Os Subterrâneos Jack Kerouac
Os Subterrâneos Jack Kerouac
Os Subterrâneos Jack Kerouac
NAQUELE TEMPO eu era moço e era muito mais orientado e sabia falar
sobre qualquer assunto com inteligência nervosa e com clareza e sem
preâmbulos literários como este; em outras palavras esta é a história de um
homem auto desconfiante, e ao mesmo tempo de um egomaníaco,
naturalmente, não adianta bancar o engraçadinho – melhor começar no
começo e deixar a verdade vazar aos poucos, isso –. Tudo começou numa
noite quente de verão – ah, ela estava sentada num pára-lama com Julien
Alexander que é... vou começar a história dos subterrâneos de São
Francisco...
Julien Alexander é o anjo dos subterrâneos, o nome subterrâneos é
idéia de Adam Moorad que é poeta e amigo meu e disse “Eles estão por
dentro das coisas mas não são esnobes, são inteligentes mas não são
cafonas, são intelectuais paca e sabem tudo sobre Ezra Pound mas não são
pretensiosos e não vivem falando nisso, são muito discretos, são bem do
gênero Jesus Cristo”. Julien é bem do gênero Jesus Cristo. Eu estava
descendo a rua com Larry O’Hara velho companheiro meu de biritadas de
muito tempo em São Francisco em minhas longas nervosas e loucas
carreiras já tomei porres e às custas de amigos com regularidade tão
“jovial” que ninguém se tocava ou me tocava de que eu estou ou estava
adquirindo, quando jovem, o mau hábito de viver às custas dos outros só
que é claro que eles reparavam mas eles gostavam de mim e como disse
Sam: “Todo mundo vem pegar tua gasolina rapaz, você tem um senhor
posto de gasolina” ou mais ou menos isso – Larry O’Hara sempre legal
comigo, um jovem negociante irlandês maluco de São Francisco com uma
sala de fundos balzaquiana na livraria dele onde o pessoal queimava fumo e
conversava sobre os velhos tempos da grande banda de Count Basie ou os
velhos tempos do grande Chu Berry – de quem falaremos adiante já que ela
transou com ele também como aliás ela transou com todo mundo por me
conhecer, eu que sou nervoso e composto de muitos níveis e com mais de
uma alma – nem um pedacinho de minha dor já transpareceu – ou
sofrimento – Anjos, aturai-me – não estou nem olhando para a página e sim
direto para a frente para a luztriste de meu paredequarto e para um
programa com Sarah Vaughan Gerry Mulligan sobre a minha escrivaninha
sob forma de rádio, em outras palavras, estavam sentados no pára-lama de
um carro na frente do bar Black Mask na Montgomery Street, Julien
Alexander o anjo ou santo dos subterrâneos gênero Cristo barbado jovem
calado estranho quase como diria você ou Adam apocalíptico, certamente
estrela (agora), e ela, Mardou Fox, cujo rosto quando vi pela primeira vez
no bar Dante’s ali perto fiquei pensando, “Meu Deus, eu preciso transar
com aquela mulher” e talvez também por ela ser preta. Além disso ela tinha
o mesmo rosto de Rita Savage amiga de infância da minha irmã e que entre
outras coisas me inspirava fantasias em que ela estava entre minhas pernas
ajoelhada no chão do banheiro, eu na privada, com aqueles lábios frescos
especiais dela e aquelas maçãs do rosto duras e grandes e macias como se
fosse uma índia – o mesmo rosto, só que escuro, doce, com olhinhos
francos brilhando intensos ela Mardou estava debruçada dizendo alguma
coisa extremamente séria a Ross Wallenstein (amigo de Julien) debruçada
sobre a mesa, profunda – “Eu preciso transar com ela” – tentei um olhar
sedutor sensual ela nem olhou nem viu – tenho que explicar, eu tinha
acabado de sair de um navio em Nova York, tendo pagado antes da viagem
a Kobe Japão por causa de problemas com o comissário e a minha
incapacidade de ser gentil e humano e normal ao mesmo tempo que eu
trabalhava como taifeiro (e você agora tem que admitir que estou sendo
objetivo), bem típico de mim, eu tratava o chefe de máquinas e os outros
oficiais com uma polidez exagerada, eles acabavam ficando com raiva, eles
queriam que eu dissesse alguma coisa, talvez até mal-humorada, de manhã,
ao servir o café deles e em vez disso eu corria silenciosamente com pés de
borracha para cumprir as ordens deles e nunca sorria ou quando sorria era
um sorriso doentio, superior, e tudo isso tinha a ver com aquele anjo da
solidão pousado no meu ombro quando eu descia a Montgomery Street
naquela noite quente e vi Mardou naquele pára-lama com Julien,
lembrando, “Ah olha aquela menina que eu preciso transar, será que ela
transa com um desses caras” – escura, mal dava para vê-la na rua mal-
iluminada – os pés calçados em sandálias de dedo tão grandiosamente
sexuais que me deu vontade de beijá-la, de beijá-las – mas sem me tocar de
nada disso.
Os subterrâneos estavam fazendo hora à frente do Mask na noite
quente, Julien no pára-lama, Ross Wallenstein em pé, Roger Beloit o grande
sax-tenor de bop,1 Walt Fitzpatrick que era filho de um diretor famoso
criado em Hollywood entre festas com Greta Garbo até o sol nascer e
Chaplin caindo de porre à porta, várias outras moças, Harriet que era ex-
mulher de Ross Wallenstein meio loura com feições suaves inexpressivas
com um vestido de algodão quase dona-de-casa-na-cozinha mas de uma
doçura de ventre que dava gosto ver – e como devo fazer mais uma
confissão, muitas outras ainda hei de fazer – sou de uma sexualidade
machamente grosseira e não tenho jeito mesmo tenho tendências lascivas
etc. e tal igualzinho à quase totalidade dos meus leitores do sexo masculino
– e já que entrei em confissões sou canadense de língua francesa, só aprendi
a falar inglês lá pelos cinco ou seis anos, até os dezesseis ainda falava inglês
com um sotaque esquisito e na escola eu era um bebezão tristonho ainda
que depois tenha entrado no time de basquete da faculdade sem o qual
ninguém me julgaria capaz de fazer alguma coisa na vida
(autodesconfiança) e eu teria acabado no hospício por uma deficiência
qualquer –
Mas deixa eu dizer a Mardou (difícil fazer uma confissão de verdade e
dizer o que aconteceu quando se é tão egomaníaco que se enche longos
parágrafos com detalhes insignificantes sobre si próprio enquanto os
detalhes importantes espirituais sobre os outros ficam esperando num canto)
– mas seja como for, portanto, estava lá também Fritz Nicholas líder titular
dos subterrâneos, a quem eu disse (tendo-o conhecido num réveillon num
apartamento luxuoso em Nob Hill sentado de pernas cruzadas como um
índio doido de peiote num tapete espesso com uma espécie de camisa russa
branca limpa e uma menina pirada tipo Isadora Duncan de cabelo comprido
encostada no ombro dele fumando um baseado e falando sobre Pound e
peiote) (magro também do gênero Cristo olhar de fauno jovem e sério como
o pai do grupo, era vê-lo sentado no Black Mask sentado com a cabeça
jogada para trás magro olhos escuros olhando para todo mundo como se
num espanto lento súbito e “Mas sim meus amorzinhos que vamos fazer
agora”, mas ao mesmo tempo um cara muito doido, que curtia todas as
transas a qualquer hora e que ia fundo) eu disse a ele: “Você conhece essa
menina, a escurinha?” – “Mardou?” – “É assim que ela se chama? Com
quem ela transa?” – “No momento com ninguém em particular, esse grupo
já foi um tanto quanto incestuoso nos áureos tempos”, uma coisa muito
estranha que ele me disse, quando andávamos em direção ao Chevrolet 36
surradíssimo dele sem banco de trás parado do outro lado da rua com o
objetivo de descolar um fumo para todo o pessoal, eu disse a Larry, “Cara,
vamos descolar um fumo”. – “E pra que você quer esse pessoal todo?” –
“Eu quero curtir eles todos como grupo”, dizendo isso na frente de Nicholas
para ver se ele percebia a minha sensibilidade, eu que era estranho ao grupo
e assim mesmo imediatamente etc., percebendo o valor do grupo – fatos,
fatos, a doce filosofia já me abandonou há muito tempo juntamente com a
seiva de anos passados – incestuoso – tinha também ainda uma outra grande
figura no grupo só que esse ano não estava aqui, estava em Paris, Jack
Steen, um carinha interessantíssimo tipo Leslie Howard que andava (foi
Mardou que depois o imitou para eu ver) que nem um filósofo vienense de
braços macios balançando de leve para os lados e passos longos e lentos e
líquidos, parando na esquina numa pose suave e imperiosa – ele também
tinha transado com Mardou e conforme eu vim a saber depois foi uma
transa estranhíssima – mas agora a primeira informação que eu soube a
respeito dessa garota que eu estava TENTANDO ganhar como se eu já não
tivesse levado na cabeça o bastante antes e outras velhas transas não
tivessem me ensinado essa mensagem de dor, viver procurando sarna para
se coçar, porque –
Do bar saíam pessoas interessantes aos montes, a noite me
impressionava muito, uma espécie de Marlon Brando moreno gênero
Truman Capote com um(a) garoto(a) lindo(a) magro(a) ou garota com
calças de homem e estrelas nos olhos e cadeiras que pareciam tão macias
quando ela botava as mãos dentro das calças dava para ver a mudança – e
calças finas escuras caindo sobre os pezinhos, e aquele rostinho, e com eles
um cara com outra menina lindona, o nome do cara era Rob e ele é um
soldado israelense aventureiro ou coisa que o valha com sotaque britânico o
tipo de pessoa que eu imagino que se encontra num bar da Riviera às cinco
da manhã bebendo tudo que tem por perto em ordem alfabética com um
bando de amigos interessantes pirados do gênero jet-set na maior farra –
Larry O’Hara me apresentando a Roger Beloit (eu não acreditava que
aquele rapaz com aquela cara sem nada de excepcional à minha frente fosse
o grande poeta que eu idolatrava na minha juventude, minha juventude,
minha juventude, ou seja, 1948, eu cismo de dizer minha juventude) –
“Esse é o Roger Beloit? – Então eu sou o Bennet Fitzpatrick” (o pai de
Walt) o que fez Roger Beloit sorrir – a essa altura Adam Moorad já havia
surgido da noite e estava lá e a noite estava prestes a abrir –
E assim acabamos todos indo mesmo para a casa de Larry e Julien
sentou no chão à frente de um jornal aberto dentro do qual estava o fumo
(fumo de Los Angeles de má qualidade mas dava para o gasto) e enrolou, os
“torceu”, como me dissera Jack Steen, o ausente, no tal réveillon quando
entrei em contato com os subterrâneos pela primeira vez e ele pediu para
enrolarem um charo para mim e eu respondi muito seco “Pra quê? Eu que
enrolo meus baseados” e imediatamente o rostinho sensível dele enuviou-se
etc., e ele me detestou – e por isso me deu gelo o resto da noite sempre que
teve oportunidade – mas agora Julien estava sentado no chão pernas
cruzadas e torcendo unzinho para o pessoal e todo mundo levando um papo
que eu certamente não vou repetir aqui, só para dar uma idéia, era algo do
gênero “Eu estou lendo um livro de um tal de Percepied – quem é esse
Percepied, ele já dançou?” conversa fiada desse tipo, ou então, enquanto
Stan Kenton falava sobre a música do futuro e a gente ouvia um jovem sax-
tenor que estava pintando, Ricci Comucca, e Roger Beloit abre os lábios
finos arroxeados expressivos para dizer, “É isso que é a música do futuro?”
e Larry O’Hara contando as suas piadas de salão de sempre. No Chevrolet
36, a caminho, Julien, sentado a meu lado no chão, esticou a mão e disse,
“Meu nome é Julien Alexander, sabe o que eu fiz, eu conquistei o Egito”, e
aí Mardou esticou a mão para Adam Moorad e se apresentou dizendo
“Mardou Fox”, mas nem pensou em se apresentar a mim o que devia ter
servido para eu antever o que estava por vir, e aí eu tive que esticar a mão
para ele e dizer, “Leo Percepied” e apertar – ah, a gente sempre fica a fim
de quem no fundo não está a fim da gente – ela queria mesmo era Adam
Moorad, ela havia sido recentemente rejeitada fria e subterraneamente por
Julien – estava interessada em intelectuais magros ascéticos e estranhos de
São Francisco e Berkeley e não em vagabundos grandalhões paranóicos de
navios estradas de ferro e romances cheios daquele ódio que em mim é tão
evidente para mim e portanto para os outros também – embora e porque dez
anos mais moça que eu e não vendo nenhuma das minhas qualidades que
aliás estavam há muito enterradas sob anos de drogas e vontade de morrer,
desistir, desistir de tudo e esquecer de tudo, morrer na estrela escura – fui eu
quem esticou a mão, não ela – ah, o tempo.
Mas ao ver os pequenos encantos dela só me ocorreu a única idéia
avassaladora de submergir meu ser solitário (“Um homenzarrão triste e
solitário”, foi o que ela me disse uma noite depois, ao me ver de repente
sentado na cadeira) no banho quente e salvação das coxas dela –
intimidades de jovens amantes na cama, ligados, olho a olho, peito nu a
peito nu, órgão a órgão, joelho a joelho arrepiado trêmulo, trocando atos
amorosos e existenciais pela tentativa de conseguir – “conseguir”, palavra
favorita dela, vejo os dentinhos meio dentuças dela aparecendo por entre os
lábios vermelhos e pequenos, “conseguir” – a chave da dor – ela sentada no
canto, perto da janela, estava “destacada” ou “distante” ou “preparada pra
se afastar dessa turma” por motivos pessoais dela. – Fui até o canto,
encostei a cabeça não nela mas na parede e tentei me comunicar sem
palavras, depois com palavras discretas (como convém numa festa) e bem
tipo North Beach:2 “O que você está lendo?” e pela primeira vez ela abriu a
boca e falou comigo comunicando um pensamento completo e não cheguei
a ficar desanimado mas assim meio na dúvida quando percebi o tom de voz
gozado culto meio North Beach, meio modelo I. Magnin, meio Berkeley,
meio negro sofisticado, sei lá, uma mistura de langue e jeito de falar e usar
as palavras que eu nunca tinha ouvido antes só em uma ou outra garota rara
e naturalmente branca e tão estranho que mesmo Adam percebeu na hora e
comentou comigo naquela noite mesmo – mas definitivamente a nova
maneira de falar da geração bop, não se diz “eu”, e sim “eeuu” ou “ééuu”,
bem arrastado, meio “afeminado”, que quando você ouve um homem
falando assim pela primeira vez é meio desagradável e quando é uma
mulher é charmoso mas muito estranho, e era um som que eu certamente já
tinha ouvido e achado estranho na voz dos novos cantores bop como Jerry
Winters especialmente com a banda de Kenton no disco Yes Daddy Yes e
talvez Jeri Southern também – mas fiquei desanimado porque North Beach
sempre me detestou, me expulsou, cagou em mim, desde o início em 1943 –
porque sabe, eu descendo a rua sou um tremendo marginal e quando eles
vêem que eu não sou marginal e sim uma espécie de santo maluco eles não
gostam e além disso ficam achando que eu de repente vou virar marginal
mesmo e atacá-los e quebrar tudo e isso eu quase já fiz mesmo e quando era
adolescente cheguei a fazer literalmente, como na vez que eu andei por
North Beach com o time de basquete de Stanford, em particular com Red
Kelly cuja mulher morreu (bem feito?) em Redwood City em 1946, todo o
time atrás da gente, mais os irmãos Garetta, ele empurrou um violinista
veado para dentro de uma porta, e eu empurrei outro, ele deu um soco no
dele, eu olhei feio para o meu, eu tinha dezoito anos, tipo de cara que batia
até em babá e com a maior cara-de-pau – agora, vendo esse meu passado no
meu olhar duro amedrontador e horroroso e orgulhoso não queriam saber de
mim, e portanto eu sabia naturalmente que Mardou sentia uma desconfiança
e antipatia legítima por mim que estava ali ao lado dela decidido a
“conseguir” ganhá-la – bem careta, arrogante, sorrindo, um sorriso falso
histérico “compulsivo” como dizem – eu todo agitado – eles cabeça fria – e
além disso eu estava usando uma camisa horrorosa nada North Beach,
comprada na Broadway em Nova York quando eu me via descendo do
navio em Kobe, uma camisa havaiana boba estampada, a qual num acesso
de vaidade machona depois das humildades francas do meu eu verdadeiro
(sério) depois de dois tapas do baseado eu resolvi desabotoar mais um
pouco para exibir meu peito bronzeado e cabeludo – que ela deve ter
achado nojento – seja como for ela nem olhou, e falou pouco e baixo – e
estava prestando atenção a Julien que estava de cócoras de costas para ela –
e ela escutava e murmurava risos da conversa geral – a maior parte da qual
era comandada por O’Hara e o alto-falante Roger Beloit e aquele Rob
inteligente e aventureiro e eu, muito calado, escutando, sacando, mas na
vaidade do desbunde de vez em quando deixando cair comentários
“perfeitos” (assim me pareciam) que eram “perfeitos demais” mas que para
Adam Moorad que estava me sacando desde o começo traíam claramente
minha admiração atenciosa respeitosa pelo grupo, e esse cara de fora
fazendo comentários para mostrar como ele estava enturmado – horrível,
imperdoável. – Embora no início, antes do baseado, que rolou tipo
cachimbo da paz, eu tivesse sentido a nítida impressão de poder me
aproximar bastante de Mardou e conseguir ganhá-la naquela noite mesmo,
isto é sair com ela só nós dois mesmo que fosse só para tomar um café mas
com os tapas que eu dei que me fizeram rezar fervorosamente e
secretamente pela volta da minha “sanidade” pré-fumo eu me tornei
extremamente autodesconfiante, artificial, certo de que ela não gostava de
mim, detestando os fatos – lembrando agora da primeira noite que conheci
minha paixão Nicki Peters em 1948 no apê de Adam Moorad na Fillmore
Street, eu parado despreocupado cervejando na cozinha como sempre (e em
casa trabalhando furiosamente num romance enorme, maluco, pirado,
confiante, jovem, talentoso como nunca mais consegui ser) quando ela
apontou para minha sombra do perfil na parede verde-clara e disse “Teu
perfil é tão bonito”, o que me desconcertou tanto e (como o fumo) me fez
ficar autodesconfiante, atento, tentar “conseguir” ganhá-la, agir daquele
jeito que pela sugestão quase hipnótica dela me levava agora às primeiras
investigações preliminares do orgulho versus orgulho e beleza ou beatitude
ou sensibilidade versus o nervosismo neurótico estúpido do tipo fálico,
eternamente preocupado com o próprio falo, sua própria torre, e encarando
as mulheres como poços – a verdade da coisa estando ali, mas o homem
desconcertado, tenso, e agora não é mais 1948 e sim 1953 com as gerações
cabeça-feita e eu cinco anos mais velho, ou mais moço, tendo que
“conseguir” ganhar mulheres com um novo estilo e cortar o nervosismo –
fosse como fosse, desisti de tentar ganhar Mardou na marra e resolvi passar
a noite sacando aquela turma nova desconcertante incrível de subterrâneos
que Adam havia descoberto e batizado em North Beach.
