Análise Das Diretrizes Governamentais - Daniel Martins Da Silva

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FIDES REFORMATA XXIX, Nº 1 (2024): 67-83

Análise das Diretrizes Governamentais


da Disciplina “Projeto de Vida”,
do Novo Ensino Médio, e Comparação
com a Cosmovisão Bíblico-Reformada
Daniel Martins da Silva*

RESUMO
Este artigo expõe as diretrizes governamentais da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) para a nova disciplina do Ensino Médio intitulada “Projeto
de Vida”. A partir dessa exposição, são analizados os seus principais pontos
em comparação com a Cosmovisão Bíblico-Reformada, a fim de desenvolver
abordagens e proposições práticas para o educador cristão se empenhar em
uma prática pedagógica redentiva. Isso se faz necessário tendo em vista que a
educação interfere diretamente no sistema de crenças que conduz às decisões
que se precisa tomar e às escolhas que se precisa fazer na construção de um
projeto de vida. Aquele a quem o ser humano adora define a sua identidade e
o seu sistema de crenças, e assim aquilo que se ensina para o desenvolvimento
da vida social. Mediante a confrontação das distintas visões, esta pesquisa
contribui para a percepção das oportunidades que o educador e a escola cristã
têm no mundo secularizado, materialista e humanista da atualidade.

PALAVRAS-CHAVE
Base Nacional Comum Curricular; Projeto de Vida; Educação cristã;
Escola cristã; Teologia reformada; Teorreferência; Cosmovisão bíblica.

* Mestrando (MDiv) em Estudos Histórico-Teológicos pelo CPAJ; mestre em Ministério pelo Se-
minário Bíblico Palavra da Vida; especialista em Educação Cristã pelo CPAJ; bacharel em Teologia pelo
Seminário Presbiteriano do Norte; licenciado em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco.
Pastor auxiliar da Primeira Igreja Presbiteriana de Casa Caiada e responsável pela plantação da Igreja
Presbiteriana Trindade em Recife (PE). Professor e auxiliar de capelania no Colégio Presbiteriano Agnes
Erskine. E-mail: [email protected]

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DANIEL MARTINS DA SILVA, ANÁLISE DAS DIRETRIZES GOVERNAMENTAIS DA DISCIPLINA...

INTRODUÇÃO
A educação é um campo de constante evolução e adaptação, refletindo não
apenas a busca do conhecimento, mas também a formação integral dos indiví-
duos. No contexto do Novo Ensino Médio, a introdução da disciplina “Projeto
de Vida” pelas Diretrizes Governamentais representa um marco significativo,
focalizando não apenas o acúmulo de conteúdo, mas também o desenvolvimento
pessoal, social e profissional dos estudantes. Esta pesquisa propõe uma análise
das respectivas diretrizes, à luz da cosmovisão bíblico-reformada.
As seções deste estudo abordam aspectos cruciais para compreender a
disciplina “Projeto de Vida” no contexto do Novo Ensino Médio, em contraste
e diálogo com a visão de mundo bíblico-reformada. Na primeira seção, são
exploradas as diretrizes governamentais, identificando sua estrutura, objetivos
e métodos, a fim de compreender a essência e o propósito subjacentes.
Na segunda parte, a análise comparativa com a cosmovisão bíblico-refor-
mada oferece uma visão crítica, apontando semelhanças e discrepâncias entre
os princípios educacionais propostos pelo governo e aqueles fundamentados
na tradição cristã reformada.
Por fim, a terceira seção concentra-se na formulação de proposições para o
ensino da matéria “Projeto de Vida” dentro da cosmovisão mencionada. Busca-
-se oferecer recomendações práticas e teóricas, considerando as possibilidades
de integrar perspectivas redentivas no ensino, visando um desenvolvimento
integral e valores consistentes com essa cosmovisão.
A pesquisa é fruto do labor de um professor que recebeu a missão de
desenvolver essa nova disciplina do Ensino Médio trazendo as diretrizes à
luz da teologia bíblico-reformada para o planejamento de cada aula ao longo
de 2023. Existe pouco material sobre a temática e a maior parte do que se en-
contra apresenta um viés totalmente convergente com as dez competências da
educação básica, que parecem ser os novos Dez Mandamentos da sociedade
do futuro – secular, hedonista, humanista e autônoma.
Assim, busca-se contribuir para o debate teológico e pedagógico, ofe-
recendo reflexões sobre a implementação da disciplina “Projeto de Vida” no
Novo Ensino Médio, enriquecendo-o com uma perspectiva fundada na tradição
cristã reformada, visando uma educação que promova não apenas o conheci-
mento, mas também a formação ética dos estudantes, com base na identidade
e vocação do ser humano criado à imagem de Deus.

1. “PROJETO DE VIDA”: DIRETRIZES GOVERNAMENTAIS DA


DISCIPLINA
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento que define
as diretrizes educacionais que devem pautar todos os currículos nacionais. Nela
pode-se encontrar o fundamento educacional brasileiro e a que ele se propõe.

