VIDAL, Nuno ANDRADE, Justino Pinto De. Sociedade Civil e Política em Angola, Enquadramento Regional e Internacional
VIDAL, Nuno ANDRADE, Justino Pinto De. Sociedade Civil e Política em Angola, Enquadramento Regional e Internacional
VIDAL, Nuno ANDRADE, Justino Pinto De. Sociedade Civil e Política em Angola, Enquadramento Regional e Internacional
K
Sociedade Civil e Política em Angola
Enquadramento Regional e Internacional
Nuno Vidal
&
Justino Pinto de Andrade
b
Edição e Organização:
Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade
Publicação:
Edições Firmamento, Media XXI
Capa:
Eugénio Trigo
execução gráfica
Digital XXI
Com a colaboração especial de:
&
Mónica Rafael Simões
(Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra)
Traduções
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS XI
NOTAS DE ABERTURA XIII
José Manuel Imbamba, Secretário-Geral da Universidade Católica de Angola
— UCAN
José Manuel Pureza, Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra — CES-FEUC
INTRODUÇÃO 3
Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade, CES-FEUC & UCAN (respectivamente)
CAPÍTULO I
A SOCIEDADE CIVIL E A POLÍTICA EM ANGOLA
POLÍTICA, SECTORES SOCIAIS E SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA 11
Nuno Vidal, CES – FEUC
CAPÍTULO II
DESAFIOS E CONSTRANGIMENTOS À SOCIEDADE CIVIL
ANGOLANA
SOCIEDADE CIVIL E PODER POLÍTICO 55
Fernando Macedo, Universidade Agostinho Neto & Associação Justiça,
Paz e Democracia – AJPD
CAPÍTULO III
AS Igrejas, A JUVENTUDE, AS MULHERES E OS MEDIA COMO
PROPULSORES DO DESENVOLVIMENTO HUMANO EM ANGOLA
CONSTRUÇÃO DA PAZ E DEFESA DOS Direitos Humanos:
CONTRIBUIÇÃO DAS Igrejas ANGOLANAS 141
Michael Comerford, Trócaire, Quénia
CAPÍTULO IV
O ENQUADRAMENTO INTERNACIONAL
COOPERAÇÃO ECONÓMICA INTERNACIONAL, MODELOS
DE DESENVOLVIMENTO E SOCIEDADE CIVIL EM ÁFRICA 235
Lopo Fortunato do Nascimento, Centro de Estudos Sociais e Desenvolvimento,
Luanda, Angola
CAPÍTULO V
O ENQUADRAMENTO REGIONAL
ÁFRICA DO SUL: O ENFRAQUECIMENTO DA SOCIEDADE CIVIL? 313
Dale T. McKinley, Movimentos Sociais Indaba e Fórum Anti-Pivatização,
África do Sul
Agradecimentos
c
XV
Nota de Abertura
José Manuel
Imbamba
Secretário-Geral
A vida humana é sempre um projecto social que se deve
realizar com o concurso responsável de todos, para que
possam gozar os mesmos direitos e benefícios e cumprir os
da Universidade Católica respectivos deveres. Esta é a razão de ser da sociedade com
de Angola – UCAN as suas leis, instituições e estruturas, que concorrem para o
desenvolvimento e realização de todos os seres humanos.
Daí o empenho pela democracia, pela justiça, pelo respeito
dos Direitos Humanos, pela paz e pelo desenvolvimento
integral. De facto, a dialéctica da vida social exige o convívio
salutar de inteligências e de vontades no âmbito do princípio
da co-responsabilidade.
A sociedade angolana está num processo de transformação
profunda e irreversível, por isso, ninguém pode ficar indife-
rente perante o quadro que nos envolve e interpela existen-
cialmente: esta é a hora em que todos nos devemos assumir
como protagonistas na construção de uma sociedade em
que a pessoa humana seja o ponto de partida e de chegada,
incentivando, desta feita, a cultura do valor da dignidade
da pessoa humana, a cultura do sentido do outro, tendo em
conta que a ipseidade se realiza fundamentalmente na alte-
ridade, a cultura do diálogo, a cultura da alternância, enfim,
a cultura da legalidade. Aqui reside o valor personalista da
democracia; aqui reside o papel e a importância da socie-
dade civil, enquanto impulsionadora da consciência crítica,
responsável e participativa dos cidadãos.
O Compêndio da Doutrina Social da Igreja no n.º 407, afirma:
“Uma autêntica democracia não é apenas o resultado de um
respeito formal das regras, mas é fruto da convicta aceitação
dos valores que inspiram os processos democráticos: a dig-
nidade de cada pessoa humana, o respeito dos Direitos do
Homem, a assunção do ‘bem comum’ como fim e critério
regulador da vida política”. Impõe-se, por conseguinte, no
nosso caso, a educação do cidadão à democracia, enquanto
convívio social, para que a sua participação na coisa pública
seja mais racional do que emotiva, mais nacional do que
intestina (tribal, regional), enfim, mais à medida da pessoa
humana no seu realizar-se na imanência projectada para a
transcendência.
Neste contexto, as universidades, enquanto espaços privile-
giados onde se forjam cidadãos com mentalidade aberta à
diversidade política, ideológica, religiosa e cultural, são cha-
madas a repensar e a recriar o homem angolano, munindo-o
XVI Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Nota de Abertura
d
XXI
Patrick Chabal
King’s College London C onsiderando que a democratização é, em parte, uma
forma da sociedade civil desempenhar um papel mais
activo na vida pública, o que poderemos esperar que as pró-
ximas eleições signifiquem para Angola? Esta é uma questão
importante, na medida em que o país está a emergir de uma
longa história de conflito civil e necessita de reconstruir a sua
sociedade. Mas, além disso, tem também consequências para
o futuro de África, pois a maior parte dos teóricos políticos
encara a realização de eleições multipartidárias como a prin-
cipal trajectória que permite a emergência de uma sociedade
civil vibrante e activa. O que pode, então, a experiência de
Angola contar-nos sobre a existência, papel e futuro da so-
ciedade civil na região e, de forma mais geral, em África? E
que luz pode a experiência da África pós-colonial trazer para
as actuais transições em Angola?
Estas são questões bastante simples de colocar, mas compli-
cadas de responder, por dois conjuntos de razões diferentes.
O primeiro prende-se com o facto de a história de Angola se
poder revelar um caso particular, partilhando pouco com
outros países da região. Poderá ser difícil comparar a sua
evolução com a dos seus vizinhos. Deste modo, será neces-
sário examinar a trajectória do país com algum detalhe, antes
de embarcar em qualquer tipo de exercício comparativo. O
segundo é o facto de haver um consenso prático sobre o que
é efectivamente sociedade civil, ainda que o conceito seja
livremente utilizado por académicos africanistas, jornalistas
e peritos de ONG. Também neste campo teremos de traba-
lhar de forma mais clara sobre que significado poderá ter a
sociedade civil na África contemporânea.
Não é minha intenção aqui escrever sobre a história de An-
gola ou mesmo apresentar um relato da guerra civil que
terminou em 2002. Do mesmo modo, não discutirei com
profundidade as últimas eleições multipartidárias (1992) ou
os acontecimentos políticos que caracterizaram o período
1991-2002. Esta informação poderá ser encontrada num vo-
lume anterior.2 Procurarei antes centrar a minha atenção nas
duas questões atrás mencionadas, com o objectivo de fornecer
uma análise da sociedade angolana que se situa exactamente
1
Traduzido do original em inglês por Mónica Rafael Simões
2
Patrick Chabal & Nuno Vidal (orgs.) (2007), Angola: the weight of history. London/
New York: Hurst/Columbia University Press.
XXII Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
I
O estudo das transições democráticas tem uma história longa, e acidentada, na política
comparada. As suas origens podem ser encontradas no pós-Segunda Guerra Mundial,
quando os cientistas políticos estavam a tentar chegar a acordo relativamente às consequên-
cias do totalitarismo comunista e fascista. Contudo, a sua evolução real para um campo
de estudo académico genuíno deu-se nos anos setenta, quando as três maiores entidades
políticas autoritárias europeias (Grécia, Espanha e Portugal) se transformaram numa or-
dem política multipartidária democrática. Conheceu depois a consolidação analítica com
a explicação das transições democráticas que ocorreram na América do Sul a partir dos
anos oitenta. Portanto, segundo uma perspectiva conceptual, foram estas experiências que
proporcionaram os padrões teóricos para a explicação do que foi chamado de terceira onda
de democratização — nomeadamente as transições democráticas na Ásia e em África.
Embora a genealogia da “transitologia” não seja directamente relevante para a nossa
discussão aqui, quero assinalar as suas principais hipóteses, na medida em que são essas
mesmas hipóteses que se aplicam a África de modo geral e a Angola mais especificamen-
te. A primeira é que a democracia segue um seu caminho: a prática democrática conduz
a benefícios que exigem mais democracia — os indivíduos e as instituições vêm mérito
na democracia, o que tem como resultado uma maior consolidação democrática. Em
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXIII
planos de desenvolvimento por parte da sociedade civil. Na prática isto significa que
os governos são obrigados a conduzir um processo de consulta formal, em que é dada
às OSC uma oportunidade para escrutinar políticas de desenvolvimento, antes que
a comunidade internacional valide a transferência da ajuda para os países em causa.
Face a isto, então, a democratização em África possibilita a contribuição formalmente
institucionalizada da sociedade civil para a definição de políticas. Sob esta leitura, a de-
mocratização é encarada como geradora da participação plena das OSC, para benefício
óbvio do país como um todo.
É útil colocar duas questões sobre esta interpretação da política recente em África. A
primeira diz respeito à extensão na qual a democratização e a implicação das OSC na
política são genuinamente o resultado da mobilização societal. A segunda consiste
em saber se o impacto do activismo da sociedade civil é tão directo como sugere esta
leitura dos últimos vinte anos.
Relativamente à primeira questão, parece haver alguma confusão entre causa e efeito.
Historicamente, pode ser demonstrado que o apelo à democracia e a emergência das
OSC se deu principalmente devido à pressão da comunidade internacional, que de-
sesperava com a falta de desenvolvimento numa África de Estados de partido único.
Foi apenas depois dos condicionalismos da ajuda exigirem eleições multipartidárias e
participação da sociedade civil que estas mudanças ocorreram realmente. À medida em
que a assistência passou a pressupor tais condicionalismos, a maior parte dos governos
em África não teve outra escolha senão obedecer, já que não podiam funcionar sem aju-
da externa. Por outro lado, países como Angola, capazes de evitar os condicionalismos,
podem e de facto resistem à democratização. Claro que, onde não existem liberdades
políticas, é difícil medir a exigência pública por reformas, mas do mesmo modo, não
é possível assumir que tais exigências seriam em favor do tipo de democratização
advogado pelo Ocidente. As pessoas poderão ter outras ideias sobre a melhor forma
de melhorar as suas condições de vida — como veremos mais adiante.
No que diz respeito ao activismo da sociedade civil, está longe de ser claro que tem
uma influência decisiva sobre as políticas de prestação de contas e desenvolvimen-
to. Também aqui, existe abundante evidência de que, tanto o tipo de OSC que são
estabelecidas, como as políticas que defendem, são em grande medida resultado
das considerações da comunidade doadora. Esta realidade não surpreende, pois a
maioria das OSC em África são financiadas pelo exterior. Independentemente dos
objectivos da comunidade internacional a este respeito, não se pode simplesmente
dar por adquirido que as organizações que estão principalmente ligadas aos seus
doadores externos sejam os melhores veículos para a representação das perspectivas
e políticas que os homens e mulheres comuns mais desejam. Na verdade, o facto de
tais OSC responderem principalmente a estrangeiros acaba por ser um problema real,
que muitos peritos negligenciam.
II
Tendo tentado clarificar as hipóteses subjacentes às actuais conceptualizações de de-
mocracia e sociedade civil, passo agora para uma análise da evolução da sociedade
civil na África contemporânea. Há dez anos atrás, escrevemos sobre “as ilusões da
sociedade civil” no livro Africa Works.3 Em poucas palavras, o argumento era o de que
3
Patrick Chabal & Jean-Pascal Daloz (1999), Africa Works: disorder as political instrument. Oxford: James Currey,
chapter 2.
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXV
não podia haver na África contemporânea uma sociedade civil como era, e é, entendida
no Ocidente, por dois conjuntos de razões. O primeiro prendia-se com o facto de em
África a sociedade não estar dissociada funcionalmente do Estado porque o domínio
da política não era independente da esfera social, económica e cultural. O segundo
era que a maioria das OSC eram financiadas externamente ou concebidas domesti-
camente como instrumentos políticos por quem as financiava ou dirigia. O resultado
era que, com algumas excepções, as OSC eram propensas às mesmas dinâmicas neo-
patrimoniais e clientelistas que todas as outras instituições políticas. Nesse sentido, a
sociedade civil era uma parte integrante do tecido de organizações formais e informais
através das quais se exercia o poder na África contemporânea.
Este argumento não negava a existência de um grande número de indivíduos em África
comprometidos com o activismo da sociedade civil como é praticado no Ocidente,
nem negligenciava aquelas organizações enraizadas domesticamente (profissionais,
vocacionais ou religiosas) que procuravam dar voz àqueles que não eram representados
na política diária. Tinha simplesmente o objectivo de assinalar o limitado âmbito de
acção na África contemporânea para o tipo de sociedade civil que, à semelhança do
que aconteceu na Europa de Leste nos anos oitenta, pudesse jogar um papel político
decisivo na transformação substantiva do sistema político existente. Por isso, na nossa
perspectiva, a expectativa em que as OSC podiam igualmente dar expressão aos vários
sectores da sociedade e permanecer independentes da política da elite governante não
era legítima. Sugerimos que era mais importante compreender o modo como o poder
é exercido do que admitir a hipótese de uma transformação súbita, de algum modo
miraculosa, da sociedade que podia ipso facto democratizar a política em África.
Após a publicação do livro, muitos defenderam que estávamos errados em pelo menos
dois cálculos. O primeiro era de que existiam em África um número de organizações
independentes que operavam fora do alcance do Estado e eram abertamente críticas do
governo. O segundo era que as OSC jogavam claramente um papel fundamental na de-
mocratização da política do continente, quer directamente através de campanhas eleitorais
ou indirectamente através da sua influência sobre a política. Superficialmente isto pode
parecer verdade, mas a interpretação do que está a acontecer não é assim tão linear. Ou,
por outras palavras, as dinâmicas da relação entre a sociedade civil e o Estado podem
não ser aquilo que aparentam — nomeadamente a afirmação gradual da sociedade civil
num jogo político crescentemente democrático. Alguns processos parecem em vez disso
confortar a nossa tese original.
Um é que muitas OSC são partidos políticos disfarçados, concebidos para facilitar o
acesso dos seus líderes a cargos políticos. Outro é que várias OSC são dirigidas por elites
políticas e, como tal, instrumentalizadas politicamente. Outro, ainda, é que várias OSC
são estabelecidas puramente com o objectivo de aceder a financiamentos externos, já que
nas últimas duas décadas uma crescente proporção da ajuda ao desenvolvimento tem
sido canalizada directamente para a sociedade civil em vez de para o Estado. Além disso,
algumas OSC emergiram como resultado da determinação da comunidade doadora em
colocar na agenda determinadas questões (como o género) ou políticas (como a maior
participação das mulheres na política). Finalmente, e de modo paradoxo face à “teoria”
de sociedade civil que o Ocidente apregoa só da boca para fora, as poucas organizações
comunitárias locais que não foram instrumentalizadas politicamente estão hoje em risco
de sobrevivência porque não cumprem os critérios de organização burocrática e prestação
de contas de tipo ocidental e por isso não são elegíveis para financiamento externo.
XXVI Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
De modo geral, o que assistimos em África é que não é útil conceber o Estado e a
sociedade civil como separados. Devem, antes, ser analisados como duas facetas do
processo político que emergiu sob influência da comunidade internacional. O discurso
da democratização e da sociedade civil conduziu à miragem de que a natureza real da
política havia mudado, quando na verdade apenas a sua aparência se alterou. Ou, mais
precisamente, o padrão ocidental foi adaptado às realidades políticas, sociais e culturais
da África contemporânea. Os doadores podem gostar de pensar que a sociedade civil
existe fora da alçada da política estatal e reflecte as opiniões e exigências daqueles
que não estão representados na política “oficial”. De facto, e isto é fundamental, tanto
a população em geral como as elites políticas encaram as OSC como actores do jogo
político mais amplo em que todos estão envolvidos.
As eleições multipartidárias e a emergência de OSC financiadas externamente mudaram
o aspecto do jogo político, mas não produziram uma transformação sistémica desse jogo.
É hoje tão verdade como era há quarenta anos atrás que, em Africa, o poder se joga sobre
o controlo dos recursos. Em conformidade, existe apenas uma ambição possível para
os políticos, a de controlar o Estado. As eleições multipartidárias complicam o jogo e
conduzem a uma competição crescentemente aguda, e frequentemente à violência, mas
são simplesmente um obstáculo adicional no caminho para a captura do poder.
Não existe lugar para uma oposição, como acontece nas democracias ocidentais: nem
mesmo para governos de coligação — como, por exemplo, vemos hoje no Quénia. A
política tem a ver com o facto de a vitória dar acesso a tudo — the winner-takes-all. O que
acontece em termos de sociedade civil pode afectar a forma mediante a qual se desenrola
a competição política e pode fornecer canais adicionais de progresso político para os
políticos e os seus apoiantes. Não altera a natureza e o objectivo da política. Nem afecta
fundamentalmente a estrutura do exercício de poder.
Se entendermos que o Estado e a sociedade civil estão inextricavelmente ligados dentro
de um dado contexto político, social e cultural, então torna-se mais fácil pensar sobre
qual poderá ser realisticamente o papel da política da sociedade civil na África de
hoje. Vamos primeiro deixar de parte a suposição normativa ocidental que a sociedade
civil pode em algum sentido manter o jogo político nos limites da democracia — agir
como fiscalizador dos políticos. Isto, como expliquei, não é possível sob as actuais
circunstâncias. Vamos também descartar a noção de que a participação da sociedade
civil na política pode ser interpretada como prova de “democracia”, já que o que hoje
está disponível em África não é a democracia de estilo Ocidental, mas mais ou menos
a prestação de contas democrática (democratic accountability).
Vamos finalmente afastar o argumento de que apenas uma sociedade civil “vibrante”
pode garantir uma democratização “adequada” — ambos os significados, de “vibran-
te” e “adequada”, são inteiramente determinados pelas expectativas ocidentais e não
correspondem às realidades no terreno.
Nestas circunstâncias, o que é chamado de sociedade civil é de facto um conglomerado
de três tipos distintos de organização.
O primeiro são as OSC criadas e financiadas por doadores externos, cuja raison d’être
é principalmente cumprir com as expectativas, e exigências, da comunidade interna-
cional, de modo a conseguir esses financiamentos. Representam hoje a maioria das
organizações que são encaradas pelo Ocidente como as que agem da forma que a
sociedade civil deve agir.
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXVII
4
Patrick Chabal & Nuno Vidal (eds.) (2007), Angola: the weight of history. London/New York: Hurst/Columbia
University Press, Introduction.
XXVIII Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Tanto a especificidade como o domínio da elite crioula de Luanda são indisputáveis; são
factos históricos que continuam a afectar o aspecto social e político do país e que terão uma
influência decisiva sobre os acontecimentos dos próximos anos. Porém, se os considerar-
mos um grupo étnico antes de, como é geralmente o caso, um grupo racial e/ou cultural
separado, então a sua singularidade começa a ser de menor relevo. Existem, ou existiram,
grupos semelhantes em África que detiveram um poder social, económico e político único.
Estes incluem, obviamente, as comunidades muçulmanas “árabes” de comerciantes na
costa leste africana, que foram predominantes até à consolidação do regime colonial — e
permanecem assim em lugares como Zanzibar. No lado oposto do continente, podíamos
mencionar os crioulos americanos na Libéria, que detiveram o poder até Doe ter derru-
bado o regime, ou as várias comunidades crioulas que se encontram na costa ocidental de
África (da Mauritânia à Guiné), incluindo as quatro Comunas do Senegal — muitas destas
comunidades tinham uma influência económica ou política desproporcionada.
O objectivo aqui não é tanto tentar minimizar as especificidades dos crioulos de Luanda,
cuja própria composição é bastante complicada em qualquer caso, mas simplesmente
registar o facto importante de que não deviam ser encarados como se fossem únicos em
África. Isto é importante não só porque raramente se refere este ponto — a maior parte
dos que escrevem sobre Angola são especialistas lusófonos — mas também porque tal
abordagem torna possível estabelecer a evolução de Angola dentro de uma perspectiva
africana mais ampla. Se os actuais crioulos de Luanda não são tão distintos como se
pensa, então torna-se possível considerar um futuro em que tanto a sua identidade como
a sua posição privilegiada na sociedade podem mudar — como aconteceu com grupos
semelhantes noutras partes. Pode ser que tal mudança só aconteça com nada menos do
que uma revolução, mas não deve ser excluída com base no argumento histórico espúrio
de que os crioulos de Luanda têm um direito de governar inato (ou permanente).
Uma análise mais cuidada do sistema político a que a elite crioula preside em Angola
esclarece que este não é de modo algum único em África. De facto, pode ser visto como
uma variante do patrimonialismo que se encontra em todos os países, embora com for-
mas diferentes. Entre as principais características desse figurino está o facto de a política
ser um jogo de soma zero; de os governantes controlarem os recursos do país e deles
disporem de forma a garantir a legitimidade e o apoio necessário para o objectivo de
permanecerem no poder; de os regimes incumbentes não serem vencidos nas eleições
excepto em ocasiões em que a oposição está fortemente unida; de que a política da opo-
sição é principalmente um meio de chegar ao poder de modo a ter acesso aos recursos
públicos. O que é digno de nota nesse tipo de sistemas é que, independentemente do
impacto de eleições multipartidárias, as mudanças de regime fracassaram em produzir
uma transformação sistémica que reforçasse a institucionalização, encorajasse o desenvol-
vimento económico, promovesse a aceitação de regras de mudança política democrática
e fornecesse um espaço autónomo reconhecido para a sociedade civil.
O que parece ser diferente sobre os crioulos de Luanda é o resultado da combinação de
factores históricos específicos, que conspiraram para os fazer parecer imutavelmente
centrais para o destino do país. De importância fundamental é a sua dominação inin-
terrupta da região de Luanda e seu interior desde o século XVI e a sua capacidade de
manter o poder económico e político. De igual modo, as suas ligações com o Brasil e
Portugal trouxeram-lhes grandes recompensas. Mais tarde, o seu acesso aos benefícios
culturais e educacionais disponíveis no regime colonial garantiu o seu predomínio em
todas as actividades sociais e políticas, para as quais tal conhecimento é uma vantagem.
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXIX
Assim, a legitimidade do MPLA não surgiu principalmente das suas credenciais na-
cionalistas, que foram contestadas violentamente em Angola, mas de um discurso e
imagem que foram construídos no cenário mundial no meio da fúria da Guerra Fria.
Esta foi ainda mais consolidada quando o regime do MPLA ganhou as eleições mul-
tipartidárias contenciosas de 1992, que lhe galardoou a legitimidade recém adquirida
de um governo eleito democraticamente. Confirmou a transformação de um partido
de vanguarda marxista-leninista para um partido de um sistema político recentemente
liberalizado, agora a gerir uma economia “capitalista”.
Não vou aqui entrar mais na discussão dos efeitos políticos da guerra, que outros
(Christine Messiant de forma mais notável) já explicaram, mas centrar-me-ei antes nas
suas implicações para a sociedade civil em Angola. O conflito civil que avassalou o país
entre 1975 e 2002 estabeleceu uma situação de guerra, que tornou possível a supressão
de qualquer opinião dissidente e de qualquer grupo social autónomo do regime. Mesmo
a Igreja Católica, que sempre tinha sido um actor importante na sociedade angolana e
apoiado a luta anti-colonial (algumas secções dentro dela), foi marginalizada durante
grande parte desse período. Outras organizações, menos enraizadas historicamente,
foram simplesmente impedidas de acesso a qualquer espaço ou expressão públicos.
Durante esse período, a sociedade civil foi concebida simplesmente em termos da pro-
jecção do MPLA, a única voz legítima contra o inimigo interno. De facto, a imposição
do controlo estatal total sobre a sociedade civil, que se seguiu à alegada tentativa de
golpe de Nito Alves em 1977, não conheceu um atenuar particular antes de 1991. O
reinício da guerra após as eleições de 1992 tornou possível a continuação de tal con-
trolo, embora com um aspecto menos repressivo.
Assim, a guerra proporcionou a justificação para um contexto em que não havia es-
paço para a expressão da sociedade “civil”, pois nessa situação o perigo do inimigo
interno triunfou sobre qualquer outra reivindicação por liberdade. A este respeito,
pode ser argumentado que um tão longo período de conflito civil, sem exemplo em
nenhum outro lugar em África (excepto no Sudão), contribuiu para criar um sistema
político entrincheirado de forma única, que não podia tolerar a expressão de qualquer
autonomia na sociedade. Isto estabeleceu práticas de actos totalitários semelhantes aos
encontrados no antigo regime soviético ou noutros regimes comunistas.
A substância destas práticas não foi alterada após a transição para um sistema político
e económico mais “liberal”, ainda que o discurso tenha reproduzido a nova ideologia
oficial. A combinação de um passado estalinista repressivo e uma história de controlo de
dissidentes em nome da guerra contra o inimigo interno, conduziu a uma abordagem à
sociedade civil que é quase ininterruptamente hostil. Ou seja, o regime não está simples-
mente habituado a uma sociedade civil que não controle — como se torna francamente
claro pelo papel conferido à Fundação Eduardo dos Santos que preside a uma sociedade
civil “oficial” extremamente rica e poderosa.
Esta situação pode parecer única em África, mas é de facto a combinação de dois pro-
cessos que são familiares ao continente. O primeiro trata-se de um sistema patrimonial
em que o governante distribui recursos públicos de modo a satisfazer/placar clientes e
manter-se no poder. A extensão da distribuição patrimonial é ditada pelo tipo de recursos
disponíveis e amplitude de apoios necessários. O segundo radica na convicção de que
não há necessidade de um espaço público autónomo para uma sociedade civil fora do
alcance do braço político do Estado. Isto deve-se a que, num sistema patrimonial, em
que as relações verticais são os pilares da política, a voz política da sociedade transita
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXXI
directamente de baixo para cima através das redes que ligam os governantes aos segui-
dores/clientes. Por definição, as redes combinam o público e o privado, o político e o
sócio-económico, de formas que passam por cima da distinção padrão entre Estado e
sociedade civil.
Uma interpretação comparativa da história recente de Angola iria reforçar o argumento
de que a guerra manifestou e agudizou uma tendência em direcção a um tipo de política
patrimonial que não tem nenhuma necessidade, ou respeito, por uma sociedade civil
tal como esta é entendida no Ocidente. No entanto, os processos envolvidos são os
mesmos que encontramos noutras partes. O que é diferente é que a natureza restritiva
do patrimonialismo de Angola e a extensão da aversão do regime a uma sociedade
civil autónoma foram exacerbadas a um grau virtualmente sem precedentes pelo ter-
ceiro factor já mencionado: a disponibilidade de vastos recursos naturais. Na maior
parte dos outros países, em que tais recursos ou não existem ou não são tão facilmente
controláveis por uma pequena elite, as exigências do patrimonialismo e a pressão da
sociedade civil são mais insistentes e não tão facilmente rejeitadas.
Foi, de facto, o acesso ao petróleo e a instrumentalização da Sonangol que tornaram
possível a consolidação da dominação da elite crioula de Luanda na forma de uma elite
presidencial restrita. A verdade é que esta clique é capaz de canalizar os rendimentos
do petróleo para a reprodução de um sistema político que garante a sua manutenção
do poder e tem consequências dramáticas para a sociedade angolana.
Em primeiro lugar, o regime tem conseguido restringir o clientelismo a um conjunto de
círculos concêntricos estreitos de clientes, entre os quais existe uma rotação constante
(reduzindo assim a possibilidade de uma oposição organizada). Possui portanto a
chave para o bem-estar de todos os que beneficiam da generosidade ou favores gover-
namentais. Em segundo, o regime não teve necessidade de satisfazer a sociedade como
um todo para assegurar apoio. A guerra obrigou todos os angolanos a escolherem:
ou ficar com o MPLA ou tornarem-se inimigos. Depois do final do conflito, a escolha
permanece rígida: apenas o MPLA detém a promessa de recompensa económica. Final-
mente, o regime tem estado suficientemente abastado para evitar os condicionalismos
internacionais do Banco Mundial e de outros e mesmo para escapar a um escrutínio
próximo das suas manipulações económicas e autoritarismo político.
Longe de ser único, o regime de Angola demonstrou como o controlo de certos recur-
sos nacionais (principalmente o petróleo) por uma elite, pode satisfazer os excessos
de práticas patrimoniais que se encontram em toda a África. Ainda que a combinação
de um sistema político patrimonial eficaz e firmemente controlado não se encontre
frequentemente no continente, a lógica desse sistema é bastante comum. Na verdade,
o facto de o regime do MPLA ser tão inexoravelmente hostil à emergência de um
espaço cívico autónomo, ou sociedade civil, prende-se com um medo fundamentado
de um desafio sério à sua base social limitada e à sua legitimidade política superficial.
O abandono insensível da sociedade, que tem sido a tónica do regime há décadas,
criou uma situação em que a população encara o apoio ao MPLA simplesmente em
termos instrumentais. A perspectiva de eleições forçou o regime a dar alguma atenção
às exigências dos eleitores, mas este não está preparado para tolerar oposição política,
ou mesmo críticas, da sociedade civil.
Quais são, então, as questões principais sobre a natureza e o papel da sociedade civil
na Angola de hoje? Ou, por outras palavras, quais são as questões que devíamos estar
XXXII Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
a colocar se queremos perceber o tipo de transição política que se supõe estar a aconte-
cer neste momento? Parece-me que há dois lados desta questão: um tem a ver com os
possíveis alicerces da sociedade civil, dada a longa história de divisão e violência em
Angola; o segundo relaciona-se com saber como pode a sociedade civil, que emergiu
no final da guerra em 2002, contribuir para uma renovação das práticas políticas no
país. É útil fazer uma distinção entre os dois, mesmo que estejam obviamente inter-
-relacionados, na medida em que há hoje uma tendência para assumir um papel para
a sociedade civil que negligencia os factores históricos, que colocam limites muito
consideráveis ao que pode ser alcançado.
Um conjunto de acontecimentos recentes combinam-se para dar a impressão de que
há em Angola uma sociedade civil emergente forte. O fim do conflito possibilitou a
organização de numerosas organizações civis, tanto nas cidades como nas áreas rurais.
As ONG internacionais têm sido relativamente livres de desenvolver as suas activi-
dades pelo país. Um grande número de empresas estrangeiras está agora envolvido
na reconstrução do país. Multiplicam-se projectos por toda a parte. A preparação para
as eleições trouxe uma atenção profunda à situação sócio-política do país. Os partidos
estão a tentar mobilizar-se. As discussões sobre o papel da sociedade civil são perma-
nentes. Muitos jornalistas e peritos estrangeiros vão ao país para avaliar a situação
e dar a sua opinião. Finalmente, a industria do petróleo está em franco desenvolvi-
mento, originando muitos rendimentos extra que se infiltram na sociedade (embora
de formas misteriosas). Vive-se um momento de consumo alargado que acompanha
o período pré-eleitoral.
Parece que Angola se está a “normalizar” — uma impressão que é reforçada pelos
símbolos de arquitectura da modernidade que agora germinam na capital. É em mui-
tas formas uma atmosfera arrebatadora, tornada ainda mais real pela promessa de
mudança incorporada pelas próximas eleições. Podemos ter esperança; talvez deva-
mos ter esperança. Contudo, um olhar mais cuidadoso à situação obriga a um maior
realismo. Não só esta leitura dos actuais acontecimentos é excessivamente optimista,
como não há bases históricas consistentes para pensar que sejam possíveis mudanças
radicais — apesar do quanto estas possam ser desejáveis. Um exame comparativo de
Angola ajuda a compreender por que razão existe muito pouco campo de manobra
para uma sociedade civil que pudesse alterar o rumo político do país. Isto não se deve
à falta de potencial, mas sim a factores históricos específicos.
A melhor forma de conceptualizar a actual situação de Angola é considerar o país num
estado de desenvolvimento apreendido — apreendido por duas razões diferentes.
Primeiro, a imposição do regime colonial formal após a Conferência de Berlim (1884-85)
colocou um fim ao processo de competição inter-étnica que estava em curso na área,
no seguimento do fim da escravatura. Esse período assistiu a enormes rupturas sócio-
-económicas e políticas, das quais resultou uma hostilidade considerável entre os povos
dos planaltos centrais, a comunidade crioula de Luanda e as populações BaKongo do
norte. O regime colonial acentuou estas divisões e simultaneamente “congelou” o ca-
rácter étnico, social e político do território nesta configuração fortemente tripartida.
É obviamente impossível saber o que teria acontecido naquela área, caso os portugueses
tivessem fracassado na colonização do território, ou caso este tivesse sido colonizado
por outra potência europeia. O que, no entanto, é certo é que o domínio português
produziu uma colónia de colonato, na qual poucas oportunidades eram oferecidas
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXXIII
aos indígenas e onde as políticas coloniais pouco fizeram para integrar as pessoas do
país de forma mais próxima. Isto deixou um legado de amargura competitiva entre os
diferentes eleitorados sócio-políticos, que foi agravado pelo movimento anti-colonial
e a guerra civil que se seguiu. Acima de tudo, e este é o ponto mais relevante aqui,
impediu o desenvolvimento de uma sociedade civil nacional após a independência.
Como resultado, as noções de identidade e as ideias de bem público não estão sufi-
cientemente disseminadas, ainda que haja um desejo universal pela paz e bem-estar.
Segundo, o legado da violência e guerra civil é pernicioso e também contribuiu para
apreender o desenvolvimento do país em moldes que não são propícios à emergência
de uma sociedade civil. Três processos confluem nesta dimensão. Um factor é que existe
agora no país um capital acumulado de hostilidade, ou ódio, que levará uma geração
a ser superado. Aparências plácidas estão a obscurecer correntes de ressentimento
mais escondidas, que podem facilmente explodir caso não se realizem as promessas
de uma vida melhor. A juntar a isto, a supressão violenta da dissidência política desde
1977 suspendeu também o fluxo livre de debate político dentro do próprio MPLA,
alimentando assim mais insatisfação.
Outro factor é um sistema político ossificado, que age como se o partido no poder ainda
tivesse justificação para se comportar como a única organização política legítima no
país. O legado da guerra serve aos que estão no poder, que mantêm que a oposição ao
MPLA é “traição”. Embora este discurso esteja presentemente abafado, é uma tranca
eficaz a muitas das actividades que podiam tornar possível a emergência de uma so-
ciedade civil mais autónoma. O último factor é que a vitória de um partido na guerra
civil conforta as perspectivas e as práticas daqueles que estavam no lado “certo” da
história. Não há nenhuma razão para o vencedor ter que ceder. Nem há nenhuma
razão pela qual deveria receber de bom grado o crescimento de uma sociedade civil
activa e autónoma.
Angola está assim num tempo indefinido enquanto tal, ainda não totalmente envolvida
na política da África pós-colonial. A este respeito, encontra-se face aos seus vizinhos
africanos de algum modo como a Polónia, Hungria ou a Checoslováquia se encontra-
vam face aos seus vizinhos da Europa ocidental na década de oitenta: semelhantes,
mas diferentes, congelados na política autoritária antiquada que já passou à história.
Claro que a diferença é que essa ordem era mantida pelo urso soviético ali ao lado,
enquanto em Angola é alcançada pelo regime presidencial — que, contudo, alguns em
Angola também encaram como “estrangeiro”. A diferença mais significativa entre os
dois casos, porém, tem a ver com a sociedade. Enquanto nos três países da Europa de
Leste, existia uma sociedade civil forte, historicamente enraizada, que foi instrumental
no derrubar dos regimes comunistas, este não é o caso em Angola.
Angola está à beira de grandes mudanças, mas não é provável que estas sejam tão ex-
tensas ou tão rápidas como muitos observadores afirmam acreditar. Enquanto o regime
se mantiver no poder, não há nenhuma razão para pensar que o actual figurino políti-
co, apesar de sensível à pressão externa, vá permitir a emergência de uma sociedade
civil forte, ou mesmo autónoma. Olhando para a experiência da África pós-colonial
como um todo, também é pouco provável que as eleições multipartidárias venham
a contribuir substantivamente para uma mudança, quer na natureza ou no papel da
sociedade civil nos próximos anos. Uma mudança de regime não é plausível devido
aos rendimentos petrolíferos, mas sem tal mudança existe pouco espaço para as OSC
agirem fora das estruturas do sistema político em vigor.
Introdução
Nuno Vidal
&
Justino Pinto de Andrade
e
3
Introdução
Nuno Vidal
(Centro de Estudos
Sociais da Faculdade
N a sequência do anterior livro publicado em 2006 e 2007
sobre o processo de transição para o multipartidaris-
mo1, os dois organizadores e co-autores decidiram preparar
de Economia da esta nova obra que aqui se apresenta, dedicada à relação entre
Universidade de Coimbra sociedade civil e política, tendo em conta o enquadramento
– CES/FEUC) regional e a dimensão internacional.
&
Justino Pinto No âmbito do processo angolano de transição para um sis-
de Andrade tema democrático multipartidário, muitas esperanças foram
(Faculdade de Economia depositadas na sociedade civil enquanto potencial força de
da Universidade Católica mudança. Desde que se iniciou o processo de transição no
de Angola - UCAN) início dos anos noventa, as chamadas Organizações da So-
ciedade Civil (OSC) foram gradualmente mostrando alguma
eficácia, abordando várias questões, política e socialmente
relevantes. No entanto, existem múltiplos constrangimentos
ao seu desenvolvimento a vários níveis — nacional, regional
e internacional —, que urge debater e ultrapassar no âmbito
do processo de democratização em Angola.
É neste contexto de necessidade de debate plural, alarga-
do, que surge a presente obra, Sociedade Civil e Política em
Angola: enquadramento regional e internacional, pretendendo
congregar não só os chamados activistas da sociedade civil
e OSC, mas também académicos, jornalistas, membros de
organizações internacionais, da comunidade doadora, polí-
ticos e opinion makers, cujo contributo se considere relevante
para a discussão.
No cômputo geral, este livro aborda os principais temas em
discussão nos meios políticos e da chamada sociedade civil
em Angola, nomeadamente a relação entre Sociedade Civil
e Política e o modo como a defesa dos Direitos Humanos
influencia as questões políticas. Foca igualmente o papel da
Comunidade Internacional em Angola (comunidade doa-
dora, organizações governamentais e não governamentais),
especialmente no que se refere ao tipo de relação estabelecida
com as OSC e o modo como se posiciona face ao governo e
aos interesses económicos internacionais em Angola.
Trata-se de um volume que congrega vários autores, sobretudo
Angolanos, mas também de várias outras nacionalidades, in-
1
Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade (eds. & orgs.) (2006 & 2007), O Processo
de Transição para o Multipartidarismo em Angola (Luanda & Lisboa: Firmamento,
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Universidade Católica
de Angola).
4 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
a que chama de perspectiva exógena — que evidencia a fraqueza das OSC angolanas
e coloca em causa a sua própria existência — e perspectiva endógena — que sustenta
o potencial da sociedade civil angolana para a mudança —, defendendo a segunda
perspectiva como a mais correcta, pese embora todas as limitações reconhecidas. O
capítulo encerra com o texto de Landu Kama que aborda problemas internos como
a falta de separação de poderes, a corrupção e o deficit de participação pública, assim
como as estratégias ligadas às plataformas da sociedade civil, a nível interno e externo,
havendo necessidade de se trabalhar num espírito de parceria e não de ingerência,
dependência e paternalismo que tem prevalecido até aqui.
O capítulo III analisa e debate o papel das Igrejas, da Juventude, das Mulheres e dos
Media enquanto propulsores do Desenvolvimento Humano. Conta com a participação
de Michael Comerford, Pedro Cardoso, Aline Afonso Pereira, Reginaldo Silva, José
Patrocínio e Paulo de Carvalho.
O texto de Michael Comerford, avalia o papel desempenhado pelas Igrejas em Angola
na promoção da paz e da democracia, através da análise e contextualização de litera-
tura e iniciativas das principais Igrejas Protestantes e da Igreja Católica, tratando-as
de forma colectiva, ao contrário do que é habitual neste tipo de análises, que preferem
separar as Igrejas Protestantes da Católica. Pedro Cardoso apresenta-nos um trabalho
sobre a relação dos jovens angolanos com a política, sustentando, entre outros aspectos,
que o olhar crítico que uma significativa franja apartidária da juventude lança sobre
o sistema político angolano é revelador de uma cidadania activa e não politizada,
exercida em actividades diárias ou em organizações da sociedade civil.
Aline Afonso Pereira, analisa a relação entre género e mercado de trabalho urbano em
Angola, no contexto da guerra e do processo de liberalização económica, defendendo,
entre outros pontos, que o processo de total integração da economia angolana no mer-
cado global com a transição para uma economia de mercado reforçou a desigualdade
de género no mercado de trabalho. Reginaldo Silva aborda a temática da liberdade
de imprensa em Angola, enquadrando-a no contexto Africano, discorrendo sobre os
limites impostos pelo poder político, as debilidades do próprio sector em Angola e a
necessidade de articulação da imprensa com objectivos de desenvolvimento económico-
-social e democracia.
José Patrocínio trata da questão da participação cívica e política da juventude angolana,
tendo por base a sua experiência de trabalho com jovens na província de Benguela,
argumentando que, ao contrário do que por vezes se defende, os jovens interessam-se
pela política, mas o grande obstáculo à sua maior participação está na falta de vontade
governamental em investir em mecanismos que facilitem esse maior envolvimento.
Este capítulo encerra com o texto de Paulo de Carvalho, que discute a questão das
desigualdades sociais em Angola e as diversas dinâmicas de fechamento e exclusão
social que impedem o desenvolvimento do país nas suas diversas vertentes, especial-
mente na mais importante — a humana.
O capítulo IV trata da dimensão internacional da relação entre sociedade civil e polí-
tica em Angola. Não obstante muitos autores em outros capítulos também incluírem
uma abordagem a este tema, os textos deste capítulo são especializados nesta área.
Conta com a participação de Lopo do Nascimento, David Sogge, Bob van der Win-
den, René Roemersma, Kristin Reed, Mónica Rafael Simões, Fernando Pacheco e
Manuel Paulo.
6 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Lopo do Nascimento abre o capítulo com um texto que discute a situação da África
sub-sahariana à luz não só das práticas governativas, mas também dos modelos de de-
senvolvimento e das políticas de cooperação externa. A partir daquele enquadramento,
analisa as novas relações económicas de África com os países asiáticos e as alterações
daí decorrentes para as relações com os EUA e a Europa, assim como o impacto dessas
alterações ao nível da sociedade civil, da democracia e da erradicação da pobreza;
sublinha a importância de uma abordagem regional e global para o desenvolvimento
do continente. David Sogge, Bob van der Winden e René Roemersma, analisam
aquilo que vão designar de domínios e arenas civis em Angola, argumentando que
os domínios civis e o que neles acontece não são hoje em dia decisivos na política an-
golana a nenhum nível, devendo-se apostar num conjunto funcional de instituições
políticas formais, espaço público para a vida associativa e um Estado com capacidade
de resposta em serviços públicos que funcionem bem sob pressão dos eleitores.
Kristin Reed, disseca o impacto da exploração de petróleo no Soyo através dos relatos
dos pescadores e dos camponeses que se centram em temas de inclusão, identidade,
protesto contra a exclusão dos benefícios do petróleo, objecção à poluição das zonas
pesqueiras e lavras e à destruição dos modos de vida e sobrevivência tradicionais. O
texto de Mónica Rafael e Fernando Pacheco apresenta-nos uma leitura das relações da
sociedade civil angolana com o Estado e com a comunidade internacional de doadores,
procurando explicar de que forma o factor externo (ajuda e importância geo-estratégica
do país) influenciaram as dinâmicas da sociedade civil em Angola.
Anacleta Pereira centra a sua análise nas relações entre OSC internacionais e nacionais,
aponta várias deficiências e insuficiências naquelas relações, referindo-se também às
questões intergovernamentais que as afectam, apontando para a necessidade de arti-
culação com vista a um exercício de pressão sobre estruturas governativas nacionais e
internacionais para a democratização. O capítulo termina com o texto de Manuel Paulo
dedicado a um tema muito em voga, a responsabilidade social das empresas, discutindo
a sua aplicação ao contexto angolano, especialmente no que se refere ao sector extractivo
das multinacionais do petróleo.
A encerrar o livro temos o Capítulo V que faz o enquadramento regional da temática
geral da obra, trazendo à discussão os casos da África do Sul, Zimbabué, Namíbia,
Malawi, Botswana, Moçambique, Zâmbia e República Democrática do Congo.
Dale McKinley abre o capítulo argumentando que doze anos depois do chamado “mi-
lagre” sul-africano de 1994 o país é caracterizado por desigualdades sócio-económicas e
pobreza crescentes, um sistema de saúde e educação em crise. A memória histórica e o
poder simbólico da luta de libertação permitem ao ANC vincular os pobres à sua própria
opressão. Às OSC mais conscientes politicamente e independentes depara-se-lhes a opção
de traçarem um novo caminho de luta pela solidariedade colectiva. Lloyd Sachikonye
analisa o papel das OSC no contexto da luta alargada por uma maior democratização no
Zimbabué, sendo que a experiência das OSC mostra os riscos inerentes ao envolvimento
em campanhas democráticas activas com ligações a um movimento da oposição para
resistência ao autoritarismo.
Henning Melber apresenta-nos o caso da Namíbia, realçando a permanente conquista
e consolidação do poder e controlo político pelo antigo movimento de libertação – Swa-
po. Algumas OSC, ao promoverem a justiça social e os Direitos Humanos, abraçam as
grandes causas da democracia, enquanto os partidos políticos, as Igrejas, o movimento
Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade e Introdução 7
laboral e o sector privado, têm muitas vezes sido uma decepção nesse papel. Fidelis
Kanyongolo sustenta que apesar das oportunidades abertas pela democratização e pelo
novo quadro legal de 1994, a sociedade civil do Malawi não tem sido capaz de realizar
o seu potencial. Para além de constrangimentos políticos e organizacionais, existem
outros ao nível da distribuição da população entre áreas urbanas e rurais, assim como
o analfabetismo em inglês e a prevalência da lei tradicional e costumeira.
A análise apresentada por Badala Balule caracteriza a sociedade civil do Botswana
como frágil, facto que a tem impedido de influenciar eficazmente o poder político. Esta
fragilidade dever-se-á à falta de competências e à dependência em relação a fundos do
governo depois do abandono dos doadores internacionais. Manuel de Araújo e Raúl
Chambote, reflectem sobre o contributo das OSC moçambicanas para o processo de
desenvolvimento sócio-político do país desde 1990 (início do processo de democrati-
zação), notando que a actuação destas organizações se caracteriza pelo enorme peso
do factor externo e pelo incómodo causado ao poder político, factos que representam
os maiores desafios ao seu desenvolvimento.
Rueben Lifuka e Lee Habasonda procuram demonstrar que o desenvolvimento da
sociedade civil na Zâmbia tem sido um factor de encorajamento ao pluralismo, res-
ponsabilização e minimização do patrimonialismo político, influenciando o rumo da
política e da governação, favorecendo a democratização do Estado. A encerrar o capítulo,
Jean-Claude Katende defende que mau-grado todos os constrangimentos impostos pelo
poder governamental, a sociedade civil permanece ambiciosa e nela reside uma forte
esperança para a efectiva implementação dos direitos fundamentais e da democracia.
O principal desafio e obstáculo às OSC reside precisamente na sua difícil relação com o
poder político que procura dificultar a sua acção, manipulando e coagindo, especialmente
as OSC que têm preocupações públicas e consciência política.
Com esta breve apresentação da estrutura do volume pretendemos dar uma ideia
dos temas tratados pelos diferentes autores, devendo no entanto ser aqui realçado
que tal apresentação não constitui um resumo ou sequer uma síntese dos trabalhos
mencionados, mas apenas um pequeno e limitado conjunto de chamadas de atenção
para os temas desenvolvidos e que, estamos convencidos, aguçarão a curiosidade e
o interesse do leitor.
Uma última nota para referir que os pontos de vista e argumentos apresentados
nos textos constantes da presente obra são da inteira responsabilidade dos seus
respectivos autores e em momento algum poderão ser imputados às instituições
promotoras, organizadoras e apoiantes do livro.
Capítulo I
A Sociedade Civil e a Política
em Angola
Textos
Nuno Vidal
&
Justino Pinto de Andrade
f
11
Introdução
Nuno Vidal
Centro de Estudos
Sociais da Faculdade
A quando da independência, um processo lento mas pro-
gressivo e contínuo instala-se em Angola levando à de-
gradação da consciência pública e da solidariedade social, assim
de Economia da como à decadência dos sectores sociais que delas dependem
Universidade fortemente — educação, saúde, habitação, assistência social,
de Coimbra serviços comunitários. Uma lógica patrimonial distributiva vai-
-se disseminando a coberto de um formato dito Socialista, domi-
nando e pervertendo quaisquer princípios de colectivismo e de
consciência pública, tirando vantagem do monopartidarismo e
do autoritarismo para se impor de forma mais eficaz, afectando
essencialmente as camadas mais desfavorecidas. A maioria da
população foi gradualmente excluída dos benefícios derivados
dos recursos públicos à medida que perdia importância polí-
tica e económica no seio do sistema. Politicamente não tinha
mecanismos para expressar o seu descontentamento (votos ou
liberdade de expressão e manifestação), economicamente o seu
esforço produtivo era irrelevante para o rendimento do Estado
e para o sustento das elites governantes.
Independentemente da ideologia oficialmente professada e
contrariamente ao que por vezes se defende, esta dinâmica
tem lugar ao longo das duas administrações ditas Socialistas
(1975-1979 e 1979-1987) e vai continuar a desenvolver-se inabalá-
vel durante o processo de transição para o multipartidarismo.
No final dos anos oitenta e início dos anos noventa, a transi-
ção para o multipartidarismo e a economia de mercado trouxe
ao país um largo número de organizações internacionais,
desde organizações internacionais governamentais, a ONG,
organizações de Igrejas, de assistência e solidariedade, etc.
Redes transnacionais juntaram activistas expatriados, comu-
nidades locais e uma elite intelectual angolana marginaliza-
da, incluindo quadros médios e superiores. Unindo esforços,
começaram a trabalhar com as populações mais carenciadas
de apoio social e acabaram a assumir um crescente número
de responsabilidades do Estado nos sectores sociais, na área
da saúde, educação, saneamento básico, habitação, apoio a
deslocados internos de guerra e desenvolvimento rural. Esta
dinâmica foi reforçada pela “liberdade” civil e política trazida
1
Trabalho de investigação realizado com o apoio da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, Ministério da Ciência e Ensino Superior.
12 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
bitação, assistência social, serviços comunitários, etc.). Este empenho ganhou um impulso
acrescido com a chegada progressiva de centenas de cooperantes cubanos formados nestas
áreas (especialmente saúde e educação), dando um contributo precioso em termos de ca-
pacidade de gestão e organização2. Contudo, depois de uma fase inicial em que de facto
o governo mostrou alguma preocupação com estes sectores, promovendo programas e
despendendo verbas significativas nestas áreas, no fim da presidência de Agostinho Neto
já eram notórios vários sinais de contracção de despesas, conduzindo ao estrangulamento
de muitos daqueles projectos na generalidade dos sectores, iniciando um percurso de
degradação e negligência que se acentuará na administração subsequente.
Educação
A educação foi uma das prioridades do novo governo e nos primeiros anos de inde-
pendência foram implementadas com sucesso várias medidas de desenvolvimento do
sector. Houve um ingresso massivo de crianças nas primeiras quatro classes3 e foram
feitos grandes esforços no domínio da educação de adultos, especialmente no que
respeita aos veteranos das FAPLA, operários e camponeses, tendo sido alfabetizadas
cerca de 330 000 pessoas entre 1976 e 19794. Cerca de 759.000 alunos, de um total
estimado de 1.690.000 de adultos analfabetos, foram inscritos em 37.000 turmas de
alfabetização5. Foi implantado um sistema de educação integral técnico-profissional
a par do sistema de ensino superior6.
Contudo, entre 1979 e 1981, o número de crianças a estudar no ensino primário mante-
ve-se o mesmo7, o número de alfabetizados apenas aumentou em 9000 pessoas8 — um
número insignificante quando comparado com os anteriormente referidos 330.000 e
com a taxa de analfabetismo de 80% por altura da independência9. Dos 2.000 alunos
universitários inscritos em 1980 somente 180 finalizaram os seus cursos e o número
de inscritos nas aulas de alfabetização caiu dos anteriores 759.000 para 100 000 10. Es-
tes dados constituíam sinais claros de que o sector da educação começava a regredir,
numa tendência que se acentuará nos cinco anos seguintes, tal como virá mais tarde
a admitir o relatório do Comité Central ao II Congresso, em Dezembro de 198511.
Saúde
Ao nível do sector da saúde, contando com a colaboração dos médicos estrangeiros
(essencialmente cubanos, cujo número aumentou em 16,5% entre 1977 e 1980)12, o
2
Em 1977 estes cubanos eram contabilizados em cerca de 5000; Le Monde, de 9 de Novembro de 1977; também Africa
Contemporary Record – ACR, 10, 1979, p. B510.
3
Em 1979 o n.º de alunos era de 2 400 000 de crianças, quatro vezes superior ao que existia em 1973; Relatório do
Comité Central ao I Congresso Extraordinário do Partido, realizado em Luanda de 17 a 23 de Dezembro de 1980 (Luanda:
Secretariado do Comité Central, 1980), p. 80.
4
Relatório do Comité Central ao I Congresso Extraordinário … op. cit., p. 80.
5
Formaram-se 70.000 professores de alfabetização e constituíram-se 615 brigadas de alfabetização, compostas por
4.950 jovens voluntários; ACR, 14, 1983, p. B590.
6
Foi inaugurada a Faculdade de Ciências Jurídicas e Administrativas e o Instituto Superior de Ciências da
Educação. Em 1980, estudavam no ensino universitário cerca de 2000 alunos; Relatório do Comité Central ao I Congresso
Extraordinário… op. cit., pp. 80–81.
7
ACR, vol. 13, 1981, p. B651.
8
ACR, vol. 14, 1982, p. B590.
9
Somerville, Keith, Angola: Politics, Economics and Society, (London: Frances Pinter, 1986), p. 91; também Bhagavan, M
R, Angola’s political economy 1975–85 (Motala: Swedish International Development Authority, 1986), p. 9.
10
Relatório do Comité Central ao II Congresso do Partido, realizado em Luanda de 2 a 10 de Dezembro de 1985 (Luanda:
Edição do Secretariado do Comité Central, 1985), pp. 120–122.
11
Relatório do Comité Central ao II Congresso… op. cit., pp. 120–122.
12
Relatório do Comité Central ao I Congresso Extraordinário... op. cit., p. 81; também ACR, vol. 13, 1981, p. B651.
14 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
governo colocou a funcionar sob sua tutela 1260 unidades de saúde, das quais se des-
tacavam o Centro Hospitalar de Luanda13. Várias campanhas de vacinação gratuita
de crianças eram lançadas todos os anos14. Começou-se a desenvolver a assistência
extra-hospitalar, criando-se alguns centros e postos de saúde, especialmente no campo
e áreas suburbanas e implementou-se um projecto de formação de quadros paramé-
dicos (enfermeiros, parteiras e outros técnicos). 15
Contudo, a exemplo do que aconteceu com a educação, a contracção de recursos
financeiros e materiais, a par das dificuldades de transporte para as províncias e da
falta de coordenação entre sectores de importação e distribuição de medicamentos16,
ditaram a rápida regressão dos breves sucessos alcançados no sector durante os três
primeiros anos de independência17.
Habitação
A habitação tornou-se num dos mais sérios problemas sociais do novo Estado. Depois
da independência, as casas e apartamentos deixados vagos pelos portugueses que de-
bandaram para Portugal foram em parte confiscados para alojar a nova classe dirigente
e, em parte, ocupados pela generalidade da população que vivia nessas cidades em
áreas degradadas ou menos nobres (com clara prioridade para a classe média urbana).
Apesar desse movimento de ocupação, a procura por habitação foi aumentando devi-
do a diversos factores, nomeadamente o fluxo migratório de populações rurais rumo
às cidades (em consequência da guerra que afectou de sobremaneira o meio rural),
a chegada de um crescente número de assessores e quadros militares estrangeiros (a
maioria dos quais cubanos18) e o treino de novos quadros do Estado que exigiam ser
condignamente alojados19.
Para os estratos sociais mais baixos e que chegavam em número crescente à capital,
vindos das áreas rurais, a solução estava naturalmente na ampliação e construção de
novos musseques, que alastraram vertiginosamente em redor das cidades, especialmente
em Luanda, num processo que se iniciou em 1976/7720 e se acentua até hoje. Entre
os primeiros grupos a chegar em números significativos à capital encontravam-se os
Bakongo retornados do Zaire — contabilizados em cerca de 200.000 logo em 1977.21
13
O Centro Hospitalar de Luanda era constituído por 8 hospitais, 16 centros provinciais, 32 hospitais municipais,
16 centros materno-infantis, 16 leprosarias e 6 sanatórios anti-tuberculose; Relatório do Comité Central ao I Congresso
Extraordinário... op. cit., 1980, p. 81; também ACR, 13, 1982, p. B651.
14
A título de exemplo, para assinalar o Dia Mundial da Saúde (7 de Abril de 1977), 1,5 milhões de crianças foram
vacinadas contra a poliomielite; ACR, 10, 1979, p. 508.
15
Relatório do Comité Central ao I Congresso Extraordinário... op. cit., 1980, p. 81.
16
Graves falhas na distribuição de medicamentos emergiram um pouco por todos o país, tal como relatado em “Principais
resultados do desenvolvimento económico-social da RPA no triénio 1978-1980”, in Orientações Fundamentais para o
Desenvolvimento Económico e Social para o período 1981-1985 (Luanda: Secretariado do Comité Central, 1980), p. 25.
17
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, pp. 123–125; também relatando problemas no sector da
saúde está o artigo de David Lamb no Los Angeles Times, de 3 de Dezembro de 1978; ver no mesmo sentido Herald
Tribune, de 6 de Dezembro de 1978.
18
O número oficial de militares cubanos não foi tornado público, mas estimava-se que em 1978 fosse de 19.000; in
ACR, vol. 11, 1980, p. B493. Tal como referido, logo em 1977, o número de cubanos civis em Angola ao abrigo de
acordos de cooperação (económicos, científicos, culturais, técnicos, etc.) era de 5.000; Le Monde, de 9 de Novembro
de 1977; também ACR, 10, 1979, p. B510.
19
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism in Africa: the genesis and development of the Angolan political-economic system,
1961-1987 (London: King’s College, 2002), a PhD thesis.
20
ACR, 15, 1984, p. B597; estamos obviamente a falar da expansão e construção de novos musseques, porque tal
como é sabido, os musseques existem desde o período colonial.
21
Bhagavan, M R, Angola’s… op. cit., p. 24.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 15
22
“Principais resultados do desenvolvimento económico-social da RPA no triénio 1978-1980”… op. cit., p. 25.
23
“Principais resultados do desenvolvimento económico-social da RPA no triénio 1978-1980”… op. cit.
24
UNHCR publication, (5 October 1977), p. 2; também ACR, 14, 1983, p. B590.
25
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism in Africa… op. cit., pp. 230-231.
26
UNHCR publication, (5 October 1977), p. 2; O UNHCR reuniu uma quantia de US$1.2 milhões para o seu programa
de emergência de 1977 e mais 4,1 milhões para financiar a fase de alívio de 1978. Um programa de assistência de
longo prazo seguir-se-ia; Ibid., p. 2.
27
ACR, 14, 1983, p. B590. O início da ajuda humanitária em Angola data desta altura e vai acentuar-se fortemente
no primeiro quinquénio de 1980, muitos anos antes de 1987 – data indicada em Messiant, Christine (2001) “A propos
des ‘transitions démocratiques’ notes comparatives et préables à l’analyse du cas angolais”, in Revista Africana Studia,
n.º 2, Universidade do Porto, p. 84, nota de rodapé 54.
28
ACR, 14, 1983, p. B590.
29
Relatório do Comité Central ao I Congresso Extraordinário... op. cit., 1980, pp. 93-94.
16 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Serviços Comunitários
Ao nível dos serviços comunitários, paralelamente às responsabilidades principais
atribuídas aos comissariados provinciais (actuais governos provinciais), várias tarefas
foram acometidas aos grupos da Organização de Defesa Popular (ODP). Além da sua
natureza de força para-militar, estes grupos assumiam tarefas de serviço comunitário
nas respectivas províncias, comunas, bairros e povoações (reparação e conservação
de escolas, hospitais, estruturas viárias, de saneamento básico, etc.). Para além das
ODP e dos comissariados, nos primeiros anos de independência (1975-1977), eram
relativamente comuns os apelos governamentais/partidários ao trabalho cívico vo-
luntário em dias específicos do mês para limpeza de ruas; estas actividades tiveram
inicialmente alguma adesão e sucesso30.
No entanto, logo em 1978, tanto os comissariados, como a ODP, como as actividades
voluntárias, começaram a revelar-se ineficazes e os serviços comunitários entraram
em acentuada degradação, nas províncias e na cidade capital. Em 1978, Luanda era
descrita como tendo caído “num esfarrapado e sujo estado de degradação”, “em deca-
dência, com lixo e entulho em ruas esburacadas”, com uma “crónica e cada vez mais
acentuada falta de água, electricidade, saneamento básico, escoamento de esgotos e
recolha de lixo” 31.
Em suma e no conjunto, a análise dos sectores sociais durante a presidência de Agosti-
nho Neto revela uma preocupação inicial e empenho efectivo do governo e do partido,
que nesse sentido desenvolvem medidas concretas. No entanto, antes mesmo da sua
morte (Setembro de 1979), os primeiros sinais de regressão nestes sectores começaram
a emergir. A questão que se coloca é a de saber porquê?
A resposta padrão é de que tal situação se deveu ao esforço de guerra e ao aumento da
importação de bens de consumo e de equipamento (e esse foi em parte o argumento
oficial utilizado32). Contudo, se tal aumento de despesas deve ser reconhecido, não pode
ser assumido como a principal razão para o súbito colapso (final de 1977 e 1978) por três
razões principais. Primeiro, aquele período também coincidiu com o aumento da produ-
ção de petróleo em Angola e com o dramático aumento do preço do barril de crude (de
US$12 o barril em 1974 para US$28 em 1979)33, representando um rendimento médio de
cerca de 1 bilião de US$/ano entre 1975 e 198034. Segundo, as despesas com armamento
permaneceram relativamente constantes nos finais da década de setenta (em torno de
US$500 milhões por ano) e somente aumentaram significativamente no início dos anos
oitenta35. Por fim, aqueles serviços não dependiam exclusivamente do Estado, apoiando-
-se também e significativamente no trabalho voluntário e no empenho comunitário da
população em geral. Assim, uma diferente explicação deve ser procurada36.
30
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism in Africa… op. cit., pp. 231-232.
31
Relatado por David Lamb ao Los Angeles Times, de 3 de Dezembro de 1978, também no mesmo sentido ver artigo
em The Sunday Telegraph, de 25 de Junho de 1978.
32
Acerca do uso do argumento da guerra para justificar o insucesso em alcançar vários objectivos sócio-económicos
para o triénio de 1977-1980 ver Relatório do Comité Central ao I Congresso Extraordinário... op. cit., 1980, p. 83.
33
Shell Bulletin SBS (1986).
34
Hodges, Tony, Angola from Afro-Stalinism to Petro-Diamond Capitalism (London: James Currey, 2001), p. 2.
35
Collelo, Thomas (ed.), Angola, a Country Study (Washington: Federal Research Division, 1991), p. 234.
36
Mesmo abordando o impacto da guerra de um ponto de vista estritamente económico, a guerra per se não explica
o declínio da produção, tal como explicado por Ferreira, Manuel Ennes, A Indústria em tempo de Guerra (Angola,
1975–91) (Lisboa: Edições Cosmos/IDN, 1999) ou Ferreira, Manuel Ennes, “Angola: conflict and development,
1961-2002” in The Economics of Peace and Security Journal, Vol. 1, N.º 1, 2006, pp. 25-29.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 17
37
Vidal, Nuno “Multipartidarismo em Angola” in Vidal, Nuno & Pinto de Andrade, Justino (eds.), O processo de
transição para o multipartidarismo em Angola (Luanda e Lisboa: Firmamento, 2006), pp. 11-57.
38
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism in Africa… op. cit., pp. 224-226; ver também Messiant, Christine, “Angola, les
voies de l’ethnisation et de la décomposition — I — de la guerre à la paix (1975–1991): le conflit armé, les interventions
internationales et le peuple angolais”, in Lusotopie, 1 (1994) pp. 155–210, especialmente p. 169; também Messiant,
Christine, “MPLA et UNITA, processus de paix et logique de guerre”, in Politique Africaine, 57 (1995) p. 46; Messiant,
Christine, “Angola: entre guerre et paix”, in Marchal, Roland and Messiant, Christine, Les chemins de la guerre et la
paix: fins de conflit en Afrique orientale et australe (Paris: Karthala, 1997), p. 169; também Heywood, Lynda, Contested
Power in Angola, 1840’s to the Present (New York: University of Rochester Press, 2000), p. 152.
39
Não é aqui possível explicar o fenómeno politico e sociológico dos comités de jovens e o impacto da tentativa de
golpe de 27 de Maio de 1977; para uma explicação mais acurada ver Mabeko-Tali, Jean-Michel, Dissidências e poder
de Estado: o MPLA perante si próprio (1962-1974), 2 volumes (Luanda: editorial N’Zila, 2001); também Vidal, Nuno,
Post-modern patrimonialism in Africa… op. cit., chap. 5.
40
A este respeito ver por exemplo, Carreira, Iko, O Pensamento estratégico de Agostinho Neto (Lisboa: Dom Quixote, 1996),
p. 148. Também apoiando o mesmo argumento de uma diferente concepção de independência entre os estratos sócio-
económicos mais baixos, baseada essencialmente nas expectativas de distribuição de benefícios materiais, está Daniel
Chipenda numa entrevista pública à Rádio Nacional de Angola, programa Foi há vinte anos, de 17 de Junho de 1995.
18 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
que tem de resolver os seus problemas; se estes só puderem ser resolvidos através de
“esquemas” então que cada um tente arranjar os seus…41 [meu negrito].
Na maioria dos casos os esquemas consistiam em encontrar rendimentos alternativos por
via da produção para, ou articulação com, o mercado paralelo ou informal, levando ao
absentismo e falta de pontualidade nos locais oficiais de trabalho. Começaram de igual
modo a verificar-se uma série de desvios de bens do mercado oficial para o informal, assim
como a venda de serviços públicos. Estas práticas alastravam e envolviam também diri-
gentes e responsáveis, conforme atestam os próprios documentos do partido que fazem
o balanço da primeira administração Socialista:
Considerando que o roubo, a candonga, a especulação e a delapidação dos bens sociais
constituem práticas anti-económicas (…); Considerando a prática individual ou or-
ganizada em redes de desvios e de roubos nos portos e aeroportos e caminhos de ferro,
fábricas, armazéns e lojas, o armazenamento de bens desviados e roubados para alimentar
os mercados paralelos ilegais, a utilização especulativa dos meios de transporte priva-
dos e mesmo estatais, a venda especulativa de bens alimentares e bens industriais em
mercados legais e ilegais, nas ruas e em domicílios; a aquisição de bens para revenda a
preços especulativos (...) a venda especulativa de bens alimentares de produção caseira;
a destruição dos bens do povo, nomeadamente dos meios de transporte, sem a devida
sanção dos infractores; (…) Considerando que estas situações se agravam dia após dia
pela corrupção, pelo proteccionismo e liberalismo de dirigentes e responsáveis, pela ino-
perância dos mecanismos de prevenção e repressão e pela falta de controlo generalizado
sobre os bens do povo; (…) Considerando que a situação acima mencionada, que mostra
tendência para a generalização, afecta necessariamente a situação de classe das massas
trabalhadoras (…). O congresso chama especial atenção para a necessidade de punir em
especial os dirigentes, responsáveis, técnicos, agentes da Defesa e Segurança e todos os
trabalhadores do sector estatal em geral, que pratiquem, encubram ou sejam cúmplices,
ou por qualquer outra forma estejam ligados às práticas contra-revolucionárias objecto
da presente resolução42.
Estes começam a ser sinais claros de diluição da consciência pública. O resultado ime-
diato manifestou-se no declínio progressivo nos sectores sociais durante o período de
1977-1979. Consequentemente, não só se deterioraram as condições de vida da maioria
da população (ao nível da educação, serviços de saúde, habitação, segurança social
e serviços comunitários), como também se agravaram as perspectivas das gerações
subsequentes em termos de progressão profissional e sócio-económica (sujeitas a
uma menor esperança média de vida, que continuou a regredir até aos dias de hoje,
e a uma falta de oportunidades de ascensão social por via da educação). A médio e a
longo prazo, tal declínio significou uma crescente fragilidade económica e social pa-
ra os estratos mais baixos da população (a maioria), ou seja, todos aqueles que mais
necessitavam de apoio social.
41
Zenha Rela, José Manuel, Angola entre o presente e o futuro (Lisboa: Escher, Agropromotora, 1992), p. 53.
42
Resoluções e Mensagens do I Congresso Extraordinário do MPLA-PT, (Luanda: Secretariado do Comité Central, 1980)
pp. 39-41; ver no mesmo sentido, “Principais resultados do desenvolvimento económico-social da RPA no triénio
1978-1980”… op. cit.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 19
Educação
A educação declinou claramente em relação aos sucessos iniciais dos primeiros anos
da independência:
apesar dos esforços desenvolvidos, verificou-se uma baixa rentabilidade do sistema de
educação e ensino (...) O processo de alfabetização, que tantos êxitos alcançou nos pri-
meiros anos da independência, apresenta também sintomas de regressão44
Saúde
Os serviços de saúde também se deterioraram rapidamente com reflexos imediatos
ao nível do aumento da propagação de doenças:
A deterioração acentuada que se verificou na 1.ª fase do quinquénio traduziu-se numa evo-
lução negativa dos indicadores disponíveis, nomeadamente o de cobertura sanitária (...)
assim como dos indicadores de morbilidade das principais doenças transmissíveis45.
Habitação
O sector da habitação estava estagnado e incapaz de fazer face à procura:
É um facto que sem a construção de novas habitações e sem o acabamento dos edifícios
herdados em fase de construção, não é possível resolver o problema da habitação; por
outro lado, os imóveis já habitados, nomeadamente os que são património do Estado, não
têm beneficiado da manutenção regular, constatando-se mesmo uma certa degradação,
o que torna a situação ainda mais complexa46
Assistência Social
Apesar da substancial ajuda internacional, o governo era incapaz de financiar e im-
plementar as suas políticas no que se refere às populações deslocadas e à integração
de populações regressadas:
43
Ainda que oficialmente a adesão a um sistema de economia de mercado e multipartidarismo tenha sido somente
aprovada em 1990 (III congresso do MPLA), o início desse processo de mudança poderá ser encontrado em 1987, ver
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism… op. cit.; o mesmo é reconhecido por outros autores, ver também neste sentido
Messiant, Christine, “À propos des ‘transitions démocratiques’, notes comparatives et préalables à l’analyse du cas
Angolais”, in Africana Studia, 2 (2000), pp. 61–95; também Hodges, Tony, Angola from Afro-Stalinism… op. cit.
44
Relatório do Comité Central ao II Congresso… op. cit., p. 121. De acordo com Mohanty, “De 1980 a 1985 houve um
decréscimo no n.º de alunos no ensino primário (10% anualmente) e no n.º de professores (14% anualmente) em
média”; Mohanty, Susama, Political Development and Ethnic Identity in Africa, a study of Angola since 1960 (London:
Sangam Books, 1992), p. 209. No período de 1980 a 1985, a educação representou 2% dos gastos totais em divisas
do país; Ibid. p. 209.
45
Relatório do Comité Central ao II Congresso… op. cit., p. 123. “a Saúde, como a educação, correspondem a 2% do total
de divisas do país gastas durante 1980-85”; Mohanty, Susama, Political Development… op. cit., p. 209.
46
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 128.
20 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Serviços Comunitários
Quanto à decadência dos serviços comunitários ligados aos comissariados, o relatório
simplesmente admitia que:
(…) não foram, durante o quinquénio, providos dos meios necessários à sua actua-
ção48
Este panorama geral de deterioração dos sectores sociais (numa altura de graves ne-
cessidades face ao agravamento das condições sócio-económicas e à intensificação da
guerra) teve efeitos imediatos e dramáticos nos estratos sócio-económicos mais baixos,
não só nas áreas rurais (onde 500 a 700 mil deslocados internos se encontravam numa
situação de necessidade crítica de assistência social49) mas também nas áreas urbanas,
onde existia uma necessidade desesperada de água potável50 e de limpeza das ruas e
onde os sistemas de saneamento básico haviam simplesmente entrado em colapso51.
Doenças como a febre-amarela e a cólera reapareceram de forma assustadora. Em 1985,
a cólera foi responsável pela morte de 4.000 pessoas só na cidade de Luanda52 e cerca
de uma em cada quatro crianças morria53.
O principal argumento oficial utilizado para justificar tal colapso voltava a basear-se
na difícil situação financeira resultante do crescente esforço de guerra:
A actividade no domínio social durante o quinquénio reflectiu as dificuldades mais
gerais da situação político-militar e da evolução económico-financeira, e foi também
afectada pelas limitações orçamentais, cambiais e de investimentos que tiveram de ser
tomadas54
De facto, as despesas com armamento duplicaram em 1980 (aumentando para mais
de US$1 bilião55) e em 1983 estimava-se que Angola havia gasto cerca de 50% das
47
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 125.
48
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 128.
49
De acordo com as Nações Unidas em 1985, “Estima-se que mais de 500.000 pessoas se encontram em situação de
necessidade crítica de assistência, sobretudo nas províncias do Norte, Centro e Sul (…) Muitas pessoas deslocadas
estão em grave necessidade de roupa, cobertores e abrigo; Africa Emergency – UN Office for Emergency Operations
in Africa, de Junho de 1985. Sob o clarificador título de “Les stigmates d’un effondrement”, Jean-Claude Pomonti
relatava que ‘‘O Comité Internacional da Cruz Vermelha, que dispõe de informação local, estima a situação como
‘muito grave’. No planalto central (...) encontra-se a maioria das 467.000 ‘pessoas deslocadas’ segundo os cálculos
oficiais angolanos. De facto, outras fontes dão conta, para o conjunto do território, de 700.000 refugiados do interior,
ou seja, cerca de um habitante em cada dez’’; Le Monde, de 28 de Janeiro de 1981.
50
Artigo de Jean-Claude Pomonti sob o título de “Les stigmates d’un effondrement”, Le Monde, de 28 de Janeiro de
1981; o mesmo problema de falta de água é relatado por Quentin Peel, Financial Times, de 14 de Setembro de 1981.
51
Artigo de Jean-Claude Pomonti sob o título de “Les stigmates d’un effondrement”, Le Monde, de 28 de Janeiro de 1981;
também realçando a situação de sujidade e decadência de Luanda está o relatório de Michael Holman, Financial Times,
de 21 de Junho de 1982. Referindo-se a 1982, uma descrição destes problemas pode também ser encontrada no romance
de Pepetela, A Geração da Utopia (Lisboa: Dom Quixote, 1992), pp. 212-213, 234, 236-237.
52
De acordo com técnicos ocidentais da ajuda, “foi um milagre que não tivessem morrido mais pessoas”; artigo de
Paul Betts, Financial Times, de 21 de Setembro de 1987.
53
Africa Emergency – UN Office for Emergency Operations in Africa, June 1985.
54
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 120.
55
Até então aquela despesa tinha-se mantido estável (em torno dos US$500 milhões por ano no final da década de
1970); Collelo, Thomas, ed., Angola,… op. cit., p. 234.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 21
suas receitas em divisas com a defesa56. Contudo, tal explicação não pode ser tomada
à letra, porque o próprio relatório acabava por contradizê-la, uma vez que apesar de
reconhecer a situação caótica nessas áreas estabelecia como principal objectivo, para a
futura política social, uma redução dos gastos, tendo por base o argumento de que:
[Foram] tomadas algumas medidas e outras estão em estudo para diminuir a dependência
destes sectores do Orçamento Geral do Estado e para que os utentes e beneficiários atribuam
o valor devido a alguns serviços que o Estado lhes proporciona57
Por outras palavras, a negligência do governo em relação aos sectores sociais (afectando
essencialmente os pobres) passaria a ser a norma, independentemente de quaisquer
possíveis aumentos nas receitas do Estado ou diminuição das despesas — desta forma
quebrando qualquer relação futura entre política social e rendimento do Estado. Deste
modo a questão óbvia é a de saber porquê?
Da perspectiva das elites governantes, a resposta aqui fornecida está relacionada com
a tendência já verificada durante a presidência de Agostinho Neto: os estratos sociais
mais afectados pela negligência das políticas sociais tinham cada vez menos significado
económico e político. Economicamente, as elites governantes eram mais autónomas que
nunca em relação ao esforço produtivo das “massas”. Politicamente, praticamente já não
existiam mecanismos formais por meio dos quais a população pudesse expressar a sua
insatisfação para com o governo, dado o domínio do partido único num regime com
fortes mecanismos autoritários, repressivos e elitistas e que de 1982 em diante passou
a ser estreita e pessoalmente controlado pelo Presidente58. Para além do mais, o regime
poderia sempre contar com algum apoio político de vastas franjas populacionais (es-
sencialmente camadas urbanas sócio-culturalmente identificadas com o MPLA), devido
ao medo e à ameaça representada pela UNITA, cada vez mais activa do ponto de vista
militar numa guerra a assumir tonalidades étnicas reforçadas nos anos oitenta.
Por outro lado, tal como já se tinha tornado óbvio no final da presidência de Neto,
existiam vários doadores internacionais dispostos a financiar iniciativas e programas
sociais para salvar as pessoas da fome e das doenças. Assim, o governo intensificou
os seus pedidos de ajuda internacional durante os primeiros cinco anos da década de
oitenta, tendo recebido respostas positivas de vários países e organizações, nomea-
damente: UNDP, UNHCR, UNICEF, FAO, WFP, UNESCO, ILO, WHO, assim como
das agências de desenvolvimento e cooperação dos países Nórdicos e ocidentais, da
Comunidade Económica Europeia59 e da Cruz Vermelha Internacional (que desde 1981
56
ACR, vol. 15, 1984, p. B594.
57
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 120.
58
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism… op. cit., cap. 10; também Vidal, Nuno, “The Angolan regime and the move to
multiparty politics”, in Chabal, Patrick & Vidal, Nuno, Angola, the weight of history (London: Hurst, 2007), pp. 124-174.
59
“A RPA tem beneficiado da ajuda e assistência de organismos não governamentais e das agências especializadas das Nações
Unidas, com particular destaque para o PNUD, UNICEF, HCR, FAO, PAM, UNESCO, OIT, OMS, em numerosos projectos
de desenvolvimento económico e social. É igualmente de destacar a assistência prestada pelas agências da cooperação para o
desenvolvimento dos Países Nórdicos e dos Países Baixos no financiamento e execução de muitos outros projectos importantes.
Em várias ocasiões a RPA beneficiou da ajuda alimentar de emergência da CEE e de alguns países Ocidentais, numa contribuição
para minorar os problemas de abastecimento às populações afectadas pela seca e pelos efeitos da guerra”; Relatório do Comité
Central ao II Congresso… op. cit., p. 140. Em Junho de 1982, a FAO anunciou que iria dar US$21 milhões a Angola; Rádio
Nacional de Angola, de 6 de Junho de 1982, cit. in SWB – Summary of World Broadcasts, British Broadcasting Corporation
Monitoring, de 8 de Junho de 1982; Três anos mais tarde, em 15 de Janeiro de 1985, a mesma organização anunciou
que se previa que Angola tivesse de importar cerca de dois terços do seu deficit de comida para 1984-1985 e que tinha
assegurado a ajuda para a maioria desse deficit (71.000t do total de 83.000t); cit. in ACR, vol. 17, 1986, p. B621. Como
vemos, o apoio humanitário era já bastante significativo no primeiro quinquénio da década de oitenta.
22 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
60
“O governo foi confrontado com a necessidade de alimentar muitas centenas de milhar no planalto central. Tem sido capaz de
fazer face a esta necessidade com a ajuda da Cruz Vermelha Internacional e outros doadores estrangeiros, que têm feito voos de
abastecimento de comida a partir do porto de Luanda desde 1981”; Bhagavan, M. R. Angola’s… op. cit., p. 20.
61
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 146.
62
O rendimento annual de petróleo de Angola quase duplicou, dos anteriores US$1.1 biliões em 1986 para US$2
biliões em 1987; Hodges, Tony, Angola from Afro-Stalinism… op. cit., p. 2.
63
Africa Emergency – UN Office for Emergency Operations in Africa, Junho de 1985.
64
Relatado por Paul Betts ao Financial Times, de 14 e 21 de Setembro de 1987.
65
Relatório do Comité Central ao II Congresso… op. cit., p. 68.
66
Relatório do Comité Central ao II Congresso… op. cit., p. 94.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 23
67
Bhagavan, M R, Angola’s… op. cit., p. 41. Reportando-se a 1982, várias referências interessantes a tal tipo de esquemas
e corrupção exercidos por todos os estratos sociais podem ser encontradas em Pepetela, A Geração da Utopia (Lisboa:
Dom Quixote, 1992) pp. 193, 200-202, 211-212, 222-223.
68
Revisões constitucionais para transformarem a Constituição num novo quadro politico e económico: Lei 12/91,
Diário da República – DR, I série, n.º 19, de 6 de Maio de 1991; assim como Lei 23/92, DR, I, 38, de 16 de Setembro
de 1992.
69
A revisão constitucional aprovou os princípios básicos de uma democracia multipartidária e a legislação
complementar assegurou a liberdade de associação (Lei 14/91), de reunião e manifestação (Lei 16/91), de imprensa
(Lei 22/91) de greve (Lei 23/91), de criação de partidos políticos (Lei 20/91), de radiodifusão independente (Lei
9/92).
70
Até 1991 a ausência de OSC independentes do poder politico significava que as Igrejas eram as vozes isoladas
na defesa dos Direitos Humanos; ver Vidal, Nuno, “Social Neglect and the Emergence of Civil Society”, in Chabal,
Patrick & Vidal, Nuno, Angola, the weight of history (London: Hurst, 2007), pp. 200-235.
71
Vidal, Nuno, “Social Neglect... op. cit., (London: Hurst, 2007), pp. 200-235.
24 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
77
Vidal, Nuno, Estratégias de Desenvolvimento Participativo… op. cit.
78
Actualmente a UTCAH está também articulada com o Ministério do Planeamento; não devendo ser confundida
com a UCAH das Nações Unidas (Unidade de Coordenação da Assistência Humanitária das Nações Unidas), mais
tarde substituída pela UN OCHA (UN Organization for the Coordination of Humanitarian Affairs) e posteriormente pela
UNTCU (UN Transitional Coordination Unit); nas províncias, o papel de coordenação e controlo era essencialmente
desempenhado pelos governos provinciais; ver Vidal, Nuno, Estratégias de Desenvolvimento Participativo… op. cit.;
também Vidal, Nuno, “Social Neglect… op. cit., pp. 200-235.