Mas desde o começo que Mardou era realmente autodependente e
independente, proclamando que não queria ninguém, acabando (depois de
mim) na mesma – o que agora na noite fria desabençoada eu sinto no ar,
esta proclamação dela, e que os dentinhos dela não são mais meus e sim
provavelmente de meu inimigo que os lambe e trata Mardou do jeito sádico
que ela provavelmente gosta já que eu não a tratava de jeito nenhum –
assassinatos no ar – e aquela esquina melancólica onde há um poste de luz,
e sopram ventos, um jornal, neblina, vejo a cara desanimada de mim-
mesmo e meu pretenso amor murcho no beco, mau sinal – como antes
murchara melancólico em cadeiras quentes, cabisbaixo ao luar (embora hoje
seja a grande noite da lua cheia do equinócio de outono) – como antes foi o
reconhecimento da necessidade de eu voltar ao amor ao mundo todo, como
convém a um grande escritor, como um Lutero, um Wagner, agora esse
pensamento quentinho de grandeza é um grande vento gelado – pois
também a grandeza morre – ah e quem disse que eu sou grande – e se fosse
mesmo um grande escritor, um Shakespeare secreto dos travesseiros
noturnos? ou isso mesmo – um poema de Baudelaire não vale o sofrimento
dele – o sofrimento dele – (Foi Mardou que acabou me dizendo, “Eu
preferia o homem feliz aos poemas tristes que ele nos deixou”, com o qual
estou de acordo e sou Baudelaire, e amo minha amante negra e eu também
me encostei em seu ventre e ouvi os ruídos subterrâneos) – mas eu devia ter
entendido quando ouvi sua primeira proclamação de independência que era
sincera a repulsa dela a qualquer envolvimento, em vez de me jogar a ela
como se e porque eu queria mesmo me machucar e me “lacerar” – mais
uma laceração e vão ter que preparar o caixão para mim rapaz – pois a
morte já dobra suas grandes asas sobre minha janela, eu a vejo, ouço,
cheiro, eu a vejo na frouxidão das camisas que jamais usarei, novas-velhas,
na-moda-fora-de-moda, gravatas ofídicas que nem uso mais, cobertores
novos para leitos pacíficos outonais transformados em macas
estrebuchantes inquietas sobre o mar suicida – perda – ódio – paranóia – era
o rostinho dela que eu queria penetrar, e o fiz –
Naquela madruga quando a festa estava no auge eu estava no quarto de
Larry de novo admirando a luz vermelha lembrando da noite que passamos
com Mickey lá dentro, nós três, Adam e Larry e eu, e tomamos umas
anfetas e foi uma sacanagem impossível de descrever – quando Larry
entrou e disse, “Cara você vai ganhar ela hoje?” – “Pô querer eu bem que
quero – mas não sei –.” – “Olha rapaz tem mais é que saber, o tempo está
passando, que que deu em você, a gente traz essa gente toda pra cá e
apresenta aquele fumo todo e agora já entramos na cerveja que estava no
gelo e a gente tem que sair levando alguma coisa nessa, mete bronca –”
“Ah, você está a fim dela?” – “Em princípio cara pro que eu quero eu estou
a fim de qualquer um – mas, pô, pensa só.” O que me levou a mais uma
tentativa breve forçada abortiva, algum olhar, comentário, sentado ao lado
dela no canto, aí desisti e ao nascer do dia ela saiu com os outros e foram
todos tomar café e eu desci com Adam para vê-la de novo (descendo as
escadas atrás do grupo cinco minutos depois) e eles estavam lá mas ela não,
remoendo independentemente suas ruminações escuras, havia ido embora
para seu apezinho abafado na Heavenly Lane em Telegraph Hill.
E aí fui para casa e durante vários dias nas minhas fantasias sexuais era
ela, seus pés escuros, sandálias de dedo, olhos escuros, rostinho negro
macio, bochechas e lábios tipo Rita Savage, intimidadezinhas secretas e por
algum motivo agora também encantos macios de cobra como convém a
uma mulherzinha escura e magra chegada a roupas escuras, pobres roupas
beat3 subterrâneas...
Algumas noites depois Adam anunciou com um sorriso mau que havia
encontrado com ela num ônibus da Third Street e aí foram para a casa dele
conversar e beber e aí tiveram um papo enorme que terminou com Adam nu
recitando poesia chinesa e passando um baseado e depois deitado na cama.
“E ela é muito afetuosa, meu Deus, de repente ela te dá um abraço só de
afeto repentino, sem nenhum outro motivo.” – “Você vai conseguir? ter um
caso com ela?” – “Olha eu vou te – vou te dizer uma coisa – ela é muito não
é pouco doida não – está fazendo terapia, parece que ela pirou feio muito
recentemente, uma transa qualquer com Julien, já está nessa terapia há
algum tempo só que nunca vai lá, fica sentada ou deitada lendo ou não
fazendo nada só olhando pro teto o dia todo no apartamento dela, dezoito
dólares por mês na Heavenly Lane, parece que recebe uma espécie de
mesada que os médicos ou não-sei-quem arranjaram pra ela por ela ser
incapaz de trabalhar uma coisa assim sei lá – ela vive falando nisso e
realmente até demais pro meu gosto – diz que tem altas alucinações sobre
freiras no orfanato onde ela foi criada e vê as tais freiras e se sente
ameaçada mesmo – e outras coisas também, como a sensação de tomar um
pico embora ela nunca tenha tomado pico ela só conhece uns viciados.” –
“O Julien?” – “O Julien toma heroína sempre que pode ou seja não muito
porque ele vive duro e a ambição dele é ser um viciado de verdade – mas o
fato é que ela já teve a alucinação não de estar pegando carona na viagem
dos outros e sim de que alguém estava secretamente aplicando ela, sei lá,
gente que segue ela na rua, é realmente pirada, é demais pra mim – e pra
terminar é preta e eu não quero me meter nessa. – “Ela é bonita?” – “É linda
– mas eu não consigo entrar nessa.” “Mas eu cara acho ela lindona e gosto
de tudo o mais.” – “Bem então vai nessa que você consegue – vai lá, eu te
dou o endereço, peraí, melhor ainda eu convido ela pra vir aqui e a gente
conversa, você tenta se você quiser mas apesar de eu sentir o maior tesão
nela eu realmente não estou a fim de me envolver mais com ela, não apenas
por esses motivos todos mas também por um outro motivo, o principal, é
que eu se me envolver com uma menina agora tem que ser um negócio
definitivo definitivo mesmo sério e duradouro e isso com ela não dá.” –
“Pois eu quero um negócio duradouro definitivo etcétera.” – “Vamos ver
vamos ver.”
Depois ele me avisou a noite que ela ficou de ir jantar na casa dele e aí
eu pintei, fumamos um baseado na sala vermelha, com uma luzinha
vermelha fraca acesa, e ela entrou com a cara de sempre só que dessa vez eu
estava com uma camisa esporte de seda toda azul e umas calças legais e
fiquei sentado muito tranqüilo fingindo estar muito tranqüilo na esperança
de que ela notasse isso e a conseqüência foi que quando a moça entrou na
sala eu não me levantei.
Enquanto eles comiam na cozinha eu fingi que estava lendo. Fingi que
não estava prestando a menor atenção. Saímos para dar uma volta nós três e
agora todo mundo estava querendo falar como três bons amigos que querem
dizer tudo que passa na cabeça, uma rivalidade amistosa – fomos até o Red
Drum ouvir jazz e naquela noite era Charlie Parker com Honduras Jones na
bateria e outras caras interessantes, provavelmente Roger Beloit também,
que eu queria ver agora, e aquela animação de bop suave-noturno de São
Francisco no ar mas tudo naquela doçura fresca relaxada de North Beach –
e aí a gente acabou correndo, da casa de Adam em Telegraph Hill, descendo
a rua branca à luz dos lampiões, correndo, pulando, se exibindo, se
divertindo – senti uma alegria e uma coisa pulsando e gostei de ver que ela
conseguia andar tão depressa quanto eu – uma belezinha linda magra forte
para desfilar na rua e uma cena tão incrível que as pessoas paravam para
olhar, Adam barbudo esquisito, Mardou negra e suas calças estranhas, e eu,
o marginalzão alegre.
E aí chegamos no Red Drum, uma mesa cheia de copos de chope, quer
dizer não muitos e as turminhas entrando e saindo, pagando um dólar e
vinte e cinco centavos para entrar, o baixinho sacana metido a hipster
recebendo os ingressos, Paddy Cordavan entrando flutuando como na
profecia (um subterrâneo alto grandalhão louro tipo motorista de bonde, de
Washington, com pinta de cowboy de jeans entrando numa festa muito
louca enfumaçada de geração e aí eu gritei “Paddy Cordavan?” e “É?” e ele
veio) – todo mundo sentado junto, grupos interessantes em várias mesas,
Julien, Roxanne (uma mulher de 25 anos que profetizava o estilo futuro da
América com cabelo quase raspado mas com cachos negros enrolados como
cobras andar de cobra rosto anêmico de tomador de pico pálido pálido e nós
dizemos tomador de pico onde Dostoiévski diria o quê? senão asceta ou
santo? mas nem um pouco? mas o rosto frio e pálido da moça fria e azul
com camisa branca de homem mas com as mangas desabotoadas por isso eu
lembro dela curvada para a frente falando com alguém depois de ter
atravessado o bar com ombros motorizados, curvando-se para falar com a
mão segurando um toco de cigarro e o gesto preciso com que ela jogava
fora as cinzas mas repetidamente com unhas longuíssimas de três
centímetros e também oriental e como uma cobra) – grupos de todos os
tipos, e Ross Wallenstein, a turma, e no palco Bird Parker com olhos
solenes ele tinha dançado há não muito tempo e tinha voltado a uma São
Francisco em que o bop estava morto mas tinha acabado de descobrir ou ser
apresentado ao Red Drum, toda a turma da geração gemendo e se reunindo
lá, e aí lá estava ele no palco, examinando todo mundo com os olhos
enquanto soprava aquelas notas “malucas” agora já formando um desenho
regular – a bateria incessante, o pé-direito alto – Adam por minha causa
saindo por volta das onze porque tinha de se deitar para trabalhar de manhã,
depois de uma breve saída com Paddy e eu para tomar um chopinho rápido
de dez centavos na loucura do Pantera’s, onde Paddy e eu na nossa primeira
conversa e gargalhada juntos acabamos fazendo queda de braço – agora
Mardou deu uma saída comigo, olhos alegres, entre um set e outro, para
tomar uma cervejinha rápida, só que ela fez questão de ir ao Mask onde o
chope era quinze centavos, mas ela tinha uns trocados também e fomos lá e
começamos a conversar sério e se ligar na cerveja e agora era o começo –
voltando ao Red Drum para ouvir o resto do show, ouvir Bird, que eu já
tinha percebido tinha sacado Mardou várias vezes e a mim também olhando
bem no meu olho para ver se eu realmente era o grande escritor que eu
achava que era como se ele conhecesse meus pensamentos e ambições ou se
lembrasse de mim de outras boates e outras paragens, outras Chicagos – não
um olhar de desafio mas o rei e fundador da geração bop no mínimo o som
dela curtindo a platéia curtindo os olhos dele, os olhos secretos sacando,
enquanto ele só apertava os lábios e soltava aqueles grandes pulmões e
dedos imortais, os olhos separados e interessados e humanos, o mais
bondoso músico de jazz que podia existir e portanto naturalmente o maior –
sacando Mardou e eu na infância de nosso amor e provavelmente se
perguntando por quê, ou sabendo que não ia durar, ou vendo quem ia se
machucar, como agora, obviamente, mas não ainda, era Mardou cujos olhos
brilhavam em minha direção, embora eu na hora não pudesse saber e
mesmo agora não possa ter certeza – só há o fato de que, voltando para
casa, terminado o show e bebido o chope do Mask voltamos para casa no
ônibus da Third Street tristemente atravessando a noite no pulsar e sacolejar
do neon e quando eu de repente me cheguei para ela para gritar mais
alguma coisa (no seu eu mais secreto como ela depois confessou) o coração
dela saltou de felicidade ao cheirar a “doçura do meu hálito” (citação) e de
repente ela quase me amava – eu não sabendo, ao encontrarmos a porta
russa escura e triste da Heavenly Lane um grande portão de ferro
arranhando a calçada quando abria, lá dentro fedendo a latas de lixo tristes
apoiadas umas nas outras, cabeças de peixes, gatos, depois o beco
propriamente dito, a primeira vez que eu o vi (a sua longa história e
imensidão na minha alma, como em 1951 eu andava com caderno de
desenho numa tarde louca de outubro quando eu estava descobrindo
finalmente minha própria alma de escritor vi o subterrâneo Victor que uma
vez foi até Big Sur de moto, diziam que tinha ido até o Alasca também de
moto, com uma menininha subterrânea Dorie Kiehl, lá estava ele com o
grande casacão de Jesus andando para o norte em direção à Heavenly Lane
para o apartamento dele e eu o segui por um pedaço, pensando na Heavenly
Lane e todas as longas conversas que eu tinha há anos com pessoas como
Mac Jones a respeito do mistério, o silêncio dos subterrâneos, “Thoreaus
urbanos” é como Mac os chamava, como Alfred Kazin numa aula que ele
deu na New School de Nova York comentando que todos os estudantes se
interessavam em Whitman do ponto de vista da revolução sexual e em
Thoreau do ponto de vista contemplativo místico e antimaterialista como se
existencialista ou sei lá que ponto de vista, o lado bobão e maravilhoso, o
lado Pierre de Melville da coisa, os vestidos escuros beat de aniagem, as
histórias de grandes saxofonistas tomando pico ao lado de janelas quebradas
e tirando um solo, de grandes jovens poetas loucos em obscuridades
sagradas do gênero Rouault, a Heavenly Lane a famosa Heavenly Lane
onde todos os subterrâneos beat uma vez ou outra haviam morado, como
Alfred e a mulherzinha doente dele que pareciam um lance dos cortiços de
São Petersburgo de Dostoiévski mas na verdade era o idealista barbudo
americano perdido – a coisa toda), vendo a Heavenly Lane pela primeira
vez, mas com Mardou, as roupas na corda no pátio, na verdade área de
fundos de uma cabeça-de-porco de vinte famílias com janelas abauladas, a
roupa na corda na tarde a grande sinfonia de mães, crianças, pais italianos
irlandeses gritando de escadas, cheiros, miados, mexicanos, rádios tocando
bolero ou mexicano ou tenor italiano de comedores de espaguete ou alto de
repente aumenta o volume do rádio sinfonias de Vivaldi cravo intelectuais
bum blã o som tremendo que eu então passei a ouvir todo o verão nos
braços de meu amor – entrando lá agora, e subindo as escadas estreitas e
bolorentas como uma choupana, e a porta do apartamento dela.
Maquiavélico decretei que íamos dançar – antes ela estava com fome e
eu sugeri e acabamos indo comprar fritada chinesa na esquina de Jackson
com Kearny e agora ela pôs para esquentar (depois confessou que detestou
embora seja um dos meus pratos favoritos e bem típico do meu
comportamento posterior eu já estava obrigando-a a engolir aquilo que ela
numa tristeza subterrânea queria mais era aturar sozinha se é que queria),
ah. – Dançando, eu havia apagado a luz, de modo que, no escuro, dançando,
beijei-a – foi estonteante, ao ritmo da dança, o começo, o começo de sempre
de amantes beijando-se em pé numa sala escura a sala sendo da mulher e o
homem cheio de planos – terminando depois em danças loucas ela no meu
colo ou minha coxa enquanto eu a jogava para o lado para trás ela
equilibrando-se pendurada no meu pescoço os braços dela que viriam a
aquecer-me tanto a mim que naquele instante estava só quente –
E logo soube que ela não acreditava em nada e não tinha tido ninguém
para acreditar em nada – mãe negra morreu de parto dela – pai meio índio
cherokee desconhecido um vagabundo que caminhava jogando os sapatos
rasgados através das planícies cinzentas no outono com um sombrero preto
e cachecol cor-de-rosa de cócoras em frente à fogueira assando salsichas
jogando fora na escuridão latas vazias de vinho Tokay “ôôô Calexico!”
