Sete Doses de Realidade

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SETE

DOSES
DE
REALIDADE

Por Maximo mXm.

1
Sumário

Prólogo 3

MAL DO SÉDULO 4

NÃO HÁ TEMPO QUE VOLTE 7

EU BEM QUE TE AVISEI 10

A JUSTIÇA É SÓ A IRMÃ CAÇULA DA UTOPIA 16

PISCADAS PARA O SUCESSO 21

OS CONSOLOS NÃO SAEM DOS MEUS PENSAMENTOS 25

RETRATO PRETO: REALIDADE CATINGUEIRA 28

2
Prólogo

Eu sou um gato-negro, negro-gato com sete vidas. Sete doses de verdades doídas. Sete
motivos para acelerar a partida. Sete partes espalhadas num mausoléu sem saída.

Sou o esgoto e o rio no qual ele desemboca, a água contaminada que traz pestes
mundanas com gotas de doença aos desafortunados. Sou o motivo de tudo e o mais
impotente guerreiro na luta contra o descaso.

Sou um sorriso de criança, a esperança de uma dança, o cansaço de uma mudança, quem
paga a fiança do líder da insurgência.

O motivo. O estopim. Um cílio. Uma centelha. Um flash. Um apagão. O brilho da favela!

Minha pele te repele, mas quando o frio da noite ferve, tu quer um casaco dela, tipo um
abraço de novela.

E esse mundo de novelo revela o óbvio da caravela: Eu não sou daqui!

Cara, vela este desvelo em me ver na cela!

De novo, eu sei que não sou daqui e meu mundo acabou!

Tu diz que eu sou selvagem, mas raivoso é o sinhô!

Me repele e me repete que meu mundo acabou!

Mas quem o acabou?

Quem o desbravou?

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MAL DO SÉDULO

Um poeta negro recita.

Pelas esquinas, vielas e becos


Na tentativa de fuga contra mim mesmo…
A trilha?
É a chama do isqueiro
Que aquece a fogueira
Da montanha.
Tem sido assim,
Sozinho ali,
No escuro,
Que a maldosa me ganha
Mas eu não vou apanhar pra ela…
Até porque…
Mais duras que essas pedras,
Já são minhas ideias.

E a depressão? É o mal do século?


Ou a doença da moda?
Não sei, não sei se estou tão sédulo,
Não sei o que me incomoda
E se eu ri, nem sei do quê!

E a vida vai passando na minha frente,


Enquanto ela passa, passa junto um mar de gente.
Gente que me critica porque quer que eu nade,
Mas se eu não mergulhei ainda, não é questão de ser covarde,
É que
Mal e menos sei boiar,
Ninguém me ensinou…
Tu na tuas aulas de nadar,

4
Eu a milhão com minhas corridas, pô!
Tu se ligou? Tu se moiô! E o que que eu sou?

Só um gari garimpeiro
Nesse covil baroneiro
Bolso vazio, cabeça cheia de problemas
Que resolvia nem com dinheiro!
História repetida
Que tu já ouviu várias vezes e
Não fez nada pra mudar a não ser por interesses,
Então quem és tu pra falar dos nossos pulo?
E quem nomeou você pra definir o que é escrúpulo?

Eu errei e eles erraram, sim. Me diga, quem erra mais?


E nessa de quem errou, eu ainda tô pagando pelo erro dos ancestrais
Dos outros,
Que aumentam o muito tirando de quem tem pouco.
Poupe o troco, gaste o tempo com o drama de bacana que ele mesmo botou pra tu
assistir,
Discuta o voto das questões sobre nós que tu só vai discutir.
Desculpe, mas foi o que eu vi
No jogo que fizeram pra você e pra mim
E não entendi porque tem vários aqui
Que ainda acha que
Dá pra acreditar em
Deixar um deles por ali!
Desculpe, mas foi o que eu vi,
To vendo, não li, vivi…

E a vida vai passando na minha mente,


Uma guerra de egos me corroendo internamente, fi
Cando esquizofrênico a cada dia que passa…
Já nasci assim…
Era pequenininho e já não sabia quem eu era.

5
Entre os achados e perdidos dessa terra,
Eu nunca soube o que eu quis,
Pra ser sincero, nunca fiz
Questão de saber,
Tudo isso ia resolver o que?
E quem falou que eu tô aqui pra resolver?

Soluções… todo mundo quer achar


Sem se importar
No que vai desencadear…
Mas tranquilo, engole o choro e vá lá vadiar, festejar,
Até porque se alguém parar pra te escutar
Só vai analisar as rimas pobres terminadas em ar
Termina o ar, mas não termina minha loucura,
Vários dedos para apontar nenhum pra ajudar a achar a cura ,
E nessa conjuntura,
Quanto mais penso e repenso,
Percebo que quem mais me percebe é o meu silêncio…
E mal de amor, queria que fosse o meu,
Só que eu nem sei que porra é essa porque nuna ninguém deu!

6
NÃO HÁ TEMPO QUE VOLTE
Uma mulher com um copo cheio de um líquido qualquer e um rótulo escrito
CHORO, cujo conteúdo ela vai consumindo aos poucos.

(ironia e deboche)
Nossa… sentimental, né? Profundo o menino… Impactou-me!
Ai, ai…. “Queria um mal de amor”... ai, ai…
Tá vendo, ó? Não transa, fica assim…
Com vontade até de levar galha hahahaha
Carência, né? Cruzes!
Mal de amor… Que amor, vida? Acorda! Olha onde tu tá!
(trecho da música Só Rock parte 2 de Major RD)
Love não tem, Love não tem!
(no ritmo de Não existe amor em SP)
Não existe amor em lugar nenhum….

Galera agora acha que palco é terapia, né?


Vem aqui aluga o ouvido de geral, ui, como sofro…
E ainda querem que aplaudam isso…
E ainda querem que paguem pra isso…

Ficam putos se não pagar, tá?