79
“Country profile Angola”, in An Assessment of Human Rights Defender initiatives in Southern Africa, a report for the
Netherlands Institute of Southern Africa – NiZA, by Ahmed Motala, Nuno Vidal, Piers Pigou and Venitia Govender
(Amsterdam: NiZA, Junho de 2005), pp. 47-62.
80
Para mais informação sobre esta fundação e o investimento do poder na sociedade civil, ver Messiant, C. 1999,
“La Fondation Eduardo dos Santos (FESA): autour de l’investissement de la société civile par le pouvoir angolais”,
in Politique Africaine, 73, pp. 82 – 101.
26 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Ana Paula dos Santos, ambas pretendendo reabilitar a imagem política do Presidente,
selectivamente provendo serviços sociais da responsabilidade do Estado, usando para
esse fim fundos geralmente provenientes dos bónus sociais pagos pelas empresas pe-
trolíferas internacionais. Tal estratégia continuaria até aos dias de hoje com a criação
ou cooptação de várias outras organizações81, que servem basicamente a necessidade
do poder político de ter uma “sociedade civil” cooperante que possa ser politicamente
manipulada no seio da lógica patrimonial dominante: fornecendo uma fonte extra
de empregos relativamente bem remunerados que podem ser distribuídos por entre
novos ou antigos clientes e dependentes; fornecendo serviços sociais seleccionados
conforme as necessidades governantes e/ou políticas específicas; participando em
processos politicamente sensíveis (e.g. aprovação de determinadas leis) sem as con-
testarem e, como tal, satisfazendo a exigência internacional de ouvir a “sociedade
civil”. A Agenda Nacional de Consenso, aprovada a 3 de Abril de 2007 e promovida
pelo governo é um exemplo deste tipo de iniciativas governamentais que precisa de
“cooperação” das OSC82.
As OSC “paralelas” passaram a ter um acesso privilegiado e facilitado às estruturas
governamentais nacionais e provinciais, assim como ao sector público e privado da
economia (ambos dominados claramente pelo partido maioritário e subjugados à
lógica política patrimonial83). As outras organizações que não se enquadravam nestes
parâmetros passaram a encontrar dificuldades crescentes de actuação na proporção
directa do seu afrontamento ao governo.
2.3 – Alteração do contexto nacional e internacional
Com estes crescentes constrangimentos ao funcionamento interno, o financiamento
externo passou a ser absolutamente vital para as OSC nacionais. Contudo, este apoio
vai sofrer um forte revés no final dos anos noventa, quando algumas das organizações
internacionais que há anos trabalhavam em Angola se tornaram progressivamente
desiludidas com o seu verdadeiro papel no país, nomeadamente a assumpção das res-
ponsabilidades sociais que supostamente caberiam ao Estado desresponsabilizando-o
em muitas matérias. Em declarações públicas chocantes, Jean-Marc Perrain, director-
executivo dos Médecins Sans Frontières — Angola (MSF-Angola) expressou aquilo que
se havia tornado claro para todos:
Não é compreensível que um país tão rico como Angola, que produz e vende petróleo e
diamantes, com uma receita petrolífera anual estimada em 7 biliões de dólares, invista
tão pouco em áreas como a saúde. Não é a nosso ver normal que uma associação hu-
manitária como a MSF forneça tudo o que é necessário para o funcionamento de um
hospital, seja na Kahala, seja no Kuíto. Isso não nos parece lógico. Parece-nos lógico
81
A AJAPRZ (Associação de Jovens Angolanos Provenientes da Zâmbia), Criança Futuro (anteriormente liderada pelo
antigo Chefe dos Serviços de Inteligência no Exterior, Fernando Miala; Miala), Acção Solidária e Amigos do Rangel, entre
outras, são exemplos claros de tal tipo de organizações; a respeito das OSC paralelas ver “Country profile Angola”
in An Assessment… op. cit., pp. 47-62; igualmente Messiant, Christine, “The Mutation of Hegemonic Domination:
Multiparty Politics Without Democracy”, in Chabal, Patrick & Vidal, Nuno, Angola, the weight of history (London:
Hurst, 2007), pp. 93-123; também Vidal, Nuno “Multipartidarismo em Angola… op. cit.
82
A respeito da Agenda Nacional de Consenso ver Jornal de Angola, de 20 de Junho de 2007.
83
O processo de privatização no início dos anos noventa beneficiou sobretudo a nomenclatura; ver Ferreira, Manuel
Ennes, “La reconversion économique de la nomenklature pétrolière”, in Politique Africaine, 57, 1995, pp. 11–26; também
Aguilar, Renato, “Angola’s private sector: rents distribution and oligarchy”, in Karl Wohlmuth, Achim Gutowski,
Tobias Knedlick, Mareike Meyn & Sunita Pitamber, African Development Perspectives (Germany: Lit Verlag, 2003);
Aguilar, Renato, Angola: getting off the hook, a report for Sida (Gothenburg: Gothenburg University, 2005), especialmente
pp. 13-18.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 27
dar um apoio complementar ao Ministério da Saúde pela situação difícil que o país vive
actualmente.84
Estas declarações surgem numa altura em que o governo angolano enfrentava já o
escândalo “Mitterand, Falcone e Gaidamak” (de 1999), o relatório da Global Witness
e outros relatórios que expunham a má gestão de receitas petrolíferas e a corrupção
endémica no sistema político, para além de várias outras actividades co-relacionadas
e expostas pelos media85.
Com o fim da guerra civil que se seguiu à morte de Jonas Savimbi (Fevereiro de 2002)
e a assinatura do memorando de paz do Luena (Abril de 2002), muitos esperavam por
uma rápida mudança na política social — expectantes por investimentos substanciais
do Estado nos sectores sociais, numa altura em que se estimava que três quartos de
uma população também ela estimada de 14 milhões, vivia com menos de 1 dólar por
dia e que cerca de 2 milhões enfrentavam o risco eminente da fome86. Neste cenário,
organizações internacionais a trabalhar no terreno, como a CARE International ou a
MSF, acusavam o governo de negligência criminal contra a sua própria população87.
O desgastado argumento da guerra deixava de poder ser usado para justificar a falta
de investimento naqueles sectores. Para além do mais, a produção petrolífera conti-
nuava a aumentar fortemente e rendia ao governo uma média de cerca de 5 biliões
de dólares anuais.88
Consequentemente, a ajuda humanitária diminuiu substancialmente e a tão aguarda-
da conferência internacional de doadores foi sendo constantemente adiada, ficando
condicionada a um acordo entre o governo e o FMI, que era suposto estabelecer alguns
princípios de accountability e transparência na gestão das contas públicas89. A assistência
humanitária foi suspensa em várias regiões (sobretudo no Centro-Norte) que deixaram
de ser consideradas como necessitadas de tal apoio90.
Por outro lado, com o aproximar do fim da presença da ONU em Angola, o UNOCHA
(United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs) foi substituído pela
UNTCU (United Nations Transitional Coordination Unit; dependente do United Nations
Development Programme – UNDP), que era suposto passar as suas responsabilidades
pela coordenação para as instituições do governo, nomeadamente a UTCAH (Unida-
84
Declarações de Jean-Marc Perrin, coordenador da MSF em Angola, proferidas em Luanda no dia 9 de Novembro
de 2000, aquando da apresentação do relatório Médecins Sans Frontières, Angola: as aparências de “normalização”
escondem graves cenas de guerra (Luanda: MSF, 9 de Novembro de 2000); declarações reproduzidas pelo Canal 2 da
Rádio Televisão Portuguesa, programa “Jornal de África”, de 11 de Novembro de 2000; ver também Diário de Notícias,
de 12 de Novembro de 2000 e jornal Público, de 27 de Abril de 2000.
85
Vidal, Nuno, “The Angolan regime… op. cit., p. 133.
86
The Guardian, de 7 de Fevereiro de 2003.
87
Voz da América News Online, de 11 de Junho de 2002 e The Guardian, de 7 de Fevereiro de 2003.
88
De 2000 a 2003 Angola recebeu uma média de 5 biliões de dólares por ano; ver artigo “Angola should be able to
finance its own post war rebuilding’’, por Michael Dynes, Times, de 24 de Fevereiro de 2003.
89
Para uma súmula da relação entre o governo angolano e o FMI, ver Some transparency, no accountability, the use
of oil revenue in Angola and its impact on Human rights, a report by Human Rights Watch, January 2004, vol. 16, n.º 1; é
importante notar que de acordo com o FMI, entre 1997 e 2001, há $8.45 biliões de fundos públicos cujo destino não
é conhecido (representando uma média de 23% do PIB), Ibid.; ver também Human Rights Watch World Report 2006
(New York: HRW & Seven stories press, 2006), pp. 74-79.
90
Entrevista dada ao autor por Philippe Lazzarini (Chief Officer UN-OCHA – United Nations Organization for the Coordination
of Humanitarian Aid) (Luanda: 1 de Outubro de 2004); também no mesmo sentido entrevista dada ao autor por Manuela
Gonzales (Representante Provincial – Huambo – da OCHA-TCU, Organization for the Coordination of Humanitarian Aid
– Transition Coordination Unit) (Huambo: 20 de Setembro de 2004); também entrevista dada ao autor por Luís Claudio
(Representante Provincial OCHA-TCU – Malange) (Malange: 15 de Setembro de 2004) e igualmente entrevista dada
ao autor por João de Assunção Agostinho (OCHA-TCU – Malange) (Malange: 20 de Setembro de 2004).
28 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Fonte: criação do autor com base nos Orçamentos Gerais do Estado dos anos indicados; disponíveis
em www.minfin.gv.ao93
*Em 2008 a rúbrica Segurança e Assistência Social passa a ser chamada de Protecção Social
No que respeita à transferência de responsabilidades da UNTCU para a UTCAH, o
resultado também não foi exactamente o desejável. O governo viu aqui não tanto a pos-
sibilidade para um mais efectivo envolvimento na coordenação das ajudas e projectos
das ONG, mas sobretudo a tão esperada oportunidade para efectivamente apertar o
controlo político sobre as suas actividades e financiamentos. É deste modo que deve
ser entendido o novo programa de registo das ONG que começa em 2005 e tem sido
progressivamente aplicado para integrar todas as ONG nacionais e internacionais. Os
procedimentos de registo e as exigências de relatórios regulares sobre as actividades das
ONG, especificando o tipo de acções, projectos, fundos, equipamentos, pessoal, impacto
sócio-económico, etc. serão (conforme explicação do próprio director da UTCAH), a
base de uma avaliação e parecer que a sua instituição vai emitir para o Ministério da
91
Ver relatório da Independent Task-Force apresentado ao Council on Foreign Relations, 2005, More than humanitarianism:
a strategic US approach toward Africa, Council on Foreign Relations, New York, especialmente pp. 32-33, 49-50; ver
também Aguilar, Renato, Angola: getting off the hook… op. cit., especialmente pp. 2, 13-18. Actualmente, estima-se que
as linhas de crédito da China se situem entre os 6 a 10 biliões de dólares, ver artigo de Alec Russell, “Investors sign
up to Angola’s miracle”, in Financial Times, de 22 de Agosto de 2007.
92
Vidal, Nuno, “The Angolan regime… op. cit., pp. 124-174.
93
Angola encontra-se ainda muito abaixo da média dos países da SADC no que respeita a gastos com a educação
que se situa nos 16,7%. De acordo com o Banco Mundial, a composição da despesa pública em 2004 por função –
despesas com saúde e educação em percentagem do PIB em Angola (menos de 2% para a saúde e menos de 5%
para a educação) – estão entre as mais baixas no contexto africano, “tal composição da despesa pública está muito
abaixo das necessidades do país em termos de reconstrução de infra-estruturas e fornecimento de serviços essenciais
à população e parece reflectir as escolhas políticas ainda preocupadas com a prevalência de um orçamento de tempos
de guerra”; World Bank, report n.º 29036-AO, Angola public expenditure, management and financial accountability, 16 de
Fevereiro de 2005, p. i, also pp. 5-6.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 29
Justiça acerca do nível dos projectos das ONG e da parceria estabelecida com o governo.
Tendo por base esta apreciação da UTCAH, o Ministério da Justiça decidirá acerca da
aprovação ou rejeição do registo de cada uma das ONG em causa94.
94
Explicação fornecida pelo Director da UTCAH no encontro de Trabalho da UTCAH com ONG nacionais e
internacionais (Luanda: Auditório da Universidade Católica de Angola, 29 de Novembro de 2005); agenda de trabalho:
“(…) 3 – Apresentação das actividades das ONG nacionais e internacionais no primeiro semestre de 2005; 4 – Directório
de ONG, boletim informativo a ser criado, pesquisa sobre casos de estudo, draft dos relatórios específicos a serem
apresentados pelas ONG ao longo do ano; 5 - legalização das ONG (…); acesso a fundos públicos”.
95
World Bank Country Brief – Angola, disponível em http://go.worldbank.org; também artigo de Alec Russell,
“Investors sign up to Angola’s miracle”, Financial Times, de 22 de Agosto de 2007; também artigo de Mariana Della
Barba “A África que prospera: Angola vive ‘milagre económico’. Exportações de petróleo atraem investimentos,
mudam a paisagem de Luanda e fazem PIB crescer 23% em 2007”, O Estado de São Paulo, de 18 de Dezembro de
2007; igualmente Hodges, Tony, “The Economic Foundations… op. cit., pp. 175-199.
96
Ver a este respeito o artigo de Justino Pinto de Andrade no semanário A Capital, de 26 de Maio de 2007, p. 13;
também AfDB/OECD, African Economic Outlook, Angola, Maio de 2007, pp. 107-120, disponível em www.oecd.org;
igualmente Hodges, Tony, “The Economic Foundations… op. cit., pp. 175-199..
97
Ver Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, A água para lá da escassez: poder, pobreza e a crise mundial da água
(New York: PNUD, 2006); Angola foi classificada na 160.ª posição no relatório anterior: ver Human Development Report
(New York: United Nations Development Programme, 2005).
30 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
98
Para além do referido relatório de desenvolvimento humano do PNUD, ver Pereira, Aline, “Género e Desenvolvimento
em Angola”, in Vidal, Nuno e Pinto de Andrade, Justino, O Processo de transição para o multipartidarismo em Angola (Lisboa
e Luanda: Firmamento, Universidade de Coimbra e Universidade Católica de Angola, 2006), pp. 241-258; igualmente o
texto de Aline Pereira neste livro; também relatório da conferência Participação das Mulheres Angolanas na Política, realizada
em Luanda a 17, 18 e 19 de Outubro de 2006, p. 4; artigo “Solicitada maior intervenção das instituições laborais em
questões de género”, Angola Press, de 20 de Julho de 2007; “Governante defende criação de base de dados estatísticos
sobre o género”, Angola Press, de 20 de Julho de 2007, disponível em www.angolapress-angop.ao
99
Angola, a mulher e o Desenvolvimento Rural, Doc. De trabalho n.º 20 (Luanda: Ministério da Agricultura e do
Desenvolvimento Rural & Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, de Março de 2004).
100
Estes factores incluem: um grande número de deslocados internos (4 milhões), desmobilizados das forças
armadas, baixos níveis de educação, uma população jovem (cerca de 70% dos Angolanos tem menos de 24 anos), um
elevado índice de pobreza, fraca autonomia económico-social das mulheres em geral, alto índice de prevalência de
Doenças Sexualmente Transmissíveis, poligamia, destruição de redes sanitárias, poucos mecanismos de protecção,
redes sociais fragmentadas, poucos locais onde fazer testes de HIV, a segunda mais alta taxa de fertilidade do
mundo; ver Artigo de Pirozzi “UNICEF promotes the use of condoms as an HIV/AIDS prevention method” in
UNICEF Angola/2003, disponíel em www.unicef.org; também artigo de Mendonça “UNICEF supported outreach
activist, Amavel, conducts an HIV/AIDS awareness session in the market place targeting young boys”, in UNICEF
Angola/2005, em www.unicef.org.
101
Artigo de Pedro Chaveca “Condições ambientais ceifam 116 mil vidas em Angola”, Expresso, de 13 de Junho de
2007.
102
The UN System in Angola MDG Strategy Outline, Draft 2, Work in Progress, Março de 2007, p. 3; também, Angola,
Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, relatório de progresso 2005 (Luanda: Governo de Angola e PNUD, 2005);
Angola, Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, relatório MDG/NEPAD 2003 (Luanda: Governo de Angola, Ministério
do Planeamento e Sistema das Nações Unidas em Angola, 2003).
103
O Conselho de Coordenação dos Direitos Humanos (CCDH) foi criado em Dezembro de 2005 “sob os auspícios
do escritório de DH das NU em Angola”, é uma rede de concertação de interesses das ONG que se dedicam à defesa
e promoção dos DH, com vista a uma intervenção mais ampla neste domínio. São parte integrante todas as OSC que
desejarem aderir, sendo até agora ainda muito limitado o número de membros, tendo em conta o universo geral que
trabalha com DH; ver Prospecto de Apresentação do Conselho de Coordenação dos Direitos Humanos, Luanda, 2006; também,
Plano Estratégico 2006-2009 do Conselho de Coordenação dos Direitos Humanos, Luanda, Março de 2006, Introdução.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 31
104
Relatório Narrativo das Actividades Realizadas Durante o Ano de 2006, Conselho de Coordenação dos Direitos Humanos,
Luanda, Angola, Janeiro de 2007, p. 2; a respeito do sistema judicial e prisional, ver United Nations Press Release,
“Working Group on Arbitrary Detention Visited Angola”, statement by Chairperson-Rapporteur of the Working Group on
Arbitraty Detention of the United Nations Human Rights Council, Leila Zerrougui, September 27, 2007, at the conclusion of
a visit to Angola; também Associação Justiça Paz e Democracia, Relatório de Direitos Humanos, um olhar sobre o sistema
penal angolano, de Agosto de 2000 – Outubro de 2004 (Luanda: AJPD, Novembro de 2005).
105
Ver a este respeito o artigo “Óscar Niemeyer convidado a projectar ‘nova Luanda’’’, Voz da América, Visão Angola,
de 27 de Julho de 2007, em www.multipress.info.
106
Open Society Angola, 2007, Staff Retreat Minutes, p. 4.
107
Open Society Foundation – Angola, 2006 Annual Report, pp. 1-2.
108
Ver declarações de Elias Isaac à Voz da América –Visão África, de 17 de Agosto de 2006, em www.voanews.com.
32 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
109
World Bank, Angola: Country Economic Memorandum, Outubro de 2006, p. ix; também, The Economist Intelligence
Unit, Country Report: Angola, Março de 2007, p. 28; igualmente AfDB/OECD, African Economic Outlook, Angola, Maio
de 2007, pp. 107-120, disponível em www.oecd.org
110
Ver texto de Justino Pinto de Andrade neste livro; também Time for transparency, coming clean on oil, mining and
gas revenues, a report from Global Witness, de Março de 2004, p. 35; é também importante frisar que Angola foi
classificada Transparency International na posição133 de 145 no que respeita aos países mais corruptos do mundo
(sendo o 145.º o mais corrupto), em www.transparencyinternational.com.
111
Artigo de João Melo, “Sociedade Civil, cidadania e Estado (fim)”, semanário Agora, de 21 de Julho de 2007, p. 17.
112
Relatório Narrativo das Actividades Realizadas Durante o Ano de 2006, Conselho de Coordenação dos Direitos
Humanos, Angola, Janeiro de 2007, p. 2.
113
Angola produz actualmente 1,7 milhões de barris por dia, esperando-se que venha a ultrapassar a cifra de 2 milhões
de barris/dia em 2009, ultrapassando nessa altura a Nigéria como maior produtor africano de petróleo; Jornal de
Angola, de 15 de Fevereiro de 2008; ver igualmente Hodges, Tony, “The Economic Foundations… op. cit., pp. 175-199;
artigo de Jad Mouawad “Nowadays, Angola Is Oil’s Topic A”, The New York Times, de 20 de Março de 2007; também
Angola Strategy: Prioritizing U.S. – Angola Relations, a Report of an Independent Commission Sponsored by the Center for
Preventive Action, New York: Council on Foreign Relations, 2007; igualmente Reed, John, “Angola o capitalismo dos
petrodiamantes”, Courrier Internacional, de 25 Novembro de 2005, n.º 34, pp. 22-23.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 33
114
Relatório da Human Rights Watch e SOS Habitat, “Angola, ‘eles partiram as casas.’ Desocupações forçadas e insegurança
da posse da terra para os pobres da cidade de Luanda”, Vol. 19, n.º 7 (A) (New York: HRW & SOS Habitat, de Maio de
2007), disponível em http://hrw.org/reports/2007/angola0507; ver também, relatório da Amnistia Internacional,
“Angola, Lives in Ruins: Forced Evictions Continue” (New York: AI, Janeiro de 2007), disponível em http://web.
amnesty.org/library/Index/ENGAFR120012007.
115
Casos da Associação Justiça Paz e Democracia (AJPD) e Fundação Open Society Angola.
116
Vidal, Nuno, Plano Estratégico 2008-2010, Programa de Direitos Humanos, Construção da Democracia, Género e VIH/
SIDA (Luanda: Fundação Open Society – Angola, Agosto de 2007); também Vidal, Nuno, “O campo de minas da
democracia angolana”, in Minnie, Jeanette (coord.), Do lado de fora das urnas: pré-condições para eleições na África Austral
2005/2006 (Windhoek: HiVOS, NiZA-Netherlands Institute for Southern Africa & MISA-Media Institute of Southern
Africa, Junho de 2007), pp. 49-72; também artigo de Ana Dias Loureiro no jornal Público, de 29 de Abril de 2008.
117
Voz da América News Online, de 11 de Junho de 2002; The Guardian, de 7 de Fevereiro de 2003.
118
Ver por exemplo, Klopp, Jacqueline, Civil Society and the State: Partnership for Peace in the Great Lakes Region (Nairobi-
-Kenya: International Peace Academy & Africa Peace Forum, Kenya, Junho de 2004).
34 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Será neste contexto que algumas ONG internacionais vão chamar a si o papel de pro-
motores desta nova perspectiva e de intermediários nas novas relações a estabelecer
entre o governo e as ONG nacionais. Este papel vai-se materializar em algumas inicia-
tivas, como sejam o Programa de Reforço de Capacidades da Sociedade Civil – PRCSC
(ou Civil Society Strenghtening Programme – CSSP), liderado pela World Learning e pela
Development Workshop – DW (ambas internacionais)119.
O PRCSC pretenderá (tal como defendido pela UTCAH) mapear e cadastrar todas
as ONG nacionais com vista a
(…) reforçar a Capacidade Organizacional e Técnica das ONG Angolanas, por forma a que
se tornem um parceiro legítimo e privilegiado do Governo, para a prestação de serviços
de utilidade pública às comunidades urbanas, peri-urbanas e rurais. [meu negrito]120.
O inquérito de base ao referido mapeamento consiste no apuramento exaustivo de
todas as características das ONG, com especial incidência para o tipo de relação que
têm e que pretendem vir a ter com o governo central e local121.
Apresentado nestes termos, o PRCSC vai provocar reacções negativas em alguns
activistas da sociedade civil,122 que não entendem de onde vem a legitimidade desta
espécie de instituição de pré-acreditação das ONG, tratando-se de uma estrutura
constituída por algumas ONG (liderada por duas internacionais) que sem qualquer
eleição se arrogam o direito de avaliar os seus pares nacionais. Para além do mais,
aquela intenção de pré-certificar as ONG como “parceiros legítimos e privilegiados
do governo” não só se apresenta eivada de uma aparência de colaboracionismo com
as antigas intenções de controlo por parte da estrutura governamental, como também
encerra uma medida de coação implícita, sendo que todos aqueles que não se encai-
xarem nos critérios (subjectivos e políticos) de avaliação, passam provavelmente a ser
ilegítimos e consequentemente a ter um forte handicap na relação com as estruturas
governamentais e estruturas de financiamento internacionais.
O plano de “reforço da sociedade civil” prosseguirá com outros projectos, como seja
a criação do “Centro de Reforço das Capacidades das OSC”, que, mais uma vez en-
globando a Development Workshop e a World Learning, juntou algumas ONG nacionais,
tendo como objectivo imediato o financiamento de projectos da sociedade civil com
fundos provenientes das empresas petrolíferas a operarem em Angola, tratando-se de
uma iniciativa lançada na génese pela União Europeia, Governo Angolano e USAID.
Dada a lógica de funcionamento do sistema político-económico, obviamente que
quando algumas ONG nacionais começaram a realçar a necessidade premente de focar
questões de advocacia dos Direitos Humanos nos projectos a financiar, as petrolíferas
levantaram muitos obstáculos, pedindo que compreendessem a própria envolvente
político-negocial das empresas neste sector123.
119
De referir que a DW foi a primeira ONG a existir em Angola e a única a estabelecer-se ainda durante o período
Socialista – 1985.
120
Carta de solicitação de entrevista da Development Workshop dirigida a todas as ONG nacionais, datada de 2 de
Março de 2007.
121
Inquérito para Entrevistas de Mapeamento das Organizações da Sociedade Civil Angolana, dirigido a todas as ONG
nacionais, datado de 2 de Março de 2007.
122
Neste sentido estarão activistas como Fernando Macedo ou Luís Araújo (expressando estes pontos de vista em diversas
conversas com o autor, em Lisboa e Luanda ao longo de 2007); ver também o texto de Fernando Macedo neste livro.
123
Ver a este respeito o texto de Carlos Figueiredo neste volume.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 35
124
Vidal, Nuno, “Social Neglect… op. cit.
125
No que respeita às críticas ao engajamento construtivo e à representatividade homogeneizadora e apolítica da
sociedade civil, ver o texto de Fernando Macedo neste livro (especialmente o cap. 6); ver também neste livro o texto
de Sérgio Calundungo criticando a perspectiva de uma sociedade civil politicamente asséptica e o texto de Fernando
Pacheco criticando a representatividade homogeneizadora (cap. 4).
36 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Neste contexto, começam então a emergir duas posições contrárias no seio das OSC
(aqui essencialmente ONG), entre aqueles que defendem uma postura que se poderá
denominar de “reformista” (acreditando que se podem reformar as instituições a partir
de dentro, colaborando com as estruturas governamentais em vários projectos, ainda
que isso possa significar algumas cedências em termos de postura crítica pública) e
aqueles que consideram que o engajamento com estruturas governamentais deve ser
muito selectivo, cauteloso e baseado em princípios de respeito pelos DH que nunca
podem ser sacrificados e tendo sempre salvaguardado o direito de opinião e expressão
política das OSC126. A caracterização das duas perspectivas contrárias vai aparecer
em relatórios internacionais que, em termos excessivos, separam as OSC “demasiado
radicais” das “verdadeiras e sensatas”127, uma caracterização que denigre os argu-
mentos contrários ao constructive engagement/unificação da sociedade civil e acaba
por radicalizar as divisões existentes.
A I Conferência Nacional da Sociedade Civil angolana, realizada de 6 a 8 de Novembro
de 2007, vai em parte espelhar estas diferentes posições no seio das OSC. A conferência,
que contou com a colaboração e apoio das ONG internacionais Development Workshop,
World Learning e CARE (entre outros), vai desde logo assumir o lema de “Construir
Unidade na Diversidade”, tendo como objectivos “melhorar o inter-conhecimento, e
assim a capacidade de coordenação dos esforços da sociedade civil para promover o
desenvolvimento nacional”128. Das recomendações saídas da conferência parece ter
prevalecido a posição da perspectiva reformista/representativa, sendo que a primeira
recomendação frisa a necessidade de “representação” da dimensão nacional da socie-
dade civil por via do reforço do FONGA (Fórum das ONG Angolanas), uma estrutura
que sempre foi um espaço de articulação e concertação de posições das ONG nacionais
que a ele aderiram, mas nunca de representação da totalidade das ONG angolanas:
Repensar o papel do FONGA como mecanismo de coordenação das ONG nacionais, com
especial atenção para a representatividade nacional. Isto está relacionado com as relações
com as outras plataformas e com as formas organizativas da sociedade civil nas províncias,
municípios e aldeias129.
Outra das recomendações, em que se pode notar a prevalência da posição reformista/
/representativa, refere que para além da necessidade de unificar, é igualmente ne-
cessário colaborar com o governo e representar a sociedade civil perante este, num
engajamento construtivo, ainda que autónomo:
É necessário garantir uma representação, com qualidade, da sociedade civil nos conselhos
que se vão formando aos vários níveis. Um engajamento construtivo mas autónomo com o
governo é fundamental para este aproveitamento dos espaços de diálogo e negociação130.
Na verdade, a posição mais contestatária ao “reformismo” é minoritária, tanto a nível
das ONG nacionais como internacionais. Contudo, ao contrário do que seria de espe-
rar, a prevalência da postura reformista não tem conseguido resultados de relevo. Por
um lado, como vimos, não consegue alterar significativamente as políticas no que se
126
Ver neste sentido entrevista de Luís Araújo em Vidal, Nuno, “O campo de minas… op. cit., pp. 63-64. A discussão
entre aquelas duas posições e os seus argumentos são também perceptíveis nos textos do capítulo II deste livro.
127
Amundsen, Inge & Abreu, Cesaltina, Civil Society in Angola: Inroads, Space and Accountability, a Christian Michelsen
Institute Report (Bergen-Norway: CMI, 2006), nota de rodapé 27, p. 18.
128
Conclusões da Conferência Nacional da Sociedade Civil, p. 1
129
Conclusões da Conferência Nacional da Sociedade Civil, ponto 3, alínea a), i, p. 2.
130
Conclusões da Conferência Nacional da Sociedade Civil, ponto 3, alínea g), p. 3.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 37
131
Em declarações à Rádio Nacional de Angola, no noticiário das 13:00 horas de terça-feira, de 10 de Julho de 2007, e
retomadas pelo Jornal de Angola na sua edição n.º 10812, pag. 3, de quarta-feira, de 11 de Julho de 2007, o Director
Geral da UTCAH acusou a Open Society, a AJPD, a Mãos Livres e a SOS Habitat de exercerem actividades à margem
da Lei, incitando a população à desordem e desobediência ao governo e suas instituições e de desenvolverem
actividades reservadas a Partidos Políticos, num claro prelúdio a um processo de ilegalização que eventualmente
poderá vir a seguir; Ver igualmente artigo de Mário Paiva no semanário A Capital, de 14 de Julho de 2007; ainda
artigo de Reginaldo Silva no Angolense, de 14 de Julho de 2007.
132
O mais recente caso é o de José Lelo, correspondente da Voz da América em Cabinda, preso em Novembro de 2007 sob
acusação de “instigação à rebelião e crime contra a segurança do Estado”; um caso anterior diz respeito ao director do
Semanário Angolense, Graça Campos, preso em 3 de Outubro de 2007 e condenado pelo Tribunal Provincial de Luanda a
8 meses de prisão efectiva e ao pagamento de 250 mil dólares, por crime de difamação e calúnia contra o antigo ministro
da Justiça, Paulo Tchipilica; a respeito dos contrangimentos aos media, ver Vidal, Nuno “The Angolan Regime… op.
cit.; também Relatório Oil and Governance Report, a case study of Chad, Angola, Gabon and São Tomé e Principe, by Karin
Alexander & Stefan Gilbert, Institute for Democracy, in South Africa, 2008, p. 28; relatório da Human Rights Watch,
Proteção Limitada Liberdade de Expressão e Informação sob a Nova Lei de Imprensa Angolana, HRW, Novembro de 2006, p.
10; também Human Rights Watch World Report 2006, HRW, Washington, p. 76.
133
Entrevista concedida ao autor por Michael Offerman do Escritório das Nações Unidas para os Direitos Humanos
em Angola (Luanda: 3 de Junho de 2007)
134
Ver artigo de Ana Dias Loureiro no jornal Público, de 29 de Abril de 2008.
38 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
facto de o governo angolano ter passado a integrar o Conselho dos Direitos Huma-
nos das Nações Unidas em Maio de 2007 serviu de impedimento ao encerramento
do escritório.
Conclusão
A ter existido um qualquer ethos Socialista minimamente genuíno, desfez-se logo nos
primeiros anos de independência (1975-1977). A lógica patrimonial, desde cedo insta-
lada, disseminou-se, atravessando toda a organização social efectivamente existente e
alastrando a todos os estratos sociais. Os primeiros sinais deste processo revelam-se
na degradação dos sectores sociais e na corrupção que se começou gradualmente a
generalizar sob diversas formas e matizes, materializando-se na predação dos recursos
públicos e na deliquiescência da consciência pública e do Estado social solidário. Os
esquemas e as estruturas de funcionamento da lógica patrimonial cristalizaram-se ao
longo de duas administrações Socialistas e vão sobreviver com sucesso (reforçar-se de
sobremaneira) à transição para o multipartidarismo e à economia de mercado.
Desde cedo se percebeu que apesar do novo enquadramento jurídico-formal nascido em
1991-92, os antigos detentores do poder político-económico tudo fariam para resistir a mu-
danças de fundo nos centros de decisão e na estrutura de controlo do aparelho de Estado
que pusessem em perigo a manutenção do seu domínio político-económico-social.
O espaço de exercício efectivo dos direitos fundamentais de primeira geração (civis e
políticos), de segunda geração (económicos, sociais e culturais) e de terceira geração
(direito à transparência e boa governação como facilitadores do desenvolvimento,
combate à pobreza e inclusão social), iria (e irá) necessariamente contra a forma como
está estruturado o poder político-económico em Angola.
A separação dos poderes executivo, legislativo e judicial, a institucionalização da
política, a diferenciação entre público e privado, a transparência na gestão das contas
públicas, a descentralização administrativa, a distribuição de rendimentos de acordo
com critérios de equidade, meritocracia, solidariedade social e desenvolvimento pú-
blico, são completamente contrárias a uma lógica patrimonial.
É por este motivo que os chamados DH de terceira geração são fortemente contes-
tados por todos os governos e governantes cuja governação e regimes padecem de
deficits graves de transparência e boa-governação, recusando-se a considerar estes
direitos como sendo parte dos DH. Esta recusa é tanto mais firme quanto percebem
que ao aceitar tais direitos por parte dos governados em geral, estariam a admitir a
relação (que naturalmente existe) entre sociedade civil e política e o direito de todos
os governados em acompanharem, fiscalizarem e participarem na governação de
forma cada vez mais activa e presente — o pior pesadelo para qualquer regime não
democrático. No caso de regimes africanos de cariz patrimonial, isto significaria uma
perigosa perda de controlo, devido a que esses sistemas se baseiam na cuidadosa
selecção de um número reduzido de cooptados (somente aqueles que se considera
serem os necessários à manutenção do status quo), sendo que a maioria terá sempre
de ser mantida fora dos benefícios; tratam-se de sistemas baseados na exclusão da
maioria, na discriminação e no elitismo de acesso aos benefícios.
É dentro deste âmbito que se podem entender os vários constrangimentos colocados
pelo governo à actuação da sociedade civil, da oposição partidária e das limitações a
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 39
apoios externos que possam facilitar a acção daqueles actores. É também nesta lógica
que se pode entender a diferente percepção do que é sociedade civil para o governo e
para os activistas sociais. O governo tem uma perspectiva muito restritiva e limitada, de
tipo assistencialista, uma sociedade civil “parceira” (apolítica, subordinada e cúmplice)
para ajudar na prestação de serviços sociais em múltiplos micro-projectos dispersos. As
OSC que recusam liminarmente a perspectiva do governo, têm uma visão macro, de
verdadeira parceria participativa e interventiva para ajudar a construir uma sociedade
mais democrática, justa, equitativa e transparente. Consideram, lógica e naturalmente,
que a defesa dos DH é política por natureza, lidando com questões de interesse público
que afectam a vida de toda a população. Naturalmente que se trata de uma perspectiva
de abordagem diferente da abordagem partidária, desde logo porque as OSC não exis-
tem com o intuito de conquistar e exercer o poder político, mas de influenciar políticas
públicas que concretizem na prática os DH. A tentativa do governo de “despolitizar”
as OSC também procurou incluir a Igreja, que sensata e imediatamente reagiu por Dom
Damião Franklin dizendo que a Igreja não se pode alhear das res publica, porque também
ela tem uma missão social e pública a cumprir135.
O longo processo de cristalização de uma lógica de patrimonialismo moderno no siste-
ma político-económico existente (que começou num modelo dito Socialista e está agora
num modelo dito democrático-multipartidário) não significa uma impossibilidade total
de mudança ou de condenação à imutabilidade. Comparativamente ao início dos anos
noventa (quando se iniciou o processo de transição para o multipartidarismo), fizeram-se
algumas conquistas na área dos DH em Angola, que é preciso consolidar para prosseguir
na abertura de espaços e evitar a sempre eminente possibilidade de regressão. Contudo,
é igualmente necessário ter em conta que a partir de um certo nível de efectiva imple-
mentação dos DH entrar-se-á em choque com poderosos interesses político-económicos
instalados, que irão necessariamente reagir. Caso não existam mecanismos de protecção
eficazes para os defensores dos DH, as reacções mais violentas poderão significar riscos
pessoais para os activistas envolvidos (principalmente os nacionais)136.
Quem pugnar por uma efectiva e completa implementação dos DH em todas as suas
dimensões e para além de certos limites está, em variadíssimas áreas, a entrar numa
luta contra o poder e os interesses há muito estabelecidos. Será, obviamente, um com-
bate muito desigual em meios, recursos e vontades.
A necessidade de legitimidade política internacional (e em parte nacional) “obrigam”
o sistema efectivamente existente a permitir o funcionamento de mecanismos próprios
de um sistema democrático e de Direito, incluindo os DH, mas dentro de limites que
não coloquem em causa os interesses fundamentais do poder instalado e do seu modus
operandi.
É na definição deste limite que entram em choque os interesses daqueles que lutam
pela implementação e funcionamento cada vez mais efectivo dos mecanismos de
democratização e os interesses daqueles que apenas querem uma “aparência demo-
crática”, que não altere os fundamentos patrimoniais do sistema que lhes permitem
manter o controlo pessoal dos recursos públicos.
135
Ver artigo de Mário Paiva no semanário A Capital, de 14 de Julho de 2007; ainda artigo de Reginaldo Silva no
Angolense, de 14 de Julho de 2007.
136
Ver Amnesty International, Report 2007, the state of the world’s human rights, disponível em http://thereport.
amnesty.org/eng/Regions/Africa/Angola; também Amnesty International, Above the Law Police Accountability in
Angola, Setembro de 2007, AI Index: AFR 12/005/2007, disponível em www.amnestyusa.org
40 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
137
Execution Strategy 2006-2007 Project of the UN Human Rights Office in Angola, p. 1.
41
O Processo de Transição em
Angola: Sociedade Civil, Partidos
Políticos, Agentes Económicos
e População em Geral
Introdução
Justino Pinto
de Andrade
Universidade Católica
A ngola vive ainda um processo de transição do velho
regime político de partido único para um regime po-
lítico multipartidário que se quer democrático. Este pro-
de Angola - UCAN cesso ainda está em curso, mas a análise da sua evolução
demonstra que se está longe da efectiva democracia. Angola
constitui um caso de transição sem mudança, a exemplo
do que aconteceu em muitos outros países do mundo que
saíram de regimes autoritários. A sua posição enquanto
produtor de petróleo com um peso crescente na produção
mundial permite-lhe resistir aos condicionalismos exter-
nos em termos de boa-governação, transparência e respeito
pelos Direitos Humanos. A oposição político-partidária é
fraca ou mesmo incipiente, sendo a sociedade civil a chamar
a si as despesas da contestação em relação aos assuntos
politicamente mais incómodos para o poder estabelecido.
No entanto, este papel está cada vez mais limitado pelos
constrangimentos impostos por parte do governo. Com
uma oposição fraca ou enfraquecida, uma sociedade civil
muito limitada na sua actuação, pressões externas muito
condicionadas e uma população maioritariamente pobre
e ausente da participação e intervenção nos processos de
decisão político-económica, torna-se difícil construir uma
democracia efectiva.
O presente texto está estruturado em quatro capítulos. O
primeiro apresenta o caso angolano no contexto das di-
versas transições de regimes autoritários, de esquerda e
de direita, ocorridas em vários quadrantes do mundo. O
segundo discute o papel das pressões externas por maior
transparência, boa-governação e respeito pelos Direitos Hu-
manos, exercidas sobre o governo de Angola e a reacção
deste. O terceiro capítulo analisa o papel desempenhado
pelos partidos políticos da oposição e pelas Organizações
da Sociedade Civil (OSC) no processo de transição, face
aos obstáculos levantados pelo governo. Por fim, o quarto
capítulo aborda a situação dos mais pobres e excluídos da
sociedade — a maioria da população — face ao processo
de transição.
42 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
mente de o ser. Refiro aqui tanto as questões de ordem económica, como, igualmente, as
de cariz político, social e cultural. Um regime democrático não pode frutificar sobre um
sistema em que não exista uma efectiva separação de poderes — executivo, legislativo
e judicial —, onde se confunda a dimensão pública e privada, onde os detentores de
cargos públicos considerem uma prerrogativa pessoal tirarem benefícios privados da
gestão que podem fazer dos recursos públicos, onde não exista um respeito efectivo dos
direitos, liberdades e garantias fundamentais da maioria dos cidadãos (com mecanismos
funcionais de protecção), onde as regras do mercado e a liberdade da iniciativa privada
sejam fictícias, dependendo essencialmente de favores e patrimonialismo político, onde
a política (tráfico de influências e de favores) continua a ser o principal meio de acesso
à progressão económica, onde a meritocracia pouco ou nada conta.
Angola constitui um destes casos de processos de transição formal, mas não substan-
cial ou efectiva, mais um caso de regime aparentemente democrático, uma espécie
de “multipartidarismo sem democracia e com pés de barro”, uma fachada que es-
conde uma realidade diversa. Em fundações fracas, a qualidade e a durabilidade da
construção é sempre muito incerta e o risco de desmoronamento face a intempéries é
sempre grande. Em regimes com estas características, como sabemos, as intempéries
formam-se na camada dos excluídos dos benefícios, que são sempre a maioria, ou em
segmentos das elites outrora beneficiadas e que o deixaram de ser ou que passaram a
ser menos favorecidas ou ainda que querem ter tudo — o lugar cimeiro da liderança
de acesso às fontes de recursos.
Quem queira antever o sucesso ou o insucesso de uma transição política tem que rea-
lizar uma análise sociológica dos actores dos processos de transição democrática. Tem
que estudar o modo como tais actores interiorizam os valores políticos democráticos
e como efectivamente actuam em relação à mudança, porque sem democratas não se
edificam democracias.
1
Ver relatórios em www.transparencyinternational.com
46 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
sem limites dos recursos naturais e da corrupção. As Lundas estão transformadas numa
zona demasiado insegura. É para lá que confluíram inúmeros bandos de aventureiros,
nacionais e estrangeiros. A agricultura tornou-se impraticável, devido aos constrangi-
mentos que se lhe impõem, pelo estado de destruição dos solos e pelo desvio dos cursos
de água, quase não se desenvolvendo qualquer outra actividade produtiva. Trata-se de
uma região profundamente afectada por graves violações dos mais elementares Direitos
Humanos. Ao contrário do que seria expectável, o fim do conflito militar agravou a difícil
situação que já se vivia naquela região, com a chegada de “exércitos” privados ao serviço
dos generais empreendedores ou generais garimpeiros. A ausência da ordem pública
estabelecida pelas forças de segurança do Estado transforma a região numa espécie de
Far West norte-americano nos tempos da corrida ao ouro.
2 - A Gestão dos Recursos e as Pressões Externas por Transparência,
Boa-Governação e Direitos Humanos
Na última década, em vários fóruns internacionais, têm sido sistematicamente reafir-
mados, em tom de exigência crescente, os princípios da boa-governação pública e da
ética empresarial, e condenadas as práticas do suborno e da corrupção. Nesses fóruns
faz-se igualmente a apologia do respeito pelos Direitos Humanos e da transparência
na gestão das finanças públicas.
Em Angola, segundo denúncias do FMI, uma percentagem razoável das receitas pro-
venientes do petróleo não são reflectidas no Orçamento Geral do Estado (OGE)2, sendo
executadas fora das regras e dos procedimentos estabelecidos pelo próprio governo, o
que é facilitado pelo facto de os impostos pagos pelas companhias petrolíferas, assim
como os “bónus de assinatura” (pagamentos que são feitos quando uma companhia
acede à exploração de novos blocos petrolíferos) não se encaminharem directamente
para o Tesouro Público. São recursos financeiros que transitam por contas off-shore
registadas em nome da Sonangol ou de altos dignitários do Estado e do governo3.
Em Dezembro de 1999, a Global Witness publicou um relatório expondo a aparente cum-
plicidade das empresas petrolíferas e bancárias na apropriação de receitas provenientes
da venda dos recursos minerais, em especial do petróleo, por parte de responsáveis
do Estado4. Do relatório produzido pela Global Witness, emergiu um apelo público às
empresas petrolíferas que operam em Angola para que tornassem públicos os seus
pagamentos ao Estado angolano. A preocupação estendeu-se a outros países onde a
gestão das receitas provenientes da venda de recursos minerais é mal gerida e indevi-
damente apropriada por governantes, alimentando a corrupção internacional, o tráfico
de armas e outro tipo de negócios ilícitos. À Global Witness, juntaram-se depois outras
instituições, como a Oxfam, Save the Children UK e Transparency International UK.
Com o fim da guerra civil em 2002, as pressões internacionais sobre o governo angolano
começaram a aumentar de tom, clamando por transparência, boa-governação e Direitos
Humanos, vindas não só de Organizações Não-Governamentais Internacionais (ONGI),
como de Organizações Governamentais (OG) e Organizações Internacionais (OI). O
2
In Time for transparency, coming clean on oil, mining and gas revenues, a report from Global Witness, de Março de
2004, especialmente p. 35.
3
Vide neste sentido a explicação (justificação) dada pelo embaixador Alberto Correia Neto, in O Globo, de 21 de
Novembro de 2005.
4
In A Crude Awakening: the role of the oil and banking industries in Angola’s civil war and the plunder of the state assets, a
report by Global Witness, Dezembro de 1999.
Justino Pinto de Andrade f O Processo de Transição em Angola 47
5
A este respeito a melhor explicação pertence ao embaixador angolano, então no Brasil, Alberto Correia Neto, in O
Globo, de 21de Novembro de 2005.
Justino Pinto de Andrade f O Processo de Transição em Angola 49
por absorver grande parte das verbas, à custa de reduções e cortes na qualidade dos
materiais empregues na obra.
local e regional, de ajuda aos mais carentes, etc. Elas estão claramente subordinadas
à estratégia eleitoral do partido no poder, contribuindo para a campanha que visa a
conquista e reforço de uma nova maioria parlamentar.
Se incluirmos na sociedade civil os media privados (fora da alçada directa e explícita
do poder político) temos um outro exemplo de perseguição e tentativa de controlo
em relação a todos quantos ousem desafiar a linha política oficial. Os relatos e queixas
dos profissionais do sector são vários, muitos deles impondo-se uma auto-censura,
sabendo que podem enfrentar inúmeras dificuldades em encontrar trabalho caso se
tornem politicamente inconvenientes.
Dada a incapacidade demonstrada pela oposição partidária, só uma sociedade civil
activa, empenhada e com consciência cívica pública, poderá exercer alguma função
de controlo do exercício do poder governativo. O sucesso de uma transição democrá-
tica depende, também, do modo como se desenvolve a sociedade civil. Um sistema
efectivamente democrático deve dar o mais amplo espaço à sociedade civil, devendo
ser livre de se constituir e de agir.
No entanto, actualmente em Angola, a sociedade civil (incluindo os media privados)
constitui o alvo prioritário da ira daqueles que detêm o poder e não o querem perder
nem alterar o modo como o vêm exercendo, o que põe em risco o processo de transi-
ção política iniciado em 1991, altura em que foram aprovados os instrumentos legais
que consagraram os direitos, liberdades e garantias fundamentais, característicos de
qualquer sistema dito democrático.
4 - Os Excluídos de Angola: a “Maioria Silenciosa”
De acordo com o último Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD, a situação
de Angola é deveras preocupante. O índice de pobreza humana situa-se na ordem dos
40,9%, valor que coloca o país na 23.ª pior performance do mundo, com cerca de 38%
da população em situação de subnutrição6. Persistindo os altos níveis de pobreza e
enormes desigualdades sociais, acentua-se a insatisfação e aumenta a onda de crimi-
nalidade, que atinge níveis sem precedentes em diversas partes do país. As popula-
ções que habitam os bairros suburbanos denunciam a prática de execuções sumárias,
realizadas por polícias, alegadamente para estancar a actual onda de criminalidade.
Por sua vez, os gangs que se multiplicam nos bairros, usam métodos cada vez mais
agressivos para responder à agressividade policial. Há bairros que vivem verdadeiras
noites de terror, com um “recolher obrigatório” imposto pelos bandidos.
Depois da guerra assistiu-se a um crescimento dos recursos financeiros destinados
aos sectores sociais, (a despesa passou de 22% da despesa total, em 2002, para os
actuais 28%). Contudo, a educação, a saúde, a habitação e as infra-estruturas básicas
(saneamento, transportes e vias de circulação) são ainda demasiado débeis. Podemos
constatar estes factos pela falta de qualidade do ensino que se oferece, pela falta de salas
de aula, degradação dos estabelecimentos de ensino e elevados índices de inadiplência
dos professores, com baixos salários e sem condições de trabalho; vê-se, também, no
ressurgimento de certas doenças, como a cólera, a tuberculose e a malária (algumas
destas doenças já estavam praticamente extintas no período colonial), assim como o
aumento da prevalência do HIV/Sida; observa-se, igualmente, no caos urbanístico das
cidades (especialmente na capital), com milhões de pessoas a viverem em musseques
6
Relatório do Desenvolvimento Humano. Nova Iorque: PNUD, 2006.
Justino Pinto de Andrade f O Processo de Transição em Angola 51
7
Ver relatório da Human Rights Watch e SOS Habitat, “Angola, ‘eles partiram as casas’. Desocupações forçadas
e insegurança da posse da terra para os pobres da cidade de Luanda”, Vol. 19, n.º 7 (A) (New York: HRW & SOS
Habitat, Maio 2007), disponível em http://hrw.org/reports/2007/angola0507; ver também, relatório da Amnistia
Internacional, “Angola, Lives in Ruins: Forced Evictions Continue” (New York: AI, January 2007), disponível em
http://web.amnesty.org/library/Index/ENGAFR120012007
52 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
A maioria da população, que tem que lidar com esta realidade, não encontra os seus
problemas e reivindicações expressos nos programas políticos dos partidos da opo-
sição. Pequenos sectores das comunidades pobres que têm a sorte de serem alvo de
atenção por parte de alguma ONG nacional ou internacional, encontram aí alguma
voz junto das autoridades, mas isto não resolve o problema de fundo desta “maioria
silenciosa” que tudo sofre, tudo espera e pouco reclama de forma organizada e pública.
Muitos se interrogam do porquê deste relativo “silêncio”, desta falta de apetência para
a exigência, para a expressão do descontentamento. A resposta parece estar na longa
tradição de repressão a que a população tem sido submetida desde o tempo colonial,
passando pelo período Socialista e continuando nos dias que correm. Reside igualmente
nas prementes preocupações de sobrevivência que já fazem parte da vida da maioria
das pessoas desde que nascem e que lhes ocupam todas as horas do dia, buscando
desesperadamente o pão de cada dia nas mais diversas e extenuantes actividades.
O distanciamento destas pessoas — a maioria dos angolanos — em relação ao chamado
processo de transição para a democracia é o mesmo que já antes tinham em relação ao pro-
cesso de construção do Socialismo, mas sem eles, sem a sua participação e envolvimento
na construção de um novo projecto de sociedade, dificilmente se alcançará qualquer
mudança efectiva da actual realidade de pobreza e subdesenvolvimento humano.
Capítulo II
Desafios e Constrangimentos
à Sociedade Civil Angolana
Textos
Fernando Macedo
Carlos Figueiredo
Sérgio Calundungo
Benjamim A. Castello
Cesaltina Abreu
Fernando Pacheco
Kinsukulu Landu Kama
g
55
Introdução
Fernando Macedo
Universidade Agostinho
Neto & Associação
E mbora se possam constatar alguns progressos desde que
se iniciou o processo de democratização no início dos
anos 90, o Estado democrático de direito é ainda uma reali-
Justiça, Paz dade mais formal do que material (efectiva). São ainda muito
e Democracia – AJPD ténues os sinais de escrupuloso respeito pela Constituição e
pelas leis vigentes por parte do poder instituído. É preocu-
pante a inoperância dos mecanismos de responsabilização
política, civil e criminal, dos titulares de cargos públicos,
funcionários e agentes do Estado e a banalização dos mais
elementares direitos da pessoa humana, destacando-se o des-
respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
O partido no poder em Angola é o grande interventor na vida
das Organizações da Sociedade Civil (OSC), e dos partidos
políticos, impedindo-os de se afirmarem de forma capaz. A
maior parte das lideranças dos partidos políticos teve que se
defender de intrusões de elementos da segurança do Estado
e/ou de alguns dos seus próprios membros que foram subor-
nados e, em muitos casos, contestaram e desafiaram os seus
líderes em atropelo aos estatutos dos seus partidos1.
Em relação às OSC, as interferências verificaram-se tão logo
o governo se sentiu incomodado pelas crescentes interven-
ções sociais e críticas à governação que vinham desta área,
escapando cada vez mais ao seu controlo, criando as “suas”
próprias OSC. Posteriormente optou por uma via menos ex-
plícita, apostando no controlo do acesso aos fundos nacionais
(públicos e privados) e internacionais por parte das OSC.
Quando este tipo de estratégia não resulta, em relação a certas
OSC, o método passa a ser mais drástico, tendo chegado ao
ponto da ameaça de ilegalização de algumas OSC nacionais
e estrangeiras, ao arrepio de todo o enquadramento jurídico
que regula esta área.
Em paralelo àquelas tácticas, temos recentemente assistido
a várias tentativas de criação de uma grande plataforma da
sociedade civil, uniformizada na sua relação com as institui-
ções governamentais. Trata-se aqui de mais uma tentativa
de “domesticar” a sociedade civil, procurando, de forma
1
Ver também neste sentido a entrevista do autor à Voz da América, “ONG podem
fazer política, defende Jurista”, de 30 de Julho de 2007.
56 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
2
Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 6.
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 57
3
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo I, 7.ª Edição (Coimbra: Coimbra Editora, 2003), p. 11.
58 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Na Lei das Associações, o legislador ordinário define uma das formas que a sociedade
civil pode tomar, a associação, isto é, “a união voluntária de cidadãos angolanos ou estran-
geiros, com carácter duradouro que visa a prossecução de um fim comum e sem intuito
lucrativo” (art. 2.º da LA). Essa mesma lei estabelece que as “associações prosseguem de
forma livre e autonomamente os [seus] fins, gozando para o efeito de autonomia jurídica,
administrativa e financeira (…) e não podem ser extintas, nem verem suspensas as suas
actividades senão nos termos da lei” (art. 9.º da LA), em conformidade, aliás, com o artigo
52.º da LCA que estabelece o regime da limitação ou suspensão dos direitos, liberdades e
garantias dos cidadãos. Além do mais, a Lei das Associações, no seu preâmbulo, diz que
as associações são “autónomas, não havendo interferência dos poderes públicos quanto à
prossecução dos seus fins”. Elas podem, pois, constituir-se para prosseguir os mais variados
fins não contrários à Constituição e às leis (arts. 6.º, 8.º e 11.º da Lei das Associações). A
Lei não pode nem deve dizer quais são todos os fins que as associações devem perseguir.
Apresenta, a título exemplificativo, os fins profissionais, científicos e técnicos, culturais
e recreativos, educativos, solidariedade social, convívio e promoção social, protecção do
ambiente, promoção e desenvolvimento comunitário e políticos (art. 8.º LA).
Perseguindo estes fins, a sociedade civil concorre para a realização dos objectivos da
República de Angola, porque promove o desenvolvimento, aprofundamento e consolida-
ção da democracia (um dos objectivos da República consagrado no artigo 1.º da LCA).
4
Declarações proferidas pelo director-geral da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária UTCAH), Pedro
Walipe Kalenga em entrevista à Rádio Nacional de Angola em 10 de Julho de 2007; Luanda, Angop, 10 de Julho de 2007.
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 59
da vida associativa, podem ter desenvolvido uma série de capacidades que os potencia a
serem mais eficazes na acção política uma vez eleitos.
É manifestamente inconcebível que no Estado democrático de Direito as associações não
possam “influenciar a política nacional no Parlamento ou no Governo”. Na verdade, o
princípio da representação política implica (art. 3.º n.º 2 da LCA), necessariamente, que
os representantes do povo, de forma ininterrupta, se mantenham em contacto com os
representados, para desta maneira poderem cumprir a obrigação de “concorrer para
a expressão da vontade popular” (art. 4.º da LCA) e actualizar a sua agenda política,
com base nos problemas reais do povo. O princípio democrático (art. 2.º da LCA), no
contexto da imposição constitucional da criação de uma sociedade democrática (art. 1.º
da LCA), aponta para a “democratização da democracia” o que, concomitantemente,
implica a optimização da democracia representativa e democracia participativa num
processo dialéctico5. Os poderes públicos são obrigados a abrir espaços de participação
para os cidadãos e não a restringir ou limitar a participação dos cidadãos.
Neste sentido, as alíneas a), b), c), e e) do número 2 do artigo 8.º da Lei das Asso-
ciações, ferem os artigos 1.º, 2.º, 3.º n.º 2, 4.º e 32.º/1 da LCA e por esta razão são
materialmente inconstitucionais.
Uma questão conexa tem a ver com as afirmações também veiculadas, defendendo
que as organizações que não tenham previsto determinado fim no seu objecto social
não podem prosseguir novos fins (objectivos). Em bom rigor, sempre que uma asso-
ciação decida prosseguir um novo fim que não esteja previsto nos seus estatutos
deve proceder ao aditamento do mesmo por escritura pública notarial. Todavia, não
está prevista legalmente a sanção de limitação de exercício dessa nova actividade. Se
prestarmos atenção ao regime constitucional do exercício dos direitos, liberdades e
garantias dos cidadãos, estabelecido pelo n.º 1 do artigo 52.º da LCA, este artigo só
autoriza limitações ou suspensões de direitos, liberdades ou garantias dos cidadãos,
desde que estejam expressamente estabelecidas por lei.
No quadro ora apresentado, afigura-se relevante a comparação com a situação análoga
referente ao exercício da liberdade de manifestação. De acordo com o jurista Rui Ferrei-
ra, a falta ao dever de informação à autoridade competente da realização de manifes-
tação não constitui crime por o legislador ordinário o não ter penalizado6. Ora, no caso
de uma associação passar a prosseguir novos fins, não previstos originariamente nos
seus estatutos, antes mesmo do aditamento nos mesmos por via de escritura pública
notarial, o legislador ordinário, à semelhança do que se passa com a falta ao dever de
informação à autoridade competente da realização de manifestação, não penaliza a
falta da prossecução de um novo fim não ínsito nos estatutos de uma associação com
a abstenção (com o impedimento) de o prosseguir. Está-se aqui, salvo melhor opinião,
perante o princípio de nula pena sem lei, aplicando-se também o regime constitucional
mais favorável, por se tratar de um direito sob a forma de liberdade, que estabelece
que só se deve restringir a amplitude dos direitos, liberdades e garantias fundamentais
dos cidadãos, no estritamente necessário para a salvaguarda de outros bens.
5
Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, 2003,
pp. 289, 290.
6
Rui Ferreira, “Liberdade de expressão e direito à liberdade de manifestação: positivação constitucional em Angola”,
in Revista da Ordem dos Advogados de Angola - OAA, Ano I, Número 1 (Luanda: Centro de Documentação e Informação
da OAA, 1998), pp. 223-236.
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 61
7
Philipe Braud, Introdução à ciência política (Lisboa: Editorial Notícias, 1982), p. 14.
8
Larry Diamond, Developing Democracy – Toward Consolidation (Baltimore and London: The John Hopkins University
Press, 1999), pp. 221.
9
Raul C. Araújo, Os Sistemas de Governo de Transição Democrática nos P.A.L.O.P. (Coimbra: Coimbra Editora, 2000),
p. 211.
62 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
10
Juan J. Linz & Alfred Stepan, Problems of Democratic Transition and Consolidation – Southern Europe, South America,
and Post Communist Europe (Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 1997), pp. 255-292.
11
Shadrack Wanjala Nasong´o, Contending Political Paradigms in Africa: Democratization vs. Authoritarianism in Kenya
and Zambia, a PhD dissertation presented to the Department of Political Science, Graduate School of Arts and Sciences
(Boston, Massachusetts: , Northeastern University, February, 2004).
12
Elisabeth Jean Wood, Forging Democracy from Below- Insurgent Transitions in South Africa and El Salvador (Cambridge:
Cambridge University Press, 2000), pp. 169-193.
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 63
Não se pode oferecer qualquer dúvida em relação ao direito de oposição geral à violação
de direitos e liberdades e, igualmente, ao direito à oposição à má governação (práticas e
implementação de políticas públicas que firam a Constituição e a Lei), por a democracia
ser definida por via de duas justificações, a positiva e negativa13. A justificação positiva
da democracia aponta esta forma de governo como significando governo do povo, pelo
povo e para o povo; enquanto que a justificação negativa da democracia aponta para
a possibilidade de destituição dos governantes, por via pacífica e através dos meios
disponíveis constitucional e legalmente. A democracia é definida como uma “forma
ou técnica processual de selecção e destituição pacífica de dirigentes”14. Os dirigentes
(governantes em sentido lato, membros do executivo, deputados e juízes) podem ser
destituídos dos seus cargos por revogação de mandato, impeachment, moção de censura,
por incompatibilidade de funções e por outros mecanismos previstos constitucional e
legalmente. No mesmo quadro de referência, uma maioria parlamentar pode perder o
número de assentos parlamentares que lhe conferem o estatuto de maioria em eleições
subsequentes àquelas em que ganhou aquele estatuto.
Para que, no plano político, seja possível responsabilizar os governantes, é necessário
que na esfera pública os indivíduos ou organizações possam recolher informações
(art. 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem – DUDH) que atestem o
incumprimento das obrigações dos governantes ou violações dos direitos e liberdades
dos cidadãos perpetradas por titulares de cargos públicos, funcionários e agentes do
Estado; que os indivíduos ou organizações possam difundir essas informações bem
como a sua interpretação e opinião acerca das mesmas (art. 19.º da DUDH), de forma
a participar da formação da opinião pública; promovendo a boa governação, que é
definida como sendo do interesse público (art. 11.º da Lei de Imprensa). Lembre-se que
de acordo com a Lei Constitucional de Angola, as normas constitucionais e legais em
relação a direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas em harmonia
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 21.º/2 da LCA).
Mais, essa acção de campanha política através de denúncias públicas contra práticas
e políticas públicas que lesam os direitos e interesses legítimos dos cidadãos concorre
para a concretização da responsabilização política, civil e criminal, dos titulares de
cargos públicos, funcionários e agentes do Estado. Tome-se nota de que a Constituição
estabelece que o “Governo é responsável politicamente perante o Presidente da Re-
pública e a Assembleia Nacional (art. 105.º n.º 2 da LCA); e que “os titulares de cargos
públicos respondem civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem no
exercício das suas funções, nos termos da lei” (art. 54.º, alínea f, da LCA).
Os titulares de cargos públicos, funcionários e agentes do Estado estão, pois, sujeitos
a um regime constitucional e legal de vigilância que visa proteger o “Estado pessoa
colectiva”, pessoa jurídica de bem, contra os actos destes, que firam valores e bens
juridicamente protegidos. E é indiscutível o direito de contribuir para a alternância
do poder, desde que os poderes instituídos sejam incompetentes ou desprovidos
do mínimo de condições para promoverem as mudanças almejadas por sectores da
sociedade, antes mesmo do período de campanha eleitoral; e de contribuir para a
destituição de titulares de cargos públicos, funcionários e agentes do Estado, quando
13
Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, 2003,
p. 291.
14
Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, 2003,
p. 291.
64 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
estes incorrem em práticas que estejam tipificadas como crimes ou que lesem direitos
e interesses constitucional ou legalmente protegidos. Aqueloutro direito decorre do
princípio democrático e do princípio do Estado de Direito (art. 2.º da LCA).
Toda a prática política de organizações da sociedade civil ou de indivíduos deve res-
peitar o direito ao bom-nome, honra, consideração e reputação dos titulares de cargos
públicos, funcionários e agentes do Estado e membros de partidos políticos (art. 20.º da
LCA). Contudo, o direito à oposição, em sentido lato, abrangendo associações cívicas
e políticas e os partidos políticos, constitui uma liberdade dedutível dos princípios
democrático e do Estado de Direito (art. 2.º da LCA), que não deve ser posto em causa
por reacções ou respostas arbitrárias por parte dos poderes públicos.
Art. 4.º, sob a epígrafe “tutela”, ‘‘As organizações Não Governamentais ‘ONG’
estão sujeitas à tutela do Ministério da Assistência e Reinserção Social’’; viola o
artigo 32.º da LCA e o artigo 9.º da Lei das Associações (princípio da autonomia
das associações).
Art. 6.º, ‘‘Compete à Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária
(UTCAH): a) acompanhar, controlar e fiscalizar as actividades das Organizações
Não Governamentais ‘ONG’’’; viola o artigo 32.º da LCA e o artigo 9.º da Lei
das Associações (princípio da autonomia das associações).
Art. 16.º, n.º 1, ‘‘A inscrição das Organizações Não Governamentais ‘ONG’ nacio-
nais no órgão coordenador, Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humani-
tária (UTCAH), deve ser feita mediante a apresentação dos seguintes documentos:
(…) e) autorização de actuação no espaço territorial angolano do órgão da activi-
dade para o qual a ONG está vocacionada, contendo o parecer sobre a capacidade
e idoneidade para o exercício da actividade no País’’; viola o artigo 13.º da Lei das
Associações (capacidade para ser titular de direitos e obrigações).
Art. 18.º, n.º 1, ‘‘O Ministério Público deve decretar a suspensão das actividades
das Organizações Não Governamentais ‘ONG’ sempre que haja fortes indícios
da prática de actos lesivos à soberania e integridade da República de Angola’’;
viola do artigo 52.º/1 da LCA (direitos, liberdades e garantias dos cidadãos só
podem ser limitados ou suspensos nos termos da lei; logo, não pode ser um
regulamento a fazê-lo).
Art. 21.º, n.º 1, ‘‘Sem prejuízo de outros deveres especialmente consignados por lei,
as Organizações Não Governamentais ‘ONG’ estão obrigadas a: (…) b) abster-se
da prática de acções de índole política (…); c) consultar previamente o Ministério
da Assistência e Reinserção Social, através da Unidade Técnica de Coordenação da
Ajuda Humanitária (UTCAH) para determinar a província ou região do território
nacional onde os projectos aprovados deverão ser executados; d) obter aprovação
dos seus projectos nos Ministérios das respectivas áreas da sua intervenção no
âmbito dos planos nacionais e provinciais de acção; e) prestar contas aos Governos
Provinciais no final dos seus projectos; f) remeter aos Ministérios da Assistência e
Reinserção Social, Ministério das Finanças e ao Banco Nacional de Angola até ao mês
de Fevereiro o relatório anual e contas do exercício do ano anterior e as previsões
de doações internas e externas a receber no exercício corrente; (…) l) obter prévio
aval do Ministério da Assistência e Reinserção Social, através da Unidade Técnica
de Coordenação da Ajuda Humanitária (UTCAH) para angariação de fundos ou
outros apoios junto da comunidade nacional e internacional”; viola o artigo 9.º da Lei
das Associações, assim como os arts. 52.º n.º 1 da LCA (reserva de lei para limitação
ou suspensão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos) e ainda o art. 89.º
alínea i (reserva de lei para a matéria relacionada com associações).
tacticamente na criação das “suas” próprias OSC, que lhe fossem favoráveis e cuja
acção podia controlar, ao mesmo tempo que enfraquecia todas as outras que estavam
fora do seu domínio de influência (segunda metade dos anos noventa e início de 2000).
Perante a crescente exposição pública (nacional e internacional) desta táctica, de ter
uma “sociedade civil amiga”, o regime viu-se obrigado a alterar a sua acção e passou
a exercer a sua influência de forma mais indirecta, mas ainda assim com um maior
grau de eficiência e eficácia.
Por causa da gestão clientelista do sector público e privado e do apertado controlo
político sobre todas as áreas da vida em sociedade, as OSC “não amigas do governo”
dificilmente acedem a fundos públicos ou privados angolanos, tendo que depender
fortemente dos financiamentos externos das organizações internacionais. Neste âm-
bito e tanto quanto possível, o controlo e a pressão do governo pretendeu estender-se
igualmente a esses fundos externos. Começou, então, recentemente, a assistir-se a
uma crescente tendência de apoio selectivo de muitas organizações da sociedade civil
internacional a parceiros nacionais, com base em critérios que não são primeiramente
determinados pelo mérito do trabalho realizado, mas antes pela acção politicamente
aceitável dos parceiros nacionais. As OSC com uma atitude passível de ser considerada
como politicamente sensível e incómoda para com o governo passaram a ser preteridas
no acesso aos financiamentos externos, apodadas de “radicais” ou “problemáticas”
em relação a todas aquelas “menos problemáticas” ou “não radicais”, que passaram
então a ser as preferidas — cooptadas. Os meios de pressão do governo sobre as OSC
internacionais são obviamente as limitações burocrático-administrativas e políticas
que podem ser impostas ao trabalho destas organizações em Angola, tratando-se aqui,
efectivamente, de expedientes do governo angolano que constituem inquestionáveis
violações à liberdade de associação. Convém lembrar que a liberdade de associação é
um direito humano e não apenas um direito dos cidadãos angolanos. Esta interpretação
colhe vencimento em razão do facto de as normas constitucionais e legais em relação
aos direitos fundamentais, por força do que estabelece a Lei Constitucional de Angola,
deverem ser interpretadas e integradas em harmonia com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (art. 21.º/2 da LCA).
Do ponto de vista do regime, os bons parceiros internacionais são aqueles que adoptam
o discurso padrão, politica e diplomaticamente aceitável, que basicamente diz que o
“governo de Angola e o Presidente se estão a esforçar no sentido de uma melhoria efec-
tiva da situação, não obstante as dificuldades com que se confrontam.” Este é o discurso
politicamente correcto e aceitável para o regime. Quem adopta este discurso recebe uma
retribuição baseada em facilidades na relação com o aparelho burocrático-administrativo
e governamental, enquanto que aqueles que ultrapassam aqueles limites sujeitam-se a
punições, que podem ir desde simples e implícitas chamadas de atenção a crescentes obs-
táculos burocrático-político-administrativos à sua actuação em Angola e eventualmente
ao impedimento de actuarem em Angola, a coberto dos mais engenhosos argumentos
técnico-legais que tornam impraticável o trabalho dessas mesmas organizações.
Ainda que nunca assumido e veementemente negado pelas OSC internacionais, assis-
timos cada vez mais a este apoio selectivo às OSC nacionais menos problemáticas do
ponto de vista político. Esta prática é um facto que não pode ser assumido porque os
próprios financiadores das OSC internacionais a actuar em Angola e as próprias opiniões
públicas internacionais no Ocidente condenariam estas práticas e, muito provavelmen-
te, reduzir-lhes-iam o seu apoio. Do ponto de vista do regime, esta táctica, ainda que
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 67
camuflada, acaba por ser bem mais inteligente no alcance dos objectivos pretendidos de
enfraquecimento político da sociedade civil, aumentando a probabilidade de sucesso
da velha táctica de cooptação.
Urge denunciar este fenómeno que se pode considerar de cumplicidade por omissão de
muitas organizações internacionais, que em troca da permissão governamental de con-
tinuarem a trabalhar em Angola se calam (ou pelo menos não se expressam claramente)
perante as óbvias e inúmeras injustiças, violências e violações de Direitos Humanos.
Constitui um exigência conforme com o objectivo constitucional de criação de uma so-
ciedade livre, democrática, de paz, justiça e progresso social, dizer que se as organizações
internacionais quiserem trabalhar em Angola ao preço de calarem a sua voz estão a fazer
um mau trabalho, porque os africanos não precisam de migalhas e assistencialismo de
emergência, precisam de oportunidades de médio e longo prazo para participarem de
pleno direito no sistema político, social e económico, precisam, sim, de oportunidades
de levar por diante a sua vida numa sociedade que proporcione o seu desenvolvimento.
Essa sociedade tem que ser uma sociedade aberta, em que as políticas públicas e a acção
dos governantes são debatidas e questionadas diariamente.
Uma outra tendência a que se assiste por parte das OSC internacionais e dos seus parcei-
ros nacionais preferidos é a crescente difusão do discurso de necessidade de união entre
as diversas OSC nacionais, argumentando em favor de iniciativas conjuntas, articuladas,
que possam eventualmente ter mais impacto na relação institucional com o Estado. É
um discurso que se tem propagado e que começa a estimular diversas iniciativas entre
as OSC neste sentido, numa prática que é bem aceite pelo governo e que está igualmente
a assimilar progressiva e imperceptivelmente as anteriormente referidas OSC “amigas
do governo”, que assim se tentam branquear a coberto de iniciativas mais alargadas.
Essa tentativa, disfarçada e aparentemente bem intencionada, de promoção da união das
organizações da sociedade civil, constitui um grande perigo para a ordem constitucional
democrática angolana. Primeiro, o quadro constitucional estabelece o pluralismo de
expressão e de organização política como um dos fundamentos da República (art. 2.º da
LCA), considerando-se a comunidade política como sendo constituída por vários indiví-
duos e grupos de indivíduos. Estes, por sua vez, podem concertar-se por livre iniciativa
em coligações, redes ou outras formas de juntar esforços, sem perda de identidades, sem
terem de estar sujeitos a uma liderança unicéfala. Segundo, a sociedade civil dá expressão
aos mais variados interesses, direitos e pretensões, que ganham corpo através da prática
política, institucionalizada como competição. Terceiro, o pluralismo de expressão e de
organização política pretende assegurar que os vários interesses, direitos e pretensões,
mesmo os de grupos minoritários, possam ser tidos em consideração pública, por via
do debate público, do contacto com os decisores políticos, de reivindicação por meio de
manifestação ou de outros meios democráticos existentes para o efeito.
A sociedade civil por definição e essência não é institucionalizável, sedeada numa
única liderança, é antes um espaço de liberdade em que vários actores participam no
jogo democrático; o contrário não será mais do que um qualquer tipo de monolitismo
disfarçado para facilitar a cooptação e mitigar o pluralismo de expressão e de organi-
zação. Contrariamente ao que pretendem essas organizações internacionais e os seus
respectivos parceiros angolanos, o equivalente dessa unidade homogeneizada nas
relações com as instituições do Estado não existe nos países ocidentais. Mesmo a nível
regional, não se vê tal fenómeno na África do Sul ou em Moçambique. Existem redes
de interacção entre parceiros que comungam de um determinado número de princípios
68 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
meiro deles concerne aos limites da sua cooperação com o governo, sabendo-se até
que ponto se deve cooperar, para que a cooperação não se transforme em cooptação.
Note-se que há consenso no seio da comunidade científica no que concerne à autono-
mia das organizações da sociedade civil em relação ao Estado como constituindo um
traço identitário da sociedade civil. Toda e qualquer articulação com parceiros nacio-
nais ou internacionais deve ter por base o respeito intransigente por estes princípios
de orientação e actuação. A partir daqui podemos falar de cooperação e articulação
entre OSC, tanto a nível nacional como da região austral, para conhecermos melhor a
realidade sócio-política regional em que estamos inseridos, trocarmos experiências e
entreajudarmo-nos em situações de dificuldade.
Uma segunda estará relacionada com a necessidade de as OSC nacionais assumirem
uma posição de coerência entre os princípios e linhas de actuação programáticas que
estabeleceram para si mesmas e denunciarem os posicionamentos nacionais e inter-
nacionais que contrariem e violem os princípios democráticos e os Direitos Humanos
que dizemos defender.
Em terceiro lugar, devemos igualmente reivindicar um tratamento mais justo e iguali-
tário em relação aos doadores e em relação aos parceiros das ONG internacionais. Para
além do referido condicionamento que tem vindo a ser imposto pelo governo e acatado
pelas OSC internacionais na selecção de parceiros nacionais, existem outros níveis de
discriminação, nomeadamente ao nível dos financiamentos. As OSC internacionais a
actuar em Angola recebem financiamentos na ordem dos dois, três, quatro milhões de
dólares, sub-financiam os parceiros locais com somas extremamente reduzidas para
realizarem pequenas tarefas de projecto, sendo uma espécie de sub-contratados, que
acabam por não ganhar a experiência necessária para o seu crescimento em termos de
competências. Do mesmo modo, todos sabemos que os consultores e os especialistas
externos são pagos cinco a seis vezes acima dos nacionais, quando muitos dos espe-
cialistas nacionais são aqueles que na verdade fornecem o principal input do trabalho
de terreno e do conhecimento profundo das realidades.
O argumento da falta de competências é normalmente utilizado pelos parceiros inter-
nacionais como justificativo para não afectarem mais verbas e responsabilidades às
organizações locais. Argumentam, também, de forma implícita (e por vezes explícita),
que uma boa parte dos parceiros nacionais estão minados por fenómenos de corrupção,
desviando parte das verbas. Estes argumentos constituem normalmente generalizações
abusivas, havendo muita gente séria e competente a trabalhar nas OSC angolanas
e, também, pessoas muito competentes que não aceitam trabalhar em organizações
angolanas da sociedade civil porque os salários oferecidos não são competitivos, es-
pecialmente quando comparados com os das organizações internacionais. Paradoxal-
mente, as organizações internacionais estão sempre a apelar ao voluntariado quando
os seus funcionários expatriados ou mesmo alguns dos seus quadros angolanos têm
dos mais competitivos salários do mercado. Acima de tudo, há que desmontar esta
argumentação e dizer claramente que não podemos permanecer nesta menoridade a
que os parceiros internacionais nos querem votar.
O quadro de cooperação entre organizações nacionais e internacionais deve ser de
parceria autêntica e não de subalternidade. As organizações angolanas devem con-
quistar e exigir o respeito que lhes é devido. Por um lado, as competências ganham-se
trabalhando e aprendendo em situação de igualdade com os parceiros internacionais,
por outro lado, temos de ter consciência de que a escassez de recursos disponíveis
70 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Conclusão
O quadro jurídico formal angolano estabelece inequivocamente os parâmetros de
actuação da sociedade civil. Esta é definida como sendo constituída por indivíduos,
grupos de indivíduos informais ou formais, associações autónomas em relação ao Es-
tado, que articulam direitos e interesses e que são portadores de direitos e liberdades
garantidas pela Constituição e leis ordinárias. Os limites ao exercício das capacidades
da sociedade civil são os estabelecidos pela Constituição e pela Lei das Associações. A
administração não dispõe da capacidade de cercear ou de alterar esse quadro através
do recurso ao decreto-lei ou decreto regulamentar, por essa matéria legislativa cons-
tituir reserva absoluta de competência da Assembleia Nacional. O “Regulamento das
Organizações Não Governamentais” padece do vício de inconstitucionalidade orgânica
porque o governo não tem capacidade para legislar sobre matérias atinentes com as
associações, nos termos em que o fez através deste regulamento.
A sociedade civil pode fazer política, tendo por limite a não participação em eleições,
visando influenciar, no processo de decisão, os poderes executivo e legislativo. Ela
pode mesmo fazer campanha contra partidos ou governos instituídos, devendo, no
entanto, fazê-lo com a observância dos direitos ao bom-nome e reputação dos titulares
de cargos públicos, funcionários e agentes do Estado e membros de partidos políticos.
A liberdade implica poder fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. É a lei que estabelece
os limites e não qualquer partido político, maioria parlamentar ou executivo, de forma
avulsa e casuística.
A tentativa de institucionalização de uma representação da sociedade civil através da
liderança (“imposta”) de um grupo de indivíduos (processo em curso em Angola, com
o patrocínio de organizações internacionais, multinacionais e embaixadas ocidentais)
constitui um atentado à ordem constitucional democrática angolana, que pressupõe o
pluralismo de expressão, o pluralismo de organização política e a autonomia da sociedade
civil em relação ao Estado e a poderes sociais e económicos.
As organizações internacionais não governamentais devem repensar a maneira como repro-
duzem o velho modelo da dependência do Terceiro Mundo. A indústria das organizações não
governamentais internacionais não deve ser o novo rosto da maneira egoísta e paternalista
do Ocidente fingir que apoia a democratização do “Terceiro Mundo”.
As organizações nacionais não governamentais que fecham os olhos às violações dos
Direitos Humanos, à má governação e à corrupção, devem deixar de fingir que apoiam a
democratização. Têm a opção de apoiar incondicionalmente o Governo, mas devem assu-
mir que se trata de uma opção pela cumplicidade baseada no cálculo da sua sobrevivência
em detrimento do respeito pelos Direitos Humanos e consolidação da democracia.
Salvaguardados os direitos de terceiros, o princípio da liberdade permite que a so-
ciedade civil prossiga os mais variados fins, não contrários à Constituição e à Lei, e
pelas formas mais diversas, apimentadas pela boa arte da política, que se socorre da
imaginação criativa, no quadro de uma sociedade pluralista.
71
A Sociedade Civil e a
Democratização em Angola
Carlos Figueiredo
Acção para
o Desenvolvimento
N este texto argumenta-se que a principal contribuição
que a sociedade civil pode dar para o processo de
democratização e aumento da justiça social em Angola, é
Rural e Ambiente praticar mais aquilo que recomenda em termos de união, ca-
– ADRA pacidade de acção colectiva e de cultivar estilos democráticos
&
de liderança. Dito por outras palavras, a maior contribuição
SNV
(Cooperação Holandesa) que a sociedade civil pode dar é a de reforçar a coerência
entre o seu discurso e a sua prática.
a nível interno e internacional é a Fundação Eduardo dos Santos (FESA), cujo patrono
é o presidente da República, tratando-se de uma organização muito mais próxima do
governo e do topo do poder do que dos cidadãos. A exemplo da FESA, muitas outras
organizações surgiram na mesma senda e com propósitos e posturas semelhantes.
Temos aqui, desde logo, uma primeira distinção entre este tipo de organizações que
não são verdadeiramente da sociedade civil — pois são essencialmente criações do
poder para reforçar a sua hegemonia —, e as outras organizações que surgem mais
enraizadas em visões, anseios e interesses de grupos dentro da sociedade angolana.
Parecem existir forças dentro do governo que seguem uma clara estratégia de reforçar
as primeiras e enfraquecer as segundas. Esta é uma frente de luta crucial para a afir-
mação da sociedade civil Angolana como força fundamental para a democratização da
sociedade. Uma maior articulação e coordenação entre estas organizações que surgem
de anseios, visões e interesses dos cidadãos, é indispensável para resistir às forças que
as querem enfraquecer.
