Foucault Michel Sexualidade e Poder

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1978 - Sexualidade e Poder 57

1978 toma-los e descarrega-los em cima de vocés como um dogma.


Prefiro explicar a vocés em que ponto me encontro agora e que
tipos de problemas me preocupam, submetendo-lhes algu-
mas hipéteses que me servem atualmente para sustentar o
Sexualidade e Poder meu trabalho. Ficarei certamente contente se, após a minha
exposicao - que, espero, durara em torno de 30 ou 45 minutos
-, pudermos discutir, e talvez nesse momento o clima esteja —
como dizé-lo - mais descontraido, sendo mais facil trocarmos
perguntas e respostas. E claro que vocés poderao fazer as
“Sel to Kenryoku”" (“Sexualidade e poder"; conferéncia na Universid suas perguntas em japonés - não porque eu va compreen-
ade de Tó-
e em 20dA
quio, de abril de 1978, seguida
gui de um debate), Gendai-sh- iso, julho de dé-las, mas sim porque elas serao traduzidas para mim; vocés
também podem fazé-las em inglés. Eu lhes responderei em
um dialeto qualquer e, mesmo assim, nos viraremos. Tentarei,
uma vez que vocês tiveram a gentileza de vir aqui para ouvir
Gostaria primeiramente de agradecer aos responsaveis uma conferéncia em francés, falar o mais claramente possivel;
pela Universidade de Toquio que me permitiram estar aqui e
sei que, com os professores competentes que vocês tém, eu
ter essa reuniao com vocés, que eu desejaria que fosse um se- nao teria muito com que me preocupar com o nivel lingaistico
minario durante o qual pudéssemos discutir, fazer perguntas,
de vocés, mas, afinal, a polidez exige que eu tente me fazer
tentar respondé-las - mais freqiientemente, alias, fazer per-
entender; assim, se surgirem alguns problemas ou dificulda-
guntas do que respondé-las. Quero agradecer especialmente
des, se vocés nao me compreenderem ou mesmo, muito sim-
ao Sr. Watanabe que aceitou, faz agora tantos anos, man-
plesmente, surgir alguma questao na cabeca de vocês, eu
ter-se em contato comigo, manter-me ao corrente das coisas lhes peço, me interrompam, coloquem suas questoes, pois es-
do Japao, encontrar-se comigo quando ele vai a Franga, ocu-
tamos aqui, essencialmente, para estabelecer contatos, para
par-se de mim com um cuidado paternal - ou maternal -
discutir e tentar romper o mais possivel a forma habitual de
quando estou no Japao, e eu não saberia como lhe expressar
conferéncia.
todo o meu reconhecimento pelo que ele fez e pelo que ainda
Gostaria de lhes expor hoje a etapa, nao do meu trabalho,
faz agora.
mas das hipéteses do meu trabalho. Ocupo-me atualmente
Pensei que, nesta tarde, teriamos oportunidade de discutir
com uma espécie de historia da sexualidade, que, com a maior
em um pequeno grupo, em volta de uma mesa que chamamos
imprudéncia, prometi que teria seis volumes. Espero, na ver-
de redonda, embora ela seja as vezes quadrada - ou seja, uma
dade, nao chegar a tanto, embora acredite ainda que meu tra-
mesa que permitisse relacoes de igualdade e trocas con-
balho continuara a girar em torno desse problema da historia
tinuas. O grande numero de participantes - eu, certamente,
da sexualidade; ha um certo número de questdes importantes
me pargbenizo por isso - tem o inconveniente de me obrigar a
ou que poderiam ser importantes se fossem tratadas da ma-
tomar essa posicao de mestre, essa posição de distancia, e me
neira adequada. Nao estou certo de que as tratarei do modo
obriga também a lhes falar de uma maneira que sera um pou-
adequado, mas talvez, apesar de tudo, apenas coloca-las ja
co continua, embora eu tente torna-la o menos dogmatica
valha a pena.
possivel. De qualquer forma, nao gostaria de lhes expor uma
Por que escrever uma histoéria da sexualidade? Para mim,
teoria, uma doutrina nem mesmo o resultado de uma pesqui-
isso significava o seguinte: uma coisa me havia surpreendido:
Sa, uma vez que, como o Sr. Watanabe lembrou, tive a oportu-
é que Freud, a psicanalise tiveram como ponto histérico de
nidade de ver a maioria dos meus livros e artigos traduzidos
partida, como o seu ponto de partida, um fenômeno que, no
em japoneés. Seria indecoroso e indelicado de minha parte re-
fim do século XIX, tinha grande importancia na psiquiatria e
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mesmo, de modo geral, na sociedade, e podemos dizer, na cul- tante, que era, por um lado, um fenomeno geral mas apenas
tura ocidental. Esse fenomeno singular - quase marginal - situavel no nivel dos individuos, ou seja, o desconhecimento
fascinou os médicos, fascinou de maneira geral, digamos, os pelo sujeito de seu proprio desejo - e isso se manifestava espe-
pesquisadores, aqueles que se interessavam de uma forma ou cialmente na histeria —, e a0 mesmo tempo, pelo contrario, um
de outra pelos problemas muito amplos da psicologia. Esse fenomeno de supersaber cultural, social, cientifico, teérico da
fenômeno era a histeria. Deixemos de lado, se quiserem, o sexualidade. Esses dois fenémenos - de desconhecimento da
problema propriamente médico da histeria; a histeria, essen- sexualidade pelo préprio sujeito e de supersaber sobre a se-
cialmente caracterizada por um fenémeno de esquecimento, xualidade na sociedade - não sao fenomenos contraditorios.
de desconhecimento macico pelo sujeito de si mesmo, que po- Eles coexistem efetivamente no Ocidente, e um dos problemas
dia ignorar pelo viés de sua sindrome histérica todo um frag- é certamente saber de que modo, em uma sociedade como a
mento do seu passado ou toda uma parte do seu corpo. Freud nossa, é possivel haver essa produção teérica, essa producao
mostrou que esse desconhecimento do sujeito por ele préprio especulativa, essa produção analitica sobre a sexualidade no
era o ponto de ancoragem da psicanalise, que ele era, de fato, plano cultural geral e, ao mesmo tempo, um desconhecimento
não um desconhecimento geral pelo sujeito de si mesmo, mas do sujeito a respeito de sua sexualidade.