Rapidamente mergulhei, mordi, apaguei a luz, escondi meu rosto
envergonhado, fiz amor com ela tremendamente por causa da carência de
amor há um ano quase e a necessidade me empurravam para o chão –
nossos pequenos acordos no escuro, coisas que no duro não deviam jamais
ser ditas – pois foi ela que depois me disse “Os homens são tão malucos,
querem a essência, a mulher é a essência, lá está ela bem na mão deles mas
eles saem correndo construindo grandes estruturas abstratas”. – “Você quer
dizer que eles deviam era ficar em casa com a essência, ou seja passar o dia
inteiro deitados à sombra de uma árvore com a mulher mas Mardou isso é
uma velha idéia minha, uma idéia linda, eu nunca ouvi ninguém exprimir
ela melhor e nem sonhei.” – “Em vez disso eles saem por aí correndo e
ficam achando que a mulher é um prêmio e não um ser humano, ora cara eu
posso estar metida nessa merda também mas eu não tenho nada a ver com
isso” (naquele tom doce culto e hip da nova geração). – E assim tendo agora
a essência do amor dela eu construo grandes estruturas verbais e ao fazer
isso traio a essência – contando histórias fofocas pendurando na corda do
mundo esses lençóis íntimos – e os dela, os nossos, nos dois meses inteiros
de nosso amor (eu pensei) só lavados uma vez sendo ela uma linda
subterrânea que passava os dias sonhando que ia levá-los à lavanderia mas
de repente já estamos no fim de uma tarde fria e é tarde demais e os lençóis
estão cinzentos, lindos para mim – porque macios. Mas não posso nessa
confissão trair o mais íntimo, as coxas, o que as coxas contêm – e no
entanto escrever para quê? – as coxas contêm a essência – e no entanto eu
sei que devo ficar lá e de lá eu vim e para lá um dia hei de voltar, mas assim
mesmo tenho que sair correndo por aí e construir construir – para nada –
poemas de Baudelaire –
Nunca nem uma vez ela usou a palavra amor, bem naquele primeiro
momento depois da nossa dança louca quando a carreguei ainda no meu
colo solta até a cama e lentamente pousei-a, deixei-me encontrá-la, o que
ela adorou, e tendo vivido toda a sua vida sem sexo (fora a primeira
conjugalidade aos quinze anos de idade e que por algum motivo a consumiu
e depois nunca mais) (Ah a dor de contar esses segredos que é tão
importante contar, senão para quê escrever ou viver) agora “casus in eventu
est”4 mas gostando de me ver perder a cabeça levemente egomaniacamente
como se após umas poucas cervejas. – Deitado pois no escuro, macio, cheio
de tentáculos, à espera, até o sono chegar – assim de manhã acordo do grito
dos pesadelos de cerveja e vejo a meu lado a negra de lábios entreabertos
dormindo, e pedacinhos de enchimento de travesseiro nos cabelos negros
dela, sinto quase repulsa, percebo que animal eu sou por sentir algo
semelhante a repulsa, uva corpinho docenu sobre lençóis inquietos da
turbulência da véspera, os barulhos da Heavenly Lane penetrando de
fininho pelas janelas cinzentas, um dia de juízo final cinzento de agosto
então eu tenho vontade de sair de repente para “voltar pro meu trabalho” a
quimera de não quimera porém a consciência organizada e progressiva do
trabalho e dever que eu havia criado e desenvolvido em mim mesmo em
casa (em South San Francisco5) humilde embora seja, os confortos de lá
também, a solidão que eu queria e agora não suporto. – Levantei e comecei
a me vestir, pedir desculpas, ela deitada como uma mumiazinha no lençol
virando os olhos castanhos sérios para mim, como olhos observadores de
índio na floresta, com cílios castanhos se erguendo de repente com cílios
negros para revelar súbitos olhos fantasticamente brancos com o íris
castanho reluzente no centro, a seriedade do rosto dela acentuada pelo toque
levemente oriental como o de um nariz de lutador de box e as bochechas
ligeiramente inchadas de sono, como o rosto de uma linda máscara de
pórfiro encontrada há muito e asteca. – “Mas por que você tem que sair tão
depressa, como se quase histérico ou preocupado?” – “Bem eu tenho que ir
eu tenho trabalho a fazer e tenho que acordar direito – ressaca –” e ela mal
acordada ainda, e aí eu saio de fininho com umas poucas palavras quando
ela quase adormece de novo e eu passo uns dias sem vê-la –
O machão adolescente tendo feito sua conquista mal se preocupa em
casa com a perda do amor da donzela conquistada, a linda moça dos cílios
negros – não é confissão. – Foi numa manhã que eu dormi no Adam que eu
a vi de novo, eu estava para me levantar, bater umas coisas à máquina e
tomar café na cozinha o dia inteiro porque naquela época trabalho, trabalho
era no que eu mais pensava, amor não – não a dor que me impele a escrever
isto mesmo sem eu querer, a dor que não será apagada pelo ato de escrever
e sim acentuada, mas que será redimida, e se ao menos fosse uma dor digna
que pudesse ser colocada em outro lugar que não essa sarjeta negra de
vergonha e perda e loucura barulhenta na noite e pobre suor na minha testa
– Adam levantando para ir ao trabalho, eu também, me lavando, mastigando
conversa fiada, quando o telefone tocou e era Mardou, que estava indo para
a terapia, mas precisava de um trocado para o ônibus, morava logo ali perto,
“Tudo bem pinta aqui mas rápido que eu estou indo pro trabalho ou então
deixo o dinheiro com o Leo” – “Ah ele está aí?” – “Está.” – Na minha
mente pensamentos machos de transar de novo e de realmente curtir vê-la
de novo de repente, como se eu achasse que ela não havia gostado da
primeira noite (sem razão nenhuma para achar isso, antes da trepada ela
havia deitado no meu peito comendo a fritada chinesa e me curtindo com
olhos brilhantes de alegria) (que hoje à noite meu inimigo devora?) idéia
que me faz largar minha testa quente suada numa mão cansada – ó amor,
fugiste de mim – ou será que telepatias se cruzam empaticamente na noite?
– Cacoetes que surgem para que o amante frio de lascívia mereça o sangrar
quente do espírito – assim ela veio, às oito da manhã, Adam foi para o
trabalho e nós ficamos sozinhos e imediatamente ela enroscou-se no meu
colo, por convite meu, na poltrona grande e começamos a falar, ela
começou a contar a história dela e eu liguei (no dia cinzento) a lâmpada
vermelha fraca e assim começou nosso verdadeiro amor –
Ela tinha que me contar tudinho – claro que da outra vez ela já tinha
contado toda a história dela para Adam e ele tinha ouvido cofiando as
barbas com um sonho no olho distante para parecer atento e apaixonado na
fria eternidade, balançando a cabeça – agora comigo ela estava começando
tudo outra vez mas como se (pensei eu) para um irmão de Adam um amante
maior e mais forte, melhor ouvinte e mais preocupado. – Lá estávamos nós
na cinzenta São Francisco no cinzento Oeste, dava para quase sentir o
cheiro da chuva no ar lá longe, para além de Donner e Truckee ficava o
grande deserto de Nevada, os descampados que levavam até Utah, até
Colorado, até as gélidas gélidas planícies onde eu não parava de imaginar
que aquele pai dela meio índio vagabundo estava deitado de bruços num
vagão-plataforma, o vento agitando seus trapos e chapéu preto, seu rosto
escuro e triste encarando todo aquele chão desolado. – Em outros momentos
eu o imaginava trabalhando na colheita perto de Indio e numa noite quente
ele está sentado numa cadeira na calçada entre homens em mangas de
camisa contando piadas, aí ele cospe e eles dizem, “Ô Hawk Taw, conta pra
gente de novo aquela história da vez que você roubou aquele táxi e foi até
Manitoba no Canadá – cejaouviu ele contar essa, Cy?”– Vi a visão do pai
dela, ele em pé, orgulhoso, bonito, à luz mortiça fria vermelha da América
numa esquina, ninguém sabe o nome dele, nem quer saber –
As historinhas dela de pirações e pequenas fugas, atravessando
fronteiras da cidade, queimando fumo demais, que pareciam tão terríveis a
ela (à luz de minhas absorções sobre o pai dela fundador da carne dela
precursor terrível dos terrores dela e saber de pirações e loucuras muito
maiores que as ansiedades de origem psicanalítica dela sequer me poderiam
fazer imaginar), serviam apenas de pano de fundo para pensamentos sobre
os negros e os índios e a América em geral mas com todas as conotações da
“nova geração” e outras preocupações históricas na qual ela agora sucumbia
como todos nós nessa Tristeza Intelecto-Européia de todos nós, a seriedade
inocente com a qual ela contava sua história e eu já a tinha ouvido tantas
vezes e eu mesmo contado – de olhos arregalados abraçados no céu
juntinhos – hipsters da América nos anos cinqüenta sentados na penumbra
de uma sala – o ruído das ruas além do parapeito nu e macio da janela. –
Preocupação com o pai dela, que eu também já perambulara pelo mundo e
me sentara no chão e vira as estradas de ferro da América cobrindo o chão
cheios de ossos de velhos índios e habitantes originais da América. – No
outono frio cinzento do Colorado e Wyoming eu havia trabalhado a terra
vendo vagabundos índios aparecer de repente do mato perto da trilha
andando devagar, com lábios de gavião, queixos vincados e enrugados, para
a grande sombra da luz carregando sacos e cacarecos falando baixinho entre
si e tão distantes das absorções dos trabalhadores do campo, mesmo os
negros de ruas de Cheyenne e Denver, os japoneses, os armênios e
mexicanos e minorias em geral de todo o Oeste que olhar para três ou
quatro índios atravessando um campo é para os sentidos algo inacreditável
como um sonho – você pensa, “Devem ser índios – ninguém tá olhando pra
eles – eles estão indo pra lá – ninguém repara – tanto faz para que lado eles
vão – talvez pra reserva? O que eles levam naqueles sacos de papel pardo?”
e é só com muito esforço que você se toca “Mas eles eram os herdeiros
dessa terra e sob esses céus imensos eles eram os preocupadores e
lamentadores e protetores de mulheres nações inteiras reunidas em torno de
tendas – agora o trilho que passa por cima dos ossos dos antepassados deles
leva eles pra frente em direção ao infinito, fantasmas de humanidade
pisando leve a superfície do chão tão profundamente supurada com o fruto
do sofrimento deles que basta cavar um pouco para achar a mão de um
bebê. – O trem moderno de passageiros a diesel com rodas cortantes
passando, brem, brem, os índios só olham – vejo eles sumindo como
manchas –” e sentado na sala luz vermelha em São Francisco agora com a
doce Mardou eu penso, “E esse que eu vi foi teu pai no meio do
descampado cinzento, engolido pela noite – dos sucos dele vieram teus
lábios, teus olhos cheios de sofrimento e dor, e nunca vamos saber o nome
dele o destino dele?” – A mãozinha escura dela está enrodilhada dentro da
minha, as unhas mais pálidas que a pele, nos dedos dos pés também e sem
sapatos ela pôs um dos pés entre minhas coxas para aquecê-lo e
conversamos, começamos nosso romance no nível mais profundo de amor e
histórias de respeito e vergonha. – Pois a maior chave da coragem é a
vergonha e os rostos borrados no trem que passa não vêem nada na pradaria
só figuras de vagabundos sumindo na distância –
“Lembro um domingo, Mike e Rita estavam lá em casa, a gente tinha
um fumo muito forte – eles diziam que tinha cinza de vulcão misturada e
era o mais forte que eles já tinham fumado.” – “Era de Los Angeles?” –
“Era mexicano – os caras foram lá de caminhonete e cada um entrou com
uma grana, ou em Tijuana sei lá – a Rita estava pirando nessa época –
quando a gente já estava completamente desbundada ela se levantou muito
dramática no meio da sala e disse que os nervos dela estavam queimando
até o osso – vendo ela pirar ali na minha frente – fiquei nervosa e comecei a
entrar numa em relação a Mike, ele olhava assim pra mim como se ele
quisesse me matar – o olhar dele é muito estranho mesmo – eu saí da casa e
fui andando sem saber pra onde, minha cabeça ficava pensando pra que
lado eu ia mas meu corpo andava sempre pra frente pela Columbus Avenue
embora eu tivesse a sensação de cada direção que eu tomava mental e
emocionalmente, espantada com todas as direções que a pessoa pode tomar
dependendo dos objetivos que pintam, quer dizer como você pode virar uma
pessoa diferente – eu penso muito nisso desde pequena, de por exemplo em
vez de subir a Columbus como eu fazia sempre eu entrar na Filbert será que
aconteceria uma coisa bem insignificante na hora mas que depois ia
influenciar todo o resto da minha vida? O que aconteceria se eu tivesse
seguido na direção que eu não segui? – e por aí vai, se isso não fosse uma
preocupação tão constante pra mim na solidão que eu encarava de tantas
maneiras diferentes quanto possível eu não ligava pra isso agora, só que
com os caminhos horríveis a que essas suposições me levavam eu me
apavorava, se eu não fosse tão persistente –” e assim por diante durante o
resto do dia, uma história comprida confusa que eu só lembro uns pedaços e
assim mesmo por alto, só a massa de sofrimento em forma conectada –
Pirações em tardes sombrias no quarto de Julien e Julien sentado sem
prestar nenhuma atenção a ela só olhando para o grande vazio de mariposas
se mexendo só de vez em quando para fechar a janela ou descruzar as
pernas e depois cruzar ao contrário, os olhos redondos fixos numa
meditação tão demorada e tão misteriosa e como eu digo tão do gênero
Cristo tão tipo carneirinho vista de fora que era de enlouquecer qualquer um
bastava viver um dia só com Julien ou Wallenstein (mesmo tipo) ou Mike
Murphy (mesmo tipo), os subterrâneos aturando seus longos pensamentos
soturnos. – E a garota humilde esperando num canto escuro, como eu me
lembrava muito bem no tempo em que estava em Big Sur e Victor chegou
na motocicleta dele literalmente feita em casa com Dorie Kiehl, tinha uma
festa na cabana de Patsy, cerveja, luz de velas, rádio, conversas, e no
entanto durante a primeira hora os recém-chegados com suas roupas
gozadas esfarrapadas e ele com aquela barba e ela com aqueles olhos sérios
sombrios ficaram praticamente escondidos atrás da luz das velas na sombra
de modo que não dava para vê-los e como eles não diziam absolutamente
nada só (se não escutavam) meditavam, emburravam, aturavam, no final eu
já tinha até esquecido que eles estavam lá – e naquela mesma noite depois
eles dormiram numa barraca de campanha no campo na neblina e orvalho
da Noite Estrelada da Costa do Pacífico e com o mesmo silêncio humilde
não mencionaram nada de manhã – Victor sempre na minha cabeça sempre
o exagerador central das tendências subterrâneas hip ao silêncio, mistério
boêmio, drogas, barbas, semi-santidade e, como eu vim a descobrir depois,
mau-caratismo extremo (como George Sanders em A lua e seis vinténs) –
assim Mardou uma jovem saudável dos descampados pronta para o amor
agora escondida num canto bolorento esperando Julien falar. – De vez em
quando no “incesto” geral ela era discreta e silenciosamente por meio de
alguma combinação ou negociação secreta trocada ou então era só “ô Ross
você leva a Mardou pra casa hoje eu estou a fim de transar com a Rita pra
variar”, – e passando uma semana na casa de Ross fumando cinza de
vulcão, ela estava pirando – (a tensa ansiedade do sexo impróprio ainda por
cima, as ejaculações precoces daqueles maquereaux6 anêmicos que
deixavam a menina suspensa em tensão e espanto). – “Eu era uma garota
inocente quando conheci eles, independente e não que eu fosse feliz nem
nada mas eu achava que eu tinha uma coisa a fazer, queria estudar à noite,
já tinha tido vários empregos, de encadernadora na Olstad’s e nuns lugares
menores em Harrison, a professora de arte na escola dizia que eu podia vir a
ser uma grande escultora e eu rachava quartos com pessoas e comprava
roupas e estava me dando bem” (mordendo o labiozinho, fazendo um
barulhinho na garganta de aspirar ar depressa de tristeza como se estivesse
resfriada, como fazem as gargantas de caras que bebem muito mas ela não
bebia ela só entristecia) (suprema, escura) – (apertando braço quente mais
forte ainda em volta de mim) “e ele deitado ali dizendo o que foi e eu não
entendo –.” Ela não entende de repente o que aconteceu porque ela pirou,
perdeu o auto-reconhecimento habitual, e sente o zumbido sombrio do
mistério, ela não sabe mesmo quem ela é e por que e onde ela está, olha
pela janela e essa cidade São Francisco é o grande palco nu e frio onde
estão fazendo uma imensa sacanagem com ela. – “Quando eu virava as
costas eu não sabia o que o Ross estava pensando – nem fazendo.” – Estava
nua, havia levantado dos lençóis satisfeitos dele para se entregar aos
cinzentos pensamentos do que fazer, aonde ir. – E ela quanto mais
demorava parada ali dedo-na-boca e mais o homem dizia “Que foi
benzinho” (por fim ele parou de perguntar e deixou ela parada ali) mas ela
sentia a pressão de dentro quase estourando a explosão chegando perto,
finalmente deu um passo gigantesco para a frente engolindo medo – tudo
estava claro: perigo no ar – estava escrito nas sombras, na poeira sombria
atrás da prancha de desenho no canto, nas latas de lixo, na umidade cinzenta
do dia se infiltrando na parede e chegando até a janela – nos olhos ocos das
pessoas – ela saiu correndo do quarto. – “O que ele disse?”
“Nada – ele nem se mexeu estava com a cabeça quase encostada no
travesseiro quando eu olhei pra trás ao fechar a porta – eu estava nua na rua,
não me incomodava, eu estava tão imersa na minha compreensão de tudo
que eu sabia que era uma criança inocente.” – “O bebê nu, pô!” – (E para
mim mesmo: “Meu Deus, essa garota, Adam tem razão ela é louca, se eu ia
fazer uma coisa dessas, eu pirava como pirei com anfeta em 1945 com a
Honey e entrei numa que ela queria usar meu corpo para botar no carro e o
acidente e o fogo mas eu garanto que não saía nas ruas de São Francisco nu
embora eu talvez até saísse se eu realmente achasse que era necessário, ah
saía”) e olhei para ela e me perguntei se ela, se ela estava dizendo a
verdade. – Ela estava no beco, querendo saber quem ela era, noite, garoa
fina neblina, silêncio de São Francisco adormecida, os barcos na baía, o véu
sobre a baía de grandes neblinas ávidas, a auréola de luz soturna saindo por
entre os pilares do templo de Alcatraz – o coração dela batendo no silêncio,
na paz escura e fria. – Sentada numa cerca de madeira, esperando –
esperando que alguma idéia de fora viesse ter com ela para dizer o que fazer
e cheia de significado e premonição porque tinha de estar certa e só uma
vez – “Um escorregão na direção errada...”, aquela transa de direção dela,
de que lado pular da cerca, o espaço infinito se espalhava nas quatro
direções, homens soturnos de chapéu indo para o trabalho em ruas
reluzentes indiferentes à moça nua escondida na neblina ou então se eles
estivessem lá e a vissem fariam um círculo em volta dela ninguém
encostava nela iam esperar a polícia-autoridade vir pegar e levá-la embora e
todos aqueles olhares cansados desinteressados vazios de vergonha
observando todas as partes do corpo dela – o bebê nu. – Quanto mais ela
esperar na cerca menos força ela tem para realmente descer e decidir, e lá
em cima Ross Wallenstein nem se mexe naquela cama de muito-doido,
pensando nela de cócoras no corredor, ou então já dormiu assim mesmo
com toda a pele e os ossos dele. – A noite chuvosa englobando tudo,
beijando em toda parte homens mulheres e cidades na mesma onda de
poesia triste, com versos de mel de Anjos remotos soprando trombetas além
das canções orientais imensas como o Pacífico do Paraíso, um fim de causar
medo cá embaixo. – Ela de cócoras na cerca, a garoa escorrendo em gotas
nos ombros negros, estrelas nos cabelos, os olhos selvagens agora de índia
olhando para a Escuridão negra com uma fumacinha saindo da boca negra,
o sofrimento como cristais de gelo nas selas dos cavalos dos ancestrais
índios dela, a garoa sobre a aldeia tanto tempo atrás e a tristefumaça saindo
da terra e quando uma mãe enlutada amassava avelãs e fazia mingau nos
milênios sem esperança – a canção dos caçadores asiáticos pisando o último
pedaço de Alasca antes de chegar aos Urros do Novo Mundo (nos olhos
deles e nos de Mardou agora o Reino de Incas Maias e imensos Astecas
brilhando de cobra de ouro e templos nobres como os gregos, egípcios, os
queixos compridos e partidos e narizes chatos de gênios mongóis criando
artes em salões de templos e seus queixos saltando para falar, até que os
espanhóis de Cortez, os vagabundos holandeses afrescalhados de pantalonas
Pizarro cansado do mundo vieram quebrando canaviais pelas savanas para
encontrar cidades reluzentes de Olhos Índios, altas, arborizadas, avenidadas,
ritualizadas, arautizadas, embandeiradas àquele mesmo Sol do Novo Mundo
que o coração pulsante se oferecia nele) – o coração dela batendo na chuva
de São Francisco, na cerca, enfrentando fatos finais, pronta para sair
correndo agora e voltar e acocorar-se de novo onde ela estava onde tudo
estava – consolando-se com a visão da verdade – descendo da cerca,
andando na ponta dos pés, encontrando um corredor, tremendo, entrando de
fininho –
“Eu tinha tomado uma decisão, tinha construído uma estrutura, era
assim, mas eu não posso –.” Começando de novo, começando da carne na
chuva, “Quem ia querer machucar meu coraçãozinho, minhas mãozinhas,
minha pele que me envolve porque Deus quer que eu fique aquecida e
Dentro, meus dedos dos pés – por que Deus fez tudo isso tão perecível e
morrível e machucável e quer me fazer compreender e gritar – por que esse
chão selvagem e corpos nus e fraturas – tremi quando o homem gozou, meu
pai gritou, minha mãe sonhou – comecei pequenininha e fui inchando e
agora sou grande uma criança nua de novo só para chorar e ter medo. – Ah
– se protege, anjo inofensivo, você que nunca fez mal nunca quebrou de
outro inocente a casca e fino véu de dor – veste um manto, meu cordeiro –
se protege da chuva e espera, até papai voltar e mamãe botar você dentro do
vale lunar dela, tecer no tear do tempo paciente, seja feliz nas manhãs”. –
Começando de novo, tremendo, saindo da noite do beco toda nua só pele e
pés de madeira até a porta manchada de alguma vizinha – a mulher vindo
abrir a porta em resposta à moça negrinua assustada – (“Aí vem uma
mulher, uma alma na minha chuva, olha pra mim, assustada.”) – “Batendo
na porta duma pessoa que você nem desconfia quem seja, claro.” –
“Pensando eu estava só descendo a rua indo pra casa da Betty dar um pulo
lá, prometi a ela falando muito sério que eu ia devolver as roupas e ela me
deixou entrar e arranjou um cobertor e me embrulhou nele, depois as
roupas, e por sorte ela estava sozinha – uma italiana. – E no beco eu
consegui tudo, primeiro as roupas, depois eu ia até a Betty pegar dois
dólares – e depois comprar um broche que eu tinha visto numa vitrine, em
North Beach, artesanato de ferro sabe, uma lojinha, era o primeiro símbolo
que eu ia me dar.” – “Claro.” – Da chuva inocente para um manto, a
inocência coberta, depois a decoração de Deus com doçura religiosa. –
“Como naquela vez que eu saí na porrada com Jack Steen não saía da minha
cabeça.” – “Porrada com Jack Steen?” – “Isso foi antes, todos aqueles
drogados no quarto de Ross, fazendo torniquete e se aplicando com o
Vapor, você sabe, o Vapor, bem lá eu tirei a roupa também – era... tudo...