Por outro lado, é necessário reconhecer que também no seio destas organizações mais
enraizadas na sociedade, existem diferentes posicionamentos, perspectivas, visões e
estratégias. Uma das razões para explicar um tal fraccionamento, para além do que
é normal, aceitável e salutar nos movimentos da sociedade civil, é que elas possuem
raízes muito diferentes. Algumas organizações, por exemplo, foram criadas por grupos
com fortes ligações ao MPLA, tratando-se de pessoas que estiveram no passado ligadas
ao processo de formação de cooperativas e que depois criaram chamadas organizações
de desenvolvimento. Outras foram criadas nas zonas anteriormente ocupadas pela
UNITA. Outras, ainda, surgiram da reacção de emergência à crise humanitária.
Esta divisão, motivada pelos distintos percursos, é muitas vezes exacerbada pela perpe-
tuação da cultura maniqueísta herdada do tempo do partido único, em que havia os bons
e os maus, os fantoches e os que queriam construir uma sociedade nova (que abordámos
no início deste texto). Apesar do processo de mudança para o pluralismo partidário, nos
anos noventa, esta cultura de separação e de alguma intolerância ainda está demasiado
presente no nosso modo de analisar e de agir, facto que nos enfraquece enquanto socie-
dade civil, debilitando gravemente a nossa capacidade para a acção colectiva.
Para além do mais, devemos ainda referir a cultura de medo que decorre da intole-
rância e autoritarismo anteriormente referidos. Trata-se de um medo que leva muitas
vezes à auto-censura, um medo auto-castrador da liberdade de expressão, de opinião
e mesmo de pensamento.
A título de exemplo, podemos referir o caso da “tentativa de ilegalização” de algumas
ONG por parte do governo em meados de Julho de 2007.
Em entrevista à Rádio Nacional de Angola em 10 de Julho de 2007, o director-geral
da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária (UTCAH), Pedro Wali-
pe Kalenga, denunciou a existência de organizações não governamentais nacionais e
estrangeiras a funcionarem de forma ilegal em Angola, afirmando que muitas dessas
ONG eram apoiadas por partidos da oposição e realizavam actividades que violavam
a lei, desobedecendo ao governo e às suas instituições e incentivando as populações a
reagirem contra as autoridades. Neste caso estariam as associações Mãos Livres, SOS
Habitat, Associação Justiça Paz e Democracia e a Open Society Angola2.
2
Luanda, Angop, 10 de Julho de 2007.
74 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
As acusações de Walipe foram seguidas de outras, que dos mais diversos quadrantes
afectos ao MPLA o apoiaram — várias personalidades com responsabilidades governa-
mentais/ministeriais, deputados, jornalistas e sociólogos afectos ao partido no poder3.
Todas estas intervenções tiveram um enorme eco numa campanha dos media estatais para
apoiar aquelas posições, sem sequer ouvir os acusados, nem outras opiniões contrárias
no seio da sociedade civil. Das organizações visadas, naturalmente que não constava ne-
nhuma das que sistematicamente aparecem nos media estatais a fazerem propaganda ao
partido maioritário, restando somente algumas das mais “politicamente inconvenientes”
por actuarem na área dos Direitos Humanos, eleições e advocacia, levando a crer que
tais pronunciamentos poderiam eventualmente estar relacionados com o aproximar das
eleições e com a tentativa de restringir as opiniões críticas durante o período de debate
pré-eleitoral. Outra hipótese aventada seria a de que esta campanha faria alegadamente
parte de uma preparação da opinião pública para uma lei das associações mais restritiva
à autonomia das OSC.
Independentemente dos motivos que poderiam estar na base de tal campanha, o facto
é que da maneira como se articularam os pronunciamentos públicos contra as OSC e a
cobertura/apoio que tiveram nos media estatais, tornou-se claro para a maioria da socie-
dade civil que se tratava de uma estratégia política governamental-partidária de ataque
às OSC e ao espaço cívico e das liberdades fundamentais como um todo. Entendida desta
forma, uma tal estratégia intimida e acentua uma tendência para a auto-censura.
As OSC fora do âmbito governamental-partidário começaram a pensar numa reacção
conjunta por via das duas maiores plataformas de ONG (FONGA – Forum das ONG
Angolanas, e CONGA – Comité das Organizações Não Governamentais em Angola).
O processo de discussão para esta tomada de posição é bastante ilustrativo do espírito
de auto-censura que tratamos aqui. Logo após os primeiros ataques, foi preparado um
esboço de documento que criticava a atitude governamental de colocar pressão sobre
todas as organizações da sociedade civil, por trabalharem em advocacia e Direitos
Humanos. Este primeiro documento beneficiou de contribuições várias, para o colocar
no tom correcto e para incluir todos os aspectos que se considerou serem importantes
exprimir junto da UCTAH. Embora se tenha chegado a uma formulação que parecia
consensual, não se conseguiu que o documento fosse assinado pelas lideranças do
CONGA e do FONGA, devido a toda uma imensidão de entraves de todo irrelevantes
que eram sistematicamente levantados.
Seguiu-se ainda uma tentativa de fazer o documento circular como abaixo-assinado por
um grupo de indivíduos, que o assinariam a título pessoal, uma vez que institucional-
mente se havia revelado inviável. Contudo, também esta via se gorou, porque as várias
pessoas potencialmente interessadas em assinar queriam, antes de mais, saber quem
seriam os outros co-signatários com quem poderiam eventualmente ser conotados,
preocupados que estavam com possíveis retaliações por parte do poder político.
3
A intervenção de Walipe foi seguida de outras que o secundaram: o jornalista e docente Ismael Mateus defendeu
que o Ministério Público deveria proceder à averiguação e posterior ilegalização das ONG que, contrariando o seu
objecto social, envolvem-se em questões de fórum político do país, incitando a população à desobediência (Luanda:
Angop, 12 de Julho de 2007); o Dr. Alvarenga, do Ministério da Justiça, chegou a referir que as ONG são por vezes
mecanismos de branqueamento de dinheiro e de fomento ao terrorismo; o primeiro secretário provincial de Luanda
do MPLA, Bento Bento, afirmou que “existem ONG que em vez de mobilizarem o povo para o registo eleitoral, estão
a incitar as populações para não votarem no MPLA” (Luanda: Jornal de Angola, 22 de Julho de 2007); o sociólogo
Simão Helena denunciou o caso de ONG que operam no país sob a capa da filantropia, mas que acabam por fazer
política, incitando a população à subversão e à desordem (Luanda: Jornal de Angola, 11 de Julho de 2007).
Carlos Figueiredo g A Sociedade Civil e a Democratização em Angola 75
Por fim, depois de inúmeras discussões, tempo e esforços dispendidos, o documento acabou
por ser assinado apenas por dois indivíduos, que foram mais tarde criticados, em vários
círculos das OSC, por terem quebrado a suposta unidade de reacção da sociedade civil.
Deste exemplo, resulta claro que um dos grandes desafios que se nos coloca, socieda-
de civil empenhada numa efectiva democratização, é o de reflectirmos criticamente e
em conjunto sobre a nossa própria prática e da sua relação com uma efectiva demo-
cratização e com a construção de uma cultura democrática. É preciso aumentarmos
a exigência em relação a nós mesmos, no sentido de praticarmos mais aquilo que
“pregamos”. A partir daí devemos procurar aumentar a coordenação e diminuir a
fragmentação. Devemos procurar a coordenação à volta de princípios e de causas co-
muns que contribuam para uma democratização efectiva da nossa sociedade; causas
e princípios gerais e simples que consigam mobilizar as pessoas, ainda que tenham
diferentes linhas de orientação, partidos ou credos religiosos. No fundo, ultrapassar a
realidade prevalecente da sectarização e da fraqueza que lhe está inerente, buscando
um objectivo maior de fortalecimento da sociedade civil e da democratização. Há que
vencer o medo e derrotar a auto-censura. O caso da prisão de Sarah Wykes em 18 Fe-
vereiro de 2007 poderá ser visto como um primeiro esboço de tais casos geradores de
articulação e concertação. Ainda que pontual e sem sequência, existiu alguma reacção
solidária e generalizada, essencialmente por via da Internet, por parte de inúmeras
OSC, activistas e alguns políticos.
Apesar da diversidade ser positiva, é importante encontrar pólos de aliança no seio
das OSC e de comunhão em torno de uma estratégia/postura democrática de base e
a este nível torna-se evidente que a responsabilidade para mudar está, também, na
própria sociedade civil e na coragem de assumir os seus princípios de base e aquilo
que “prega”, não se deixando intimidar pelo poder político e confrontando-o sempre
que as liberdades fundamentais legalmente protegidas estiverem a ser ameaçadas.
financiamentos dos doadores e meios. A própria competição, que por vezes existe entre
OSC no acesso aos financiamentos dos doadores, acaba igualmente por diferenciar e
fragmentar, mais do que articular.
Não se pode pretender que todas as OSC sejam financiadas do mesmo modo. É normal
que a comunidade doadora também tenha a sua agenda. Esperar o contrário não seria
realista. No entanto, não é de todo aceitável que os doadores usem as organizações
nacionais como simples instrumentos, manipulados em função de objectivos e agendas
externas. A responsabilidade por esta postura é primeiramente dos doadores, mas não
se pode ignorar a responsabilidade das OSC angolanas a quem cabe aceitar ou não
esse jogo. Este é um debate que está igualmente por fazer. Debate no seio das OSC
Angolanas e entre estas e a comunidade doadora. Devemos notar que nem os doadores
nem as OSC Angolanas são entidades homogéneas e com interesses únicos.
ter um papel de, a prazo, ajudar à democratização dos vários níveis das estruturas
governativas do país. Encontramos em muitas aldeias do país elementos deste tipo de
acção colectiva e de gestão do interesse comum, com raízes na tradição rural africana.
O reforço destes elementos pode ser um dos pontos de partida.
Por fim, um quinto eixo consistiria em desenvolver projectos de pesquisa, funda-
mentados na realidade e que sustentem a acção. Existe um grande vazio em Angola
a este nível. Falta pesquisa feita por académicos em articulação com as próprias OSC
e as comunidades, de uma forma participativa e inclusiva. Deverá ser uma pesquisa
submetida à agenda do grande público e às necessidades das comunidades desfavo-
recidas, sem no entanto se perder de vista a articulação desta dimensão micro com as
grandes condicionantes políticas e económicas, nacionais, regionais e internacionais.
Em resumo e de forma simples, estes cinco eixos têm simplesmente a ver com a neces-
sidade de praticarmos mais aquilo que são os valores que dizemos defender.
sector um financiamento das OSC que seja autónomo das condicionantes políticas e
empresariais do país onde actuam.
A título de exemplo, foi lançado no início de 2007 um projecto de criação de um “Centro
de Reforço das Capacidades das OSC” (pretendendo igualmente reforçar a capacidade
de governos locais), composto por um consórcio que integra a Development Workshop,
a ADRA, a MOSAIKO, a IBIS, o FONGA e a World Learning, em resposta a um desafio
lançado pela União Europeia, pela USAID e pelo Governo Angolano, no sentido de se
financiarem projectos da sociedade civil com fundos disponibilizados pelas empresas
petrolíferas a actuarem em Angola. Numa das reuniões ocorridas no âmbito deste pro-
jecto e em que alguns membros das organizações presentes realçaram a necessidade de
colocar maior ênfase e investimento na cidadania, na advocacia dos Direitos Humanos e
de colocar forte pressão sobre o Estado no sentido da democratização, a reacção informal
dos representantes de algumas petrolíferas foi cautelosa, frisando que teríamos de com-
preender a posição daquelas empresas num contexto político nacional e internacional
mais alargado, em função das suas próprias agendas e objecto empresarial.
Um segundo conjunto de condicionantes consiste nas barreiras à liberdade de actuação
no espaço cívico, começando desde logo pela efectivação da liberdade de expressão
e do acesso à informação, dado que, como sabemos, os media alternativos (os poucos
que se encontram fora da esfera de influência do Estado) estão a ser cada vez mais
limitados na sua actuação, sendo a rádio Ecclesia um dos exemplos mais referidos,
impedida que tem sido de emitir fora de Luanda. Os media estatais são extremamente
parciais e permitem um cada vez menor espaço aos actores da sociedade civil que
sejam críticos do governo. Há vários exemplos de emissoras provinciais em que foi
retirado o tempo de antena anteriormente concedido às OSC para programas de
educação cívica. Um outro exemplo é o modo parcial como a imprensa tratou a greve
de professores no início de 2007. Foram entrevistados exclusivamente os professores
e sindicatos que não estavam de acordo com a greve e dada uma ampla cobertura à
posição do Ministério da Educação, tendo sido ignorado por completo o Sindicato
dos Professores – SINPROF – que convocou a greve. Em vez de informar o público
sobre os factos e as várias posições, a imprensa estatal foi usada para fazer uma cam-
panha propagandística e manipular a opinião pública e os professores no sentido de
enfraquecer o movimento grevista. O mesmo se passou com a anteriormente referida
tentativa de ilegalização de algumas ONG.
Para além das barreiras existentes a nível interno, criam-se agora novos obstáculos
a nível regional/internacional, existindo casos de organizações sociais que têm sido
desencorajadas de se relacionarem com congéneres de outros países da região. Este
espaço regional/internacional é muito mais difícil de controlar e, como tal, encerra um
potencial de muito maior de perigo para os interesses do poder estabelecido.
Em terceiro lugar estão as condicionantes ao nível da extrema concentração de poder
que existe no nosso país e a falta de eficácia dos mecanismos de controlo do poder
político. Instituições como o Parlamento, o Tribunal de Contas e a Procuradoria-Geral
da República têm um papel muito limitado no que toca ao controlo da actividade go-
vernativa. Geralmente estas instituições coíbem-se de tomadas de posição que sejam
mais assertivas em relação à actuação do governo e do órgão máximo de poder em
Angola — o Presidente da República. De igual modo, a oposição é muito débil em
competências e visão estratégica, tendo já por diversas vezes dado inúmeras provas
de ser muito permeável à pressão ou sedução por parte do poder.
80 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Por fim, embora não menos importante, existem fortes condicionantes psicológicas na
esmagadora maioria da população (atravessando todas as camadas sociais) que blo-
queiam o exercício das liberdades cívicas e democráticas. Prevalece uma forte atitude
de auto-censura e de receio em relação às possíveis consequências da expressão de
opiniões e posições políticas. A nível da generalidade da população esta auto-censura
e bloqueio aumentam à medida que se aproximam as eleições, existindo, em alguns, o
receio em relação ao período pós-eleitoral, justificado em parte pela má experiência de
1992. No geral, excepto os políticos profissionais, as pessoas têm receio de assumir a
sua filiação partidária, predominando um estado de espírito colectivo de não discutir
tendências de voto.
O próprio bastonário da Ordem dos Advogados de Angola afirmava, no início de 2007,
ter muitas dificuldades em delegar noutros membros da estrutura dirigente da ordem
a tomada de posições públicas, mesmo em casos de simples defesa dos mais básicos
princípios constitucionalmente consagrados. Sempre que as pessoas percebem que a
tomada pública de uma posição pode ser interpretada como de mínima contestação
ao poder estabelecido, calam-se pelo receio de afectarem a sua carreira. Isto acaba por
reforçar uma cultura do poder estabelecido, da submissão e de estilos de liderança
autocráticos, prejudicando um processo de efectiva democratização. O anteriormente
referido exemplo da tentativa de ilegalização de algumas ONG enquadra-se igualmente
neste argumento.
Globalmente, existe em Angola um ambiente onde faltam muitas das condições
sócio-políticas para um exercício saudável da democracia e para a realização de eleições.
Para além das condições técnico-administrativas das eleições há muito que construir
para consolidar o processo de democratização, algo que nos compete a todos e não
apenas ao poder e aos políticos profissionais. A sociedade civil angolana é sem dúvida
uma força fundamental para esse trabalho de construção que está por fazer.
81
Introdução
Sérgio Calundungo
Acção para
o Desenvolvimento
I ndependentemente dos crescentes rendimentos do petró-
leo e dos diamantes, os indicadores de desenvolvimento
humano em Angola permanecem fracos. O país ocupa o
Rural e Ambiente 161.º lugar no índice das Nações Unidas com cerca de 70%
– ADRA, Angola da população a viver com menos de US$2 por dia, estando
portanto numa situação de pobreza, sofrendo de insegu-
rança alimentar, de limitado acesso a água potável, de falta
de saneamento básico, de limitado acesso à educação e à
assistência medico-medicamentosa e de elevadas taxas de
mortalidade infantil1.
Angola foi um dos 191 países que adoptaram a declaração
do milénio procurando, entre outros objectivos, reduzir para
metade a pobreza e a fome até 2015. Contudo, os dois pri-
meiros relatórios nacionais sobre a situação do país quanto
aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, em 2003 e
2005, concluem que, mantendo-se a tendência actual, o país
irá falhar os objectivos para 2015. Existe um nível fraco de
realização em quase todos os objectivos e entre as áreas mais
críticas para este fracasso está o fraco envolvimento de actores
não-governamentais nos processos de tomada de decisão,
as fortes disparidades regionais em infra-estruturas e o fraco
fornecimento de serviços sociais com qualidade aceitável2.
O presente texto centra-se em torno da discussão sobre o
contributo das Organizações da Sociedade Civil (OSC) para
a redução da pobreza e da sua relação com as instituições
do poder do Estado no combate a este flagelo nacional que
afecta a maioria da população. Este tema tem sido debatido
por várias individualidades e instituições em Angola.
Desde que nos anos noventa a legislação autorizou a consti-
tuição livre de OSC, estas passaram a protagonizar um im-
portante papel no combate à pobreza, seja através de acções
no campo da “ajuda de emergência” de curto prazo, seja
1
In Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, A água para lá da escassez: poder,
pobreza e a crise mundial da água (New York: PNUD, 2006).
2
In Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, relatório de progresso 2005 (Luanda:
Governo de Angola e PNUD, 2005).
82 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
3
Algumas dessas posições encontravam eco nas instituições da sociedade civil angolana da época, já com características
nacionalistas, nomeadamente a Liga Nacional Africana, alguns sectores da ANANGOLA e alguns sectores das
diferentes Igrejas.
84 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Com o fim do regime Socialista de partido único, o início do processo de transição de-
mocrática e a nova legislação que permitiu a liberdade de associação cívica, surgiram
várias organizações ditas da sociedade civil, nacionais e estrangeiras, que em colaboração
começaram a desenvolver inúmeros projectos nas mais diversas áreas junto das comu-
nidades carenciadas, numa perspectiva que combinava/misturava ajuda assistencial
imediata com projectos de desenvolvimento sustentável e por vezes participativo. O
afluxo de fundos externos para estes projectos foi significativo e permitiu um boom ao
nível das OSC um pouco por todo o país.
Com o reinício do conflito armado logo após as primeiras eleições multipartidárias de
1992, houve necessidade de fazer face às consequências sociais imediatas da guerra,
reforçando-se o carácter de emergência dos projectos e das ONG a operarem no terreno.
O período de “nem paz nem guerra” que se viveu ao longo dos anos noventa e até 2002
(quando efectivamente termina a guerra civil), continuou a ser muito marcado pelas
acções de emergência, embora fossem surgindo vários projectos com uma perspectiva
de desenvolvimento sustentado e de médio prazo.
O aparecimento de várias OSC a trabalharem numa perspectiva de médio e longo
prazo, que queriam fazer mais do que actuar no imediatismo da emergência, levou a
que se começassem a levantar vários tipos de problemas para o governo-partido-Estado
(estas realidades ainda se confundem em Angola, mesmo depois da transição para o
multipartidarismo). Os problemas estavam relacionados com o questionamento e as
críticas cada vez mais acentuadas em relação a várias incapacidades, insuficiências e
deficiências das estruturas governamentais que não cumpriam com várias das suas
atribuições ao nível de políticas sociais.
Para fazer face ao criticismo crescente, o governo foi gradualmente tentando con-
trolar este espaço da sociedade civil que lhe escapava, procurando aliciar algumas
OSC autónomas e criando também as suas próprias OSC que passaram a fazer um
trabalho pró-governamental, tentando assim diluir as críticas às incapacidades da
política governativa. Os constrangimentos e problemas levantados pelas entidades
governamentais ao trabalho das OSC que assumiram a sua autonomia em relação
às instituições do poder do Estado foram sendo cada vez maiores, como meio de
retaliação pelas posições críticas. As dificuldades foram aumentado à medida que o
governo se foi sentindo mais confortável em relação à chamada comunidade inter-
nacional, depois da derrota da UNITA e com a alta do preço do petróleo, factos que
lhe deram suficiente margem de manobra para começar a impor também restrições
à actuação das organizações internacionais mais críticas e aliadas das OSC nacionais
“politicamente incómodas”.
Estando as águas divididas entre OSC mais próximas do governo e as outras, ainda com
um certo grau de autonomia, começa a desenvolver-se entre o segundo grupo a discus-
são acerca do grau possível e aceitável de colaboração e cooperação com as instituições
governamentais. Até que ponto seria aceitável cooperar com as instituições do poder do
Estado e em que termos? A nova vaga internacional do pensamento desenvolvimentista
começou a trazer o tema do “reforço da capacidade institucional do Estado” e isto impli-
cava naturalmente algum tipo de colaboração.
Para todas aquelas OSC que trabalhavam muito para além da perspectiva de curto prazo
— assistencialista — e que tinham preocupações de fundo ao nível das diversas vertentes
dos Direitos Humanos, a resposta seria simples — aceitando-se toda a colaboração na
Sérgio Calundungo g A Sociedade Civil, a Política e a Erradicação da Pobreza em Angola 85
4
Ver declarações de Pedro Walipe Kalenga, director-geral da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária
– UTCAH, em entrevista à Rádio Nacional de Angola, 10 de Julho de 2007; in Luanda, Angop, 10 de Julho de 2007.
86 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Não está obviamente em causa o trabalho meritório das OSC que optam por uma via
assistencialista, apenas se refere aqui a falta de sustentabilidade dos seus projectos a
médio e longo prazo, optando sempre por “dar o peixe em vez de ensinar a pescar”.
Quando a preocupação prioritária é definida como sendo o salvamento de vidas em
risco imediato, todo o apoio de emergência e assistencialista é bem-vindo; nessas altu-
ras, para todos os actores da sociedade civil, fica momentaneamente adiada a discussão
sobre as causas profundas e estruturais que levaram a que essas vidas estejam em ris-
co. Contudo, passada a fase de emergência urge discutir e combater com consciência
social e política os problemas de fundo, sob pena de estarmos recorrentemente a cair
em situações de crise e de emergência que deixam de ser pontuais para passarem a
ser uma condição de vida permanente.
3 – As OSC “Desenvolvimentistas”, do Médio/Longo Prazo, com
Consciência Sócio-Política
Diferentemente da perspectiva que se centra nos sintomas da pobreza — de que os
pobres padecem —, encontra-se um leque cada vez maior de actores da sociedade
civil que procura fazer uma inflexão em relação àquela tendência, ainda dominante,
centrando-se antes nas causas da pobreza. Esta outra perspectiva assume claramente a
reflexão, em todas as suas dimensões, acerca da relação entre sociedade civil e desen-
volvimento, entre sociedade civil e erradicação sustentável da pobreza, entre sistema
político-económico vigente e pobreza.
Os defensores desta perspectiva fundamentam a sua abordagem na visão política do
problema, considerando imprescindível olhar para as causas estruturais, geradoras da
pobreza e do subdesenvolvimento. Neste sentido, a sua abordagem terá necessaria-
mente de ser politicamente abalizada. Para este grupo de actores, o papel da sociedade
civil na luta em favor dos pobres deve estar fundamentalmente direccionado para a
monitoria das políticas públicas, para a participação alargada dos cidadãos na defini-
ção das grandes linhas de orientação das políticas públicas. Os actores focalizados nas
causas requerem assim a partilha equilibrada de oportunidades e responsabilidades
perante os benefícios e os problemas da sociedade em que estão inseridos.
Ao contrário das OSC que se preocupam essencialmente com os sintomas, as que se
centram nas causas da pobreza não se consideram como instituições complementares
do governo, ou sequer seus parceiros naturais “reformistas”, antes clamando pelo
direito de discordarem, refutarem e contra-argumentarem todas e quaisquer políticas
públicas que violem os princípios e objectivos que perseguem — de desenvolvimento
harmonioso, equilibrado, social e economicamente justo no respeito pelas diversas
dimensões dos Direitos Humanos.
Embora os defensores desta perspectiva reconheçam as possibilidades de parcerias
com órgãos de poder político a distintos níveis, consideram que a actuação conjunta
representa o exercício do direito e do dever de participação pública das forças da
sociedade, não aceitando calar as suas posições de princípio e de consciência em
virtude dessas parcerias, ou por outras palavras, não aceitando que as parcerias se
transformem em veículos de cooptação. Admitem, pois, que os interesses dos actores
da sociedade civil podem muitas das vezes ser divergentes dos interesses defendidos
pelas instituições do poder do Estado.
88 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
No seu percurso, as OSC que assumem esta perspectiva, mais abrangente e politi-
camente consciente, reconhecem que na defesa das suas posições encontram vários
obstáculos e resistências, decorrentes da sua postura por vezes incómoda para com o
poder político. Isto é especialmente verdade num contexto como o Angolano, com um
processo de democratização recente, instituições frágeis, fraca separação de poderes
do Estado, problemas de clientelismo e corrupção, confusão entre dimensão pública e
privada, visão economicista do desenvolvimento, tradição de autoritarismo e repres-
são social, fraca participação dos cidadãos na vida pública, fraca consciência pública
e debilidades inerentes à própria sociedade civil.
A nível político, os defensores deste posicionamento assumem que existe uma rela-
ção directa entre o modelo de gestão político-económica em vigor e o problema do
subdesenvolvimento e da pobreza. Dentro desta perspectiva, em Angola o debate em
torno dos mecanismos geradores da pobreza deveria ser simultâneo ao debate sobre
os mecanismos geradores da riqueza considerável de um grupo minoritário ligado ao
poder político, sendo que ambos os mecanismos estão interligados e interdependen-
tes, constituindo vasos comunicantes de um mesmo sistema político-económico que
gera fortes discrepâncias de rendimento entre uma minoria opulenta e uma maioria
miserável. A gestão dos recursos públicos para fins privados é absolutamente contrária
a qualquer projecto de sociedade justa, equitativa, e que persiga o desenvolvimento
económico e social.
Esta perspectiva toma igualmente em consideração as diversas influências geo-políticas
e geo-económicas regionais e internacionais sobre o contexto nacional, considerando
a análise segundo a qual existe uma forte e estreita ligação entre aquelas dimensões
e as dinâmicas nacionais que atiram muitas pessoas para uma situação de pobreza.
Daí que este fenómeno possa ser visto como um problema com uma forte dimensão
política (nacional e internacional), considerando que os interesses e a força relativa dos
diferentes grupos políticos, económicos e sociais, desempenham um papel relevante
e até mesmo decisivo nas formas de distribuição da riqueza nacional, na criação de
capacidades locais e, por conseguinte, nas situações de pobreza.
O caso de Angola é paradigmático quanto às influências externas que desde sempre
se exerceram sobre o país, mesmo antes da independência. A existência de valiosos
recursos naturais, de onde se destaca claramente o petróleo, tem sido um factor por
demais importante na estruturação do sistema político efectivamente existente, cliente-
lista, com uma gestão rendeira dos recursos públicos. Estas características da economia
política angolana têm sido profundamente estudadas e são evidentes, exercendo uma
influência directa no modo como se exerce o poder, de forma concentrada e centrali-
zada, confundindo dimensão pública e privada e dando origem a fortes assimetrias
regionais5.
Este tipo de sistema político constitui um obstáculo à emergência de reformas profundas
da administração do Estado e do sector produtivo agrícola e industrial, que promovam
o desenvolvimento para lá de Luanda e das indústrias extractivas e transformem a es-
trutura produtiva, ainda muito baseada no petróleo, e a de poder, de tipo rendeira6.
5
Carneiro, Emmanuel, Especialização Rendeira e Extroversão na África Sub-sahariana – Caracterização e Consequência
(Lisboa: Principia, 2004).
6
Carneiro, Emmanuel, Especialização Rendeira e Extroversão na África Sub-sahariana – Caracterização e Consequência
(Lisboa: Principia, 2004).
Sérgio Calundungo g A Sociedade Civil, a Política e a Erradicação da Pobreza em Angola 89
7
Ver os vários relatórios da Global Witness daquela altura: “A Crude Awakening: the Role of the Oil and Banking
Industries in Angola’s Civil War and the Plunder of the State Assets”, a report by Global Witness, Dezembro de 1999; “All
the President’s Men”, a report by Global Witness, Março de 2002; “A Rough Trade: the Role of Companies and Governments
in the Angolan Conflict”, a report by Global Witness, Dezembro de 1998; em www.oneworld.org/globalwitness.
8
Ver declarações de Pedro Walipe Kalenga, director-geral da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária
UTCAH, em entrevista à Rádio Nacional de Angola, 10 de Julho de 2007; in Luanda, Angop, 10 de Julho de 2007.
90 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Esta atitude teria de ser rechaçada de forma colectiva, articulando OSC nacionais e
internacionais de modo generalizado, mas tal não se tem verificado, devido não só ao
poder negocial internacional do governo, mas também às divisões no seio das próprias
OSC conforme referido nas duas perspectivas anteriormente abordadas e, também, às
divisões no seio das OSC internacionais, conforme o apoio a parceiros “apolíticos” ou
“políticos”, consoante as suas próprias perspectivas e filosofias de actuação ou a dos
doadores e dos jogos de interesses na indústria da ajuda.
Na prática, todo este cenário acaba essencialmente por se reflectir na inexistência de
um leque maior de actores da sociedade civil, realmente independentes, autónomos
e capazes de se fazerem perceber por toda sociedade como actores credíveis, sérios e
capazes de colocar no debate público as causas políticas da pobreza.
A aliança de solidariedade e parceria ampla que se deveria verificar entre todos os
actores (nacionais e internacionais) da sociedade civil numa posição de princípio
está por fazer; tal facto enfraquece a sociedade civil como um todo e, naturalmente, a
construção de uma sociedade mais democrática e justa.
9
Para uma análise mais pormenorizada sobre estas ideias e planos ver Vidal, Nuno, “Multipartidarismo em Angola”,
in Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade, O processo de transição para o multipartidarismo em Angola (Luanda & Lisboa:
Universidade Católica de Angola & Universidade de Coimbra, 2006), pp. 50-55.
93
Benjamim A. Castello
Liga Jubileu 2000
Angola - LiJuA
E ste texto procura analisar a experiência do processo de
democratização e o papel das Organizações da Socie-
dade Civil — OSC — em Angola, no âmbito da participação
“cidadã”. A primeira parte do texto realça algumas das ca-
racterísticas de fundo da sociedade em geral e sobre as quais
deverá existir uma reflexão profunda a nível político-social se
efectivamente quisermos construir uma sociedade mais justa,
um genuíno Estado de Direito e uma democracia efectiva. A
segunda parte aborda as possibilidades de estratégia de acção
das OSC com vista a alcançar os seus objectivos de alteração
da realidade social, nomeadamente no que se refere à relação
com as estruturas governamentais.
o seu projecto de governação, não podemos esperar que esse indivíduo seja um democrata
ao estilo ocidental. Trata-se aqui de um governante que foi ontem um “cidadão” comum,
que saiu de um ambiente não democrático, que chega ao poder e tem fortes meios coercivos
de impor a sua vontade e, mais do que isso, tem a legitimidade internacional e as alianças
que constrói também a nível internacional e regional e, portanto, uma força acrescida. O
resultado é normalmente a falta de tolerância e a tendência para o autoritarismo e o tota-
litarismo que vimos em muitos regimes do pós-independência em África.
Em matéria de pluralidade política e cívica em África, relembro as palavras que várias
vezes ouvi pronunciar o falecido presidente Mobutu Sesse Seko do ex-Zaire:
Porque deveríamos nos nossos países promover o surgimento de partidos políticos de
oposição se nas nossas aldeias e comunidades não existem chefes e/ou grupos de oposição
ao poder ali instituído?
Este é um aspecto que julgo ser extremamente importante quando falamos de demo-
cracia, na medida em que todos sabemos da importância fundamental para qualquer
democracia de cariz ocidental, não só de uma oposição política competente, mas
igualmente de uma sociedade civil capaz, interventiva e participativa.
Do mesmo modo se coloca a questão a nível económico, do governante que sai de um con-
texto de pobreza. A este respeito permitam-me recorrer novamente às analogias e recordar
a forma como este problema me foi colocado por um amigo meu Jugoslavo (nessa altura
ainda existia a Jugoslávia), que em 1980, depois de dois anos em Angola, me disse:
Só agora estou a entender os problemas de Angola. Vou utilizar uma analogia como vocês
Bantus gostam. Pensas que um indivíduo que passou toda a vida a dormir no chão, um indi-
víduo para quem a esteira sempre foi um privilégio do chefe tradicional, do soba, pensas que
esse indivíduo se amanhã for um governante vai mandar construir uma fábrica de colchões?
Nessa altura o colchão vai passar a ser privilégio do chefe.
A tão abordada questão da corrupção deverá igualmente ser entendida à luz de concepções
diferentes no Ocidente e em muitos contextos africanos. Aproveitando a nossa tradição
africana Bantu, recorrerei aqui a algumas analogias, parábolas e provérbios, que nós tanto
gostamos de utilizar: quando numa comunidade alguém rouba a galinha do vizinho, essa
pessoa é considerada como um ladrão, porque a galinha pertence a uma família que está
devidamente identificada, é conhecida e faz parte da comunidade. Quando a pessoa rouba,
por exemplo, um boi que pertence à comunidade no seu todo, o crime é ainda mais grave
e o criminoso arrisca-se a ser morto porque roubou uma propriedade que constitui um
dos mais valiosos capitais pertencentes ao colectivo, à comunidade.
No entanto, quando um detentor de um cargo público da estrutura e da hierarquia do
Estado se apropria de avultadas quantias do erário público, a expressão geralmente
utilizada para designar tais actos é “desviar” e não roubar, ainda que o adjectivo
“roubo” fosse aquele que melhor definiria o acto perpetrado. Reparem que o termo
é mais sofisticado e suave. Na realidade, as pessoas olham para o autor do acto com
uma certa admiração, respeito e, muitas das vezes, até com uma certa inveja e se forem
minimamente próximos do indivíduo esperam que ele distribua por eles alguma coisa,
não se preocupando minimamente com o prejuízo do Estado, da coisa pública e do
país. Isto porque o Estado é uma entidade abstracta que não pertence a ninguém e com
o qual poucos se identificam ou percebem o seu propósito e a sua necessidade. Para o
comum dos nossos concidadãos, a noção de Estado ainda é incipiente, o Estado não é
96 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Consequentemente, depois das eleições estamos sempre sujeitos aos mesmos pro-
blemas e instabilidade, com eventuais alegações de fraude, de irregularidades e por
vezes conflitos violentos. Isto deve-se ao facto de que a mera realização de eleições
multipartidárias não resolve os problemas de fundo — da injustiça social e da de-
sigualdade. Há algum tempo atrás coloquei a questão a um proeminente político
angolano, procurando saber se na opinião dele as futuras eleições iriam contribuir
para a consolidação de uma paz verdadeiramente genuína e duradoura em Angola
e ele não me conseguiu dar uma resposta inequívoca porque sabia que eu conheço a
realidade, mas caso se tratasse de um estrangeiro com certeza que a resposta teria sido
pronta, rápida e inequívoca no sentido afirmativo de uma transformação evidente e
substancial a todos os níveis.
As aguardadas eleições e a corrida à (re)construção de infra-estruturas em Angola
não resolvem a profundamente desigual distribuição da riqueza e a pobreza extrema
a que são votadas vastas franjas da sociedade, provavelmente até a agravam. Estas
desigualdades tornam-se igualmente um forte impeditivo da emergência de uma
qualquer democracia minimamente séria. Enquanto problemas básicos como a sub-
sistência alimentar, o acesso à água, o habitat, a segurança, a saúde e a educação não
estiverem resolvidos, não é possível construir uma sociedade civil forte, que é um
dos principais esteios do activismo cidadão e da própria democracia. Quando nós
das OSC nos baseamos nas comunidades pobres (que constituem a maioria do nosso
país), percebemos que é muito difícil convencê-las a participar nas nossas actividades
com os estômagos vazios. Tem de haver acções concretas no combate às várias formas
de pobreza, de acordo com as realidades específicas das comunidades e perceber que
uma sociedade mais democrática é uma sociedade mais justa.
Concluindo este primeiro capítulo, penso que as questões aqui levantadas são ques-
tões fundamentais porque, como se pode perceber, são questões no cerne de qualquer
projecto sério de democracia e de Estado de Direito. As diferentes perspectivas de
democracia, de Estado, de governação e de relação entre governantes e governados,
prevalecentes nas nossas comunidades, implicam, na minha opinião, que boa parte
do trabalho a fazer em prol da democracia e da sociedade civil passa pela necessi-
dade de saber como inculcar nas nossas populações a noção de que o Estado, o seu
governo, os seus governantes e os seus recursos, são de todos nós, para todos nós e
por todos nós.
Muito do trabalho que tenho desenvolvido nas organizações da sociedade civil com que
colaboro reside neste tipo de questionamento, reflexão e análise, para que possamos
estabelecer linhas de actuação eficazes para a construção de um verdadeiro Estado de
Direito, que assegure o respeito pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais
para todos os cidadãos.
Se continuarmos a adiar a abordagem a estas questões, não teremos meios de construir
uma democracia estável, saudável e séria, que permita a paz e o desenvolvimento no
longo prazo. Estaremos sempre a viver numa “democracia parcial”, instável e frágil.
Não teremos um projecto sério e claro de sociedade com o qual a maioria se identifique
ou pelo menos conheça como o projecto para o qual se trabalha. Estaremos de igual
modo a adiar a resolução profunda dos nossos conflitos internos e que o Ocidente
designa hoje de forma simplista como de conflitos pós-eleitorais.
Benjamim A. Castello g Contribuição das OSC para a Justiça Sócio-Económica em Angola 99
Introdução
Cesaltina Abreu
IBIS – Educação para
o Desenvolvimento,
A mudança no cenário político em Angola, com uma
solução militar em 2002 para um conflito que persistia
desde antes da independência nacional em 1975, deu lugar a
Angola uma nova etapa que se anuncia sob o lema da reconstrução e
da reconciliação nacionais. Contudo, existe ainda um longo
caminho a percorrer para a construção da nação angolana.
A efectiva reconciliação deverá ultrapassar as subjectivida-
des colectivas (micro identidades sociais), reforçadas após
a independência num ambiente de guerra civil. Qualquer
caminho a seguir pressupõe mudanças, mais ou menos pro-
fundas, não só institucionais como de valores, produzidas
internamente, sendo igualmente útil contar com pressões
das dinâmicas regionais e internacionais por maior demo-
cratização e abertura1.
Trinta e três anos depois da independência, os angolanos ainda
não se sentem cidadãos no seu país, pelo menos não de forma
ampla e inclusiva. Basta lembrar os deslocados das suas áreas
de origem, os refugiados em países vizinhos, os desmobiliza-
dos, os mutilados de guerra e os órfãos e viúvas de guerra,
para além das muitas comunidades que vivem em regiões
remotas sem quaisquer serviços públicos da administração do
Estado, todos eles não integrados na sociedade. Constituem,
em poucas palavras, o público “primordial” de Ekhe2 ou os su-
jeitos de Mamdani3, vítimas de um distanciamento não apenas
geográfico, mas também da não inclusão efectiva no processo
de construção da nação angolana. A sociedade permanece
refém de um passado recente, no qual o discurso político foi
bipolarizado pelos dois protagonistas da guerra civil, a vida
quotidiana militarizada e a sociedade silenciada.
O país enfrenta agora o desafio de cicatrizar as feridas de guerra
que se sobrepuseram, em camada, às sequelas do colonialismo.
1
SERRANO, Carlos (2000), Angola: O nascimento de uma nação; um estudo sobre a
construção da identidade nacional, Tese de Doutoramento em Antropologia Social,
Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.
2
EKEH, Peter (1975) “Colonialism and the Two Publics in Africa: a Theoretical
Statement”, in Comparative Studies in Society and History 17 (fall), pp. 91-112.
3
MAMDANI, Mahmood (1996) Citizen and Subject: Contemporary Africa and the
Legacy of Late Colonialism. Princeton University Press. London.
102 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
4
MARADA, Radim (1995), “Civil Society: Adventures of the Concept before and after 1989”. Czech Sociological
Review, V, (1/1997), pp. 3-21.
104 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
5
HAVEL, Václav (1988), “Anti-political Politics”, in J. Keane (ed), Civil Society and the State, London-New York:
Verso, pp. 381-398.
6
Os únicos grupos verdadeiramente não-governamentais autorizados a operar antes de finais dos anos oitenta
foram as organizações religiosas, como a Caritas Angola e o Conselho das Organizações Evangélicas de Angola.
Apenas com os acordos de paz de Bicesse e a revisão constitucional de 1991, organizações não ecuménicas como a
ADRA (Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente) conseguiram emergir.
Cesaltina Abreu g A Sociedade Civil em Angola e os seus Desafios Internos e Externos 105
Começava a tornar-se evidente que o problema não estava somente ao nível do modelo
político-económico formalmente adoptado (Socialista ou social-democrata ou liberal),
mas a um nível mais profundo, o da lógica de funcionamento do sistema. A construção
do Estado desde a independência seguiu a lógica da apropriação dos recursos e dos
rendimentos gerados pela sua exploração, em benefício das elites no poder e suas
redes clientelistas, produzindo (e reproduzindo) uma crescente desigualdade e exclu-
são económica e social da maioria da população, que apenas sobrevive dentro deste
sistema, encontrando-se igualmente marginalizada politicamente devido à ausência
de um processo real e inclusivo de reconciliação nacional e efectiva implementação
da cidadania. Uma pequena minoria é privilegiada enquanto a grande maioria é em-
purrada para uma situação de pobreza acentuada.
Não se pode dizer que a capacidade do Estado em Angola tenha sido enfraquecida
por questões externas ou internas, mas antes que as elites optaram claramente por
um modelo de governo baseado na gestão clientelista dos recursos naturais com o
objectivo de financiar a sua manutenção no poder, dando origem a um fenómeno de
exclusão e desigualdade social crescente7.
Angola tem sido avaliada como um dos casos de falência do Estado em África8, mas a
imagem do Estado angolano na sociedade é a de um Estado forte, com um ostensivo
sistema de segurança e controlo sobre praticamente todo o território desde 2002, mos-
trando eficácia nos domínios que interessam à preservação das actuais elites no poder,
e com uma enorme capacidade de manipular, cooptar, coagir e se manter absoluto no
comando dos destinos da nação. Existe um enorme défice de participação e representação
da sociedade civil em instâncias e processos de tomada de decisão, estando reservados
apenas para os organismos estatais/governamentais, incluindo o partido no poder.
7
HODGES, Anthony (2002) Angola: Do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Principia, Lisboa, Portugal, p. 264.
8
ROTBERG, Robert I. (2002), “The New nature of Nation-State Failure”, in The Washington Quarterly, Verão de 2002.
9
Sobre a relação entre as ONG e a sociedade civil ver, entre outros, HUDOCK, Ann C. (1999), NGO’s and Civil Society.
Democracy by Proxy?, Polity Press, Cambridge, UK.
106 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
tutela e ao seu serviço; a segunda consiste em estruturar um quadro legal que lhe permita
legitimamente controlar o espaço da sociedade civil e as organizações que aí actuam.
10
Os fundos sociais do presidente e da sua esposa promovem uma imagem pública da família presidencial como
patronos da filantropia e da caridade social, distanciando-os das falhas do Estado e do governo na prestação de
serviços; in AMUNDSEN, Inge & ABREU, Cesaltina (2006), Civil Society in Angola: Inroads, Space and Accountability.
CMI / A-Ip, Bergen.
11
TOCQUEVILLE, Alexis de. [1835] (1998/2000), A Democracia na América. Volumes I e II. São Paulo, Editora Martins
Fontes.
12
HEGEL, G.W.F. (1942), Philosophy of Right, citado em PIETRZYK, Dorota I. (2001), Civil Society – Conceptual History
from Hobbes to Marx. Aberystwyth, University of Wales. Marie Curie Working Papers, n.° 1.
13
BOBBIO, Norberto. (1986), Estado, Governo e Sociedade. Para uma Teoria Geral da Política. São Paulo, Paz e Guerra
Editora.
Cesaltina Abreu g A Sociedade Civil em Angola e os seus Desafios Internos e Externos 107
14
HOWEN, Nicholas. (2001), Peace-Building and Civil Society in Angola. London, Department for International
Development (DFID), p. 36.
15
AMUNDSEN, Inge & ABREU, Cesaltina (2006), Civil Society in Angola: Inroads, Space and Accountability. CMI /
A-Ip, Bergen.
108 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
16
ISAKSEN, Jan; AMUNDSEN, Inge; WIIG, Arne with ABREU, Cesaltina (2007), Budget, State and People. Budget
Process, Civil Society and Transparency in Angola. CMI, Bergen.
17
DESAI, Meghnad & SAID, Yahia. (2001), “The New Anti-Capitalist Movement: Money and Global Civil Society”,
in H. Anheier, M. Glasius and M. Kaldor (orgs.) Global Civil Society. Oxford, Oxford University Press.
18
Citados em LENZEN, Marcus H. (2002), “The Use and Abuse of ‘Civil Society’ in Development”. Transnational
Associations, vol. 54, n.º 3, pp. 170-187.
Cesaltina Abreu g A Sociedade Civil em Angola e os seus Desafios Internos e Externos 109
19
MAMDANI, Mahmood (1996) Citizen and Subject: Contemporary Africa and the Legacy of Late Colonialism. Princeton
University Press. London.
20
Enquanto Mamdani vê a tradição como fornecendo a base para um “despotismo descentralizado”, outros visualizam-
-na como constituindo um espaço de socialização e de vida alternativo ao individualismo e à cultura globalizante do
Ocidente (Nyamnjoh), ou como contendo o possível modelo de uma alternativa democrática (Wamba-dia-Wamba).
Michael Neocosmos, opõe à celebração acrítica da tradição como cultura autêntica e ao discurso neo-liberal dos Direitos
Humanos, uma visão alternativa de “tradição” em África, sugerindo que “ela seja entendida na perspectiva de um
caminho completamente novo de pensar a política”. Ver NYAMNJOH, Francis B. (2000), “For Many are Called but
Few are Chosen: Globalization and Popular Disenchantement in Africa”, in African Sociological Review, vol. 4, n.º 2, pp.
1-45; também WAMBA-DIA-WAMBA, Ernest (1994), “Africa in Search of a New Mode of Politics”, in H. Himmelstrand
(ed.) African Perspectives on Development, London: James Currey.
21
EKEH, Peter (1975) “Colonialism and the Two Publics in Africa: A Theoretical Statement”, in Comparative Studies
in Society and History 17 (fall), pp. 91-112.
22
LOPES, Carlos. (1997), Compasso de Espera. O fundamental e o acessório na crise africana, Porto, Edições Afrontamento,
Portugal.
110 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
23
BATES, Robert. (1981), States and Markets in Tropical Africa: The Political Basis of Agricultural Policy. Berkeley,
University of California Press, Series on Social Choice and Political Economy; BATES, Robert. (1983), Essays on the
Political Economy of Rural Africa, Cambridge, Cambridge University Press.
24
BAYART, Jean-François. (1996), The State in Africa: The Politics of the Belly, London/New York, Longman; CHABAL,
Patrick. & DALOZ, J-P. (1999), Africa works: Disorder as political instrument, Oxford, James Currey.
Cesaltina Abreu g A Sociedade Civil em Angola e os seus Desafios Internos e Externos 111
Por altura da entrega daquele documento, foi igualmente solicitada informação so-
bre as ideias e visões do governo em relação à revisão da lei, sobre o que estava a ser
preparado pelo governo, tendo as OSC mostrado disponibilidade para encontros e
reuniões com representantes governamentais para discussões directas. A resposta foi
no sentido de que “o governo daria essa informação quando, e se, achasse necessário”.
Do mesmo modo, enquanto as OSC procuravam mobilizar-se para reagir à iniciativa de
revisão da lei, a FESA organizou, em Agosto de 2006, as Jornadas Técnico-Científicas
que anualmente acontecem nessa altura em comemoração do aniversário do seu pa-
trono, o Presidente da República. As Jornadas “Angola e o Terceiro Sector” tinham
como objectivo estabelecer um canal de comunicação entre as instituições do Estado e
a sociedade civil “organizada”, embora tenham sido convidadas outras organizações
por via das plataformas FONGA (Fórum das ONG Angolanas) e CONGA (Comité das
ONG internacionais em Angola). O programa de trabalho das Jornadas e as discussões
havidas manifestavam o interesse em auscultar as contribuições para a reformulação
da lei, mas os resultados dessa auscultação foram igualmente inócuos.
No final deste processo e analisadas as iniciativas governamentais e da sociedade civil
“organizada”, conclui-se que a “auscultação” da sociedade civil apenas serviu para
legitimar a pré-definida estratégia do regime, que em Abril de 2007 apresenta a Agen-
da de Consenso Social, alegadamente surgida de uma “negociação” com a sociedade
civil angolana. Contudo, não houve qualquer tipo de consulta pública, auscultação
ou negociação efectiva de um pacto social. Mais uma vez ficou clara a necessidade de
uma maior articulação entre as OSC para poderem reagir às estratégias de controlo e
manipulação do regime.
4.2 – A I Conferência Nacional da Sociedade Civil enquanto estratégia
concertada das OSC
Para tentar ultrapassar o referido problema da falta de articulação entre OSC nacionais
e tentando responder melhor aos constrangimentos impostos pelo governo, realizou-se
em Novembro de 2007 a I Conferencia Nacional da Sociedade Civil em Angola sob o
lema “Construindo a Unidade na Diversidade”. Apesar das dificuldades — organiza-
tivas, de recursos, e até de credibilidade —, mobilizaram-se vontades e capacidades
para envolver o maior número possível de organizações da sociedade civil, instituições
do Estado, sector empresarial, instituições religiosas e meios de comunicação social.
Alegadamente, devido ao pouco tempo de preparação da conferência e entrega dos
convites, assim como problemas de agenda, as instituições do Estado convidadas a
apresentarem as políticas e pontos de vista do governo nos diversos eixos temáticos
do programa de trabalhos não se fizerem presentes, o que certamente empobreceu a
discussão e não contribuiu para o alcance de importantes objectivos preconizados pela
conferência. De notar que a ausência das instituições do Estado convidadas, à excepção
da UTCAH, foi acompanhada de uma absoluta falta de referência à conferência nos
órgãos de comunicação social estatais. Mais curioso, ainda, foi constatar que a TPA
(Televisão Pública de Angola) não passou qualquer imagem da conferência, apesar
de ter gravado toda a sessão de abertura.
Apesar de terem sido realizados dezassete encontros provinciais preparatórios (não se
tendo realizado apenas na província do Kwanza Norte) e de terem sido criadas as con-
dições para a participação dos seus representantes e inclusão das suas preocupações na
agenda do encontro nacional, é preciso muito mais para que a conferência da sociedade
112 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
civil tenha realmente um âmbito nacional. Por este motivo, estão em preparação encon-
tros de retorno, visando estender este processo à maioria dos municípios das províncias
que já participaram na primeira conferência, incluindo o Kwanza Norte, e dando início
à preparação da segunda conferência. Prevaleceu um projecto de conferência nacional
da sociedade civil como processo e forma de organização que se pretende cada vez mais
inclusiva, com encontros em intervalos de tempo regulares, idealmente todos os anos,
em sistema de rotação quanto à cidade que acolhe o evento nacional e diversificando as
formas de organização e participação da sociedade civil por regiões e por temas.
Os temas propostos para discussão na conferência incorporaram as preocupações mais
prementes da relação entre sociedade civil e Estado e os demais actores sociais, cuja
análise e tratamento permitiram estabelecer novas bases para esse relacionamento, e
entre as diversas formas de organização da sociedade civil. Estrategicamente, deci-
diu-se enquadrar estas discussões na perspectiva de experiências anteriores e lições
aprendidas. Analisaram-se duas fases distintas de relacionamento entre o Estado e as
OSC, a primeira tendo por base um contexto de guerra civil onde prevaleceu a ajuda
de emergência e humanitária, a segunda num contexto de paz — actual —, em que
se torna fundamental reposicionar essas relações no âmbito da promoção do desen-
volvimento e do progresso social. O objectivo foi o de propor as bases de uma nova
relação entre a sociedade civil e o Estado a partir da constatação natural de que essa
relação, além de possível, será certamente muito proveitosa para o país.
As contribuições dos encontros provinciais para a conferência foram organizadas em
categorias, sendo três delas intrínsecas à sociedade civil: a criação de mecanismos de
coordenação entre as OSC; reforço da identidade e capacidade das OSC; papel da so-
ciedade civil. As demais categorias centraram-se nas relações com o Estado, no acesso
a fundos públicos, nas questões legais e nas relações com outros actores nacionais e
externos. Foi ressaltada a necessidade de criar estruturas de coordenação, fortalecer
laços de cooperação e mecanismos de interacção, reactivar espaços de discussão, con-
certação e representação de interesses, especialmente no que concerne aos problemas
que se colocam nas províncias e no país em geral. Para facilitar a coordenação de acções
das OSC nas províncias, foi sugerida a criação de dois tipos de espaços de concerta-
ção — um para as ONG (uma espécie de FONGA local), o outro para todas as OSC a
nível da província, aberto, receptivo e inclusivo, com liderança rotativa, que reflicta a
visão, compromisso, participação e funcionalidade da sociedade civil na província e no
país. Recomendou-se que o FONGA reveja as suas estratégias e chegue às províncias
do interior (porque as OSC não se sentem representadas por ele, na medida em que
inclui apenas ONG de Luanda).
Do ponto de vista do reforço da identidade e da capacidade das OSC, destacou-se a
necessidade de registar as organizações existentes em cada província (áreas de actuação,
estatutos, identidade, objectivos, recursos, etc.), ajudá-las a criar estatutos, capacitá-las
para poderem aceder a financiamentos e fortalecerem a rede da sociedade civil através
da sua intervenção institucional e da troca de experiências com os diferentes actores.
Foi identificada a necessidade de treino em advocacia para aumentar o protagonismo
em busca das soluções para os problemas sociais.
Sobre o papel da sociedade civil, destacou-se a criação de consensos, a influência nas
políticas públicas (inclusão, opinião pública, participação na governação, visibilidade
no espaço público) e boa governação (transparência, fiscalização, controlo, prestação de
contas do Estado e também dentro da sociedade civil). Foi destacado o papel político
Cesaltina Abreu g A Sociedade Civil em Angola e os seus Desafios Internos e Externos 113
25
HABERMAS, Jurgen. [1962] (1989), The Structural Transformation of the Public Sphere, Cambridge, MIT Press;
HABERMAS, Jurgen. (1992), “Further Reflections on the Public Sphere”, in Craig Calhoun (org.), Habermas and the
Public Sphere. Cambridge, MIT Press.
115
Introdução
Fernando Pacheco
Acção para
o Desenvolvimento
Q uando se fala de sociedade civil em Angola é habitual
encontrarmos duas perspectivas. A primeira evidencia
sobretudo as suas fraquezas ou põe em causa a sua existência,
Rural e Ambiente sem se preocupar verdadeiramente em relacionar isso com o
– ADRA, Angola contexto histórico e cultural específico e é veiculada, quase
sempre, por autores não africanos.
A saudosa Christine Messiant, ao debruçar-se sobre o proces-
so de transição para o multipartidarismo em Angola (Mes-
siant, 2007), não foge a essa lógica, pois discorre apenas sobre
os aspectos formais do processo e ignora a caminhada que
cidadãos angolanos vêm fazendo para a construção da sua
cidadania e de um “novo futuro”, que nada tem a ver com
os desígnios das elites dominantes, nem com as catastróficas
premonições de muitos analistas ocidentais.
Ulrich Schiefer, por seu lado, vai mais longe e afirma que em
condições como as de Angola, a sociedade civil é, na maioria
das vezes, “uma ficção”, pois a sociedade civil “real” consistiria
em sociedades agrárias etnicamente estruturadas, margina-
lizadas ou excluídas, incapazes de produzirem um interface
com diferentes intervenções sociais de carácter mais complexo
(Schiefer, 2006). Tal argumento indicia, desde logo, um in-
quietante desconhecimento sobre as recentes dinâmicas des-
sas sociedades, nomeadamente os importantes e substanciais
movimentos migratórios dos últimos anos em Angola rumo
às principais urbes do país, que alteraram profundamente a
distribuição populacional do tempo colonial e que deixaram
totalmente desfasadas as, já de si simplistas, análises ociden-
tais, que em África utilizavam dicotomias conceptuais como
“sociedades rurais” e “sociedades urbanas”.
Outros analistas, como Michel Cahen, entendem que em vez
de sociedade civil dever-se-ia falar de movimentos sociais nas
sociedades africanas, algo que mereceria outro tipo de debate
que iria para além dos propósitos desde artigo1.
O que ressalta destes pontos de vista e de outros similares
é que utilizam conceitos e grelhas de análise baseadas em
estruturas ocidentais, com fraca capacidade de adaptação
1
Conversa com Michel Cahen (Luanda, Agosto de 2004).
116 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Consciente da importância que a sociedade civil começou a ganhar no país, nos fins da
década de 1990 o governo resolveu encorajar e apoiar a emergência e o fortalecimento
de organizações que gravitassem na sua órbita e que funcionassem como “correias
de transmissão” das suas políticas e estratégias, procurando minar o movimento,
influenciá-lo e cooptá-lo. Sem uma linha autónoma de orientação, essas OSC limitam-se
geralmente a distribuir bens de forma gratuita às populações — contribuindo para a
cultura de desresponsabilização, paternalismo e promoção do clientelismo —, veicu-
lam mensagens favoráveis ao partido no poder e por vezes organizam debates sobre
questões da sociedade civil, no âmbito do que interessa ao governo. Estas OSC têm
um acesso facilitado a fundos públicos, enquanto aquelas que não pertencem à esfera
cooptada se debatem com sérias dificuldades, não só no que se refere ao acesso a tais
fundos, mas também à relação com as instituições do Estado.
Esta relação entre poder político-partidário-governamental e algumas OSC tem sido
percebida e denunciada por vários analistas e meios de comunicação social. Porém, ela
representa a nível social uma estratégia que o MPLA tem sabido implementar, como
nenhuma outra força política, junto da população, por via da cultura e do desporto,
seduzindo os músicos mais populares e capitalizando em seu favor os sucessos des-
portivos nacionais, no futebol e no basquetebol.
Com o fim da década de 1990 e o início da década de 2000, entra-se numa outra fase
da relação entre algumas OSC e o Governo, em que cada um dos lados passou a ver o
outro não como parceiro (ainda que com opiniões diferentes nas complexas tarefas de
reconstrução, reconciliação, democratização e desenvolvimento), mas sim como adver-
sário e, por vezes, inimigo. Isto é verdade tanto para funcionários da administração do
Estado, que se assumem individualmente como “proprietários do Estado”, como para
certas ONG que entendem que a sociedade civil e todos aqueles que são militantemente
contra o governo e o Estado é que têm moral e estão do lado correcto, dando origem a
um extremar de posições que não tem sido nada benéfico para nenhum dos lados.
As referidas posições críticas e cáusticas em relação às ONG, devem ainda ser contra-
riadas relembrando que, para além da crucial acção humanitária que desempenharam
durante as piores fases do conflito armado em Angola, ajudando a salvar milhões
de pessoas da morte pela fome e pela doença, as ONG continuaram depois da paz a
prestar importantíssimos serviços públicos, desde a saúde à educação, ao saneamento,
à segurança alimentar, entre muitos outros.
Deve-se igualmente ter em conta o contributo da sociedade civil em geral e das ONG
em particular para o processo de democratização em curso, podendo-se a este nível
destacar várias áreas de actuação. A primeira diz respeito à contribuição dada para a
conquista da paz e para uma mudança progressiva nos modos de produção do político,
provocando a ruptura da bipolarização — entre os dois grandes partidos, UNITA e
MPLA — que caracterizou a cena política angolana praticamente desde 1975 (Pesta-
na, 2003); uma segunda concerne ao desenvolvimento das reflexões teóricas sobre a
democracia (em dimensões para além do formal) e sobre a cidadania (no sentido subs-
tantivo), mais avançada do que a dos partidos políticos; em terceiro lugar, destaca-se
o papel decisivo na mudança operada em Angola na promoção e defesa dos Direitos
Humanos e da cidadania, na defesa dos direitos das mulheres e de um equilíbrio de
género, na construção de uma cultura democrática e de um espaço público com mais
qualidade, na educação cívica dos cidadãos e na influência sobre algumas políticas
públicas em domínios como a pobreza, as terras, a imprensa, a descentralização e a
educação, entre outros; por último, devemos referir o fomento da participação e do
pluralismo de ideias, a construção e reforço de capacidades de grupos e organizações
e a promoção de valores como a reconciliação, a tolerância e a construção de consensos
sobre os grandes desafios nacionais (Robinson & Friedman, 2005).
O esforço da sociedade civil e o seu contributo são tanto mais importantes quanto ocorrem
num contexto de vários constrangimentos, como a ainda existente cultura política de autori-
tarismo, a gestão patrimonial do sistema político-económico, a fragilidade do empresariado
nacional e o excessivo peso do sector informal na economia (Messiant, 2007).
2
A democracia substantiva de Bengoa corresponde à democracia de alta intensidade de que fala Boaventura de
Sousa Santos (2002 e 2003).
120 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
teoria clássica liberal, que reconhece os direitos cívicos e políticos dos cidadãos como os
“verdadeiros” direitos — porque promovem a liberdade dos indivíduos para agirem — é
hoje desafiada pela ideia de que são os direitos económicos, sociais e culturais, que dão
substância aos primeiros, principalmente quando se trata de pobres e marginalizados
(Kabeer, 2005). A experiência vivida em Angola parece indicar que estas diferentes ca-
tegorias de direitos são interdependentes e o seu equilíbrio conforma o melhor escopo
para uma cidadania responsável. A cidadania deve ser vista, pois, como um conjunto
de direitos e deveres conferidos por Lei — tão amplos quanto possível —, mas também
como o exercício desses direitos e deveres de acordo com as condições existentes.
Hoje parece ser crescente em Angola, perante a fragilização das instituições públicas
e o descrédito dos partidos políticos, a necessidade de segmentos significativos dos
cidadãos participarem na solução dos seus problemas, na vida pública e na definição
das políticas do país. Tal necessidade é mais significativa quando se actua a nível
local, junto das comunidades, nas comunas e municípios. Com efeito, é a nível local
que encontrarmos instituições com as quais a maioria dos cidadãos mais facilmente
se identifica, social, económica e culturalmente (Pacheco e colaboradores, 1998).
Em parte como resultado do trabalho e da influência que as OSC vêm exercendo ao
nível comunitário, de base, a administração do Estado está a tentar reestruturar-se a
nível local, na base da nova legislação sobre a organização das Administrações Locais
do Estado – ALE. Esta legislação insere elementos inovadores, como a possibilidade
de gestão local de uma parte do orçamento e dos investimentos e a participação de
cidadãos nos novos conselhos de auscultação e concertação a nível das comunas e
municípios, através de OSC locais. No entanto, as ALE são ainda estruturalmente
frágeis, não têm poder para tomar decisões e têm uma capacidade muito limitada para
prestação de serviços aos cidadãos. Estes factos, aliados ao fraco desenvolvimento da
economia local, explicam, na prática e em grande medida, os actuais níveis de pobreza
e a ainda fraca participação alargada dos cidadãos nestes processos.
Nesta situação, várias ONG definem como foco principal e prioritário da sua acção a
promoção da participação dos cidadãos na discussão e solução dos seus problemas,
visando, na linha de Paulo Freire, um processo de consciencialização que permita
entender que, mais do que necessidades, as pessoas têm direitos e que é essa cons-
ciencialização que lhes conduz ao caminho da cidadania (Freire, 2001). O apoio ao
reforço de capacidades de organizações comunitárias que actuam junto dos cidadãos
torna-se, assim, uma questão central de grande alcance estratégico.
É neste contexto que, por exemplo, as OSC têm vindo a estimular e a fomentar a criação
de fóruns locais, onde as comunidades e suas organizações interagem com instituições
públicas. Estes espaços enquadram-se no que alguma literatura anglo-saxónica tem
vindo a designar por new democratic spaces (Robinson & Friedman, 2005), ou seja, espa-
ços de participação e de oportunidades para os cidadãos deliberarem sobre assuntos
de natureza e interesse comuns, que tanto podem ser a satisfação de necessidades
sociais e económicas, como o reconhecimento de direitos (sobre a terra e outros) ou
a questão das eleições, o que dá uma dimensão política ao debate. Como em Angola
a discussão política é restringida aos espaços de “democracia formal”, com pouca
ligação com a população, as OSC desempenham uma importante função política e
democrática quando proporcionam aos cidadãos uma esfera pública independente,
fora do controle do Estado, de associação e participação, onde eles podem manifestar
as suas opiniões e prioridades (Roque & Shankland, 2007).
Fernando Pacheco g Sociedade Civil em Angola: Ficção ou Agente de Mudança? 121
No cumprimento deste seu papel cívico, mas igualmente político, é natural que as
OSC se confrontem, mais cedo ou mais tarde, com dificuldades em delimitar as fron-
teiras entre a política partidária e as políticas públicas. Num país como o nosso, em
que a cidadania foi forjada em paralelo com a luta pela independência, insisto, essa
dificuldade é ainda maior. Além disso, nós não conseguimos estabelecer a fronteira
entre politics (política partidária) e policy (política pública). É natural, pois, que na sua
actuação, as instituições públicas e algumas OSC sintam dificuldades em estabelecer
tal distinção. No entanto, essas dificuldades não podem de modo algum justificar a
postura repressiva e autoritária de algumas instituições governamentais, tal como
aconteceu em Julho de 2007, quando algumas ONG nacionais e estrangeiras foram
ameaçadas com processos de “ilegalização”, com o argumento de que se estariam a
imiscuir em assuntos políticos e a extravasar o seu objecto social.
Tais atitudes, por parte do governo, não são democráticas e foram combatidas pratica-
mente por toda a sociedade. Não se pode sustentar o argumento absurdo de que as OSC
— que tanto têm contribuído para o processo de transição para a democracia e para a
estabilidade social —, devem agora abster-se de contribuir para a defesa dos direitos dos
cidadãos e para a definição de políticas públicas. Existem cidadãos que não se revêem
na política partidária, mas que ainda assim querem e têm o direito de participar na vida
pública. Nestes casos as OSC e o espaço cívico são a alternativa legítima e viável.
gerido” aos angolanos como solução para os problemas que os afectavam — guerra
e subdesenvolvimento. Foi uma “sugestão” que implicou a adopção de um sistema
político-económico liberal, Ocidental, numa altura em que noutros continentes este
modelo já padecia de graves problemas, nomeadamente a representatividade e a
participação (Santos, 2002). Se assim era noutros locais, onde aquele tipo de sistema
beneficiava de todo um passado de construção endógena das sociedades que o adop-
taram e desenvolveram, mais cuidadosa deveria ser a sua transposição e adaptação
às realidades africanas.
No entanto, tal adaptação cuidadosa em África não sucedeu e Angola não foi excepção,
não se levando em conta a sua especificidade sócio-cultural, nem a possibilidade de se
adoptarem ou adaptarem outras fórmulas que considerassem aspectos essenciais para o
país, como a necessidade de construção da ideia de nação (ainda frágil), a necessidade
de participação efectiva dos cidadãos na vida política nacional por outras vias que
não somente a dos partidos políticos, a necessidade de representação da diversidade
cultural ou regional, ou ainda a possibilidade de se respeitarem e aproveitarem as ex-
periências de gestão da vida comunitária nos meios rurais e peri-urbanos. Por outras
palavras, não existiu a preocupação com uma possível “angolanização” da democracia
(Lopes, 1994; Pacheco, 2005).
Formas tradicionais de participação dos indivíduos na vida das suas comunidades,
não foram aproveitadas nem tidas em conta. Caso aproveitadas, essas formas, ou pelo
menos alguns dos seus mecanismos, poderiam ter facilitado a adaptação e adesão ao
novo modelo, como algo que também encontrava raízes na tradição das comunidades,
facilitando e estimulando deste modo a participação dos cidadãos na vida pública por
via das novas instituições e procedimentos democráticos. Um exemplo destas formas
tradicionais é o Onjango, que consiste numa instituição muito comum em meios rurais
angolanos e de fundamental importância na gestão da vida comunitária, na modera-
ção dos poderes de liderança, na resolução de conflitos, na transmissão de valores aos
jovens3. Com a introdução de alguns factores de correcção — como, por exemplo, um
maior equilíbrio etário e de género — esta e outras formas tradicionais de gestão da vida
comunitária poderiam melhorar e aumentar o nível de participação democrática.
Uma outra consideração importante, ao nível da adaptação do modelo democrático às
realidades africanas e angolana em particular, teria sido a possibilidade de se começar o
processo eleitoral pelo nível local, que a meu ver teria vantagens óbvias, como uma maior
partilha do poder político-administrativo entre o nível central e local, uma maior apro-
priação das políticas públicas por parte dos cidadãos, uma maior e melhor aproximação
daquelas políticas e do poder central à realidade da vida das comunidades e um crescente
e progressivo apoio às eleições gerais, que viriam numa segunda fase, assegurando-se
assim uma mais ampla participação e articulação da realidade local e nacional.
Conclusão
É indubitável o contributo das OSC angolanas para o processo de democratização do
país e este esforço é tanto mais meritório quanto tem sido dispendido num contexto de
muitas adversidades e num relativamente curto período de tempo. No entanto, dada
a complexidade do contexto angolano, é limitada a possibilidade da sociedade civil
3
Onjango é uma palavra de língua Umbundu, mas noutras línguas angolanas encontram-se igualmente designações
para o mesmo tipo de instituição: como mbanza (Kimbundu ou Kicongo), cota (ou tchota, em Tchokwe).
126 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
vir a influenciar mudanças de fundo, ou estruturais, sendo que esse tipo de mudanças
só pode ocorrer no longo prazo.
Mudanças mais profundas na sociedade devem começar por mudanças a nível dos
comportamentos de cada indivíduo e que se traduzam em mudanças de funciona-
mento da sociedade como um todo. Num contexto tão complexo como o angolano
isto passa pela superação de traumas e complexos provocados pelo colonialismo, pelo
racismo, pelo regionalismo, pela exclusão social, pela guerra, pela dependência, para
além da percepção de que é preciso acabar com a mentalidade e os comportamentos
clientelares e neo-patrimoniais de cada um. Para que existam mudanças tem que existir
consciencialização profunda da sua necessidade e vontade por parte da grande maioria
da população. A nível central, da estrutura político-adminitrativa e partidária, a mu-
dança parece mais difícil, uma vez que a lógica rendeira procura auto-reproduzir-se
nos seus mecanismos de dimensão macro, impedindo uma transformação do sistema.
De acordo com Chabal, as mudanças formais de regime não se traduzem, em geral,
em reformas políticas sistemáticas. Com poucas excepções, o que predomina é a con-
tinuação das políticas neo-patrimoniais (ou rendeiras), que são incompatíveis com o
desenvolvimento sustentável (Chabal, 2006).
A curto e médio prazo, a estratégia para a mudança deve centrar-se no nível local, das
comunidades de menor dimensão, porque aí é mais clara a consciência dos cidadãos
para a necessidade e possibilidade de se conquistarem espaços de cidadania, autonomia
e poder, que, apesar de relativamente limitados na sua dimensão e alcance quando
considerados a nível nacional, representam enormes conquistas para as vidas daqueles
que as alcançam no nível local. A oportunidade oferecida pelo processo de descen-
tralização poderá, se bem aproveitada, favorecer este tipo de mudança local, por via
de uma maior interacção institucional entre OSC e instituições públicas, estimulando
uma participação mais alargada. A génese desse processo vai, em parte, acontecendo
através dos novos espaços democráticos — fóruns ou quadros de concertação e con-
selhos de auscultação e concertação — que começam a emergir um pouco por todas
as províncias e cujo desenvolvimento deve ser estimulado, apoiado e reforçado .
A mudança deverá resultar da efectivação de uma política de pequenos passos, que
parece estar ao alcance das organizações angolanas, que terão elas próprias de igual-
mente promover mudanças no seu seio, nas suas práticas e estruturas organizacionais,
adaptando-se à realidade, anseios e expectativas das comunidades. Não se pode
pretender aplicar a Angola as experiências de outras latitudes sem uma criteriosa
avaliação do nosso contexto e das nossas capacidades.
Em suma, um desenvolvimento democraticamente sustentável deve aliar a moderniza-
ção do país à melhoria das condições e do nível de vida da generalidade da população,
à ampla participação dos cidadãos na tomada de decisões públicas e ao respeito pela
diversidade de valores e identidades culturais. Parafraseando o poeta espanhol An-
tónio Machado, defendo que o caminho para a democracia, para o desenvolvimento
e para uma sociedade mais justa, faz-se caminhando — trabalhando — nesse sentido,
e as OSC sem dúvida nenhuma que têm dado um valiosíssimo contributo para que
se alcance esse objectivo. No entanto, deve ter-se igualmente em conta as dinâmicas
de cada contexto específico e perceber que a mudança não poderá ocorrer ao ritmo
das vontades de outros, devendo aqui ser lembrada a expressão malembe malembe da
língua Kikongo, que significa “devagar e bem”.
Fernando Pacheco g Sociedade Civil em Angola: Ficção ou Agente de Mudança? 127
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129
As condicionantes Internas
e Externas ao Desenvolvimento
da Sociedade Civil e da Democracia
Kinsukulu Landu
Kama
Grémio para o Ambiente,
O processo de democratização efectiva da sociedade an-
golana tem encontrado inúmeras vicissitudes e muito se
tem exigido de actores como os partidos políticos e, sobretudo,
Beneficência e Cultura – a sociedade civil, depois de se ter constatado a ineficácia dos
Grémio ABC partidos políticos. O presente texto procura abordar a questão
das condicionantes do desenvolvimento da sociedade civil ten-
do em consideração a dimensão interna e externa do problema.
Neste sentido, começamos por debater aquele que considero
ser um dos principais problemas internos ao desenvolvimen-
to das Organizações da Sociedade Civil (OSC) — a falta da
efectiva implementação de regras básicas para o bom funcio-
namento de um Estado de Direito (capítulo 1) e a necessidade
de uma reflexão e debate público sobre o tipo de estruturação
do Estado (capítulo 2), seguindo-se a apresentação de uma
possível alternativa ao modelo de excessiva centralização e
concentração do poder político (capítulo 3). O capítulo 4 abor-
da a dimensão externa do problema, analisando as relações
entre as OSC nacionais e a comunidade internacional (desde
as organizações inter-governamentais às não governamentais)
no que concerne a dois dos mais recentes temas desta relação
— a pressão externa em torno das plataformas da sociedade
civil e a responsabilidade social das empresas.
1 - A Falta de Separação de Poderes como
Condicionante da Sociedade Civil e da Democracia
Os problemas que se colocam à afirmação da sociedade ci-
vil em Angola são vários, conforme analisados em muitos
outros textos deste livro. Na minha perspectiva, antes de
abordarmos as especificidades e os obstáculos concretos que
no dia-a-dia se colocam às OSC, devemos começar pelo pro-
blema de base e que constitui o condicionante mor de todos
os outros — a efectiva implementação de regras básicas para
o bom funcionamento de um Estado de Direito. Estas regras
implicam, antes de mais, a velha e simples (mas ainda por
implementar) máxima da separação de poderes e efectiva
institucionalização do Estado.
Como todos sabemos, os poderes executivo, legislativo e ju-
dicial, permanecem misturados e interpenetrados, existindo
inúmeras influências do poder político sobre o sistema judicial
e uma muito débil institucionalização do Estado, impedindo
130 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
a clara separação dos cargos públicos da pessoa específica que os ocupa. A dimensão
pública e privada permanece confusa na maioria dos cargos e instituições públicas e o
aparelho de Estado é gerido com base na personalização do poder ao invés de se reger
pela aplicação geral da Lei abstracta que se sobreponha aos indivíduos específicos que
ocupam esses cargos.
Em 2002 quando lançámos a coligação pela reconciliação, transparência e cidadania, cria-
da no limiar do fim da guerra, fizemos uma análise da legislação angolana em conjunto
com vários juristas e concluímos não existir independência do sector da justiça. Entre
outros casos, aquele que se afigurava mais gritante respeitava à Procuradoria-Geral da
República e ao Tribunal Supremo. A Lei não assegura a independência daqueles dois
órgãos, existe uma dependência política (para além da usualmente referida dependência
pessoal) do Procurador-Geral e do Tribunal Supremo para com o Presidente da Repú-
blica. Existem também casos em que a Lei simplesmente não é respeitada pelo poder
político, nomeadamente na actual situação em que o Presidente do Conselho Nacional
Eleitoral é igualmente Vice-Presidente do Tribunal Supremo, ao arrepio da Lei que não
lhe permite acumular cargos públicos.
É preciso assumir que o sector da justiça permanece politizado e politicamente depen-
dente. Não existindo uma justiça independente isso vai-se reflectir em todas as áreas
da vida em sociedade. Nós levantámos a questão em 2002 e esperámos a reacção por
parte do poder político que efectivamente reagiu por via da nomeação das já habituais
comissões de análise que acabam por não ter qualquer outra consequência prática. A
Presidência da República nomeou duas comissões para estudarem o caso, mas até hoje
esperamos em vão por resultados consequentes.
Penso que devemos começar por esta constatação, da não separação de poderes e da
partidarização e personalização das instituições do Estado, se queremos efectivamente
fazer algo para mudar a realidade. Pode parecer uma discussão básica, mas está por fazer
e enquanto não assumirmos esta realidade, todas as outras discussões mais específicas
acerca das suas consequências ficam muito limitadas no seu âmbito.
Se tivermos o cuidado de encetar esta reflexão e discussão, percebemos que a inexistên-
cia daquelas regras básicas de funcionamento de um Estado moderno limitam todas as
dimensões da vida em sociedade, na medida em que afectam, de um modo geral, toda
a eficácia e eficiência do aparelho de Estado. Se o Estado está encarregue da orientação
e gestão da vida em sociedade, nas suas diferentes vertentes, e funciona mal, então,
todas essas vertentes estarão limitadas à partida, nomeadamente o desenvolvimento
económico, político e social. Não podemos esperar uma sociedade civil forte e pujante
no seio de um Estado fraco e minado por todo o tipo de ineficiências e vícios de fun-
cionamento, a começar pela básica separação de poderes e efectiva implementação do
Estado de Direito com normas que propiciem o tipo de sociedade democrática que se
quer construir.
De entre as várias consequências desta realidade está, por exemplo, a tão propalada
“corrupção institucionalizada” ligada à falta de boa governação e transparência. Atrás
destes problemas vêm sequencialmente a pobreza da maioria da população e todas as
injustiças e problemas sociais com que nos debatemos, seja em termos da falta de se-
gurança social para os trabalhadores do mercado informal (que são em cada vez maior
número), seja em termos de degradação da educação, da saúde, da habitação, entre
tantos outros. Mesmo as diversas fragilidades e ineficiências de que se acusa a sociedade
Kinsukulu Landu Kama g As condicionantes ao Desenvolvimento da Sociedade Civil e da Democracia 131
civil têm a sua raiz na falta de um Estado eficaz e eficiente, gerido com base em normas
verdadeiramente democráticas.
Neste momento, a nível nacional e internacional, todos os focos estão apontados para
as eleições e não devemos esperar uma alteração desta atitude nos próximos anos, dado
que vamos ter primeiro as legislativas, eventualmente as presidenciais passado um ano
e depois, possivelmente, as regionais e autárquicas. Quer isto dizer que ao contrário do
que seria necessário, vamos continuar centrados nas discussões da forma e das con-
sequências ao invés das causas e do conteúdo. As eleições em si não vão alterar nada
daquilo que é estrutural ao sistema político-económico angolano. Os problemas de
fundo vão continuar por resolver e não são as eleições, embora importantes, que os vão
solucionar. A comunidade internacional fica satisfeita com a realização das eleições, os
partidos políticos da oposição também, a par de alguma sociedade civil, mas o problema
de fundo passa despercebido ou relegado para um futuro longínquo.
O próprio processo eleitoral está à partida a ser gerido muito aquém daquilo que seria
desejável em termos de regras democráticas e transparentes. Até agora o que existe é
a propaganda governamental daquilo que o governo está a tentar fazer. Do lado dos
partidos políticos da oposição, o mais adequado que se nos apraz dizer é que sofrem de
uma gritante falta de competência no desempenho das suas funções, desde a análise das
grandes temáticas sociais e dos problemas que afligem o eleitorado e as pessoas comuns,
até à incapacidade de compreenderem as estratégias políticas do partido maioritário.
Muitas das vezes não conseguem sequer descortinar que o partido maioritário está subtil
e eficazmente a conduzi-los de acordo com aquilo que mais lhe interessa.
Ao nível da sociedade civil, ainda que a realidade seja um pouco melhor do que a dos
partidos políticos, a situação também não é a mais favorável ao desenvolvimento de
uma sociedade democrática. Para além dos constrangimentos mais explícitos ao traba-
lho das OSC, existe ainda um outro, provavelmente mais poderoso, e que consiste na
auto-censura induzida por várias formas e mecanismos. Uma dessas formas reside no
facto de o Estado continuar a ser o maior empregador e da maior parte dos activistas
ou do pessoal que trabalha nas OSC serem também funcionários públicos, facto que por
vezes os coloca numa posição muito difícil, sobretudo quando assumem determinadas
responsabilidades e posições.
Além do próprio medo que ainda persiste por via da memória das práticas repressivas
do tempo do partido único e das novas ameaças veladas ou explícitas que são feitas a
esses activistas, existe ainda a auto-censura de acordo com aquilo que cada um imagina
serem os limites de crítica aceitáveis para o regime. Cada um estabelece para si próprio
esses limites, mas a verdadeira linha de fronteira entre o tolerado e o punido não é
clara, sendo que também vai depender de muitos factores subjectivos como sejam, por
exemplo, a personalidade e o carácter do/s visado/s nas nossas críticas. Por certo temos
que caso alguém do poder político considere que essa linha foi ultrapassada as conse-
quências vão-se fazer sentir, provavelmente por via até do poder judicial, influenciado
por pressões políticas, facto que nos leva uma vez mais ao problema da partidarização
das instituições do Estado, para além da referida personalização.
O ambiente que existe em Angola e na região (incluindo principalmente os dois Congos e
o Zimbabwe, entre outros casos de menor relevo) é obviamente de restrição às liberdades
e garantias fundamentais, por vezes resultando em constrangimentos induzidos, provo-
cados ou auto-impostos em toda a área de actuação das OSC. Deste contexto resultam
132 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
1
Carneiro, Emmanuel, Especialização Rendeira e Extroversão na África Sub-sahariana – Caracterização e Consequência,
Lisboa, Principia, 2004.
2
In Vidal, Nuno, “Multipartidarismo em Angola”, in Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade (eds.), O processo de
transição para o multipartidarismo em Angola, Firmamento: Luanda & Lisboa, 2006, pp. 11-57.
Kinsukulu Landu Kama g As condicionantes ao Desenvolvimento da Sociedade Civil e da Democracia 133
3
Carneiro, Emmanuel, Especialização Rendeira e Extroversão na África Sub-sahariana – Caracterização e Consequência,
Lisboa: Principia, 2004; Vidal, Nuno, “Multipartidarismo em Angola”, in Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade,
O processo de transição para o multipartidarismo em Angola, Luanda & Lisboa: Universidade Católica de Angola &
Universidade de Coimbra, 2006, pp. 11-57; Messiant, Christine, “Transição para o multipartidarismo sem transição
para a democracia” in Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade, O processo de transição para o multipartidarismo em
Angola, Luanda & Lisboa: Universidade Católica de Angola & Universidade de Coimbra, 2006, pp. 131-161.