sim um desconhecimento de seu desejo, ou de sua sexualida- Vocés sabem que a psicanalise nao respondeu diretamente
de, para empregar uma palavra que talvez nao seja muito ade- a essa questdo. Nao creio que se possa dizer legitimamente
quada. Entao, inicialmente, desconhecimento do seu desejo que ela nao tenha abordado exatamente esse problema, mas
pelo sujeito. Eis o ponto de partida da psicanalise; a partir dai, ela tampouco de fato o ignorou; a psicanalise tenderia a dizer
esse desconhecimento pelo sujeito do seu proprio desejo foi si- que, no fundo, essa producao, essa superproducao teorica,
tuado e utilizado por Freud como meio geral simultaneamente
discursiva em relacao a sexualidade nas sociedades ociden-
de analise tedrica e de investigação pratica dessas doencas.
tais é apenas o produto, o resultado de um desconhecimento
O que é o desconhecimento de seus proprios desejos? Essa
da sexualidade que se produzia no nivel dos individuos e no
€ a pergunta que Freud nao parou de fazer. Ora, seja qual for a
proprio sujeito. Ou melhor, creio que a psicanalise diria: é pre-
fecundidade desse problema e a riqueza dos resultados a que
cisamente porque os sujeitos continuam a ignorar o que é da
se chegou, creio que existe apesar de tudo um outro fenome-
ordem da sua sexualidade e do seu desejo que existe toda uma
no, que é quase o oposto desse, fenomeno que me surpreen-
producao social de discursos sobre a sexualidade, que eram
deu, e que se poderia chamar - aqui, pego aos professores de
francés que facam a gentileza de tapar seus ouvidos, pois eles também discursos erroneos, irracionais, afetivos, mitologicos.
me baniriam de seu cenaculo, me pediriam para nunca mais Digamos que os psicanalistas abordaram o saber sobre a se-
por os pés aqui, pois empregarei uma palavra que nao existe -
xualidade apenas por duas vias: seja tomando-o como ponto
de um fenoémeno de supersaber, isto €, um saber de qualquer de partida, como exemplo, como matriz, de qualquer forma de
forma excessivo, um saber ampliado, um saber ao mesmo saber sobre a sexualidade, as famosas teorias que as criancas
tempo intenso e extenso da sexualidade, nao no plano in- inventam a respeito de seu nascimento, a respeito do fato de
dividual, mas no plano cultural, no plano social, em formas elas terem ou nao um sexo masculino, sobre a diferenca entre
tedricas ou simplificadas. Creio que a cultura ocidental foi menino e menina. Freud tentou pensar o saber sobre a sexua-
surpreendida por uma espécie de desenvolvimento, de hiper- lidade a partir dessa producao fantasistica que encontramos
desenvolvimento do discurso da sexualidade, da teoria da se- nas criangas, ou ainda tentou abordar o saber sobre a sexua-
xualidade, da ciéncia sobre a sexualidade, do saber sobre a lidade em psicanalise a partir dos grandes mitos da religiao
sexualidade. ocidental, mas creio que jamais os psicanalistas levaram mui-
Talvez seja possivel dizer que havia, nas sociedades ociden- to a sério o problema da producao de teorias sobre a sexuali-
tais, no final do século XIX, um duplo fenémeno muito impor- dade na sociedade ocidental.
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Ora, essa produção macica que remonta ha muito tempo e ocidentais e pelo menos um certo numero de sociedades
vem de muito longe, pelo menos desde Santo Agostinho, desde orientais.
Refiro-me aqui a uma analise que tentei esbocar em um
os primeiros séculos cristaos, é um fenémeno a ser levado a
sério, e que nao pode ser reduzido simplesmente a esses mo- primeiro volume dessa Histéria da sexualidade, que o Sr. Wa-
delos que podem ser uma mitologia, um mito ou ainda uma tanabe teve a gentileza de traduzir e comentar em uma revis-
teoria fantasistica. Embora meu projeto, ao fazer uma histéria ta. Essa oposicao entre as sociedades que tentam sustentar
da sexualidade, seja o de inverter essa perspectiva, nao abso- um discurso cientifico sobre a sexualidade, como fazemos no
lutamente para dizer que a psicanalise se engana, nao absolu- Ocidente, e as sociedades em que o discurso sobre a sexuali-
dade é igualmente um discurso muito extenso, um discurso
tamente para dizer que nao existe em nossas sociedades um
desconhecimento pelo sujeito de seu proprio desejo, mas sim muito abundante, um discurso muito difundido, mas que nao
para dizer, por um lado, que é preciso tentar estudar, em si visa a instituir uma ciéncia, e busca, pelo contrério, definir
mesma, em suas origens e formas proprias, essa superprodu- uma arte - uma arte que visaria a produzir, através da relacao
¢ao de saber sociocultural sobre a sexualidade e, por outro, sexual ou com os 6rgaos sexuais, um tipo de prazer que se
tentar verificar em que medida a propria psicanalise, que se procura tornar o mais intenso, o mais forte ou o mais dura-
apresenta justamente como fundamento racional de um saber douro possivel. Encontra-se, em muitas sociedades orientais,
sobre o desejo, como a prépria psicanalise faz parte, sem duvi- assim como em Roma ou na Grécia antiga, toda uma série de
da, dessa grande economia da superproducao do saber critico discursos muito numerosos sobre essa possibilidade, ou em
a respeito da sexualidade. Eis a aposta do trabalho que pre- todo caso sobre a busca dos métodos por meio dos quais se
tendo realizar, que nao é de forma alguma um trabalho podera intensificar o prazer sexual. O discurso que encontra-
antipsicanalitico, mas que tenta retomar o problema da se- mos no Ocidente, pelo menos desde a Idade Média, é comple-
xualidade, ou melhor, do saber sobre a sexualidade a partir mente diferente deste.
