VIDAL, Nuno ANDRADE, Justino Pinto De. Sociedade Civil e Política em Angola, Enquadramento Regional e Internacional

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Sociedade Civil e Política em Angola

Enquadramento Regional e Internacional

K
Sociedade Civil e Política em Angola
Enquadramento Regional e Internacional

Nuno Vidal
&
Justino Pinto de Andrade

b
Edição e Organização:
Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade

Publicação:
Edições Firmamento, Media XXI

1.ª Publicação, Luanda e Lisboa, Agosto de 2008

projecto gráfico e paginação:


Elsa Pereira

Capa:
Eugénio Trigo

© Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade, 2008


Depósito Legal: 277 915/08
ISBN: 978-972-99270-7-2
Tiragem: 1000 Exemplares

contactos para encomendas de exemplares:


[email protected]

execução gráfica
Digital XXI
Com a colaboração especial de:

Aline Afonso Pereira


(Centro de Estudos Africanos do ISCTE)
Organização e Revisão

&
Mónica Rafael Simões
(Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra)
Traduções
ÍNDICE

AGRADECIMENTOS XI
NOTAS DE ABERTURA XIII
José Manuel Imbamba, Secretário-Geral da Universidade Católica de Angola
— UCAN
José Manuel Pureza, Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra — CES-FEUC

PREFÁCIO ANALÍTICO XIX


TWILIGHT ZONE: SOCIEDADE CIVIL E POLÍTICA EM ANGOLA
Patrick Chabal, King’s College London

INTRODUÇÃO 3
Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade, CES-FEUC & UCAN (respectivamente)

CAPÍTULO I
A SOCIEDADE CIVIL E A POLÍTICA EM ANGOLA
POLÍTICA, SECTORES SOCIAIS E SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA 11
Nuno Vidal, CES – FEUC

O PROCESSO DE TRANSIÇÃO EM ANGOLA: SOCIEDADE CIVIL, PARTIDOS


POLÍTICOS, AGENTES ECONÓMICOS E POPULAÇÃO EM GERAL 41
Justino Pinto de Andrade, UCAN

CAPÍTULO II
DESAFIOS E CONSTRANGIMENTOS À SOCIEDADE CIVIL
ANGOLANA
SOCIEDADE CIVIL E PODER POLÍTICO 55
Fernando Macedo, Universidade Agostinho Neto & Associação Justiça,
Paz e Democracia – AJPD

A SOCIEDADE CIVIL E A DEMOCRATIZAÇÃO EM ANGOLA 71


Carlos Figueiredo, SNV e Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente –
ADRA-Angola

A SOCIEDADE CIVIL, A POLÍTICA E A ERRADICAÇÃO DA POBREZA


EM ANGOLA: DUAS PERSPECTIVAS EM CONFRONTO 81
Sérgio Calundungo, ADRA-Angola

CONTRIBUIÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL


PARA A JUSTIÇA SÓCIO-ECONÓMICA E PARA UM GENUÍNO
Estado de Direito EM ANGOLA 93
Benjamim A. Castello, Liga Jubileu 2000 Angola – LiJuA
A SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA E OS SEUS DESAFIOS INTERNOS
E EXTERNOS 101
Cesaltina Abreu, IBIS – Educação para o Desenvolvimento, Angola

SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA: FICÇÃO OU AGENTE DE MUDANÇA? 115


Fernando Pacheco, ADRA-Angola

AS CONDICIONANTES INTERNAS E EXTERNAS AO


DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE CIVIL E DA DEMOCRACIA 129
Kinsukulu Landu Kama, Grémio para o Ambiente, Beneficência e Cultura
– Grémio ABC

CAPÍTULO III
AS Igrejas, A JUVENTUDE, AS MULHERES E OS MEDIA COMO
PROPULSORES DO DESENVOLVIMENTO HUMANO EM ANGOLA
CONSTRUÇÃO DA PAZ E DEFESA DOS Direitos Humanos:
CONTRIBUIÇÃO DAS Igrejas ANGOLANAS 141
Michael Comerford, Trócaire, Quénia

OS JOVENS ANGOLANOS E A POLÍTICA 165


Pedro Cardoso, Novo Jornal, Angola

GÉNERO, MERCADO DE TRABALHO E SOCIEDADE CIVIL 181


Aline Afonso Pereira, Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e da Empresa – ISCTE, Lisboa

LIBERDADE DE IMPRENSA – SUBSÍDIOS PARA A TRAJECTÓRIA


DE UM DIREITO FUNDAMENTAL EM ANGOLA 197
Reginaldo Silva, Rádio Nacional de Angola e Angolense

A JUVENTUDE ANGOLANA E A PARTICIPAÇÃO CÍVICA E POLÍTICA 209


José Patrocínio, Projecto Omunga da ONG Okutiuka, Lobito, Angola

DESENVOLVIMENTO HUMANO EM ANGOLA 221


Paulo de Carvalho, Universidade Agostinho Neto, Angola

CAPÍTULO IV
O ENQUADRAMENTO INTERNACIONAL
COOPERAÇÃO ECONÓMICA INTERNACIONAL, MODELOS
DE DESENVOLVIMENTO E SOCIEDADE CIVIL EM ÁFRICA 235
Lopo Fortunato do Nascimento, Centro de Estudos Sociais e Desenvolvimento,
Luanda, Angola

DOMÍNIOS E ARENAS CIVIS EM CENÁRIOS ANGOLANOS:


DEMOCRACIA E CAPACIDADE DE RESPOSTA REVISITADAS 245
David Sogge, Bob van der Winden & René Roemersma
ACORDAR DE UM PESADELO: A VIDA NA ZONA PETROLÍFERA
DO SOYO 263
Kristin Reed, Universidade de Berkeley, EUA

SOCIEDADE CIVIL E AJUDA INTERNACIONAL EM ANGOLA 279


Mónica Rafael Simões & Fernando Pacheco, CES-FEUC & ADRA - Angola
(respectivamente)

ONG INTERNACIONAIS E NACIONAIS: QUE PARCERIA? 289


Anacleta Pereira, Fundação Open Society Angola

RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS EM ANGOLA 301


Manuel Paulo, Universidade de Middlesex, Reino Unido

CAPÍTULO V
O ENQUADRAMENTO REGIONAL
ÁFRICA DO SUL: O ENFRAQUECIMENTO DA SOCIEDADE CIVIL? 313
Dale T. McKinley, Movimentos Sociais Indaba e Fórum Anti-Pivatização,
África do Sul

SOCIEDADE CIVIL, DEMOCRATIZAÇÃO E POLÍTICA NO ZIMBABUÉ 325


Lloyd M. Sachikonye, Instituto de Estudos de Desenvolvimento,
Universidade do Zimbabué

GOVERNAÇÃO, CULTURA POLÍTICA E SOCIEDADE CIVIL SOB


A LIDERANÇA DE UM MOVIMENTO DE LIBERTAÇÃO NO PODER:
O CASO DA NAMÍBIA 341
Henning Melber, Fundação Dag Hammarskjöld, Suécia

A SOCIEDADE CIVIL NUM QUADRO NEO-LIBERAL LEGAL:


O CASO DO MALAWI 353
Fidelis Edge Kanyongolo, Universidade do Malawi

SOCIEDADE CIVIL E PODER POLÍTICO NO BOTSWANA 363


Badala Tachilisa Balule, Universidade do Botswana

SOCIEDADE CIVIL E DESENVOLVIMENTO EM MOÇAMBIQUE 373


Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote,
Centro de Estudos Moçambicanos e Internacionais - CEMI

A SOCIEDADE CIVIL E O PODER POLÍTICO NA ZÂMBIA 385


Rueben L. Lifuka & Lee M.Habasonda, Transparência Internacional Zâmbia
& Universidade da Zâmbia (respectivamente)

A SOCIEDADE CIVIL DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO:


ENTRE AMBIÇÕES E CONSTRANGIMENTOS 395
Jean-Claude Katende, Associação Africana de Defesa dos Direitos do Homem,
República Democrática do Congo
XI

Agradecimentos

E sta obra resulta de uma auspiciosa combinação de esforços pessoais e institucio-


nais. Gostaríamos de começar por agradecer a todos os co-autores que contri-
buíram com os seus textos, assim como às instituições a que estamos filiados – Uni-
versidade Católica de Angola (UCAN) e Centro de Estudos Sociais da Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra (CES-FEUC) —, que acarinharam este projecto,
especialmente na pessoa do Pe. Doutor José Manuel Imbamba (Secretário-Geral da
UCAN) e do Prof. Doutor José Manuel Pureza (Coordenador do Núcleo de Estudos
para a Paz do CES-FEUC).
Queremos igualmente agradecer o indispensável suporte dado por todos os apoian-
tes institucionais da obra, que incluem a Christian Aid – CA, o Netherlands Institute
for Southern Africa – NIZA, a OXFAM – NOVIB, a Open Society Foundation – Angola, a
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP e a Acção para o Desenvolvi-
mento Rural e Ambiente – ADRA-Angola.
O nosso apreço vai também para o consultor Luckson Chipare, pela valiosa ajuda
prestada na articulação com vários autores da região da África Austral.
Uma palavra final para agradecer às edições Firmamento pelo continuado incentivo à
publicação da obra.
Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade
Notas de Abertura
José Manuel Imbamba
&
José Manuel Pureza

c
XV

Nota de Abertura

José Manuel
Imbamba
Secretário-Geral
A vida humana é sempre um projecto social que se deve
realizar com o concurso responsável de todos, para que
possam gozar os mesmos direitos e benefícios e cumprir os
da Universidade Católica respectivos deveres. Esta é a razão de ser da sociedade com
de Angola – UCAN as suas leis, instituições e estruturas, que concorrem para o
desenvolvimento e realização de todos os seres humanos.
Daí o empenho pela democracia, pela justiça, pelo respeito
dos Direitos Humanos, pela paz e pelo desenvolvimento
integral. De facto, a dialéctica da vida social exige o convívio
salutar de inteligências e de vontades no âmbito do princípio
da co-responsabilidade.
A sociedade angolana está num processo de transformação
profunda e irreversível, por isso, ninguém pode ficar indife-
rente perante o quadro que nos envolve e interpela existen-
cialmente: esta é a hora em que todos nos devemos assumir
como protagonistas na construção de uma sociedade em
que a pessoa humana seja o ponto de partida e de chegada,
incentivando, desta feita, a cultura do valor da dignidade
da pessoa humana, a cultura do sentido do outro, tendo em
conta que a ipseidade se realiza fundamentalmente na alte-
ridade, a cultura do diálogo, a cultura da alternância, enfim,
a cultura da legalidade. Aqui reside o valor personalista da
democracia; aqui reside o papel e a importância da socie-
dade civil, enquanto impulsionadora da consciência crítica,
responsável e participativa dos cidadãos.
O Compêndio da Doutrina Social da Igreja no n.º 407, afirma:
“Uma autêntica democracia não é apenas o resultado de um
respeito formal das regras, mas é fruto da convicta aceitação
dos valores que inspiram os processos democráticos: a dig-
nidade de cada pessoa humana, o respeito dos Direitos do
Homem, a assunção do ‘bem comum’ como fim e critério
regulador da vida política”. Impõe-se, por conseguinte, no
nosso caso, a educação do cidadão à democracia, enquanto
convívio social, para que a sua participação na coisa pública
seja mais racional do que emotiva, mais nacional do que
intestina (tribal, regional), enfim, mais à medida da pessoa
humana no seu realizar-se na imanência projectada para a
transcendência.
Neste contexto, as universidades, enquanto espaços privile-
giados onde se forjam cidadãos com mentalidade aberta à
diversidade política, ideológica, religiosa e cultural, são cha-
madas a repensar e a recriar o homem angolano, munindo-o
XVI Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

com instrumentos e princípios impulsionadores do verdadeiro convívio de ideias, em


que cada um se assume como autêntico construtor da democracia e do bem social,
assumindo a verdade e a justiça como critérios, com vista a incentivar o respeito pelo
outro naquilo que é e o caracteriza enquanto pessoa e cidadão.
Esta é a razão de ser desta obra, fruto da salutar parceria entre a Universidade de
Coimbra e a Universidade Católica de Angola, que pretende ser um hino aos valores
da democracia, assentes na dignidade e nos direitos da pessoa humana: é a verdade
sobre o homem que determina, move e dá sentido a tudo. Se esta verdade vingar, os
nossos jogos democráticos serão sempre inovadores, porque estarão sempre ao serviço
do bem comum, do progresso humano, social e cultural da nação no seu todo.
XVII

Nota de Abertura

José Manuel Pureza


Centro de Estudos
Sociais da Faculdade
O s processos de transição pós-conflito têm incluído co-
mo ingrediente de primeira importância a participação
activa das organizações da sociedade civil na estruturação
de Economia de interesses e no respectivo envolvimento no processo polí-
da Universidade tico. O modelo de transição padronizado desde a década de
de Coimbra
noventa do século passado encara este protagonismo da so-
– CES-FEUC
ciedade civil como um indicador fundamental da qualidade
democrática da nova situação e essa é, bem o sabemos, uma
exigência primordial da construção da paz liberal.
Importa ir além da abstracção de modelos políticos construí-
dos no papel. Diante dos processos de transição concretos, a
genuinidade de muitas das organizações da sociedade civil
vem sendo questionada. Nesses processos, a proliferação de
actores “não governamentais” é muitas vezes animada pelos
próprios Estados (algo que vem sendo designado por “or-
ganizações governamentais não governamentais”), servindo
assim de suporte a uma estratégia de dominação e de controlo
social que se situa nos antípodas da democracia alegadamente
pretendida. Por outro lado, a multiplicação de organizações
da sociedade civil, sendo induzida a partir de fora do país
em transição por estímulo das potências doadoras, constitui
um elemento fulcral da relação de poder entre o interior e o
exterior e entre as respectivas agendas político-económicas.
Alguma literatura crítica destes processos de transição vem,
a este propósito, assinalando, com base no estudo de casos
concretos, a relação directa que é possível detectar entre o
relacionamento privilegiado das potências doadoras com os
actores da sociedade civil e a fragilidade institucional dos
Estados respectivos; facto que suscita questões extremamen-
te delicadas quer sobre a sustentabilidade dos mecanismos
participativos da sociedade civil quer sobre a autenticidade
de muitas das políticas de resposta, por parte dos países do
centro do sistema-mundo ao chamado fenómeno dos Estados
frágeis, falhados ou colapsados.
Por outro lado, é evidentemente certo que só uma sociedade
civil robusta e verdadeiramente autónoma dá garantias de
que a democracia nascente não venha a limitar-se à tecnici-
dade de uma delegação de poderes e constitua antes uma
cultura que atravessa todas as relações sociais e incorpore
uma dimensão participativa forte.
Trata-se, pois, de uma problemática de suma importância
para a análise dos processos de transição. Cumpre à academia
XVIII Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

não se resignar ao conhecimento das aparências e questionar com toda a radicalidade


os mecanismos que animam o surgimento da sociedade civil como actor privilegiado
destes processos de transição, os interesses que limitam a sua respiração política e
social, as agendas que ela veicula e os diferentes patamares de intervenção social que
pode assumir. É essa atitude não resignada — a única própria do trabalho universitá-
rio — que este livro exprime. A várias vozes, como deve ser.
Prefácio Analítico
Patrick Chabal

d
XXI

Twilight Zone: Sociedade Civil


e Politica em Angola1

Patrick Chabal
King’s College London C onsiderando que a democratização é, em parte, uma
forma da sociedade civil desempenhar um papel mais
activo na vida pública, o que poderemos esperar que as pró-
ximas eleições signifiquem para Angola? Esta é uma questão
importante, na medida em que o país está a emergir de uma
longa história de conflito civil e necessita de reconstruir a sua
sociedade. Mas, além disso, tem também consequências para
o futuro de África, pois a maior parte dos teóricos políticos
encara a realização de eleições multipartidárias como a prin-
cipal trajectória que permite a emergência de uma sociedade
civil vibrante e activa. O que pode, então, a experiência de
Angola contar-nos sobre a existência, papel e futuro da so-
ciedade civil na região e, de forma mais geral, em África? E
que luz pode a experiência da África pós-colonial trazer para
as actuais transições em Angola?
Estas são questões bastante simples de colocar, mas compli-
cadas de responder, por dois conjuntos de razões diferentes.
O primeiro prende-se com o facto de a história de Angola se
poder revelar um caso particular, partilhando pouco com
outros países da região. Poderá ser difícil comparar a sua
evolução com a dos seus vizinhos. Deste modo, será neces-
sário examinar a trajectória do país com algum detalhe, antes
de embarcar em qualquer tipo de exercício comparativo. O
segundo é o facto de haver um consenso prático sobre o que
é efectivamente sociedade civil, ainda que o conceito seja
livremente utilizado por académicos africanistas, jornalistas
e peritos de ONG. Também neste campo teremos de traba-
lhar de forma mais clara sobre que significado poderá ter a
sociedade civil na África contemporânea.
Não é minha intenção aqui escrever sobre a história de An-
gola ou mesmo apresentar um relato da guerra civil que
terminou em 2002. Do mesmo modo, não discutirei com
profundidade as últimas eleições multipartidárias (1992) ou
os acontecimentos políticos que caracterizaram o período
1991-2002. Esta informação poderá ser encontrada num vo-
lume anterior.2 Procurarei antes centrar a minha atenção nas
duas questões atrás mencionadas, com o objectivo de fornecer
uma análise da sociedade angolana que se situa exactamente
1
Traduzido do original em inglês por Mónica Rafael Simões
2
Patrick Chabal & Nuno Vidal (orgs.) (2007), Angola: the weight of history. London/
New York: Hurst/Columbia University Press.
XXII Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

no âmbito da evolução da política africana pós-colonial. Por outras palavras, quero


procurar entender de que forma a chamada excepção angolana se enquadra no contexto
mais amplo do desenvolvimento regional e continental em África. De facto, um dos
argumentos desta Introdução assenta na ideia de que a relutância em estudar Angola
dentro do contexto africano mais amplo é responsável pelo fracasso em entender de
forma mais clara a sua evolução.
Contudo, devo antes apresentar algumas definições para não sermos deixados numa
enorme incerteza. O que queremos dizer quando falamos de democracia e de sociedade
civil? Apesar de (infelizmente) estes conceitos serem raramente discutidos de forma ex-
plícita na literatura, o que é um problema em si mesmo, existe um consenso implícito nos
textos africanistas. Democracia é concebida essencialmente em termos procedimentais:
um sistema de eleições multipartidárias sancionado constitucionalmente, no qual existe
liberdade de participação e competição política; em que as eleições são (razoavelmente)
livres e justas; em que as mudanças presidenciais e governamentais são um resultado
directo das eleições; e em que estas transições decorrem pacificamente e de forma ordeira.
Sociedade civil é mais frequentemente definida como as organizações societais que não
estão a competir directamente pelo poder político e cujos objectivos são de caridade, de
desenvolvimento ou de advocacia. Assim sendo, uma sociedade civil vibrante é uma em
que as organizações da sociedade civil (ou OSC) são encaradas como livres para formar,
agir e operar sem receio de intimidação ou violência.
Os meus comentários dividem-se em três partes. Primeiro, discutirei a hipótese sub-
jacente ao estudo das transições para a democracia (ou o que por vezes é chamado de
“transitologia”) relativamente à relação entre sociedade civil e democracia. Depois,
examinarei os factos relativamente à evolução da sociedade civil na África contempo-
rânea. Finalmente, incidirei a análise sobre Angola e perguntarei qual o efeito que a
realização de eleições multipartidárias poderá ter sobre o eventual papel da sociedade
civil na “democratização”.

I
O estudo das transições democráticas tem uma história longa, e acidentada, na política
comparada. As suas origens podem ser encontradas no pós-Segunda Guerra Mundial,
quando os cientistas políticos estavam a tentar chegar a acordo relativamente às consequên-
cias do totalitarismo comunista e fascista. Contudo, a sua evolução real para um campo
de estudo académico genuíno deu-se nos anos setenta, quando as três maiores entidades
políticas autoritárias europeias (Grécia, Espanha e Portugal) se transformaram numa or-
dem política multipartidária democrática. Conheceu depois a consolidação analítica com
a explicação das transições democráticas que ocorreram na América do Sul a partir dos
anos oitenta. Portanto, segundo uma perspectiva conceptual, foram estas experiências que
proporcionaram os padrões teóricos para a explicação do que foi chamado de terceira onda
de democratização — nomeadamente as transições democráticas na Ásia e em África.
Embora a genealogia da “transitologia” não seja directamente relevante para a nossa
discussão aqui, quero assinalar as suas principais hipóteses, na medida em que são essas
mesmas hipóteses que se aplicam a África de modo geral e a Angola mais especificamen-
te. A primeira é que a democracia segue um seu caminho: a prática democrática conduz
a benefícios que exigem mais democracia — os indivíduos e as instituições vêm mérito
na democracia, o que tem como resultado uma maior consolidação democrática. Em
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXIII

seguida, a melhor forma de democracia é a livre expressão da política multipartidária


— independentemente das consequências que a mobilização partidária possa provocar
é ainda a melhor forma de canalizar exigências políticas. A terceira, a democratização
abre espaço para as OSC — a realização regular de eleições permite o debate e a advo-
cacia de formas que não seriam possíveis de outro modo. Finalmente, a democratização
conduz a uma política mais responsabilizável/accountable — o que eventualmente tem
como resultado um maior compromisso governamental para com o desenvolvimento
económico (geralmente entendido como melhores condições de vida).
O que é imediatamente aparente sobre estas hipóteses é que (1) elas são retiradas da
experiência de democratização do mundo ocidental e (2) que são discutíveis em ter-
mos de causa efeito. Sabemos que a democracia tal como é actualmente praticada no
Ocidente evidencia formas de procedimento historicamente enraizadas que resultaram
(eventualmente) em maior responsabilização/accountability e mais desenvolvimento.
Contudo, isto não significa que a democracia é necessariamente limitada a um formato
único. Mais importante ainda, isto não implica que accountability e desenvolvimento
sejam possíveis apenas nas democracias de tipo ocidental. Deste modo, a noção de
que é possível definir um padrão democrático que possa ser aplicado em qualquer
lado e que resultará numa maior accountability, desenvolvimento e civilidade, é sim-
plesmente uma suposição.
Apesar de muita literatura ter procurado estabelecer uma relação causal entre demo-
cratização e crescimento económico, é simplesmente impossível demonstrar que um
sistema de eleições multipartidárias regulares gera mais desenvolvimento que outro
tipo de sistema político. Além disso, as lições da História não apoiam esse argumento.
Na Europa, o crescimento económico precede a política democrática. No Sudeste asi-
ático, foram alcançados altos níveis de crescimento económico em países claramente
autoritários (Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Malásia). Também aqui, foi a emer-
gência de uma classe média possibilitada pelo crescimento económico que conduziu
a exigências crescentemente insistentes por uma maior democratização. Claro que isto
não significa que a democracia não possa ser desejável por outros motivos, mas isso
é uma questão diferente.
Independentemente da perspectiva individual sobre o valor intrínseco da democra-
cia, quero agora olhar para a forma como as actuais concepções de democratização
afectam o nosso entendimento da política da sociedade civil em África. Por um lado, é
defendido que a emergência e reforço gradual das OSC contribuiu de forma poderosa
para a democratização do continente. De facto, muitos encaram as origens da onda
democrática que varreu África a partir do final dos anos oitenta, como um resultado
directo da mobilização da sociedade civil. Por outro lado, existe actualmente uma forte
conjectura que a democratização, sob a forma de política multipartidária, abre espaço
para a sociedade civil. Isto, por sua vez, ocasiona governos mais responsabilizáveis/
accountable e liberaliza o mercado, o que depois conduz ao crescimento económico.
Uma vez libertada do jugo de Estados de partido-único, a sociedade civil pode avançar
e promover maior liberdade, o que conduz a uma espiral virtuosa, auto-reforçada no
desenvolvimento político e económico.
A convicção na importância do papel da sociedade civil junto de círculos de desenvol-
vimento é tal que os actuais mecanismos para o desembolso da ajuda internacional
(especialmente os Documentos de Estratégia para a Redução da Pobreza, ou DERP, do
Banco Mundial – Poverty Reduction Strategy Papers, PRSP) requerem a validação dos
XXIV Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

planos de desenvolvimento por parte da sociedade civil. Na prática isto significa que
os governos são obrigados a conduzir um processo de consulta formal, em que é dada
às OSC uma oportunidade para escrutinar políticas de desenvolvimento, antes que
a comunidade internacional valide a transferência da ajuda para os países em causa.
Face a isto, então, a democratização em África possibilita a contribuição formalmente
institucionalizada da sociedade civil para a definição de políticas. Sob esta leitura, a de-
mocratização é encarada como geradora da participação plena das OSC, para benefício
óbvio do país como um todo.
É útil colocar duas questões sobre esta interpretação da política recente em África. A
primeira diz respeito à extensão na qual a democratização e a implicação das OSC na
política são genuinamente o resultado da mobilização societal. A segunda consiste
em saber se o impacto do activismo da sociedade civil é tão directo como sugere esta
leitura dos últimos vinte anos.
Relativamente à primeira questão, parece haver alguma confusão entre causa e efeito.
Historicamente, pode ser demonstrado que o apelo à democracia e a emergência das
OSC se deu principalmente devido à pressão da comunidade internacional, que de-
sesperava com a falta de desenvolvimento numa África de Estados de partido único.
Foi apenas depois dos condicionalismos da ajuda exigirem eleições multipartidárias e
participação da sociedade civil que estas mudanças ocorreram realmente. À medida em
que a assistência passou a pressupor tais condicionalismos, a maior parte dos governos
em África não teve outra escolha senão obedecer, já que não podiam funcionar sem aju-
da externa. Por outro lado, países como Angola, capazes de evitar os condicionalismos,
podem e de facto resistem à democratização. Claro que, onde não existem liberdades
políticas, é difícil medir a exigência pública por reformas, mas do mesmo modo, não
é possível assumir que tais exigências seriam em favor do tipo de democratização
advogado pelo Ocidente. As pessoas poderão ter outras ideias sobre a melhor forma
de melhorar as suas condições de vida — como veremos mais adiante.
No que diz respeito ao activismo da sociedade civil, está longe de ser claro que tem
uma influência decisiva sobre as políticas de prestação de contas e desenvolvimen-
to. Também aqui, existe abundante evidência de que, tanto o tipo de OSC que são
estabelecidas, como as políticas que defendem, são em grande medida resultado
das considerações da comunidade doadora. Esta realidade não surpreende, pois a
maioria das OSC em África são financiadas pelo exterior. Independentemente dos
objectivos da comunidade internacional a este respeito, não se pode simplesmente
dar por adquirido que as organizações que estão principalmente ligadas aos seus
doadores externos sejam os melhores veículos para a representação das perspectivas
e políticas que os homens e mulheres comuns mais desejam. Na verdade, o facto de
tais OSC responderem principalmente a estrangeiros acaba por ser um problema real,
que muitos peritos negligenciam.
II
Tendo tentado clarificar as hipóteses subjacentes às actuais conceptualizações de de-
mocracia e sociedade civil, passo agora para uma análise da evolução da sociedade
civil na África contemporânea. Há dez anos atrás, escrevemos sobre “as ilusões da
sociedade civil” no livro Africa Works.3 Em poucas palavras, o argumento era o de que
3
Patrick Chabal & Jean-Pascal Daloz (1999), Africa Works: disorder as political instrument. Oxford: James Currey,
chapter 2.
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXV

não podia haver na África contemporânea uma sociedade civil como era, e é, entendida
no Ocidente, por dois conjuntos de razões. O primeiro prendia-se com o facto de em
África a sociedade não estar dissociada funcionalmente do Estado porque o domínio
da política não era independente da esfera social, económica e cultural. O segundo
era que a maioria das OSC eram financiadas externamente ou concebidas domesti-
camente como instrumentos políticos por quem as financiava ou dirigia. O resultado
era que, com algumas excepções, as OSC eram propensas às mesmas dinâmicas neo-
patrimoniais e clientelistas que todas as outras instituições políticas. Nesse sentido, a
sociedade civil era uma parte integrante do tecido de organizações formais e informais
através das quais se exercia o poder na África contemporânea.
Este argumento não negava a existência de um grande número de indivíduos em África
comprometidos com o activismo da sociedade civil como é praticado no Ocidente,
nem negligenciava aquelas organizações enraizadas domesticamente (profissionais,
vocacionais ou religiosas) que procuravam dar voz àqueles que não eram representados
na política diária. Tinha simplesmente o objectivo de assinalar o limitado âmbito de
acção na África contemporânea para o tipo de sociedade civil que, à semelhança do
que aconteceu na Europa de Leste nos anos oitenta, pudesse jogar um papel político
decisivo na transformação substantiva do sistema político existente. Por isso, na nossa
perspectiva, a expectativa em que as OSC podiam igualmente dar expressão aos vários
sectores da sociedade e permanecer independentes da política da elite governante não
era legítima. Sugerimos que era mais importante compreender o modo como o poder
é exercido do que admitir a hipótese de uma transformação súbita, de algum modo
miraculosa, da sociedade que podia ipso facto democratizar a política em África.
Após a publicação do livro, muitos defenderam que estávamos errados em pelo menos
dois cálculos. O primeiro era de que existiam em África um número de organizações
independentes que operavam fora do alcance do Estado e eram abertamente críticas do
governo. O segundo era que as OSC jogavam claramente um papel fundamental na de-
mocratização da política do continente, quer directamente através de campanhas eleitorais
ou indirectamente através da sua influência sobre a política. Superficialmente isto pode
parecer verdade, mas a interpretação do que está a acontecer não é assim tão linear. Ou,
por outras palavras, as dinâmicas da relação entre a sociedade civil e o Estado podem
não ser aquilo que aparentam — nomeadamente a afirmação gradual da sociedade civil
num jogo político crescentemente democrático. Alguns processos parecem em vez disso
confortar a nossa tese original.
Um é que muitas OSC são partidos políticos disfarçados, concebidos para facilitar o
acesso dos seus líderes a cargos políticos. Outro é que várias OSC são dirigidas por elites
políticas e, como tal, instrumentalizadas politicamente. Outro, ainda, é que várias OSC
são estabelecidas puramente com o objectivo de aceder a financiamentos externos, já que
nas últimas duas décadas uma crescente proporção da ajuda ao desenvolvimento tem
sido canalizada directamente para a sociedade civil em vez de para o Estado. Além disso,
algumas OSC emergiram como resultado da determinação da comunidade doadora em
colocar na agenda determinadas questões (como o género) ou políticas (como a maior
participação das mulheres na política). Finalmente, e de modo paradoxo face à “teoria”
de sociedade civil que o Ocidente apregoa só da boca para fora, as poucas organizações
comunitárias locais que não foram instrumentalizadas politicamente estão hoje em risco
de sobrevivência porque não cumprem os critérios de organização burocrática e prestação
de contas de tipo ocidental e por isso não são elegíveis para financiamento externo.
XXVI Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

De modo geral, o que assistimos em África é que não é útil conceber o Estado e a
sociedade civil como separados. Devem, antes, ser analisados como duas facetas do
processo político que emergiu sob influência da comunidade internacional. O discurso
da democratização e da sociedade civil conduziu à miragem de que a natureza real da
política havia mudado, quando na verdade apenas a sua aparência se alterou. Ou, mais
precisamente, o padrão ocidental foi adaptado às realidades políticas, sociais e culturais
da África contemporânea. Os doadores podem gostar de pensar que a sociedade civil
existe fora da alçada da política estatal e reflecte as opiniões e exigências daqueles
que não estão representados na política “oficial”. De facto, e isto é fundamental, tanto
a população em geral como as elites políticas encaram as OSC como actores do jogo
político mais amplo em que todos estão envolvidos.
As eleições multipartidárias e a emergência de OSC financiadas externamente mudaram
o aspecto do jogo político, mas não produziram uma transformação sistémica desse jogo.
É hoje tão verdade como era há quarenta anos atrás que, em Africa, o poder se joga sobre
o controlo dos recursos. Em conformidade, existe apenas uma ambição possível para
os políticos, a de controlar o Estado. As eleições multipartidárias complicam o jogo e
conduzem a uma competição crescentemente aguda, e frequentemente à violência, mas
são simplesmente um obstáculo adicional no caminho para a captura do poder.
Não existe lugar para uma oposição, como acontece nas democracias ocidentais: nem
mesmo para governos de coligação — como, por exemplo, vemos hoje no Quénia. A
política tem a ver com o facto de a vitória dar acesso a tudo — the winner-takes-all. O que
acontece em termos de sociedade civil pode afectar a forma mediante a qual se desenrola
a competição política e pode fornecer canais adicionais de progresso político para os
políticos e os seus apoiantes. Não altera a natureza e o objectivo da política. Nem afecta
fundamentalmente a estrutura do exercício de poder.
Se entendermos que o Estado e a sociedade civil estão inextricavelmente ligados dentro
de um dado contexto político, social e cultural, então torna-se mais fácil pensar sobre
qual poderá ser realisticamente o papel da política da sociedade civil na África de
hoje. Vamos primeiro deixar de parte a suposição normativa ocidental que a sociedade
civil pode em algum sentido manter o jogo político nos limites da democracia — agir
como fiscalizador dos políticos. Isto, como expliquei, não é possível sob as actuais
circunstâncias. Vamos também descartar a noção de que a participação da sociedade
civil na política pode ser interpretada como prova de “democracia”, já que o que hoje
está disponível em África não é a democracia de estilo Ocidental, mas mais ou menos
a prestação de contas democrática (democratic accountability).
Vamos finalmente afastar o argumento de que apenas uma sociedade civil “vibrante”
pode garantir uma democratização “adequada” — ambos os significados, de “vibran-
te” e “adequada”, são inteiramente determinados pelas expectativas ocidentais e não
correspondem às realidades no terreno.
Nestas circunstâncias, o que é chamado de sociedade civil é de facto um conglomerado
de três tipos distintos de organização.
O primeiro são as OSC criadas e financiadas por doadores externos, cuja raison d’être
é principalmente cumprir com as expectativas, e exigências, da comunidade interna-
cional, de modo a conseguir esses financiamentos. Representam hoje a maioria das
organizações que são encaradas pelo Ocidente como as que agem da forma que a
sociedade civil deve agir.
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXVII

As segundas consistem em associações profissionais, vocacionais e económicas (por exem-


plo, de advogados, jornalistas, empresários, câmaras de comércio, Igrejas, sindicatos), que
agregam aqueles que partilham actividades profissionais ou espirituais. Embora tenham
interesses comuns, que as unem, permanecem entrelaçadas nas políticas de clientelismo
e reciprocidade que marcam as sociedades africanas.
O terceiro tipo é composto por agrupamentos locais de base, estabelecidos por ob-
jectivos económicos, sociais ou culturais (os três não são facilmente dissociáveis) —
estes incluem associações de entreajuda económica e crédito (tontines), associações
funerárias, grupos etários, cooperativas, grupos de gestão de água, agrupamentos de
cariz étnico, etc. Estas parecem ser as menos conspícuas e as mais “desorganizadas”
de todas as OSC.
Porém, na minha perspectiva apenas o terceiro grupo se qualifica como um embrião
de sociedade civil “indígena”, já que é o único enraizado na expressão autónoma da-
queles que estão a tentar reconciliar necessidades práticas com o uso dos meios sócio-
culturais que lhes estão disponíveis. É, pois, particularmente preocupante que estes
agrupamentos sejam quase totalmente negligenciados pelos doadores que assumiram
a missão de defender, e apoiar financeiramente, a sociedade civil africana.
Assim, o argumento de que a sociedade civil é necessária para a democracia assenta
sobre um duplo artifício. O primeiro consiste em considerar que nas democracias
ocidentais actuais a sociedade civil constitui um requisito para, e não um resultado
da, democratização, tal como esta ocorreu historicamente no Ocidente. Na verdade,
a sociedade civil não presidiu à democratização; tornou-se possível depois que a
democratização ocorreu. O segundo é que a prioridade em África é para os doadores
criarem, financiarem e sustentarem as OSC de modelo ocidental. Ao invés disso, o
que seria exigível era responder às exigências genuínas feitas por aquelas associações
enraizadas intrinsecamente e que são os pilares da política local e das preocupações
sócio-culturais diárias como elas realmente ocorrem. Se estas iriam exigir democracia
na forma de eleições multipartidárias é duvidoso, mas as suas exigências iriam certa-
mente apoiar formas mais alargadas de responsabilização/accountability (“tradicional”
ou “moderna”).
III
O caso de Angola é diferente dos restantes de África em muitos aspectos. Já escrevi nou-
tras publicações sobre os factores que tornam o país distinto da maioria dos outros e não
vou enumerá-los outra vez.4 Quero, em vez disso, explicar por que penso que Angola
não é tão diferente que mereça uma abordagem sui generis. Ou, antes, quero demons-
trar que a particularidade de Angola é melhor entendida dentro de uma perspectiva
africana comparativa. De todos os factores que afastam o país dos seus vizinhos, três
deles podem ser pensados como tendo influência decisiva sobre a questão da sociedade
civil: a especificidade da elite crioula de Luanda que controla o poder; a longa história
de guerra (anti-colonial e civil); e a posse de imensas reservas de petróleo (e diamantes).
Apresento uma discussão da sua respectiva importância antes de avançar para uma
avaliação mais geral da relação entre sociedade civil e democratização em vésperas das
eleições legislativas.

4
Patrick Chabal & Nuno Vidal (eds.) (2007), Angola: the weight of history. London/New York: Hurst/Columbia
University Press, Introduction.
XXVIII Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Tanto a especificidade como o domínio da elite crioula de Luanda são indisputáveis; são
factos históricos que continuam a afectar o aspecto social e político do país e que terão uma
influência decisiva sobre os acontecimentos dos próximos anos. Porém, se os considerar-
mos um grupo étnico antes de, como é geralmente o caso, um grupo racial e/ou cultural
separado, então a sua singularidade começa a ser de menor relevo. Existem, ou existiram,
grupos semelhantes em África que detiveram um poder social, económico e político único.
Estes incluem, obviamente, as comunidades muçulmanas “árabes” de comerciantes na
costa leste africana, que foram predominantes até à consolidação do regime colonial — e
permanecem assim em lugares como Zanzibar. No lado oposto do continente, podíamos
mencionar os crioulos americanos na Libéria, que detiveram o poder até Doe ter derru-
bado o regime, ou as várias comunidades crioulas que se encontram na costa ocidental de
África (da Mauritânia à Guiné), incluindo as quatro Comunas do Senegal — muitas destas
comunidades tinham uma influência económica ou política desproporcionada.
O objectivo aqui não é tanto tentar minimizar as especificidades dos crioulos de Luanda,
cuja própria composição é bastante complicada em qualquer caso, mas simplesmente
registar o facto importante de que não deviam ser encarados como se fossem únicos em
África. Isto é importante não só porque raramente se refere este ponto — a maior parte
dos que escrevem sobre Angola são especialistas lusófonos — mas também porque tal
abordagem torna possível estabelecer a evolução de Angola dentro de uma perspectiva
africana mais ampla. Se os actuais crioulos de Luanda não são tão distintos como se
pensa, então torna-se possível considerar um futuro em que tanto a sua identidade como
a sua posição privilegiada na sociedade podem mudar — como aconteceu com grupos
semelhantes noutras partes. Pode ser que tal mudança só aconteça com nada menos do
que uma revolução, mas não deve ser excluída com base no argumento histórico espúrio
de que os crioulos de Luanda têm um direito de governar inato (ou permanente).
Uma análise mais cuidada do sistema político a que a elite crioula preside em Angola
esclarece que este não é de modo algum único em África. De facto, pode ser visto como
uma variante do patrimonialismo que se encontra em todos os países, embora com for-
mas diferentes. Entre as principais características desse figurino está o facto de a política
ser um jogo de soma zero; de os governantes controlarem os recursos do país e deles
disporem de forma a garantir a legitimidade e o apoio necessário para o objectivo de
permanecerem no poder; de os regimes incumbentes não serem vencidos nas eleições
excepto em ocasiões em que a oposição está fortemente unida; de que a política da opo-
sição é principalmente um meio de chegar ao poder de modo a ter acesso aos recursos
públicos. O que é digno de nota nesse tipo de sistemas é que, independentemente do
impacto de eleições multipartidárias, as mudanças de regime fracassaram em produzir
uma transformação sistémica que reforçasse a institucionalização, encorajasse o desenvol-
vimento económico, promovesse a aceitação de regras de mudança política democrática
e fornecesse um espaço autónomo reconhecido para a sociedade civil.
O que parece ser diferente sobre os crioulos de Luanda é o resultado da combinação de
factores históricos específicos, que conspiraram para os fazer parecer imutavelmente
centrais para o destino do país. De importância fundamental é a sua dominação inin-
terrupta da região de Luanda e seu interior desde o século XVI e a sua capacidade de
manter o poder económico e político. De igual modo, as suas ligações com o Brasil e
Portugal trouxeram-lhes grandes recompensas. Mais tarde, o seu acesso aos benefícios
culturais e educacionais disponíveis no regime colonial garantiu o seu predomínio em
todas as actividades sociais e políticas, para as quais tal conhecimento é uma vantagem.
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXIX

Finalmente, a sua capacidade de negociar com os portugueses durante as convulsões


coloniais agudas finais colocou-os no poder, dando-lhes uma vantagem decisiva sobre
os seus rivais. A sua agilidade em usar os discursos universalistas da política não racial
e não étnica tornou-os mais reconhecidamente “modernos” aos olhos de muitos do
que os seus outrora rivais da UNITA.
Contudo, vistos por outra perspectiva, os crioulos de Luanda comportam-se como
qualquer outro grupo étnico em África. Reconhecidamente, os critérios da pertença não
são os que mais rapidamente vêm à cabeça quando pensamos em etnicidade. Mas isto
é apenas porque a maior parte dos analistas continua a operar com uma noção de etni-
cidade restrita e não histórica — para a qual é chave a crença de que é fixa e imutável.
De facto, sabemos que a etnicidade é apenas um dos marcadores de identidade; que
é contingente e fluida, redefinida constantemente pelas circunstâncias; e que se torna
saliente politicamente quando é usada instrumentalmente para objectivos partidários.
Se a etnicidade se tornou tão importante na África pós-colonial é precisamente porque
tem sido usada como veículo pela competição política — não porque tenha eliminado
os outros marcadores de identidade.
A este respeito, o grupo étnico crioulo de Luanda tem sido tanto flexível como fluído, per-
mitindo a entrada de novos, e depois “ainda mais novos”, crioulos no grupo, ao longo do
tempo e com total conhecimento de que tais novos membros mantinham laços com outros
grupos sociais, ou mesmo étnicos. O critério definidor a este respeito não foi a origem racial
ou geográfica, mas a fidelidade ao regime no poder e mais particularmente ao Presidente.
Visto sob esta perspectiva, torna-se claro que a noção operativa de “etnicidade” foi usada
criativamente de modo a incorporar recém-chegados num dos vários círculos patrimoniais,
que estão no coração do sistema político. Numa prática clientelista bem ensaiada, os que
se aliaram à elite governante crioula tiveram permissão para entrar nessa etnicidade —
criando assim um grau de elasticidade que facilitou o exercício da prática patrimonial.
Pode bem ser que as mudanças no futuro venham a redefinir completamente a etnicidade
crioula, mas por agora esta é uma forma útil de a conceptualizar.
A situação especial dos crioulos de Luanda foi consolidada pelos outros dois factores
que são específicos a Angola: a longa história de guerra e a posse de vastos recursos
naturais.
O facto de que o MPLA, a expressão política dos crioulos, foi capaz de emergir da luta
anti-colonial como um partido supostamente “moderno” em representação de grupos
não-étnicos e não-raciais, que procurava um futuro Socialista prometedor, ajudou a
legitimar a sua posição nacionalista. Embora lhe faltasse a legitimidade da voz nacio-
nalista incontestada de outros movimentos anti-coloniais africanos, o MPLA podia
representar-se como o único partido dedicado a construir uma Angola na senda dos
países (Socialistas) mais avançados. Pode ser que isto não o tenha feito mais aceitável
naquelas partes do país que apoiavam os seus rivais, FNLA ou UNITA, mas facilitou
a projecção de uma imagem nacional modernizadora, que minimizou um passado
que outros grupos étnicos tendiam a ver como o de uma aristocracia de exploração
(e, para eles, essencialmente “estrangeira”).
Paradoxalmente, a consequência de ser vilipendiado pelos Estados Unidos (que, não
obstante, continuou a fazer negócios com o regime) como representante comunista
ou soviético, emprestou um distintivo suplementar de modernidade ocidental a um
partido que era frequentemente visto dentro do país como meramente oportunista.
XXX Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Assim, a legitimidade do MPLA não surgiu principalmente das suas credenciais na-
cionalistas, que foram contestadas violentamente em Angola, mas de um discurso e
imagem que foram construídos no cenário mundial no meio da fúria da Guerra Fria.
Esta foi ainda mais consolidada quando o regime do MPLA ganhou as eleições mul-
tipartidárias contenciosas de 1992, que lhe galardoou a legitimidade recém adquirida
de um governo eleito democraticamente. Confirmou a transformação de um partido
de vanguarda marxista-leninista para um partido de um sistema político recentemente
liberalizado, agora a gerir uma economia “capitalista”.
Não vou aqui entrar mais na discussão dos efeitos políticos da guerra, que outros
(Christine Messiant de forma mais notável) já explicaram, mas centrar-me-ei antes nas
suas implicações para a sociedade civil em Angola. O conflito civil que avassalou o país
entre 1975 e 2002 estabeleceu uma situação de guerra, que tornou possível a supressão
de qualquer opinião dissidente e de qualquer grupo social autónomo do regime. Mesmo
a Igreja Católica, que sempre tinha sido um actor importante na sociedade angolana e
apoiado a luta anti-colonial (algumas secções dentro dela), foi marginalizada durante
grande parte desse período. Outras organizações, menos enraizadas historicamente,
foram simplesmente impedidas de acesso a qualquer espaço ou expressão públicos.
Durante esse período, a sociedade civil foi concebida simplesmente em termos da pro-
jecção do MPLA, a única voz legítima contra o inimigo interno. De facto, a imposição
do controlo estatal total sobre a sociedade civil, que se seguiu à alegada tentativa de
golpe de Nito Alves em 1977, não conheceu um atenuar particular antes de 1991. O
reinício da guerra após as eleições de 1992 tornou possível a continuação de tal con-
trolo, embora com um aspecto menos repressivo.
Assim, a guerra proporcionou a justificação para um contexto em que não havia es-
paço para a expressão da sociedade “civil”, pois nessa situação o perigo do inimigo
interno triunfou sobre qualquer outra reivindicação por liberdade. A este respeito,
pode ser argumentado que um tão longo período de conflito civil, sem exemplo em
nenhum outro lugar em África (excepto no Sudão), contribuiu para criar um sistema
político entrincheirado de forma única, que não podia tolerar a expressão de qualquer
autonomia na sociedade. Isto estabeleceu práticas de actos totalitários semelhantes aos
encontrados no antigo regime soviético ou noutros regimes comunistas.
A substância destas práticas não foi alterada após a transição para um sistema político
e económico mais “liberal”, ainda que o discurso tenha reproduzido a nova ideologia
oficial. A combinação de um passado estalinista repressivo e uma história de controlo de
dissidentes em nome da guerra contra o inimigo interno, conduziu a uma abordagem à
sociedade civil que é quase ininterruptamente hostil. Ou seja, o regime não está simples-
mente habituado a uma sociedade civil que não controle — como se torna francamente
claro pelo papel conferido à Fundação Eduardo dos Santos que preside a uma sociedade
civil “oficial” extremamente rica e poderosa.
Esta situação pode parecer única em África, mas é de facto a combinação de dois pro-
cessos que são familiares ao continente. O primeiro trata-se de um sistema patrimonial
em que o governante distribui recursos públicos de modo a satisfazer/placar clientes e
manter-se no poder. A extensão da distribuição patrimonial é ditada pelo tipo de recursos
disponíveis e amplitude de apoios necessários. O segundo radica na convicção de que
não há necessidade de um espaço público autónomo para uma sociedade civil fora do
alcance do braço político do Estado. Isto deve-se a que, num sistema patrimonial, em
que as relações verticais são os pilares da política, a voz política da sociedade transita
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXXI

directamente de baixo para cima através das redes que ligam os governantes aos segui-
dores/clientes. Por definição, as redes combinam o público e o privado, o político e o
sócio-económico, de formas que passam por cima da distinção padrão entre Estado e
sociedade civil.
Uma interpretação comparativa da história recente de Angola iria reforçar o argumento
de que a guerra manifestou e agudizou uma tendência em direcção a um tipo de política
patrimonial que não tem nenhuma necessidade, ou respeito, por uma sociedade civil
tal como esta é entendida no Ocidente. No entanto, os processos envolvidos são os
mesmos que encontramos noutras partes. O que é diferente é que a natureza restritiva
do patrimonialismo de Angola e a extensão da aversão do regime a uma sociedade
civil autónoma foram exacerbadas a um grau virtualmente sem precedentes pelo ter-
ceiro factor já mencionado: a disponibilidade de vastos recursos naturais. Na maior
parte dos outros países, em que tais recursos ou não existem ou não são tão facilmente
controláveis por uma pequena elite, as exigências do patrimonialismo e a pressão da
sociedade civil são mais insistentes e não tão facilmente rejeitadas.
Foi, de facto, o acesso ao petróleo e a instrumentalização da Sonangol que tornaram
possível a consolidação da dominação da elite crioula de Luanda na forma de uma elite
presidencial restrita. A verdade é que esta clique é capaz de canalizar os rendimentos
do petróleo para a reprodução de um sistema político que garante a sua manutenção
do poder e tem consequências dramáticas para a sociedade angolana.
Em primeiro lugar, o regime tem conseguido restringir o clientelismo a um conjunto de
círculos concêntricos estreitos de clientes, entre os quais existe uma rotação constante
(reduzindo assim a possibilidade de uma oposição organizada). Possui portanto a
chave para o bem-estar de todos os que beneficiam da generosidade ou favores gover-
namentais. Em segundo, o regime não teve necessidade de satisfazer a sociedade como
um todo para assegurar apoio. A guerra obrigou todos os angolanos a escolherem:
ou ficar com o MPLA ou tornarem-se inimigos. Depois do final do conflito, a escolha
permanece rígida: apenas o MPLA detém a promessa de recompensa económica. Final-
mente, o regime tem estado suficientemente abastado para evitar os condicionalismos
internacionais do Banco Mundial e de outros e mesmo para escapar a um escrutínio
próximo das suas manipulações económicas e autoritarismo político.
Longe de ser único, o regime de Angola demonstrou como o controlo de certos recur-
sos nacionais (principalmente o petróleo) por uma elite, pode satisfazer os excessos
de práticas patrimoniais que se encontram em toda a África. Ainda que a combinação
de um sistema político patrimonial eficaz e firmemente controlado não se encontre
frequentemente no continente, a lógica desse sistema é bastante comum. Na verdade,
o facto de o regime do MPLA ser tão inexoravelmente hostil à emergência de um
espaço cívico autónomo, ou sociedade civil, prende-se com um medo fundamentado
de um desafio sério à sua base social limitada e à sua legitimidade política superficial.
O abandono insensível da sociedade, que tem sido a tónica do regime há décadas,
criou uma situação em que a população encara o apoio ao MPLA simplesmente em
termos instrumentais. A perspectiva de eleições forçou o regime a dar alguma atenção
às exigências dos eleitores, mas este não está preparado para tolerar oposição política,
ou mesmo críticas, da sociedade civil.
Quais são, então, as questões principais sobre a natureza e o papel da sociedade civil
na Angola de hoje? Ou, por outras palavras, quais são as questões que devíamos estar
XXXII Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