134 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Do lado das OSC nacionais existe este problema que já tem sido muito referido da
falta de capacidade em termos de recursos humanos e financeiros e a sua dependência
em relação aos parceiros externos, suas agendas e financiamentos. Estes problemas
acabam por se reflectir numa certa divisão das OSC, uma falta de solidariedade entre
si, que se manifesta na falta de adesão a alianças alargadas e continuadas em torno
de campanhas de fundo e que teoricamente dizem respeito a todos nós que actuamos
nesta área. Estas campanhas no início despertam o interesse dos media, facto que é
muito importante para o seu impacto, mas quando deixamos de ter capacidade para
continuar o processo de forma sustentada o assunto morre igualmente na comunicação
social. No caso da corrupção fizemos uma campanha de media muito forte, mas não
tivemos capacidade para prosseguir com a campanha e para continuar a alimentar os
meios de comunicação social com informação e o tema acabou por morrer.
Nestes processos de médio e longo prazo as OSC internacionais poderiam prestar
uma importante colaboração, apoiando as agendas existentes e nossas, em vez de nos
imporem as suas agendas, geralmente de curto prazo.
4
Marques, Rafael, Operação Kissonde: Os Diamantes da Humilhação e da Miséria, Cuango, Lunda-Norte Angola (Lisboa:
Edição do autor, 2006).
138 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
do fim da guerra não houve melhorias, seja nas cidades das Lundas, seja nas zonas
rurais e de garimpo, talvez até esteja pior5.
Para a maioria das empresas a responsabilidade social representa apenas uma forma de
cosmética para apaziguarem as críticas da opinião pública do Ocidente e não propriamente
uma preocupação efectiva com os problemas das comunidades das áreas onde operam.
Não se trata de construir escolas ou centros hospitalares quando o problema é arruinar
os meios da subsistência autónoma das populações, poluindo águas e terras agrícolas ou
reprimindo as populações, porque quando isso acontece não serve de nada ter a escola ou o
centro de saúde, as populações perdem capacidade de gerar os seus meios de subsistência
e de desenvolverem as suas vidas de forma harmoniosa e pacífica.
Dada a fragilidade e falta de força da opinião pública nacional e a falta de sensibilidade do
governo em relação a esta realidade, o verdadeiro problema das grandes multinacionais
está ao nível da opinião pública internacional e das organizações internacionais (inter-
-governamentais e não governamentais). Neste sentido, o combate pela responsabilização
social das multinacionais a operarem em Angola deve consistir numa articulação entre os
activistas e as organizações nacionais e internacionais preocupadas com estas questões.
A luta que tem de ser travada será tanto dentro de fronteiras como fora.
Não quero com isto dizer que se deve encarar as empresas multinacionais como inimi-
gos. O diálogo entre todas as partes envolvidas no problema é essencial, embora até ao
presente momento não tenhamos tido muito sucesso com a postura das empresas. Temos
de procurar resolver este problema de forma pacífica, mas sabendo sempre que do lado
das multinacionais a sua lógica de maximização dos lucros é obviamente um obstáculo
poderoso a que se envolvam efectiva e empenhadamente na resolução dos problemas cau-
sados pela sua acção e que somente são sensíveis às opiniões públicas do Ocidente. Todos
sabemos que essas empresas não actuam da mesma forma no Norte e no Sul. No Reino
Unido, na Noruega, nos EUA ou em qualquer outro país do Norte, as mesmas empresas
têm um comportamento diferente e fazem muito mais em termos de responsabilidade
social e têm muito mais preocupações ambientais e estão sujeitas a normas rígidas que
cumprem, enquanto aqui assumem uma postura completamente diferente.
Do mesmo modo, não ignoro que a responsabilidade social diz também respeito às
empresas nacionais e essa é uma outra dimensão a ter em conta nesta luta. Contudo,
penso que os problemas mais graves e de resolução urgente, neste momento, residem
ao nível da actuação das grandes multinacionais que estão muito mais expostas às
pressões para que cumpram com essas responsabilidades. As empresas nacionais
estão protegidas pela impunidade reinante no seio da classe político-empresarial e
pela falta de sensibilidade governamental para com esta matéria.
Em suma, há, pois, a necessidade de entendermos a responsabilidade social das em-
presas não do ponto de vista da cosmética social (da construção da escola, do centro de
saúde, dos polidesportivos ou indemnizações ridículas), mas de efectiva resolução dos
problemas causados pela sua actuação e igualmente da sua contribuição para o próprio
desenvolvimento das regiões e dos países onde operam. A este nível é essencial a aliança
com parceiros regionais e internacionais.
5
Médecins Sans Frontiers, Relatório: As mulheres testemunham; cem mulheres contam o seu calvário Angolano (MSF: 5
de Dezembro de 2007).
Capítulo III
As Igrejas, a Juventude, as Mulheres e os Media
como Propulsores do Desenvolvimento Humano
Textos
Michael Comerford
Pedro Cardoso
Aline Afonso Pereira
Reginaldo Silva
José Patrocínio
Paulo de Carvalho
h
141
Introdução
Michael Comerford
Trócaire, Nairobi,
Quénia
O longo e sangrento conflito militar em Angola terminou
finalmente em Abril de 2002 com a assinatura do Me-
morando de Entendimento do Luena entre as forças armadas
angolanas e a liderança militar da UNITA. O Memorando
do Luena seguiu-se à morte em combate de Jonas Savimbi,
o líder da UNITA, e foi o terceiro acordo de paz assinado
entre as partes em confronto. Nem os Acordos de Bicesse,
em Maio de 1991, nem o Protocolo de Lusaka, em Novembro
de 1994, garantiram uma paz duradoura. Este artigo avalia o
papel desempenhado pelas Igrejas em Angola na promoção
da paz e da democracia, através da análise e contextualização
de literatura e iniciativas das principais Igrejas protestantes
e da Igreja católica.
As Igrejas são instituições importantes em Angola, com uma
“influência poderosa sobre o povo” (Birmingham 1999: 63),
e entendem-se a si mesmas como porta-vozes do povo an-
golano, que pagou o mais alto preço pelos vários fracassos
em solucionar o conflito entre o MPLA e a UNITA. Durante
o conflito, as Igrejas eram vistas como “a mais legítima e
organizada rede para a paz e a mudança numa Angola frac-
turada” (Howen 2001: 29). Antes do Memorando do Luena,
outros, como Messiant (2000: 1), defendiam que, no fracas-
so em garantir a paz, se devia também ler um fracasso das
Igrejas Cristãs, baseado essencialmente na sua incapacidade
de promover uma abordagem unida até bastante tarde no
conflito.
O artigo centra-se em três instituições da Igreja: CICA (Con-
selho das Igrejas Cristãs de Angola), AEA (Aliança Evangélica
Angolana) e CEAST (Conferência Episcopal de Angola e São
Tomé). As primeiras duas são organizações ecuménicas que
representam as principais Igrejas protestantes, e todas as três
são amplamente conhecidas em Angola por estes acrónimos.
As três organizações falam publicamente de forma bastan-
te diferente e mudaram a forma como se envolvem com o
discurso político público, como veremos posteriormente. A
1
Texto traduzido do inglês original por Mónica Rafael Simões.
142 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
tradição teológica da AEA colocou uma distinção clara entre o espiritual e o político,
encarando-os como esferas separadas; esta distinção é menor para o CICA (os princi-
pais membros incluem as Igrejas Metodista, Baptista e Congregacionista) e a CEAST. O
discurso da CEAST é o produto de uma procura por consenso entre os bispos católicos,
em que as filiações e divisões políticas reflectiam as mais amplas dentro da sociedade
angolana; o discurso da AEA e do CICA emergiu de conferências da Igreja ou através
de afirmações públicas do seu secretário-geral, que interpretava acontecimentos po-
líticos e sociais de acordo com os estatutos da sua organização.2
Em vez de abordar as narrativas das Igrejas protestante e católica de modo separado,
o que é geralmente feito pela literatura angolana, este artigo trata-as colectivamente
devido a semelhanças significativas entre as suas análises. Vários trabalhos importantes
analisaram o papel das igrejas antes da assinatura dos Acordos de Bicesse de 1991. O
mais significativo é Schubert (2000), mas outros incluem Grenfell (1998), Henderson
(1979, 1990) e Péclard (1998). Estes sublinharam a relação entre os partidos nacionalistas
e as três principais Igrejas protestantes, e a relação do poder colonial com a Igreja cató-
lica. As três principais Igrejas protestantes — Metodista, Baptista e Congregacionista
— foram berços para os três principais partidos nacionalistas, MPLA, FNLA e UNITA,
respectivamente. O artigo não explora estes elos históricos, que foram discutidos em
outros momentos (por exemplo, Comerford, 2005; Guimarães, 1998; Malaquias, 1995;
Marcum, 1969; Mateus, 1999).
O facto de as Igrejas terem desempenhado um papel tão central em Angola é bastan-
te irónico. Dois anos após a independência, quando o governo do MPLA adoptou o
marxismo-leninismo como a sua ideologia política, houve sugestões de que as Igrejas
deviam ser banidas (Birmingham 1999: 63), e o primeiro presidente angolano Agostinho
Neto acreditava que as Igrejas iriam desaparecer completamente dentro de cinquenta
anos (Schubert 2000: 139). Pensava-se por todo o continente que a “Cristandade em
África se tornaria cada vez menos importante”, mas provou-se não ser este o caso (Gi-
fford 1995: 21). Em vez disso, as Igrejas cresceram em importância, exercendo papéis
fundamentais em muitos países na redução do conflito, promoção da paz e reconci-
liação, defesa de Direitos Humanos e facilitação ou apoio à transição democrática (de
Gruchy 1995). Como veremos, as Igrejas estiveram na primeira linha da luta pela paz
e democracia em Angola.
O artigo contempla seis períodos distintos, analisando o envolvimento da Igreja em
relação com o contexto político e militar da altura. Inicialmente, analisa material
anterior aos Acordos de Bicesse, de Maio de 1991, onde emergiram inicialmente te-
mas centrais evidentes em análises posteriores da Igreja. Em segundo lugar, analisa
o período que vai de Bicesse às primeiras eleições multipartidárias e presidenciais
realizadas em Setembro de 1992. Seguidamente há uma reflexão sobre a crise pós-
eleitoral até à assinatura do Protocolo de Lusaka em Novembro de 1994. Em quarto
lugar, é avaliado o período de “nem guerra nem paz” desde o Protocolo de Lusaka
até aos finais de 1998. Depois, uma breve análise da guerra de Dezembro de 1998 até
à morte de Jonas Savimbi em Fevereiro de 2002, e finalmente, algum comentário aos
anos que se seguiram à assinatura do Memorando de Entendimento do Luena de 2002.
Esta abordagem cronológica facilita a compreensão sobre o modo como as Igrejas
responderam à medida que o conflito avançava de uma crise para outra. A literatura
2
Reunião com membros do CICA, Luanda, 30 de Janeiro de 2007.
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 143
3
A CICA substituiu a anterior organização das Igrejas conhecida como CAIE (Conselho Angolano de Igrejas
Evangélicas); falando de forma estrita dever-se-ia referir como CAIE (1984). É referido como CICA-CAIE (1984),
para reflectir esse facto.
144 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
O maior problema do nosso país, que afecta tudo mais, é uma falta de unidade. Uma
unidade baseada na verdade e justiça e ancorada no amor… Deste modo, é importante
examinar o que nos divide, não para abrir feridas antigas, mas para erradicar as sementes
da discórdia. Diferenças tribais… degeneraram num motivo para rejeição mútua, para
desrespeito e para a divisão das tribos em superiores e inferiores. Isto é grave. Compromete
o futuro e a própria existência da nação, abrindo portas para outros explorarem.
Ecoando o CICA, antes dos Acordos de Bicesse, a CEAST defendeu que as causas do
conflito eram internas, que as divisões internas tinham levado à criação de alianças
externas. Colectivamente as Igrejas acreditavam que os processos democráticos iriam
ajudar a resolver estas questões subjacentes.
1.2 - Democratização
É necessário situar o discurso da Igreja sobre democratização na realidade política
da altura, lembrando que Angola era então um Estado marxista de partido único. Os
membros da Igreja eram obrigados a deixar o MPLA ou forçados a rejeitar publicamente
a sua crença religiosa (CICA, 1984: 7). O governo era sensível ao que considerava ser
comentário político que emanava das Igrejas, embora aceitasse a natureza religiosa do
trabalho das Igrejas. As fronteiras entre o que é considerado “político” e o que é “reli-
gioso” são muito diferentes nas mentes de líderes do governo e da Igreja. Os últimos
não vêm uma linha divisória exacta entre as duas arenas, particularmente quando o
bem-estar humano está em risco. Por outro lado, o governo encarou frequentemente
comentários desta natureza como intervenção da Igreja na política e criticou afirma-
ções da Igreja.
As Igrejas receberam calorosamente os Acordos de Gbadolite. A AEA e o CICA felici-
taram o Presidente angolano por garantir a paz e praticar uma “política de perdão”.4 A
CEAST entendeu que tinha começado um momento de transição democrática, que essa
transição fazia parte do processo de reconciliação nacional: “o diálogo de reconciliação
que começou seguia linhas democráticas e devia continuar a construir e a consolidar a
paz” (CEAST, 1989: 212).5 Mais tarde, em 1989, com Gbadolite a revelar-se claramente
um fracasso, a CEAST reiterou que o caminho para a paz e a reconciliação nacional
envolviam a reforma democrática:
Precisamos de uma paz autêntica que transforme Angola num país verdadeiramente livre
e democrático, em que todos os seus filhos tenham um lugar e uma voz. Esta voz só será
ouvida genuinamente em eleições livres. É necessário encontrar formas de estabelecer
uma paz justa… No imediato, é necessário um cessar-fogo… Chegou o momento para um
diálogo pessoal, directo e franco, de um angolano com o outro (CEAST 1989: 214).
O mesmo documento desafiava os líderes políticos de ambos os lados a parar de sacri-
ficar os filhos de Angola aos seus interesses partidários. Afirmações pró-democracia
desta natureza ilustram o quanto a Igreja católica tinha mudado desde o seu apoio ao
regime colonial. O seu apoio tão claro à democracia reflecte as mudanças políticas que
ocorriam noutros lugares, à medida que a mudança varria a Europa de Leste. É, no
entanto, pouco usual ver uma afirmação tão veemente de apoio a favor de um sistema
4
Esta carta ao Presidente dos Santos é referenciada como AEA-CICA (1989).
5
Os documentos da CEAST de 1974 a 1998 estão publicados num único volume em 1998. Ao referenciar afirmações
da CEAST deste período, cita-se o ano da afirmação, seguido pelo número da página em CEAST (1998). Assim,
CEAST (1998: 212) torna-se CEAST (1989: 212).
146 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
político particular. Tal como Gruchy (1995: 48) deixa claro, “a Cristandade não pode
ser comparada com nenhum sistema de governo, incluindo a democracia, mas deve
permanecer crítica de todas as ordens sociais”.
O governo do MPLA ficou irritado com a intervenção da CEAST. Dois artigos publi-
cados no jornal estatal diário Jornal de Angola, a 30 de Novembro de 1989, acusavam
a CEAST de obstruir a procura pela paz pela adopção de posições idênticas às dos
Estados Unidos e da UNITA (os Estados Unidos forneciam armas à UNITA durante o
conflito).6 Apesar da resposta do governo ter criticado as posições avançadas pela CE-
AST, alguns entrevistados sugeriram que o desagrado do governo foi também expresso
de outras formas, tais como uma redução e atrasos no número de vistos concedidos
aos missionários estrangeiros que queriam trabalhar no país. Isto criou dificuldades
ao nível dos funcionários para a CEAST e serviu para lembrar que a crítica pública
do governo tinha um preço.
As perspectivas da CEAST em relação à forma que a mudança política devia assumir
eram representativas dos sentimentos das Igrejas em geral. A AEA e o CICA também
encaravam o desafio democrático como o caminho mais certo para assegurar a paz,
o que estava evidente numa submissão conjunta ao terceiro congresso nacional do
MPLA em 1990.7
A paz e tranquilidade do povo dependem de um compromisso de abertura à política
multipartidária… A política multipartidária não devia ser uma hipótese ainda a ser
testada, mas um objectivo a alcançar dentro de um determinado período. O compromisso
com uma política multipartidária podia determinar a paz, e esta por sua vez conduz à
democracia (AEA-CICA 1990).
A submissão também comentava que a democracia iria alterar positivamente o equi-
líbrio de poder a favor do povo, de uma forma não permitida em Estados de partido
único:
Os governos de Estados de partido único mantêm o seu poder com base na corrupção e
num grande aparelho militar e de segurança que defendem o regime contra o povo que
este governa… Até agora, o governo e a soberania da nação angolana têm sido confun-
didos com o do Partido [MPLA]… A nossa paz, o nosso desenvolvimento e a unidade
nacional pelas quais todos nos devíamos esforçar ao máximo, são alcançadas através da
democracia.
A posição pró-democracia da AEA e do CICA é interessante na identificação de crí-
ticas ao governo do MPLA no interior das Igrejas protestantes. Isto é especialmente
relevante no caso da AEA, que tinha encarado o envolvimento político como uma
traição da sua missão cristã, e durante o período pós-independência anterior a Bicesse
era raro que quer a AEA quer o CICA se pronunciassem publicamente sobre a paz
(Schubert 2000: 157, 207). O envolvimento das Igrejas com o MPLA veio principal-
mente da CEAST durante estes anos que, através da africanização da sua liderança,
tinha alterado significativamente a sua imagem de “colaborador” do período colonial
(Schubert 2000: 130).
6
Publicado na CEAST (1998: 216-219).
7
O MPLA tinha solicitado essas submissões sobre a futura direcção do país à sociedade (AEA-CICA 1990).
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 147
Estes comunicados não marcam o início da campanha das Igrejas a favor da democra-
cia multipartidária em Angola. Um apelo pró-democracia anterior, constante de um
documento ecuménico data de Junho de 1975, quando os bispos cristãos de Angola da
altura (seis católicos e um metodista) emitiram um comunicado conjunto, pedindo o
estabelecimento de “um diálogo sincero e processos verdadeiramente democráticos”
no novo Estado angolano.8 O documento é prova do trabalho conjunto das Igrejas
apesar da divisão protestante-católica, mas em termos significativos parece ser a única
iniciativa do género até à criação do COIEPA, quase vinte e cinco anos depois (Comité
Inter Eclesial para a Paz em Angola, uma comissão ecuménica pela paz conjunta AEA-
CEAST-CICA, a ser examinado mais adiante neste texto).
2 - Dos Acordos de Bicesse às Eleições de 1992
Os dezasseis meses que separam a assinatura dos Acordos de Bicesse, em Maio de 1991,
da realização de eleições nacionais, em Setembro de 1992, são referidos como “mini-
-paz”. O fim da guerra trouxe um alívio ao povo angolano que pôde finalmente viajar
e visitar familiares de quem estiveram apartados por muitos anos. Na exploração deste
breve período, analisam-se três temas principais com que as Igrejas lidaram: demo-
cratização; os media – instituição chave em sociedades democráticas; e a necessidade
por uma maior educação eleitoral.
2.1 - Democratização
A passagem de um Estado de partido único para uma democracia multipartidária
foi aplaudida pelas Igrejas, que acreditaram que se tinha avançado na reconciliação
nacional. Para as Igrejas, a introdução da democracia multipartidária deu a Angola
uma oportunidade de recomeçar, de colocar a discussão pacífica e o debate político no
centro da vida política, deixando o conflito militar no passado. Havia uma esperança
de que os anos de guerra tivessem ensinado a Angola uma lição sobre a futilidade da
guerra e a necessidade de adoptar meios pacíficos. Para a AEA (1991: 2), a mudança
para a democracia multipartidária exigia o envolvimento de todos para promover
“a pacificação e reconciliação de toda a família angolana”. A tarefa da “pacificação”
emergiu após cada acordo de paz, com o governo a apelar à assistência das Igrejas na
pacificação da nação.
Para todas as Igrejas, a democracia multipartidária foi entendida e apresentada como
a nova arena para a resolução pacífica do conflito, uma nova forma de diálogo que
substituísse o diálogo das armas. Um comunicado da AEA (1992), imediatamente antes
da realização das eleições, ilustra esta visão:
Numa democracia, a liberdade de expressão devia promover a paz e o bem-estar da socie-
dade: o acesso ao poder é ganho através do voto, não da força ou da violência. As armas
devem dar lugar ao diálogo; um diálogo que revele sabedoria, um diálogo baseado no
progresso socio-económico. Um diálogo que dirija as pessoas rumo ao desenvolvimento
e respeito pela dignidade dos outros.
A CEAST (1991: 289) abordou o papel fundamental pós-eleitoral que os partidos da
oposição teriam na construção de uma democracia saudável, e encorajou os derrotados
eleitoralmente a abraçar esse papel. Sublinhou a importância de uma oposição eficaz
em garantir uma melhor governação no seio do Estado. Para o CICA (1992b), a demo-
8
Mensagem Pastoral dos Bispos das Igrejas Cristãs sobre Paz e Harmonia, publicada na CEAST (1975: 390).
148 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Luanda poucos dias antes das eleições, as instituições de media privados não existiam
em Angola antes deste momento. Em várias ocasiões, as Igrejas pediram a modificação
da linguagem utilizada nos media. Os dois lados continuavam a emitir propaganda
um contra o outro após a assinatura dos Acordos de Bicesse, o que levou a CEAST a
pedir aos media para também observarem esses acordos (1991: 265). As Igrejas eram
conscientes do poder dos meios de comunicação social na formação de opinião, mas
também do seu poder para promover a paz e a reconciliação.9 A AEA (1991) exprimiu
preocupação face à “linguagem de intolerância nos mass media: em vez de educar os
cidadãos sobre a harmonia, alimenta a tensão e o ódio que ainda existe”. Para a CE-
AST (1992: 272):
A linguagem provocativa que os dois maiores partidos continuam a utilizar nos media
não convence a audiência que estão a procurar a paz. Uma vez mais apelamos aos res-
ponsáveis pela informação para eliminar todo o conteúdo agressivo e provocador da sua
comunicação. Procurar a unidade do povo, não a sua divisão.
Em Junho, a CEAST (1992: 281) voltou a pedir moderação, desta vez afirmando agoi-
rentamente, “que foi linguagem exactamente semelhante a esta que se escutou antes
da eclosão da guerra em 1975”. Apesar de o governo e da UNITA estarem em cessar-
fogo, as suas instituições de media permaneciam em pé de guerra.
9
Barnett (1998: 553) sublinha um outro papel fundamental exercido pelos media em África em termos da “extensão
da participação democrática”.
150 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Seis meses antes das eleições a situação não era muito melhor: “As próximas eleições
apenas serão livres se houver uma escolha informada. E apenas haverá uma escolha
informada se o eleitorado conhecer suficientemente os partidos, os seus programas e
candidatos, de modo a comparar um com o outro, e escolher qual parece ser o melhor
entre eles” (CEAST 1992: 286). O documento continuava: “a norma geral para um
candidato ou partido ser elegível é a garantia que nos oferecem de serviço dedicado
ao bem comum e respeito pelos Direitos Humanos”. Com base nestes comentários
das Igrejas, é bastante claro que a educação eleitoral não recebeu a prioridade devida.
Com aproximadamente meio milhão de votos em branco ou nulos, o assunto necessita
de um esforço e compromisso muito maiores antes das próximas eleições. Isto é algo
já claro em Angola, na medida em que as Igrejas e as organizações da sociedade civil
começaram programas de educação eleitoral com o treino de activistas que trabalham
com as comunidades locais. Muitos destes programas estão a ser conduzidos em par-
ceria com o governo, que tem a responsabilidade pela educação eleitoral.
3 - Das Eleições de 1992 ao Protocolo de Lusaka
Após as eleições de Setembro de 1992, Angola foi atirada de novo para o caos da guer-
ra. O alarmante grau de não desmilitarização da UNITA, ao arrepio dos Acordos de
Bicesse, tornou-se chocantemente evidente à medida que esta rapidamente assumiu
o controlo de cerca de 70% do país (Rothchild 1997: 135). No contexto deste novo e
sangrento conflito, são importantes três aspectos do discurso da Igreja durante este
período: encorajamento para aceitar processos democráticos; factores inerentes no
novo conflito; e os media. Esta secção baseia-se substancialmente em documentos da
CEAST, pois são poucos os documentos da AEA ou do CICA no período pós-eleitoral
imediato. Para além desta informação, entrevistas com membros do CICA e da CEAST
evidenciaram intervenções directas feitas pelas suas respectivas organizações para o
fim do conflito. A natureza destas intervenções envolveu a reunião de delegações da
Igreja com a liderança política e militar de ambos os lados do conflito, apelando ao fim
das hostilidades. Aqueles que foram entrevistados estavam ansiosos de que somente
aparecessem referências genéricas a estas intervenções e que somente algures no fu-
turo os detalhes de tais encontros viessem a público. É óbvio que essas intervenções
não mudaram o curso da guerra, mas sublinham o facto de que as Igrejas estavam
a trabalhar nos bastidores, usando os canais e recursos à sua disposição para tentar
resolver o conflito.
10
Paulino Pinto João (líder de uma coligação de catorze partidos políticos) afirmou que a primeira acusação de fraude
foi feita pela FNLA, a 2 de Outubro de 1992. A 5 de Outubro ele foi porta-voz de um grupo de partidos políticos a
reclamar fraude, que incluía a UNITA. Entrevista, Luanda, 17 de Novembro de 2001.
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 151
1992, quando a CEAST considerou que os media estatais tinham jogado um papel chave
no retorno de Angola à guerra.
O instrumento mais decisivo na mobilização de sentimentos pela paz ou pela guerra
são os meios de comunicação social — jornais, rádio e televisão.
Não temos dúvida absolutamente nenhuma sobre a influência devastadora que
os media exerceram relativamente aos acontecimentos recentes. Assim sendo,
repetimos o nosso apelo aos responsáveis pelos media de ambos os lados, para usarem
a informação para unir os angolanos, e não dividir… A substância e a forma, mesmo
o tom com que a comunicação é transmitida, os editoriais e as notícias diárias, podem
ser tanto um convite para a reconciliação e paz, como um estímulo ao ódio e à guerra.
Coloquem um fim a isto… à comunicação que apenas vê o bem no seu próprio partido,
e apenas o mal no outro [meu negrito](CEAST 1992: 300).
Claramente, a CEAST encarava os instrumentos de media do Estado e da UNITA como
instrumentos de guerra e apelava ao fim da demonização do lado oposto. Os media
eram um instrumento central no alcance da manipulação política. A CEAST esperava
eventualmente reagir a isto através do relançamento da sua própria estação de rádio
Ecclesia (o que apenas aconteceu em 1997), encerrada desde 1977.11
11
A Rádio Ecclesia, com o apoio de doadores internacionais, investiu em estúdios e infra-estruturas para conseguir
a recepção do seu sinal por todo o país. A aprovação de uma nova Lei de Imprensa proibiu a activação desta infra-
estrutura, classificando a Rádio Ecclesia como um emissor de Luanda com um sinal disponível apenas em Luanda
e seu interior próximo.
154 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Estava a apelar-se a uma nova teologia de compromisso dentro das Igrejas, que considerava
a política uma arena da actividade Cristã. Aqueles que queriam entrar na política como
parte do seu compromisso Cristão eram encorajados pelo Bispo de Carvalho a fazê-lo.
A conferência EDICA também demonstrou que as Igrejas protestantes tinham começa-
do a rever as suas filiações políticas anteriores. Em 1994, a AEA lamentava ter falhado
em ser apartidariamente política (AEA 1994: 2). Esta expressão denota uma alteração
de postura e de preocupação, que deixou de ser para com a política partidária para
passar a ser pela saúde geral do sistema político angolano. As resoluções da conferência
ilustram esta mudança, quatro das quais lidam com questões políticas que a Igreja
enfrentava. Primeiro, os membros da Igreja eram encorajados a comprometer-se po-
sitivamente na política para construir uma sociedade harmoniosa, promover a justiça
e a paz verdadeira. Segundo, os líderes Cristãos eram encorajados a não estabelecer
partidos políticos, uma resolução possivelmente relacionada com a proliferação de
partidos políticos que ocorria em Angola. Terceiro, os líderes Cristãos deviam coibir-
-se de fazer declarações político-partidárias que comprometessem as suas Igrejas, mas
deviam usar a sua influência para educar o povo. Quarto, as Igrejas não se deviam
identificar com nenhum partido político particular, deviam transcender a política
partidária. Estas resoluções capturam a extensão da redefinição do papel público das
Igrejas protestantes em Angola e o seu re-alinhamento dentro da sociedade angolana.
A um nível de política de Igreja, as resoluções reflectem um desejo de ser politicamente
relevantes sem se imiscuírem na política partidária, um processo que a CEAST desen-
volveu durante o período inicial do pós-independência (Schubert 2000: 127-130).
4.3 - (Re)definição do conflito
Logo em Novembro de 1992, a CEAST revelou uma mudança fundamental na com-
preensão do conflito angolano quando afirmou:
Os combates de uma nova guerra civil serão contra quem? Da UNITA contra o MPLA,
e do MPLA contra a UNITA? Nenhum destes. Serão ambos os lados contra o povo…
Numa guerra civil, são sempre dois exércitos a lutar contra o povo e a Nação (CEAST
1992: 298).
Esta análise da guerra contra o povo definiu a base sobre a qual a CEAST, em 1996, de-
finiu a guerra como genocídio. O texto relevante surgiu após o Protocolo de Lusaka:
... o nosso passado deve ser uma lição para o futuro. Assim sendo, o que tem sido o nosso
passado em termos de guerra? Um genocídio cruel que aniquilou centenas de pessoas
inocentes. Um inferno de destruição que enviou o nosso país da vanguarda dos países
africanos mais avançados para o fundo dos povos mais necessitados do nosso continente
(CEAST 1996: 363).
A CEAST foi a única Igreja a aplicar o termo genocídio à guerra angolana. O termo é
emotivo e a sua utilização, apenas dois anos depois do genocídio do Ruanda, sugere
que certos paralelismos se estavam a desenhar. O uso do termo em tempo de paz é
de algum modo pouco usual. Em contraste, as Igrejas protestantes falavam antes de
uma guerra injusta ou fratricida.
Embora a literatura internacional sobre Angola coloque muito ênfase sobre o “controlo
dos recursos naturais” como a razão para a guerra (LeBillion 2001, 2005; Malaquias
2001), a literatura da Igreja não o faz. O papel vital das receitas do petróleo e diaman-
tes era inquestionável em permitir a ambos os lados continuar a guerra. A CEAST
156 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
referiu-se em várias ocasiões à riqueza de Angola como uma “maldição”, pois nenhum
dos lados teria lutado de tal forma pelo controlo sobre um país pobre. Quando a
CEAST faz comentários sobre recursos naturais, é num contexto mais amplo e inclui
aqueles envolvidos no comércio internacional com Angola. Por exemplo, a CEAST
alertou para a existência “de grupos, senão países, interessados em arruinar o nosso
país ainda mais, com armamento destrutivo enviado para cá em troca de diamantes
e petróleo. A estas pessoas pedimos apenas que não nos façam o que não gostariam
para si mesmos” (CEAST 1995: 344).
O comentário pede a países e empresas envolvidos no comércio com Angola que con-
siderem que a sua compra de petróleo e diamantes permitiu ao governo e à UNITA
fazerem a guerra. O argumento dos recursos é por vezes implícito na crítica à corrupção
no país, e à disparidade entre ricos e pobres:
Uma palavra de condenação contra aqueles que transformam a guerra num negócio lucra-
tivo. Acumular contas em bancos estrangeiros e enriquecer à custa da fome, sofrimento,
sangue e morte dos nossos irmãos e irmãs é repugnante, e nunca deveria acontecer no
coração de um angolano, ou qualquer outra pessoa (CEAST 1999).
Contudo, as Igrejas nunca afirmaram que a guerra era sobre o controlo dos recur-
sos naturais. As receitas de petróleo e diamantes foram usadas para perseguir uma
campanha militar que, na perspectiva das Igrejas, era causada pela incapacidade das
lideranças políticas em acomodar interesses e se reconciliar.
5 - A Guerra de 1998 a 2002
O capítulo anterior traçou os argumentos apresentados pelas Igrejas durante apro-
ximadamente dez anos, cuja mudança se verificou em resposta a acontecimentos
políticos e militares, bem como em resposta à crise humanitária. De modo colectivo
e consistente, as Igrejas defenderam que o diálogo representava a melhor forma para
alcançar uma paz duradoura, e identificaram as divisões étnicas como o factor subja-
cente ao conflito. A democratização era talvez vista de uma forma idealizada, como o
meio mais garantido para consolidar a paz em Angola e fornecer o fórum adequado
para lidar com as diferenças étnicas de uma forma não violenta. Apesar de a questão
étnica ser referida como um factor na guerra, em nenhum momento a guerra foi des-
crita como um conflito étnico. As Igrejas também denunciaram reservas em relação
ao papel desempenhado pelos media estatais, acusados de terem inflamado tensões
étnicas em tempos sensíveis.
Referiu-se que as intervenções da Igreja para terminar o conflito, tais como reuniões
privadas com líderes políticos e militares, foram conduzidas de modo diplomático,
não tornado público pelas próprias Igrejas. O acesso a este material iria fornecer uma
imagem mais completa sobre o que as Igrejas fizeram concretamente para promover
a paz, mas os entrevistados encararam esta informação como confidencial, como algo
que seria tornado público em algum momento no futuro. Contudo, com o começo da
terceira guerra, a questão da visibilidade das acções das Igrejas em relação à paz mudou
com a fundação do COIEPA, a comissão de paz ecuménica. Esta secção está dividida
em três partes, olhando primeiro para o COIEPA, depois para o Congresso de Paz de
Luanda de Julho de 2000 e, finalmente, para as iniciativas de mediação. O retorno à
guerra em 1998 revela uma nova determinação, no seio das Igrejas, em trabalhar para
a paz e uma mudança de estratégia manifesta em novas iniciativas concretas de paz.
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 157
Com o retorno do conflito militar, tornou-se evidente uma nova determinação dentro
do governo angolano, uma determinação de continuar a guerra de modo a que uma
vitória militar terminasse o conflito de uma vez por todas, e trouxesse a paz a Angola
(Hodges 2004: 16-17; Messiant 2003: 109-117). A UNITA tinha sido forçada a retirar-se
para o Leste de Angola após a sua retirada do Bailundo, na província do Huambo. Na
ofensiva do governo contra a UNITA, as populações locais foram deslocadas das suas
aldeias e forçadas a refugiarem-se em áreas urbanas como o Luena. O esvaziamento
do campo tem um efeito progressivo e debilitante sobre a UNITA, na medida em que
conseguia a maior parte dos seus abastecimentos alimentares nas comunidades locais e
também usava as pessoas locais para carregar bens, incluindo armas. Além disso, as tro-
pas da UNITA foram forçadas a fugir às forças governamentais que se espalharam pelas
províncias do Leste ou a render-se, tal como veio a acontecer em grande número.
5.1 - A formação do COIEPA
A junção da AEA, CEAST e CICA em 1999 para formar o COIEPA foi um desenvolvi-
mento significativo, uma resposta à nova eclosão da guerra que tinha acontecido em
fins de 1998.12 O COIEPA foi responsável por “coordenar a contribuição da Igreja na
contribuição para a paz” e descreveu-se como o produto de uma nova visão ecuméni-
ca para Angola (COIEPA 2001). Esperava que as Igrejas participassem de modo mais
activo na busca por soluções justas e sustentáveis para os problemas subjacentes ao
conflito nacional. Já em 1992, o CICA (1992a) reconheceu que as relações ecuménicas
eram insatisfatórias, e que a paz e reconciliação de Angola dependia em grande parte
de uma base ecuménica forte para unir a nação. A sugestão é muito clara: que a paz
entre os partidos políticos angolanos dependia da capacidade das Igrejas de trabalha-
rem em conjunto. De modo semelhante, Messiant defendeu que,
o fracasso em garantir a paz em Angola foi também um fracasso das Igrejas cristãs, argu-
mentando que as rivalidades tradicionais e a desunião entre as Igrejas teve um impacto
negativo sobre a procura pela paz e reconciliação: … com o fracasso em garantir a paz,
não podemos deixar de ver igualmente um fracasso das Igrejas Cristãs, na medida em
que, unindo cerca de 90% dos angolanos, eram a maior força civil em 1991 e a única
autoridade moral nacional possível. Fracasso, primeiramente, em não terem conseguido
evitar um regresso às armas… E também, talvez, um fracasso na sua mensagem de paz
e reconciliação (Messiant 2000: 1).
A ligação sugerida por Messiant levanta questões importantes, embora sobrestime os
membros e a autoridade das Igrejas angolanas em 1991.13
Existe um conjunto de razões sugeridas para explicar o fracasso das Igrejas em
unirem-se pela paz. Schubert (2000: 202-205) sublinha a opção da Igreja Metodista
de apoiar acriticamente o governo do MPLA após a independência, tornando-se de
facto a Igreja estatal. Heywood (2002: 182) aponta a força e domínio da CEAST como
um problema, já que como “a única organização nacional com o prestígio e o poder
de desafiar o Estado em nome do sofredor povo angolano, falhou em encontrar uma
12
Um grupo de trabalho provisório foi formado a 19 de Outubro de 1999 durante seis meses, tendo o COIEPA sido
fundado a 15 de Abril de 2000 (COIEPA, 2001).
13
São fornecidos dados diferentes relativamente ao número de cristãos em Angola. Hearn (1997: 201) apresenta
um número de 69%. Henderson (1990: 8) sugere que 50% são católicos e 20% protestantes, mas menciona que os
membros são contados de forma diferente. Os números católicos incluem crianças baptizadas, enquanto os números
protestantes traduzem apenas os membros adultos.
158 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
14
Zacarias Kamwenho, Universidade Católica de Angola, 16 de Novembro de 2001.
15
CICA (2001), newsletter (91-93), 15 de Junho de 2001.
16
Entrevista com Rev. Luis Nguimbi, Secretário-Geral do CICA, Luanda, 21 de Novembro de 2001.
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 159
Para Messiant (2003), este movimento cívico foi encarado pelo governo angolano como
uma nova força, oposta à sua estratégia de “paz através da guerra”. Além disso, o
COIEPA conseguiu quebrar a polarização do debate político em Angola ao situar-se
como a voz do povo, uma posição desafiada pelo governo, que lembrou ao movimento
que apenas ele era o representante eleito do povo angolano. Desde o final do conflito,
o papel do COIEPA de coordenação das Igrejas e o seu perfil nacional diminuíram,
embora seja provável que volte a desempenhar um papel importante na monitorização
eleitoral nas próximas eleições.
5.2 - Congresso de paz Pro Pace 2000
A realização de um congresso de paz, em Julho de 2000, foi um acontecimento muito im-
portante sob os auspícios do movimento da paz da CEAST, o Movimento Pro Pace. Reuniu
representantes do governo angolano, dos partidos políticos e parlamentares, vinte e duas
Igrejas, ONG e organizações da sociedade civil, bem como embaixadores estrangeiros.
É possível sintetizar os pontos principais do Congresso com referência a algumas das
dez conclusões apresentadas no último dia (CEAST 2001c). Por exemplo, o Congresso
apelou a: um maior espírito democrático (n.º 1), maior tolerância (n.º 2), educação de
Direitos Humanos integrada no currículo escolar (n.º 6) e acção contra as minas terres-
tres (n.º 7). Também pediu um cessar-fogo (n.º 8) como um “primeiro passo rumo à paz”
e o estabelecimento de alguma forma de diálogo permanente para incluir os “níveis
mais representativos da sociedade civil, como as Igrejas, partidos políticos e outras
instituições” (n.º 9). O Congresso de quatro dias serviu para reforçar o movimento de
paz que estava lentamente a formar-se perante o retorno à guerra. Tal como o COIEPA,
o Congresso foi abertamente desafiado pelo governo de Angola, particularmente evi-
dente em comentários dos media estatais, sobretudo o Jornal de Angola. Por exemplo,
um editorial intitulado “Estrada para a Paz” sobre o primeiro dia do congresso, 18
de Julho de 2000, adoptou uma postura de confronto contra “aqueles que queriam a
paz a qualquer preço”. Reafirmou a posição do governo de Angola que sustentava
que a paz dependia da implementação do Protocolo de Lusaka, ou da aceitação de
um perdão oferecido a Jonas Savimbi. O editorial apresentava a campanha militar do
governo como uma defesa da democracia e da soberania:
No exercício das suas prerrogativas constitucionais, coube ao governo de Angola a difícil
decisão de reduzir e desmantelar a máquina de guerra de Jonas Savimbi. O governo não teve
outra escolha: ou entrava em guerra, ou assistia passivamente à ruína da nação. Se hoje,
sectores da sociedade civil se juntam em torno de um movimento de paz, é porque a campanha
das Forças Armadas Angolanas mudou positivamente o equilíbrio de poder de modo militar…
Nunca deixa de surpreender que a pressão pela paz não seja aplicada na direcção do braço
armado da UNITA… É estranho como aqueles que querem a paz a qualquer preço fingem
não saber que já existe um acordo de paz… [Era] para garantir liberdade e democracia — que
foi tomada a decisão de desarmar as forças ilegais que ameaçavam o país.
Um artigo de 19 de Julho criticava a CEAST por tratar ambos os lados na guerra como
“beligerantes” e por não culpar Jonas Savimbi como a única razão para a continuação
da guerra. Uma coluna no dia 21 de Julho acusava os apologistas do diálogo “de colocar
o agressor e a vítima ao mesmo nível e de ignorar as eleições de 1992”, revelando-se
contra o Congresso e manifestando a impossibilidade de diálogo com a UNITA.
Um dos oradores do Congresso foi o Bispo Matteo Zuppi da comunidade ecuménica
de Roma, Santo Egídio, responsável por facilitar as negociações que conduziram ao
160 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
acordo de paz em Moçambique. A CEAST tentava sugerir que se podia seguir uma
estratégia de paz semelhante em Angola, caso ambos os lados concordassem em
negociações lideradas pela Igreja. O Congresso “abriu o debate sobre as formas de
alcançar a paz e ajudou a sociedade a perder o medo de discutir publicamente alter-
nativas como forma de deixar para trás a intriga da guerra” (Espiritanos, 2002). O
Bispo Mourisca, presidente do Movimento Pro Pace, resumiu os principais benefícios
do Congresso como “quebrar o tabu do silêncio sobre a estrada da paz” (Espiritanos,
2002) e desafiou o princípio de que a guerra iria trazer a paz a Angola. Já em 1994, uma
mensagem de encorajamento de um grupo de Igrejas protestantes aos envolvidos nas
negociações de Lusaka afirmava que a guerra “não tinha solução militar”.17 A CEAST
(1997: 370) fez a mesma reivindicação em 1997, que “esta longa guerra de trinta e cinco
anos deixou abundantemente claro que a questão de Angola não tem uma solução
militar”. Como se tornou evidente em 2002, com a morte de Jonas Savimbi, o conflito
tinha uma solução militar.
5.3 - Iniciativas de mediação
Em diferentes fases do conflito angolano, as Igrejas ofereceram-se várias vezes para
mediar. A primeira destas ofertas na literatura é da CEAST (1986: 131) em Fevereiro de
1986, mas sem reacção. Em 2000, o COIEPA apresentou uma proposta, sugerindo um
painel de doze membros para explorar os possíveis caminhos rumo à paz entre os dois
lados. Esta foi rejeitada pelo governo.18 De novo, em 2001, a mediação da Igreja estava
na agenda, desta vez como resposta à carta de Jonas Savimbi à CEAST, de Maio de
2001, em que exprimia apoio pelas iniciativas de paz das Igrejas, embora não pedisse
a mediação da Igreja. A carta afirmava:
Eu escrevo… sobre o grande desafio para a paz (através do diálogo). Também escrevo para
vos encorajar activamente a participar nesta difícil tarefa que o presente momento nos
concede…Gostaríamos de ver o COIEPA e as iniciativas Pro Pace avançarem. Acredi-
tamos que têm um papel histórico e importante a oferecer ao povo angolano, fornecendo
incentivos para a reconciliação (Savimbi 2001).
Levou-se algum tempo a estabelecer a autenticidade da carta, mas quando a CEAST
respondeu em Agosto, apresentou uma resposta conjunta dos bispos católicos da África
Austral, que se tinham reunido em Harare. O documento afirmava:
Em nome de Cristo e do povo angolano sofredor, pedimos ao presidente angolano e ao
líder da UNITA que se encontrem num lugar neutro para dialogar sobre o fim da guerra
e o futuro da nação. A Igreja oferece entusiasticamente a sua ajuda para encontrar um
local conveniente, bem como uma facilitação competente e aceitável para esse diálogo
(CEAST 2001a).
Esta oferta não foi aceite. A CEAST foi criticada por alguns por as suas perspectivas
reflectirem um regresso a um entendimento polarizado do conflito angolano ao sugerir
que uma solução podia ser alcançada por via de uma reunião do Presidente dos Santos
e Jonas Savimbi. Esta crítica partiu do consenso crescente no seio da sociedade civil,
de que reuniões deste tipo faziam parte do problema, na medida em que excluíam
17
O texto é assinado por Octávio Fernando da AEA, e Augusto Chipesse do CICA, citado como AEA-CICA 1994.
Comentários semelhantes, sobre a guerra não ter uma solução militar, apareciam na literatura internacional da
altura, cf. Minter (1994).
18
“Government rejects church offer to mediate peace talks”, em www.reliefweb/int, 11 de Agosto de 2000.
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 161
outras forças civis. Em resposta a esta crítica, a CEAST (2001b) reviu a sua posição
mais tarde em 2001: “…embora acreditemos que não devem ser apenas o governo e
a UNITA a sentar-se à mesa de negociações, mas também representantes de outros
partidos políticos e da sociedade civil”.
6 - Memorando Pós-Luena
A assinatura do Acordo de Paz do Luena foi um sonho realizado para todas as Igrejas.
A gradual abertura do país permitiu às Igrejas prestar cuidado pastoral a comunidades
provinciais e rurais que tinham estado sem assistência, muitas por longos períodos. Como
veremos de seguida, a assistência também envolveu ajudar as comunidades a suportar e
a lidar com o processo de integração social e o legado do conflito, um processo em curso.
Em virtude das sensibilidades existentes, era precisamente nestas áreas que era necessário
trabalhar para construir a paz. Em seguida, esta parte do texto olha para questões de justiça
social e transparência, um tema cuja importância aumentou no período pós-Luena, devido
ao crescimento económico pós-conflito e ao aumento do preço do petróleo.
19
A Development Workshop promoveu um projecto de educação cívica para antigos combatentes em 2003/04, em parceria
com as Igrejas, o IRSEM (instituto governamental responsável pela integração social de ex-combatentes), e outros
ministérios do governo. O projecto desenvolveu as actividades e parcerias do seu Programa de Construção de Paz.
162 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
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165
Introdução
Pedro Cardoso
Novo Jornal, Angola O sistema monopartidário que regeu o país entre 1975 e
1991 deixou marcas que ainda hoje toldam o espaço
de participação política dos jovens adultos que nele cresce-
ram e nos que, não o tendo vivido, adquiriram através da
sua educação alguns dos seus valores — a partidarização
de todos os sectores da sociedade, o Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA) enquanto partido “de todos
os angolanos”, a política enquanto meio de elevação social
e o auto-controlo da liberdade de expressão.
Numa Angola ainda em transição para um sistema democrá-
tico, as formações políticas juvenis tentam impor-se nos parti-
dos a que pertencem e no seio da própria juventude angolana.
Com um número de membros na ordem dos “milhões” 1,
as “jotas” dos três “partidos tradicionais” — MPLA, União
Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e
Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) — apostam
num discurso conciliador e unificador. Assumem-se como or-
ganizações de todos os jovens angolanos, independentemente
das suas ideologias (JMPLA e JURA), e vincam o activismo
cívico como a sua prioridade (JFNLA).
Aqueles argumentos causam algumas desconfianças entre
os jovens assumidamente apartidários, que não reconhecem
credibilidade ou qualquer poder real das “jotas” dentro dos
partidos. O olhar crítico que esta franja apartidária da ju-
ventude angolana lança sobre o sistema político angolano
denuncia uma mudança de mentalidades: rompendo com a
visão exclusivamente partidária da dimensão política indivi-
dual, alguns jovens assumem agora uma cidadania activa e
não politizada, que exercem nas suas actividades diárias ou
em organizações da sociedade civil. No entanto, e apesar das
suas diferenças, jovens militantes e não militantes concordam
genericamente que o nível de consciencialização política dos
jovens angolanos é ainda muito ténue e que um trabalho
conjunto deverá ser feito para reverter o quadro.
Este texto procura analisar a relação dos jovens com a política
em Angola, partindo sobretudo da perspectiva dos próprios
1
2 milhões e 400 mil militantes da JMPLA, 1 milhão da JFNLA e 1 milhão e 97 mil da
JURA (Juventude Unida Revolucionária de Angola, braço juvenil da UNITA).
166 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
1. Juventudes Partidárias
2
A JFNLA deriva da Juventude da União das Populações do Norte de Angola (JUPNA), fundada em 1954; a JMPLA
foi fundada a 23 de Novembro de 1962, na actual República Democrática do Congo; a JURA surgiu a 28 de Outubro
de 1974, na Úria, província do Moxico.
3
Dado avançado por Cláudio Aguiar, Secretário-Geral da Juventude Ecológica Angolana (JEA) e actual Presidente
do CNJ (14/12/2007).
4
2 milhões e 400 mil militantes da JMPLA, 1 milhão da JFNLA e 1 milhão e 97 mil da JURA.
5
Os membros da JURA têm entre 18 e 35 anos; os da JMPLA, entre 15 e 30 anos; os da JFNLA entre 15 e 35 anos.
6
José Fula, 38 anos, secretário-geral da JFNLA
7
“Boletim Demográfico n.º 09”, Instituto Nacional de Estatística. Projecção da população entre os 15 e 34 anos para
2008.
8
Dado avançado, mas não confirmado, por Paulo Soma, Director-Nacional para as eleições (12/12/2007).
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 167
9
Liberty Chyiaca, 32 anos, Secretário-Geral da Juventude Unida Revolucionária de Angola (JURA) (30/11/2007)
10
Paulo Pombolo, 43 anos, 1.º Secretário-Nacional da JMPLA (04/12/2007)
11
José Fula, 38 anos, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007)
12
José Fula, 38 anos, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007)
13
Liberty Chiaca, 32 anos, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007)
14
Liberty Chiaca, 32 anos, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007)
15
Manuel Vieira, 28 anos, Editor-Chefe da Rádio Ecclesia (01/12/2007)
16
Festas de teor partidário que a JMPLA tem vindo a realizar. É vista pelos críticos como uma forma de alienação dos
jovens, ao colocar a cerveja a baixo custo, promovendo assim o consumo de álcool. Para Paulo Pombolo, esta questão
tem sido uma tentativa da oposição de desviar a atenção da opinião pública do essencial – as “acções concretas” que
a JMPLA faz em prol da juventude e as soluções que apresentam para a resolução de problemas dos jovens.
17
Ricardo Barbosa (nome fictício), 30 anos, advogado de uma empresa petrolífera e filho de um diplomata angolano
(06/12/2007)
168 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
18
José Fula, 38 anos, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007)
19
Germano Liberato, 31 anos, contabilista (01/12/2007)
20
José Fula, 38 anos, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007)
21
Sérgio Pinto Afonso, 32 anos, fotógrafo (30/11/2007). Se constatarmos a idade de alguns líderes juvenis acabamos
por entender o porquê da crítica. Paulo Pombo, da JMPLA, tem 43 anos; José Fula, da JFNLA, tem 38 anos. Segundo
Pombolo, a organização que lidera permite que militantes que tenham mais de 30 anos, e tenham passado pela
JMPLA, possam ser eleitos dirigentes. Por seu lado, José Fula afirma que “os jovens da JFNLA pensam que, para
definir a estratégia deste organismo no momento político que o país atravessa, é preciso ter alguém à frente com
muita experiência”. Com 32 anos, Liberty Chiyaca é o mais novo dos três líderes entrevistados, encaixando-se na
faixa etária dos membros da JURA (18-35 anos)
22
Nástio Mosquito, 26 anos, profissional de televisão. Questionário respondido por e.mail (29/11/2007).
23
Augusto Maquembo, 33 anos, formador para o processo eleitoral na organização norte-americana National Democratic
Institute (NDI) e estudante do 2.º ano de Direito na Universidade Católica de Angola (04/12/2007).
24
Manuel Vieira 28 anos, Editor-Chefe Rádio Ecclesia (01/12/2007).
25
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
26
José Gama, 30 anos, Secretário-Geral do Clube de Angolanos no Exterior (Clube K) (02/12/2007).
27
Edson Lopes, 31 anos, técnico informático e militante do MPLA. (06/12/2007)
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 169
28
José Gama, 30 anos, Secretário-Geral do Clube de Angolanos no Exterior (Clube K) (02/12/2007).
29
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia da Universidade Agostinho Neto (03/12/2007)
30
A este propósito Cesaltina Cutaia, 27 anos, activista cívica da Open Society (06/12/2007), relembra um episódio
recente protagonizado por Carlos Contreiras, presidente do Partido Republicano de Angola, aos microfones da
Luanda Antena Comercial: “Quando assistimos a líderes da oposição a exigir que o cofre de Estado dê 20 milhões de
dólares a cada partido da oposição para participarem nas eleições, ficamos sem saber, afinal, quais são os verdadeiros
propósitos destas formações políticas”.
31
Germano Liberato, 31 anos, contabilista (01/12/2007).
32
Yolanda Augusto, 26 anos, estudante universitária da Comunicação Social, filha do embaixador de Angola em
Cabo Verde (30/11/2007)
33
Suzana Mendes, 24 anos, Editora-Chefe do semanário privado Angolense (01/12/2007).
34
Ana Petra van Dunem, 30 anos, advogada estagiária (02/12/2007).
35
Ricardo Barbosa (nome fictício), 30 anos, advogado de uma empresa petrolífera e filho de um diplomata angolano
(06/12/2007)
36
Augusto Maquembo, 33 anos, formador para o processo eleitoral na organização norte-americana National Democratic
Institute (NDI) e estudante do 2.º ano de Direito na Universidade Católica (04/12/2007).
170 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
37
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007)
38
Liga da Mulher Angolana, movimento feminino da UNITA
39
Liberty Chiyaka, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
40
José Fula, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007).
41
Suzana Mendes, 24 anos, Editora-Chefe do semanário privado Angolense (01/12/2007)
42
José Gama, 30 anos, Secretário-Geral do Clube de Angolanos no Exterior (Clube K) (02/12/2007).
43
Cesaltina Cutaia, 27 anos, activista cívica da Open Society (06/12/2007)
44
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
45
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
46
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007).
47
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007).
48
Forças Armadas Populares para a Libertação de Angola, antigo braço militar do MPLA.
49
Forças Armadas de Libertação de Angola, antigo braço militar da UNITA.
50
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
51
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 171
bém por reflectir a necessidade dos líderes juvenis de se manterem o mais próximo
possível da cúpula dirigente. Geralmente, a escolha das lideranças das “jotas” recai
sobre os que mais intimamente se relacionam com os “pesos pesados”, o que origina
“lutas internas de posicionamento” entre os jovens mais ambiciosos52, que mais não
visam do que garantir o seu poder e a ascensão política interna.
Para Edson Lopes, militante do MPLA, a pouca influência que os jovens acabam por
ter dentro das estruturas partidárias, causa alguma frustração:
Dentro do partido nós não temos acesso às grande decisões. Podemos ter as nossas reu-
niões, mas quando levantamos o braço para falar, outras mil pessoas pedem também a
vez, e só a alguns é dada a palavra. As questões que levantamos não são transmitidas
directamente, passam antes por outras estruturas. Muitos dos membros que estão lá
dentro estão só a fazer número. Alguns persistem porque acreditam na ideologia, e que
talvez um dia aquilo vá mudar. Alguns “mais-velhos” têm medo da juventude, porque
sabem que estamos descontentes em relação à política interna [...] Se nos dessem opor-
tunidade de apontar as falhas, muita coisa ia mudar. Faltam vozes críticas dentro do
partido, porque há muitos que têm medo de perder o seu estatuto e o lugar. Agora, não
sei se esse medo é justificado ou não.53
Mas há quem veja hipóteses de reverter a situação. Para José Fula, o advento da po-
lítica moderna, em que questões como “os Direitos Humanos, democracia e novas
tecnologias da informação” marca a agenda, está a gerar um confronto entre a nova
e a velha guarda. Mais à-vontade com os novos valores, os jovens poderão obrigar as
direcções dos partidos a abrirem-se às suas propostas. “Vai ser interessante assistir
ao combate nos partidos, com a juventude a tentar assegurar lugares no parlamento
angolano e ultrapassar os “mais-velhos”, principalmente nas questões técnicas e de
desenvolvimento”54.
52
José Fula, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007).
53
Edson Lopes, 31 anos, técnico informático e militante do MPLA (06/12/2007)
54
José Fula, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007).
55
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
172 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
acrescenta56. Passados quase três anos, em Junho de 2006, a JURA acabou por voltar
ao CNJ, mas as relações com a JMPLA continuam formalmente interrompidas, pelo
menos numa perspectiva bilateral.
Mas os incidentes entre as duas principais juventudes partidárias angolanas estão a pas-
sar de guerra de palavras para actos de violência, configurando um clima de intolerância
política que se faz sentir sobretudo no interior do país. Na hora de encontrar os culpados,
a JURA e a JMPLA descartam as responsabilidades, atirando-as uma à outra como arma
de arremesso. Na linha da frente das críticas, Liberty Chiyaca não hesita em apontar a
JMPLA como responsável pela morte e actos de agressão contra militantes da JURA.
Acusações que a JMPLA contrapõe com “actos que a JURA também perpetua” contra
elementos da juventude do partido no poder, mas que não nega categoricamente:
(…) não posso dizer que isso acontece, mas vamos supor que alguém da JMPLA faça
isso de forma isolada. Isso não é uma acção premeditada. O que eu posso garantir é que
nunca saiu uma directiva da minha secretária para promover a intolerância [...] isso não
pode ser uma forma de actuação de uma organização idónea como a nossa que pertence a
um partido idóneo e que nos orienta nos objectivos da reconciliação e reconstrução57.
O clima de desconfiança entre os dois movimentos, com acusações mútuas de falta de boa
vontade e de consciência democrática, faz com que os dois líderes se refugiem nas “boas
relações pessoais” para tentar encontrar algum ponto de equilíbrio. No entanto, avança
Paulo Pombolo, é preciso “transferir essas relações humanas para o patamar político”58.
De fora do jogo conflituoso entre a JMPLA e a JURA, que domina o emaranhado de relações
entre as várias organizações juvenis partidárias (o relacionamento com as demais “jotas”
é “excelente”, afirmam Paulo Pombolo e Liberty Chiyaca), o líder da JFNLA assume:
O principal obstáculo da juventude política em Angola é a própria juventude política,
que ainda não tem capacidade para aceitar as diferenças, aceitar que um jovem de uma
juventude partidária apresentou uma boa proposta, por exemplo, e por isso é preciso
apoiá-la. Olhamos os que têm boas iniciativas como inimigos; quem tem uma boa ideia
para a sociedade, deve ser obstaculizado59.
Conscientes desta necessidade as juventudes dos partidos emitem mensagens teóricas,
pelo menos, apelando a uma actuação ética de todos que “visem a unidade e a recon-
ciliação dos angolanos”60, ao “compromisso com a democracia”61 e à “despolitização
das matérias que não devem ser politizadas”62.
1.3.1 – Mecanismos de concertação
Para fomentar o diálogo e posições conjuntas não só entre os vários partidos políticos
mas também entre as associações juvenis nacionais, a sociedade civil tem vindo a criar
mecanismos de concertação, como o Fórum dos Jovens Políticos Angolanos (FJPA). Este
organismo reúne na última Sexta-feira de cada mês jovens dos partidos com assento
parlamentar em torno de debates sobre o país. Às Quintas-feiras o FJPA conduz ainda o
56
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA. (04/12/2007)
57
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007).
58
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007).
59
José Fula, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007).
60
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007).
61
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
62
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 173
programa radiofónico “Visão Juvenil”, que a Rádio Despertar emite entre as 17 e 18 horas.
Este espaço é aberto à discussão entre as várias juventudes partidárias e à audiência,
que nele participa por via telefónica. O FJPA foi impulsionado pela USAID e pelo IRI63,
este último, responsável também pela promoção do programa radiofónico.
No entanto, o grande espaço de encontro entre as organizações juvenis é o CNJ. Cons-
tituído formalmente em 4 de Outubro de 1991 por juventudes partidárias e associações
da sociedade civil, o organismo pretende representar os jovens angolanos perante os
poderes públicos. Actualmente é composto por 67 membros, entre os quais 41 organi-
zações juvenis partidárias. O CNJ tem uma história de 17 anos, marcada por 13 anos de
presidências consecutivas ligadas de forma directa ou indirecta ao MPLA64, situação que o
tornou aos olhos de muitos um órgão partidário, pouco credível e nada democrático.
Formalmente independente de qualquer poder partidário, e consciente das críticas, o actual
Presidente da CNJ Cláudio Aguiar, assumiu como uma das prioridades do seu mandato
“retirar a carga político-partidária” do CNJ. “As organizações juvenis de cariz político-
partidário deviam ter a sensatez suficiente para não levar as suas quezílias [ideológicas] para
dentro do CNJ”, diz, em alusão à cisão de 2003. O seu trabalho passa, assim, por “reforçar as
associações de cariz social”, e promover “vias alternativas de diálogo — diálogo que faltou
em algumas alturas – que ultrapassem o espaço das reuniões formais do CNJ.” 65
2 - Os Jovens e a Política
63
International Republican Institute, organização norte-americana
64
Presidentes, por ordem: Afonso Ngonda, da Associação Cristã da Mocidade (3 anos); Job Capapinha, da Trova,
organização ligada à JMPLA (7 anos); Paulo Pombolo, na altura 2.º Secretário-Nacional do JMPLA (3 anos); Reis
Cuanga, 2.º Secretário-Nacional do JMPLA (3 anos); e Cláudio Aguiar, Secretário-Geral da Juventude Ecológica
Angolana (JEA), o actual Presidente (cumpre o segundo ano de um mandato de três).
65
Cláudio Aguiar, Secretário-Geral da Juventude Ecológica Angolana (JEA) e actual Presidente do CNJ (14/12/2007).
A Juventude Ecológica Angolana (JEA), é tida em alguns círculos como próxima do MPLA, acusação que Cláudio
Aguiar recusa, remarcando o carácter independente da organização; a actual presidência assumiu também como
linhas de actuação aumentar a capacidade técnica dos associados e continuar a promover o reforço da capacidade
dos órgãos juvenis, através da criação de lideranças juvenis.
66
Sérgio Pinto Afonso, 32 anos, fotógrafo (30/11/2007)
67
Edson Lopes, 31 anos, técnico informático e militante do MPLA. (06/12/2007)
68
Edson Lopes, 31 anos, técnico informático e militante do MPLA. (06/12/2007)
69
Suzana Mendes, 24 anos, Editora-Chefe do semanário privado Angolense (01/12/2007)
174 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
75
Arsénio Sebastião “Cherokee”, jovem lavador de carros de 27 anos. Foi assassinado em 26 de Novembro por guardas
da Unidade da Guarda Presidencial, no embarcadouro do Mussulo, quando cantava uma música de contestação de
MCK, “A téknica, as kausas e as konsekuências” (também conhecida por “Sei lá o quê, uáué”).
76
Em 3 de Outubro o director do semanário Angolense, Graça Campos, foi condenado pelo Tribunal Provincial de
Luanda a 8 meses de prisão efectiva e ao pagamento de 250 mil dólares, por crime de difamação e calúnia contra
o antigo ministro da Justiça, Paulo Tchipilica. A pena, segundo os analistas, terá sido arbitrária, ilegal e excessiva.
Graça Campos foi libertado cerca de um mês depois, esperando agora pela decisão do Tribunal Supremo, que está
a reapreciar o caso.
77
Fernando Garcia Miala, antigo Director-Geral do Serviço de Inteligência Externa (SIE), foi condenado em Setembro
de 2007 a 4 anos efectivos de cadeia, sob a acusação de não comparência à cerimónia de desgraduação. A sentença,
que não abordou a principal questão que a sociedade angolana esperava ver esclarecida – o alegado envolvimento
de Miala numa suposta tentativa de golpe de Estado em Março de 2006 – foi encarada como excessiva por vários
sectores da sociedade, inclusivamente de um elemento importante da ala histórica do MPLA, o deputado Mendes
de Carvalho, que afirmou aos jornalistas não gostar da pena aplicada pelo Supremo Tribunal Militar. Entretanto
aguarda-se pelo desfecho do recurso interposto pelos advogados de Miala e dos co-réus (Maria do Céu Domingas,
Ferraz António e Miguel Francisco André, colaboradores directos do ex-director-geral do SIE, e condenados a 30
meses de cadeia cada).
78
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
79
José Gama, 30 anos, Secretário-Geral do Clube de Angolanos no Exterior (Clube K) (02/12/2007).
80
Organização de Pioneiros Agostinho Neto, braço juvenil do MPLA
81
Germano Liberato, contabilista, 31 anos. (01/12/2007)
82
Augusto Maquembo, 33 anos, formador para o processo eleitoral na organização norte-americana National Democratic
Institute (NDI) e estudante do 2.º ano de Direito na Universidade Católica de Angola (04/12/2007).
176 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
escolaridade e que se preocupa de forma desinteressada com o seu país. São estudantes
universitários, músicos, artistas de várias áreas, jornalistas, activistas cívicos e também
jovens angolanos que viveram alguns anos no exterior onde foram “expostos a sociedades
diferentes e verdadeiramente democráticas”83, como Cesaltina Cutaia ou José Gama84.
Dotada de uma elevada capacidade de análise dos sinais sociais, esta pequena franja
da juventude angolana acompanha de forma crítica as acções do Estado, o que numa
sociedade como a angolana é por si só um desafio ao próprio sistema. Ao fazê-lo,
ganham poder enquanto líderes de opinião e contrariam a percepção generalizada (e
castradora) de que a participação política é apenas a militância partidária – uma noção
também ela herdada do sistema de partido único, onde toda a sociedade civil estava
directamente subordinada às estruturas do MPLA.
83
Cesaltina Cutaia, 27 anos, activista cívica da Open Society (06/12/2007)
84
Cesaltina Cutaia viveu na África do Sul durante algum tempo. Trabalha actualmente em Luanda, na Open Society
Angola. Por sua vez, José Gama é presidente do Clube de Angolanos no Exterior, vivendo actualmente em Pretória,
África do Sul.
85
Jornal de Angola, Angola Press, Televisão Pública de Angola e Grupo Rádio Nacional, com presença em todas
as províncias.
86
O caso “Graça Campos” foi o primeiro de uma série de acontecimentos envolvendo jornalistas que aconteceram nos
últimos meses, com um intervalo curto de tempo. Depois deste, em 15 de Novembro de 2007 o jornalista Fernando
Lelo foi detido no campo petrolífero do Malongo, em Cabinda, onde prestava serviços administrativos na empresa
Algoa. Segundo a imprensa, Lelo foi acusado de promover uma rebelião no enclave. A detenção foi feita pelas Forças
Armadas Angolanas, mandatadas por um tribunal militar. Em 28 de Novembro, Alexandre Salombe, director da Rádio
Despertar (ligada à UNITA), e o jornalista António Cascais foram agredidos e detidos pela Polícia Nacional enquanto
falavam com populares do Bairro Iraque (Calemba III, Luanda), onde têm vindo a ocorrer despejos forçados. Por seu
lado, em 22 de Dezembro de 2007 o correspondente da Rádio Ecclésia no Namibe, Armando Chicoca, foi detido por
alegada incitação à desobediência pública durante a cobertura jornalística da chamada “Operação Tango” (operação
da Polícia Nacional que visa acabar com os mercados erguidos em locais considerados impróprios). Condenado a 30
dias de cadeia num julgamento sumário ocorrido no dia 28 de Dezembro, Chicoca seria libertado a 25 de Janeiro de
2008, quatro dias depois do término da pena. Na comarca do Namibe, onde esteve detido, o jornalista terá sofrido
tortura e violações várias dos seus direitos, segundo o mesmo.
87
Suzana Mendes, 24 anos, Editora-Chefe do semanário privado Angolense (01/12/2007)
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 177
88
No dia 10 de Julho de 2007, através da Rádio Nacional de Angola, Pedro Walipi Calenga, Director da Unidade
Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária do Governo de Angola, acusou as organizações angolanas Associação
Mãos Livres, SOS Habitat, Associação Justiça Paz e Democracia (AJPD) e as internacionais NDI, Open Society – Angola,
Search for Common Ground e IRI de “operarem ilegalmente, de serem patrocinadas por partidos políticos da oposição e
de usarem reivindicações de Direitos Humanos como disfarce para infringir a lei”. Calenga levantou também a ameaça
do encerramento das organizações nacionais e da expulsão das internacionais. Outros casos visando as associações
da sociedade civil têm-se multiplicado. No final de Novembro de 2007 os responsáveis da AJPD foram notificados
para comparecer a tribunal para responder pelo crime de difamação a Paulo Tchipilica. O processo acabou por ser
anulado, depois do antigo ministro da Justiça retirar a queixa. Em declarações à Voz da América, o advogado de
Tchipilica, Alexandre Pegado, justificava a retirada: “as causas, as razões objectivas, o contexto e as circunstâncias
que na altura motivaram o nosso constituinte a tomar a decisão de, na qualidade de ofendido, exercer o direito de
queixa, esbateram-se ao longo dos anos. Este processo data de 2002 e durante este lapso de tempo não houve da
parte dos arguidos qualquer comportamento que evidenciasse a reiteração posterior da mesma conduta.»
89
No final de Julho de 2006, o Tribunal Provincial de Cabinda ilegalizou a Mpalabanda – Associação Cívica de
Cabinda, acusada de desenvolver actividade política, promover a desobediência e criar instabilidade. A ilegalização
foi sentenciada cerca de uma semana antes da assinatura, no Namibe, do Memorando de Entendimento entre o
Governo e Bento Bembe, em representação (contestada pela Mpalabanda e por outros sectores da sociedade de
Cabinda) do Fórum Cabindês para o Diálogo, em que foi instituído o cessar-fogo das partes antes em conflito no
enclave, e o início do processo para a autonomia de Cabinda.
90
Augusto Maquembo, 33 anos, formador para o processo eleitoral na organização norte-americana National Democratic
Institute (NDI) e estudante do 2.º ano de Direito na Universidade Católica de Angola (04/12/2007).
91
Augusto Maquembo, 33 anos, formador para o processo eleitoral na organização norte-americana National Democratic
Institute (NDI) e estudante do 2.º ano de Direito na Universidade Católica de Angola (04/12/2007).
92
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
93
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA(04/12/2007).
178 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
tem acontecido um pouco por toda a África, onde as sociedades civis acabaram por
se impor em países como o Benim ou a Zâmbia”, também em Angola as organizações
cívicas acabarão por ganhar mais espaço para além do que conquistaram até aqui94.
Um outro actor importante, que não está a cumprir devidamente com o seu papel
de formação de massa crítica são as academias, havendo quem defenda que “muitos
estudantes entram no ensino superior a pensar de uma forma e saem a pensar exac-
tamente igual”95. As universidades privadas são, aos olhos de muitos, autênticas má-
quinas de fazer dinheiro e de fabricar licenciados. Excepção à Universidade Católica
de Angola, que alcançou um certo reconhecimento ao nível da qualidade do ensino e
da investigação. Do lado do ensino público, a Universidade Agostinho Neto (UAN), a
única universidade pública angolana, é vista por alunos e professores que dela fazem
parte como um espaço ainda “partidarizado”96, onde é imposta a “figura do docente,
muitas vezes pertencente ao partido A ou B”97 e onde as “associações de estudantes
são dominadas pelas células partidárias”98.
A universidade deveria ser o espaço propício para o debate, para o questionamento e
para a consciencialização política, mas por estar altamente politizada inviabiliza um
processo responsável e objectivo de reflexão e avaliação do sistema vigente. (...). Nada
acontece no espaço universitário sem a presença governamental (...). Quando situações
deste tipo são norma, o corpo docente e os alunos sentem-se intimidados, (...) reina o
silêncio e a auto-censura. (...)99.
Ainda assim, começam já a surgir na UAN de Luanda espaços de discussão abertos e
plurais, o que poderá indiciar algum tipo de mutação. Mas se alguns sinais positivos
são emitidos, outros surgem, em sinal contrário. É o caso da proposta da recém-criada
Secretaria de Estado do Ensino Superior que, se for aprovada em Conselho de Mi-
nistros, fará com que o Reitor da UAN deixe de ser eleito para passar a ser nomeado
directamente pelo Presidente da República, como acontecia antigamente. Embora re-
jeite as críticas sobre a politização da universidade pública, Paulo Pombolo afirma-se,
enquanto cidadão, contra esta proposta que diz ser um “retrocesso”: “não devíamos
perder a oportunidade de continuar a democratização da universidade”.
Esta proposta surge na altura em que foi anunciada a criação de cinco novas universi-
dades públicas nas províncias do Huambo, Benguela, Huíla, Cabinda e Lunda-Norte.
Ao nomear directamente os reitores, o Estado passaria a exercer um controlo mais
apertado sobre toda a rede universitária, minimizando os possíveis “efeitos adversos”
para o sistema, provenientes de uma expansão muito para além dos limites facilmente
controláveis de Luanda.
Conclusão
Mais do que descrença na política, a maioria dos jovens angolanos ignora-a. A con-
versa gasta das formações partidárias, aliada à espiral de descredibilização em que os
políticos nacionais dos vários quadrantes se envolveram, muito devido à corrupção
94
José Gama, 30 anos, secretário-geral do Clube de Angolanos no Exterior (Clube K) (02/12/2007).
95
Cesaltina Cutaia, 27 anos, activista cívica da Open Society (06/12/2007)
96
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
97
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
98
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
99
Carlos Muiamba (nome fictício), docente do ensino superior público, 35 anos. Questionário respondido por e.mail.
(13/12/2007)
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 179
de que são constantemente acusados, são factores que contribuem para o desinteresse
deste sector que representa a maioria da população angolana.
O Estado, por seu lado, pouco contribui para alterar esta percepção. Ao manipular
e restringir a acção dos agentes formadores de consciência — sociedade civil, comu-
nicação social e instituições de ensino — nada mais faz do que perpetuar o medo de
participação política, partidária ou cívica, levantando os velhos fantasmas repressivos
do monopartidarismo. Confrontados com esta realidade, os jovens angolanos acabam
por mergulhar na sua individualidade, preocupando-se em garantir a sua sobrevivência
pelos seus próprios meios.
As juventudes partidárias, por seu lado, são vistas como um trampolim para se al-
cançarem determinadas benesses e reconhecimento social que, de outra forma, seriam
impossíveis de obter. É mais ou menos consensual (à excepção dos dirigentes das “jo-
tas”) que os milhões de militantes que integram as suas fileiras não correspondem, de
forma alguma, aos que verdadeiramente praticam a ideologia vigente. Por outro lado,
o poder dos líderes juvenis partidários em influenciar as decisões das direcções é muito
reduzido. A dependência dos líderes juvenis e das próprias organizações em relação
aos dirigentes máximos dos partidos acaba por minar, de alguma forma, a capacidade
das juventudes de revitalizarem a imagem dos partidos políticos e de renovarem os
diferentes discursos políticos, aos quais a sociedade já pouca atenção presta.
Criadas à imagem e semelhança dos “mais-velhos”, as juventudes partidárias
(JURA e JMPLA), através de alguns membros, envolvem-se em actos violentos e, por
vezes mortais, de intolerância política. Actos dos quais os seus líderes se demarcam,
mas que abrem precedentes perigosos. Esta guerra silenciosa entre as juventudes dos
partidos levanta, assim, uma pergunta: impregnada dos vícios dos “mais-velhos”, até
que ponto a nova geração de políticos angolanos vai marcar, realmente, um ponto de
viragem no sistema político angolano?
A resposta poderá não estar no mundo da política partidária, onde a procuramos. Na
verdade, as reservas morais e políticas deste país poderão estar exactamente no produto
do trabalho da limitada sociedade civil angolana que tem vindo a tentar formar um
pouco por todo o país verdadeiras consciências democráticas e pensamentos livres.
O caminho para a sua afirmação, no entanto, ainda é longo.
181
Introdução
Aline Afonso Pereira
Instituto Superior
de Ciências do Trabalho
E ste texto analisa a relação entre género e mercado de
trabalho urbano em Angola, no contexto da guerra e
do processo de liberalização económica2. Ao adoptar uma
e da Empresa –ISCTE, perspectiva de género, estamos a integrar uma parte substan-
Lisboa cial dos padrões do comportamento humano no âmbito das
mudanças nas dinâmicas das instituições e nas identidades
colectivas de actores económicos e sociais que intervêm no
mercado, provocadas ou acentuadas pelo actual contexto de
globalização capitalista e do seu modo de produção. Trata-se
de uma categoria que nega a ideia do papel de passividade
natural que é historicamente atribuído à mulher, relacionando
homens e mulheres, sem pré-definir por sexo o espaço a ser
ocupado por cada um na sociedade, além de implicitamente
relacionar a questão da igualdade e da justiça3. Tal como
diria Giddens, enquanto sexo se refere às diferenças físicas
do corpo, género diz respeito às diferenças culturais, sociais,
económicas e psicológicas entre homens e mulheres4.
1
Este trabalho beneficiou de uma pesquisa de campo realizada nos meses de
Junho e Julho de 2006 em Luanda. Para a elaboração deste trabalho, além da
recolha documental, foram consideradas entrevistas realizadas em estruturas
governamentais (nomeadamente o Ministério da Família e Promoção da Mulher
– MIINFAMU), em ONG, fundações e outras organizações da sociedade civil,
mediante o seu grau de envolvimento (directo ou indirecto) no processo de inclusão
do género no mercado de trabalho.
2
Importa ressaltar que qualquer análise sobre o mercado de trabalho angolano
fica limitada devido a falta de dados estatísticos oficiais recentes; o último censo
nacional foi realizado em 1970. Embora tenham sido realizados alguns trabalhos
sócio-demográficos complementares e parcelares em algumas províncias até 1983,
não contemplam a generalidade das mudanças na distribuição da população,
decorrentes da guerra civil e das profundas transformações ocorridas ao longo
das últimas décadas. Para preencher essa lacuna, este artigo utiliza como fontes
os relatórios das principais agências internacionais.
3
BRUSCHINI, Cristina (1992), “O Uso de Abordagens Quantitativas em Pesquisa
sobre Relações de Género”, in Uma Questão de Género, São Paulo: Rosa dos Tempos/
Fundação Carlos Chagas.
4
GIDDENS, Anthony (1997), Sociologia, Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa. p.
202. Para Marchbank e Etherby, “Género é usualmente visto como uma diferença
socialmente determinada, baseada nas diferenças biológicas entre sexos. Sexo, o
estado de ser macho ou fêmea, é determinado por características biológicas, tais
como a anatomia, atributos reprodutivos e de cromossomas. O sexo é natural,
enquanto o género é visto como a expressão social de diferenças biológicas
naturais, essencialmente baseadas na aparência dos genitais. O Género refere-se
ao económico, ao social e ao cultural”, in MARCHBANK, Jennifer; LETHERBY,
Gayle (2007), Introduction to Gender: Social Science Perspectives, Pearson Education
Limited: Edinburgh. p. 5.
182 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
5
PNUD (2006), Human Development Report, Beyond Scarcity: power, poverty and the global water crisis. p. 366.
6
Ministério das Finanças (2007), Exercício 2008: resumo da origem dos recursos por órgão, Luanda. p. 2
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 183
7
A ajuda humanitária atingia apenas cerca de 10 a 15 por cento do país, apenas em zonas limitadas dentro e nos
arredores das principais cidades de cada província, era possível garantir a segurança do pessoal envolvido nas
distribuições, nas áreas controladas pela UNITA o acesso à ajuda humanitária era praticamente inexistente. Human
Rights Watch (2002), Briefing sobre Angola Apresentado ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas ao
Abrigo da Fórmula Arria, Human Rights Watch: Nova Iorque. p. 2.
8
Oficialmente, o modelo de partido único Socialista-Marxista existe desde a reunião plenária do Comité Central
do MPLA em Outubro de 1976 até ao Terceiro Congresso do Partido em 1990; in VIDAL, Nuno (2002), Post-modern
patrimonialism in Africa: the genesis and development of the Angolan political and economic system, 1961-1987, King’s
College, University of London, PhD Thesis, pp. 14-15.
9
HODGES, Tony (2002), Angola do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Principia: Cascais. p. 73.
10
HODGES, Tony (2002), Angola do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Principia: Cascais. p. 73.
11
WIDTECH (1997), A Participação da Mulher na Reconstrução de Angola no seu Processo Político e Instituições,
Volume I, WIDTECH: Massachusetts. p. 9
184 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
transporte público e comercial, etc.), o término dos subsídios orçamentais para as em-
presas estatais remanescentes, o retorno das fazendas estatais para os camponeses, o
aumento dos preços (para reflectir os custos efectivos de produção), a autorização da
livre circulação de produtos entre as províncias, e a permissão gradual do livre curso
da oferta e da procura em alguns mercados12. Este programa expressava, ainda que
implicitamente, o distanciamento do governo de Angola em relação ao modelo Socia-
lista e uma aproximação com o Ocidente, uma vez que os objectivos deste programa
seguiam de forma próxima as recomendações do Banco Mundial (BM) e do Fundo
Monetário Internacional (FMI) para os países africanos, nomeadamente no que con-
cerne à implementação de um processo de ajuste fiscal desenvolvido em duas grandes
vias: aumento das receitas e contenção de despesas. Angola acabou por ser admitida
como membro do FMI em Julho de 1989, três anos antes de oficialmente adoptar o
modelo de economia de mercado.
A adopção do modelo neo-liberal em Angola em 1991, dá-se em consonância com as
reformas já implementadas, com o contexto internacional e ainda de acordo com os
pressupostos do programa de ajuste fiscal vigente naquela altura para os países em
desenvolvimento, nomeadamente no que diz respeito à necessidade de diminuir a
dimensão e a presença directa do Estado na economia (reduzindo a administração
pública e privatizando o sector empresarial do Estado), à necessidade de equilibrar
a balança de pagamentos, controlar a taxa de câmbio e a inflação. A transição do
modelo Socialista para a economia de mercado foi implementada de forma muito
rápida, sem que a maioria da população pudesse compreender o real significado
da mudança, pudesse expressar a sua opinião ou colaborar com a transição. Além
disto, a transição para a economia de mercado foi feita de forma parcial e afectando
principalmente os sectores sociais, já que o Estado era (e ainda é) o principal actor no
mercado angolano a todos os níveis, sendo o maior produtor e o maior empregador.
As despesas governamentais representaram na década de noventa cerca de 60% do PIB
e a dívida externa era titulada em praticamente 100% pelo Estado13. No que se refere
à descentralização do poder, condição básica do neo-liberalismo, nada ou pouco foi
feito, já que o poder permaneceu fortemente concentrado e centralizado, todo o país
continuou a ser administrado por Luanda.