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Com o compromisso de uma educação integral e de romper com as “visões


reducionistas” do ser humano,1 ela propõe o compromisso com a educação
integral nos seguintes termos: a sociedade contemporânea impõe um olhar
inovador e inclusivo sobre questões centrais do processo educativo: o que
aprender, como ensinar, como promover redes de aprendizagem colaborativa
e como avaliar o aprendizado.
Logo nas primeiras páginas, pode-se compreender sua visão de mundo
e sua concepção de ser humano. O mundo é autônomo (não foi criado, mas
sempre existiu em forma material), o ser humano é autorreferente em suas
competências e habilidades a serem desenvolvidas (educação integral) e a sua
base religiosa é materialista e naturalista.
O conhecimento é algo apenas social e cultural, e deve servir a um
projeto de cidadania e trabalho ligado à inclusão, diversidade e liberdade.
A autonomia e o protagonismo social a que o campo das linguagens se propõe
tornam-se um fim em si mesmas e apontam para uma base religiosa centrada
apenas no homem.
Valorizam-se os saberes desde que estejam ligados ao processo de cons-
trução de uma cidadania chamada de crítica, inclusiva, diversa e autônoma.
No campo da tecnologia, percebe-se o anseio pela resolução de problemas e
a construção de uma esperança ética por meio de um protagonismo pessoal
e coletivo. Há um anseio pela verdade que é traduzido pela busca de infor-
mações e dados – atestados como verdadeiros e válidos pelo crivo dos direitos
humanos universais e presentes nas 10 Competências Gerais da Educação Básica.2
Pode-se concordar com o Dr. Filipe Fontes ao analisar as competências
da BNCC: elas expressam uma visão materialista da realidade, traduzem uma
visão pragmática do conhecimento, e ainda sugerem uma ética subjetivista e
uma visão relativista da cultura.3
Dessa forma, todos os campos do saber são inundados por áreas que
não tiveram uma origem, sentido, significado, propósito e organização. Por
conseguinte, são apenas históricas, culturais, sociais, variáveis, heterogêneas,
contextuais e, portanto, construtos identitários e comunitários. O mundo é
apenas físico, social, econômico, político, cultural e digital. “Ora, destruídos
os fundamentos, que poderá fazer o justo?” (Sl 11.3).4

1 Ministério da Educação (Brasil). Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018, p. 14.
2 Disponível em https://beieducacao.com.br/competencias-gerais-previstas-na-bncc/. Acesso em:
4 mar. 2024.
3 FONTES, Filipe. As dez competências da BNCC: nada novo debaixo do céu. 2019. Dispo-
nível em: https://filipefontes.medium.com/as-dez-competências-da-bncc-nada-novo-debaixo-do-céu-
-c717c672962b. Acesso em: 25 abr. 2024.
4 Todas as citações bíblicas são extraídas da Bíblia de Genebra. Trad. João Ferreira de Almeida.
2a ed. revista e ampliada. São Paulo: SBB e Cultura Cristã, 2014.

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Para o Novo Ensino Médio, surge a disciplina Projeto de Vida como um


pilar pedagógico fundamental para trabalhar o socioemocional e as compe-
tências do século XXI, garantindo a preparação do aluno para a vida adulta e
o mundo do trabalho.

Considerar que há muitas juventudes implica em organizar escola que acolha


as diversidades, promovendo, de modo intencional e permanente, o respeito
à pessoa humana e aos seus direitos. E mais, que garanta aos estudantes ser
protagonistas de seu próprio processo de escolarização, reconhecendo-os como
interlocutores legítimos sobre currículo, ensino e aprendizagem. Significa, nesse
sentido assegurar-lhes uma formação que, em sintonia com seus percursos e
histórias, permita-lhes definir seu projeto de vida, tanto no que diz respeito ao
estudo e ao trabalho como também no que concerne às escolhas de estilos de
vida saudáveis, sustentáveis e éticos.5

O caminho proposto é, por meio do autoconhecimento, identificar “quem


eu sou” e o que “eu gostaria de ser” no futuro, desenvolvendo oportunidades
para se identificar os perfis, aptidões, interesses, sonhos e estabelecer metas
estratégicas para encontrar o próprio propósito da vida. A ênfase está no de-
senvolvimento da autonomia e do protagonismo juvenil, sendo a escola (e não
a família e/ou a igreja) o ambiente ideal para que tal desenvolvimento ocorra.
Diz a BNCC que a escola deve assumir o compromisso da formação integral
dos estudantes, acolhendo a juventude e seus ideais, consolidando os conhe-
cimentos e valores que terão repercussão direta nos processos de tomada de
decisões ao longo da vida.6
A respectiva disciplina está em processo de implementação nas três séries
do Ensino Médio em todo o país, tendo a seguinte premissa de acolhimento à
juventude: valorizar os papéis sociais desempenhados pelos jovens, para além
de sua condição de estudante, e qualificar os processos de construção de sua(s)
identidade(s) e de seu projeto de vida.7
O problema está na essência de sua proposta: autonomia e protagonismo
do ser humano em si mesmo, como se o homem fosse, de fato, a medida de
todas as coisas. Percebe-se isso na proposição seguinte: o projeto de vida é o
que os estudantes almejam, projetam e redefinem para si ao longo de sua traje-
tória, uma construção que acompanha o desenvolvimento da(s) identidade(s),
em contextos atravessados por uma cultura e por demandas sociais que se
articulam ora para promover ora para constranger seus desejos.8

5 BNCC, p. 463.
6 Ibid., p. 464.
7 Ibid., p. 465.
8 Ibid., p. 472-473.

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Nesse sentido, Cornelius Van Til ajuda a entender esse movimento de


busca de autonomia humana na sociedade caída e escrava de seus próprios
desejos. Ele afirma que todo conhecimento humano é derivativo e que apenas
Deus tem o conhecimento autônomo. Nessa percepção, todas as relações (es-
pirituais, relacionais e culturais) são moldadas pelo cumprimento ou não do
pacto de Deus (Trindade ontológica) e, assim, formam uma epistemologia e
ética pautadas na vontade de Deus ou na autonomia humana.