a colocar se queremos perceber o tipo de transição política que se supõe estar a aconte-
cer neste momento? Parece-me que há dois lados desta questão: um tem a ver com os
possíveis alicerces da sociedade civil, dada a longa história de divisão e violência em
Angola; o segundo relaciona-se com saber como pode a sociedade civil, que emergiu
no final da guerra em 2002, contribuir para uma renovação das práticas políticas no
país. É útil fazer uma distinção entre os dois, mesmo que estejam obviamente inter-
-relacionados, na medida em que há hoje uma tendência para assumir um papel para
a sociedade civil que negligencia os factores históricos, que colocam limites muito
consideráveis ao que pode ser alcançado.
Um conjunto de acontecimentos recentes combinam-se para dar a impressão de que
há em Angola uma sociedade civil emergente forte. O fim do conflito possibilitou a
organização de numerosas organizações civis, tanto nas cidades como nas áreas rurais.
As ONG internacionais têm sido relativamente livres de desenvolver as suas activi-
dades pelo país. Um grande número de empresas estrangeiras está agora envolvido
na reconstrução do país. Multiplicam-se projectos por toda a parte. A preparação para
as eleições trouxe uma atenção profunda à situação sócio-política do país. Os partidos
estão a tentar mobilizar-se. As discussões sobre o papel da sociedade civil são perma-
nentes. Muitos jornalistas e peritos estrangeiros vão ao país para avaliar a situação
e dar a sua opinião. Finalmente, a industria do petróleo está em franco desenvolvi-
mento, originando muitos rendimentos extra que se infiltram na sociedade (embora
de formas misteriosas). Vive-se um momento de consumo alargado que acompanha
o período pré-eleitoral.
Parece que Angola se está a “normalizar” — uma impressão que é reforçada pelos
símbolos de arquitectura da modernidade que agora germinam na capital. É em mui-
tas formas uma atmosfera arrebatadora, tornada ainda mais real pela promessa de
mudança incorporada pelas próximas eleições. Podemos ter esperança; talvez deva-
mos ter esperança. Contudo, um olhar mais cuidadoso à situação obriga a um maior
realismo. Não só esta leitura dos actuais acontecimentos é excessivamente optimista,
como não há bases históricas consistentes para pensar que sejam possíveis mudanças
radicais — apesar do quanto estas possam ser desejáveis. Um exame comparativo de
Angola ajuda a compreender por que razão existe muito pouco campo de manobra
para uma sociedade civil que pudesse alterar o rumo político do país. Isto não se deve
à falta de potencial, mas sim a factores históricos específicos.
A melhor forma de conceptualizar a actual situação de Angola é considerar o país num
estado de desenvolvimento apreendido — apreendido por duas razões diferentes.
Primeiro, a imposição do regime colonial formal após a Conferência de Berlim (1884-85)
colocou um fim ao processo de competição inter-étnica que estava em curso na área,
no seguimento do fim da escravatura. Esse período assistiu a enormes rupturas sócio-
-económicas e políticas, das quais resultou uma hostilidade considerável entre os povos
dos planaltos centrais, a comunidade crioula de Luanda e as populações BaKongo do
norte. O regime colonial acentuou estas divisões e simultaneamente “congelou” o ca-
rácter étnico, social e político do território nesta configuração fortemente tripartida.
É obviamente impossível saber o que teria acontecido naquela área, caso os portugueses
tivessem fracassado na colonização do território, ou caso este tivesse sido colonizado
por outra potência europeia. O que, no entanto, é certo é que o domínio português
produziu uma colónia de colonato, na qual poucas oportunidades eram oferecidas
Patrick Chabal d Twilight Zone: Sociedade Civil e Politica em Angola XXXIII

aos indígenas e onde as políticas coloniais pouco fizeram para integrar as pessoas do
país de forma mais próxima. Isto deixou um legado de amargura competitiva entre os
diferentes eleitorados sócio-políticos, que foi agravado pelo movimento anti-colonial
e a guerra civil que se seguiu. Acima de tudo, e este é o ponto mais relevante aqui,
impediu o desenvolvimento de uma sociedade civil nacional após a independência.
Como resultado, as noções de identidade e as ideias de bem público não estão sufi-
cientemente disseminadas, ainda que haja um desejo universal pela paz e bem-estar.
Segundo, o legado da violência e guerra civil é pernicioso e também contribuiu para
apreender o desenvolvimento do país em moldes que não são propícios à emergência
de uma sociedade civil. Três processos confluem nesta dimensão. Um factor é que existe
agora no país um capital acumulado de hostilidade, ou ódio, que levará uma geração
a ser superado. Aparências plácidas estão a obscurecer correntes de ressentimento
mais escondidas, que podem facilmente explodir caso não se realizem as promessas
de uma vida melhor. A juntar a isto, a supressão violenta da dissidência política desde
1977 suspendeu também o fluxo livre de debate político dentro do próprio MPLA,
alimentando assim mais insatisfação.
Outro factor é um sistema político ossificado, que age como se o partido no poder ainda
tivesse justificação para se comportar como a única organização política legítima no
país. O legado da guerra serve aos que estão no poder, que mantêm que a oposição ao
MPLA é “traição”. Embora este discurso esteja presentemente abafado, é uma tranca
eficaz a muitas das actividades que podiam tornar possível a emergência de uma so-
ciedade civil mais autónoma. O último factor é que a vitória de um partido na guerra
civil conforta as perspectivas e as práticas daqueles que estavam no lado “certo” da
história. Não há nenhuma razão para o vencedor ter que ceder. Nem há nenhuma
razão pela qual deveria receber de bom grado o crescimento de uma sociedade civil
activa e autónoma.
Angola está assim num tempo indefinido enquanto tal, ainda não totalmente envolvida
na política da África pós-colonial. A este respeito, encontra-se face aos seus vizinhos
africanos de algum modo como a Polónia, Hungria ou a Checoslováquia se encontra-
vam face aos seus vizinhos da Europa ocidental na década de oitenta: semelhantes,
mas diferentes, congelados na política autoritária antiquada que já passou à história.
Claro que a diferença é que essa ordem era mantida pelo urso soviético ali ao lado,
enquanto em Angola é alcançada pelo regime presidencial — que, contudo, alguns em
Angola também encaram como “estrangeiro”. A diferença mais significativa entre os
dois casos, porém, tem a ver com a sociedade. Enquanto nos três países da Europa de
Leste, existia uma sociedade civil forte, historicamente enraizada, que foi instrumental
no derrubar dos regimes comunistas, este não é o caso em Angola.
Angola está à beira de grandes mudanças, mas não é provável que estas sejam tão ex-
tensas ou tão rápidas como muitos observadores afirmam acreditar. Enquanto o regime
se mantiver no poder, não há nenhuma razão para pensar que o actual figurino políti-
co, apesar de sensível à pressão externa, vá permitir a emergência de uma sociedade
civil forte, ou mesmo autónoma. Olhando para a experiência da África pós-colonial
como um todo, também é pouco provável que as eleições multipartidárias venham
a contribuir substantivamente para uma mudança, quer na natureza ou no papel da
sociedade civil nos próximos anos. Uma mudança de regime não é plausível devido
aos rendimentos petrolíferos, mas sem tal mudança existe pouco espaço para as OSC
agirem fora das estruturas do sistema político em vigor.
Introdução
Nuno Vidal
&
Justino Pinto de Andrade

e
3

Introdução

Nuno Vidal
(Centro de Estudos
Sociais da Faculdade
N a sequência do anterior livro publicado em 2006 e 2007
sobre o processo de transição para o multipartidaris-
mo1, os dois organizadores e co-autores decidiram preparar
de Economia da esta nova obra que aqui se apresenta, dedicada à relação entre
Universidade de Coimbra sociedade civil e política, tendo em conta o enquadramento
– CES/FEUC) regional e a dimensão internacional.
&
Justino Pinto No âmbito do processo angolano de transição para um sis-
de Andrade tema democrático multipartidário, muitas esperanças foram
(Faculdade de Economia depositadas na sociedade civil enquanto potencial força de
da Universidade Católica mudança. Desde que se iniciou o processo de transição no
de Angola - UCAN) início dos anos noventa, as chamadas Organizações da So-
ciedade Civil (OSC) foram gradualmente mostrando alguma
eficácia, abordando várias questões, política e socialmente
relevantes. No entanto, existem múltiplos constrangimentos
ao seu desenvolvimento a vários níveis — nacional, regional
e internacional —, que urge debater e ultrapassar no âmbito
do processo de democratização em Angola.
É neste contexto de necessidade de debate plural, alarga-
do, que surge a presente obra, Sociedade Civil e Política em
Angola: enquadramento regional e internacional, pretendendo
congregar não só os chamados activistas da sociedade civil
e OSC, mas também académicos, jornalistas, membros de
organizações internacionais, da comunidade doadora, polí-
ticos e opinion makers, cujo contributo se considere relevante
para a discussão.
No cômputo geral, este livro aborda os principais temas em
discussão nos meios políticos e da chamada sociedade civil
em Angola, nomeadamente a relação entre Sociedade Civil
e Política e o modo como a defesa dos Direitos Humanos
influencia as questões políticas. Foca igualmente o papel da
Comunidade Internacional em Angola (comunidade doa-
dora, organizações governamentais e não governamentais),
especialmente no que se refere ao tipo de relação estabelecida
com as OSC e o modo como se posiciona face ao governo e
aos interesses económicos internacionais em Angola.
Trata-se de um volume que congrega vários autores, sobretudo
Angolanos, mas também de várias outras nacionalidades, in-

1
Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade (eds. & orgs.) (2006 & 2007), O Processo
de Transição para o Multipartidarismo em Angola (Luanda & Lisboa: Firmamento,
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Universidade Católica
de Angola).
4 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

cluindo um capítulo exclusivamente dedicado à região da África Austral, inteiramente es-


crito por autores dos respectivos países no intuito de facilitar uma análise comparativa.
Mais do que apresentar uma análise dos diversos autores sobre os assuntos em de-
bate, este livro pretende ser um contributo e um estímulo adicional a uma alargada
reflexão e discussão em torno das questões relacionadas com a sociedade civil e o seu
potencial para a mudança sócio-político-económica; um estímulo que seja igualmente
mobilizador e informador da acção, que se pretende cada vez mais eficiente e capaz de
ultrapassar os diversos obstáculos no caminho de uma reforçada afirmação e consoli-
dação do processo de democratização em Angola. Esta reflexão e debate são tanto mais
importantes quanto ocorrerão numa fase particularmente crucial da história do país,
estando em preparação as segundas eleições legislativas desde a independência.
O livro encontra-se estruturado em cinco capítulos que se passam a apresentar.
Fazendo o enquadramento do tema central da obra, o Capítulo I contém os textos de
Nuno Vidal e Justino Pinto de Andrade, procurando dar uma perspectiva histórico-
-analítica da relação entre Política e Sociedade Civil no pós-independência, apresen-
tando as suas principais características e os desafios a que vem sendo sujeita desde as
duas primeiras administrações Socialistas até aos nossos dias, passando pelo processo
de transição para o multipartidarismo. Esta relação é abordada tendo em conta a
dimensão interna e externa, nomeadamente a sua articulação com as alterações que
foram ocorrendo a nível internacional.
O capítulo II discute os desafios e constrangimentos à sociedade civil angolana, contando
com as contribuições de Fernando Macedo, Carlos Figueiredo, Sérgio Calundungo,
Benjamim Castello, Fernando Pacheco, Cesaltina Abreu e Kinsukulu Landu Kama.
Fernando Macedo apresenta-nos um texto que analisa o enquadramento jurídico da
sociedade civil e da democracia em Angola, sustentando, entre outros argumentos, que
as OSC têm o direito de se envolver em determinados aspectos da vida política pública
e que o actual regulamento das ONG está ferido de inconstitucionalidade no âmbito das
estratégias governamentais de manipulação das OSC. Carlos Figueiredo, sustenta, entre
outros aspectos, que falta coerência entre o discurso e a prática das OSC, encontrando-se
demasiadamente fragmentadas por motivos diversos que analisa e que defende ser urgente
ultrapassar com estratégias específicas nesse sentido.
Sérgio Calundungo discute duas perspectivas diferentes que existem no seio das OSC,
entre as assistencialistas-apolíticas e as desenvolvimentistas com consciência sócio-
-política, analisando ainda a posição da comunidade internacional entre as duas pers-
pectivas. Benjamim Castello fala-nos de questões culturais que devem ser analisadas
no que concerne às diferentes perspectivas e expectativas no seio da sociedade angolana
quanto à democracia e prestação de contas, assim como do tipo de estratégias das OSC
para atingirem os seus objectivos. Cesaltina Abreu traz à colação os inúmeros cons-
trangimentos internos e externos que se têm levantado às OSC angolanas no processo
da sua afirmação e as respostas que estas organizações têm dado àqueles obstáculos,
defendendo que mais do que buscar confrontações com o Estado, a sociedade civil
precisa de procurar formas de se articular com este para expandir o espaço público e
consolidar um ethos democrático em Angola.
Na argumentação que nos apresenta Fernando Pacheco em relação à capacidade da
sociedade civil enquanto agente de mudança, encontramos a contraposição daquilo
Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade e Introdução 5

a que chama de perspectiva exógena — que evidencia a fraqueza das OSC angolanas
e coloca em causa a sua própria existência — e perspectiva endógena — que sustenta
o potencial da sociedade civil angolana para a mudança —, defendendo a segunda
perspectiva como a mais correcta, pese embora todas as limitações reconhecidas. O
capítulo encerra com o texto de Landu Kama que aborda problemas internos como
a falta de separação de poderes, a corrupção e o deficit de participação pública, assim
como as estratégias ligadas às plataformas da sociedade civil, a nível interno e externo,
havendo necessidade de se trabalhar num espírito de parceria e não de ingerência,
dependência e paternalismo que tem prevalecido até aqui.
O capítulo III analisa e debate o papel das Igrejas, da Juventude, das Mulheres e dos
Media enquanto propulsores do Desenvolvimento Humano. Conta com a participação
de Michael Comerford, Pedro Cardoso, Aline Afonso Pereira, Reginaldo Silva, José
Patrocínio e Paulo de Carvalho.
O texto de Michael Comerford, avalia o papel desempenhado pelas Igrejas em Angola
na promoção da paz e da democracia, através da análise e contextualização de litera-
tura e iniciativas das principais Igrejas Protestantes e da Igreja Católica, tratando-as
de forma colectiva, ao contrário do que é habitual neste tipo de análises, que preferem
separar as Igrejas Protestantes da Católica. Pedro Cardoso apresenta-nos um trabalho
sobre a relação dos jovens angolanos com a política, sustentando, entre outros aspectos,
que o olhar crítico que uma significativa franja apartidária da juventude lança sobre
o sistema político angolano é revelador de uma cidadania activa e não politizada,
exercida em actividades diárias ou em organizações da sociedade civil.
Aline Afonso Pereira, analisa a relação entre género e mercado de trabalho urbano em
Angola, no contexto da guerra e do processo de liberalização económica, defendendo,
entre outros pontos, que o processo de total integração da economia angolana no mer-
cado global com a transição para uma economia de mercado reforçou a desigualdade
de género no mercado de trabalho. Reginaldo Silva aborda a temática da liberdade
de imprensa em Angola, enquadrando-a no contexto Africano, discorrendo sobre os
limites impostos pelo poder político, as debilidades do próprio sector em Angola e a
necessidade de articulação da imprensa com objectivos de desenvolvimento económico-
-social e democracia.
José Patrocínio trata da questão da participação cívica e política da juventude angolana,
tendo por base a sua experiência de trabalho com jovens na província de Benguela,
argumentando que, ao contrário do que por vezes se defende, os jovens interessam-se
pela política, mas o grande obstáculo à sua maior participação está na falta de vontade
governamental em investir em mecanismos que facilitem esse maior envolvimento.
Este capítulo encerra com o texto de Paulo de Carvalho, que discute a questão das
desigualdades sociais em Angola e as diversas dinâmicas de fechamento e exclusão
social que impedem o desenvolvimento do país nas suas diversas vertentes, especial-
mente na mais importante — a humana.
O capítulo IV trata da dimensão internacional da relação entre sociedade civil e polí-
tica em Angola. Não obstante muitos autores em outros capítulos também incluírem
uma abordagem a este tema, os textos deste capítulo são especializados nesta área.
Conta com a participação de Lopo do Nascimento, David Sogge, Bob van der Win-
den, René Roemersma, Kristin Reed, Mónica Rafael Simões, Fernando Pacheco e
Manuel Paulo.
6 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Lopo do Nascimento abre o capítulo com um texto que discute a situação da África
sub-sahariana à luz não só das práticas governativas, mas também dos modelos de de-
senvolvimento e das políticas de cooperação externa. A partir daquele enquadramento,
analisa as novas relações económicas de África com os países asiáticos e as alterações
daí decorrentes para as relações com os EUA e a Europa, assim como o impacto dessas
alterações ao nível da sociedade civil, da democracia e da erradicação da pobreza;
sublinha a importância de uma abordagem regional e global para o desenvolvimento
do continente. David Sogge, Bob van der Winden e René Roemersma, analisam
aquilo que vão designar de domínios e arenas civis em Angola, argumentando que
os domínios civis e o que neles acontece não são hoje em dia decisivos na política an-
golana a nenhum nível, devendo-se apostar num conjunto funcional de instituições
políticas formais, espaço público para a vida associativa e um Estado com capacidade
de resposta em serviços públicos que funcionem bem sob pressão dos eleitores.
Kristin Reed, disseca o impacto da exploração de petróleo no Soyo através dos relatos
dos pescadores e dos camponeses que se centram em temas de inclusão, identidade,
protesto contra a exclusão dos benefícios do petróleo, objecção à poluição das zonas
pesqueiras e lavras e à destruição dos modos de vida e sobrevivência tradicionais. O
texto de Mónica Rafael e Fernando Pacheco apresenta-nos uma leitura das relações da
sociedade civil angolana com o Estado e com a comunidade internacional de doadores,
procurando explicar de que forma o factor externo (ajuda e importância geo-estratégica
do país) influenciaram as dinâmicas da sociedade civil em Angola.
Anacleta Pereira centra a sua análise nas relações entre OSC internacionais e nacionais,
aponta várias deficiências e insuficiências naquelas relações, referindo-se também às
questões intergovernamentais que as afectam, apontando para a necessidade de arti-
culação com vista a um exercício de pressão sobre estruturas governativas nacionais e
internacionais para a democratização. O capítulo termina com o texto de Manuel Paulo
dedicado a um tema muito em voga, a responsabilidade social das empresas, discutindo
a sua aplicação ao contexto angolano, especialmente no que se refere ao sector extractivo
das multinacionais do petróleo.
A encerrar o livro temos o Capítulo V que faz o enquadramento regional da temática
geral da obra, trazendo à discussão os casos da África do Sul, Zimbabué, Namíbia,
Malawi, Botswana, Moçambique, Zâmbia e República Democrática do Congo.
Dale McKinley abre o capítulo argumentando que doze anos depois do chamado “mi-
lagre” sul-africano de 1994 o país é caracterizado por desigualdades sócio-económicas e
pobreza crescentes, um sistema de saúde e educação em crise. A memória histórica e o
poder simbólico da luta de libertação permitem ao ANC vincular os pobres à sua própria
opressão. Às OSC mais conscientes politicamente e independentes depara-se-lhes a opção
de traçarem um novo caminho de luta pela solidariedade colectiva. Lloyd Sachikonye
analisa o papel das OSC no contexto da luta alargada por uma maior democratização no
Zimbabué, sendo que a experiência das OSC mostra os riscos inerentes ao envolvimento
em campanhas democráticas activas com ligações a um movimento da oposição para
resistência ao autoritarismo.
Henning Melber apresenta-nos o caso da Namíbia, realçando a permanente conquista
e consolidação do poder e controlo político pelo antigo movimento de libertação – Swa-
po. Algumas OSC, ao promoverem a justiça social e os Direitos Humanos, abraçam as
grandes causas da democracia, enquanto os partidos políticos, as Igrejas, o movimento
Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade e Introdução 7

laboral e o sector privado, têm muitas vezes sido uma decepção nesse papel. Fidelis
Kanyongolo sustenta que apesar das oportunidades abertas pela democratização e pelo
novo quadro legal de 1994, a sociedade civil do Malawi não tem sido capaz de realizar
o seu potencial. Para além de constrangimentos políticos e organizacionais, existem
outros ao nível da distribuição da população entre áreas urbanas e rurais, assim como
o analfabetismo em inglês e a prevalência da lei tradicional e costumeira.
A análise apresentada por Badala Balule caracteriza a sociedade civil do Botswana
como frágil, facto que a tem impedido de influenciar eficazmente o poder político. Esta
fragilidade dever-se-á à falta de competências e à dependência em relação a fundos do
governo depois do abandono dos doadores internacionais. Manuel de Araújo e Raúl
Chambote, reflectem sobre o contributo das OSC moçambicanas para o processo de
desenvolvimento sócio-político do país desde 1990 (início do processo de democrati-
zação), notando que a actuação destas organizações se caracteriza pelo enorme peso
do factor externo e pelo incómodo causado ao poder político, factos que representam
os maiores desafios ao seu desenvolvimento.
Rueben Lifuka e Lee Habasonda procuram demonstrar que o desenvolvimento da
sociedade civil na Zâmbia tem sido um factor de encorajamento ao pluralismo, res-
ponsabilização e minimização do patrimonialismo político, influenciando o rumo da
política e da governação, favorecendo a democratização do Estado. A encerrar o capítulo,
Jean-Claude Katende defende que mau-grado todos os constrangimentos impostos pelo
poder governamental, a sociedade civil permanece ambiciosa e nela reside uma forte
esperança para a efectiva implementação dos direitos fundamentais e da democracia.
O principal desafio e obstáculo às OSC reside precisamente na sua difícil relação com o
poder político que procura dificultar a sua acção, manipulando e coagindo, especialmente
as OSC que têm preocupações públicas e consciência política.
Com esta breve apresentação da estrutura do volume pretendemos dar uma ideia
dos temas tratados pelos diferentes autores, devendo no entanto ser aqui realçado
que tal apresentação não constitui um resumo ou sequer uma síntese dos trabalhos
mencionados, mas apenas um pequeno e limitado conjunto de chamadas de atenção
para os temas desenvolvidos e que, estamos convencidos, aguçarão a curiosidade e
o interesse do leitor.
Uma última nota para referir que os pontos de vista e argumentos apresentados
nos textos constantes da presente obra são da inteira responsabilidade dos seus
respectivos autores e em momento algum poderão ser imputados às instituições
promotoras, orga­nizadoras e apoiantes do livro.
Capítulo I
A Sociedade Civil e a Política
em Angola

Textos

Nuno Vidal
&
Justino Pinto de Andrade

f
11

Política, Sectores Sociais


e Sociedade Civil em Angola1

Introdução
Nuno Vidal
Centro de Estudos
Sociais da Faculdade
A quando da independência, um processo lento mas pro-
gressivo e contínuo instala-se em Angola levando à de-
gradação da consciência pública e da solidariedade social, assim
de Economia da como à decadência dos sectores sociais que delas dependem
Universidade fortemente — educação, saúde, habitação, assistência social,
de Coimbra serviços comunitários. Uma lógica patrimonial distributiva vai-
-se disseminando a coberto de um formato dito Socialista, domi-
nando e pervertendo quaisquer princípios de colectivismo e de
consciência pública, tirando vantagem do monopartidarismo e
do autoritarismo para se impor de forma mais eficaz, afectando
essencialmente as camadas mais desfavorecidas. A maioria da
população foi gradualmente excluída dos benefícios derivados
dos recursos públicos à medida que perdia importância polí-
tica e económica no seio do sistema. Politicamente não tinha
mecanismos para expressar o seu descontentamento (votos ou
liberdade de expressão e manifestação), economicamente o seu
esforço produtivo era irrelevante para o rendimento do Estado
e para o sustento das elites governantes.
Independentemente da ideologia oficialmente professada e
contrariamente ao que por vezes se defende, esta dinâmica
tem lugar ao longo das duas administrações ditas Socialistas
(1975-1979 e 1979-1987) e vai continuar a desenvolver-se inabalá-
vel durante o processo de transição para o multipartidarismo.
No final dos anos oitenta e início dos anos noventa, a transi-
ção para o multipartidarismo e a economia de mercado trouxe
ao país um largo número de organizações internacionais,
desde organizações internacionais governamentais, a ONG,
organizações de Igrejas, de assistência e solidariedade, etc.
Redes transnacionais juntaram activistas expatriados, comu-
nidades locais e uma elite intelectual angolana marginaliza-
da, incluindo quadros médios e superiores. Unindo esforços,
começaram a trabalhar com as populações mais carenciadas
de apoio social e acabaram a assumir um crescente número
de responsabilidades do Estado nos sectores sociais, na área
da saúde, educação, saneamento básico, habitação, apoio a
deslocados internos de guerra e desenvolvimento rural. Esta
dinâmica foi reforçada pela “liberdade” civil e política trazida

1
Trabalho de investigação realizado com o apoio da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, Ministério da Ciência e Ensino Superior.
12 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

pelo novo quadro legal, propulsionando as Organizações da Sociedade Civil (OSC)


angolana, capazes de atravessar os anos noventa com uma postura política crítica e
desenvolvendo um trabalho meritório naquelas áreas, apesar de todos os constrangi-
mentos que tiveram de enfrentar.
Pelo seu lado, o governo pôde relaxar nos seus já de si reduzidos esforços para com
aqueles sectores e populações mais afectadas, embora não deixando de se empenhar
no controlo político do espaço da sociedade civil.
Vários escândalos financeiros no final dos anos noventa e o fim da guera civil em 2002
alteraram o contexto no qual as OSC operavam. À medida que a ajuda humanitária
internacional diminuía progressivamente, aumentava a pressão sobre o governo para
investir nos sectores sociais e para assumir uma postura mais transparente na gestão
das contas públicas, especialmente os rendimentos provenientes do petróleo. Contudo,
o novo contexto nacional político-militar (fim da guerra com um vencedor claro) e um
novo contexto energético internacional e regional (aumento sustentado da procura e
dos preços do crude nos mercados internacionais), permitiram ao governo resistir a tal
pressão sem alterar substancialmente a sua atitude. Pelo contrário, o principal impacto
tem-se feito sentir ao nível dos crescentes constrangimentos internos ao funcionamento
das OSC nacionais e internacionais que não optem por um qualquer nível de cooperação
com as estruturas governamentais e não refreiem o seu criticismo. Uma nova tendência
emerge no seio das OSC ditas independentes (principalmente as ONG), pressionando-as
para uma postura que se tem vindo a designar como de constructive engagement e união,
mas que as mais críticas caracterizam como de colaboracionismo, unificação, homoge-
neização apolítica, subordinação e cooptação induzida.
Enquanto isto, a situação das populações mais carenciadas não conhece melhorias
substanciais e o país continua a ocupar lugares pouco dignos no Índice de Desenvol-
vimento Humano e várias limitações quanto ao exercício efectivo e pleno dos Direitos
Humanos (DH).
Este texto discute as razões na base da degradação dos sectores sociais em Angola, o
impacto que a este nível teve o processo de transição para o multipartidarismo, as redes
transnacionais de OSC e todos os constrangimentos políticos à actuação da sociedade
civil e à efectivação do exercício pleno dos DH. Apresenta uma estrutura em três partes,
com um primeiro capítulo dedicado à análise do percurso histórico mediante o qual os
sectores sociais entraram num processo de degradação e negligência, ainda durante o
período dito Socialista; um segundo que analisa a evolução daqueles sectores ao longo
da transição para o multipartidarismo e o impacto que sobre eles tiveram as OSC e a
prática governamental; um terceiro que discute a relação entre política e sociedade civil
no contexto do sistema político efectivamente existente, debatendo duas perspectivas
contrárias no que respeita às novas propostas de relacionamento estratégico com as
estruturas governamentais.

1 – Os Sectores Sociais durante as Administrações Socialistas

1.1 – A primeira administração Socialista


Nos primeiros anos após a independência, no auge do fervor ideológico-revolucionário,
existiu algum empenho na implementação de políticas e programas de desenvolvimento
dos sectores de acção social (tal como eram designadas as áreas da educação, saúde, ha-
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 13

bitação, assistência social, serviços comunitários, etc.). Este empenho ganhou um impulso
acrescido com a chegada progressiva de centenas de cooperantes cubanos formados nestas
áreas (especialmente saúde e educação), dando um contributo precioso em termos de ca-
pacidade de gestão e organização2. Contudo, depois de uma fase inicial em que de facto
o governo mostrou alguma preocupação com estes sectores, promovendo programas e
despendendo verbas significativas nestas áreas, no fim da presidência de Agostinho Neto
já eram notórios vários sinais de contracção de despesas, conduzindo ao estrangulamento
de muitos daqueles projectos na generalidade dos sectores, iniciando um percurso de
degradação e negligência que se acentuará na administração subsequente.
Educação
A educação foi uma das prioridades do novo governo e nos primeiros anos de inde-
pendência foram implementadas com sucesso várias medidas de desenvolvimento do
sector. Houve um ingresso massivo de crianças nas primeiras quatro classes3 e foram
feitos grandes esforços no domínio da educação de adultos, especialmente no que
respeita aos veteranos das FAPLA, operários e camponeses, tendo sido alfabetizadas
cerca de 330 000 pessoas entre 1976 e 19794. Cerca de 759.000 alunos, de um total
estimado de 1.690.000 de adultos analfabetos, foram inscritos em 37.000 turmas de
alfabetização5. Foi implantado um sistema de educação integral técnico-profissional
a par do sistema de ensino superior6.
Contudo, entre 1979 e 1981, o número de crianças a estudar no ensino primário mante-
ve-se o mesmo7, o número de alfabetizados apenas aumentou em 9000 pessoas8 — um
número insignificante quando comparado com os anteriormente referidos 330.000 e
com a taxa de analfabetismo de 80% por altura da independência9. Dos 2.000 alunos
universitários inscritos em 1980 somente 180 finalizaram os seus cursos e o número
de inscritos nas aulas de alfabetização caiu dos anteriores 759.000 para 100 000 10. Es-
tes dados constituíam sinais claros de que o sector da educação começava a regredir,
numa tendência que se acentuará nos cinco anos seguintes, tal como virá mais tarde
a admitir o relatório do Comité Central ao II Congresso, em Dezembro de 198511.

Saúde
Ao nível do sector da saúde, contando com a colaboração dos médicos estrangeiros
(essencialmente cubanos, cujo número aumentou em 16,5% entre 1977 e 1980)12, o
2
Em 1977 estes cubanos eram contabilizados em cerca de 5000; Le Monde, de 9 de Novembro de 1977; também Africa
Contemporary Record – ACR, 10, 1979, p. B510.
3
Em 1979 o n.º de alunos era de 2 400 000 de crianças, quatro vezes superior ao que existia em 1973; Relatório do
Comité Central ao I Congresso Extraordinário do Partido, realizado em Luanda de 17 a 23 de Dezembro de 1980 (Luanda:
Secretariado do Comité Central, 1980), p. 80.
4
Relatório do Comité Central ao I Congresso Extraordinário … op. cit., p. 80.
5
Formaram-se 70.000 professores de alfabetização e constituíram-se 615 brigadas de alfabetização, compostas por
4.950 jovens voluntários; ACR, 14, 1983, p. B590.
6
Foi inaugurada a Faculdade de Ciências Jurídicas e Administrativas e o Instituto Superior de Ciências da
Educação. Em 1980, estudavam no ensino universitário cerca de 2000 alunos; Relatório do Comité Central ao I Congresso
Extraordinário… op. cit., pp. 80–81.
7
ACR, vol. 13, 1981, p. B651.
8
ACR, vol. 14, 1982, p. B590.
9
Somerville, Keith, Angola: Politics, Economics and Society, (London: Frances Pinter, 1986), p. 91; também Bhagavan, M
R, Angola’s political economy 1975–85 (Motala: Swedish International Development Authority, 1986), p. 9.
10
Relatório do Comité Central ao II Congresso do Partido, realizado em Luanda de 2 a 10 de Dezembro de 1985 (Luanda:
Edição do Secretariado do Comité Central, 1985), pp. 120–122.
11
Relatório do Comité Central ao II Congresso… op. cit., pp. 120–122.
12
Relatório do Comité Central ao I Congresso Extraordinário... op. cit., p. 81; também ACR, vol. 13, 1981, p. B651.
14 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

governo colocou a funcionar sob sua tutela 1260 unidades de saúde, das quais se des-
tacavam o Centro Hospitalar de Luanda13. Várias campanhas de vacinação gratuita
de crianças eram lançadas todos os anos14. Começou-se a desenvolver a assistência
extra-hospitalar, criando-se alguns centros e postos de saúde, especialmente no campo
e áreas suburbanas e implementou-se um projecto de formação de quadros paramé-
dicos (enfermeiros, parteiras e outros técnicos). 15
Contudo, a exemplo do que aconteceu com a educação, a contracção de recursos
financeiros e materiais, a par das dificuldades de transporte para as províncias e da
falta de coordenação entre sectores de importação e distribuição de medicamentos16,
ditaram a rápida regressão dos breves sucessos alcançados no sector durante os três
primeiros anos de independência17.

Habitação
A habitação tornou-se num dos mais sérios problemas sociais do novo Estado. Depois
da independência, as casas e apartamentos deixados vagos pelos portugueses que de-
bandaram para Portugal foram em parte confiscados para alojar a nova classe dirigente
e, em parte, ocupados pela generalidade da população que vivia nessas cidades em
áreas degradadas ou menos nobres (com clara prioridade para a classe média urbana).
Apesar desse movimento de ocupação, a procura por habitação foi aumentando devi-
do a diversos factores, nomeadamente o fluxo migratório de populações rurais rumo
às cidades (em consequência da guerra que afectou de sobremaneira o meio rural),
a chegada de um crescente número de assessores e quadros militares estrangeiros (a
maioria dos quais cubanos18) e o treino de novos quadros do Estado que exigiam ser
condignamente alojados19.
Para os estratos sociais mais baixos e que chegavam em número crescente à capital,
vindos das áreas rurais, a solução estava naturalmente na ampliação e construção de
novos musseques, que alastraram vertiginosamente em redor das cidades, especialmente
em Luanda, num processo que se iniciou em 1976/7720 e se acentua até hoje. Entre
os primeiros grupos a chegar em números significativos à capital encontravam-se os
Bakongo retornados do Zaire — contabilizados em cerca de 200.000 logo em 1977.21

13
O Centro Hospitalar de Luanda era constituído por 8 hospitais, 16 centros provinciais, 32 hospitais municipais,
16 centros materno-infantis, 16 leprosarias e 6 sanatórios anti-tuberculose; Relatório do Comité Central ao I Congresso
Extraordinário... op. cit., 1980, p. 81; também ACR, 13, 1982, p. B651.
14
A título de exemplo, para assinalar o Dia Mundial da Saúde (7 de Abril de 1977), 1,5 milhões de crianças foram
vacinadas contra a poliomielite; ACR, 10, 1979, p. 508.
15
Relatório do Comité Central ao I Congresso Extraordinário... op. cit., 1980, p. 81.
16
Graves falhas na distribuição de medicamentos emergiram um pouco por todos o país, tal como relatado em “Principais
resultados do desenvolvimento económico-social da RPA no triénio 1978-1980”, in Orientações Fundamentais para o
Desenvolvimento Económico e Social para o período 1981-1985 (Luanda: Secretariado do Comité Central, 1980), p. 25.
17
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, pp. 123–125; também relatando problemas no sector da
saúde está o artigo de David Lamb no Los Angeles Times, de 3 de Dezembro de 1978; ver no mesmo sentido Herald
Tribune, de 6 de Dezembro de 1978.
18
O número oficial de militares cubanos não foi tornado público, mas estimava-se que em 1978 fosse de 19.000; in
ACR, vol. 11, 1980, p. B493. Tal como referido, logo em 1977, o número de cubanos civis em Angola ao abrigo de
acordos de cooperação (económicos, científicos, culturais, técnicos, etc.) era de 5.000; Le Monde, de 9 de Novembro
de 1977; também ACR, 10, 1979, p. B510.
19
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism in Africa: the genesis and development of the Angolan political-economic system,
1961-1987 (London: King’s College, 2002), a PhD thesis.
20
ACR, 15, 1984, p. B597; estamos obviamente a falar da expansão e construção de novos musseques, porque tal
como é sabido, os musseques existem desde o período colonial.
21
Bhagavan, M R, Angola’s… op. cit., p. 24.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 15

Para alojar quadros médios e superiores do partido e do Estado, que pressionavam


por habitações, ainda se construíram algumas dezenas de blocos de apartamentos em
Luanda no final dos anos setenta e início dos anos oitenta, ao abrigo da cooperação
com Cuba. Contudo, o sector da construção habitacional não foi além daqueles blo-
cos e rapidamente estagnou por completo, tendo sido o sector informal (anárquico) a
preencher a necessidade de habitação, passando-se à designada “auto-construção”22,
mediante a qual se construíram milhares de anexos nos quintais das vivendas de
Luanda, ou mesmo nos terraços dos prédios.
Assistência Social
Ao nível da assistência social, vários projectos nacionais foram discutidos e começaram
a ser implementados sob pressão de comissões de trabalhadores e comissões de bairro,
assim como alguns comités de jovens e organizações de massas, incluindo creches para
filhos de mulheres trabalhadoras, apoio sócio-económico para antigos guerrilheiros,
viúvas e órfãos de guerrilheiros, casas de repouso para idosos e mutilados e campos
de refugiados para aqueles que fugiam da guerra23. Em 1977, cerca de 50.000 refugia-
dos Namibianos, alvo de ataques dos sul-africanos, foram transferidos do Sul para
o Norte, tendo sido criados novos campos para o efeito; nas províncias do Nordeste
(Lunda Sul e Lunda Norte), construíram-se campos para cerca de 18.000 refugiados
do Shaba (Zaire) e várias outras iniciativas deste tipo foram assumidas para apoiar
centenas de milhares de Angolanos deslocados de guerra24.
Contudo, logo no final de 1977 e início de 1978, os fundos para apoiar tais iniciativas
começaram a diminuir e os primeiros sinais de negligência emergiram25. Como alter-
nativa, e especialmente devido à forte pressão dos refugiados e deslocados de guerra
internos, o governo angolano intensificou os seus pedidos de apoio a várias organi-
zações internacionais, como o sistema das Nações Unidas (UNHCR, UNICEF, WHO,
FAO, WFP), a Liga das Sociedades da Cruz Vermelha e países Nórdicos europeus
como a Suécia e a Noruega26. Montantes muito significativos de ajuda humanitária
a Angola começam a chegar logo nesta altura (finais de 1977 e 1978), quando os pri-
meiros sintomas de colapso nos sectores sociais se tornaram evidentes27. Estes foram
os primeiros sinais de uma tendência que se vai reforçar em 197928 e ainda mais nos
primeiros cinco anos da década de oitenta, como veremos mais à frente neste texto. No
que se refere aos resultados dos programas do governo iniciados após a independência,
o congresso de 1980 do MPLA vai simplesmente limitar-se a uma mera declaração de
intenções futuras sem apresentar nada em concreto29.

22
“Principais resultados do desenvolvimento económico-social da RPA no triénio 1978-1980”… op. cit., p. 25.
23
“Principais resultados do desenvolvimento económico-social da RPA no triénio 1978-1980”… op. cit.
24
UNHCR publication, (5 October 1977), p. 2; também ACR, 14, 1983, p. B590.
25
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism in Africa… op. cit., pp. 230-231.
26
UNHCR publication, (5 October 1977), p. 2; O UNHCR reuniu uma quantia de US$1.2 milhões para o seu programa
de emergência de 1977 e mais 4,1 milhões para financiar a fase de alívio de 1978. Um programa de assistência de
longo prazo seguir-se-ia; Ibid., p. 2.
27
ACR, 14, 1983, p. B590. O início da ajuda humanitária em Angola data desta altura e vai acentuar-se fortemente
no primeiro quinquénio de 1980, muitos anos antes de 1987 – data indicada em Messiant, Christine (2001) “A propos
des ‘transitions démocratiques’ notes comparatives et préables à l’analyse du cas angolais”, in Revista Africana Studia,
n.º 2, Universidade do Porto, p. 84, nota de rodapé 54.
28
ACR, 14, 1983, p. B590.
29
Relatório do Comité Central ao I Congresso Extraordinário... op. cit., 1980, pp. 93-94.
16 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Serviços Comunitários
Ao nível dos serviços comunitários, paralelamente às responsabilidades principais
atribuídas aos comissariados provinciais (actuais governos provinciais), várias tarefas
foram acometidas aos grupos da Organização de Defesa Popular (ODP). Além da sua
natureza de força para-militar, estes grupos assumiam tarefas de serviço comunitário
nas respectivas províncias, comunas, bairros e povoações (reparação e conservação
de escolas, hospitais, estruturas viárias, de saneamento básico, etc.). Para além das
ODP e dos comissariados, nos primeiros anos de independência (1975-1977), eram
relativamente comuns os apelos governamentais/partidários ao trabalho cívico vo-
luntário em dias específicos do mês para limpeza de ruas; estas actividades tiveram
inicialmente alguma adesão e sucesso30.
No entanto, logo em 1978, tanto os comissariados, como a ODP, como as actividades
voluntárias, começaram a revelar-se ineficazes e os serviços comunitários entraram
em acentuada degradação, nas províncias e na cidade capital. Em 1978, Luanda era
descrita como tendo caído “num esfarrapado e sujo estado de degradação”, “em deca-
dência, com lixo e entulho em ruas esburacadas”, com uma “crónica e cada vez mais
acentuada falta de água, electricidade, saneamento básico, escoamento de esgotos e
recolha de lixo” 31.
Em suma e no conjunto, a análise dos sectores sociais durante a presidência de Agosti-
nho Neto revela uma preocupação inicial e empenho efectivo do governo e do partido,
que nesse sentido desenvolvem medidas concretas. No entanto, antes mesmo da sua
morte (Setembro de 1979), os primeiros sinais de regressão nestes sectores começaram
a emergir. A questão que se coloca é a de saber porquê?
A resposta padrão é de que tal situação se deveu ao esforço de guerra e ao aumento da
importação de bens de consumo e de equipamento (e esse foi em parte o argumento
oficial utilizado32). Contudo, se tal aumento de despesas deve ser reconhecido, não pode
ser assumido como a principal razão para o súbito colapso (final de 1977 e 1978) por três
razões principais. Primeiro, aquele período também coincidiu com o aumento da produ-
ção de petróleo em Angola e com o dramático aumento do preço do barril de crude (de
US$12 o barril em 1974 para US$28 em 1979)33, representando um rendimento médio de
cerca de 1 bilião de US$/ano entre 1975 e 198034. Segundo, as despesas com armamento
permaneceram relativamente constantes nos finais da década de setenta (em torno de
US$500 milhões por ano) e somente aumentaram significativamente no início dos anos
oitenta35. Por fim, aqueles serviços não dependiam exclusivamente do Estado, apoiando-
-se também e significativamente no trabalho voluntário e no empenho comunitário da
população em geral. Assim, uma diferente explicação deve ser procurada36.

30
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism in Africa… op. cit., pp. 231-232.
31
Relatado por David Lamb ao Los Angeles Times, de 3 de Dezembro de 1978, também no mesmo sentido ver artigo
em The Sunday Telegraph, de 25 de Junho de 1978.
32
Acerca do uso do argumento da guerra para justificar o insucesso em alcançar vários objectivos sócio-económicos
para o triénio de 1977-1980 ver Relatório do Comité Central ao I Congresso Extraordinário... op. cit., 1980, p. 83.
33
Shell Bulletin SBS (1986).
34
Hodges, Tony, Angola from Afro-Stalinism to Petro-Diamond Capitalism (London: James Currey, 2001), p. 2.
35
Collelo, Thomas (ed.), Angola, a Country Study (Washington: Federal Research Division, 1991), p. 234.
36
Mesmo abordando o impacto da guerra de um ponto de vista estritamente económico, a guerra per se não explica
o declínio da produção, tal como explicado por Ferreira, Manuel Ennes, A Indústria em tempo de Guerra (Angola,
1975–91) (Lisboa: Edições Cosmos/IDN, 1999) ou Ferreira, Manuel Ennes, “Angola: conflict and development,
1961-2002” in The Economics of Peace and Security Journal, Vol. 1, N.º 1, 2006, pp. 25-29.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 17

Da perspectiva do governo, o declínio dos serviços sociais parece estar relacionado


com a emergência de um fenómeno mediante o qual as elites governantes se sentiram
progressivamente mais “confortáveis” em negligenciar a população em geral e isto
devido a duas razões principais. Primeiro, começaram a sentir-se bastante seguras
em termos económicos, com uma renda petrolífera crescente que não dependia
dos esforços produtivos da população em geral. Segundo, sentiram-se igualmente
seguros porque, por um lado, a população não tinha votos para expressar politica-
mente o seu descontentamento para com um partido fortemente controlado (após
um processo de purga e rectificação37), municiado de uma temível polícia política e
manipulando o sistema judicial; por outro lado, na medida em que a UNITA estava
cada vez mais activa militarmente, o governo poderia sempre contar com o apoio
derivado do medo em relação ao desconhecido — o inimigo —, percebido como
uma ameaça à cultura e modo de vida características da grande aliança Creolos/
MBundus no coração do MPLA38.
Da perspectiva da população em geral (aqueles que era suposto participarem no tra-
balho voluntário), as razões para a falta de empenho comunitário parecem também
ser essencialmente duas. Primeiro, tem a ver com a repressão que se seguiu ao 27 de
Maio de 1977, essencialmente dirigida contra uma revolucionária e ideologicamente
fervorosa geração envolvida em comités políticos de jovens (normalmente preocupa-
dos e empenhados com políticas sociais); este processo também minou a actividade
independente de comités de trabalhadores e de bairro, sindicatos e organizações de
massas (inicialmente ligados aos comités de jovens em termos de iniciativas sociais)39.
Segundo, o declínio do serviço social parece estar relacionado, por um lado, com a
desilusão geral de que afinal a riqueza de Angola, anteriormente explorada pelos
portugueses, não seria partilhada por todos40 e, por outro lado, com a crescente aus-
teridade que forçou a maioria a recorrer às actividades informais para compensar a
perda de poder de compra dos salários. Tal como afirma Zenha Rela:
[O 27 de Maio terá sido] o fim do estado de graça do poder em relação à mobilização
popular, o despertar do estado de euforia que até então se vivia, a tomada de consciência
das dificuldades quotidianas e uma transformação de mentalidade que é fundamen-
tal: a resolução dos problemas que até aí era generalizadamente encarada como
uma acção colectiva (…) passa a ser um problema de cada um, já que é cada um

37
Vidal, Nuno “Multipartidarismo em Angola” in Vidal, Nuno & Pinto de Andrade, Justino (eds.), O processo de
transição para o multipartidarismo em Angola (Luanda e Lisboa: Firmamento, 2006), pp. 11-57.
38
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism in Africa… op. cit., pp. 224-226; ver também Messiant, Christine, “Angola, les
voies de l’ethnisation et de la décomposition — I — de la guerre à la paix (1975–1991): le conflit armé, les interventions
internationales et le peuple angolais”, in Lusotopie, 1 (1994) pp. 155–210, especialmente p. 169; também Messiant,
Christine, “MPLA et UNITA, processus de paix et logique de guerre”, in Politique Africaine, 57 (1995) p. 46; Messiant,
Christine, “Angola: entre guerre et paix”, in Marchal, Roland and Messiant, Christine, Les chemins de la guerre et la
paix: fins de conflit en Afrique orientale et australe (Paris: Karthala, 1997), p. 169; também Heywood, Lynda, Contested
Power in Angola, 1840’s to the Present (New York: University of Rochester Press, 2000), p. 152.
39
Não é aqui possível explicar o fenómeno politico e sociológico dos comités de jovens e o impacto da tentativa de
golpe de 27 de Maio de 1977; para uma explicação mais acurada ver Mabeko-Tali, Jean-Michel, Dissidências e poder
de Estado: o MPLA perante si próprio (1962-1974), 2 volumes (Luanda: editorial N’Zila, 2001); também Vidal, Nuno,
Post-modern patrimonialism in Africa… op. cit., chap. 5.
40
A este respeito ver por exemplo, Carreira, Iko, O Pensamento estratégico de Agostinho Neto (Lisboa: Dom Quixote, 1996),
p. 148. Também apoiando o mesmo argumento de uma diferente concepção de independência entre os estratos sócio-
económicos mais baixos, baseada essencialmente nas expectativas de distribuição de benefícios materiais, está Daniel
Chipenda numa entrevista pública à Rádio Nacional de Angola, programa Foi há vinte anos, de 17 de Junho de 1995.
18 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

que tem de resolver os seus problemas; se estes só puderem ser resolvidos através de
“esquemas” então que cada um tente arranjar os seus…41 [meu negrito].
Na maioria dos casos os esquemas consistiam em encontrar rendimentos alternativos por
via da produção para, ou articulação com, o mercado paralelo ou informal, levando ao
absentismo e falta de pontualidade nos locais oficiais de trabalho. Começaram de igual
modo a verificar-se uma série de desvios de bens do mercado oficial para o informal, assim
como a venda de serviços públicos. Estas práticas alastravam e envolviam também diri-
gentes e responsáveis, conforme atestam os próprios documentos do partido que fazem
o balanço da primeira administração Socialista:
Considerando que o roubo, a candonga, a especulação e a delapidação dos bens sociais
constituem práticas anti-económicas (…); Considerando a prática individual ou or-
ganizada em redes de desvios e de roubos nos portos e aeroportos e caminhos de ferro,
fábricas, armazéns e lojas, o armazenamento de bens desviados e roubados para alimentar
os mercados paralelos ilegais, a utilização especulativa dos meios de transporte priva-
dos e mesmo estatais, a venda especulativa de bens alimentares e bens industriais em
mercados legais e ilegais, nas ruas e em domicílios; a aquisição de bens para revenda a
preços especulativos (...) a venda especulativa de bens alimentares de produção caseira;
a destruição dos bens do povo, nomeadamente dos meios de transporte, sem a devida
sanção dos infractores; (…) Considerando que estas situações se agravam dia após dia
pela corrupção, pelo proteccionismo e liberalismo de dirigentes e responsáveis, pela ino-
perância dos mecanismos de prevenção e repressão e pela falta de controlo generalizado
sobre os bens do povo; (…) Considerando que a situação acima mencionada, que mostra
tendência para a generalização, afecta necessariamente a situação de classe das massas
trabalhadoras (…). O congresso chama especial atenção para a necessidade de punir em
especial os dirigentes, responsáveis, técnicos, agentes da Defesa e Segurança e todos os
trabalhadores do sector estatal em geral, que pratiquem, encubram ou sejam cúmplices,
ou por qualquer outra forma estejam ligados às práticas contra-revolucionárias objecto
da presente resolução42.
Estes começam a ser sinais claros de diluição da consciência pública. O resultado ime-
diato manifestou-se no declínio progressivo nos sectores sociais durante o período de
1977-1979. Consequentemente, não só se deterioraram as condições de vida da maioria
da população (ao nível da educação, serviços de saúde, habitação, segurança social
e serviços comunitários), como também se agravaram as perspectivas das gerações
subsequentes em termos de progressão profissional e sócio-económica (sujeitas a
uma menor esperança média de vida, que continuou a regredir até aos dias de hoje,
e a uma falta de oportunidades de ascensão social por via da educação). A médio e a
longo prazo, tal declínio significou uma crescente fragilidade económica e social pa-
ra os estratos mais baixos da população (a maioria), ou seja, todos aqueles que mais
necessitavam de apoio social.

1.2 – A segunda administração Socialista


Durante a segunda administração Socialista, sob a presidência de Eduardo dos Santos

41
Zenha Rela, José Manuel, Angola entre o presente e o futuro (Lisboa: Escher, Agropromotora, 1992), p. 53.
42
Resoluções e Mensagens do I Congresso Extraordinário do MPLA-PT, (Luanda: Secretariado do Comité Central, 1980)
pp. 39-41; ver no mesmo sentido, “Principais resultados do desenvolvimento económico-social da RPA no triénio
1978-1980”… op. cit.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 19

(1979-1987)43, assistiu-se ao aprofundar da tendência de degradação dos sectores sociais


que se começara a verificar no final da presidência de Neto.
Tal como foi claramente reconhecido pelo relatório do Comité Central ao II Congresso
do partido, em 1985, os sectores sociais conheceram um agravamento da sua situação
entre 1980 e 1985.