nao do desconhecimento pelo sujeito de seu préprio desejo, No Ocidente, nao temos a arte erética. Em outras palavras,
mas da superproducao de saber social e cultural, o saber cole- nao se ensina a fazer amor, a obter o prazer, a dar prazer aos
tivo sobre a sexualidade. outros, a maximizar, a intensificar seu proprio prazer pelo
Se quisermos estudar essa superproducao de saber teérico prazer dos outros. Nada disso é ensinado no Ocidente, e_nz'm
a
sobre a sexualidade, creio que a primeira coisa que encontra- há discurso ou iniciação outra a essa arte erótica senao
clandestina e puramente interindividual. Em compens ação,
remos, o primeiro traco que surpreende nos discursos que a
cultura ocidental manteve sobre a sexualidade € que esse dis- temos ou tentamos ter uma ciência sexual - scientia sexualis —
curso assumiu muito rapida e precocemente uma forma que sobre a sexualidade das pessoas, e não sobre o prazer delas,
podemos chamar de cientifica. Com isso, nao quero dizer que alguma coisa que não seria como fazer para que o prazer seja
esse discurso sempre foi racional, nao quero dizer que ele te- o mais intenso possível, mas sim qual é a verdade dessa coisa
nha sempre obedecido aos critérios do que atualmente cha- que, no indivíduo, é seu sexo ou sua sexualidade: verdade do
mamos de verdade cientifica. Bem antes da psicanalise, na sexo, e não intensidade do prazer. Penso que temos dois tipos
psiquiatria do século XIX, mas igualmente no que podemos de análise, dois tipos de pesquisa, dois tipos de discurso com-
chamar de psicologia do século XVIII e, melhor ainda, na teo- pletamente diferentes, e que serão encontrados em dois tipos
logia moral do século XVII e mesmo da Idade Média, encontra- de sociedade muito diferentes. Abro novamente um pequeno
mos toda uma especulacao sobre o que era a sexualidade, parêntese: evidentemente, adoraria discutir com pessoas cujo
sobre o que era o desejo, sobre o que era na época a concupis- background cultural e histórico é diferente do meu, e gostaria
céncia, todo um discurso que se pretendeu um discurso particularmente de saber, pois há muito pouco sobre isso no
racional e um discurso cientifico, e acredito que é nele que po- Ocidente, em que consiste, em sociedades como a de vocês,
demos perceber uma diferenca capital entre as sociedades como a sociedade chinesa, a arte erótica, como ela se desen-
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volveu, a partir de que saber. Creio que, em todo caso, seria teria dito nao ao prazer e por ai mesmo ao sexo. Esse nao, essa
muito interessante fazer um estudo comparado entre a arte proibicao teria levado a um siléncio sobre a sexualidade - ba-
erotica nas sociedades orientais e o surgimento de uma cién- seado essencialmente em proibicoes morais. Porém a bul:gue-
cia sexual no Ocidente... sia, a partir do século XVI, encontrando-se em uma posição de
Voltemos, se vocés quiserem, ao proprio Ocidente. O que hegemonia, de dominacao economica e de hegemonia cultu-
gostaria de fazer nesse trabalho sobre a histéria da sexualida- ral, teria retomado de qualquer modo a seu cargo, para apl_i-
de é precisamente a historia dessa ciéncia sexual, dessa scien- ca-lo mais severamente ainda e com meios a_inda mais
tia sexualis, nao para dizer quais foram exatamente seus rigorosos, esse ascetismo cristao, essa recusa cristada sexua-
diferentes conceitos, teorias ou afirmacoes — poderiamos, lidade e conseqgiientemente a teria prolongado até o século
alias, fazer uma verdadeira enciclopédia sobre isso. Porém, XIX, no qual finalmente, em seus ultimos anos, se teria come-
aquilo sobre o que me interrogo é por que as sociedades oci- çado a levantar o véu com Freud. :
dentais - digamos, as sociedades européias - tiveram tanta Eis o esquema histórico que ordinariamente é utilizado
necessidade de uma ciéncia sexual, ou, em todo caso, por que quando se faz uma história da sexualidade no Ocidente, ou
razao, por tantos séculos e até hoje, se tenta constituir uma seja, se faz essa história estudando em primeiro lugar basica-
ciéncia da sexualidade; isto €, por que queremos - nós, os eu- mente os mecanismos da repressão, da interdição, daquilo
ropeus - e o quisemos ha milénios saber de preferéncia sobre que rejeita, exclui, recusa, e depois fazendo recair a responsa-
a verdade de nosso sexo do que atingir a intensidade do pra- bilidade dessa grande recusa ocidental da sexualidade sobre o
zer? Para resolver essa questao é evidente que se encontra um cristianismo. Seria o cristianismo que teria dito não à sexuali-
esquema, um esquema habitual, que é a hipétese que vem
imediatamente a cabeca, e que consiste em dizer o seguinte: dªdãreio que esse esquema histórico tradlcion'al.mente aceito
pois bem, no Ocidente, e certamente agora gracas a Freud - não é exato, que não pode ser mantido por inumeras razoes.
desde Freud - e igualmente a partir de toda uma série de mo- No livro, do qual o Sr. Watanabe teve a gentileza de traduzir
vimentos politicos, sociais, culturais diversos, comegou-se um capitulo, me interroguei sobretudo a respeito dos proble-
pouco a pouco a libertar a sexualidade dos grilhdes que a mas de método e desse privilégio da interdicao e da negacao
prendiam, comegou-se a lhe permitir falar, ela que até entao quando se faz a historia da sexualidade. Tentei mostrar que
tinha sido, durante séculos, votada ao siléncio. Estamos, si- seria sem dúvida mais interessante e mais rico fazer a historia
multaneamente, liberando a propria sexualidade e criando da sexualidade a partir do que a motivou e impulsionou do
condicoes para poder tomar consciéncia dela, enquanto, nos que a partir daquilo que a proibiu. Enfim, deixemos isso de
séculos precedentes, o peso de uma moral burguesa, por um lado. Creio que é possivel fazer ao esquema tra_dlclonal. ao
lado, e o de uma moral crista, por outro, a primeira tomando qual acabo de me referir, uma segunda objeção, e é dela sobre-
de qualquer forma a dianteira e a continuidade da segunda, tudo que gostaria de falar: objeção nao de método, mas de
nos haviam impedido, haviam impedido o Ocidente de se inte- fato. Essa objecao de fato nao sou eu que a formulo, mas sim
ressar pela sexualidade. Em outras palavras, o esquema his- os historiadores, sobretudo um historiador da Antigiiidade ro-
torico utilizado se desenvolve freqiientemente em trés tempos, mana que trabalha atualmente na Franca chamado Paul Vey-
trés termos, trés periodos. ne, que esta fazendo uma série de estudos sobre a sexualidade
Primeiro movimento: a Antigiiidade grega e romana, na no mundo romano antes do cristianismo. Ele descobriu uma
qual a sexualidade era livre, se expressava sem dificuldades e série de coisas importantes que precisamos levar em conta.