“ui, ui, ui povo sem cultura ble ble ble… se fosse pra cerveja todo mundo dava
dinheiro”.
Mas é lógico:
(ri ironicamente) Cerveja refresca, alivia, escorre gostoso na garganta da gente,
(ssssssuspira) parece o gozo de deus!
E esse chororô todo faz o que por mim? Por nós? Por alguém? Que utilidade tem?
Não, sério, alimenta alguém? Cura? Algum prazer que seja? Deixa pelo menos mais
inteligente? Um emprego? Sim, pelo menos um emprego? Será que vira questão do
ENEM? Imagina: Uma lágrima escorre do rosto de um ator que não consegue
segurar seu rolé a 15 m/s, com qual velocidade você vai embora da plateia?

7
“Ah, não, mas é necessário” “Nós temos que falar sobre”...
Necessário pra quem? Eu mesma necessito é de ooooutras coisas…
Dinheiro, por exemplo.

Mas é isso, também, né…


Todo mundo tem direito de falar o que quer quando quer, não é mesmo?
Mas a gente também tem o de não ouvir!!!

Ai, gente vamo fazer um churrasco?


Sério, faz tanto tempo que eu não como uma carninha e alguém inventou de querer
falar de cerveja, uh, tô como?
E chega desses papo deprê também!
Vamo queimar uma carne, botar um samba, ripar até o pau cair a folha!
Porque (no ritmo de Tempos Modernos, versão Claudinho e Buchecha)
Não há tempo que volte, amor… vamos viver tudo que há pra viver, vamos nos
divertir!

Ai, tô tão cansada… só queria relaxar um pouco, dormir não tô conseguindo


mesmo… saudades de descansar minha beleza, deus me livre ficar feia!

Mas é isso, churrasquinho, cervejinha e não se fala mais nisso…


Tem que ver quem a gente chama também, né?
Ai, não quero ficar fazendo sala praquelas pessoas tédio que só falam de política,
classe e bla bla, nem muito menos de papo vazio com aquele povo meio lerdo que
só fala de desenho.
Nada contra, mas não é a minha, sabe?

(pra alguém da plateia)

Você vai lá,meu amor? Traz uns seis fardinho acho que dá né? Depois a gente faz
seu pix… Vai lá, a gente espera você voltar pra continuar…

8
Pega o celular, conecta o bluetooth numa Caixa de Som.

Fala um samba aí, você. Um pra cima, animado. Que nem a vida!
A vida tem que ser pra cima! Pra sorrir! Mesmo quando parece que não tem
motivos, se a gente se forçar mesmo, a gente acha algum. Mesmo que ela não
queira nos sorrir de volta, que seja só nós com nós mesmos.
E nesse nós, eu quis dizer no sentido menos coletivo possível, uma junção de eus
mesmo, sabe?

A gente tem que buscar algum motivo pra sorrir. As coisas não são fáceis. Nós
temos que ser mais difíceis. Não adianta esperar alguém trazer uma bandeja com
um prato com sabor de solução pros nossos problemas, nós temos que ser os
solventes, os corajosos os…

Vai ficar esperando alguém te amar? Não! Se ame antes!


Mesmo que nós, digo, você nem saiba o que é isso… amor… amor… mal de
amor… (pra si)
Queria que fosse o meu...

9
EU BEM QUE TE AVISEI
Uma mulher preta na casa dos 50 anos com um cabo de enxada pingando sangue
em uma das mãos. Deixa o cabo no chão. Senta-se, começa a lixar as unhas e
conta essas histórias como se tivesse as revivendo:

Dei. Dei mesmo! Dei com gosto! Eu disse que ia dar!

Falta de aviso não foi, eu disse a ela, eu disse. E disse com todas as letras:
SE VOLTAR AQUI, VAI TER DE NOVO E DESSA VEZ, EU NÃO VOU PARAR!

Voltou porque quis. Porque é besta! A pessoa avisa que tu vai tomar e tu volta? Pff!!
Tem que ser muito besta!! Fosse comigo, eu não voltava.
(ri como se nem ela acreditasse)
Mas eu nem estaria nessa situação. Eu sei respeitar…

“Ah, tinha que ter autorização do movimento antes”, mas o movimento não tá aí pra
nossa defesa? Digo, por justiça? E a pessoa? A pessoa foi lá pedir autorização do
movimento pra ficar na porta da minha casa me ofendendo? Me chamando de
vagabunda, de pilantra? Com os meus filhos ouvindo? Tentando me ofender me
chamando de puta? Digo tentando porque àquela hora da noite as putas tavam
onde? Ganhando dinheiro, trabalhando. E aquele cotoco de gente? Na minha porta
com várias ofensas… Ah, não era pra mim, era pra a Dena, mas tava na porta de
quem? Quem passa na rua e vê isso acha que é pra quem? Que sou eu a
vagabunda!

Tudo isso porque eu fui mole…


Por que assim, eu disse a Dena no momento que ela voltou com aquele traste:
“Olhe, sua idiota, se você quer ser saco de pancada, você seja, mas na próxima vez
que tu apanhar e vier na minha porta, eu juro Dena, por tudo que há de mais
sagrado, tu vai apanhar dele e de mim, porque se é isso que tu procura, é isso que
tu vai ter. E mais, vai apanhar tu e vai apanhar ele! E eu não vou parar!”

Disse mesmo! Olhando na cara dela, eu disse.

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E qual o primeiro lugar que aquela porra procurou depois que o verme encheu ela
de porrada de novo? Pois é…

Na primeira vez, foi a bebida…


Deu até uma gotinha de pena, mas eu avisei também, eu lembro:
Eu botando o leite das crianças já, cansada, daí ouço umas batidas na porta de
casa, eu fui ver era ela, toda arrebentada.
Eu coloquei ela pra dentro e Talitinha vendo tudo. Que exemplo que minha filha tava
tendo? Que é normal apanhar de macho? Eu ia deixar a menina pensar isso? Eu?
Que sempre disse a ela: Minha filha, o homem que encostar em você ou em mim,
eu dou cabo!

Mas dessa vez não tinha encostado em mim, encostou na tia Dena…
E eu disse a Dena: Dena, se esse homem vier aqui, eu não respondo mais por mim,
eu vou porrar ele todinho, nem que eu tenha que pegar uma faca, um pedaço de
madeira, quero nem saber, ele vai ficar mais feio do que já!

