A Alma Na Helade A Origem Da Subjetivida
A Alma Na Helade A Origem Da Subjetivida
A Alma Na Helade A Origem Da Subjetivida
A ALMA NA HÉLADE
A ORIGEM DA SUBJETIVIDADE OCIDENTAL
1ª EDIÇÃO
Umuarama
Edição de José Provetti Junior
2011
A ALMA NA HÉLADE
A ORIGEM DA SUBJETIVIDADE OCIDENTAL
1ª EDIÇÃO
Umuarama/ PR
2011
José Provetti Junior Editor
ISBN 978-85-9129727-0-7
1. Filosofia. 2. Alma. 3. História Antiga. 4.
Subjetividade. 5. História Psicológica - filosofia. 4.
Vida - filosofia. I. Título.
CDU: 128
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Todos os direitos reservados
José Provetti Junior Editor
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2011
Impresso em Umuarama/ PR – Brasil.
À Jovelina Maia Rodrigues, a quem devo os melhores
exemplos de vida e direcionamento moral.
RESUMO ............................................................................. 6
INTRODUÇÃO .................................................................... 8
I - A ALMA NA HÉLADE .................................................... 12
II - ALMA, SUBJETIVIDADE E INDIVÍDUO ....................... 22
III - A ALMA PRÉ-SOCRÁTICA .......................................... 42
IV - CONCLUSÃO ............................................................ 50
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................. 56
RESUMO
observada através das doutrinas dos filósofos do período posterior a Sócrates, bem como
os deslocamentos de valor aplicado à noção de areté, pelo corpo cívico.
Esse estudo pretende ser uma modesta contribuição à História da Filosofia sob
a perspectiva da História Psicológica aos estudiosos da Antiguidade helênica em suas
origens.
Alguns deles afirmavam que nos textos antigos, mesmo aqueles que
versassem sobre a alma, esta não era um objeto de pensamento entre os helênicos no
sentido de que não haveria uma proposta racional de pensamento em torno dessa
questão, como, mesmo em se tratando de textos como o “Fédon” (PLATÃO,1996) ou do
“De Anima” (ARISTÓTELES, 2006), por exemplo. Afirmavam que quando os helênicos
pensavam “alma”, “imortalidade” e noções de “sobrevivência à morte” objetivavam
mencionar os vetores condicionantes para a concretização do homem, enquanto sujeito
da história, isto é, como elemento em processo de imortalização na consciência coletiva
de seus contemporâneos e não a alma como elemento essencial da vida humana,
enquanto unida ao corpo e que sobrevivendo à destruição deste manteria sua
personalidade e percorreria os ciclos existenciais alternando entre os mundos dos vivos e
dos mortos.
Ora, se era verdade ou por outra, se era uma posição comum em termos de
práticas sociais o que os professores mencionavam, como poderiam os helênicos
buscarem tão somente a imortalidade numa concepção sócio-política quando para além
do político e suas estruturas percebe-se o religioso e o além como substratos
permanentes e inteligentes no mesmo plano de práticas existenciais?
Tudo gira ao redor do núcleo central do conceito de alma, sua imortalidade, sua
sobreviência à morte e antes desta, dos cuidados para com a alma, de maneira a se
alcançar objetivos mais ou menos conscientes, plenas de instruções daqueles que que
declaradamente, na Antiguidade, procuravam compreender e desenvolver teorias a
respeito do assunto, o que demonstrou aos poucos, que os problemas da constituição do
indivíduo e da subjetividade ocidentais, seus movimentos mesmo que incipientes na
Hélade, se mostravam no entanto, vibrantes no seio do pensamento e instituições
helênicas, mesmo que parcialmente ignorados por eles, formando o que se pode chamar
a “alma Ocidental”.
O que é isso que vem a ser chamado de “alma”? A idéia de “alma” na Hélade
arcaica e clássica antiga é oriunda da tradição mítico-religiosa que teve surgimento na
civilização minóica, em Creta, e a bem dizer, quase todas as tradições religiosas
helênicas são oriundas dos minóicos, como afirma Deodoro apud Giordani (1972: 77).
