).

Outro método de contenção utilizado era a conten-


Unidade 1

ção no leito com faixas de tecido de algodão que,


em casos extremos, é utilizado até hoje, porém,
VOCÊ SABIA? como proteção do próprio paciente e de outros in-
divíduos. Contudo, é necessário muito cuidado no
momento da aplicação da técnica para não machu-
car o paciente. A verificação dos sinais vitais deve
ser constantemente monitorada. A utilização deve
acontecer como último recurso, ou depois de es-
gotadas todas as alternativas para acalmar o pa-
ciente.

Praxiterapia
A praxiterapia consistia no desenvolvimento de tarefas
laborais, como trabalho agrícola e criação de galináceos além
de suínos, e era utilizada como ocupação integral do tempo
dos pacientes como prática terapêutica. O desenvolvimento de
tais práticas realizava-se de acordo com a aptidão física de cada
indivíduo, sendo considerado o tratamento mais indicado nos
casos de esquizofrenia.

32 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Entre os métodos empregados, esse era o único feito de
forma coletiva, incentivando o convívio e o exercício físico dos
pacientes supervisionados pelos profissionais da enfermagem.
Outras atividades também eram desempenhadas pelos pacientes
como a serraria, olaria, carpintaria, moagem de trigo, engenho
de cana e produção de mandioca, destilaria, lavanderia, costura,
cozinha e limpeza. Essas atividades tinham como objetivos:

• Reencaminhar o paciente para a via do trabalho.

• Sublimar seus impulsos (sob a ótica da Psicanálise).

• Manter controle sobre os pacientes internados.

Outro recurso utilizado era a assistência hetero-familiar, a


qual consistia em encaminhar o paciente ao convívio com famílias

Unidade 1
de empregados das colônias; dependendo do seu desempenho,
o indivíduo poderia ser considerado apto para voltar ao convívio
na sociedade, recebendo alta hospitalar.

Mas essas atividades não eram apenas de trabalho, pois


existiam atividades de lazer e recreação, como assistir filmes
leves de agrado dos pacientes e dos funcionários, sessões de
teatro, pequenas festas religiosas e até atividades esportivas
(GUIMARÃES et al., 2013; BORENSTEIN, 2007).

Medicamentos
O início da medicalização se deu nos anos 1950, com
psicofármacos empregados no tratamento dos pacientes. Esses
medicamentos não substituíam os métodos tradicionais porque
eram usados como coadjuvantes. Os primeiros sintetizados
foram:

• Cloropromazina (amplictil).

• Levopromazina (neozine).

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 33


• Haloperidol (haldol).

Por não existirem muitas opções e essas não serem tão


eficazes para minimizar sintomas, os psicofármacos eram utiliza-
dos de forma excessiva, principalmente para induzir o sono no
paciente. A cloropromazina foi a substância estudada em 1952
pelos pesquisadores Jean Delay e Pierre G. Deniker, que obtive-
ram sucesso por reduzir a agitação psicomotora, as alucinações
e os delírios.

Atualmente, a psicoterapia e as atividades comunitárias


dão lugar à exclusão da sociedade herdada do modelo manicomial.
E são de extrema importância a avaliação do uso racional e o
acompanhamento farmacoterapêutico desses pacientes. Existem
muitos psicofármacos que podem ser utilizados para os vários
Unidade 1

transtornos mentais diagnosticados nos dias de hoje, tema que


será tratado brevemente (GUIMARÃES et al., 2013; BORENSTEIN,
2007).

E aí? O que você achou de aprender um pouco mais


sobre as práticas psiquiátricas? Vimos as práticas
utilizadas nos tratamentos de transtornos mentais
RESUMINDO desde a Antiguidade, com tratamentos meramen-
te físicos com pouco ou nenhum resultado, até os
tempos atuais, quando houve a evolução dos tra-
tamentos que consideram a possibilidade de in-
clusão desses indivíduos na sociedade. A inclusão
social é um direito humano para todas as pessoas,
incluindo as pessoas que possuem problemas de
saúde mental. É também uma parte importante da
recuperação de doenças deste tipo. E então? Já ha-
via pensado na importância dessa inclusão?

34 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Legislação referente à Reforma
Psiquiátrica brasileira
Ao final deste capítulo, você será capaz de com-
preender a legislação relacionada à Reforma Psi-
quiátrica brasileira. Os tratamentos existentes
OBJETIVO eram considerados eficazes, porém, nos dias
atuais, a forma de utilizá-los começou a ser vista
como bruta e desumana. Vamos conhecer as le-
gislações relacionadas à mudança na estrutura
da atenção à saúde mental e toda a reforma que
aconteceu no Brasil.

Era da institucionalização

Unidade 1
Em 1840, o provedor da Santa Casa do Rio de Janeiro, José
Clemente Pereira, fez um pedido para criação de um hospital
específico para os pacientes com transtornos mentais, alegando
que essa separação facilitaria a cura deles. Por isso, em 1841,
com o Decreto n.º 82, de 18 de julho de 1841, Dom Pedro II
atendeu esse pedido e iniciou a construção do Hospício Pedro II,
cuja inauguração aconteceu em 8 de dezembro de 1852.