E parecia uma coisa, menina! No que eu falei isso a ela e ela disse que ele não ia
lá, ele foi. Veio gritando todo bêbado, que era pra ela sair da casa do amante, que
se eu fosse homem, era pra eu sair de lá, totalmente fora de si… Eu era vizinha
desse infeliz, que amante?

Eu saí na porta, fui educada, mandei ele meter o pé, ralar peito, daí ele veio me
acusar, dizer que eu tava escondendo macho na minha casa! Eu? Esconder
macho? Aquele cotoco de homem gritando comigo? Eu cansada, ia acordar às 4h,
pegar três condução pra Jardim América e depois pro Meier, pra limpar casa de
madame e aquele parasita gritando comigo?

Ah, Deus me perdoe, mas eu não tenho sangue de barata!


Mandei ele a merda, ele ergueu a mão pra mim… ah, ele não fez isso!
E eu lá sou cachorro agora? Pra esse merda erguer a mão pra mim? (fala
gesticulando)
Peguei o cabo da vassoura e pum! Já dei-lhe uma nas perna! O bebum caiu, já
dei-lhe outra que o cabo até quebrou! Quando eu tava pra dar mais uma, aquela

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idiota da Dena não veio me segurar? Não disse pra não bater mais no verme pq “ai,
O Manel tá bêbado”?!

Pois aí é que o sangue me subiu e eu dei nela!


Mas não pra machucar, eu gosto dela, sabe? Foi mais pra ela me soltar, eu dando
uma lição naquele lixo por causa dela e ela vem me segurar?
Bom que ela se picou… parecia uma gazela manca correndo, só que toda
arrebentada, né?
Eu achei que ela tinha ido embora para fazer as malas do infeliz, a idiota voltou
com dono do bar do lado que ela foi pedir ajuda porque achou que eu ia matar o
benzinho dela! Eu? Não que ele não merecesse, né, mas eu não sou disso!

Ah, fiquei tão puta na hora! Mas já tinha terminado com o traste, falei pro Zé tirar ele
da minha porta que tava feio aquele troço ali, né.
Falei pra Dena nunca mais voltar, que se quisesse apanhar, ficar sem dente, dar
esse exemplo pra Jessiquinha, que apanhasse sozinha!
A Jessiquinha, tadinha, tinha dia que eu ia colocar a merenda dela no colégio, eu
nem conseguia reconhecer a menina de tão inchada que o infeliz deixava a menina!
Covarde! Eu queria que ele mexesse com uma filha minha só pra eu ter motivo, eu
queria!

Eu, por mim, capava todo homem que bate em mulher, mas a Dena se prestando a
continuar com aquilo? E ainda defende? E não dá nem pra dizer que ela precisava
disso, ele não movia um dedo pra ajudar. Teve uma vez que arrumei um bico pra ele
numa obra pra ir comigo, ele se picou antes do almoço e nunca mais voltou.
Vagabundo! Bebia o dinheiro da Dena todinho e depois ainda batia nela! Eu bati foi
pouco nele aquele dia.

Diz ela que ele ficou todo arrebentado, que no primeiro dia nem se mexia… Eu
cheguei a ver ele todo inchado, coisa mais feia… Fiquei até com um pouco de
remorso quando eu vi (ri sarcasticamente).

Disseram que, no começo, ele falava que ia me pegar, me matar e tudo, que eu ia
conhecer a facada do cearense…

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Eu mesma, um dia, ouvi ele falando que ia dar nessa nega folgada, que eu dei sorte
que ele tava bêbado…
Pois na mesma hora, menina, eu saí com um cabo de enxada na mão e disse: “Pois
você tá são agora, num é?”
Ele na hora afinou a voz hahaha dizendo que não precisava daquilo e correu
hhahahaha

Mas eu nem ia fazer nada, foi só pra rir um pouco, pra ele me respeitar.
Depois ele foi aquietando, parou de me jurar, teve uma vez que ameaçou chamar a
disciplina, mas deve ter lembrado que quem batia em mulher era ele, né…

O tempo passou e, do nada, ele ficou quieto demais.


Fiquei desconfiada…
Não deixava nem as criança brincar na rua mais…
Quer dizer, tentava, né? Meu mais novo dá um trabalho! Mas um trabalho!
Olha, se eu for contar o começo, a gente não sai daqui hoje…

Mas o traste tava bonzinho demais pra ser verdade, a Dena já nem falava comigo
direito, ficava pra cima e pra baixo com aquele cotoquinho dela, até ontem.
Um ontem que acabou hoje. E que eu acho que nem acabou. Eu espero que sim…

(suspira e bufa, reflexiva) Por que as coisas não podem só dar certo? Logo agora! O
pai dos menino até deu um ar da graça, mandou um dinheiro, um milagre tão
milagroso que eu achei que até era um sinal! Mas de coisa boa… Como sou
iludida…

As criança indo dormir de bucho cheio, feliz da vida, eu não tava nem pensando que
ia ter que ir pra Quintino cuidar de velho hoje cedinho, e eu odeio cuidar de velho,
com todo o respeito, velho é legal quando não tem que cuidar deles, quando tem é
uma desgraça, Deus me perdoe, velho é tinhoso, mija todo o chão, isso quando dá
tempo de não mijar na roupa, olhe… e o de hoje era logo em Quintino, longe para
Meireles!

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Mas eu estava feliz ontem, tava nem ligando, não vou dizer que tava querendo ir,
mas tava tão feliz que nem tava ligando, daí ouço a voz da Dena toda se gemendo,
batendo de novo na porta…

Eu tinha dito que não ia abrir, eu sei, eu disse. Mas sou mole, fazer o quê?

Ficou um silêncio e eu abri…


Quando eu vi aquilo… parecia nem gente… só sangue… eu não consegui… eu não
conseguia ver se ela chorava ou não.
Eu sei que eu disse a ela que não batesse mais em minha porta, mas… não
consegui deixar ela ali, não…
Não é isso que a Palavra ensina… a Palavra ensina amor ao próximo!
Mesmo que a próxima peça pra apanhar!