Nessa medida, se faz necessário compreender o que está implícito no conceito
de “alma” para bem se adentrar o objeto dessa investigação. Segundo Isidro Pereira
(1990: 638), a respeito do verbete psyché, afirma que possui vários significados, tais
como:
“sopro de vida, alento, alma, vida, ser vivo, pessoa, coisa amada, alma humana,
entendimento, conhecimento, prudência, sentimento, coração, valor, caráter,
desejo, inclinação, gosto e apetite”.
relata Eliade (1978: 13-91) no que se refere à provisão periódica do morto com gêneros,
utensílios, animais, preces, honras e culto por parte dos familiares que permaneceram
vivos.
Nessa medida, transferida a alma para o Hades, essas sombras não veriam
mais a luz do deus Hélios, isto é, o deus Sol da mitologia helênica, o que os historiadores
15
em geral são unânimes em afirmar que isso era considerado uma terrível desgraça, nada
desejável pelo homem em geral, mesmo por que havia uma relação de dependência do
defunto em relação aos descendentes vivos, pois estes deviam dar atenção a seus
mortos de maneira a proporcionar-lhes uma estada o mais agradável possível e condigna
com a posição que a pessoa ocupou enquanto viva, recebendo para tanto,
periodicamente, ritos fúnebres e sacrifícios.
Caso não houvesse tal atenção por parte dos parentes vivos, o morto
padeceria da privação de gêneros alimentícios, honras, preces e a pior desgraça para
quem vivesse no além para os helênicos, a saber, o morto seria “engolido” por Lethe
(Esquecimento), conforme indicam Detienne (1988) e Coulanges (1998), condenados
pois, a penar o abandono e penúria decorrente do descaso de seus descendentes.
Com a introdução das seitas dos órficos e dos mistérios, a noção de alma e
morte se transformou criando uma nova categoria de existência no Hades. Tal modalidade
privilegiava os “heróis”, que em Homero em nada se diferenciavam das demais sombras
que ali habitavam, os “magos” ou “sábios” que através do gênero de vida que levaram
alcançaram a “imortalidade” de suas pessoas, sempre atualizadas e almejadas pelo povo
através da ação da Mnemosyne, a deusa Memória, que reeditava através do canto dos
poetas inspirados a celebrizarem os feitos desses homens a toda a comunidade.
natureza para que fossem controladas por esses irmãos. A Zeus coube o Olimpo e os
céus, a Poseidon o oceano e as águas e a Hades, os mundos subterrâneo e dos mortos,
assim se definindo a “geografia política” divina conforme assinalam Sissa & Detienne
(1992) e Brandão (1981).
Nessa medida, o mundo dos homens, embora integrado à chamada phýsis, isto
é, “natureza”, em relação ao espaço não urbano, se afastava do estado de natureza em
razão de sua especificidade que caracterizava a vida e integração entre homens e deuses
no exercício político.
Homero (1978; 1970). Chegado ao período clássico, isto é, entre os séculos VIII-IV a. C.,
devido à introdução dos mistérios e do orfismo, insere-se uma noção de compensações
aos justos e bons e punições aos maus e injustos, como percebe-se em textos como os
de Pitágoras, Parmênides, Alcmeão, Filolau, Empédocles apud Kirk, Raven & Schofield
(1994) e em Bomheim (1999).
Os mortos, para os helênicos, não deixavam de existir por terem seu corpo
destruído ou morto, ao contrário, tinha-se clara consciência de que a existência do morto
prosseguia após a morte de seu corpo, caso contrário não haveriam as celebrações em
honra aos extintos, nem tampouco lhes seriam prestadas as oferendas periódicas, preces
e o mais importante, a saber, o culto dos mortos através do culto do Lar ou da Héstia.