Já em 1890, o Decreto n.º 206-A/1890 desvinculou o


Hospício de Pedro II da Santa Casa, denominando-o como
Hospício Nacional dos Alienados; e o Decreto n.º 791, de 27 de
setembro de 1890, instituiu a escola profissional de enfermeiros
dentro desse hospital.

Outra legislação de importância da época foi o Decreto


n.º 1.132, de 22 de dezembro de 1903, o qual descrevia que in-
divíduos, por moléstia mental, congênita ou adquirida, que pos-
sa comprometer a ordem pública ou a segurança das pessoas,
deverão ser recolhidos a um estabelecimento de alienados. No

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 35


entanto, só permaneceria no estabelecimento por meio de com-
provação de seu estado mental. Isso para evitar que indivíduos
considerados não aptos ao convívio da sociedade como ladrões,
indigentes, mães solteiras, entre outros, fossem internados ape-
nas para “limpar” a sociedade (SAIOL, 2016).

Esse decreto foi revogado durante o governo provisório


de Getúlio Vargas, pelo Decreto n.º 24.559 de 1934, o qual dispõe
sobre a profilaxia mental, a assistência e a proteção à pessoa e
aos bens dos psicopatas, bem como a fiscalização dos serviços
psiquiátricos, retirando o termo alienados, sendo referido como
psicopata, considerado um termo mais amplo. Além disso, reafir-
mou a incapacidade da pessoa com transtorno mental, facilitan-
do a internação por qualquer motivo que dificulte a convivência
Unidade 1

do psicopata em sua residência, considerando a internação como


regra e o tratamento domiciliar uma exceção (SAIOL, 2016).

Há outras legislações interessantes dessa época,


e principalmente as discussões entre os profissio-
nais sobre elas. Mas, aqui, vamos focar as legisla-
SAIBA MAIS ções mais atualizadas e relacionadas à Reforma
Psiquiátrica. Mesmo assim, vale a busca por este
conhecimento!

Processo de
desinstitucionalização
O questionamento sobre os procedimentos para trata-
mento dos transtornos mentais começou na década de 1960
no mundo – e, na década seguinte, no Brasil. Ocorreram vários
movimentos sociais para reduzir a exclusão dos indivíduos com
transtornos mentais da sociedade, buscando um modelo assis-
tencial com a promoção da saúde mental, não apenas o trata-
mento dos doentes.

36 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Entre os profissionais da saúde, esse movimento
antimanicomial teve início com o Movimento dos Trabalhadores
de Saúde Mental (MTSM), com o lema “Por uma sociedade sem
manicômios”, cujo debate pontuava as péssimas condições do
sistema de saúde e da legislação vigente, propondo modificações.

Portaria SAS/MS n.º 224/1992


Essa portaria instituiu a criação dos Centros de Atenção
Psicossocial (Caps), juntamente com os Núcleos de Assistência
Psicossocial (Naps). Tem os mesmos princípios e diretrizes do
Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente a universalidade,
a hierarquização, a regionalização e a integralidade das ações e
dos serviços de saúde, garantindo a continuidade da atenção em

Unidade 1
vários níveis. Utilizando a diversidade de métodos e técnicas te-
rapêuticas junto com uma equipe multiprofissional, que conta
com a participação social desde a formulação das Políticas de
Saúde Mental até o controle de sua execução.

Conforme descrito nessa legislação, os Naps/Caps


são unidades de saúde locais/regionalizadas que
contam com uma população adscrita definida pelo
SAIBA MAIS nível local e que oferecem atendimento de cuida-
dos intermediários entre o regime ambulatorial e
a internação hospitalar, em um ou dois turnos de
quatro horas, por equipe multiprofissional. Podem
constituir-se também em porta de entrada da rede
de serviços para as ações relativas à saúde men-
tal, considerando sua característica de unidade
de saúde local e regionalizada. Atendem também
a pacientes referenciados de outros serviços de
saúde, dos serviços de urgência psiquiátrica ou
egressos de internação hospitalar. Deverão estar
integrados a uma rede descentralizada e hierarqui-
zada de cuidados em saúde mental.

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 37


É possível observar na Portaria SAS/MS n.º 224, de 29 de
janeiro de 1992, as normas para o atendimento ambulatorial, além
dos recursos humanos que devem ser empregados relacionados
aos atendimentos individuais, atendimentos em grupo e as
atividades comunitárias. Também traz as normas relacionadas
aos atendimentos hospitalares, chamado de hospital dia, sendo
considerado um recurso intermediário entre a internação e o
atendimento ambulatorial. Além disso, existe a modalidade de
serviço de Urgência Psiquiátrica em Hospital Geral para casos de
emergência em prontos-socorros disponíveis 24 horas com leito
de internação de, no máximo, 72 horas também com equipes
multiprofissionais (BRASIL, 1992). Essa legislação necessitou
de atualizações em 2002, com a Portaria n.º 336/GM, de 19 de
fevereiro deste ano.
Unidade 1

Portaria MS/GM n.º 106/2000


Essa legislação vem para suprir algumas necessidades
como:

• Reestruturação do modelo de atenção ao portador de


transtornos mentais, no âmbito do SUS.