parte da mesma... loucura...” – “Mas as roupas, as roupas!” (para mim
mesmo). – “Eu fiquei em pé no meio do quarto louquíssima e o Vapor
estava dedilhando o violão, só uma corda, e eu cheguei pra ele e disse,
‘Cara não fica tocando essas notas imundas pra cima de MIM’, e aí ele
levantou sem dizer nada e saiu.” – E Jack Steen ficou furioso com ela e
entrou numa que se ele batesse nela e desacordasse ela com socos ela saía
daquela loucura e aí ele foi bater nela mas ela era tão forte quanto ele
(anêmico pálido 55kg ascéticos drogados da América), pof, eles se
atracaram enquanto os outros cansados assistiam. – Ela já tinha jogado
queda de braço com Jack, Julien, praticamente ganhou – “Quer dizer Julien
acabou ganhando mas teve que fazer toda força com fúria e me machucar e
depois ficou grilado” (barulhinho alegre por entre os dentinhos dentuços) –
e aí saiu no pau com Jack Steen e quase o derrubou mas ele ficou furioso e
os vizinhos de baixo chamaram a polícia que veio e tiveram que explicar
para eles – “a gente estava dançando.” – “Mas naquele dia eu tinha visto
aquele negocinho, um broche de ferro com um brilho fosco lindo, pra usar
pendurado numa corrente, sabe ia ficar lindo no meu peito.” – “No seu peito
ossudo e negro o ouro fosco ia ficar lindo meu bem, continua a tua história
incrível.” – “Aí eu imediatamente precisava daquele broche apesar da hora,
já eram quatro da manhã, e eu estava com aquele casaco e sapato velho e
um vestido velho que ela me deu, eu me sentia como uma puta mas achei
que ninguém ia reparar – corri até a casa da Betty pra pegar os dois dólares,
acordei ela –.” Ela exigiu o dinheiro, estava saindo da morte e o dinheiro
era só um meio de obter o broche brilhante (um meio besta inventado pelos
inventores do escambo e barganha e o escambau e isso é meu e isso é teu –).
Depois ela saiu correndo pela rua com os dois dólares, foi para a loja muito
antes de ela abrir, foi na lanchonete tomar café, sentada sozinha curtindo o
mundo finalmente, os chapéus sombrios, as calçadas reluzentes, as placas
anunciando linguado assado, os reflexos de chuva na vidraça e no espelho
da coluna, a beleza dos balcões com comida exibindo frios montanhas de
roscas e o cheiro quente de café. – “Como o mundo é quente, é só arranjar
essas moedinhas simbólicas – e eles deixam você entrar pra se aquecer e
comer até não poder mais – não precisa arrancar a pele e morder os ossos
nos becos – esses lugares foram feitos para abrigar e confortar pessoas só
sacola e ossos que vêm chorar pra ser consoladas.” – Ela sentada lá olhando
para todo mundo os tarados de sempre com medo de encará-la porque o
olhar dela é louco, eles sentem algum perigo vivo no apocalipse do pescoço
tenso ávido daquela moça, naquelas mãos magras e trêmulas. – “Aquilo não
é mulher não.” – “Essa índia maluca vai matar alguém.” – Dia raiando,
Mardou caminhando alegre e mentessubmersa, absorta, em direção à loja,
para comprar o broche – parando então numa drugstore examinando os
cartões-postais durante nada menos que duas horas um por um
repetidamente detalhadamente porque só lhe restavam dez centavos e só
dava para comprar dois e esses dois tinham que ser talismãs íntimos
perfeitos do novo significado importante, emblemas de presságios pessoais
– seus lábios ávidos murcham ao ver a legendazinha no canto das sombras
dos bondes, bairro chinês, lojas de flores, azul, os vendedores sem entender:
“Está aqui há duas horas, sem meias, joelhos sujos, olhando pros cartões-
postais, alguma mulher de bêbado da Third Street que fugiu de casa, entrou
nessa drugstore grande de branco, nunca viu um cartão-postal vistoso na
vida –.” Na noite anterior a teriam visto na Market Street na lanchonete
Foster’s com a última moeda (de novo) e um copo de leite, chorando em
cima do leite, e os homens sempre olhando para ela, sempre tentando
ganhá-la mas agora sem fazer nada porque assustados, porque ela era como
uma criança – e porque: “Por que o Julien ou o Jack Steen ou o Waltz
Fitzpatrick não te arrumaram um lugar pra ficar e te deixaram no seu
cantinho sozinha, por que não te emprestaram uns dois dólares?” – “Mas
eles não estavam nem aí, eles tinham medo de mim, eles realmente não
queriam saber de mim, eles tinham uma objetividade distante, me olhavam,
me faziam perguntas escrotas – mais de uma vez o Julien entrou naquela de
‘O que foi, Mardou’, e esse tipo de papo e a falsa piedade mas na verdade
ele estava só curioso pra saber por que eu estava pirando – dinheiro que é
bom nenhum deles nunca me dava, cara.” – “Esses sujeitos trataram você
muito mal, você não vê?” – “Claro é mas eles nunca tratam ninguém – quer
dizer, eles nunca fazem nada – é cada um por si, cada um cuida de si.” –
“Existencialismo.” – “Só que americano é pior existencialismo hip de
tomador de pico ainda por cima, eu andava com esse pessoal, já fazia quase
um ano e cada vez que eles se aplicavam eu pegava uma espécie de carona
no barato deles.” – Ela ficava com eles, eles apagavam, no silêncio
completo ela esperava, sentindo as ondas de vibração lentas como cobras
atravessando o quarto, as pálpebras fechando as cabeças caindo e de repente
levantando de novo, alguém resmungando alguma queixa desagradável,
“Caaara, enchi daquele filha da puta do MacDoud com aquela conversa
fiada que não tem dinheiro pra comprar uma ampola, uma mínima ampola,
nunca que pode pagar – caaara, eu nunca vi ninguém tão que não tá com
nada, poooorra nenhuma, ele tem mais é que desaparecer, pô.” (Esse “pô”
aparece depois de qualquer afirmação comprometedora, e toda afirmação de
viciado é comprometedora, pô, aah, um lamento infantil displicente que é
reprimido para não explodir num grande gemido sentimentalão AAA que
eles sentem quando a droga faz o organismo voltar para o berço.) – E
Mardou sentada, e de repente já tendo queimado um baseado ou tomado
uma bola começava a se sentir como se tivesse tomado pico também,
andava pela rua piradona e chegava a sentir o contato elétrico com as outras
pessoas (percebendo um fato com sua sensibilidade) mas às vezes ficava
desconfiada porque era alguém que a estava aplicando escondido e
seguindo-a pela rua que era realmente responsável pela sensação elétrica e
portanto independente de qualquer lei natural do universo. – “Mas no fundo
você não acreditava nisso – mas você acreditava – quando eu pirei com
anfeta em 1945 eu realmente entrei numa que a menina queria usar meu
corpo pra tocar fogo nele e botar os documentos do namorado dela no meu
bolso pra polícia pensar que ele tinha morrido – e eu disse isso pra ela.” –
“Ah e o que ela fez?” – “Ela virou e disse, ‘Aaah fofinho’, e me abraçou e
tomou conta de mim, a Honey era uma mulher piradíssima, pôs base na
minha cara porque eu estava pálido – eu tinha perdido quinze, cinco, dez
quilos – mas aí o que aconteceu?” – “Fiquei rodando por aí com meu
broche.” – Ela entrou numa loja de souvenirs e tinha um homem de cadeira
de rodas lá. (Entrou numa porta lá dentro tinha gaiolas e canários verdes na
vitrine, ela queria pegar nos colares de contas, ver os peixinhos no aquário,
fazer carinho no gato gordo pegando sol deitado no chão, entrar na selva
verde fresca de periquitos da loja ligada nos olhos verde-até-não-poder-mais
dos papagaios girando os pescoços estúpidos e se afundar nas penas loucas
e sentir a comunicação explícita do terror de aves os espasmos elétricos de
sua atenção, c u r r u p a c o, p a c o, p i u, e o homem era muito estranho.) –
“Por quê?” – “Sei lá ele era estranhíssimo, ele queria, ele falava comigo
bem explicado e bem insistente – sabe, me olhando bem de frente
encarando um tempão mas sorrindo das coisas mais simples mas nós dois
sabíamos que tudo que a gente estava dizendo era sério – sabe, a vida –
aliás era sobre os túneis, o túnel da Stockton Street e o outro que acabaram
de fazer na Broadway, a gente falava mais era desse, mas enquanto a gente
falava uma grande corrente elétrica de compreensão verdadeira corria entre
nós e eu sentia os outros níveis um número infinito de níveis de toda
entonação da fala dele e da minha e o mundo de significados que havia em
cada palavra – eu nunca tinha percebido antes quanta coisa está
acontecendo ao mesmo tempo, e as pessoas sabem – elas mostram isso nos
olhos, elas se recusam a mostrar de qualquer outra maneira – fiquei lá um
tempão.” – “Ele devia ser piradão também.” – “Sabe, meio careca, e meio
esquisito sabe, meia-idade, com aquela pinta de quem tem a cabeça solta no
ar separada do pescoço” (louco, louquíssimo), “olhando pros lados, achque
era a mãe dele a velha de cachecol – mas meu deus é tanta coisa que se eu
fosse contar eu não acabava mais.” – “Pô.” – “Já na rua uma velhinha linda
cabelo branco chegou perto de mim e me olhou, mas queria uma
informação, mas gostava de conversar –.” (Na calçada matinal dominical
ensolarada agora lírica depois da chuva, Páscoa em São Francisco e todo
mundo de chapéu roxo e casaco lavanda desfilando na brisa fresca e as
menininhas tão pequenininhas com sapatos brancos e casacos esperançosos
subindo devagar as ladeiras brancas, igrejas de velhos sinos funcionando
sem parar e no centro perto da Market Street onde nossa santa esfarrapada
Joana d’Arc negra perambulava desfiando hosanas com sua pele escura e
coração emprestados à noite, resultados de loteria ao vento em jornaleiros
nas esquinas, contempladores de revista de mulher nua, flores na esquina
em cestas e o velho italiano de avental com seus jornais ajoelhado para
molhá-las, e o pai chinês com seu terno apertado extático empurrando bebê
em carrinho Powell Street abaixo com sua mulher de bochecha rosada e
olhos castanhos faiscantes de chapéu novo tremendo no sol, e lá está
Mardou sorrindo estranha e intensamente e a velha excêntrica não percebe
mais que ela é negra como aconteceu com o paralítico simpático na loja e
por causa do rosto aberto dela agora, os indícios evidentes de um espírito
confuso puro inocente recém-saído de um buraco na terra esburacada que
com suas próprias mãos feridas se puxou para fora e se salvou, as duas
mulheres Mardou e a velha nas ruas incrivelmente tristes vazias do
domingo após a animação da noite de sábado as grandes luzes da Market
Street de alto a baixo como ouro em pó e o pulsar do neon na esquina de
O’Farrell e Mason bares com copo de martini de neon piscando convite
para corações famintos de sábado para tudo terminar no vazio tristonho da
manhã de domingo só alguns jornais esvoaçantes na sarjeta e a vista
enevoada e distante de Oakland do outro lado da baía ainda assombrada de
sábado – calçadas pascais de São Francisco enquanto navios brancos com
contornos nítidos azuis vindos de Sasebo passam por baixo da ponte Golden
Gate, o vento que agita todas as folhas do condado de Marin aqui com o
brilho lavado da cidade branca bondosa, na perdida pureza das nuvens no
alto acima da estrada de ferro de tijolo vermelho e o cais de Embarcadero,
um pedaço perdido de canção dos velhos índios pomos antigos únicos
habitantes destes últimos onze morros americanos agora cobertos de casas
brancas, o rosto do pai de Mardou agora quando ela levanta o rosto para
respirar para falar nas ruas da vida se materializando imensa sobre a
América, desaparecendo –.) “E aí eu virei e falei com ela e aí quando ela foi
embora me deu uma flor e prendeu na minha roupa e me chamou de
querida.” – “Ela era branca?” – “Era, sabe, muito afetuosa, muito boazinha
parecia me adorar – sabe, me salvar, me tirar – subi uma ladeira, passei pela
California Street pelo bairro chinês, sei lá, cheguei numa garagem branca
sabe com um muro grande de garagem e um cara sentado numa cadeira
giratória perguntou o que eu queria, eu entendia cada coisa que eu fazia
como uma série de obrigações para me comunicar com quem estava na
minha frente não por acaso e sim por alguma combinação prévia,
comunicar e informar sobre essa vibração e novo significado que eu tinha,
sobre tudo que estava acontecendo com todo o mundo o tempo todo em
toda parte e pra eles não se preocuparem não, ninguém é tão mau quanto
você pensa – um homem de cor, sentado na cadeira giratória, e a gente teve
uma conversa comprida confusa e ele hesitava, eu me lembro, em olhar nos
meus olhos e realmente ouvir o que eu estava dizendo.” – “Mas o que você
estava dizendo?” – “Mas já esqueci tudo – uma coisa tão simples sabe
assim como quem diria aqueles túneis ou a velha e eu falando sobre ruas e
itinerários – mas o cara queria me comer, eu vi ele abrir o fechecler mas de
repente ele ficou com vergonha, eu virei e vi no espelho.” (Nos planos
brancos da parede da garagem matinal, o homem fantasma e a moça
viraram olhando na janela que não apenas refletia o negro estranho
envergonhado olhando secretamente mas também todo o escritório, a
cadeira, o cofre, o frio interior concreto da garagem e carros com brilho
mortiço, aparecendo também grãos de poeira da chuva da noite passada e
através do vidro do outro lado da rua a imortal varanda de madeira da
cabeça-de-porco onde de repente ela viu três crianças negras vestidas com
roupas estranhas fazendo sinal mas sem gritar para um negro quatro andares
abaixo de macacão e portanto aparentemente trabalhando em plena Páscoa,
também fazendo sinal enquanto andava numa direção estranha que de
repente cruzava com a lenta direção em que seguiam dois homens, dois
homens comuns de chapéu e casaco mas um carregando uma garrafa e o
outro carregando um garoto duns três anos, parando de vez em quando para
levantar a garrafa de vinho, Four Star California Sherry, e beber enquanto o
vento matinal de São Francisco sacudia seus trágicos sobretudos, o garoto
berrando, as sombras dos homens na rua como sombras de gaivotas da cor
de charutos italianos feitos a mão em lojas fundas escuras perto da esquina
de Columbus com Pacific, agora passa um Cadillac rabo-de-peixe em
segunda rumo às casas do alto do morro com vista para a baía e alguma
visita perfumada de parentes trazendo a seção de quadrinhos do jornal,
notícias de tias velhas, balas para algum garotinho triste esperando o
domingo acabar, o sol parar de entrar por entre as persianas e ofuscar as
plantas nos vasos e torcendo por chuva e segunda-feira outra vez e a
felicidade do beco com cerca de madeira onde na véspera a pobre Mardou
quase se perdeu.) – “E o sujeito de cor, o que ele fez?”–“Fechou a
braguilha, não queria olhar pra mim, virou de costas, foi tão esquisito ele
ficou envergonhado e sentou – me lembrei também quando eu era garota
em Oakland e tinha um cara que mandava a gente pra loja e dava
moedinhas pra gente e aí ele abria o roupão de banho e estava nu por
baixo.” – “Negro?” – “É, no bairro onde eu morava – me lembro que eu
nunca ficava mas a minha amiga ficava e eu acho até que uma vez ela fez
alguma coisa com ele.” – “Mas o que que você fez com o cara da cadeira
giratória?” – “Sei lá, achque eu saí dali e era um dia lindo, cara, Páscoa.” –
“Meu Deus, Páscoa, onde é que eu estava?” – “O sol gostoso, as flores e eu
descendo a rua e pensando ‘Como que eu me permitia ficar entediada
antigamente e pra compensar ficava muito louca ou de porre ou com acesso
de raiva ou qualquer outra maneira de reagir quando se quer alguma coisa
em vez da compreensão das coisas que existem, que afinal de contas são
tantas, e ficar pensando em lances sociais grilantes, – sabe, esses lances –
grilos – sabe, problemas sociais e meu problema racial, um negócio tão sem
importância e eu senti que aquela grande confiança e o ouro da manhã iam
desaparecer um dia aliás já estava começando – eu podia ter transformado
toda a minha vida fazer ficar igual àquela manhã só com a pura
compreensão e vontade de viver e seguir em frente, meu Deus foi o negócio
mais bonito que já aconteceu comigo do jeito que foi – mas foi uma coisa
tão sinistra.” – Terminou quando ela voltou para a casa das irmãs dela em
Oakland e elas ficaram furiosas com ela mas ela nem se tocou e fez coisas
estranhas; reparou por exemplo na fiação complicada que a irmã mais velha
dela tinha feito para ligar a TV e o rádio na cozinha no segundo andar do
casebre de madeira perto da esquina de Seventh com Pine Street a madeira
com fuligem ferroviária e varandas com gárgulas favela de madeira e angu,
quintal só pedregulho e madeira queimada onde os vagabundos acamparam
na véspera antes de atravessar o pátio do frigorífico em frente em direção à
estrada de ferro com destino a Tracy atravessando a imensa infinda