Tal intermediação dos deuses subterrâneos, os mortos das famílias, junto aos
olímpicos se dava no sentido de “manter” a família encarnada com abastança, felicidade,
sabedoria quanto aos momentos de decisões e a fixação da excelência (areté) dos
membros do grupo, o que os fazia profundamente vinculados à família e por parte deste
tal atitude garantia-lhe a manutenção das preces, honras, festejos e provisões diversas,
levadas a efeito pelo culto do Lar e o dos mortos.
Não havia intervenção da religião estatal sobre o culto doméstico a menos que
o chefe da família não possuísse descendentes masculinos e isso pusesse em risco a
continuidade do grupo, enquanto herdeiros da religião doméstica em linhagem patriarcal.
O Lar ou a Héstia ficava sempre junto a um altar, lugar este em que seriam
queimadas as oferendas consumidas pelas brasas, obrigação familiar do dono da casa e
tarefa religiosa assumida pela esposa, conforme atesta Vernant (1990), obrigando-se esta
sempre a manter as brasas acesas.
20
Pelo que Coulanges (1998: 7-38) informa, a obrigação de manter essa fogueira
acesa decorria de que ela representava não apenas a presença dos ancestrais no
cotidiano da família, mas também por representar a permanência da linhagem do grupo,
nesse caso, patriarcal, o que inferia que enquanto houvesse representantes masculinos
diretamente vinculados ao pai de família esta permanecia viva, isto é, teria continuidade
através de sua descendência.
Tamanha era a importância do culto do Lar para o helênico e tão ampla era a
influência dessa prática religiosa intra-familiarmente que por muito tempo, conforme
atesta Coulanges (Ibdem), sobrepujou o culto aos deuses olímpicos.
grupo familiar, as devidas honras ao estilo de vida que levaram e às atitudes que tomaram
cabendo a ele, por sua vez, garantir a subsistência e permanência da família.
Também se crê válido o enfoque dado, uma vez que para a maioria dos
pesquisadores e helenistas, não é admissível a presença das noções de interioridade e
subjetividade entre os antigos helênicos, alegando que estes não percebiam a si próprios,
enquanto sujeitos do conhecimento ou como “coisa pensante”, como hoje se compreende
a interioridade, a subjetividade e a consciência.
reflexão, procedeu-se a uma análise conceitual. Por “sujeito”, segundo Abbagnano (1998:
929) entende-se como: “aquilo de que se fala ou a que se atribuem qualidades ou
determinações ou a que são inerentes qualidades ou determinações”.
Por sujeito, enquanto indivíduo, ser privado, conforme Vernant (1987: 25-44),
compreende-se que “é o que se expressando em seu próprio nome enuncia certos traços
que o fazem um ser singular”.
Por sujeito, enquanto alma, entende-se segundo Vernant (Idem: 29), como:
“o Eu, a pessoa que é conhecida por suas práticas e atividades psicológicas que
lhe garantem uma dimensão interior que o constitui como ser real, original, único,
indivíduo singular que, em sua natureza, reside todo o segredo de sua vida
interior; de sua intimidade a qual ninguém com exceção dele tem acesso,
consciência de si.”
Por “Eu”, segundo Vernant (Idem: 40): “é o psicológico (...) que se efetua
através de práticas mentais”.
Mondolfo afirma que as duas primeira linhas investigativas são compostas por
pesquisadores extremistas que se excluem mutuamente, em nada aproveitando os pontos
positivos das duas vertentes a respeito do tema. A terceira é composta pelas virtudes das
duas anteriores e consegue traçar uma argumentação substancial, melhor fundamentada
do que as demais, defendendo basicamente a existência no homem helênico antigo, de
um certo grau de consciência quanto a existência e atuação de sua subjetividade.
Mondolfo (1968: 25) começa a relatar a abordagem da questão feita por Hegel
25
Para Mondolfo (Idem) essa intermediação entre duas orientações opostas era
condicionadora da descoberta do que em uma linguagem hegeliana ele denomina como
“espírito” que segundo Abbagnano (1998: 355) tem o sentido de “espírito finito, ou seja,
alma, intelecto ou razão (espírito no significado cartesiano do termo)”.