• Garantir uma assistência integral em saúde mental e


eficaz para a reabilitação psicossocial.

• Humanização do atendimento psiquiátrico no âmbito


do SUS, visando à reintegração social do usuário.

• Implementação de políticas de melhoria de qualidade


da assistência à saúde mental, objetivando a redução
das internações em hospitais psiquiátricos.

38 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Para isso, foram criados os Serviços Residenciais Tera-
pêuticos (SRT) em Saúde Mental, no âmbito do Sistema Único de
Saúde. Essas residências são moradias ou casas inseridas, prefe-
rencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos indivíduos
com transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas
de longa permanência, que não possuam suporte social e laços
familiares e que viabilizem sua inserção social, sendo uma mo-
dalidade que substitui a internação prolongada (BRASIL, 2000).

No art. 2.º dessa Portaria, observa-se o início da re-


dução de leitos em hospícios, pois nela se descreve
que, para cada transferência do hospital especiali-
IMPORTANTE zado ao SRT, deve ocorrer a redução ou descreden-
ciamento do SUS do mesmo número de leitos na-
quele hospital, e, dessa forma, o recurso também

Unidade 1
deve ser realocado para os tetos orçamentários do
estado ou município, que se responsabilizará pela
assistência ao paciente e pela rede substitutiva de
cuidados em saúde mental.

Os SRT são divididos em modalidades:

• SRT Tipo I – são moradias destinadas a pessoas com


transtorno mental em processo de desinstitucionaliza-
ção, devendo acolher no máximo oito moradores.

• SRT Tipo II – são modalidades de moradia destinadas


às pessoas com transtorno mental e acentuado nível
de dependência, especialmente em função do seu
comprometimento físico, que necessitam de cuidados
permanentes específicos, devendo acolher no máximo
dez moradores.

Cada tipo de SRT deve se enquadrar nas características


descritas no anexo da Portaria, e o repasse é feito para as
residências que tenham, no mínimo, quatro moradores, além

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 39


de se enquadrarem nos princípios e diretrizes destacados nessa
legislação.

Lei Antimanicomial n.º 10.216/2001


“Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial
em saúde mental” (BRASIL, 2001, on-line). Essa Lei aborda o
direito das pessoas com transtornos mentais de terem acesso
ao modelo assistencial de saúde mental, sem discriminação
em relação à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção
política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao
grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou
qualquer outra.
Unidade 1

O desenvolvimento de Políticas de Saúde Mental é de


responsabilidade do Estado, e a internação, seja ela voluntária,
involuntária ou compulsória, só será realizada se os recursos
extra-hospitalares forem insuficientes e deve ser o mais curta
possível.

Os direitos das pessoas com deficiência intelectual estão


descritos na Lei da seguinte forma:

• Ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde,


coerente às suas necessidades.

• Ser tratada com humanidade e respeito e, no interesse


exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua
recuperação pela inserção na família, no trabalho e na
comunidade.

• Ser protegida contra qualquer forma de abuso e explo-


ração.

• Ter garantia de sigilo nas informações prestadas.

40 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


• Ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para
esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização
involuntária.

• Ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis.

• Receber o maior número de informações a respeito de


sua doença e de seu tratamento.

• Ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios me-


nos invasivos possíveis.

• Ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitá-


rios de saúde mental.

O desenvolvimento de pesquisas com esses pacientes


tanto de fins diagnósticos quanto fins terapêuticos devem ser

Unidade 1
consentidos pelo paciente ou pelo responsável legal, além de
comunicado aos conselhos profissionais competentes e ao
Conselho Nacional de Saúde, o qual criará uma comissão nacional
para acompanhar a implantação dessa Lei (BRASIL, 2001, on-line).

No ano de 2001, foi promulgada a Lei Paulo Delgado ou Lei


da Reforma Psiquiátrica Brasileira. A mobilização social e política
teve início na década de 1970, resultando na desinstitucionalização
psiquiátrica no Brasil. A consolidação dessa lei ocorreu para
garantir os direitos e a proteção das pessoas com transtornos
mentais, sua qualidade de vida e integridade social e respeitar
suas diferentes características. Também é garantido o direito ao
tratamento para essas pessoas e suas famílias com diferentes
níveis de saúde, cabendo aos estados garanti-lo e comprovar sua
autonomia individual. Conforme Alves (2012, on-line),
A Lei indica uma direção para a assistência
psiquiátrica e estabelece uma gama de direi-
tos das pessoas portadoras de transtornos
mentais; regulamenta as internações invo-

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 41


luntárias, colocando-as sob a supervisão do
Ministério Público, órgão do Estado guardião
dos direitos indisponíveis de todos os cida-
dãos brasileiros. A Reforma Psiquiátrica é en-
tendida como processo social complexo, que
envolve a mudança na assistência de acordo
com os novos pressupostos técnicos e éticos,
a incorporação cultural desses valores e a
convalidação jurídico-legal desta nova ordem.