Coloquei ela pra dentro, mandei o Maiquinho pegar uma água, fui cuidar das ferida
do jeito que eu sabia, como eu podia.
Não tinha muita coisa e ela não queria ir pro médico. E também, onde a gente ia
arrumar médico uma hora daquela?
E tudo fechado, ninguém entrava ninguém saía… (sussurra) os milicianos.

Só podia cuidar dela, e cuidei…. tava cuidando pelo menos… quando ouvi a voz
daquele verme xingando tudo que é nome. O olhar da Dena, a única coisa que dava
pra ver na cara dela era os olhos… ela me pediu com os olhos pra eu não dar bola,
só esperar aquele pesadelo acabar… eu entendi… eu concordei… mas o
Maiquinho…

O Maiquinho é terrível esse menino, eu disse, né? Ele é só uma criança. Ele xingou
de volta, mandou aquele verme meter o pé! Eu mandei o Maiquinho pra cama, mas
no fundo eu entendia ele… eu também queria gritar, xingar, aliás, xingar não, eu
queria o sangue do Manel, aquele filhadaputa, foi a bebida de novo?
Pois eu queria enfiar a garrafa cheinha no cu dele e só tirar quando esvaziasse…
uns três litros… Essa era a minha vontade, mas eu tinha que respeitar a da Dena!

14
Até que ele resolveu xingar o Maiquinho, chamou o meu filho de neguinho do
pastoreio, e eu ele chamou de Xita… Xita da Silva era como ele me chamava
quando eu não tava perto.

Sabe, eu nunca me orgulhei das brigas que eu me envolvi.


Confesso que sempre fui muito esquentada, é verdade, mas sou uma boa pessoa,
não gosto de briga. Não admito que meus filhos briguem!
Nunca briguei sem razão, sempre tentei evitar, mas de onde eu vim, onde eu moro,
é assim, a gente aprende a se defender como pode, como dá…
Eu não me orgulho de ter batido nem no Manel, nem no marido da Dinália, mas
vocês acham que eu to errada? Sério, vocês acham que eu to errada? Pode falar…

Minha mãe criou a gente dizendo que quem muito abaixa, o cu aparece!
E eu não nasci pra andar mostrando o meu pra qualquer um… até mostro, mas pra
quem me trata no carinho, sabe? Por isso não é pra muitos…
É difícil achar quem trate a gente do jeito que a gente merece, né…

Mal de amor, eu também queria que fosse o meu…

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A JUSTIÇA É SÓ A IRMÃ CAÇULA DA UTOPIA
Consultório. Um jovem paciente e um terapeuta por volta dos 38 anos (ainda não é
40). Talvez o terapeuta precise mais de um psiquiatra do que o paciente dele.

TERAPEUTA

(ofegantemente) Eu sei o que é amor. Tá bom, talvez eu não saiba, mas eu sei que

tive amor. Amor de mãe.

Amor só de mãe, mas tive. O melhor amor possível, aliás, o amor de mãe, ele se

confunde muito com amor-próprio, porque se alguém que a gente admira tanto ama

alguém, a gente acaba procurando motivos para amar também.

PACIENTE

Poético! Mas eu não quis dizer exatamente isso, o que eu falava era…

TERAPEUTA

No meu caso, eu não sei se encontro. Já pensei em fazer tantas merdas comigo, fiz

algumas, mas estou aqui ainda, toda vez que eu penso numa merda maior, eu

lembro que mamãe não mereceria.

PACIENTE

Freud explica, né... Doutor, no meu caso, tenho pensado também em…

TERAPEUTA

Em pai, eu nem penso muito, porque não sou, não quero ser e o meu, se vivo, nem

sei onde está. Tem o mesmo nome que eu, o infeliz. Na aparência, pelas fotos, nada

a ver, talvez por isso sumiu, talvez ache que não seja meu genitor. Mas minha mãe

não teria por que mentir para mim. Para ele? Talvez… Mas para mim? Por que ela

mentiria? E outra, depois dele, ela só teve mulheres, então, de qual outro homem eu

sairia?

16
Pelo menos, dinheiro eu sei que ele mandou. Nunca me faltou roupas, comidas,

estudei em bons colégios, mas sempre me perguntei o quão confuso tem que ser

um homem para mandar dinheiros e dinheiros e nem sequer querer saber do filho?

Qual seria seu medo? É como alguém que paga uma fiança todo mês para não ficar

preso. Um boleto. Eu nunca lhe fui um filho, fui um boleto. O que fiz a ele? Enfim,

cada um com suas paranoias, né? Você queria falar algo?

PACIENTE

Você tá bem? Talvez não seria melhor marcarmos outra data?

TERAPEUTA

Não! Estou aqui para isso. Para saber de você, fale de você… Por que você diz que

não tem amor?

PACIENTE

Ah, é uma questão de infância também, sabe? Não só em casa, mas no colégio

também sempre foi muito difícil me enturmar, sinto que as pessoas não me aceitam

e… (nota que o Terapeuta além de não estar prestando atenção, tem os olhos

marejados, como se pudesse desabar em prantos a qualquer momento)... Essa

sessão vai ser cobrada?

TERAPEUTA

Quase 40 anos… e o que eu construí? Digo, o que alguém de 40 anos deveria ter

construído para ser alguém? Olhe para isso que chamamos de vida! Somos um

nome e um amontoado de celulose que nos dão alguma identidade ou sentido. Um

amontoado de celulose que indica nosso valor. Devíamos tomar o exemplo das

árvores! Imóveis! Apenas cumprindo sua única função para o Meio Ambiente. Nem

fotossíntese conseguimos fazer! Olhe para mim, veja se algum dia fiz algo em prol

do coletivo… O único coletivo que me interessa são os ônibus que eu não tenho

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mais que pegar. Tantos carros, tantas roupas, tantas viagens e tantas outras

futilidades com o propósito de compensar o que não tenho ou queria ter e não

posso mudar. Milhares de projetos inacabados, alguns cursos meia boca e nem

uma mísera sessão o inútil consegue concluir… Bem, você está aqui, eu estou aqui

e a hora é 50 reais…

PACIENTE

Acho melhor continuarmos outro dia, então, funciona para você? (levanta-se em

direção à saída)

TERAPEUTA

Isso! Me deixe eu mesmo solucionar os danos de minha insignificância! (Pega uma

garrafa e um copo no qual começa a misturar os mais variados medicamentos)

PACIENTE

(volta) Que isso?! Não fale assim! O senhor fez várias coisas bem feitas

O Terapeuta olha estaticamente para o Paciente, os dois se encaram por um tempo.

