Hannah Arendt1

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Hannah Arendt – “Crise na cultura: sua importância social e política” (in Arendt. H.

Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003).

1) Qual o sentido da crise?

O pano de fundo do livro é a crise que advém com a “ruptura da tradição” – a

relação entre o passado e seus valores, o nosso presente (sociedade de massa) e o

futuro. Os valores do passado não são mais uma herança para nós e não fornecem

conceitos que expliquem o presente. Essa crise diz respeito no decorrer do livro “às

condições contemporâneas do pensamento” (p.39). Citando a autora:

“Por longos períodos em nossa história, na verdade no transcurso dos milênios

que se seguiram à fundação de Roma e que foram determinados por conceitos

romanos, esta lacuna foi transposta por aquilo que, desde os romanos, chamamos de

tradição. Não é segredo para ninguém o fato de essa tradição ter se esgarçado cada

vez mais à medida que a época a moderna progrediu. Quando, afinal, rompeu-se o fia

da tradição, a lacuna entre o passado e o futuro deixou de ser uma condição peculiar

unicamente à atividade do pensamento e adstrita, enquanto experiência, aos poucos

eleitos que fizeram do pensar sua ocupação primordial. Ela tornou-se um fato tangível

e perplexidade para todos, isto é, um fato de importância política” (p.40).

O pensamento, segundo Arendt, foi sempre uma maneira de a cada nova

geração dar um sentido, estabelecer uma ligação, entre o “passado infinito” e um

“futuro infinito”. Por isso, o conceito moderno de História é fundamental para

compreensão da filosofia moderna. Tal como elaborada filosoficamente pela primeira

vez por Hegel, é marcada pela noção de processo: cada fato singular que ocorre no
decorrer do tempo e espaço ganha significação mediante um processo “engolfante”

que lhe dê um significado universal e racional. Para o filósofo, Razão e História

coincidem na medida em que o processo histórico é também o processo de auto

compreensão e desenvolvimento ininterrupto do Espírito Absoluto. É também o

momento de reconciliação da Ideia com o mundo fenomênico, posto que o fim da

história, enquanto história universal, é a realização da Liberdade humana. Para Arendt,

esse pensamento sobrevive mesmo em Marx, para quem a história é “o progressivo

desdobramento e realização da ideia de Liberdade como sendo um fim da ação

humana” (p.113). Logo, a própria liberdade passa a ser o fim último e o resultado de

um processo de fabricação.

Por isso, “Pensar, com Hegel, que a verdade reside e se revela no próprio

processo temporal é característico de toda a consciência histórica moderna, como

quer que esta se expresse – em termos expressamente hegelianos ou não” (p. 101). O

fio condutor da razão dava sentido às ações humanas casuais e por vezes

contraditórias, e num Fim da História, mesmo que distante, adquirem a partir de uma

unidade/totalidade uma significação única, contida na noção de história universal da

Humanidade.

Ocorre que para Arendt, com a crescente alienação do mundo, que é

identificado com a Tecnologia como uma nova maneira de relação entre o homem, a

natureza e a história (na medida que com a Tecnologia o homem passa a “produzir” ou

“intervir” tanto na história como na natureza sem responder necessariamente a um

telos, um objetivo ou uma razão de ser comum à história e à natureza), perde-se a

“objetividade do dado” e a “verdade” que solidificava o significado de um “mundo em

comum”. E sem esse mundo comum, que ao mesmo tempo relaciona e separa os
indivíduos e é capaz, desta forma, de instaurar uma sociedade de homens. Para

Arendt, ocorreu “uma dupla perda do mundo – a perda da natureza e a perda da obra

humana no senso mais lato, que incluiria toda a história”; e isto acarretou o fim de

uma “sociedade de homens que, sem um mundo comum que a um só tempo os

relacione e separe, ou vivem numa separação desesperadamente solitária ou são

comprimidos em uma massa. Pois uma sociedade de massas nada mais é que aquele

tipo de vida organizada que automaticamente se estabelece entre seres humanos que

se relacionam ainda uns aos outros, mas que perderam o mundo outrora comum a

todos eles” (p. 126).