Portaria n.º 336/GM/2002


Com os Caps já instituídos, esta Portaria estabelece que
poderão constituir-se nas seguintes modalidades de serviços:
Unidade 1

Caps I, Caps II e Caps III, definidos por ordem crescente de porte/


complexidade e abrangência populacional. Eles devem estar
capacitados para realizar prioritariamente o atendimento de
pacientes com transtornos mentais severos e persistentes em
sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-
intensivo e não intensivo. Vale ressaltar que, de acordo com a
Portaria, quando o Caps se encontrar em áreas físicas hospitalares
ou instituições universitárias de saúde, deve ter acesso privado e
equipe multiprofissional própria (BRASIL, 2002, on-line).

Últimas legislações e o retrocesso


da Luta antimanicomial
Nos últimos 10 anos, entraram em vigor legislações rela-
cionadas principalmente sobre drogas de abuso, com ênfase no
crack, mas em outras drogas também. Porém, essas legislações
vão de encontro ao movimento de desinstitucionalização con-
quistado pela luta antimanicomial iniciada nos anos 70, vamos
conhecê-las e, discuti-las melhor no próximo tópico.

42 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Decreto n.º 7.179/2010
O Decreto n.o 7.179 de 2010 instituiu o Plano Integrado
de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas criou o seu Comitê
Gestor e deu outras providências. Com esse decreto, busca-se a
prevenção do uso, o tratamento e a reinserção social de usuários
e o enfrentamento do tráfico de crack e outras drogas ilícitas.

As ações devem ser executadas de forma descentralizada


e integrada entre as três esferas de governo de forma intersetorial,
interdisciplinar, integrada com participação da sociedade civil e o
controle social. Com objetivo de estruturar, ampliar e fortalecer
as redes de atenção à saúde e de assistência social para usuários
de crack e outras drogas, por meio da articulação das ações do

Unidade 1
SUS para capacitar de forma continuada atores governamentais
e não governamentais envolvidos nas ações (BRASIL, 2010, on-
line).

Portaria n.º 3.588/2017


Essa portaria dispõe sobre a Rede de Atenção Psicossocial
e dá outras providências, tendo como objetivo atender pessoas
de todas as faixas etárias, proporcionando serviços de atenção
contínua durante 24 horas, incluindo feriados e finais de semana,
além de ofertar assistência a urgências e emergências, contando
com leitos de observação. Define as características da equipe
multiprofissional envolvida no cuidado dos pacientes, reforça o
conceito dos SRTs e relata como deve ser o funcionamento, a
estrutura física e a implantação (BRASIL, 2017, on-line).

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 43


Nota Técnica do Ministério da Saúde
n.º 11/2019
No dia 4 de fevereiro de 2019, Quirino Cordeiro Junior,
Coordenador Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas
do Ministério da Saúde, instituiu a Nota Técnica n.º 11/2019,
intitulada “Esclarecimentos sobre as mudanças na Política
Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes na Política Nacional
sobre Drogas”.

A Nota abrange, ainda, uma série de mudanças e, ten-


do em vista o processo evolutivo, postula a reforma do modelo
de assistência em saúde mental, que necessitava de aprimora-
Unidade 1

mentos, sem perder a essência e o respeito à Lei n.º 10.216/2001


(BRASIL, 2019, on-line).

Lei n.º 13.840/2019


Há muitas discussões nas mídias sobre essa Lei que pro-
moveu algumas mudanças na Lei de Drogas (Lei n.º 11.343/2006)
e, consequentemente, no Sistema Nacional de Políticas Públicas
sobre Drogas (Sisnad), definido como:
[...] conjunto ordenado de princípios, regras,
critérios e recursos materiais e humanos que
envolvem as políticas, planos, programas,
ações e projetos sobre drogas, incluindo-se
nele, por adesão, os Sistemas de Políticas
Públicas sobre Drogas dos Estados, Distrito
Federal e Municípios. (BRASIL, 2019, on-line)

44 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


A Lei discorre acerca das políticas sobre drogas, acompa-
nhamento e avaliação, as diretrizes, entre outras providências,
mas o ponto em debate é a possibilidade de internação compul-
sória por meio do pedido dos familiares e dos responsáveis, por
escrito, feito pelo médico psiquiatra (internação involuntária) ou
determinada pelo juiz competente (internação compulsória), am-
bos já descritos em legislação vigente.

No entanto, essa nova legislação traz medidas para o seu


cumprimento, pois, se indicação médica for pela internação com-
pulsória, muitas vezes a emissão da ordem judicial é demorada,
o que impede a equipe médica de atuar rapidamente. O proces-
so continuará o mesmo, mas representantes do Judiciário farão
plantão em um equipamento médico para que, dessa forma,

Unidade 1
o paciente seja avaliado no primeiro atendimento e, caso não
queira se internar, o juiz de plantão pode acelerar esse processo
(BRASIL, 2019, on-line).

Mesmo com todas essas reformas, o modelo de reparação


para pessoas com transtornos mentais, que o SUS oferece em
relação às reformas psiquiátricas, e a discriminação social, que o
impede de atingir os objetivos propostos pela Lei, permanecem
sem solução.