Ora, o que disse Hegel nesse passo? Afirmou que embora os helênicos
embora sua posição intermediária entre nossa atual maneira de encarar o papel da
subjetividade no processo de conhecimento e a total inconsciência, própria do que o
filósofo alemão indicou como sendo “o princípio asiático”, profundamente inseridos na
perspectiva de natureza como phýsis, por algum motivo e momento de sua história,
tiveram certo “lampejo” de consciência no que respeita a seu papel produtor, estruturador
do real e, embora ocasionalmente ativo através das reflexões do espírito sobre a
natureza, eles desconhecer-se-iam como princípios ativos do processo delineador da
existência.
Para Gentile apud Mondolfo (Idem: 29) a Filosofia desde Tales de Mileto até
nossos dias seria repartida em duas fases a saber: a primeira, que se constituiria pelo que
chamou de “maneira ingênua” que se caracterizava pela construção de uma realidade
inteligível sob a ótica da phýsis e nessa medida o helênico antigo não se apercebia de
sua ação subjetivista da inteligibilidade e, naturalmente, do próprio real, desenvolvendo
esta posição até as últimas consequências. Na segunda fase, sob inspiração cristã, a
Filosofia conseguiu, paulatinamente adquirir consciência crítica e iniciou um processo de
reflexão sobre a parcela de atuação do espírito na elaboração do real.
Em outras palavras, para Bréhier, a Filosofia helênica não pode ser encarada
como objetivista, pois não há uma distinção, um distanciamento entre sujeito-objeto,
como hoje reconhece-se para que haja a atual compreensão do objeto como um “outro”
que não “eu mesmo”. Isso implica em considerar a percepção que os helênicos possuíam
de natureza, da qual e na qual eles se reconheciam como elementos constitutivos e
intimamente a ela aderidos, inseparavelmente jungidos à phýsis e enquanto tal, incapazes
de se afastarem de si e se auto-perceberem como autônomos em relação às forças
naturais.
forças naturais.
Para chegar a essa conclusão, Vernant (Idem: 29) se utiliza de exemplos claros
que inviabilizam a proposta de Dumont, tais quais, a religião grega, que é de caráter intra-
mundano, isto é, os deuses “não só estão presentes e agem no mundo, mas os atos do
culto visam integrar os fieis na ordem cósmica e social a que presidem as Potências
divinas”. A sociedade é igualitária, isto é, desde que se seja cidadão, homem sem
manchas que possam incapacitá-lo ao exercícios de suas prerrogativas, o cidadão está
apto a desempenhar todas as suas funções sociais, com as devidas implicações
religiosas. Quanto ao sacrifício, na Índia o sacrificante rompe com todos os laços que o
unem à sociedade, ao mundo e a eles próprios, enquanto na Grécia, o sacrificante é
fortemente jungido nos diversos grupos, a saber, o doméstico, o civil e o político.
Chegando a concluir que o indivíduo na Hélade surge de maneira mais clara e específica
por meio de duas figuras sociais a saber: o herói e o mago.
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Mas essa honra só é possível devido a não renúncia por parte do herói, a seus
vínculos para com a sociedade em que vive. Pelo contrário, é justamente na medida em
que ele encarna o ideal de heroísmo, venerado pelo grupo, se vê então reconhecido e
honrado. Nessa medida é o grupo que lhe dá esse estatuto e não uma renúncia ao
mundo, como propõe Dumont.
Nessa medida, afirma Vernant, esses indivíduos que por seu gênero de vida se
mantivessem afastados do grupo, vinham a desempenhar um importante papel na
comunidade, sempre que se mostravam necessários, em especial, nos momentos de
crise, pois quando a cidade-estado se deparou com as crises decorrentes da super-
população, entre os séculos VII-VI a. C., como pestes e outros fenômenos encarados
como intervenções divinas, os magos eram chamados a intervir em favor do povo e nessa
medida, atuavam como legisladores e/ou purificadores da comunidade, livrando-as de
suas mazelas morais, conflitos internos, elaborando regulamentos cívico-religiosos.