impossível Oakland-Brooklyn cheia de postes da telefônica e merda e nas
noites de sábado os bares doidos de negros cheios de putas e os mexicanos
berrando nos botecos deles e o carro de polícia descendo devagar a avenida
longa e triste cheia de bêbados e o brilho de garrafas quebradas (agora na
casa de madeira onde ela foi criada no terror Mardou de cócoras encostada
na parede olhando para os fios na penumbra e ela ouve a própria voz
falando e não entende por que está falando aquilo só sabe que é preciso
falar, botar para fora, porque antes naquele dia quando em suas
perambulações ela finalmente chegou à Third Street entre as filas de
bêbados cambaleantes e os índios completamente de porre com curativos
caindo nos becos e o cinema poeira com programa triplo e as criancinhas
dos hotéis vagabundos correndo na calçada e as lojas de penhores e os
botequins de negros com vitrolas e ela parada no sol sonolento de repente
ouvindo bop como se pela primeira vez, a intenção dos músicos e os metais
e instrumentos de repente uma unidade mística se exprimindo em ondas
sinistras e de novo eletricidade porém gritando cheia de vida palpável a
palavra direta vinda da vibração, as trocas de afirmações, os níveis de
insinuações sinuosas, o sorriso sonoro, a mesma insinuação viva do modo
como a irmã dela instalara aqueles fios enrolados enredados e cheios de
intenções, aparentemente inocentes mas na verdade por trás da máscara da
vida cotidiana completamente em acordo com a boca sentimental serpentes
quase sarcásticas de eletricidade colocadas ali de propósito que ela passara
o dia todo vendo e ouvindo na música e via agora nos fios), “O que você
está tentando fazer, me eletrocutar?” aí as irmãs viram que realmente havia
algum problema sério, pior que a mais nova das irmãs Fox que era
alcoólatra e aprontava na rua e volta e meia era presa pela delegacia de
entorpecentes, algum problema inominável terrível medonho. “Ela queima
fumo, e vive às voltas com aqueles caras estranhíssimos barbudos em São
Francisco.” – Chamaram a polícia e Mardou foi levada para o hospital –
percebendo agora, “Meu Deus, vi como era terrível o que estava
acontecendo e ia acontecer comigo e aí cara resolvi sair daquela rapidinho,
e conversei muito sensata com todo mundo e fiz tudo direitinho, me
deixaram sair em 48 horas – as outras mulheres estavam comigo, a gente
olhava pela janela e as coisas que elas me diziam, eu percebi como era
precioso estar sem aquela camisola estranha, fora dali na rua, no sol, a gente
via os navios, lá fora LIVRE pra andar pra qualquer lado, como isso é
maravilhoso e a gente nunca vê isso por causa das nossas
preocupaçõezinhas, somos uns bobalhões, como essas crianças mimadas
cegas detestáveis emburradas só porque... não dão... pra elas... todas... as
balas... que elas querem, e aí eu falei pros médicos –.” “E você não tinha
onde ficar, e as tuas roupas onde é que estavam?” – “Espalhadas por toda
North Beach – eu tinha que fazer alguma coisa – aí eles deixaram eu ficar
lá, uns amigos meus, passar o verão, vou ter que sair em outubro.” – “Lá na
Heavenly Lane?” – “É.” – “Amor vamos eu e você – você está a fim de ir
pro México comigo?” – “Claro!” – “Se eu for pro México? quer dizer, se eu
arranjar a grana? se bem que eu tenho uns cento e oitenta dólares agora e no
duro a gente podia ir até amanhã – que nem índios – quer dizer, baratinho e
ficando no interior ou nas favelas.” – “É – seria tão bom fugir de tudo
agora.” – “Mas a gente podia aliás devia esperar até eu arrumar – eu estou
pra receber quinhentos sabe – e –” (e nesse momento eu ia fazê-la entrar no
coração da minha vida) – ela dizendo “sabe eu não quero mais andar com
essa turma de North Beach, cara, por isso que – eu falei ou concordei assim
na mesma hora, agora você já está meio na dúvida” (rindo porque eu estava
pensando). – “Mas eu estou só pensando nos problemas práticos.” – “É,
mas se eu dissesse só ‘pode ser’ eu garanto que – aaaah tudo bem”, me
beijando – o dia cinzento, a lâmpada vermelha acesa, eu nunca tinha ouvido
uma história assim de alguém como ela só dos grandes homens que eu
conheci na juventude, grandes heróis americanos que eram amigões meus,
com quem eu me meti em aventuras e fui parar na cadeia e conheci em
manhãs esfarrapadas, os garotos batiam no meio-fio vendo símbolos na
sarjeta transbordante, os Rimbauds e Verlaines da América em Times
Square, garotos – nenhuma menina jamais me havia comovido com uma
história de sofrimento espiritual a alma dela transparecendo tão lindamente
radiante como um anjo perambulando no inferno e o inferno eram as
mesmas ruas que eu perambulava procurando, procurando alguém como ela
sem nunca imaginar a escuridão e o mistério e eventualidade de nosso
encontro na eternidade, a imensidão do rosto dela agora como um cartaz
pregado numa cerca de madeira nos terrenos baldios de lixo fumegantes em
manhãs de sábado sem escola, direto, lindo, louco, na chuva. – Nos
abraçamos, apertamos com força – agora era como amor, fiquei
maravilhado – transamos na sala, felizes, nas cadeiras, na cama, dormimos
enrodilhados, satisfeitos – eu ia mostrar mais sexualidade a ela –
Acordamos tarde, ela não tinha ido ao psicanalista, ela havia passado o
dia “à-toa” e quando Adam chegou em casa e nos viu sentados de novo
ainda conversando com a casa toda bagunçada (xícaras de café, farelos do
bolo que eu havia comprado na trágica Broadway na italianidade cinzenta
que era tão parecida com a indianidade perdida de Mardou, trágica São
Francisco-América com suas cercas cinzentas, calçadas sombrias, portas
úmidas, eu que era do interior recém-chegado da ensolarada Flórida achava
aquilo tão assustador). – “Mardou, você perdeu a consulta com o terapeuta,
pô Leo você não tem vergonha não se sente meio responsável, afinal –”
“Você quer dizer que eu fiz ela faltar às obrigações dela... eu sempre fiz isso
com todas as minhas garotas... ah vai ser bom pra ela não ir ao analista”
(sem saber o quanto ela precisava). – Adam quase brincando mas também
muito sério, “Mardou você tem que escrever uma carta ou telefonar pra ele
– por quê que você não liga agora mesmo?” – “Não é ele não, é ela, é lá na
cidade.” – “Então liga pra ela, toma uma moeda.” – “Mas eu posso ligar
amanhã, agora está tarde.” – “Tarde por quê – não, mas essa tua hoje foi
demais, e você também Leo você também tem culpa seu vigarista.” E
depois um jantar animado, duas moças de fora (louco cinzento mundo
exterior) vieram também, uma acabando de chegar de carro de Nova York
com Buddy Pond, tremenda hipster de Los Angeles cabelo cortado rentinho
que imediatamente entrou na cozinha suja e preparou para todo mundo um
jantar delicioso de sopa de feijão preto (todos os ingredientes enlatados) e
mais umas coisas enquanto a outra garota, a garota de Adam, ficou de
conversa fiada no telefone e Mardou e eu ficamos com sentimento de culpa,
sentados obscuros na cozinha bebendo cerveja choca e pensando será que
Adam tinha razão, era importante fazer o que se tinha que fazer e cuidar da
cabeça, mas tendo contado nossas histórias, nosso amor estando
solidificado, e alguma coisa triste tendo surgido nos nossos olhos – a noite
prosseguiu com o jantar animado, nós cinco, a garota de cabelo curto disse
depois que eu era tão lindo que ela nem podia olhar (que depois eu descobri
que era uma expressão nova-iorquina dela e de Buddy Pond), “lindo” tão
extraordinário para mim, tão incrível, mas deve ter impressionado Mardou,
que aliás durante o jantar ficou com ciúme das atenções da garota comigo e
depois me disse isso – eu numa posição tão aérea, tão segura – depois
saímos todos no carro conversível importado dela, pelas ruas de São
Francisco agora menos cinzentas já limpando com vermelhos macios e
quentes rasgando no céu entre os prédios Mardou e eu no banco de trás
aberto curtindo as sombras macias, comentando, mãos dadas – eles na
frente como jovens parisienses alegres do jet-set rodando pela cidade, a
garota de cabelo curto dirigindo muito séria, Adam mostrando e apontando
tudo – indo visitar um cara em Russian Hill (fazendo as malas para pegar o
trem para Nova York e depois o navio para Paris) onde cervejamos,
papeamos, depois a pé com Buddy Pond visitar um amigo literato de Adam,
Aylward Nãoseidasquantas, famoso pelos diálogos publicados na Current
Review, dono de uma biblioteca magnífica, depois ali perto visitar o
(segundo eu disse a Aylward) cara mais espirituoso do país, Charles
Bernard, que tinha gim, e uma bicha velha grisalha, e outras pessoas, e mais
outras festinhas do gênero, terminando altas madrugadas, quando então fiz
minha primeira bobagem na minha vida e amor com Mardou, me recusando
a voltar com todo mundo às 3 da manhã, insistindo, embora convidado por
Charles, em ficar até o sol raiar examinando as fotos pornográficas
(homossexuais masculinas) dele ouvindo discos de Marlene Dietrich, com
Aylward – os outros indo embora, Mardou cansada e tinha bebido demais
me olhando humilde sem reclamar e vendo como eu era, um bêbado na
verdade, sempre ficando até tarde demais, filando comida e bebida na casa
dos outros, berrando, maior bobeira – mas já me amando tanto que não
reclamava e com seus pezinhos negros nus na sandália andando passos
macios atrás de mim na cozinha enquanto preparávamos drinques e mesmo
quando Bernard cisma que uma foto pornográfica foi roubada por ela (como
ela está no banheiro e ele está me falando confidencialmente, “Meu
querido, eu vi ela pegar e botar no bolso, da calça quer dizer da blusa”) de
modo que quando ela sai do banheiro ela capta alguma coisa no ar, as
bichas a rondá-la, o bêbado maluco que está com ela, ela não reclama – a
primeira de uma longa série de humilhações impostas a ela, não à
capacidade de sofrimento dela mas a ela gratuitamente às pequenas
dignidades femininas dela. – Ah eu não devia ter feito aquilo, estupidez, a
longa lista de festas e biritadas e vezes que eu apaguei e as vezes que eu a
abandonei sem mais nem menos, que culminaram com a vez que nós dois
no táxi ela insistindo para que eu a levasse em casa (para dormir) que eu
posso ir sozinho encontrar com Sam (no bar) mas eu saio correndo do táxi,
feito louco (“nunca vi uma coisa tão maluca”), salto para dentro de outro
táxi e me mando, e a deixo sozinha na noite – de modo que quando Yuri
bate na porta na noite seguinte e eu não estou lá, e ele está bêbado e insiste,
e salta em cima dela como vinha fazendo há algum tempo, ela não oferece
resistência, nenhuma resistência – desiste – saltando um pedaço da minha
história, adiantando e dizendo o nome do meu inimigo logo de uma vez – a
dor, por que motivo aquela “doce investida de aríete de seu amor” que na
verdade não tem nada a ver comigo, foi como um punhal na minha
garganta?
Assim, voltando a pé da noitada, na Heavenly Lane, novamente tenho
o pesadelo de cerveja (dessa vez um pouco de gim também) e com remorso
e novamente e dessa vez sem razão repulsa as partículas fofas de
enchimento do travesseiro nos cabelos dela pretos duros, bochechas
inchadas e labiozinhos inchados, a escuridão e umidade da Heavenly Lane,
e mais uma vez “tenho que ir pra casa, endireitar” – como se com ela eu
estivesse sempre torto – nunca longe de meu quimérico gabinete de trabalho
e casa confortável, no mundo cinzento e hostil da cidade-mundo, em estado
de BEM-ESTAR –. “Mas por que você sempre entra numa de sair tão
depressa?” – “Achque é um sentimento de bem-estar em casa, que eu
preciso, pra me endireitar, não é –.” “Eu sei amor – mas eu, eu sinto uma
saudade de você ciúme de você ter casa e mãe que passa suas roupas e tudo
mais e eu não tenho –.” “Quando que eu volto, sexta à noite?” – “Mas amor
isso é você que sabe – quando vem.” – “Mas me diz o que VOCÊ quer.” –
“Mas isso eu não posso.” – “Mas como não pode?” – “É assim sabe dizem –
que – ah, sei lá” (suspirando, se virando na cama, escondendo enterrando
seu corpinho de uva, aí eu vou, viro-a para mim, sento na cama, beijo a
linha reta que vai desde o esterno, uma depressão ali, direito até o umbigo
onde se transforma numa linha infinitesimal e segue em frente como se
traçada com régua e daí submerge mas continua direto, e por que o homem
precisa depender da história e do pensamento para seu bem-estar quando ela
mesma disse que ela tem a essência, mas enfim). – O peso da minha
necessidade de ir para casa, meus medos neuróticos, grilos, horrores – “Eu
não devia – a gente não devia ter ido na casa de Bernard ontem à noite –
pelo menos a gente devia ter voltado às três com os outros.” – “Foi o que eu
disse – amor – mas meu Deus” (rindo com aquele barulhinho e fazendo
imitação gozada de voz pastosa) “voxê nunca fax o que eu te pexo.” – “Ah
desculpe – eu te amo – você me ama?” – “Cara”, rindo, “o que que você
quer dizer com isso” – me olhando desconfiada – “Eu quero saber se você
sente afeto por mim” apesar de que nesse exato momento ela está botando
seu braço escuro sobre meu pescoço grosso e tenso. – “É claro meu
querido.” – “Mas o que é quê –?” Quero perguntar tudo, não consigo, não
sei, qual é o mistério que eu quero de você, o que é homem o que é mulher,
amor, o que eu entendo por amor por que eu tenho de insistir e perguntar e
por que eu abandono você porque nesse apartamentozinho miserável – “É o
lugar que me deprime – em casa eu sento no quintal, debaixo das árvores,
dou comida pro meu gato.” – “Ah bicho eu sei que está abafado aqui dentro
– quer que eu abra a persiana?” – “Não todo mundo vai ver você – tomara
que o verão acabe logo – quando eu pegar aquela grana e aí a gente vai pro
México.” – “Bem mas aí por que que a gente não vai com o que você disse
que você tem agora, você diz que dá.” – “É claro! É claro!”, uma idéia que
ganha força na minha cabeça enquanto tomo uns goles de cerveja choca e
imagino uma cabana de pau-a-pique perto por exemplo de Texcoco cinco
dólares por mês e nós indo ao mercado no orvalho da manhã ela com seus
doces pezinhos negros de sandália andando com seu passo macio de esposa
do gênero Rute atrás de mim, chegamos, compramos laranjas, pão, até
mesmo vinho, vinho mexicano, vamos para casa cozinhamos direitinho no
nosso fogãozinho, depois tomamos café escrevendo e analisando nossos
sonhos, fazemos amor na nossa cama. – Agora Mardou e eu estamos
sentados aqui falando sobre tudo isso, sonhando acordados, uma tremenda
fantasia – “Olha bicho”, os dentinhos rindo dentuçamente, “QUANDO a
gente fizer isso tudo – sabe todo o nosso relacionamento até agora foi só
uma piração, tanta indecisão e planos – meu Deus.” – “Talvez seja melhor a
gente esperar até pintar o dinheiro dos direitos autorais – pô! é mesmo! vai
ser melhor, porque aí a gente pode comprar uma máquina de escrever e uma
vitrola com três velocidades e discos de Gerry Mulligan e roupas pra você e
tudo que a gente precisa, que do jeito que a gente está agora a gente não
pode fazer nada.” – “É – sei lá” (ruminando). “Cara você sabe que eu não
me amarro nessas transas de pobreza braba” – (afirmações de profundidade
hip tão súbita que eu fico puto e vou para casa e fico ruminando sobre isso
vários dias). “Quando você volta?” – “Está bem, então quinta-feira.” –
“Mas se você quer mesmo vir na sexta – eu não quero atrapalhar o teu
trabalho, amor – sei lá vai-ver você prefere pegar de enfiada mais tempo.” –
“Depois do que você – ah eu te amo – amo –.” Tiro a roupa e fico mais
umas três horas, e saio com sentimento de culpa porque o bem-estar, a
sensação de estar fazendo o que eu devia foi sacrificada, mas embora
sacrificada por um amor saudável, algo está doente em mim, perdido,
medos – percebo também que não dei um tostão para Mardou, nem sequer
literalmente uma fatia de pão, só conversa, abraços, beijos, saio da casa e o
cheque de auxílio-desemprego dela ainda não chegou e ela não tem nada
para comer – “O que que você vai comer?” – “Ah tem umas latas – ou então
eu vou até o Adam não sei mas eu não quero viver indo lá – achque agora
ele está ressentido comigo, a sua amizade foi, eu prejudiquei aquela coisa
que havia entre –.” “Não nada disso.” – “Mas é outra coisa – eu não quero
sair, quero ficar em casa, não quero ver ninguém.” – “Nem eu?” – “Nem
você, às vezes meu Deus eu sinto isso.” – “Ah Mardou eu estou tão confuso
– não consigo me decidir – a gente devia fazer alguma coisa juntos – já sei,
vou arranjar um emprego na rede ferroviária e aí a gente vai morar junto –”
essa é a grande idéia nova.