Educação
A educação declinou claramente em relação aos sucessos iniciais dos primeiros anos
da independência:
apesar dos esforços desenvolvidos, verificou-se uma baixa rentabilidade do sistema de
educação e ensino (...) O processo de alfabetização, que tantos êxitos alcançou nos pri-
meiros anos da independência, apresenta também sintomas de regressão44

Saúde
Os serviços de saúde também se deterioraram rapidamente com reflexos imediatos
ao nível do aumento da propagação de doenças:
A deterioração acentuada que se verificou na 1.ª fase do quinquénio traduziu-se numa evo-
lução negativa dos indicadores disponíveis, nomeadamente o de cobertura sanitária (...)
assim como dos indicadores de morbilidade das principais doenças transmissíveis45.

Habitação
O sector da habitação estava estagnado e incapaz de fazer face à procura:
É um facto que sem a construção de novas habitações e sem o acabamento dos edifícios
herdados em fase de construção, não é possível resolver o problema da habitação; por
outro lado, os imóveis já habitados, nomeadamente os que são património do Estado, não
têm beneficiado da manutenção regular, constatando-se mesmo uma certa degradação,
o que torna a situação ainda mais complexa46

Assistência Social
Apesar da substancial ajuda internacional, o governo era incapaz de financiar e im-
plementar as suas políticas no que se refere às populações deslocadas e à integração
de populações regressadas:

43
Ainda que oficialmente a adesão a um sistema de economia de mercado e multipartidarismo tenha sido somente
aprovada em 1990 (III congresso do MPLA), o início desse processo de mudança poderá ser encontrado em 1987, ver
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism… op. cit.; o mesmo é reconhecido por outros autores, ver também neste sentido
Messiant, Christine, “À propos des ‘transitions démocratiques’, notes comparatives et préalables à l’analyse du cas
Angolais”, in Africana Studia, 2 (2000), pp. 61–95; também Hodges, Tony, Angola from Afro-Stalinism… op. cit.
44
Relatório do Comité Central ao II Congresso… op. cit., p. 121. De acordo com Mohanty, “De 1980 a 1985 houve um
decréscimo no n.º de alunos no ensino primário (10% anualmente) e no n.º de professores (14% anualmente) em
média”; Mohanty, Susama, Political Development and Ethnic Identity in Africa, a study of Angola since 1960 (London:
Sangam Books, 1992), p. 209. No período de 1980 a 1985, a educação representou 2% dos gastos totais em divisas
do país; Ibid. p. 209.
45
Relatório do Comité Central ao II Congresso… op. cit., p. 123. “a Saúde, como a educação, correspondem a 2% do total
de divisas do país gastas durante 1980-85”; Mohanty, Susama, Political Development… op. cit., p. 209.
46
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 128.
20 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Ao nível do apoio às populações deslocadas e da integração das populações regressadas,


tem havido dificuldades na materialização das orientações traçadas (…) Apesar do elevado
volume da ajuda internacional, os recursos concedidos têm sido insuficientes47

Serviços Comunitários
Quanto à decadência dos serviços comunitários ligados aos comissariados, o relatório
simplesmente admitia que:
(…) não foram, durante o quinquénio, providos dos meios necessários à sua actua-
ção48
Este panorama geral de deterioração dos sectores sociais (numa altura de graves ne-
cessidades face ao agravamento das condições sócio-económicas e à intensificação da
guerra) teve efeitos imediatos e dramáticos nos estratos sócio-económicos mais baixos,
não só nas áreas rurais (onde 500 a 700 mil deslocados internos se encontravam numa
situação de necessidade crítica de assistência social49) mas também nas áreas urbanas,
onde existia uma necessidade desesperada de água potável50 e de limpeza das ruas e
onde os sistemas de saneamento básico haviam simplesmente entrado em colapso51.
Doenças como a febre-amarela e a cólera reapareceram de forma assustadora. Em 1985,
a cólera foi responsável pela morte de 4.000 pessoas só na cidade de Luanda52 e cerca
de uma em cada quatro crianças morria53.
O principal argumento oficial utilizado para justificar tal colapso voltava a basear-se
na difícil situação financeira resultante do crescente esforço de guerra:
A actividade no domínio social durante o quinquénio reflectiu as dificuldades mais
gerais da situação político-militar e da evolução económico-financeira, e foi também
afectada pelas limitações orçamentais, cambiais e de investimentos que tiveram de ser
tomadas54
De facto, as despesas com armamento duplicaram em 1980 (aumentando para mais
de US$1 bilião55) e em 1983 estimava-se que Angola havia gasto cerca de 50% das

47
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 125.
48
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 128.
49
De acordo com as Nações Unidas em 1985, “Estima-se que mais de 500.000 pessoas se encontram em situação de
necessidade crítica de assistência, sobretudo nas províncias do Norte, Centro e Sul (…) Muitas pessoas deslocadas
estão em grave necessidade de roupa, cobertores e abrigo; Africa Emergency – UN Office for Emergency Operations
in Africa, de Junho de 1985. Sob o clarificador título de “Les stigmates d’un effondrement”, Jean-Claude Pomonti
relatava que ‘‘O Comité Internacional da Cruz Vermelha, que dispõe de informação local, estima a situação como
‘muito grave’. No planalto central (...) encontra-se a maioria das 467.000 ‘pessoas deslocadas’ segundo os cálculos
oficiais angolanos. De facto, outras fontes dão conta, para o conjunto do território, de 700.000 refugiados do interior,
ou seja, cerca de um habitante em cada dez’’; Le Monde, de 28 de Janeiro de 1981.
50
Artigo de Jean-Claude Pomonti sob o título de “Les stigmates d’un effondrement”, Le Monde, de 28 de Janeiro de
1981; o mesmo problema de falta de água é relatado por Quentin Peel, Financial Times, de 14 de Setembro de 1981.
51
Artigo de Jean-Claude Pomonti sob o título de “Les stigmates d’un effondrement”, Le Monde, de 28 de Janeiro de 1981;
também realçando a situação de sujidade e decadência de Luanda está o relatório de Michael Holman, Financial Times,
de 21 de Junho de 1982. Referindo-se a 1982, uma descrição destes problemas pode também ser encontrada no romance
de Pepetela, A Geração da Utopia (Lisboa: Dom Quixote, 1992), pp. 212-213, 234, 236-237.
52
De acordo com técnicos ocidentais da ajuda, “foi um milagre que não tivessem morrido mais pessoas”; artigo de
Paul Betts, Financial Times, de 21 de Setembro de 1987.
53
Africa Emergency – UN Office for Emergency Operations in Africa, June 1985.
54
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 120.
55
Até então aquela despesa tinha-se mantido estável (em torno dos US$500 milhões por ano no final da década de
1970); Collelo, Thomas, ed., Angola,… op. cit., p. 234.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 21

suas receitas em divisas com a defesa56. Contudo, tal explicação não pode ser tomada
à letra, porque o próprio relatório acabava por contradizê-la, uma vez que apesar de
reconhecer a situação caótica nessas áreas estabelecia como principal objectivo, para a
futura política social, uma redução dos gastos, tendo por base o argumento de que:
[Foram] tomadas algumas medidas e outras estão em estudo para diminuir a dependência
destes sectores do Orçamento Geral do Estado e para que os utentes e beneficiários atribuam
o valor devido a alguns serviços que o Estado lhes proporciona57
Por outras palavras, a negligência do governo em relação aos sectores sociais (afectando
essencialmente os pobres) passaria a ser a norma, independentemente de quaisquer
possíveis aumentos nas receitas do Estado ou diminuição das despesas — desta forma
quebrando qualquer relação futura entre política social e rendimento do Estado. Deste
modo a questão óbvia é a de saber porquê?
Da perspectiva das elites governantes, a resposta aqui fornecida está relacionada com
a tendência já verificada durante a presidência de Agostinho Neto: os estratos sociais
mais afectados pela negligência das políticas sociais tinham cada vez menos significado
económico e político. Economicamente, as elites governantes eram mais autónomas que
nunca em relação ao esforço produtivo das “massas”. Politicamente, praticamente já não
existiam mecanismos formais por meio dos quais a população pudesse expressar a sua
insatisfação para com o governo, dado o domínio do partido único num regime com
fortes mecanismos autoritários, repressivos e elitistas e que de 1982 em diante passou
a ser estreita e pessoalmente controlado pelo Presidente58. Para além do mais, o regime
poderia sempre contar com algum apoio político de vastas franjas populacionais (es-
sencialmente camadas urbanas sócio-culturalmente identificadas com o MPLA), devido
ao medo e à ameaça representada pela UNITA, cada vez mais activa do ponto de vista
militar numa guerra a assumir tonalidades étnicas reforçadas nos anos oitenta.
Por outro lado, tal como já se tinha tornado óbvio no final da presidência de Neto,
existiam vários doadores internacionais dispostos a financiar iniciativas e programas
sociais para salvar as pessoas da fome e das doenças. Assim, o governo intensificou
os seus pedidos de ajuda internacional durante os primeiros cinco anos da década de
oitenta, tendo recebido respostas positivas de vários países e organizações, nomea-
damente: UNDP, UNHCR, UNICEF, FAO, WFP, UNESCO, ILO, WHO, assim como
das agências de desenvolvimento e cooperação dos países Nórdicos e ocidentais, da
Comunidade Económica Europeia59 e da Cruz Vermelha Internacional (que desde 1981

56
ACR, vol. 15, 1984, p. B594.
57
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 120.
58
Vidal, Nuno, Post-modern patrimonialism… op. cit., cap. 10; também Vidal, Nuno, “The Angolan regime and the move to
multiparty politics”, in Chabal, Patrick & Vidal, Nuno, Angola, the weight of history (London: Hurst, 2007), pp. 124-174.
59
“A RPA tem beneficiado da ajuda e assistência de organismos não governamentais e das agências especializadas das Nações
Unidas, com particular destaque para o PNUD, UNICEF, HCR, FAO, PAM, UNESCO, OIT, OMS, em numerosos projectos
de desenvolvimento económico e social. É igualmente de destacar a assistência prestada pelas agências da cooperação para o
desenvolvimento dos Países Nórdicos e dos Países Baixos no financiamento e execução de muitos outros projectos importantes.
Em várias ocasiões a RPA beneficiou da ajuda alimentar de emergência da CEE e de alguns países Ocidentais, numa contribuição
para minorar os problemas de abastecimento às populações afectadas pela seca e pelos efeitos da guerra”; Relatório do Comité
Central ao II Congresso… op. cit., p. 140. Em Junho de 1982, a FAO anunciou que iria dar US$21 milhões a Angola; Rádio
Nacional de Angola, de 6 de Junho de 1982, cit. in SWB – Summary of World Broadcasts, British Broadcasting Corporation
Monitoring, de 8 de Junho de 1982; Três anos mais tarde, em 15 de Janeiro de 1985, a mesma organização anunciou
que se previa que Angola tivesse de importar cerca de dois terços do seu deficit de comida para 1984-1985 e que tinha
assegurado a ajuda para a maioria desse deficit (71.000t do total de 83.000t); cit. in ACR, vol. 17, 1986, p. B621. Como
vemos, o apoio humanitário era já bastante significativo no primeiro quinquénio da década de oitenta.
22 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

vinha ajudando a alimentar milhares de pessoas nas províncias mais afectadas60).


Neste sentido, a estratégia governamental futura, para as áreas de acção social, ficou
oficialmente traçada nesse mesmo relatório do Comité Central de Dezembro de 1985,
percebendo que existia toda uma panóplia de fontes de recursos dispostas a financiá-
-las a fundo perdido:
O recurso à cooperação internacional para complementar os recursos internos disponí-
veis e para acelerar o ritmo da reconstrução nacional e do desenvolvimento económico
e social, constitui uma necessidade objectiva61
Como consequência da nova política e apesar do acentuado incremento das receitas
do petróleo (que praticamente duplicaram em 1987)62, a ajuda de emergência solicitada
pelo governo aumentou de US$96.1 milhões em 198563 para US$116 milhões em 198764.
Começava a tornar-se cada vez mais claro que os gastos com os sectores sociais não
estavam relacionados com a disponibilidade de recursos internos.
Do ponto de vista do funcionamento dos serviços públicos, do empenho comunitário
e da consciência pública, a situação agravou-se, tendo-se confirmado a perspectiva de
generalização apresentada no final da administração de Neto: com o crescimento expo-
nencial do mercado paralelo a que um número cada vez maior de pessoas se dedicava
com o desvio de bens públicos e de trabalho do mercado oficial para o informal.
No domínio económico e social, é notória a tentativa de consolidação das posições econó-
micas da pequena burguesia, através do açambarcamento, da corrupção, da especulação,
do suborno, da exploração da força de trabalho, do roubo dos recursos naturais e até da
transacção do património cultural65.
(…) a falta de controlo e o roubo e desvio de grandes quantidades de mercadorias, contri-
buíram para dificultar o processo de abastecimento à população66.
Observadores estrangeiros constatavam o mesmo fenómeno:
O roubo e a corrupção começaram a fazer incursões nos valores morais da classe tra-
balhadora e gestora. A grave escassez de comida e bens essenciais de consumo que têm
persistido nos últimos anos valorizaram estes bens. Podem ser trocados por outros bens
procurados ou vendidos a preços extremamente elevados em Kwanzas, no mercado
paralelo. Esta tentação provou-se demasiado forte para secções da classe trabalhadora
e gestora. Os bens são surripiados dos portos, aeroportos, armazéns, lojas do governo,
etc. Os trabalhadores do porto são conhecidos por se apropriarem de todo o tipo de bens
da carga dos navios que descarregam nos portos de Luanda e Lobito. Isto é praticado
com a conivência dos seguranças que recebem também uma parte. (…) Do outro lado do
espectro social, é fortemente presumido que alguns quadros superiores do Estado e alguns
ministros foram apanhados a acumular largas somas de dinheiro em divisas no exterior

60
“O governo foi confrontado com a necessidade de alimentar muitas centenas de milhar no planalto central. Tem sido capaz de
fazer face a esta necessidade com a ajuda da Cruz Vermelha Internacional e outros doadores estrangeiros, que têm feito voos de
abastecimento de comida a partir do porto de Luanda desde 1981”; Bhagavan, M. R. Angola’s… op. cit., p. 20.
61
Relatório do Comité Central ao II Congresso... op. cit., 1985, p. 146.
62
O rendimento annual de petróleo de Angola quase duplicou, dos anteriores US$1.1 biliões em 1986 para US$2
biliões em 1987; Hodges, Tony, Angola from Afro-Stalinism… op. cit., p. 2.
63
Africa Emergency – UN Office for Emergency Operations in Africa, Junho de 1985.
64
Relatado por Paul Betts ao Financial Times, de 14 e 21 de Setembro de 1987.
65
Relatório do Comité Central ao II Congresso… op. cit., p. 68.
66
Relatório do Comité Central ao II Congresso… op. cit., p. 94.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 23

através de obscuros negócios de importação, assinatura de contratos de fornecimento


com companhias estrangeiras e tráfico de diamantes67

2 – Os Sectores Sociais e a Transição para o Multipartidarismo


Com o fim do modelo Socialista e a transição para o multipartidarismo, a revisão
constitucional de 1991 (lei 12/91) instituiu um Estado democrático de Direito68 e o
novo enquadramento jurídico consagrou os usuais direitos, liberdades e garantias
fundamentais69 e abriu espaço ao surgimento de partidos políticos da oposição e das
chamadas Organizações da Sociedade Civil – OSC70.
Houve uma chegada massiva de organizações internacionais ao país (Organizações Inter-
nacionais Governamentais – OIG, ONG, Igrejas, Instituições de Caridade, Solidariedade,
Assistência, etc.). Era tempo de pensar sobre reconstrução e desenvolvimento e surgem
assim vários projectos e estratégias, acompanhados de inúmeros activistas e técnicos
expatriados e significativas verbas para financiamento destes projectos. Tinham em
comum uma perspectiva mais democrática — participativa — do desenvolvimento.
2.1 – A cooperação entre activistas internacionais e nacionais
e a reabilitação dos sectores sociais
Um importante grau de cooperação emergiu entre os que chegavam e todos aqueles
internamente empenhados no desenvolvimento da sociedade civil. Esta aliança era
benéfica para ambos os lados: os que chegavam necessitavam de conhecimento e
competência local para os ajudar no planeamento, implementação e desenvolvimento
dos seus projectos; as organizações locais necessitavam de parceiros externos, cujo
apoio (financeiro, institucional e de capacidade técnica) era vital para a sua luta pela
sobrevivência, numa sociedade controlada em todos os sectores por um partido/
Estado autoritário71.
O novo mercado de trabalho, assim criado, ofereceu uma oportunidade alternativa para
muitos quadros médios e superiores mal pagos no seio da administração estatal (qua-
dros técnicos, académicos, intelectuais, funcionários públicos, etc.), que se encontravam
profissionalmente frustrados, politicamente silenciados e socialmente reprimidos por
um regime que os mantinha economicamente dependentes e politicamente subjuga-
dos desde 1977. Começaram a veicular algum criticismo contra os abusos do regime,
denunciando as condições de vida miseráveis da maioria da população, a negligência
dos sectores sociais e advogando o respeito pelos Direitos Humanos.

67
Bhagavan, M R, Angola’s… op. cit., p. 41. Reportando-se a 1982, várias referências interessantes a tal tipo de esquemas
e corrupção exercidos por todos os estratos sociais podem ser encontradas em Pepetela, A Geração da Utopia (Lisboa:
Dom Quixote, 1992) pp. 193, 200-202, 211-212, 222-223.
68
Revisões constitucionais para transformarem a Constituição num novo quadro politico e económico: Lei 12/91,
Diário da República – DR, I série, n.º 19, de 6 de Maio de 1991; assim como Lei 23/92, DR, I, 38, de 16 de Setembro
de 1992.
69
A revisão constitucional aprovou os princípios básicos de uma democracia multipartidária e a legislação
complementar assegurou a liberdade de associação (Lei 14/91), de reunião e manifestação (Lei 16/91), de imprensa
(Lei 22/91) de greve (Lei 23/91), de criação de partidos políticos (Lei 20/91), de radiodifusão independente (Lei
9/92).
70
Até 1991 a ausência de OSC independentes do poder politico significava que as Igrejas eram as vozes isoladas
na defesa dos Direitos Humanos; ver Vidal, Nuno, “Social Neglect and the Emergence of Civil Society”, in Chabal,
Patrick & Vidal, Nuno, Angola, the weight of history (London: Hurst, 2007), pp. 200-235.
71
Vidal, Nuno, “Social Neglect... op. cit., (London: Hurst, 2007), pp. 200-235.
24 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

De forma progressiva, a sociedade civil angolana começou a ganhar ímpeto, tendo


o número de organizações aumentado acentuadamente, criando-se um fórum para
a coordenação das ONG nacionais (FONGA – Fórum das ONG Angolanas) e outro
para a coordenação das internacionais (CONGA – Comité das Organizações Não
Governamentais em Angola).
À medida que a guerra recrudescia, a actuação das OSC centrava-se cada vez mais na
ajuda humanitária, mas em vários casos articulada com uma multiplicidade de peque-
nos projectos de desenvolvimento (e.g. projectos de food for work do WFP com projectos
agrícolas e de desenvolvimento comunitário). Esta postura ajudou a disseminar uma
perspectiva de desenvolvimento mais inclusiva, de funcionamento mais democrático
(participativo), favorecendo a criação de capacidades e realçando a importância da
defesa dos direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais72. O envolvimento de
doadores com parceiros locais (associações de camponeses, de moradores, etc.) também
ajudou à criação e/ou estruturação de um vasto leque de organizações comunitárias
de base em torno de necessidades económicas e sociais dessas comunidades.73
Ao longo dos anos noventa, o fracasso do Estado em oferecer serviços sociais aos es-
tratos sócio-económicos mais pobres levou a que as ONG nacionais e internacionais,
juntamente com as organizações religiosas, fornecessem apoio em inúmeras áreas,
nomeadamente a nível médico-medicamentoso, educação, segurança alimentar, sane-
amento básico e apoio aos deslocados de guerra em várias províncias do país74.
Todo este processo, de envolvimento e apoio das organizações estrangeiras e as articu-
lações internacionais, vai dar um precioso ímpeto às OSC angolanas e ao seu trabalho
em prol dos sectores sociais junto das populações mais pobres, ajudando de sobrema-
neira a minimizar os efeitos da degradação desses sectores e serviços75.
Esta dinâmica conduziu a uma situação em que o Estado se empenhava cada vez
menos nestas áreas e gastava muito pouco com elas, tendo o papel da cooperação
internacional passado de secundário a central. Isto apesar do fantástico crescimento
das receitas petrolíferas durante esse mesmo período — US$2 biliões em 1987, US$3.5
biliões em 1990, US$5.1 biliões em 1996 e US$7 biliões em 200076.

2.2 – As reacções do governo


A princípio, o governo não pareceu prestar muita atenção à dinâmica criada pelas
relações entre o activismo interno e externo devido a três razões principais. Primeiro,
as novas perspectivas de desenvolvimento (mais participativas e inclusivas) estavam
relacionadas com programas de desenvolvimento que, supostamente, seriam relegados
para segundo plano em face da prioridade dada à intervenção humanitária quando
a guerra se reacendeu em Outubro de 1992 (após a rejeição dos resultados eleitorais
pela UNITA). Segundo, o governo angolano estava essencialmente preocupado com
a supervisão dos montantes da ajuda que chegavam e com a sua distribuição no inte-
72
Vidal, Nuno, Estratégias de Desenvolvimento Participativo enquanto estímulo de capacidades empresariais: o projecto Kuíje
91 em Malange/Angola (Lisboa: ISCTE, 1997), dissertação de Mestrado.
73
Vidal, Nuno, Estratégias de Desenvolvimento Participativo… op. cit.; também Engaging Civil Society Organizations
in Conflict-Affected and Fragile States, World Bank Report n.º 32538-GLB (Washington: The International Bank for
Reconstruction and Development/The World Bank, 28 June 2005).
74
Vidal, Nuno, Estratégias de Desenvolvimento Participativo… op. cit.
75
Vidal, Nuno, “Social Neglect… op. cit., pp. 200-235.
76
Hodges, Tony, Angola from Afro-Stalinism… op. cit., p. 2.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 25

rior do país — ou seja, com a definição das prioridades em termos de projectos e de


áreas geográficas de intervenção (e.g. favorecendo as áreas controladas pelo governo
em detrimento das áreas controladas pela UNITA)77. Terceiro, na medida em que se
retomou a guerra logo após as eleições e existiu um esforço imediato de reinvestimento
em armamento e nas forças armadas (fortemente desestruturadas após os acordos
de paz de Bicesse em 1991), a ajuda internacional tornou-se ainda mais importante
para garantir abastecimentos de comida e alguns serviços sociais básicos, libertando
o governo destas preocupações.
No início da década de noventa, a preocupação governamental foi essencialmente
dirigida para o estabelecimento de mecanismos de coordenação e gestão das activida-
des das organizações internacionais, basicamente através do Ministério da Assistência
e Reintegração Social (MINARS) e da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda
Humanitária (UTCAH), inicialmente sob supervisão do Conselho de Ministros e
posteriormente do MINARS.78 Dado que naquela época a comunidade internacional
preferia canalizar a ajuda internacional através do sistema das Nações Unidas e das
ONG nacionais e internacionais, em vez de fornecer ajuda directa bilateral ao governo,
aqueles mecanismos de supervisão foram extremamente importantes para o gover-
no, procurando manter o controlo e retirar vantagens dos recursos significativos que
chegavam ao país.
Se no início dos anos noventa o governo não se preocupou muito com a dinâmica entre
OSC internacionais e nacionais pelos motivos mencionados, em meados da década de
noventa a situação alterou-se substancialmente.
Na medida em que assumiam um papel de crescente relevo no fornecimento de serviços
sociais, as OSC (aqui essencialmente ONG) ganharam uma legitimidade acrescida para
se constituírem em vozes críticas contra a falta de empenho e preocupação do governo
para com os sectores sociais, que se encontravam numa situação de grave degradação
e ruptura. Estas organizações foram documentando e publicitando várias situações
de pobreza extrema e pressionando as instituições do governo para uma mudança de
atitude79. Os media privados e internacionais começaram a ecoar este criticismo e estas
exigências. Os partidos políticos da oposição por vezes juntaram-se a estas críticas
(embora raramente com o mesmo empenho e força que as OSC).
Esta onda de criticismo interno e externo começou a tornar-se cada vez mais incómoda
para o poder político, que reagiu de forma estruturada em meados da década de 1990,
investindo fortemente numa “sociedade civil paralela”, integrada por organizações
tais como a fundação do presidente, (Fundação Eduardo dos Santos-FESA), criada
em 199680 e, mais tarde, o Fundo de Solidariedade Social Lwini da primeira-dama

77
Vidal, Nuno, Estratégias de Desenvolvimento Participativo… op. cit.
78
Actualmente a UTCAH está também articulada com o Ministério do Planeamento; não devendo ser confundida
com a UCAH das Nações Unidas (Unidade de Coordenação da Assistência Humanitária das Nações Unidas), mais
tarde substituída pela UN OCHA (UN Organization for the Coordination of Humanitarian Affairs) e posteriormente pela
UNTCU (UN Transitional Coordination Unit); nas províncias, o papel de coordenação e controlo era essencialmente
desempenhado pelos governos provinciais; ver Vidal, Nuno, Estratégias de Desenvolvimento Participativo… op. cit.;
também Vidal, Nuno, “Social Neglect… op. cit., pp. 200-235.
79
“Country profile Angola”, in An Assessment of Human Rights Defender initiatives in Southern Africa, a report for the
Netherlands Institute of Southern Africa – NiZA, by Ahmed Motala, Nuno Vidal, Piers Pigou and Venitia Govender
(Amsterdam: NiZA, Junho de 2005), pp. 47-62.
80
Para mais informação sobre esta fundação e o investimento do poder na sociedade civil, ver Messiant, C. 1999,
“La Fondation Eduardo dos Santos (FESA): autour de l’investissement de la société civile par le pouvoir angolais”,
in Politique Africaine, 73, pp. 82 – 101.
26 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Ana Paula dos Santos, ambas pretendendo reabilitar a imagem política do Presidente,
selectivamente provendo serviços sociais da responsabilidade do Estado, usando para
esse fim fundos geralmente provenientes dos bónus sociais pagos pelas empresas pe-
trolíferas internacionais. Tal estratégia continuaria até aos dias de hoje com a criação
ou cooptação de várias outras organizações81, que servem basicamente a necessidade
do poder político de ter uma “sociedade civil” cooperante que possa ser politicamente
manipulada no seio da lógica patrimonial dominante: fornecendo uma fonte extra
de empregos relativamente bem remunerados que podem ser distribuídos por entre
novos ou antigos clientes e dependentes; fornecendo serviços sociais seleccionados
conforme as necessidades governantes e/ou políticas específicas; participando em
processos politicamente sensíveis (e.g. aprovação de determinadas leis) sem as con-
testarem e, como tal, satisfazendo a exigência internacional de ouvir a “sociedade
civil”. A Agenda Nacional de Consenso, aprovada a 3 de Abril de 2007 e promovida
pelo governo é um exemplo deste tipo de iniciativas governamentais que precisa de
“cooperação” das OSC82.
As OSC “paralelas” passaram a ter um acesso privilegiado e facilitado às estruturas
governamentais nacionais e provinciais, assim como ao sector público e privado da
economia (ambos dominados claramente pelo partido maioritário e subjugados à
lógica política patrimonial83). As outras organizações que não se enquadravam nestes
parâmetros passaram a encontrar dificuldades crescentes de actuação na proporção
directa do seu afrontamento ao governo.
2.3 – Alteração do contexto nacional e internacional
Com estes crescentes constrangimentos ao funcionamento interno, o financiamento
externo passou a ser absolutamente vital para as OSC nacionais. Contudo, este apoio
vai sofrer um forte revés no final dos anos noventa, quando algumas das organizações
internacionais que há anos trabalhavam em Angola se tornaram progressivamente
desiludidas com o seu verdadeiro papel no país, nomeadamente a assumpção das res-
ponsabilidades sociais que supostamente caberiam ao Estado desresponsabilizando-o
em muitas matérias. Em declarações públicas chocantes, Jean-Marc Perrain, director-
executivo dos Médecins Sans Frontières — Angola (MSF-Angola) expressou aquilo que
se havia tornado claro para todos:
Não é compreensível que um país tão rico como Angola, que produz e vende petróleo e
diamantes, com uma receita petrolífera anual estimada em 7 biliões de dólares, invista
tão pouco em áreas como a saúde. Não é a nosso ver normal que uma associação hu-
manitária como a MSF forneça tudo o que é necessário para o funcionamento de um
hospital, seja na Kahala, seja no Kuíto. Isso não nos parece lógico. Parece-nos lógico

81
A AJAPRZ (Associação de Jovens Angolanos Provenientes da Zâmbia), Criança Futuro (anteriormente liderada pelo
antigo Chefe dos Serviços de Inteligência no Exterior, Fernando Miala; Miala), Acção Solidária e Amigos do Rangel, entre
outras, são exemplos claros de tal tipo de organizações; a respeito das OSC paralelas ver “Country profile Angola”
in An Assessment… op. cit., pp. 47-62; igualmente Messiant, Christine, “The Mutation of Hegemonic Domination:
Multiparty Politics Without Democracy”, in Chabal, Patrick & Vidal, Nuno, Angola, the weight of history (London:
Hurst, 2007), pp. 93-123; também Vidal, Nuno “Multipartidarismo em Angola… op. cit.
82
A respeito da Agenda Nacional de Consenso ver Jornal de Angola, de 20 de Junho de 2007.
83
O processo de privatização no início dos anos noventa beneficiou sobretudo a nomenclatura; ver Ferreira, Manuel
Ennes, “La reconversion économique de la nomenklature pétrolière”, in Politique Africaine, 57, 1995, pp. 11–26; também
Aguilar, Renato, “Angola’s private sector: rents distribution and oligarchy”, in Karl Wohlmuth, Achim Gutowski,
Tobias Knedlick, Mareike Meyn & Sunita Pitamber, African Development Perspectives (Germany: Lit Verlag, 2003);
Aguilar, Renato, Angola: getting off the hook, a report for Sida (Gothenburg: Gothenburg University, 2005), especialmente
pp. 13-18.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 27

dar um apoio complementar ao Ministério da Saúde pela situação difícil que o país vive
actualmente.84
Estas declarações surgem numa altura em que o governo angolano enfrentava já o
escândalo “Mitterand, Falcone e Gaidamak” (de 1999), o relatório da Global Witness
e outros relatórios que expunham a má gestão de receitas petrolíferas e a corrupção
endémica no sistema político, para além de várias outras actividades co-relacionadas
e expostas pelos media85.
Com o fim da guerra civil que se seguiu à morte de Jonas Savimbi (Fevereiro de 2002)
e a assinatura do memorando de paz do Luena (Abril de 2002), muitos esperavam por
uma rápida mudança na política social — expectantes por investimentos substanciais
do Estado nos sectores sociais, numa altura em que se estimava que três quartos de
uma população também ela estimada de 14 milhões, vivia com menos de 1 dólar por
dia e que cerca de 2 milhões enfrentavam o risco eminente da fome86. Neste cenário,
organizações internacionais a trabalhar no terreno, como a CARE International ou a
MSF, acusavam o governo de negligência criminal contra a sua própria população87.
O desgastado argumento da guerra deixava de poder ser usado para justificar a falta
de investimento naqueles sectores. Para além do mais, a produção petrolífera conti-
nuava a aumentar fortemente e rendia ao governo uma média de cerca de 5 biliões
de dólares anuais.88
Consequentemente, a ajuda humanitária diminuiu substancialmente e a tão aguarda-
da conferência internacional de doadores foi sendo constantemente adiada, ficando
condicionada a um acordo entre o governo e o FMI, que era suposto estabelecer alguns
princípios de accountability e transparência na gestão das contas públicas89. A assistência
humanitária foi suspensa em várias regiões (sobretudo no Centro-Norte) que deixaram
de ser consideradas como necessitadas de tal apoio90.
Por outro lado, com o aproximar do fim da presença da ONU em Angola, o UNOCHA
(United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs) foi substituído pela
UNTCU (United Nations Transitional Coordination Unit; dependente do United Nations
Development Programme – UNDP), que era suposto passar as suas responsabilidades
pela coordenação para as instituições do governo, nomeadamente a UTCAH (Unida-

84
Declarações de Jean-Marc Perrin, coordenador da MSF em Angola, proferidas em Luanda no dia 9 de Novembro
de 2000, aquando da apresentação do relatório Médecins Sans Frontières, Angola: as aparências de “normalização”
escondem graves cenas de guerra (Luanda: MSF, 9 de Novembro de 2000); declarações reproduzidas pelo Canal 2 da
Rádio Televisão Portuguesa, programa “Jornal de África”, de 11 de Novembro de 2000; ver também Diário de Notícias,
de 12 de Novembro de 2000 e jornal Público, de 27 de Abril de 2000.
85
Vidal, Nuno, “The Angolan regime… op. cit., p. 133.
86
The Guardian, de 7 de Fevereiro de 2003.
87
Voz da América News Online, de 11 de Junho de 2002 e The Guardian, de 7 de Fevereiro de 2003.
88
De 2000 a 2003 Angola recebeu uma média de 5 biliões de dólares por ano; ver artigo “Angola should be able to
finance its own post war rebuilding’’, por Michael Dynes, Times, de 24 de Fevereiro de 2003.
89
Para uma súmula da relação entre o governo angolano e o FMI, ver Some transparency, no accountability, the use
of oil revenue in Angola and its impact on Human rights, a report by Human Rights Watch, January 2004, vol. 16, n.º 1; é
importante notar que de acordo com o FMI, entre 1997 e 2001, há $8.45 biliões de fundos públicos cujo destino não
é conhecido (representando uma média de 23% do PIB), Ibid.; ver também Human Rights Watch World Report 2006
(New York: HRW & Seven stories press, 2006), pp. 74-79.
90
Entrevista dada ao autor por Philippe Lazzarini (Chief Officer UN-OCHA – United Nations Organization for the Coordination
of Humanitarian Aid) (Luanda: 1 de Outubro de 2004); também no mesmo sentido entrevista dada ao autor por Manuela
Gonzales (Representante Provincial – Huambo – da OCHA-TCU, Organization for the Coordination of Humanitarian Aid
– Transition Coordination Unit) (Huambo: 20 de Setembro de 2004); também entrevista dada ao autor por Luís Claudio
(Representante Provincial OCHA-TCU – Malange) (Malange: 15 de Setembro de 2004) e igualmente entrevista dada
ao autor por João de Assunção Agostinho (OCHA-TCU – Malange) (Malange: 20 de Setembro de 2004).
28 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

de Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária) e para o MINARS (Ministério da


Assistência e Reintegração Social).
Eventualmente, a pressão internacional e a tentativa de passar mais responsabilidades
para as estruturas governamentais seria uma oportunidade para um mais efectivo
envolvimento do governo nos sectores sociais. Contudo, a prática não funcionou
como esperado.
Com a vitória militar no conflito, o governo passou a dominar o poder político e militar
em todo o território nacional. A nível externo, recorrendo a novos e mais favoráveis em-
préstimos (especialmente da China – 4 biliões de dólares sem quaisquer condicionalismos
de transparência, boa governação ou respeito por Direitos Humanos91) acabou por desistir
da conferência de doadores e o partido elaborou de forma unilateral os seus próprios
planos de desenvolvimento a serem concretizados até 2025, com forte investimento em
infra-estruturas e transferência de tecnologia92, sem prestar a devida atenção aos graves
problemas sociais que afectam a maioria da população, tal como pode ser observado pelas
quantias exíguas afectas pelos Orçamentos de Estado aos sectores sociais (ver quadro).
Quadro 1: Orçamento Geral do Estado: Sectores Sociais
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 *
Educação 5,06% 5,19% 6,24% 10,47% 7,14% 3,82% 6,63% 7,9%
Saúde 5,03% 4,57% 5,82% 5,69% 4,97% 4,42% 4,70% 6,7%
Segurança e Assistência Social 3,93% 3,36% 1,47% 4,30% 6,47% 9,66% 11,54% 9,6%
Habitação e Serviços Comunitários 3,77% 2,14% 1,57% 3,07% 4,13% 6,51% 7,72% 5,1%

Fonte: criação do autor com base nos Orçamentos Gerais do Estado dos anos indicados; disponíveis
em www.minfin.gv.ao93
*Em 2008 a rúbrica Segurança e Assistência Social passa a ser chamada de Protecção Social
No que respeita à transferência de responsabilidades da UNTCU para a UTCAH, o
resultado também não foi exactamente o desejável. O governo viu aqui não tanto a pos-
sibilidade para um mais efectivo envolvimento na coordenação das ajudas e projectos
das ONG, mas sobretudo a tão esperada oportunidade para efectivamente apertar o
controlo político sobre as suas actividades e financiamentos. É deste modo que deve
ser entendido o novo programa de registo das ONG que começa em 2005 e tem sido
progressivamente aplicado para integrar todas as ONG nacionais e internacionais. Os
procedimentos de registo e as exigências de relatórios regulares sobre as actividades das
ONG, especificando o tipo de acções, projectos, fundos, equipamentos, pessoal, impacto
sócio-económico, etc. serão (conforme explicação do próprio director da UTCAH), a
base de uma avaliação e parecer que a sua instituição vai emitir para o Ministério da
91
Ver relatório da Independent Task-Force apresentado ao Council on Foreign Relations, 2005, More than humanitarianism:
a strategic US approach toward Africa, Council on Foreign Relations, New York, especialmente pp. 32-33, 49-50; ver
também Aguilar, Renato, Angola: getting off the hook… op. cit., especialmente pp. 2, 13-18. Actualmente, estima-se que
as linhas de crédito da China se situem entre os 6 a 10 biliões de dólares, ver artigo de Alec Russell, “Investors sign
up to Angola’s miracle”, in Financial Times, de 22 de Agosto de 2007.
92
Vidal, Nuno, “The Angolan regime… op. cit., pp. 124-174.
93
Angola encontra-se ainda muito abaixo da média dos países da SADC no que respeita a gastos com a educação
que se situa nos 16,7%. De acordo com o Banco Mundial, a composição da despesa pública em 2004 por função –
despesas com saúde e educação em percentagem do PIB em Angola (menos de 2% para a saúde e menos de 5%
para a educação) – estão entre as mais baixas no contexto africano, “tal composição da despesa pública está muito
abaixo das necessidades do país em termos de reconstrução de infra-estruturas e fornecimento de serviços essenciais
à população e parece reflectir as escolhas políticas ainda preocupadas com a prevalência de um orçamento de tempos
de guerra”; World Bank, report n.º 29036-AO, Angola public expenditure, management and financial accountability, 16 de
Fevereiro de 2005, p. i, also pp. 5-6.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 29

Justiça acerca do nível dos projectos das ONG e da parceria estabelecida com o governo.
Tendo por base esta apreciação da UTCAH, o Ministério da Justiça decidirá acerca da
aprovação ou rejeição do registo de cada uma das ONG em causa94.

2.4 - Impacto do novo contexto ao nível dos sectores sociais e da população


carenciada
O novo contexto nacional e internacional, de paz com prometido crescimento e desen-
volvimento económico, não se vai materializar para a maioria da população.
Os crescentes rendimentos do petróleo e dos diamantes têm elevado o rendimento
per capita, que agora se situa nos US$1400, estando o país internacionalmente referen-
ciado como detentor de uma das mais altas taxas de crescimento económico a nível
mundial nestes dois últimos anos, entre 16 a 20% ao ano95. Contudo, estes números
são claramente ilusórios quanto ao crescimento do PIB para além do sector petrolifero
e ainda mais no que concerne ao desenvolvimento humano.
Para além do sector mineral (petróleo e diamantes), a produção interna pouco tem crescido,
estando o país fortemente dependente das importações de bens de primeira necessidade
e serviços96. O impacto do aumento acentuado das receitas petrolíferas pouco se tem feito
sentir na vida da maioria da população, que vive abaixo do limiar da pobreza.
Os indicadores de desenvolvimento humano permanecem muito fracos e o país ocu-
pa o 161.º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (tendo
caído uma posição em relação ao anterior relatório)97. Cerca de 70% da população
vive com menos de US$2 por dia; em 2004, apenas 53% da população tinha acesso
sustentável a uma fonte de água melhorada e apenas 18% tinha acesso sustentá-
vel a saneamento melhorado. A mortalidade infantil é elevada e tem vindo a dimi-
nuir apenas marginalmente, de 172 por 1000 em 1995 para 154 por 1000 em 2004;
a percentagem de inscritos na escola primária aumentou lentamente, de 50% em
1990 para 53% em 2000; o país ocupa a posição 122 (de 136) do índice de desen-
volvimento ajustado ao género e as desigualdades continuam acentuadas, seja ao
nível da taxa de alfabetização de adultos entre homens e mulheres (82,9% Homens e
54,2% Mulheres), seja ao nível do rendimento médio auferido (US$1.670 Mulheres e
US$2.706 Homens), à ocupação de cargos no sector formal do mercado de trabalho
(as mulheres representam cerca de 70% da força de trabalho do sector informal) ou

94
Explicação fornecida pelo Director da UTCAH no encontro de Trabalho da UTCAH com ONG nacionais e
internacionais (Luanda: Auditório da Universidade Católica de Angola, 29 de Novembro de 2005); agenda de trabalho:
“(…) 3 – Apresentação das actividades das ONG nacionais e internacionais no primeiro semestre de 2005; 4 – Directório
de ONG, boletim informativo a ser criado, pesquisa sobre casos de estudo, draft dos relatórios específicos a serem
apresentados pelas ONG ao longo do ano; 5 - legalização das ONG (…); acesso a fundos públicos”.
95
World Bank Country Brief – Angola, disponível em http://go.worldbank.org; também artigo de Alec Russell,
“Investors sign up to Angola’s miracle”, Financial Times, de 22 de Agosto de 2007; também artigo de Mariana Della
Barba “A África que prospera: Angola vive ‘milagre económico’. Exportações de petróleo atraem investimentos,
mudam a paisagem de Luanda e fazem PIB crescer 23% em 2007”, O Estado de São Paulo, de 18 de Dezembro de
2007; igualmente Hodges, Tony, “The Economic Foundations… op. cit., pp. 175-199.
96
Ver a este respeito o artigo de Justino Pinto de Andrade no semanário A Capital, de 26 de Maio de 2007, p. 13;
também AfDB/OECD, African Economic Outlook, Angola, Maio de 2007, pp. 107-120, disponível em www.oecd.org;
igualmente Hodges, Tony, “The Economic Foundations… op. cit., pp. 175-199..
97
Ver Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, A água para lá da escassez: poder, pobreza e a crise mundial da água
(New York: PNUD, 2006); Angola foi classificada na 160.ª posição no relatório anterior: ver Human Development Report
(New York: United Nations Development Programme, 2005).
30 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

ao nível da participação política (continuando a constituir uma minoria na ocupação


de cargos públicos)98. A situação da desigualdade de género nas províncias é ainda
mais acentuada dadas as características culturais ligadas ao trabalho agrícola (são
as mulheres que tradicionalmente trabalham a terra99) e ao deficit de infra-estruturas
sociais. A prevalência do HIV-SIDA aumentou de 2,1% em 1995 para 3,7% em 2004
(com o fim da guerra a mobilidade de pessoas aumentou exponencialmente e o país
tem agora quase todos os factores de risco associados à propagação da epidemia)100.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, cerca de 116 mil pessoas mor-
rem todos os anos vítimas dos problemas ambientais com que o país se debate101.
Angola fez parte do grupo de 191 países que adoptaram a declaração do milénio, mas
os dois primeiros relatórios nacionais dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio
(ODM), em 2003 e 2005, fornecem a descrição da situação do país, concluindo que, a
manter-se a tendência actual, o país irá falhar os objectivos para 2015. Existe um nível
fraco de realização em quase todos os objectivos e muito duvidosas possibilidades de
virem a ser cumpridos102.
As fortes desigualdades na distribuição da riqueza em nada ajudam a incutir um
sentimento de justiça social ou de possibilidade de ascensão social pelo esforço e
pelo mérito, prevalecendo uma cultura individualista do “esquema” e do descrédito
pelo bem público, pelas instituições do Estado e pela Lei, que funciona apenas para
alguns e ao serviço de alguns. Nas palavras do Conselho de Coordenação dos Direitos
Humanos de Angola103,
O acesso à justiça está reservado para uma minoria que detém o poder político e econó-
mico, encontra-se fortemente controlado pelo poder político e a maioria da população tem

98
Para além do referido relatório de desenvolvimento humano do PNUD, ver Pereira, Aline, “Género e Desenvolvimento
em Angola”, in Vidal, Nuno e Pinto de Andrade, Justino, O Processo de transição para o multipartidarismo em Angola (Lisboa
e Luanda: Firmamento, Universidade de Coimbra e Universidade Católica de Angola, 2006), pp. 241-258; igualmente o
texto de Aline Pereira neste livro; também relatório da conferência Participação das Mulheres Angolanas na Política, realizada
em Luanda a 17, 18 e 19 de Outubro de 2006, p. 4; artigo “Solicitada maior intervenção das instituições laborais em
questões de género”, Angola Press, de 20 de Julho de 2007; “Governante defende criação de base de dados estatísticos
sobre o género”, Angola Press, de 20 de Julho de 2007, disponível em www.angolapress-angop.ao
99
Angola, a mulher e o Desenvolvimento Rural, Doc. De trabalho n.º 20 (Luanda: Ministério da Agricultura e do
Desenvolvimento Rural & Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, de Março de 2004).
100
Estes factores incluem: um grande número de deslocados internos (4 milhões), desmobilizados das forças
armadas, baixos níveis de educação, uma população jovem (cerca de 70% dos Angolanos tem menos de 24 anos), um
elevado índice de pobreza, fraca autonomia económico-social das mulheres em geral, alto índice de prevalência de
Doenças Sexualmente Transmissíveis, poligamia, destruição de redes sanitárias, poucos mecanismos de protecção,
redes sociais fragmentadas, poucos locais onde fazer testes de HIV, a segunda mais alta taxa de fertilidade do
mundo; ver Artigo de Pirozzi “UNICEF promotes the use of condoms as an HIV/AIDS prevention method” in
UNICEF Angola/2003, disponíel em www.unicef.org; também artigo de Mendonça “UNICEF supported outreach
activist, Amavel, conducts an HIV/AIDS awareness session in the market place targeting young boys”, in UNICEF
Angola/2005, em www.unicef.org.
101
Artigo de Pedro Chaveca “Condições ambientais ceifam 116 mil vidas em Angola”, Expresso, de 13 de Junho de
2007.
102
The UN System in Angola MDG Strategy Outline, Draft 2, Work in Progress, Março de 2007, p. 3; também, Angola,
Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, relatório de progresso 2005 (Luanda: Governo de Angola e PNUD, 2005);
Angola, Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, relatório MDG/NEPAD 2003 (Luanda: Governo de Angola, Ministério
do Planeamento e Sistema das Nações Unidas em Angola, 2003).
103
O Conselho de Coordenação dos Direitos Humanos (CCDH) foi criado em Dezembro de 2005 “sob os auspícios
do escritório de DH das NU em Angola”, é uma rede de concertação de interesses das ONG que se dedicam à defesa
e promoção dos DH, com vista a uma intervenção mais ampla neste domínio. São parte integrante todas as OSC que
desejarem aderir, sendo até agora ainda muito limitado o número de membros, tendo em conta o universo geral que
trabalha com DH; ver Prospecto de Apresentação do Conselho de Coordenação dos Direitos Humanos, Luanda, 2006; também,
Plano Estratégico 2006-2009 do Conselho de Coordenação dos Direitos Humanos, Luanda, Março de 2006, Introdução.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 31

pouca confiança no aparelho judicial e de manutenção da ordem pública104.


Ao contrário do que eventualmente se poderia esperar, o movimento migratório para as
cidades, que se foi progressivamente acentuando nos anos noventa, não estancou com
o fim da guerra, antes acelerou, dado que as políticas de investimento continuam, de
forma desequilibrada, a centrar-se na cidade capital e em algumas cidades capitais de
província (regra geral em cidades mais próximas do litoral)105. Estima-se que a cidade
de Luanda tenha actualmente cerca de 6 milhões de habitantes (numa população total
que rondará os 13 a 15 milhões)106, situação que agrava de sobremaneira e a todos os
níveis as condições de vida na cidade capital, com gravíssimos problemas de urba-
nismo, saneamento básico, tratamento de lixo, fornecimento de água e electricidade,
transporte, crescentes índices de criminalidade, difícil acesso ao mercado formal de
emprego, deficientes e insuficientes serviços de educação e saúde, propagação de
doenças endémicas que levam a altas taxas de mortalidade. Ainda assim, no que res-
peita ao acesso a serviços públicos e sociais, as condições de vida nas províncias são
em geral piores do que na cidade capital.
Desde o fim da guerra que se impunham políticas de desenvolvimento regional e local
como forma de atenuar as profundas assimetrias entre regiões, com particular atenção para
as províncias mais afastadas do litoral. Num círculo vicioso, o afluxo de gente à capital e
as necessidades imediatas que daí advêm levam a concentrar os principais investimentos
sociais em Luanda em detrimento das províncias, facto que por sua vez reforça as assime-
trias regionais e o movimento migratório para a capital em busca de melhores condições de
vida. A excessiva concentração do poder político e a centralização administrativa agravam
ainda mais este cenário de assimetrias regionais profundas e representam um obstáculo
ao seu desaparecimento.
As contas do petróleo, principal fonte de receitas do Estado, continuam a não ser
transparentes, havendo um deficit na fiscalização e accountability do governo neste
sector crucial para a vida económica do país. Em grande medida resultado das
pressões exercidas a nível internacional e nacional, o Ministério das Finanças co-
meçou a revelar alguma informação sobre as receitas do petróleo, mas não existem
mecanismos ou entidades independentes para verificar esta informação e inclu-
sive, em Setembro de 2006, o governo aprovou legislação que proíbe as compa-
nhias petrolíferas de revelarem qualquer tipo de informação relacionada com os
contratos ou com as relações financeiras que mantêm com o Estado Angolano107.
A falta de transparência no principal sector da economia reflecte-se na falta de
transparência das contas públicas em geral e, como tal, no orçamento de Estado,
conforme sublinhado pelo representante da Open Society em Angola, Elias Isaac,
durante um encontro sobre transparência em Luanda108. Organizações internacio

104
Relatório Narrativo das Actividades Realizadas Durante o Ano de 2006, Conselho de Coordenação dos Direitos Humanos,
Luanda, Angola, Janeiro de 2007, p. 2; a respeito do sistema judicial e prisional, ver United Nations Press Release,
“Working Group on Arbitrary Detention Visited Angola”, statement by Chairperson-Rapporteur of the Working Group on
Arbitraty Detention of the United Nations Human Rights Council, Leila Zerrougui, September 27, 2007, at the conclusion of
a visit to Angola; também Associação Justiça Paz e Democracia, Relatório de Direitos Humanos, um olhar sobre o sistema
penal angolano, de Agosto de 2000 – Outubro de 2004 (Luanda: AJPD, Novembro de 2005).
105
Ver a este respeito o artigo “Óscar Niemeyer convidado a projectar ‘nova Luanda’’’, Voz da América, Visão Angola,
de 27 de Julho de 2007, em www.multipress.info.
106
Open Society Angola, 2007, Staff Retreat Minutes, p. 4.
107
Open Society Foundation – Angola, 2006 Annual Report, pp. 1-2.
108
Ver declarações de Elias Isaac à Voz da América –Visão África, de 17 de Agosto de 2006, em www.voanews.com.
32 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

nais também sublinham o facto de que apesar de algumas medidas positivas do


governo, a opacidade continua a dominar o sector dos petróleos e dos diamantes109.
Começou a tornar-se claro que os mecanismos de desvio de verbas públicas, cristaliza-
dos durante o período de guerra, reposicionaram-se para beneficiarem do processo (e
das verbas) de reconstrução do país110. Como tal, nem considerando um qualquer efeito
multiplicador da despesa pública nos investimentos de infra-estrutura se poderia esperar
um benefício indirecto significativo para os estratos sociais mais carenciados (a maioria
da população), que continuam pobres e socialmente excluídos.
Para o escritor e deputado do MPLA, João de Melo,
(…) qual é a relação entre o Estado e os cidadãos (individualmente ou organizados) em
Angola?
É limitada, desigual e, em muitos casos, enferma de vícios e deformações que é preciso ultrapassar.
Desde logo (…) a extensão e qualidade dos serviços providenciados pelo Estado são altamente
questionáveis. Apesar disso, são caros, como o atestam o valor dos impostos, taxas, emolumentos,
custas e outras obrigações financeiras dos cidadãos, em especial no domínio das transacções
económicas e da justiça, o que é agravado pela corrupção em todos os escalões111
De acordo com o Conselho de Coordenação dos DH,
A corrupção tornou-se uma ideologia de actuação em toda a esfera pública e privada e
em todo o país112

3 – Política e Sociedade Civil: Dimensão Internacional e Nacional


No novo contexto internacional estratégico-energético (constantes recordes do preço
do crude, crescente produção angolana, aumento da concorrência mundial — asiáti-
ca — para assegurar futuros abastecimentos), o governo angolano ganhou uma força
significativa de pressão sobre o exterior113.
Este poder será não só sobre governos e empresas com interesses em Angola, mas igualmen-
te, ainda que de forma mais indirecta, sobre Organizações Internacionais Governamentais
e comunidade doadora em geral, cujos membros mais influentes têm fortes interesses
económicos em Angola. Consequentemente, a pressão é igualmente exercida sobre as ONG
internacionais que actuam em Angola e as suas parceiras nacionais, na medida em que o
financiamento da esmagadora maioria delas vem das mesmas fontes internacionais.