Seguindo por esse viés, Vernant analisou a esfera da vida privada e constatou
que desde Homero vinha se delineando uma diferença entre público e privado, sendo o
primeiro compreendido através das práticas que devem ser partilhadas e que não devem
ser privilégio exclusivo de ninguém; já o segundo, ao contrário, determinaria instituições
que lentamente tornaram possíveis a emergência do indivíduo em vários planos.
mudanças para a geração da noção de indivíduo são de dois tipos, a saber, religiosa e
jurídica.
Doravante o crime era visto sob o enfoque moral, religioso e sociológico, o que
é fartamente apresentado através da tragédia Ática do século V a. C. que constantemente
interroga o indivíduo que age, o sujeito humano confiante de suas ações, as relações
entre os heróis do drama na sua singularidade e aquilo que ele fez quanto à
responsabilidade de suas opções que em certa medida o ultrapassa.
pudesse manter o óikos (casa) e suas tradições, de maneira que os bens não fossem
dispersos pelos parentes colaterais.
Para Vernant (1987: 35), existe na poesia de Safo indícios claros da existência
de consciência da subjetividade, por exemplo: “Para mim, a mais bela coisa do mundo é
aquela de que cada um mais gosta”. Ou ainda em Arquíloco: “A Natureza do homem é
diversa, cada um se alegra à sua maneira.”
apud Mondolfo (Ibdem), fica evidente que nas origens da formação do povo helênico,
seus mitos eram expressão e projeção inconsciente de sua subjetividade e graças a sua
genialidade criativa, esse povo plasmou seus deuses como forças naturais por meio de
suas próprias paixões e com suas inclinações, de maneira tal que foi possível a
realização de uma dura crítica a essa maneira de ver a natureza, levada a efeito pelo
filósofo Xenófanes (KIRK; RAVEN & SCHOFIELD, 1994) que assim se manifesta:
Fr. 11, Sexto adv. Math. IX, 193
166 “Homero e Hesíodo atribuiram aos deuses tudo quanto entre os homens é
vergonhoso e censurável, roubos, adultérios e mentiras recíprocas.”
Fr. 16 Clemente Strom. VII, 22, 1
168 “Os Etíopes dizem que seus deuses são de nariz achatados e negros, os
Trácios, que os seus tem olhos claros e o cabelo ruivo.”
Fr. 15, Clemente Strom. V, 109, 3
169 “Mas se os bois e os cavalos ou os leões tivessem mãos ou fossem capazes
de, com elas, desenhar e produzir obras, como os homens, os cavalos
desenhariam as formas de deuses semelhantes à dos cavalos, e os bois à dos
bois, e fariam os seus corpos tal como cada um deles o tem.”
Nietzsche (1999: 42) afirma que quando foi aberta essa nova perspectiva de
uma explicação que não estava necessariamente vinculada a uma interferência do mundo
divino, isto é, dos deuses sobre os fenômenos, possibilitou-se a passagem do
subjetivismo inocente (mitologia) como também se refere Jöel apud Mondolfo (1968: 43-
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xamã, permanecendo tanto quanto migrando, aos poucos, deste para os videntes, depois
para os poetas inspirados, os chamados aedos e, posteriormente, para os filósofos,
surgindo estes como o fim da cadeia hereditária consubstanciando o surgimento da
reflexão e do questionamento filosóficos, enquanto busca pela Verdade.
Para Cornford, tanto quanto para Jöel, a filosofia em suas origens não tinha
como objeto de uso metodológico para pesquisa a observação dos fenômenos de
maneira empírica, mas ao contrário, se utilizava da dedução racional com o levantamento
de hipóteses, e que de fato não haviam e nem tinham a necessidade de serem testadas.
Cornford (1989: 3-16) assinala que ao contrário dos filósofos, eram os médicos
que se utilizavam da observação empírica e da experiência nos processos de
conhecimento em seu exercício profissional diante da urgência de apresentação de uma
solução que implicava na continuidade ou não da vida do paciente conforme se vê ao
longo das obras de Hipócrates apud Cairus & Ribeiro Júnior (2005).