Após a transição, mantiveram-se vestígios do antigo sistema de afectação administrati-
va de recursos no seio de uma lógica patrimonial moderna. A praticamente inexistência
efectiva de mecanismos de responsabilização, prestação de contas e transparência,
facilitou a arbitrariedade e criou obstáculos acrescidos a uma gestão eficaz e ao pró-
prio desenvolvimento da actividade produtiva. Ao mesmo tempo, o próprio Estado
ficou ainda mais enfraquecido com a situação de guerra que se reacendeu depois
das eleições de 1992, uma vez mais influenciando negativamente o desempenho eco-
nómico (não obstante o aumento das receitas petrolíferas que atingiram níveis sem
precedentes)14.
12
VIDAL, Nuno (2002), Post-modern patrimonialism in Africa: the genesis and development of the Angolan political and
economic system, 1961-1987, King’s College, University of London, PhD Thesis, pp. 340-342.
13
In Relatório do Centro de Estudos e Investigação Científica – CEIC (2003), Relatório Económico de Angola 2002.
Universidade Católica de Angola: Luanda. p. 4.
14
VIDAL, Nuno (2006), “Multipartidarismo em Angola”, in Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade (eds.) O Processo
de Transição para o Multipartidarismo em Angola, Firmamento: Luanda & Lisboa, pp. 11-57; também VIDAL, Nuno
(2007), “The Angolan regime and the move to multiparty politics”, in Chabal, Patrick & Vidal, Nuno, Angola, the
weight of history, London & New York: Hurst & Columbia University Press, pp. 124-174.
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 185
O mercado de trabalho urbano foi um dos espaços mais afectados pelas transformações
que ocorreram em Angola no período pós-independência, por um lado pela diminuição
da procura por mão-de-obra, por outro lado pelo contínuo aumento da oferta causado
pela violência da guerra civil e consequentes migrações rumo às grandes cidades,
especialmente a capital do país. A relação da liberalização com mercado de trabalho
urbano (formal e informal) será neste artigo analisada por meio de dois grandes eixos:
os factores que influenciam a procura por mão-de-obra (capítulo 2) e os factores que
influenciam a oferta de mão-de-obra (capítulo 3).
2 - Principais Factores Condicionantes da Procura por Mão-De-Obra no
Mercado de Trabalho Urbano de Angola.
Luanda foi o destino preferencial daqueles que saíram das áreas rurais, esta cidade
além de ser a capital político-administrativa do país é também o maior mercado de
trabalho (concentrando 75% da produção industrial e 65% da actividade comercial15)
e é a sede das principais empresas nacionais e internacionais que operam em Angola.
Actualmente, a taxa de desemprego em Luanda está estimada entre 27,1% e 31%16. O
desemprego afecta os trabalhadores em geral, mas afecta sobretudo a camada mais
vulnerável no seio do mercado de trabalho — as mulheres17. Em situações de pobreza
as mulheres têm um acesso mínimo à alimentação, aos serviços médicos, à educação,
à formação e às possibilidades de emprego e à satisfação de outras necessidades18.
Em 1993 a população desempregada na cidade de Luanda era de 24% da População
Economicamente Activa (PEA). Desse total, 40,6% correspondia àqueles que “tinham
trabalho antes mas ficaram desempregados”. As mulheres foram duramente penali-
zadas neste processo, constituindo 67,6% da massa de desempregados contra 32,4%
de homens19.
A procura de mão-de-obra corresponde ao conjunto de empregos disponíveis do lado
da actividade económica20 e a longo prazo é amplamente modificada, na sua estrutura,
pelo processo de desenvolvimento económico. As fortes perturbações causadas pela
transformação do modelo político-económico (liberalização dos anos noventa), aliadas
a uma segunda vaga (mais violenta) de destruição das infra-estruturas produtivas,
causada pelo retomar da guerra civil depois das primeiras eleições gerais de 1992,
provocaram danos profundos na já de si débil estrutura económica angolana, com
efeitos na procura por mão-de-obra, a curto, médio e longo prazo.
Em 2006, os dados oficiais apontam para uma taxa de desemprego na ordem dos
25,2%21. Conforme anteriormente referido, no actual mercado de trabalho em Angola
15
Relatório do Centro de Estudos e Investigação Científica (2006), Relatório Económico Anual, Universidade Católica
de Angola: Luanda. p. 6
16
Relatório do Centro de Estudos e Investigação Científica (2006), Relatório Económico Anual, Universidade Católica
de Angola: Luanda. p. 6
17
CHAGAS LOPES, Margarida (1999), “A Igualdade de Oportunidades como Estratégia Empresarial”, in Sociedade e
Trabalho, 6, Departamento de Estudos, Prospectiva e Planeamento – DEPP: Lisboa
18
Nações Unidas (1979), Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, p. 1.
19
Instituto Nacional de Estatística (1993), Inquérito Sócio-Demográfico e Emprego na Cidade de Luanda (Junho – Julho de
1993). Resultados Definitivos. População, Emprego e Desemprego. INE: Luanda. pp. 29-31
20
MOURA, João (1986), Economia do Trabalho, Fundação Oliveira Martins: Lisboa. p. 21
21
Relatório do Ministério do Planeamento (2007), Programa Geral do Governo 2005-2006, Balanço de Execução Ano
2006, Luanda. p. 4
186 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Fonte: Relatório do Ministério do Planeamento (2007), Programa Geral do Governo 2005-2006, Balanço de
Execução Ano 2006, Luanda. p. 4.
O governo angolano obteve progressos no controlo da inflação, o que trouxe um maior
grau de previsibilidade e estabilidade negocial e económica35, mas há que ter em conta
que as medidas deflacionárias são concretizadas com base em restrições orçamentais,
monetárias e redução de investimentos no sector social. Há também que referir que
este controlo da inflação se faz por via do controlo cambial, que por sua vez se processa
com a injecção estatal massiva de dólares (provenientes das receitas petrolíferas em
alta), disponibilizados pelo Estado ao sistema bancário comercial, que por sua vez os
disponibiliza de forma geral ao mercado, mantendo satisfeita a procura por dólares
(essencialmente do lado dos grandes importadores).
Angola apresentou em 2006 a mais alta taxa de crescimento do Continente Africano
18,6% (inferior aos 20,6% de 2005)36, com um aumento no valor do PIB per capita
na ordem dos US$2.565,2 em 2006 (29,2% maior do que em 2005, que havia sido
de US$1.984,8), mas esse crescimento não se tem vindo a traduzir em aumento da
32
Em África, Angola encontra-se apenas atrás da Nigéria, que produz 2,3 milhões de barris de petróleo por dia.
33
Angola National Private Investment Agency – ANIP, edição online: www.iie-angola-us.org/economy.htm, consultado
em 15 de Outubro de 2007.
34
Embora os dados oficiais indiquem um aumento do PIB não petrolífero de 25,7%, o sector petrolífero ainda é
responsável por mais de metade do PIB de Angola; in Relatório do Ministério do Planeamento (2007), Programa Geral
do Governo 2005-2006, Balanço de Execução Ano 2006, Luanda. pp. 4-6.
35
Evolução da inflação: 3782,98% em 1995, 268,31% em 2000, 116,07% em 2001, 105,59% em 2002, 76,57% em 2003,
31,02% em 2004, 24,8% em 2005, 13,3% em 2006 e com uma estimativa de 13,9% para 2007.
36
Relatório do Ministério do Planeamento (2007), Programa Geral do Governo 2005-2006, Balanço de Execução Ano
2006, Luanda. p. 4
188 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
37
Governo de Angola; PNUD (2005), Objectivos de Desenvolvimento do Milénio 2005, PNUD: Luanda. p. 6.
38
PNUD (2006), Human Development Report, Beyond Scarcity: power, poverty and the global water crisis, PNUD. p. 286
39
Relatório do PNUD (2005), Cooperação Internacional numa Encruzilhada: ajuda, comércio e Segurança num Mundo
Desigual, PNUD. p. 222.
40
PNUD (2006), Human Development Report, Beyond Scarcity: power, poverty and the global water crisis, PNUD. p. 300
41
Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (2000), Relatório de Seguimento das Metas da Cimeira Mundial pela
Infância, República De Angola: Luanda. p.13; ver também Marques da Silva, Elisete O papel societal do sistema de ensino
na Angola colonial (1926-1974) (Bissau: II Colóquio Internacional em Ciências Sociais sobre a África de Língua Oficial
Portuguesa, Novembro 1991), pp.1-29.
42
WIDTECH (1997), A Participação da Mulher na Reconstrução de Angola no seu Processo Político e Instituições, Volume
I, WIDTECH: Massachusetts. p. 9
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 189
43
Ver a este respeito, VIDAL, Nuno (2007), “Social Neglect and the Emergence of Civil Society”, in Chabal, Patrick &
Vidal, Nuno, Angola, the weight of history (London & New York: Hurst & Columbia University Press), pp. 200-235.
44
Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (2000), Relatório de Seguimento das Metas da Cimeira Mundial pela
Infância, República De Angola: Luanda. p. 14.
45
VIDAL, Nuno (2007), “Social Neglect and the Emergence of Civil Society”, in Chabal, Patrick & Vidal, Nuno,
Angola, the weight of history (London & New York: Hurst & Columbia University Press), pp. 200-235.
46
Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (2000), Relatório de Seguimento das Metas da Cimeira Mundial pela
Infância, República De Angola: Luanda. p. 13.
47
Relação percentual entre o número total de alunos matriculados num determinado ciclo de estudos (independentemente
da idade) e a população residente em idade normal de frequência desse ciclo.
48
Indica o percentual da população em determinada faixa etária que se encontra matriculada no nível de ensino
adequado à sua idade.
49
Governo de Angola; PNUD (2005), Objectivos de Desenvolvimento do Milénio 2005, PNUD: Luanda. pp. 7-14
50
PNUD (2006), Human Development Report, Beyond Scarcity: power, poverty and the global water crisis, PNUD. p.382.
190 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
escolar da mulher são o abandono escolar precoce, seja por opção, por imposição da
família ou aquando do nascimento dos filhos, sendo agravado quando ocorre uma
sucessão da gravidez. As responsabilidades da vida familiar/doméstica e a falta de
formação adequada impedem as mulheres de encontrar empregos regulares no sector
formal, impelindo-as para o sector informal.
A escassez de respostas de formação, de emprego, de acesso a serviços de apoio social,
entre outros serviços e recursos, tende a dificultar a inversão das condições de desi-
gualdade estrutural em que as mulheres têm subsistido até aqui. Políticas públicas
activas desenvolvidas especialmente para as mulheres devem ser prioritárias para as
integrar no mercado de trabalho em condições de igualdade e justiça, capacitando-as
para competirem no mercado de emprego por via da educação, qualificação e re-
qualificação, apoiando-as na procura de emprego, promovendo a melhoria das suas
condições de trabalho, desenvolvendo serviços de apoio à família que, por exemplo,
lhes permitam equilibrar a maternidade com o trabalho51.
No entanto, a sensibilidade política para este tipo de políticas específicas para se tentar
recuperar, em parte, a desvantagem socialmente estrutural das mulheres em relação
aos homens no mercado de trabalho, é ainda muito fraca. Por um lado, a sociedade
continua a ser dominada por uma tradição forte de postura e raciocínio que privilegia
a posição dos homens no mercado de trabalho, por outro lado, as mulheres continuam
a estar sub-representadas nos órgãos de tomada de decisão52.
O Ministério da Família e Promoção da Mulher é a estrutura governamental e adminis-
trativa angolana específica para tratar das questões do género, contudo, este ministério
está no fim das prioridades do governo, sendo de todos os ministérios aquele a quem
cabe a menor dotação orçamental, na ordem dos 0,01% para 200853.
O resultado de anos de descaso e do vazio de políticas públicas efectivas para pro-
tecção da mulher durante a guerra civil, da transição económica dos anos noventa e
das transformações daí decorrentes no mercado de trabalho, pode ser constatado na
avaliação de 2006 do PNUD, que dos 136 países analisados no Índice de Desenvolvi-
mento ajustado ao Género (IDG) classificou Angola na 122.ª posição.
51
CAPUCHA, Luís (2005), Desafios da Pobreza, Celta: Oeiras. p.168
52
Para uma análise mais completa sobre a presença das mulheres nos órgãos de tomada de decisão ver PEREIRA,
Aline Afonso (2006), “Género e Desenvolvimento em Angola”, in VIDAL, Nuno & PINTO DE ANDRADE, Justino,
O Processo de Transição para o Multipartidarismo em Angola, Firmamento: Lisboa. pp. 241-258.
53
Ministério das Finanças (2007), Orçamento Geral do Estado, Exercício 2007. Luanda.
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 191
Fonte: PNUD (2006), Human development Report, Beyond scarcity: Power, poverty and the global water crisis.
p. 366.
54
VLETTER, Fion de (2002) A Promoção do Sector Micro-Empresarial Urbano em Angola, Princípia: Cascais. p. 9
55
LOPES, Carlos M. (2007) Roque Santeiro – Entre a Ficção e a Realidade, Lisboa: Principia.
192 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
56
LOPES, Carlos M. O Sector Informal e o Desenvolvimento: estudo de caso em Luanda, Comunicação apresentada ao
II Congreso de Estúdios Africanos en el Mundo Ibérico – África Hacia el Siglo XXI, (Madrid, Espanha, 15-17 de
Setembro de 1999)
57
HUSSMANNS, Ralf (2005), Measuring the Informal Economy: from employment in the informal sector to informal
employment. Working Paper No. 53, Genebra: International Labour Organization. p iii.
58
PEREIRA, Aline Afonso (2006), “Género e Desenvolvimento em Angola”, in VIDAL, Nuno & PINTO DE ANDRADE,
Justino, O Processo de Transição para o Multipartidarismo em Angola, Firmamento: Luanda & Lisboa. p. 248.
59
Relatório do Centro de Estudos e Investigação Científica (2003), Relatório Económico de Angola 2002. Universidade
Católica de Angola: Luanda. p. 52.
60
Para uma análise sobre o impacto da guerra nas redes de solidariedade familiar ver RODRIGUES, Cristina (2006), “Da
Solidariedade Familiar às Classes Sociais: Estratificação Social em Angola (Luanda e Ondjiva)”, in VIDAL, Nuno & PINTO
DE ANDRADE, Justino, O Processo de Transição para o Multipartidarismo em Angola, Firmamento: Lisboa. pp. 265-285.
61
Relatório da Agência Sueca de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (2000) Para uma Igualdade entre
Homens e Mulheres em Angola. Um Perfil das Relações de Género, Asdi: Stockholm. p. 21.
62
PEREIRA, Aline Afonso (2006), “Género e Desenvolvimento em Angola”, in VIDAL, Nuno & PINTO DE ANDRADE,
Justino, O Processo de Transição para o Multipartidarismo em Angola, Firmamento: Lisboa. p. 245.
63
ROBSON, Paul; ROQUE, Sandra (2001), Aqui na Cidade Nada Sobra para Ajudar, Development Workshop:
Amsterdão.
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 193
64
ROBSON, Paul; ROQUE, Sandra (2001), Aqui na Cidade Nada Sobra para Ajudar, Development Workshop: Amsterdão.
65
VLETTER, Fion de (2002), A Promoção do Sector Micro-Empresarial Urbano em Angola, Princípia: Cascais. p. 22.
66
VLETTER, Fion de (2002), A Promoção do Sector Micro-Empresarial Urbano em Angola, Princípia: Cascais. p. 22.
67
Lei n.° 14/91.
68
De acordo com Hodges, a Angola colonial possuía um sistema administrativo altamente centralizado e um clima
político repressivo; não existiam partidos de oposição legalizados, a imprensa era ferreamente controlada, não havia um
poder judicial independente e as manifestações de descontentamento ou oposição eram rápida e ferozmente esmagadas;
in HODGES, Tony (2002), Angola do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Principia: Cascais. p. 74
69
PACHECO, Fernando (2006), “Sociedade Civil e a Construção da Democracia em Angola”, in VIDAL, Nuno & PINTO
DE ANDRADE, Justino, O Processo de Transição para o Multipatidarismo em Angola. Lisboa-Luanda: Firmamento. p. 213
194 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
70
Vale a pena ressaltar que as tensões entre a sociedade civil e o Governo de Angola são constantes no que se refere à
questão da participação. O Fórum das Organizações Não Governamentais Angolanas – FONGA, cita no seu relatório
de análise da Estratégia de Combate à Pobreza – ECP: “A ECP foi elaborada por uma comissão multi-sectorial e quase
sem participação efectiva da sociedade civil. Apenas dois por cento dos participantes dos workshops (de consulta à
sociedade civil) teve acesso ao documento preliminar à aprovação pelo Conselho de Ministros, em Janeiro de 2004.
Mais de 90 por cento teve conhecimento da aprovação do documento em Janeiro, mas não teve acesso a qualquer
cópia até à realização dos workshops”. FILIPE, Paulo (2004), Estratégia de Combate a Pobreza (ECP), Relatório de Divulgação
e Consulta às Organizações da Sociedade Civil, Fórum das Organizações Não Governamentais Angolanas. p. 4.
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 195
Conclusão
A guerra e a liberalização económica e política empreendida pelo Estado angolano
nos anos noventa acabaram por preservar o carácter centralizador e controlador do
Estado, mas desobrigou-o em grande medida de actuar nas questões sociais, referentes
à distribuição de renda, educação, saúde e trabalho. O mercado de emprego sofreu
directamente os impactos do processo de liberalização económica uma vez que este
mercado é claramente afectado pelas alterações que se observam por efeito dos factores
que condicionam a oferta e a procura de mão-de-obra72. As reestruturações que ocorre-
ram não contemplaram a utilização de instrumentos capazes de proteger os recursos
humanos envolvidos no processo, saldando-se por uma massa de pessoas levadas ao
sub-emprego, à precaridade e instabilidade do mercado informal e ao desemprego,
sem o auxílio de políticas sociais capazes de minimizar as externalidades negativas
daqueles processos.
Dentro deste grupo, dos principais prejudicados com o processo de transição, encontram-
-se as mulheres, que encontram barreiras para se integrarem no mercado formal de traba-
lho, para ascenderem na carreira, para receberem maiores salários, para se qualificarem
e para conjugarem a sua situação específica de mulheres de família e mães.
A sociedade civil angolana está a desenvolver um importante papel no que se refere
à defesa dos interesses das mulheres. No que concerne especificamente à inclusão da
mulher no mercado de trabalho em condições de igualdade e justiça, as acções das
Organizações da Sociedade Civil são importantes mas não suficientes, devendo com-
plementar as acções do Estado. As acções específicas e de carácter micro e aplicado
à realidade das necessidades imediatas e concretas foram e continuam a ser impor-
tantes para combater as desigualdades, porém, é necessário enveredar por acções de
71
Entre as áreas de actuação encontram-se: a troca de informações; difusão de informação (destacando-se aqui o
programa de rádio “os caminhos da igualdade”, que até 2004 era transmitido todas as Terças-feiras com matérias
informativas desenvolvidas pela Rede Mulher); apoio às campanhas dos membros; apoio às acções do MINFAMU;
acções de promoção da paz e reconciliação nacional; activismo em favor do reforço da participação das mulheres no
processo decisório; acções em prol da saúde da mulher (com destaque para a questão do HIV/Sida, dos testes para
a mulheres grávidas, dos problemas a nível de saúde materna); integração da perspectiva do género nos diversos
projectos governamentais; activismo no combate à violência contra a mulher (com programas de capacitação junto
das autoridades policiais e apoio aos centros provinciais de aconselhamento jurídico, procuradores de justiça e outros
integrantes do poder judiciário, para além de construir uma base de dados sobre violência doméstica e capacitação
de jornalistas com o objectivo de sensibilizá-los para a problemática da violência contra a mulher). A este respeito,
Emília Fernandes, Secretária-Geral da Rede Mulher considera que na sequência de todas estas acções “acabámos
por criar um ambiente em que apesar de a legislação ser ainda deficiente, as pessoas já sentem que bater em mulher
é crime, que se um homem violentar uma rapariga tem que ser punido de acordo com as penas que estão previstas
no código”; informações fornecidas em entrevista concedida à autora por Emília Fernandes, Secretária-Geral da
Rede Mulher, Luanda, Sede da Rede Mulher, Julho de 2005.
72
MURTEIRA, Mario (1969), Economia do Trabalho, Lisboa: Livraria Clássica. p. 43.
196 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
73
NEVES, A. Oliveira das; GRAÇA, Suzana (2000), Inserção no Mercado de Trabalho de Populações com Dificuldades
Especiais, Colecção Cadernos de Emprego, Lisboa: Direcção Geral do Emprego e Formação Profissional. p. 58.
197
Reginaldo Silva
Rádio Nacional
de Angola e Angolense
A liberdade de imprensa é um bem precioso, um dos
mais estruturantes e vigilantes princípios do Estado
democrático. No caso de Angola, a liberdade de imprensa foi
decisiva para o processo de abertura em curso, tendo o referi-
do postulado adquirido conteúdo e forma com o surgimento
dos jornais privados (semanários) que se editam sobretudo
na capital, e das rádios em FM com destaque para a Luanda
Antena Comercial (LAC) e depois a Emissora Católica de
Angola – Ecclesia. Neste processo, iniciado formalmente com
a revisão da Lei Constitucional e a realização das eleições em
1992, a liberdade de imprensa acabou por ser, como espaço
aberto ao debate contraditório, a força mais dinâmica a im-
pulsionar as mudanças, a criticar a herança do monopartida-
rismo e do Estado totalitário e a promover a cidadania. A tal
ponto este papel foi decisivo no quadro da democratização,
que a nova imprensa não controlada pelo governo é vista
até aos dias de hoje, por vários círculos pensantes do país,
como sendo a principal força de oposição ao actual governo
do partido maioritário.
Ao longo dos últimos 16 anos esta liberdade, não obstan-
te no plano jurídico-formal a maior parte das disposições
constantes da Lei estar já em conformidade com os padrões
internacionais, mantém-se “refém” de uma silenciosa mas
vigilante tutela do actual poder político. Esta tutela, clara-
mente estratégica, faz-se sentir, nomeadamente, em algumas
restrições monopolistas que afectam gravemente o princípio
do pluralismo mediático. A nova Lei de Imprensa aprovada
em Maio de 2006 eliminou parcialmente aquelas restrições,
mas na prática ainda não produziu qualquer efeito, dois anos
depois de a mesma ter passado pelo Parlamento.
O destaque daquele levantamento de restrições — liberalização
— vai certamente para a abertura da actividade de televisão a
entidades privadas, tendo igualmente sido dados alguns passos,
por sinal ainda muito tímidos, em relação à abrangência da ra-
diodifusão, numa altura em que a Emissora Católica de Angola,
cuja cobertura se mantém circunscrita a Luanda, é a entidade que
mais tem batalhado pela expansão do seu sinal a todo o país.
Tudo continua dependente agora da aprovação de um sem
número de diplomas, entre leis especiais e regulamentos,
198 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
1
Para elaboração do primeiro capítulo contámos com a preciosa colaboração do Nuno Vidal que nos ajudou bastante
a desenhar a retrospectiva que a seguir vos apresentamos, tendo igualmente sido de uma utilidade extrema outras
contribuições da sua parte, visíveis na estruturação e na expurgação da linguagem deste texto, de acordo com o
que recomendam as normas e a “higiene” de uma abordagem mais académica, com as quais nem sempre as nossas
relações têm sido “pacíficas”.
Reginaldo Silva h Liberdade de Imprensa em Angola 199
-culturais. Com o fim da “guerra-fria” no final dos anos oitenta e início dos anos no-
venta, assiste-se à emergência da democracia multipartidária, de matriz Ocidental,
como modelo de tendência hegemónica de governação à escala global, operando-se
gradualmente uma viragem ao nível daquilo que vinha sendo a orientação da maioria
dos Estados africanos, agora igualmente “sujeitos” ao domínio do novo modelo e dos
seus princípios primordiais.
Ao longo dos anos noventa, vários países africanos vão passar por processos de tran-
sição para o multipartidarismo e para a economia de mercado e depressa se começa a
perceber a necessidade de encontrar uma nova fórmula de organização dos Estados
Africanos, que responda a uma nova realidade histórica. A OUA havia cumprido a sua
missão dentro do possível e acabou por dar lugar, em 2002, à União Africana – UA,
que vai iniciar um movimento de revisão (directa ou indirecta) de vários instrumentos
políticos e jurídicos adoptados pela sua antecessora, nomeadamente a Carta Africana
dos Direitos do Homem e dos Povos.
No processo de revisão da Carta pela UA vai-se produzir um documento autónomo — a
Declaração dos Princípios sobre a Liberdade de Expressão em África —, aprovado pela
32.ª sessão ordinária da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, que
decorrerá de 17 a 23 de Outubro de 2002, na capital Gambiana, Banjul, num documento
que ficará conhecido como “Declaração de Banjul”. Esta declaração vai expressamente
assumir que teve em conta a Declaração de Windhoek de 1991 sobre a Promoção de
uma Imprensa Africana Independente e Pluralista, o Relatório Final da Conferência
Africana sobre O Jornalista e os Direitos Humanos em África, realizada em Tunis em
1992 e a Declaração sobre Liberdade de Expressão e a Carta Africana, realizada em
Joanesburgo em Novembro de 2000, entre outros instrumentos de referência do con-
tinente. Em todos estes documentos começa-se a assistir à ligação entre democracia e
liberdade de expressão como partes de um mesmo ser.
A declaração de Banjul vai afirmar “a importância fundamental da liberdade de ex-
pressão e da informação como um direito humano individual, como pedra de toque da
democracia e como um meio de assegurar o respeito por todos os Direitos Humanos e
liberdades”. Vai igualmente referir que o “respeito pela liberdade de expressão, bem
como o direito de acesso à informação sob custódia das entidades públicas e empresas
vai levar a uma maior transparência e accountability, bem como à boa governação e ao
fortalecimento da democracia”, reconhecendo “o papel chave que os media e outros
meios de comunicação desempenham em assegurar o respeito pela liberdade de ex-
pressão, promoção do livre fluxo de informação e ideias, em ajudar as pessoas a tomar
decisões informadas e facilitar o fortalecimento da democracia”.
Deste modo, a Declaração de Banjul vai “recuperar” o Artigo XIX da Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos, dizendo, no seu primeiro artigo sobre as “Garantias da
Liberdade de Expressão”, que “A liberdade de expressão e informação, incluindo o
direito a procurar, receber e disseminar informação e ideias, quer seja oralmente, na
forma escrita ou impressa, na forma de arte ou através de outra forma de comunica-
ção, incluindo além-fronteiras, é um direito humano fundamental e inalienável e uma
componente indispensável da democracia”.2
2
A liberdade de expressão do pensamento através dos meios de comunicação social e o direito de acesso à informação
de interesse público constituem preocupação das Nações Unidas desde a sessão inaugural da Assembleia Geral em
1946, que na sua resolução n.º 59 assumiu que “A liberdade de informação é um Direito Humano fundamental e
alicerce de todas as liberdades às quais as Nações Unidas estão consagradas”.
200 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
em casos que são politicamente mais sensíveis, atitude que desvirtua completamente
o espírito de “parceria inteligente e de respeito mútuo” que deveria presidir à relação
entre entidades governamentais — públicas — e media, cuja função de informar e escla-
recer a opinião pública necessita da posição dos responsáveis pela política pública.
A posição das entidades governamentais a respeito de matérias de interesse público
constitui uma obrigação em qualquer regime democrático. Se concebermos que o governo
é do povo, pelo povo e para o povo, os detentores de cargos públicos são servidores dos
constituintes que os elegeram, devem explicações periódicas e não somente em épocas
eleitorais. A sobranceria, desdém e desrespeito, com que muitos detentores de cargos
públicos tratam a imprensa é deveras preocupante e reveladora da falta de consciência
democrática de muitos dirigentes. A indisponibilidade comum das fontes oficiais em
reagirem oportunamente aos factos e aos acontecimentos deve ser denunciada como uma
falha grave nas obrigações de qualquer responsável político, em especial se ocupa um
cargo público, pago com o dinheiro do Estado, ou seja, com o dinheiro de todos nós.
O governo tem grandes dificuldades em perceber que o seu próprio desempenho
numa sociedade democrática só tem a beneficiar com a independência e o pluralismo
dos media. A eficácia e a eficiência governamental, num modelo democrático, melhora
grandemente com a actividade crítica e “fiscalizadora” dos media e da informação
livre da opinião pública. Por outro lado, a liberdade de imprensa acaba igualmente
por ser o melhor e mais rápido instrumento que o executivo tem à sua disposição,
sem custos adicionais em termos de Orçamento Geral do Estado, para ser informado
sobre os resultados efectivos — o impacto — da sua própria governação, de como é
que ela se está a processar no dia-a-dia.
Num contexto de reconstrução e desenvolvimento, depois de uma longa guerra civil
que tantos danos causou ao país, teria de ser reservado aos media um papel cimeiro na
construção de uma sociedade mais justa e democrática, actuando como parceiro de to-
dos aqueles que desejam erradicar problemas tão imediatos e graves como a corrupção
e a pobreza, pugnando pela boa governação e a transparência, que são essenciais ao
desenvolvimento económico e à efectiva democratização, tal como desenvolveremos
no próximo capítulo.
forma geral, os políticos deste país, com destaque para aqueles que estão ligados ao
poder do Estado, ficam profundamente incomodados e irritados (ainda que não o
assumam de forma sistemática e aberta) quando se fala de corrupção e, pior ainda,
quando são confrontados com casos concretos de corrupção. Quando são os estrangei-
ros a referir o tema, acham que se trata de uma inadmissível ingerência nos assuntos
internos do país, quando são os nacionais, consideram uma abusiva intromissão na
vida alheia e sobretudo uma manifestação de inveja e ressabiamento.
Hoje em Angola, ainda que em surdina, todos aqueles que se preocupam com a ex-
tensão do fenómeno da corrupção são normalmente apelidados de “invejosos” por
todos aqueles que foram bafejados pela “sorte” de trabalharem em instituições go-
vernamentais/Estaduais, que gerem recursos públicos significativos e passíveis de
apropriação privada/pessoal. Digo que isto se passa ainda em surdina porque, a
manter-se a actual tendência de aceitação e generalização do fenómeno da corrupção,
corremos o risco de ver chegar o dia em que os apodados “invejosos” serão aberta e
publicamente perseguidos e condenados.
Entre estes “invejosos” os jornalistas ocupam certamente um lugar de bastante relevo,
pela capacidade que ainda vão possuindo de amplificar este tipo de denúncias sobre
a gestão ruinosa do erário público. Ainda que com todas as insuficiências e debilida-
des, tem de se reconhecer o mérito da imprensa angolana privada enquanto sector da
vida nacional que mais tem denunciado e alimentado o debate à volta da corrupção,
chamando a atenção para o seu impacto negativo no desenvolvimento do país. Con-
tudo, em termos de moralização e transparência da actuação dos poderes públicos,
os resultados desta cruzada não são muito animadores, mas muito pior seria se a
imprensa resolvesse assinar o pacto de silêncio que todos os dias lhe é proposto nas
entrelinhas dos discursos musculados do poder político — a bem das “verdadeiras”
prioridades nacionais, argumentam os seus autores.
O jornalismo angolano tem como grande desafio a definição de uma agenda informativa
autónoma, dominada pelo que é fundamental e estruturante, procurando distanciar-se
das agendas de outros interesses estratégicos, também eles ligados ao poder político-
-económico (directa ou indirectamente, de forma mais ou menos visível), que procuram
manipular e instrumentalizar os media em função dos seus interesses, utilizando os
habituais artifícios do aliciamento material e da cooptação. O sector jornalístico perma-
nece muito marcado por uma excessiva proximidade, por vezes promiscuidade, com as
quezílias, as mais das vezes mesquinhas e míopes, do jogo político-partidário
Não raras vezes assistimos nos órgãos de comunicação social privados ao ataque pes-
soal continuado e quase que persecutório a determinados indivíduos das estruturas do
poder do Estado, fundamentado em informações estrategicamente lançadas, “vazadas”
ou “construídas”, também por personalidades do poder político, inimigos pessoais do
visado e que utilizam deste modo os media privados para vinganças pessoais ou como
instrumentos das lutas intestinas do partido no poder ou dos partidos da oposição.
Esta promiscuidade e este jogo de envolvimento entre poder político e alguns mem-
bros do sector da comunicação social tem dois lados, o daqueles que em função dos
seus interesses querem instrumentalizar os media e o lado daqueles que de forma mais
ou menos consciente se deixam instrumentalizar ou aliciar a troco de determinadas
benesses. Não estamos aqui numa relação entre violadores e vítimas, infelizmente
não é assim tão simples.
São amplamente conhecidas e comentadas as práticas de alguns órgãos de comunicação
privados que efectivamente chantageiam os visados em matérias comprometedoras,
vendendo a não publicação das mesmas. Ou ainda a negligência e a falta de rigor
jornalístico na investigação e construção da notícia, não se cumprindo regras básicas
como a necessidade de ouvir todas as partes envolvidas num determinado caso ou
tentar averiguar a veracidade das posições com pesquisa documental, a concessão do
direito de resposta, etc.
De um modo geral, verifica-se ainda uma grande falta de profundidade e rigor na
selecção e investigação das matérias que compõem muitas das edições. Se no início
da actividade jornalística privada estas práticas passavam mais ou menos incólumes,
numa mistura de jornalismo com actividade por vezes panfletária e desregulamentação
do sector, com a progressiva adaptação do sistema judicial ao novo enquadramento
jurídico em que os cidadãos encontram maior protecção dos seus direitos (e.g. ao bom
nome e ao direito de resposta) e com o surgimento de um número cada vez maior
de advogados na praça, tais práticas de falta de rigor, ética e deontologia jornalística,
começam a estar cada vez mais sujeitas a processos judiciais e à aplicação da lei e das
respectivas penalizações pela sua violação.
Não podemos depois recorrer hipocritamente ao argumento geral da perseguição do
poder político aos jornalistas e ao “autoritarismo repressivo do regime” quando não se
respeitam as regras éticas e deontológicas da profissão. Não se pode confundir liber-
dade de imprensa com libertinagem irresponsável que utiliza a liberdade de expressão
para proceder a ofensas, enxovalhos e ataques pessoais com acusações infundadas
que lesam o bom-nome e a dignidade dos visados. Tais práticas são próprias de um
qualquer terrorismo jornalístico que visa julgamentos e por vezes “linchamentos” em
praça pública, mais adequados à época medieval da inquisição do que ao jornalismo
sério e responsável de uma democracia no século XXI.
208 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
A Juventude Angolana e a
Participação Cívica e Política
José Patrocínio
Projecto Omunga
da ONG Okutiuka,
O s jovens angolanos interessam-se pela política e pela vida
pública, o grande obstáculo à sua maior participação e
envolvimento está na inexistência de uma vontade política,
Lobito, Angola por parte do sistema de poder estabelecido, em investir nos
mecanismos necessários ao desenvolvimento da capacidade
crítica, analítica, de intervenção e participação pública por parte
dos jovens (e da população em geral). O fraco investimento na
educação, as restrições à livre difusão de informação e os cons-
trangimentos ao espaço de actuação das Organizações da Socie-
dade Civil (OSC), impedem o aprofundamento do processo de
democratização. Para além destes obstáculos, há ainda a realçar
a falta de capacidade das OSC em articularem posições a nível
nacional e internacional de um modo mais eficiente e eficaz na
defesa dos Direitos Humanos (DH) e da democracia.
1
In Orçamentos Gerais do Estado de Angola, disponíveis no site do Ministério das Finanças de Angola:
www.minfin.gv.ao
José Patrocínio h A Juventude Angolana e a Participação Cívica e Política 211
tantânea. Este processo passa por muitos obstáculos a vencer, mas sem dúvida que o
primeiro deles será o das consciências, das vontades e dos comportamentos, que por
sua vez está relacionado com a educação e muito especialmente com a juventude. Falo
aqui de educação democrática da população, de consciencialização pública e cívica de
base, para o comportamento democrático.
A longo prazo estes serão os alicerces, as bases, de um processo democrático sólido,
sustentável. O sistema escolar é o espaço privilegiado para se estimularem estas capaci-
dades de intervenção e de consciência pública, um espaço que é bastante mais facilitado
para tal objectivo do que a família. Aqui, os futuros cidadãos e cidadãs começam a ter
espaços de participação e a possibilidade de criarem eles próprios modelos de interac-
ção democrática e de respeito por opiniões contrárias, habituando-se desde a infância
a aceitar ideias e práticas de debate e participação com base na convivência pacífica
e respeito mútuo. Deste modo, quando adultos, terão mais facilidade em resistirem a
modelos impostos, não democráticos, lutando contra papéis em que são objectos de
imposição e repressão, defendendo antes um protagonismo democrático.
É neste sentido que a minha organização se preocupa com a utilização de instituições,
nomeadamente a escola, como um espaço de excelência para se promoverem modelos de
protagonismo infanto-juvenil, para facilitar que as crianças e os adolescentes comecem a
habituar-se a participar, a reflectir e a opinar em espaços comuns e sobre questões comuns
(“públicas”). No entanto, devemos frisar que por muitos esforços que as OSC façam em
relação à educação, não podem nunca substituir-se ao Estado nas grandes reformas e
nos investimentos de fundo que são indispensáveis para modernizar o sector e para o
transformar efectivamente num sustentáculo do desenvolvimento económico e social.
Dadas as carências do país em matéria de educação, seria de esperar mais apoio às OSC
que procuram desenvolver projectos nesta área, mas tal não é o caso, pelo contrário,
defrontamo-nos com inúmeros obstáculos ao nosso trabalho por parte das estruturas
governamentais e administrativas. A este nível, um dos exemplos mais claros dos obstá-
culos que enfrentamos é o projecto “Ensino Gratuito, Já!”, coordenado pelo OMUNGA
com o apoio da organização Save the Children – DNS, designado por “Escolas Amigas da
Criança”, que pretendia criar espaços de participação alargada na gestão das escolas,
para resolver os diversos problemas que as afectam, tornando igualmente a sua gestão
mais transparente e minimizando as suas carências. Pretendiam-se introduzir novas
estratégias de gestão e fiscalização por parte de alunos, professores, encarregados de
educação, administração provincial e municipal, OSC dedicadas à educação, associa-
ções comunitárias, etc. Não obstante os apoios financeiros ao projecto e a alargada
associação de esforços conseguida em vários quadrantes da sociedade, as resistências
e obstáculos levantados pelas administrações escolares, corpo docente e autoridades
administrativas foi totalmente impeditivo da implementação do projecto, que assim
morreu à nascença, essencialmente por falta de vontade política.
2
Cerca de US$4,5, ao preço de venda na rua.
3
Cerca de US$2,5/hora, um custo absurdo, sendo que numa hora só se conseguem abrir duas ou três páginas dada
a lentidão do serviço e sabendo-se que a maioria da população vive abaixo da linha de pobreza. De acordo com os
últimos dados disponíveis, em 2000-1, estimava-se que cerca de 68% da população angolana vivia abaixo do limiar
da pobreza (correspondente a US$1,70 por dia), 26% dos quais em situação de extrema pobreza (com menos de
US$0,75 por dia); in Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, Relatório de Progresso 2005 (Luanda: Governo de Angola
e PNUD, 2005), p.20.
José Patrocínio h A Juventude Angolana e a Participação Cívica e Política 213
Aqui reside o problema da maioria dos projectos de dimensão micro, de carácter par-
ticipativo, das diversas OSC — a fase de transição das diversas dinâmicas micro para
a sua agregação e alastramento para uma dimensão maior, que tenha efectivamente
impacto a nível da sociedade como um todo. Nesta transição, surge com particular
dificuldade a inter-acção com as estruturas político-administrativas, na altura em que
os indivíduos que vão ganhando consciência e que é suposto beneficiarem do processo
de empowerment, se têm necessariamente de relacionar com as estruturas do poder para
a resolução de vários problemas da comunidade. Aqui dá-se um choque de forças e de
interesses, que nem sempre são coincidentes porque começam a afectar os interesses de
manutenção da hegemonia e de controlo social por parte das estruturas governativas
do poder político estabelecido. Os exemplos que abordarei no sub-capítulo seguinte
são bastante ilustrativos desta realidade.
1.2 – Os jovens e a política
Tendo em conta a minha experiência de trabalho com a juventude, coordenando o
projecto OMUNGA, direccionado para a questão do protagonismo juvenil, considero
que actualmente existe bastante interesse dos jovens pela política e pela participação
no processo de construção de uma nova moldura político-social em Angola. Em to-
dos os espaços de debate que nós promovemos, a juventude participa activamente
e nos processos que acompanhámos, de consciencialização política e de organização
comunitária de grupos de jovens, os resultados foram positivos, apesar de todas as
resistências encontradas ao nível da administração. Gostaria aqui de referir três destes
processos, que ilustram bem toda a dinâmica de consciencialização e participação,
seus reversos e obstáculos.
O primeiro caso reporta-se ao projecto da Brigada Jornalística – BJ. Em 2006 o OMUNGA
realizou um curso de técnicas de jornalismo e de vídeo-reportagem, tendo o número de
candidatos superado em muito o número de vagas disponíveis (300 candidatos para
apenas 11 vagas). A formação desenvolveu-se em torno de três vectores principais, no-
meadamente o contacto com documentários políticos e a forma de tratar o fenómeno e o
facto político, o conhecimento da legislação de enquadramento da actividade jornalística
e a capacitação para contactos directos com responsáveis governamentais e políticos.
Os primeiros trabalhos do grupo centraram-se nos jovens sem abrigo, em situação de
rua, suas estratégias de luta pela sobrevivência, seus medos, ambições e frustrações. À
medida que o curso e os trabalhos avançavam, o grupo foi progressivamente criando
e alargando a sua consciência política, muito fortalecida por via de debates e refle-
xões sobre as condições e causas da realidade vivida pelos jovens de rua. De acordo
com um levantamento prévio de informação, o grupo decidiu realizar um trabalho
de educação cívica sobre o processo eleitoral, tendo produzido um documentário
com cerca de 20 minutos, a que deu o título de “Angola Rumo ao Registo Eleitoral”,
com uma forte componente de preocupação/consciência política e de necessidade de
respeito pelos DH.
Para além do documentário, que depois de concluído poria fim ao curso, decidiram
constituir uma “Brigada Jornalística”, com o propósito de intervir em acções de educa-
ção cívica e de DH. Hoje, alguns deles desempenham funções de correspondentes para
um programa radiofónico da cidade de Benguela, com um editorial de abordagem de
temas relacionados com educação cívica e DH. Têm igualmente participado na maioria
das actividades do OMUNGA e de outras OSC, como por exemplo a facilitação da
214 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
dade nos novos locais, assim como formação profissional e colocação em postos de
trabalho sempre que possível.
Do processo negocial com as autoridades conseguiu-se a vinda ao Lobito de repre-
sentantes do governo central para discussão do assunto com os jovens e membros do
governo local. A participação dos representantes da CJT nas reuniões com o governo
constituiu uma vitória significativa, tratando-se de um reconhecimento implícito da-
quela estrutura por parte do governo e tendo, de igual modo, reforçado a auto-confiança
dos jovens. A intervenção da advocacia social tem o potencial de dar um contributo
acrescido para o processo de interpretação dos mecanismos político-institucionais de
tomada de decisão e de aprendizagem acerca de uma mais eficiente e eficaz utilização
dos serviços do sistema judicial.
Quanto ao cumprimento dos compromissos assumidos por parte do governo, aí será
uma outra questão a aferir no futuro, restando saber como reagirá a CJT em caso de
incumprimento total ou parcial, ou apoio insuficiente ao reassentamento e à auto-
construção, conforme tem acontecido com vários casos em Luanda4.
O terceiro caso — Kulango —, vai em parte congregar as dinâmicas dos casos anteriores.
Ocorre em 15-16 de Julho de 2007, consistindo na movimentação forçada de cidadãos
sem tecto da cidade do Lobito, seguida de assentamento, igualmente forçado, na zona do
Kulango, tendo a polícia nacional recorrido a diversas formas de violência para com os
cidadãos visados, que se encontram agora a viver em condições sub-humanas, incluindo
um grupo de mais de uma dezena de crianças abaixo dos 10 anos de idade.
Para além da comunidade visada, este caso despoletou a reacção da CJT, da BJ e do
Movimento de Rua (que também congrega jovens em situação de sem abrigo). A
intervenção do OMUNGA foi solicitada no sentido de facilitar a promoção de uma
campanha de defesa da comunidade deslocada para o Kulango, junto de outras OSC
nacionais e internacionais, assim como junto das instituições governamentais e judiciais
municipais, provinciais e nacionais.
Delineou-se uma estratégia conjunta, de denúncia e reacção junto das instituições do
Estado, assim como de divulgação do caso. Deste modo, a nível local os jovens da
comunidade elaboraram uma carta que apresentaram ao Procurador-Geral junto do
Tribunal Provincial do Lobito, onde denunciaram e protestaram contra a violência
recorrente de que são alvo, solicitando igualmente a intervenção da Procuradoria para
pôr fim a este quadro. Concederam várias entrevistas a diferentes órgãos de informação
sedeados na província e o OMUNGA procurou registrar todos os depoimentos (das
vítimas e das instituições do governo) e divulgá-los em DVD às mais variadas insti-
tuições nacionais e estrangeiras (governamentais e não governamentais), que foram
sendo regularmente informadas dos sucessivos desenvolvimentos por via de cartas,
correio electrónico e notas de imprensa.
Por outro lado, o OMUNGA proporcionou aos jovens deslocarem-se a Luanda e manterem
contactos directos com agências das Nações Unidas, como o Escritório de Direitos Huma-
nos e a UNICEF, com embaixadas, entre elas a dos EUA, assim como com várias OSC e
órgãos de comunicação social. A estratégia do OMUNGA e dos grupos de jovens procurou
4
Ver, por exemplo, relatório da Human Rights Watch e SOS Habitat, “Angola, ‘eles partiram as casas’. Desocupações
forçadas e insegurança da posse da terra para os pobres da cidade de Luanda”, Vol. 19, n.º 7 (A) (New York: HRW & SOS
Habitat, Maio 2007), http://hrw.org/reports/2007/angola0507
216 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
5
Processo 831/LB/07.
6
Ver a respeito deste processo geral, as declarações do director-geral da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda
Humanitária (UTCAH), Pedro Walipe Kalenga, em entrevista à Rádio Nacional de Angola a 10 de Julho de 2007
(Luanda, Angop, 10 de Julho de 2007).
José Patrocínio h A Juventude Angolana e a Participação Cívica e Política 217
No caso concreto do Kulango fizemos apelos fortes à solidariedade alargada dos po-
tenciais parceiros nacionais e estrangeiros, mas as respostas ficaram muito aquém do
expectável. A nível internacional, a UNICEF escreveu-nos a manifestar o seu apoio ao
OMUNGA e ao trabalho de defesa dos jovens deslocados para o Kulango, mas tratou-
-se de uma carta dirigida à instituição e não uma tomada pública, forte e assumida, de
posição. Do mesmo modo, esperávamos uma onda de solidariedade pública por parte
das OSC a trabalharem na área dos DH, mas também não aconteceu. Isto deixa-nos numa
posição de alguma fragilidade perante as ofensivas maiores que venham a seguir.
Por fim, penso que a falta de articulação da sociedade civil está igualmente relacionada
com a questão da incapacidade de afirmação das nossas organizações face aos nossos
parceiros externos — financiadores. Temos de admitir que as nossas organizações não
têm tanta liberdade de intervenção como por vezes gostamos de supor, não podendo
adaptar e ainda menos alterar os planos programáticos, devido aos compromissos
que se estabelecem com os doadores ou com determinados parceiros externos. Fi-
camos assim limitados, amarrados, às vontades alheias e aos programas de acção
pré-estabelecidos com os doadores, faltando-nos capacidade de argumentação e de
rejeição de modelos externos e de afirmação de ideias e perspectivas próprias, que
reflictam os anseios e as expectativas das populações com quem trabalhamos e em
função de quem existimos.
A dependência de parceiros externos nota-se igualmente ao nível da incapacidade de
adaptabilidade das estratégias das nossas organizações à realidade. A inflexibilidade
das estratégias de actuação, por vezes determinadas mais por parceiros e doutrinas
externas cujas agendas não têm em conta o nosso conhecimento do contexto e das
causas profundas que lhes estão na base, levam em muitos casos ao desfasamento e
arcaísmo das reacções e à incapacidade de agir sobre a realidade e de mudá-la.
A intervenção que estimula a cidadania e a participação política pública consciente,
deve ser liberta de planificações rígidas, porque as mudanças de contexto são repen-
tinas, bruscas e acentuadas, exigindo grande capacidade de reacção imediata.
Em suma, diria que para além desta falta de capacidade das OSC em articularem
posições a nível nacional e internacional de um modo eficiente e eficaz, parece-me
existir igualmente falta de vontade, por parte de interesses concretos do poder e do
sistema estabelecido, em suprimir vários obstáculos que impedem o desenvolvi-
mento da capacidade analítica, crítica, de intervenção e de participação democrática
na vida pública, por parte da população em geral e dos jovens em particular. O fraco
investimento na educação, as restrições à difusão livre de informação, o cerceamento
e constrangimento do espaço de actuação das OSC mais assertivas na defesa dos DH
e incomodativas para o poder estabelecido, impedem o efectivo aprofundamento
do processo de democratização.
2.1 - As eleições
Tendo por base a minha experiência pessoal e a da minha organização, julgo que no
contexto actual as OSC devem aproveitar o processo eleitoral a curto e médio prazo
como propulsores potenciais da mudança.
Acredito que as eleições, em si e por si só, não são a solução dos problemas de fundo,
mas devemos aproveitar as eleições como um instrumento, um passo, uma oportu-
nidade de pressionar para uma maior democratização, especialmente ao nível dos
obstáculos que referi no capítulo anterior — restrições à liberdade de difusão de
informação, fraco investimento na educação, cerceamento do espaço das OSC mais
assertivas na defesa dos DH, fraca capacidade de articulação entre OSC nacionais e
internacionais. Neste sentido, as OSC deverão tirar o máximo proveito deste instru-
mento, a curto e a médio prazo.
A curto prazo deveremos divulgar e explicar todo o processo eleitoral, formando e
educando em torno dos princípios que estão na base de processos de democratização
e do propósito da realização de eleições. Será igualmente uma oportunidade para
realçar as motivações, as preocupações, os interesses e os problemas das comunida-
des. É a altura ideal não só para explicar aos cidadãos o que é o processo eleitoral e
a importância da votação, de participar e de se envolver, como também de realçar os
220 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Desenvolvimento Humano
em Angola
Introdução
Paulo de Carvalho
Faculdade de Letras
e Ciências Sociais
S egundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvol-
vimento (PNUD 1997:12), o desenvolvimento humano é
definido como um “processo de alargamento das escolhas” da
da Universidade população, considerando-se três escolhas essenciais (quer indi-
Agostinho Neto, viduais, quer colectivas): a possibilidade de se poder viver de
Luanda, Angola forma saudável durante um período de tempo relativamente
longo; aceder ao conhecimento; aceder aos recursos necessá-
rios para se ter um nível de vida considerado satisfatório.
A opção por estas três escolhas tem razão de ser, pois o acesso
a elas abre várias outras oportunidades que conduzem a uma
qualidade de vida aceitável. Pelo contrário, havendo barreiras
no acesso a qualquer dessas três escolhas, vão-se gradual-
mente fechando outras oportunidades, até que se tornam
inacessíveis. Quando se aborda o acesso a bens socialmente
desejados, há igualmente que ter em conta o modo como
esse acesso se poderá desenvolver no futuro. Normalmente,
obstáculos e bloqueios no acesso a tais bens vão cristalizando
determinadas barreiras e círculos viciosos que se vão trans-
mitindo de geração em geração.
O desenvolvimento humano e o bem-estar estão interligados,
visto ambos fazerem parte de um processo que aumenta a
probabilidade de longevidade, com boa qualidade de vida.
No entanto, quando se fala de desenvolvimento humano
fala-se de muito mais do que o acesso à instrução, à assistên-
cia sanitária e a um nível de vida considerado condigno. O
desenvolvimento humano inclui a liberdade cultural (PNUD
2004: 1-12), a “liberdade política, económica e social, bem
como a criatividade, a produtividade, o respeito por si e
a garantia dos Direitos Humanos fundamentais” (PNUD
1998: 55).
A abordagem do desenvolvimento humano remete-nos ne-
cessariamente para a problemática sociológica das desigual-
dades sociais, para a temática das dinâmicas de fechamento
social e para as dinâmicas de exclusão e inclusão social1.
1
Sobre estas matérias, vide por exemplo: (Kingsley & Moore 1945), (Weber, 1946),
(Parsons, 1966), (Parkin, 1981 & 2000), (Slomczynski, 1989). Para o caso de Angola,
ver (Monteiro, 1973), (Carvalho, 1989, 2002, 2003a & 2004), (Jorge, 1998).
222 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
O texto que aqui apresento pretende discutir essencialmente estas desigualdades em Angola
e as diversas dinâmicas de fechamento e exclusão social que impedem o desenvolvimento
do país nas suas diversas vertentes, especialmente na sua dimensão mais importante — a
humana. Neste sentido, começo por caracterizar o país à luz do índice de desenvolvimento
humano, acrescentando uma dimensão da realidade não revelada pelo IDH, que consiste
na diferenciação social em função do meio geográfico e da proveniência sócio-cultural (ca-
pítulo 1). Numa segunda parte do texto abordo questões relacionadas com a distribuição da
pobreza, as suas tendências de evolução e aquelas que considero serem as suas principais
causas — a guerra civil, a forma como se executam as políticas públicas e as dinâmicas de
estratificação e fechamento social levadas a cabo pelas elites angolanas (capítulo 2).
1 - A Realidade de Angola Revelada pelo Índice de Desenvolvimento
Humano – IDH
O índice de desenvolvimento humano é um indicador de qualidade de vida. Não sendo
propriamente um índice de exclusão (ou de inclusão) social e apesar de não incluir em
si a grande diferenciação relacionada com cada um dos seus índices parciais, a verdade
é que se trata de um dos poucos indicadores de qualidade de vida dos angolanos a
que podemos ter acesso de modo minimamente fidedigno.
Como se pode verificar no gráfico 1, o valor do índice de desenvolvimento humano em
relação a Angola situou-se no intervalo 0,143 – 0,445, no período 1990-2004. Tratam-se
de valores bastante baixos, que colocam Angola nas vinte e cinco últimas posições à
escala mundial. No ano de 2004, o índice assumiu o valor de 0,439, o que colocava
Angola no 161.º lugar dentre 177 países do mundo.
Gráfico 1 - Índice de Desenvolvimento Humano, Angola, 1990-2004
Fonte: PNUD 1998, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006.
No ano de 2004 (ano a que se refere o último Relatório de Desenvolvimento Humano,
editado em 2006), era de somente 43,9% a probabilidade de um angolano viver 85 anos
Paulo de Carvalho h Desenvolvimento Humano em Angola 223
2
Quando aqui falamos de África, referimo-nos à África Sub-Sahariana.
3
Trata-se da melhor performance relativa de Angola (que coloca este país 32 posições acima da que ocupa no mundo
em relação ao desenvolvimento humano), o que não implica necessariamente uma boa qualidade de vida para os
angolanos. Aliás, começam ultimamente a apresentar-se reticências em relação à utilização do PIB como indicador
privilegiado de desenvolvimento, visto que ignora as relações extra-mercado da comunidade e famílias, não considera
a distribuição do rendimento e encobre tudo o que está além das trocas monetárias; ver a este respeito (Cobb et al.
1995), (Rowe & Silverstein 1999).
4
Apesar de este índice indicar uma deficiente aposta na distribuição do rendimento segundo o género, a verdade
é que ele coloca Angola ao lado dos Estados Unidos da América, Estónia e Federação Russa, havendo países como
a Bélgica, Canadá, Finlândia, França, Noruega e Suécia com piores performances.
5
Não há dados exactos acerca desta matéria, podendo apenas dizer-se que as estimativas da Organização Mundial
de Saúde colocam Angola no grupo de 25 países com mais baixo acesso a medicamentos essenciais.
224 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
malária atinge 63% das crianças menores de 5 anos, constituindo a 4.ª pior performance a
nível mundial6 e a tuberculose afecta 310 em cada 100.000 angolanos, quando a média
africana é de 540 e a média mundial é de 2297. Ainda que os números existentes referentes
à SIDA estejam abaixo da média em África (estima-se que cerca de 5,3% dos angolanos
com idade entre 15 e 49 anos tenham o vírus HIV, situando-se a média africana nos 6,9%
e a mundial nos 1,2%8), o crescimento dos últimos anos deve constituir preocupação
para se evitar uma escalada para os níveis médios africanos.
A educação é outra das áreas que merece destaque pela negativa, com uma taxa bruta
de escolarização de apenas 30%, quando a média africana é de 50% e a média mundial
de 67%9. A taxa de alfabetização de adultos (67,4%) situa-se ligeiramente acima da
média africana (63,3%), mas ainda assim é baixa se considerarmos o esforço que foi
feito a este nível nos primeiros anos de independência de Angola.
As deficiências a nível de saneamento afectam fortemente a população urbana, saben-
do-se que apenas 31% dos angolanos têm acesso a saneamento melhorado, quando
a média africana é de 37% e a média mundial de 59%. Além disso, apenas 53% dos
angolanos têm acesso a água tratada, apropriada para consumo humano, situando-se
a média africana nos 56% e a média mundial nos 83%.
Por fim, gostaria de realçar alguns dados referentes ao acesso à informação e aos meios
de comunicação individuais. Também aqui vemos a disparidade do caso angolano: há
apenas 6 telefones fixos por cada mil angolanos, quando a média africana ronda os 15
e a média mundial os 19010; e 48 telemóveis por mil pessoas, sendo a média africana de
77 e a média mundial de 27611. Em cada mil angolanos, apenas 11 têm acesso à internet,
quando em África esse número é de 19 e no mundo é de 138 por mil habitantes12.
Todos estes dados atestam a baixa qualidade de vida dos angolanos. Contudo, e
agravando de sobremaneira este cenário, há que referir um aspecto importante que
os dados globais apresentados não espelham: as fortes assimetrias que se registam no
país. Num outro trabalho, afirmei que Angola é a terra dos contrastes por excelência
(Carvalho 2003b) — é um dos países mais ricos do mundo se considerarmos a rique-
za do subsolo e dos mares, mas é um dos mais pobres do mundo, se considerarmos
as suas gentes e a sua condição de vida. Existem disparidades sócio-económicas em
função da diferenciação étnica (Kajibanga 1999 e 2000, Ngonda 1994) e da localização
geográfica, entre meio rural e urbano. Mesmo nas cidades existe contraste sociológico e
6
A malária é a doença que causa mais mortes em Angola (Van-Dúnem, 2003). Ao lado de Angola estão as Comores
e o Gana, estando em pior situação somente os Camarões, a República Centro-Africana e o Tajiquistão.
7
A este respeito, assinala-se em Angola uma diminuição da ordem dos 22%, de 2003 para 2004.
8
Até ao momento, parece que Angola não é dos países mais atingidos pelo vírus HIV e pela SIDA. Contudo, a
deficiente informação acerca da forma de contracção deste vírus e o facto de apenas 3,3% da população praticar sexo
seguro (PNUD 1998: 8) podem estar a provocar o rápido alastramento do vírus e da doença, fundamentalmente nos
subúrbios das cidades e no meio rural. A este respeito, tudo indica que a estimativa esteja a ser feita por defeito,
devido à ausência de diagnóstico em relação à sida nas mortes por malária, tuberculose e outras enfermidades
provocadas pela perda de imunidade que o HIV provoca.
9
No que respeita ao acesso à instrução, somente o Níger e o Djibuti têm pior performance que Angola.
10
Esta performance de Angola é bastante baixa, devendo inclusivamente assinalar-se um decréscimo em 14% no
número de linhas telefónicas fixas, no período 1990-2004.
11
Apesar de esta taxa ser ainda baixa em Angola, a verdade é que se registou um aumento da ordem dos 433%,
de 2002 para 2004. Está a fazer-se um grande investimento na expansão da telefonia móvel na Angola urbana,
descurando-se contudo a rede fixa.
12
Trata-se de outro sério investimento em Angola, já que o aumento do número de utilizadores de internet aumentou
em 279% em Angola, no período 2002-2004.
Paulo de Carvalho h Desenvolvimento Humano em Angola 225
13
Os dados mais recentes acerca da pobreza urbana em Angola datam exactamente de 2001, altura em que foi
realizado o (até agora) último inquérito de receitas e despesas dos agregados familiares. Prepara-se actualmente
novo inquérito, cujo início se prevê para o ano de 2008.
226 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
consideramos a forma de execução das políticas públicas, que não privilegia o combate
à pobreza e a inclusão social da maioria dos angolanos – pelo contrário, promovem a
reprodução da pobreza e da exclusão social; por fim, há que considerar as dinâmicas
de fechamento social levadas a cabo pelas elites angolanas (cf. Carvalho 2002, 2004).
A guerra civil promoveu a utilização de recursos que poderiam ser destinados ao de-
senvolvimento industrial e à promoção da inclusão social, tendo também provocado a
destruição de infra-estruturas, a minagem de campos de cultivo e a deslocação forçada
de pessoas em busca de segurança. As outras duas causas estruturais de pobreza e
exclusão social actuam de forma conjugada. As elites política e económica, que são
simultaneamente detentoras dos meios de produção, actuam (como descrevemos
acima) no sentido da concentração da maior fatia do rendimento num pequeno grupo
de pessoas, que inclui alguns anéis que lhes são satélites. Utilizam, pois, dinâmicas
de fechamento social, através da utilização do poder de que dispõem para restringir
o acesso aos bens sociais (Carvalho 2004; cf. Sango 2002).
Uma das formas de actuação das elites políticas e económicas é a privatização, em seu
benefício, de empresas e serviços públicos. Outra forma de actuação tem a ver com a
débil execução de políticas públicas tendentes à promoção da inclusão social, através
do acesso à instrução de qualidade e do fomento do emprego estável.
Terminada a guerra civil, começa-se a pensar na redução da pobreza por via de políticas
públicas que promovam a inclusão social e eliminem algumas das dinâmicas de fecha-
mento social e estratificação elitista da sociedade angolana. Mas isso tem necessariamente
de passar pelo apoio à actividade agrícola em pequena e média escala e pelo fomento
da indústria não extractiva, que promove emprego estável em grande escala.
Um aspecto a destacar em relação aos efeitos da pobreza tem a ver com a dimensão
política da inclusão social. A pobreza funciona como factor inibidor da inclusão nessa
dimensão, pois se por um lado dificulta o exercício dos direitos civis e dos direitos
sociais, por outro inibe a participação no exercício dos direitos políticos. Devido à
situação de pobreza e exclusão social e devido à ausência de expectativas em relação
à possibilidade de ultrapassar proximamente essa situação, o pobre angolano pode
simplesmente vir a optar por se abster do exercício do direito de voto ou pode “ven-
der” o seu voto a quem melhor pague por ele. A situação de pobreza endémica é, pois,
inibidora do exercício dos direitos de cidadania.
Para além dos dados acima referidos acerca da pobreza, é importante adiantar que é
bastante grande a percepção subjectiva da pobreza. Uma pesquisa feita em Novem-
bro de 2003 pelo autor14, na cidade de Luanda, revela que três quartos dos habitantes
adultos da cidade de Luanda (com idade a partir dos 15 anos) considera que a maior
parte dos angolanos vive abaixo da linha de pobreza, enquanto que somente 16% estão
convencidos que a pobreza atinge menos de metade dos angolanos (ver gráfico 4).
De entre os habitantes de Luanda inquiridos, apenas 27% se declaram acima da linha
de pobreza, enquanto a maioria (59%) é constituída por quantos se enquadram a si
próprios no grupo de pobres (gráfico 5). A um baixo volume de rendimentos, à residên-
cia em bairros suburbanos e a um menor grau de instrução académica está associado
o aumento da percepção subjectiva da pobreza.
14
Os resultados desta pesquisa estão descritos em (Carvalho, 2004).
228 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Estes dados vão ao encontro daqueles que são revelados pelo Pew Research Center for
the People and the Press, segundo os quais, no ano de 2002, 86% dos angolanos declara-
ram não possuir recursos para compra dos alimentos indispensáveis à sobrevivência
condigna, enquanto 85% declararam não possuir recursos financeiros para compra de
medicamentos essenciais (Pew, 2003).
Segundo os habitantes de Luanda inquiridos em Novembro de 2003 pelo autor, os gru-
pos mais vulneráveis à pobreza são as crianças de rua, deficientes físicos, deslocados
e desempregados, para além dos agricultores tradicionais (ver gráfico 6).
Gráfico 6 - Grupos mais vulneráveis à pobreza
Conclusão
Como vimos, em 2001 estimava-se que mais de dois terços dos angolanos se encontra-
vam em situação de pobreza. Tudo indica que com o final da guerra em 2002 o índice
de pobreza tenha começado a diminuir. Se tomarmos em consideração a estrutura
de consumo urbano, encontramos claramente as características de um país pobre e
pouco desenvolvido, com elevada concentração das despesas no consumo alimentar,
praticamente sem possibilidade de recreação e sem hipótese de poupança.
A maioria dos angolanos encontra-se socialmente excluída pela sua condição de po-
breza. A qualidade de vida do angolano médio é baixa, estando a riqueza funda-
mentalmente concentrada nas elites. São estas elites minoritárias que beneficiam do
desenvolvimento, sendo somente estes os membros de pleno direito da sociedade,
que se opõem aos socialmente excluídos, ou seja, àqueles que são “declarados vivos
em regime de morte civil” (Santos 1998: 7).
O angolano médio vive para o dia-a-dia, sem condições para pensar no futuro. Vive
pensando na sua sobrevivência diária e sem hipótese de pensar em investir no seu
bem-estar e na mobilidade social. Sendo baixo o acesso à instrução, à assistência sa-
nitária e ao saneamento básico, é grande a probabilidade de reprodução da pobreza
e de exclusão social para as gerações seguintes.
230 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Sendo uma das dimensões de exclusão social, a pobreza constitui poderoso inibidor
do desenvolvimento do país. É preciso apostar no emprego para todos, no aumento
do acesso à educação, à saúde, ao saneamento e a uma mais justa distribuição do ren-
dimento, para que se pense em desenvolver o país, eliminando gradualmente as fortes
assimetrias existentes entre as várias regiões e estratos da população. Só assim estarão
criadas as condições para se começar a pensar na consolidação da nação angolana.
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Capítulo IV
O Enquadramento Internacional
Textos
i
235
Cooperação Económica
Internacional, Modelos
de Desenvolvimento e Sociedade
Civil em África
Introdução
Lopo Fortunato
Ferreira do
Nascimento
M ais de meio século depois das primeiras independên-
cias, a situação económica da África Sub-Sahariana
continua a colocá-la entre as regiões mais subdesenvolvidas e
Centro pobres do planeta. Muitos países apresentam um PIB inferior
de Estudos Sociais ao dos anos sessenta do século XX, resultado evidente das prá-
e Desenvolvimento,
ticas governativas, mas igualmente do fracasso dos modelos
Luanda, Angola
de desenvolvimento e das políticas de cooperação externa.
Este texto inicia com uma análise daquilo que tem sido o
caminho percorrido em África em termos de modelos de
desenvolvimento e cooperação externa e as conclusões que
daí podemos retirar (capítulo 1); prossegue com a discus-
são sobre as novas relações económicas internacionais de
África, nomeadamente com os países asiáticos e a alteração
daqui decorrente para as tradicionais relações do continente
africano com os EUA e a Europa (capítulo 2). O capítulo 3
aborda a problemática da nova cooperação asiática dita “sem
condicionalismos” e o seu possível impacto a longo prazo,
nomeadamente ao nível do desenvolvimento da capacidade
crítica e da sociedade civil para a construção da democracia
e efectiva erradicação das várias formas de pobreza. O texto
conclui com a apresentação de novas perspectivas de desen-
volvimento para África, passando por uma nova postura
regional e de reformulação das suas relações com o resto do
mundo, havendo necessidade de uma perspectiva global
para se abordar este problema (capítulo 4).
crescimento (cerca de 5,5% ao ano desde 2004) não têm sido suficientes para reverterem
um estado de degradação social permanente, responsável pelos elevados índices de
indigência material e moral.
Recentes vagas de pensamento académico têm vindo a retomar o tema da responsa-
bilidade pelo não desenvolvimento africano, defendendo basicamente que a África
tem sido vítima de si própria, tanto ou mais que da sua história. Entre os factores
normalmente apontados para explicar o fosso que se alarga entre a África e o resto
do mundo encontram-se: o autoritarismo, a burocracia e a centralização herdadas do
colonialismo; o neo-patrimonialismo do Estado, o clientelismo étnico, as práticas de
lucro e de especulação das classes detentoras do poder político e económico, que re-
sultam em corrupção e endividamentos insuportáveis; os bloqueios sócio-culturais e
de uma racionalidade micro-nacional; as práticas ostentatórias de riqueza e a reduzida
propensão à poupança e ao investimento interno.
Constata-se que depois de todos estes anos de independência política, a África Sub-
-Sahariana não conseguiu definir e aplicar um modelo próprio de desenvolvimento
económico. Culpa dos governos africanos e das suas elites, sem dúvida. No entanto, na
elaboração das estratégias económicas africanas e no seu desempenho, assumem um
peso relevante tanto as escolhas e os padrões definidos durante a colonização, como
os modelos que de forma mais ou menos explícita o Norte “exportou” para África no
contexto da complexa geo-estratégia da “guerra-fria” (seja o chamado modelo Socia-
lista, seja o chamado modelo liberal capitalista), assim como as subsequentes políticas
de cooperação internacional e da chamada ajuda ao desenvolvimento.
A dominação colonial europeia teve efeitos duradouros: o padrão de especialização
produtiva ainda hoje se mantém. Trata-se de uma especialização regressiva em produ-
tos complementares aos das ex-metrópoles colonizadoras, o que tem constituído, sem
sombra de dúvida, um freio à revolução industrial dos países africanos. Tal como no
passado, ainda hoje a exploração dos recursos naturais africanos é feita de acordo com
as necessidades de inputs das economias europeias e ocidentais em geral. Por outro
lado, os modelos de desenvolvimento aplicados em África desde os finais da década
de 1950 foram-no sem qualquer atenção à especificidade sócio-cultural dos países em
questão e sem levar em conta a necessidade de alterar as estruturas produtivas daque-
les países para as adaptar às necessidades das populações e das economias internas,
em vez de as manter extrovertidas para as necessidades dos novos aliados (de um ou
outro bloco dos contendores da “guerra-fria”).
Ao nível das diversas linhas estratégicas da política de cooperação internacional, verifi-
camos que estas nunca conseguiram compreender os verdadeiros problemas africanos.
Mesmo considerando a Europa e as antigas potências coloniais com vários séculos
de colonização, podemos verificar que os seus programas de cooperação sempre se
estabeleceram à luz do que na Europa se entende serem as necessidades dos africanos.
Do lado da América do Norte os programas são mais assumidamente desenhados em
função dos seus interesses próprios, económicos e políticos. Mas regra geral, diversos
condicionalismos foram impostos tendo em vista objectivos pré-estabelecidos pelos
próprios autores desses projectos, que usualmente alimentam e são alimentados pelo
que se considera ser o mais adequado para os africanos nas diferentes épocas histó-
ricas e de acordo com o pensamento “desenvolvimentista” dominante no Norte (no
Ocidente e a Leste, quando ainda existia bloco de Leste).
Lopo Fortunato Ferreira do Nascimento i Cooperação Económica, Desenvolvimento e Sociedade Civil 237
melhores formas para a sua aplicação. De igual modo, os prazos de aplicação dos pro-
gramas são essencialmente estabelecidos pelos doadores e suas agências governamentais
e não governamentais, sendo normalmente feita a opção pelo curto-médio prazo que
cria poucas possibilidades de sustentabilidade dos projectos, esvaindo-se ao ritmo das
modas internacionais do desenvolvimento. A APD deveria ser encarada predominante-
mente na óptica da constituição de fundos estruturais para o desenvolvimento, capazes
de estruturarem sectores decisivos (como o da valorização dos recursos humanos, o do
desenvolvimento tecnológico e o das infra-estruturas e redes de comunicação) para que
se pudesse atingir um desenvolvimento sustentável das economias africanas.
Por fim, mas não menos importante, temos a questão dos condicionalismos externos
que há várias décadas são impostos aos países receptores da ajuda e que, como referido,
também eles vão variando ao longo do tempo em função das diferentes conjunturas
internacionais e alterações da geo-política e da geo-estratégia dos recursos naturais.
Debruçar-me-ei aqui sobre o mais recente dos condicionalismos, em favor da boa
governação, transparência, Direitos Humanos e apoio a uma maior participação da
sociedade civil nas questões da gestão da coisa pública. Implícito a este condiciona-
lismo está a ideia de que um determinado tipo de governação democrática que inclua
aquelas características promove o desenvolvimento económico e reduz a pobreza num
contexto de paz social. Aqui começam alguns dos problemas a que assistimos ao nível
dos condicionalismos desde o início das transições políticas e económicas em África,
depois da queda do muro de Berlim e do fim do bloco de Leste, com a falência dos
sistemas políticos de carácter Socialista.
Depois da vaga neo-liberal dos anos oitenta, quando prevaleceram essencialmente os
programas de estabilização e ajustamento estrutural desprovidos de preocupações
sociais, a imposição de condições de carácter mais “sócio-político” associadas ao mo-
delo de governação de tipo democrático-ocidental foi-se afirmando com cada vez mais
força ao longo dos anos noventa por parte dos parceiros ocidentais. Quando parecia
que efectivamente a maioria dos Estados africanos se tinha de vergar à nova onda de
exigências, surgem “novos” parceiros internacionais ditos emergentes — essencial-
mente asiáticos (mas também incluindo economias como o Brasil) — que seduzidos
pelos recursos e matérias-primas africanas e pressionados pelas suas próprias neces-
sidades de crescimento, apresentam-se desprovidos de condicionalismos e dispostos
a oferecer o mesmo tipo de apoio (por vezes até em melhores condições financeiras)
que o Ocidente.
3
Os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão, com taxas de crescimento económico mais baixas, terão os
respectivos PIB multiplicados apenas por 5.
Lopo Fortunato Ferreira do Nascimento i Cooperação Económica, Desenvolvimento e Sociedade Civil 239
De 2006 em diante, o aspecto de maior destaque para muitas das economias africa-
nas tem sido o fortíssimo crescimento da procura de produtos energéticos por parte
da China e da Índia. As suas necessidades são imensas em petróleo, gás e minerais
diversos, tendo reflexo no aumento dos preços nas principais praças comerciais do
mundo, de que o petróleo tem sido o exemplo mais visível4. Este movimento de alta
dos preços das basic commodities teve efeitos contraditórios nas economias africanas.
Enquanto aquelas que produzem essas commodities viram as suas receitas aumentar
em largas dezenas de milhões de dólares, as restantes viram-se a braços com custos
mais elevados de produção por via do aumento dos custos energéticos, redução de
reservas cambiais e aumento dos preços internos — inflação.
Estima-se que o “factor asiático” possa ter influenciado a taxa de crescimento econó-
mico de África (que em 2006 foi de 5,8%) em um ponto percentual, especialmente do
lado do incremento das exportações africanas de produtos de base e energéticos para
os mercados asiáticos, o que é significativo5. Do outro lado desta balança comercial
estão os ganhos asiáticos, representados pelo incremento das suas exportações de bens
manufacturados baratos para a maior parte dos países africanos, o que tem provocado
a falência de muitas empresas africanas (que já antes lutavam com inúmeras dificul-
dades no seio de uma indústria pouco competitiva) e um fenómeno importante de
desvio do comércio da Europa e América do Norte (tradicionais fornecedores de bens
transformados) para os países do sudeste da Ásia. A China apresenta-se claramente
como líder deste “factor asiático”, dominando o comércio com África. Em 2005, sete-
centas empresas chinesas estavam em grande actividade em quarenta e nove países
do continente africano. Relativamente aos fluxos financeiros para África é verdade
que mostraram uma tendência de variação francamente favorável para pagamento
das importações de commodities, mas como é do conhecimento geral e por razões acima
referidas, nem sempre esse fluxo financeiro se traduz em investimento produtivo nos
países africanos.
É neste contexto que deve ser entendido o interesse da China em África e é igualmen-
te neste panorama que devemos compreender a nova cooperação de vários países
africanos com a República Popular da China. O bloco África-Ásia está de volta, não
como nos tempos da Conferência de Bandung de Abril de 1955 — a grande frente ideo-
lógica contra o imperialismo político, económico e militar do Ocidente e a favor das
independências africanas e asiáticas —, mas agora baseado numa parceria comercial
estratégica, tal como foi acordado na nova Conferência de Bandung em Abril de 2005,
exactamente 50 anos depois da primeira.
Esta nova Bandung, agora comercial, para alguns apresenta sinais duma frente anti-
-colonial económica contra o Ocidente desenvolvido, com tradução concreta num
novo tipo de cooperação técnica e de ajuda pública ao desenvolvimento de África.
Trata-se de uma ajuda sem condicionalismos de outra ordem que não a da própria
4
Entre 2000 e 2003, a China respondeu por um incremento de 100% na procura mundial de cobre, 99% de níquel, 95%
de aço (daí o seu interesse na siderurgia e no ferro angolano) e 76% de alumínio. Em 1993, a China era compradora
de menos de 10% da oferta total mundial daqueles metais de base e em 2003 a sua procura representou mais de
20%, ou seja, uma duplicação em 10 anos. Em 2005, as trocas comerciais África-China ascenderam a quase 38,6 mil
milhões de dólares, 39% mais do que em 2004.
5
Em Angola, as estimativas da contribuição do “factor chinês” para o crescimento económico de 20,6% registado em
2005 podem ser divididas do modo seguinte: as exportações de petróleo para a China representaram, aproximadamente,
8,4 pontos percentuais (as exportações totais de petróleo participaram com 19 pontos percentuais para o crescimento
do PIB), enquanto que no sector das Obras Públicas os financiamentos chineses incrementaram em apenas 136 milhões
de dólares o Valor Adicionado Nacional, dadas as restrições impostas ao seu uso.
240 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
lógica comercial, mas em condições de mercado mais favoráveis do que aquelas que
se encontram no Ocidente e ao nível das organizações económicas e monetárias in-
ternacionais. Para África, a China já não é a dos camaradas, mas sim a dos homens de
negócios, que se apresentam com contrapartidas bastante mais favoráveis do que os do
Ocidente e não mascaradas sob a capa da suposta caridade para com os “pobrezinhos”
africanos. Tratam-se de contrapartidas económicas e políticas directas, negociadas num
espírito comercial, imbuídas de um novo conceito de ajuda ao desenvolvimento — a
ajuda-negócio.
A penetração da China em África constitui, para todos os efeitos, uma autêntica onda
de choque não só a nível do continente, mas também da economia mundial. A forte
aproximação política e económica entre a África e a Ásia produz necessariamente uma
alteração do relacionamento de África com a Europa e os Estados Unidos. Começa a
questionar-se se o tão falado confronto entre civilizações, entre Ásia e Ocidente, não
terá África como cenário. A situação económica dos EUA tem-se vindo a agravar ao
longo da última década (com constantes recordes dos deficits gémeos — orçamental
e da balança comercial —, com a desvalorização continuada do dólar a par da perda
de competitividade internacional em favor da Europa e das economias asiáticas e
com o esforço de guerra no Afeganistão e no Iraque) impedindo-os de responder de
forma mais equilibrada e competitiva às ofertas financeiras do gigante asiático chinês,
que também tem uma estratégia de dominação, económica e muito provavelmente
política, mundial.
Receando ver reduzida a sua tradicional margem de actuação no continente, Europa
e EUA têm-se desdobrado numa série de iniciativas em África. Desde os Acordos de
Cotonou, passando pela iniciativa de Tony Blair para ajuda a África, incluindo os Ob-
jectivos de Desenvolvimento do Milénio, passando pelo African Growth and Opportunity
Act – AGOA americano, e acabando na proposta dos Ministros das Finanças do G-7
de ajudas financeiras substanciais aos governos africanos não corruptos, o Ocidente
desenvolvido está preocupado com o “factor chinês” em África, receando o que Má-
rio Murteira chama de “desocidentalização do crescimento económico”6. Todas estas
alterações introduzidas pelo “factor asiático” vão obrigar a uma revisão profunda das
estratégias e políticas de cooperação tradicionais. Certamente, uma nova geografia da
cooperação e da ajuda internacional está em construção.
3 – África e a Cooperação Asiática “sem condicionalismos” vs
Sociedade Civil
No cenário descrito no capítulo anterior, as questões importantes que se colocam
consistem em saber até quando a China, a Índia e outras economias emergentes vão
necessitar de matérias-primas e produtos energéticos de África? Será que não existirão
limites ao seu crescimento? E a médio e longo prazo que custos poderá ter este novo
tipo de parceria “incondicional” para o desenvolvimento humano e a efectiva redução
da pobreza em África?
O modelo asiático de ajuda-negócio “sem condicionalismos”, acaba por transportar
igualmente um modelo de desenvolvimento característico da Ásia e que encerra um
conceito diferente do papel do Estado na promoção do desenvolvimento económico
e dos negócios: o Estado desenvolvimentista autoritário. Este modelo acaba por ser
6
Mário Murteira (2003), A Globalização, Quimera, p. 105, 124.
Lopo Fortunato Ferreira do Nascimento i Cooperação Económica, Desenvolvimento e Sociedade Civil 241
bastante apelativo para muitos países africanos que também têm uma grande tradi-
ção de autoritarismo; deste modo pensam poder aliar o seu habitual autoritarismo às
exigências universais por crescimento económico, perpetuando o status quo político
num novo contexto económico que, pelo menos em parte, reduza a pobreza. O controlo
do poder político e económico manter-se-ia nas mãos dos habituais detentores desse
poder, mas de uma forma mais sólida e socialmente estável, criando um pouco mais de
riqueza para melhor enfrentar as usuais críticas internacionais que gostam de repisar
a imagem dos regimes africanos como embebidos na corrupção egoísta e gananciosa
das elites que vivem na opulência a par da população miserável.
Do ponto de vista de muitos líderes africanos, o “Estado desenvolvimentista autori-
tário” ajudaria a resolver muitos dos seus habituais problemas. O modelo chinês de
“um país dois sistemas”, que mistura negócios com imobilismo político faria o sonho
de muitos autocratas em África. A ausência de oposição efectiva e de sociedade civil
seria bastante reconfortante para muitos regimes africanos; a possibilidade de criar
maiores resistências e defesas contra as tentativas constantes de “ingerência” e crítica
do Ocidente também seria, desse ponto de vista, bem vinda.
Contra o condicionalismo ocidental por maior transparência, boa governação, ac-
countability e participação da sociedade civil como condições para o desenvolvimento
económico, os defensores do “modelo asiático” contrapõem com o argumento de que
não se pode afirmar que o desenvolvimento económico tenha por pressuposto aquelas
condições, uma vez que historicamente tal não aconteceu na Ásia e nem sequer no
Ocidente. Aquelas características derivaram, no Ocidente, do próprio desenvolvimento
económico e não foram pré-condições para o crescimento. A democracia multipartidária
não é pré-condição do crescimento económico, dirão.