Por fim, é importante notar que Arendt não pretende, nos ensaios contidos no

livro, “reatar o fio rompido da tradição, ou inventar um expediente de última hora

para preencher a lacuna entre o passado e o futuro” (p. 41). Sua intenção é realizar um

exercício de viés ensaístico, o “movimentar-se nessa lacuna”, neste vácuo que é a

região onde “algum dia a verdade venha a aparecer”. Neste sentido, não visa a

construção de um futuro utópico, mas tão somente o exercício do pensamento tal

como este emerge da experiência viva – e a partir de problemas imediatos do dia-a-

dia, obter não uma solução, mas a melhor orientação para lidar com problemas

específicos.

2) Sociedade de massa e cultura de massa

A definição mais óbvia é a “cultura de massa” seria a cultura própria e


produzida por uma “sociedade de massa”. Essa que hoje seria glorificada, e não
mais reprovada, como uma “cultura popular”: feita pela e para às massas e por isso
digna de respeito. Como veremos, Arendt irá concluir que sendo uma contradição
em termos, a “cultura de massa” está longe de ser uma cultura produzida pelas
massas, na verdade, ela não é nem cultura no sentido próprio da palavra. É, antes
de tudo, entretenimento. Arendt chega a essa tese mostrando como a relação
entre cultura de massa e sociedade de massa não se assemelha a relação anterior
entre cultura e sociedade.
Ela irá notar que após um período no qual a cultura de massa foi criticada, ela
parece ser integrada ao mundo intelectual por meio do que irá apontar como a
“intelectualização do kitsch”. Kitsch é um termo alemão que significa originalmente
“objeto vulgar ou sem valor”. Designava tanto objetos comerciais como
lembranças para turistas, quanto obras de arte de mau gosto. Para os principais
críticos da cultura de massa, os objetos produzidos por ela são kitsch e não obras
de arte autênticas.

Pontos importantes da argumentação:

1) Relação original entre sociedade e cultura (§2). Esse relacionamento,


Arendt anuncia, logo na p. 249, como sendo “problemático” ou de
“antagonismo” (§6). Isso pode ser exemplificado, segundo a autora, pelo
posicionamento sempre conflituoso do artista moderno diante da
sociedade. É na figura do “filisteu” que ela irá localizar primeiramente essa
relação. O filisteísmo percebe a cultura como um “valor” de ascensão social.
É uma maneira da sociedade burguesa classe média ascendente, desde o
século XIX, se integrar a “boa sociedade”, aquela que nasce nas cortes
francesas do século XVIII e XIX (§4). O filisteu educado é aquele que dá um
valor “pragmático” aos bens culturais (§8). Ele não aprecia a arte por
seu valor em si – a capacidade elementar que a arte tem de se
“apoderar” do espectador e comover durante os séculos (§9) - mas
como um meio de se educar, de se “refinar” (e isso num sentido
negativo). Ele utiliza arte como uma forma de “fuga” da realidade
hostil do capitalismo (§8).
2) Sociedade e indivíduo – localiza na origem dessa “boa sociedade”, que é
moderna, a origem da rebelião entre sociedade e indivíduo. É nessa figura
do homem solitário (§3), o “indivíduo moderno” (§4) que se coloca uma
“resistência” da humanidade dentro da sociedade. Aqui se encontram o
filósofo, o revolucionário e o artista moderno. O artista, principalmente, se
rebela contra a posição que o “filisteu” reserva a ele (§8). Na atual
situação, a sociedade de massa consegue incorporar todos os estratos da
população, restando apenas ao artista esse função de resistência do
indivíduo. (§5 e 6).
3) O bens culturais se tornam, no fim, mercadoria. Passam a ser negociados
segundo seu “valor de troca” (Marx). (§10,11). E isso para Arendt é tão
prejudicial, pelo menos neste ponto do texto, para as grandes obras de
arte quanto a cultura de massa. (§12).

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