No sistema de saúde, há uma clara distinção entre o


tratamento do paciente físico e do mental, como se a doença
relacionada à saúde mental não considerasse o indivíduo como
ator social. Tais preconceitos decorrem de um pano de fundo
histórico de exclusão e marginalização de pessoas que não se
enquadram nos padrões sociais, pois nas sociedades antigas era
mais fácil simplesmente eliminar as pessoas com transtornos
mentais do que entender a dinâmica e o contexto em que tais
indivíduos viviam.

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 45


E então? Conseguiu compreender as alterações
ocorridas em nosso sistema de atenção à saúde
mental? Vimos que ideias eugênicas permearam
RESUMINDO a alta sociedade brasileira, aumentando a segre-
gação das pessoas com transtornos mentais e, na
primeira metade do século XX, os manicômios co-
meçaram a admitir qualquer pessoa que violasse o
status quo. Essa política de separação a qualquer
custo acabou em desastre humanitário com a ba-
nalização da morte, uma vez que o direito à vida
do paciente não era respeitado pelo manicômio.
Pudemos observar que as mudanças que aconte-
ceram no Brasil estão relacionadas às mudanças
da sociedade, a qual está cada vez mais buscando
pelos seus direitos no que se refere ao cuidado da
Unidade 1

saúde pelo Estado. Além disso, os próprios profis-


sionais da saúde perceberam que os tratamentos
utilizados eram brutais e exigiram melhorias para
devolver aos pacientes a sua dignidade. E as legis-
lações em vigor, por sua vez, estão baseadas nos
princípios e diretrizes do SUS. Estamos trilhando
caminhos para a inclusão social em saúde mental.

46 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Reforma Psiquiátrica brasileira
Ao final deste capítulo, você será capaz de enten-
der como aconteceram os movimentos sociais que
contribuíram para a Reforma Psiquiátrica no Brasil,
OBJETIVO assim como os encontros mais relevantes e suas
discussões que deram base para as legislações vi-
gentes.

Início do movimento
Grande parte dos tratamentos para transtornos mentais,
hoje, é considerada desumana; entre eles, a exclusão da socieda-
de a partir da internação e a separação da família. A superlotação

Unidade 1
dos hospícios e o alto custo para se manter esses indivíduos hos-
pitalizados por grandes períodos geraram uma movimentação
social, iniciada na década de 1970 e relacionada aos direitos e à
dignidade humana no tratamento da saúde mental.

Esse movimento começou em um momento peculiar da


história do Brasil, após vinte anos de ditadura, o país iniciou um
movimento de redemocratização e ascensão de movimentos so-
ciais por um sistema de saúde de qualidade, universal, gratuito e
igualitário (AMARANTE; NUNES, 2018; BEZARRA, 2007; BARBOSA
et al., 2012; MELO, 2012).

Esse movimento teve grande importância porque orga-


nizou eventos como o 5.º Congresso Brasileiro de Psiquiatria em
Camboriú (SC) e o 1.º Simpósio de Política, Grupos e Instituições
no Rio de Janeiro (RJ), contando com a participação de profissio-
nais como Franco Basaglia, democrata italiano e considerado pai
do movimento psiquiátrico, que estabeleceu uma ligação com o
país quando o visitou duas vezes antes de sua morte em 1981.

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 47


Em 1979, desembarcou (Franco Basaglia) no
país para uma série de visitas aos hospícios
brasileiros. Ao tomar conhecimento da vin-
da de Basaglia, o psiquiatra mineiro Antônio
Soares Simone, vinte e oito anos à época,
convidou o colega para visitar Minas, a fim de
apresentar a ele as instituições psiquiátricas
públicas [...]. Foi o próprio Simone quem levou
Basaglia, de carro, a Barbacena. De tempera-
mento expansivo, o italiano passou a viagem
de volta a Belo Horizonte em silêncio. Quando
chegaram, seguiram direto para a Associação
Médica Mineira, onde o estrangeiro ministra-
ria um curso de psiquiatria social. Ao final da
conferência, ele fez um pedido ao brasileiro:
Unidade 1

“Simone, eu quero que você acione a impren-


sa”. O prestígio de Basaglia atraiu toda a mídia
para o endereço da conferência [...] e disse:
”estive hoje num campo de concentração na-
zista (Hospital Colônia de Barbacena). Em lu-
gar nenhum do mundo, presenciei uma tragé-
dia como esta”. (ARBEX, 2013, p. 184-185)

Em seus primórdios, o movimento voltou-se para o


Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) que, em particular,
desempenhou um papel de facilitador das comissões de saúde
mental nas estruturas dos centros estaduais dos países, onde a
campanha ocorreu.
É neste cenário de redemocratização e
luta contra a ditadura, relacionando a luta
específica de direitos humanos para as vítimas
da violência psiquiátrica com a violência
do estado autocrático, que se constituiu o
ator social mais importante no processo de
reforma psiquiátrica (RP). Isto irá influenciar de

48 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


forma significativa a construção das políticas
públicas, não só na saúde, mas em outros
setores (cultura, justiça, direitos humanos,
trabalho e seguridade social). (AMARANTE;
NUNES, 2018, p. 2068)

Não apenas no Brasil, mas também nas Américas, os


governos enfrentaram e ainda enfrentam crescente pressão
social para mudar suas políticas de assistência psiquiátrica.
Essa pressão culminou na divulgação de diversos documentos
orientando a reestruturação do cuidado em saúde mental para
a sociedade, como a Declaração de Luxor, que surgiu a partir de
um pronunciamento da Federação Mundial de Saúde Mental na
cidade de Luxor, no Egito, em homenagem ao 40.º aniversário
da organização não governamental que trabalha para abordar o

Unidade 1
debate sobre saúde mental em todo o mundo.