O homem, como criatura, não pode querer qualquer coisa, seja por obediência ou
desobediência, exceto relação de subordinação ao plano de Deus. É o querer
ou plano último do Deus autônomo que dá caráter determinante a qualquer
coisa que é feita pela vontade humana. Em contraposição a essa visão cristã
da supremacia da vontade de Deus, está a visão não cristã da supremacia da
vontade do homem. Nesta, a moralidade é vista como autônoma. É dito que
o homem é a sua própria lei. Ele pode falar, e em muitos casos fala, de Deus
como o autor da lei. Mas este Deus é uma projeção de sua própria consciência
moral última; Deus não é nada mais que uma ampliação da consciência moral
autônoma e suprema do homem.9

A construção dessa identidade e propósito de uma vida juvenil protago-


nista fica a cargo da educação, considerada direito de todos e dever do Estado e
da família, contando com a colaboração de toda a sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa e ao preparo e qualificação para a cidadania e o
trabalho, conforme o artigo 205 da Constituição Federal de 1988.10 Observa-se
que a responsabilização maior da educação recai no Estado e não na família,
por vir primeiro na sequência da frase.
O problema também está no papel excessivo que se atribui à própria
escola, que deve ser a responsável pela formação dos seus alunos como sujei-
tos, considerando suas potencialidades, acompanhando o desenvolvimento de
suas identidades (no plural mesmo, como consta intencionalmente na BNCC)
e construindo as possibilidades de intervenção e participação relevantes deles
no mundo do trabalho para a concretização de seus projetos de vida.
De fato, essa nova disciplina obrigatória da BNCC é uma porta aberta
para acessar o coração dos estudantes, seja para apresentar o caminho largo
e espaçoso da autonomia humana ou para apresentar aquele velho caminho
estreito dos justos derivado do Deus autônomo, vivo e verdadeiro, o qual é
semelhante à primeira luz do amanhecer, que brilha cada vez mais até o dia
pleno clarear (Pv 4.18).

9 VAN TIL, Cornelius. Apologética Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 33.
10 Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível
em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 24 out. 2023.

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2. ANÁLISE COMPARATIVA COM A COSMOVISÃO


BÍBLICO-REFORMADA
A BNCC busca fugir dos reducionismos por uma chamada formação inte-
gral do ser humano, mas cava uma cova para si mesma ao se tornar impessoal
e independente da Fonte de todo o bem – construindo um projeto altamente
reducionista. O Deus criador é a fonte de todo o conhecimento, como afirma
Salomão em Provérbios 2.6: “Porque o Senhor dá a sabedoria, e da sua boca
vem o conhecimento e a inteligência”.
Logo, como dizia o grande teólogo reformado holandês Herman Bavinck,
todo conhecimento se apoia na revelação.

Embora nunca possamos conhecer a Deus na plena riqueza do seu ser, ele é
conhecido por todas as pessoas por meio da sua revelação na criação, teatro
de sua glória. O mundo nunca é ateu. No fim, não existem ateus, há apenas
argumentos sobre a natureza de Deus.11

Contudo, a humanidade caiu em rebeldia e tornou todo o processo de


aquisição do conhecimento e amplo desenvolvimento da criação uma grande
confusão. O apóstolo Paulo capta bem esse fato em Romanos 1.22-32, onde
descreve uma inversão e desorganização na relação criatura-Criador. De fato,
houve uma confusão entre a ontologia (metafísica), a epistemologia (conhe-
cimento) e a ética (dilema moral).12
O homem se perdeu em sua identidade (criado pleno à imagem de
Deus), tornou-se tolo em seu conhecimento sobre Deus e a sua criação, e
o próprio Deus o entregou à dissolução ética por meio da escravidão aos seus
próprios desejos. A ordem ficou invertida: ética licenciosa, epistemologia
desfigurada e ontologia desumanizada.
No entanto, fica bem salientar que o Senhor não desistiu do projeto da
criação do homem e do mundo, mas os redimiu em seu filho Jesus Cristo (Ro-
manos 5). A salvação se dá quando a humanidade tem os olhos abertos para se
perceber em teorreferência13 (tendo Deus como referencial último para todas
as coisas), tendo sua identidade e vocação ressignificadas por ele.
Essa caminhada de resgate da teorreferência se dá pela renovação da autoi-
magem prejudicada pela queda do homem e a presença da maldição do pecado.

11 BAVINCK, H. Deus e a Criação. Vol. 2. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 53.
12 O pastor e apologeta Francis Schaeffer captou bem esse sentido em sua obra O Deus que se
revela.
13 “Teo-referência” é um conceito empregado por D. C. Gomes para indicar que Deus é o ponto de
referência último de toda existência do homem regenerado, pelo poder do Espírito e da Palavra de Deus.
GOMES, Davi Charles. A metapsicologia vantiliana: uma incursão preliminar. Fides Reformata XI:1
(2006), p. 117. Disponível em: https://cpaj.mackenzie.br/fileadmin/user_upload/6-A-metapsicologia-
-vantiliana-uma-incursão-preliminar-por-Davi-Charles-Gomes.pdf. Acesso em: 29 abr. 2024.

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No próprio processo de Genesis 2 e 3, quando os primeiros pais estavam nus