109
World Bank, Angola: Country Economic Memorandum, Outubro de 2006, p. ix; também, The Economist Intelligence
Unit, Country Report: Angola, Março de 2007, p. 28; igualmente AfDB/OECD, African Economic Outlook, Angola, Maio
de 2007, pp. 107-120, disponível em www.oecd.org
110
Ver texto de Justino Pinto de Andrade neste livro; também Time for transparency, coming clean on oil, mining and
gas revenues, a report from Global Witness, de Março de 2004, p. 35; é também importante frisar que Angola foi
classificada Transparency International na posição133 de 145 no que respeita aos países mais corruptos do mundo
(sendo o 145.º o mais corrupto), em www.transparencyinternational.com.
111
Artigo de João Melo, “Sociedade Civil, cidadania e Estado (fim)”, semanário Agora, de 21 de Julho de 2007, p. 17.
112
Relatório Narrativo das Actividades Realizadas Durante o Ano de 2006, Conselho de Coordenação dos Direitos
Humanos, Angola, Janeiro de 2007, p. 2.
113
Angola produz actualmente 1,7 milhões de barris por dia, esperando-se que venha a ultrapassar a cifra de 2 milhões
de barris/dia em 2009, ultrapassando nessa altura a Nigéria como maior produtor africano de petróleo; Jornal de
Angola, de 15 de Fevereiro de 2008; ver igualmente Hodges, Tony, “The Economic Foundations… op. cit., pp. 175-199;
artigo de Jad Mouawad “Nowadays, Angola Is Oil’s Topic A”, The New York Times, de 20 de Março de 2007; também
Angola Strategy: Prioritizing U.S. – Angola Relations, a Report of an Independent Commission Sponsored by the Center for
Preventive Action, New York: Council on Foreign Relations, 2007; igualmente Reed, John, “Angola o capitalismo dos
petrodiamantes”, Courrier Internacional, de 25 Novembro de 2005, n.º 34, pp. 22-23.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 33

Um sinal deste facto é a postura moderada (essencialmente técnica e diplomaticamente


correcta) repentinamente assumida por várias organizações internacionais instaladas em
Angola, face aos graves atropelos dos DH em comunidades peri-urbanas114, o não registo
de algumas OSC115 e a forma inquinada como foi conduzido o processo eleitoral (e.g. a
desequilibrada composição da comissão nacional eleitoral, as responsabilidades dadas
às comissões executivas eleitorais que ultrapassam o espírito da Lei, a não observação
internacional no processo de recenseamento, a marcação de eleições para dois dias
quando a Lei determina apenas um, a impossibilidade de votar para os angolanos na
diáspora ou a tentativa de alteração da Lei Eleitoral que pretende alargar para quinze
dias o prazo de divulgação dos resultados das eleições, entre outros problemas)116.
Muitos dos chamados activistas internacionais do desenvolvimento, DH e sociedade
civil, perceberam os limites politicamente aceitáveis da sua actuação, escudando-se em
posturas mais técnicas e reservando as suas críticas mais agressivas para meandros infor-
mais. Organizações que antes acusavam publicamente o governo de negligência criminal
pelo desprezo a que votava as populações refrearam fortemente as suas posições117.

3.1 - Engajamento construtivo da sociedade civil


Aquela reforçada capacidade de pressão do governo angolano sobre países e organi-
zações ocidentais, vai-se cruzar com a emergência de uma nova vaga do pensamen-
to desenvolvimentista internacional que, ao contrário dos anos oitenta e noventa,
passou a considerar a necessidade premente de reforçar as instituições do Estado,
defendendo projectos e parcerias com as estruturas governamentais e a canalização
de fundos através dessas estruturas para as capacitar. No léxico desenvolvimentista,
tratar-se-ão das chamadas parcerias alargadas com o Estado (englobando a sociedade
civil, as organizações internacionais, e desejavelmente as empresas), no sentido de uma
grande aliança operativa no esforço pelo desenvolvimento, “reconstrução nacional”
ou “consolidação da paz em países pós-conflito”118.
Em Angola, este cruzamento resultou na teorização e na prática do chamado constructive
engagement ou engajamento construtivo, defendido primeiramente por algumas ONG
internacionais e vai basicamente derivar numa postura cooperante e politicamente
mais branda para com o governo.
A dependência da maioria das ONG nacionais em relação ao apoio e financiamento das
suas congéneres internacionais, assim como às suas agendas, pressiona-as igualmente
no sentido da nova tendência do engajamento construtivo.

114
Relatório da Human Rights Watch e SOS Habitat, “Angola, ‘eles partiram as casas.’ Desocupações forçadas e insegurança
da posse da terra para os pobres da cidade de Luanda”, Vol. 19, n.º 7 (A) (New York: HRW & SOS Habitat, de Maio de
2007), disponível em http://hrw.org/reports/2007/angola0507; ver também, relatório da Amnistia Internacional,
“Angola, Lives in Ruins: Forced Evictions Continue” (New York: AI, Janeiro de 2007), disponível em http://web.
amnesty.org/library/Index/ENGAFR120012007.
115
Casos da Associação Justiça Paz e Democracia (AJPD) e Fundação Open Society Angola.
116
Vidal, Nuno, Plano Estratégico 2008-2010, Programa de Direitos Humanos, Construção da Democracia, Género e VIH/
SIDA (Luanda: Fundação Open Society – Angola, Agosto de 2007); também Vidal, Nuno, “O campo de minas da
democracia angolana”, in Minnie, Jeanette (coord.), Do lado de fora das urnas: pré-condições para eleições na África Austral
2005/2006 (Windhoek: HiVOS, NiZA-Netherlands Institute for Southern Africa & MISA-Media Institute of Southern
Africa, Junho de 2007), pp. 49-72; também artigo de Ana Dias Loureiro no jornal Público, de 29 de Abril de 2008.
117
Voz da América News Online, de 11 de Junho de 2002; The Guardian, de 7 de Fevereiro de 2003.
118
Ver por exemplo, Klopp, Jacqueline, Civil Society and the State: Partnership for Peace in the Great Lakes Region (Nairobi-
-Kenya: International Peace Academy & Africa Peace Forum, Kenya, Junho de 2004).
34 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Será neste contexto que algumas ONG internacionais vão chamar a si o papel de pro-
motores desta nova perspectiva e de intermediários nas novas relações a estabelecer
entre o governo e as ONG nacionais. Este papel vai-se materializar em algumas inicia-
tivas, como sejam o Programa de Reforço de Capacidades da Sociedade Civil – PRCSC
(ou Civil Society Strenghtening Programme – CSSP), liderado pela World Learning e pela
Development Workshop – DW (ambas internacionais)119.
O PRCSC pretenderá (tal como defendido pela UTCAH) mapear e cadastrar todas
as ONG nacionais com vista a
(…) reforçar a Capacidade Organizacional e Técnica das ONG Angolanas, por forma a que
se tornem um parceiro legítimo e privilegiado do Governo, para a prestação de serviços
de utilidade pública às comunidades urbanas, peri-urbanas e rurais. [meu negrito]120.
O inquérito de base ao referido mapeamento consiste no apuramento exaustivo de
todas as características das ONG, com especial incidência para o tipo de relação que
têm e que pretendem vir a ter com o governo central e local121.
Apresentado nestes termos, o PRCSC vai provocar reacções negativas em alguns
activistas da sociedade civil,122 que não entendem de onde vem a legitimidade desta
espécie de instituição de pré-acreditação das ONG, tratando-se de uma estrutura
constituída por algumas ONG (liderada por duas internacionais) que sem qualquer
eleição se arrogam o direito de avaliar os seus pares nacionais. Para além do mais,
aquela intenção de pré-certificar as ONG como “parceiros legítimos e privilegiados
do governo” não só se apresenta eivada de uma aparência de colaboracionismo com
as antigas intenções de controlo por parte da estrutura governamental, como também
encerra uma medida de coação implícita, sendo que todos aqueles que não se encai-
xarem nos critérios (subjectivos e políticos) de avaliação, passam provavelmente a ser
ilegítimos e consequentemente a ter um forte handicap na relação com as estruturas
governamentais e estruturas de financiamento internacionais.
O plano de “reforço da sociedade civil” prosseguirá com outros projectos, como seja
a criação do “Centro de Reforço das Capacidades das OSC”, que, mais uma vez en-
globando a Development Workshop e a World Learning, juntou algumas ONG nacionais,
tendo como objectivo imediato o financiamento de projectos da sociedade civil com
fundos provenientes das empresas petrolíferas a operarem em Angola, tratando-se de
uma iniciativa lançada na génese pela União Europeia, Governo Angolano e USAID.
Dada a lógica de funcionamento do sistema político-económico, obviamente que
quando algumas ONG nacionais começaram a realçar a necessidade premente de focar
questões de advocacia dos Direitos Humanos nos projectos a financiar, as petrolíferas
levantaram muitos obstáculos, pedindo que compreendessem a própria envolvente
político-negocial das empresas neste sector123.

119
De referir que a DW foi a primeira ONG a existir em Angola e a única a estabelecer-se ainda durante o período
Socialista – 1985.
120
Carta de solicitação de entrevista da Development Workshop dirigida a todas as ONG nacionais, datada de 2 de
Março de 2007.
121
Inquérito para Entrevistas de Mapeamento das Organizações da Sociedade Civil Angolana, dirigido a todas as ONG
nacionais, datado de 2 de Março de 2007.
122
Neste sentido estarão activistas como Fernando Macedo ou Luís Araújo (expressando estes pontos de vista em diversas
conversas com o autor, em Lisboa e Luanda ao longo de 2007); ver também o texto de Fernando Macedo neste livro.
123
Ver a este respeito o texto de Carlos Figueiredo neste volume.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 35

Entendida nos termos expostos, a estratégia de constructive engagement vai-se revelar


na prática como sendo de criticismo público limitado aos parâmetros do politicamente
aceitável (parâmetros não oficiais, imprecisos, mas que em caso de dúvida cada orga-
nização e cada activista aplica o seu próprio mecanismo de auto-censura).

3.2 – Unidade/Unificação da sociedade civil


Partindo da constatação de que as OSC em Angola têm um défice de capacidade de
actuação em rede (de forma sustentável, contínua, de médio e longo prazo, em questões
interligadas), quer a nível nacional, quer com as suas congéneres a nível regional e
internacional (uma realidade óbvia), a nova estratégia de reforço das OSC vai defen-
der a necessidade de união da sociedade civil. O argumento simplificador, apoiado
pelas ONG internacionais (que de certa forma conduzem o processo), defenderá que
a sociedade civil é fraca porque está dividida.
Este argumento ignora a responsabilidade dos parceiros externos nesta debilidade124
assim como a responsabilidade do governo e favorece uma perspectiva unificadora
das OSC que, igualmente de forma simplista, defende o reforço de estruturas repre-
sentativas que permitam as OSC falar a uma só voz nas suas relações de constructive
engagement com as estruturas do Estado. Sem especificar que a união entre OSC deve
ser estabelecida com base em princípios comungados por todos os membros (e.g. de-
fesa intransigente dos Direitos Humanos) e que não se deve sobrepor ou substituir às
OSC individualmente consideradas, nem tomar decisões fora do âmbito da defesa dos
seus princípios estatutários de base, a união rapidamente se poderá transformar em
unificação, homogeneização, uniformização e subordinação de vozes mais críticas.
É neste sentido que algumas organizações e activistas contestam o argumento da união da
sociedade civil aliado à estratégia de constructive engagement. Dado que as estruturas gover-
namentais consideram que as OSC se devem abster de um envolvimento em questões polí-
ticas, aquela estratégia traduzir-se-á, a médio prazo, numa dupla característica: uma postura
cada vez mais técnica, assistencialista e apolítica por parte de todos os “legítimos parceiros
do governo”; uma homogeneização de discursos e posturas que favorece a subjugação das
OSC independentes através da diluição das suas posições individuais em estruturas colec-
tivas, federativas e representativas, alargadas, e mais facilmente cooptáveis e manipuláveis
pelo poder político. Na prática, tal engajamento construtivo e formas de representatividade
acabariam por favorecer os princípios fundamentadores do sistema político patrimonial e
clientelista, minimizando a exposição dos efeitos perversos desse sistema no que respeita às
desigualdades, à pobreza e à injustiça, ajudando à sua manutenção, sem qualquer alteração
estrutural das verdadeiras causas dos graves problemas sociais125.
Naturalmente que sob a perspectiva do governo, o constructive engagement e a unificação
nos termos referidos são muito bem-vindos, tratando-se de uma forma mais eficiente,
eficaz e sofisticada, de amenizar os críticos, contando para isso com a própria iniciativa
e colaboração (consciente ou inconsciente) dos que a promovem (ONG nacionais e
internacionais).

124
Vidal, Nuno, “Social Neglect… op. cit.
125
No que respeita às críticas ao engajamento construtivo e à representatividade homogeneizadora e apolítica da
sociedade civil, ver o texto de Fernando Macedo neste livro (especialmente o cap. 6); ver também neste livro o texto
de Sérgio Calundungo criticando a perspectiva de uma sociedade civil politicamente asséptica e o texto de Fernando
Pacheco criticando a representatividade homogeneizadora (cap. 4).
36 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Neste contexto, começam então a emergir duas posições contrárias no seio das OSC
(aqui essencialmente ONG), entre aqueles que defendem uma postura que se poderá
denominar de “reformista” (acreditando que se podem reformar as instituições a partir
de dentro, colaborando com as estruturas governamentais em vários projectos, ainda
que isso possa significar algumas cedências em termos de postura crítica pública) e
aqueles que consideram que o engajamento com estruturas governamentais deve ser
muito selectivo, cauteloso e baseado em princípios de respeito pelos DH que nunca
podem ser sacrificados e tendo sempre salvaguardado o direito de opinião e expressão
política das OSC126. A caracterização das duas perspectivas contrárias vai aparecer
em relatórios internacionais que, em termos excessivos, separam as OSC “demasiado
radicais” das “verdadeiras e sensatas”127, uma caracterização que denigre os argu-
mentos contrários ao constructive engagement/unificação da sociedade civil e acaba
por radicalizar as divisões existentes.
A I Conferência Nacional da Sociedade Civil angolana, realizada de 6 a 8 de Novembro
de 2007, vai em parte espelhar estas diferentes posições no seio das OSC. A conferência,
que contou com a colaboração e apoio das ONG internacionais Development Workshop,
World Learning e CARE (entre outros), vai desde logo assumir o lema de “Construir
Unidade na Diversidade”, tendo como objectivos “melhorar o inter-conhecimento, e
assim a capacidade de coordenação dos esforços da sociedade civil para promover o
desenvolvimento nacional”128. Das recomendações saídas da conferência parece ter
prevalecido a posição da perspectiva reformista/representativa, sendo que a primeira
recomendação frisa a necessidade de “representação” da dimensão nacional da socie-
dade civil por via do reforço do FONGA (Fórum das ONG Angolanas), uma estrutura
que sempre foi um espaço de articulação e concertação de posições das ONG nacionais
que a ele aderiram, mas nunca de representação da totalidade das ONG angolanas:
Repensar o papel do FONGA como mecanismo de coordenação das ONG nacionais, com
especial atenção para a representatividade nacional. Isto está relacionado com as relações
com as outras plataformas e com as formas organizativas da sociedade civil nas províncias,
municípios e aldeias129.
Outra das recomendações, em que se pode notar a prevalência da posição reformista/
/representativa, refere que para além da necessidade de unificar, é igualmente ne-
cessário colaborar com o governo e representar a sociedade civil perante este, num
engajamento construtivo, ainda que autónomo:
É necessário garantir uma representação, com qualidade, da sociedade civil nos conselhos
que se vão formando aos vários níveis. Um engajamento construtivo mas autónomo com o
governo é fundamental para este aproveitamento dos espaços de diálogo e negociação130.
Na verdade, a posição mais contestatária ao “reformismo” é minoritária, tanto a nível
das ONG nacionais como internacionais. Contudo, ao contrário do que seria de espe-
rar, a prevalência da postura reformista não tem conseguido resultados de relevo. Por
um lado, como vimos, não consegue alterar significativamente as políticas no que se

126
Ver neste sentido entrevista de Luís Araújo em Vidal, Nuno, “O campo de minas… op. cit., pp. 63-64. A discussão
entre aquelas duas posições e os seus argumentos são também perceptíveis nos textos do capítulo II deste livro.
127
Amundsen, Inge & Abreu, Cesaltina, Civil Society in Angola: Inroads, Space and Accountability, a Christian Michelsen
Institute Report (Bergen-Norway: CMI, 2006), nota de rodapé 27, p. 18.
128
Conclusões da Conferência Nacional da Sociedade Civil, p. 1
129
Conclusões da Conferência Nacional da Sociedade Civil, ponto 3, alínea a), i, p. 2.
130
Conclusões da Conferência Nacional da Sociedade Civil, ponto 3, alínea g), p. 3.
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 37

refere aos sectores sociais e, consequentemente, as condições de pobreza e carência da


maioria da população, por outro, também não consegue apaziguar os constrangimentos
impostos à sociedade civil pelo poder político.
Independentemente das cedências e cooperação suave da parte das OSC, as investidas
do governo não têm diminuído, antes pelo contrário. Tal facto pode ser constatado na ile-
galização da organização MPalabanda em Cabinda, na ameaça velada de ilegalização das
ONG nacionais e internacionais que mais incómodos políticos têm causado — Open-Society
Angola, Mãos Livres, AJPD e SOS Habitat 131 —, nos constrangimentos à actividade dos me-
dia (incluindo a prisão de jornalistas132), ou ainda no recente encerramento do escritório de
Direitos Humanos das Nações Unidas em Angola (HROA – Human Rights Office Angola).
O encerramento do HROA é, aliás, um exemplo paradigmático do fracasso de uma
postura de “criticismo limitado”, que nos últimos anos era assumida pelo escritório,
derivada da precariedade da sua situação legal em Angola. O projecto de um sector
da ONU em Angola dedicado aos DH começou em 1995, com o Representante do
Secretário-Geral, Alioune Blondin Beye, e vai dedicar-se à monitorização, recolhen-
do informação que será depois transmitida à Amnistia Internacional (1996-97). Esta
transmissão de informação desagradou profundamente ao governo e a partir de en-
tão o escritório limitou-se à promoção dos DH, deixando de lado a monitorização e
divulgação de informação, passando igualmente a prestar assistência técnica a partir
de 1999. Após os acordos do Luena (Março de 2002), o governo vai deixar expirar o
último mandato da ONU em Fevereiro de 2003 sem o renovar. O actual escritório de
DH da ONU nasce a 3 de Maio de 2003, sem mandato, apenas com um acordo verbal
feito entre o Presidente Eduardo dos Santos e Sérgio Vieira de Melo, aquando da visita
deste a Angola, e para vigorar até final de 2007. O acordo englobava apenas assistência
técnica e promoção, excluindo a protecção, monitorização, avaliação ou relatórios133.
Desde 2005 que, sem sucesso, o escritório se esforçava por conseguir um mandato
claro que lhe permitisse desenvolver o seu trabalho de forma estável e livre dos cons-
trangimentos implicitamente impostos (com a ameaça velada mas sempre presente
de encerramento). Com as eleições marcadas para 2008, o consequente aumento da
tensão política e a vontade de contrair o espaço cívico levarão o governo a decidir-se
efectivamente pelo encerramento do HROA, anunciado em Abril de 2008134. Nem o

131
Em declarações à Rádio Nacional de Angola, no noticiário das 13:00 horas de terça-feira, de 10 de Julho de 2007, e
retomadas pelo Jornal de Angola na sua edição n.º 10812, pag. 3, de quarta-feira, de 11 de Julho de 2007, o Director
Geral da UTCAH acusou a Open Society, a AJPD, a Mãos Livres e a SOS Habitat de exercerem actividades à margem
da Lei, incitando a população à desordem e desobediência ao governo e suas instituições e de desenvolverem
actividades reservadas a Partidos Políticos, num claro prelúdio a um processo de ilegalização que eventualmente
poderá vir a seguir; Ver igualmente artigo de Mário Paiva no semanário A Capital, de 14 de Julho de 2007; ainda
artigo de Reginaldo Silva no Angolense, de 14 de Julho de 2007.
132
O mais recente caso é o de José Lelo, correspondente da Voz da América em Cabinda, preso em Novembro de 2007 sob
acusação de “instigação à rebelião e crime contra a segurança do Estado”; um caso anterior diz respeito ao director do
Semanário Angolense, Graça Campos, preso em 3 de Outubro de 2007 e condenado pelo Tribunal Provincial de Luanda a
8 meses de prisão efectiva e ao pagamento de 250 mil dólares, por crime de difamação e calúnia contra o antigo ministro
da Justiça, Paulo Tchipilica; a respeito dos contrangimentos aos media, ver Vidal, Nuno “The Angolan Regime… op.
cit.; também Relatório Oil and Governance Report, a case study of Chad, Angola, Gabon and São Tomé e Principe, by Karin
Alexander & Stefan Gilbert, Institute for Democracy, in South Africa, 2008, p. 28; relatório da Human Rights Watch,
Proteção Limitada Liberdade de Expressão e Informação sob a Nova Lei de Imprensa Angolana, HRW, Novembro de 2006, p.
10; também Human Rights Watch World Report 2006, HRW, Washington, p. 76.
133
Entrevista concedida ao autor por Michael Offerman do Escritório das Nações Unidas para os Direitos Humanos
em Angola (Luanda: 3 de Junho de 2007)
134
Ver artigo de Ana Dias Loureiro no jornal Público, de 29 de Abril de 2008.
38 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

facto de o governo angolano ter passado a integrar o Conselho dos Direitos Huma-
nos das Nações Unidas em Maio de 2007 serviu de impedimento ao encerramento
do escritório.

Conclusão
A ter existido um qualquer ethos Socialista minimamente genuíno, desfez-se logo nos
primeiros anos de independência (1975-1977). A lógica patrimonial, desde cedo insta-
lada, disseminou-se, atravessando toda a organização social efectivamente existente e
alastrando a todos os estratos sociais. Os primeiros sinais deste processo revelam-se
na degradação dos sectores sociais e na corrupção que se começou gradualmente a
generalizar sob diversas formas e matizes, materializando-se na predação dos recursos
públicos e na deliquiescência da consciência pública e do Estado social solidário. Os
esquemas e as estruturas de funcionamento da lógica patrimonial cristalizaram-se ao
longo de duas administrações Socialistas e vão sobreviver com sucesso (reforçar-se de
sobremaneira) à transição para o multipartidarismo e à economia de mercado.
Desde cedo se percebeu que apesar do novo enquadramento jurídico-formal nascido em
1991-92, os antigos detentores do poder político-económico tudo fariam para resistir a mu-
danças de fundo nos centros de decisão e na estrutura de controlo do aparelho de Estado
que pusessem em perigo a manutenção do seu domínio político-económico-social.
O espaço de exercício efectivo dos direitos fundamentais de primeira geração (civis e
políticos), de segunda geração (económicos, sociais e culturais) e de terceira geração
(direito à transparência e boa governação como facilitadores do desenvolvimento,
combate à pobreza e inclusão social), iria (e irá) necessariamente contra a forma como
está estruturado o poder político-económico em Angola.
A separação dos poderes executivo, legislativo e judicial, a institucionalização da
política, a diferenciação entre público e privado, a transparência na gestão das contas
públicas, a descentralização administrativa, a distribuição de rendimentos de acordo
com critérios de equidade, meritocracia, solidariedade social e desenvolvimento pú-
blico, são completamente contrárias a uma lógica patrimonial.
É por este motivo que os chamados DH de terceira geração são fortemente contes-
tados por todos os governos e governantes cuja governação e regimes padecem de
deficits graves de transparência e boa-governação, recusando-se a considerar estes
direitos como sendo parte dos DH. Esta recusa é tanto mais firme quanto percebem
que ao aceitar tais direitos por parte dos governados em geral, estariam a admitir a
relação (que naturalmente existe) entre sociedade civil e política e o direito de todos
os governados em acompanharem, fiscalizarem e participarem na governação de
forma cada vez mais activa e presente — o pior pesadelo para qualquer regime não
democrático. No caso de regimes africanos de cariz patrimonial, isto significaria uma
perigosa perda de controlo, devido a que esses sistemas se baseiam na cuidadosa
selecção de um número reduzido de cooptados (somente aqueles que se considera
serem os necessários à manutenção do status quo), sendo que a maioria terá sempre
de ser mantida fora dos benefícios; tratam-se de sistemas baseados na exclusão da
maioria, na discriminação e no elitismo de acesso aos benefícios.
É dentro deste âmbito que se podem entender os vários constrangimentos colocados
pelo governo à actuação da sociedade civil, da oposição partidária e das limitações a
Nuno Vidal f Política, Sectores Sociais e Sociedade Civil em Angola 39

apoios externos que possam facilitar a acção daqueles actores. É também nesta lógica
que se pode entender a diferente percepção do que é sociedade civil para o governo e
para os activistas sociais. O governo tem uma perspectiva muito restritiva e limitada, de
tipo assistencialista, uma sociedade civil “parceira” (apolítica, subordinada e cúmplice)
para ajudar na prestação de serviços sociais em múltiplos micro-projectos dispersos. As
OSC que recusam liminarmente a perspectiva do governo, têm uma visão macro, de
verdadeira parceria participativa e interventiva para ajudar a construir uma sociedade
mais democrática, justa, equitativa e transparente. Consideram, lógica e naturalmente,
que a defesa dos DH é política por natureza, lidando com questões de interesse público
que afectam a vida de toda a população. Naturalmente que se trata de uma perspectiva
de abordagem diferente da abordagem partidária, desde logo porque as OSC não exis-
tem com o intuito de conquistar e exercer o poder político, mas de influenciar políticas
públicas que concretizem na prática os DH. A tentativa do governo de “despolitizar”
as OSC também procurou incluir a Igreja, que sensata e imediatamente reagiu por Dom
Damião Franklin dizendo que a Igreja não se pode alhear das res publica, porque também
ela tem uma missão social e pública a cumprir135.
O longo processo de cristalização de uma lógica de patrimonialismo moderno no siste-
ma político-económico existente (que começou num modelo dito Socialista e está agora
num modelo dito democrático-multipartidário) não significa uma impossibilidade total
de mudança ou de condenação à imutabilidade. Comparativamente ao início dos anos
noventa (quando se iniciou o processo de transição para o multipartidarismo), fizeram-se
algumas conquistas na área dos DH em Angola, que é preciso consolidar para prosseguir
na abertura de espaços e evitar a sempre eminente possibilidade de regressão. Contudo,
é igualmente necessário ter em conta que a partir de um certo nível de efectiva imple-
mentação dos DH entrar-se-á em choque com poderosos interesses político-económicos
instalados, que irão necessariamente reagir. Caso não existam mecanismos de protecção
eficazes para os defensores dos DH, as reacções mais violentas poderão significar riscos
pessoais para os activistas envolvidos (principalmente os nacionais)136.
Quem pugnar por uma efectiva e completa implementação dos DH em todas as suas
dimensões e para além de certos limites está, em variadíssimas áreas, a entrar numa
luta contra o poder e os interesses há muito estabelecidos. Será, obviamente, um com-
bate muito desigual em meios, recursos e vontades.
A necessidade de legitimidade política internacional (e em parte nacional) “obrigam”
o sistema efectivamente existente a permitir o funcionamento de mecanismos próprios
de um sistema democrático e de Direito, incluindo os DH, mas dentro de limites que
não coloquem em causa os interesses fundamentais do poder instalado e do seu modus
operandi.
É na definição deste limite que entram em choque os interesses daqueles que lutam
pela implementação e funcionamento cada vez mais efectivo dos mecanismos de
democratização e os interesses daqueles que apenas querem uma “aparência demo-
crática”, que não altere os fundamentos patrimoniais do sistema que lhes permitem
manter o controlo pessoal dos recursos públicos.

135
Ver artigo de Mário Paiva no semanário A Capital, de 14 de Julho de 2007; ainda artigo de Reginaldo Silva no
Angolense, de 14 de Julho de 2007.
136
Ver Amnesty International, Report 2007, the state of the world’s human rights, disponível em http://thereport.
amnesty.org/eng/Regions/Africa/Angola; também Amnesty International, Above the Law Police Accountability in
Angola, Setembro de 2007, AI Index: AFR 12/005/2007, disponível em www.amnestyusa.org
40 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Também neste sentido, diz o Projecto de Estratégia de Execução do HROA (Human


Rights Office Angola) 2006-2007,
O governo está plenamente consciente e de certa forma incomodado com a percepção
negativa que a comunidade internacional tem de Angola enquanto país corrupto, sem
vontade ou capacidade para investir os seus vastos rendimentos a favor do desenvol-
vimento e direitos da maioria. Mas também está consciente das suas limitações a esse
respeito, e o desafio é saber até que ponto a procura pelo reconhecimento internacional (e
legitimidade interna) pode permitir que uma parte dos interesses velados da elite político-
-económica possam ser sacrificados a favor de algum aumento de poder democrático e
de políticas redistributivas137.

137
Execution Strategy 2006-2007 Project of the UN Human Rights Office in Angola, p. 1.
41

O Processo de Transição em
Angola: Sociedade Civil, Partidos
Políticos, Agentes Económicos
e População em Geral

Introdução
Justino Pinto
de Andrade
Universidade Católica
A ngola vive ainda um processo de transição do velho
regime político de partido único para um regime po-
lítico multipartidário que se quer democrático. Este pro-
de Angola - UCAN cesso ainda está em curso, mas a análise da sua evolução
demonstra que se está longe da efectiva democracia. Angola
constitui um caso de transição sem mudança, a exemplo
do que aconteceu em muitos outros países do mundo que
saíram de regimes autoritários. A sua posição enquanto
produtor de petróleo com um peso crescente na produção
mundial permite-lhe resistir aos condicionalismos exter-
nos em termos de boa-governação, transparência e respeito
pelos Direitos Humanos. A oposição político-partidária é
fraca ou mesmo incipiente, sendo a sociedade civil a chamar
a si as despesas da contestação em relação aos assuntos
politicamente mais incómodos para o poder estabelecido.
No entanto, este papel está cada vez mais limitado pelos
constrangimentos impostos por parte do governo. Com
uma oposição fraca ou enfraquecida, uma sociedade civil
muito limitada na sua actuação, pressões externas muito
condicionadas e uma população maioritariamente pobre
e ausente da participação e intervenção nos processos de
decisão político-económica, torna-se difícil construir uma
democracia efectiva.
O presente texto está estruturado em quatro capítulos. O
primeiro apresenta o caso angolano no contexto das di-
versas transições de regimes autoritários, de esquerda e
de direita, ocorridas em vários quadrantes do mundo. O
segundo discute o papel das pressões externas por maior
transparência, boa-governação e respeito pelos Direitos Hu-
manos, exercidas sobre o governo de Angola e a reacção
deste. O terceiro capítulo analisa o papel desempenhado
pelos partidos políticos da oposição e pelas Organizações
da Sociedade Civil (OSC) no processo de transição, face
aos obstáculos levantados pelo governo. Por fim, o quarto
capítulo aborda a situação dos mais pobres e excluídos da
sociedade — a maioria da população — face ao processo
de transição.
42 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

1 – Angola no Contexto das Transições Político-Económicas


de “Esquerda” e de “Direita”

1.1 – Transições de “esquerda” e de “direita” sem mudança


Ainda não há uma ideia precisa, completamente estruturada, analítica e conceptu-
almente, sobre a teoria da transição política, mas isso não nos impede de fazer uma
incursão sobre o actual momento político de Angola, procurando contextualizá-lo no
panorama internacional dos processos de transição política e económica, embora cada
um deles apresente as suas próprias especificidades, características e nuances.
Salvaguardando as especificidades de cada caso, os processos de transição política
das últimas décadas, ocorridos em regimes repressivos mono-partidários (de direita
ou de esquerda), apresentam alguns traços gerais que devemos ter em conta quando
abordamos este tema das transições. Regimes civis, ditos de esquerda Socialista ou
de direita com características militaristas, poderão ser de alguma relevância para a
compreensão do caso angolano.
A nível dos regimes ditos Socialistas do antigo bloco de Leste, temos duas situações
distintas, que se dividem entre os casos da chamada Europa de Leste e o caso da
Rússia.
Nos países Leste Europeus, com a queda do muro de Berlim em 1989, ao mesmo tempo
que se processaram profundas transformações políticas, também foram tendo lugar
importantes alterações de carácter económico. Aí alterou-se quer o regime político, quer
o próprio modo de produção e de propriedade. Abriu-se o espaço político à participação
de outros actores. Os próprios partidos comunistas, antes todo-poderosos, ou foram
banidos, ou metamorfosearam-se em partidos Socialistas ou social-democratas. Com
essa nova roupagem, ou não, é certo que eles deixaram efectivamente de ser partidos
únicos ou hegemónicos. O regime económico, antes de propriedade estatal e de planifi-
cação centralizada, passou, então, a admitir e a integrar outras formas de propriedade,
obedecendo às leis do mercado. Assim, muitos dos antigos regimes do Leste Europeu
são, agora, democracias relativamente bem sucedidas, estando a integrar o espaço de-
mocrático e competitivo da União Europeia, hoje com vinte e sete países. A proximidade
geográfica e, de certa forma, cultural, destes países em relação às democracias ocidentais
europeias, terá facilitado uma mais rápida afirmação das forças da mudança, naqueles
que estavam realmente interessados em implementar um novo modelo. Estando mais
próximos, foi mais fácil um estreitamento das relações económicas e, também, das rela-
ções de carácter político com vista a uma mudança efectiva.
O caso da Rússia é algo diferente dos seus outrora aliados. A antiga potência econó-
mica e política tutelar do Bloco de Leste, embora vivendo sob um sistema político
pluralista, não se pode dizer que tenha efectivamente transitado para um regime
democrático. Tal deve-se, pelo menos em parte, ao facto de o poder económico nesse
país ter sido repartido de um modo quase absoluto entre os representantes da antiga
oligarquia comunista e/ou os seus representantes, constituindo hoje um país onde
residem algumas das maiores fortunas do mundo, graças ao enriquecimento feito
por apropriação privada do património público. O facto de este país ter os meios e os
recursos que lhe permitem assumir alguma autonomia económica e política interna-
cional, fez com que o seu processo de transição fosse bastante mais impermeável aos
condicionalismos que normalmente andam associados aos empréstimos e às ajudas
Justino Pinto de Andrade f O Processo de Transição em Angola 43

económico-financeiras do Ocidente, ou seja, transparência, boa-governação, respeito


pelos Direitos Humanos. A economia do país foi apossada pela velha nomenklatura
do anterior regime totalitário ou autocrático, que geriu em seu benefício próprio o
processo de transição, assegurando a manutenção do poder político e económico no
novo modelo “democrático” liberal, ou seja, uma transição sem mudanças essenciais
no que respeita à manutenção do poder efectivo.
No que se refere a regimes repressivos de direita militarista temos situações semelhan-
tes, de transição sem alteração profunda do status quo. Na maioria dos casos trataram-se
de transições “democráticas” resultantes de pactos. Na América Latina, tal é o caso do
Brasil, do Chile e da Argentina (em épocas diferentes); na Ásia podemos encontrar o
exemplo paradigmático da Indonésia.
No Brasil, a transição democrática conheceu dois ciclos distintos, um primeiro ciclo
teve lugar em meados da década de 1970 e um segundo a partir de 1984, altura em que
se deu uma grande mobilização popular. O cerne do problema de um processo cheio
de impasses parece ter estado ao nível das forças armadas e das cedências e acordos
que tiveram de ser conseguidos com os militares, que durante muitos anos domina-
ram o poder político e económico. No primeiro ciclo, para que os impasses fossem
ultrapassados foi necessário assegurar determinadas garantias aos militares, como
a não punição para os crimes cometidos pelo aparelho repressivo, a manutenção de
muitas das prerrogativas económicas e políticas das forças armadas, assegurando a sua
sobrevivência e a continuidade da elite civil a elas ligada e criada pelo antigo regime.
Construiu-se, progressivamente, um quadro político-legal capaz de alterar o modelo
formal, mas mantendo inalterada a essência do sistema no que concerne à manutenção
do poder. Todos conhecemos as enormes disparidades em termos de distribuição de
rendimentos no seio da sociedade brasileira e as graves injustiças sociais que preva-
lecem cristalizadas, herança clara do processo de “transição” sem grandes mudanças
efectivas na detenção do poder político e económico (e respectivos privilégios).
Os casos do Chile de Augusto Pinochet, da Argentina militarista de Videla, Viola e
Galtieri, ou da Indonésia de Suharto, constituem igualmente exemplos de transições
por pacto, ou seja, com o beneplácito e acompanhamento dos militares mediante
negociação das habituais prerrogativas de não perseguição pelos crimes cometidos,
manutenção das fortunas acumuladas à custa do erário público e possibilidade de
continuarem a ter um acesso privilegiado aos recursos públicos e aos cargos políticos,
que normalmente dão acesso aos recursos públicos, regalias e benefícios; no fundo, a
possibilidade de continuarem a ser uma elite. Todos estes casos constituem exemplos
de processos de transição “democrática” sob patrocínio das forças armadas do antigo
regime militar.
Excepção feita aos casos dos países do Leste Europeu, que integraram ou pretendem
efectivamente integrar a União Europeia, todas as outras situações de transição sem
mudança substantiva (a partir de ditaduras de esquerda — ditas do proletariado —, ou
ditaduras de direita militarista) apresentam inúmeras insuficiências e debilidades, não
podendo ser consideradas democracias nem no sentido mais lato e flexível do termo.
São democracias de fachada ou de “pés de barro”, muito frágeis, sempre sujeitas a
retrocessos e a erupções de violência.
Existem múltiplos constrangimentos à consolidação de regimes democráticos edificados
sobre as cinzas de antigos regimes totalitários ou autocráticos que não deixaram efectiva-
44 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

mente de o ser. Refiro aqui tanto as questões de ordem económica, como, igualmente, as
de cariz político, social e cultural. Um regime democrático não pode frutificar sobre um
sistema em que não exista uma efectiva separação de poderes — executivo, legislativo
e judicial —, onde se confunda a dimensão pública e privada, onde os detentores de
cargos públicos considerem uma prerrogativa pessoal tirarem benefícios privados da
gestão que podem fazer dos recursos públicos, onde não exista um respeito efectivo dos
direitos, liberdades e garantias fundamentais da maioria dos cidadãos (com mecanismos
funcionais de protecção), onde as regras do mercado e a liberdade da iniciativa privada
sejam fictícias, dependendo essencialmente de favores e patrimonialismo político, onde
a política (tráfico de influências e de favores) continua a ser o principal meio de acesso
à progressão económica, onde a meritocracia pouco ou nada conta.
Angola constitui um destes casos de processos de transição formal, mas não substan-
cial ou efectiva, mais um caso de regime aparentemente democrático, uma espécie
de “multipartidarismo sem democracia e com pés de barro”, uma fachada que es-
conde uma realidade diversa. Em fundações fracas, a qualidade e a durabilidade da
construção é sempre muito incerta e o risco de desmoronamento face a intempéries é
sempre grande. Em regimes com estas características, como sabemos, as intempéries
formam-se na camada dos excluídos dos benefícios, que são sempre a maioria, ou em
segmentos das elites outrora beneficiadas e que o deixaram de ser ou que passaram a
ser menos favorecidas ou ainda que querem ter tudo — o lugar cimeiro da liderança
de acesso às fontes de recursos.
Quem queira antever o sucesso ou o insucesso de uma transição política tem que rea-
lizar uma análise sociológica dos actores dos processos de transição democrática. Tem
que estudar o modo como tais actores interiorizam os valores políticos democráticos
e como efectivamente actuam em relação à mudança, porque sem democratas não se
edificam democracias.

1.2 – Angola: a nomenklatura empreendedora ou a “acumulação primitiva


de capital”
Em Angola temos um processo de transição que reúne características dos processos
acima referidos, tanto em sistemas repressivos militaristas de direita, quanto em regi-
mes de esquerda Socialista: primeiro, a capacidade da antiga nomenklatura Socialista
gerir o processo de transição, assegurando a manutenção do seu poder económico
e político dentro do novo modelo, dito democrático; segundo, a satisfação das altas
hierarquias militares por via de acesso a inúmeros benefícios sócio-económicos e po-
líticos (apropriação de bens públicos, licenças de exploração de zonas diamantíferas,
manutenção de cargos políticos na estrutura partidária-estadual-governamental), para
além da garantia da sua impunidade relativamente a procedimentos passados (uma
impunidade que é, aliás, alargada a toda a classe política e mesmo às actuais forças
de segurança, com reiteradas queixas internacionais face às violações dos Direitos
Humanos); terceiro, a manutenção dos privilégios das elites, beneficiadas à custa
de enormes injustiças sociais, fortes desequilíbrios na distribuição do rendimento e
bolsas de pobreza extrema; quarto, a manutenção de duros esquemas, camuflados e
disfarçados, de repressão e de desrespeito pelos Direitos Humanos.
Os actores do antigo regime de partido único transitaram para o novo figurino “de-
mocrático” sem interiorizarem qualquer conceito de necessidade de democracia que
Justino Pinto de Andrade f O Processo de Transição em Angola 45

não a conjuntura de guerra civil interna e as exigências da nova onda internacional


que varreu o planeta no final dos anos oitenta e início dos anos noventa; adormeceram
um dia marxistas e acordaram, no dia seguinte, democratas, a dirigem e a controlarem
inteiramente o processo de transição, o seu ritmo e os seus contornos em benefício
próprio para manutenção dos seus privilégios.
O processo de privatizações que se prolonga desde o início dos anos noventa foi todo
ele conduzido em favor da antiga nomenklatura, que de Socialista marxista rapidamente
passou a ser empresarial capitalista, num processo a que, ironicamente, muitos chamaram
de “acumulação primitiva do capital”. É deste modo que vemos surgir altos dignitários
do poder governamental/Estadual/partidário entre os principais accionistas de projectos
nas mais diversas áreas, como o sector agro-industrial, imobiliário, bancário e segurador.
Aparecem associados a todos os mais rentáveis negócios em Angola.
Dizer que o favorecimento, o clientelismo e a utilização privada de recursos públicos
são a regra dominante na gestão político-económica em Angola não constitui qualquer
novidade. Angola tem apresentado sempre um fraco desempenho nas avaliações
internacionais sobre corrupção. A organização Transparência Internacional elabora
regularmente um ranking sobre a corrupção onde Angola ocupa regularmente os
lugares mais incómodos1.
O escândalo internacional que ficou conhecido como Angolagate, envolvendo per-
sonalidades brasileiras, francesas e até mesmo da Rússia, foi aquele que mais des-
gastou a imagem internacional do país. A situação agravou-se, ainda mais, quando
o Presidente da República, José Eduardo dos Santos, designou o principal acusado
no escândalo, o franco-brasileiro Pierre Falcone, como ministro-conselheiro junto da
representação angolana na UNESCO. Para além do envolvimento no tráfico de armas,
no seio do complexo processo do Angolagate, Pierre Falcone foi também o principal
pivot no processo de renegociação da dívida angolana para com a Rússia, negócio que
envolveu um seu associado Arkadi Gaidamak. Nesse processo, Falcone apareceu ao
lado de personalidades de elevada craveira e responsabilidade na governação do país,
incluindo o próprio Chefe de Estado, José Eduardo dos Santos.
A corrupção institucional e o enriquecimento ilícito das altas figuras do Estado ango-
lano fazem parte de uma estratégia seguida com vista à conservação do poder político
a qualquer custo. Dissemina-se dinheiro entre a antiga nomenklatura, criando-se uma
verdadeira rede tentacular, ligando o poder político ao mundo económico. Na medida
em que a sociedade angolana viveu durante muito tempo em situação de guerra, os
militares (em muitos casos já fundidos com as estruturas partidárias e políticas) não
poderiam ser esquecidos nesta repartição de benefícios e, a título de exemplo, podemos
observar o sector diamantífero, onde altas patentes da Forças Armadas detêm a maioria
das minas de diamantes, participando no garimpo e comercialização. Os proventos
de tão rentável negócio são por sua vez partilhados com altos dignitários do poder
político-governamental, no seio de estreitos laços de lealdade, numa rede clientelar. A
cumplicidade, assim forjada, dissipa quaisquer possíveis fracturas e divergências no
seio do status quo estabelecido.
Embora o diamante se explore já em muitas outras áreas do país, a região das Lundas
(Norte e Sul) é aquela que sente mais os nefastos efeitos da apropriação desenfreada e

1
Ver relatórios em www.transparencyinternational.com
46 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

sem limites dos recursos naturais e da corrupção. As Lundas estão transformadas numa
zona demasiado insegura. É para lá que confluíram inúmeros bandos de aventureiros,
nacionais e estrangeiros. A agricultura tornou-se impraticável, devido aos constrangi-
mentos que se lhe impõem, pelo estado de destruição dos solos e pelo desvio dos cursos
de água, quase não se desenvolvendo qualquer outra actividade produtiva. Trata-se de
uma região profundamente afectada por graves violações dos mais elementares Direitos
Humanos. Ao contrário do que seria expectável, o fim do conflito militar agravou a difícil
situação que já se vivia naquela região, com a chegada de “exércitos” privados ao serviço
dos generais empreendedores ou generais garimpeiros. A ausência da ordem pública
estabelecida pelas forças de segurança do Estado transforma a região numa espécie de
Far West norte-americano nos tempos da corrida ao ouro.
2 - A Gestão dos Recursos e as Pressões Externas por Transparência,
Boa-Governação e Direitos Humanos
Na última década, em vários fóruns internacionais, têm sido sistematicamente reafir-
mados, em tom de exigência crescente, os princípios da boa-governação pública e da
ética empresarial, e condenadas as práticas do suborno e da corrupção. Nesses fóruns
faz-se igualmente a apologia do respeito pelos Direitos Humanos e da transparência
na gestão das finanças públicas.
Em Angola, segundo denúncias do FMI, uma percentagem razoável das receitas pro-
venientes do petróleo não são reflectidas no Orçamento Geral do Estado (OGE)2, sendo
executadas fora das regras e dos procedimentos estabelecidos pelo próprio governo, o
que é facilitado pelo facto de os impostos pagos pelas companhias petrolíferas, assim
como os “bónus de assinatura” (pagamentos que são feitos quando uma companhia
acede à exploração de novos blocos petrolíferos) não se encaminharem directamente
para o Tesouro Público. São recursos financeiros que transitam por contas off-shore
registadas em nome da Sonangol ou de altos dignitários do Estado e do governo3.
Em Dezembro de 1999, a Global Witness publicou um relatório expondo a aparente cum-
plicidade das empresas petrolíferas e bancárias na apropriação de receitas provenientes
da venda dos recursos minerais, em especial do petróleo, por parte de responsáveis
do Estado4. Do relatório produzido pela Global Witness, emergiu um apelo público às
empresas petrolíferas que operam em Angola para que tornassem públicos os seus
pagamentos ao Estado angolano. A preocupação estendeu-se a outros países onde a
gestão das receitas provenientes da venda de recursos minerais é mal gerida e indevi-
damente apropriada por governantes, alimentando a corrupção internacional, o tráfico
de armas e outro tipo de negócios ilícitos. À Global Witness, juntaram-se depois outras
instituições, como a Oxfam, Save the Children UK e Transparency International UK.
Com o fim da guerra civil em 2002, as pressões internacionais sobre o governo angolano
começaram a aumentar de tom, clamando por transparência, boa-governação e Direitos
Humanos, vindas não só de Organizações Não-Governamentais Internacionais (ONGI),
como de Organizações Governamentais (OG) e Organizações Internacionais (OI). O

2
In Time for transparency, coming clean on oil, mining and gas revenues, a report from Global Witness, de Março de
2004, especialmente p. 35.
3
Vide neste sentido a explicação (justificação) dada pelo embaixador Alberto Correia Neto, in O Globo, de 21 de
Novembro de 2005.
4
In A Crude Awakening: the role of the oil and banking industries in Angola’s civil war and the plunder of the state assets, a
report by Global Witness, Dezembro de 1999.
Justino Pinto de Andrade f O Processo de Transição em Angola 47

acesso a novos empréstimos de organizações financeiras internacionais começou a ser


condicionado por aquelas exigências.
Também a Open Society lançou uma campanha internacional “Publique o Que Paga”,
uma campanha que veio a merecer a adesão de múltiplas Organizações Não-Governa-
mentais e até mesmo de alguns países acossados pelo fenómeno da corrupção massiva
como, por exemplo, a Nigéria de Olusengu Obasanjo. Angola, no entanto, reagiu mal
a este tipo de iniciativas e a companhia nacional de combustíveis, a Sonangol, intimou
as companhias petrolíferas que operam em Angola a silenciarem-se totalmente sobre o
conteúdo das relações financeiras que estabelecem com o país, sob pena de represálias
em futuros negócios.
A relutância do governo angolano em obedecer a critérios de transparência, boa-
governação e Direitos Humanos começou a dificultar a sua tarefa em mobilizar apoios
financeiros internacionais no quadro do projecto de reconstrução nacional. Foi isso
que fez gorar a possibilidade de realização de uma Conferência Internacional de Doa-
dores. Os potenciais doadores não só reconheceram que Angola possuía capacidades
financeiras capazes de garantir a reconstrução, mas que fazia igualmente uma gestão
inadequada desses mesmos recursos.
É neste contexto que surge a oportunidade oferecida pela República Popular da Chi-
na, disposta a viabilizar volumosos empréstimos ao governo angolano em condições
financeiras muito vantajosas (em comparação com as condições oferecidas pelas ins-
tituições financeiras internacionais) e sem quaisquer condicionalismos. O governo
chinês faz verdadeira tábua rasa sobre questões que tenham a ver com a transparência,
boa-governação e Direitos Humanos e, para o regime angolano, reside aqui toda a
vantagem, podendo ignorar os condicionalismos do Ocidente e das “suas” instituições
e organizações.
Rapidamente o governo angolano reiterou as suas velhas práticas de falta de transparência
na gestão das finanças públicas, imediatamente evidenciadas na forma como o Estado
acedeu aos financiamentos externos da China. Aqueles financiamentos destinavam-se,
supostamente, à cobertura das necessidades do país no âmbito da reconstrução das infra-
estruturas destruídas pela guerra, para edificação de novas infra-estruturas e eventual
redução da dívida externa. Numa gestão transparente e legal das finanças públicas, a
contratação dos financiamentos externos teria de obedecer à aprovação prévia pelo Par-
lamento no âmbito das rubricas constantes do Orçamento Geral do Estado (OGE) ou do
Plano Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (PNDES). Na prática, contudo,
tal não aconteceu e estes empréstimos não passaram pela aprovação do Parlamento, pelo
OGE ou pelo PNDES.
A qualidade da gestão dos recursos é certamente um factor decisivo para as perspecti-
vas de desenvolvimento futuro. Angola, como sabemos, tem experimentado taxas de
elevado crescimento económico nestes últimos anos, depois do fim do conflito militar,
a rondar os 20% ao ano. No entanto, todos sabemos também que grande parte dessa
percentagem se deve ao crescimento do sector mineral (essencialmente petróleo e dia-
mantes). O aumento da produção do petróleo aliado ao aumento progressivo do preço
do barril nos mercados internacionais tem permitido uma bonança sem precedentes
na história do país. Se juntarmos este contexto internacional à situação de paz em
Angola, que nunca existiu de forma minimamente duradoura desde a independência,
temos uma conjuntura sem precedentes na história do país. Esta conjuntura (interna e
48 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

externa) constitui uma oportunidade para se desenvolver a economia de uma forma


equilibrada e sustentada. No entanto, temo que seja mais uma oportunidade perdida,
na medida em que os sectores não-minerais da economia não têm sido suficientemente
impulsionados pelos recursos provenientes do petróleo. Por definição, os sectores
não-minerais são os principais criadores de emprego, constituindo-se também nas
mais importantes fontes de rendimento para as famílias.
De igual modo, o processo de reconstrução nacional, com um vasto programa de obras
públicas, poderia ser o grande impulsionador da economia não-mineral, caso a despesa
pública beneficiasse de um efeito multiplicador ao estilo Keynesiano. Contudo, o que
verificamos está longe de se aproximar de um crescimento económico propulsionado
pelo processo de reconstrução. A maioria das empresas, a quem são adjudicadas as
principais obras, são estrangeiras e contratam funcionários estrangeiros, por vezes até
para a realização dos trabalhos mais básicos (e.g. cavar valas; tal como acontece com
as empresas chinesas). Em Angola, as decisões sobre a afectação de contratos para a
realização de obras públicas de grande vulto são tomadas de um modo discricionário.
Tais afectações não se sujeitam a qualquer concurso público, beneficiam geralmente
as empresas detidas, no todo ou em parte, pela “nova” nomenklatura do poder e seus
parceiros estrangeiros com quem estão conluiadas.
É óbvio que não existe no país capacidade técnica e humana suficiente para a reali-
zação de obras de grande envergadura, mas poder-se-ia aproveitar a oportunidade
para impor determinados procedimentos de contratação de trabalhadores, como por
exemplo a obrigatoriedade de abrir concursos de contratação que somente empreguem
estrangeiros caso não existam nacionais (dentro ou fora do país) com as competências
para desempenhar as funções pretendidas. Esta seria inclusive a oportunidade para
começar a formar mão-de-obra em Angola e garantir que as empresas estrangeiras
deixavam um serviço de formação quando abandonassem o país. Naturalmente que
isto exigiria maior consciência pública por parte dos governantes que negoceiam os
contratos e do poder legislativo, para criar o necessário enquadramento legal, assim
como maior empenho por parte das instituições públicas e capacidade de fiscalização
dos processos de contratação. No entanto, sabemos que outro dos problemas reside
exactamente ao nível da eficiência e eficácia da governação e da administração pública,
muito minada por fenómenos de corrupção.
Por outro lado, uma boa parte dos fundos gastos nos projectos de reconstrução esva-
em-se em esquemas de comissões “instituídas” (que mais não são do que corrupção
institucionalizada5), prejudicando não só o andamento dos projectos de reconstrução
como a qualidade das obras realizadas. Investimentos em bens de capital, que por
definição devem ser relativamente duradouros, manifestam-se perfeitamente inócuos
ao fim de pouco tempo. As estradas constituem o mais claro exemplo, sendo cons-
truídas somente para a inauguração e entrando em degradação acelerada nos meses
seguintes, por clara falta de resistência dos materiais ao tráfego, peso dos veículos que
circulam nas vias e elementos naturais. O problema não está ao nível do valor total que
é efectivamente dispendido pelo erário público na obra e que seria mais que suficiente
para construir uma obra de primeiríssima qualidade em qualquer parte do mundo,
mas sim nas comissões que são embolsadas ao longo de todo o processo e que acabam

5
A este respeito a melhor explicação pertence ao embaixador angolano, então no Brasil, Alberto Correia Neto, in O
Globo, de 21de Novembro de 2005.
Justino Pinto de Andrade f O Processo de Transição em Angola 49

por absorver grande parte das verbas, à custa de reduções e cortes na qualidade dos
materiais empregues na obra.