Essa atitude por parte dos primeiros filósofos foi estudada por Mondolfo (1968:
97-290) que constatou uma incrível curiosidade que é toda a diferença no que diz respeito
a compreensão do fenômeno cognitivo e gnosiológico helênico é a pedra de toque para
solucionar a questão da consciência ou não da subjetividade, enquanto ordenadora do
real, por parte dos antigos helênicos.
Para Jöel apud Mondolfo (Idem: 44) no que diz respeito à origem mística da
reflexão filosófica a indica como
“uma concepção unitária da Natureza, compreendendo-a em sua unidade com o
homem, sua alma e sua vida. Igualmente, na Filosofia pré-socrática, a
contemplação da subjetividade universal só se alcança através do sujeito e por
seu impulso vital.”
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A phýsis era um processo vivo tal como eram a vida humana, espiritual, prática
e histórica, uma espécie de fluxo contínuo do universo, ou melhor, do cosmos que era
para eles, o ritmo essencial do mundo, pois que é o ritmo da alma, tal qual se vê em
quase todos os filósofos pré-socráticos, isto é, lutas e oposições, harmonia e proporção,
amor e ódio, união e geração, lei de justiça, necessidade e ordem (cosmos).
Tudo isso são os princípios sobre os quais se torna possível formas e meios de
compreensão do macrocosmo de onde se extraiu da relação interior do microcosmo e foi
atribuído à natureza, pois foram reconhecidos na alma humana fundamentando e
realizando a concepção unitária da totalidade objetiva sugerida pela experiência interior
do sujeito.
ensinados pela tradição indo-européia do eterno retorno. Com isso concorda Mondolfo
(Idem: 46) citando Jaeger:
“(...) a solução se encontra numa ampliação do horizonte, que permita vincular a
Filosofia natural com a poesia jônica que a partir de Arquíloco e Sólon, ofereceu
elementos importantes ao pensamento construtivo na ordem ética,política e
religiosa, de maneira que na imagem completa da evolução do pensamento
filosófico se acha compreendido também o reino humano.”
“(...) Trata-se do humano prático e não teórico e apenas mais tarde, mediante o
modelo proporcionado pelo estudo do mundo exterior, chega-se à investigação da
interioridade do homem. Só neste momento ulterior o espírito grego, formado na
legalidade do mundo exterior, descobre também as leis interiores da alma e chaga
à concepção objetiva de um cosmos interior.”
Nesse momento em que se delineou uma nova concepção de alma, isto é, por
meio do paulatino abandono das noções homéricas de alma como sombra destinada a
habitar o Hades, vai cedendo espaço às concepções novas que tenderam a descrever a
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alma humana como participante de um ciclo evolutivo no qual, conforme seus esforços
sob adestramento adequado em técnicas de fundo xamânico, concentrando o sopro
anímico de maneira a pelos seus atos, em vida, no além vir a ser merecedora das bem-
aventuranças e a fugir à roda das reencarnações sucessivas.
No entanto, ainda nesse momento não havia uma noção clara de existência de
si por consciência que se tem dela, isto é, embora já se mostrasse a dimensão de
existência do eu, ainda era preciso a participação do outro para se determinar aquilo que
era o determinador de si próprio que era o outro, os parentes, amigos, vizinhos, enfim, os
outros em detrimento da consciência de si como afirma Groethuysen apud Vernant
(Ibidem): “(...) a consciência de si é a apreensão de um ele, não de um eu.”
Ora, mas se não há esse caráter, poder-se-ia perguntar: para que serviu a
filosofia, suas teorias e seu exercício? Foi apenas um diletantismo intelectual que os
helênicos teriam inventado e exercido, realizada por nobres desocupados e cidadãos
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pobres, como Sócrates, ousados que por sua inteligência e capacidade oratória se
alçavam sob o patrocínio de companheiros melhor colocados socialmente aos círculos
inúteis do conhecimento filosófico?