e não se envergonhavam, bem como se perceberam nus e coseram folhas de
figueira, percebe-se que o âmago da queda se dá na própria identidade do ser
que existia em Deus e passa a acreditar na proposta da serpente de autonomia
e liberdade sem Deus, e assim sua existência na Terra fica prejudicada.
Porém, pela redenção o Senhor resgata o ser humano completo, prepa-
rando-o para a vida eterna na consumação dos séculos. Quando ele, conforme
Hoekema, “nos renova pelo seu Espírito, Deus nos capacita a renunciar ao
orgulho pecaminoso, a primeira perversão da autoimagem”.14 E ainda pela
vida no Espírito, na qual o homem interior é renovado para uma vida santa e
dedicada ao louvor de sua glória.15
James Houston denomina esse transformação do coração humano uma
aliança de amor pela qual Cristo transforma o indivíduo autônomo e com a
referência em seus próprios feitos e realizações (homo faber) em pessoa exis-
tente em Deus e recriado para viver o evangelho encarnado, no qual Cristo
recapitula o homem intencionado por Deus e capacita os discípulos pelo Es-
pírito para vivê-lo.16
A ética da BNCC em Projeto de Vida aponta para os direitos humanos
universais que carregam consigo todo o multiculturalismo em prol de um
mundo perfeito com seu espírito crítico, libertário e cheio da diversidade.
Um pluralismo que não acredita na pluralidade porque exclui completamente
a ética religiosa e cristã. O conhecimento se torna algo sem uma configuração
de origem e propósito. É a ontologia integral do ser humano que adora a cria-
tura e desconsidera o Criador – também sem gênese e sem “telos” (propósito).
A perspectiva cristã oferece exatamente o oposto: um projeto de vida a
partir de um senso de identidade e vocação, teorreferente, pondo o coração do
ser humano em união com Cristo, revelando a sua vontade por meio da Palavra
de Deus e sendo desafiado a viver no mundo uma vida digna da vocação a
que foi chamado (Ef 4.1). “Da mesma forma que a teorreferência afeta nossa
maneira de ver a vida em relação a Deus e aos que são salvos juntamente co-
nosco, afeta também nossa visão do mundo (cosmovisão)”.17
O desafio é ensinar essa juventude a viver uma fé cristã dentro de uma
cosmovisão bíblica que a capacite a ver e interagir com a realidade como algo
criado e ordenado pelo Senhor. Ela irá desenvolver, assim, uma ética no mun-
do (projeto de vida) baseada em crenças verdadeiras e válidas que formam o
caráter cristão de forma derivativa, pois somente Deus é um Ser autônomo.

14 HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 124.
15 Ibid., p. 126-129.
16 HOUSTON, J. M. Mentoria Espiritual. Rio de Janeiro: Editora Sepal, 2003, p. 134-135.
17 GOMES, Wadislau Martins. Todo mundo pensa, você também. Brasília: Monergismo, 2018.
Ed. Kindle. Posição 525.

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Na linguagem do teólogo e pedagogo Igor Miguel, a epistemologia cristã é


sempre teorreferente, de forma que o esforço do cristão é conhecer a Deus, a
realidade e o próprio ser humano a partir da sua revelação.18
Esse ensino tem uma sequencia lógica de prioridades: Deus como o agente
primário; a família, a igreja e a escola como agentes secundários.19 E tem um
propósito: adorar ao Deus Criador e Senhor de tudo. Por isso, faz-se tão ne-
cessária a análise do Projeto de Vida da BNCC para os educandos brasileiros,
tendo em vista que a educação interfere diretamente no sistema de crenças,
que conduz às decisões que se precisa tomar na vida.
Seria a estrutura “Adorar-Ser-Educar”, segundo o Dr. Filipe Fontes, pois
o modo como se ensina é determinado pela identidade, e esta, determinada
por quem se adora. “Os nossos projetos, interesses, motivações, conceitos e
modelos se definem, em última instância, por aquilo que amamos e com o qual
nos comprometemos... Você educa de acordo com o que adora”.20
Essa percepção bíblica e teológica contribui para se enxergar a vida de-
baixo da grande História de Deus. Assim sendo, a vida ganha um propósito e
uma missão a cumprir. A herança cristã no mundo ocidental continua presente
com esse anseio de ser alguém e de conquistar algo, delineado na própria
descrição da disciplina Projeto de Vida: uma construção que acompanha o
desenvolvimento da(s) identidade(s), em contextos atravessados por uma
cultura e por demandas sociais que se articulam, ora para promover ora para
constranger seus desejos.
Para tanto, faz-se imprescindível a existência de bons fundamentos para
a edificação da vida, como o Senhor Jesus descreveu por meio de uma pará-
bola em Mateus 7.24-27. Em Projeto de Vida, o desafio se dá em fomentar o
desejo de uma trilha profissional na vida dos adolescentes como resultado de
uma identidade firmada em Cristo. Como diz a BNCC: ora para promover, ora
para constranger seus desejos.
O desafio do professor ao lidar com os alunos do Ensino Médio é fazê-
-los entender que fazem parte do mundo criado por Deus, que a todos dá a
vida, o sentido, a verdade e a liberdade, como também o privilégio de serem
seus instrumentos em diversas áreas da realidade, a fim de promoverem o bem
comum e a glória de Deus.
É preciso conectar o projeto de vida de cada um à metanarrativa ou à
macro-história, pois é vendo a vida dentro dessa grande história de Deus que se
fornece sentido e direção ao homem. Isso também vai contribuir para que ele

18 MIGUEL, Igor. A escola do Messias: fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual


cristã. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021, p. 67.
19 FONTES, Filipe. Educação em casa, na igreja e na escola. São Paulo: Cultura Cristã, 2018,
p. 45-52.
20 FONTES, Filipe. Você educa de acordo com o que adora: educação tem tudo a ver com religião.
São José dos Campos: Fiel, 2017, p. 34.

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não seja absorvido pela idolatria cultural e vai ensiná-lo a viver na realidade
debaixo do senhorio de Cristo. A macro-história bíblica (criação, queda e
redenção) conduz a micro-história, ou seja, toda a realidade faz parte de um
sentido e um propósito maiores.
É ver a vida dentro de uma grande história que nos oferece sentido e dire-
ção, pois, como disse Michael Goheen em seu livro O Drama das Escrituras,
precisamos de uma grande história como pano de fundo se quisermos entender
a nós mesmos e o mundo em que nos encontramos.21
Essa metanarrativa, que começa em Gênesis 1, envolve todas as áreas
da existência humana, pensando no homem como um ser espiritual, racional,
social, cultural e histórico. Faz-se necessário resgatá-la se o objetivo for a for-
mação integral do ser humano e, assim, fugir dos reducionismos ideológicos
que a BNCC impõe ao Projeto de Vida.