3 – Os Partidos Políticos da Oposição e as Organizações da Sociedade


Civil
Em sistemas democráticos multipartidários, os partidos serão os principais actores dos
processos políticos. É por seu intermédio que a colectividade se faz representar e parti-
cipar no sistema de governo e na escolha dos programas de governação. São os partidos
políticos que participam no jogo pacífico da luta pela conquista e exercício do poder.
A qualidade da democracia, e até mesmo a sobrevivência de um processo de tran-
sição democrática, dependem de sobremaneira da interacção dos partidos com a
sociedade, da sua capacidade de representar os interesses e as perspectivas dos seus
constituintes.
Em Angola temos um vastíssimo leque de partidos políticos, a maioria dos quais sem
qualquer expressão ou representatividade social e sequer actividade relevante. Muitos
dos partidos políticos são um mero reflexo de agregações primárias, de fidelidades
familiares, clânicas ou de pequenos grupos de interesse que se reúnem para busca de
benefícios materiais; não possuem um projecto de sociedade, não têm qualquer estru-
tura organizativa minimamente credível, não se lhes ouve uma proposta alternativa à
forma como se processa a governação e ainda menos a qualquer referência de carácter
ideológico. Alimentam-se do Orçamento Geral do Estado e tornam-se presas fáceis
para os apetites de quem se quer manter no poder e que os usa como marionetas, ma-
nipuladas para passar uma imagem pública (nacional e internacional) de pluralismo,
servindo a estratégia de legitimação democrática do regime.
Em relação aos poucos partidos que têm representatividade social, nota-se igualmente
uma certa apatia e incapacidade de se dirigirem ao eleitorado, queixam-se muito de
constrangimentos por parte do partido no poder e de falta de meios, mas esses não
podem ser impeditivos para um trabalho de campo junto das populações. Nos finais
do século XIX e ao longo do século XX, muitos partidos, noutros quadrantes, foram
capazes de se formar e crescer contra adversidades incomparavelmente maiores e mo-
bilizarem vastas camadas da população em torno de projectos políticos alternativos,
de efectiva mudança.
Esta ineficácia e esterilidade dos partidos políticos leva a que, em muitas situações,
sejam as OSC a assumir os encargos de efectivamente trazer à liça as questões can-
dentes e a defender os interesses das camadas pobres e marginalizadas da população
(a maioria). Por este motivo, o regime não tardou a reagir, criando sérias e efectivas
dificuldades à actuação destas organizações, recorrendo a todo o tipo de perseguições
e intimidações, inclusive ameaçando algumas delas de ilegalização e proibição de
actividade (em Cabinda, chegou-se mesmo a efectivar esta ilegalização para com a
associação cívica Mpalabanda).
É indisfarçável a actual tentação para o silenciamento das OSC que não obedeçam à
estratégia eleitoral do partido no poder. Para além do mais, assiste-se a uma descarada e
até aviltante tentativa de instrumentalização (cooptação) de algumas OSC, transforma-
das em correias de transmissão do partido no poder. Tais organizações surgem hoje em
catadupa, quer como associações desportivas, quer recreativas, quer de solidariedade
50 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

local e regional, de ajuda aos mais carentes, etc. Elas estão claramente subordinadas
à estratégia eleitoral do partido no poder, contribuindo para a campanha que visa a
conquista e reforço de uma nova maioria parlamentar.
Se incluirmos na sociedade civil os media privados (fora da alçada directa e explícita
do poder político) temos um outro exemplo de perseguição e tentativa de controlo
em relação a todos quantos ousem desafiar a linha política oficial. Os relatos e queixas
dos profissionais do sector são vários, muitos deles impondo-se uma auto-censura,
sabendo que podem enfrentar inúmeras dificuldades em encontrar trabalho caso se
tornem politicamente inconvenientes.
Dada a incapacidade demonstrada pela oposição partidária, só uma sociedade civil
activa, empenhada e com consciência cívica pública, poderá exercer alguma função
de controlo do exercício do poder governativo. O sucesso de uma transição democrá-
tica depende, também, do modo como se desenvolve a sociedade civil. Um sistema
efectivamente democrático deve dar o mais amplo espaço à sociedade civil, devendo
ser livre de se constituir e de agir.
No entanto, actualmente em Angola, a sociedade civil (incluindo os media privados)
constitui o alvo prioritário da ira daqueles que detêm o poder e não o querem perder
nem alterar o modo como o vêm exercendo, o que põe em risco o processo de transi-
ção política iniciado em 1991, altura em que foram aprovados os instrumentos legais
que consagraram os direitos, liberdades e garantias fundamentais, característicos de
qualquer sistema dito democrático.
4 - Os Excluídos de Angola: a “Maioria Silenciosa”
De acordo com o último Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD, a situação
de Angola é deveras preocupante. O índice de pobreza humana situa-se na ordem dos
40,9%, valor que coloca o país na 23.ª pior performance do mundo, com cerca de 38%
da população em situação de subnutrição6. Persistindo os altos níveis de pobreza e
enormes desigualdades sociais, acentua-se a insatisfação e aumenta a onda de crimi-
nalidade, que atinge níveis sem precedentes em diversas partes do país. As popula-
ções que habitam os bairros suburbanos denunciam a prática de execuções sumárias,
realizadas por polícias, alegadamente para estancar a actual onda de criminalidade.
Por sua vez, os gangs que se multiplicam nos bairros, usam métodos cada vez mais
agressivos para responder à agressividade policial. Há bairros que vivem verdadeiras
noites de terror, com um “recolher obrigatório” imposto pelos bandidos.
Depois da guerra assistiu-se a um crescimento dos recursos financeiros destinados
aos sectores sociais, (a despesa passou de 22% da despesa total, em 2002, para os
actuais 28%). Contudo, a educação, a saúde, a habitação e as infra-estruturas básicas
(saneamento, transportes e vias de circulação) são ainda demasiado débeis. Podemos
constatar estes factos pela falta de qualidade do ensino que se oferece, pela falta de salas
de aula, degradação dos estabelecimentos de ensino e elevados índices de inadiplência
dos professores, com baixos salários e sem condições de trabalho; vê-se, também, no
ressurgimento de certas doenças, como a cólera, a tuberculose e a malária (algumas
destas doenças já estavam praticamente extintas no período colonial), assim como o
aumento da prevalência do HIV/Sida; observa-se, igualmente, no caos urbanístico das
cidades (especialmente na capital), com milhões de pessoas a viverem em musseques

6
Relatório do Desenvolvimento Humano. Nova Iorque: PNUD, 2006.
Justino Pinto de Andrade f O Processo de Transição em Angola 51

sem as mínimas condições de habitabilidade para seres humanos, sem saneamento,


sem acesso a água canalizada ou electricidade. Os prédios deixados do tempo colonial
permanecem, na sua esmagadora maioria, sem manutenção, apresentando sinais de
colapso, sendo o exemplo mais recente e dramático o caso do edifício da Direcção
Nacional de Investigação Criminal, que ruiu em Março de 2008 matando dezenas de
pessoas no seu interior.
Assiste-se ao sistemático desalojamento forçado de populares, habitantes de áreas
periféricas, com o objectivo de se dar um outro aproveitamento às terras, por vezes
para condomínios privados, com casas na ordem das várias centenas de milhares de
dólares norte-americanos para as elites político-económicas. Algumas dessas terras
eram a fonte de cultivo dos poucos produtos que sustentavam a subsistência destas
camadas populacionais em situação de pobreza extrema. O desalojamento forçado
dos populares é acompanhado pela demolição das suas precárias habitações e por
este motivo são recorrentes as reclamações daqueles que ficam sem os seus parcos
haveres a viverem sem abrigo, sujeitos à chuva, ao vento e ao sol, sem quaisquer
infra-estruturas de saneamento, electricidade ou água potável. O realojamento dos
desalojados, quando existe, é feito em locais longínquos que não lhes permitem a
deslocação à cidade para procurarem trabalho ou venderem alguma coisa para o seu
sustento, ou a possibilidade de os seus filhos terem acesso a escolas. Inúmeras vezes,
as acções de desalojamento são conseguidas com o uso desproporcional da força,
havendo casos registados de feridos e até mortos7.
A extinção de mercados periféricos tem sido igualmente acompanhada por actos de
violência policial. Por norma, os vendedores locais reagem à extinção dos seus postos
de trabalho. Constroem-se mercados em substituição dos demolidos, mas em número
insuficiente para realojar todos os que foram prejudicados e em locais de difícil acessi-
bilidade, resultando em quebras significativas de receitas. Como resultado, há mani-
festações de insatisfação e protestos, reiteradamente reprimidos de forma violenta.
Em todo o país, há prisões arbitrárias de cidadãos; os presos sofrem, por vezes,
maus-tratos nas esquadras policiais e são mantidos reclusos em espaços exíguos (nas
esquadras e prisões), sem as condições mínimas de habitabilidade. A sobrelotação
das instalações prisionais foi, inclusive, reconhecida pelo actual titular do Ministério
do Interior, o organismo governamental que superintende as cadeias. Há denúncias
de que não se cuida de fornecer aos reclusos os suprimentos alimentares de que
necessitam. Uma das características do sistema prisional angolano é a manutenção
dos reclusos por longos períodos de tempo, ultrapassando, em matéria de prisão
preventiva, o que está estabelecido na lei. O recente motim que eclodiu na principal
instalação prisional de Luanda, a Cadeia Central de Luanda, veio dar razão a quem
denunciava aquele estado de coisas. Inicialmente, o governo teve dificuldade em
aceitar as múltiplas acusações que lhe eram dirigidas, atribuindo-as a “forças ocul-
tas”, interessadas na desestabilização do processo político e social e na perturbação
da ordem do Estado, mas hoje já admite oficialmente que existem deficiências sérias
no sistema prisional.

7
Ver relatório da Human Rights Watch e SOS Habitat, “Angola, ‘eles partiram as casas’. Desocupações forçadas
e insegurança da posse da terra para os pobres da cidade de Luanda”, Vol. 19, n.º 7 (A) (New York: HRW & SOS
Habitat, Maio 2007), disponível em http://hrw.org/reports/2007/angola0507; ver também, relatório da Amnistia
Internacional, “Angola, Lives in Ruins: Forced Evictions Continue” (New York: AI, January 2007), disponível em
http://web.amnesty.org/library/Index/ENGAFR120012007
52 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

A maioria da população, que tem que lidar com esta realidade, não encontra os seus
problemas e reivindicações expressos nos programas políticos dos partidos da opo-
sição. Pequenos sectores das comunidades pobres que têm a sorte de serem alvo de
atenção por parte de alguma ONG nacional ou internacional, encontram aí alguma
voz junto das autoridades, mas isto não resolve o problema de fundo desta “maioria
silenciosa” que tudo sofre, tudo espera e pouco reclama de forma organizada e pública.
Muitos se interrogam do porquê deste relativo “silêncio”, desta falta de apetência para
a exigência, para a expressão do descontentamento. A resposta parece estar na longa
tradição de repressão a que a população tem sido submetida desde o tempo colonial,
passando pelo período Socialista e continuando nos dias que correm. Reside igualmente
nas prementes preocupações de sobrevivência que já fazem parte da vida da maioria
das pessoas desde que nascem e que lhes ocupam todas as horas do dia, buscando
desesperadamente o pão de cada dia nas mais diversas e extenuantes actividades.
O distanciamento destas pessoas — a maioria dos angolanos — em relação ao chamado
processo de transição para a democracia é o mesmo que já antes tinham em relação ao pro-
cesso de construção do Socialismo, mas sem eles, sem a sua participação e envolvimento
na construção de um novo projecto de sociedade, dificilmente se alcançará qualquer
mudança efectiva da actual realidade de pobreza e subdesenvolvimento humano.
Capítulo II
Desafios e Constrangimentos
à Sociedade Civil Angolana

Textos

Fernando Macedo
Carlos Figueiredo
Sérgio Calundungo
Benjamim A. Castello
Cesaltina Abreu
Fernando Pacheco
Kinsukulu Landu Kama

g
55

Sociedade Civil e Poder Político

Introdução
Fernando Macedo
Universidade Agostinho
Neto & Associação
E mbora se possam constatar alguns progressos desde que
se iniciou o processo de democratização no início dos
anos 90, o Estado democrático de direito é ainda uma reali-
Justiça, Paz dade mais formal do que material (efectiva). São ainda muito
e Democracia – AJPD ténues os sinais de escrupuloso respeito pela Constituição e
pelas leis vigentes por parte do poder instituído. É preocu-
pante a inoperância dos mecanismos de responsabilização
política, civil e criminal, dos titulares de cargos públicos,
funcionários e agentes do Estado e a banalização dos mais
elementares direitos da pessoa humana, destacando-se o des-
respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
O partido no poder em Angola é o grande interventor na vida
das Organizações da Sociedade Civil (OSC), e dos partidos
políticos, impedindo-os de se afirmarem de forma capaz. A
maior parte das lideranças dos partidos políticos teve que se
defender de intrusões de elementos da segurança do Estado
e/ou de alguns dos seus próprios membros que foram subor-
nados e, em muitos casos, contestaram e desafiaram os seus
líderes em atropelo aos estatutos dos seus partidos1.
Em relação às OSC, as interferências verificaram-se tão logo
o governo se sentiu incomodado pelas crescentes interven-
ções sociais e críticas à governação que vinham desta área,
escapando cada vez mais ao seu controlo, criando as “suas”
próprias OSC. Posteriormente optou por uma via menos ex-
plícita, apostando no controlo do acesso aos fundos nacionais
(públicos e privados) e internacionais por parte das OSC.
Quando este tipo de estratégia não resulta, em relação a certas
OSC, o método passa a ser mais drástico, tendo chegado ao
ponto da ameaça de ilegalização de algumas OSC nacionais
e estrangeiras, ao arrepio de todo o enquadramento jurídico
que regula esta área.
Em paralelo àquelas tácticas, temos recentemente assistido
a várias tentativas de criação de uma grande plataforma da
sociedade civil, uniformizada na sua relação com as institui-
ções governamentais. Trata-se aqui de mais uma tentativa
de “domesticar” a sociedade civil, procurando, de forma

1
Ver também neste sentido a entrevista do autor à Voz da América, “ONG podem
fazer política, defende Jurista”, de 30 de Julho de 2007.
56 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

anti-democrática, cercear o direito ao pluralismo de expressão e de organização, criando


um suposto núcleo representante, “dialogante”. Essa tentativa é apoiada por círculos
diplomáticos, por sectores da sociedade civil angolana e por certa intelectualidade,
para além de organizações internacionais que trabalham em Angola. Todos estes
obstáculos e constrangimentos representam aquilo que considero serem dos maiores
desafios à afirmação futura das OSC Angolanas.
Este texto parte da apresentação e análise do enquadramento jurídico da sociedade civil e
da democracia em Angola (capítulos 1 e 2), abordando, em seguida, e ainda do ponto de
vista jurídico, algumas das mais candentes discussões acerca da relação entre sociedade
civil e política, sustentando, entre outras afirmações, que as OSC podem contribuir para o
exercício dos direitos políticos dos cidadãos, que as associações políticas podem imiscuir-se
em determinados aspectos da vida política pública e que o actual Regulamento das ONG
está ferido de inconstitucionalidade formal e de ilegalidade (capítulos 3, 4 e 5). O texto
termina com uma discussão em torno das estratégias governamentais para manipular
as OSC, da postura das diversas organizações internacionais em Angola e dos principais
desafios que se colocam à afirmação das OSC Angolanas (capítulos 6 e 7).

1 – Democracia e Sociedade Civil na Lei Angolana


A República de Angola é um Estado democrático de Direito (art. 2.º da Lei Constitu-
cional de Angola – LCA), em que a “soberania reside no povo” (art. 3.º/1 da LCA) e
este “exerce o poder político através do sufrágio universal periódico para a escolha
dos seus representantes, através do referendo e por outras formas de participação
democrática dos cidadãos na vida da Nação” (art. 3.º/2 da LCA).
Trata-se aqui de democracia representativa e participativa (art.3.º/2 da LCA), na
medida em que, primeiro, se estabelece que o povo elege os seus representantes que
exercem o poder político em seu nome; segundo, porque depois de eleger os seus
representantes o povo continua a participar na vida da Nação por outras formas de
participação democrática.
Na democracia os governantes são responsáveis perante os governados (o povo) num
processo diário, contínuo e dinâmico, uma vez que aqueles estão necessariamente
vinculados à prossecução de um objectivo que é heterónima e imperativamente im-
posto à República, “a construção de uma sociedade livre, democrática, de paz, justiça
e progresso social” (art. 1.º da LCA).
O povo é entendido como sendo constituído pelo conjunto de cidadãos. Não obs-
tante, é indispensável perceber que o povo não é uma entidade abstracta unipessoal,
uma entidade singular com as características de um agente no qual se reduz a acção
de todos os cidadãos. O povo deve ser entendido “como uma grandeza pluralística
formada por indivíduos, associações, grupos, Igrejas, comunidades, personalidades,
instituições (e movimentos) que veiculam interesses, ideias, crenças e valores, plurais,
convergentes ou conflituantes”2
No quadro da democracia representativa, é indispensável a compreensão de que os go-
vernantes não gozam de um poder ilimitado, estando os seus poderes, constitucional e
legalmente, conformados por objectivos (art. 1.º da LCA) e modos de exercício do poder,

2
Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 6.
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 57

estabelecidos pela Constituição (art. 54.º/b da LCA). Ao eleger os seus representantes,


o povo não aliena de uma vez por todas a titularidade da soberania, antes continua o
processo da sua afirmação através de outras formas de participação democrática na vida
da nação em intensa interacção com os seus representantes (art. 3.º da LCA).
Os partidos políticos e as eleições constituem apenas um dos instrumentos (veículos)
da democracia. A praticabilidade da democracia tem como condição a existência de
uma esfera de articulação de interesses, de valores e solidariedades, que se distingue
do Estado-poder, por não permitir a intromissão deste naquela esfera, mas que, to-
davia, permanece no seio do Estado-comunidade. Entende-se por Estado-poder os
governantes, e por Estado-comunidade o conjunto formado pelos governados e gover-
nantes. A essa esfera de articulação de interesses, valores e solidariedades, autónoma
relativamente ao Estado-poder, convencionou designar-se por sociedade civil.3
A sociedade civil é uma realidade factual, que se torna perceptível através de dois
aspectos. Primeiro, pela atribuição de um conjunto de direitos, liberdades e garantias
aos indivíduos por via do ordenamento jurídico-constitucional, que são densificados
através do ordenamento jurídico ordinário. E segundo, pela acção que permite o exer-
cício e defesa de direitos ou de interesses pelos detentores dos mesmos.
Para que os cidadãos possam exprimir e tornar públicas as suas preferências e as suas
opiniões, a democracia pressupõe a existência do pluralismo de expressão, do plura-
lismo de organização política e de grupos sociais organizados (art. 2.º da LCA). De
acordo com a Constituição, o “Estado deve criar as condições políticas, económicas
e culturais, necessárias para que os cidadãos possam gozar efectivamente dos seus
direitos e cumprir integralmente os seus deveres” (art. 50.º da LCA). A efectivação e
materialização dessas condições deverá, entre outras, de ser provida por oito garantias,
nomeadamente a liberdade para formar e juntar-se a organizações (art. 2.º e 32.º da
LCA), a liberdade de expressão (art. 32.º da LCA), o direito ao voto (art. 28.º da LCA),
o direito dos líderes políticos competirem pelo apoio do eleitorado (arts. 3.º e 4.º da
LCA), o direito de receber e difundir informações (art. 19.º da Declaração Universal
dos Direitos do Homem), o acesso a fontes alternativas de informação (art. 35.º da
LCA), eleições justas e livres, instituições fazendo com que as políticas do governo
sejam (estejam) dependentes do voto e de outras formas de expressão de preferências
dos cidadãos e a elegibilidade para cargos públicos (art. 28.º da LCA).
Distinta da sociedade civil considera-se a sociedade politica, realidade criada pela
Constituição (art. 4.º da LCA) e definida como aquela que é formada por partidos
políticos e organizações que promovem campanhas políticas que visam a conquista
do poder político.
O legislador ordinário angolano usa o conceito “sociedade civil” na Lei das Associações
(LA), e na Lei de Imprensa (LI). Na primeira, no preâmbulo, justificando a sua criação
“face às novas exigências decorrentes da aplicação da democracia, tendo em vista uma
maior participação da sociedade civil nos destinos da Nação”. Deduz-se das palavras
do legislador que as associações constituem uma das formas que a sociedade civil
pode tomar. Na segunda, na Lei de Imprensa, estabelecendo “como sendo de interesse
público, a informação que tem os seguintes fins (…) assegurar a livre expressão da
opinião pública e da sociedade civil” (art. 11.º/1 da Lei de Imprensa).

3
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo I, 7.ª Edição (Coimbra: Coimbra Editora, 2003), p. 11.
58 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Na Lei das Associações, o legislador ordinário define uma das formas que a sociedade
civil pode tomar, a associação, isto é, “a união voluntária de cidadãos angolanos ou estran-
geiros, com carácter duradouro que visa a prossecução de um fim comum e sem intuito
lucrativo” (art. 2.º da LA). Essa mesma lei estabelece que as “associações prosseguem de
forma livre e autonomamente os [seus] fins, gozando para o efeito de autonomia jurídica,
administrativa e financeira (…) e não podem ser extintas, nem verem suspensas as suas
actividades senão nos termos da lei” (art. 9.º da LA), em conformidade, aliás, com o artigo
52.º da LCA que estabelece o regime da limitação ou suspensão dos direitos, liberdades e
garantias dos cidadãos. Além do mais, a Lei das Associações, no seu preâmbulo, diz que
as associações são “autónomas, não havendo interferência dos poderes públicos quanto à
prossecução dos seus fins”. Elas podem, pois, constituir-se para prosseguir os mais variados
fins não contrários à Constituição e às leis (arts. 6.º, 8.º e 11.º da Lei das Associações). A
Lei não pode nem deve dizer quais são todos os fins que as associações devem perseguir.
Apresenta, a título exemplificativo, os fins profissionais, científicos e técnicos, culturais
e recreativos, educativos, solidariedade social, convívio e promoção social, protecção do
ambiente, promoção e desenvolvimento comunitário e políticos (art. 8.º LA).
Perseguindo estes fins, a sociedade civil concorre para a realização dos objectivos da
República de Angola, porque promove o desenvolvimento, aprofundamento e consolida-
ção da democracia (um dos objectivos da República consagrado no artigo 1.º da LCA).

2 – A Sociedade Civil e a Política no Enquadramento Jurídico Angolano


Recorrentemente, têm sido feitos pronunciamentos públicos por membros do Governo da
República de Angola, membros do partido no poder, jornalistas e fazedores de opinião,
segundo os quais as associações não podem ter fins políticos e muitas delas têm extravasado
as suas atribuições estatutárias imiscuindo-se em assuntos de que não devem falar.
Há alguns meses, o director da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária
(UTCAH), instituto público sob tutela do Ministério da Reinserção Social, reiterou esse
tipo de afirmações publicamente, dizendo que existem organizações não governamentais
ilegais, porque fazem política e extravasam os seus fins4
Tais afirmações são totalmente desprovidas de sentido e a serem levadas a sério cons-
tituiriam uma grosseira violação da Constituição (artigos 3.º n.º 2 e 32.º n.º 1) e da Lei
das Associações (artigo 8.º n.º 1 alínea i; acima referido), conforme se passa a explicar.
A Constituição é indiscutivelmente clara na formulação de que o povo angolano exer-
ce o poder político através de três formas: do sufrágio universal, do referendo e por
outras formas de participação democrática na vida da nação (art. 3.º n.º 2 da LCA).
Pode-se, pois, deduzir que as associações que tenham fins políticos têm no plano da
acção política uma larga esfera de actuação, pois, à excepção de não poderem parti-
cipar em eleições para conquista do poder político, podem fazer tudo aquilo que a
Constituição e a Lei não proíbem.
De acordo com a Lei das Associações, às associações com fins políticos está vedado:
“participar na actividade dos órgãos do Estado” (alínea a, do n.º 2 do art. 8.º da LA),
“contribuir para a determinação da política nacional, designadamente através da

4
Declarações proferidas pelo director-geral da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária UTCAH), Pedro
Walipe Kalenga em entrevista à Rádio Nacional de Angola em 10 de Julho de 2007; Luanda, Angop, 10 de Julho de 2007.
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 59

participação em eleições ou de outros meios democráticos” (alínea b, do n.º 2 do art.


8.º da LA), “contribuir para o exercício dos direitos políticos dos cidadãos” (alínea c,
do n.º 2 do art. 8.º da LA), “definir programas de governo e de administração” (alínea
d, do n.º 2 do art. 8.º da LA) e “influenciar a política nacional no Parlamento ou no
Governo” (alínea e, do n.º 2 do art. 8.º da LA).
O legislador ordinário em cumprimento da imposição constitucional de regulamenta-
ção da liberdade de associação fez a Lei das Associações, porém, incorreu no vício de
inconstitucionalidade material de acordo com os argumentos que se passam a expor.
A formulação segundo a qual as associações não podem “participar na actividade dos
órgãos do Estado” é parcialmente inconstitucional, na exacta medida em que existem
órgãos do Estado que integram associações nas actividades que levam a cabo, sem pre-
juízo das esferas de competência e capacidade para determinar as decisões finais. Por
exemplo, em sede de audiências parlamentares, as comissões da Assembleia Nacional
podem conceder audiências a organizações da sociedade civil para ouvi-las em matérias
de interesse público. A Associação Justiça Paz e Democracia (AJPD), por exemplo, já
foi recebida em audiência pela 9.ª Comissão da Assembleia Nacional da República de
Angola. Parece, pois, que existem diferentes níveis de participação na actividade dos
órgãos do Estado; alguns estão em conformidade com a Constituição.
O mesmo se pode dizer em relação à proibição de as associações “contribuírem para a
determinação da política nacional, designadamente através da participação em eleições
ou por outros meios democráticos”. Em bom rigor, as associações podem contribuir para
a determinação da política nacional de forma subsidiária, porque a última palavra, efec-
tivamente, compete aos órgãos constitucionalmente investidos de tal poder, através do
debate público a que estão sujeitas as decisões sobre políticas públicas; sem prejuízo do
limite de não poderem participar em eleições. É de realçar que a expressão “ou por outros
meios democráticos” contraria o disposto no artigo 3.º n.º 2 da LCA, nos exactos termos
em que aí se estabelece que, para além de elegerem os seus representantes, os cidadãos
exercem o poder político através de outras formas de participação democrática na vida
da nação. A proibição de as associações “contribuírem para a determinação da política
nacional (...) por outros meios democráticos” é equivalente, por exemplo, a dizer que as
associações não podem influenciar a política nacional no Parlamento e no Governo.
As associações podem e devem “contribuir para o exercício dos direitos políticos dos
cidadãos” e fazem-no, sem violação da Constituição, por constituírem um espaço de
capacitação cívica e política dos cidadãos. No seio das associações os cidadãos aprendem
a afinar a sua sensibilidade em relação aos assuntos de interesse público; recebem e di-
fundem informação indispensável à formação da sua consciência crítica em relação ao
desempenho dos poderes públicos e, desta forma, ficam melhor preparados para votarem
de forma mais informada e ponderada. Depois de algum tempo de trabalho nas associa-
ções, os cidadãos podem decidir tornar-se membros de partidos políticos, abalançados
pela experiência formativa no meio associativo. As associações desempenham um papel
deveras importante na recolha e distribuição de informação alternativa à fornecida pelos
poderes públicos, chegando mesmo a providenciar, inclusivamente, diferente arrumação
e interpretação da informação. Todos os elementos acabados de apresentar concorrem
para a formação política dos cidadãos, contribuindo, ainda que de forma indirecta, para
o exercício dos direitos políticos dos cidadãos. Estes votam de forma mais capaz quanto
maior for o leque de informações e interpretação destas de que disponham. Os cidadãos
que decidem candidatar-se para cargos públicos, depois de terem passado pela experiência
60 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

da vida associativa, podem ter desenvolvido uma série de capacidades que os potencia a
serem mais eficazes na acção política uma vez eleitos.
É manifestamente inconcebível que no Estado democrático de Direito as associações não
possam “influenciar a política nacional no Parlamento ou no Governo”. Na verdade, o
princípio da representação política implica (art. 3.º n.º 2 da LCA), necessariamente, que
os representantes do povo, de forma ininterrupta, se mantenham em contacto com os
representados, para desta maneira poderem cumprir a obrigação de “concorrer para
a expressão da vontade popular” (art. 4.º da LCA) e actualizar a sua agenda política,
com base nos problemas reais do povo. O princípio democrático (art. 2.º da LCA), no
contexto da imposição constitucional da criação de uma sociedade democrática (art. 1.º
da LCA), aponta para a “democratização da democracia” o que, concomitantemente,
implica a optimização da democracia representativa e democracia participativa num
processo dialéctico5. Os poderes públicos são obrigados a abrir espaços de participação
para os cidadãos e não a restringir ou limitar a participação dos cidadãos.
Neste sentido, as alíneas a), b), c), e e) do número 2 do artigo 8.º da Lei das Asso-
ciações, ferem os artigos 1.º, 2.º, 3.º n.º 2, 4.º e 32.º/1 da LCA e por esta razão são
materialmente inconstitucionais.
Uma questão conexa tem a ver com as afirmações também veiculadas, defendendo
que as organizações que não tenham previsto determinado fim no seu objecto social
não podem prosseguir novos fins (objectivos). Em bom rigor, sempre que uma asso-
ciação decida prosseguir um novo fim que não esteja previsto nos seus estatutos
deve proceder ao aditamento do mesmo por escritura pública notarial. Todavia, não
está prevista legalmente a sanção de limitação de exercício dessa nova actividade. Se
prestarmos atenção ao regime constitucional do exercício dos direitos, liberdades e
garantias dos cidadãos, estabelecido pelo n.º 1 do artigo 52.º da LCA, este artigo só
autoriza limitações ou suspensões de direitos, liberdades ou garantias dos cidadãos,
desde que estejam expressamente estabelecidas por lei.
No quadro ora apresentado, afigura-se relevante a comparação com a situação análoga
referente ao exercício da liberdade de manifestação. De acordo com o jurista Rui Ferrei-
ra, a falta ao dever de informação à autoridade competente da realização de manifes-
tação não constitui crime por o legislador ordinário o não ter penalizado6. Ora, no caso
de uma associação passar a prosseguir novos fins, não previstos originariamente nos
seus estatutos, antes mesmo do aditamento nos mesmos por via de escritura pública
notarial, o legislador ordinário, à semelhança do que se passa com a falta ao dever de
informação à autoridade competente da realização de manifestação, não penaliza a
falta da prossecução de um novo fim não ínsito nos estatutos de uma associação com
a abstenção (com o impedimento) de o prosseguir. Está-se aqui, salvo melhor opinião,
perante o princípio de nula pena sem lei, aplicando-se também o regime constitucional
mais favorável, por se tratar de um direito sob a forma de liberdade, que estabelece
que só se deve restringir a amplitude dos direitos, liberdades e garantias fundamentais
dos cidadãos, no estritamente necessário para a salvaguarda de outros bens.

5
Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, 2003,
pp. 289, 290.
6
Rui Ferreira, “Liberdade de expressão e direito à liberdade de manifestação: positivação constitucional em Angola”,
in Revista da Ordem dos Advogados de Angola - OAA, Ano I, Número 1 (Luanda: Centro de Documentação e Informação
da OAA, 1998), pp. 223-236.
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 61

3 - Associações (políticas) e Partidos Políticos


A política é o cenário onde se afrontam os indivíduos e os grupos em competição na
conquista pelo poder do Estado (e suas ramificações) ou para o influenciar directamen-
te: partidos, sindicatos e movimentos sociais, mais ou menos efémeros. A este nível a
vida política caracteriza-se por um debate permanente — mais ou menos reactivado
nos períodos eleitorais — que se alimenta de problemas radicados na sociedade global
em função das suas exigências próprias7.
Segundo Diamond, nada obsta, no entanto, a que organizações da sociedade civil formem
alianças com partidos políticos. Todavia, se forem absorvidas pelos partidos políticos ou
caso se tornem hegemónicas no seio daqueles, movem o locus primário da sua actividade
para a sociedade política e perdem grande parte da sua capacidade de desempenhar
funções de mediação e de construção da democracia8.
Este tipo de prática política em que organizações da sociedade civil se aliam a partidos
políticos não constitui crime na República de Angola, por não existir nenhuma lei
que a qualifique como crime. Mas mesmo que existisse uma lei a qualificar tal prática
como crime, ela seria inconstitucional. O que pode efectivamente acontecer num ce-
nário como a presente realidade política angolana, é que as organizações que optem
por essa via, mas em apoio a partidos da oposição, sejam descredibilizadas por causa
da sistemática campanha de intimidação e desinformação a que está sujeita a opinião
pública por parte das pessoas e estruturas afectas ao partido no poder.
A prática em que organizações da sociedade civil se aliam a partidos políticos ou
mesmo ao executivo já existe e é patrocinada pelo Governo da República de Angola.
É também provável que existam organizações da sociedade civil que se aliem a par-
tidos políticos na oposição. Quanto à primeira situação, não será o caso da organi-
zação Causa Solidária, AJAPRAZ (Associação de Jovens Angolanos Provenientes da
Zâmbia) e FESA (Fundação Eduardo dos Santos)? Note-se que as duas primeiras, nas
actividades que desempenham, fazem propaganda política em favor de José Eduardo
dos Santos, que é correntemente Presidente da República. A criação da FESA pelo seu
patrono, enquanto este exerce o cargo de Presidente da República, suscita inclusive
dúvidas quanto à constitucionalidade de tal decisão e prática no quadro do regime de
incompatibilidades do mandato do Presidente da República de Angola.
Note-se que Araújo, referindo-se à prática de o Presidente da República ter assumido
“a presidência honorífica de algumas instituições (…), como por exemplo da Associa-
ção dos Antigos Combatentes e a Associação de Defesa das Crianças Psiquicamente
Doentes”, diz que “apesar do silêncio do texto constitucional, está implícito o regime
de incompatibilidades do exercício do mandato presidencial com outras funções pú-
blicas ou privadas, não previstas na Constituição, e que a prática actual é contrária
aos fundamentos do texto constitucional, que não abraça o princípio da extensão dos
poderes presidenciais por via legal” [atente-se ao tempo em que Araújo escreve o que
aqui se reproduz]9. Este regime de incompatibilidades com o mandato do Presidente
da República estende-se, com maioria de razão, à criação de uma fundação durante

7
Philipe Braud, Introdução à ciência política (Lisboa: Editorial Notícias, 1982), p. 14.
8
Larry Diamond, Developing Democracy – Toward Consolidation (Baltimore and London: The John Hopkins University
Press, 1999), pp. 221.
9
Raul C. Araújo, Os Sistemas de Governo de Transição Democrática nos P.A.L.O.P. (Coimbra: Coimbra Editora, 2000),
p. 211.
62 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

o período em que se exerce o cargo de Presidente da República. Esta fundação não


tem recebido contribuições de várias empresas angolanas e estrangeiras, algumas das
quais têm contratos com o Estado? Muitos daqueles que trabalham para esta fundação
não são membros do Governo e da Assembleia Nacional? Algumas das actividades
que esta fundação materializa não concorrem com as atribuições de ministérios do
Governo da República de Angola, quando muitos destes não dispõem dos meios que
aquela consegue reunir, provavelmente por força da influência do nome do Presidente?
Afinal como podem ao mesmo tempo os titulares de cargos públicos, funcionários e
agentes do Estado, gozar do estatuto de membros da sociedade civil?
Numa perspectiva comparada, podemos verificar que a sociedade civil de outros paí-
ses tem desempenhado actividade política, mesmo até antes da institucionalização do
Estado democrático de direito. O envolvimento de organizações da sociedade civil em
actividades de índole política não é exclusivo da realidade política angolana. A história
contemporânea tem registado o papel que a sociedade civil pode desempenhar nos
processos de democratização ou transição para a democracia e mesmo na génese da
democracia. O Solidariedade na Polónia comunista, dispondo da ajuda da Igreja Católica
Polaca, desempenhou um papel deveras importante no processo de democratização
daquele país10. Igualmente, a vitória de Chiluba nas primeiras eleições democráticas na
Zâmbia deveu-se ao apoio e estruturação de um sindicato11. O movimento de estudan-
tes na Jugoslávia teve um papel determinante na queda de Slobodan Milosevic. Várias
organizações cívicas, de diferente natureza, desempenharam um papel relevante no
processo de transformação do regime racista do Apartheid na África do Sul12.
4 - A Legitimidade e Constitucionalidade de Campanhas da Sociedade
Civil contra Partidos Governantes
Gerou-se na nossa sociedade uma dúvida em relação à legalidade e constitucionali-
dade da prática de organizações da sociedade civil desenvolverem campanhas polí-
ticas contra práticas do governo (violadoras dos direitos e liberdades dos cidadãos),
defendendo a penalização eleitoral do partido no poder no quadro das próximas
eleições legislativas.
No período eleitoral essa mesma prática protagonizada pelos partidos políticos não
suscita qualquer dúvida sobre a sua constitucionalidade e legalidade. Será que se
pode defender essa prática quando levada a cabo por associações (ou organizações
não governamentais) antes do período eleitoral?
A resposta é positiva, na medida em que os limites impostos ao exercício da liberdade
de associação e liberdades individuais são apenas e só os estabelecidos pela Cons-
tituição e pela Lei. Neste sentido, que disposição constitucional ou legal estabelece
que o indivíduo, grupos de indivíduos ou associações cívicas, não podem opor-se a
acções, práticas e políticas públicas, desde que observando os limites estabelecidos
pela Constituição e pela Lei?

10
Juan J. Linz & Alfred Stepan, Problems of Democratic Transition and Consolidation – Southern Europe, South America,
and Post Communist Europe (Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 1997), pp. 255-292.
11
Shadrack Wanjala Nasong´o, Contending Political Paradigms in Africa: Democratization vs. Authoritarianism in Kenya
and Zambia, a PhD dissertation presented to the Department of Political Science, Graduate School of Arts and Sciences
(Boston, Massachusetts: , Northeastern University, February, 2004).
12
Elisabeth Jean Wood, Forging Democracy from Below- Insurgent Transitions in South Africa and El Salvador (Cambridge:
Cambridge University Press, 2000), pp. 169-193.
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 63

Não se pode oferecer qualquer dúvida em relação ao direito de oposição geral à violação
de direitos e liberdades e, igualmente, ao direito à oposição à má governação (práticas e
implementação de políticas públicas que firam a Constituição e a Lei), por a democracia
ser definida por via de duas justificações, a positiva e negativa13. A justificação positiva
da democracia aponta esta forma de governo como significando governo do povo, pelo
povo e para o povo; enquanto que a justificação negativa da democracia aponta para
a possibilidade de destituição dos governantes, por via pacífica e através dos meios
disponíveis constitucional e legalmente. A democracia é definida como uma “forma
ou técnica processual de selecção e destituição pacífica de dirigentes”14. Os dirigentes
(governantes em sentido lato, membros do executivo, deputados e juízes) podem ser
destituídos dos seus cargos por revogação de mandato, impeachment, moção de censura,
por incompatibilidade de funções e por outros mecanismos previstos constitucional e
legalmente. No mesmo quadro de referência, uma maioria parlamentar pode perder o
número de assentos parlamentares que lhe conferem o estatuto de maioria em eleições
subsequentes àquelas em que ganhou aquele estatuto.
Para que, no plano político, seja possível responsabilizar os governantes, é necessário
que na esfera pública os indivíduos ou organizações possam recolher informações
(art. 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem – DUDH) que atestem o
incumprimento das obrigações dos governantes ou violações dos direitos e liberdades
dos cidadãos perpetradas por titulares de cargos públicos, funcionários e agentes do
Estado; que os indivíduos ou organizações possam difundir essas informações bem
como a sua interpretação e opinião acerca das mesmas (art. 19.º da DUDH), de forma
a participar da formação da opinião pública; promovendo a boa governação, que é
definida como sendo do interesse público (art. 11.º da Lei de Imprensa). Lembre-se que
de acordo com a Lei Constitucional de Angola, as normas constitucionais e legais em
relação a direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas em harmonia
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 21.º/2 da LCA).
Mais, essa acção de campanha política através de denúncias públicas contra práticas
e políticas públicas que lesam os direitos e interesses legítimos dos cidadãos concorre
para a concretização da responsabilização política, civil e criminal, dos titulares de
cargos públicos, funcionários e agentes do Estado. Tome-se nota de que a Constituição
estabelece que o “Governo é responsável politicamente perante o Presidente da Re-
pública e a Assembleia Nacional (art. 105.º n.º 2 da LCA); e que “os titulares de cargos
públicos respondem civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem no
exercício das suas funções, nos termos da lei” (art. 54.º, alínea f, da LCA).
Os titulares de cargos públicos, funcionários e agentes do Estado estão, pois, sujeitos
a um regime constitucional e legal de vigilância que visa proteger o “Estado pessoa
colectiva”, pessoa jurídica de bem, contra os actos destes, que firam valores e bens
juridicamente protegidos. E é indiscutível o direito de contribuir para a alternância
do poder, desde que os poderes instituídos sejam incompetentes ou desprovidos
do mínimo de condições para promoverem as mudanças almejadas por sectores da
sociedade, antes mesmo do período de campanha eleitoral; e de contribuir para a
destituição de titulares de cargos públicos, funcionários e agentes do Estado, quando

13
Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, 2003,
p. 291.
14
Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, 2003,
p. 291.
64 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

estes incorrem em práticas que estejam tipificadas como crimes ou que lesem direitos
e interesses constitucional ou legalmente protegidos. Aqueloutro direito decorre do
princípio democrático e do princípio do Estado de Direito (art. 2.º da LCA).
Toda a prática política de organizações da sociedade civil ou de indivíduos deve res-
peitar o direito ao bom-nome, honra, consideração e reputação dos titulares de cargos
públicos, funcionários e agentes do Estado e membros de partidos políticos (art. 20.º da
LCA). Contudo, o direito à oposição, em sentido lato, abrangendo associações cívicas
e políticas e os partidos políticos, constitui uma liberdade dedutível dos princípios
democrático e do Estado de Direito (art. 2.º da LCA), que não deve ser posto em causa
por reacções ou respostas arbitrárias por parte dos poderes públicos.

5 - A Inconstitucionalidade Formal e a Ilegalidade do Regulamento


das Organizações Não Governamentais
O Governo da República de Angola não tem competência para a regulamentação
da liberdade de associação. Todavia, em grosseira violação da Constituição da Re-
pública de Angola, através do Decreto n.º 84/02 de 31 de Dezembro (Regulamento
das Organizações Não Governamentais), o Governo da República de Angola ousou
regulamentar essa matéria.
Segundo o disposto no n.º 1 do artigo 92.º da Lei Constitucional da República de Angola,
as leis são actos normativos da exclusiva competência da Assembleia Nacional. E por
força do preceituado no artigo 89.º, alínea i) da Lei Constitucional da República de An-
gola, “[à] Assembleia Nacional compete legislar com reserva absoluta de competência
legislativa sobre associações e partidos políticos”. Fica, assim, inequivocamente claro
que, só violando Lei Constitucional pode o Governo ter legislado sobre matéria atinente
às associações. Trata-se de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que o Governo usur-
pou uma competência de que, à luz da Lei Constitucional, não dispõe. Logo, deveria o
próprio Governo revogar esse acto normativo. A Procuradoria-Geral da República de
Angola, ou o Presidente da República, ou o Primeiro-Ministro ou ainda um 1/5 dos
deputados em efectividade de funções, deveriam ter requerido a apreciação sucessiva
da constitucionalidade do Regulamento das Organizações Não Governamentais.
Mesmo que não padecesse do vício de inconstitucionalidade orgânica (inconstituciona-
lidade formal), o Regulamento das Organizações Não Governamentais tem normas que
violam o disposto na Lei das Associações, em vigor na República de Angola. Desde logo,
não existe nenhuma disposição na Lei das Associações que autorize a regulamentação
desta lei. Tanto assim é que a própria Lei das Associações, respeitando o estabelecido
na alínea i) do artigo 89.º da Lei Constitucional, diz o seguinte: “[a] presente lei tem por
objecto regular o exercício do direito da associação” (art. 1.º da Lei das Associações). Tal
significa que esta lei (a Lei das Associações) regula a matéria referente às associações,
pelo que quaisquer alterações ou aditamentos deveriam dar lugar à feitura de novas
normas a inserir em lei nova e não à feitura de decreto regulamentar.
Para além da inconstitucionalidade orgânica do Regulamento das Organizações Não
Governamentais, muitas das normas deste regulamento violam disposições da Consti-
tuição e da Lei das Associações, tornando-as inconstitucionais e ilegais.
Constituem exemplo do que se acaba de afirmar os seguintes artigos do Regulamento
das Organizações Não Governamentais:
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 65

Art. 4.º, sob a epígrafe “tutela”, ‘‘As organizações Não Governamentais ‘ONG’
estão sujeitas à tutela do Ministério da Assistência e Reinserção Social’’; viola o
artigo 32.º da LCA e o artigo 9.º da Lei das Associações (princípio da autonomia
das associações).
Art. 6.º, ‘‘Compete à Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária
(UTCAH): a) acompanhar, controlar e fiscalizar as actividades das Organizações
Não Governamentais ‘ONG’’’; viola o artigo 32.º da LCA e o artigo 9.º da Lei
das Associações (princípio da autonomia das associações).
Art. 16.º, n.º 1, ‘‘A inscrição das Organizações Não Governamentais ‘ONG’ nacio-
nais no órgão coordenador, Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humani-
tária (UTCAH), deve ser feita mediante a apresentação dos seguintes documentos:
(…) e) autorização de actuação no espaço territorial angolano do órgão da activi-
dade para o qual a ONG está vocacionada, contendo o parecer sobre a capacidade
e idoneidade para o exercício da actividade no País’’; viola o artigo 13.º da Lei das
Associações (capacidade para ser titular de direitos e obrigações).
Art. 18.º, n.º 1, ‘‘O Ministério Público deve decretar a suspensão das actividades
das Organizações Não Governamentais ‘ONG’ sempre que haja fortes indícios
da prática de actos lesivos à soberania e integridade da República de Angola’’;
viola do artigo 52.º/1 da LCA (direitos, liberdades e garantias dos cidadãos só
podem ser limitados ou suspensos nos termos da lei; logo, não pode ser um
regulamento a fazê-lo).
Art. 21.º, n.º 1, ‘‘Sem prejuízo de outros deveres especialmente consignados por lei,
as Organizações Não Governamentais ‘ONG’ estão obrigadas a: (…) b) abster-se
da prática de acções de índole política (…); c) consultar previamente o Ministério
da Assistência e Reinserção Social, através da Unidade Técnica de Coordenação da
Ajuda Humanitária (UTCAH) para determinar a província ou região do território
nacional onde os projectos aprovados deverão ser executados; d) obter aprovação
dos seus projectos nos Ministérios das respectivas áreas da sua intervenção no
âmbito dos planos nacionais e provinciais de acção; e) prestar contas aos Governos
Provinciais no final dos seus projectos; f) remeter aos Ministérios da Assistência e
Reinserção Social, Ministério das Finanças e ao Banco Nacional de Angola até ao mês
de Fevereiro o relatório anual e contas do exercício do ano anterior e as previsões
de doações internas e externas a receber no exercício corrente; (…) l) obter prévio
aval do Ministério da Assistência e Reinserção Social, através da Unidade Técnica
de Coordenação da Ajuda Humanitária (UTCAH) para angariação de fundos ou
outros apoios junto da comunidade nacional e internacional”; viola o artigo 9.º da Lei
das Associações, assim como os arts. 52.º n.º 1 da LCA (reserva de lei para limitação
ou suspensão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos) e ainda o art. 89.º
alínea i (reserva de lei para a matéria relacionada com associações).