O Terapeuta volta para sua receita de overdose.

PACIENTE

O artigo! Aliás, os artigos! O que o senhor escreveu é utilizado até hoje nas

melhores universidades do país! Olhe a quantidade de prêmios na sua parede!

TERAPEUTA

ChatGPT… O que não for, são os contatos. Apesar de não ser de família nobre, eu

sempre tive uma boa lábia, sou um enganador profissional! Engano até a mim

mesmo… Meu Deus, tantas oportunidades que tive de me sair alguém melhor!

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Deus… se existisse, seria sádico, não é? Tantas pessoas talentosas, esforçadas e

na miséria precisando das oportunidades que eu jogo fora!

PACIENTE

Justiça é só a irmã caçula da utopia…

TERAPEUTA

E é tortuoso também a mim… Ter minha impotência escancarada assim na minha

cara!

PACIENTE

(irônico) Justiça é só a irmã caçula da utopia!

TERAPEUTA

Atendi favelados que chegaram mais longe! Mulheres violentadas que conseguiram

encontrar beleza na vida, autoestima e amor-próprio, já eu… com tudo para dar

certo, não consigo nem esse básico… me amar. Nem eu sou tão burro a esse

ponto.

PACIENTE

E sua mãe?

TERAPEUTA

Mantenha-a fora disso!

PACIENTE

Mas você disse algo sobre amar quem ela admira e…

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TERAPEUTA

Devo ter inventado, invento tudo! Sou uma farsa! Isso tudo é uma farsa! Crio

histórias e fantasias para chamar atenção. Ou desviar a atenção. É tudo uma

questão de atenção, de foco. E nós estamos sem tempo!

TERAPEUTA

Já disse, sem tempo! Sem justiça. Sem nada. Lutar é inútil, definir limites, se

posicionar e todas essas baboseiras psicológicas que só servem para tentar te

colocar novamente nos trilhos das ilusões para seguir produzindo. Você não

acreditou nisso, acreditou?

Terapeuta nota Paciente olhando fixamente para o copo com o coquetel de

remédios.

TERAPEUTA

Ah, isso que te preocupa? Ser o último a ter contato com o louco que se

automedicou até demais? Entendo. Também não acharia interessante estar ligado a

algo do tipo. Não se preocupe, isso não é para mim. Pode ir embora tranquilo! Não

é para mim, é para eles! Nenhum esforço é inútil quando falamos de tratar a cólera

do mundo, ou ao menos de tentar! Assim, quem sabe, não resolvo os danos de

minha insignificância?

Alarme soa.

TERAPEUTA

Bem, deu nosso tempo. Temos que considerar nosso avanço hoje, não é? Você

definiu bem suas posições e limites! Retomamos daqui na próxima semana.

Se dirige até a porta do consultório e se despede.

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PISCADAS PARA O SUCESSO
Música motivacional ao fundo. Um coach com roupa de coach, microfone de coach

e dois tradutores, um de libras e outro com cartazes inglês. O coach:

Então vamos lá, um livro dessa magnitude é difícil de resumir, mas não há nada que

nós não só não tentamos, como também conseguimos. E o porquê eu estou aqui

para te passar de forma totalmente gratuita o conteúdo de um livro que demorei

tanto para escrever? Um conteúdo tão valioso? É o que você deve estar se

perguntando e a resposta e resposta é de uma simplicidade, mas tão incomum que

chega a ser difícil de acreditar:

Eu quero que você tenha uma vida extraordinária! Fora dos padrões! Uma vida de

quem não se conformou com a escassez, com a derrota. Eu me lembro de anos

atrás, quando eu era só um gordinho que sofria bullying no colégio, mais um do

grupo dos derrotados, alguém que tinha aceitado que sua vida era apanhar na

escola e se contentar com as migalhas que a vida dá. Nós morávamos de favor na

casa de meus avós, hoje eu comprei mais uma casa de veraneio em Noronha!

(aplausos).

O que só foi possível, porque ao contrário dos meus colegas, eu entendi que não

tem como esperar resultados diferentes, fazendo sempre as mesmas coisas e

chegou um dia em que eu disse basta! E é isso que eu quero que você entenda,

você precisa dizer basta! E como dizer basta? Assim: BbbAaaaaSSSsTttaaa!

Vamos todos juntos, no três! É um, é dois, é três! Basta! (aplausos)

(Retira um lenço do paletó e seca a testa) Viram como é libertador? E você precisa

acreditar, você pode ir muito além! Basta acreditar. Mas não só acreditar. É preciso

viver o processo! Disciplinarmente. Ter constância. Ter foco nos mínimos detalhes,

sim, nos mínimos detalhes. O foco é essencial nos mínimos detalhes. São eles que

fazem a diferença! O código do bem suceder é formado pelos detalhes.

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Detalhes que passam despercebidos por nós durante o dia a dia, um péssimo

costume de nossa geração, mas nada que não possamos consertar.

A última vez que você bebeu água… você se lembra como foi a última vez que

você bebeu água? Com qual mão você segurou o copo? Foi num copo? Em uma

garrafa? Qual era o gosto d’água? Quantos goles foram precisos? Você precisa de

mais goles do que outros?

Se você não colocar essas questões no seu mindset, nada vai mudar. Você quer ser

um bom pai? Você precisa ser um exemplo vitorioso! E qual vitorioso não tem

controle sobre a própria vida? Se beber água faz parte da vida, temos que beber do

jeito certo!