3. PROPOSIÇÕES PARA O ENSINO DA DISCIPLINA “PROJETO


DE VIDA” DENTRO DA COSMOVISÃO BÍBLICO-REFORMADA
A proposta das competências gerais da educação básica na BNCC para
Projeto de Vida apresenta muitos desafios, que podem ser utilizados como
oportunidades. Ao levantar as suas questões e os seus anseios, a escola cristã
confessional apresenta a resposta. Ela se utiliza de um arcabouço de conhe-
cimentos próprios do cristianismo. Apresenta os anseios, a linguagem, as po-
tencialidades humanas, a sua visão de mundo e tudo isso como que tateando
no escuro na tentativa de encontrar a maior resposta para o coração da própria
educação: um Deus pessoal que se revelou ao mundo por suas obras e por sua
Palavra falada e escrita. Wadislau Gomes contribui nesse sentido:

O conhecimento que buscamos não está calcado na observação do mundo por


meio da razão nem calcado na experiência com a realidade. Ele habita em Deus,
pela graça mediante a fé, ou, como já explanamos, na revelação graciosa de
Deus: comum (na natureza e na consciência) e específica (na Palavra escrita,
na Bíblia, e viva, em Cristo). Trata-se de um conhecimento pessoal, o qual é
analogal (natureza de Deus espelhada na natureza humana), pactual (conselho
de Deus para criação e redenção do homem) e dialogal (comunhão com Deus,
em Cristo, para plenitude do seu conhecimento).22

É interessante como essa proposta se apropria da linguagem religiosa,


mas se afirma não-religiosa (laica, ateísta ou neutra). De fato, não existe
metodologia educacional que não esteja fundamentada em uma cosmovisão
religiosa. O mito da neutralidade já se faz ultrapassado no século XXI, como

21 BARTHOLOMEW, Craig G.; GOHEEN, Michael W. O drama das Escrituras: encontrando o


nosso lugar na história bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 22.
22 GOMES, op. cit., Posição 3168-3173.

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nos dizem Rushdoony e Dabney: a verdadeira educação é, em certo sentido, um


processo espiritual. É o treinamento de uma alma. A educação é o treinamento
de um espírito que é racional e moral, no qual a consciência é a faculdade
reguladora e imperativa. O propósito característico da consciência, mesmo
neste mundo, é moral.23
A proposição, ao lidar com a disciplina Projeto de Vida para os alunos
do Ensino Médio (sendo implantada gradualmente nas três séries), é fazê-los
entender que fazem parte do mundo criado por Deus, que a todos dá a vida,
a liberdade e o privilégio de serem seus instrumentos em diversas áreas da
realidade, a fim de promoverem o bem comum e a glória de Deus. Esse é o
maior e mais excelente projeto de vida que a humanidade pode conceber.
Significa que em um mundo cheio de coisas invertidas (Rm 1.18-32) e de
falsos deuses, os educadores cristãos apresentam a verdade do evangelho que
pode ser aplicada em todas as áreas da vida. Segundo o professor Hermisten
Costa, “Calvino dispunha de uma visão ampla da cultura, entendendo que
Deus é Senhor de todas as coisas; por isso, toda verdade é verdade de Deus”.24
E ainda:

Calvino entendia que as ciências e humanidades deveriam ser usadas para a


glória de Deus. (…) A visão teológica de Calvino, permeada pela soberania
de Deus, fez com que ele procurasse relacionar a aplicação desta soberania às
diversas atividades culturais do ser humano.25

É essa visão que aponta os caminhos para alicerçar a identidade e vocação do


ser humano para que atue na sociedade reconhecendo e glorificando o Criador
(1 Co 10.31).
Em panfleto de 1643, os fundadores da Harvard College escreveram a
declaração da missão da nova escola, complementando-a com frases objetivas
sobre o propósito da instrução de nível superior. Aqueles pioneiros escreveram
o seguinte:

Cada estudante deve ser simplesmente instruído e intensamente impelido a


considerar corretamente que o propósito principal de sua vida e de seus estudos
é conhecer a Deus e a Jesus Cristo, que é a vida eterna, João 17.3, e, conse-
quentemente, colocar Cristo na base é o único alicerce de todo conhecimento
e aprendizado sadios.26

23Rushdoony, R. J.; Dabney, Robert L.; Frame, John. A desgraça do ateísmo na educação. Brasília:
Monergismo, 2019. Ed. Kindle. Posição 382.
24 COSTA, Hermisten Maia Pereira da. A reforma calvinista e a educação. Fides Reformata XIII-2,
2008, p. 34.
25 Ibid., p. 35.
26 PLANTINGA, Cornelius. O crente no mundo de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 9.

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Essa missão não pode ficar restrita apenas à escola como propõe a BNCC,
transferindo o papel da família para o Estado, que educa para a formação inte-
gral de seus cidadãos. Nas palavras de Solano Portela, a escola cristã apresenta
o diferencial de reconhecer o importante papel da família na formação das
novas gerações. A família é o primeiro e principal corpo educador no desenho
de um projeto de vida válido e frutífero.

Em um sentido específico, a Escola Cristã deve ser considerada uma extensão


do lar cristão. Ela deve estar sempre consciente de que a justificativa para a
sua existência é o mandato concedido pelos pais. Os pais e a escola, juntos,
trabalham com um só propósito, que é o de conceder à criança a possibilidade
de atingir a maturidade cultural e espiritual. Isto capacitará as pessoas a entra-
rem numa vida de adoração e serviço ao Deus soberano, com humildade e fé,
destacando-se como bons especialistas e cidadãos nas atividades para as quais
demonstraram talentos naturais e nas quais receberam o melhor treinamento.
Neste sentido ela tem de ser devidamente equipada e contar com o pessoal mais
qualificado possível.27