6 - A Tentativa do Governo de Manietar a Sociedade Civil Angolana


com a “Colaboração” das OSC “Cooptadas” e de Algumas Organizações
Internacionais e Governos Estrangeiros
Nos anos noventa, com o surgimento das OSC, o governo percebeu a crescente influên-
cia e impacto social dessas organizações, que ameaçavam escapar ao seu controlo. O
regime apostou claramente numa estratégia visando o seu enfraquecimento, apostando
66 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

tacticamente na criação das “suas” próprias OSC, que lhe fossem favoráveis e cuja
acção podia controlar, ao mesmo tempo que enfraquecia todas as outras que estavam
fora do seu domínio de influência (segunda metade dos anos noventa e início de 2000).
Perante a crescente exposição pública (nacional e internacional) desta táctica, de ter
uma “sociedade civil amiga”, o regime viu-se obrigado a alterar a sua acção e passou
a exercer a sua influência de forma mais indirecta, mas ainda assim com um maior
grau de eficiência e eficácia.
Por causa da gestão clientelista do sector público e privado e do apertado controlo
político sobre todas as áreas da vida em sociedade, as OSC “não amigas do governo”
dificilmente acedem a fundos públicos ou privados angolanos, tendo que depender
fortemente dos financiamentos externos das organizações internacionais. Neste âm-
bito e tanto quanto possível, o controlo e a pressão do governo pretendeu estender-se
igualmente a esses fundos externos. Começou, então, recentemente, a assistir-se a
uma crescente tendência de apoio selectivo de muitas organizações da sociedade civil
internacional a parceiros nacionais, com base em critérios que não são primeiramente
determinados pelo mérito do trabalho realizado, mas antes pela acção politicamente
aceitável dos parceiros nacionais. As OSC com uma atitude passível de ser considerada
como politicamente sensível e incómoda para com o governo passaram a ser preteridas
no acesso aos financiamentos externos, apodadas de “radicais” ou “problemáticas”
em relação a todas aquelas “menos problemáticas” ou “não radicais”, que passaram
então a ser as preferidas — cooptadas. Os meios de pressão do governo sobre as OSC
internacionais são obviamente as limitações burocrático-administrativas e políticas
que podem ser impostas ao trabalho destas organizações em Angola, tratando-se aqui,
efectivamente, de expedientes do governo angolano que constituem inquestionáveis
violações à liberdade de associação. Convém lembrar que a liberdade de associação é
um direito humano e não apenas um direito dos cidadãos angolanos. Esta interpretação
colhe vencimento em razão do facto de as normas constitucionais e legais em relação
aos direitos fundamentais, por força do que estabelece a Lei Constitucional de Angola,
deverem ser interpretadas e integradas em harmonia com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (art. 21.º/2 da LCA).
Do ponto de vista do regime, os bons parceiros internacionais são aqueles que adoptam
o discurso padrão, politica e diplomaticamente aceitável, que basicamente diz que o
“governo de Angola e o Presidente se estão a esforçar no sentido de uma melhoria efec-
tiva da situação, não obstante as dificuldades com que se confrontam.” Este é o discurso
politicamente correcto e aceitável para o regime. Quem adopta este discurso recebe uma
retribuição baseada em facilidades na relação com o aparelho burocrático-administrativo
e governamental, enquanto que aqueles que ultrapassam aqueles limites sujeitam-se a
punições, que podem ir desde simples e implícitas chamadas de atenção a crescentes obs-
táculos burocrático-político-administrativos à sua actuação em Angola e eventualmente
ao impedimento de actuarem em Angola, a coberto dos mais engenhosos argumentos
técnico-legais que tornam impraticável o trabalho dessas mesmas organizações.
Ainda que nunca assumido e veementemente negado pelas OSC internacionais, assis-
timos cada vez mais a este apoio selectivo às OSC nacionais menos problemáticas do
ponto de vista político. Esta prática é um facto que não pode ser assumido porque os
próprios financiadores das OSC internacionais a actuar em Angola e as próprias opiniões
públicas internacionais no Ocidente condenariam estas práticas e, muito provavelmen-
te, reduzir-lhes-iam o seu apoio. Do ponto de vista do regime, esta táctica, ainda que
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 67

camuflada, acaba por ser bem mais inteligente no alcance dos objectivos pretendidos de
enfraquecimento político da sociedade civil, aumentando a probabilidade de sucesso
da velha táctica de cooptação.
Urge denunciar este fenómeno que se pode considerar de cumplicidade por omissão de
muitas organizações internacionais, que em troca da permissão governamental de con-
tinuarem a trabalhar em Angola se calam (ou pelo menos não se expressam claramente)
perante as óbvias e inúmeras injustiças, violências e violações de Direitos Humanos.
Constitui um exigência conforme com o objectivo constitucional de criação de uma so-
ciedade livre, democrática, de paz, justiça e progresso social, dizer que se as organizações
internacionais quiserem trabalhar em Angola ao preço de calarem a sua voz estão a fazer
um mau trabalho, porque os africanos não precisam de migalhas e assistencialismo de
emergência, precisam de oportunidades de médio e longo prazo para participarem de
pleno direito no sistema político, social e económico, precisam, sim, de oportunidades
de levar por diante a sua vida numa sociedade que proporcione o seu desenvolvimento.
Essa sociedade tem que ser uma sociedade aberta, em que as políticas públicas e a acção
dos governantes são debatidas e questionadas diariamente.
Uma outra tendência a que se assiste por parte das OSC internacionais e dos seus parcei-
ros nacionais preferidos é a crescente difusão do discurso de necessidade de união entre
as diversas OSC nacionais, argumentando em favor de iniciativas conjuntas, articuladas,
que possam eventualmente ter mais impacto na relação institucional com o Estado. É
um discurso que se tem propagado e que começa a estimular diversas iniciativas entre
as OSC neste sentido, numa prática que é bem aceite pelo governo e que está igualmente
a assimilar progressiva e imperceptivelmente as anteriormente referidas OSC “amigas
do governo”, que assim se tentam branquear a coberto de iniciativas mais alargadas.
Essa tentativa, disfarçada e aparentemente bem intencionada, de promoção da união das
organizações da sociedade civil, constitui um grande perigo para a ordem constitucional
democrática angolana. Primeiro, o quadro constitucional estabelece o pluralismo de
expressão e de organização política como um dos fundamentos da República (art. 2.º da
LCA), considerando-se a comunidade política como sendo constituída por vários indiví-
duos e grupos de indivíduos. Estes, por sua vez, podem concertar-se por livre iniciativa
em coligações, redes ou outras formas de juntar esforços, sem perda de identidades, sem
terem de estar sujeitos a uma liderança unicéfala. Segundo, a sociedade civil dá expressão
aos mais variados interesses, direitos e pretensões, que ganham corpo através da prática
política, institucionalizada como competição. Terceiro, o pluralismo de expressão e de
organização política pretende assegurar que os vários interesses, direitos e pretensões,
mesmo os de grupos minoritários, possam ser tidos em consideração pública, por via
do debate público, do contacto com os decisores políticos, de reivindicação por meio de
manifestação ou de outros meios democráticos existentes para o efeito.
A sociedade civil por definição e essência não é institucionalizável, sedeada numa
única liderança, é antes um espaço de liberdade em que vários actores participam no
jogo democrático; o contrário não será mais do que um qualquer tipo de monolitismo
disfarçado para facilitar a cooptação e mitigar o pluralismo de expressão e de organi-
zação. Contrariamente ao que pretendem essas organizações internacionais e os seus
respectivos parceiros angolanos, o equivalente dessa unidade homogeneizada nas
relações com as instituições do Estado não existe nos países ocidentais. Mesmo a nível
regional, não se vê tal fenómeno na África do Sul ou em Moçambique. Existem redes
de interacção entre parceiros que comungam de um determinado número de princípios
68 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

de actuação e postura em termos de política social ou de áreas de intervenção, mas


não encontramos nenhuma necessidade de formatação de todas as OSC no modelo de
relacionamento com as estruturas do Estado. Esta suposta reinvenção à angolana da
sociedade civil constitui um projecto hegemónico e antidemocrático, na medida em
que a sociedade civil se fundamenta no pluralismo de organização e de expressão.
Num contexto como o angolano, onde não existe democracia de facto, é preciso, antes
de mais, definir alguns princípios de identidade e actuação ao nível das OSC e proce-
der às articulações de parceiros que eventualmente se identifiquem nesses princípios
num quadro de pluralismo. Esses princípios estão explícitos na ordem constitucional
angolana, sintetizados no Estado de Direito e democracia (the rule of law and demo-
cracy). A convergência e união decorrem da identidade que se forja pela experiência
e observância de uma ética da diferença solidária.
O facto de eu querer cooperar com o governo na minha área de actuação é perfeitamente
aceitável, mas há que definir os limites para essa cooperação. Será que cooperar com o
governo pode ir ao ponto de calar a violação de Direitos Humanos, que constituem um
dos fundamentos da República de Angola? O governo de Angola gosta de parceiros que
cooperem com ele, mas que se calem em relação às violações de Direitos Humanos e
outros temas politicamente incómodos. Para o governo angolano, a boa sociedade civil
é aquela que se cala perante a corrupção, o enriquecimento da classe política, dos seus
familiares ou amigos (angolanos ou estrangeiros), perante a má governação, a violação
dos Direitos Humanos, a violação das leis e da Constituição. Neste sentido, há que ser
selectivo em relação aos parceiros que se escolhem e levantar reservas a mega estratégias
de união homogeneizadora das OSC, que constituem, repito, uma violação da ordem
democrática angolana baseada, por imposição constitucional, no pluralismo de expressão,
organização política, e na autonomia das organizações da sociedade civil. O pluralismo
é um facto intocável e inquestionável nas sociedades abertas, livres e democráticas.

7 - Os Desafios à Acção Futura das OSC


Enfrentamos hoje uma situação que pode ser considerada como uma segunda luta de
libertação do país. A primeira luta de libertação foi contra a opressão colonial e a que
agora urge travar é a libertação de nós mesmos, ou melhor, da opressão que alguns de
nós têm imposto à maioria dos angolanos depois da independência. A democracia é
hoje em Angola aparente, estando o Estado e a sociedade fortemente dominados por
um regime que recorre a todos os mecanismos para se perpetuar no poder. Já anterior-
mente referi o controlo total da economia tanto na dimensão pública como privada e as
diversas limitações internas e externas à sociedade civil, passando pelo comummente
caracterizado controlo dos media públicos e privados, mediante o qual se continua a
negar um dos mais básicos direitos democráticos — o pluralismo de expressão e o
acesso à informação. O problema do impedimento de difusão à escala nacional da rádio
Ecclesia é por demais exemplificativo destas limitações, continuando-se à espera que
a pressão interna e externa desbloqueie o problema, mas uma pressão que passados
vários anos teima em não aparecer, sobretudo da comunidade internacional.
A estratégia a seguir pelas OSC apostadas na implementação de uma verdadeira demo-
cracia liberal em Angola deve basear-se essencialmente em três grandes linhas de acção.
Uma primeira, dirá respeito à definição do posicionamento e ao alcance da actuação
de cada OSC, tendo que estabelecer claramente alguns princípios, sendo que o pri-
Fernando Macedo g Sociedade Civil e Poder Político 69

meiro deles concerne aos limites da sua cooperação com o governo, sabendo-se até
que ponto se deve cooperar, para que a cooperação não se transforme em cooptação.
Note-se que há consenso no seio da comunidade científica no que concerne à autono-
mia das organizações da sociedade civil em relação ao Estado como constituindo um
traço identitário da sociedade civil. Toda e qualquer articulação com parceiros nacio-
nais ou internacionais deve ter por base o respeito intransigente por estes princípios
de orientação e actuação. A partir daqui podemos falar de cooperação e articulação
entre OSC, tanto a nível nacional como da região austral, para conhecermos melhor a
realidade sócio-política regional em que estamos inseridos, trocarmos experiências e
entreajudarmo-nos em situações de dificuldade.
Uma segunda estará relacionada com a necessidade de as OSC nacionais assumirem
uma posição de coerência entre os princípios e linhas de actuação programáticas que
estabeleceram para si mesmas e denunciarem os posicionamentos nacionais e inter-
nacionais que contrariem e violem os princípios democráticos e os Direitos Humanos
que dizemos defender.
Em terceiro lugar, devemos igualmente reivindicar um tratamento mais justo e iguali-
tário em relação aos doadores e em relação aos parceiros das ONG internacionais. Para
além do referido condicionamento que tem vindo a ser imposto pelo governo e acatado
pelas OSC internacionais na selecção de parceiros nacionais, existem outros níveis de
discriminação, nomeadamente ao nível dos financiamentos. As OSC internacionais a
actuar em Angola recebem financiamentos na ordem dos dois, três, quatro milhões de
dólares, sub-financiam os parceiros locais com somas extremamente reduzidas para
realizarem pequenas tarefas de projecto, sendo uma espécie de sub-contratados, que
acabam por não ganhar a experiência necessária para o seu crescimento em termos de
competências. Do mesmo modo, todos sabemos que os consultores e os especialistas
externos são pagos cinco a seis vezes acima dos nacionais, quando muitos dos espe-
cialistas nacionais são aqueles que na verdade fornecem o principal input do trabalho
de terreno e do conhecimento profundo das realidades.
O argumento da falta de competências é normalmente utilizado pelos parceiros inter-
nacionais como justificativo para não afectarem mais verbas e responsabilidades às
organizações locais. Argumentam, também, de forma implícita (e por vezes explícita),
que uma boa parte dos parceiros nacionais estão minados por fenómenos de corrupção,
desviando parte das verbas. Estes argumentos constituem normalmente generalizações
abusivas, havendo muita gente séria e competente a trabalhar nas OSC angolanas
e, também, pessoas muito competentes que não aceitam trabalhar em organizações
angolanas da sociedade civil porque os salários oferecidos não são competitivos, es-
pecialmente quando comparados com os das organizações internacionais. Paradoxal-
mente, as organizações internacionais estão sempre a apelar ao voluntariado quando
os seus funcionários expatriados ou mesmo alguns dos seus quadros angolanos têm
dos mais competitivos salários do mercado. Acima de tudo, há que desmontar esta
argumentação e dizer claramente que não podemos permanecer nesta menoridade a
que os parceiros internacionais nos querem votar.
O quadro de cooperação entre organizações nacionais e internacionais deve ser de
parceria autêntica e não de subalternidade. As organizações angolanas devem con-
quistar e exigir o respeito que lhes é devido. Por um lado, as competências ganham-se
trabalhando e aprendendo em situação de igualdade com os parceiros internacionais,
por outro lado, temos de ter consciência de que a escassez de recursos disponíveis
70 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

para as ONG nacionais se tem vindo a traduzir em dificuldades acrescidas em recrutar


quadros nacionais, tendo que ser as ONG nacionais a formar pessoal de base que, uma
vez qualificado, se torna alvo de propostas mais atractivas por parte de ONG interna-
cionais, com as quais as organizações nacionais não estão em condições de competir.

Conclusão
O quadro jurídico formal angolano estabelece inequivocamente os parâmetros de
actuação da sociedade civil. Esta é definida como sendo constituída por indivíduos,
grupos de indivíduos informais ou formais, associações autónomas em relação ao Es-
tado, que articulam direitos e interesses e que são portadores de direitos e liberdades
garantidas pela Constituição e leis ordinárias. Os limites ao exercício das capacidades
da sociedade civil são os estabelecidos pela Constituição e pela Lei das Associações. A
administração não dispõe da capacidade de cercear ou de alterar esse quadro através
do recurso ao decreto-lei ou decreto regulamentar, por essa matéria legislativa cons-
tituir reserva absoluta de competência da Assembleia Nacional. O “Regulamento das
Organizações Não Governamentais” padece do vício de inconstitucionalidade orgânica
porque o governo não tem capacidade para legislar sobre matérias atinentes com as
associações, nos termos em que o fez através deste regulamento.
A sociedade civil pode fazer política, tendo por limite a não participação em eleições,
visando influenciar, no processo de decisão, os poderes executivo e legislativo. Ela
pode mesmo fazer campanha contra partidos ou governos instituídos, devendo, no
entanto, fazê-lo com a observância dos direitos ao bom-nome e reputação dos titulares
de cargos públicos, funcionários e agentes do Estado e membros de partidos políticos.
A liberdade implica poder fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. É a lei que estabelece
os limites e não qualquer partido político, maioria parlamentar ou executivo, de forma
avulsa e casuística.
A tentativa de institucionalização de uma representação da sociedade civil através da
liderança (“imposta”) de um grupo de indivíduos (processo em curso em Angola, com
o patrocínio de organizações internacionais, multinacionais e embaixadas ocidentais)
constitui um atentado à ordem constitucional democrática angolana, que pressupõe o
pluralismo de expressão, o pluralismo de organização política e a autonomia da sociedade
civil em relação ao Estado e a poderes sociais e económicos.
As organizações internacionais não governamentais devem repensar a maneira como repro-
duzem o velho modelo da dependência do Terceiro Mundo. A indústria das organizações não
governamentais internacionais não deve ser o novo rosto da maneira egoísta e paternalista
do Ocidente fingir que apoia a democratização do “Terceiro Mundo”.
As organizações nacionais não governamentais que fecham os olhos às violações dos
Direitos Humanos, à má governação e à corrupção, devem deixar de fingir que apoiam a
democratização. Têm a opção de apoiar incondicionalmente o Governo, mas devem assu-
mir que se trata de uma opção pela cumplicidade baseada no cálculo da sua sobrevivência
em detrimento do respeito pelos Direitos Humanos e consolidação da democracia.
Salvaguardados os direitos de terceiros, o princípio da liberdade permite que a so-
ciedade civil prossiga os mais variados fins, não contrários à Constituição e à Lei, e
pelas formas mais diversas, apimentadas pela boa arte da política, que se socorre da
imaginação criativa, no quadro de uma sociedade pluralista.
71

A Sociedade Civil e a
Democratização em Angola

Carlos Figueiredo
Acção para
o Desenvolvimento
N este texto argumenta-se que a principal contribuição
que a sociedade civil pode dar para o processo de
democratização e aumento da justiça social em Angola, é
Rural e Ambiente praticar mais aquilo que recomenda em termos de união, ca-
– ADRA pacidade de acção colectiva e de cultivar estilos democráticos
&
de liderança. Dito por outras palavras, a maior contribuição
SNV
(Cooperação Holandesa) que a sociedade civil pode dar é a de reforçar a coerência
entre o seu discurso e a sua prática.

1 - Antecedentes Históricos de uma Cultura


Pouco Democrática e a Transição dos
Anos Noventa para o Novo Regime Pluralista
Os desafios que hoje enfrentamos têm raízes profundas no
passado e devemos começar por reconhecer essas raízes.
Antes da independência em Angola, formaram-se uma série de
movimentos cívicos, uma série de iniciativas através das quais
os cidadãos se uniram para resistir às injustiças e violências da
colonização. Eram grupos à volta de vários pólos aglutinadores,
como sejam diversas formas de arte, de discussão intelectual,
por vezes de interesses muito localizados em determinados bair-
ros. Todo este movimento associativo local e estas manifestações
de cidadania tiveram um papel muito importante na formação
do movimento de luta pela independência, em particular do
MPLA, que tem raízes muito profundas nestes processos.
Com a independência e com a guerra, as organizações ante-
riormente existentes, as organizações de bairro, de mulhe-
res, de jovens, os sindicatos, todas elas se transformaram
em mecanismos de controlo, em mecanismos de coacção, e
aquilo que foi no passado acção cidadã, passou a ser uma
acção controlada, limitadora e disciplinadora da acção e do
pensamento, numa lógica quase militar.
O ambiente de guerra civil e de partido único de orientação
marxista-leninista foi propício ao cultivo de vários tipos de into-
lerância em relação aos que tinham ideias políticas diferentes, aos
que defendiam ideias de organização social e modelos de desen-
volvimento diferentes e mesmo em relação aos que professavam
credos religiosos (o então apodado “ópio do povo”). Desenvolve-
mos, então, uma atitude de pouca ou nenhuma tolerância1.
1
É importante notar que, mesmo no seio dos que se opuseram de várias formas
ao regime, se cultivou o mesmo espírito de intolerância.
72 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Cultivaram-se lideranças dominadoras, por vezes designadas de clarividentes e com


pretensões de omnisciência, que tinham de ser escutadas, seguidas e obedecidas. Pode
dizer-se que este tipo de atitudes reforçou as características de autoritarismo que, na
realidade, possuíam raízes no período colonial e mesmo no período pré-colonial. Com
tudo isto criou-se uma cultura de intolerância muito forte, uma cultura que se impreg-
nou na organização das estruturas políticas, económicas e sociais do novo Estado e da
sociedade pós-colonial. Esta cultura continuou (continua) a marcar o período que se
seguiu ao fim do partido único, o período de multipartidarismo que surge no início
dos anos noventa. É fundamental reconhecer que esta cultura não desapareceu com o
simples fim do regime de partido único. Uma tal cultura manteve-se nas instituições
do Estado e nas estruturas da sociedade, desde as Igrejas até aos partidos da oposição,
que entretanto foram surgindo.
Aquando das eleições gerais de 1992 prevalecia uma cultura muito pouco democrática,
ainda que o discurso e algumas práticas tenham mudado radicalmente. Muitos que
se assumiam antes como marxistas e ateus, surgiam agora como católicos ou Cristãos
confessos e passaram a casar-se e a baptizarem-se, a si e aos seus, nas Igrejas. Alguns
dos antigos comunistas e marxistas formaram novos partidos políticos que se afirma-
vam agora anti-marxistas, profundamente democratas e defensores de uma sociedade
pluralista. Mesmo indivíduos que tinham assumido posições de topo nos órgãos de
orientação ideológica — marxista-leninista —, chegaram a afirmar publicamente que
nunca tinham sido marxistas!
Portanto, apesar de se ter mudado rapidamente o cenário do teatro, o palco, os actores e a
estrutura permaneceram praticamente os mesmos. A cultura autocrática herdada do pas-
sado manteve-se, profundamente enraizada que estava nas instituições, nas organizações,
na nossa maneira de fazer e de interagir, enfim, na nossa cultura.
Não obstante esta continuidade de uma cultura com fortes traços autocráticos, o novo
modelo multi-partidário levou o aparelho de Estado a alterar a forma de coagir a socie-
dade, passando a recorrer mais a outro tipo de métodos, baseados mais na sedução do
que na pura repressão. Recorre-se agora mais a jogos de poder, através da sedução pelo
acesso a recursos e ao prestígio, por via de notoriedade e da visibilidade. Não se trata
de sedução apenas daqueles que passaram a preencher o espaço político — que assumi-
damente lutam pelo poder —, mas de todos os que de alguma forma podem confrontar
o poder. Algumas organizações da sociedade civil, que também passaram a jogar esse
jogo de acesso aos recursos e à visibilidade, contribuíram para dificultar a construção
de uma nova cultura democrática, ajudando a perpetuar a cultura anterior. Deste modo,
apesar de uma profunda mudança no discurso, a cultura de intolerância sobreviveu,
obstando à efectiva implementação da democracia e à participação alargada.

2 - Fragmentação da Sociedade Civil


As novas estratégias do poder para lidar com o pluralismo levaram, por exemplo, à
criação, pelo poder, de organizações para actuarem no espaço aberto à sociedade civil.
Este tipo de organizações passou a ter um acesso facilitado a recursos consideráveis,
provenientes dos fundos sociais das receitas do petróleo, geralmente utilizados em
acções de carácter assistencialista, e às quais é dada muita visibilidade nos media es-
tatais, completamente desproporcionada em relação à importância efectiva e relativa
das acções concretas por elas desenvolvidas. A organização deste género mais referida
Carlos Figueiredo g A Sociedade Civil e a Democratização em Angola 73

a nível interno e internacional é a Fundação Eduardo dos Santos (FESA), cujo patrono
é o presidente da República, tratando-se de uma organização muito mais próxima do
governo e do topo do poder do que dos cidadãos. A exemplo da FESA, muitas outras
organizações surgiram na mesma senda e com propósitos e posturas semelhantes.
Temos aqui, desde logo, uma primeira distinção entre este tipo de organizações que
não são verdadeiramente da sociedade civil — pois são essencialmente criações do
poder para reforçar a sua hegemonia —, e as outras organizações que surgem mais
enraizadas em visões, anseios e interesses de grupos dentro da sociedade angolana.
Parecem existir forças dentro do governo que seguem uma clara estratégia de reforçar
as primeiras e enfraquecer as segundas. Esta é uma frente de luta crucial para a afir-
mação da sociedade civil Angolana como força fundamental para a democratização da
sociedade. Uma maior articulação e coordenação entre estas organizações que surgem
de anseios, visões e interesses dos cidadãos, é indispensável para resistir às forças que
as querem enfraquecer.
Por outro lado, é necessário reconhecer que também no seio destas organizações mais
enraizadas na sociedade, existem diferentes posicionamentos, perspectivas, visões e
estratégias. Uma das razões para explicar um tal fraccionamento, para além do que
é normal, aceitável e salutar nos movimentos da sociedade civil, é que elas possuem
raízes muito diferentes. Algumas organizações, por exemplo, foram criadas por grupos
com fortes ligações ao MPLA, tratando-se de pessoas que estiveram no passado ligadas
ao processo de formação de cooperativas e que depois criaram chamadas organizações
de desenvolvimento. Outras foram criadas nas zonas anteriormente ocupadas pela
UNITA. Outras, ainda, surgiram da reacção de emergência à crise humanitária.
Esta divisão, motivada pelos distintos percursos, é muitas vezes exacerbada pela perpe-
tuação da cultura maniqueísta herdada do tempo do partido único, em que havia os bons
e os maus, os fantoches e os que queriam construir uma sociedade nova (que abordámos
no início deste texto). Apesar do processo de mudança para o pluralismo partidário, nos
anos noventa, esta cultura de separação e de alguma intolerância ainda está demasiado
presente no nosso modo de analisar e de agir, facto que nos enfraquece enquanto socie-
dade civil, debilitando gravemente a nossa capacidade para a acção colectiva.
Para além do mais, devemos ainda referir a cultura de medo que decorre da intole-
rância e autoritarismo anteriormente referidos. Trata-se de um medo que leva muitas
vezes à auto-censura, um medo auto-castrador da liberdade de expressão, de opinião
e mesmo de pensamento.
A título de exemplo, podemos referir o caso da “tentativa de ilegalização” de algumas
ONG por parte do governo em meados de Julho de 2007.
Em entrevista à Rádio Nacional de Angola em 10 de Julho de 2007, o director-geral
da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária (UTCAH), Pedro Wali-
pe Kalenga, denunciou a existência de organizações não governamentais nacionais e
estrangeiras a funcionarem de forma ilegal em Angola, afirmando que muitas dessas
ONG eram apoiadas por partidos da oposição e realizavam actividades que violavam
a lei, desobedecendo ao governo e às suas instituições e incentivando as populações a
reagirem contra as autoridades. Neste caso estariam as associações Mãos Livres, SOS
Habitat, Associação Justiça Paz e Democracia e a Open Society Angola2.

2
Luanda, Angop, 10 de Julho de 2007.
74 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

As acusações de Walipe foram seguidas de outras, que dos mais diversos quadrantes
afectos ao MPLA o apoiaram — várias personalidades com responsabilidades governa-
mentais/ministeriais, deputados, jornalistas e sociólogos afectos ao partido no poder3.
Todas estas intervenções tiveram um enorme eco numa campanha dos media estatais para
apoiar aquelas posições, sem sequer ouvir os acusados, nem outras opiniões contrárias
no seio da sociedade civil. Das organizações visadas, naturalmente que não constava ne-
nhuma das que sistematicamente aparecem nos media estatais a fazerem propaganda ao
partido maioritário, restando somente algumas das mais “politicamente inconvenientes”
por actuarem na área dos Direitos Humanos, eleições e advocacia, levando a crer que
tais pronunciamentos poderiam eventualmente estar relacionados com o aproximar das
eleições e com a tentativa de restringir as opiniões críticas durante o período de debate
pré-eleitoral. Outra hipótese aventada seria a de que esta campanha faria alegadamente
parte de uma preparação da opinião pública para uma lei das associações mais restritiva
à autonomia das OSC.
Independentemente dos motivos que poderiam estar na base de tal campanha, o facto
é que da maneira como se articularam os pronunciamentos públicos contra as OSC e a
cobertura/apoio que tiveram nos media estatais, tornou-se claro para a maioria da socie-
dade civil que se tratava de uma estratégia política governamental-partidária de ataque
às OSC e ao espaço cívico e das liberdades fundamentais como um todo. Entendida desta
forma, uma tal estratégia intimida e acentua uma tendência para a auto-censura.
As OSC fora do âmbito governamental-partidário começaram a pensar numa reacção
conjunta por via das duas maiores plataformas de ONG (FONGA – Forum das ONG
Angolanas, e CONGA – Comité das Organizações Não Governamentais em Angola).
O processo de discussão para esta tomada de posição é bastante ilustrativo do espírito
de auto-censura que tratamos aqui. Logo após os primeiros ataques, foi preparado um
esboço de documento que criticava a atitude governamental de colocar pressão sobre
todas as organizações da sociedade civil, por trabalharem em advocacia e Direitos
Humanos. Este primeiro documento beneficiou de contribuições várias, para o colocar
no tom correcto e para incluir todos os aspectos que se considerou serem importantes
exprimir junto da UCTAH. Embora se tenha chegado a uma formulação que parecia
consensual, não se conseguiu que o documento fosse assinado pelas lideranças do
CONGA e do FONGA, devido a toda uma imensidão de entraves de todo irrelevantes
que eram sistematicamente levantados.
Seguiu-se ainda uma tentativa de fazer o documento circular como abaixo-assinado por
um grupo de indivíduos, que o assinariam a título pessoal, uma vez que institucional-
mente se havia revelado inviável. Contudo, também esta via se gorou, porque as várias
pessoas potencialmente interessadas em assinar queriam, antes de mais, saber quem
seriam os outros co-signatários com quem poderiam eventualmente ser conotados,
preocupados que estavam com possíveis retaliações por parte do poder político.

3
A intervenção de Walipe foi seguida de outras que o secundaram: o jornalista e docente Ismael Mateus defendeu
que o Ministério Público deveria proceder à averiguação e posterior ilegalização das ONG que, contrariando o seu
objecto social, envolvem-se em questões de fórum político do país, incitando a população à desobediência (Luanda:
Angop, 12 de Julho de 2007); o Dr. Alvarenga, do Ministério da Justiça, chegou a referir que as ONG são por vezes
mecanismos de branqueamento de dinheiro e de fomento ao terrorismo; o primeiro secretário provincial de Luanda
do MPLA, Bento Bento, afirmou que “existem ONG que em vez de mobilizarem o povo para o registo eleitoral, estão
a incitar as populações para não votarem no MPLA” (Luanda: Jornal de Angola, 22 de Julho de 2007); o sociólogo
Simão Helena denunciou o caso de ONG que operam no país sob a capa da filantropia, mas que acabam por fazer
política, incitando a população à subversão e à desordem (Luanda: Jornal de Angola, 11 de Julho de 2007).
Carlos Figueiredo g A Sociedade Civil e a Democratização em Angola 75

Por fim, depois de inúmeras discussões, tempo e esforços dispendidos, o documento acabou
por ser assinado apenas por dois indivíduos, que foram mais tarde criticados, em vários
círculos das OSC, por terem quebrado a suposta unidade de reacção da sociedade civil.
Deste exemplo, resulta claro que um dos grandes desafios que se nos coloca, socieda-
de civil empenhada numa efectiva democratização, é o de reflectirmos criticamente e
em conjunto sobre a nossa própria prática e da sua relação com uma efectiva demo-
cratização e com a construção de uma cultura democrática. É preciso aumentarmos
a exigência em relação a nós mesmos, no sentido de praticarmos mais aquilo que
“pregamos”. A partir daí devemos procurar aumentar a coordenação e diminuir a
fragmentação. Devemos procurar a coordenação à volta de princípios e de causas co-
muns que contribuam para uma democratização efectiva da nossa sociedade; causas
e princípios gerais e simples que consigam mobilizar as pessoas, ainda que tenham
diferentes linhas de orientação, partidos ou credos religiosos. No fundo, ultrapassar a
realidade prevalecente da sectarização e da fraqueza que lhe está inerente, buscando
um objectivo maior de fortalecimento da sociedade civil e da democratização. Há que
vencer o medo e derrotar a auto-censura. O caso da prisão de Sarah Wykes em 18 Fe-
vereiro de 2007 poderá ser visto como um primeiro esboço de tais casos geradores de
articulação e concertação. Ainda que pontual e sem sequência, existiu alguma reacção
solidária e generalizada, essencialmente por via da Internet, por parte de inúmeras
OSC, activistas e alguns políticos.
Apesar da diversidade ser positiva, é importante encontrar pólos de aliança no seio
das OSC e de comunhão em torno de uma estratégia/postura democrática de base e
a este nível torna-se evidente que a responsabilidade para mudar está, também, na
própria sociedade civil e na coragem de assumir os seus princípios de base e aquilo
que “prega”, não se deixando intimidar pelo poder político e confrontando-o sempre
que as liberdades fundamentais legalmente protegidas estiverem a ser ameaçadas.

3 - Relações com a Comunidade Doadora e ONG Internacionais


Um outro foco de fragmentação das OSC está a nível externo, das relações que se esta-
belecem com a comunidade internacional. É também de distinguir aqui dois tipos de
organização. Por um lado, aquelas cuja agenda é essencialmente determinada pelos
problemas de comunidades angolanas, por outro lado, aquelas por vezes designadas
de subcontratadas da assistência social, que essencialmente servem de intermediários
entre doadores e comunidades cujas necessidades se enquadrem na agenda do doa-
dor. Este último tipo de organização actua na base de uma agenda exclusivamente
determinada pelos doadores.
É urgente aumentar o conhecimento público sobre as organizações existentes, o que
fazem, com quem trabalham, quem determina a sua agenda, que financiamentos
estão a obter, quem as financia, e quais são as OSC que têm um projecto coerente e
que lutam por ele junto dos doadores. Existe um vazio em relação a este debate na
sociedade angolana.
Do mesmo modo, há que referir a questão da chamada patronage dos doadores, que
consiste em selectivamente escolherem parceiros nas OSC de acordo com critérios
nem sempre objectivos e que, ao prolongarem no tempo esses laços e eventualmente
os recomendarem a outros doadores, acabam por criar um grupo de privilegiados que
rapidamente se vão destacar em relação aos outros em termos de acesso a recursos,
76 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

financiamentos dos doadores e meios. A própria competição, que por vezes existe entre
OSC no acesso aos financiamentos dos doadores, acaba igualmente por diferenciar e
fragmentar, mais do que articular.
Não se pode pretender que todas as OSC sejam financiadas do mesmo modo. É normal
que a comunidade doadora também tenha a sua agenda. Esperar o contrário não seria
realista. No entanto, não é de todo aceitável que os doadores usem as organizações
nacionais como simples instrumentos, manipulados em função de objectivos e agendas
externas. A responsabilidade por esta postura é primeiramente dos doadores, mas não
se pode ignorar a responsabilidade das OSC angolanas a quem cabe aceitar ou não
esse jogo. Este é um debate que está igualmente por fazer. Debate no seio das OSC
Angolanas e entre estas e a comunidade doadora. Devemos notar que nem os doadores
nem as OSC Angolanas são entidades homogéneas e com interesses únicos.

4 - As Estratégias de Mudança para uma Sociedade Civil Dinâmica e Forte


Em face da argumentação que tem vindo a ser exposta, na minha perspectiva uma
estratégia de mudança sócio-política rumo a uma efectiva democratização passa es-
sencialmente por cinco eixos de actuação.
Um primeiro, seria o de identificar casos concretos em que as OSC possam facilmente
estar articuladas e tratar esses casos de uma forma que aproxime e crie solidariedade. A
título de exemplo, há tempos atrás houve várias pessoas ligadas ao movimento cívico
de Cabinda que foram presas por alegadamente terem na sua bagagem documentos e
artigos de opinião contra a política governamental no enclave e em favor da separação
daquele território. Este tipo de prisão, ofensiva de um direito fundamental que é o da
liberdade de expressão e ilegal por violar um direito constitucionalmente consagrado,
pode facilmente congregar várias tendências dentro da sociedade angolana.
É possível articular pessoas próximas do poder, próximas do MPLA, apoiantes da
oposição, intelectuais, que estejam, em conjunto, a favor de uma maior democratiza-
ção. Contudo, a aproximação em torno deste tipo de casos só é possível se as acções
de advocacia forem feitas sem colocar a tónica nos elementos de divisão. No caso
acima referido e para ilustrar este argumento, é muito diferente, em termos de quem
se consegue mobilizar, colocar a tónica na questão do cumprimento da lei, na figura
do indivíduo preso, ou na questão do movimento separatista de Cabinda. Argumentos
em torno da ilegalidade da detenção de alguém por ter artigos de jornal na bagagem
devem resultar em articulação. E a articulação em torno deste tipo de casos contribui
para exercitar a nossa capacidade de intervenção colectiva e contribui para um acu-
mular de experiência e força para lutas muito mais difíceis e de uma escala maior.
O exemplo do que aconteceu em Moçambique aquando da discussão da Lei da Terra,
em que muitos foram para a rua manifestar o seu apoio em relação a uma questão em
torno da qual grande parte da sociedade estava unida, deve servir de inspiração para
nós. Em Angola têm ocorrido vários casos passíveis de unirem as OSC e o público
em geral, mas geralmente acabam de forma efémera, não produzindo nem um efeito
sustentável no tempo, nem uma maior coordenação entre OSC. É claro que uma tal
mobilização e coordenação não deve ser confundida com oposição permanente ou
sistemática ao poder político estabelecido. Uma tal mobilização e coordenação deve
ser igualmente visível quando em apoio ao governo — sempre que assim se justificar
—, ou em torno de questões que não envolvam obrigatoriamente o poder.
Carlos Figueiredo g A Sociedade Civil e a Democratização em Angola 77

Um segundo eixo consiste numa maior e melhor inter-comunicação e inter-conheci-


mento entre as OSC. Uma comunicação que permita articular. Comunicar mais, de
maneira a que se torne visível o que as várias organizações estão a fazer. Comunicar
mais para conhecer melhor. Muitos de nós não conhecemos suficientemente o que os
outros fazem, mas ainda assim temos uma opinião muito forte sobre os “erros” que os
outros estão a cometer. Ou seja, formam-se opiniões antes de se conhecer a realidade.
Isto tem a ver com uma comunicação muito pobre, que ainda existe entre as OSC, e
também com a cultura de intolerância e maniqueísmo anteriormente referida. Estou
aqui a recomendar uma comunicação que permita também aumentar o conhecimen-
to sobre o que se está a passar nos locais isolados de Angola, aqueles que não têm a
visibilidade da capital, do litoral em geral ou das zonas urbanas.
Em terceiro lugar, eu diria que é necessário criarmos mecanismos de controlo de proce-
dimentos transparentes e democráticos dentro das nossas próprias OSC. Se criticamos
a falta de transparência na gestão da coisa pública a nível das estruturas governamen-
tais, não podemos permitir a impunidade no nosso seio quando se verificam actos de
corrupção, de desvios de verbas, fraudes, abusos de poder para benefício pessoal, e
outro tipo de actos ilegais que por vezes acontecem. Mais uma vez repito que temos
de começar a dar o exemplo a partir de nós mesmos e ser absolutamente rígidos no
controlo e combate a quaisquer destas situações no nosso sector, para que possamos
ter a legitimidade de combater essas práticas a nível das estruturas do Estado.
De igual modo, temos de implementar e assegurar o funcionamento de mecanismos
democráticos na orgânica das nossas OSC, nomeadamente a questão da liderança, para
evitar que, por exemplo, várias das nossas ONG sejam dominadas por líderes autocráti-
cos, que não estão habituados a ser questionados, não estão habituados a prestar contas,
estão habituados a ter uma atitude, uma visão e uma postura autoritária, que os outros
devem seguir sob pena de serem imediatamente apodados de vendidos e inimigos. Não
percebem estes líderes que, no fundo, estão a replicar e a perpetuar a mesma cultura
anti-democrática que dizem combater no regime. O facto de assumirem uma postura
de confronto e crítica ao regime, que acusam de falta de democratização, não quer au-
tomaticamente dizer que sejam eles próprios democráticos no seio das suas próprias
organizações, acabando por não serem exemplos de mudança nas práticas, nos métodos
e na cultura que dizem combater. A liberdade de expressão, opinião e apresentação de
propostas de liderança alternativa devem começar dentro das nossas organizações. A
mensagem global que eu deixaria era a de que se nós não conseguirmos praticar den-
tro das nossas organizações aquilo que é a cultura que nós advogamos, vai ser difícil
conseguirmos transformar a cultura sócio-política do nosso país.
Não quero de todo dizer que no geral as OSC funcionem com modelos autoritários e
de falta de transparência. Muitas delas operam já dentro de um ambiente regulado e
controlado, quando comparadas com outras estruturas da sociedade. A realização de
auditorias e a prestação de contas é algo comum no sector, mas muito há a fazer para
se chegar ao nível do discurso.
Um quarto eixo, no seguimento do anterior, diz respeito à difusão e propagação de
uma cultura de acção colectiva, participativa e democrática, junto das comunidades
desfavorecidas com as quais muitos de nós trabalham. Esta prática deve ser aplicada
aos problemas e à vivência diária das comunidades como, por exemplo, à gestão
das escolas, dos postos de saúde, no acesso ao saneamento básico, à água potável, à
energia, etc. A criação ou reforço de uma cultura de acção colectiva eficaz, acabará por
78 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

ter um papel de, a prazo, ajudar à democratização dos vários níveis das estruturas
governativas do país. Encontramos em muitas aldeias do país elementos deste tipo de
acção colectiva e de gestão do interesse comum, com raízes na tradição rural africana.
O reforço destes elementos pode ser um dos pontos de partida.
Por fim, um quinto eixo consistiria em desenvolver projectos de pesquisa, funda-
mentados na realidade e que sustentem a acção. Existe um grande vazio em Angola
a este nível. Falta pesquisa feita por académicos em articulação com as próprias OSC
e as comunidades, de uma forma participativa e inclusiva. Deverá ser uma pesquisa
submetida à agenda do grande público e às necessidades das comunidades desfavo-
recidas, sem no entanto se perder de vista a articulação desta dimensão micro com as
grandes condicionantes políticas e económicas, nacionais, regionais e internacionais.
Em resumo e de forma simples, estes cinco eixos têm simplesmente a ver com a neces-
sidade de praticarmos mais aquilo que são os valores que dizemos defender.

5 - Eleições e Expectativas de Mudança


A efectiva democratização da nossa sociedade implica significativas alterações estru-
turais de carácter político-social, que não é provável que venham a ocorrer no curto
prazo. É necessário ter consciência desta realidade e não ser irrealistamente optimista
em relação a essas transformações de fundo e ainda menos esperar que as eleições, só
por si, sejam o propulsor das mudanças necessárias. É muito importante que se reali-
zem eleições regularmente, mas o exercício da democracia, o exercício da cidadania,
é muito mais amplo e exige um trabalho de fundo, de médio e longo prazo.
As condicionantes estruturais à efectiva democratização são várias, mas realçaria aqui
quatro.
Uma primeira está ao nível das relações entre o poder político e económico, reforçando-
-se mutuamente na preservação e perpetuação das posições de privilégio e domínio
dos mecanismos de controlo social. Relacionado com isto está a dificuldade das OSC,
que estão fora da esfera de influência do poder, acederem a fontes internas de finan-
ciamento. Para além disto, o acesso a fontes externas também apresenta problemas.
Foram já discutidas algumas questões em torno das relações das OSC com doadores
e com ONG internacionais, mas interessa realçar aqui uma perspectiva mais recente e
que envolve a crescente importância do financiamento à sociedade civil e a projectos
de desenvolvimento por parte de empresas petrolíferas e diamantíferas, no âmbito da
chamada responsabilidade social daquelas empresas.
Existe um certo consenso dos doadores internacionais, e da comunidade internacio-
nal em geral, em relação a esta questão, considerando tratar-se de uma forma de as
populações terem maior acesso a fundos derivados da riqueza mineral do país, ou
seja, a riqueza comum cuja gestão por parte dos detentores dos cargos públicos é
normalmente acusada de falta de transparência.
Contudo, não é de esperar que sejam as empresas estrangeiras a financiar, por exem-
plo, acções de monitoria da acção do governo, ou de reforço do exercício da acção
cidadã. A responsabilidade corporativa daquelas empresas deve ser entendida como
subordinada aos negócios que são feitos num contexto político nacional e internacio-
nal mais alargado. Estas empresas agem em função das suas próprias agendas e têm
como objectivo central a sua actividade empresarial. Não poderemos esperar deste
Carlos Figueiredo g A Sociedade Civil e a Democratização em Angola 79

sector um financiamento das OSC que seja autónomo das condicionantes políticas e
empresariais do país onde actuam.
A título de exemplo, foi lançado no início de 2007 um projecto de criação de um “Centro
de Reforço das Capacidades das OSC” (pretendendo igualmente reforçar a capacidade
de governos locais), composto por um consórcio que integra a Development Workshop,
a ADRA, a MOSAIKO, a IBIS, o FONGA e a World Learning, em resposta a um desafio
lançado pela União Europeia, pela USAID e pelo Governo Angolano, no sentido de se
financiarem projectos da sociedade civil com fundos disponibilizados pelas empresas
petrolíferas a actuarem em Angola. Numa das reuniões ocorridas no âmbito deste pro-
jecto e em que alguns membros das organizações presentes realçaram a necessidade de
colocar maior ênfase e investimento na cidadania, na advocacia dos Direitos Humanos e
de colocar forte pressão sobre o Estado no sentido da democratização, a reacção informal
dos representantes de algumas petrolíferas foi cautelosa, frisando que teríamos de com-
preender a posição daquelas empresas num contexto político nacional e internacional
mais alargado, em função das suas próprias agendas e objecto empresarial.
Um segundo conjunto de condicionantes consiste nas barreiras à liberdade de actuação
no espaço cívico, começando desde logo pela efectivação da liberdade de expressão
e do acesso à informação, dado que, como sabemos, os media alternativos (os poucos
que se encontram fora da esfera de influência do Estado) estão a ser cada vez mais
limitados na sua actuação, sendo a rádio Ecclesia um dos exemplos mais referidos,
impedida que tem sido de emitir fora de Luanda. Os media estatais são extremamente
parciais e permitem um cada vez menor espaço aos actores da sociedade civil que
sejam críticos do governo. Há vários exemplos de emissoras provinciais em que foi
retirado o tempo de antena anteriormente concedido às OSC para programas de
educação cívica. Um outro exemplo é o modo parcial como a imprensa tratou a greve
de professores no início de 2007. Foram entrevistados exclusivamente os professores
e sindicatos que não estavam de acordo com a greve e dada uma ampla cobertura à
posição do Ministério da Educação, tendo sido ignorado por completo o Sindicato
dos Professores – SINPROF – que convocou a greve. Em vez de informar o público
sobre os factos e as várias posições, a imprensa estatal foi usada para fazer uma cam-
panha propagandística e manipular a opinião pública e os professores no sentido de
enfraquecer o movimento grevista. O mesmo se passou com a anteriormente referida
tentativa de ilegalização de algumas ONG.
Para além das barreiras existentes a nível interno, criam-se agora novos obstáculos
a nível regional/internacional, existindo casos de organizações sociais que têm sido
desencorajadas de se relacionarem com congéneres de outros países da região. Este
espaço regional/internacional é muito mais difícil de controlar e, como tal, encerra um
potencial de muito maior de perigo para os interesses do poder estabelecido.
Em terceiro lugar estão as condicionantes ao nível da extrema concentração de poder
que existe no nosso país e a falta de eficácia dos mecanismos de controlo do poder
político. Instituições como o Parlamento, o Tribunal de Contas e a Procuradoria-Geral
da República têm um papel muito limitado no que toca ao controlo da actividade go-
vernativa. Geralmente estas instituições coíbem-se de tomadas de posição que sejam
mais assertivas em relação à actuação do governo e do órgão máximo de poder em
Angola — o Presidente da República. De igual modo, a oposição é muito débil em
competências e visão estratégica, tendo já por diversas vezes dado inúmeras provas
de ser muito permeável à pressão ou sedução por parte do poder.
80 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Por fim, embora não menos importante, existem fortes condicionantes psicológicas na
esmagadora maioria da população (atravessando todas as camadas sociais) que blo-
queiam o exercício das liberdades cívicas e democráticas. Prevalece uma forte atitude
de auto-censura e de receio em relação às possíveis consequências da expressão de
opiniões e posições políticas. A nível da generalidade da população esta auto-censura
e bloqueio aumentam à medida que se aproximam as eleições, existindo, em alguns, o
receio em relação ao período pós-eleitoral, justificado em parte pela má experiência de
1992. No geral, excepto os políticos profissionais, as pessoas têm receio de assumir a
sua filiação partidária, predominando um estado de espírito colectivo de não discutir
tendências de voto.
O próprio bastonário da Ordem dos Advogados de Angola afirmava, no início de 2007,
ter muitas dificuldades em delegar noutros membros da estrutura dirigente da ordem
a tomada de posições públicas, mesmo em casos de simples defesa dos mais básicos
princípios constitucionalmente consagrados. Sempre que as pessoas percebem que a
tomada pública de uma posição pode ser interpretada como de mínima contestação
ao poder estabelecido, calam-se pelo receio de afectarem a sua carreira. Isto acaba por
reforçar uma cultura do poder estabelecido, da submissão e de estilos de liderança
autocráticos, prejudicando um processo de efectiva democratização. O anteriormente
referido exemplo da tentativa de ilegalização de algumas ONG enquadra-se igualmente
neste argumento.
Globalmente, existe em Angola um ambiente onde faltam muitas das condições
sócio-políticas para um exercício saudável da democracia e para a realização de eleições.
Para além das condições técnico-administrativas das eleições há muito que construir
para consolidar o processo de democratização, algo que nos compete a todos e não
apenas ao poder e aos políticos profissionais. A sociedade civil angolana é sem dúvida
uma força fundamental para esse trabalho de construção que está por fazer.
81

A Sociedade Civil, a Política


e a Erradicação da Pobreza
em Angola: Duas Perspectivas
em Confronto

Introdução
Sérgio Calundungo
Acção para
o Desenvolvimento
I ndependentemente dos crescentes rendimentos do petró-
leo e dos diamantes, os indicadores de desenvolvimento
humano em Angola permanecem fracos. O país ocupa o
Rural e Ambiente 161.º lugar no índice das Nações Unidas com cerca de 70%
– ADRA, Angola da população a viver com menos de US$2 por dia, estando
portanto numa situação de pobreza, sofrendo de insegu-
rança alimentar, de limitado acesso a água potável, de falta
de saneamento básico, de limitado acesso à educação e à
assistência medico-medicamentosa e de elevadas taxas de
mortalidade infantil1.
Angola foi um dos 191 países que adoptaram a declaração
do milénio procurando, entre outros objectivos, reduzir para
metade a pobreza e a fome até 2015. Contudo, os dois pri-
meiros relatórios nacionais sobre a situação do país quanto
aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, em 2003 e
2005, concluem que, mantendo-se a tendência actual, o país
irá falhar os objectivos para 2015. Existe um nível fraco de
realização em quase todos os objectivos e entre as áreas mais
críticas para este fracasso está o fraco envolvimento de actores
não-governamentais nos processos de tomada de decisão,
as fortes disparidades regionais em infra-estruturas e o fraco
fornecimento de serviços sociais com qualidade aceitável2.
O presente texto centra-se em torno da discussão sobre o
contributo das Organizações da Sociedade Civil (OSC) para
a redução da pobreza e da sua relação com as instituições
do poder do Estado no combate a este flagelo nacional que
afecta a maioria da população. Este tema tem sido debatido
por várias individualidades e instituições em Angola.
Desde que nos anos noventa a legislação autorizou a consti-
tuição livre de OSC, estas passaram a protagonizar um im-
portante papel no combate à pobreza, seja através de acções
no campo da “ajuda de emergência” de curto prazo, seja

1
In Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, A água para lá da escassez: poder,
pobreza e a crise mundial da água (New York: PNUD, 2006).
2
In Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, relatório de progresso 2005 (Luanda:
Governo de Angola e PNUD, 2005).
82 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

através da maneira como se têm proposto enfrentar os desafios do desenvolvimento


económico-social, de médio e longo prazo.
Um olhar preliminar sobre a sociedade civil permite destacar, no seu seio, duas aborda-
gens principais e distintas no que se refere à análise da pobreza e ao seu combate: uma
abordagem focalizada nos sintomas e outra nas causas. As diferentes perspectivas sobre
a pobreza têm efeitos no seu modo de actuar, não só em termos do projecto de sociedade
que defendem, em geral, mas também no que respeita ao tipo de relação a manterem
com as instituições do poder do Estado.
A relação entre OSC e estruturas do poder do Estado tem sido complicada, confusa e
marcada por muitos conflitos sobre os limites de actuação das OSC, tentando o governo
impor restrições àquilo que considera ser o espaço da sociedade civil, distinto e apartado do
espaço político. A discussão alastrou às próprias OSC e permanece acesa entre, basicamente,
aqueles que têm uma perspectiva abrangente da acção das OSC, incluindo uma postura
necessariamente política, ainda que dentro de determinados parâmetros, assumindo uma
leitura das causas estruturais — políticas — da pobreza, e por outro lado aqueles que têm
uma visão de curto prazo, centrando-se essencialmente nos sintomas da pobreza e em
paliativos, auto-inibindo-se de uma leitura mais complexa sobre as causas, actuando na
base do assistencialismo e do imediato socorro das situações de pobreza extrema.
Decorrente destas duas posições está igualmente a atitude que cada uma delas assume
quanto ao tipo de relação a manter com as estruturas do poder do Estado. Para aqueles
que não renegam uma leitura política da realidade, a relação com as instituições do
Estado deve ser pautada pela defesa intransigente dos Direitos Humanos, não se dei-
xando inibir pelas parcerias que possam eventualmente estabelecer com as estruturas
governamentais. Sempre que se verifique uma violação dos Direitos Humanos, haverá
uma reacção de crítica intransigente por parte daquelas organizações e esse é o limite
da sua colaboração. Do lado daqueles que se posicionam no curto prazo e no combate
aos sintomas da pobreza, a colaboração não deve impor condições, deve antes procu-
rar a via da persuasão, reforçando as instituições do Estado por via da colaboração,
cooperação e reforma do aparelho governamental a partir de dentro.
Longe de pretender ser limitativo quando aqui afirmo que existem duas perspectivas
no que se refere à análise do fenómeno da pobreza, às estratégias adoptadas para a
combater e ao tipo de relacionamento com as instituições do poder do Estado, pro-
curo apenas discorrer sobre dois pontos de vista que se opõem de forma marcada e
essencial, focando-se um deles nas causas e o outro nos sintomas. Este texto começa
por fazer um enquadramento daquilo que tem sido a história da sociedade civil em
Angola e da sua relação com as estruturas do poder do Estado (capítulo 1), entrando
depois na discussão das duas perspectivas acerca daquela relação, apresentando-se os
argumentos de ambas (capítulos 2 e 3). Seguimos depois com a apresentação da postura
das organizações internacionais face àquela discussão (capítulo 4) e terminamos com a
apresentação das limitações do modelo de desenvolvimento governamental em curso
face a um modelo participado pela sociedade civil (capítulo 5).