Os argumentos em favor do “Estado desenvolvimentista autoritário” considerarão
que para as economias menos avançadas, no actual contexto da economia mundial e
das regras dominantes a nível do comércio internacional, somente uma política gizada
centralmente com várias medidas autoritárias e impositivas, acompanhadas de certo
proteccionismo, poderão equilibrar a desvantagem existente destas economias em
relação às mais avançadas. Numa tal fase, a divisão política e a excessiva liberdade
e participação alargada nas políticas públicas, características dos modelos políticos
ocidentais, criariam a divisão, a fragmentação interna, a indecisão e em última análise
a anarquia paralisante e a estagnação económica. No entanto, este tipo de modelo mais
autoritário implica (o que nem sempre é referido) uma liderança com forte consciên-
cia pública, com uma estratégia de desenvolvimento clara, com uma hierarquia de
objectivos bem definida e forte sentido de Estado, ou seja, alguma espécie governação
autoritária “iluminada” de conhecimento técnico-científico, vontade férrea de fazer
crescer a economia e espírito pátrio. Como todos sabemos, muitas destas características
não estão presentes na maioria dos regimes africanos e quando alguma “iluminação”
que existe se apaga só restam os aspectos mais negativos da fórmula — o autoritarismo
repressivo e opressor.
A questão está em compreender que tipo de sociedade se quer construir e de se ter a
noção de que o contexto histórico-social do take off das economias ocidentais e asiáticas
foi diferente do contexto actual e, especialmente, do contexto político-económico e
background histórico dos países africanos. Existe um enorme deficit em termos de edu-
cação e conhecimento técnico-científico na maioria dos países africanos, que não só têm
investido muito pouco em educação como também têm assistido a uma significativa
242 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
fuga de cérebros para o Ocidente. Para além disto temos de reconhecer a longa tradição
de fraca consciência pública, e má gestão do erário público e frágil sentimento pátrio.
Por outro lado, também não nos devemos esquecer que outras chamadas vanguardas
autoritárias iluminadas (do bloco de Leste e da União Soviética em particular) con-
seguiram, no início, resultados económicos interessantes em termos de crescimento a
curto e médio prazo, mas acabaram por conduzir à falência no longo prazo, sobrando
o autoritarismo e a repressão.
O contexto actual e histórico do continente africano apresenta pois algumas particula-
ridades, que têm de ser tidas em conta quando se reflecte sobre a questão do modelo
de desenvolvimento a seguir, tendo-se a plena consciência de que a atracção africana
pelo chamado modelo asiático encerra objectivos que estão mais relacionados com
a necessidade de manutenção do status quo e do poder político-económico, face às
constantes críticas e investidas do Ocidente, do que propriamente com a vontade de
implementar um projecto nacional de desenvolvimento.
Neste sentido, a aposta na sociedade civil poderá ser um importantíssimo investimento
na capacidade de, a longo prazo, criar uma sociedade mais justa e atenta aos problemas
do desenvolvimento, pensando na governação, numa estratégia de desenvolvimento
nacional e na necessidade de fiscalizar a gestão dos recursos públicos, mais do que
propriamente esperar por uma “renovada vanguarda iluminada” mantendo os mes-
mos, ou também eles “renovados”, mecanismos repressivos. Sabendo-se das inúmeras
ineficiências e ineficácias da oposição partidária em África, as chamadas organizações
da sociedade civil poderão desempenhar o papel de alguma reserva moral crítica,
conquanto mantenham a sua relativa independência e integridade de objectivos e
princípios na representação dos mais carenciados.
Assim, as “novas” (também elas renovadas) alianças com a Ásia, supostamente “in-
condicionais”, apesar de muito atractivas no curto e médio prazo para muitos regimes
autoritários e autocráticos africanos, poderão ter custos muito elevados a longo prazo. Na
minha perspectiva, no actual contexto regional africano, depois de tantos processos menos
conseguidos é hora de perceber que todos os indivíduos são poucos para erguer os seus
respectivos países, ninguém é dispensável numa união de esforços para tão gigantesca
tarefa de acabar com a pobreza e criar riqueza, criar com vontade de mostrar que em Áfri-
ca há homens e mulheres capazes e que se preocupam com o desenvolvimento dos seus
países e do seu continente. É centrados neste objectivo que devemos refundar a velha frase
Africa must unite do grande visionário e estadista africano Kwame N’Kruma. Uma união
não só das populações na participação e na batalha pelo seu direito ao desenvolvimento,
mas também dos Estados e dos seus governos na criação de condições estruturais para
o desenvolvimento, condições não só materiais (infra-estruturas), mas também de forte
investimento nos recursos humanos (um investimento que ficou suspenso logo após os
primeiros anos de políticas sociais do pós-independências).
Introdução
David Sogge,
Bob van der Winden
&
O s autores empregam um modelo teórico, baseado prin-
cipalmente no conceito de esfera pública de Habermas,
que encara a sociedade civil como um espaço, logo domínio
René Roemersma2 civil, e não como um conjunto de organizações de actores.
Embora esta abordagem seja cada vez mais comum no dis-
curso teórico, na prática diária de apoio ao processo ango-
lano, a maioria dos doadores ainda está presa à abordagem
de “actores”. Os domínios civis são inseridos numa esfera
maior, a arena. Aqui, a abordagem de domínios empresta-se
a uma análise de poder. Este modelo de duas esferas é assim
usado para tentar analisar alguns dos constrangimentos e
possibilidades do desenvolvimento político e a perspectiva
de governação responsável em Angola.
Concluímos que o domínio civil na Angola de hoje está
fortemente constrangido. Os seus membros formais, ONG
frequentemente igualadas a “sociedade civil”, carecem da
eficácia que os doadores e outros organismos internacionais
dizem que elas querem. Na base destes constrangimentos
encontra-se um equilíbrio de forças — económicas, políticas
e militares —, numa “arena pública” limitada e não transpa-
rente, fortemente influenciadas pela geopolítica.
Assim, defendemos que as agências internacionais de de-
senvolvimento, actualmente fixadas em estratégias com base
em projectos (incluindo apoio a ONG como veículos para a
prestação de serviços de alívio e de “desenvolvimento” e
para a advocacia), deviam dar muito mais prioridade ao alar-
gamento e protecção dos domínios públicos e à expansão e
transparência da arena pública. O poder civil e uma mudança
no equilíbrio de forças na arena é um objectivo importante,
1
Texto traduzido do inglês original por Mónica Rafael Simões.
2
David Sogge – analista independente sobre cooperação para o desenvolvimento;
Bob van der Winden – consultor de cooperação internacional, ex-Director do
Netherlands Institute for Southern Africa; René Roemersma – coordenador da
Fundação Worldcom. Este texto é baseado num trabalho mais extenso intitulado,
Civil Domains in African Settings: Some Issues, by David Sogge (2004), Hivos, e na
tese de mestrado de Bob van der Winden intitulada Do not beat a drum with an
axe (2004).
246 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
1 - Domínios Civis
Qual o grau de aproximação em que a ideia de sociedade civil corresponde às formas
como os próprios africanos organizam a sua vida associativa e política? De que modo
funcionou no passado? Poderá promover uma cidadania forte no futuro? Em alguns
momentos e casos, a resposta a estas questões tem sido afirmativa. Quando os africa-
nos se puderam organizar para transformar a ordem política — sendo um exemplo
central o fim do regime minoritário na África do Sul — os direitos e a auto-estima
colectiva avançaram. A política consensual do modelo convencional de “sociedade
civil” é difícil de detectar na história de África. É necessário mais realismo. O conceito
de espaço público, resultante do trabalho sobre as bases da democracia do filósofo
alemão Jürgen Habermas,5 permite-nos não só analisar os actores e questões em jogo,
mas também prestar atenção à história do discurso nesse espaço, que especificamente é
muito importante num contexto africano com um passado autoritário, de colonialismo
e frequentemente marxismo-leninismo nos anos anteriores.
Daí a nossa preferência por outra concepção deste espaço público, que denomina-
mos domínio civil: uma área ou espaço social separado do Estado, laços familiares e
empresas com vista ao lucro, em que as pessoas se associam voluntariamente para
3
Ver Howell, J. and J. Pearce (2001), Civil Society & Development. A Critical Exploration. London: Lynne Rienner.
4
Ver por exemplo: Langohr, V. (2004), “Too Much Civil Society, Too Little Politics”, Comparative Politics, 36(2), pp.
181-200.
5
Habermas, J. (1989), The structural transformation of the Public sphere. Cambridge, Mass.
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 247
6
Bayart, Jean-Francois (1999), “Africa in the world: a history of extraversion”, African Affairs, 99(395).
7
Tese de Doutoramento (2003) bem como: Comerford, M. (2005), The Peaceful Face of Angola. Luanda, page xxiii. Ver
também: Monga, C. (1997), “Eight problems with African Politics”, Journal of Democracy, 9:3, pp. 156-170, citado em
Comerford (2005) e Habermas, J. (1989), The structural transformation of the Public sphere. Cambridge, Mass.
248 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
A arena
O modelo da arena dá-nos mais possibilidades de analisar as relações de poder intrín-
secas nas lutas diárias. As relações de poder dentro das diferentes organizações figuram
no modelo da arena. Aqui as organizações são vistas como sistemas semi-abertos que
interagem com outras organizações no contexto, mas que são ao mesmo tempo influen-
ciadas por ele, de forma diferente consoante os diferentes níveis nas organizações.
As noções convencionais de sociedade civil não chamam a atenção para isto. Vamos dar
um exemplo. Uma organização não governamental grande em Angola é dependente
de doadores internacionais. Ao mesmo tempo, opera na realidade política angolana
em que é dependente do governo angolano e enfrenta desafios adicionais colocados
pelos seus beneficiários, no campo em que as coisas estão realmente a acontecer. Mas,
em todas estas três arenas de actuação os membros da organização que actuam em seu
nome são diferentes. Embora o conjunto da organização seja afectado pelas decisões
dos seus doadores, estas decisões são tomadas principalmente ao nível dos directo-
res e dos gestores: são julgados principalmente com base nas necessidades dos seus
doadores que estão no estrangeiro e são influenciados por outras realidades políticas
que não a angolana, enquanto os funcionários de terreno da organização lidam com as
necessidades reais das pessoas. A organização é (bem como todos os outros na arena)
um sistema semi-aberto.
O seu funcionamento interno pode ser descrito como uma arena, encaixada nas arenas
da realidade política em Angola, mas ao mesmo tempo na da assistência internacional
ao desenvolvimento que, por sua vez, está de novo encaixada nas relações internacio-
nais globais (e.g. EUA-Europa-África-China). Este complexo “encaixe” de arenas9 é uma
parte importante do modelo analítico. A pressão internacional não pode ser omitida
quando se analisa Angola. Esta pressão é exercida sobre muitos níveis. Ao mesmo
tempo, a organização é um sistema semi-aberto, no sentido em que a cultura dos fun-
cionários relacionados com o programa dentro da organização está mais ajustada aos
beneficiários do que a dos gestores e directores relacionados com o governo angolano
ou o contexto internacional, enquanto a organização como um todo se relaciona mais
com os beneficiários do que com o próprio governo de Angola. Em simultâneo, todas
as partes envolvidas têm uma relação frágil, baseada na resolução de conflitos e na
negociação, e esta relação reflecte-se também dentro da organização.
Assim, na arena interna da organização, diferentes jogadores confrontam-se e podem
tornar-se interdependentes.10 Estes não estão na “arena pública”. Mas não tomá-los
8
Verweel, Paul (2002), Bewogen en gewogen: the power and weakness of vision and division, Lecture for Forum, Utrecht,
The Netherlands.
9
Antonissen, Anton & Boessenkool, Jan (1998), Betekenissen van besturen. Utrecht: ISOR, page 208.
10
Verweel, Paul (2000), Betekenisgeving in organisatiestudies, Inaugural lecture, University of Utrecht
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 249
em consideração na análise iria deixar passar muitas coisas que conduzem as relações
na “arena pública” e por isso as complexas jogadas de poder que estão em curso. Isto
é também claro no caso com os media, partidos políticos, etc. Assim, não é suficiente
analisar “a” organização: a análise deve ser mais profunda e mais envolvente.
É na arena pública que se travam as batalhas (frias ou quentes) entre os vários jogadores
e poderes, resultando no final em mais, ou menos, democracia.
Richard Heeks (1999), The Tyranny of Participation in Information Systems: Learning from Development Projects. IDPM,
11
University of Manchester.
250 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
prontidão para pagar impostos e salários declinou. O sector público perdeu qualquer
capacidade de resposta que possa ter tido. O “contrato social” entre os Estados e os
cidadãos perdeu todo o significado.
Os doadores e os que concedem empréstimos agravaram a decadência dos sectores
públicos africanos, simplesmente por escolherem passar por cima deles, ignorando-os.
De modo crescente, canalizaram a ajuda através de unidades especiais de projectos,
empresas de consultoria e organizações sem fins lucrativos. As ONG tornaram-se veí-
culos de ajuda de eleição e a sua oferta, tanto no Norte como no Sul, multiplicou-se
em resposta à procura dos doadores. As ilhas organizacionais daí resultantes podiam,
durante algum tempo, fornecer projectos de extensão agrícola, de saúde e de capaci-
tação. Contudo, sem ligação a instituições públicas e a impostos e taxas locais, esses
serviços chegaram ao fim quando a corrente da ajuda secou.
O enfraquecimento institucional, combinado com uma reciprocidade baixa, e em
declínio, entre as classes políticas e os cidadãos, tornaram os Estados perigosamente
frágeis. Não tem havido falta de políticos descontentes ou de militares insatisfeitos
preparados para começar um golpe ou uma guerra. A sequência é o colapso, por vezes
com violência inqualificável. As vítimas têm sido principalmente civis. No caso do
Ruanda, o sistema de ajuda externa — incluindo a que ajudava a criar uma “sociedade
civil” — montou o palco para o genocídio.12
Após o 11 de Setembro de 2001, os estrategas no centro da potência mundial começa-
ram a prestar mais atenção à periferia. As pessoas em países ocidentais, supostamente
seguros, estavam afinal vulneráveis ao colapso da ordem pública e da segurança
em lugares remotos não ocidentais. Hoje em dia, Washington DC encara os Estados
frágeis e falhados como parte das suas prioridades centrais de segurança. As suas
principais agências de desenvolvimento estão a aparelhar-se de novo para promover
a “construção da nação” — um tema da década de sessenta. A tarefa já não é diminuir
o Estado, mas antes reforçá-lo.
Essa tarefa não é uma má ideia. Contrariamente a algum pensamento convencional
sobre a sociedade civil, Estados mais fortes podem promover agendas anti-pobreza e de
Direitos Humanos. Estados fracos e institucionalmente pobres oferecem fóruns pouco
prometedores para a vida associativa emancipadora. Mas onde existem instituições
robustas para fornecer serviços básicos e para conduzir uma política aberta, muitas
coisas se tornam possíveis. Por exemplo, a acção cidadã na África do Sul conseguiu
vitórias para os povos sem terra e para as pessoas infectadas com HIV/SIDA porque
os tribunais especiais e as comissões oficiais cresceram (parcialmente como resultado
de pressões da sociedade civil) para promover cláusulas da carta de direitos da Cons-
tituição. Em Moçambique, uma pré-condição importante para conseguir os direitos
de terra dos pequenos proprietários foi a reabilitação do cadastro público (escritório
do título de terra).
Doações de caridade e subsídios governamentais às ONG são justificados geralmente
por reivindicações sobre a sua capacidade de resposta no combate à pobreza. De facto,
em vários cenários africanos, muito parece estar a acontecer graças às ONG: grupos de
costura, centros de crianças de rua, aconselhamento sobre HIV/SIDA, micro-crédito,
12
Peter Uvin (1998), Aiding Violence. The Development Enterprise in Rwanda. West Hartford: Kumarian. Este importante
e surpreendentemente negligenciado estudo de um cientista político belga inclui uma análise devastadora no capítulo
“E onde estava a Sociedade Civil?”
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 251
instrução, e por aí adiante. África parece zumbir com pequenos projectos apoiados
pelo exterior. Mas será que isto contribuiu para algo com que as pessoas possam
contar? Para muitos cidadãos, tais colmeias de actividade podem ser uma “tirania
de ausência de estrutura” — uma situação em que os benefícios estão de facto a fluir
para alguns, mas não de acordo com nenhum tipo de prioridades ou planos ratifica-
dos por um consenso popular. As organizações sem fins lucrativos, que reivindicam
ter mais capacidade de resposta que o Estado no fornecimento de serviços, parecem
efectivamente ter um momento em que as pessoas afluem às suas clínicas e escolas.
Mas na ausência de uma estrutura pública com cobertura abrangente, os resultados
líquidos podem significar mais fragmentação, acesso desigual e nenhuma forma segura
de os cidadãos responsabilizarem os fornecedores de serviços e terem acesso ao que
efectivamente têm direito.
Neste quadro, foi conduzido nos Balcãs um estudo interessante 13, em que os autores
se questionam: “Por que razão o crescimento económico não está a gerar apoio para
o capitalismo de mercado e por que está a fragilidade estatal a ser reproduzida nos
Balcãs?” O seu estudo demonstra que o crescimento económico não é suficiente para
criar uma base social para uma sociedade de mercado e que a construção estatal nos
Balcãs não pode, e não deve, ser reduzida simplesmente a uma reforma da adminis-
tração pública conduzida pela UE (estas duas dimensões são ideias inerentes ao actual
discurso sobre “reconstrução” dos Balcãs, principalmente promovido por forças da UE).
A resposta dos investigadores sobre os Balcãs é que a construção estatal deve ser vista
principalmente como uma construção do eleitorado. A mudança de paradigma aqui
proposta (o ênfase no “Estado para o eleitorado” deve ser substituído pelo ênfase no
“Estado incluindo os diferentes domínios civis”) é uma inversão virtual da mudança
de paradigma neo-liberal de construção estatal para a sociedade civil.
Contudo, parece que nem a “construção da sociedade civil” nem a “construção do
Estado” são em si mesmas respostas às questões públicas. Respostas viáveis podem
ser melhor procuradas na “arena pública” onde a questão não incide sobre enfraquecer
ou desenvolver substitutos para o Estado, mas antes desafiá-lo e ajudá-lo a ter mais
capacidade de resposta. Como afirmam os autores do estudo sobre os Balcãs: “O que
é necessário é uma nova geração de políticas de democratização, que se centrem sobre
a qualidade da representação política. O que encaramos como prioritário é uma mu-
dança da abordagem normativa à democratização. Uma abordagem que deixe de se
centrar tanto sobre instituições democráticas (eleições, tribunais e media) e na ideia de
“governo responsável” ou “boa governação” para se passar a centrar mais na ideia de
“governo com capacidade de resposta”, que sublinhe não só a autonomia da sociedade
civil em relação ao Estado, mas a influência dos principais círculos eleitorais sociais
sobre as decisões estatais”.14
Na nossa perspectiva, esta é a síntese das três abordagens diferentes que descrevemos
nas nossas notas teóricas: a sociedade civil precisa de ser substituída por domínios
civis, mas isto não é suficiente: em última análise, tem tudo a ver com o “equilíbrio de
poderes” na esfera pública, ou antes, na arena pública. Esta constelação de entidades
públicas e privadas tem dimensões não territoriais, globais; num local como Angola,
onde tanto poder se encontra ancorado offshore, este é um conceito crucial. Uma arena
pública funcional é uma pré-condição para um Estado funcional, bem como para um
13
Center for policy studies (2003), In search of responsive government. Budapest: Central European University.
14
Ibid, p. 52.
252 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Poder económico
Desde o início dos anos setenta que o petróleo tem dominado a economia. No período
entre 1995 e 2002, o petróleo contabilizou 70-89% das receitas estatais e 85-92% dos ga-
nhos de exportação. Porém, com apenas 10.000 trabalhadores e quase nenhuma ligação
a montante ou a jusante com outros sectores produtivos, a indústria do petróleo é um
enclave. A sua importância económica para Angola é principalmente a de encher um
pequeno número de contas bancárias — a sua maioria no exterior do país.
Uma maior quantidade de petróleo será extraída em breve dos novos poços de águas
profundas de Angola. Uma produção crescente a par de uma subida sustentada dos
preços poderá sugerir que a salvação dos pobres está ao virar da esquina. Mas esta
hipótese é de todo irreal na medida em que, tal como até aqui, outros beneficiários mais
poderosos vão continuar a absorver as riquezas de Angola a jusante. Constrangimentos
a estes beneficiários são poucos, em parte porque os mecanismos que utilizam para
se apropriarem da riqueza são deliberadamente mantidos obscuros e fora do escrutí-
nio público. Esta falta de transparência é uma questão que diz respeito à governação
angolana e à governação global.15
Poder do Estado e do partido
Mais do que noutros cenários africanos, a ordem pós-colonial de Angola apresenta
algumas linhas de continuidade surpreendentes com a ordem colonial: existe uma certa
extroversão da soberania nacional, ou seja, grupos empresariais e bancos estrangeiros
estabelecem de modo decisivo os parâmetros da política nacional; o poder estatal é
centralizado, autoritário e gerido de acordo com os interesses da elite; a política é
conduzida tanto de acordo com aplicações particulares das normas, como de acordo
com aplicações gerais e universais de códigos legais e administrativos (i.e. a escolha
do tipo de aplicabilidade da norma depende daquilo que for mais conveniente para
os que decidem); o descontentamento político tem como resposta a repressão estatal;
os funcionários têm um pé em instituições públicas e outro em empresas privadas; o
sistema judicial é frágil e corrupto.
No período colonial, os africanos não eram considerados cidadãos, não tinham impor-
tância política, eram indígenas e subalternos. No entanto, eram necessários pelo seu
trabalho, impostos e, de algum modo, pela sua capacidade de consumir bens portugue-
ses. Hoje em dia, os angolanos podem ter alguma importância política (nomeadamente
15
As práticas vergonhosas de empresas petrolíferas – subornando ou influenciando funcionários nacionais e
internacionais, uso de paraísos fiscais, etc. – podem afectar a governação em todo o lado. Ver, por exemplo: “The
Politics of Oil. How one of the World’s Richest Industries Influences Government and Policy”, Center for Public
Integrity, Washington DC, www.publicintegrity.org/oil/default.aspx
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 253
como eleitores), mas não muita em termos económicos, já que a maior parte do que
a classe política necessita pode ser obtida sem a mão-de-obra, impostos e consumo
angolanos. A “maldição dos recursos” é fundamentalmente uma maldição política, na
medida em que destrói a reciprocidade entre os governantes e os governados.
A política de hoje
Hoje existe naturalmente um conjunto de diferenças importantes relativamente à or-
dem colonial, nomeadamente: a cidadania está alargada a todos, em princípio, embora
a inclusão/exclusão de acordo com a filiação partidária e a classe, geralmente anulem
a norma da igualdade de oportunidades, além disso, a “cidadania” enquanto conceito
baseado na prática real de direitos e deveres políticos é bastante vazia de significado;
a competição política já não é praticada pela força das armas, o multipartidarismo foi
reconhecido por lei em 1990 e está presente na Assembleia Nacional desde as eleições
de 1992, mas não é bem recebido pelo regime; a cooptação política do eleitorado nos
domínios civis é um procedimento operacional padrão para o MPLA,16 tal como demons-
trado na criação de postos para os que abandonaram a FNLA17 no final dos anos oitenta,
e no apoio generoso aos deputados da UNITA18 que escolheram manter os assentos
parlamentares que a UNITA ganhou nas eleições de 1992 depois de Savimbi lhes ter
ordenado que abandonassem as suas funções; os assuntos externos são conduzidos tanto
através de canais diplomáticos formais como de canais comerciais informais (claramente
demonstrado no caso das empresas estatais francesas, mas incluindo canais privados
ou semi-estatais baseados nos EUA, Reino Unido, Itália, Holanda, etc.); a economia do
petróleo criou novas instituições poderosas semi-autónomas, tal como um ministério do
petróleo e uma empresa para-estatal (SONANGOL) que actuam como um Estado dentro
do Estado e gozam de alianças com interesses offshore e que são apenas marginalmente
responsáveis perante o banco central e as finanças públicas; existem algumas concessões
com privilégio para as regiões (uma proporção das receitas de impostos do petróleo é
concedida directamente às províncias de Cabinda e Zaire), mas não há projectos sérios
para descentralizar o poder político ou adoptar acordos de tipo federal.
A base suprema de autoridade reside no Futungo de Belas, o complexo presidencial sobre
uma montanha à beira mar nos arredores de Luanda. O termo Futungo refere-se a um
conjunto de personagens e redes patrimoniais centradas no Presidente dos Santos. Até há
pouco tempo, existia uma pequena facção rival no MPLA, conhecida como “colossi”, que
incluía figuras ricas mas liberais do passado do partido. Com o jornalismo de oposição e
aberto que emergiu nos finais dos anos noventa (pelo menos em Luanda), os optimistas na
rede de ONG de Direitos Humanos, pequenos partidos e intelectuais da Igreja em Luanda,
pensaram que o “colossi” podia reaparecer e o espaço público doméstico para a oposição
ampliar-se, mas o reaparecimento nunca aconteceu e o espaço civil e público não cresceu.
As bases sociais da classe política são uma questão de especulação. De acordo com a
sociologia popular angolana, o topo da elite compreende “Cem Famílias”. Em início de
2003, o jornal de Luanda O Angolense fez uma reportagem sobre os 59 angolanos mais
ricos, com uma fortuna combinada de perto de quatro biliões de dólares. De acordo
com o artigo, os mais ricos do grupo são ou foram membros do governo/partido.
16
Originalmente um dos moimentos de libertação, sendo hoje o partido governante de facto.
17
Um dos movimentos de libertação nos anos setenta, hoje na oposição.
18
Um dos movimentos de libertação, lutando contra o MPLA até 2002, sendo hoje efectivamente o mais importante
partido da oposição.
254 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Houve uma abertura a novas formas de enriquecimento depois de Angola se ter juntado
ao FMI em 1989 e ter lançado uma vaga de privatização. Fora do escrutínio público, e
a preços de saldo, a elite política vendeu empresas estatais, quintas, casas, blocos de
apartamentos e concessões especiais de exportação a si mesma e a amigos políticos,
nacionais e estrangeiros. Estas dinâmicas aquisitivas, sob condições de falta de trans-
parência e desgoverno, ilustram as utilizações da desordem como um instrumento
político19. Este síndrome — autoridade opaca e não responsável, uma ordem legal
frágil e corrupta, fronteiras mínimas entre os sectores formais e informais — também
existe noutros Estados africanos. As condições em Angola tornaram a desordem um
mecanismo especialmente eficaz, ao serviço de um conjunto diverso de interesses.
Em tempo de paz, é mais difícil reproduzir desordem. Contudo, a opacidade con-
tinua e a competição política aberta e activa é limitada por diversos factores, como
sejam: a desconfiança pública e o cinismo geral face a todos os partidos políticos
(demonstrado em estudos de atitude recentes); os poderes de patrimonialismo do
Estado-partido, exercidos desde a década de 1980 para neutralizar ou cooptar for-
ças políticas rivais (conforme aconteceu no passado com a FNLA de base Bakongo
e conforme acontece hoje com a dependência da maioria dos partidos políticos
em relação aos financiamentos do Estado ou à dependência da sociedade civil em
relação ao braço da caridade do Futungo e da sua Fundação Eduardo dos Santos);
os poderes estatais de repressão, incluindo a polícia anti-motim e o Movimento
Espontâneo Nacional (uma espécie de liga jovem do partido disposta a organizar
levantamentos populares de apoio ao poder); os poderes estatais sobre a rádio na-
cional, TV e a maior parte dos jornais impressos, associados a restrições sobre meios
de comunicação social independentes, em particular fora de Luanda; os poderes
do Estado-partido para impedir medidas de democratização, como por exemplo a
lentidão da consulta sobre uma nova Constituição, o adiamento de eleições locais,
a anulação de propostas para terminar com a impunidade e promover processos
formais de reconciliação, o contínuo remarcar de eleições presidenciais e legislativas
nacionais, etc.; a proliferação de partidos políticos (diz-se que existem cerca de 150),
a maior parte dos quais orbita em torno de um aspirante a “Grande Chefe” e alguns
seguidores, sendo que a maioria destes partidos está confinada a redes em Luanda
e o seu alcance é pequeno e as suas ideias e iniciativas são poucas, carecendo de
credibilidade e capacidade.
Historicamente, a rivalidade político-partidária correspondia, por um lado, ao MPLA,
dominado por brancos e crioulos intelectuais, agregando o urbano ocidentalizado e a
camada assalariada e, por outro lado, dois pólos aglutinadores da camada rural, negra,
agrária, de pequenos produtores/comerciantes e agricultores pobres (uma hierarquia
dominada pelos Bakongo, outra dominada pelos Ovimbumdo, ambas dirigidas por
“Grandes Chefes”).
Embora hoje pareça improvável uma repetição da divisão em três vias com conota-
ção étnica, os apelos a lealdades com base étnica e regional não são de modo algum
coisas do passado. Muitos continuam a explicar acontecimentos políticos em termos
de interesses e influências étnicas. De qualquer modo, os partidos podem procurar
melhorar as suas hipóteses eleitorais pelo apelo através de divisões étnicas e a senti-
mentos populistas em torno de temas como “os nossos e os dos outros”.
19
Patrick Chabal & J-P Daloz (1999), Africa Works. Disorder as Political Instrument. Oxford: James Currey.
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 255
O aparelho de Estado
O sector público angolano é grande mas débil. Os empregos governamentais conta-
bilizam cerca de ¾ de todo o emprego do sector formal (enquanto na Tanzânia e na
Zâmbia, por exemplo, contabilizam cerca de ¹⁄³). As províncias e os distritos menos
afectados pela guerra (as províncias do sudoeste, a zona costeira de Benguela, Cabinda
e, claro, Luanda) têm números desproporcionais de funcionários públicos. Contudo,
muitos sistemas estatais são disfuncionais. Os serviços básicos fornecidos pelo sector
público são de pobre qualidade e de cobertura limitada.
Por outro lado, o fornecimento de serviços de saúde, educação e segurança, através de
canais privados, está a aumentar. Esta realidade tem o encorajamento e o controlo da
classe política e da camada mais favorecida e dos seus parceiros estrangeiros. Em 2003,
o governo aprovou legislação facilitadora de um programa nacional de protecção social,
mas isso dificilmente abriu caminho para uma redistribuição descendente. Tem sido
mais forte o encorajamento (ainda não expresso em subsídios ou contratos formais) a
ONG e Igrejas para preencherem as falhas nos serviços sociais para os pobres.
5 - Tipologia dos Domínios Civis em Angola
Organizações formais
A vida associativa formal não funcionou muito melhor. Durante a maior parte do século
XX, a vida associativa voluntária careceu tanto de base social como da liberdade política
para florescer. As Igrejas eram a única opção formal aberta à maior parte dos angolanos.
Próximo do fim do período colonial, cerca de 40% da população era nominalmente
católica e 10% protestante. Hoje, essas proporções parecem ser de 58% católicos e 17%
protestantes. As Igrejas indígenas africanas arrastaram inúmeros seguidores, mas os
portugueses mantiveram um olhar próximo sobre essas Igrejas e sobre grupos laicos,
tais como pequenos círculos culturais de assimilados nas cidades.
Ao assumir o poder em 1976, o MPLA tentou da mesma forma confinar o espaço civil.
A sua Constituição permitia alguns direitos de associação, o que possibilitou a acção
de caridades católicas, órgãos protestantes, o YMCA e a Cruz Vermelha Angolana.
O MPLA reprimiu fortemente as instituições católicas, enquanto a sua posição face
às Igrejas protestantes variava de muito cordial (em relação à Igreja Metodista em
Luanda, que se tornou conhecida como “o MPLA a rezar”) a restritiva (em relação
àquelas entendidas como pro-Savimbi ou Quintas Colunas dos Estados Unidos). O
partido colonizou a vida associativa ao estabelecer organizações de “massas” de estilo
soviético, para as crianças, jovens, mulheres, camponeses e trabalhadores.
Por volta dos anos noventa, o seu “Ano de Alargamento da Democracia”, o governo
deixou de impedir a vida associativa autónoma. Surgiram dúzias de novas organi-
zações, algumas sob instigação dos próprios membros do partido. Na antecipação
das eleições de 1992, emergiram muitos partidos políticos auto-proclamados. Várias
ONG para o desenvolvimento, de grande dimensão, ganharam forma sob a égide
de líderes de partidos liberais, e conseguiram financiamento estrangeiro. Algumas
iniciativas surgiram de cidadãos comuns, que estabeleceram, sem financiamento
externo, comités de residentes e grupos de vizinhança para limpeza e saneamento.
Por outro lado, os clubes de futebol urbanos foram apoiados por grandes empresas
ou por ramos governamentais, como a polícia e o exército. Também com o apoio do
partido-Estado, as elites económicas e políticas ajudaram a estabelecer os clubes dos
“Amigos e Nativos de [cidade X]” que ligavam os residentes de Luanda às suas ci-
dades de nascença no país. As organizações de trabalhadores supervisionadas pelo
Estado/partido começaram a diversificar-se e a demonstrar mais militância nos inícios
da década de noventa. Houve manifestações e vigílias esporádicas de trabalhadores,
mas foram rapidamente reprimidas.
Em Luanda, existem grupos de profissionais formais, tais como as ordens dos enge-
nheiros, médicos e advogados, e associações de arquitectos, economistas, sociólogos
e psicólogos. Os empresários formaram várias associações comerciais, incluindo a
Associação de Imprensa Privada de Angola, com oito membros. Alguns destes grupos
são bastante próximos da classe política. Alguns fornecem serviços directamente ao
público, tais como o trabalho de ajuda legal da Ordem dos Advogados, bem como a
advocacia por reformas estruturais. No seu todo estes grupos podem ser chamados
de associações empresariais e profissionais.
As ONG têm como principal vocação o fornecimento de serviços e surgiram sob três
auspícios principais: primeiro, a estrutura partido-Estado, tendo como exemplos a Or-
ganização das Mulheres de Angola (OMA) e a Fundação Eduardo dos Santos (FESA),
sendo que esta fundação constitui um fundo de caridade tipicamente presidencial (ou
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 257
20
Dorothea Hilhorst, 2003, The Real World of NGOs. Discourses, Diversity and Development, London: Zed Books
258 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
21
Steve Kibble (2007), Angola: from politics of disorder to politics of democratization?, www.worldhunger.org/articles/06/
africa/kibble.htm
22
Nicholas Shaxson (2007), Poisoned wells; the dirty politics of African oil, Palgrave Macmillan.
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 259
fornecidos pelos activistas e intelectuais angolanos, mas essa colaboração coloca riscos
sérios. As organizações internacionais de media que apoiam um jornalismo comprome-
tido e cívico podiam envolver-se e publicar o que os jornalistas angolanos não podem,
assim juntando-se a esta luta.
A política da arena internacionalizada colide com os domínios civis. A protecção,
confiança e informação necessárias para organizar esforços de advocacia não estão
garantidos em nenhum lado em Angola. Os principais actores externos nessa arena
política são empresas comerciais, tanto ocidentais como chinesas, que podem continuar
a operar impunemente de forma não transparente.
A governação global privatizada é organizada principalmente em seu nome. O equi-
líbrio de forças na arena pública é hoje apontado esmagadoramente contra iniciativas
emancipadoras em domínios civis. Os interesses dos produtores e consumidores de
hidrocarbonetos (e outros sectores, especialmente serviços financeiros, que servem os
produtores e as elites angolanas) têm prioridade, limitando seriamente a investigação,
o debate e o protesto, tanto ao nível nacional como internacional.
Conclusões
Em Angola, com algumas excepções, os membros formais, visíveis do domínio civil,
têm sido marginais na vida política, quer como protagonistas a pressionar pela mu-
dança política, quer como veículos para consolidar a hegemonia da classe política. As
Igrejas estabelecidas têm discretamente apoiado equilíbrios políticos em momentos
excepcionais, tal como quando defenderam, e conseguiram, termos não punitivos
para um acordo político pós-conflito. Houve ganhos tácticos importantes, tais como
melhorias na legislação da reforma de terras, atribuível a ONG especializadas. Final-
mente, a classe política demonstrou ser sensível a críticas dirigidas a si das tribunas
públicas dos meios de comunicação social independentes; tendem a encará-las com
desrespeito a roçar a traição. Mas, em regra, os domínios civis e o que acontece neles
não são hoje em dia decisivos na política angolana em nenhum nível.
Em certas circunstâncias locais, em que os interesses políticos são modestos e onde a
liderança local do partido no poder adopta atitudes relaxadas face a actores fora de
controlo directo do Partido, os representantes de ONG e Igrejas têm sido bem recebidos
para consulta sobre questões específicas. Está ainda por ver se essas práticas repre-
sentam o início de uma abertura deliberada face ao domínio civil, ou se são apenas
mais um exemplo de cooptação — uma arte política em que o partido governante tem
demonstrado grande capacidade.
À medida que se aproximam as eleições parlamentares e presidenciais, os incentivos
para promover mais diálogo com os cidadãos e capacidade de resposta do governo
pode aumentar. As eleições de 1992 assistiram à competição entre a UNITA e o partido
governante a resultar em reivindicações por maior capacidade de resposta governa-
mental no fornecimento de cuidados de saúde e outros serviços públicos. No caminho
até às eleições em 2008, é provável que se intensifiquem reivindicações semelhantes
e, consequentemente, pressões sobre o governo.
Um diálogo aberto, de rotina entre as autoridades públicas e as organizações de cidadãos,
ocorre a uma escala modesta em apenas alguns locais de Angola; a maioria é limitada a
pequenos acordos. Deste modo, as pressões pela exigência de um Estado “com capacida-
de de resposta” estão ainda muito longe das existentes no Brasil. Nesse país, décadas de
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 261
23
Um órgão civil brasileiro umbrella começou um “fórum sobre controlo social das políticas públicas”. Ver
www.mobilizadorescoep.org.br
263
Introdução
Kristin Reed
Universidade
de Berkeley, Califórnia
E ste artigo analisa o impacto da exploração de petróleo
no Soyo através dos relatos dos pescadores e dos cam-
poneses. A sua subsistência oscila entre zonas pesqueiras
degradadas e lavras contaminadas. Os seus relatos centram-
se nos temas da inclusão, da identidade e do sentimento de
pertença à terra como forma de protesto contra a sua exclusão
dos benefícios do desenvolvimento provenientes do petróleo.
As suas palavras servem como forma de protesto, uma ob-
jecção à poluição que destrói os modos de vida tradicionais
e que ensombra o futuro dos seus filhos. A análise destes
relatos mantém-se, no entanto, restrita à geografia do Soyo,
em particular à área entre o rio e o mar, contemplando a
complexa história da região2.
No Soyo, um passado de ocupação violenta a par da falta de
alternativas políticas limitaram a capacidade local de protesto
aberto contra a poluição originada pela exploração do crude
e de exigir do governo a sua parte nos lucros do petróleo3.
Mas mesmo os mais fracos possuem armas originais de pro-
testo, como foi demonstrado por Scott (1985)4. As histórias
são uma dessas armas. Utilizo os relatos dos pescadores,
dos camponeses e dos vendedores de peixe do Soyo, para
mostrar experiências de degradação5. Como foi defendido
por Labov (1997) e Reissman (2001), a análise dos relatos é
uma ferramenta útil para a interpretação das percepções e
do papel da memória e da metáfora na forma de lidar com
experiências ou emoções6. As histórias são representações
válidas das realidades vividas do narrador e ilustram a sua
1
Traduzido do original em inglês por Nuno Marques.
2
A autora deseja agradecer à Fundação Nacional para a Ciência (National Science
Foundation) por financiar a sua pesquisa, reconhecer o apoio institucional da
Universidade da Califórnia, Berkeley; e agradecer a Jennifer Brass pela revisão e
pelos comentários.
3
Ver Reed, Kristin. 2006. Washing Ashore: The Politics of Offshore Oil in Northern
Angola. Dissertation filed at the University of California, Berkeley.
4
Scott, James C. 1985. Weapons of the Weak: Everyday Forms of Peasant Resistance.
New Haven, Yale University Press.
5
Para manter o aspecto etnográfico desta análise, eu reconheço a minha própria
posição como de investigadora.
6
Labov, William. 1997. “Some Further Steps in Narrative Analysis.” The Journal
of Narrative and Life History. Acedido (2006) em: www.ling.upenn.edu. Riessman,
Catherine K. 2001. “Analysis of Personal Narratives”, Handbook of Interview Research.
J.F. Gurbium and J.A. Holstein. London, Sage Publications.
264 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Contexto
Os antigos mapas do Reino do Congo referiam-se à zona onde o Rio Congo se encon-
trava com o Oceano pelo nome de Sonho, atribuindo uma qualidade de sonolência ou
de sonho à região que o navegador português Diogo Cão visitou pela primeira vez em
1482. Talvez o nome se referisse à praga local da mosca tsé-tsé que transmite a doença
do sono, a tripanossomíase. Ou, o que ainda é mais provável, os conquistadores terão
simplesmente adaptado mais um nome tradicional. Ponderei estas hipóteses a bordo
de um avião a hélice com destino à cidade que agora aparece nos mapas angolanos
com o nome de Soyo8. Espreitando pela janela distingui as curvas fluidas na paisa-
gem em baixo. O Soyo fica na foz do Rio Congo, abraçado por um emaranhado de
mangais que separam os canais a que os locais chamam simplesmente de “os braços
do rio”. Afastando-se de um desses canais, o avião virou de repente em direcção à
cidade e avançou aos ressaltos ao longo de uma pista estreita, afastando as cabras
7
Durante o período colonial, os administradores portugueses ficaram deslumbrados com os prolíficos cajueiros
ao longo da zona litoral e reconheceram a sua importância nutricional como fonte de proteínas em Basolongo. Ver
de Morais Martins, Manuel Alfredo. 1958. Contacto de Culturas no Congo Português. Lisboa, Ministério do Ultramar,
p. 142. D’Almeida Matos, José. 1924. O Congo Português e as Suas Riquezas. Lisboa, Simões, Marques, Santões & Ca,
Lda, pp. 152-153.
8
Soyo é o nome do município e da direcção municipal. Sendo um dos seis municípios da província do Zaire, o Soyo
contém cinco comunidades; Soyo, Pedra do Feitiço, Sumba, Kelo e Mangue Grande.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 265
9
As pessoas em Luanda tendem a olhar para o Soyo como uma cidade do interior, distante da moderna e cosmopolita
Luanda. A ideia que têm da Província do Zaire foi manchada por um escândalo em 2002 no qual as autoridades
provinciais registaram 423 queixas de “crianças feiticeiras” que eram muitas vezes sujeitas a tratamentos cruéis
(e.g. colocando-lhes sementes picantes de gindungo nos olhos) num esforço para quebrar o feitiço. (“Fenómeno
“Criança Feiticeira” Chega ao Fim”, Jornal de Angola, de 14 de Janeiro de 2004). Apesar da investigação de Taussig
(1980) sobre a forma como as sociedades pré-capitalistas interpretavam os ciclos tumultuosos do capitalismo global
pela linguagem simbólica da feitiçaria, muitos Luandenses viram nas crianças feiticeiras da província do Zaire uma
prova do atraso da região. Ver Taussig, Michael. 1980. The Devil and Commodity Fetishism in South America. Chapel
Hill: University of North Carolina Press.
10
Chitata, Agostinho, “Vá, O Soyo Espera-Lhe!”, Jornal de Angola, de 14 de Junho de 2003.
11
“Troço Soyo/Luanda Clama por Reparação”, Jornal de Angola, de 15 de Dezembro de 2003.
12
Governo de Angola, Abril de 2003, Perfil Sócio-Económico do Zaire, Luanda.
13
População estimada em 2001, in Governo de Angola, Abril 2003, Perfil Sócio-Económico do Zaire, Luanda.
266 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
14
A Fina, agora chamada de Total, é o operador destas reservas onshore. O Bloco 1 era explorado pela Agip. O Bloco
2 era explorado pela Chevron (que adquiriu a Texaco) até a uma recente transferência de direitos de exploração
para a Sonangol em Julho de 2006.
15
O Bloco 31 da British Petroleum em águas muito profundas do Soyo ainda está em fase de desenvolvimento, mas
os geólogos continuaram a anunciar novas descobertas ao longo de 2007.
16
Números totais tirados da informação do IMF Country Report 07/355 Angola: Selected Issues and Statistical Appendix,
Outubro de 2007.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 267
17
Dados do relatório da KPMG, 2003, Avaliação do Sector Petrolífero Angolano: Sumário Executivo, Relatório Inicial,
Luanda: Ministério das Finanças.
18
Os detalhes sobre a forma como este valor é calculado são escondidos do público nos contratos de concessão
confidenciais, negociados entre o Estado angolano e os consórcios que exploram cada Bloco.
19
Os habitantes locais, frustrados, culpam frequentemente Ludy Kissassunda, o alegadamente fraudulento Governador
da Província do Zaire de 1996 a 2004.
20
Governo de Angola, Abril de 2003, Perfil Sócio-Económico do Zaire, Luanda.
268 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Degradação em Terra
Dando atenção aos relatos que enfatizavam a degradação da saúde humana e am-
biental, procurei entender as formas como os habitantes locais viam a poluição que
ensombrava ainda mais as suas comunidades já marginalizadas. Uma promotora de
saúde de uma aldeia elucidou os aspectos negativos da extracção de petróleo sobre
a produção local de comida. Ela disse, “as palmeiras, os cajueiros e os coqueiros es-
tão a sofrer e a mandioca já não cresce tão bem. As laranjas já não crescem como era
costume, são pequenas e não têm vitaminas. As mangueiras parecem estar bem, mas
têm uma camada escura e espessa sobre as folhas. Notámos o aparecimento de muitas
doenças que nunca tínhamos tido, infecções que foram aparecendo à medida que au-
mentou a extracção do petróleo, sugando-o até ao ponto em que os nossos alimentos
não puderam resistir. Já não conseguimos colher fruta suficiente para garantir a nossa
subsistência.”
À medida que ouvia mais destes relatos de degradação, comecei a discernir padrões
entre os narradores e as suas reclamações. Os mais velhos lembram a abundância da
região antes do aparecimento do petróleo e lamentam, principalmente, a perca das
colheitas de caju — antigamente os anciãos bebiam o licor destilado da colheita do
caju durante as suas reuniões. As mulheres, principais cultivadoras e prestadoras de
cuidados, falaram das plantas da mandioca doentes e das crianças fracas. Até mesmo
os caçadores locais viam os efeitos do petróleo reflectirem-se na paisagem. A profusão
de caça no Soyo impressionou os caçadores portugueses no passado, mas segundo
um ancião de Mongo Soyo: “Os animais que aqui costumavam viver já não vêm cá.
Assim que os poços foram montados, os animais selvagens começaram a desaparecer
… fugiram”; sugeriu que os animais selvagens tinham pressentido o perigo que as
pessoas não pressentiram.
A maior parte das manadas de animais domésticos morreu às mãos das patrulhas de
soldados e de habitantes desesperados durante a guerra. Depois do fim do conflito a
criação de animais está a recuperar, mas como me disse um oficial do governo duran-
te uma entrevista: “sabia que não há nem uma vaca em toda a província do Zaire?”
A tripanossomíase limita o espaço disponível para o gado. Um censo à agricultura
revelou que existiam 984 porcos, 658 ovelhas, 2794 cabras e 31.000 aves de capoeira
na província,21 mas segundo os residentes das áreas próximas dos poços de petróleo
do Soyo, a poluição não permite que o gado cresça no seu município; as galinhas e as
cabras adoeceram e morreram por terem inalado os vapores perto dos poços.
Um chefe tradicional explicou que a fuga de gás dos poços pode ser mortal porque
esse gás não era “queimado”, para ele o gás queimado era menos perigoso, embora a
exposição contínua às chamas e toxinas por elas libertadas também se tivesse provado
prejudicial aos humanos, às plantas, aos animais e à atmosfera. Segundo ele, “O gás é
invisível, nós não o vemos, mas sentimo-lo nas nossas vias respiratórias. Está aqui nos
meus pulmões, nós respirámo-lo e ele está sempre dentro de nós. Nós cheiramos estes
gases que afectam as plantas e todas as coisas vivas, como os humanos. Nós temos
doenças respiratórias…” Ele começou a andar, apanhando uma folha doente de uma
mangueira próxima. Virando-se para mim com a folha continuou: “Podemos ver que
a folha desta árvore não consegue respirar e para nós também é difícil respirar. Está
aqui nos meus pulmões, nós respiramo-lo e ele está sempre dentro de nós.”
21
Governo de Angola, Abril 2003, Perfil Sócio-Económico do Zaire, Luanda.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 269
Ao examinar a superfície da folha, vi que estava coberta por uma camada negra de
fungos. No dia anterior, quando um ancião em Kitona tinha atribuído a camada preta
das folhas da sua goiabeira às partículas que emanavam das chamas de gás natural
próximas, vi o mesmo fungo. Nos quatro meses seguintes observei constantemente a
presença desta cobertura de fungos nas folhas das mangueiras e das goiabeiras pró-
ximas dos locais de extracção de petróleo. Os habitantes locais disseram que ela só
tinha aparecido depois da exploração de petróleo ter começado na zona. Um agrónomo
confirmou que era fumagina: um fungo não patogénico associado a pragas de insec-
tos como a mosca branca, o piolho branco e o pulgão.22 Ele suspeitava que as plantas
afectadas pelas chamas do gás natural estavam mais susceptíveis às infestações e às
doenças. Da mesma forma, postulava que a exposição às chamas do gás natural podia
danificar o sistema imunitário dos habitantes e torná-los mais atreitos a problemas de
saúde. O ancião reconhecia as ligações entre as comunidades e o seu ambiente de uma
forma que a Total não fazia: a empresa recusava-se a assumir a responsabilidade pelos
danos na agricultura ou pelos problemas de saúde perto dos poços de petróleo.
Os membros da comunidade apresentaram as suas observações à Total, mas a empresa
rejeitou os seus argumentos por falta de provas científicas. Os anciães em Pângala
lamentaram a rejeição da Total. Com as mãos a tremer um deles mostrou a ironia
desta situação: “Há muitos anos … depois de vinte anos estamos a sentir todos os
efeitos. Não é preciso ser formado, mesmo um analfabeto vê o prejuízo.” Outro ancião
comentou: “Não conhecemos a origem do negrume nas árvores, mas não estava cá
antes da exploração começar. Se não é da poluição, então de onde vem esta camada
negra?” Um chefe tradicional lamentou-se: “ Somos incapazes de distinguir o grau de
poluição. Pedimos ao Ministério do Ambiente que fizesse um estudo, mas não tive-
mos resposta.” Os residentes de Pângala apresentaram as suas queixas directamente
ao concessionário nacional e accionista dos blocos em terra da Total. Disse um: “Até
apresentámos queixa à Sonangol, mas eles recusam-se a acreditar no que dizemos.
Precisamos de provas concretas. Temos uma situação em que sabemos que estamos a
ser prejudicados, mas não sabemos exactamente como provar a causa.” Uma mãe em
Kitona exprimiu a sua frustração por os responsáveis das comunidades “não terem
máquinas” para medirem o dano causado em termos mais compreensíveis pela Total.
Ela encolheu os ombros: “Mas, se afecta as plantas, afecta-nos também.”
Degradação Costeira
As multinacionais petrolíferas nomearam os poços de petróleo do Soyo de acordo com
os recursos naturais outrora abundantes na região. Os poços de petróleo no Bloco 1
chamam-se Bananeira, Cajueiro, Imbondeiro, Safueiro e Coqueiro. Da mesma forma,
o Bloco 2 tem os nomes de Atum, Bagre, Espadarte, Raia e Tubarão. Mas os locais
defendem que as chamas de gás, os derrames de petróleo e as fugas dos oleodutos,
danificaram não só as suas árvores de fruto mas também as suas zonas pesqueiras.
“O petróleo que elas despejam mata os peixes”, declarou um pescador de meia-idade
apontado para uma plataforma petrolífera. Chamando a atenção para o facto de as
companhias petrolíferas despejarem “água residual” no mar (líquido por vezes radio-
activo, oleoso, que sobeja nos reservatórios de petróleo). O pescador interrogava-se:
“O petróleo vai num petroleiro para a Europa ou para a América… para algum lado…
mas para onde vai aquela água?” Ele baixou o seu indicador em direcção às ondas
que rebentavam dizendo: “Tenho a certeza que polui a água e o efeito vê-se na pesca.
Tente imaginar quanto desta poluição está a acontecer”.
Alguns pescadores preocupavam-se com os acidentes de larga escala na concessão
de águas profundas da ExxonMobil, onde as plataformas de produção, de reserva e
de carga, podem armazenar até 1 milhão de barris de petróleo. Outros exprimiram
preocupação com os pequenos derrames no Bloco 2 de águas pouco profundas onde,
como um pescador afirmou, “quanto mais perto está, mais perigoso é.” A produção
diária baixou de 50.000 barris por dia em 2002 para 22.000 em 2006.23 No entanto, du-
rante os seus 27 anos de laboração (de 1979 a 2006), o Bloco 2 produziu 455 milhões
de barris de petróleo a partir de vinte poços.24 Os residentes dizem que décadas de
fraca manutenção dos oleodutos e de desprezo dos operadores das concessões pelo
ambiente contribuíram para a poluição local. No entanto, são incapazes de provar
cientificamente as suas afirmações porque as companhias petrolíferas e o Ministério
do Petróleo se recusam a fazer pesquisas e fornecer dados.
A poluição ameaça os modos de vida tradicionais e o sustento alimentar de uma grande
parte da população do Soyo. Um estudo das zonas de pesca artesanal no Soyo identificou
208 pescadores e 151 pessoas envolvidas no processamento do peixe.25 Não possuindo
gelo ou electricidade eles conservam o peixe para o consumo ou venda, secando-o,
fumando-o, e/ou salgando-o. Os pescadores podem contar com as suas pescarias para
alimentar as suas famílias e ganhar algum dinheiro com a venda na praça no Soyo bem
como nos mercados em Muanda, Boma e Kimuabi na República Democrática do Congo.26
Os vendedores de peixe compram o pescado aos pescadores à sua chegada às docas
do Soyo ou noutros pontos de desembarque nas comunidades pesqueiras e vendem o
peixe — fresco ou conservado — no mercado ou nas ruas da cidade do Soyo.
Os residentes de várias comunidades no Soyo reconheceram o conjunto de funestos efei-
tos que a poluição da indústria petrolífera tinha nos seus recursos terrestres e marítimos.
Dois pescadores que concordaram em dar uma entrevista em Bocolo disseram-me para
me sentar numa secção de reforço de tubagem que tinham obtido da Base de Kwanda.
O primeiro começou solenemente: “A nossa principal preocupação com a produção de
petróleo é a poluição da água. Costumávamos pescar aqui mesmo nesta área, mas agora
está poluída com petróleo e gás. Isso mata os peixes. Também já não podemos contar
com o rio para nos trazer água potável. Queixamo-nos que não conseguimos beber esta
água poluída. Faz mal à nossa saúde.” O seu companheiro, acrescentou: “O petróleo
aparece muitas vezes à superfície da água e às vezes os peixes aparecem mortos … por-
que se isso afecta a água ou o ar, vai sempre afectar os peixes.” Quando lhes perguntei
se eles se preocupavam com os derrames que vinham das concessões mais distantes,
ele respondeu: “São todas a mesma coisa, as que estão longe e as que estão perto da
costa porque as águas movem-se. Para onde vai a água vai a poluição. Por causa disso
dizemos que a poluição, quer seja de longe ou de perto, é a mesma coisa.” Enquanto eu
pensava sobre o percurso das águas residuais, dos aditivos químicos e dos resíduos de
23
IMF Country Report 07/355 Angola: Selected Issues and Statistical Appendix, Outubro de 2007.
24
Ibid., Mayer, Graciete. 12 de Agosto de 2003. “Petrobrás Vai Operar em Águas Profundas Angolanas.”, Jornal de
Angola.
25
IFAD, Novembro de 2002, “Angola: Northern Fisheries Communities Development Programme (Pesnorte).”
Mid-Term Review, United Nations.
26
Kilongo, Dr. Kumbi, 2004, Recursos Marinhos na Província do Zaire no Ámbito de Monotorização e Gestão da Pesca
Artesanal. Luanda: Instituto de Investigação Marinha & Pesnorte.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 271
hidrocarbonetos nas correntes oceânicas, uma leve brisa passou pela árvore por cima
de nós. Murmurei alguma coisa sobre o vento que levava a poluição e o pescador disse
agitado: “No mar, todos os peixes fugiram… a poluição na terra também afectou os
cajueiros, as plantas da mandioca e o resto… por isso o dano é o mesmo.”
Para aqueles no Soyo que vivem com um pé na terra e outro no mar, a distinção entre
poluição na terra e poluição no mar é esbatida. A poluição no mar, derivada das chamas
de gás e dos derrames, é trazida pelo vento ou pelas marés para terra. A contaminação
que vem dos poços em terra também é levada para o mar pelos tanques de separação
da Total em Quinfuquena. Apesar da Total deitar ao mar muitos dos seus resíduos
por uma tubagem subterrânea que avança pelo mar adentro cerca de cem metros, um
canal à superfície mostrava uma corrente saturada de petróleo, atravessando um des-
filadeiro de sedimentos deixados pela passagem do desperdício de crude, escorrendo
em direcção às ondas que rebentavam na praia. Tal como os afluentes da produção em
terra vão dar ao mar, os gases da produção de mar alto vêm para terra. Um activista
de saúde comunitária disse: “Temos sempre esse fumo que vem da praia até aqui. Na
época das chuvas sempre dissemos que ‘isso são só as nuvens de chuva’, mas acabámos
por perceber que não eram.”
Um representante do governo sugeriu que eu visitasse um local chamado Os Cavalos
para ver alguns dos outros efeitos externos associados à extracção de petróleo. Era lite-
ralmente uma lixeira, com tubagens ferrugentas, velhos tanques de armazenamento e
partes de brocas gigantes. Ao examinar algumas tubagens com vestígios de depósitos
de sedimentos vi que Os Cavalos continha desperdícios das operações em terra e no
mar. Consternou-me o facto de algumas das tubagens largadas aqui, utilizadas normal-
mente pelos habitantes locais para a construção de casas, pudessem estar contaminadas
com hidrocarbonetos cancerígenas ou por isótopos radioactivos presentes nas águas
residuais.27 Os barris corroídos repousavam numa secção vedada das instalações e eu
lembrei-me que o representante do governo tinha referido ter alguma preocupação sobre
o armazenamento e a eliminação de resíduos líquidos em poços de areia desalinhados,
passíveis de permitir infiltrações para o subsolo e para as águas subterrâneas. Perguntei
a alguns dos trabalhadores locais em fato-macaco e chinelos sobre o conteúdo dos barris
e sobre a eliminação dos resíduos tóxicos, mas eles abanaram as suas mãos sem luvas,
invocaram ignorância e voltaram a descarregar sucata de um camião.
Os pescadores assistiram a décadas de danos ambientais, mas sabem pouco sobre a
toxidade dos poluentes associados à extracção de petróleo e tinham falta de capacidade
institucional para documentarem efectivamente a extensão da destruição — ou das
suas perdas. Os derrames de petróleo no mar do Soyo acontecem desde o início da
produção dos Blocos 1 e 2. Um ancião em Moita Seca recordou o que se tinha passado
há muito tempo: “Nos anos setenta houve um acidente num poço. A água parecia
toda petróleo, daqui até Cabinda”. Um jovem pescador afirmou que os derrames
continuaram até ao presente, referindo uma fuga no Bloco 2, a 8 de Julho de 2003, que
chegou até à praia. Vieram trabalhadores para limpar a praia, mas o petróleo na água
afugentou os peixes. Ele explicou que o petróleo “é difícil de controlar” na água e que
“assim que os peixes sentem esta poluição a maior parte foge, procurando segurança
longe do acidente, os restantes acabam por morrer aqui.”
27
O rádio que surge naturalmente dissolvido nas águas de nascente combina-se com o bário dos fluidos de perfuração,
produzindo uma camada de sedimentos radioactiva no interior das tubagens que transportam grandes quantidades
de águas residuais.
272 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Outro pescador afirmou que os frequentes acidentes ambientais, que chegam a ser
“de sete derrames por ano… fazem mal tanto ao peixe como às redes.” Ele alongou-
se sobre as dificuldades provocadas pelas manchas de petróleo dizendo, “a poluição
destrói as nossas redes que por vezes… se enrodilham em qualquer poça de petróleo
e depois não as conseguimos usar. Uma rede destruída é uma coisa terrível com os
preços altos daqui. Uma rede pode custar três meses de trabalho. Às vezes os preços
inflacionam 100 por cento.” Quando lhe perguntei se os pescadores no Soyo exigiam
alguma compensação pelas redes destruídas, um representante do Instituto de Pesca
Artesanal (IPA) do Soyo abanou a cabeça e apelou aos pescadores para trazerem as suas
redes estragadas pelo petróleo ao seu escritório e registarem as suas perdas para que
se pudessem criar as condições para “um acordo entre os pescadores e as petrolíferas.”
O jovem pescador mostrou ter pouca esperança em apresentar os seus prejuízos ao
IPA dizendo: “As coisas aqui são tão desorganizadas que a poluição acontece e nós
não conseguimos definir com certeza a sua origem.”
Os representantes do governo designados para representar e prestar assistência aos
pescadores demonstram uma falta de capacidade ou de vontade institucional para
dar seguimento às queixas sobre poluição. Um representante do IPA admitiu existir
alguma ansiedade em atribuir o declínio das pescarias à indústria do petróleo, “Em
termos da ameaça, não temos quaisquer dados… as espécies estão a desaparecer e a
qualidade do peixe está a piorar,” ele foi-se embora deixando a ligação entre a poluição
e a redução das reservas de peixe pouco clara. Um pescador cheio de rugas dos anos
passados ao sol explicou: “Não temos as máquinas para nos dizerem se é ou não a
poluição que os faz desaparecer.” Sem a tecnologia, os pescadores artesanais só podem
conjecturar sobre a ligação entre a extracção de petróleo e a degradação ambiental.
Eles apontam para a quebra das reservas de espécies importantes como a Corvina e
a Choupa28 bem como um tipo de tubarão conhecido no Kisolongo como Nfuifua, e
uma variedade local de ostras chamada Mankolua. Mas saber quais são os efeitos da
poluição do petróleo não é tão simples como comparar as estatísticas das capturas do
passado até à presente data, para além de que a pesca pirata representa igualmente
um factor de desestabilização a ter em conta.
Os pescadores do Soyo concordaram que a pesca pirata representa uma grave ameaça
às suas reservas de peixe, argumentando que a polícia fiscal marítima, encarregue
de assegurar o cumprimento da lei, é demasiado desorganizada e não tem os meios
para confrontar os barcos gigantescos do Japão, da Coreia, da Rússia e da Espanha,
que roubam o seu peixe. Contando histórias de grandes navios navegando silencio-
samente de luzes apagadas a coberto da escuridão para varrer o leito do oceano, os
pescadores amaldiçoam os piratas por lhes roubarem o peixe. Eles argumentam que
o regime e as restrições nacionais às quotas de pesca de espécies ameaçadas, como o
Carapau, não iriam aliviar a pressão nas já frágeis reservas se o governo continuasse
a não conseguir capturar os navios pirata.
Afagando a sua esbranquiçada barba um pescador disse: “Ninguém cumpre a lei.
A polícia fiscal marítima não tem a informação correcta e nós também não estamos
suficientemente bem informados sobre o que realmente se passa. Durante o período
colonial, a capitania assegurava que as pessoas cumpriam a lei, mas agora não. Nin-
guém se certifica que estas leis são respeitadas.” Outro pescador, referindo que o único
28
Alguns pescadores também davam o nome de Peixe Preto à Choupa.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 273
barco da polícia fiscal marítima destinado à patrulha da costa do Soyo estava parado
no porto há meses à espera de uma peça, declarou: “Temos a polícia fiscal marítima
para manter a ordem, porque sem ordem há o caos, mas os agentes precisam de ser
mais capazes para apresar esses navios — ou talvez a Marinha devesse intervir.” Outro
pescador declarou: “A pesca pirata e a indústria do petróleo não estão relacionadas,
mas nós fomos apanhados entre as duas.” O seu comentário conhecedor, demonstrava
claramente a incapacidade do governo para regular a extracção de recursos em ambos
os sectores, assim criando as condições para uma convergência que punha em risco
os modos de subsistência locais e os seus meios de sobrevivência.
Aumento das Reivindicações sobre a Terra
O Estado, disseram as pessoas por todo o Soyo, tinha prometido que o petróleo traria
o desenvolvimento, mas até àquela data só parecia ter diminuído os proveitos das
principais ocupações como a pesca e a agricultura, sem trazer novos empregos. De
forma a enfatizarem a sua exclusão da distribuição das riquezas do petróleo, muitos
dos residentes mais velhos do Soyo contaram histórias sobre a sua pertença à terra e
apresentaram reivindicações tangíveis sobre o solo. Ouvi pela primeira vez estes relatos
numa visita com o Soyo Dia Nsi29 – o mais respeitado líder tradicional do Soyo – no
seu quintal em Pângala. Sendo uma relíquia do antigo Reino do Congo este ancião
coordena as acções de cada rei do povo da área. Quando cheguei apresentei-me a este
rei dos reis com as oferendas obrigatórias. Colocando um boné com garras de leão que
tinha pertencido ao seu avô, o Soyo dia Nsi aceitou as minhas ofertas durante uma
cerimónia tradicional no Kisolongo. Fez-me sinal para seguir um carreiro arenoso que
saía do quintal. Caminhámos algumas centenas de metros, passando por um poço
de petróleo, em direcção a um Imbondeiro, a forte árvore também conhecida como
Baobab. O Soyo dia Nsi explicou a importância do seu Imbondeiro: os seus antepassa-
dos plantaram a árvore na sua comunidade e a sua presença duradoura significava a
marca indelével dos antepassados e do seu modo de vida. Antes do advento do nylon
e dos plásticos, os pescadores do Soyo teciam as suas redes a partir da casca fibrosa
dos Imbondeiros e usavam as cascas dos seus frutos caídos para esvaziar as canoas.
Enquanto ele falava sobre a árvore debaixo da sua sombra fresca, eu contemplava o
poço de petróleo brilhando ao calor do Sol. Percebi que o imbondeiro representava
uma reivindicação ao direito à terra e aos seus recursos30. A árvore apresentava a pro-
va do enraizamento da sua população neste território, muito antes da chegada das
companhias petrolíferas ou sequer do Estado angolano.
Ao apelar à sua tradicional ligação a este território saturado de petróleo, os residentes do
Soyo exigem por direito ser remunerados pelos recursos extraídos do município — quer
em terra como no mar. Um ancião em Pângala via a sua comunidade como o componen-
te humano da paisagem. Ele explicou: “Somos da terra — como o ouro, o petróleo e a
madeira”. Mas, desde os anos sessenta, disse ele melancolicamente, “perdemos tanto”.
29
Também se pode escrever Soyo Dya Nsi ou Soyo Dia-nsi.
30
Em muitas partes do mundo, como em Angola, a lei consuetudinária apoia a defesa das árvores associando-as ao
“conjunto de direitos” para o uso da terra, das árvores e dos produtos das árvores (Fortmann 1985; Fortmann and
Bruce 1988). Dado o papel das árvores na lei consuetudinária, as pessoas podem até plantar árvores para reivindicar
direitos sobre a terra. (Peluso 1996). Ver: Fortmann, Louise P. 1985. “The Tree Tenure Factor in Agroforestry with
Particular Reference to Africa.” Agroforestry Systems 2: 229-51. Fortmann, Louise P. and John W. Bruce. 1988. Whose
Trees?: Proprietary Dimensions of Forestry. Boulder, Westview Press. Peluso, Nancy Lee. 1996. “Fruit Trees and Family
Trees in an Anthropogenic Forest: Ethics of Access, Property Zones and Environmental Change in Indonesia.”
Comparative Studies in Society and History 38(3): 510-48.
274 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Outro lamentou-se: “Temos as riquezas do petróleo, mas não são nossas. Só podemos
olhar para elas, não beneficiar delas. Eles vêm como um bando de pássaros, comendo a
colheita toda sem deixar nada, até mesmo o administrador municipal do Soyo não rece-
be a sua parte”. Explicando, referiu que “É uma questão de identidade”… “Aqui estou
eu na província do Zaire e não me sinto prejudicado porque a população nas Lundas
beneficia de algumas minas de diamantes que lá foram descobertas. Não me sinto mal
quando se diz que as pessoas do Cuando Cubango têm muita carne porque são criadores
de gado. Ou os de Benguela com o seu peixe. Há esse discurso sobre o petróleo ser um
tesouro nacional, até mesmo uma salvação, mas ele tem que vir de algum lado. Temos
um ditado que diz que quem está na cozinha não morre de fome” e acrescentou rapida-
mente: “Bem, a não ser que seja um mau cozinheiro.” Continuou, “Nós percebemos que
é um tesouro nacional e que o dinheiro devia ser distribuído pelas pessoas no território
nacional, mas nas áreas de produção essa é uma questão de identidade, a identificação
de uma região com os seus próprios meios de desenvolvimento.”
As autoridades tradicionais são assertivas no argumento de que o Soyo merece uma
parte das receitas das suas riquezas subterrâneas. No entanto, não têm poder para fazer
vingar as suas convicções. Na Constituição angolana, as autoridades tradicionais são
designadas como “as entidades que personificam e exercem o poder dentro das suas
respectivas organizações político-comunitárias, de acordo com os valores, as normas
e as leis tradicionais” — uma definição que corta os laços das autoridades tradicio-
nais ao seu território enquanto “base fundamental da (sua) autoridade”31 Sem poder
territorial, o Soyo dia Nsi e os seus reis do povo subordinados, estão relegados a um
papel figurativo meramente cerimonial. Um rei do povo enfatizou que o petróleo da
sua região tinha financiado as infra-estruturas em Luanda, mas que o Soyo permanece
sem electricidade 24 horas por dia. Ele lembrou os governantes de Luanda que “As
terras que possuem esta riqueza seguram o país — esta nação é feita a partir da riqueza
que brota daqui, do petróleo”.
31
Oliveira, Elias. Agosto 22, 2004, “The ‘Monarchs’ of Angola and the Issue of Local Power.” (Visto em 2005), Pode
ser consultado em www.angonoticias.com.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 275
32
Talvez os agricultores que vinham do interior agrícola produtivo esperassem o mesmo tipo de colheitas dos campos
do Soyo sem ter em conta as diferentes características dos solos arenosos e as diferentes práticas de manutenção dos
solos necessárias para a sua fertilidade na seca zona costeira.
276 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
posto médico foi destruído durante a guerra. A escola também. Nem sequer temos o
suficiente para viver e as companhias petrolíferas não nos dão nada. Estamos a protestar
porque não temos que chegue para dar de comer aos nossos filhos. O Estado possui
esta terra e eles desempenharam o seu papel na colocação dos poços de petróleo por
aqui. Temos registos da presença da nossa comunidade aqui desde de 1482. Vemos o
que se passa no Oceano e o Estado também vê.”
Estes relatos finais enfatizam os laços históricos à terra que precedem em muito a
intervenção das petrolíferas e do Estado angolano. Eles desafiam subtilmente a legi-
timidade destas entidades ao justaporem a abundância dos períodos tradicionais e
anteriores à guerra com o actual vazio de desenvolvimento e um futuro ecologicamente
destruído. O resultado é que as partes responsáveis pelo dano ambiental — o Estado
e as petrolíferas — deviam compensar as comunidades através do desenvolvimento,
para diminuir a perda dos modos de vida tradicionais.
Conclusão
O Administrador Municipal do Soyo partilhou uma vez comigo um provérbio Ango-
lano: “se você quer crescer um bocado na vida económica, arranja amizade com um
rico”. No entanto, continuou, “faz pouco sentido que eu seja pobre acompanhando um
rico sem obter nada dele, desse modo não podemos ter uma boa relação.” Por vezes
parecia que os residentes do Soyo estavam à espera que o desenvolvimento viesse por
osmose, como se a mesma forma de vida da base do Kwanda, onde não há falta de
água, electricidade ou gasolina, se espalhasse pelas áreas circundantes até que todas
as pessoas do Soyo recebessem benefícios iguais. Mas as barreiras mantinham-se in-
transponíveis quando eu fiz a minha primeira viagem a Kwanda.
Ao aproximar-me da base passei por uma mulher idosa, agachada junto à vedação
encimada por rolos de arame farpado. No portão principal uma mulher fardada se-
micerrou os olhos, olhando repetidamente para a minha cara e para a fotografia do
passaporte antes de me fazer sinal para entrar. Vendo que eu estava preocupada com
a mulher, um oficial explicou: “não se permite o acesso a toda a gente, a não ser que
tenham alguma coisa importante a fazer na base”. Pensei no que de importante tinha
a minha deslocação ao Sodispal, o supermercado da base gerido por uma subsidiária
da Sonangol. Garrafas de vinho cobertas de pó e whisky a preços altos, sacos encar-
quilhados de rebuçados e embalagens coloridas de bolos contendo todos os recheios
que se possam imaginar enchiam as prateleiras do Sodispal. A arca frigorífica que
está sempre cheia de Coca-Cola, cerveja Cristal e Fanta, deixava às vezes ver fatias
redondas e cremosas de queijo Gouda, iogurtes e até mesmo manteiga. Mas eu vinha à
procura de uma coisa mais simples, papel higiénico. Durante duas semanas não tinha
havido um único rolo de papel higiénico à venda em todo o Soyo, desde os mercados
ao ar livre até às lojas locais. Contentei-me com toalhetes de papel, também não havia
rolos no Sodispal. Mesmo o poder de compra da indústria petrolífera, personificada
no supermercado em Kwanda, não conseguia superar todos os atrasos do Soyo.
Na altura em que o petróleo foi descoberto, as companhias e os agentes governamen-
tais desejosos de obter uma parte das receitas, criaram uma imagem do petróleo como
sendo uma mercadoria omnipotente e benéfica. Prometeram a transformação econó-
mica, omitiram deliberadamente pormenores sobre os efeitos colaterais e impuseram
um discurso cor-de-rosa sobre os benefícios do petróleo num contexto de ameaça de
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 277
Introdução/Contextualização
Mónica Rafael Simões
& Fernando Pacheco
CES/FEUC &
A s características que a sociedade civil angolana hoje
apresenta são resultado de um conjunto de dinâmicas
históricas de construção e evolução política, económica e
ADRA, Angola social, com interferências de actores internos e externos, tanto
(respectivamente)2 no período colonial como após a independência.
Reproduzido à imagem do Estado colonial e fundamentado
em leis e normas estranhas e distantes da realidade sócio-
-cultural da maioria da população, o Estado independente
continuou a ser encarado pelas elites como um mecanis-
mo de controlo das estruturas administrativas, militares e
económicas e de acesso a recursos económicos. O desejo de
controlar as forças sociais independentes e os privilégios
oferecidos pelo controlo do aparelho estatal conduziram à
partidarização do Estado, que passou a ser dominado pela
incompetência e pela burocracia, e ao estabelecimento de
práticas de clientelismo e à exclusão política de grande parte
dos angolanos. A consequência deste distanciamento foi uma
sociedade obliterada, onde os cidadãos não dispunham de
um espaço de participação autónoma.
Na realidade, a esmagadora maioria da população angolana
não ascendeu a um estatuto real de cidadania no período pós-
-independência e a esta exclusão política somou-se uma vincada
exclusão económica e social, agravada com a queda drástica da
produção e produtividade internas, à medida que aumentavam
os gastos públicos no conflito armado e que as elites no poder
ganhavam uma independência económica resultante dos ren-
dimentos do petróleo. No seio de um sistema dito Socialista,
marxista-leninista, com fortes mecanismos de repressão, a po-
pulação viu reduzido o seu potencial de participação formal,
ficando limitada a mecanismos sociais dominados pela informa-
lização e pela personalização das relações sociais e económicas,
marcada por um sentimento de desamparo colectivo que inibiu
o surgimento de uma lógica de cidadania efectiva.
1
Este artigo, escrito em co-autoria por Mónica Rafael Simões e Fernando Pacheco,
resulta de uma pesquisa realizada em parceria pelo Núcleo de Estudos para a
Paz do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal) e pela
ADRA Luanda e Huambo, no âmbito de um projecto de investigação intitulado
Peacebuilding processes and state failure strategies. Lessons learned from the former
Portuguese colonies e financiado pela Fundação Ford.
2
Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
– CES/FEUC; Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente – ADRA, Angola.
280 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
3
Durante toda a década de noventa, Angola recebeu cerca de 3.6 biliões de dólares em ajuda pública ao desenvolvimento,
dos quais 59% foi atribuído por doadores bilaterais e 41% por doadores multilaterais. Os principais doadores bilaterais
(que forneceram cada um mais de 200 milhões de dólares durante a década de noventa) foram a Suécia, a Itália, a
Espanha, os EUA e Portugal, e os maiores doadores multilaterais foram a CE e o Banco Mundial (Nações Unidas,
2002: 86).
282 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
gência em África, descrevendo-a como uma das maiores e mais complexas operações
de emergência humanitária do continente.
Terminada a guerra civil em 2002, a ajuda começou a sofrer uma redução considerável.
A transformação das relações de ajuda e a mudança de política dos doadores em relação
a Angola que se vive no presente, com uma diminuição considerável dos montantes
de ajuda ao desenvolvimento e com a saída de vários actores do país, é justificada por
razões de redireccionamento da ajuda para outros países agora prioritários, pela falta
de cumprimento das exigências dos doadores por parte do governo angolano e pelo
seu cansaço face à incapacidade de produzir resultados num país detentor de imensas
riquezas e recursos. A percepção de que a fraqueza dos compromissos do governo
angolano com as reformas resultava mais de uma falta de vontade que de capacidade,
condicionou muitos dos programas dos doadores, com uma diminuição importante
ou o término da cooperação para o desenvolvimento com o governo de Angola em
termos bilaterais. No entanto, esta suspeita e/ou a falta de confiança relativamente ao
governo angolano foi várias vezes relegada para segundo plano por outras preocupa-
ções, nomeadamente pelo desejo de promover e manter boas relações com o governo
de um país com imensos recursos petrolíferos.
Angola apresenta algumas especificidades em relação a outros países da região e do
continente no que diz respeito à sua relação de não dependência face à comunidade
internacional, tanto no concernente à ajuda para o desenvolvimento, como em relação
aos habituais condicionalismos político-económicos geralmente promovidos pelas
Instituições Financeiras Internacionais nestes contextos.
De facto, Angola não é, hoje em dia, um exemplo de dependência face à ajuda externa,
na medida em que o peso desta no país é, em termos macro, praticamente irrelevante,
tanto para o Orçamento Geral de Estado, como para a definição da sua política ma-
croeconómica e financeira e planos nacionais de desenvolvimento. A decisão tomada
pelo governo de Angola de colocar um fim às negociações de um acordo com o Fundo
Monetário Internacional (FMI), comunicada oficialmente em Fevereiro de 2007, é apenas
um exemplo desta realidade.4 Embora ao nível do debate político e negocial exista uma
aparente aceitação teórica de alguns modelos padrão, promovidos pelo Banco Mundial
(BM), FMI ou Comissão Europeia (CE) — que veiculam uma visão externa de desenvol-
vimento, democracia, Direitos Humanos e crescimento económico universal, associada
a programas de reconstrução pós-conflito, transparência da governação e luta contra a
pobreza —, em última análise, Angola tem acabado sempre por definir as suas próprias
políticas e ritmos de implementação, à margem da pressão internacional.
No entanto, durante as várias fases de conflito armado, sobretudo entre 1992 e 2002,
Angola apresentava uma situação muito diferente, nomeadamente enquanto país re-
ceptor massivo de assistência humanitária e ajuda internacional. Este quadro deixou
marcas profundas ao nível da sociedade civil.
Ultrapassada que está a fase de guerra civil e estando em preparação as segundas eleições
legislativas do país, é importante fazermos uma reflexão sobre as dinâmicas e os impactos
da ajuda internacional em Angola para melhor se delinearem estratégias de acção futura.
4
Angola foi um dos poucos países africanos a recusar taxativamente as condições financeiras impostas pelo Fundo
– tais como a redução das despesas públicas, apoiada num menor envolvimento do Estado na economia e num
crescente processo de privatização –, embora afirme que vai continuar a respeitar as suas obrigações e a manter com
este uma relação de assistência e aconselhamento técnico.
Mónica Rafael Simões & Fernando Pacheco i Sociedade Civil e Ajuda Internacional em Angola 283
Esta necessidade é tanto mais premente porque, por um lado, são quase inexistentes
as avaliações de carácter global sobre o impacto da ajuda no país, para além de olhares
sobre projectos específicos — sendo de destacar a Noruega e a Suécia como excepções
à regra dominante —, o que pode ser um resultado da falta de memória institucional
das organizações e de tradição de processos de aprendizagem face às complexidades
e diversidades das várias realidades com que trabalham. Por outro lado, às dinâmicas
e apoios específicos da ajuda contrapõe-se em Angola uma economia de base petrolí-
fera, o que conduziu ao questionamento por parte dos países doadores e do próprio
governo (por vezes de forma simplista) da necessidade de ajuda externa ao país. Para
além disso, importa relembrar que os critérios da atribuição da ajuda ao país, durante e
depois do conflito, obedeceram tanto (ou mais) a razões de ordem ideológica e política,
como aos reais problemas e necessidades das suas populações. Finalmente, a tentativa
de análise de impactos, quando existente, tende a excluir as práticas, estratégias e
processos de adaptação das próprias sociedades receptoras da ajuda internacional, e
raramente se procura fazer uma avaliação multidimensional dos efeitos da ajuda na
vida dos cidadãos e no tecido social, económico e político nacional.
Se tentarmos fazer um exercício de análise crítica, conseguimos identificar claramente as
dimensões em que a ajuda internacional teve um impacto extraordinariamente positivo
no país, a nível social e de potencial transformador, do mesmo modo como conseguimos
também denunciar algumas das negligências e ocultações da própria ajuda.
1.1 - Impactos positivos da ajuda
A ajuda teve impactos positivos essencialmente ao nível do auxílio humanitário, da promo-
ção da liberdade de expressão e no apoio ao fortalecimento da sociedade civil angolana.
A prestação de assistência humanitária durante a última década do conflito e no perí-
odo pós-conflito foi responsável por salvar a vida de milhões de angolanos e deve ser
assinalada como uma das contribuições mais positivas da comunidade internacional
para com Angola. O fornecimento de ajuda alimentar e humanitária num contexto
de emergência procurou minimizar os efeitos da guerra sobre a vida das populações
e uma das grandes vantagens dos actores internacionais nessa altura foi o acesso que
conseguiam ter a muitas áreas em situação difícil, sendo detentores de uma experiência
logística que se revelou fundamental para responder às necessidades da população.
Por outro lado, duas dimensões positivas adicionais apontadas prendem-se tanto com
o intercâmbio e diálogo que, embora nem sempre fácil, se desenvolveu entre o Estado
angolano e as diferentes agências portadoras desta ajuda, através de diferentes órgãos
de soberania do Estado,5 como com o contacto estabelecido entre as organizações in-
ternacionais presentes no terreno e o povo angolano, que durante muitos anos esteve
mais fechado nos seus contactos com o exterior.
Não obstante, o contributo mais importante e duradouro é sem dúvida o apoio ao
fortalecimento da sociedade civil angolana. Como já referimos, o surgimento e cresci-
mento de várias organizações não governamentais, associações e sindicatos, resultantes
das mudanças políticas dos anos noventa, obtiveram nos doadores internacionais a
sua principal fonte de financiamento, claramente numa lógica de investimento destes
actores enquanto catalizadores do processo de democratização. Embora muitas delas
tenham surgido num contexto de emergência e representem iniciativas orientadas
5
Contudo, o mesmo já não pode ser dito em relação ao diálogo e abertura entre o Estado e as organizações angolanas,
que foi quase inexistente.