Dos xamãs o estatuto da Verdade passou, por coexistência, aos adivinhos que
ao interpretarem os sonhos vaticinavam augúrios benéficos ou maléficos, exprimiam a
Verdade que os deuses enviavam aos homens através da interpretação onírica como
demonstra Foucault (1985: 13-42).
Dos adivinhos essa divina característica fôra transmitida aos poetas, aos
aedos, que inspirados pelas Musas cantavam aos homens as glórias do ontem tornando-o
literalmente “presente”, isto é, presentificando-o ao exaltar os feitos dos heróis aos
miseráveis homens dessa “Idade do Ferro” (HESÍODO, 1995).
Como último elo dessa cadeia genealógica que jamais deixou de subsistir em
qualquer uma de suas partes, concomitantemente o estatuto da Verdade passou ao
filósofo que ainda à época de Sócrates cumulava em si, o estatuto desses seres quase
divinos “expressantes” mais ou menos puros da Verdade da qual eram os deuses os
44
guardiões.
Quer dizer, o homem helênico pré-socrático tinha como critério de verdade não
os dados da sensibilidade por si sós, mas a referência última era a conceptibilidade, isto
é, os conceitos que eram compreendidos como referência e verdade última a respeito dos
objetos de conhecimento. Era a experiência que era “forçada” a adequar-se às exigências
da razão e não o que se faz hoje, isto é, exatamente o contrário.
Isso é corroborado por Leibniz apud Mondolfo (Ibidem): nihil aliud enim realitas
quam cogitabilitas, isto é, “nada em verdade é real quanto concebível”. Logo, o critério de
verdade utilizado pelos helênicos desse período era, por assim dizer, “uma exigência de
adequação da coisa à inteligência e não da inteligência à coisa” (Ibidem). De onde vem a
posição de Cornford (1989: 1-70) de que os pré-socráticos não seguiam com propriedade,
uma metodologia de pesquisa e critério de verdade relativamente empíricos, tal qual os
médicos de sua época, como se vê em Hipócrates apud Cairus & Ribeiro Júnior (2005).
Em reforço a essa posição Koyré (1997: 272) procurou pesquisar o motivo pelo
qual a ciência helênica não foi capaz de dar origem a uma tecnologia verdadeira como a
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atual. Sua resposta afirma que não foi possível, aparentemente, “porque não procurou
fazê-lo. E, sem dúvida, porque acreditou que isso não era factível”. Por que isso
aconteceu?
Tal modo de perceber a realidade fez com que todo e qualquer pensamento
que tentasse aplicar a matemática ao mundo sensível fosse um completo contrassenso
para o homem helênico, como afirma Koyré:
“seria ridículo medir com exatidão as dimensões de um ser natural: o cavalo sem
dúvida, é maior que o cachorro e menor que o elefante, mas nem o cachorro, nem
o cavalo, nem o elefante tem dimensões estrita e rigidamente determinadas: existe
sempre uma margem de imprecisão, de ‘jogo’, de mais-ou-menos’ e de quase.”
Antes disso, não havia suspeita a respeito de sua existência e modelagem co-
participativa, devido a serem assuntos inquestionáveis, na medida em que a indistinção
lógico-ontológica era dada como um dado real, na capacidade racional dos helênicos.
caísse em desgraça devido a falta de linhagem direta masculina, que fosse capaz e de
evitar que passassem privação dos gêneros e honras no além.
Todas essas informações levam a crer que o não lidar do helênico homérico até
o período clássico com os problemas da existência da alma e sua sobrevivência após a
morte não se tornaram problemas devido à familiaridade que esses tinham com a
realidade “concreta” e cotidiana dessa dimensão existencial do ser humano.