Assim como piscar, sim, piscar! Estudos comprovam que em um dia um ser humano

pisca em média 34560 vezes, com uma duração média de 150 milésimos de

segundos. Fora isso, 50 milésimos de segundos antes de cada piscada, o cérebro

desliga o olho. Isso significa que em uma vida de 70 anos, são 21 dias de cegueira!

21 dias sem enxergar porque transferimos a responsabilidade de uma função básica

como piscar para o nosso cérebro!

Pare para pensar nisso. Aliás, não pare! Pense em movimento! Sempre em

movimento. É uma máxima do universo, não há tempo que volte!

Mas pense: Por que vamos deixar a responsabilidade do piscar para o cérebro? Por

que usar o cérebro… se podemos nós mesmos assumir o comando? Por que não

expandirmos nossa visão que pode chegar a ficar 21 dias no escuro? O quanto da

vida deixamos de ver? 21 dias!

22
Foi pensando em recuperar esses dias perdidos que desenvolvi esse método que

eu chamo de Método Pálpebras. No método Pálpebras, eu te ensino a otimizar o

tempo com técnicas para se piscar mais rápido. São códigos desenvolvidos

especialmente para reduzir para micro o que é mili!

É justamente essa atenção aos detalhes que vai trazer o sucesso para sua vida.

Trouxe para minha e para os mais de 5 mil alunos do nosso curso Piscadas Para o

Sucesso!

Eu não faço isso visando o lucro, eu tenho minhas empresas, minhas ações, minhas

commodities rendendo para mim, eu não preciso vender livros. Só que na vida a

gente não pode visar só o dinheiro. É sobre o que a gente vai deixar para o mundo,

gerar valor para o próximo.

E você pode até pensar que parece mais uma daquelas conversas e promessas que

se ouve todo dia e de fato, não tenho garantia nenhuma para oferecer além dos

impactos na minha própria vida, que não escondo de ninguém, e na dos milhares de

alunos que seguem o Método Pálpebras e das vidas transformadas por ele.

Por isso, faço este convite a vocês, um convite a ter coragem, a mostrar de fato, o

que é que te molda. Do que essa joia é forjada. E se você tiver essa vontade, essa

garra, tenha certeza de que não está sozinho e tenha certeza de que sim, você

pode mais!

E de novo, gente, eu não almejo lucro com o Livro das Piscadas sem Pescar,

porém, tem toda uma equipe por trás da confecção dele. Uma equipe que merece,

sim, ser valorizada, reconhecida e paga pelos seus serviços. Equipe séria e liderada

por mim, ainda mais sério!

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Então, por apenas R$ 99,99, promoção relâmpago, você pode dar início a uma

jornada vencedora! Uma jornada que agora está aí na sua frente, a uma decisão

sua. Decisão que só você pode tomar!

Bem vindos, despertos!

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OS CONSOLOS NÃO SAEM DOS MEUS PENSAMENTOS
Um empresário/empresária, enquanto distribui hóstias para o público:

Os pensamentos têm poder.

O consolo do pobre é a fé que vencer e ser um bom samaritano andam juntos.

O consolo do pobre é ter saúde o suficiente para não parar no fim da fila do SUS.

O consolo do pobre é acreditar que amanhã vai ser melhor.

O consolo do pobre é a alegria de viver, é viver para melhorar. E não tem melhora

sem trabalho.

O consolo do pobre é o que sustenta essa foda que ninguém goza.

O consolo do tirano é simplesmente pensar que todos fariam o mesmo se

estivessem em seu lugar, se tivessem o seu poder.

Por pressão de quem está acima?

Por querer acreditar numa igualdade?

Se todos são ruins, por que não ser pior?

Às vezes, penso que o caminho mais fácil para se sentir bem é simplesmente se

enganar...

Repetir a mesma mentira várias e várias vezes até acreditar nela... melhor, ela

aparece na nossa frente, se concretiza!

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Lembrei de uma vez, na esquina do meu prédio, vi uma mãe dando restos para os

filhos, dizendo ser uma lasanha recém-saída do forno…

As crianças pareciam acreditar, sorriam e degustavam de uma maneira que eu até

acreditaria, se não tivesse acabado de degustar uma suculentíssima lasanha com

massa de palmito e queijo stracciatella.

Viu? Os pensamentos têm poder sim! Quem diz o contrário só não pensa direito.

Me apego muito nisso...

E a vantagem dos pensamentos é que eles são secretos até que a gente diga que

não. A igualdade está nessa escolha.

Tomemos eu como exemplo, leciono na BA, tenho peças em cartaz, prêmios atrás

de prêmios, indubitavelmente, sou muito relevante no meio artístico.

A todos é sabido que defendo a arte. E defendo mesmo... mas, do meu jeito, todos

temos um jeito próprio de fazer as coisas. Todos temos nossos segredos, não é?

O mercado! Sim, o mercado! Sou conhecedor do mercado, estudo-o, analiso-o, por

isso ele é tão benevolente comigo, por isso o defendo.

E defendo artistas de verdade! Que se dedicam também para ter uma relevância,

que sabem que não é sobre desenhar migalhas e se dizer independente!

Ah... esses artistas "independentes"!

Esses artistas ditos independentes não passam de uns chorões que se recusam a

entender o mercado...

Veja, o mercado está aí... Para quem quiser ver, para quem quiser entrar, para

quem quiser... mas querem?

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Não querem... querem reclamar das calcinhas que a Madonna nem usa e já joga

fora…

E aposto que nem lavam as próprias calcinhas.

Veja, o mercado está aí, para todo mundo... os mesmos mercados, se no meu
vende nozes holandesas, sorte a minha...
O deles vende o melhor baseado e eu não estou reclamando, estou?

Os pensamentos têm poder!

Tiranos? Talvez! Selva? Com certeza!

Isso é uma selva com vários caminhos e lembre-se:

O melhor caminho para se sentir bem é se enganar e o melhor caminho para se

enganar às vezes é... enganar... tãrã!

E nem precisa enganar a todos, talvez só quem de fato seja necessário.

Se o cachorro não sonhar com a liberdade quando passeia, ele vai perder a

vitalidade. Que utilidade teria um cachorro sem vitalidade?