No desenvolvimento de uma proposição para o ensino de Projeto de Vida,


faz-se necessário identificar os pontos de contato entre os aspectos levantados
como essenciais à matéria, como o próprio desenvolvimento da autonomia e do
protagonismo da juventude, e a formação integral dos estudantes tendo como
base as dez competências da Educação Básica.
O exercício do educador cristão ao lidar com pressupostos educacionais
com profundo viés antibíblico é eliminar as partes que nada aproveitam, utilizar
os conteúdos que refletem a graça comum de Deus e aprofundá-los à luz da
cosmovisão bíblico-reformada. Enquanto não houver uma mudança de postura
do professor cristão e um alinhamento do seu pensamento quanto à cosmovi-
são bíblica com o currículo e o ambiente escolar, o conceito de cosmovisão
aplicado à educação continuará sendo algo sem real conteúdo e relevância.28
Nancy Pearcey também contribui:

A influência da divisão secular/sagrado é menos surpreendente quando percebe-


mos que muitos pastores e professores a assimilam. Um superintendente escolar
me contou que a maioria dos pedagogos define o “professor cristão” estritamente
em termos de comportamento pessoal: coisas como dar um bom exemplo e mostrar
preocupação pelos alunos. Quase nenhum o define em termos de transmitir uma
cosmovisão bíblica nas matérias que ensinam (literatura, ciência, estudos sociais
ou artes). Em outras palavras, eles se preocupam em ser cristãos no trabalho,
mas não pensam a respeito de ter uma estrutura bíblica sobre o trabalho.

27 PORTELA, Solano. Visão cristã sobre educação escolar. Campina Grande, PB: Visão Cristã,
2015, p. 26.
28 MEISTER, Mauro. Cosmovisão: do conceito à pratica na escola cristã. Fides Reformata XIII-2,
2008, p. 180.

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DANIEL MARTINS DA SILVA, ANÁLISE DAS DIRETRIZES GOVERNAMENTAIS DA DISCIPLINA...

Em muitas escolas cristãs, a estratégia típica é inserir em sala de aula certos


elementos “religiosos” estreitamente definidos, como oração e memorização da
Bíblia, e depois ensinar as mesmas coisas que as escolas seculares. O currículo
apenas estende uma camada de devoção espiritual em cima da matéria escolar,
como algo supérfluo, enquanto o próprio conteúdo permanece o mesmo.29

Fortalecendo o argumento da necessidade de uma cosmovisão bíblica


aplicada ao ensino de Projeto de Vida, seguem três exemplos práticos de
ações e atividades a partir das temáticas propostas como o autoconhecimento
e autocuidado, autogestão e autonomia.
O autoconhecimento e o autocuidado envolvem a disciplina do cuidado
consigo mesmo, como o cuidado com a saúde física e emocional, reconhecendo
o próprio eu diante da diversidade humana e criando a capacidade autocrítica
para lidar com este mundo. O que fazer diante do desafio de ensinar o autoco-
nhecimento para a formação integral e o protagonismo da juventude?
Alguns podem desistir da tarefa por ela ser difícil. De fato, ser professor
em um ambiente humanista e hostil à fé cristã não é fácil. Mas pode-se en-
xergar essa realidade como oportunidade de ensinar algo diferente. No caso,
propõe-se um estudo do primeiro capítulo das Institutas de Calvino30 sobre
o conhecimento de Deus e o conhecimento de si mesmo. A partir dessa base
bíblico-teológica, é possível olhar um pouco para dentro de si e perceber dons
e aptidões para a construção de um sentido para a vida.
A autogestão é um tema bem presente também. Muitos usam os princí-
pios psicológicos da autorregulação para trabalhar essa temática que contribui
para a construção do Projeto de Vida. Ideias relacionadas à autoajuda ganham
bastante terreno nesse ambiente. O que fazer? Um bom começo seria fazer
um resgate histórico da relação entre virtudes e vícios em Agostinho e Tomás
de Aquino e, a partir daí, desenvolver a capacidade de autogestão construindo
hábitos saudáveis para a vida e se abstendo de vícios que escravizam a alma.
Outra boa indicação seria a obra do James K. A. Smith Você é aquilo que ama:
o poder espiritual do hábito.31
Um terceiro exemplo estaria voltado para a necessidade de desenvolver
um propósito de vida. A base para isso torna-se a autonomia humana (ser hu-
mano autorreferente e não teorreferente), que traz algumas nuances perigosas
como os princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.
Estes estariam baseados em quê? A maioria está com a alma apegada aos

29 PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Rio
de Janeiro: CPAD, 2012, p. 40.
30 CALVINO, João. As Institutas. 2 ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
31 SMITH, James K. A. Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito. São Paulo: Vida
Nova, 2017.

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“ismos” desse século: materialismo, secularismo, hedonismo, consumismo etc.


Os temas giram em torno apenas das coisas debaixo do sol. O cristianismo tem
alguma resposta para isso? Claro que é a resposta mais válida. Como afirma
Herman Dooyeweerd:

A graça comum de Deus se revela não apenas na manutenção das ordenanças de


sua criação, mas também nas dádivas individuais e nos talentos dados por ele
a pessoas específicas. Estadistas, pensadores, artistas, inventores, etc., podem
ser de uma bênção relativa para a humanidade na vida temporal, mesmo se a
direção da vida deles for governada pelo espírito da apostasia. Nesse caso, vê-
-se também como a bênção se mistura com a maldição e a luz com as trevas.32