1 – Breve Contextualização Histórica da Análise da Pobreza em Angola


Antes de entrarmos na análise das duas perspectivas da sociedade civil que aqui são
discutidas, convém fazermos uma breve contextualização da pobreza, da sociedade
civil e da sua relação com a política em Angola.
Sérgio Calundungo g A Sociedade Civil, a Política e a Erradicação da Pobreza em Angola 83

Um olhar retrospectivo sobre a realidade angolana mostra que o problema da pobreza


é muito anterior à independência. Inúmeras situações de injustiça social, económica
e política com privação de inúmeros direitos, liberdades e garantias, remontam ao
passado colonial. Nos anos sessenta e setenta, as correntes desenvolvimentistas eram
praticamente unânimes em afirmar que existia toda uma estrutura político-administra-
tiva e económica do modelo colonial que era a principal responsável pelas profundas
desigualdades e exploração económica de que era vítima a maioria da população em
benefício dos interesses coloniais3.
O problema estava claramente identificado como sendo, antes de mais, político-económico,
sendo necessário desmantelar o modelo de exploração colonial para que se resolvessem os
problemas sociais, nomeadamente a pobreza nas suas mais diversas variantes – igualdade
de oportunidades, independentemente da raça ou condição sócio-económica, acesso uni-
versal à educação, a um sistema de saúde condigno e gratuito, à água, à luz, ao saneamen-
to, à segurança alimentar, a sistemas de solidariedade e segurança social, etc. Enfim, era
inquestionável que os problemas da pobreza e das assimetrias sociais e regionais estavam
inextrincavelmente ligados ao modelo político-administrativo existente — o Estado colonial.
A leitura e o entendimento da pobreza eram de natureza essencialmente política, com forte
pendor ideológico. Obviamente que contribuía para este facto todo o contexto daquela época
e toda a discussão ideológica desenvolvida num período de “guerra-fria”.
Após a independência, findo o modelo colonial, gerou-se um consenso acerca do ca-
minho a seguir — o desenvolvimento económico e social —, que deveria acabar com
as injustiças e as insuficiências do colonialismo, criando condições para eliminar a
pobreza tão depressa quanto possível, atacando as suas causas através da criação de
riqueza — crescimento económico — e com políticas sociais solidárias para ajudar os
mais desfavorecidos e pobres a saírem da situação em que se encontravam. Apontava-se
para a necessidade de profundas transformações económico-sociais e para não menos
profundas transformações das estruturas de poder herdadas do período colonial. O
modelo oficialmente assumido da construção de um Estado Socialista colocava a ênfase
no campo social e é deste modo que serão colocados em prática ambiciosos projectos
ao nível da educação, saúde, habitação e segurança social, entre outros. Nesta época,
a discussão em torno da sociedade civil estava muito longe da força que viria a ter
nos anos noventa, aquando do colapso do bloco de Leste e o início das transições
políticas. Nos anos setenta, seja a Leste seja a Ocidente, não se questionava o papel
liderante, dominante e quase que autónomo do Estado em matéria das opções e po-
líticas económico-sociais, embora, obviamente, com uma força esmagadora — quase
absolutista — nos modelos ditos Socialistas.
Angola optou pela via Socialista e o Estado cresceu enormemente, esmagando qualquer
sociedade civil autónoma do poder político que eventualmente se pudesse reforçar
após a independência. As chamadas organizações de massas do partido deveriam
fazer o enquadramento de todas as iniciativas no campo social, estando obviamente
controladas pelo partido e fortemente politizadas — a Organização da Mulher Ango-
lana (OMA), a Juventude do Partido (JMPLA) e a União Nacional dos Trabalhadores
Angolanos (UNTA). Esta postura do Estado esmagou e sufocou qualquer esboço de
sociedade civil, participativa e interventiva.

3
Algumas dessas posições encontravam eco nas instituições da sociedade civil angolana da época, já com características
nacionalistas, nomeadamente a Liga Nacional Africana, alguns sectores da ANANGOLA e alguns sectores das
diferentes Igrejas.
84 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Com o fim do regime Socialista de partido único, o início do processo de transição de-
mocrática e a nova legislação que permitiu a liberdade de associação cívica, surgiram
várias organizações ditas da sociedade civil, nacionais e estrangeiras, que em colaboração
começaram a desenvolver inúmeros projectos nas mais diversas áreas junto das comu-
nidades carenciadas, numa perspectiva que combinava/misturava ajuda assistencial
imediata com projectos de desenvolvimento sustentável e por vezes participativo. O
afluxo de fundos externos para estes projectos foi significativo e permitiu um boom ao
nível das OSC um pouco por todo o país.
Com o reinício do conflito armado logo após as primeiras eleições multipartidárias de
1992, houve necessidade de fazer face às consequências sociais imediatas da guerra,
reforçando-se o carácter de emergência dos projectos e das ONG a operarem no terreno.
O período de “nem paz nem guerra” que se viveu ao longo dos anos noventa e até 2002
(quando efectivamente termina a guerra civil), continuou a ser muito marcado pelas
acções de emergência, embora fossem surgindo vários projectos com uma perspectiva
de desenvolvimento sustentado e de médio prazo.
O aparecimento de várias OSC a trabalharem numa perspectiva de médio e longo
prazo, que queriam fazer mais do que actuar no imediatismo da emergência, levou a
que se começassem a levantar vários tipos de problemas para o governo-partido-Estado
(estas realidades ainda se confundem em Angola, mesmo depois da transição para o
multipartidarismo). Os problemas estavam relacionados com o questionamento e as
críticas cada vez mais acentuadas em relação a várias incapacidades, insuficiências e
deficiências das estruturas governamentais que não cumpriam com várias das suas
atribuições ao nível de políticas sociais.
Para fazer face ao criticismo crescente, o governo foi gradualmente tentando con-
trolar este espaço da sociedade civil que lhe escapava, procurando aliciar algumas
OSC autónomas e criando também as suas próprias OSC que passaram a fazer um
trabalho pró-governamental, tentando assim diluir as críticas às incapacidades da
política governativa. Os constrangimentos e problemas levantados pelas entidades
governamentais ao trabalho das OSC que assumiram a sua autonomia em relação
às instituições do poder do Estado foram sendo cada vez maiores, como meio de
retaliação pelas posições críticas. As dificuldades foram aumentado à medida que o
governo se foi sentindo mais confortável em relação à chamada comunidade inter-
nacional, depois da derrota da UNITA e com a alta do preço do petróleo, factos que
lhe deram suficiente margem de manobra para começar a impor também restrições
à actuação das organizações internacionais mais críticas e aliadas das OSC nacionais
“politicamente incómodas”.
Estando as águas divididas entre OSC mais próximas do governo e as outras, ainda com
um certo grau de autonomia, começa a desenvolver-se entre o segundo grupo a discus-
são acerca do grau possível e aceitável de colaboração e cooperação com as instituições
governamentais. Até que ponto seria aceitável cooperar com as instituições do poder do
Estado e em que termos? A nova vaga internacional do pensamento desenvolvimentista
começou a trazer o tema do “reforço da capacidade institucional do Estado” e isto impli-
cava naturalmente algum tipo de colaboração.
Para todas aquelas OSC que trabalhavam muito para além da perspectiva de curto prazo
— assistencialista — e que tinham preocupações de fundo ao nível das diversas vertentes
dos Direitos Humanos, a resposta seria simples — aceitando-se toda a colaboração na
Sérgio Calundungo g A Sociedade Civil, a Política e a Erradicação da Pobreza em Angola 85

implementação de projectos e programas que de forma objectiva servissem para incre-


mentar o respeito pelos Direito Humanos. Contudo, isto implicaria continuar a criticar as
instituições do poder do Estado sempre que se verificassem violações daqueles direitos, ou
que aquelas instituições não desempenhassem eficazmente o seu papel enquanto garantes
daqueles direitos. Do ponto de vista governamental, esta postura não resolveria o problema
de fundo - a crítica política por parte das OSC, ainda para mais estando a entrar-se num
período eleitoral. Assim sendo, para as OSC nacionais com consciência política e suas
parceiras internacionais, o cerco continuou a apertar, chegando à posição mais radical de
ameaça de ilegalização de algumas delas por parte do director da Unidade Técnica de
Coordenação da Ajuda Humanitária – UTCAH, em Julho de 20074.
É neste contexto que se vai desenvolver a discussão de fundo no seio das OSC, entre
as duas grandes perspectivas que se confrontam acerca do papel das OSC, do seu
âmbito e alcance das suas acções.

2 - As OSC “Assistencialistas”, do Curto Prazo e “Apolíticas”


Para os actores da sociedade civil que se centram nos sintomas como forma de análise
e como base de implementação das suas propostas, a tarefa consiste numa acção palia-
tiva, mitigadora ou, nos casos mais extremos, numa actuação que visa, essencialmente
e em primeiro lugar, fazer desaparecer os sintomas da pobreza.
Do ponto de vista discursivo, esses actores apelam fundamentalmente para a satisfação
das necessidades básicas das populações pobres, acreditando que para tal é importante
que o governo, as ONG nacionais e internacionais, desenhem programas cujo fim último
é o de transferir recursos que permitam aos mais pobres satisfazer as suas necessidades
básicas e prementes. Nesta perspectiva, a preocupação com a criação e sustentabilidade
de capacidades locais é secundária.
Na prática, os actores identificados com a focalização nos sintomas procuram ajudar os
pobres concedendo-lhes essencialmente bens de primeira necessidade, instrumentos de
trabalho/produção e, por vezes, alguns bens duradouros, sem que no entanto seja promo-
vida alguma estratégia interactiva local para a luta em prol do bem-estar pessoal e colectivo,
sustentável a médio e longo prazo. Entendem que os apoios materiais, pulverizados no seio
das comunidades mais carenciadas (a maioria da população em Angola), constituem um
apoio essencial na luta contra a pobreza, esperando que outras ajudas e contribuições do
mesmo tipo, por parte de outros doadores, possam em conjunto significar a diferença na
vida das pessoas atingidas. Assumem que do ponto de vista micro, da vida concreta das
pessoas específicas que são abrangidas por este tipo de ajuda, essa acção tem um impacto
profundo e que por vezes pode representar a diferença entre a sobrevivência e a morte.
Constatam a existência de uma necessidade urgente em comunidades específicas e actuam
para a satisfazer ou debelar o problema que aferem nos contextos onde actuam.
De entre os actores que defendem o discurso focalizado no combate imediato aos sinto-
mas, existem franjas que sustentam a ideia de que o papel da sociedade civil na luta em
favor dos pobres é, antes de tudo o resto, de complementaridade às politicas públicas
desenvolvidas pelo governo a nível global, macro. Esses defensores da focalização nos
sintomas, são partidários de que as acções das OSC não podem ambicionar resolver o

4
Ver declarações de Pedro Walipe Kalenga, director-geral da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária
– UTCAH, em entrevista à Rádio Nacional de Angola, 10 de Julho de 2007; in Luanda, Angop, 10 de Julho de 2007.
86 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

problema global da pobreza ou almejar um impacto macro-social do ponto de vista das


grandes linhas políticas estratégicas, sendo que esse papel caberá necessariamente ao
governo, eventualmente em colaboração com as grandes organizações internacionais.
Considerando limitações e condicionalismos de escala e de competências das OSC,
esta perspectiva considera que às OSC cabe um papel de complementaridade ao
governo, e que necessariamente terá de se centrar na escala micro, das comunidades
específicas onde se desenvolvem tais projectos. Daí o entendimento, amplamente vei-
culado no seio dos partidários desta perspectiva, de que as ONG, as Igrejas, e demais
organizações da sociedade civil, são vocacionalmente parceiras do governo e devem
procurar colaborar com as estruturas governamentais numa perspectiva reformista.
Este posicionamento tem-se também desenvolvido no sentido de alimentar o discurso
segundo o qual compete ao governo tutelar, liderar, orientar e controlar, as iniciativas,
as ideias e os projectos das OSC.
Esta abordagem coloca-se distante de qualquer questionamento quanto ao papel jogado
pelo modelo de governação em vigor e pelo sistema político efectivamente existente,
distanciando-se da discussão das causas profundas dos problemas económico-sociais,
ou sequer da estruturação do Estado, afirmando-se como politicamente asséptica ou
mesmo quase apolítica. Apenas constata os diversos sinais e sintomas de pobreza e
procura amenizá-los e apaziguá-los em relação a situações concretas e específicas,
assistindo os pobres nos seus problemas mais prementes, sem questionamentos mais
profundos acerca das causas desses problemas, apartando-se desse tipo de discussão,
assumindo um carácter eminentemente técnico na sua postura e acção.
Trata-se de um posicionamento caracterizado pelo imediatismo da constatação do proble-
ma e pelo seu socorro ou emergência. Constatam que existem problemas e necessidades
que requerem intervenção e resposta imediata e concreta e fazem-no, actuando no curto
prazo, deixando as grandes linhas estratégicas de actuação macro, de médio e longo
prazo, para outros organismos, do governo ou das organizações internacionais.
Na prática, entre os defensores da abordagem focalizada nos sintomas, reconhece-se
uma reiterada alusão aos limites dos actores da sociedade civil em protagonizar mu-
danças de fundo ou estruturais, dado que para a maioria destes a situação em que
se encontram os pobres tem causas múltiplas e de extrema complexidade, que vão
desde problemas culturais, históricos, climáticos, comportamentais e económico-
organizativos. Neste sentido, as organizações da sociedade civil são por si só incapazes
de protagonizar mudanças sustentáveis de médio e longo prazo no que concerne à
erradicação da pobreza. Esta posição vai naturalmente encontrar aceitação e simpatia
por parte das instituições do poder do Estado.
Um olhar crítico permite identificar nesta abordagem profundos rasgos de uma visão
auto-limitada, admitindo a incapacidade de reflectir e relacionar questões políticas, eco-
nómicas e sociais, aceitando conformadamente o atestado de incapacidade intelectual e
cívica que lhe quer passar o poder político. Identifica-se aqui uma franja da sociedade
civil que percebe os sintomas, mas manifesta pouca capacidade analítica e crítica em
relação à génese do problema ou em relação ao papel desempenhado pelos estilos
ou modelos de governação, de tipo clientelista, com fraca diferenciação entre poder
público e privado na gestão dos recursos públicos e com fraca consciência colectiva
ou pública, que efectivamente constituem poderosos obstáculos ao desenvolvimento
e propiciam a pobreza.
Sérgio Calundungo g A Sociedade Civil, a Política e a Erradicação da Pobreza em Angola 87

Não está obviamente em causa o trabalho meritório das OSC que optam por uma via
assistencialista, apenas se refere aqui a falta de sustentabilidade dos seus projectos a
médio e longo prazo, optando sempre por “dar o peixe em vez de ensinar a pescar”.
Quando a preocupação prioritária é definida como sendo o salvamento de vidas em
risco imediato, todo o apoio de emergência e assistencialista é bem-vindo; nessas altu-
ras, para todos os actores da sociedade civil, fica momentaneamente adiada a discussão
sobre as causas profundas e estruturais que levaram a que essas vidas estejam em ris-
co. Contudo, passada a fase de emergência urge discutir e combater com consciência
social e política os problemas de fundo, sob pena de estarmos recorrentemente a cair
em situações de crise e de emergência que deixam de ser pontuais para passarem a
ser uma condição de vida permanente.
3 – As OSC “Desenvolvimentistas”, do Médio/Longo Prazo, com
Consciência Sócio-Política
Diferentemente da perspectiva que se centra nos sintomas da pobreza — de que os
pobres padecem —, encontra-se um leque cada vez maior de actores da sociedade
civil que procura fazer uma inflexão em relação àquela tendência, ainda dominante,
centrando-se antes nas causas da pobreza. Esta outra perspectiva assume claramente a
reflexão, em todas as suas dimensões, acerca da relação entre sociedade civil e desen-
volvimento, entre sociedade civil e erradicação sustentável da pobreza, entre sistema
político-económico vigente e pobreza.
Os defensores desta perspectiva fundamentam a sua abordagem na visão política do
problema, considerando imprescindível olhar para as causas estruturais, geradoras da
pobreza e do subdesenvolvimento. Neste sentido, a sua abordagem terá necessaria-
mente de ser politicamente abalizada. Para este grupo de actores, o papel da sociedade
civil na luta em favor dos pobres deve estar fundamentalmente direccionado para a
monitoria das políticas públicas, para a participação alargada dos cidadãos na defini-
ção das grandes linhas de orientação das políticas públicas. Os actores focalizados nas
causas requerem assim a partilha equilibrada de oportunidades e responsabilidades
perante os benefícios e os problemas da sociedade em que estão inseridos.
Ao contrário das OSC que se preocupam essencialmente com os sintomas, as que se
centram nas causas da pobreza não se consideram como instituições complementares
do governo, ou sequer seus parceiros naturais “reformistas”, antes clamando pelo
direito de discordarem, refutarem e contra-argumentarem todas e quaisquer políticas
públicas que violem os princípios e objectivos que perseguem — de desenvolvimento
harmonioso, equilibrado, social e economicamente justo no respeito pelas diversas
dimensões dos Direitos Humanos.
Embora os defensores desta perspectiva reconheçam as possibilidades de parcerias
com órgãos de poder político a distintos níveis, consideram que a actuação conjunta
representa o exercício do direito e do dever de participação pública das forças da
sociedade, não aceitando calar as suas posições de princípio e de consciência em
virtude dessas parcerias, ou por outras palavras, não aceitando que as parcerias se
transformem em veículos de cooptação. Admitem, pois, que os interesses dos actores
da sociedade civil podem muitas das vezes ser divergentes dos interesses defendidos
pelas instituições do poder do Estado.
88 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

No seu percurso, as OSC que assumem esta perspectiva, mais abrangente e politi-
camente consciente, reconhecem que na defesa das suas posições encontram vários
obstáculos e resistências, decorrentes da sua postura por vezes incómoda para com o
poder político. Isto é especialmente verdade num contexto como o Angolano, com um
processo de democratização recente, instituições frágeis, fraca separação de poderes
do Estado, problemas de clientelismo e corrupção, confusão entre dimensão pública e
privada, visão economicista do desenvolvimento, tradição de autoritarismo e repres-
são social, fraca participação dos cidadãos na vida pública, fraca consciência pública
e debilidades inerentes à própria sociedade civil.
A nível político, os defensores deste posicionamento assumem que existe uma rela-
ção directa entre o modelo de gestão político-económica em vigor e o problema do
subdesenvolvimento e da pobreza. Dentro desta perspectiva, em Angola o debate em
torno dos mecanismos geradores da pobreza deveria ser simultâneo ao debate sobre
os mecanismos geradores da riqueza considerável de um grupo minoritário ligado ao
poder político, sendo que ambos os mecanismos estão interligados e interdependen-
tes, constituindo vasos comunicantes de um mesmo sistema político-económico que
gera fortes discrepâncias de rendimento entre uma minoria opulenta e uma maioria
miserável. A gestão dos recursos públicos para fins privados é absolutamente contrária
a qualquer projecto de sociedade justa, equitativa, e que persiga o desenvolvimento
económico e social.
Esta perspectiva toma igualmente em consideração as diversas influências geo-políticas
e geo-económicas regionais e internacionais sobre o contexto nacional, considerando
a análise segundo a qual existe uma forte e estreita ligação entre aquelas dimensões
e as dinâmicas nacionais que atiram muitas pessoas para uma situação de pobreza.
Daí que este fenómeno possa ser visto como um problema com uma forte dimensão
política (nacional e internacional), considerando que os interesses e a força relativa dos
diferentes grupos políticos, económicos e sociais, desempenham um papel relevante
e até mesmo decisivo nas formas de distribuição da riqueza nacional, na criação de
capacidades locais e, por conseguinte, nas situações de pobreza.
O caso de Angola é paradigmático quanto às influências externas que desde sempre
se exerceram sobre o país, mesmo antes da independência. A existência de valiosos
recursos naturais, de onde se destaca claramente o petróleo, tem sido um factor por
demais importante na estruturação do sistema político efectivamente existente, cliente-
lista, com uma gestão rendeira dos recursos públicos. Estas características da economia
política angolana têm sido profundamente estudadas e são evidentes, exercendo uma
influência directa no modo como se exerce o poder, de forma concentrada e centrali-
zada, confundindo dimensão pública e privada e dando origem a fortes assimetrias
regionais5.
Este tipo de sistema político constitui um obstáculo à emergência de reformas profundas
da administração do Estado e do sector produtivo agrícola e industrial, que promovam
o desenvolvimento para lá de Luanda e das indústrias extractivas e transformem a es-
trutura produtiva, ainda muito baseada no petróleo, e a de poder, de tipo rendeira6.

5
Carneiro, Emmanuel, Especialização Rendeira e Extroversão na África Sub-sahariana – Caracterização e Consequência
(Lisboa: Principia, 2004).
6
Carneiro, Emmanuel, Especialização Rendeira e Extroversão na África Sub-sahariana – Caracterização e Consequência
(Lisboa: Principia, 2004).
Sérgio Calundungo g A Sociedade Civil, a Política e a Erradicação da Pobreza em Angola 89

4 – O Papel da Comunidade Internacional entre Duas Perspectivas


À semelhança do que acontece com as OSC angolanas, as OSC internacionais também
não têm uma posição única no que concerne às estratégias de actuação (assistencia-
lista ou desenvolvimentista) e ao tipo de relação a estabelecer com as instituições do
poder do Estado em Angola. Ao longo dos tempos vimos que as actuações das OSC
internacionais em Angola foram assumindo diferentes perpectivas, variando de acordo
com os momentos políticos que o país foi atravessando, as correntes de pensamento
dominantes sobre a problemática da pobreza e do desenvolvimento e as próprias
estratégias e filosofias de actuação de cada uma delas.
Como vimos, desde o início dos anos noventa foram chegando uma série de OSC
internacionais que se foram dedicando maioritariamente a intervenções no domínio
da assistência humanitária dada a situação de conflito militar no país. Com o fim da
guerra em 2002, começou a emergir um certo consenso entre as OSC internacionais
sobre a necessidade de reverem as suas estratégias de trabalho em Angola, começando
a questionar o seu próprio papel no fornecimento de serviços em áreas que suposta-
mente caberiam ao Estado. Tratando-se de um país potencialmente rico, com enormes
recursos minerais e com forte crescimento das indústrias extractivas, a par de inúmeros
escândalos de corrupção também denunciados internacionalmente7, a vontade de
ajuda por parte de muitos destes parceiros começava a esmorecer. Para além das OSC
internacionais, também alguns dos Estados e respectivos governos ocidentais come-
çaram a considerar a necessidade de reverem o seu papel no âmbito da ajuda, numa
postura que alguns consideraram como “fadiga em cooperar com Angola”, face aos
decepcionantes resultados do processo de reabilitação pós-bélica logo após o fim da
guerra e à ineficácia da actuação das instituições do poder do Estado Angolano.
As pressões por parte destas organizações e Estados sobre a necessidade de boa
governação e transparência começou a acentuar-se, mas foi efémera dada a cres-
cente importância estratégica de alguns dos principais recursos naturais do país,
nomeadamente o petróleo cujo preço disparou de forma sustentada nos mercados
internacionais. Encontrando novos parceiros internacionais dispostos a negociar com
Angola sem quaisquer condicionalismos políticos em termos de exigência de boa
governação e Direitos Humanos — China e outros parceiros asiáticos – o governo an-
golano ganhou uma enorme capacidade de resistência àquelas pressões externas.
Depois de ter criado as suas próprias OSC, o governo passou a colocar inúmeros problemas
a todas as OSC mais críticas, com um carácter mais “politicamente consciente” e que não
se deixavam aliciar. À medida que se foi sentindo cada vez mais resistente às pressões
externas, o governo foi gradualmente apertando o cerco às OSC mais incómodas, não
só de forma directa — chegando à ameaça de ilegalização de algumas delas, tal como
anteriormente referido —, mas também de forma indirecta, criando dificuldades às OSC
internacionais que apoiassem de forma mais efectiva as congéneres nacionais com um
carácter mais político, tendo mesmo chegado a ameaçar com processos de ilegalização
também algumas OSC internacionais na mesma ocasião em que ameaçou as nacionais8.

7
Ver os vários relatórios da Global Witness daquela altura: “A Crude Awakening: the Role of the Oil and Banking
Industries in Angola’s Civil War and the Plunder of the State Assets”, a report by Global Witness, Dezembro de 1999; “All
the President’s Men”, a report by Global Witness, Março de 2002; “A Rough Trade: the Role of Companies and Governments
in the Angolan Conflict”, a report by Global Witness, Dezembro de 1998; em www.oneworld.org/globalwitness.
8
Ver declarações de Pedro Walipe Kalenga, director-geral da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária
UTCAH, em entrevista à Rádio Nacional de Angola, 10 de Julho de 2007; in Luanda, Angop, 10 de Julho de 2007.
90 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Esta atitude teria de ser rechaçada de forma colectiva, articulando OSC nacionais e
internacionais de modo generalizado, mas tal não se tem verificado, devido não só ao
poder negocial internacional do governo, mas também às divisões no seio das próprias
OSC conforme referido nas duas perspectivas anteriormente abordadas e, também, às
divisões no seio das OSC internacionais, conforme o apoio a parceiros “apolíticos” ou
“políticos”, consoante as suas próprias perspectivas e filosofias de actuação ou a dos
doadores e dos jogos de interesses na indústria da ajuda.
Na prática, todo este cenário acaba essencialmente por se reflectir na inexistência de
um leque maior de actores da sociedade civil, realmente independentes, autónomos
e capazes de se fazerem perceber por toda sociedade como actores credíveis, sérios e
capazes de colocar no debate público as causas políticas da pobreza.
A aliança de solidariedade e parceria ampla que se deveria verificar entre todos os
actores (nacionais e internacionais) da sociedade civil numa posição de princípio
está por fazer; tal facto enfraquece a sociedade civil como um todo e, naturalmente, a
construção de uma sociedade mais democrática e justa.

5 – “Modelo de Desenvolvimento” Governamental vs Modelo


de Desenvolvimento Participado pela Sociedade Civil
O actual modelo de desenvolvimento adoptado é claramente voltado para a aposta
nas infra-estruturas, um modelo de “show-off de betão” no curto prazo, continuando
a relegar-se para um plano secundário as grandes reformas que é preciso fazer ao ní-
vel da educação, da saúde, da habitação, do planeamento do desenvolvimento com a
preocupação de acabar com as fortes e graves assimetrias que afligem o país.
Todos sabemos que a esmagadora maioria da população está concentrada em algumas
das maiores cidades do país — Luanda, principalmente —, mas não se vislumbra ne-
nhum grande plano concertado de acção para tentar uma distribuição mais equilibrada
da população e dos rendimentos pelo território nacional.
Não se pode esperar que as pessoas habitem e trabalhem em regiões sem qualquer tipo
de serviços sociais de apoio, sem escolas condignas e com professores, sem hospitais e
centros médico-hospitalares minimamente equipados e com médicos, sem actividades
económicas que possam permitir o desenvolvimento do comércio e a oferta de bens
e serviços vários. Este problema das assimetrias regionais não se resolve com inves-
timentos pontuais e sem sustentabilidade a longo prazo e sem um projecto integrado
que olhe para o país como um todo que se deve desenvolver de forma harmoniosa.
É necessária uma estratégia nacional de desenvolvimento que não pode repetir os
erros do passado Socialista, onde o “Estado”, liderado por uma vanguarda iluminada,
determinava de forma autista e isolada da sociedade as grandes linhas estratégicas
do desenvolvimento quinquenal. A dimensão e abrangência de uma tal tarefa deve
contar com a participação activa e intensa de todas as forças vivas da sociedade e tendo
em especial atenção as vontades anseios e necessidades das populações que vivem
a realidade local e que, mais do que ninguém, sofrem dos problemas derivados das
assimetrias regionais.
Colocado nestes termos, o objectivo do desenvolvimento harmonioso e equilibrado
do país como um todo, assume novamente contornos políticos, na medida em que
um plano de desenvolvimento integrado e participativo requer uma transformação
Sérgio Calundungo g A Sociedade Civil, a Política e a Erradicação da Pobreza em Angola 91

do modelo político-administrativo que é fortemente marcado pela centralização e


concentração do poder numa estrutura hierárquica e de estilo top-down, onde quase
tudo se resolve e decide em Luanda.
Um desenvolvimento equilibrado passa por um modelo de administração do Estado que
dê mais voz à dimensão local, às comunas, aos municípios, às províncias, que permita
não só desconcentrar, mas efectivamente descentralizar para estimular a participação
da população local nas decisões políticas que afectam directamente as suas vidas. Tal
objectivo dificilmente será alcançado pelas ideias que têm vindo a ser divulgadas em
alguns círculos oficiais, permanecendo muito dominados pela lógica da desconcentração,
mas não de uma efectiva descentralização9.
Um modelo de efectiva descentralização terá de transferir poderes de decisão para o
nível local, com alguma gestão de recursos locais, de modo a aumentar a participação
das populações nas decisões políticas e a acompanharem a evolução da implementação
prática das decisões em que participam e a sentirem-se igualmente responsabilizadas
pelas consequências dessas decisões.
As eleições locais, quando ocorrerem, poderão dar um importante impulso a esta dinâ-
mica de descentralização, mas para que tal efectivamente resulte é preciso assegurar-se
que o novo modelo de administração do Estado a ser previamente adoptado, por via
de nova legislação, permita a criação de mecanismos que efectivem a descentralização,
transferindo poderes e recursos para o nível local.

9
Para uma análise mais pormenorizada sobre estas ideias e planos ver Vidal, Nuno, “Multipartidarismo em Angola”,
in Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade, O processo de transição para o multipartidarismo em Angola (Luanda & Lisboa:
Universidade Católica de Angola & Universidade de Coimbra, 2006), pp. 50-55.
93

Contribuição das Organizações


da Sociedade Civil para a Justiça
Sócio-Económica e para um Genuíno
Estado de Direito em Angola

Benjamim A. Castello
Liga Jubileu 2000
Angola - LiJuA
E ste texto procura analisar a experiência do processo de
democratização e o papel das Organizações da Socie-
dade Civil — OSC — em Angola, no âmbito da participação
“cidadã”. A primeira parte do texto realça algumas das ca-
racterísticas de fundo da sociedade em geral e sobre as quais
deverá existir uma reflexão profunda a nível político-social se
efectivamente quisermos construir uma sociedade mais justa,
um genuíno Estado de Direito e uma democracia efectiva. A
segunda parte aborda as possibilidades de estratégia de acção
das OSC com vista a alcançar os seus objectivos de alteração
da realidade social, nomeadamente no que se refere à relação
com as estruturas governamentais.

1 - Obstáculos à Emergência de uma Sociedade


Civil Forte em Angola e à Efectiva Democratização.
Em termos de experiência das organizações da sociedade civil,
o meu foco de análise parte essencialmente da minha própria
vivência em várias organizações desta natureza e do trabalho
que dentro delas se tem desenvolvido em termos de debate e
reflexão sobre as questões de fundo da nossa sociedade. A este
nível penso que antes de tudo o resto devemos discutir noções
básicas da democracia, como o Estado de Direito, a boa governa-
ção e a relação entre governantes e os governados. Será que estas
noções têm o mesmo significado em Angola, na África Austral,
no continente em geral, e no Ocidente? Penso que não!

1.1 - Diferentes noções de Estado, governação


e democracia
Para a esmagadora maioria das nossas populações e das cha-
madas elites governantes, os conceitos e noções de Estado, go-
verno, relação governantes e governados, não correspondem
aos conceitos e noções de raiz Weberiana e Westfaliana e que
actualmente informam as sociedades ocidentais modernas.
Actualmente em Angola vivemos todos sob um ordenamento
jurídico que é único, consubstanciando-se constitucionalmente
num Estado de Direito e “democrático” na forma, e é debaixo
deste mesmo ordenamento que supostamente nos devemos
todos entender e organizar. No entanto, é exactamente ao nível
94 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

da prática e da objectivação deste ordenamento que se começam a perceber os problemas


das diferentes noções de Estado, governação e relação entre governantes e governados.
Do lado dos governados e sem querer entrar em detalhes de uma análise de antropologia
político-social que não cabe no âmbito deste trabalho, Angola constitui hoje um agregado
de realidades culturais diversas e que não partilham histórica e tradicionalmente as mesmas
noções de organização política. Do lado dos governantes, nota-se claramente uma falta de
coerência entre o discurso oficial e a prática, entre a sua postura externa (internacional) supos-
tamente “democrática” e a sua postura interna ou doméstica, muito pouco democrática.
Eu sou natural do Norte de Angola, território que foi antigamente o Reino do Congo,
onde as relações de poder se regiam pelo sistema matriarcal, mas onde supostamente o
chefe de família era o homem, sendo que na prática — e respeitando certas proporções
—, a mulher continuava a exercer o poder efectivo, ainda que tal facto não fosse assumi-
do publicamente. Contudo, noutras áreas de Angola as relações de poder regiam-se de
forma diferente e durante o período colonial todos sofremos o impacto de novos valores
e princípios culturais e organizacionais, que de forma diferente marcaram as diversas
regiões e culturas existentes. Daí que a noção actual de organização política na minha
área seja diferente das noções que existem no Litoral, Centro, Centro-Sul e Sul de Angola.
No entanto e independentemente das diferenças, quaisquer que elas sejam, em comum
existe o facto de não podermos falar de democracia no sentido Ocidental do termo.
Temos de assumir que nas nossas comunidades tradicionais, nas nossas aldeias e na
maioria das nossas famílias, não existe uma cultura de valores, princípios e práticas de-
mocráticas, tal como são entendidas no Ocidente. Poderemos falar nas nossas comunida-
des em valores que defendem a necessidade de convivência harmoniosa das sociedades
com a natureza circundante e de muitos outros princípios que tentam manter a paz e a
harmonia social, mas não podemos falar de cultura democrática judaico-cristã, ocidental
de liberalismo generalizado de pensamento, de opinião e de expressão. A própria ju-
ventude e os movimentos juvenis que, ao longo da história moderna e contemporânea,
noutros continentes deram contributos significativos aos processos de democratização
e abertura social, são vistos nas culturas tradicionais como devendo ouvir mais do que
falar, respeitando acima de tudo a posição dos mais velhos, lembro-me aqui da frase
tradicional que diz que as orelhas nunca são maiores que a cabeça e que aos jovens cabe
primeiro ouvir e aos mais velhos e experientes reflectir e emitir opinião. Portanto, a prá-
tica de democracia tal como entendida no Ocidente não existe nas nossas comunidades
rurais e tradicionais, essa experiência e essa prática não existem.
Do mesmo modo é necessário percebermos que o governante de hoje é o “cidadão”
comum de ontem. Se esse governante sair de uma sociedade civil fraca ou incipiente,
de um sistema onde a prática da democracia é igualmente frágil ou inócua, não se pode
esperar uma prática de governação democrática. Se esse governante sair de uma família
e de um tecido social que não pratica nem comunga de princípios e valores democráti-
cos, como é que esse indivíduo amanhã vai ser um governante democrático? Se ele sai
de um ambiente familiar e de um ambiente comunitário onde as regras democráticas
não existem, como poderá ele ser um governante democrático? Não o será.
Quando um indivíduo saído desse contexto chega a uma estrutura estatal de tipo moderno
em que ele pode dispor de mecanismos de coacção e de coerção, potencialmente muito
mais brutais e provavelmente muito mais eficazes que nas sociedades rurais e tradicionais,
como a utilização autorizada — “legítima” — da força armada para impor a sua vontade e
Benjamim A. Castello g Contribuição das OSC para a Justiça Sócio-Económica em Angola 95

o seu projecto de governação, não podemos esperar que esse indivíduo seja um democrata
ao estilo ocidental. Trata-se aqui de um governante que foi ontem um “cidadão” comum,
que saiu de um ambiente não democrático, que chega ao poder e tem fortes meios coercivos
de impor a sua vontade e, mais do que isso, tem a legitimidade internacional e as alianças
que constrói também a nível internacional e regional e, portanto, uma força acrescida. O
resultado é normalmente a falta de tolerância e a tendência para o autoritarismo e o tota-
litarismo que vimos em muitos regimes do pós-independência em África.
Em matéria de pluralidade política e cívica em África, relembro as palavras que várias
vezes ouvi pronunciar o falecido presidente Mobutu Sesse Seko do ex-Zaire:
Porque deveríamos nos nossos países promover o surgimento de partidos políticos de
oposição se nas nossas aldeias e comunidades não existem chefes e/ou grupos de oposição
ao poder ali instituído?
Este é um aspecto que julgo ser extremamente importante quando falamos de demo-
cracia, na medida em que todos sabemos da importância fundamental para qualquer
democracia de cariz ocidental, não só de uma oposição política competente, mas
igualmente de uma sociedade civil capaz, interventiva e participativa.
Do mesmo modo se coloca a questão a nível económico, do governante que sai de um con-
texto de pobreza. A este respeito permitam-me recorrer novamente às analogias e recordar
a forma como este problema me foi colocado por um amigo meu Jugoslavo (nessa altura
ainda existia a Jugoslávia), que em 1980, depois de dois anos em Angola, me disse:
Só agora estou a entender os problemas de Angola. Vou utilizar uma analogia como vocês
Bantus gostam. Pensas que um indivíduo que passou toda a vida a dormir no chão, um indi-
víduo para quem a esteira sempre foi um privilégio do chefe tradicional, do soba, pensas que
esse indivíduo se amanhã for um governante vai mandar construir uma fábrica de colchões?
Nessa altura o colchão vai passar a ser privilégio do chefe.
A tão abordada questão da corrupção deverá igualmente ser entendida à luz de concepções
diferentes no Ocidente e em muitos contextos africanos. Aproveitando a nossa tradição
africana Bantu, recorrerei aqui a algumas analogias, parábolas e provérbios, que nós tanto
gostamos de utilizar: quando numa comunidade alguém rouba a galinha do vizinho, essa
pessoa é considerada como um ladrão, porque a galinha pertence a uma família que está
devidamente identificada, é conhecida e faz parte da comunidade. Quando a pessoa rouba,
por exemplo, um boi que pertence à comunidade no seu todo, o crime é ainda mais grave
e o criminoso arrisca-se a ser morto porque roubou uma propriedade que constitui um
dos mais valiosos capitais pertencentes ao colectivo, à comunidade.
No entanto, quando um detentor de um cargo público da estrutura e da hierarquia do
Estado se apropria de avultadas quantias do erário público, a expressão geralmente
utilizada para designar tais actos é “desviar” e não roubar, ainda que o adjectivo
“roubo” fosse aquele que melhor definiria o acto perpetrado. Reparem que o termo
é mais sofisticado e suave. Na realidade, as pessoas olham para o autor do acto com
uma certa admiração, respeito e, muitas das vezes, até com uma certa inveja e se forem
minimamente próximos do indivíduo esperam que ele distribua por eles alguma coisa,
não se preocupando minimamente com o prejuízo do Estado, da coisa pública e do
país. Isto porque o Estado é uma entidade abstracta que não pertence a ninguém e com
o qual poucos se identificam ou percebem o seu propósito e a sua necessidade. Para o
comum dos nossos concidadãos, a noção de Estado ainda é incipiente, o Estado não é
96 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

de ninguém, não significa uma entidade ao serviço de uma grande comunidade — o


país — com a qual todos se identificam.
Nas nossas culturas tradicionais, o chefe, sendo o fiel depositário do património an-
cestral, é aquele que divide o produto comunitário. Cabe-lhe o direito de distribuir aos
membros da sua comunidade e não só, geralmente de acordo com as suas preferências
que obedecem à sua própria estratégia de gestão política e económica dos interesses
pessoais e do grupo (confundindo-se estas duas dimensões bastas vezes, assim como
os bens “públicos” e pessoais). O chefe que não tem nada para distribuir, nem para
dividir, não é chefe. É um pouco nesta lógica que nos Estados africanos independentes,
quando um indivíduo chega à cadeira máxima do poder, os recursos dessa estrutura
confundem-se com os seus próprios recursos pessoais e deverá então utilizá-los para
recompensar os “seus” — seus amigos, apoiantes, leais, familiares, conterrâneos, etc. É
a este nível e nesta dimensão que se criam todas as alianças que mais tarde vão cons-
tituir a base das redes de favorecimento clientelista que alimentam e são alimentadas
por aquilo que se vai designar no Ocidente por corrupção.
Deste modo, esta noção de corrupção é mais uma das que prova as diferenças con-
ceptuais entre diferentes perspectivas culturais. Nas nossas línguas tradicionais em
Angola a palavra corrupção não existe e quando falamos dela às comunidades de
base tentamos formular essa noção, mas muitas das vezes encontramos como reacção
o argumento de que temos de levar em conta a questão cultural:
Quando eu fico satisfeito com o serviço prestado por um funcionário público e dou-lhe um
cabrito, qual é o mal que eu faço? Dou porque estou agradecido, é uma questão cultural
manifestar assim o agradecimento.
Como podem perceber deste argumento, a pessoa encara o serviço público prestado
como um favor pessoal, não entende aquele serviço como uma obrigação do funcio-
nário público que é pago pelo Estado com fundos arrecadados de impostos (dinheiro
de todos) para assim proceder. Isto também porque o funcionário público não entende
a sua função naqueles termos, achando que o seu serviço deve ser agradecido pesso-
almente porque a prestação do serviço é diferenciada consoante a pessoa específica
que solicita o serviço e o tipo de agradecimento que espera receber.
Nas eleições de 1992 em Angola, alguns partidos políticos concorrentes, tais como a
FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), o PNDA (Partido Nacional Demo-
crático de Angola) e a UNITA (União Nacional para a Libertação Total de Angola),
para citar apenas alguns, levantaram este problema da corrupção nos seus respectivos
programas eleitorais e nas suas campanhas, mas o povo não entendia e nalguns casos
este conceito chegou mesmo a entrar em choque com as perspectivas prevalecentes
nas populações. Existe uma minoria de intelectuais que entende esta questão, mas a
maioria da população não a vê do mesmo modo.
A noção de Estado, de bem comum, de bem colectivo, ainda não existe na maioria
das populações de Angola, o que efectivamente predomina é o nível mais micro da
comunidade restrita e dos seus pertences, desse nível as populações têm perfeita
consciência, entendem, mas quanto à dimensão macro, do Estado, aí trata-se de algo
que ainda está muito longínquo.
A própria questão dos Direitos Fundamentais, tal como é usualmente colocada pelas
OSC que trabalham nesta área, não é facilmente entendida pelas populações. Enten-
Benjamim A. Castello g Contribuição das OSC para a Justiça Sócio-Económica em Angola 97

dem perfeitamente de direitos de sobrevivência — o pão de todos os dias, a subsis-


tência e segurança da família, a habitação, a água, a saúde —, isso é perfeitamente
entendido como necessidades concretas e importantes de assegurar, mas se eu disser
que se tratam de Direitos Humanos inerentes à condição de todo o ser humano e que
devem ser protegidos e implementados pelo Estado enquanto representante de todos,
a percepção começa a ficar difícil. Estamos mais uma vez em presença de diferentes
perspectivas culturais quando falamos em Direitos Fundamentais, que na sua forma
generalizada pelo Ocidente derivam de uma cultura específica de raiz judaico-cristã
e que não corresponde exactamente aos mesmos valores e princípios que recebemos
na nossa educação tradicional no seio das nossas famílias.
Existe portanto um trabalho de fundo que é preciso fazer a este nível para sabermos
exactamente o que queremos em termos de modelo político-social e económico a construir
e se o desejo de construir este modelo é efectivamente abraçado pela maioria. Não pode-
mos viver na duplicidade de ter, por um lado, um modelo aparentemente democrático
em moldes ocidentais, essencialmente para consumo externo e de uma elite intelectual
que o representa ao nível do discurso, e por outro lado uma realidade de funcionamento
interno efectivo que é, em muitos aspectos, antagónica ao modelo formal e oficial.
É este o contexto de base da maioria dos nossos governantes e governados e são igual-
mente estes alguns dos importantes constrangimentos — sócio-político-económicos —
que encontramos à efectiva implementação e consolidação da democracia em muitos
países africanos. Temos de claramente assumir que as sociedades que assim se regem
são profundamente injustas do ponto de vista social, gerando fortes assimetrias a
todos os níveis e promovendo sempre um forte descontentamento mais ou menos
camuflado, por vezes latente (dando o aspecto de que a situação está a melhorar), por
vezes activo (quando se descobre que afinal pouco havia melhorado).

1.2 - Relações com a comunidade internacional e eleições


Como exemplo acabado da referida dualidade entre o modelo formal e a prática efectiva
de funcionamento sócio-político-económico está todo o discurso externo de boa parte dos
líderes africanos e das ditas elites governantes, que têm de articular a realidade interna e
externa. Quando se encontram na presença de homólogos ou interlocutores estrangeiros e
parceiros de organizações internacionais, utilizam um discurso de tipo democrático ociden-
tal, tentando passar a imagem de “democratas” que dominam os conceitos e o discurso da
democracia na esfera das relações internacionais. A realidade, no entanto, é outra e o discurso
serve apenas para agradar ao exterior, quando nas suas vivências diárias, nas suas atitudes
e comportamentos internos, no país e mesmo no seio familiar, o ordenamento de valores e
princípios que os regem são efectivamente outros, a noção de democracia é outra, a noção
de Estado é outra, as noções de recursos públicos e de gestão da coisa pública são outras.
Insere-se neste contexto a própria questão das eleições, que parecem constituir so-
bretudo uma formalidade para agradar à comunidade internacional, reforçando a
respeitabilidade e sobretudo a legitimidade externa do status quo e facilitando o acesso
ao financiamento externo, sem alterar nada de substancial a nível interno. É essencial-
mente uma exigência do Ocidente que nos diz que o Estado democrático só se pode
afirmar através das eleições e por esta razão nós organizamos as eleições, mas sem
convicção nenhuma, só com intenção de agradar à comunidade internacional de tipo
ocidental que exige eleições.
98 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Consequentemente, depois das eleições estamos sempre sujeitos aos mesmos pro-
blemas e instabilidade, com eventuais alegações de fraude, de irregularidades e por
vezes conflitos violentos. Isto deve-se ao facto de que a mera realização de eleições
multipartidárias não resolve os problemas de fundo — da injustiça social e da de-
sigualdade. Há algum tempo atrás coloquei a questão a um proeminente político
angolano, procurando saber se na opinião dele as futuras eleições iriam contribuir
para a consolidação de uma paz verdadeiramente genuína e duradoura em Angola
e ele não me conseguiu dar uma resposta inequívoca porque sabia que eu conheço a
realidade, mas caso se tratasse de um estrangeiro com certeza que a resposta teria sido
pronta, rápida e inequívoca no sentido afirmativo de uma transformação evidente e
substancial a todos os níveis.
As aguardadas eleições e a corrida à (re)construção de infra-estruturas em Angola
não resolvem a profundamente desigual distribuição da riqueza e a pobreza extrema
a que são votadas vastas franjas da sociedade, provavelmente até a agravam. Estas
desigualdades tornam-se igualmente um forte impeditivo da emergência de uma
qualquer democracia minimamente séria. Enquanto problemas básicos como a sub-
sistência alimentar, o acesso à água, o habitat, a segurança, a saúde e a educação não
estiverem resolvidos, não é possível construir uma sociedade civil forte, que é um
dos principais esteios do activismo cidadão e da própria democracia. Quando nós
das OSC nos baseamos nas comunidades pobres (que constituem a maioria do nosso
país), percebemos que é muito difícil convencê-las a participar nas nossas actividades
com os estômagos vazios. Tem de haver acções concretas no combate às várias formas
de pobreza, de acordo com as realidades específicas das comunidades e perceber que
uma sociedade mais democrática é uma sociedade mais justa.
Concluindo este primeiro capítulo, penso que as questões aqui levantadas são ques-
tões fundamentais porque, como se pode perceber, são questões no cerne de qualquer
projecto sério de democracia e de Estado de Direito. As diferentes perspectivas de
democracia, de Estado, de governação e de relação entre governantes e governados,
prevalecentes nas nossas comunidades, implicam, na minha opinião, que boa parte
do trabalho a fazer em prol da democracia e da sociedade civil passa pela necessi-
dade de saber como inculcar nas nossas populações a noção de que o Estado, o seu
governo, os seus governantes e os seus recursos, são de todos nós, para todos nós e
por todos nós.
Muito do trabalho que tenho desenvolvido nas organizações da sociedade civil com que
colaboro reside neste tipo de questionamento, reflexão e análise, para que possamos
estabelecer linhas de actuação eficazes para a construção de um verdadeiro Estado de
Direito, que assegure o respeito pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais
para todos os cidadãos.
Se continuarmos a adiar a abordagem a estas questões, não teremos meios de construir
uma democracia estável, saudável e séria, que permita a paz e o desenvolvimento no
longo prazo. Estaremos sempre a viver numa “democracia parcial”, instável e frágil.
Não teremos um projecto sério e claro de sociedade com o qual a maioria se identifique
ou pelo menos conheça como o projecto para o qual se trabalha. Estaremos de igual
modo a adiar a resolução profunda dos nossos conflitos internos e que o Ocidente
designa hoje de forma simplista como de conflitos pós-eleitorais.
Benjamim A. Castello g Contribuição das OSC para a Justiça Sócio-Económica em Angola 99

2 - Estratégias de Actuação das OSC Angolanas para Alterar a Realidade Local.