Tais questões eram consideradas “fatos” rotineiros que de maneira sacra, como
afirma Coulanges (1998: 19-34) quanto ao culto do Lar, eram a representação dos mortos
da família, muitas vezes localizado no centro da residência ou em lugar próximo à casa,
tendo em vista uma certa extensão do oikos (casa), já que em se apresentando a
necessidade de se tomar uma decisão, nenhum helênico que se prezasse iniciava suas
atividades antes de elevar uma prece aos deuses e consultar seus ancestrais por meio
das cerimônias junto ao seu Lar.
interligados, tal qual hoje em dia ainda ocorre. Primitivamente, a morte era concebida
como uma espécie de transferência do defunto para uma espécie de “mundo paralelo”,
invisível e, em geral, não perceptível pelos sentidos corporais em estado normal,
profundamente relacionado ao mundo dos vivos por necessidades mútuas e análogas.
Não havia a noção de separação entre os mortos, isto é, não havia lugar para
os bons e os maus, o Hades era considerado por Homero, um lugar onde os mortos
permaneceriam vivendo indistintamente quanto à qualidade moral que lhes caracterizou
em vida. A mansão dos mortos era simplesmente o “mundo dos mortos” e como tal, lá
aguardavam a ação dos ciclos vitais da natureza que os levaria novamente à vida, numa
nova etapa de sua existência enquanto dáimone.
O culto do Lar era muito arraigado entre os helênicos devido a sua profunda
ligação que pode-se chamar “familiar”. O seu cultivo e estima se sobrepunha ao culto dos
deuses olímpicos e durante muito tempo, mesmo no período clássico, assim aconteceu. O
culto do Lar decaiu em certa medida, apenas quando o culto olímpico foi capaz de
proporcionar uma certa mutação de um elemento originalmente masculino, a saber, o Lar,
para um feminino, após sua inclusão no panteão helênico, através da figura da Héstia.
interioridade; não mais do homem exatamente, mas da alma. Além disso, intuiu-se na
alma as leis que regeriam a natureza, demonstrando sua parcial consciência, ainda uma
vez, algo mais consistente da existência de algo que hoje chama-se “subjetividade” e que
viria tornar possível, futuramente, o conhecimento sobre si mesma, na busca pela
sabedoria no que se refere aos cuidados para com a alma.
FIM.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TRADICIONALMENTE no campo filosófico, as concepções de
indivíduo, interioridade, subjetividade e demais correlatos ao
conceito de indivíduo são creditados a Descartes, que viveu no
século XVII, com sua reflexão metafísica que conclui com o
famoso “penso, logo existo” (1996: 265-275).
No entanto, ao historiador da filosofia cabe a tarefa de
investigar as raízes históricas da famosa asserção cartesiana e
remontando à tradição filosófica anterior ao pensador francês,
percebe-se que é possível investigar a rede de filiações
conceituais que eclodirão em Descartes, advindas dos inícios
do pensamento filosófico, na Grécia, em especial, no que se
refere ao conceito de alma e pelo que se entendia sobre isso no
pensamento pré-socrático.
Nessa medida, “A Alma na Hélade: a origem da subjetividade
ocidental” é um trabalho no qual procurou-se estudar as bases
do pensamento pré-socrático, as latências das noções de
subjetividade e indivíduo ocidental sob a perspectiva do
desenvolvimento dos conceitos de alma, imortalidade e
sobrevivência da alma ao fenômeno da morte.
Dessa investida de compreensão a respeito do pensamento e
vivência psicossociais dos helênicos pré-socráticos, buscou-se
demonstrar como se deu o afastamento dos deuses do
cotidiano existencial das representações helênicas que os
homens da época tinham a nítida percepção da desvinculação
divina de seu dia a dia, observada através das doutrinas dos
filósofos do período posterior a Sócrates, bem como os
deslocamentos de valor aplicado à noção de areté, pelo corpo
cívico.
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JOSÉ PROVETTI JUNIOR EDITOR
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É DISSO QUE TRATA esta obra: da análise crítica e histórica
das bases culturais do pensamento filosófico grego em torno do
conceito de alma sob a perspectiva da História das
Mentalidades, das Ideias e Psicológica, buscando tornar mais
compreensível a Filosofia pré-socrática.