(E Charles Bernard, a grandeza do nome na cosmogonia do meu
cérebro, herói do passado proustiano da transa toda tal como eu a vi, da
parte estritamente São Francisco dessa trama, Charles Bernard que havia
sido amante de Jane, da Jane que levou um tiro de Frank, Jane com quem eu
tinha vivido, melhor amiga de Marie, as noites frias chuvosas de inverno
quando Charles atravessava o campus dizendo alguma coisa gozada, as
grandes epopéias tão próximas tão fantasmas e desinteressantes quase
inacreditáveis mas a verdadeira posição e importância não apenas de
Charles mas de uma dúzia de outros na estante da minha mente, de modo
que Mardou vista desse ângulo é um corpinho escuro numa cama cinzenta
nos cortiços de Telegraph Hill, imensa figura na história da noite sim mas
ah apenas uma entre tantas outras, a assexualidade da OBRA – também o
súbito êxtase de cerveja quando visões de grandes palavras em ordem
rítmica tudo num único livro arcanjo avassalam meu cérebro, aí eu fico
deitado no escuro vendo ouvindo também o jargão dos mundos futuros –
damajehe eleout ekeke dhdkdk dldoud, – d, ekeoeu dhdhdkehgyt – melhor
não um mais que lther ehe o macmurphy daquele djardint que cujo
estranhamente hás de mdodudltkdip – baseeaatra – exemplos fracos devido
às necessidades mecânicas da datilografia, do fluxo dos sons fluviais,
palavras, escuridão, levando ao futuro e atestando a loucura, o vazio, as
sirenes e explosões de minha mente que abençoada ou desabençoada é nela
que cantam as árvores – num vento esquisito bem-estar acredita que ele vai
para o céu – para bom entendedor meia palavra basta “Esperto demais
Pirou”, escreveu Allen Ginsberg.)
Razão pela qual não fui para casa às três da manhã – e exemplo.
2
De início eu ficava na dúvida, porque ela era negra, porque ela era
desleixada (sempre deixando tudo para amanhã, o quarto sujo, os lençóis
nunca lavados – meu Deus mas que importância têm para mim os lençóis) –
na dúvida porque eu sabia que ela havia pirado brabo uma vez e podia
muito bem pirar de novo e uma das primeiras coisas que nós fizemos, numa
das primeiras noites, ela estava entrando no banheiro nua no corredor
abandonado mas a porta do apartamento dela fazia um barulho esquisito e
eu entrei numa (doido de fumo) que alguém tinha chegado e estava parado
na escada (sei lá um tal de Gonzalez vagabundo mexicano tipo penetra meio
afrescalhado que vivia pintando na casa dela evocando uma velha amizade
entre ela e um tal de Tracy Pachucos para pedir uns sete centavozinhos a ela
ou então dois cigarros e sempre quando ela estava mais dura, às vezes
levava mesmo cascos de cerveja para ficar com o dinheiro), pensando que
podia ser ele, ou um dos subterrâneos, no corredor perguntando “Tem
alguém com você”, e ela nua, tranqüila, como naquela vez no beco dizendo,
“Não cara, melhor você voltar amanhã estou ocupada não estou sozinha”,
isso tudo fantasia de fumo minha, porque o ranger da porta era um gemido
de vozes, e aí quando ela voltou do banheiro eu contei tudo a ela (achando
que honestidade sempre) (e acreditando que tinha acontecido mesmo,
quase, e ainda acreditando que ela ainda estava pirada, como na cerca no
beco) mas quando ela ouviu minha confissão ela disse que estava quase
pirando de novo e tinha medo de mim e quase que se levantou e saiu
correndo – por motivos como esse, loucura, a possibilidade sempre presente
de mais loucuras, eu ficava na “dúvida” minhas dúvidas masculinas
interiores sobre ela, aí eu pensava, “Numa dessas eu me mando e arrumo
outra garota, branca, coxas brancas, etc., e tudo isso foi apenas um grande
caso na minha vida e espero que ela não saia muito machucada.” – Ha! –
dúvidas porque ela cozinhava mal e nunca lavava os pratos logo em
seguida, o que de início eu não gostava e depois percebi que na verdade ela
não cozinhava mal não e lavava os pratos sim um tempo depois e aos seis
anos de idade (ela me contou depois) ela era obrigada a lavar pratos para a
família do tio dela um tirano e ainda por cima era obrigada a sair no beco na
noite escura carregando lixo toda noite à mesma hora onde ela tinha certeza
o mesmo fantasma esperava por ela – dúvidas, dúvidas – que agora não
tenho mais tendo a vantagem do tempo-passado. – Que beleza saber agora
que eu a quero para sempre no meu peito meu prêmio minha mulher que eu
defenderia de todos os Yuris e quem mais fosse à força e por todos os
meios, chegou a vez dela proclamar a independência, anunciando, ontem
mesmo antes de eu começar esse livro de lágrimas, “quero ser uma garota
independente com grana e fazer o que eu quiser”. – “É, e conhecendo e
trepando com todo mundo, Pé-errante”, penso eu, errante de onde nós
estávamos quando – parei no ponto de ônibus no vento frio e tinha um
monte de homens e em vez de ficar a meu lado ela foi andando com a capa
de chuva vermelha gozada dela e as calças pretas e entrou numa sapataria
(FAZ SEMPRE O QUE VOCÊ TÁ A FIM COISA QUE EU MAIS
GOSTO NO MUNDO É UM CARA FAZENDO O QUE TÁ A FIM, é o
que Leroy sempre dizia) aí eu vou atrás dela relutante pensando, “Pô essa
menina não pára nunca que saco vou arrumar outra garota” (enfraquecendo
neste ponto como o leitor já percebeu pelo meu tom) mas depois descobri
que ela sabia que eu estava só de camisa sem camiseta por baixo e eu devia
ficar onde não estivesse ventando, me dizendo depois, saber que ela não
estava mais nessa de conversar nua com ninguém no corredor e que não era
pé-errante só porque me levava para esperar num lugar onde não estava tão
frio, que isso era tudo loucura minha, ainda assim não causando a menor
impressão em meu cérebro ansioso impressionável sempre pronto para
construir criar destruir morrer – como veremos na grande estrutura de
ciúme que eu depois com base num sonho e por motivos de autodestruição
recriei... Aturai-me ó leitores que amaram e sofreram pontadas, aturai-me
homens que compreendem que o mar de negror nos olhos negros de uma
mulher é o próprio mar solitário e quem pediria ao mar que se explicasse,
ou perguntaria à mulher por que cruzas tuas mãos no colo sobre rosa?
ninguém –
Dúvidas, portanto, sobre, bem, Mardou é preta, naturalmente não
apenas minha mãe mas minha irmã com quem talvez eu tenha de morar
algum dia e o marido dela sulista e todo mundo envolvido, ficariam
griladíssimos e não iam querer ter nada a ver conosco – e excluiria
completamente a possibilidade de viver no sul, como naquele casarão
faulkneriano no velho Vovô Luar que eu imaginava para mim há tanto
tempo e lá estou eu com o Doutor Whitley abrindo a tampa da minha
secretária e brindamos os grandes livros e lá fora as teias de aranha nos
pinheiros e as mulas velhas caminham em estradas macias, o que diriam se
minha senhora na mansão fosse uma índia negra, cortaria minha vida ao
meio, e todos esses americanos horríveis como se para dizer pensamentos
ambiciosos brancos devaneios brancos. – Dúvidas aos montes também
sobre o próprio corpo dela, e isso também gozado realmente tranqüilizante
agora para o amor dela tão surpreendente eu mesmo não acreditava, eu o
vira na luz uma noite divertida então eu – caminhando pela Fillmore Street
ela insistiu que a gente confessasse tudo que estávamos escondendo um do
outro durante aquela primeira semana do nosso relacionamento, para ver e
compreender e eu fiz minha primeira confissão, gaguejando, “Eu achei que
estava vendo uma coisa preta que eu nunca tinha visto antes, pendurada, sei
lá me assustou” (rindo) – deve ter sido uma punhalada no coração dela
ouvir aquilo, para mim era uma espécie de choque ela estar do meu lado
enquanto caminhávamos e eu contava esse pensamento secreto – mas
depois em casa com a luz acesa nós dois feito crianças examinamos aquele
corpo e não tinha nada de pernicioso nem líquidos estranhos só um negrume
azulado como em todos os tipos de mulher e eu me senti realmente
tranqüilizado de realizar esse exame e estudo com ela – mas sendo essa uma
dúvida que, uma vez confessada, fez com que ela gostasse ainda mais de
mim e percebesse que eu nunca feito cobra esconderia dela o mais – mas
não é preciso defender, eu não tenho mais a menor condição de
compreender quem sou ou o que sou, meu amor por Mardou me separou
completamente de toda e qualquer fantasia anterior, valiosa ou não – Assim
o que impedia que essas dúvidas repentinas dominassem meus atos em
relação a ela era eu saber que não apenas ela era sexy e um amor e boa para
mim e que eu estava causando uma tremenda impressão em North Beach
por estar com ela (e de certo modo também esnobando os subterrâneos que
estavam ficando cada vez mais frios em relação a mim no Dante’s e na rua
por motivos naturais ou seja eu tinha ficado com a queridinha deles que era
na verdade uma das garotas mais brilhantes senão a mais de todas da órbita
deles) – e Adam dizia também “Vocês ficam bem juntos e é bom pra você”,
ele naquela época sendo ainda meu administrador artístico e paterno – não
apenas isso como também, difícil confessar, para você ver como se torna
abstrata a vida na cidade da Classe Conversadora da qual todos nós fazemos
parte, a Classe Conversadora acho eu tentando racionalizar um
materialismo no fundo abjeto quase libidinoso lascivo – foi a leitura, a
súbita feliz maravilhosa iluminada descoberta de Wilheim Reich, seu livro
A função do orgasmo, clareza como eu há muito não via, talvez desde a
clareza da tristeza moderna pessoal de Céline, ou talvez a clareza mental de
Carmody em 1945 quando pela primeira vez sentei-me a seus pés, a clareza
da poesia de Wolfe (aos dezenove anos era clareza para mim), só que agora
era uma clareza científica, germânica, linda, verdadeira – uma coisa que eu
já sabia desde sempre e até intimamente ligada à minha súbita sacação em
1948 de que a única coisa realmente importante era o amor, os amantes
andando para cá e para lá debaixo das árvores na Floresta de Arden do
mundo, aqui ampliada e ao mesmo tempo microcosmada e apontada e
machificada: orgasmo – os reflexos do orgasmo – impossível ser saudável
sem sexo amor e orgasmo normais – não vou entrar na teoria de Reich já
que quem quiser é só ler o livro – mas ao mesmo tempo Mardou vivia
dizendo “Ah não me entra numa de Reich na cama, eu li a porra do livro
dele, eu não quero que o nosso relacionamento fique cheio de explicações e
acabe se f...endo por causa do que ELE falou (e eu já tinha reparado que
todos os subterrâneos e praticamente todos os intelectuais que eu conhecia
por algum motivo estranho acabam sempre pichando Reich depois de algum
tempo, se não desde o início – além disso, Mardou não conseguia ter
orgasmo numa cópula normal mas só depois quando eu a estimulava (um
velho truque que eu tinha aprendido com uma esposa frígida) de modo que
não era nenhum grande ato de bondade da minha parte fazê-la gozar mas
como ela só ontem mesmo finalmente disse “Você está fazendo isso só pra
eu ter o prazer de gozar, você é tão legal”, afirmação essa que de repente foi
um negócio difícil de nós dois acreditarmos e veio logo depois de outra
afirmação dela “Achque a gente devia se separar, a gente nunca faz nada
juntos, e eu quero ser indep –” e assim eu tinha dúvidas em relação a
Mardou, eu o grande Finn Macpossipy tomá-la como legítima esposa aqui
ou lá ou seja onde fosse com todas as objeções da minha família,
especialmente minha querida mas na verdade tirânica (devido à minha
maneira subjetiva de encará-la e da sua influência) mãe e seu domínio sobre
mim – domínio ou lá o que seja. – “Leo, eu acho que não é legal pra você
viver sempre com a tua mãe”, Mardou, afirmativa essa que, na minha fase
inicial confiante só teve o efeito de me fazer pensar, “Bem, é natural, ele
está com ciúme, só isso, e é uma dessas pessoas modernas que fizeram
análise e detestam mães em geral” – mas disse em voz alta, “Mas eu
realmente gosto muito dela e gosto muito de você também e você não vê
como eu me esforço pra dividir meu tempo entre vocês duas – lá eu
escrevo, é meu bem-estar e quando ela chega em casa do trabalho à noite,
cansada, da loja, pra você ver, eu curto tanto preparar o jantar dela, estar
com tudo pronto mais um martini quando ela chega pra que por volta das
oito os pratos já estejam lavados, você entende, e aí ela tem mais tempo de
ver a televisão dela – que aliás eu trabalhei seis meses na estrada de ferro
pra comprar pra ela, você entende.” – “Está certo você fez muito por ela”, e
Adam Moorad (que minha mãe considerava um sujeito louco e mau)
também disse uma vez “Você realmente já fez muito por ela, Leo, agora
esquece ela um pouco, você tem que viver a sua vida”, o que é exatamente
o que minha mãe vivia me dizendo na escuridão da noite de South San
Francisco quando a gente descansava com Tom Collinses ao luar e os
vizinhos vinham também ficar conosco, “Você tem sua vida pra viver, eu
não vou me meter, Ti Leo, em nada que você queria fazer, você é que
decide, e o que você resolver está muito bem”, e eu parado ouvindo bobo
percebendo que sou eu pra tudo, uma tremenda fantasia que no fundo minha
mãe precisa de mim e morreria se eu não estivesse com ela, e ao mesmo
tempo e não obstante cheio de outras racionalizações que me permitiam
sumir duas ou três vezes por ano e fazer as maiores viagens até o México ou
Nova York ou Canal do Panamá de navio – Milhões de dúvidas sobre
Mardou, agora desaparecidas, agora (e mesmo sem a ajuda de Reich que
mostra que a vida é só o homem entrando na mulher e a esfregação dos dois
macia – aquela essência, aquela essência tóóóiiimmm uma coisa que me faz
pirar tanto que eu quase chego a gritar, EU TAMBÉM TENHO A MINHA
ESSÊNCIA E ESSA ESSÊNCIA É RECONHECIMENTO MENTAL –)
agora sem nenhuma dúvida. Mesmo, mil vezes, eu sem lembrar perguntei a
ela se ela tinha mesmo roubado aquela foto pornográfica de Bernard e da
última vez finalmente ela explodiu “Mas quantas vezes eu já falei, eu não
peguei essa foto e já te falei isso mil vezes nem tinha bolso nenhum naquela
roupa que eu estava usando – nenhum”, e no entanto isso não me fazia ver
(com meu cérebro louco febril) que agora era Bernard que estava maluco,
Bernard tinha envelhecido e agora tinha alguma fraqueza lamentável, mania
de acusar os outros de roubar coisas, muito sério – “Leo será que você não
entende e continua falando nisso” – sendo esta a última a mais profunda de
todas as dúvidas que eu tinha em relação a Mardou que no fundo ela era
uma espécie de ladra e portanto queria roubar meu coração, meu coração de
branco, uma negra entrando sorrateira neste mundo roubando os sagrados
homens brancos para posteriores rituais de sacrifício quando então eles
serão assados no espeto (lembrando da história de Tennessee Williams
sobre o empregado da sauna que era preto e a bichinha branca) porque, não
apenas Ross Wallenstein me chamou na minha cara de veado – “Cara qual é
a tua afinal, você é veado? você fala que nem veado”, tendo dito isto depois
que eu disse para ele numa voz que eu esperava que fosse de intelectual,
“Você tomou esse barbitúrico? cara você devia experimentar você fica
doidão aí toma umas cervejas em cima, mas não toma quatro não, só três”,
o que para ele foi um tremendo insulto já que ele é o veterano dos hipsters
de North Beach, e um cara ainda por cima um cara de fora vem e rouba
Mardou do grupo e ao mesmo tempo com pinta de marginal e reputação de
grande escritor, o que ele não via, por causa de um único livro publicado –
essa loucura toda em que Mardou virava o crioulão que trabalha na sauna, e
eu a bichinha que acaba arrasada na transação amorosa e é levada até a baía
dentro de um saco, para lá ser distribuída aos pedacinhos de carne e osso
aos peixes se é que ainda tem peixe naquela água triste) – e aí ela roubava a
minha alma e comia – então me disse mil vezes, “eu não roubei aquela foto
e eu garanto que o Aylward Nãoseidasquantas não roubou nem você roubou
nem ninguém é o Bernard, é uma espécie de fetichismo dele” – Mas isso
nunca entrou na minha cabeça até o fim, até uma noite dessas, a última vez
– aquela dúvida mais profunda a respeito dela subindo à tona desde a vez
(ela que me contou) que ela morava no apê de Jack Steen numa água-
furtada maluca na Commercial Street perto do sindicato dos marítimos, no
escuro, sentada na frente da mala de Jack pensando se abria para ver o que
tinha dentro, e aí Jack chegou em casa e mexeu na mala e pensou ou viu
que alguma coisa estava faltando e disse, sinistro, sombrio, “Você andou
mexendo na minha mala?” e quase que ela deu um salto e gritou MEXI SIM
porque ela HAVIA – “Bicho na minha cabeça eu havia passado o dia inteiro
mexendo naquela mala e de repente ele estava olhando pra mim, com
aquele olhar – quase pirei” – essa história também não entrou no meu
cérebro rígido paranóico, e aí por isso eu passei dois meses achando que o
que ela me tinha dito era “É, eu abri a mala dele, mas é claro que não tirei
nada”, mas aí eu via que na realidade ela mentiu para Jack Steen – mas na
realidade agora, os fatos, ela só pensou em abrir, e por aí vai – minhas
dúvidas todas elas muito bem assessoradas por uma paranóia galopante, que
na verdade é minha confissão – dúvidas, então, todas desaparecidas.
Pois agora quero Mardou – ela acabou de me dizer que seis meses atrás
uma doença criou raízes profundas em sua alma, e para sempre – isso não a
faz ficar ainda mais bonita? – Mas eu quero Mardou – porque a vejo em pé,
de calça preta de veludo, manibolsos, magra, ombros caídos, cigarro
pendurado dos lábios, fumaça subindo em espirais, os cabelos curtos negros
cortados rente bem penteados e esticados, o batom, pele negra pálida, olhos
negros, sombras dançando nos malares salientes, o nariz, a forma macia do
queixo ao pescoço, o pequeno pomo-de-adão, tão hip, tão na dela, tão
bonita, tão moderna, tão nova, tão inatingível para mim eu triste figura de
calças de palhaço no meu barracão no meio do mato – eu quero Mardou por
causa da maneira como ela imitou Jack Steen aquela vez na rua e eu fiquei
tão desbundado mas Adam Moorad ficou muito sério assistindo à imitação
como se talvez absorto na contemplação da coisa em si, ou apenas cético,
mas ela se destacou dos dois homens que estavam com ela e saiu na frente
deles exibindo o andar (no meio de multidões) a ginga suave de braços, os
passos longos e macios, a paradinha na esquina para esperar e docemente
olhar para cima como um filósofo vienense como eu disse antes – mas ver
Mardou fazendo a imitação, e com perfeição (eu já o tinha visto andar assim
mesmo no parque), o fato em si – eu amo Mardou mas esta canção está...
quebrada – mas em francês... em francês eu posso cantar Mardou sem
parar...