efetivamente se desenvolvia, sustentava em todo caso um dis- Vocés sabem que, de modo geral, quando se quer (_:aractefl-
curso na forma de arte erética. Depois o cristianismo inter- zar a moral crista quanto a sexualidade, e se quer opo-la à mo-
veio, o cristianismo que teria, pela primeira vez na histéria do ral paga, a moral grega ou romana, se prop<_3em as geg}flntes
Ocidente, colocado uma grande interdicao a sexualidade, que caracteristicas: em primeiro lugar, o cristianismo teria impos-
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to às sociedades antigas a regra da monogamia; em segundo, aquilo que o cristianismo trouxe para essa historia da moral
o cristianismo teria atribuido como função, não somente pri- sexual foram novas técnicas. Novas técnicas para impor essa
vilegiada ou principal, mas como função exclusiva, como úni- moral ou, na verdade, um novo ou um conjunto de novos me-
ca função da sexualidade, a reprodução - somente fazer amor canismos de poder para inculcar esses novos imperativos mo-
com a finalidade de ter filhos. Finalmente, em terceiro lugar - rais, ou melhor, esses imperativos morais que haviam deixado
eu teria podido, aliás, começar por ai -, há uma desqualifica- de ser novos no momento em que o cristianismo penetrou no
ção geral do prazer sexual. O prazer sexual é um mal - mal Império Romano e se tornou, muito rapidamente, a religiao do
que precisa ser evitado e ao qual, conseqúentemente, é preci- Estado. Portanto, é mais do lado dos mecanismos de poder do
so atribuir a menor importância possível. Atribuir ao prazer que do lado das idéias morais e das proibições éticas que é
sexual apenas a menor parcela possível de importância, ape- preciso fazer a histéria da sexualidade no mundo ocidental
nas utilizar-se desse prazer, de qualquer forma a despeito dele desde o cristianismo.
mesmo, para fazer filhos, e não fazer esses filhos, ou seja, ape- A questão é então: quais são os novos mecanismos de po-
nas praticar as relações sexuais e encontrar nelas o prazer no der que o cristianismo introduziu no mundo romano, valori-
casamento, no casamento legitimo e monogamico. Essas trés zando essas proibições que ja eram reconhecidas e aceitas?
caracteristicas definiriam o cristianismo. Ora, os trabalhos de Esse poder é o que chamarei - ou melhor, é o que se chama
Paul Veyne mostram que esses trés grandes principios de mo- — de pastorado, ou seja, a existéncia dentro da sociedade de
ral sexual existiam no mundo romano antes do surgimento do uma categoria de individuos totalmente especificos e singula-
cristianismo, e que toda uma moral - em geral de origem estói- res, que nao se definiam inteiramente por seu status, sua pro-
ca, baseada em estruturas sociais, ideologicas do Império fissao nem por sua qualificagao individual, intelectual ou
Romano - havia comecado, bem antes do cristianismo, a in- moral, mas individuos que desempenhavam, na sociedade
culcar esses principios nos habitantes do mundo romano, ou crista, o papel de condutores, de pastores em relacao aos ou-
seja, nos habitantes do mundo existente do ponto de vista dos tros individuos que sao como suas ovelhas ou o seu rebanho.
europeus: nessa época, casar-se e respeitar sua mulher, fazer Creio que a introdugao desse tipo de poder, desse tipo de de-
amor com ela para ter filhos, libertar-se o mais possivel das pendéncia, desse tipo de dominação no interior da sociedade
tiranias do desejo sexual ja era uma coisa aceita pelos cida- romana, da sociedade antiga, foi um fenémeno muito impor-
daos, pelos habitantes do Império Romano antes do sur- tante.
gimento do cristianismo. O cristianismo nao €, portanto, A primeira coisa que efetivamente € preciso enfatizar a esse
responsavel por toda essa série de proibições, de desqualifica- respeito é que jamais, na Antigtiidade grega e romana, houve-
coes, de limitacoes da sexualidade freqiientemente atribuidas ra a idéia de que certos individuos poderiam desempenhar,
a ele. A poligamia, o prazer fora do casamento, a valorizacao em relacao aos outros, o papel de pastores, guiando-os ao lon-
do prazer, a indiferenca em relacao aos filhos ja havia desapa- go de toda a sua vida, do nascimento a morte. Na literatura
recido, no essencial, do mundo romano antes do cristianismo, greco-romana, jamais os politicos foram definidos como con-
e Somente havia uma pequena elite, uma pequena camada, dutores, pastores. Quando Platao se pergunta, na Politica, o
uma pequena casta social de privilegiados, de pessoas ricas - que é um rei, o que é um patricio, o que é aquele que governa
ricas, portanto livres - que nao praticavam esses principios, uma cidade, ele nao fala de um pastor, mas sim de um tecelao
mas basicamente eles ja estavam incorporados. que agencia os diferentes individuos da sociedade como se
Isso significaria dizer que o cristianismo nao desempenhou fossem os fios que ele tece para fabricar um belo tecido. O
papel algum nessa historia da sexualidade? Creio que, de fato, Estado, a Cidade é um tecido, os cidadaos sao os fios desse te-
o cristianismo desempenhou certamente um papel, porém cido. Nao existe a idéia de rebanho nem de pastor.
este nao foi o de introduzir novas idéias morais. Nao foi a in- Em compensacao, encontramos a idéia de que o chefe, em
trodução, o aporte, a injuncao de novas interdigoes. Creio que relacao aqueles que ele comanda, é como um pastor em rela-
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ção ao seu rebanho, nao no mundo romano, mas no mundo ção garantir a subsisténcia do rebanho, ele é no fundo uma
do Mediterraneo oriental. Ela é encontrada no Egito, assim incumbéncia: sua caracteristica moral é ser essencialmente
como na Mesopotamia, na Assiria; encontramo-la sobretudo devotado, sacrificar-se pelo bem de suas ovelhas. E o que en-
na sociedade hebraica, na qual o tema do rebanho e do pastor contramos em varios textos célebres da Biblia, freqiientemen-
é um tema absolutamente fundamental, tema religioso, politi- te retomados por seus comentadores: o bom condutor, o bom
co, moral e social. Deus é o pastor de seu povo. O povo de Jeo- pastor é aquele que aceita sacrificar sua vida por suas ovelhas.
va é um rebanho. Davi, o primeiro rei de Israel, recebe das No poder tradicional, esse mecanismo se inverte: o que carac-
maos de Deus a tarefa de se tornar o pastor de um povo que teriza um bom cidadao é poder se sacrificar por ele diante da
seria para ele o rebanho, e a salvagao do povo judeu seria con- ordem do magistrado ou aceitar morrer por seu rei. Aqui, € o
seguida, garantida no dia em que o rebanho finalmente tives- contrario: é o rei, o pastor que aceita morrer para se sacrificar.