A Declaração de Luxor, tecnicamente a Declaração dos


Direitos Humanos das Pessoas com Transtorno Mental, é com-
posta por oito artigos que estabelecem prioridades para a rees-
truturação e promulgação de políticas de saúde mental mais hu-
manizadas. Abaixo, encontram-se dois destes artigos:
Art. 4.º – Os direitos fundamentais das pes-
soas que estão rotuladas, diagnosticadas, sob
tratamento ou definidas como emocionalmen-
te ou mentalmente angustiadas e/ou doentes,
devem ser os mesmos dos demais cidadãos.

Art. 5.º – Todos os doentes mentais têm direi-


to a serem tratados com o mesmo profissio-
nalismo e ética profissional comuns as outras
pessoas doentes. Isso deve incluir esforços
para promover o maior grau de autodeter-
minação e responsabilidade pessoal da par-
te deles. (WORLD FEDERATION FOR MENTAL
HEALTH, 1989, on-line)

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 49


Movimento antimanicomial
O movimento antimanicomial começou com o Movimento
dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), constituído em 1978,
com o propósito de reformulação da assistência psiquiátrica no
Brasil. O I Congresso de Saúde Mental aconteceu em 1979 na
cidade de São Paulo e foi organizado pelo MTSM, mesmo sem
qualquer apoio financeiro.

Em 1986, muitos integrantes do MSTM participaram


da 8.ª Conferência Nacional de Saúde, a qual revolucionou
a forma de participação social para elaboração de políticas
públicas relacionadas à saúde como direito, à reformulação do
sistema nacional de saúde e ao financiamento do setor. Devido
Unidade 1

à complexidade da discussão sobre os transtornos mentais, foi


decidido realizar, nesse mesmo ano, a I Conferência Nacional
de Saúde Mental em Brasília, porém sem muito êxito, pois o
setor de Saúde Mental do Ministério da Saúde era contrário às
reformulações propostas.

Franco Basaglia, médico psiquiatria, iniciou o pro-


cesso de reforma psiquiátrica na Itália e influen-
ciou todo o movimento de reformas no mundo.
SAIBA MAIS
Assumiu a direção de um hospital em 1961, onde
iniciou mudanças para transformá-lo em uma co-
munidade terapêutica. Ele percebeu que a simples
humanização não seria suficiente e, por isso, cri-
ticou a postura tradicional dos médicos por acre-
ditar que a Psiquiatria não era capaz de dar conta
do fenômeno complexo que é a loucura. Basaglia
viajou pelo mundo para levar as suas ideias e este-
ve algumas vezes no Brasil realizando seminários
e conferências contribuindo, assim, para o movi-
mento pela Reforma Psiquiátrica no país.

50 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Sem a anuência do governo federal, o MTSM decidiu
convocar o II Congresso Nacional, em 18 de maio 1987,
realizado na cidade de Bauru com o lema “Por uma sociedade
sem manicômios”, quando o movimento ganhou força com
outros ativistas de direitos humanos. Com esse lema, ficou claro
que a luta não é apenas contra a violência, a discriminação e
a segregação, mas também pela extinção das instituições e
concepções manicomiais; a partir de então, transformou-se em
um Movimento da Luta Antimanicomial. Com isso, o movimento
ganhou força, contando com profissionais da saúde, instituições
acadêmicas, representantes políticos, usuários e familiares, além
de outros segmentos da sociedade. Todos questionando o modelo
clássico de internações em hospícios como assistência à saúde
mental, denunciando as violações aos direitos dos pacientes e

Unidade 1
propondo a reorganização do modelo de atenção à saúde mental
com serviços abertos e comunitários que buscassem a garantia
da dignidade de usuários e familiares.

Dia 18 de maio é considerado o Dia Nacional da


Luta Antimanicomial, o qual representa o dia do
VOCÊ SABIA? Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil.

A denominação Reforma Psiquiátrica foi adotada em


1989 a partir da aproximação do Movimento Sanitarista e da
Reforma Sanitária que deram origem ao SUS. O termo reforma
refletiu a necessidade de uma mudança no modelo biomédico
em Psiquiatria, buscando destacar que a reforma psiquiátrica
necessária não era apenas em relação aos serviços e às
tecnologias de cuidado, mas à necessidade de uma estratégia
para desinstitucionalização.

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 51


A II Conferência Nacional de Saúde Mental aconteceu em
1992, convocada pelo então presidente Fernando Collor (cinco
anos após a primeira); e a terceira edição, em 2001, convocada
por Fernando Henrique Cardoso (quase dez anos após a
primeira). A quarta edição da Conferência aconteceu no último
ano do segundo mandato do presidente Lula da Silva, em 2010,
depois de grande pressão popular (AMARANTE; NUNES, 2018;
BEZARRA, 2007; BARBOSA et al., 2012; MELO, 2012).