284 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
6
A falta de sustentabilidade dos projectos, bem como o desconhecimento e a incapacidade de analisar correctamente
o contexto e as dinâmicas das comunidades onde se pretende intervir, é uma crítica recorrente. As populações
habituaram-se rapidamente a participar dos projectos externos, por entenderem os benefícios directos dele resultantes
– normalmente traduzidos em apoio em géneros alimentícios ou em meios de produção. Contudo, esta participação
raramente se traduz numa real apropriação do projecto por parte das comunidades, que costumam estar ausentes da
sua formulação e o encaram como algo estranho à sua realidade, reagindo perante este de forma passiva ou submissa
e raramente desenvolvendo mecanismos de apropriação, sustentabilidade e de desenvolvimento de capacidades.
286 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
7
Uma tendência recente, resultante desta prática, é agora este “roubo” ser feito por parte do próprio Estado, resultado
da melhoria dos salários pagos pelas instituições públicas e, segundo algumas vozes, da tentativa de ganhar um
maior controlo sobre os processos em marcha, procurando diminuir as vozes credíveis dentro da sociedade civil.
Mónica Rafael Simões & Fernando Pacheco i Sociedade Civil e Ajuda Internacional em Angola 287
eclodir de diversas formas e por diversas vias. Este tipo de questões mais estruturais
e de longo prazo estão frequentemente ausentes das agendas da ajuda internacional.
Uma atenção cuidada aos vários mecanismos tradicionais que existem para resolver
problemas e conflitos a nível local e comunitário e a sua inclusão em iniciativas de
ajuda internacional teria sido fundamental.
Em conclusão, na nossa perspectiva, um dos principais problemas na relação dos do-
adores e das ONG internacionais com Angola está na sua postura de distanciamento
ou mesmo ignorância em relação às dinâmicas comunitárias endógenas.8 A quase
totalidade das ONG internacionais sempre canalizou as ajudas materiais sob a forma
de assistência directa às populações, ignorando as poucas iniciativas e intervenções
que procuravam valorizar as organizações endógenas, não as envolvendo na respon-
sabilização pela gestão da ajuda. Este tipo de atitude assenta no facto de doadores e
ONG internacionais desvalorizarem, tal como o governo, o conhecimento da realidade
social e, consequentemente, a capacidade das comunidades puderem assumir, elas
próprias, o seu destino.
Em todas as comunidades das diversas áreas culturais angolanas podem ser encon-
trados “conselhos” comunitários que jogam um importante papel na gestão da vida
comunitária, na moderação do poder autocrático dos chefes tradicionais e na resolução
de conflitos. A exclusão destas instituições do processo de canalização das ajudas e
da resolução de conflitos a nível local constituiu uma perda de oportunidade para
se apoiar os angolanos a encontrarem novos caminhos para a democracia e para o
desenvolvimento.
Bibliografia
Duffield, M. (1994), Complex political emergencies with reference to Angola and Bosnia: an exploratory report
for UNICEF. Birmingham: School of Public Policy.
Nações Unidas (2002), Angola: os desafios pós-guerra – Avaliação Conjunta do País 2002. Luanda: Sistema
das Nações Unidas em Angola.
Ostheimer, A. E. (2000). “Aid Agencies: Providers of Essential Resources?”, in J. Cilliers and C. Dietrich
(eds.) Angola’s War Economy: The Role of Oil and Diamonds. Pretoria: Institute for Security Studies.
Pacheco, F. (2002), “Caminhos para a cidadania: poder e desenvolvimento a nível local na perspectiva
de uma Angola nova”, Política Internacional, 25, Primavera-Verão, 2002.
Robson, P. (2003), The Case of Angola, ALNAP. London: ODI.
Tvedten, I. (2001), Angola 2000/1, Key Development Issues and the Role of NGOs. Bergen: Chr. Michelsen
Institute.
8
Há muito pouco conhecimento sobre as organizações “informais” da sociedade civil angolana – as organizações
tradicionais, associações locais, relações e redes sociais – embora estas sejam importantes para as estratégias diárias
de sobrevivência das pessoas tanto nas áreas rurais como urbanas (Tvedten, 2001: 46).
289
Anacleta Pereira
Fundação Open Society
Angola
V ários textos deste livro focam a dimensão dos cons-
trangimentos ao desenvolvimento da sociedade civil,
resultantes da própria estruturação do sistema sócio-político
nacional e suas vertentes internacionais. Optei, assim, por
dar aqui o meu contributo centrando-me na minha expe-
riência enquanto integrante da sociedade civil angolana, a
trabalhar essencialmente do lado das instituições doado-
ras, mais especificamente ao nível das Organizações Não
Governamentais (ONG) internacionais. Não obstante estar
também associada a algumas organizações angolanas, a
minha experiência profissional situa-se principalmente ao
nível das Organizações da Sociedade Civil (OSC) interna-
cionais. Como tal, considerei que a minha contribuição para
este livro seria mais enriquecedora se centrada nas relações
entre as OSC internacionais e nacionais, sem deixar de me
referir pontualmente às questões intergovernamentais inter-
nacionais, que acabam igualmente por influenciar aquelas
relações.
A análise que aqui desenvolvo, essencialmente ao nível das
relações entre ONG nacionais e internacionais, não pretende
encontrar responsáveis ou “culpados” externos pelas situa-
ções menos positivas das OSC angolanas. Pretende tão sim-
plesmente alertar para a necessidade de se alterarem vários
aspectos daquela relação, se quisermos torná-la mais eficiente
e eficaz para o reforço da capacidade das OSC nacionais.
O esforço e o contributo das organizações internacionais
em Angola tem sido meritório, mas enferma igualmente de
várias debilidades que serão aqui expostas.
O texto apresenta-se dividido na abordagem de cinco temas
que me parecem centrais ao assunto em análise. O primeiro é
de enquadramento “histórico” das relações entre as OSC na-
cionais e internacionais e de caracterização do tipo de relações
estabelecidas; o segundo centra-se em algumas estratégias
que podem servir para a aglutinação das OSC em torno de
projectos e objectivos comuns; o terceiro fala do desafio que
se coloca às OSC em termos de conquista do seu espaço de
poder e exercício desse poder; o quarto é dedicado às elei-
ções; o quinto, e último, relembra o impacto que a dimensão
internacional tem tido ao nível do funcionamento das OSC
em Angola.
290 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
com estimativas de toda a espécie, em muitos casos sem as bases mínimas em termos
de estudos quantitativos e de levantamento de dados. É uma literatura que prolifera
com citações de citações, que de tanto se reproduzirem se tornam dados empíricos
aceites pela maioria como fidedignos, sem sabermos exactamente a metodologia e o
rigor que estiveram na base da recolha dessa informação.
Outro dos problemas que podemos constatar a este nível da produção do conhecimento
da realidade, diz respeito à necessidade de reforçar os mecanismos de participação
nestas pesquisas e de alargar o leque daqueles que podem contribuir para a sua pro-
dução. Esta é uma área em que os parceiros externos poderiam dar uma grande ajuda
devido às suas competências técnicas e às suas possibilidades de financiamento. Muitas
organizações internacionais a trabalharem em Angola, têm financiado e produzido
estudos importantes sobre variadíssimas áreas da realidade social, política e económica
de Angola, mas nem sempre os tornam públicos e raramente vemos estes estudos (por
vezes complementares) articulados uns com os outros ou continuados no tempo. São
parcelares, isolados e de restrita circulação.
Para além da articulação e da continuidade, outro aspecto crucial do conhecimento é
a sua utilidade, a sua aplicação prática. Os estudos e pesquisas não devem ser vistos
como um fim em si mesmos, mas como uma base para o desenvolvimento de campa-
nhas, de acções, que promovam mudanças sociais. Conhecer a realidade a fundo para
depois poder agir sobre ela com fundamento.
Ao nível das OSC, tem-se muitas vezes colocado em causa e apontado as insuficiências
dos dados apresentados no relatório de progresso dos Objectivos de Desenvolvimento do
Milénio (ODM), produzido pelo governo em conjunto com o PNUD, em 20051. Contudo,
estas objecções constituem apenas suspeitas, mas não existem pesquisas concretas que
possam validar essas suspeitas. Uma campanha de acompanhamento dos progressos
dos ODM em Angola poderia servir de projecto charneira para incentivar a pesquisa
por parte das OSC (nacionais e internacionais), incluindo centros de pesquisa das uni-
versidades. Seria uma visão alternativa, uma posição da sociedade civil. Obviamente
que as OSC não têm capacidade financeira e logística que possa abarcar uma pesquisa
exaustiva e completa em todo o país e em todas as áreas correspondentes aos objectivos
do milénio, mas poderemos pelo menos estudar algumas comunas e municípios que
sirvam de estudo de caso concreto e teríamos uma amostra altamente significativa para
contrapor aos dados oficiais, confirmando-os ou infirmando-os.
O mesmo tipo de raciocínio poderá ser aplicado à questão específica da transparência.
Tem-se falado muito entre OSC nacionais e internacionais na possibilidade de apoiar
um estudo sobre transparência, começando pela questão concreta do acompanhamento
da execução e implementação do Orçamento Geral do Estado, mas este estudo terá
que servir uma campanha paralela de tentativa de influenciar a política pública no
sentido do rigor orçamental. Não serve de nada o estudo e o acompanhamento sem
a intervenção pública e social em favor do rigor.
Estas pesquisas poderiam e deveriam ser realizadas em coordenação com outros
mecanismos regionais e numa base comparativa com outros países da região (como
o Peer Review Mechanism do NEPAD e outros semelhantes ao nível da SADC). Só faz
sentido a pesquisa se nós olharmos também para mecanismos regionais, uma vez que
1
Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, relatório de progresso, 2005 (Luanda: Governo de Angola e PNUD).
296 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
esta problemática dos ODM, incluindo a boa governação, tem que ser desenvolvida
também no âmbito regional.
Um tal exercício objectivaria os argumentos que têm vindo a ser expostos ao longo
deste texto, para dinamizar e fortalecer a SC e para reequacionar a relação com os
parceiros externos.
Responsabilidade Social
das Empresas em Angola
Manuel Paulo
Universidade
de Middlesex - Faculdade
E ste artigo procura discutir sucintamente a aplicabili-
dade da responsabilidade social das empresas (RSE)
em Angola, encontrando-se estruturado em duas partes: a
de Gestão de Empresas, primeira faz uma resenha da RSE; a segunda discute o tema
Londres no contexto angolano.
1
Harrison, J. G. & Freeman, R. E. (1999), Stakeholders, social responsibility,
and performance: Empirical evidence and theoretical perspectives. Academy of
management Journal, Vol. 42, N.º 5, pp. 479 – 485.
2
Barrett, Richard (1998). Liberating the Corporate Soul: Building Visionary Organization.
Oxford: Butterworth Heinemann.
3
Donaldson, T. and Preston, L. E. (1995), “The Stakeholder Theory of the
Corporation: Concepts, Evidence, and Implications.” Academy of Management
Review, Vol. 20, N.º 1.
4
Freeman, R. E. (1984). Strategic Management: A Stakeholder Approach. Boston Pitman
Publishing; também Greenley, G. E. and Foxall, G. R. (1997), Multiple stakeholder
orientation in the UK companies and the implication for the company performance.
Journal of Management Studies, Vol. 34, N.º 2, pp. 259-285.
302 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
real pelos problemas sociais5. Levitt argumentou que a RSE não é democrática e que,
assim, não seria eticamente correcto que os empresários assumissem qualquer auto-
ridade sobre a forma de lidar com os problemas sociais6. Para além disso, Dubbink
defendeu que a RSE não é democrática porque as empresas consideram ser da sua
discricionariedade a escolha de agir ou não de forma socialmente responsável e porque
a sociedade não tem mecanismos para as obrigar a agir nesse sentido7.
Davis sugeriu que as empresas que não ajam de acordo com valores sociais acabarão,
eventualmente, por perder a legitimidade de existirem e não irão sobreviver8; Carrol
e Mintzberg9 chamaram a atenção para o facto de que as empresas têm um impacto
significativo na sociedade em que se inserem e que têm de reconhecer as implicações
sociais da sua presença uma vez que os governos não são suficientemente fortes para
lhes imporem obrigações sociais. Barnard referiu que o objectivo das empresas era
servir a sociedade e que era da responsabilidade dos governos estimular esta noção
de desígnio moral nos empregados da empresa, havendo a necessidade de existirem
directores públicos nomeados pelo governo nas grandes companhias, para tornar mais
precisa a vaga ideia de responsabilidade social das empresas e para tornar a gestão
empresarial mais compatível com os princípios democráticos10.
O papel das empresas na sociedade tem sido uma preocupação já há algum tempo.
Heald chamou a atenção para o facto da integração das responsabilidades sociais no
mundo dos negócios ter começado a surgir durante as décadas de 1880 e 189011. Foi
nessa altura que as grandes multinacionais começaram a assumir voluntariamente
as suas responsabilidades sociais chamando a si papéis filantrópicos, doando fundos
para a caridade ou apoiando financeiramente as actividades dos seus trabalhadores
como, por exemplo, o YMCA. O envolvimento das empresas com a sociedade permitiu
melhorar significativamente o bem-estar de diversas camadas sociais, especialmente o
bem-estar dos trabalhadores. Blowfield levantou a hipótese de que a RSE e o controlo
da ambição desmedida não são exigências novas no sector empresarial, mas que po-
dem ser encontradas já no século I a.C. no Ocidente, por pensadores como Cícero, bem
como por pensadores orientais, como Kautilya, no século IV a.C., quando o Islão e a
Igreja Cristã medieval se serviram de fóruns públicos para condenar algumas práticas
comerciais que consideravam erradas12. Para outros autores:
Os precursores modernos da RSE podem ser encontrados nos boicotes aos géneros alimen-
tícios produzidos com trabalho escravo durante o séc. XIX, na perspectiva moral de alguns
empresários como Cadbury e Marks e nos julgamentos dos crimes de guerra de Nuremberga
5
Heald, M, (1957), “Management’s Responsibility to Society: The Growth of An Idea”. Business History Review,
Vol. 31, N.º 4, pp. 122-126.
6
Levitt, T. (1958). ”The Dangers of Social Responsibility”. Harvard Business Review. (September/October),
pp. 41-50.
7
Dubbink, W, (2005), “Democracy and Private Discretion in Business”. Business Ethics Quarterly. Vol. 15, N.º 1.
pp. 37-66.
8
Davis, K. (1973), “The Case For and Against Business Assumption of Social Responsibilities”. Academy of Management
Journal, Vol. 16, N.º 2, pp. 312-322.
9
Carroll, A B. (1979), “A Three-Dimensional Conceptual Model of Corporate Performance”, Academy of Management
Review, Vol. 4, pp. 497-505; também Mintzberg, H, (1996), “Managing Government – Government Management”.
Harvard Business Review, May-June, pp. 75-83.
10
Barnard, C. (1938), The Function of the Executive. Cambridge: Harvard University Press.
11
Heald, M, (1957), “Management’s Responsibility to Society: The Growth of An Idea”. Business History Review, Vol. 31,
N.º 4, pp. 122-126.
12
Blowdfield. M. et al (2005), “Critical perspectives on Corporate Social Responsibility”, International Affairs Journal,
Vol. 81, N.º 3, pp. 500-513.
Manuel Paulo i Responsabilidade Social das Empresas em Angola 303
após a Segunda Guerra Mundial, onde os directores da empresa alemã I.G. Farben foram
considerados culpados de assassínio em massa e de recurso a trabalho escravo.13
No entanto, há académicos que traçam um paralelo entre o aumento de interesse na RES,
as mudanças institucionais e o reconhecimento do poder e autonomia relativa das grandes
multinacionais apoiadas pelo processo de globalização. De acordo com estes argumentos,
o processo de globalização fracturou a divisão do trabalho entre as empresas e o Estado, a
par do crescimento das Organizações Não Governamentais (ONG) — um veículo utilizado
para canalizar e exprimir o descontentamento social e político, um papel que os mecanis-
mos institucionais dos Estados em desenvolvimento são ainda incapazes de desempenhar.
A retracção estatal em relação ao seu papel de provedor de bem-estar sob a pressão de
crises fiscais e das ameaças (reais ou imaginárias) da globalização, significou que não se
podia mais contar com o Estado como fonte de protecção do bem-estar14.
Para além disso, a RSE é um conceito que tem sido manchado pela falta de uma de-
finição comum ou particular, aceite e aplicável no geral àquilo pelo qual as empresas
devem ser responsabilizadas ou como deve ser utilizado dentro de uma organização.
Apesar disso, podemos encontrar várias definições diferentes da RSE na literatura
e nos sítios da internet de várias agências de desenvolvimento, o que sublinha a
ambiguidade da sua definição e interpretação, dando, consequentemente, origem a
alguns problemas15. Uma das definições de RSE inclui limitar a maximização do valor
do capital dos accionistas como responsabilidade social, ou uma empresa que aja de
acordo com aquilo que a sociedade considera serem as suas responsabilidades16.
A título de exemplo, o Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável
(World Business Council for Sustainable Development – WBCSD) define a RSE como:
O compromisso das empresas de contribuir para o desenvolvimento económico susten-
tável, trabalhando com os empregados, com as suas famílias, com a comunidade local e
com a sociedade no geral para melhorar a sua qualidade de vida17.
Esta definição exige um envolvimento de grande alcance por parte das empresas em
relação à sociedade. O ênfase é claro, as empresas têm que ter em linha de conta mais
do que apenas o bem estar dos consumidores para poderem contribuir de forma mais
substancial e positiva para a sociedade em geral. Como resultado disto, as empresas
estão a alterar as suas estruturas de gestão para melhorar o seu desempenho social.
As diferenças nas definições de RSE realçam a flexibilidade que as empresas têm em
relação ao seu empenho na responsabilidade social, especialmente quando se deparam
com exigências para que incluam na sua acção questões tão variadas como os direitos
dos animais, a governação empresarial, a gestão ambiental, a filantropia empresarial,
a gestão dos interesses das diversas partes envolvidas, os direitos laborais e o desen-
volvimento comunitário. Como podemos verificar:
13
Blowdfield. M. et al (2005), “Critical perspectives on Corporate Social Responsibility”, International Affairs Journal,
Vol. 81, N.º 3, pp. 500-513.
14
Beck, U, (2000), The Brave New World of Work, Cambridge: Polity Press.
15
Gerrans, P and Clark-Murphy, M, “The Corporate Social Responsibilit and the Theory of the Firm”. School of
Accounting, Finance and Economics – Edith Cowan University and FIMARC Working Paper Series, N, 0505, October
2005.
16
Sen, S and Bhattacharya, C B. (2001), “Does Doing Good Always Lead to Doing Better? Consumer Reactions to
Corporate Social Responsibility”, Journal of Marketing Research, Vol. 38, pp. 225-244.
17
WBCSD, 2000, cit. in Blowdfield. M. et al (2005), “Critical perspectives on Corporate Social Responsibility”,
International Affairs Journal, Vol. 81, N.º 3, pp. 500-513.
304 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Grande parte dos que advogam a RSE, em particular aqueles que dirigem gigantescas
empresas internacionais, estudaram economia no seu tempo. Muitos dos quadros das
Nações Unidas, do Banco Mundial e da OCDE que defendem a RSE possuem graus
académicos das melhores universidades nesta matéria. No entanto, não conseguiram,
aparentemente, compreender esta perspectiva básica e indispensável do tema18.
Este argumento apresenta o dilema encontrado pelos administradores da empresas quan-
do tentam dialogar com partes interessadas nestes assuntos, para além dos accionistas,
especialmente quando abordam as questões específicas que daí decorrem, como sejam
a de saber quem são as partes interessadas? quais dessas partes interessadas devem ser
atendidas? quais dos seus interesses enquanto empresa são mais importantes?, como
se pode encontrar o equilíbrio entre os diversos interesses por vezes em conflito? que
montantes do capital da empresa devem ser aplicados para atender às responsabilidades
sociais da empresa?19. Assim, sai reforçado o argumento anteriormente exposto de que o
conceito de RSE não é democrático e é demasiado vago para ser considerado enquanto
objectivo da gestão das empresas20. Como podemos verificar:
A RSE é, normalmente, um embuste. Cabe aos governos e não às empresas decidir sobre
as questões da política social, ambiental e industrial — e os governos devem ter em
mente que se falharem nessa obrigação, a multinacional psicótica, muito provavelmente
escondida atrás da RSE, vai continuar a violar e a pilhar21.
É, portanto, difícil decidir qual das definições acima apresentadas é aplicável ao con-
texto angolano, uma vez que uma definição apropriada de qualquer disciplina ou
convicção política deve exigir o consenso entre académicos e profissionais da área e
deve funcionar sob qualquer modelo de empresa22.
Para além disto, têm existido exigências de incorporação de novos termos tais como presta-
ção de contas empresariais (corporate accountability), investimentos socialmente responsáveis
e desenvolvimento sustentável, que pretendem substituir, redefinir ou complementar o
conceito de RSE23. Ao mesmo tempo, surgiram, e continuam a surgir, uma série de códigos
de conduta voluntários, nomeadamente: O Pacto Global das Nações Unidas; a SA8000, as
directivas da OCDE, os Princípios Global Sullivan; a Ethical Trading Initiative, o Responsible
Care, as iniciativas do Banco Mundial — WBCSD initiatives e a Global Reporting Initiative
(apenas para citar alguns). Iniciativas destas continuam a surgir e têm sido subscritas
por grande parte das empresas para darem uma boa imagem de cidadania empresarial.
Apesar disto, o debate pró e contra o papel das empresas na sociedade e a interpretação
do que é a RSE tem aumentado significativamente, embora se mantenha muito centrado
sobre como é que as empresas podem incorporar e porque devem aceitar a RSE e quais
as implicações que tal atitude pode trazer para elas e para a sociedade.
18
Economist Intelligence Unit (2006) Country Report Angola, September 2006.
19
Jones, T.M, (1995), “Instrumental Stakeholder Theory: A synthesis of ethics and”. Academy of Management Review,
Vol. 20, N.º 2, pp. 404-438.
20
Friedman, M. (1962). Capitalism and Freedom, Chicago: University of Chicago Press, USA; Friedman, M. (1970),
“The Social Responsibility of Business is to Increase its Profits”, New York Times Magazine, 13 September, p. 32, cit in
Hemphill (1997, p. 53); Levitt, T. (1958). ”The Dangers of Social Responsibility”. Harvard Business Review. (September/
October), pp. 41-50.
21
Economist Intelligence Unit (2006) Country Report Angola, September 2006, p. 21.
22
Gerrans, P and Clark-Murphy, M, “The Corporate Social Responsibility and the Theory of the Firm”. School of
Accounting, Finance and Economics – Edith Cowan University and FIMARC Working Paper Series, N, 0505, October
2005.
23
Blowdfield. M. et al (2005), Critical perspectives on Corporate Social Responsibility, International Affairs Journal,
Vol. 81, N.º 3, pp. 500-513.
Manuel Paulo i Responsabilidade Social das Empresas em Angola 305
24
Economist Intelligence Unit (2006) Country Report Angola, September 2006
25
International Energy Angecy, (2006), Angola Towards an Energy Strategy, Paris.
26
International Energy Angecy, (2006), Angola Towards an Energy Strategy, Paris.
27
British Petroleum (2005), Statistical Review.
28
International Energy Angecy, (2006), Angola Towards an Energy Strategy, Paris, pp. 81-82
29
International Energy Angecy, (2006), Angola Towards an Energy Strategy, Paris.
306 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
30
Karl, T. L. (1997) The Paradox of Plenty. Oil Booms and Petro-States. Berkely, CA: University of California Press.
31
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32
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33
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34
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35
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Manuel Paulo i Responsabilidade Social das Empresas em Angola 307
36
Gelb, A. (1988) Oil Windfalls: Blessing or Curse? New York: Oxford University Press; Sachs, J. D., and A. Warner
(1995) “Natural Resource Abundance and Economic Growth”. in Development Discussion Paper No. 571a (Cambridge,
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of the Resource Curse”. World Politics Vol. 51, N.º 2, pp. 297–322; Frynas J.G. (2005), “The False Developmental
Promise of Corporate Social Responsibility: Evidence from Multinational Oil Companies”. International Affairs Journal.
Vol. 81, N.º 3, pp. 581-598.
37
International Energy Angecy, (2006), Angola Towards an Energy Strategy, Paris.
38
Hart, S L. (1995), “A Natural – Resource Based View of the Firm”. Academy of Management Journal. Vol. 37,
pp. 986 – 1014.
39
McWilliams A, Siegel, D and Wright, P M. (2006) “Corporate Social Responsibility: Strategic Implications”. Journal
of Management Studies. Vol. 43, N.º 1.
308 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
40
O’Donovan, G. (2002), “Environmental Disclosures in the Annual Report: Extending the Applicability and Predictive
Power of Legitimacy Theory”. Accounting, Auditing & Accountability Journal. Vol. 15, N.º 3. pp. 344-371.
41
Paterson, C and Woodward, D G. (2006), Levels of Corporate Disclosure Following Three Major UK Transport Accidents:
An Illustration of Legitimacy Theory, Draft Working Paper, University of Southampton.
42
Economist Intelligence Unit (2006) Country Report Angola, September 2006, p. 7.
Manuel Paulo i Responsabilidade Social das Empresas em Angola 309
Conclusão
Em suma, as empresas têm um impacto significativo na sociedade em que se inserem
e têm que necessariamente reconhecer as implicações sociais da sua presença; os
governos não são suficientemente fortes para lhes imporem obrigações sociais deste
43
McWilliams A, Siegel, D and Wright, P M. (2006) “Corporate Social Responsibility: Strategic Implications”. Journal
of Management Studies. Vol. 43, N.º 1.
44
Freeman, R. E. (1984). Strategic Management: A Stakeholder Approach. Boston Pitman Publishing.
45
McWilliams A, Siegel, D and Wright, P M. (2006) “Corporate Social Responsibility: Strategic Implications”. Journal
of Management Studies. Vol. 43, N.º 1.
46
Donaldson, T. and Preston, L. E. (1995), “The Stakeholder Theory of the Corporation: Concepts, Evidence, and
Implications.” Academy of Management Review. Vol. 20, N.º 1.
47
Jones, T.M, (1995), “Instrumental Stakeholder Theory: A synthesis of ethics and”. Academy of Management Review,
Vol. 20, N.º 2, pp. 404-438.
48
Carroll, A B. (1999), “Corporate Social Responsibility: Evolution of a Definitional Construct”, Business and Society,
Vol. 38, N.º 3, pp. 268-295;
49
Clarkson, M, Starik, M, et al (1994), “The Toronto Conference: Reflections in Stakeholder Theory”. Business and
Society, Vol. 33, N.º 3, pp. 82-90.
310 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
tipo – RSE50. Assim, actualmente é expectável que as grandes multinacionais sejam so-
cialmente responsáveis numa lógica de cidadania empresarial, e todas querem mostrar
que o são. Na verdade, a maior parte das empresas possuem agora administradores
de topo, recrutados às ONG, responsáveis pelo desenvolvimento e coordenação das
iniciativas de RSE. Para além disso, existem nas faculdades de gestão programas de
formação para executivos na área da RSE. No entanto, os críticos continuam a acu-
sar as empresas de fraca preocupação efectiva com a cidadania empresarial e a RSE.
Argumenta-se que a motivação empresarial para com iniciativas de responsabilidade
social é sempre impelida por algum tipo de interesse escondido, ou que é uma res-
posta ao ambiente competitivo e às exigências feitas aos administradores por vários
grupos de interesse, nomeadamente clientes e sociedade civil em geral51. No entanto,
muitos consideram a RSE como não democrática porque as empresas mantêm um
poder discricionário sobre se, como, onde e quando, devem agir de forma socialmente
responsável e porque a sociedade não tem maneiras de as pressionar a agir52.
50
Carroll, A B. (1979), “A Three-Dimensional Conceptual Model of Corporate Performance”, Academy of Management
Review, Vol. 4. pp. 497-505; Mintzberg, H, (1996), “Managing Government – Government Management”. Harvard
Business Review, May-June, pp. 75-83.
51
McWilliams A, Siegel, D and Wright, P M. (2006) “Corporate Social Responsibility: Strategic Implications”. Journal
of Management Studies. Vol. 43, N.º 1.
52
Dubbink, W, (2005), “Democracy and Private Discretion in Business”. Business Ethics Quarterly. Vol. 15, N.º 1. pp. 37-66.
Capítulo V
O Enquadramento Regional
Textos
Dale T. McKinley
Lloyd M. Sachikonye
Henning Melber
Fidelis Edge Kanyongolo
Badala Tachilisa Balule
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote
Rueben L. Lifuka & Lee Habasonda
Jean-Claude Katende
l
313
O Legado da Transição
Dale T. McKinley O ataque intelectual à análise de classe, sobretudo depois
Activista de vários do colapso do comunismo na União Soviética no final dos
Movimentos Sociais anos oitenta, condicionou a compreensão, numa era onde as
da África do Sul, relações de poder estão activamente em processo de reestrutu-
incluindo Indaba ração. O uso do conceito de sociedade civil a favor do projecto
e Fórum
ideológico global dominante delimitou o campo discursivo
Anti-Pivatização
em que a sociedade é entendida e discutida. Esta concepção
dominante da sociedade civil, como esfera de independência
da sociedade em relação ao Estado, estrutura a forma como
o poder é entendido e enquadra os objectivos da organização
no campo da sociedade civil. Sem uma análise de classe, o
discurso de oposição é incapaz de mapear o caminho para um
projecto contra-hegemónico ampliando as fissuras criadas
pelas contradições do enquadramento hegemónico.2
Historicamente, a ideologia dominante da luta revolucionária
na África do Sul tem sido uma de estatismo, dentro da qual
a tomada e o exercício do poder têm sido conceptualizados
como contíguos ao próprio Estado. Todavia, a organização
dos trabalhadores e as lutas de base em prol de reformas ime-
diatas, de natureza política e sócio-económica, que ganharam
destaque nos anos oitenta, desafiaram esta concepção. Para-
lelamente ao colapso de modelos estatistas na antiga União
Soviética e Europa de Leste e as expectativas de transição
negociada na África do Sul, a noção de sociedade civil como
antídoto para o estatismo Estalinista e democracia social foi
ressuscitado.3 Paralelamente, “o conceito de sociedade civil
vinha sendo moldado pelo poder da classe dirigente global,
no sentido de apoiar o anti-estatismo e para separar a política
do bem-estar e da economia”.4
Assim, na base da “transição negociada” da África do Sul no
início dos anos noventa, estavam em jogo dois conceitos dia-
metralmente opostos de sociedade civil, apesar do seu aparente
1
Traduzido do original em inglês por Mónica Rafael Simões.
2
Stephen Greenberg & Nhlanhla Ndlovu (2004), “Civil society relationships”, in
Mobilising for Change: New Social Movements in South Africa, Development Update,
Vol. 5, N.º 2, p. 23.
3
Ver Capítulo 7, in Hein Marais (1998), South Africa: Limits to Change (London:
Zed Books).
4
Greenberg & Ndlovu (2004), p. 25.
314 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
cariz comum “anti-estatista”. Por um lado, a ideia de sociedade civil como “espaço”
colectivo político e organizacional da sociedade, predominantemente enraizado na clas-
se trabalhadora, onde “o poder do povo” pode ser utilizado para contestar e moldar o
poder político e económico da sociedade no seu todo, inclusive o Estado. Por outro lado,
a ideia de sociedade civil como “sem classe” (independente ou acima das lutas de classe),
abrangendo todas as forças sociais fora do/independentes do Estado, e cujo principal
papel é agir como mecanismo institucional de vigilância do poder estatal (o designado
papel de “cão de guarda” – watchdog), e exercendo um paralelo “extra-político” — e
muitas vezes complementar — face ao poder estatal, sem ligação directa com o processo
mediante o qual o poder económico se relaciona com o poder politico (infra-estruturas e
super-estruturas).
Nos primeiros anos da “transição negociada” sul-africana, o Congresso Nacional Afri-
cano (African National Congress – ANC, mais tarde no poder), conseguiu desempenhar
o papel da sociedade civil. Numa das muitas “reviravoltas” que viriam a acontecer,
o desempenho deste papel acabou por vir mais tarde a reforçar a ideologia do esta-
tismo. Em meados dos anos noventa, o ANC tinha feito esta reviravolta em função
de dois passos distintos mas interligados: por um lado, a desmobilização sistemática
e/ou incorporação (ou no ANC ou nos vários níveis do Estado recém democrático)
da maioria das organizações/movimentos independentes da classe trabalhadora (os
únicos constituintes capazes de liderar e realizar a luta revolucionária por mudanças
fundamentais no poder político e sócio-económico); por outro lado, a aceitação política
e ideológica da ortodoxia dominante neo-liberal nas suas vertentes política e econó-
mica5 e das suas respectivas prescrições institucionais e políticas.
De facto, foi o estatismo estratégico do ANC nas duas fases, pré-luta nacional de libertação
e pós-1994, já no exercício do poder estatal, — em conjunto com a adesão à ortodoxia
neo-liberal —, que garantiu que o núcleo duro da sua própria base de apoio, constituída
pela classe trabalhadora (cujo cariz organizacional e político histórico assentava na luta
pela libertação política e sócio-económica face ao Apartheid do capitalismo), se deixasse
levar na onda das poderosas forças sócio-económicas cujos interesses eram contrários
a qualquer transformação político-económica profunda da sociedade.
A falsa separação, em termos teóricos e práticos, entre, por um lado, mudança po-
lítica e sócio-económica, e, por outro lado, entre Estado (autónomo) e “sociedade
civil” (independente), fez com que processos/conceitos como a democratização e o
desenvolvimento assumissem significados estritamente burgueses, nacionalistas e
predominantemente políticos, sem uma relação com as relações de produção. Nesta
perspectiva, qualquer luta para mudar significativamente as relações de poder no seio
de uma sociedade passa a estar subordinada ao exercício institucionalizado do poder
político e sócio-económico.
Por outras palavras, a nova África do Sul tem privilegiado, desde os seus primórdios, o
status quo social — o capitalismo — e as instituições da democracia burguesa, essenciais
para a sua manutenção. É apenas no seio desta “transição” sem mudança profunda
que a trajectória e o carácter da sociedade civil sul-africana podem ser entendidas.
5
O enquadramento politico base do programa Crescimento, Emprego e Redistribuição (GEAR) foi implementado
unilateralmente pelo governo ANC em 1996. Este foi complementado, em certa medida, por um período de intensa
actividade legislativa nos primeiros 3-4 anos do ANC no poder. Tratou-se de legislação concebida para contrariar a
discriminação da era do Apartheid e facilitar novas oportunidades sociais e políticas para os sectores da população
“historicamente em situação de desvantagem”.
Dale T. McKinley l África do Sul: o Enfraquecimento da Sociedade Civil? 315
6
Thabo Mbeki (1994), “From Resistance to Reconstruction: Tasks of the ANC in the New Epoch of the Democratic
Transformation – Unmandated Reflections”, não publicado. Este documento, que permaneceu na posse de um grupo
restrito de membros do ANC-Alliance até ao final dos anos noventa, foi redigido enquanto Mbeki era Secretário-Geral
do ANC e circulou entre a liderança da Alliance antes da 49.ª Conferência Nacional do ANC, em Dezembro de 1994.
7
Durante o final dos anos oitenta e os primeiros dois anos da década de noventa, o ANC manteve-se coerente
com a ideia de que, uma vez no poder, sectores chave da economia seriam nacionalizados; um processo radical de
redistribuição de terras e riqueza teria lugar, assim como a garantia de que a classe trabalhadora negra tornar-se-ia
a maior “impulsionadora” e controladora de um Estado “do povo”, comprometido com a democracia participativa/
popular. A adopção, em 1994, do programa de Reconstrução e Desenvolvimento, de cariz moderadamente radical
e social-democrata, por parte do ANC e da sua plataforma eleitoral, serviu para alimentar estas expectativas. Para
uma exposição detalhada acerca dos pilares-base deste programa ver, National Institute for Economic Policy (1996),
From RDP to GEAR, Research Paper Series (Johannesburg: NIEP).
8
Richard Ballard, Adam Habib & Imraan Valodia (2006), “Social Movements in South Africa: promoting crisis or
creating stability?”, in Vishnu Padayachee (ed), The Development Decade? Economic and social change in South Africa,
1994-2004 (Cape Town, HSRC Press), p. 397.
9
Ver Adam Habib & Vishnu Padayachee (2000), Economic Policy and Power Relations in South Africa”s Transition to
Democracy, University of Natal – Durban School of Development Studies Research Paper.
316 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Esta mudança relacional foi sustentada pela escolha dos “veículos” sócio-políticos
de materialização da “transformação” da economia política da África do Sul, defen-
didos pela GEAR. Na base desta escolha estaria a convicção de que a combinação de
acções afirmativas económicas (através da distribuição de terras pela nova classe de
agricultores comerciais negros e assistência estatal a empresários industriais negros)
com iniciativas de capacitação económica da comunidade negra (apoiadas por capitais
estatais e privados) e com “parcerias” público-privadas no fornecimento de serviços
económicos e sociais, seria a melhor forma de garantir os resultados desejados de re-
distribuição/crescimento económico, equidade social, criação de emprego e satisfação
de necessidades básicas.
As fundações para esta deriva ideológica do ANC foram erguidas pouco depois do
seu regresso do exílio, no início dos anos noventa. Em vez de apoiar e reforçar a infini-
dade de organizações comunitárias e cívicas, bem como sindicatos progressistas, que
tinham constituído a coluna vertebral da luta anti-Apartheid nos anos oitenta (que se
haviam reunido na Frente Unida Democrática/UDF e no seu sucessor, o Movimento
Democrático das Massas/MDM), o ANC lançou o repto às suas estruturas civis/co-
munitárias para se tornarem parte das fileiras do ANC ou se associarem à recém criada
Organização Sul-africana das Organizações Civis Nacionais (South African National
Civics Organisation – SANCO) que, de acordo com o anunciado, se tornaria o “quarto”
membro de uma Aliança Tripartida. Simultaneamente, o ANC formalizou a sua alian-
ça política/organizacional com a principal federação dos sindicatos — o Congresso
dos Sindicatos Sul-Africanos (Congress of South African Trade Unions – COSATU) — e
o principal partido político de “esquerda”, o Partido Comunista Sul-Africano (South
African Communist Party – SACP) — estabelecendo várias estruturas (consultivas) no
seio desta Aliança Tripartida, e incluindo várias figuras chave das lideranças destas
organizações na sua lista eleitoral para todos os níveis de governo.
Não muito depois da sua ascensão ao poder, e de forma consistente com o pendor sócio-
político da GEAR, o ANC foi rápido a estabelecer estruturas nacionais para dar forma
aos seus compromissos corporativos, tendo sido criado o Conselho Nacional Económico,
de Desenvolvimento e Laboral (National Economic, Development & Labour Council – NE-
DLAC). A “câmara de desenvolvimento” deste Conselho contava com a representação
da “sociedade civil” (constituída por ONG e Organizações Comunitárias de Base), da
classe trabalhadora (constituída por federações de sindicatos reconhecidas/organizadas)
e do sector empresarial (constituída por representantes de grandes empresas). Ao mes-
mo tempo, foi aprovada legislação (e.g. o Estatuto dos Sem Fins Lucrativos – Non-Profit
Act, de 1997), criadas instituições (e.g. a Direcção das Organizações Sem Fins Lucrati-
vos – Directorate of Non-Profit Organisations, que estipulava o registo oficial das ONG e
Organizações Comunitárias de Base), e a Agência Nacional de Desenvolvimento (com
a função de “canalizar recursos financeiros para o sector”).10
Tudo isto se conforma perfeitamente com o esforço do governo do ANC no sentido
de alcançar “uma sociedade civil mais formalizada, como parte de um modelo de
desenvolvimento em que grupos formalmente organizados participam em estruturas
oficiais para reivindicar recursos públicos” e em que “o papel desses grupos organiza-
dos é construído de acordo com as linhas orientadoras de programas governamentais
oficiais, sem espaço para contestar as linhas fundamentais desses programas”.11
10
Ballard et al (2006), p. 397.
11
Greenberg & Ndlovu (2004), pp. 32-33.
Dale T. McKinley l África do Sul: o Enfraquecimento da Sociedade Civil? 317
Este “saneamento” da sociedade civil foi ainda reforçado pela crise de financiamento
vivida no pós-1994 pela maioria das organizações comunitárias independentes e ONG
progressistas, que estavam largamente dependentes de financiamentos externos. Quer
o financiamento interno, quer o externo, sofreram uma mudança radical depois das
eleições de 1994. Afastaram-se de compromissos anteriores relativamente à mobiliza-
ção de organizações de base independentes e caminharam na direcção de programas
“desenvolvimentistas” dirigidos pelo Estado (tal como o Reconstruction and Development
Programme – RDP) e de “parcerias” patrocinadas pelo Estado (ao nível da providência
social) estabelecidas com organizações “aprovadas” da sociedade civil. O resultado duplo
destas transformações foi uma “agenda de desenvolvimento” gradualmente determinada
por financiamento estatal e privado (empresarial) e a extinção da grande maioria das
organizações da sociedade civil independentes, e em muitos casos anti-capitalistas.12
Cumulativamente, estes desenvolvimentos significaram que, em meados dos anos
noventa, a grande maioria das organizações que haviam constituído a sociedade
civil sul-africana (enraizadas nas lutas políticas da classe trabalhadora e que haviam
representado a esperança de milhões no sentido da transformação anti-capitalista da
sociedade sul-africana), tinham sido esmagadas de forma efectiva. Assim, quer tenha
sido em virtude da acção predatória do ANC (resultado da sua absorção nas outras
estruturas da Aliança Tripartida), ou pela sua asfixia (resultado das tentativas de co-
optação por parte de líderes chave do Estado e instituições empresariais associadas),
a verdade é que o espaço político e organizacional para uma resistência militante e
activa foi restringido. Esta restrição foi crescente face ao discurso e práticas cada vez
mais neo-liberais do ANC, à negociação de acordos ao nível das elites e à aceitação
geral do enquadramento institucional da democracia burguesa.
Novas Contestações, Novas Divisões
Por vezes procura-se argumentar13 que a presença do COSATU e SACP (“esquerda
tradicional” da África do Sul) na Aliança Tripartida que estabelecem com o partido
no poder (ANC), se traduz necessariamente numa “sociedade civil da classe traba-
lhadora”, vibrante, capaz e desejosa de contestar as políticas e a agenda desenvolvi-
mentista do Estado. Contudo, a realidade é que a aceitação de uma relação política/
organizacional desigual e essencialmente subserviente no seio da aliança dominada
pelo ANC14 (que é esperado que actue como o mestre politico do Estado), bem como
a participação no institucionalismo corporativista (empresarial), tem servido para
amarrar os trabalhadores organizados e um grande número de activistas de base
(com ligações históricas com e/ou simpatia em relação à Aliança) a um falso sentido
de unidade ideológica e estratégica com o ANC Estado e, ainda que em menor escala,
com o capital corporativo (empresarial).
Esta situação facilitou a crença nas noções entrelaçadas (energicamente propagadas
pelo ANC e vários líderes da Aliança) de que todos os sul-africanos podem “encontrar”
12
Estes argumentos são tirados sobretudo de Greenberg & Ndlovu (2004), pp. 30-31.
13
Tais argumentos têm sido proferidos veementemente pelos sucessivos líderes do COSATU e SACP desde o início
dos anos noventa. Dado que as referências são demasiadas para listar aqui, a maioria dos documentos/discursos
podem ser encontrados nos sites das duas organizações: www.cosatu.org.za e www.sacp.org.za.
14
Esta aceitação foi criticada no seio do COSATU e da SACP. Para uma abordagem detalhada sobre o debate e a
oposição no seio da Aliança desde 1994 ver, Dale T. McKinley (2001), “Democracy, Power and Patronage: Debate and
Opposition within the ANC and Tripartite Alliance since 1994”, in Roger Southall (ed), Opposition and Democracy in
South Africa, (London: Frank Cass Publishers), pp. 183-206.
318 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
um “consenso nacional” sobre o caminho económico e social que o país devia seguir,
e que a luta de classes (com todas as suas contradições) pode ser “gerida” de maneira
eficaz dentro deste “consenso”.15 Na prática, ao longo dos últimos anos, isto traduziu-se
numa realidade em que as componentes mais poderosas em termos organizacionais
e políticos da tal “sociedade civil da classe trabalhadora” se deixaram apaziguar pela
lealdade histórica, solidariedade e cumplicidade com o ANC.
Estas opções subjectivas por parte do COSATU e SACP, juntamente com a SANCO e
vários outros órgãos da sociedade civil com laços historicamente próximos ao ANC (por
exemplo, o Conselho de Igrejas da África do Sul – SACC) pouco fizeram para conter a
crescente pobreza, desigualdade sócio-económica16 e marginalização política, a que têm
sido sujeitos a maior parte dos trabalhadores e comunidades pobres da África do Sul
desde o final da década de noventa. O resultado cumulativo de tais escolhas políticas/
estratégicas e da realidade sócio-económica vivida, resultou no aumento de um conjunto
de novos movimentos sociais/organizações comunitárias a partir do início de 2000.
Inicialmente, surgiram movimentos sociais nos principais centros urbanos e, poste-
riormente, nas comunidades rurais, para contestar os cortes de água e electricidade,
expulsões de habitação, mudanças forçadas e falta de distribuição de terra. Como
assinalou Ashwin Desai:
A emergência destes movimentos baseados em comunidades específicas e com reivindi-
cações específicas, sobretudo defensivas, não era apenas o resultado natural da pobreza
ou marginalização, mas uma resposta directa face à política estatal. A incapacidade ou
falta de vontade por parte do Estado de garantir o fornecimento de serviços públicos e
de assegurar as condições do seu consumo colectivo, foi uma faísca para uma pletora
de movimentos comunitários (…) as políticas neo-liberais concentram e dirigem essas
reivindicações contra o Estado (…) a actividade foi motivada por actores sociais gerados
pelas novas condições de acumulação, que são externas ao âmbito do movimento sindi-
cal e ao seu estilo de organização. O que distingue estes movimentos comunitários de
partidos políticos, grupos de pressão e ONG é a mobilização de massas como a principal
fonte de sanção social.17
O rápido crescimento destas organizações e movimentos, conjugado com a sua cres-
cente oposição militante às políticas do Estado liderado pelo ANC, conduziu rapi-
damente a uma ruptura no seio da sociedade civil sul-africana: entre aqueles que se
opunham à trajectória político-económica do Estado ANC e aqueles que optaram por
uma lealdade continuada (ainda que por vezes crítica) ao Estado e à “linha partidária”
do ANC. Uma expressão desta ruptura deu-se aquando da preparação, e durante, a
Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (World Summit on Sustainable
Development – WSSD) em Agosto de 2002. Nessa ocasião assistiu-se a uma fractura
15
Para uma visão geral (a partir de 1994) acerca dos conteúdos e consequências desta realidade, ver, Dale T. McKinley
(2003), “The Congress of South African Trade Unions and the Tripartite Alliance since 1994”, in Tom Bramble and Franco
Barchiesi (eds), Rethinking the Labour Movement in the “New” South Africa, (Aldershot: Ashgate Publishers), pp. 43-61.
16
Há inúmeros estudos e relatórios realizados ao longo dos últimos anos que confirmam este estado de coisas. Ver,
por exemplo: “South Africa Survey” (2006) compilado pelo Institute for a Democratic South Africa em www.int.iol.
co.za, e em www.statssa.gov.za; o relatório do “Committee of Inquiry into a Comprehensive System of Social Security
for South Africa” (2002); o “Report of the South African Cities Network” (2004); University of South Africa (2004),
“Projection of Future Economic and Sociopolitical Trends in South Africa up to 2025”; United Nations Development
Programme (2003), “South Africa Human Development Report”.
17
Ashwin Desai (2002), “Witnessing the Transition”, artigo publicado no site do Centre for Civil Society, em www.
nu.ac.za/ccs.
Dale T. McKinley l África do Sul: o Enfraquecimento da Sociedade Civil? 319
decisiva entre os dois “campos” — os primeiros reunidos sob a rubrica dos Movimentos
Sociais Indaba (Social Movements Indaba – SMI) e os últimos agrupados colectivamente
sob o Fórum da Sociedade Civil (do Povo). Organizaram-se duas marchas/comícios
paralelos, simbolicamente importantes: a marcha dos SMI e grupos aliados, como
o Movimento dos Povos Sem Terra (Landless People’s Movement) que atraiu mais de
25.000 pessoas para as ruas; a marcha do Fórum, apoiado pelo ANC-Aliança, que
atraiu menos de 5.000 pessoas.18
Durante os últimos quatro anos, esta ruptura na sociedade civil progressista da África
do Sul aumentou gradualmente como resultado de: uma campanha estatal de crítica
consistente, e ataques físicos, contra os novos movimentos sociais/organizações co-
munitárias19 (frequentemente com o “apoio” tácito/silencioso de várias lideranças do
COSATU, SACP, SACC, etc.); o fracasso continuado desta “esquerda tradicional” em
se envolver seriamente e fornecer solidariedade material às novas lutas comunitárias
contra as deficientes políticas de prestação de serviços do Estado; e, o bloqueio organi-
zacional e ideológico feito pela suposta “sociedade civil da classe trabalhadora” debaixo
da égide da Aliança Tripartida do SACP, COSATU e partido governante – ANC.
Os novos movimentos de lutas comunitárias têm sido nados-mortos. Este facto deve-se
não tanto às óbvias fragilidades organizacionais e da natureza politicamente incipiente
destes novos movimentos e das suas lutas, mas sobretudo ao papel de bloqueio (gate-
keeping) organizacional e ideológico do SACP e COSATU. Apesar da sua retórica e as
suas resoluções de carácter radical no Congresso, o COSATU e SACP esquivaram-se
repetidamente a qualquer apoio significativo (ou solidariedade) para com os novos
movimentos/lutas, enquanto afirmavam consistentemente a sua lealdade ao ANC.
De facto, ambos se esforçaram ao máximo por afirmar que a sua oposição às políticas
estatais, e as próprias críticas ao ANC, não “punham em causa o ANC”20 e em nada se
relacionavam com as dos novos movimentos/lutas. Também procuraram activamente
prevenir que as suas estruturas e membros trabalhassem com os novos movimentos
e lutas. Como uma antiga figura dirigente do COSATU tentou racionalizar de forma
educada: “(…) onde divergimos dos nossos amigos nos movimentos sociais é no facto
de que nós preferimos envolver o Estado”.21
Então, em última análise, é esta aliança com o dominante ANC que previne a unidade
organizacional e política dentro e entre as diversas organizações, movimentos e lutas
da sociedade civil, e assim continua a garantir que o Estado seja capaz de prosseguir,
sem muita dificuldade, um quadro político que não é do interesse dos trabalhadores e
dos pobres sul-africanos. Para Ali Tleane, um antigo líder do SANCO, as relações são
18
Social Movements Indaba (2002), “Historic United Social Movements Mass March To WSSD Sends Clear Message
– The People Will Be Heard”, SMI Press Release, 1 de Setembro, em www.apf.org.za.
19
As expressões públicas mais evidentes do desdém do ANC em relação aos novos movimentos sociais e às suas
lutas foi a declaração do ANC, em 2002, na qual estes movimentos são acusados de serem “ultra esquerdistas
(…) de empreenderem uma luta contra-revolucionária contra o ANC e o nosso governo democrático”, e de serem
cúmplices da “burguesia e dos seus apoiantes”. Ver, ANC (2002) “Contribution to the NEC/NWC response to the
Cronin interviews on the issue of neo-liberalism”, paper interno do ANC, Unidade de Educação Política (Setembro).
O Presidente Mbeki anuiu pouco depois, defendendo em público que “esta ultra-esquerda trabalhava com o intuito
de se implantar nas fileiras do próprio ANC, pretendendo tomar o controlo do nosso movimento e transformá-lo
num instrumento de concretização dos seus objectivos”. Ver, Mbeki (2002), “Statement of the President of the ANC,
Thabo Mbeki, at the ANC Policy Conference”, Kempton Park, 20 de Setembro, em www.anc.org.za/docs. Desde
o WSSD em 2002, centenas de activistas de base têm sido detidos, presos, e, muitos deles, torturados – Ver Simon
Kimani (ed) (2003), The Right to Dissent (Johannesburg: The Freedom of Expression Institute).
20
COSATU (2005), “Response to Sunday Independent article”, Media Statement, 7 Agosto.
21
Citado em Habib &Valodia (2006), p. 249.
320 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
claras: “SANCO não pode falar em nome da sociedade civil porque recebe ordens do
governo do ANC”.22 No mesmo sentido, Dinga Sikwebu, ex-funcionário dirigente de
um dos maiores sindicatos da COSATU, afirma que: “As camadas dirigentes e con-
servadoras [na COSATU] têm algo a preservar no status quo existente (…) a COSATU
ganha algo do ANC — estatuto e todas as outras deferências (…) enquanto o ANC
garantir todas estas coisas, a relação entre o ANC e os movimentos sindicais manter-
se-á, já que se alimentam mutuamente (…) estes movimentos [sociais novos] ameaçam
esta relação política (…)”.23
Aquilo que o passado recente e os desenvolvimentos subsequentes desde então24
representam, é uma clara divisão ideológica e organizacional entre as principais com-
ponentes da sociedade civil sul-africana. Uma grande parte dos novos movimentos
sociais representam aqueles que desejam crescentemente pressionar para além das
fronteiras forçadas da democracia burguesa institucionalizada. Estão activamente
envolvidos em lutas contra as políticas estatais e praticam uma mobilização indepen-
dente (baseada nas massas), como a única opção significativa e realista para resistir
ao neo-liberalismo e abrir a possibilidade a uma alternativa ideológica e organizacio-
nal em relação à política partidária existente do ANC. Apesar destes movimentos se
terem tornado inextricavelmente ligados pelo conteúdo igualitário e formas comuns
de ataque devastador ao neo-liberalismo (nacional e, em menor grau, internacional),
não representam nenhum tipo de entidade homogénea. Têm ocorrido importantes
debates políticos/ideológicos e organizacionais entre os novos movimentos sociais,
expondo diferentes perspectivas.25
No outro “lado” encontram-se as forças “tradicionalmente” progressivas da sociedade
civil sul-africana, representadas principalmente pelas várias lideranças da COSATU e
SACP, em aliança ampla com as da SANCO, SACC e a Coligação Não-Governamental
Sul-africana – SANGOCO. Apesar de ocasionalmente se envolverem em actividades
extra-parlamentares destinadas a influenciar o carácter e conteúdo de políticas esta-
tais específicas, de recorrerem regularmente a uma retórica de esquerda e de procla-
marem independência organizacional, eles aceitaram (ainda que de forma crítica) o
modelo de desenvolvimento capitalista do ANC. Perderam muita da confiança que
eventualmente tinham no “papel de liderança” da classe trabalhadora (tanto interna
como internacional) e optaram por privilégios democráticos institucionalizados e
acesso esporádico ao poder estatal. Tudo isto racionalizado no seio das referências de
lealdade histórica ao movimento de libertação e solidariedade à Aliança, assim como
às necessidades de completar uma suposta “revolução democrática nacional” (mal
definida) e às “realidades” do capitalismo global.
22
Citado em William Mervin Gumede (2006), Thabo Mbeki and the Battle for the Soul of the ANC (Cape Town: Zebra
Press), p. 276.
23
In Tom Bramble & Franco Barchiesi (2003), “Pressing Challenges facing the South African Labour Movement: an
Interview with John Appolis and Dinga Sikwebu”, in Tom Bramble & Franco Barchiesi (eds), Rethinking the Labour
Movement in the “New South Africa” (Aldershot: Ashgate), p. 224.
24
Como exemplo da intensidade e abrangência dos protestos comunitários de base (a maioria dos quais devido
à falta de provisão de serviços) no ano das eleições para o governo local, em 2006, e de acordo com o Gabinete do
Ministro da Segurança (Minister of Safety and Security), pelo menos dois oficiais camarários foram mortos e as casas
de muitos outros foram incendiadas em 881 protestos deste tipo – uma média superior a dois protestos por dia. Ver
Penny Sukhraj (2006), “Belief in government promises is a key to local elections”, The Star (9 Janeiro); Ver também,
Vicki Robinson, Monako Dibetle & Marianne Merten (2006), “The ANC monolith starts to crack”, Mail & Guardian
(24 de Fevereiro – 2 de Março).
25
Para uma exposição mais detalhada acerca destas posições emergentes do WSSD ver, John Apollis (2002), “The
Political Significance of August 31st”, Khanya, N.º 2 (Dezembro), pp. 5-9.
Dale T. McKinley l África do Sul: o Enfraquecimento da Sociedade Civil? 321
26
James Cornford citado em Michael Levin (1989), Marx, Engels and Liberal Democracy (New York: St. Martin’s
Press), p. 145.
27
Ver, por exemplo, Michael Sachs (2003), “We don’t want the fucking vote: Social movements and demagogues in
South Africa’s young democracy”, South African Labour Bulletin, Vol. 27, N.º 6 (Dezembro), pp. 23-27.
28
Greenberg & Ndlovu (2004), pp. 24-25.
322 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
cidade de longo prazo dos órgãos da classe trabalhadora da sociedade civil, tanto na
África do Sul como noutros lugares; perdendo a capacidade de desafiar efectivamente
a agenda do capital e as instituições estatais, que agora agem principalmente como o
braço “público” do sector privado (capitalista).
Independentemente da democratização política que ocorreu na África do Sul desde
1994, o Estado sul-africano permanece capitalista (ainda que desracializado). Apesar
do Estado (em qualquer parte do mundo) ser uma entidade complexa que possui o seu
próprio conjunto de contradições internas, não é uma instituição neutra que possa de
qualquer maneira ser envolvido e transformado radicalmente através da participação
na sua “rede” institucional associada. Como Marx tão convincentemente defendeu,
os Estados são os aparelhos repressivos e ideológicos orgânicos de uma classe. No
futuro imediato da África do Sul essa classe é o capitalismo. Este facto mantém-se,
independentemente das tentativas hipócritas da nova elite negra (tanto no interior
como no exterior do Estado) em se apresentar como parte de uma classe trabalhadora
abrangente e acima das relações materiais e das realidades da luta de classes.
Certamente o Estado sul-africano jogou e irá continuar a jogar um papel que não está
necessariamente e sempre de acordo com as mais altas expectativas e exigências do
capital empresarial e financeiro — por exemplo, continuará sem dúvida a desempenhar
um papel de providência parcial que procura amenizar o conflito e a luta de classes.
Porém, enquanto as relações capitalistas permanecerem as forças motrizes da sociedade,
o Estado irá sempre absorver e reflectir essas relações dominantes nas suas formas mais
específicas. O tipo de análise da democracia, sociedade civil e Estado que ignora a luta
de classes e que parece dominar actualmente a maior parte dos esforços intelectuais
(também, mas não só, na África do Sul pós-Apartheid), conduz directamente ao tipo de
“política institucional” silenciosa e estéril que qualquer movimento/organização da clas-
se trabalhadora genuíno e auto-respeitador deve seguramente evitar, e transcender.29
Se entendermos a política contemporânea sob o capitalismo como a prática continuada
(ainda que diferenciada) da luta de classes, então entendemos igualmente por que ra-
zão o Estado existente (a sua política institucionalizada, políticas sócio-económicas e o
partido político que o dirige) se tornou no alvo central dos marginalizados e oprimidos.
O conteúdo democrático da luta subsequente não pode ser fabricado e/ou imposto. Os
que lutam por criar novas avenidas de expressão política, por se libertarem dos grilhões
da “democracia institucionalizada” do capitalismo e por estabelecer as bases para uma
mudança sócio-económica profunda, irão criar esse conteúdo democrático.
Realidades e Escolhas
Doze anos depois do dito “milagre” de 1994, a sociedade sul-africana (e, consequen-
temente, a “sociedade civil”) está numa encruzilhada. Apesar de se tratar de um país
com imensas riquezas naturais, uma infra-estrutura industrial, de comunicações e
de transportes, altamente desenvolvida, com instituições democráticas e recursos
humanos consideráveis, para a maioria dos sul-africanos (a par com os milhões de
imigrantes e refugiados provenientes de várias partes do continente africano), a vida
continua a ser sinónimo de luta feroz.
29
O argumento de Eric Hobsbawm de que os intelectuais com historial de militância num partido revolucionário
ou movimento de libertação geralmente assumem a “postura de advogados liberais” assim que se apercebem que a
política-ideologia do partido/movimento não surtirá os efeitos esperados, parece ser verdade no caso sul-africano;
Ver, Hobsbawm (1973), Revolutionaries (London: Phoenix Publishers).
Dale T. McKinley l África do Sul: o Enfraquecimento da Sociedade Civil? 323
30
Greenberg & Ndlovu (2004), p. 47.
31
Venitia Govender (2003), “The Regional Impact of the Current Zimbabwean Crisis”, in Civil Society and Justice in
Zimbabwe: Proceedings of a Symposium held in Johannesburg, 11-13 de Agosto de 2003 (Arcadia: Themba Lesizwe), p. 108.
324 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Introdução
Lloyd M. Sachikonye
Instituto de Estudos
de Desenvolvimento,
E ste texto analisa o papel das Organizações da Sociedade
Civil (OSC) no contexto da luta alargada por uma maior
democratização no Zimbabué. Luta essa que tem sido con-
Universidade duzida, desde 2000, num ambiente autoritário e repressivo,
do Zimbabué no qual o Estado olha com desconfiança e suspeição para
as OSC. Este artigo sustenta que as OSC desempenham um
papel vital como defensores das liberdades básicas, dos Di-
reitos Humanos, da transparência e da responsabilização
do Estado (accountability) assim como do espaço democráti-
co. No contexto do Zimbabué, este papel atraiu a repressão
estatal, expressa através de legislação punitiva que tornou
as acções das OSC cada vez mais difíceis e arriscadas. Em
determinados momentos chave as OSC colaboraram com o
movimento da oposição, foram mesmo a pedra de toque na
formação do partido mais forte do pós-independência — o
Movimento para a Mudança Democrática (MDC). Apesar das
OSC se terem, mais tarde, distanciado deste partido e terem
restabelecido a sua autonomia, continuaram a ser objecto
de forte crítica e isolamento por parte do partido no poder,
a Zanu-PF. A experiência das OSC do Zimbabué mostra os
riscos inerentes ao envolvimento em campanhas democráti-
cas activas com ligações a um movimento da oposição para
resistência ao autoritarismo.
Após dar uma panorâmica global do contexto socio-económi-
co e político, este texto fornece uma visão geral das OSC e do
Estado. Prossegue aferindo o papel especial desempenhado
pelas OSC que trabalham nas áreas da governação e dos
Direitos Humanos, terminando com considerações acerca
das oportunidades, problemas estratégicos e desafios com
que aquelas actualmente se deparam. A conjuntura actual
em 2008 é uma em que as OSC se viram obrigadas a rever as
suas relações com o Estado, por um lado, e com o movimento
da oposição por outro. Os desafios vêm do facto de se ter que
saber se as OSC se devem relacionar com um Estado autori-
tário e se as suas relações com o MDC devem ser revistas à
1
Texto traduzido do original em inglês por Nuno Marques. Parte deste artigo
baseia-se num estudo anterior com J. Manjengwa in Towards a Civil Society
Programme in Zimbabwe; a country programme review prepared for Trocaire,
Harare, Julho de 2006.
326 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
luz dos compromissos assumidos por aquele partido com a Zanu-PF no Processo de
Diálogo Inter-partidário iniciado em 2007.
chikonye, 1995, 2000; Moyo, 1992; Moyo, Makumbe & Raftopoulos, 2000 e Dorman, 2001).
Este interesse do estudo analítico pelas OSC demonstrou o aumento da sua importância e
visibilidade ao longo da década de 1990 e no presente. Primeiro, estes trabalhos têm cons-
ciência de que as OSC não são um grupo de actores homogéneo. As OSC foram, geralmente,
divididas em várias categorias de acordo com a sua missão e sua área de actuação: algumas
são do desenvolvimento e bem-estar, outras dedicam-se aos problemas relacionados com
o HIV e com as questões de género, ao passo que outras, ainda, dedicam-se aos problemas
relacionados com a governação e os Direitos Humanos, e muitas outras dedicadas às mais
diversas áreas. Assim, possuem diferentes objectivos e diferentes comunidades de base,
seus constituintes, o que influencia a forma como desenvolvem estratégias e tácticas de
desenvolvimento e linhas de acção e, por arrasto, a sua relação com o Estado.
As tendências ideológicas das OSC também não são homogéneas, elas apresentam
várias correntes, ainda que possam estar no geral essencialmente comprometidas
com os problemas do desenvolvimento e igualdade. Não obstante, esta diversidade é
geralmente deixada para segundo plano em favor da assumpção da uniformidade. A
sua diversidade pode ser uma fonte tanto de força como de fraqueza, especialmente
em contextos políticos voláteis.
Não tentaremos fazer uma crónica do processo de desenvolvimento das OSC desde 1980
porque tal trabalho já foi feito noutro local com considerável detalhe (ZHDR, 2000; Mc-
Candless and Pajibo, 2003), limitando-me aqui a enunciar as grandes fases gerais desse
processo: a primeira década de independência, 1980-1990; o período do programa de
ajustamento estrutural económico (Economic Structural Adjustment Programme – ESAP),
1990-1995; o fim dos anos noventa; o período desde 2000 até ao presente.
Enquanto que durante os anos oitenta o número das OSC era relativamente reduzido
e estava mais concentrado nas questões do desenvolvimento e do bem-estar social, a
época de mudança criada pelo ESAP e pelo pós-“guerra-fria” assistiu ao surgimento
de muitas mais OSC e com as mais variadas agendas. Este novo ambiente gerou um
ímpeto para a defesa pública de uma variedade de questões, incluindo os direitos
económicos, o ambiente, o HIV-SIDA, os Direitos Humanos e problemas de género,
entre outros. Tal como foi então observado:
“(…) a marginalização económica da maioria dos zimbabueanos durante o ajustamento
estrutural criou um ambiente de advocacia (defesa pública) das questões relacionadas
com a pobreza. Os movimentos estudantis e dos trabalhadores, as organizações dos Di-
reitos Humanos e dos direitos das mulheres, começaram efectivamente a organizar-se à
volta dos temas centrais da pobreza, dos Direitos Humanos e da democratização. Esta
transição ocorreu em muitas ONG que haviam começado como associações de apoio aos
pobres tendo então evoluído para organizações questionando as causas da pobreza na
sociedade (…)”(ZHDR,2000).
As OSC que se começaram a organizar em torno das questões da habitação, da saúde
e das condições de trabalho, eram muito activas nos anos noventa. Houve um surto
de associações de moradores na maior parte das cidades e vilas como resposta ao
mau desempenho das autoridades locais nas áreas da habitação, infra-estruturas e
serviços. Assistiu-se igualmente a uma proliferação de organizações comunitárias de
base organizadas em torno de problemas locais específicos.
Durante o final dos anos noventa as OSC adquiriram considerável experiência e apti-
dões na organização e defesa pública/advocacia (advocacy). Isso aconteceu num cenário
328 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
activistas, que raramente entram em contacto com as organizações que dizem representar,
dirigindo a rede de trabalho como uma ONG autónoma com meia dúzia de funcionários e
sem uma base real de membros. Estas redes não conseguem mobilizar apoios quando são
necessários e enquanto as organizações se contentam em enviar os seus representantes
a conferências caras, são menos as pessoas que saem às ruas em resposta aos apelos de
protesto pacífico, do que aquelas que aparecem para almoçar em hotéis de cinco estrelas
(…)” (cit. in Alexander, 2005).
De acordo com esta crítica a sociedade civil é descrita como centrada em Harare e
primordialmente urbana. Acentuando que a maioria das organizações dos Direitos
Humanos “nunca sai de Harare”, argumenta-se que os escritórios provinciais/locais
das OSC “mal e raramente funcionam” e muito se perde se as experiências e opiniões
locais não forem tidas em conta. (Ibid.)
Outros analistas notam, num tom mais moderado, que as OSC enfrentam a mais
abrangente tarefa de voltar ao seu trabalho de raiz, onde e sempre que seja possível, e
canalizar os seus recursos para dar poder (empower) ao cidadão comum (Alexander e
Raftopoulos, 2005). O desafio para as OSC é, então, o de encontrar formas de “restau-
rar a confiança” de maneira a resistirem elas próprias, e os Zimbabueanos em geral,
à opressão, o que lhes exigirá que se juntem na defesa contra os ataques contínuos da
parte de um Estado que, para tal, utiliza métodos nem sempre directos, mas muitas
das vezes e cada vez mais indirectos.
As OSC têm demonstrado alguma elasticidade em relação aos ataques do Estado. Alguns
dos feitos das OSC nestas circunstâncias têm sido impressionantes, tornando-se alvos
prioritários de violentos ataques do governo; alguns activistas têm sido mortos, outros
presos e torturados, e alguns órgãos de comunicação social independentes têm sido en-
cerrados ou atacados à bomba. Foi esse o caso do ataque bombista ao jornal Daily News
e à rádio Voice of The People com o consequente fecho daquele jornal em 2003. Três outros
jornais independentes foram subsequentemente encerrados. Na tentativa de fechar o
pouco espaço democrático restante, uma série de novas leis restritivas foi introduzida
entre 2002 e 2004. Estas leis, como o Decreto-Lei de Segurança e Ordem Pública (Public
Order and Security Act – POSA) e o Decreto-Lei de Protecção da Privacidade e Acesso à
Informação (Access to Information and Protection of Privacy Act – AIPPA) tiveram como
principal objectivo restringir as actividades de protesto organizadas pela sociedade civil
e pelo movimento da oposição. Jornalistas, delegados sindicais, estudantes e activistas
dos Direitos Humanos sofreram o jugo da repressão. Organizações como a Assembleia
Nacional Constituinte (National Constitutional Assembly – NCA), o Congresso dos Sindica-
tos do Zimbabué (Zimbabwe Congress of Trade Unions – ZCTU); a Associação Nacional de
Estudantes do Zimbabué (Zimbabwe National Student Union – ZINASU) e o movimento
de Mulheres do Zimbabué (Women of Zimbabwe Arise – WOZA) viram os seus líderes
repetidamente encarcerados por razões políticas.
Ainda assim, as OSC não abrandaram no seu criticismo ao autoritarismo. Baseadas em
extensas pesquisas e no acompanhamento das comunidades rurais, os relatórios das
OSC sobre as violações dos Direitos Humanos foram a principal fonte de informação
credível, tanto para a comunidade internacional como nacional. Essa informação
veio a revelar-se vital nos casos de violência política e de irregularidades eleitorais
apresentadas nos tribunais e aos grupos de observação das eleições como a Com-
monwealth, a União Europeia, o Fórum Parlamentar da SADC e órgãos legais como a
Comissão Africana para os Direitos Humanos (African Commission for Human Rights)
330 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
5 – A Militarização do Estado
Um elemento chave do sistema autoritário é a contínua militarização dos órgãos cruciais
do Estado Zimbabueano. A sua face visível tem sido a nomeação de elementos do topo da
hierarquia das forças armadas e de segurança para cargos políticos. Majores, Coronéis e
Generais na reforma foram recompensados com lugares no Comité Central e no Bureau
Político da Zanu-PF, como membros do Parlamento, Governadores e Ministros. Outros
oficiais das Forças Armadas e das forças de segurança foram designados para liderar
ministérios chave (tais como os Transportes e a Energia) e companhias semi-estatais
como o Conselho de Venda de Cereais (GMB)4 e a Companhia Petrolífera Nacional do
Zimbabué (NOCZIM).5 Nas eleições de 2002 e 2005 os militares estiveram activamente
envolvidos no processo eleitoral ao dirigirem o Centro de Comando das Eleições Na-
cionais6. Não restam dúvidas de que o governo de Mugabe depende da cooperação e
apoio dos militares e das forças de segurança para o seu projecto autoritário. Para além
da suposta lealdade dos militares e do pessoal das forças de segurança (que constituem
as razões principais da sua nomeação para os lugares de Estado), não existe nenhuma
evidência que sustente que a sua capacidade e eficiência sejam superiores às dos seus
pares civis. Desta forma, o processo de militarização do Estado é outra forma de patri-
monialismo político que tem estado na base do declínio do país.
Este é, no geral, o difícil contexto em que as OSC trabalham actualmente no Zimbabué.
Elas operam dentro de um quadro hegemónico do Estado e partido governante, que
ainda se apoia na legitimidade criada pela guerra da independência (Dorman, 2001).
No entanto, este cenário não é realmente hegemónico. É do conhecimento geral que
existem facções dentro da Zanu-PF, facções essas que competem na corrida pela su-
cessão do poder à medida que a era Mugabe se aproxima do fim. A acesa agitação em
torno da questão da sucessão tem sido vividamente descrita numa série de artigos de
um dos participantes nesse processo, o ex-Ministro para a Informação e Publicidade,
Jonathan Moyo (Moyo, 2006).
Parecem também existir divergências quanto à política económica, havendo algu-
mas franjas do Estado que pressionam por prudentes reformas fiscais, monetárias e
agrárias, enquanto outras lhes resistem, favorecendo antes os mecanismos da lógica
patrimonial e benefícios políticos de curto-prazo, clientelares. Para além disso, têm
existido divergências entre o Ministro da Justiça e o braço dos serviços de inteligência
e serviços secretos sobre até onde se deve ir para perseguir a oposição do MDC.
É, portanto, importante que as OSC olhem para o Estado não como uma entidade mono-
lítica, mas como uma série de instituições e aparelhos que entram por vezes em tensão
e que funcionam com objectivos opostos, cruzados, se não mesmo em confusão!
Por fim, apesar do seu arsenal formidável, o Estado do Zimbabué está enfraquecido.
É comummente descrito como um “Estado falhado” (failed State) apesar de não se en-
contrar ao mesmo nível dos da Somália ou da Serra Leoa. Em parte, é um Estado frágil
porque a sua base de sustentação económica se contraiu consideravelmente. Não só
a sua taxa de inflação é a maior do mundo e o investimento um dos mais baixos, mas
também a sua dívida interna e externa é significativa. O Estado do Zimbabué enfrenta
a perspectiva de ver cada vez mais diminuídos os seus recursos. Existe um limite à
4
Grain Marketing Board.
5
National Oil Company of Zimbabwe.
6
National Election Command Center.
332 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
deste desastre. Até agora, crédito lhes seja feito, a maior parte das OSC parecem não
ter tomado partido. O apoio a qualquer um dos lados teria minado a credibilidade e
autonomia das OSC.
14
Public Order and Security Act – POSA
15
Access to Information and Protection of Privacy Act – AIPPA
16
Broadcasting Services Act – BSA
17
Operação Murambatsvina [Português: “Acabar com o lixo”] levada a cabo entre Maio e Julho de 2005 por todo o
país, tendo consistido numa campanha governamental para acabar com bairros degradados (clandestinos), tendo
levado ao desalojamento forçado de largas franjas populacionais dos pobres urbanos e rurais e onde se concentrava
um forte apoio da oposição ao governo de Mugabe. De acordo com as Nações Unidas a operação terá afectado
pelo menos 2,4 milhões de pessoas. O governo de Mugabe justificou a operação com a necessidade de combate à
construção e às actividades comerciais clandestinas e como um esforço para reduzir o risco de alastramento das
doenças infecciosas naquelas áreas.
Lloyd M. Sachikonye l Sociedade Civil, Democratização e Política no Zimbabué 335
18
SADC Guidelines and Principles on Democratic Elections
19
AU Commission on Human and Peoples’ Rights
336 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
do governo em isolar as ONG que trabalham nas áreas da governação e dos Direitos
Humanos de todas as outras. Na maioria dos casos, a tendência das OSC tem sido a
de trabalhar de uma forma reactiva a estes acontecimentos (a posteriori). Até que ponto
deveriam pressionar o Estado para um envolvimento mais acelerado e efectivo na
questão da Comissão dos Direitos Humanos? De que formas podem elas fazer lobby
pela reforma constitucional? É interessante verificar que, ao passo que o movimento
dos trabalhadores conseguiu envolver o governo na questão do Diálogo Social e pôde
mesmo chegar a acordo em determinados pontos, outras OSC não parecem demonstrar
iniciativas semelhantes noutras áreas.
Da mesma forma, um outro projecto que merece ser alimentado e apoiado é o que já
foi designado como grupo de reflexão estratégica das OSC (think tank), que trabalha-
ria de perto com as várias OSC para delinear estratégias, ideias, planificar cenários e
agendas de assuntos políticos. Mesmo que tal think tank não constituísse uma estrutura
a trabalhar a tempo inteiro, poderia reunir-se numa base bimensal ou trimestral para
reflectir sobre os desenvolvimentos e desafios e gerar ideias e propostas de planos
de acção futura. As OSC sofrem de um deficit nesta área enquanto o Estado e o seu
governo possuem tais recursos. Isto explica a tendência demonstrada pelas OSC em
actuarem de modo essencialmente reactivo e não pró-activo.
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20
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341
Introdução
Henning Melber
Fundação Dag
Hammarskjöld,
E ste capítulo realça as tendências da cultura política
pós-colonial sob a liderança do antigo movimento de
libertação SWAPO, da Namíbia2. Como outros movimentos
Uppsala, Suécia anti-coloniais na África Austral que enveredaram pela resis-
tência armada como último recurso da luta pela libertação
do colonialismo, a SWAPO adquiriu a legitimidade do poder
politico e ocupa o aparelho de Estado desde o fim do domínio
da minoria branca. Reorganizados como partidos, estes movi-
mentos definiram o sistema político, moldando e projectando
em grande medida o discurso público. No processo de cons-
trução da nação, tendem a operar com conceitos restritos de
inclusão/exclusão. A legitimidade destes governos baseia-se
em serem os — mais ou menos democraticamente eleitos —
representantes da maioria da população. Ao mesmo tempo,
contudo, a noção de democracia permanece um território
muito contestado.
1
Texto traduzido do original em inglês por Pedro Cardoso
2
Esta é uma versão mais curta, revista e actualizada de uma análise sobre o governo
e a oposição (Melber 2007a). Para trabalhos anteriores e relacionados ver Melber
(2000, 2001, 2002, 2003a, 2003b, 2004, and 2006a). A South West African People’s
Organisation (originalmente SWAPO) foi mais tarde re-denominada SWAPO da
Namíbia e, no processo de abandono do seu carácter enquanto movimento de
libertação, designada por Swapo Partido. Este texto faz referência tanto à SWAPO
como à Swapo, dependendo do contexto e/ou da fonte/documento citado.
342 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
3
Informação mais detalhada sobre as estruturas políticas e o sistema político da Namibia, bem como dos decisores
políticos e de outras figuras do chamado interesse público vem incluída no tomo enciclopédico compilado por
Hopwood (2006).
344 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
então uma base sólida de apoio incondicional nas áreas mais densamente povoadas
no Norte, representando mais de metade do total do eleitorado. Ainda que os partidos
da oposição mais pequenos possam proliferar, continuam sem influência para além da
base de apoio local: “embora a fragmentação dos partidos em grupos mais pequenos,
muitas vezes com uma inclinação étnica, possa ter evitado a deterioração da votação
na oposição desde 1999, provoca igualmente uma oposição parcelada e esfarelada”
(Hopwood 2005, p. 142).
Não restou praticamente nenhuma dúvida de que a Swapo reteve claramente o domínio
que consolidara desde a independência. No entanto, numerosas irregularidades meno-
res e inconsistências nos procedimentos eleitorais, discrepâncias na lista de eleitores e
na contagem dos votos, assim como um atraso excessivo na divulgação dos resultados
das eleições provocaram uma subsequente intervenção legal, lançando dúvidas sobre
os resultados da votação para o parlamento. O Supremo Tribunal decidiu a favor dos
queixosos. Depois de ouvir as queixas, ordenou a recontagem dos votos, o que resultou
apenas em diferenças ligeiras em relação aos resultados originais, deixando inalterada
a distribuição dos assentos parlamentares. Os dois maiores queixosos questionaram os
procedimentos da recontagem e acusaram os membros da Swapo de interferência no
processo. Contudo, não apresentaram recurso. Os membros recém-eleitos da (quarta)
Assembleia Nacional foram, assim, empossados a 20 de Março de 2005.
Enquanto a disputa legal demonstrou “que existe espaço para a melhoria significativa
na forma como as eleições são reguladas, orientadas, observadas e monitoradas” (Ka-
apama 2005, p. 113), a composição dos membros da Comissão Eleitoral da Namíbia
(ECN – Electoral Commission of Namibia) foi confirmada durante 2005 pela renomeação
dos principais detentores de cargos públicos (incluindo o presidente da comissão) para
mais um mandato. Um artigo crítico numa revista local mensal4 foi alvo de uma dura
resposta por parte do Director do Processo Eleitoral e Presidente Executivo da ECN,
tendo recorrido ao típico discurso dos tempos da luta: “não estamos surpreendidos
pelo espírito antipatriótico com que alguns artigos são publicados” (Kanime 2006).
Enquanto um slogan dos tempos da luta de libertação clamava que a SWAPO era o
povo, o slogan ajustado para a actualidade é que a Swapo é o governo e o governo é o
Estado. Esta tendência para o abuso do poder estatal é incapaz de reconhecer e, como
tal, desrespeita a diferença relevante entre a legitimidade democrática formal (através
do número de votos obtidos numa eleição geral livre e justa) e as responsabilidades
e dimensões morais e éticas dessa legitimidade. Consequentemente, também na Na-
míbia, “o Estado usa frequentemente a democracia para perpetuar a hegemonia, em
vez de desenvolver e proteger os direitos e as liberdades como forma de aprofundar
a democracia” (Salih 2000, p. 24). Muitos exemplos de anos recentes oferecem pro-
vas empíricas para consubstanciar esta afirmação, confirmando a suspeita de que “a
adopção de medidas não-democráticas é muitas vezes justificada pela necessidade
de se atingirem objectivos nacionais por via de um mandato democrático” (Ibid.). Os
resultados contestados das últimas eleições parlamentares e presidenciais de Novembro
de 2004 constituem um exemplo recente.
O grau de domínio da Swapo parece ser mais importante para o partido do que man-
ter a legitimidade do seu mandato para além de qualquer suspeita entre os cidadãos
politicamente não envolvidos com o partido.
4
“Nova Comissão, os mesmos velhos problemas”, em Insight, Windhoek, Novembro 2005.
Henning Melber l Governação, Cultura Política e Sociedade Civil na Namíbia 345
civil em fornecerem matéria noticiosa com substância política que mereça ser noticiada
e reportada. Mesmo o jornal New Era, detido pelo Estado, disponibiliza um espaço sig-
nificativo à cobertura de visões críticas ao governo. Como tal, há suficiente espaço para
articular pontos de vista discordantes e críticos – ainda que, por vezes, acarrete grandes
riscos pessoais para os seus autores; senão mesmo físicos, pelo menos a nível de segurança
material. Tendo em conta a dependência económica dos muitos que exercem funções nas
instituições públicas, nos organismos estatais ou instituições similares controladas pela
nova elite política, a defesa de pontos de vista contrários põe o emprego e a subsistência
em risco. Isto é um grande passo atrás em qualquer processo de reforço da sociedade
civil e da luta contra a existente estrutura do poder hegemónico.