se chegado a sua terra natal e tivesse sido conduzido ao seio
Finalmente - e talvez esta seja a caracteristica mais impor-
de Deus. Conseqilentemente, uma importancia muito grande
tante -, o poder pastoral é um poder individualista, ou seja,
do tema pastoral em toda uma série de sociedades do Mediter-
enquanto o rei ou o magistrado tem essencialmente como fun-
raneo oriental, enquanto este nao existe nos gregos nem nos
romanos. ção salvar a totalidade do Estado, o territorio, a cidade, os ci-
Em que consiste e como se define esse poder pastoral, tao dadaos em sua totalidade, o bom condutor, o bom pastor é
desenvolvido no Egito, na Assiria e nos hebreus? Podemos ca- capaz de cuidar dos individuos em particular, dos individuos
racteriza-lo sucintamente dizendo que o poder pastoral se tomados um a um. Nao se trata de um poder global. É eviden-
opõe a um poder politico tradicional habitual, pelo fato de ele te que o pastor deve garantir a salvacao do rebanho, porém
nao se exercer sobre um territ6rio: o pastor nao reina sobre deve garantir a salvagao de todos os individuos. Essa tematica
um territério; ele reina sobre uma multiplicidade de indi- do pastor é encontrada freqiientemente nos textos hebreus e
viduos. Ele reina sobre ovelhas, bois, animais. Reina sobre em um certo número de textos egipcios ou assirios. Portanto,
um rebanho, um rebanho em deslocamento. Reinar sobre um poder que atua sobre uma multiplicidade - multiplicidade
uma multiplicidade em deslocamento é o que caracteriza o de individuos em deslocamento, indo de um ponto para outro
pastor. Esse sera o poder pastoral tipico. Sua principal funcao -, poder oblativo, poder sacrificial, poder individualista.
não é tanto assegurar a vitoria, uma vez que ele nao se exerce Creio que o cristianismo, a partir do momento em que, no
sobre um territorio. Sua manifestagao essencial nao é a con- interior do Império Romano, transformou-se em uma forca de
quista, ou ainda o montante de riquezas ou de escravos que & organizacao politica e social, introduziu esse tipo de poder
possível conseguir na guerra. Em outras palavras, o poder nesse mundo que ainda o ignorava totalmente. Abstenho-me
pastoral não tem por função principal fazer mal aos inimigos; de falar sobre a maneira pela qual as coisas ocorreram concre-
sua principal função é fazer o bem em relação aqueles de que
tamente, como o cristianismo se desenvolveu como uma Igre-
cuida. Fazer o bem no sentido mais material do termo signifi-
ja, como, no interior de uma Igreja, os padres assumiram uma
ca alimenta-lo, garantir sua subsisténcia, oferecer-lhe um
condigao, um status particulares, como eles aceitaram a obri-
pasto, conduzi-lo as fontes, permitir-lhe beber, encontrar boas
gacao de garantir um certo número de encargos, como efetiva-
pradarias. Conseqiientemente, o poder pastoral é um poder
que garante ao mesmo tempo a subsisténcia dos individuos e mente eles se tornaram os pastores da comunidade crista.
a subsisténcia do grupo, diferentemente do poder tradicional, Creio que, através da organizagao do pastorado na sociedade
que se manifesta essencialmente pelo triunfo sobre os domi- crista, a partir do século [V d.C., e mesmo do século III, desen-
nados. Nao é um poder triunfante, mas um poder benfazejo. volveu-se um mecanismo de poder muito importante para
Terceira caracteristica do poder pastoral que encontramos toda a histéria do Ocidente cristao e, particularmente, para a
nas civilizacoes das quais eu falava: tendo por principal fun- histéria da sexualidade.
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De modo geral, o que significava, para o homem ocidental, Elas conheciam um poder imperial que era absolutamente au-
viver em uma sociedade em que existe um poder do tipo tocratico. Porém, na Antigiiidade greco-romana, jamais hou-
pastoral? ve, na verdade, a idéia de exigir de alguém uma obediéncia
Primeiramente: o fato de haver um pastor implica que, total, absoluta, incondicional em relacao a quem quer que fos-
para todo individuo, existe a obrigacao de obter a sua salva- se. Ora, isso foi o que efetivamente ocorreu com o surgimento
ção. Em outras palavras, a salvacao é simultaneamente, no do pastor e do pastorado na sociedade crista. O pastor pode
Ocidente cristao, um assunto individual - todos buscam sua impor aos individuos, e em funcao de sua propria decisao,
salvagao —, porém essa salvação nao é objeto de uma escolha. sem que houvesse mesmo regras gerais ou leis, sua vontade,
A sociedade crista, as sociedades cristas nao dao liberdade pois - isso € a coisa importante no cristianismo - nao se obe-
para os sujeitos livres dizerem: “Pois bem, eu nao quero bus- dece para atingir um certo resultado, nao se obedece, por
car a minha salvação.” Cada individuo é instado a buscar sua exemplo, para simplesmente adquirir um habito, uma aptidao
salvagao: “Tu seras salvo, ou melhor, sera necessario que fa- ou mesmo um meérito. No cristianismo o mérito absoluto é
cas tudo o que é preciso para seres salvo e nós te puniremos precisamente ser obediente. A obediéncia deve conduzir ao es-
neste mundo caso nao fagas aquilo que é necessario para se- tado de obediéncia. Manter-se obediente é a condição funda-
res salvo.” O poder do pastor consiste precisamente na sua mental de todas as outras virtudes. Ser obediente em relacao
autoridade para obrigar as pessoas a fazerem tudo o que for a quem? Obedecer ao pastor. Estamos aqui em um sistema de
preciso para a sua salvacao: salvacao obrigatéria. obediéncia generalizada, e a famosa humildade crista é ape-
Em segundo lugar, essa salvacao obrigatéria não é procu- nas a forma, de qualquer modo interiorizada, dessa obedién-
rada apenas pelo individuo. Seguramente, é ele préprio quem cia. Sou humilde: isso significa que aceitarei as ordens de
a busca, mas ela somente pode ser atingida caso aceite a au- qualquer um, a partir do momento em que elas me forem da-
toridade de um outro. Aceitar a autoridade de alguém significa das e que eu puder reconhecer nessa vontade do outro - eu,
que cada uma das ações que podera ser realizada devera ser que sou o ultimo dos homens - a prépria vontade de Deus.