Com a autonomia e a descentralização da proposta pelo


SUS, ocorreu o desenvolvimento das políticas municipais de
saúde em Santos (SP). Os gestores apressaram a instalação do
SUS e realizaram uma intervenção em um hospital psiquiátrico
onde ocorriam graves violações dos direitos humanos, criando
Unidade 1

uma rede substitutiva composta por serviços focados não apenas


no tratamento terapêutico, mas que pudessem contemplar
outras dimensões e demandas da vida, como moradia, lazer,
trabalho etc. Foram criados cinco Naps para egressos do hospital,
uma cooperativa de trabalho, além de outros programas. Em
pouco tempo, outros municípios criaram seus Naps e Caps que,
posteriormente, entraram para tabela do SUS; e a Portaria n.o
224/1992 definiu as unidades de saúde como responsáveis por
oferecer os cuidados intermediários entre a rede ambulatorial e
a internação hospitalar.

A III Conferência Nacional de Saúde Mental construiu um


cenário favorável para a saúde mental no SUS, quando a política
de Saúde Mental foi regulamentada pela Lei n.o 10.216, de 2001,
após muita pressão social. É importante ressaltar que o Projeto
de Lei n.o 3.657/89 tramitou pelo Congresso por quase 12 anos
e, mesmo sem aprovação, tornou-se base para esse substitutivo
aprovado em 2001.

52 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Dos encontros nacionais relacionados a essa luta, surgiram
conquistas consideráveis a cada novo encontro. Entre elas, a
criação dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e os Núcleos
de Atenção Psicossocial (Naps). Com essa estrutura, é possível
tratar o paciente em seu domicílio e, quando necessário, interná-
lo por um período curto apenas para reestruturar esse indivíduo
e recolocá-lo no convívio de seus familiares (AMARANTE; NUNES,
2018; BEZARRA, 2007; BARBOSA et al., 2012; MELO, 2012).

Assistência à saúde mental nos


últimos anos (2010-2019)
A partir de 2010, apesar de os estudos mostrarem o
abuso no consumo de álcool como sendo o principal problema

Unidade 1
de drogas no país, os recursos do governo foram investidos na
“epidemia do crack”.

Em 2011, houve a inserção das Comunidades Terapêuticas


na Rede de Atenção Psicossocial (Raps) como substitutivo, sem
atender às exigências para ser considerado um serviço de saúde,
pois atua na perspectiva manicomial, tendo cunho religioso e
sem uma equipe técnica para compor a rede de saúde mental.

Propostas conservadoras e neoliberais geraram mudan-


ças na gestão da Política Nacional de Saúde Mental em 2015.
Logo depois, houve mudanças no indicador de avaliação de saú-
de mental, sendo substituído pelas ações de matriciamento rea-
lizadas por Caps com equipes de Atenção Básica; e as Comuni-
dades Terapêuticas (CT) são consideradas estabelecimentos de
saúde, capacitando-as a receberem recursos do SUS.

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 53


Dois pontos são importantes nesse momento: pri-
meiro, já vimos que as CTs não contam com equipe
técnica; segundo, a verba pública é transferida pa-
IMPORTANTE ra o serviço privado como terceirização do serviço.
No entanto, essas CTs não têm as mesmas carac-
terísticas de universalidade e integralidade do SUS,
tendo por vezes restrições no atendimento, como
não permitirem pacientes com orientação sexual
considerada “desviante” porque pautam sua inter-
venção predominantemente na religião, gerando
uma divisão de trabalho entre CTs e os Caps.

No Governo Temer, a Portaria n.o 3.588/2017 foi aprovada


e gerou significativas mudanças na Política Nacional de Saúde
Mental, caminhando contra a Reforma Psiquiátrica no Brasil que,
Unidade 1

até então, preconizava a desinstitucionalização e a reabilitação


psicossocial. Dessa forma, essa política retrocedeu os avanços de
três décadas da Reforma Psiquiátrica.

Entre os elementos dessa portaria, podemos destacar a


volta da manicomialização da saúde mental por meio de inves-
timento financeiro dos recursos do governo federal, aumentan-
do o valor da diária nos manicômios sem aumento do repasse
para os Caps, o que levou a um serviço cada vez mais precário. O
aumento da capacidade dos leitos de hospitais gerais para alas
psiquiátricas contribuiu, na prática, para a presença de mini-hos-
pícios, ou seja, multiplicação de internações dos pacientes, além
de outras alterações relacionadas ao repasse.

Com essas mudanças geradas pelas novas legislações e


novas formas de repasse, ficou nítido que a internação em CTs e
o modelo manicomial se tornaram o foco central do cuidado ao
paciente.