É essencial reportagens de águias e filmes sobre a Fênix, do contrário, no que o

pobre vai acreditar?

Se a polícia matou seu irmão injustamente, entre para a polícia e mude a corrupção

de dentro! Está me sentindo?

É sobre desenhos de super-heróis! Quem não quer ser o homem-aranha? Que

criança não sonha em crescer e comprar uma casa para os pais?

Quem não quer um consolo?

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RETRATO PRETO: REALIDADE CATINGUEIRA
Um homem preto:
E aí, tudo bem? Eu sou o Preto. Meu nome é Preto. Tá tudo preto comigo graças a
Deus! Você não perguntou, mas tá. Eu tenho negros anos de idade. E 23 minutos
restantes que juro que vou usar pra dar o que vocês tanto querem.

Antes gostaria de falar um pouco sobre mim, ou o que deveria ser eu. Só dessa
vez.

Como nós estamos em São Paulo, bora começar em como eu posso ser útil para
você, garanto que sou um trabalhador bem dedicado. O currículo?

Bem, sou formado em Pretaria da Arte com ênfase em Negritude Sexy, possuo
também uma formação técnica em Aparências de Casa Grande e tô iniciando agora
meu MBA em Negro Divertido.

São décadas e décadas de experiência nas mais diversas áreas que tu puder
imaginar, acho que possuo todos os requisitos para uma vaga que vi que abriu na
Concha Amarela, aquele teatro famoso lá na Consolação, tá bem concorrida
inclusive…
Mas creio que com esforço, eu consigo preenchê-la…Aquela tão sonhada vaga…
de porteiro.
É uma vaga tranquila, dedicada a nós, exuberantes exóticos, vou ter que
desempenhar algumas atividades até que simples, nada que eu já não tenha feito
antes: atender os clientes, vender bilhetes, limpar o chão, os banheiros, a louça,
decorar uns textos pra ajudar os atores, às vezes escrever os textos, cuidar da
iluminação, do som, mostrar minha piroca no palco e ajudar na reforma que tá tendo
nos fundos... fui servente de pedreiro também.

Paga até que bem, papo de 2500! É de segunda a sexta, então vou ter o fim de
semana todinho livre pra fazer uns freela… mamão com açúcar! (ri como quem
tenta acreditar na própria mentira)

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E, além do mais, se eu economizar na janta, vai dar pra comprar todos os remédios
dos meus irmãos, digo, irmães, sei lá como fala...
Na verdade, eu preciso me atentar nisso na entrevista, afinal, a Concha Amarela é
uma instituição bem politizade nas causas, sabe?

Aliás, doido isso, né? Às vezes eu paro para pensar…


Em todos esses negros anos de idade que eu tenho, eu to sempre me atualizando.
Sempre buscando uma maneira de chegar menos atrasado, saca? E toda a vez que
eu consigo entregar essa cordialidade que tanto me pedem…
BUM!
Eles mudam tudo de novo! E lá vai eu, de novo... o errado, de novo... agressivo…
Eu sempre tento fazer eles gostarem, mas só me enxergam quando me irrito!
E eu vou fazer o quê? São eles que mandam no que muda ou não muda!
Mas vou seguir aqui... tentando ficar certo, quem sabe um dia me encaixo…

Pra ser sincero, tenho um pouco de medo de quando esse dia chegar, se algum dia
conseguir me encaixar. Não me entenda mal, eu adoraria ter alguém pra me trazer
um café, mas a ideia de mandar em alguém... Não sei se é pra mim.

Aliás, o que é para mim? Sempre me perguntei. Sempre me falaram o que não é.
Mas e o que é?

Tenho medo de ficar doido às vezes, sabia? Que nem aqueles mendigos velhos que
têm vários talentos, mas tão no relento, agindo que nem doido…
Às vezes, acho que tô ficando…
E eu nem tenho o talento que era pra eu ter… a ginga!
O que é pra mim?

Bem, eu tô preparado pra resposta que você me der. Eu consigo entregar o que
vocês querem.

Posso ser aquele seu parceiro funkeiro ou do pagode que tu sempre encontra na
rua, faz uns passin, elogia o cabelo, tira foto, bota no insta e mostra toda sua
desconstrução.

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Ou posso ser aquele seu amigo gangsta que curte um rap, cara fechada, que toda
droga que tu usa, tu diz que pegou com ele só para botar medo nos outros e tu se
sentir mais descolado, sei lá…
Posso ser aquele neguin engraçado, que fala errado, mas sempre sorridente e te
contano as situação mais engraçada para tu se esquecê dos seus pobrema, ou do
que tu acha que é pobrema.
Eu posso entregar risadas também, rir de toda piada de preto que tu fizer, mesmo
que não tenha graça só pra tu não parecer racista.
Se quiser, eu mudo de visual também, pinto o cabelo, faço umas tranças ou
simplesmente corto o cabelo, se bem que tá mais na moda deixar sem cortar, né?
Passa uma vibe, sei lá, de orgulho da minha cor e aumenta o seu voucher andando
do meu lado.
Melhor ainda, se tu tiver um projeto com cota para preto, pique aquelas peças
brancas sobre candomblé e ciranda, eu posso ser a capa.
Mesmo que eu apareça, sei lá, por 23 segundos. Ia vender bem, né?
Aliás, já pensou em me colocar na recepção? Ou minha irmã? Imagina só, a
imagem de consciência social que vai ter sua empresa: Você, enxergando uma
beleza negra!

Cara, interessante, aliás, do nada, digo do nada mesmo, ficamos bonitos. Acho que
eu teria que agradecer aquele comercial da Boticário, em 2014.

Do nada, agora eu sou bonito, não falo só pra patricinha que me queria no sigilo pra
irritar o pai dela, não… é que tipo do nada, tem gente entrando em microondas pra
ver se fica mal passado e sem lavar o cabelo pra ver se endurece…
Agora todo mundo quer tocar um tambor, puxar uma macumba, (com voz de
branco) fazer um samba, fazer rap, até funk.
Agora todo mundo quer ser…
Agora todo mundo quer ser preto… até ser! Desculpa, me excedi, mas olha…

Eu também posso ser aquele seu conhecido que sofreu muito, sabe? (voz de
branco) Que tem uma “puta história”!
Que você vai até contratar para cuidar do seu jardim pra me ajudar, e olha, vai até
me dar uma refeição, e quem sabe uma cesta básica?!