conhecida ou, em todo caso, podera ser conhecida pelo pastor, Finalmente, creio que ha aqui alguma coisa que nos con-
que tem autoridade sobre o individuo e sobre varios indi- duzira ao nosso problema do inicio, ou seja, à histéria da se-
viduos, e que conseqiientemente podera dizer sim ou nao em xualidade: o pastorado trouxe consigo toda uma série de
relacao a ela: a coisa esta bem feita desta forma, sabemos que técnicas e de procedimentos que concerniam a verdade e a
ela nao deve ser feita de outro modo. Ou seja, as antigas estru- producao da verdade. O pastor cristao ensina - e nisso ele se
turas juridicas que todas as sociedades conheciam ha muito inclui, certamente, na tradicao dos mestres de sabedoria ou
tempo - isto €, havia um certo niimero de leis comuns, cujas dos mestres de verdade, que podiam ser, por exemplo, os fil6-
infragdes eram punidas - vem se acrescentar uma outra for- sofos antigos, os pedagogos. Ele ensina a verdade, ele ensina a
ma de analise do comportamento, uma outra forma de culpa- escritura, a moral, ele ensina os mandamentos de Deus e os
bilização, um outro tipo de condenacao muito mais refinado, mandamentos da Igreja. Nisso ele é um mestre, porém o pas-
muito mais estrito, muito mais sustentado: aquele que é ga- tor cristao é também um mestre de verdade em um outro sen-
rantido pelo pastor. Pastor que pode obrigar as pessoas a faze- tido: por um lado, o pastor cristao, para exercer sua tarefa de
rem tudo o que é preciso para a sua salvacao e que esta em pastor, deve saber, é claro, tudo o que fazem as suas ovelhas,
posicao de vigiar, ou pelo menos de exercer sobre as pessoas tudo o que faz o seu rebanho e cada um dos membros do reba-
uma vigilancia e um controle continuos. nho a cada instante, mas ele deve também conhecer o interior
Em terceiro lugar: em uma sociedade crista, o pastor é do que se passa na alma, no coração, no mais profundo dos
aquele que pode exigir dos outros uma obediéncia absoluta — segredos do individuo. Esse conhecimento da interioridade
fenômeno muito importante e também bastante novo. As so- dos individuos é absolutamente exigido para o exercicio do
ciedades galo-romanicas conheciam, € claro, a lei e os juizes. pastorado cristao.
70 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1978 - Sexualidade e Poder 71

O que significa conhecer o interior dos indivíduos? Signifi- um meio de instaurar um tipo de poder que controlava os indi-
ca que o pastor dispora de meios de analise, de reflexao, de viduos através de sua sexualidade, concebida como alguma
deteccao do que se passa, mas também que o cristao sera coisa da qual era preciso desconfiar, alguma coisa que sempre
obrigado a dizer ao seu pastor tudo o que se passa no amago introduzia no individuo possibilidades de tentacao e de queda.
de sua alma; particularmente, ele será obrigado a recorrer, do Porém, ao mesmo tempo, não se tratava absolutamente - se-
ponto de vista do seu pastor, a essa pratica tao especifica do não se cairia em um ascetismo radical — de recusar tudo o que
cristianismo: a confissao exaustiva e permanente. O cristao pudesse vir do corpo como nocivo, como sendo o mal. Era pre-
deve confessar incessantemente tudo o que se passa nele a al- ciso poder fazer funcionar esse corpo, esses prazeres, essa se-
guém que estara encarregado de dirigir a sua consciéncia, e xualidade, no interior de uma sociedade que tinha as suas
essa confissao exaustiva vai produzir de algum modo uma necessidades, sua organizacao familiar, suas necessidades de
verdade, que nao era certamente conhecida pelo pastor, mas reproducao. Portanto, uma concepcao no fundo relativamente
que tampouco era conhecida pelo préprio sujeito; € essa ver- moderada quanto a sexualidade, que fazia com que a carne
dade obtida pelo exame de consciéncia, sua confissao, essa crista jamais fosse concebida como o mal absoluto do qual era
producao de verdade que se desenvolve durante a direcao de preciso desembaracar-se, mas sim como a perpétua fonte,
consciéncia, a direção das almas que ira, de qualquer modo, dentro da subjetividade, dentro dos individuos, de uma tenta-
constituir a ligação permanente do pastor com o seu rebanho ção que corria o risco de levar o individuo a ultrapassar as li-
e com cada um dos membros do seu rebanho. A verdade, a mitacoes impostas pela moral corrente, ou seja: o casamento,
producao da verdade interior, a produção da verdade subjeti- amonogamia, a sexualidade para a reproducao e a limitagao e
va é um elemento fundamental no exercicio do pastor. a desqualificacao do prazer.
Chegamos precisamente agora ao problema da sexualida- Foi, portanto, uma moral moderada entre o ascetismo e a
de. Com o que se relacionava o cristianismo quando ele se de- sociedade civil que o cristianismo estabeleceu e fez funcionar
senvolveu a partir do século II ou I1I? Ele se relacionava com a através de todo esse aparelho do pastorado, mas cujas pecas
sociedade romana que ja havia incorporado, no essencial, sua essenciais baseavam-se em um conhecimento, simultanea-
moral, essa moral da monogamia, da sexualidade, da repro- mente exterior e interior, um conhecimento meticuloso e deta-
ducao, de que lhes falei. Além disso, o cristianismo tinha di- lhado dos individuos por eles mesmos e pelos outros. Em
ante de si - ou melhor, ao seu lado, atras dele - um modelo de outras palavras, é pela constituicao de uma subjetividade, de
vida religiosa intensa, que era a do monaquismo hindu, a do uma consciéncia de si perpetuamente alertada sobre suas
monaquismo budista e a dos monges cristaos que haviam se proprias fraquezas, suas proprias tentacdes, sua propria car-
espalhado por todo o Oriente mediterraneo a partir do século ne, é pela constituicao dessa subjetividade que o cristianismo
111, retomando, em uma boa parte, as praticas ascéticas. Entre conseguiu fazer funcionar essa moral, no fundo mediana, co-
uma sociedade civil que havia incorporado um certo número mum, relativamente pouco interessante, entre o ascetismo e a
de imperativos morais e esse ideal de ascetismo integral, o sociedade civil. Creio que a técnica de interiorizacao, a técnica
* cristianismo sempre hesitou; por um lado, ele tentou domi- de tomada de consciéncia, a técnica do despertar de si sobre si
nar, interiorizar, mas controlando-o, esse modelo de ascetis- mesmo em relação as suas fraquezas, ao seu corpo, a sua
mo budista e, por outro, controlando-o para poder dirigir, do sexualidade, a sua carne, foi a contribuição essencial do cris-
interior, essa sociedade civil do Império Romano. tianismo a historia da sexualidade. A carne é a propria subje-
Atraveés de que meios isso ocorrera? Creio que foi a concep- tividade do corpo, a carne crista é a sexualidade presa no
¢ao da carne - muito dificil, aliás muito obscura - que serviu, interior dessa subjetividade, dessa sujeicao do individuo a ele
que permitiu estabelecer essa espécie de equilibrio entre um mesmo, e este foi o primeiro efeito da introducao do poder pas-
ascetismo, que recusava o mundo, e uma sociedade civil, que toral na sociedade romana. Creio que é possivel - tudo isso
era uma sociedade laica. Creio que o cristianismo encontrou nao passa de uma série de hipóteses, é claro - entender qual
72 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1978 - Sexualidade e Poder 73

foi o real papel do cristianismo na historia da sexualidade. ambito cientifico. A este respeito, fala-se freqiientemente da
Nao, portanto, interdicao e recusa, mas colocação em ação de mudanca de Michel Foucault, e alguns experimentam uma
um mecanismo de poder e de controle, que era ao mesmo tem- certa satisfacao com esta mudanca...