Os estudantes que buscam profissões e têm um senso de missão no mundo,


a partir de princípios como identidade e vocação, em busca de um sentido
para a vida, e que promovem o bem, estão ancorados na graça comum de Deus,
ou seja, em aspectos estruturais da criação. A escola e/ou professor cristãos
podem trabalhar como a glória de Deus pode ser algo presente na vida prática,
pois de que adianta ganhar o mundo inteiro e perder a própria alma? (Mt 16.26).
A vida focada para além dos céus nos motiva e nos dá a razão para termos
o nosso projeto de vida. Como descrito na lei moral de Deus (Dez Manda-
mentos, Êxodo 20), a relação vertical do homem com Deus conduz as relações
horizontais do homem com a criação e com o próximo. Aquele a quem se adora
afirma a identidade, que conduz a crenças e também a um padrão ético moral.
Assim também a educação tem a mesma ordem criacional, como descrito
na seção dois. E dentro dessa ordem, a construção de um projeto de vida que
desenvolva a sua vocação no mundo a partir de uma identidade firmada no
Criador. A vida não é formada apenas na horizontalidade, mas também na ver-
ticalidade – é necessário uma visão da glória de Deus no coração do adorador,
que a criação e a Palavra fornecem de uma forma esplêndida.
A escola e o professor cristãos têm o privilégio de trabalhar tudo isso
semanalmente com muitos alunos, inclusive carentes, muitas vezes, da pre-
sença de pais e, mais ainda, de Deus. Apesar de entender que a família e a
igreja têm papéis preponderantes na formação integral do ser humano, é vital
reconhecer também o papel da escola, que tem colaborado de diversas formas
para a formação de jovens que entendem aquilo que são e aquilo para o que
foram chamados. Abraham Kuyper, pastor, professor e estadista holandês,
reconheceu que a “escola cristã tem ajudado em muito nosso povo sofrido.
A escola cristã devolveu a centenas e mais centenas de famílias o único padrão
de valor e dignidade confiável à vida, ao bem e ao gozo humano”.33

32 DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental. São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 53.
33 KUYPER, Abraham. O problema da pobreza. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. Ed.
Kindle. Posição 144.

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DANIEL MARTINS DA SILVA, ANÁLISE DAS DIRETRIZES GOVERNAMENTAIS DA DISCIPLINA...

A pedagogia redentiva fornece alguns insights interessantes quanto à


abordagem do ensino de forma integral, pois abrange todas as áreas do co-
nhecimento a partir da revelação de Deus (geral e especial). Seria excelente
se os nove alicerces da referida proposta estivessem na BNCC em lugar
das dez competências da educação básica.34 Apesar de não ser esse o caso,
existem boas oportunidades para se abordar a BNCC e Projeto de Vida de uma
forma redentiva.
Eles constituem alicerces importantíssimos para a formação do ser hu-
mano, como destacado na obra de Solano Portela O que estão ensinando aos
nossos filhos?, e são os seguintes: metafísico, epistemológico, ontológico,
nomístico, ético, relacional, metodológico, estético e teleológico. É um pro-
jeto de vida que começa em Deus e se encaminha para um propósito, como
diz esse autor:

34 COMPETÊNCIAS GERAIS DA EDUCAÇÃO BÁSICA: (1) Conhecimento: Valorizar e utili-


zar os conhecimentos historicamente construídos sobre os mundos físico, social, cultural e digital para
entender e explicar a realidade. Continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade
justa, democrática e inclusiva. (2) Pensamento científico, crítico e criativo: Exercitar a curiosidade inte-
lectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica,
a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver
problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.
(3) Senso estético e repertório cultural: Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais,
das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural.
(4) Comunicação: Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita),
corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e
científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes
contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo. (5) Cultura digital: Compreender,
utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva
e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar
informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida
pessoal e coletiva. (6) Autogestão: Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-
-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do
trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade,
autonomia, consciência crítica e responsabilidade. (7) Argumentação: Argumentar com base em fatos,
dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões
comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo
responsável nos âmbitos local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de
si mesmo, dos outros e do planeta. (8) Autoconhecimento e autocuidado: Conhecer-se, apreciar-se e
cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas
emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas. (9) Empatia e cooperação:
Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promo-
vendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de
indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos
de qualquer natureza. (10) Autonomia: Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade,
flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos,
inclusivos, sustentáveis e solidários. Disponível em: https://beieducacao.com.br/competencias-gerais-
-previstas-na-bncc/. Acesso em: 4 mar. 2024.

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A pedagogia redentiva vai demonstrando que todas as pessoas têm propósitos,


com suas vidas; que esses propósitos transcendem a mera busca da felicidade
individual (contrariando o hedonismo da nossa era); se espalham em uma
conscientização social e um desejo de convivência fraterna na coletividade,
culminando na constatação de que existe algo maior para a vida de cada um – o
reconhecimento da fonte da vida, do conhecimento, das bênçãos, daquele que
satisfaz a necessidade eterna com o Criador – Cristo Jesus.35

Tudo isso deve ser trabalhado semanalmente nas aulas e também em con-
versas informais pelos corredores da escola, bem como nos cultos e momentos
devocionais com os alunos e também no aconselhamento quando o professor
é procurado por algum aluno interessado em uma boa conversa sobre o tema.
Algo nessa área que tem sido bastante presente é o aspecto socioemocional
dos adolescentes e jovens, a dificuldade dos alunos em definir propósitos na
vida em meio a tantos medos e ansiedades.
A BNCC os empurra ao protagonismo na era digital, porém muitos estão
cansados e sobrecarregados com os pesos que precisam carregar. Trabalhar o
coração em todos os seus aspectos – cognitivo, afetivo e volitivo – tem sido
uma chave importante nesse processo. Contudo, como Calvino ensinou, mais
importante que conhecer a si mesmo é conhecer a Deus. Os professores cris-
tãos creem em um Deus que se revela. À medida que o ser humano cresce no
conhecimento dele e o adora, o seu coração é transformado e, assim, todas as
áreas da sua vida também desfrutam de restauração e plenitude.
Dessa forma, não se propõe um projeto de vida com a autonomia apre-
sentada pela BNCC, mas sim com a teorreferência proposta pela Palavra de
Deus. Uma vida coram Deo que põe a motivação correta para os jovens serem
instrumentos (e não protagonistas) de um Deus que está restaurando a terra.
Serem agentes da reconciliação do mundo com Deus por onde a planta dos
seus pés passar.