As possíveis consequências da combinação de partidos políticos da oposição com
significativo carácter étnico-regional e a relativa passividade e falta de engajamen-
to na esfera política por parte de franjas significativas da chamada sociedade civil,
produziu o “muito familiar cenário africano de identidades étnicas politizadas, um
regime monocrático e altamente personalizado com nenhuma ou reduzida oposição
da esfera privada e um afastamento em larga escala da arena politica por parte de
cidadãos desiludidos” tal como Keulder havia advertido (1996, p. 88).
O surgimento de um novo partido político poderá produzir novos impactos e alterar esta
situação nada animadora em direcção à mudança. A Manifestação para a Democracia
e Progresso (Rally for Democracy and Progress – RDP), enquanto partido, foi registado
no ECN e oficialmente fundado nos finais de 2007 (Melber 2007c). Os seus principais
arquitectos provêm do outrora núcleo duro da Swapo, incluindo dois antigos ministros
que desde a década de 1960 fizeram parte da liderança no exílio. Como resultado da
luta de poder dentro da Swapo pela sucessão do Chefe de Estado, Sam Nujoma, foram
postos de lado e marginalizados a partir de 2005, apesar de representarem uma facção
importante dentro do partido. A formação destas vozes dissidentes — vindas do seio do
aparelho — enquanto novo partido de oposição, poderá ter um impacto considerável na
paisagem política, e influenciar o período até às próximas eleições no final de 2009, em
termos de campanha política e debates. Isso poderia representar uma ameaça ao status
hegemónico da Swapo, pelo menos no que diz respeito à sua maioria de dois terços.
Ainda se terá que ver até que ponto o RDP emerge como uma verdadeira alternativa
política à Swapo, mas pelo menos causará impacto no mapa politico-partidário da
Namíbia, mais do que o fez qualquer outra força da oposição desde a independência
até agora. Pelo menos já acendeu um vivo debate político sobre práticas e virtudes
democráticas. No entanto, isto encerra também o risco de vermos reforçadas as ten-
dências autoritárias que se vêm manifestando na Swapo desde a independência, como
parte dos esforços para silenciar qualquer mudança considerável na hegemonia que
mantém no sistema político. Seria então a sociedade civil a sofrer mais. Até agora,
infelizmente, os insultos têm-se sobreposto à argumentação séria na discussão dos
assuntos políticos. Tal como no passado, os membros da Swapo não hesitam em res-
ponder às críticas públicas com mão pesada, por vezes através de ataques traiçoeiros
à integridade pessoal daqueles que se atrevem a assumir tais posições.6
6
Numa polémica recente, o académico sul-africano baseado na Namíbia, Joseph Diescho, culpou dois detentores
de elevados cargos na Swapo de oportunismo político, citação que foi publicada num jornal local. Um deles, Hage
Geingob, fora já primeiro-ministro (desde a independência até 2002), sendo depois marginalizado politicamente até
que, em Novembro de 2007, numa viragem política, foi eleito Vice-Presidente da Swapo no congresso do partido.
Ele demonstrou a sua frustração decorrente da crítica, chamando ao académico, num comício politico no início de
Janeiro de 2008, de “prostituta intelectual”.
348 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
3 - Descolonização e Democracia
Para caracterizar as realidades sócio-políticas saídas da descolonização nas antigas
colónias de colonato da África Austral, John Saul (1999) propõe a expressão “libertação
sem democracia”. O registo das práticas internas dos movimentos nacionalistas durante
as lutas de libertação, assim como o seu deficit de virtudes democráticas e respeito pela
protecção dos Direitos Humanos, depois de instalados no poder, são razões suficientes
para a desilusão de muitos dos que apoiaram a emancipação social dos colonizados. A
luta contra sistemas injustos de opressão, alicerçados numa ordem colonial totalitária
liderada por uma minoria, não impediu os quadros dos movimentos de libertação e
futuros governantes dos novos países independentes de, também eles, praticarem
violações dos Direitos Humanos e outras formas abusivas de exercício do poder, tanto
no seu próprio seio como nas formas de governação autocrática e autoritária que im-
puseram a nível nacional depois da independência.7 Aproveitando ao limite a noção de
reconciliação nacional, os “libertadores” bloquearam qualquer diálogo minimamente
significativo com os seus membros outrora detidos e torturados no sul de Angola pelo
próprio movimento SWAPO, chamados hoje de “ex-detidos” (Groth 1995). Como re-
sultado, todos aqueles que foram vítimas das ondas internas de repressão na SWAPO
permanecem estigmatizados até hoje (Saul/Leys 2003, Gertze 2006)8.
Apesar da retórica da necessidade de reconciliação, este particular e delicado assunto
ilustra de forma proeminente que a cultura política dominante na Namíbia não é tole-
rante nem se baseia no perdão. Os efeitos na mentalidade da maioria da população não
são encorajadores. Num inquérito feito pela Fundação Helen Suzman em seis Estados
da África Austral, a Namíbia foi o único país onde se concluiu que uma larga maioria
não aceitaria a derrota do seu partido. De acordo com o diagnóstico feito, “pouco mais
de um terço dos inquiridos se sentiam confiantes quanto ao futuro da democracia”
(Johnson 1998). Uma outra pesquisa feita em seis países africanos no início deste novo
século posicionou a Namíbia em último lugar em termos de consciência pública para
a democracia (Mattes et. al. 2000). Um sumário do relatório concluiu, em relação à
Namíbia e à Nigéria, que: “a consolidação da democracia é uma perspectiva distante
em ambos os países” (Bratton/Mattes 2001, p. 120). Em termos de medição do apoio
à democracia durante 2001, a Namíbia atingiu o segundo lugar a contar do fim, com
58% (Afrobarometer 2002).
Uma pesquisa feita junto de namibianos com idades compreendidas entre os 18 e os
32 anos concluiu que mais de uma década depois da independência, “a Namíbia não
tem um número suficiente de jovens democratas para se assegurar a consolidação da
democracia” (Keulder/Spilker 2002, p. 28). A mesma afirmação é completada num
estudo posterior com o diagnóstico não muito lisonjeiro de que “os namibianos são
fortes em partidarismo e débeis em capacidades cognitivas críticas” (Keulder 2003,
p. 24). Estas conclusões tocam em aspectos do que poderia ser apelidado de carácter
autoritário resultante de sistemas opressivos, tanto das estruturas coloniais como da
7
Provas das fases repressivas da história da Swapo no exílio são apresentadas por Dobell (1998) e Leys/Saul (1995).
Uma indicação interessante da coesão interna da Swapo é também a biografia do presidente-fundador Sam Nujoma
(2001) e a revisão crítica de Saunders (2003), bem como a análise de Sam Nujoma sobre a “história patriótica” da
Namíbia em curso (Saunders 2007).
8
Tal como anteriormente referido, depois da independência, os “ex-detidos” da SWAPO foram libertos dos
seus cativeiros no Sul de Angola e regressaram à Namíbia em meados de 1989, tendo-lhes sido negado qualquer
reconhecimento de culpa por parte da Swapo, que mantém que a reconciliação nacional passa por não se abrirem
velhas feridas e como tal recusa-se a lidar com o assunto.
Henning Melber l Governação, Cultura Política e Sociedade Civil na Namíbia 349
e não do objectivo político. Os meus guerrilheiros não são um grupo de homens manejados
para destruir o inimigo, mas um conjunto de seres diferentes, individuais, cada um com as
suas razões subjectivas de lutar e que, aliás, se comportam como tal. […] eu fico contente
quando um jovem decide construir-se uma personalidade, mesmo que isso politicamente
signifique um individualismo. Mas é um homem novo que está a nascer, contra tudo e
contra todos, um homem livre de baixezas e preconceitos, e eu fico satisfeito.[…] Eu não
posso manipular os homens, respeito-os demasiado como indivíduos. Por isso não posso
pertencer a um aparelho. (Pepetela 1996, p. 263-265).
Esta conversa é mais do que ficção; estabelece os parâmetros e constrangimentos
sociais para muitas sociedades pós-coloniais na África Austral com uma história de
resistência armada ao colonialismo. A Namíbia é uma de entre elas.
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353
Introdução
Fidelis Edge
Kanyongolo
Universidade do Malawi
N o Malawi, a adopção da actual Constituição, em 1994,
foi o marco de uma reorganização radical da arqui-
tectura do poder político e do espaço em que este é exerci-
do e controlado. Um dos aspectos mais significativos desta
transformação foi a reconquista de espaço e actividade das
Organizações da Sociedade Civil (OSC) depois de décadas
de repressão e desmobilização decorrentes da actuação do
partido único. A sociedade civil é agora reconhecida como
um interveniente crítico no processo de democratização e
desenvolvimento do país e as leis têm facilitado as suas ac-
tividades e organizações, assegurando principalmente o seu
espaço no que respeita à garantia dos Direitos Humanos.
No entanto e apesar das oportunidades que a nova lei cons-
titucional trouxe, a sociedade civil não tem sido capaz de
realizar inteiramente o seu potencial por várias razões que
são analisadas neste artigo.
Em primeiro lugar este texto oferece-nos uma panorâmica
geral da natureza do Estado e da sociedade no Malawi, com
algum enfoque para as condições históricas nas quais as OSC
se desenvolveram. Seguidamente, discute abreviadamente
o regime legal para a protecção dos Direitos Humanos que
propicia a liberdade das OSC para se envolverem em advo-
cacia, acompanharem e participarem no processo de tomada
de decisões políticas, e outros aspectos do seu mandato geral.
Ainda nesta parte do texto, explica-se o âmbito mediante o
qual o quadro político promove a actividade da sociedade
civil. Esta avaliação positiva do ambiente político e legal é
depois colocada em perspectiva, tendo em conta a promulga-
ção de normas legais específicas, como por exemplo o acesso
restrito aos tribunais, que não promove os interesses dos
pobres e marginalizados. Posteriormente, o texto identifica o
espaço realmente permitido à sociedade civil nas condições
sócio-económicas específicas em que a maioria dos Malawia-
nos vive, mostrando que para além dos factores políticos e
organizacionais que limitam a eficácia da sociedade civil no
Malawi, podem-se encontrar outros constrangimentos enrai-
1
Tradução do inglês original por Marta Lança.
354 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
2
W. F. Murphy, Courts, Judges and Politics: An Introduction to the Judicial Process (New York: Random House, 1979).
356 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Em 2002, o governo aprovou a lei das ONG que requeria que todas as organizações
não-governamentais fossem membros do Conselho de ONG e, além do registo enquan-
to associações ou companhias de responsabilidade limitada, deveriam registar-se no
Conselho de ONG do Malawi (Council of NGOs in Malawi – CONGOMA) designado
pelo governo. O Estado justificou a legislação como um instrumento necessário para
a implementação de regras de accountability e transparência no seio das organizações
da sociedade civil, enquanto os críticos no seio da sociedade civil viam esta medida
como uma forma de restringir a liberdade de acção das ONG. A lei das ONG perma-
nece em vigor e por enquanto não parece ter sido usada pelo governo para limitar
significativamente o espaço da sociedade civil. No entanto, as seguintes características
continuam a ser matéria de preocupação para alguns activistas da sociedade civil: o
facto do poder para nomear membros do Conselho das ONG pertencer a um ministro
do governo; a exigência de que todas as ONG têm de ser obrigatoriamente membros
do CONGOMA (apesar da garantia de liberdade de associação na Constituição); os
amplos poderes do Conselho para suspender ou retirar o registo das ONG com base
em fundamentos que são muito vagos (CONGOMA, 2001: 26-27).
Apesar das leis Malawianas concederem um amplo apoio às actividades e ao desenvol-
vimento da sociedade civil, também incluem um número de decisões do Alto Tribunal
e do Supremo Tribunal que têm tido um impacto negativo. Entre as mais negativas
destas medidas está aquela que negou, a uma ONG local de Direitos Humanos, o
direito de iniciar um processo judicial em nome das alegadas vítimas de violações de
Direitos Humanos, com o argumento de que somente a pessoa cujo direito individual
tenha sido violado pode recorrer aos tribunais5. A maioria das vítimas das violações
dos Direitos Humanos são pobres, marginalizadas e sem grande capacidade de acesso
directo aos tribunais devido a várias barreiras estruturais, financeiras, geográficas e
linguísticas (Scharf et. al., 2006). Com esta restrição, o tribunal limitou a capacidade
das organizações da sociedade civil de ajudarem os pobres e os marginalizados a
defenderem os seus Direitos enquanto seres humanos perante os tribunais.
5
Civil Liberties Committee v Attorney General (Supreme Court Civil Appeal, N.º 12, 1999).
358 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
A sociedade civil é também tida em conta nos processos que concernem políticas
sectoriais específicas como, por exemplo, o desenvolvimento da Política Nacional
de Terras. O governo estabeleceu uma Unidade de Planeamento de Políticas (Policy
Planning Unit – PPU) para rever políticas e leis existentes e para promover uma abor-
dagem alargada à reforma da política de terras. O PPU foi apoiado por 22 membros
do grupo multi-disciplinar e inter-ministerial, incluindo representantes do governo e
do sector “privado, organizações não-governamentais e grupos da sociedade civil.”
(Governo do Malawi, 2002)
Este aparente apoio político do governo à sociedade civil tem, no entanto, de ser con-
trabalançado com a prioridade que é dada aos interesses do sector privado, sendo o
foco central no sentido de “criar um ambiente que favoreça o desenvolvimento do
sector privado e a melhoria das infra-estruturas económicas, como redes de estradas,
energia, sistemas de água e telecomunicações.” (Ibid: xiv). Não sabemos que impacto
terá esta intenção na sociedade civil porque existe actualmente um envolvimento muito
limitado da sociedade civil nas actividades do sector privado no Malawi, ao contrário
de países como Angola, em que os interesses do sector privado têm atraído a atenção
das OSC e até gerado debates sobre a legitimidade da sociedade civil financiada por
interesses do sector privado.
Uma notável excepção no cenário do Malawi foi o recente caso em que algumas ONG
intentaram uma acção legal contra uma empresa mineira australiana com projectos de
extracção de Urânio no Norte do Malawi, com base na acusação de que a regulamenta-
ção da extracção de Urânio estava desadequada, devendo existir um acompanhamento
independente do projecto e da actividade de extracção, para além de se assegurar a pro-
tecção ambiental.6 O caso acabou por ser resolvido por acordo extra-judicial, a extracção
mineira prosseguiu e, ao contrário do que seria de esperar, poucos detalhes do acordo
vieram a conhecimento público. Ao longo da disputa, o governo tomou firmemente o
partido da empresa australiana, classificando a atitude das organizações que protestavam
como obstrutoras do desenvolvimento e da redução da pobreza.
Alguns membros da sociedade civil sustentam a perspectiva de que enquanto a Cons-
tituição permite e protege a liberdade de expressão ou associação, afirmações de polí-
ticos e detentores de cargos públicos acerca do trabalho das ONG são reveladoras de
intolerância para com a sociedade civil (CONGOMA, 2001: 10). A experiência sugere
que a hostilidade da elite governante para com as OSC tende a aumentar em períodos
de intensa contestação política, como, por exemplo, durante períodos eleitorais. Nes-
tas alturas, a elite governante acusa com frequência as OSC de se colocarem ao lado
dos partidos da oposição ou de actuarem disfarçadamente ao serviço de partidos da
oposição, especialmente aquelas que estão envolvidas na área da governação.
6
Mineweb, “Paladin gets Malawi mine go-ahead, but NGO opposition steps up a notch”, available at www.mineweb.
net (accessed 21 January 2008).
Fidelis Edge Kanyongolo l A Sociedade Civil num Quadro Neo-Liberal Legal: o Caso do Malawi 359
in Southern Africa Research and Educational Trust (WLSA) tem feito um lobby relativa-
mente eficaz para reformar a lei relativa às heranças, de forma a proteger os direitos
de propriedade das viúvas e para a promulgação da Lei de Prevenção da Violência
Doméstica. Também o escritório do Media Institute of Southern Africa (MISA) no Malawi
tem feito uma campanha sustentada para a promulgação de legislação referente ao
acesso à informação.
Um exemplo de participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas,
anteriormente referido, diz respeito à Estratégia de Crescimento e Desenvolvimento
do Malawi. Um outro pode ser encontrado ao nível do sector da justiça, com o Con-
selho Nacional de Segurança e Justiça, que almeja ser o maior órgão para o sector da
justiça, incluindo, entre os seus membros, representantes da sociedade civil (Departa-
mento para o Desenvolvimento Internacional). A sociedade civil também participa na
formulação do Orçamento Geral do Estado através de consultas prévias organizadas
pelo Ministério das Finanças com representantes das OSC e do sector privado antes da
apresentação da proposta para aprovação do Parlamento (Rakner et. al.). No período
entre 2000 e 2005, o governo conduziu consultas pré-aprovação do Orçamento Geral
do Estado com um grande leque de parceiros sociais, incluindo OSC, especialmente
aquelas com especial interesse em matérias económicas como a Malawi Economic Justice
Network (MEJN) (Fozzard and Simwaka).
Notável tem sido também a existência de redes de OSC que têm promovido a solida-
riedade e a cooperação. Entre algumas das mais activas destas redes está a ONG Gender
Network, ou o Human Rights Consultative Committee, o Malawi Health Equity Network e a
ONG Coalition for Basic Quality Education and the Disability Coordinating Committee. As
redes têm alcançado níveis variáveis de sucesso e têm também enfrentado os desafios
habituais em contextos sociais, políticos e económicos similares (James, 2002).
No entanto, para que a sociedade civil do Malawi consolide os seus ganhos para o futu-
ro, existem alguns aspectos cruciais a ter em conta e que abordaremos em seguida.
Conclusão
É expectável que a sociedade civil Malawiana desempenhe um papel crítico no pro-
cesso de democratização e desenvolvimento futuro. O espaço criado pela lei e pelas
políticas governamentais deve permanecer inalterado e o principal desafio para as OSC
é o de assegurarem que a diferenciação e divisão no seu seio não mine fatalmente as
possibilidades de solidariedade, e que as OSC tenham verdadeiramente em conta a
realidade sócio-económica do país no seu planeamento de actividades e na sua própria
organização interna. Isto ajudará as OSC no Malawi a aprofundar a sua legitimidade
e relevância interna.
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362 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Introdução
Badala Tachilisa
Balule
Universidade
O papel das Organizações da Sociedade Civil (OSC) nas
democracias modernas está fortemente relacionado
com o direito fundamental dos cidadãos a formarem associa-
do Botswana ções para persecução de objectivos comuns. A raiz da defini-
ção de democracia é a de um governo regulado pelo povo, o
que implica o controlo do sistema político pelo povo. Neste
sentido, o povo de um determinado sistema político deve
ter acesso ao processo de tomada de decisões com base num
critério de igualdade política. As OSC facilitam o acesso dos
cidadãos ao processo de tomada de decisão e promovem a
igualdade política por, entre outras coisas, assegurarem o
alargamento do debate político conducente a uma cidada-
nia informada, que pode votar de forma mais consciente,
participar na política e assegurar o controlo da governação,
tornando o governo mais responsável. Desta forma, as OSC
reforçam a democracia devido ao evidente facto de se cons-
tituírem num meio de resistência à tirania dentro do Estado
e de estabelecerem as fundações da igualdade politica e do
controlo popular, para além de se constituírem como meio
de construção de um contra-poder democrático de combate
às fontes de poder anti-democráticas externas ao Estado2.
As OSC são actores poderosos do ponto de vista político e
ideológico, na medida em que procuram alterar as normas e
políticas existentes com o objectivo de fortalecer a democracia3.
A eficácia das OSC como actores políticos em qualquer regime
dependerá da medida em que o governo reconhecer o seu
papel. Assim, a capacidade das OSC de influenciar as políticas
governamentais dependerá de seu grau de independência e da
disposição do executivo em permitir que estas organizações
participem na formulação das políticas públicas.
Este artigo analisa a sociedade civil e o poder político no
Botswana. Examina o ambiente no qual actuam as OSC, a sua
1
Traduzido do original em inglês por Aline Afonso Pereira.
2
Ver H. Wainwright, “Civil Society, Democracy and Power”, in Global Civil Society
Yearbook 2004/5, em www.tni.org.
3
G.M. Steinberg, “Civil Society, Intercultural Dialogue and Political Activism:
Rethinking EMP Policies”, in L. Bekemans, et. al. (eds), Intercultural Dialogue and
Citizenship, Translating Values into Actions: A Common Project for Europeans and Their
Partners, Marsilio, Venice, 2007, pp. 297 a 301.
364 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
4
Ver Botswana Institute for Development Policy Analysis (BIDPA), The State of Governance in Botswana 2004 – Final
Report, BIDPA and UNECA, 2006, p. 195.
5
BOCONGO Mission Statement, em www.bocongo.org.bw
6
Ibid.
7
Republic of Botswana, Seventh Africa Governance Forum (AGF VII) – Botswana Country Report, October 2007, p. 11.
8
BIDPA, The State of Governance in Botswana 2004 – Final Report, op. cit., p. 195.
Badala Tachilisa Balule l Sociedade Civil e Poder Político no Botswana 365
civil como os sindicatos e os media. Por exemplo, o discurso sobre “o estado da nação”
proferido pelo presidente Festus Mogae na abertura da quarta sessão do nono parlamen-
to, embora reconhecendo que os sindicatos são instituições essenciais numa democracia
participativa, lamentou que alguns líderes sindicais pareçam aspirar a carreiras político-
partidárias sob o disfarce do sindicalismo. Ele advertiu que os sindicatos deveriam evi-
tar ser manipulados por interesses políticos pessoais e partidários18. As observações do
Presidente foram fortemente criticadas pelos sindicatos que as interpretaram como um
desafio à sua independência19. Da crítica do Presidente aos sindicatos transparece alguma
incapacidade de compreender que numa democracia participativa as OSC são também
actores políticos e ideológicos, que podem legitimamente pretender alterar as normas e
as políticas públicas existentes como forma de fortalecer a democracia.
Há um entendimento geral de que os media independentes, além de contribuírem para
uma sociedade civil autónoma e activa, informando e educando o público, constituem as
vias para que os actores não-estatais possam criticar ou objectar publicamente às políticas
ou acções do governo20. Os media privados independentes surgiram no Botswana no final
dos anos oitenta e continuam a desenvolver-se. A liberdade dos media é garantida pela
Constituição como um aspecto de um direito mais vasto – a liberdade de expressão21.
Actualmente, no Botswana, existem aproximadamente uma dúzia de jornais privados
em circulação e três emissoras nacionais de rádio privadas. Observou-se que o governo
fornece um ambiente razoavelmente seguro para a liberdade dos media, embora tenham
acontecido casos em que o governo tomou medidas que foram designadas como cen-
sura. Por exemplo, em Abril de 2001, o governo proibiu publicidade governamental em
dois jornais locais, o Botswana Guardian e o Midweek Sun por serem muito críticos em
relação aos líderes do país. A decisão foi punitiva e pretendia pressionar os dois jornais
a reformular as suas reportagens de acordo com parâmetros de liberdade editorial que
o governo considerava mais aceitáveis. Essencialmente, o governo estava a usar os seus
poderes de gestão do erário público para tentar manipular o conteúdo dos media, por
meio da colocação da publicidade pública, deste modo tentando forçar os jornais a alterar
sua política editorial em conformidade com as expectativas governamentais. A proibição
foi subsequentemente declarada inconstitucional pelo Tribunal Supremo22.
A tensão entre alguns sectores da sociedade civil e o governo fez com que vários
analistas chegassem à conclusão de que os ataques do governo à sociedade civil com-
peliram esta a afastar-se da crítica às concepções do Estado e forçaram-na a entrar
em conselhos conjuntos com o executivo para operar de maneira a fortalecer e não a
enfraquecer o poder do Estado23.
2 - A Influência da Sociedade Civil nos Programas e Políticas
Governamentais
Embora o governo tivesse criado estruturas para colaborar com a sociedade civil na
formulação de políticas públicas, aquilo que se verificou foi uma diminuição da parti-
18
See paras. 58 and 59, State of the Nation Address, by His Excellency Mr. Festus G. Mogae, to the opening of the
Fourth Session of the Ninth Parliament – “Achievements, Challenges and Opportunities” delivered on 5th November
2007, at www.gov.bw.
19
Ver “Mogae Angers Trade Unions”, Mmegi/The Reporter, 7 de Novembro de 2007.
20
Economic Commission for Africa, African Governance Report 2005, Economic Commission for Africa, 2005, p. 133.
21
Media Publishing (Pty) Ltd v Attorney General of Botswana and Another [2001] 2 BLR 485 at 494.
22
Para uma discussão mais detalhada ver, B.T. Balule, “Manipulating Media Content: Public Sector Advertising in
the Press in Botswana – A Comment on Media Publishing vs Attorney General of Botswana” (2004) 20 SAJHR 653.
23
Z. Maundeni, Civil Society, Politics and the State in Botswana, Medi Publishing, 2004, p. 67.
Badala Tachilisa Balule l Sociedade Civil e Poder Político no Botswana 367
cipação dessa mesma sociedade civil, facto que é atribuído às dificuldades financeiras
e de recursos humanos neste sector24.
Não obstante estes constrangimentos, a sociedade civil no Botswana tem desempe-
nhado um papel notável ao influenciar diversas leis e políticas governamentais. As
organizações de defesa dos direitos das mulheres têm exercido uma grande influência
nas leis e políticas governamentais. Os esforços de advocacia promovidos por estes
grupos têm, ao longo dos anos, contribuído para o aumento constante da representação
feminina nos cargos de tomada de decisão, incluindo cargos políticos, administração
de topo (nos sectores público e privado) e em domínios tradicionalmente masculinos,
como os de autoridades tradicionais e de sacerdócio25.
Como consequência da pressão exercida pelos grupos que defendem os direitos das
mulheres, o governo tem revisto e alterado várias leis discriminatórias, procurando
promover a efectiva participação das mulheres na economia do país26. As alterações
tiveram como objectivo reforçar a segurança económica das mulheres em áreas como
a terra, a propriedade, o direito de herança, o emprego e o acesso ao crédito27.
As medidas políticas e legislativas tomadas pelo governo para alterar as leis que dis-
criminavam as mulheres incluem, entre outras: a emenda de 1995, que altera a Lei da
nacionalidade, a fim de permitir que as mulheres cidadãs do Botswana, que casem
com não-cidadãos, possam ver atribuída a cidadania aos seus filhos; a emenda de 1996
à Lei do Registo de Propriedade, permitindo que mulheres casadas em comunhão de
bens possam ter imóveis registados em nome próprio em vez do nome do seu marido;
a emenda de 1998 ao Código Penal, que, entre outros aspectos, reforça as leis contra a
violação; a emenda de 2000 à Lei dos Serviços Públicos, que reconhece o assédio sexual
como comportamento impróprio; e a Lei de 2004 de Abolição do Poder Marital, onde
o princípio da lei comum do poder marital foi substituído pelo princípio da igualdade
entre os cônjuges em relação à propriedade comum.
A sociedade civil do Botswana mostrou-se, algumas vezes, capaz de obstruir os es-
forços do governo para promulgar leis que de forma geral eram percebidas como
ameaças aos direitos e liberdades fundamentais protegidas pela constituição do país.
Por exemplo, em 1997, o governo criou um controverso ante-Projecto de Lei para a
área da Comunicação Social que tentou estabelecer uma agência reguladora para
a imprensa escrita, cujos membros deveriam ser nomeados pelo ministro. O ante-
Projecto de Lei foi recebido com protestos pela sociedade civil dentro e fora do país,
o que acabou por forçar o governo a abandoná-lo28. O governo comprometeu-se a
consultar as partes interessadas antes da apresentação do Projecto de Lei ao Parla-
mento. Em 2006 o governo honrou o seu compromisso ao estabelecer uma equipa
composta por membros dos HLCC do Comité Consultivo para os Media para delinear
os princípios que poderiam servir de base à Lei da Comunicação Social. Foi solicitada
24
Ver BIDPA, Measuring and Monitoring Progress Towards Good Governance in Africa: The African governance Report
II – Botswana Draft Report, Outubro 2007, p. 85.
25
Ver Transparency International Zimbabwe and Transparency International, A Comparative Study of National Integrity
Systems in 5 Southern African Countries, Transparency International Zimbabwe, 2007, p. 56.
26
Alguns dos grupos mais activos de defesa dos direitos das mulheres incluem: Emang Basadi; Women in Law in
Southern Africa Trust; and Women’s NGO Coalition.
27
Ver State of the Nation Address, by His Excellency Mr. Festus G. Mogae, to the opening of the Fourth Session of
the Ninth Parliament, op. cit. at para. 60.
28
Ver J. Minnie and B. Mwape (eds.), So This is Democracy? Report on State of the Media in Southern Africa 1997, MISA,
1997, p. 25.
368 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
29
Ministry of Communications, Science and Technology, Proposed Principles for a Mass Media Bill (2006).
30
Ver BIDPA, Measuring and Monitoring Progress Towards Good Governance in Africa: The African governance Report
II – Botswana Draft Report, op. cit., p. 116.
31
Ver www.ditshwanelo.org.bw
32
Ibid.
33
Z. Maundeni, “Civil Society and Democracy in Botswana”, in Z. Maundeni (ed), 40 Years of Democracy in Botswana
1965 – 2005, Mmegi Publishing House, 2005, pp. 177 a 183.
34
S.T. Sechele, “The Role of the Press in Independent Botswana”, in W.A. Edge and M.H. Lekorwe (eds.), Botswana:
Politics and Society, J.L. Van Schaik Publishers, 1998, pp. 412 a 415.
Badala Tachilisa Balule l Sociedade Civil e Poder Político no Botswana 369
vigilante cabe mais aos media do que seria geralmente o caso em outras sociedades com
instituições mais desenvolvidas35.
Os media privados recorrem ao jornalismo de investigação como meio de desempenhar
o seu papel de vigilante. Estes têm, ao longo dos anos, exposto casos de corrupção no
governo, de má gestão, de abusos dos Direitos Humanos e de outras insuficiências
da justiça. O exemplo clássico foi a revelação pelo jornal Gazette em 1994 que o então
presidente e quase metade do seu gabinete estavam a dever milhões de Pula referentes
a atrasos nos pagamentos de empréstimos cedidos pelo National Development Bank
(NDB), que por sua vez estava a beira da falência36. Cerca de uma semana depois das
revelações, o presidente quitou os seus pagamentos em atraso37. Algumas das repor-
tagens divulgadas pelos media resultaram na nomeação de comissões presidenciais
de inquérito, que com o tempo ajudaram a encontrar culpados e, em alguns casos,
levaram à demissão de ministros38.
35
Outsa Mokone, Guardian, 7 de Janeiro de 2000, pp. 4.
36
“Big Guns Owe NDB Millions”, Gazette, 9 de Fevereio de 1994, p. 1.
37
“President Owns Up to Owing the NDB”, Gazette, 16 de Fevereiro de 1994.
38
S.T. Sechele, “The Role of the Press in Independent Botswana”, op. cit. at 416 and Mmegi, Vol. 16, N.º 15, 16-22 de
Abril de 1999, “The Rise and Fall of Jacob Nkate”, p. 1.
39
Ver D. Sebudubudu and E. Alexander, “Civil Society, Human Rights and Good Governance in Botswana”, in G.
Jacques et. al. (eds.), Human Rights and Social Development in Southern Africa, Bay Publishing, 2007, pp. 148 a 152.
40
Ver BIDPA, Measuring and Monitoring Progress Towards Good Governance in Africa: The African governance Report
II – Botswana Draft Report, op. cit., p. 85.
41
Ver BIDPA, Measuring and Monitoring Progress Towards Good Governance in Africa: The African governance Report
II – Botswana Draft Report, op. cit., p. 85.
42
Ibid.
370 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Embora não exista censura directa do Estado aos media privados, há um elevado nível
de auto-censura no sector. Isto deve-se principalmente a dois factores. Primeiramente,
existem várias leis a vigorar no país que regulam os media. Estas leis, formuladas em
termos vagos, ou dão poderes arbitrários aos órgãos do governo ou impõem duras
penalizações aos media quando estes incumprem com estas leis. Entre os exemplos
possíveis inclui-se o Acto de Segurança Nacional (National Security Act) com normas
vagas e penalizações duras. Isto induz a auto-censura nos media, que tendem a evitar
reportagens sobre assuntos que eventualmente possam infringir aquela lei. Há tam-
bém o Acto de Imigração (Immigration Act) que dá poderes ao Estado para declarar
um estrangeiro residente como indesejável e simplesmente deportá-lo. Este disposi-
tivo tem sido ocasionalmente utilizado pelo governo contra jornalistas estrangeiros
que residem no país, considerados como demasiado críticos em relação às políticas
governamentais.
O segundo factor que contribui para a auto-censura nos media é o económico. Os me-
dia privados contam muito com o rendimento da publicidade. Assim sendo, têm que
se assegurar que as suas reportagens não antagonizam os interesses dos principais
anunciantes, o que pode vir a resultar na perda de patrocínios. Os media privados de-
pendem em larga medida do rendimento de muitos anúncios do governo e do sector
público, o que deixa esta industria vulnerável caso esses anúncios sejam retirados, não
lhes sendo possível sobreviver somente com o rendimento dos anunciantes privados.
A vulnerabilidade desta indústria pode ser demonstrada por meio do caso da retirada
dos anúncios nos jornais Guardian e Midweek Sun. Embora a decisão do governo tenha
sido posteriormente declarada ilegal pelo Tribunal Supremo, os jornais insistem que
a publicidade do sector público para eles diminuiu50.
Desde o seu surgimento nos anos oitenta, os media privados no Botswana têm, de for-
ma geral, desempenhado o seu papel de vigilante de maneira satisfatória. Através do
jornalismo de investigação, no passado, os media privados já expuseram casos de cor-
rupção no governo, de má gestão, de abuso dos Direitos Humanos e outros episódios
de insuficiências na justiça. Contudo, actualmente verifica-se uma falta de jornalismo
de investigação, que pode ser atribuída a inúmeras razões. Uma das principais razões
é que os jornalistas mais experientes têm sido promovidos a postos de gestão e já não
escrevem, enquanto outros tendem a deixar a profissão para actividades mais lucrativas
na área das relações públicas51. Outra razão é a crescente competição e comercialização
neste sector, o que também desencoraja os media a cobrir histórias que possam vir a in-
comodar os seus principais anunciantes e assim colocar em risco os seus patrocínios.
Conclusão
De modo geral, acredita-se que a sociedade civil no Botswana é fraca e como tal não
tem sido capaz de influenciar de forma eficaz o poder político. A fraqueza da socie-
dade civil do Botswana deve-se principalmente a limitações financeiras e de recursos
humanos. Assim, este sector deveria desenvolver estratégias direccionadas para a
resolução das suas limitações, especialmente em termos de competências, de gestão
organizacional, de experiência e de eficiência e eficácia operacional.
50
B.T. Balule, “Manipulating Media Content: Public Sector Advertising in the Press in Botswana: A Comment on
Media Publishing vs Attorney General of Botswana”, op. cit. at 659.
51
“Africa Media Barometer: Botswana 2005 – Civil Society Perceptions on the State of Media Freedom & Freedom of
Expression”, in Z. Titus (ed), So This is Democracy? State of Media Freedom in Southern Africa 2005, MISA, 2006, pp. 190 a 204.
372 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Outro desafio a este sector está na sua crescente dependência em relação aos fundos
provenientes do governo, depois do abandono dos doadores internacionais. O governo
nunca deveria usar a sua capacidade de gestão de fundos públicos para incapacitar
instituições democráticas, mas tal acontece. Há assim a necessidade de desenvolver
políticas públicas e estratégias que assegurem que a gestão dos fundos públicos não
mine a independência das OSC.
A independência dos media é fundamental para uma sociedade civil eficaz. No Botswa-
na, a independência dos media enfrenta sérias ameaças derivadas da comercialização
do sector, causada pela super-dependência em relação às receitas provenientes dos
anúncios. É preciso encontrar maneiras de reduzir a dependência deste sector em
relação àquelas receitas para garantir o cumprimento da sua missão democrática.
373
Introdução
Manuel de Araújo
Raúl Meneses
& O presente trabalho faz uma reflexão sobre o contributo
das Organizações da Sociedade Civil (OSC) para o
processo de desenvolvimento sócio-político em Moçam-
Chambote, bique nos últimos dezassete anos. A emergência das OSC
Centro de Estudos ganha ímpeto na década de noventa com a dinâmica do
Moçambicanos
processo de democratização, a ajuda de emergência e o
e Internacionais (CEMI)
apoio dos Parceiros de Cooperação Externa. Desde cedo se
notaram duas características essenciais no espaço de desen-
volvimento das OSC moçambicanas, por um lado, o enorme
peso do factor externo (financiamento e capacitação técni-
ca), por outro lado, a crescente preocupação (incómodo)
que causaram ao poder político. Estas duas características
marcarão de sobremaneira o desenvolvimento das OSC até
ao presente, representando os seus maiores desafios, tanto
nos muitos constrangimentos que se lhes levantam, como
nos relativos sucessos que foram atingindo nos casos em
que foram capazes de superar alguns obstáculos.
A polarização do espaço político-partidário entre a FRELI-
MO e a RENAMO, assim como o carácter patrimonialista
e clientelar do sistema político-económico, representa um
contexto de fortes limitações à autonomia e apartidarização
das OSC. Por outro lado, as suas parcerias com parceiros de
cooperação externa e o acesso directo a organizações inter-
governamentais internacionais torna-as potencialmente pe-
rigosas para o poder político-governativo, que percebe que o
seu controlo monopolista sobre o processo de decisão política
está a chegar ao fim e tem de ser mais partilhado.
É neste contexto que se têm desenvolvido as OSC moçambi-
canas, em constante luta contra um ambiente adverso num
caminho com muitos obstáculos, procurando afirmar a legi-
timidade da sua participação e contributo para o processo de
democratização e desenvolvimento sócio-político-económico
de Moçambique.
374 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Este trabalho encontra-se estruturado em duas partes. A primeira faz uma abordagem
alargada do contexto de Moçambique no plano político, económico e social, contra-
pondo a perspectiva da realidade da maioria da população à dos cenários idílicos da
success story propagados no exterior. A segunda apresenta o percurso de emergência e
desenvolvimento das OSC moçambicanas, marcadas por diversos constrangimentos
e obstáculos (internos e externos), assim como por alguns sucessos demonstrativos
do seu lento mas inegável progresso e contributo para o processo de democratização
e desenvolvimento.
1 – Enquadramento Sócio-Político-Económico de Moçambique
A República de Moçambique tem sido referida nos últimos tempos como “bom exemplo
de reconciliação e reconstrução económica”, ou como uma “história de sucesso”1.
O quadro politico-jurídico que deriva da Constituição de 1990 permitiu que as questões
cruciais do Estado não permanecessem confinadas ao debate político-partidário (na
perspectiva da interacção entre partido no poder versus partidos da oposição), abrindo
espaço de intervenção e participação pública tanto para as OSC como para o sector
privado. Várias plataformas de diálogo foram criadas, umas por iniciativa legal (e.g.
Lei sobre os Órgãos Locais do Estado, que regula o relacionamento das Autoridades
Locais com os Órgãos do Estado2), outras por iniciativa da própria sociedade civil (e.g.
Observatório da Pobreza – OP; cf. infra).
Já foram realizadas três eleições gerais multipartidárias (1994, 1999 e 2004, consecuti-
vamente ganhas pela FRELIMO3) e duas eleições municipais (1998 e 2003; em ambas
a FRELIMO ganhou na maioria dos municípios). Não obstante o aumento do nível de
abstenção4 e a contestação da RENAMO (maior partido da oposição)5, o processo elei-
toral contribuiu para a estabilização política, crescimento económico, aprofundamento
da dinâmica de processos democráticos, prosseguimento do processo de reforma das
instituições do Estado e fortalecimento da capacidade das instituições políticas.
A nível económico, Moçambique alcançou taxas anuais de crescimento económico su-
periores a 7% nos últimos quinze anos e conseguiu reduzir e controlar a taxa de inflação
através de uma política monetária rígida (ver Tabela 1). Esta evolução é derivada do
término do conflito armado, da estabilidade política, do relançamento da actividade
produtiva, assim como das reformas conduzidas pelo governo Moçambicano.
1
Ver a este respeito Hanlon, Joe (1999) “Mozambique Notes”, in Southern Africa Report (SAR), Vol. 14, N.º 4, August;
available at www.africafiles.org; também a este respeito, Hanlon, Joe (1996) Peace Without Profit: How the IMF Blocks
Rebuilding in Mozambique, London: James Currey.
2
Boletim da República (2003), Lei n.º 8/2003, sobre os Órgãos Locais do Estado (LOLE), de 19 de Maio de 2003. I Série,
n.º 20. Publicação Oficial da República de Moçambique. Maputo.
3
FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique.
4
Abstenção nas eleições gerais: 12% em 1994, 32% em 1999, 64% em 2004; abstenção nas eleições municipais (município
de Maputo): 85% em 1998 e 80% em 2004.
5
RENAMO – Resistência Nacional Moçambicana.
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote l Sociedade Civil e Desenvolvimento em Moçambique 375
6
Em 1996-97, o Instituto Nacional de Estatística realizou o primeiro inquérito representativo a nível nacional sobre o
consumo dos agregados familiares em Moçambique. Em 2002-03 realizou-se um segundo inquérito representativo a
nível nacional sobre o consumo dos agregados familiares. Os dois Inquéritos aos Agregados Familiares (IAF) podem
ser consultados online em www.sarpn.org.za
7
Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, A água para lá da escassez: poder, pobreza e a crise mundial da água,
New York: PNUD, 2006; disponível online: http://hdr.undp.org/hdr2006/statistics/country/country_fact_sheets/
cty_fs_MOZ.html
8
Ibid. IAF de 2002-03; os dados nesta magnitude são contudo contestados por vários autores, como por exemplo
Hanlon, Joe (1997), Paz Sem Benefícios. Como o FMI Bloqueia a Reconstrução de Moçambique. Maputo, Centro de Estudos
Africanos, Imprensa Universitária da Universidade Eduardo Mondlane. Inquéritos aos Agregados Familiares (IAF)
podem ser consultados online em www.sarpn.org.za.
9
World Bank (2007) World Development Indicators, Washington, The World Bank.
376 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
faz sentir ao nível da melhoria das condições de vida das populações (em termos de
empregos e rendimentos). As manifestações de 5 de Fevereiro de 2008, contestando a
subida dos preços dos transportes públicos, são um exemplo claro das dificuldades
por que atravessam as populações. Por outro lado, o contributo das micro, pequenas
e médias empresas para o PIB, continua fraco, demonstrando que qualquer efeito
trickle-down dos mega-projectos continua por ocorrer.
O desempenho do sector agrícola, que constitui a principal fonte de rendimento e sobrevi-
vência para a maior parte da população moçambicana, permanece um motivo de grande
preocupação. Apesar de empregar 80,5% da população economicamente activa (sendo
que 60% são mulheres), este sector representa apenas 26% do PIB, devido ao baixo nível
de produção e produtividade10. Os rendimentos agrícolas das famílias e, consequentemen-
te, a sua segurança alimentar, são reduzidos. Os problemas residem não só ao nível dos
baixos índices de produção e produtividade, mas também nos fracos serviços de extensão
rural, dificuldade de acesso aos mercados agrícolas e ao crédito, extrema vulnerabilidade
aos desastres naturais e pragas, baixa qualificação da mão-de-obra e deficientes serviços
públicos de apoio ao sector. De acordo com o Banco Mundial, o investimento público na
agricultura não está suficientemente dirigido para os pobres11.
Independentemente das altas taxas de crescimento do PIB, a taxa de má nutrição está
a aumentar12, querendo isto dizer que se aprofunda o fosso das desigualdades sociais
entre ricos (uma minoria) e pobres (a maioria). Em termos de rendimentos, existem
fortes discrepâncias não só entre grupos populacionais como também entre regiões.
De igual modo, a magnitude do HIV/SIDA poderá ter um impacto económico-social
fortemente negativo. Moçambique é um dos países severamente afectados por este
flagelo. A taxa de prevalência ponderada nacional de HIV entre a população adulta
(15 a 49 anos) continua a aumentar, tendo sido estimada em 13,6% em 2002 e 17,0%
em 2006, estimando-se que até 2020 o país terá perdido 20% da sua força de traba-
lho agrícola. Evidências de vários países indicam que com taxas de prevalência de
HIV entre 15% e 17%, o crescimento do PIB per capita reduz em cerca de 0,8%. Neste
sentido, o país estará, a prazo, sujeito a um bloqueio significativo no seu processo de
desenvolvimento13.
Ao nível do endividamento externo (outrora constituindo uma das principais carac-
terísticas das contas públicas moçambicanas), não obstante a iniciativa HIPC (Heavily
Indebted Poor Countries)14 ter permitido uma redução significativa daquela dívida, o
país continua a depender fortemente da ajuda externa. Há mais de 25 anos que mais
de 50% do Orçamento do Estado (OE) tem sido financiado pela ajuda externa, sendo
que em 2007 esse valor situou-se nos 60,4%15.
10
Mesmo nas zonas urbanas, os indicadores apontam para que cerca de 40,7% da população economicamente activa
seja dependente de actividades nos sectores da agricultura, silvicultura e pesca; ver Agenda Estatística 2005 elaborada
com base no Inquérito aos Agregados Familiares 2002-03, disponível online em www.gvcmoz.org.
11
World Bank (2007), World Development Indicators, Washington, The World Bank.
12
UNICEF Mozambique: Consolidated Donor Report 2006, UNICEF, Março 2007.
13
Plano Estratégico Nacional de Combate ao Sida (2004), Maputo: Conselho de Ministros, Conselho Nacional de Combate
ao Sida, República de Moçambique, p.15.
14
Iniciativa para o Alívio da a Dívida dos Países Pobres Fortemente Endividados, concebida em 1996, pelo Banco Mundial
e Fundo Monetário Internacional, para reduzir o elevado ónus da dívida externa de alguns países mais pobres.
15
Na revisão do Orçamento de Estado, apresentada a Assembleia da República no dia 1 de Novembro de 2007, a
receita total foi cifrada em 2.018.587,49 Meticais Novos, dos quais 800.000,00 resultam do aumento das receitas do
Estado e 1.218.587,49 de financiamento por donativos, Jornal Notícias, 2 de Novembro de 2007.
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote l Sociedade Civil e Desenvolvimento em Moçambique 377
16
World Bank (2007) World Development Indicators, Washington, The World Bank.
378 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Não obstante alguns casos que abordaremos adiante, as OSC moçambicanas continuam
relativamente fracas quando se trata do seu engajamento em processos de participação
e monitoria de políticas públicas. A sua participação em questões estratégicas de de-
senvolvimento do país é essencialmente de carácter consultivo, não verdadeiramente
inclusivo e menos ainda vinculativo. Dado que este facto é claramente perceptível para
a população em geral, inibe-se um maior envolvimento dos cidadãos na vida pública
do país. Se este aspecto não for tomado em consideração, a “auto-limitação induzi-
da” no exercício de liberdades cívicas poderá colocar em risco o próprio processo de
democratização, que se quer participativo e inclusivo.
A exemplo do que acontece em muitos países da região, existe uma tendência do par-
tido governamental em controlar (manipular) em seu favor o espaço cívico. Aqueles
que resistem são acusados de estarem a fazer o jogo político da oposição contra o
poder governamental instituído. A predominância de relações patrimoniais no seio
do sistema político-económico e o carácter fortemente bipolarizado do panorama
partidário, reflectem-se nos constrangimentos que são impostos à actuação das OSC.
Num sistema político-económico onde ainda existe uma grande indiferenciação entre
esfera pública e privada, as interferências por parte de poderes públicos e privados
acabam por ser uma constante na vida das OSC, procurando desvirtuar a linha de
actuação das mais críticas e isentas. Existe muito pouco espaço para “independentes”,
“ou estão connosco ou estão com o opositor”.
As graves carências financeiras da maioria das OSC, a competição por fundos públi-
cos e privados, externos e internos, e as muitas debilidades estruturais (de recursos
humanos), leva muitas delas a ceder a pressões e a cair nas malhas do clientelismo
político-partidário, incapacitando-as de assumir uma postura crítica e isenta na defesa
dos interesses daqueles que dizem representar.
A falta de auto-sustentabilidade da maioria das OSC e alguma fadiga que se começa
a verificar por parte dos doadores em Moçambique, poderá vir a agravar bastante o
cenário de dificuldades com que estas organizações se deparam.
17
Negrão, José (2003) ONG do Norte e Sociedade Civil de Moçambique; Cruzeiro do Sul. Maputo. Mimeo. Disponível
online em www.iid.org.mz
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote l Sociedade Civil e Desenvolvimento em Moçambique 379
18
Palmer, Robin. 2003. Struggling to Secure and Defend the Land Rights of the Poor in Africa, Austrian Journal of
Development Studies, XIX, 1, 2003, 6-21.
380 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
19
As vinte variáveis determinantes resultaram da aplicação de um modelo analítico baseado em quatro eixos:
capital humano; capital social; economia e desenvolvimento; governação. Da ponderação de cada variável surgiu
um modelo normativo cujo resultado é substancialmente diferente do modelo normativo aplicado pelos Poverty
Reduction Strategy Papers (PRSP).
20
Agenda 2025. 2003. Documento Provisório, in Jornal Notícias, de 3 de Outubro de 2003.
21
Negrão, José (2003) ONG do Norte e Sociedade Civil de Moçambique; Cruzeiro do Sul. Maputo. Mimeo. Disponível
online em www.iid.org.mz
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote l Sociedade Civil e Desenvolvimento em Moçambique 381
-americanos em 1998. Para que a iniciativa fornecesse uma solução de saída para o
país, calculou-se que o rácio entre a dívida e as exportações deveria situar-se entre os
200% e os 220%. Os resultados imediatos alcançados foram satisfatórios. Entre 1996 e
2000 a taxa anual de inflação baixou de 47% para 2% e o Produto Interno Bruto cresceu
a uma média de 10% ao ano.
Em 2000 o país foi alvo das maiores cheias da sua história, tendo sido elevadíssimos
os prejuízos nas zonas Sul e Centro, as quais, literalmente, ficaram submersas por
mais de um mês. O Banco Mundial e o FMI decidiram acelerar o alívio da dívida
ao perdoar a totalidade do pagamento do serviço da dívida nesse ano. O Clube de
Paris adiou o pagamento para quando Moçambique estivesse em condições e vários
credores bilaterais anuíram no mesmo sentido22. Desta forma, Moçambique reunia as
condições para entrar na segunda fase da Iniciativa HIPC, também conhecida como
HIPC 2. É nesta segunda fase que as instituições de Bretton Woods se disponibiliza-
ram a conceder perdões parcelares da dívida desde que o país continuasse a seguir,
estritamente, o programa aprovado por aquelas instituições. Os credores do Clube
de Paris predispuseram-se a conceder o alívio da dívida em condições claramente
preferenciais e crê-se que o mesmo venha a acontecer com os credores bilaterais. Para
a aprovação final da passagem para o HIPC 2, foram quatro as condições requeridas
pelo Banco Mundial e FMI: a elaboração de um Poverty Reduction Strategy Paper (PRSP),
que em Moçambique foi designado por Plano de Acção para a Redução da Pobreza
Absoluta (PARPA), contando com a participação activa da sociedade civil, do sector
privado e do cidadão em geral; a implementação de um conjunto de medidas relativas
ao desenvolvimento social, à reforma do sector público e ao quadro legal e regulador
das actividades económicas; a manutenção de um clima macroeconómico estável sob
o controlo do FMI; a confirmação de outros credores quanto à participação no alívio
da dívida.
Em 25 de Setembro de 2001 o Banco Mundial e o FMI concluíram que Moçambique
tinha satisfeito as quatro condições apresentadas em 2000 e dado os passos necessários
para entrar na segunda fase, tornando-se assim no terceiro país do mundo a alcan-
çar esta fase, depois da Bolívia e do Uganda. A dívida externa foi reduzida para 750
milhões de dólares norte-americanos, tendo portanto sido perdoado cerca de 73% do
montante inicial. O serviço da dívida passou de 100 milhões por ano em 1988 para
uma média anual em torno dos 56 milhões entre os anos de 2002 e 2010, representando
uma redução do seu peso nas receitas do Estado, passando de 23% daquelas receitas
para 10% (entre 2000 e 2010) e estimando-se que esta percentagem se reduza ainda
mais (para cerca de 7% entre 2011 e 2020)23.
A poupança realizada com a diminuição do serviço da dívida permitiu o aumento das
despesas do Estado no PARPA. O Estado passou a poder disponibilizar mais de cerca
de 130 milhões de dólares americanos por ano nas actividades do PARPA. Porém, a
requerida participação da sociedade civil, do sector privado e do cidadão em geral,
na concepção do PARPA, foi reduzida à consulta esporádica e muitas vezes somente
com carácter informativo sobre o que se estava a fazer ou já se tinha realizado. Conse-
quentemente, a concepção do PARPA não incorporou as percepções, o conhecimento
e as experiências dos vários actores que têm um papel a desempenhar na redução da
Negrão, José (2003) ibid.; ver igualmente Hanlon, Joe (1997), Paz Sem Benefícios. Como o FMI Bloqueia a Reconstrução de
23
Moçambique. Maputo, Centro de Estudos Africanos, Imprensa Universitária da Universidade Eduardo Mondlane.
382 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
Conclusão
Não obstante as conquistas referidas acima, as OSC moçambicanas têm ainda um longo
caminho pela frente para a sua afirmação. Neste sentido, não fogem grandemente ao
panorama geral da região Austral, especialmente no que toca à dependência externa
e aos constrangimentos de toda a ordem que lhe são colocados pelo poder político-
governamental.
Tendo em conta as fragilidades das OSC para o exercício da monitoria e controlo do
poder público e a contínua necessidade de satisfazer graves carências que os cidadãos
experimentam, principalmente nas zonas rurais, o grande desafio que se coloca à socie-
dade civil em Moçambique nesta fase histórica, é a sua capacitação institucional, com
24
Passada a fase da concertação interna, foram identificados como representantes da Sociedade Civil para o Observatório
da Pobreza em Moçambique os seguintes elementos: quatro representantes das confissões religiosas (dois cristãos e
dois islâmicos); dois representantes das centrais sindicais (OTM e Sindicatos Livres); três representantes de associações
do sector privado (associação comercial, associação industrial e CTA); seis representantes de organizações do 3.º nível
(Fórum Terra, Fórum Mulher, UNAC, GMD, Link e Teia); quatro representantes de organizações do 2.º nível (FDC,
Kulima, ORAM, Khindlimuka); um representante de um instituto de investigação autónomo (Cruzeiro do Sul).
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote l Sociedade Civil e Desenvolvimento em Moçambique 383
destaque para as pequenas organizações comunitárias locais nas zonas rurais. Há que
apostar na formação de recursos humanos e na sua afectação a tempo inteiro, criando
mecanismos de sustentabilidade a médio e longo prazo, apostando no conhecimento
da realidade para além do activismo, pesquisando de forma qualitativa e quantitativa
para assim adquirir uma mais valia própria, um capital próprio.
A redução da dependência externa tem de ser gradual, não esquecendo nunca que uma
das principais forças da sociedade civil em qualquer país (especialmente no continen-
te africano) é a sua capacidade de agir em rede, articulando-se, tanto a nível interno
quanto externo (regional e internacional), para melhor resistir aos constrangimentos
que lhe são impostos por todos aqueles que desesperadamente não querem perder o
monopólio da gestão da coisa pública. Por fim, mas não menos importante, é preciso
ter consciência que a democracia deve começar também e essencialmente no seio das
OSC, construindo por essa via a sua credibilidade, através da sua independência,
transparência e profissionalismo na gestão, assim como implementação de mecanismos
de alternância democrática nas suas lideranças.
385
Introdução
Rueben L. Lifuka
&
Lee M. Habasonda2
A s tentativas para fazer rejuvenescer e revitalizar a política
Africana e reduzir a cultura de patrimonialismo parecem
residir na criação de muitos centros de poder, que possibilitem
a regulamentação e o controlo e envolvam as comunidades na
escolha dos seus destinos. O desenvolvimento da sociedade
civil na Zâmbia tem sido um factor positivo para o encoraja-
mento do pluralismo, da responsabilização, da diversidade e
da minimização do patrimonialismo político, influenciando o
rumo da política, da governação, e dos assuntos públicos. Este
trabalho procura demonstrar que apesar de serem movimen-
tos civis, as OSC na Zâmbia detêm um poder político que é
essencial para fortalecer a democratização do Estado.
De forma a debater a relação entre a sociedade civil e o poder
político, este artigo está organizado em três partes: a primeira
fornece uma contextualização do processo de emergência da
sociedade civil na Zâmbia; a segunda debruça-se sobre as com-
plicadas relações entre OSC e poder político; a terceira examina
os principais desafios que se colocam às OSC Zambianas.
1
Traduzido do original em inglês por Nuno Marques.
2
Rueben Lupupa Lifuka é presidente da delegação zambiana da Transparência
Internacional (TI) e Lee Habasonda é Professor de Ciência Política no Departamento
de Estudos Administrativos e Políticos da Universidade da Zâmbia.
3
Sabine Fiedler-Conradi (2003) “Strengthening Civil Society in Zambia”, Study
Conducted to Inform a Focal Area Strategy Paper, Commissioned by the German
Development Service (DED) on behalf of the German Ministry of Economic Co-
operation and Development (BMZ), Lusaka/Munich.
386 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
4
Ibid.
5
Ibid.
6
Ibid.
Rueben L. Lifuka & Lee M.Habasonda l A Sociedade Civil e o Poder Político na Zâmbia 387
A crescente influência política das OSC levou muitos partidos políticos a considerá-los
como usurpadores do papel da oposição no panorama governativo do país, fazendo
notar que essas organizações estavam a assumir um protagonismo em matérias que
não lhes diziam respeito, como o processo de reforma da constituição.
A controvérsia sobre o processo de reforma constitucional vinha-se arrastando desde
1996, quando a administração do ex-Presidente Frederik Chiluba rejeitou cerca de 70
por cento das recomendações feitas por uma Comissão de Reforma Constitucional
presidida pelo proeminente advogado e ex-Ministro da Presidência Zambiana, John
Mwanakatwe. Os grupos da sociedade civil ficaram indignados com esta decisão
do governo e criaram um Livro Verde sobre a Constituição como resposta ao livro
branco publicado pelo governo, definindo quais as propostas constitucionais com que
concordavam e quais as que rejeitavam. O processo de reforma da Constituição de
1996 foi concluído na Assembleia Nacional e foram feitas adendas à Constituição de
1991, sendo algumas das cláusulas destinadas a impedir que o ex-Presidente Kenneth
Kuanda se candidatasse à presidência em 1996.
Uma vez que as emendas constitucionais eram inadequadas, em 2001 a sociedade civil
iniciou um processo para pressionar os partidos políticos, que concorriam às eleições
gerais e presidenciais, a comprometerem-se com a revisão do processo constitucional
passados 90 dias da tomada de posse. O partido no poder, o MMD, voltou a ganhar as
eleições em 2001 e foi apenas em 2003 que o Presidente Levy Mwanawasa anunciou a
formação de uma Comissão de Reforma Constitucional (CRC) sob a liderança de outro
proeminente advogado e ex-Presidente do Banco Africano para o Desenvolvimento, o Sr.
Willa Mung’omba, encarregue de percorrer o país e recolher as sugestões dos cidadãos de
forma a alargar a participação no processo. No entanto, a CRC foi constituída com base
no Decreto-Lei referente às Comissões de Inquérito, tal como as anteriores comissões,
facto que originou um movimento de protesto por parte da sociedade civil, na medida
em que ao abrigo daquele Decreto cabe ao Presidente da República nomear a Comissão
de Inquérito, definir os seus termos de referência e, mais importante, receber e analisar o
seu relatório. Para além disso, o Decreto estabelece que o Presidente pode, em conjunto
com os seus ministros, publicar um livro branco como resposta ao relatório da Comissão
de Inquérito, indicando quais das recomendações feitas encontram a concordância do
governo, quais as que encontram discordância e quais as que considera prioritárias.
Foi devido a estas cláusulas do Decreto-Lei das Comissões de Inquérito que a admi-
nistração do ex-presidente Frederick Chiluba rejeitou cerca de 70 por cento das reco-
mendações da CRC no processo de 1996. Era este “logro” dos anteriores governos que
as OSC (i.e. a Igreja, as ONG, os sindicatos e as associações de estudantes) queriam
evitar no novo processo de reforma constitucional. A sociedade civil defendeu o esta-
belecimento de um órgão popular e de representação alargada, uma Assembleia Cons-
tituinte, para receber e adoptar a proposta de Constituição da Comissão Mungo’mba.
Esta reivindicação foi liderada pelo Fórum OASIS, congregando os corpos dirigentes
das três principais Igrejas — Zambia Episcopal Conference (ZEC), Churches Council of
Zambia (CCZ) e Evangelical Fellowship of Zambia (EFZ) —, o movimento das mulheres
representado pelo Conselho de Coordenação das ONG (NGO Coordinating Council
– NGOCC) e a comunidade legal, representada pela Associação dos Advogados da
Zâmbia (Law Association of Zambia – LAZ).
O activismo das OSC apelou aos cidadãos para que exigissem uma Assembleia Consti-
tuinte de forma a assegurar que desta vez se elaborava uma Constituição guiada pelas
Rueben L. Lifuka & Lee M.Habasonda l A Sociedade Civil e o Poder Político na Zâmbia 389
7
Ibid.
8
Times of Zambia, 12 de Julho de 2007.
390 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
9
Sabine Fiedler-Conradi (2003) “Strengthening Civil Society in Zambia”, Study Conducted to Inform a Focal Area
Strategy Paper, Commissioned by the German Development Service (DED) on behalf of the German Ministry of
Economic Co-operation and Development (BMZ), Lusaka / Munich.
10
Times of Zambia, 6 de Novembro de 2007.
11
Estes pontos de vista são partilhados por muitos directores das ONG.
12
Ver V. Seshamani (2002), The PRSP Process in Zambia – Second Meeting of the African Learning Group on the Poverty
Reduction Strategy Papers (PRSP – LG) 18-21 November, Brussels, Belgium.
13
Ver Moonga H Mumba (2004), Marriage of Convenience: State-Civil Society Partnership in the PRSP Process in Zambia.
M.A. Thesis, The Hague, Netherlands, Institute of Social Studies – ISS.
14
FODEP (2007) Report on Civic and Voter Education.
Rueben L. Lifuka & Lee M.Habasonda l A Sociedade Civil e o Poder Político na Zâmbia 391
O Fórum OASIS também criou um esboço do que apelidou de documento mínimo – que
apontava questões chave, tendo sido algumas delas reflectidas no esboço de Consti-
tuição actualmente em discussão na Conferência Nacional Constitucional (NCC). As
associações dos media também criaram documentos contendo propostas de leis sobre
as relações entre os media e o governo. Apesar de não o admitir, o governo tem vindo
lentamente a utilizar alguns destes documentos.
Em termos de transparência e prestação de contas (accountability), a Transparência In-
ternacional na Zâmbia (TIZ) tem produzido anualmente índices de suborno e rankings
de corrupção. O movimento das mulheres sob a liderança da NGOCC, tem influenciado
as leis e políticas destinadas a promover a igualdade do género. Para além disso, o
movimento das mulheres foi bem sucedido na advocacia e influência sobre os partidos
políticos para que aceitassem mais mulheres candidatas, como forma de aumentar o
número de mulheres nos processos de decisão.
Outro exemplo recente é a forma como, através do seu activismo, a sociedade civil da
Zâmbia pressionou o governo a rever ou a renegociar acordos de desenvolvimento pouco
favoráveis, assinados com companhias mineiras na época das privatizações. Argumenta-se
que com os acordos existentes as companhias mineiras não dariam o retorno esperado,
particularmente nos impostos e no pagamento dos direitos de exploração. O imposto pago
pelas companhias mineiras é muito mais baixo do que o imposto sobre o rendimento que
o governo arrecada dos trabalhadores da Zâmbia, isto apesar do facto de os minérios de
base estarem a atingir preços elevados no mercado mundial. No Orçamento de Estado
de 2008, o Ministério das Finanças e do Planeamento Nacional anunciou que o governo
iria introduzir um novo regime fiscal e regulador de forma a criar uma distribuição mais
equitativa da riqueza mineral entre o governo e as companhias mineiras.
Por fim, convém referir aqui o caso da petição inconstitucional pelo terceiro mandato
presidencial. Em 1996 a Constituição foi alterada para estabelecer um limite de dois man-
datos para a Presidência da República. Esta alteração teve o acordo da maior parte dos
Zambianos, uma vez que estava de acordo com as práticas democráticas mediante as
quais os líderes não se mantêm no poder indefinidamente e estão sujeitos à mudança por
via de eleições. Contudo, ao longo do percurso, mesmo antes das eleições de 2001, surgiu
o interesse em alterar a Constituição para permitir ao Presidente Chiluba candidatar-se
a um terceiro mandato. Um bem financiado esquema foi orquestrado com o intuito de
influenciar a opinião pública a permitir ao MMD a alteração da Constituição.
As OSC opuseram-se veementemente à campanha pelo terceiro mandato. Os media
independentes publicaram artigos de opinião e editoriais contra as movimentações
pelo terceiro mandato e a campanha sofreu um novo percalço quando alguns membros
ilustres do MMD se opuseram a ela. O comité executivo do MMD na província de
Lusaka rejeitou publicamente a proposta e a este acontecimento seguiu-se uma rejeição
pública por parte de 21 membros do Parlamento, onde se incluíam o vice-presidente
e alguns ministros. Estes altos membros do partido uniram-se à sociedade civil e par-
ticiparam em comícios nos bairros em torno das principais cidades. Apesar da polícia
ter tentado evitar e perturbar estes comícios, a assistência popular era vasta.
Lançou-se uma contra campanha activista, de faixas verdes. Todos os que se opunham
ao terceiro mandato usavam a faixa verde durante os seus afazeres, inclusivamente nos
escritórios e nas lojas. Concordou-se, também, que todas as Sextas-feiras às 17 horas
todos os condutores iriam buzinar e os que não conduzissem soprariam em apitos.
392 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
15
UNDP, Partners in Human Development, (2003), New York.
Rueben L. Lifuka & Lee M.Habasonda l A Sociedade Civil e o Poder Político na Zâmbia 393
não terem, por princípio, de prestar contas aos cidadãos ou às partes interessadas
nos assuntos com que trabalham, mas antes aos seus financiadores. A falta de fortes
sistemas e estruturas de gestão de algumas OSC deu crédito a esta noção de falta de
responsabilização (accountability). Na realidade, algumas daquelas organizações não
conseguiram implantar mecanismos de democracia interna e não têm eleições regula-
res para os seus órgãos dirigentes. Infelizmente, apesar destas situações poderem ser
pontuais, o seu impacto afecta negativamente o resto da sociedade civil.
De igual modo, a sustentabilidade financeira emerge como outro dos desafios às OSC,
sendo que grande parte delas são muito dependentes de financiamentos externos de or-
ganizações bilaterais e multilaterais, de fundações e de outros financiadores não-estatais.
A sustentabilidade dos seus programas depende do apoio contínuo de parceiros externos,
poucas possuem meios de financiamento alternativo para as suas actividades.
O problema da capacidade de reter quadros profissionais afecta de sobremaneira as
OSC. A maior parte delas sofre de uma grande rotatividade de funcionários; desenvolve
um grande esforço de formação de profissionais, mas não é capaz de os manter assim
que eles adquirem experiência e notoriedade, sendo imediatamente assediados pelas
ONG internacionais, pelo governo e pelos programas de desenvolvimento financia-
dos por organizações bilaterais e multilaterais. Regra geral, as OSC não conseguem
competir com o mercado na oferta de condições de trabalho, principalmente por causa
das dificuldades com que se defrontam na mobilização de recursos para colmatar o
apoio institucional. A maior parte dos doadores/parceiros de cooperação está disposta
a oferecer apoio aos programas de acção, mas poucos oferecem apoio institucional.
Devemos reconhecer algumas deficiências e dificuldades ao nível da coordenação da
política da ajuda e harmonização de práticas. A recente criação do Gabinete de Estra-
tégia e Política de Ajuda à Zâmbia (Cabinet of the Aid Policy and Strategy for Zambia) é
digna de nota. É um ponto de partida para a identificação de formas de melhoria dos
resultados e da eficiência da ajuda ao aumentar a coordenação e a harmonização de
processos. Foi uma iniciativa de um grupo de agências em consonância de objectivos,
desenvolvida em estreita colaboração com o Governo da República da Zâmbia e pro-
duzido pelo gabinete do Director Geral para a Cooperação Internacional dos Quatro
Países Nórdicos (Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia), o Reino Unido e os Países
Baixos, que se reuniram em 2002 na Conferência de Helsínquia e propuseram um
estudo conjunto sobre a harmonização na Zâmbia. Mais tarde a Irlanda e a Islândia
juntaram-se a esta iniciativa. No seguimento da iniciativa da Conferência de Helsínquia,
as missões da Dinamarca, a Finlândia, a Irlanda, os Países Baixos, a Noruega, a Suécia
e Reino Unido baseadas em Lusaka, reuniram-se em Novembro de 2002 para apoiar
e fazer avançar o esforço de harmonização dos doadores. Deste encontro resultou
uma declaração comum de princípios que foi assinada pelos parceiros de cooperação
e pelo governo da Zâmbia para melhorar a eficácia da ajuda e reduzir os custos de
transacção que importam ao país.
Este programa de harmonização é visto como uma potencial ameaça ao financiamento
das OSC, na medida que cada vez mais organizações bilaterais, em particular dos paí-
ses Nórdicos que têm financiado as OSC, começam agora a fornecer apoio orçamental
ao governo. Infelizmente, dada a desconfiança que existe entre o governo e as OSC,
é difícil perceber como poderão as OSC ter acesso ao financiamento via orçamento
governamental.
395
Introdução
Jean-Claude Katende
Associação Africana
de Defesa dos Direitos
O actual regime na República Democrática do Congo
(RDC) não se pode considerar ainda um Estado de
Direito, muito ainda há a fazer para se atingir esse objectivo
do Homem, e a sociedade civil será com certeza um actor chave nesse
Lumumbashi, República processo. Apesar de jovem e mau grado todos os constrangi-
Democrática do Congo
mentos impostos pelo poder governamental, a sociedade civil
permanece ambiciosa e nela reside uma forte esperança de
mudança e de contributo para o desenvolvimento sustentável
e a efectiva implementação da democracia na RDC.
Para que o seu papel seja desempenhado a sociedade civil
da RDC tem muitas e difíceis batalhas a travar, a começar
pela plena efectivação de vários direitos de uma sociedade
democrática para todos os congoleses, nomeadamente no
que concerne à liberdade de expressão, ao acesso à saúde, à
educação e habitação condigna, à segurança alimentar, à pos-
sibilidade de livre escolha dos seus representantes políticos
sem constrangimentos de qualquer espécie, à liberdade de
acederem à informação, de terem conhecimento das contas
públicas, de terem acesso a um sistema judicial equitativo,
de ascenderem socialmente em função da meritocracia e não
em função das suas origens ou relações pessoais, de trabalha-
rem e receberem um salário justo, de contestarem e agirem
legalmente contra toda a forma de pilhagem dos recursos
naturais sem receio de serem detidos, ameaçados ou assas-
sinados. Enfim, alguns dos direitos, liberdades e garantias
fundamentais de base democrática.
O maior obstáculo à realização dos seus objectivos está pre-
cisamente na sua difícil relação com o poder político, que a
todo o custo procura interferir, manipular, cooptar, coagir e
dificultar o trabalho das Organizações da Sociedade Civil
(OSC) que se preocupam com as questões que efectivamente
importam para a melhoria da vida das comunidades e que
são necessariamente questões políticas. Muito embora as OSC
não pretendam conquistar o poder, preocupam-se com as
políticas públicas que condicionam a vida das comunidades
e, nesse sentido, terão necessariamente que procurar influen-
1
Traduzido do original em francês por João Alves.
396 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
4
Ibid. p.83
5
Depois da tomada do poder em 17 de Maio de 1997, o Presidente Laurent Désiré Kabila tomou várias medidas muito
criticadas pelos media, nomeadamente a supressão das actividades de todos os outros partidos. Só as actividades da
Alliance des Forces Démocratiques pour la Libération du Congo eram autorizadas. Mais tarde começam a dificultar de
sobremaneira a vida das ONG que trabalhavam com Direitos Humanos e que lhes eram muito críticas. É desta forma
que em 1998 o seu governo tomou a decisão de proibir em todo o país as actividades da Association Africaine de Défense
des Droits de l’Homme (ASADHO), medida que foi muito criticada pelos media e outros grupos da sociedade civil.
398 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
6
Na RDC, aconteceu diversas vezes aos governantes criarem ONG para os seus parentes, com a finalidade de se
infiltrarem na sociedade civil e boicotarem as suas acções. Diversas ONG desapareceram logo após o afastamento
de um governante ou queda de um governo.
Jean-Claude Katende l A Sociedade Civil da República Democrática do Congo 399
estrutura governamental. As OSC têm-se dividido sobre esta matéria. De um lado estão
aqueles que defendem a necessidade de haver um mínimo de órgãos para assegurar a
própria manutenção da rede no dia-a-dia, como forma de dar uma mais pronta resposta
às questões de politica geral que constantemente vão emergindo, ainda que considerem
que as redes nunca se podem substituir aos seus membros fundadores. Do outro lado,
estão os que defendem que essa “institucionalização” das redes numa espécie de orga-
nizações não deve ser incentivada porque acaba a evoluir para formas de representação,
abafando os membros, erguendo-se muito acima deles e passando por vezes a ignorá-
-los, apresentando-se como seu representante e furtando-lhes a legitimidade de ter voz
própria, estando depois mais sujeitas às seduções do poder político.
Considero que a nossa experiência sustenta muito mais a segunda perspectiva, na
medida em que uma tal institucionalização das redes tem, em muitas ocasiões, con-
tribuído para a politização e partidarização da sociedade civil. Este tipo de estruturas
acaba frequentemente como um trampolim para as ambições políticas dos chamados
activistas da sociedade civil, ao invés de servirem os interesses das populações ou das
organizações-membro, conduzindo à corrupção de muitos activistas por parte do go-
verno. Após 1990, a experiência mostra-nos que a institucionalização e a estruturação
neste sentido é muito arriscada7.
7
Após 1990, muitos congoleses a quem foi confiada a direcção da sociedade civil, aproveitaram a sua posição
estratégica para entrarem na política activa e obterem lugares no governo ou noutras instituições políticas. Uma vez
no poder cortam toda a ligação com as suas bases constituintes.
Jean-Claude Katende l A Sociedade Civil da República Democrática do Congo 401
a gestão dos recursos e da coisa pública em África. A colocação deste problema a nível
internacional parece ser a via mais eficaz para combater o problema face à passividade,
resignação e impotência com que é encarado pela maioria das populações africanas.
Cada vez mais é preciso contar com a sensibilização da opinião pública internacional,
que tem poder de influência e pressão sobre os governos, empresas e organizações
internacionais dominadas pelo Norte.
Este aspecto é de particular relevo em países ricos em recursos naturais com forte
procura internacional, como é o caso da RDC. No decorrer dos últimos dez anos, a si-
tuação do país não foi apenas marcada pela degradação do Estado e pelas duas guerras
de libertação ocorridas em 1996 e 1998, mas também pela pilhagem sistemática dos
recursos naturais e pela articulação directa que obviamente existe entre os interesses
económicos e a desestabilização política.
As duas guerras que o país conheceu não visavam somente a tomada do poder polí-
tico por parte de um grupo que queria substituir o outro, mas também o controlo dos
recursos naturais do país e, obviamente, das receitas em divisas que daí advinham,
pagas por empresas estrangeiras.
A comissão especial criada pela Assembleia Nacional, encarregue de examinar a vali-
dade dos contratos com carácter económico e financeiro concluídos durante as guerras
de 1996-1997 e de 1998, caracterizam a situação nos seguintes termos:
À medida que a AFDL ganhava terreno rumo ao poder, as companhias mineiras aban-
donaram os palácios de Kinshasa para irem ao encontro dos dirigentes rebeldes do Leste
do país. Pressionada para financiar o esforço de guerra para tomar o poder, a AFDL não
se fará rogada de caminhar nas pegadas do governo do Kengo [que também acedeu
aos apelos das companhias mineiras]. No contexto mineiro global da época, certas
multinacionais não podiam sonhar melhor. Iniciam de imediato conversações com a AFDL
em Goma (…). O Congo é então dividido em territórios com diferentes administrações
[a governamental e a rebelde quadripartida]. A nova rebelião a quatro cabeças contra o
poder de Kinshasa lança-se na caça ao tesouro para financiar a sua epopeia guerreira. A
conquista e a conservação do poder passam pelo controlo dos espaços territoriais ricos
em recursos naturais, que cada um explora segundo as suas próprias regras com os
respectivos aliados8.
É desta forma que a pilhagem dos recursos naturais se intensificou e forneceu aos
beligerantes e seus aliados os meios necessários para prosseguirem a guerra. Uma
guerra que custou a vida de milhares de pessoas.
Neste ambiente, o empenho da sociedade civil e o apoio da comunidade internacional
contra a guerra e a pilhagem sistemática dos recursos naturais era importante. Apesar
dos assassinatos, ameaças de morte, detenções e intimidações contra os activistas
da sociedade civil, estes mostraram-se determinados contra a exploração ilegal das
riquezas do país, sentindo-se apoiados pelos parceiros internacionais. Tal empenho
vai ganhar um ímpeto decisivo com a publicação de diversos relatórios do grupo de
especialistas das Nações Unidas, sobre a exploração ilegal dos recursos naturais e outras
riquezas da RDC. É denunciada não apenas a ligação de facto entre esta exploração
e o prosseguimento da guerra, mas também a sangria humana, material e financeira
8
Ler o relatório da Comissão Lutundula criada pela resolução n.ºAN/P/COM.SP/03/04 da Assembleia Nacional,
pp. 7-8
402 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional
que causou aos congoleses, estimando-se que em consequência das guerras ocorridas
desde a independência do país (todas elas estreitamente relacionadas com interesses
na indústria extractiva), se tenham perdido entre 3 e 3.5 milhões de vidas humanas.
É neste contexto que em 2003 é criada, no seio das OSC, uma importante rede especia-
lizada na área dos recursos naturais, denominada Réseau Ressources Naturelles (RRN).
Terá por missão lutar contra a pilhagem desses recursos e monitorar as más práticas das
empresas extractivas, constituindo assim uma defesa activa para a consciencialização
da necessidade de que a exploração dos recursos se faça em benefício das populações.
A força desta rede residirá no facto de estar presente e activa em todo o país e trabalhar
directamente com as comunidades locais, primeiros beneficiários destas acções.
De forma isolada ou em articulação com outros intervenientes da sociedade civil, o
RRN desencadeou uma luta para que os contratos mineiros, assinados durante as duas
guerras de libertação e durante o período de transição, fossem revistos. Na sua maioria
estes contratos eram profundamente desvantajosos para o Estado congolês, assinados
em função da corrupção exercida pelas empresas mineiras estrangeiras e mistas sobre
os membros dos diversos governos, aproveitando-se da situação frágil das instituições
do Estado e do país (para além da corrupção que grassa na administração pública) para
daí retirarem vantagens financeiras enormes. Lutando contra interesses poderosos, o
combate das OSC valeu, a alguns dos seus promotores, tentativas de envenenamento
e assassinato, ameaças de morte, detenções e a clandestinidade.
Em 2006, Jean Pierre Muteba, Secretário-Geral da Nova Dinâmica Sindical (NDS), e o au-
tor deste texto, ambos intervenientes no Réseau Ressources Naturelles, receberam ameaças
de morte da parte do representante no Katanga do Parti du Peuple Pour la Reconstruction
et le Développement (PPRD), partido do Presidente Joseph Kabila, por terem organizado
uma conferência de imprensa na qual denunciaram a pilhagem no sector mineiro por
parte dos responsáveis deste partido, solicitando diligências judiciárias contra estes
indivíduos. As ameaças do representante partidário do PPRD foram proferidas diante
das câmaras de uma cadeia de televisão próxima do Presidente da República.
Com o novo governo saído das eleições de 2006 e a pressão de algumas OSC, o com-
bate pela revisão dos contratos mineiros conheceu um avanço significativo, tendo o
ministro das minas criado uma comissão especialmente encarregue de rever alguns
contratos assinados entre as empresas mineiras públicas de economia mista e parceiros
privados9. Ainda assim, em 30 de Abril de 2007, a coligação Publiez Ce Que Vous Payez
na RDC, tornou público um comunicado de imprensa no qual denunciava a ausência
de intervenientes da sociedade civil no seio desta comissão e o facto da deliberação
determinar, a priori, os contratos que eram submetidos à revisão, deixando de fora
muitos outros igualmente sob suspeição.
No âmbito da Initiative de Transparence des Industries Extractives (Iniciativa de Transpa-
rência das Indústrias Extractivas – ITIE)10, a sociedade civil obteve, através do Réseau
Ressources Naturelles, uma representação em todas as estruturas criadas para o efeito,
inclusive dirigindo o Comité Técnico11 e a Comissão de Comunicação e Reforço das
9
Deliberação n.° 2745/Cab.Min/Mines/01/, de 20 de Abril de 007.
10
A RDC aderiu a esta iniciativa desde 2005.
11
O Comité Técnico joga um papel crucial no desenrolar do processo ITIE: prepara o plano de acções para aplicação
dos princípios e critérios do ITIE, identifica os obstáculos à aplicação e propõe medidas rectificativas, apura e vigia os
pagamentos efectuados pelas empresas extractivas ao Governo, enfim garante a realização das auditorias às contas
das empresas extractivas pelos gabinetes nacionais e internacionais.
Jean-Claude Katende l A Sociedade Civil da República Democrática do Congo 403
Conclusão
No já muito sofrido caminho da RDC rumo à democratização, nada garante que os
objectivos da democracia efectiva e do Estado de Direito sejam alcançados. Muitas lutas
e desafios estão por vencer, os constrangimentos e obstáculos são vários e a vitória está
longe de ser certa. Na minha perspectiva, o mais importante a realçar não são tanto
as debilidades, fraquezas e insuficiências das OSC, mas o facto de várias delas serem
ainda capazes de resistir e prosseguir perante tantas e tão sérias adversidades que lhes
são colocadas a todos os níveis (internos e externos). Quando se fala na fraqueza geral
das OSC em África, muitos críticos esquecem o contexto e a dimensão dos problemas
que se lhes deparam, obstáculos que muitas das OSC no Norte nunca enfrentaram
para a sua afirmação nos seus países. As vitórias que esta minoria tem conseguido
são de relevo, especialmente contra máquinas tão poderosas e de poder tão arbitrário
como aquele que é exercido por muitos dos nossos governos.
Do exterior são necessários incentivos e apoios concretos às organizações que se man-
têm firmes nos princípios e na luta pelo processo de democratização, especialmente
sabendo que o resultado é totalmente incerto e a vantagem não está do nosso lado. A
opinião pública do Norte tem de ser envolvida porque os problemas que se passam
em muitos dos nossos países também lhes dizem respeito, existem responsabilidades
a repartir, os interesses económicos desses países sempre estiveram presentes e não
podem ser desresponsabilizados. A luta pela justiça, pelos Direitos Humanos, pela
liberdade e pela democracia é cada vez mais global.
a b c d e f g h i l
12
A coligação Publiez Ce Que Vous Payez foi criada em Kinshasa a 18 de Fevereiro de 2006 por mais de trinta ONG
vindas de todas as províncias do país.