po um mecanismo de saber, de saber dos individuos, de saber M. Foucault: ...e ha outros que ficaram muito descontentes
sobre os individuos, mas também de saber dos individuos so- com ela.
bre eles proprios e em relacao a eles proprios. Tudo isso cons- S. Hasumi: Pessoalmente, nao acredito que as coisas se
titui a marca especifica do cristianismo, e creio que € nessa passaram dessa forma. O senhor nao mudou, nao abandonou
medida que se pode fazer uma histéria da sexualidade nas so- a hipétese da repressao, porém a questionou de novo para for-
ciedades ocidentais a partir de mecanismos de poder. mular de modo diverso o problema do poder...
Eis, muito esquematicamente esbocado, o quadro do tra- M. Foucault: Agradeco-lhe essa questao, que de fato é im-
balho que iniciei. Sao hipéteses, nada é certo, é simplesmente portante e mereceria ser colocada. Creio que o senhor a colo-
um esboco. Vocés podem fazer suas observacoes sobre elas, cou da melhor maneira possivel.
assim como tantas outras interrogagoes que vocés podem me É verdade que, em textos ainda recentes, me referi sobretu-
fazer diretamente. Certamente, se vocés tiverem questoes a do a uma concepcao do poder e dos mecanismos do poder que
propor - objecoes, sugestoes, criticas, confirmacoes - eu fica- era uma concepcao de qualquer forma juridica. As analises
ria radiante. que tentei fazer — e nao fui o único, longe disso, a tentar fa-
zê-las - são obviamente analises parciais, fragmentarias. Nao
se trata absolutamente de estabelecer uma teoria do poder,
Debate uma teoria geral do poder nem de dizer de onde ele provém. Ha
séculos, e mesmo ha milénios, essa questão foi colocada no
S. Hasumi: Formular perguntas para o Sr. Foucault nao é Ocidente, e nao estou seguro de que as respostas dadas te-
uma tarefa facil, nao tanto por causa de minha ignorancia nham sido satisfatérias. Em todo caso, o que tento fazer €, em
nem de minha timidez. A dificuldade decorre precisamente da um nivel empirico, tomar as coisas pelo meio. Nao: “De onde
propria clareza de sua exposicao. Estamos habituados com vem o poder, para onde ele vai?”, mas: “Por onde ele passa, e
essa clareza, gracas aos seus escritos. Em todos os seus li- como isso se passa, quais são todas as relagoes de poder, de
vros, ele anuncia a cada vez, de uma maneira precisa, de que que modo se podem descrever algumas das principais rela-
problema ele vai tratar e qual sera o meio que usara para ana- coes de poder exercidas em nossa sociedade?”
lisa-lo, tentando definir em que condições e em que circuns- Nao entendo, portanto, o poder no sentido do governo, no
tancias seu trabalho se torna necessario, e o que acabamos de sentido do Estado. Digo: entre diferentes pessoas, em uma fa-
ouvir confirma essa clareza e essa precisao. Ele tomou mais milia, em uma universidade, em um quartel, em um hospital,
uma vez a precaucao de responder previamente a todas as em uma consulta médica se estabelecem relagoes de poder.
questdes e mesmo de anular quase todas as objeções que se Quais sao elas, a que elas conduzem, como elas ligam os indi-
poderiam formular. Portanto, não tenho quase nada para lhe viduos, por que elas sao suportadas, e por que, em outros ca-
perguntar, mas, para animar as discussoes que se seguirio, s0s, elas nao o sao? Fagamos, se vocés quiserem, essa analise
gostaria de lhe perguntar apenas o seguinte. pelo meio social, e uma analise empirica. Este é o primeiro
Na aula inaugural do Collége de France, creio me recordar ponto.