Nossos pequenos prazeres em casa à noite, ela chupa uma laranja e faz
um barulhão –
Quando eu rio ela olha para mim com olhinhos pretos redondos que se
escondem nas pálpebras porque ela ri tanto (contorcendo todo o rosto, os
dentinhos aparecendo, iluminando tudo) (a primeira vez que a vi, na casa de
Larry O’Hara, no canto, me lembro, eu cheguei com meu rosto para perto
do dela para falar sobre livros, ela virou para mim chegou bem perto, um
oceano de coisas derretendo e se afogando, eu podia ter nadado, eu tinha
medo de toda aquela abundância e desviei a vista) –
Com o lenço rosa que ele sempre amarra na cabeça para os prazeres do
leito, como uma cigana, rosa, e aí depois o roxo, e os cabelinhos
escapulindo do roxo fosforescente da testa negra como madeira –
Os olhinhos mexendo que nem gatos –
Tocamos Gerry Mulligan bem alto quando ele chega à noite, ela escuta
e rói as unhas, a cabeça balança lentamente de um lado para outro como
uma freira absorta na prece –
Quando ela fuma ela leva o cigarro até a boca e semicerra os olhos –
Lê até o amanhecer cinzento, cabeça sobre o braço, Dom Quixote,
Proust, qualquer coisa –
Deitamos, olhamos um para o outro sérios sem dizer nada, cabeça
colada a cabeça no travesseiro –
Às vezes quando ela fala e minha cabeça está debaixo da dela sobre o
travesseiro e eu vejo seu queixo a covinha a mulher em seu pescoço, eu a
vejo profundamente, abundantemente, o pescoço, o queixo fundo, sei que
ela é uma das mulheres mais emulheradas que eu já vi, morena de
eternidade incompreensivelmente bela e sempre triste, profunda, tranqüila –
Quando eu a agarro em casa, pequena, e a aperto, ela grita, me faz
cócegas furiosas, eu rio, ela ri, os olhos dela brilham, ela me dá socos, quer
me bater com uma vara, diz que gosta de mim –
Eu me escondo com ela na casa secreta da noite –
O dia nos encontra místicos em nossos mantos, coração a coração –
“Minha irmã!” pensei de repente na primeira vez que a vi –
Luz apagada.
Devaneios: ela e eu nos curvando em grandes festas de felás com
Parises reluzentes no horizonte e no primeiro plano – ela atravessa as
grandes tábuas corridas do assoalho com um sorriso.
Sempre a testá-la, por causa das “dúvidas” – dúvidas, ora! – e eu
gostaria de me acusar a mim mesmo de filhadaputice – que testes! – posso
citar rapidamente dois, a noite que Arial Lavalina o famoso jovem escritor
de repente estava no Mask e eu estava sentado com Carmody agora também
escritor famoso à sua maneira que tinha acabado de chegar do norte da
África, Mardou ali perto no Dante’s entrando e saindo de um bar para outro
como todo mundo costumava fazer, e de repente ela ia sozinha lá para ver
os Juliens etc. – vi Lavalina e o chamei pelo nome e ele aproximou-se. –
Quando Mardou veio me chamar para ir para casa me recusei a ir, insistindo
que era um momento literário importante, o encontro daqueles dois
(Carmody havendo tramado comigo um ano antes na escuridão do México
quando éramos pobres na pior e ele apenas um viciado, “Escreve uma carta
pra Ralph Lowry descobre um jeito de eu conhecer esse Arial Lavalina
bonitão, cara, olha só aquela foto na capa de trás de Reconhecimento de
Roma, não é um barato?” tendo eu simpatia pessoal por ele e também como
Bernard veado ele estava ligado à lenda do grande-cérebro de mim mesmo
que era a OBRA, aquela obra que tudo consome, e aí eu escrevi a carta e
etc. e tal) mas agora de repente (depois que naturalmente não veio nenhuma
resposta da ilha de Ischia e demais panelinhas e pelo menos para mim foi
até bom) ele estava lá e eu o reconheci da noite que encontrei com ele no
balé do Metropolitan quando em Nova York de smoking eu tinha saído com
um redator também de smoking para ver o mundo reluzente noturno nova-
iorquino das letras e figuras folclóricas, e Leon Danillian, aí eu gritei “Arial
Lavalina! vem cá!” e ele veio. – Quando Mardou veio eu sussurrei
felicíssimo “Esse é o Arial Lavalina não é uma loucura!” – “É cara mas eu
quero ir pra casa.” – E naquela época o amor dela por mim não era para
mim mais do que um cachorrinho legal andando atrás de mim (o que tem
tudo a ver com minha visão real secreta mexicana de Mardou me seguindo
pelas escuras ruas faveladas da Cidade do México não andando comigo e
sim atrás de mim, como índia) eu marquei a maior bobeira dizendo “Peraí,
vai pra casa e me espera, eu quero curtir Arial e depois eu vou embora.” –
“Mas amor foi o que você disse da última vez e você levou duas horas pra
chegar e você não sabe a dor que isso me causou de ter que esperar.” (Dor!)
– “Eu sei mas olha”, e aí dei uma volta no quarteirão com ela para
convencê-la, e bêbado como sempre com o fim de provar alguma coisa
plantei bananeira na calçada da Montgomery ou Clay Street e aí uns
marginais passaram, viram e disseram “É isso aí” – finalmente (ela rindo)
coloquei-a num táxi, para ir para casa, me esperar – voltando depois para
Lavalina e Carmody que alegremente e agora sozinho de volta em meu
grande mundo noturno visão literária adolescente no mundo, nariz contra
vidraça de vitrine, “Olha só, Carmody e Lavalina, o grande Arial Lavalina
embora não um grandíssimo escritor como eu mas famoso assim mesmo e
lindo etc. juntos no Mask e fui eu que transei tudo, e tudo se encaixa, o mito
da noite de chuva, Master Mad, Raw Road, a coisa vem de 1949 e 1950 e
todas as coisas grandes imensas o Mask de velhos restos históricos” – (era
assim que eu me sentia e eu entro) e sento ao lado deles e bebo mais –
depois os três indo até o 13 Pater bar de sapatão na Columbus, Carmody,
doidão, indo embora e nos deixando para curtir o lugar, e nós sentados,
mais cerveja, o horror o indizível horror de eu de repente descobrir em mim
uma humildade alcoólica talvez do tipo William Blake ou Crazy Jane ou
vai-ver que Christopher Smart agarrando e beijando a mão de Arial e
exclamando “Ah Arial meu querido – você vai ser – você é tão famoso –
você escreveu tão bem – eu me lembro de você – o quê –” e por aí vai e
agora o ilembrável a embriaguez, e ele um manjadíssimo e evidente
homossexual de primeira, meu cérebro rugindo – vamos para o quarto dele
em algum hotel – acordo de manhã no sofá, me invade a terrível
consciência de “Acabei não voltando pra Mardou” e aí no táxi ele me dá –
eu peço meio dólar e ele me dá um inteiro dizendo “Você me deve um
dólar” e eu salto correndo e disparo no sol quente rosto todo quebrado de
bebida e vergonha até o apê dela na Heavenly Lane chegando na hora exata
que ela está se vestindo para ir para a terapia. – Ah triste Mardou com
olhinhos pretos cheios de dor e tinha esperado toda a noite numa cama
escura e o bêbado entrando trôpego e na mesma hora desci correndo para
comprar duas latas de cerveja para cortar o porre (“Para dominar os
temíveis cãos de cabelo” como diria o velho Bull Balloon), aí enquanto ela
fazia suas abluções para sair eu gritava e saltitava – fui dormir, para esperar
por ela, que voltou no fim da tarde, acordei ouvindo a gritaria das
criancinhas puras do beco – o horror o horror, e resolvendo, “Vou escrever
imediatamente uma carta pra Lavalina”, mandando um dólar dentro da carta
e pedindo desculpa por ficar tão bêbado e agir de modo tal que ele me
entendeu mal – Mardou chegando, sem reclamações, só uma ou outra pouco
depois, e os dias passando e ela ainda me perdoa o bastante ou é humilde o
bastante apesar da minha loucura recente para me escrever, algumas noites
depois, esta carta:
AMOR,
Como é bom saber que o inverno está
chegando –
– e que a vida vai ser um pouco mais tranqüila – e você vai ficar
em casa escrevendo e comendo bem e nós vamos passar noites
agradáveis abraçadinhos – e você está em casa agora,
descansado e comendo bem porque você não devia ficar muito
triste –
escrita depois que, uma noite, no Mask com ela e o recém-chegado meu
futuro inimigo Yuri meu ex-irmãozinho eu falei de repente “Sinto uma
tristeza impossível como se eu fosse morrer, o que que a gente faz?” e Yuri
sugeriu “Liga pro Sam”, o que, na minha tristeza, eu fiz, e com tanta
sinceridade, porque senão ele não ia prestar atenção em mim sendo ele
jornalista e o filho dele acabara de nascer e não tinha tempo para bobagens,
mas tanta sinceridade que ele nos aceitou, os três, que fôssemos
imediatamente, dali do Mask, para seu apartamento em Russian Hill, onde
fomos, eu cada vez mais bêbado, Sam como sempre me dando socos e
dizendo “Teu problema, Percepied”, e “Você tem uns sacos podres no fundo
do teu depósito”, e “No fundo vocês, canadenses de fala francesa, são todos
iguais e eu nem acredito que você vai admitir que morreu quando morrer” –
Mardou olhando para ele, achando graça, bebendo um pouco, Sam
finalmente, como sempre, caindo de porre, mas não exatamente, desejando
o porre, em cima de uma mesinha baixa completamente coberta de cinzeiros
transbordantes e copos e cacarecos, plof, a mulher dele, com bebê saído do
berço, suspirando – Yuri, que não bebia só olhava de olhos brilhantes,
depois de ter me dito no dia em que chegou, “Sabe Percepied eu realmente
gosto de você agora, eu estou realmente a fim de me comunicar com você
agora”, o que devia ter me botado desconfiado de que nele aquilo era um
novo interesse sinistro nas minhas atividades, a saber, Mardou –
foi o único comentário doce que a frágil Mardou fez sobre aquela noite
terrível desastrosa – semelhante ao exemplo nº 2, depois do lance de
Lavalina, a noite do lindo rapaz fauno que havia dormido com Micky dois
anos antes num glorioso festanal que eu mesmo tinha organizado quando
vivia com Micky a grande musa da noite lendária louca, vendo-o no Mask,
e estando com Frank Carmody e todo mundo, puxando a camisa dele,
insistindo para que ele fosse conosco para outros bares, atrás da gente,
Mardou finalmente na noite embaçada ensurdecedora berrando comigo “Ou
eu ou ele porra”, mas não a sério no fundo (ela que normalmente não bebia
já que era uma subterrânea mas agora por causa da transa com Percepied
bebendo muito) – ela foi embora, ouvi-a dizer “Terminamos” mas nem por
um segundo acreditei, como de fato ela voltou depois, nos abraçamos e
cambaleamos juntos, mais uma vez eu tinha me comportado mal e mais
uma vez ridiculamente que nem um veado, o que me preocupava de novo
ao acordar no cinzento da Heavenly Lane na manhã ao rugir da cerveja. –
Isto é a confissão de um homem que não sabe beber. – E a carta dela
dizendo:
– quando ela tinha catorze ou treze anos por aí ela matava aula fugia de
Oakland e pegava a barca para São Francisco ia para a Market Street e
passava o dia todo dentro do cinema, andando de um lado para outro tendo
fantasias alucinatórias, olhando para todos aqueles olhos, a pretinha
perambulando pela rua inquieta incessante de bêbados, marginais, policiais,
jornaleiros, a confusão louca a multidão encarando olhando tudo multidão
de tarados e tudo aquilo na chuva cinzenta dos dias de aula matada – pobre
Mardou – “Eu tinha as fantasias sexuais mais estranhas não com atos
sexuais com pessoas mas situações estranhas que eu passava o dia inteiro
elaborando enquanto eu andava, e os orgasmos os poucos que eu tinha
pintavam sem mais nem menos, porque eu nunca me masturbei nem sabia
como, quando eu sonhava que papai ou alguém estava me abandonando,
fugindo de mim, eu acordava com umas convulsões estranhas, molhada, nas
coxas, e na Market Street era a mesma coisa só que diferente e pesadelos
tirados dos filmes que eu via.” – Eu pensando Ó Américalouca de
telacinzenta gângster coquetel diadechuva tiro bum imortalidade espectral
de filme B pilha de pneus escuro-na-névoa mas que mundo maluco! –
“Amor” (em voz alta) “quem dera te ver andando assim pela Market – mas
garanto que eu te vi sim – você tinha treze anos e eu 22 – 1944, sim garanto
que te vi, eu era marinheiro, eu estava sempre por lá, eu conhecia as
turminhas daqueles bares –” Assim ela dizendo na carta:
Mas por que eu estou escrevendo para dizer essas coisas a você.
Mas todos os sentimentos são verdadeiros e você provavelmente
capta ou sente também o que estou dizendo e por que eu preciso
escrever isso tudo –
Sinto uma distância de você que talvez você sinta também que me
dá uma imagem de você que é doce e amiga
(e amorosa)
Sinto uma distância de você que talvez você sinta também com
imagens de você que são doces e amigas (e amorosas)
– e por causa das ansiedades que sentimos mas nunca
mencionamos, e que também são parecidas –
o que me faz de repente por obra e graça da força da palavra dela sentir
pena de mim mesmo, me vendo a mim mesmo como ela perdido no mar
ignorante sofrido da vida humana me sentindo distante dela que devia estar
tão próxima de mim e sem saber (não não mesmo) por que a distância é que
é o sentimento, nós dois entrelaçados e perdidos nisso, como se submersos
no mar –
– mais uma vez fico admirado e penso, ela também aqui, pela primeira vez
lembrando-se que está escrevendo para um escritor –
Não sei direito o que eu queria dizer na verdade mas quero que
você receba umas palavras minhas nessa manhã de quarta-feira
– a essa altura minha fantasia boba sobre nós dois (depois que aqueles
bêbados me fizeram ficar cheio da cidade cheio dos porres) era um barraco
no meio das matas de Mississipi, Mardou comigo, que se danem os racistas
linchadores, aí eu escrevo para ela em resposta: “Espero que com aquele
trecho (animais em tocas escuras e quentinhas) você queira dizer que você
vai acabar se revelando como a mulher que realmente é capaz de viver
comigo na profunda solidão das matas finalmente e ao mesmo tempo
conquistar as Parises cheias de luzes (pronto!) e envelhecer comigo na
minha choupana em paz” (de repente me vendo como William Blake com
sua esposa dócil no meio da manhã orvalhada londrina, Crabbe Robinson
vem com mais um trabalho de gravura mas Blake está absorto na visão do
Cordeiro na mesa cheia dos restos do café-da-manhã). – Ah lamentável
Mardou, e nem uma vez um pensamento desses pulsa na tua cabeça, que eu
devia beijar, a dor de teu próprio orgulho, chega de papos genéricos
românticos do século dezenove – os detalhes são a vida da coisa – (o
homem faz bobagem banca o bonzão mas isso não vale nada quando a coisa
aperta – a moça vai dar a volta por cima, está oculto nos olhos dela o triunfo
e a força futura – nos lábios dela só se ouve “está certo amor”). – As
palavras finais dela, um lindo pastiche pastel de –
Me escreve qualquer coisa Por Favor Fique Bem Tua Amiga Que
Ti (erro de ortografia) Gosta E meu amor E Ah (em cima de
ilegíveis apagados para sempre) (e uma fileira de X representando
beijos é claro)
E Amor para Você MARDOU (sublinhado)
Como se não fosse bastante foi nesse dia que à noite houve a grande
festa na casa de Jones, a noite que eu saltei de repente do táxi de Mardou e a
abandonei aos cães de guerra – a guerra que o homem Yuri move contra o
homem Leo, cada um. – Começou com Bromberg dando telefonemas e
juntando presentes de aniversário e se aprontando para pegar o ônibus pegar
o 151 às 16h47 para a cidade, Sand nos levando de carro (que turma
melancólica) até o ponto de ônibus, onde tomamos um traguinho rápido no
bar do outro lado da rua enquanto Mardou a essa altura envergonhada não
só por si própria mas por mim também fica no banco de trás do carro
(embora exausta) mas em plena luz do dia, tentando cochilar um pouco – no
fundo tentando encontrar um jeito de sair da armadilha que eu só podia
ajudá-la a sair se me dão mais uma oportunidade – no bar, eu
parenteticamente desbundado de ouvir Bromberg continuar com grandes
comentários grandiloqüentes esfuziantes sobre arte e literatura e até mesmo
meu Deus histórias de veado enquanto soturnos fazendeiros do vale de
Santa Clara bebem em grandes goles, Bromberg nem se toca do impacto
fantástico que ele tem sobre o comum dos mortais – e Sand curtindo, ele
próprio aliás também esquisitíssimo – porém detalhes menores. – Saio para
avisar Mardou que resolvemos pegar outro trem mais tarde para poder
voltar para casa pegar embrulho esquecido o que para ela é mais um vaivém
de futilidade, ela recebe a notícia com lábios muito sérios – ah meu amor
minha querida perdida (palavras fora de moda) – se eu soubesse naquele
momento o que sei agora, em vez de voltar para o bar, para continuar a
conversa, e olhar para ela com olhos ofendidos, etc., e deixá-la deitada
naquele desolado mar de tempo desprezada desconsolada e desperdoada
pelo pecado do mar do tempo eu teria entrado e sentado ao lado dela,
pegando a mão dela, prometendo a ela minha vida e minha proteção –
“Porque eu te amo e não há motivo” – mas naquela hora longe de ter
consciência completa absoluta desse amor, eu ainda estava pensando que
estava começando a sair de minhas dúvidas a respeito dela – mas o trem
chegou, finalmente, o 153 às 17h31 depois de todas as nossas idas e vindas,
entramos, seguimos rumo à cidade – atravessando South San Francisco e
passando por minha casa, um encarando o outro nos bancos do trem,
passando pelos grandes entroncamentos de Bayshore e eu alegre (tentando
ser alegre) apontando para um vagão de carga colado naquele outro é pra
descarregar sucata que vocês vêem trêmula ao longe, pô! – mas a maior
parte do tempo sentado desolado sob os dois olhares e dizendo finalmente,
“Sabe, acho que estou ficando com nariz vermelho de bebum” – qualquer
coisa que pintasse na cabeça para aliviar a pressão do que eu realmente
tinha vontade de chorar – mas a maior parte do tempo mesmo nós três
realmente tristes, juntos no trem rumo à badalação, o horror, a bomba H
final.