CONCLUSÃO
Este artigo também é um estudo de caso, colocando em prática os prin-
cípios expostos. O professor mencionado na introdução iniciou o ensino da
disciplina Projeto de Vida no ano de 2023. Esta se propõe, dentro da perspectiva
do Novo Ensino Médio, a criar uma ponte entre quem o aluno é e quem ele
quer ser no futuro. Por meio desse planejamento, o aluno ganha uma melhor
compreensão dos interesses profissionais, sociais e pessoais que compõem
sua personalidade.

35 PORTELA NETO, Francisco Solano. O que estão ensinando aos nossos filhos? Uma avaliação
crítica da pedagogia contemporânea apresentando a resposta da educação escolar cristã. São José dos
Campos, SP: Editora Fiel, 2012, p. 276.

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DANIEL MARTINS DA SILVA, ANÁLISE DAS DIRETRIZES GOVERNAMENTAIS DA DISCIPLINA...

Diante do abismo entre uma visão de mundo secularizada a respeito do


assunto e a visão bíblica do Projeto de Vida, o educador tem uma escolha
de caminho a seguir para trabalhar o coração e a mente de seus alunos nessa
construção. A proposição bíblica prevalece contra as perspectivas reducionistas
da BNCC.
A identidade e a missão do ser humano no mundo andam juntas e tem sido
assim desde a criação – podem ser vistas nos mandatos criacionais do Éden:
espiritual, social e cultural. É verdade que a queda as desconfigurou e deixou
tudo tão confuso a ponto de inverter a ordem: aquilo que faço determina aquilo
que eu sou. Mas dentro de uma cosmovisão cristã aplicada, existe a tarefa de
fomentar o desejo por uma trilha profissional na vida dos adolescentes como
resultado de uma identidade firmada em Cristo.
Ao lidar com o choque entre cosmovisões, o educador tem o desafio de
fazer seus alunos do Ensino Médio entenderem que fazem parte de um mundo
criado por Deus, que a todos dá a vida, a liberdade e o privilégio de serem
seus instrumentos em diversas áreas da realidade, a fim de promoverem o bem
comum e a glória de Deus.

Muitos cristãos ainda estão presos à convicção de que a Bíblia fala a respeito de
uma fatia bem estreita da vida. Obviamente, todos os cristãos acreditam que a
Bíblia contém algumas coisas bem específicas a respeito da oração, da adoração
e do evangelismo. Mas muitos cristãos não estão convencidos de que a Bíblia
tenha algo bem definido a dizer sobre governo civil, sistema jurídico, economia,
endividamento, punição de criminosos, relações internacionais, assistência aos
pobres, jornalismo, ciência, medicina, negócios, educação, impostos, inflação,
propriedade, terrorismo, guerra, negociações de paz, defesa militar, questões
éticas como aborto e homossexualismo, preocupações ambientais, heranças,
investimentos, segurança das construções, serviços bancários, disciplina dos
filhos, poluição, casamento, contratos e muitos outros temas de cosmovisão,
incluindo-se a educação para ensinar essas coisas a partir da perspectiva bíblica.36

Portanto, deve-se conectar o projeto de vida de cada um à metanarrativa


ou macro-história, pois é necessário ver a vida dentro dessa grande história
de Deus que fornece a cada um sentido e direção, e assim também colaborar
para que não sejam absorvidos pela idolatria cultural e, por fim, ensinar a viver
na realidade debaixo do senhorio de Cristo nas diversas áreas da sociedade.
A vida em Cristo dá uma nova perspectiva para lidar com este mundo
quebrado, entendendo a realidade e miséria que o pecado trouxe ao mundo, mas
que também há uma esperança por causa da história redentiva que foi consu-
mada e alcançará toda a Terra.

36 DEMAR, Gary. Quem controla as escolas governa o mundo. Brasília: Monergismo, 2014,
p. 59-60.

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Conectar o coração dos educandos com a história do evangelho narrada


em toda a Bíblia, que traz um novo senso de viver, é o melhor caminho para
ajudar os adolescentes do Ensino Médio a construírem seus projetos de vida.
O verdadeiro evangelho – o da reconciliação – que conduz o homem a Deus
(por ser ele o Caminho), conduz ao desenvolvimento das potencialidades que
ele criou (por ser ele a Verdade) e também à esperança da restauração completa
(por ser ele a Vida, Jo 14.6). Ele reconciliou consigo todas as coisas (2 Co
5.18-21).
Como conselheiros (pais, professores e pastores), somos apenas instru-
mentos, mediadores ou embaixadores, conclamando a todos para viverem na
esperança do evangelho da redenção. Viverem com os olhos postos em Deus,
em quem a esperança habita e por meio de quem pode-se ter boas perspectivas
na construção de um bom Projeto de Vida.

ABSTRACT
This article expounds the governmental guidelines of the Common Na-
tional Curricular Basis (BNCC) for the new high school subject called “Life’s
Purpose”. In this exposition, the main points are analyzed and compared with
the Biblical-Reformed worldview. The aim is to develop practical approaches
and propositions for the Christian educator to engage in a redemptive pedago-
gical practice, considering that education directly interferes with one’s belief
system, which leads to the decisions and choices that need to be made in the
construction of a life purpose. Who the human beings worship defines their
identity and belief system, and, as a result, what is taught for the development
of social life. In the face of confrontation with different visions, this research
contributes to the perception of the opportunities that the educator and the
Christian school have in the secularized, materialistic, narcissistic, and huma-
nistic world of today.

KEYWORDS
Common National Curriculum; Christian education; Life’s Purpose;
Christian school; Reformed theology; Theo-reference; Biblical worldview.

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