que o senhor tratou da sexualidade sob o angulo da repressao Segundo ponto: nao sou o primeiro, longe disso, a ter ten-
ou da exclusão: o discurso da sexualidade era rarefeito, mar- tado. Os psicanalistas, Freud e muitos de seus sucessores,
cado por interdicdes. Mas a partir de A vontade de saber, o se- em particular toda uma série de pessoas como Marcuse, Reich
nhor trata o discurso da sexualidade nao mais como objeto de etc., também no fundo tentaram, nao colocar a questao da ori-
repressao, mas sobretudo como alguma coisa que prolifera no gem do poder, do fundamento do poder, de sua legitimidade
74 Michel Foucault- Ditos e Escritos 1978 - Sexualidade e Poder 75

ou de suas formas globais, mas, sim, verificar como isso se eficacia, suas forgas, suas aptidoes, em suma, tudo aquilo
passava no psiquismo do individuo, no inconsciente do indivi- que possibilitasse utiliza-los no aparelho de producao da
duo ou na economia de seu desejo, o que ocorria com as rela- sociedade: investir nos individuos, situa-los onde eles sao
coes de poder. O que o pai, por exemplo, vem fazer no desejo mais tteis, forma-los para que tenham esta ou aquela capaci-
do individuo? Como a interdigao, por exemplo, da masturba- dade; é isso que se tentou fazer no exército, a partir do século
ção, ou como as relacées pai-mae, a distribuicao dos papéis XVII, quando as grandes disciplinas foram impostas, o que
etc., vém se inscrever no psiquismo das criancas? Portanto, nao era feito outrora. Os exércitos ocidentais nao eram disci-
eles também fazem certamente a analise dos mecanismos do plinados - eles foram disciplinados, soldados foram convoca-
poder, das relacdes de poder pelo meio e empiricamente. dos para se exercitar, para marchar em fila, para atirar com
Porém, o que me surpreendeu é que essas analises sempre fuzis, para manipular o fuzil desta ou daquela maneira, de for-
consideravam que o poder tinha por funcao e papel dizer nao, ma que o exército tenha o melhor rendimento possivel. Da
interditar, impedir, tracar um limite; conseqiientemente, o po- mesma maneira, vocés tém todo um adestramento da classe
der tinha como principal efeito todos esses fenomenos de operaria, ou melhor, do que nao era ainda a classe operaria,
exclusao, de histericizacao, de obliteracao, de segredos, de mas trabalhadores capazes de trabalhar nas grandes oficinas,
esquecimento ou, se vocés quiserem, de constituicao do in- ou simplesmente nas pequenas oficinas familiares ou artesa-
consciente. O inconsciente se constitui certamente - os psica- nais, eles foram habituados a morar em tal ou tal habitacao, a
nalistas dirdo que estou indo muito rapido, mas enfim... - a gerir sua familia. Vocés véem uma producao de individuos,
partir de uma relacao de poder. Creio que essa concepcao ou uma producao das capacidades dos individuos, da produtivi-
essa idéia de que os mecanismos de poder sao sempre meca- dade dos individuos; tudo isso foi conseguido através de me-
nismos de proibicao era muito difundida. Essa idéia tinha, se canismos de poder nos quais existiam as interdicoes, mas
quiserem, politicamente, uma vantagem, uma vantagem ime-
apenas existiam a titulo de instrumentos. O essencial de toda
essa disciplinacao dos individuos nao era negativo.
diata e, por isso mesmo, um pouco perigosa, ja que permitia
dizer: “Suspendamos essas interdicoes e depois disso o poder Vocés podem dizer e avaliar que ela era catastrofica, podem
tera desaparecido; seremos livres quando conseguirmos sus- colocar todos os adjetivos morais e politicos negativos que qui-
serem, mas o que quero dizer é que o mecanismo nao era es-
pender essas interdicoes.” Talvez seja uma coisa que nos faca
sencialmente de interdicao, mas sim de producao, era, pelo
ir um pouco rapido demais.
contrario, de intensificacao e de multiplicagao. A partir disso,
De qualquer forma, mudei a respeito desse ponto. Mudei a
me perguntei: sera mesmo que, no fundo, nas sociedades em
partir de um estudo preciso que tentei fazer, que tentei tornar
que vivemos, o poder teve essencialmente por forma e por fi-
o mais preciso possivel, sobre a prisao e os sistemas de vigi-
nalidade interditar e dizer nao? Os mecanismos de poder mais
lancia e de punição nas sociedades ocidentais nos séculos
intensamente inscritos em nossas sociedades nao sao aqueles
XVIII e XIX, sobretudo no final do século XVIII. Creio que ve- que chegam a produzir alguma coisa, que conseguem se am-
mos se desenvolver, nas sociedades ocidentais - alias, ao pliar, se intensificar? Esta é a hipotese que tento atualmente
mesmo tempo que o capitalismo —, toda uma série de procedi- aplicar a sexualidade, me dizendo: no fundo, a sexualidade é
mentos, toda uma série de técnicas para vigiar, controlar, se aparentemente a coisa mais proibida que se pode imaginar;
encarregar do comportamento dos individuos, dos seus atos, passamos o tempo proibindo as criangas de se masturbarem,
de sua maneira de fazer, de sua localização, de sua residéncia, os adolescentes de fazer amor antes do casamento, os adultos
de suas aptidoes, mas esses mecanismos nao tinham como de fazer amor desta ou daquela maneira, com tal ou tal pes-
funcao essencial proibir. soa. O mundo da sexualidade é um mundo altamente sobre-
Certamente, eles interditavam e puniam, mas o objetivo es- carregado de interdicoes.
sencial dessas formas de poder - o que constituia sua eficacia Mas me pareceu que, nas sociedades ocidentais, essas in-
e solidez - era permitir, obrigar os individuos a aumentar sua terdicoes eram acompanhadas de toda uma producao muito
76 Michel Foucault - Ditos e Escritos

intensa, muito ampla, de discursos — discursos cientificos,


discursos institucionais - e, ao mesmo tempo, de uma preocu-
pacao, de uma verdadeira obsessao em relacao a sexualidade
que aparece muito claramente na moral crista dos séculos XVI
e XVII, no periodo da Reforma e da Contra-reforma — obsessao
que nao parou até agora.
O homem ocidental - não sei o que acontece na sociedade
de vocés - sempre considerou a sua sexualidade como a coisa
essencial em sua vida. E isto cada vez mais. No século XVI, o
pecado era por exceléncia o pecado da carne. Então, se a se-
xualidade era proibida, interdita, votada ao esquecimento, a
recusa, a denegação, como explicar um discurso desse tipo,
uma tal proliferacdo, que haja tal obsessão a respeito da
sexualidade? A hipétese da qual procedem minhas analises —
que nao levarei a seu termo, ja que ela pode nao ser confirma-
da - seria que, no fundo, o Ocidente nao é realmente um nega-
dor da sexualidade — ele nao a exclui -, mas sim que ele a
introduz, ele organiza, a partir dela, todo um dispositivo com-
plexo no qual se trata da constitui¢ao da individualidade, da
subjetividade, em suma, a maneira pela qual nos comporta-
mos, tomamos consciéncia de nés mesmos. Em outras pala-
vras, no Ocidente, os homens, as pessoas se individualizam
gracas a um certo nimero de procedimentos, e creio que a se-
xualidade, muito mais do que um elemento do individuo que
seria excluido dele, é constitutiva dessa ligacao que obriga as
pessoas a se associar com sua identidade na forma da subjeti-
vidade.
Quanto a famosa clareza da qual falava o Sr. Hasumi, tal-
vez este seja o preco de querer ser claro... Nao gosto da obscu-
ridade, porque a considero uma espécie de despotismo; é
preciso expor os seus erros; € preciso arriscar a dizer coisas
que, provavelmente, serao dificeis de expressar e em relacao
as quais nos confundimos, nos confundimos um pouco, e
' temo ter lhes dado a impressao de haver me confundido. Se
vocês tiveram essa impressao é porque, de fato, me confundi!

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