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Daí quando tiver visitas na sua casa, tu vai propor uma roda de conversa, pra falar
de mim como se eu não estivesse ali e quando cansarem, você me chama pra eu
desabafar…

Cara, interessante, aliás, eu acho no mínimo interessante que, de repente, do nada,


agora todo mundo quer falar da dor do negro brasileiro.
Mas, pera aí... não é qualquer dor, tem que vender, tem que ser um clichê, tem que
ter uma câmera, e mesmo que tu já tenha superado, negro, trauma é pra vender!

Mas, tranquilo, (com voz de branca) é sobre isso e tá tudo bem! Eu tô aqui pra dar
o que vocês querem, lembra?

Eu vou te falar da dor que eu sinto até hoje na bola esquerda quando eu vou dormir
por conta de um enquadro que tomei quando tinha 12 anos…
Mesmo que falar deles, bote uma luz na minha cara, digo, no meu alvo, para facilitar
a mira de quem você diz que odeia, mas ainda chama quando eu passo no seu
bairro e você fica com medo do quê eu também nem sei…
Eu vou fingir que não tenho problemas pra resolver hoje, eu vou te falar da polícia
invadindo nossa casa há mais de uma década e dando um tapa na cara da minha
mãe, na minha frente e dos problemas de saúde que esse estresse resultou a ela...
Ou você prefere falar da dor que é querer cagar sem ter nada na barriga porque há
mais de dias não sabia o que era comer? Relaxa, a gente faz de conta que tu não
olhou para mim com a mesma cara que tu olha para quem te pede um prato de
comida e tu prefere fingir que não existe.
Responde, porra! Qual dor tu quer hoje? Eu tenho todas!

Mas eu posso te respeitar, te contar numa terapia, daí você anota e conta minha
(ironicamente) “puta história” com um rosto que você achar mais bonito, que chame
mais empatia.
E nem precisa me dar créditos, nem te cobraria isso, entendo tranquilamente tu não
lembrar mais do meu nome, até me apresento de novo.

Pois bem, eu sou o Preto, falo preto, ando preto, tenho pretos anos de idade, o que
às vezes tu confunde com diploma em Bandidagem…

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E pra ser sincero, eu acho que ainda não fui hoje, né?
Eu já nem ligo para o que tu pensa…

Pera, pera, espera! Não fica mal, não chora! Difícil ouvir isso assim, né? E pela
primeira vez! Alguém que não liga para o que tu pensa? Ou que pelo menos
assume…
(irônico) Nossa, como fui insensível, grosseiro.
Mas é verdade, eu só não consigo mais me importar.
Tá bom, eu entendo que tu tá, sei lá, uns 500 anos construindo um lugar pra ser
ditado sobre o que você pensa, mas às vezes parece que tu só… esqueceu de
pensar…
Mas não liga pra isso, eu sou só uma minoria!
Você ainda convence muita gente!

Pois bem, eu sou o Preto, falo preto, ando preto, tenho pretos anos de idade, o que
às vezes tu confunde com diploma em Bandidagem…
Eu prefiro Malandragem, pode ser?
É que a vida ensina… e melhor que a sua escola, aliás… deixa pra lá!

Desde o começo da minha existência, ou da consciência que tenho dela, eu tento


de alguma forma fazer parte deste mundo. O mundo humano.
O mesmo mundo em que um dono de bar dá comida para um cachorro, mas me
expulsa se eu falar com os clientes de lá. E isso sem nem precisar pedir nada a
eles. Imagina se eu pedisse um prato de comida?
Imagina se eu usasse o banheiro? Imagina se me sentasse na mesa? Imagina se
eu arrumasse o cabelo? Imagina se eu mostrasse minhas poesias? Minhas artes?
Imagina se eu tivesse mais que 23 minutos…

Eu sempre tentei, desde pequeno, me ver parte de um grupo. O que já ficou bem
claro que não aconteceria, quando mesmo com a professora dividindo na sala de
aula os grupos, meus colegas relutavam em me aceitar. E mesmo aceitando, eles
só se fechavam entre eles, como se eu não estivesse ali. Pareciam nem me ouvir,
eu digo pareciam porque sempre usavam minhas ideias, como se fossem de outra
pessoa, deles, mas usavam.

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Você deve achar que estou falando só de uma fase da infância, mas… melhor nem
falar nada.

Eu sempre achei ter dificuldade em socializar, como se a dificuldade fosse minha.


Como se eu não conseguisse escolher a minha caixa. Preto exibido ou preto
submisso? Preto bandido ou preto empregado? Empregado sem salário, aliás.
Porque se eu não tiver um cano na cintura, eu estou ali para servir. Às vezes penso
que eu só deveria me render mesmo, aceitar logo esse papel que eu tanto tento me
afastar. É o que tem para mim. Primeiro me exigiram uma postura firme, de sujeito
homem, que tu vai insistir que é desculpa pra machismo até dar uma volta no morro
sem os seguranças do seu condomínio. Depois, tiveram medo até do meu bom dia
boa noite, quantos assaltos começam nesta educação? Daí, eu aprendi a falar mais
brando, coloquei um óculos de nerd e fui vender poemas…
Mesmo assim me perguntam se eu tenho drogas para vender.

E, sendo bem sincero, eu acho que nada disso me incomoda mais, sabe? Se tu vai
gostar ou não desse texto, desta leitura, acho que o único sentimento que eu tenho,
é o de que eu tenho que fazer meus bagulho, ganhar meu dinheiro e pagar minhas
contas.

E como eu te falei no início, eu tinha 23 minutos, e como eu ainda tenho que


arrumar e limpar tudo isso aqui depois.
Valeu! Nois se fala depois. Fé em Deus e na crianças!

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