– Despedindo de Austin finalmente numa esquina borbulhante da
Market Street onde Mardou e eu perambulamos por entre grandes multidões
macambúzias numa massa confusa, como se estivéssemos de repente
perdidos na manifestação física da condição mental em que estávamos
vivendo juntos há dois meses, nem mesmo de mãos dadas porém eu ansioso
na frente abrindo alas por entre as multidões (para sair de lá depressa,
detestando) mas no fundo porque eu estava “magoado” demais para dar a
mão a ela e lembrando (agora com dor ainda maior) a insistência habitual
dela de que eu não devia andar de mãos dadas com ela em público porque
as pessoas vão achar que ela é uma puta – terminando, na tarde clara triste
perdida, descendo a Price Street (ó fatal Price Street) rumo à Heavenly
Lane, por entre as crianças, as menininhas mexicanas bonitas cada uma me
fazendo pensar com desprezo “Ah quase que todas elas são melhores que
Mardou, eu tenho mais é que ganhar uma delas... mas ah, ah” – nem eu nem
ela falando, e tanta mortificação nos olhos dela que no lugar onde antes eu
via aquele afeto índio que me levara a dizer a ela, numa noite alegre à luz
de velas, “Amor o que eu vejo nos teus olhos é uma vida cheia de afeição
não só pelo teu sangue índio mas também pelo sangue negro de algum
modo você é a mulher primeira, essencial e portanto a mais, a mais
originariamente completamente afetuosa e maternal” – agora ali também
mortificação, algum perdido acréscimo de estado de espírito americano –
“O Éden fica na África”, eu disse uma vez – mas agora no meu ódio mágoa
virando para o outro lado e assim descendo a Price Street com ela toda vez
que vejo uma garota mexicana ou negra eu digo a mim mesmo, “putas”, são
todas iguais, sempre tentando te enganar e te roubar – pensando em todas as
relações no passado com elas – Mardou sentindo essas ondas de hostilidade
vindo de mim e calada.
E quem eu encontro na nossa cama na Heavenly Lane senão Yuri –
alegre – “Pô trabalhei o dia todo, fiquei tão cansado que tive que voltar e
descansar mais um pouco.” – Resolvo contar tudo a ele, tento formar as
palavras na boca, Yuri vê meus olhos, sente a tensão, Mardou sente a
tensão, uma batida na porta e entra John Golz (sempre romanticamente
interessado em Mardou de um jeito mais inocente), sente a tensão, “Vim
pedir um livro emprestado” – expressão carrancuda no rosto dele lembrando
o jeito como eu o humilhei no papo sobre seletividade – e aí sai logo, com o
livro, e Yuri levantando da cama (enquanto Mardou se esconde atrás do
biombo para tirar roupa de festa e botar jeans de andar em casa) – “Leo me
vê minha calça.” – “Levanta e pega você, elas estão bem ali na cadeira,
Mardou não está vendo você” – frase esquisita, sensação esquisita na minha
mente e olho para Mardou que está calada e ensimesmada.
Assim que ela entra no banheiro eu digo a Yuri “Estou morrendo de
ciúme por causa de você e Mardou no banco de trás do carro ontem à noite
cara, estou mesmo”. – “Não foi culpa minha, foi ela que começou.” –
“Escuta, você é tão – sabe, não deixa ela, se afasta – você é tão gostosão
que tudo quanto é mulher fica a fim de você” – dizendo isso exatamente na
hora que Mardou volta, olhando atenta sem ouvir as palavras mas sentindo
a coisa no ar, e Yuri imediatamente agarra a porta ainda aberta e diz “Bem
eu estou indo pro Adam vejo vocês lá depois”.
“O que você falou pra ele?” – Eu repito palavra por palavra o que eu
disse – “Meu Deus a tensão aqui estava insuportável” – (sem graça percebo
que em vez de ser severo e mosaico com Yuri na minha situação enciumada
em vez disso conversei com papo nervoso de “poeta” com Yuri, como
sempre, comunicando a tensão mas não a substância dos meus sentimentos
em palavras –sem jeito relembro minha sem-jeitice – vontade triste de ver o
velho Carmody não sei por quê –”
“Amor vou – será que tem galinha na Columbus? – Vi umas lá – E vou
preparar, sabe, vamos comer uma galinha gostosa no jantar.” – “Mas”,
penso eu com meus botões, “que adianta um bom jantar doméstico com
galinha se você gosta tanto de Yuri que ele tem que sair assim que você
entra por causa da pressão do meu ciúme e a sua possibilidade tal como foi
profetizado no sonho?” “Quero” (em voz alta agora) “falar com o Carmody,
estou triste – você fica aqui, prepara a galinha, come – sozinha – eu volto
depois e te pego.” – “Mas sempre começa assim, a gente sempre sai, a gente
nunca fica sozinho.” – “Eu sei mas hoje eu estou triste e preciso falar com
Carmody por algum motivo não me pergunta por que estou com um desejo
tremendo e triste de – afinal eu fiz o desenho dele outro dia mesmo” (eu
havia feito meus primeiros desenhos a lápis de figuras humanas deitadas
que deixaram Carmody e Adam de queixo caído e por isso eu estava
orgulhoso) “e além disso ao fazer aqueles desenhos do Frank aquele dia vi
tanta tristeza nas rugas em volta dos olhos dele que sei que ele –” (com
meus botões: sei que ele vai entender como estou triste agora, sei que ele já
sofreu desse jeito em quatro continentes). – Hesitante Mardou não sabe para
que lado se virar mas de repente conto a ela sobre minha rápida conversa
com Yuri o trecho que eu havia esquecido de contar da primeira vez (e
agora também) “Ele me disse ‘Leo eu não quero ganhar a tua garota
Mardou, afinal não estou a fim –’.” “Ah, então ele não está a fim! Muito
legal da parte dele!” (os mesmos dentinhos felizes agora portais por onde
passam ventos irados, e os olhos dela faíscam) e percebo aquela ênfase nos
is típica de viciado igual a muitos viciados que eu conheço, ela acentua os is
que nem eles, por algum motivo interno pesado sonolento, que no caso de
Mardou eu atribuía a sua surpreendente modernidade tirada (como uma vez
lhe perguntei) “De onde? onde foi que você aprendeu tudo que você sabe e
esse jeito incrível de falar?” mas agora ouvir aqueles is interessantes me dá
raiva por estar no meio duma frase sobre Yuri em que ela claramente mostra
que na verdade não tem nada contra ver Yuri de novo numa festa ou em
qualquer outro lugar, “se ele vai ficar falando desse jeito que não está a
fim”, ela vai dizer a ele. – “Ah”, digo eu, “agora você QUER ir à festa no
Adam, porque aí você pode ficar quites com ele e cortar a dele – você é tão
transparente!”
“Meu Deus”, estamos caminhando por entre os bancos do parque da
igreja triste parque de todo o verão, “agora você está me xingando, de
transparente”.
“É, é isso sim, você pensa que eu sou bobo, primeiro você não queria ir
no Adam e agora que você sabe que – ah deixa pra lá se isso não é
transparente eu não sei o que é.” – “Sim senhor quer dizer que eu sou
transparente meu Deus” (barulhinhos riso) e nós dois histericamente
sorrindo como se nada houvesse acontecido como pessoas felizes sem
preocupações que você vê no jornal da tela apressadas andando pela rua
indo para o trabalho e estamos os dois no mesmo mistério chuvoso de jornal
da tela mas dentro de nós (como também deve ser dentro dos bonecos
cinematográficos da tela) o grande tumulto turbulento tumescente
aliterativo como martelo no crânio na carcaça na cara nos colhões, mas por
que que eu fui nascer...
Para piorar, como se ainda não fosse bastante, todo o mundo se
descortina quando Adam abre a porta curvando-se solenemente mas com
um brilho e um segredo nos olhos e uma espécie de relutância que me atiça
assim que eu percebo – “O que foi?” Então sinto a presença de outras
pessoas além de Frank e Adam e Yuri. – “Temos visitas.” – “Ah”, digo eu,
“visitas distintas?” – “Acho que sim. – “Quem?” – “MacJones e Phyllis.” –
“O quê?” (eis que chegou o grande momento quando me vejo face a face, se
não vou embora, com meu arquiinimigo literário Balliol MacJones
antigamente tão íntimo meu que a gente derrubava cerveja um em cima do
outro no auge da animação conversadeira, falávamos e trocávamos e
emprestávamos e líamos livros e literatizávamos tanto que o pobre inocente
acabou de certo modo influenciado por mim, quer dizer, só no sentido que
aprendeu a fala e o estilo, basicamente a história da geração hip ou beat ou
subterrânea e eu disse a ele “Mac, escreve um grande livro sobre tudo que
aconteceu quando o Leroy foi pra Nova York em 1949 e conta tudo mas
tudo mesmo e manda brasa!” O que ele fez, e depois eu li, criticamente
Adam e eu em visitas a seu apartamento nós dois fazendo restrições ao livro
mas quando foi publicado adiantaram para ele 20 mil dólares uma quantia
inédita e todos nós que éramos beat perambulando por North Beach e
Market Street e Times Square quando em Nova York, embora Adam e eu
tivéssemos solenemente reconhecido “Jones não é um dos nossos – é de
outro mundo – o mundo dos babacões urbanóides” (puro adamismo). E
assim o grande sucesso dele tendo chegado na hora que eu estava mais duro
e mais desprezado pelos editores e pior ainda paranóico viciadão em drogas
eu fiquei revoltado mas não puto demais, mas fiquei revoltado assim
mesmo, mudando de idéia depois que o velho Tempo brandiu a foice dele
algumas vezes e diversos infortúnios e viagens, escrevendo cartas para ele
pedindo desculpas que eu depois rasgava, ele também ao mesmo tempo
escrevendo cartas, e então, um ano depois Adam bancando uma espécie de
santo e mediador comunicou a nós dois que nos dois lados havia tendências
favoráveis – o grande momento quando eu teria de encarar Mac e apertar a
mão dele e dizer deixa isso pra lá, largar o rancor – sem causar a menor
impressão em Mardou, que é tão independente e inacessível agora nessa sua
nova maneira de ser que me parte o coração. Mas MacJones estava lá,
imediatamente eu falei bem alto “Ótimo, maravilhoso, eu ando a finzão de
falar com ele”, e entrei logo na sala e estendi o braço por cima da cabeça de
alguém que estava se levantando (Yuri) para apertar a mão de Balliol com
força, depois fiquei um tempo sentado encucando, nem reparei como a
coitada da Mardou havia conseguido se situar (aqui como no Bromberg
como em todo lugar pobre anjo negro) – finalmente indo para o quarto
incapaz de aturar a conversa educada de todo mundo não apenas Yuri mas
também Jones (e também Phyllis mulher dele que ficava o tempo todo
olhando para mim para ver se eu continuava maluco), corri até o quarto e
fiquei deitado no escuro e na primeira oportunidade tentei fazer com que
Mardou deitasse a meu lado mas ela disse “Leo não estou a fim de ficar
aqui deitada no escuro”. – Yuri então veio, pôs uma das gravatas de Adam,
dizendo, “Vou sair e descolar uma garota”, e aí surge uma espécie de
harmonia cochichatória entre nós dois longe dos outros na sala – tudo está
perdoado. – Mas fico achando que Jones como não se levanta do sofá não
está a fim de conversar comigo e provavelmente no fundo quer mesmo é
que eu vá embora, quando Mardou aparece de novo na minha cama de
vergonha e dor e esconderijo, eu digo, “Sobre o que que vocês estão falando
lá, sobre bop? Não diz nada a ele sobre música.” – (Ele que descubra
sozinho! digo eu a mim mesmo mesquinhamente.) – Eu é que sou o escritor
bop! – Mas como me encarregam de descolar cerveja lá embaixo, quando
volto com a cerveja todo mundo está na cozinha, Mac em destaque,
sorridente, dizendo, “Leo! deixa eu ver os tais desenhos que me disseram
que você fez, eu quero ver”. – E assim ficamos amigos outra vez curvados
sobre os desenhos e Yuri resolve mostrar os dele também (ele desenha) e
Mardou está lá na sala, novamente esquecida – mas é um momento
histórico e nós também com Carmody examinamos as fotos desoladas que
Carmody tirou na América do Sul de aldeias no meio da selva ou no alto
dos Andes onde se vêem nuvens passando, e reparo nas roupas caras
bonitas de Mac, relógio de pulso, me sinto orgulhoso por ele e agora ele
está com um bigodinho simpático que lhe dá um ar de maturidade – o que
eu anuncio para todo mundo – a cerveja agora animando a todos, e então a
mulher dele Phyllis começa a preparar um jantar e a sociabilidade é geral –
Na sala de luz vermelha já vejo Jones sozinho com Mardou fazendo
perguntas, como se a entrevistasse, vejo que ele está sorrindo e dizendo para
si mesmo “Percepied arranjou mais uma garota incrível” e eu por dentro me
roendo, “É, mas por quanto tempo” – e ele está ouvindo Mardou, a qual,
impressionada, prevenida, sabendo tudo, faz afirmações solenes sobre o bop
como “Não gosto de bop, não gosto mesmo, pra mim é que nem heroína,
tem tanto viciado que é músico de bop que quando eu ouço é como se eu
ouvisse heroína”. – “Bem”, Mac endireitando os óculos, “isso é
interessante.” – E eu me aproximo e digo, “Mas a gente nunca gosta da
coisa de onde a gente saiu” (olhando para Mardou). – “O que você quer
dizer?” – “Você é filha do Bop”, ou coisa que o valha, e Mac concorda
comigo – de modo que quando depois toda a turma sai para prolongar as
festividades pela noite adentro, e Mardou, usando o casaco preto de veludo
comprido de Adam (comprido para ela) e um cachecol louco comprido
também, parecia uma menina ou menino subterrâneo polonês num esgoto
por baixo da cidade uma gracinha tão hip, e na rua sai de um grupo e vem
para o grupo em que eu estou, e estendo o braço quando ela chega perto
(estou com o chapéu de feltro de Carmody na minha cabeça bem tipo
hipster só de gozação e ainda minha camisa vermelha, já defunta de tantos
fins de semana) e levanto a pequenina do chão e a aperto contra mim e sigo
em frente carregando-a, ouço Mac exclamando com aprovação “Pô!” e
“Isso!” risos no fundo e penso orgulhoso “Ele agora sabe que estou com
uma garota realmente genial – que não morri mas ainda estou indo em
frente – velho Percepied de sempre – nunca envelhecendo, sempre aí, com
os jovens, as novas gerações –.” Grupo bem heterogêneo Adam Moorad de
smoking completo que ele na véspera pediu emprestado a Sam para poder ir
a uma estréia com entradas grátis que ele arrumou no trabalho – marchando
calçada abaixo rumo ao Dante’s e o Mask como sempre – o Mask, sempre o
Mask – o Dante’s onde no auge da animação social e do papo muitas vezes
tentei olhar Mardou nos olhos e trocar olhares com ela mas ela parecia
relutante, distante, macambúzia – sem mais afeto por mim – cheia de toda
aquela conversa nossa, com Bromberg rechegando e novos grandes
discursos e aquele entusiasmo grupal particularmente abominável que a
pessoa tem obrigação de sentir quando, como Mardou, está com uma das
estrelas do grupo aliás basta ser um membro da constelação, que coisa
revoltante, cacete deve ter sido para ela ter que curtir tudo aquilo que a
gente dizia, ficar admirada com a última frase de efeito saída dos lábios do
primeiro e único, a mais recente manifestação do velho chato mistério da
personalidade do grande canadense – realmente ela parecia revoltada, olhar
perdido no espaço.
Assim quando mais tarde na minha bebedeira consegui fazer com que
Paddy Cordavan passasse para a nossa mesa e ele convidou todos nós para
continuarmos a biritada na casa dele (o normalmente inacessível Paddy
Cordavan porque a mulher dele sempre queria ir para casa sozinha com ele,
Paddy Cordavan de quem Buddy Pond dissera, “Ele é tão bonito que nem
posso olhar”, alto, louro, cowboy de Montana sério queixo largo
movimentos vagarosos, fala vagarosa, ombros vagarosos) Mardou não
achou graça nenhuma, como ela queria era se afastar de Paddy e todos os
outros subterrâneos do Dante’s, e eu acabara de irritá-la novamente gritando
para Julien, “Vem cá, vamos todo mundo à festa do Paddy e o Julien vai
também”, sendo que Julien imediatamente levantou-se de um salto e correu
de volta para Ross Wallenstein e os outros no reservado deles, pensando,
“Porra aquele chato do Percepied já está gritando meu nome de novo e
tentando me arrastar para essas festas bestas de novo, será que ninguém dá
um jeito nele”. E Mardou também não achou graça nenhuma quando, por
insistência de Yuri, fui até o telefone falar com Sam (ligando do trabalho) e
combinei de encontrar com ele mais tarde no bar em frente ao escritório
dele – “Vamos todo mundo! vamos todo mundo!” A essa altura já estou aos
berros e mesmo Adam e Frank já estão bocejando doidos para voltar para
casa e Jones já se mandou há muito tempo – subindo e descendo aos trancos
e barrancos a escada de Paddy para ligar de novo para Sam e uma hora eu
entro na cozinha de Paddy para pegar Mardou para ir comigo encontrar com
Sam, e Ross Wallenstein tendo chegado quando eu estava no bar
telefonando diz, olhando para cima, “Quem foi que deixou esse cara entrar?
como é que você entrou aqui! Ô Paddy!” em continuação séria da antipatia
inicial por mim e aquele papo de “você é veado?” o que eu ignorei, dizendo,
“Ô maninho vou acabar com a tua alegria se você não calar a boca”, ou algo
igualmente ofensivo, já não lembro, o bastante para fazê-lo dar meia-volta
que nem um soldado, bem do jeito dele, pescoço duro, e sair – eu arrastando
Mardou até um táxi para ir ao encontro de Sam e toda essa noite mundo
girando maluco e ela vozinha protestando que eu ouço à distância, “Mas
Leo, meu querido, quero ir pra casa dormir”. – “Ah porra!” e dou o
endereço de Sam para o motorista, ela diz NÃO, insiste, dá o endereço da
Heavenly Lane, “Me leva lá primeiro e depois segue pro Sam” mas eu estou
realmente preocupado com o fato inegável de que se eu a levar primeiro à
Heavenly Lane o táxi não vai conseguir chegar no bar onde Sam me espera
antes de o bar fechar, e aí eu insisto, discutimos berrando endereços
diferentes enquanto o motorista como num filme espera, mas de repente,
com aquela chama vermelha aquela mesma chama vermelha (à falta de
imagem melhor) salto para fora do táxi e saio correndo e vejo outro, corro
para dentro, dou o endereço de Sam e pé na tábua – Mardou abandonada na
noite, num táxi, enjoada, cansada, e eu pretendendo pagar o segundo táxi
com o dólar que ela dera a Adam para ele comprar um sanduíche mas que
na confusão toda foi esquecido mas ele me deu para eu comprar para ela –
pobre Mardou voltando para casa sozinha, de novo, e o louco bêbado
desaparecido.
Bem, pensei eu, é o fim – finalmente dei o passo final e dessa vez me
vinguei do que ela fez comigo – tinha que acontecer e aconteceu – pronto.
Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de livros, RJ
K47s
ISBN 978.85.254.2447-1