54 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


Por fim, em fevereiro de 2019, a Nota Técnica de n.º
11/2019 veio para esclarecer os motivos dessas mudanças no
perfil de atendimento ao paciente com transtorno mental. Os
conselhos dos profissionais de saúde lançaram notas e cartas
discordando dessas decisões, e em muitas delas aparece o re-
púdio à internação de crianças e adolescentes em hospitais psi-
quiátricos, podendo acontecer em alas de adultos, bem como ao
redirecionamento do financiamento público. Além disso, houve
a nova visão do Ministério da Saúde em relação aos Caps, que
deixaram de ser considerados serviços, deixando de lado o fe-
chamento de leitos em hospícios para a redução dos leitos psi-
quiátricos (GUIMARÃES; ROSA, 2019).

A Lei n.º 13.840, de 5 de junho de 2019, vai de encontro

Unidade 1
ao movimento antimanicomial, pois considera o abuso de drogas
um transtorno mental, e a exclusão desse paciente da sociedade
de forma involuntária remete aos procedimentos psiquiátricos
antigos. Se ela irá trazer benefícios ou traumas mais graves a
esses pacientes apenas o tempo dirá.

Após muitas lutas entre acadêmicos, comunidades mé-


dicas, sociedade civil, ativistas e políticos em torno da humani-
zação do tratamento das pessoas com transtornos mentais e da
luta pelo reconhecimento de seus direitos, foi aprovada a Lei Fe-
deral n.o 10.216/2001. Em síntese, confere proteção e direitos às
pessoas com transtornos mentais e reformula fundamentalmen-
te o modelo de atenção à saúde mental ofertado pelo SUS.

Os dois primeiros artigos a seguir enumeram os direitos


das pessoas com transtornos mentais e garantem direitos iguais
aos demais, sem qualquer forma de discriminação. Em qualquer
modo de atendimento psiquiátrico, a Lei exige que os indivíduos
e suas famílias sejam informados sobre esses direitos.

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 55


Art. 1.o - Os direitos e a proteção das pessoas
acometidas de transtorno mental, de que tra-
ta esta Lei, são assegurados sem qualquer for-
ma de discriminação quanto à raça, cor, sexo,
orientação sexual, religião, opção política, na-
cionalidade, idade, família, recursos econômi-
cos e ao grau de gravidade ou tempo de evo-
lução de seu transtorno, ou qualquer outra.

Art. 2.o - Nos atendimentos em saúde mental,


de qualquer natureza, a pessoa e seus familia-
res ou responsáveis serão formalmente cien-
tificados dos direitos enumerados no parágra-
fo único deste artigo. 39 Parágrafo único. São
direitos da pessoa portadora de transtorno
Unidade 1

mental:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema


de saúde, consentâneo às suas necessidades;

II - ser tratada com humanidade e respeito e


no interesse exclusivo de beneficiar sua saú-
de, visando alcançar sua recuperação pela
inserção na família, no trabalho e na comuni-
dade;

III - ser protegida contra qualquer forma de


abuso e exploração;

IV - ter garantia de sigilo nas informações


prestadas;

V - ter direito à presença médica, em qualquer


tempo, para esclarecer a necessidade ou não
de sua hospitalização involuntária;

VI - ter livre acesso aos meios de comunicação


disponíveis;

56 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


VII - receber o maior número de informações
a respeito de sua doença e de seu tratamento;

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico


pelos meios menos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços


comunitários de saúde mental. (BRASIL, 2001)

A Lei reafirma a responsabilidade do governo de formular


políticas de saúde mental, apoiar e facilitar as intervenções
de saúde para pessoas com transtornos mentais e integrar
os pacientes na participação da comunidade e da família no
processo.

Unidade 1

SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA 57


E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu
mesmo tudinho? Agora, só para termos certeza de
que você realmente entendeu o tema de estudo
RESUMINDO deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos.
Conhecemos as lutas do movimento antimanico-
mial, todas as conquistas em relação à redução das
internações e do tempo delas, quando considera-
das necessárias. Todo esse esforço se deu após a
realização de conferências e de congressos não
apenas dos profissionais da saúde, mas com outros
atores sociais como pacientes, seus familiares e
ativistas dos direitos humanos simpatizantes desta
causa para reivindicar uma assistência psiquiátrica
mais humanizada. No Brasil, desenvolveu-se um
modelo de psiquiatria democrática, idealizado sob
Unidade 1

a liderança do Dr. Franco Basaglia, que incluía o


fechamento dos manicômios, atendimento de pa-
cientes psiquiátricos em contato com a comunida-
de, avaliação durante o tratamento, resgate de sua
dignidade e empoderamento, para cuidar de si de
forma eficaz e proteger seus direitos humanos. Fi-
nalmente, no Brasil atual, esse modelo vem sendo
adaptado ao nosso país desde a entrada em vigor
da Lei n.º 10.216/2001, que normatizou a Reforma
Psiquiátrica brasileira. Vimos também que os Caps
tratam os indivíduos e apoiam as famílias de forma
integrada ao seu quotidiano, concedendo-lhes au-
tonomia e independência, tratando-os de uma for-
ma que efetivamente salva direitos historicamente
destruídos. Contudo, percebemos que toda essa
luta está retrocedendo, mas esse movimento não
foi abalado, por isso, podemos acreditar que ainda
haverá muitas mudanças nos próximos anos.

58 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA


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62 SAÚDE MENTAL E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA

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