Conforme se pode depreender do primeiro capítulo deste texto, na minha perspectiva, infe-
lizmente, o percurso ainda é longo para que nós nos possamos situar num enquadramento
verdadeiramente democrático. E é a partir desta constatação que ao nível das OSC em An-
gola temos de gizar a nossa postura e acção, trabalhando no médio e longo prazo, ainda que
obviamente não nos possamos esquecer dos problemas mais imediatos que diariamente e de
forma mais premente acossam a maioria da população angolana, caracterizando o cenário de
pobreza acentuada que marca as suas vidas – o difícil acesso à água potável, ao saneamento
básico, à segurança alimentar, habitação, saúde, educação gratuita e de qualidade.
Nós, OSC, tivemos em Angola a primeira fase do nosso surgimento e alargamento no
início dos anos noventa, ocupando o espaço que nessa altura nos foi aberto. Ao longo
dos anos seguintes, apesar do nosso relativamente reduzido número, fomos progressi-
vamente mostrando que éramos actores com os quais se poderia contar e com os quais o
Estado deveria contar para ajudar a reconstruir o país do ponto de vista social e mesmo
institucional, de reestruturação e redefinição do Estado e do tipo de governo e da relação
que se deve estabelecer com as pessoas que supostamente serão cidadãos com os mesmos
direitos e deveres perante o Estado. Passámos igualmente por um período de construção
de parcerias com o exterior que deu resultados, mas que pecou parcialmente pela falta de
postura de médio e longo prazo dos parceiros exteriores. Neste momento estamos numa
fase que para alguns é de cooperação construtiva com as estruturas governamentais,
contribuindo para o reforço e a reforma das instituições do Estado.
A dimensão do desafio que representa a efectiva implementação da democracia em Angola
exige uma vasta articulação de esforços. Isto passa pela construção de parcerias e de alian-
ças, começando pelos parceiros nacionais e internacionais com quem nos identificamos,
com quem nós partilhamos o mesmo perfil ou os mesmos objectos sociais. Implica, igual-
mente, parcerias com as instituições públicas, as estruturas governamentais e estatais.
Nós, Liga Jubileu 2000, com a experiência que temos de trabalho em Angola, chegámos à
conclusão de que não podemos trabalhar fora das instituições públicas, porque é o Estado
quem estabelece as regras, quem orienta, quem coordena. Rejeitar a articulação e a coope-
ração com essas instituições ou assumir uma postura de confrontação permanente a essas
instituições torna muito difícil atingir os nossos objectivos, sob pena de nos transformarmos
numa espécie de D. Quixote vagueando erradamente em lutas contra moinhos de vento.
A prova do sucesso deste tipo de estratégia de cooperação está nos vários casos em que se
conseguiram avanços nas propostas das OSC que apostaram nesta via. Falo, por exemplo,
de casos como a questão da dívida externa, sendo que há cinco anos atrás era uma questão
tabu em Angola, mas nós aproximámo-nos dos grupos parlamentares e fomos progressi-
vamente sensibilizando-os até ao ponto em que hoje já se fala publicamente da dívida, é
publicada no jornal oficial e a sua dimensão e natureza é abertamente discutida. Foi um
trabalho feito sem grande alarido, desenvolvido junto dos deputados que aí encontraram a
forma de colocarem em prática as suas próprias agendas políticas nessa matéria. Por outras
palavras, foram as OSC que nos bastidores estimularam os partidos políticos a fazerem
aquele que supostamente seria o seu trabalho, mas que não avançava.
Este exemplo demonstra bem a necessidade de articulação entre questões de natureza po-
lítico-partidária e de sociedade civil e revela quão injusta foi, na altura, a posição de alguns
sectores do governo que acusaram várias OSC e activistas de actuação pró-partidária.
100 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Na realidade não se podem separar radicalmente as águas do que é espaço da sociedade


civil e espaço político, estão profundamente ligados, embora com a noção das diferenças
entre OSC e partidos políticos que têm objectos, estruturas e estratégias distintas.
Um outro exemplo diz respeito à questão da defesa dos Direitos Humanos, que aos poucos
tem vindo a ganhar espaço na agenda política e social. A própria elaboração do Relatório
Anual dos Direitos Humanos, embora conduzida pelo Ministério das Relações Exteriores,
conta já com o acompanhamento das OSC cuja participação é significativa (e.g. a Associação
Justiça Paz e Democracia – AJPD e a Liga Jubileu 2000 Angola). No processo de elaboração
deste relatório, os próprios funcionários do Ministério solicitaram que nós, da sociedade
civil, tomássemos a iniciativa, dado que eles na qualidade de funcionários públicos não
estariam tão à vontade para o fazer, estabelecendo-se assim uma estratégia de trabalho.
Por último, gostaria de referir o caso das redes de articulação de actores não governa-
mentais para acompanharem processos conduzidos a nível governamental em diversas
áreas da sociedade, tal como o exemplo da Rede Eleitoral, para acompanhar a preparação
e implementação do processo eleitoral em Angola, contando com um grande envol-
vimento das OSC e com alguns resultados palpáveis. Podemos igualmente referir o
exemplo da Rede Terra, que permitiu introduzir importantes alterações à proposta inicial
da Lei de Terras, cujo articulado original constituía um grave atentado aos interesses
da maioria; o processo de discussão desta proposta de lei teve grande participação e
influência da sociedade civil no ministério da tutela e a regulamentação dessa lei (em
vias de aprovação) está agora desenhada em favor das comunidades. Do mesmo modo,
temos a Rede Mulher, que desde que existe tem desenvolvido uma grande promoção
da mulher, notando-se um incremento efectivo na participação das mulheres em várias
acções em todo o país, seja a nível urbano, seja a nível rural comunitário; tendo igual-
mente pressionado e conseguido que em 2008 seja retirada a designação de “mulher”
do ministério, considerando que se trata de uma forma de discriminação, passando a
designar-se por ministério do género. Por fim, e apesar de ainda recente, é de mencionar
a Rede de Transparência, envolvida em processos de pressão “Publique o que paga”
(Publish what you pay) junto das companhias petrolíferas e do governo.
Se ao invés deste tipo de estratégia de envolvimento construtivo com as estruturas
estatais e governamentais optarmos por uma estratégia de confrontação e virarmos as
costas à discussão, ficaremos provavelmente isolados, na ignorância e agarrados aos
preconceitos e à contestação autista com um objectivo demasiado vago e impreciso
de “luta contra o regime”. Em minha opinião, a estratégia deverá passar pelo nosso
esforço de inclusão nos processos de decisão, para assim termos possibilidades de
influenciar a realidade. Para ilustrar este tipo de estratégia e para finalizar a minha
argumentação permito-me aqui recorrer a um provérbio Bakongo que diz:
Volueke vana vata dia kinzenza, wawana vo mu kulu kua ludia bekininanga, on-
geye wa kinina muna (kulu) kua lumonso, nsualu ovengumunua (vana makinu).
Kansi, vokinini muna kulu kua ludia wonso akaka, ntambuk´ambote otambuka va-
na makinu (evo muna nlonga). Wawu osinga kota vana kati, voyantikidi okinina
muna kulu kua lumonso, akaka tangizina (tanginina) bekutangizina yo kulanda,
ye mpe ofuete tondua wakala mosi vana kabu diodio.
[Tradução: Quando você chega numa aldeia e encontra gente a dançar no círculo e a
bater com o pé direito, se você bate com o pé esquerdo será expulso e não entra na roda,
mas se bater com o pé direito entra no círculo e depois, quando chegar ao meio do círculo
e bater com o pé esquerdo, então todos os outros podem acompanhá-lo.]
101

A Sociedade Civil em Angola e os


seus Desafios Internos e Externos

Introdução
Cesaltina Abreu
IBIS – Educação para
o Desenvolvimento,
A mudança no cenário político em Angola, com uma
solução militar em 2002 para um conflito que persistia
desde antes da independência nacional em 1975, deu lugar a
Angola uma nova etapa que se anuncia sob o lema da reconstrução e
da reconciliação nacionais. Contudo, existe ainda um longo
caminho a percorrer para a construção da nação angolana.
A efectiva reconciliação deverá ultrapassar as subjectivida-
des colectivas (micro identidades sociais), reforçadas após
a independência num ambiente de guerra civil. Qualquer
caminho a seguir pressupõe mudanças, mais ou menos pro-
fundas, não só institucionais como de valores, produzidas
internamente, sendo igualmente útil contar com pressões
das dinâmicas regionais e internacionais por maior demo-
cratização e abertura1.
Trinta e três anos depois da independência, os angolanos ainda
não se sentem cidadãos no seu país, pelo menos não de forma
ampla e inclusiva. Basta lembrar os deslocados das suas áreas
de origem, os refugiados em países vizinhos, os desmobiliza-
dos, os mutilados de guerra e os órfãos e viúvas de guerra,
para além das muitas comunidades que vivem em regiões
remotas sem quaisquer serviços públicos da administração do
Estado, todos eles não integrados na sociedade. Constituem,
em poucas palavras, o público “primordial” de Ekhe2 ou os su-
jeitos de Mamdani3, vítimas de um distanciamento não apenas
geográfico, mas também da não inclusão efectiva no processo
de construção da nação angolana. A sociedade permanece
refém de um passado recente, no qual o discurso político foi
bipolarizado pelos dois protagonistas da guerra civil, a vida
quotidiana militarizada e a sociedade silenciada.
O país enfrenta agora o desafio de cicatrizar as feridas de guerra
que se sobrepuseram, em camada, às sequelas do colonialismo.

1
SERRANO, Carlos (2000), Angola: O nascimento de uma nação; um estudo sobre a
construção da identidade nacional, Tese de Doutoramento em Antropologia Social,
Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.
2
EKEH, Peter (1975) “Colonialism and the Two Publics in Africa: a Theoretical
Statement”, in Comparative Studies in Society and History 17 (fall), pp. 91-112.
3
MAMDANI, Mahmood (1996) Citizen and Subject: Contemporary Africa and the
Legacy of Late Colonialism. Princeton University Press. London.
102 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Neste processo, cabe indiscutivelmente ao Estado um papel fundamental, restando saber


qual a intervenção das organizações da sociedade civil (OSC) nesta fase de consolidação da
paz, uma vez que a sua exclusão formal das diferentes etapas de negociação entre as partes
em guerra retirou-lhes protagonismo, embora não o papel de mecanismos essenciais ao
funcionamento de uma democracia efectiva. Apesar de alcançada a paz militar, mantém-se
em aberto e por alcançar a reconciliação nacional e a abertura do espaço público, capazes
de efectivamente promover a paz social de forma sustentável e duradoura.
Actores externos, tanto ao nível das instituições supranacionais, quanto ao nível das ONG
(Organizações Não-Governamentais) contribuíram, em diversos momentos da vida do
país, para a produção social das representações sobre a sociedade civil em Angola, crian-
do oportunidades para fortalecer, dar visibilidade e voz aos seus actores, tanto interna
quanto externamente. Contudo, também impuseram agendas, prioridades, estratégias e
práticas dos seus países de origem, ou das suas organizações-sede e respectivos quadros
de referência, sem terem em conta prioridades locais, ignorando processos de tomada
de decisão e participação alicerçados nos sistemas de valores culturais locais.
Este texto encontra-se estruturado em quatro capítulos, sendo que o primeiro faz um
enquadramento histórico das diversas etapas do relacionamento entre Estado e sociedade
civil em Angola, o segundo e o terceiro abordam os problemas, obstáculos e constrangi-
mentos, que as OSC têm enfrentado a nível interno e externo. O quarto e último capítulo
analisa as respostas que a sociedade civil tem vindo a dar aos constrangimentos com
que se tem deparado e aponta algumas possibilidades estratégicas para os ultrapassar
e se afirmar de forma mais assertiva.

1 – Etapas Históricas nas Relações entre Estado e Sociedade Civil em


Angola
A construção da sociedade civil em Angola vem acontecendo por etapas, determina-
das pelas relações entre o Estado e os demais actores, que criaram oportunidades e
constrangimentos ao seu desenvolvimento e afirmação, sendo de destacar, entre esses
momentos: a mobilização social que conduziu ao movimento nacionalista pela inde-
pendência nacional; os dois primeiros anos após a independência nacional até ao 27
de Maio de 1977 (tentativa de golpe); o pós-27 de Maio e o endurecimento do regime
marxista-leninista; a implementação do Acordo de Bicesse (1991-1992); o reacender da
guerra depois das únicas eleições gerais no país em 1992; a implementação do Acordo
de Lusaka (1994-1998); o novo período de guerra entre 1998 e 2002; a assinatura do
Acordo do Luena de 2002, que finalmente instala a paz. Estes momentos são quadros
de referência das relações entre as elites no poder e a sociedade em geral, permitindo
compreender a evolução das oportunidades e constrangimentos à constituição, afir-
mação e fortalecimento da sociedade civil.
A guerra civil em Angola tem a sua génese no período da luta anti-colonial, com três
movimentos de libertação nacional organizados em torno de interesses em grande me-
dida distintos e que no decorrer do tempo se foram radicalizando, tornando cada vez
mais remota a possibilidade de uma aproximação em nome daqueles que deveriam ser
os mais altos interesses da nação — a independência e o desenvolvimento. Em conse-
quência, Angola talvez seja dos poucos Estados do mundo que teve duas proclamações
de independência no mesmo dia, em dois locais distintos, protagonizadas pelas lide-
ranças dos movimentos de libertação — em Luanda, pelo MPLA (Movimento Popular
Cesaltina Abreu g A Sociedade Civil em Angola e os seus Desafios Internos e Externos 103

de Libertação de Angola), e no Huambo, pela efémera coligação entre a UNITA (União


para a Independência Total de Angola) e a FNLA (Frente Nacional para a Libertação de
Angola). A saída gradual da FNLA da cena da guerra civil depois da independência, criou
as bases para a polarização do discurso político em Angola, que ainda hoje prevalece.
Desde muito cedo o país constituiu-se num dos palcos da “guerra-fria” em África, de-
vido à sua localização estratégica na geopolítica do Atlântico-Sul, ao enorme potencial
do seu território em recursos naturais e à ameaça que representava para o Ocidente
uma viragem à esquerda por parte do regime de Luanda caso se aliasse (como efecti-
vamente aconteceu) com o Bloco de Leste.
A opção por um modelo de desenvolvimento Socialista no pós-independência, num
contexto de “guerra-fria” e de guerra civil, não só não corrigiu as distorções do co-
lonialismo, como contribuiu para exacerbar conflitos sociais e culturais, recorrendo
a argumentos étnicos ou raciais muito moldados pelo colonialismo e pelo processo
de formação do Estado colonial, que anexou, sem integrar, os reinos que existiam no
espaço geográfico que hoje corresponde a Angola.
Não obstante o contexto de “guerra-fria” e de guerra civil, os dois primeiros anos de
independência foram caracterizados pela mobilização social construída em torno do
sentimento de participação na construção de uma nação e na prática da liberdade de
expressão, de reunião e de associação, que deu origem à eclosão de organizações de
base, como comissões de moradores, associações culturais e profissionais, cooperativas
de consumo e produção, entre muitas outras formas de associativismo.
Aquele ambiente de relativa liberdade altera-se radicalmente com a tentativa de golpe
de Estado de 27 de Maio de 1977. A reacção do poder à tentativa de golpe e a trans-
formação do MPLA em Partido do Trabalho em finais desse mesmo ano de 1977,
alinhado com a doutrina marxista-leninista, fecharam o espaço público aos actores da
sociedade. Uma “super-estrutura” repressiva foi então alicerçada para evitar desvios
aos objectivos estabelecidos pela direcção do partido, marcando um retrocesso nos
avanços conseguidos nos dois primeiros anos de independência. O espaço público
ficou reduzido a um palco de ressonância para a difusão da posição do partido-Estado,
modelo que se prolongou até finais dos anos oitenta. Neste período, as Igrejas eram
as únicas instituições que preservaram alguma independência em relação ao Estado
e emitiam as suas opiniões em nome dos angolanos.
A politização da vida diária, típica de regimes comunistas do Bloco de Leste (e regimes deles
subsidiários, como o de Angola durante a I República — de 1975 a 1991), ignorava, excluía
e abafava vozes discordantes, passando a existir os “leais” e os “desafectos”. Reforçou-se a
segmentação e fragmentação da sociedade e tornou-se cada vez mais difícil unificar os códi-
gos ético-morais dos indivíduos sob o denominador comum do apelo à unidade nacional,
para denunciar abertamente esse mundo sem liberdade pública4. Devido à bipolarização
do discurso e da prática política em Angola, qualquer dissensão era imediatamente identi-
ficada como “traição” (de ambos os lados), mesmo que se tratasse de um clamor pela paz e
contra a guerra, uma opinião contrária às opções de políticas públicas (ou ausência delas),
ou quando se argumentava que apesar da guerra e seus elevados custos humanos, materiais
e financeiros, a situação poderia ser muito diferente caso se optasse pela via do diálogo.

4
MARADA, Radim (1995), “Civil Society: Adventures of the Concept before and after 1989”. Czech Sociological
Review, V, (1/1997), pp. 3-21.
104 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Se por um lado aquela “politização” procurava homogeneizar o comportamento sócio-


-político, por outro, não deixou de igualmente e inadvertidamente criar espaços para
expressão de resistência política, individual e não colectiva, camuflada e não explícita,
privada e não pública. Uma das estratégias mais comuns consistia em evitar eventos
oficiais e públicos nos quais houvesse que manifestar lealdade ao regime, uma espécie
de resistência passiva e silenciosa. A realidade gerada acabou por se aproximar muito
da esquizofrenia social referida por Havel5.
Dadas as dificuldades das organizações sociais para se manifestarem no espaço público
controlado pelo Estado, as Igrejas foram as únicas instituições que se mantiveram relati-
vamente independentes do Estado, assumindo o papel de porta-voz da população6.
No início da década de noventa, o fim do regime Socialista deu origem a um amplo
desenvolvimento de associações cívicas, culturais e recreativas e de ONG. A transição
política criou oportunidades para o desenvolvimento e visibilidade da sociedade civil
em Angola. A exposição à opinião pública externa fortaleceu argumentos, conferiu
credibilidade aos actores sociais angolanos, aumentou a confiança em si e nas causas
que defendiam, para além de encorajar a resistência de quem se atreveu a conquistar
um espaço na esfera pública, emitindo opiniões individuais ou de grupo contra a
posição oficial e governamental.
No entanto, o reacender da guerra após as eleições de 1992 não permitiu que as alte-
rações institucionais ao sistema político-económico encontrassem terreno propício ao
efectivo e amplo desenvolvimento dos ideais democráticos. Mais uma vez, a sociedade
angolana viu-se confrontada com um problema maior, o da guerra civil, e deu priori-
dade à busca pela paz, colocando em segundo plano a discussão sobre o país que os
angolanos desejavam construir.
Neste processo de busca pela paz, reapareceram ou surgiram organizações sociais
e religiosas que, ao apontarem a via do diálogo como o caminho para a solução do
conflito, procuravam afirmar-se igualmente na arena política, reivindicando a partici-
pação na solução de um problema que a todos afectava e que era do interesse público
resolver, mas que desde sempre foi exclusivamente reservado a representantes das
partes envolvidas no confronto armado.
Em 2002, o desfecho da guerra foi efectivamente militar e não negociado, excluindo
a participação das diferentes organizações sociais que pretendiam contribuir para a
resolução do problema. A mensagem passada à sociedade e ao mundo foi a de que
o argumento político-negocial-diplomático “desconseguiu” resolver os conflitos de
interesse, em jogo desde a luta contra o colonialismo.
Contrariamente à expectativa de alguns sectores da sociedade angolana e várias OSC
— todos aqueles que mais se evidenciaram na busca por uma solução pacífica para a
guerra civil —, a assinatura do acordo de paz em Março de 2002, não se transformou
num momento de ruptura com a ordem social vigente, apesar de se constituir indis-
cutivelmente numa oportunidade de mudança institucional mais efectiva.

5
HAVEL, Václav (1988), “Anti-political Politics”, in J. Keane (ed), Civil Society and the State, London-New York:
Verso, pp. 381-398.
6
Os únicos grupos verdadeiramente não-governamentais autorizados a operar antes de finais dos anos oitenta
foram as organizações religiosas, como a Caritas Angola e o Conselho das Organizações Evangélicas de Angola.
Apenas com os acordos de paz de Bicesse e a revisão constitucional de 1991, organizações não ecuménicas como a
ADRA (Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente) conseguiram emergir.
Cesaltina Abreu g A Sociedade Civil em Angola e os seus Desafios Internos e Externos 105

Começava a tornar-se evidente que o problema não estava somente ao nível do modelo
político-económico formalmente adoptado (Socialista ou social-democrata ou liberal),
mas a um nível mais profundo, o da lógica de funcionamento do sistema. A construção
do Estado desde a independência seguiu a lógica da apropriação dos recursos e dos
rendimentos gerados pela sua exploração, em benefício das elites no poder e suas
redes clientelistas, produzindo (e reproduzindo) uma crescente desigualdade e exclu-
são económica e social da maioria da população, que apenas sobrevive dentro deste
sistema, encontrando-se igualmente marginalizada politicamente devido à ausência
de um processo real e inclusivo de reconciliação nacional e efectiva implementação
da cidadania. Uma pequena minoria é privilegiada enquanto a grande maioria é em-
purrada para uma situação de pobreza acentuada.
Não se pode dizer que a capacidade do Estado em Angola tenha sido enfraquecida
por questões externas ou internas, mas antes que as elites optaram claramente por
um modelo de governo baseado na gestão clientelista dos recursos naturais com o
objectivo de financiar a sua manutenção no poder, dando origem a um fenómeno de
exclusão e desigualdade social crescente7.
Angola tem sido avaliada como um dos casos de falência do Estado em África8, mas a
imagem do Estado angolano na sociedade é a de um Estado forte, com um ostensivo
sistema de segurança e controlo sobre praticamente todo o território desde 2002, mos-
trando eficácia nos domínios que interessam à preservação das actuais elites no poder,
e com uma enorme capacidade de manipular, cooptar, coagir e se manter absoluto no
comando dos destinos da nação. Existe um enorme défice de participação e representação
da sociedade civil em instâncias e processos de tomada de decisão, estando reservados
apenas para os organismos estatais/governamentais, incluindo o partido no poder.

2 - Constrangimentos e Desafios Internos para a Sociedade Civil Angolana


Devido à guerra civil e à ineficiência do governo na provisão de serviços públicos, as
OSC (em particular as ONG9) foram encorajadas a engajar-se na prestação de serviços
e na assistência de emergência e humanitária, particularmente ao nível local; várias
delas conseguiram, assim, um espaço importante que foram procurando proteger
através de uma cuidadosa gestão das suas relações com o Estado.
Apercebendo-se da crescente relevância e importância do espaço da sociedade civil,
rapidamente o governo se lançou numa estratégia para o seu controlo. É neste âmbito
que assistimos ao fenómeno da sociedade civil como construção do Estado. Nesta forma
intervencionista de entender sociedade civil, o Estado atribui-se a responsabilidade
de criar o espaço institucional de construção e fortalecimento da sociedade civil sob
o rótulo de “organizada”. Subjacente a esta atitude está a ideia de que instituições ou
práticas da sociedade civil podem ser criadas, formatadas e mantidas pela actividade
intencional do Estado, assumindo-se que aquele espaço necessita de apoio (controlo)
político para o seu desenvolvimento.
Colocando em marcha a sua estratégia de controlo da sociedade civil, o governo/parti-
do/Estado vai optar por duas vias paralelas. A primeira consistirá em criar OSC sob sua

7
HODGES, Anthony (2002) Angola: Do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Principia, Lisboa, Portugal, p. 264.
8
ROTBERG, Robert I. (2002), “The New nature of Nation-State Failure”, in The Washington Quarterly, Verão de 2002.
9
Sobre a relação entre as ONG e a sociedade civil ver, entre outros, HUDOCK, Ann C. (1999), NGO’s and Civil Society.
Democracy by Proxy?, Polity Press, Cambridge, UK.
106 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

tutela e ao seu serviço; a segunda consiste em estruturar um quadro legal que lhe permita
legitimamente controlar o espaço da sociedade civil e as organizações que aí actuam.

2.1 – OSC sob tutela governamental


A primeira via de controlo da sociedade civil consistirá na criação de organizações que
seguem os “modelos” que, ao longo da história, são identificados com sociedade civil,
mas apoiadas pelo Estado. As antigas organizações de massa do “MPLA partido único”
foram, depois da transição, transformadas em organizações sociais, seja de mulheres,
jovens ou pioneiros, tendo a organização dos trabalhadores (UNTA – União Nacional
dos Trabalhadores de Angola) sido transformada em central sindical; surgiram os
chamados “movimentos sociais espontâneos”, que organizam actividades do tipo co-
mícios e passeatas de homenagem ao Presidente da República e deslocações de apoio
à selecção nacional de futebol, possuindo um estatuto de “utilidade pública” que lhes
dá acesso a recursos do orçamento geral do Estado; criaram-se comités de especiali-
dade sócio-profissional que organizam e coordenam profissionais das diversas áreas
(arquitectos, engenheiros, advogados, etc.) como instâncias privilegiadas de consulta
do regime; associações cívicas são constituídas para distribuírem medicamentos, gé-
neros alimentares, ambulâncias, etc. (e.g. AJAPRAZ – Associação de Jovens Angolanos
Provenientes da Zâmbia; FESA – Fundação Eduardo dos Santos; Fundo Lwiñi, da
Primeira Dama, Ana Paula dos Santos10). No cômputo geral, todas estas organizações
completam o quadro das diversas maneiras de construir uma sociedade civil “orga-
nizada”, leal ao regime, que é mobilizada sempre que este precisa de reafirmar a sua
autoridade e legitimar a sua acção perante os seus parceiros internacionais.
Uma observação atenta da constituição e intervenção social dessas organizações mos-
tra que elas seguem as formulações teóricas sobre sociedade civil: as associações de
Tocqueville11, as corporações de Hegel12, os movimentos sociais de Gramsci13, as orga-
nizações filantrópicas dos modelos americanos. Uma das questões que se levanta nesta
sociedade civil “organizada” pelo Estado diz respeito à erosão do ethos que motiva a
participação nesta esfera, particularmente em sociedades em transição, devido ao défice
de debate, participação e mobilização social. Ou seja, até que ponto os seus membros
se sentem confortáveis actuando em instituições sujeitas a imperativos incongruentes
com o ethos que, supostamente, motiva as suas acções?
A resposta a esta questão poderá ser encontrada no facto de muitos dos fundadores
destas organizações ou seus activistas pertencerem à elite no poder ou à sua “esfera
de clientelismo”, sendo deliberadamente cooptados pelo governo, beneficiando de
financiamentos e subsídios diversos e tendo uma relação privilegiada e facilitada com
as estruturas do Estado. De acordo com Nicholas Howen (chefe da divisão dos Direitos
Humanos das Nações Unidas em Angola entre 1998 e 2000),

10
Os fundos sociais do presidente e da sua esposa promovem uma imagem pública da família presidencial como
patronos da filantropia e da caridade social, distanciando-os das falhas do Estado e do governo na prestação de
serviços; in AMUNDSEN, Inge & ABREU, Cesaltina (2006), Civil Society in Angola: Inroads, Space and Accountability.
CMI / A-Ip, Bergen.
11
TOCQUEVILLE, Alexis de. [1835] (1998/2000), A Democracia na América. Volumes I e II. São Paulo, Editora Martins
Fontes.
12
HEGEL, G.W.F. (1942), Philosophy of Right, citado em PIETRZYK, Dorota I. (2001), Civil Society – Conceptual History
from Hobbes to Marx. Aberystwyth, University of Wales. Marie Curie Working Papers, n.° 1.
13
BOBBIO, Norberto. (1986), Estado, Governo e Sociedade. Para uma Teoria Geral da Política. São Paulo, Paz e Guerra
Editora.
Cesaltina Abreu g A Sociedade Civil em Angola e os seus Desafios Internos e Externos 107

Existem evidências de que organizações dirigidas por antigos ou actuais membros do


MPLA, ou por aqueles dentro do sistema de clientelismo, são capazes de alcançar os
seus resultados com maior precisão devido ao seu posicionamento próximo ao regime.
Elas são mais fiáveis, mais toleradas como uma oposição leal e são capazes de utilizar
as suas redes para alcançar mudanças incrementais. É comum em África a sociedade
civil não estar tão diferenciada do Estado como no Ocidente, mas isso não significa que
ninguém deva lutar por mudanças14.
Do ponto de vista do governo, as OSC são, ou deveriam ser, organizações de auto-ajuda
e de prestação de serviços; por outras palavras, grupos de cidadãos sem cidadania15,
o que contrasta com o papel mais amplo e político consagrado na Lei Constitucional
em vigor, nomeadamente nos artigos 2.º e 3.º, não apenas como direito de participar
na vida pública e nas decisões sobre o futuro do país, mas sobretudo como “dever”.

2.2 – O controlo das OSC por via do enquadramento legal


Uma segunda via de implementação da estratégia governamental de controlo da sociedade
civil será desenvolvida ao nível do enquadramento legal. Neste sentido, o governo decidiu
rever a Lei das Associações, Lei 14/91, e o Decreto 84/02. O processo iniciado em Maio de
2006 e coordenado pelo Ministério da Assistência e Reinserção Social (MINARS) através
da UTCAH (Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária), revela algumas
características da estratégia governamental. Formal e oficialmente, expressa o desejo do
governo de adequar o quadro legal à situação pós-guerra, mas efectiva e oficiosamente,
revela a abordagem de um regime autoritário em relação a uma sociedade civil fragmentada
e a vontade de continuar a “controlar” as actividades dos actores não estatais.
O Decreto 84/02 (implementado em 2004) regula de forma rigorosa um espaço relati-
vamente aberto, criado pela Lei 14/91; enquanto a lei apresenta uma abordagem ampla
da vida associativa, o decreto destinado apenas às ONG (excluindo os demais tipos de
vida associativa e actores não estatais, organizações comunitárias, sindicatos, etc.) visa,
em contradição com o princípio geral da independência associativa, “discipliná-las”,
estabelecendo a prestação de contas perante as instituições do Estado, o controlo dos
seus membros e a auditoria interna, obrigando-as a abster-se de “acções políticas”,
condicionando ainda o emprego de expatriados e exigindo a apresentação de relatórios
regulares à UTCAH.
Aquele decreto vai no fundo estabelecer a tutela governamental sobre as ONG, exerci-
da pelo MINARS, através da UTCAH. Para além de ferir o direito de livre associação
consagrado na Lei Constitucional e intencionalmente conferir um carácter “assisten-
cialista” à acção destas organizações, limita rigorosamente o espaço de actuação das
ONG. O Decreto deixa claro o papel que o governo considera caber às ONG: o de se
limitarem a ser parceiras do Estado e das suas instituições em projectos e actividades
por eles determinadas. Visto pelo lado da sociedade civil, a principal característica
do decreto é a de reforçar o ambiente institucional adverso e controlador, limitando
o espaço público, tornando ainda mais difícil a tentativa das ONG influenciarem o
governo e as suas políticas e de participarem na gestão dos assuntos públicos.

14
HOWEN, Nicholas. (2001), Peace-Building and Civil Society in Angola. London, Department for International
Development (DFID), p. 36.
15
AMUNDSEN, Inge & ABREU, Cesaltina (2006), Civil Society in Angola: Inroads, Space and Accountability. CMI /
A-Ip, Bergen.
108 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

3 - Constrangimentos e Desafios Externos para a Sociedade Civil Angolana


A conjugação das dificuldades resultantes dos constrangimentos da cultura política
dominante e da falta de recursos está na base de uma das maiores debilidades da
sociedade civil independente em Angola: a sua enorme dependência dos doadores
— agências bilaterais e multilaterais. A escassez de recursos financeiros e materiais
para a realização dos objectivos que levaram à sua criação, as dificuldades em conse-
guir agenciar tais recursos entre os seus membros e na sociedade, aliada à ausência
de políticas públicas de apoio à sua constituição e funcionamento sob a forma de
subsídios, incentivos, ou outro tipo de dotações orçamentais, conduzem à procura
por financiamentos externos junto de agências das Nações Unidas, das instituições
de Bretton Woods, ou das agências bilaterais de cooperação.
De uma forma geral, as organizações da sociedade civil enfrentam problemas de auto-sus-
tentação, dependendo de financiamentos externos, o que as torna vulneráveis e as desvia,
não raras vezes, das suas áreas de intervenção. A dependência financeira transforma-se
em dependência de agendas, ou seja, as organizações abandonam, temporária ou defi-
nitivamente, os objectos sociais que levaram à sua criação. Determinados temas ou áreas
de intervenção que faziam originalmente parte das agendas de algumas OSC nacionais
são menos valorizados pelos doadores, consequentemente não mobilizam os recursos
necessários (apesar das elevadas taxas de retorno em termos dos seus potenciais efeitos
na sociedade e nas comunidades alvo) e acabam por ser abandonados16. Por outro lado, a
necessidade de competir por recursos e as diferenças existentes em termos de capacidade
de agenciamento de recursos, gera e reforça desequilíbrios entre as diversas OSC.
De acordo com a argumentação teórica que se tem vindo a generalizar, as actividades da
sociedade civil internacional têm efeitos nos processos de democratização um pouco por
todo o mundo e vêm ganhando uma dimensão global, não só porque dão visibilidade
ao conjunto de direitos e deveres dos indivíduos enquanto membros de uma comuni-
dade sócio-política — a cidadania nacional —, mas também e sobretudo enquanto seres
humanos com direitos que são inerentes a essa qualidade — Direitos Humanos —, não-
territorializados ou contextualizados, mas universais e intemporais, embora mantendo a
necessidade pelo respeito da diversidade sócio-cultural. Ao aproximarem-se os indivíduos
das agências transnacionais de regulação, criaram-se oportunidades para a manifestação,
afirmação e defesa desses direitos, reclamando-se, sob diversos léxicos, o fortalecimento
da sociedade civil como forma de fortalecimento da democracia17. Não obstante este dis-
curso e este tipo de argumentação teórica, a prática demonstra por vezes uma realidade
diferente; os estudos de Maina (sobre as relações entre o Estado, os doadores e a política
de democratização no Quénia) e de Fatton (sobre os limites da sociedade civil em África)
sustentam que o não reconhecimento das expressões locais informais de associação em
África, por parte das agências de cooperação multilaterais e bilaterais, resulta na dificul-
dade em identificarem forças capazes de produzir mudanças políticas18.
Esta realidade pode ser igualmente observada em Angola, onde as organizações interna-
cionais procederam à transferência de agendas, prioridades, estratégias e práticas dos seus

16
ISAKSEN, Jan; AMUNDSEN, Inge; WIIG, Arne with ABREU, Cesaltina (2007), Budget, State and People. Budget
Process, Civil Society and Transparency in Angola. CMI, Bergen.
17
DESAI, Meghnad & SAID, Yahia. (2001), “The New Anti-Capitalist Movement: Money and Global Civil Society”,
in H. Anheier, M. Glasius and M. Kaldor (orgs.) Global Civil Society. Oxford, Oxford University Press.
18
Citados em LENZEN, Marcus H. (2002), “The Use and Abuse of ‘Civil Society’ in Development”. Transnational
Associations, vol. 54, n.º 3, pp. 170-187.
Cesaltina Abreu g A Sociedade Civil em Angola e os seus Desafios Internos e Externos 109

países de origem, ou das suas organizações-sede, e respectivos quadros de referência, sem


no entanto promoverem a manifestação de valores, entendimentos e expectativas locais ou
se preocuparem com a identificação de estratégias nacionais, programas e projectos mais
adequados ao contexto e ao momento. Os mecanismos de ajuda ao desenvolvimento e, mais
ainda, de assistência humanitária ou de emergência, constituíram-se em instrumentos prefe-
renciais para condicionar o acesso aos recursos financeiros, técnicos e materiais disponíveis,
à adopção de discursos e práticas de visão neo-liberal da sociedade civil sem cidadania,
atropelando prioridades locais, ignorando formas de estar e agir, assim como processos de
tomada de decisão e participação alicerçados nos sistemas de valores culturais locais.
Os supra referidos apelos à busca da paz pela via negocial durante a última década do
conflito em Angola, protagonizados por Igrejas e organizações/grupos de cidadãos,
meios de comunicação social e individualidades, deixavam transparecer, nos argu-
mentos de algumas organizações, uma proposta implícita de recriação das formas
tradicionais de debate e de tomada de decisão nas sociedades africanas, conhecido em
Angola como Ondjango. A imagem do Ondjango é a de um espaço aberto onde “mais
velhos” e “notáveis” se reúnem para analisar e decidir relativamente a problemas
relacionados com a vida colectiva, de interesse da comunidade. A particularidade é
que, para além dos directamente envolvidos na sessão, os demais membros da comu-
nidade, os passantes, têm a oportunidade de ouvir e participar, indirectamente, nesse
processo de tomada de decisão, que é assim tornado público.
Um outro aspecto, a ter em conta nesta discussão sobre a necessidade de contextualizar a
actuação das OSC (nacionais e internacionais), tem a ver com a necessidade de considerar
que em Angola as formas de organização do político são significativamente distintas na
área urbana e na rural, com predomínio do civil nas áreas urbanas e do costumeiro ou tra-
dicional no meio rural. Um resultado desta realidade pode ser a acentuação da dicotomia
entre cidadãos e sujeitos19, os primeiros com uma cultura de direitos e os segundos com uma
cultura de costumes20. Esta discussão remete para a distinção entre público cívico e público
“primordial”21, o primeiro relacionado com a ideia de “urbano” e o segundo com “rural”. A
dicotomia entre urbano e rural tem originado muita discussão nos meios académicos africa-
nos, que em geral rejeitam a sua utilidade, argumentando que apesar de o Estado colonial ter
herdado das metrópoles alguns critérios e instrumentos (fronteiras, organização territorial,
função pública, etc.), ele era essencialmente administrativo, sem responsabilidade política
ao nível da base, ou seja, não tinha como estabelecer relações institucionais com a população
autóctone, que, por sua vez, não se identificava com aquele Estado, obrigando-o a recorrer
à mediação de chefes indígenas para o estabelecimento de compromissos22.

19
MAMDANI, Mahmood (1996) Citizen and Subject: Contemporary Africa and the Legacy of Late Colonialism. Princeton
University Press. London.
20
Enquanto Mamdani vê a tradição como fornecendo a base para um “despotismo descentralizado”, outros visualizam-
-na como constituindo um espaço de socialização e de vida alternativo ao individualismo e à cultura globalizante do
Ocidente (Nyamnjoh), ou como contendo o possível modelo de uma alternativa democrática (Wamba-dia-Wamba).
Michael Neocosmos, opõe à celebração acrítica da tradição como cultura autêntica e ao discurso neo-liberal dos Direitos
Humanos, uma visão alternativa de “tradição” em África, sugerindo que “ela seja entendida na perspectiva de um
caminho completamente novo de pensar a política”. Ver NYAMNJOH, Francis B. (2000), “For Many are Called but
Few are Chosen: Globalization and Popular Disenchantement in Africa”, in African Sociological Review, vol. 4, n.º 2, pp.
1-45; também WAMBA-DIA-WAMBA, Ernest (1994), “Africa in Search of a New Mode of Politics”, in H. Himmelstrand
(ed.) African Perspectives on Development, London: James Currey.
21
EKEH, Peter (1975) “Colonialism and the Two Publics in Africa: A Theoretical Statement”, in Comparative Studies
in Society and History 17 (fall), pp. 91-112.
22
LOPES, Carlos. (1997), Compasso de Espera. O fundamental e o acessório na crise africana, Porto, Edições Afrontamento,
Portugal.
110 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

A reflexão sobre a possibilidade de criar dinâmicas sociais capazes de ligar os mundos


urbano e rural remete igualmente para as experiências dos movimentos nacionalistas,
que conduziram os processos de luta pela independência, tanto armada quanto por
negociação política, e que nalguns casos se mostraram capazes de promover uma
coalizão em torno de um projecto político de emancipação. Tal não foi o caso em
Angola, onde desde cedo o movimento nacionalista se dividiu em três. Mas mesmo
nos casos em que estas coalizões existiram, elas não resistiram à falta de capacidade
criativa em ensaiar processos de reforma democrática aos níveis central e local após
a independência, o que originou o alargamento do fosso entre as duas dimensões da
realidade (urbana e rural) e as múltiplas graduações de inter-penetração entre mo-
dernidade e tradição, gerando desconfiança e estratégias de auto-exclusão por parte
das populações rurais e/ou de grupos excluídos das novas alianças e coalizões23. A
análise da situação actual parece indicar que, na procura pela aproximação entre os
diversos mundos, este amplo processo de reforma das estruturas de poder em África
precisa de ser pensado a partir “de baixo”, do rural, do tradicional24. Esta necessidade
revela-se premente numa realidade como a angolana.

4 - Resposta das OSC aos Desafios e Constrangimentos

4.1 - Tentativas de participação nos processos de decisão pública


Não obstante a supra referida estratégia de controlo governamental, tutelar e com
imposição de um quadro legal que limita de sobremaneira a esfera de intervenção
da sociedade civil de acordo com objectivos e critérios governamentais, a reacção da
sociedade civil tem sido tímida e pouco consequente. Em meados de 2006 a UTCAH,
em nome do governo, abriu à sociedade civil a possibilidade de se apresentarem pro-
postas e sugestões para revisão da legislação. Esta solicitação revelou dois problemas
graves: por um lado, a dificuldade das OSC em se articularem para prepararem uma
resposta colectiva à solicitação da UTCAH, por outro, a falta de vontade do governo
em efectivamente tomar em consideração as propostas das OSC, parecendo considerar
a auscultação às OSC como apenas um pró-forma para legitimar (perante parceiros
externos e alguns internos) as suas pré-definidas decisões.
Em resposta à solicitação da UTCAH realizaram-se, ao nível das OSC, debates, consul-
tas com juristas e análise de situações em outros contextos regionais e internacionais,
tendo-se discutido as implicações de eventuais modificações à lei actual. Este processo
acabou por ser muito moroso tendo durado cerca de um ano. Somente em Julho de 2007
foi formalmente entregue à UTCAH um documento contendo alguns princípios para a
configuração jurídica do espaço de intervenção da sociedade civil, assim como algumas
sugestões e propostas em relação ao decreto que regulamenta a intervenção das ONG.
Em resposta, o governo limitou-se a agradecer a contribuição das OSC, informando que a
solicitação seria encaminhada às instituições competentes na matéria, desconhecendo-se
qualquer tipo de utilidade ou aplicabilidade concreta do referido documento, dando a
entender que para o governo a “exigência” de auscultação da sociedade civil foi respei-
tada, embora ignoradas as suas propostas, pelo menos até à presente data.

23
BATES, Robert. (1981), States and Markets in Tropical Africa: The Political Basis of Agricultural Policy. Berkeley,
University of California Press, Series on Social Choice and Political Economy; BATES, Robert. (1983), Essays on the
Political Economy of Rural Africa, Cambridge, Cambridge University Press.
24
BAYART, Jean-François. (1996), The State in Africa: The Politics of the Belly, London/New York, Longman; CHABAL,
Patrick. & DALOZ, J-P. (1999), Africa works: Disorder as political instrument, Oxford, James Currey.
Cesaltina Abreu g A Sociedade Civil em Angola e os seus Desafios Internos e Externos 111

Por altura da entrega daquele documento, foi igualmente solicitada informação so-
bre as ideias e visões do governo em relação à revisão da lei, sobre o que estava a ser
preparado pelo governo, tendo as OSC mostrado disponibilidade para encontros e
reuniões com representantes governamentais para discussões directas. A resposta foi
no sentido de que “o governo daria essa informação quando, e se, achasse necessário”.
Do mesmo modo, enquanto as OSC procuravam mobilizar-se para reagir à iniciativa de
revisão da lei, a FESA organizou, em Agosto de 2006, as Jornadas Técnico-Científicas
que anualmente acontecem nessa altura em comemoração do aniversário do seu pa-
trono, o Presidente da República. As Jornadas “Angola e o Terceiro Sector” tinham
como objectivo estabelecer um canal de comunicação entre as instituições do Estado e
a sociedade civil “organizada”, embora tenham sido convidadas outras organizações
por via das plataformas FONGA (Fórum das ONG Angolanas) e CONGA (Comité das
ONG internacionais em Angola). O programa de trabalho das Jornadas e as discussões
havidas manifestavam o interesse em auscultar as contribuições para a reformulação
da lei, mas os resultados dessa auscultação foram igualmente inócuos.
No final deste processo e analisadas as iniciativas governamentais e da sociedade civil
“organizada”, conclui-se que a “auscultação” da sociedade civil apenas serviu para
legitimar a pré-definida estratégia do regime, que em Abril de 2007 apresenta a Agen-
da de Consenso Social, alegadamente surgida de uma “negociação” com a sociedade
civil angolana. Contudo, não houve qualquer tipo de consulta pública, auscultação
ou negociação efectiva de um pacto social. Mais uma vez ficou clara a necessidade de
uma maior articulação entre as OSC para poderem reagir às estratégias de controlo e
manipulação do regime.
4.2 – A I Conferência Nacional da Sociedade Civil enquanto estratégia
concertada das OSC
Para tentar ultrapassar o referido problema da falta de articulação entre OSC nacionais
e tentando responder melhor aos constrangimentos impostos pelo governo, realizou-se
em Novembro de 2007 a I Conferencia Nacional da Sociedade Civil em Angola sob o
lema “Construindo a Unidade na Diversidade”. Apesar das dificuldades — organiza-
tivas, de recursos, e até de credibilidade —, mobilizaram-se vontades e capacidades
para envolver o maior número possível de organizações da sociedade civil, instituições
do Estado, sector empresarial, instituições religiosas e meios de comunicação social.
Alegadamente, devido ao pouco tempo de preparação da conferência e entrega dos
convites, assim como problemas de agenda, as instituições do Estado convidadas a
apresentarem as políticas e pontos de vista do governo nos diversos eixos temáticos
do programa de trabalhos não se fizerem presentes, o que certamente empobreceu a
discussão e não contribuiu para o alcance de importantes objectivos preconizados pela
conferência. De notar que a ausência das instituições do Estado convidadas, à excepção
da UTCAH, foi acompanhada de uma absoluta falta de referência à conferência nos
órgãos de comunicação social estatais. Mais curioso, ainda, foi constatar que a TPA
(Televisão Pública de Angola) não passou qualquer imagem da conferência, apesar
de ter gravado toda a sessão de abertura.
Apesar de terem sido realizados dezassete encontros provinciais preparatórios (não se
tendo realizado apenas na província do Kwanza Norte) e de terem sido criadas as con-
dições para a participação dos seus representantes e inclusão das suas preocupações na
agenda do encontro nacional, é preciso muito mais para que a conferência da sociedade
112 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

civil tenha realmente um âmbito nacional. Por este motivo, estão em preparação encon-
tros de retorno, visando estender este processo à maioria dos municípios das províncias
que já participaram na primeira conferência, incluindo o Kwanza Norte, e dando início
à preparação da segunda conferência. Prevaleceu um projecto de conferência nacional
da sociedade civil como processo e forma de organização que se pretende cada vez mais
inclusiva, com encontros em intervalos de tempo regulares, idealmente todos os anos,
em sistema de rotação quanto à cidade que acolhe o evento nacional e diversificando as
formas de organização e participação da sociedade civil por regiões e por temas.
Os temas propostos para discussão na conferência incorporaram as preocupações mais
prementes da relação entre sociedade civil e Estado e os demais actores sociais, cuja
análise e tratamento permitiram estabelecer novas bases para esse relacionamento, e
entre as diversas formas de organização da sociedade civil. Estrategicamente, deci-
diu-se enquadrar estas discussões na perspectiva de experiências anteriores e lições
aprendidas. Analisaram-se duas fases distintas de relacionamento entre o Estado e as
OSC, a primeira tendo por base um contexto de guerra civil onde prevaleceu a ajuda
de emergência e humanitária, a segunda num contexto de paz — actual —, em que
se torna fundamental reposicionar essas relações no âmbito da promoção do desen-
volvimento e do progresso social. O objectivo foi o de propor as bases de uma nova
relação entre a sociedade civil e o Estado a partir da constatação natural de que essa
relação, além de possível, será certamente muito proveitosa para o país.
As contribuições dos encontros provinciais para a conferência foram organizadas em
categorias, sendo três delas intrínsecas à sociedade civil: a criação de mecanismos de
coordenação entre as OSC; reforço da identidade e capacidade das OSC; papel da so-
ciedade civil. As demais categorias centraram-se nas relações com o Estado, no acesso
a fundos públicos, nas questões legais e nas relações com outros actores nacionais e
externos. Foi ressaltada a necessidade de criar estruturas de coordenação, fortalecer
laços de cooperação e mecanismos de interacção, reactivar espaços de discussão, con-
certação e representação de interesses, especialmente no que concerne aos problemas
que se colocam nas províncias e no país em geral. Para facilitar a coordenação de acções
das OSC nas províncias, foi sugerida a criação de dois tipos de espaços de concerta-
ção — um para as ONG (uma espécie de FONGA local), o outro para todas as OSC a
nível da província, aberto, receptivo e inclusivo, com liderança rotativa, que reflicta a
visão, compromisso, participação e funcionalidade da sociedade civil na província e no
país. Recomendou-se que o FONGA reveja as suas estratégias e chegue às províncias
do interior (porque as OSC não se sentem representadas por ele, na medida em que
inclui apenas ONG de Luanda).
Do ponto de vista do reforço da identidade e da capacidade das OSC, destacou-se a
necessidade de registar as organizações existentes em cada província (áreas de actuação,
estatutos, identidade, objectivos, recursos, etc.), ajudá-las a criar estatutos, capacitá-las
para poderem aceder a financiamentos e fortalecerem a rede da sociedade civil através
da sua intervenção institucional e da troca de experiências com os diferentes actores.
Foi identificada a necessidade de treino em advocacia para aumentar o protagonismo
em busca das soluções para os problemas sociais.
Sobre o papel da sociedade civil, destacou-se a criação de consensos, a influência nas
políticas públicas (inclusão, opinião pública, participação na governação, visibilidade
no espaço público) e boa governação (transparência, fiscalização, controlo, prestação de
contas do Estado e também dentro da sociedade civil). Foi destacado o papel político
Cesaltina Abreu g A Sociedade Civil em Angola e os seus Desafios Internos e Externos 113

das OSC no processo de desenvolvimento para incluir a diversidade de visões, objecti-


vos e opções, e na construção dos consensos necessários sobre as grandes questões da
vida da província e do país. Para isso, destacou-se a necessidade de manter os debates
e reflexões sobre temas actuais e de interesse da sociedade, para promover o exercício
da cidadania por todos e fortalecer o processo da democratização do país.
Constituiu preocupação em todos os encontros provinciais, a discussão do acesso a
fundos públicos através de mecanismos selectivos, transparentes e democráticos, e a
criação de um grupo de trabalho de representantes da sociedade civil para influenciar
o governo e promover um contacto constante com potenciais doadores nacionais (o
governo em particular) e internacionais. Outra questão que mereceu a atenção nos
encontros provinciais foi o enquadramento jurídico-legal para garantir que todas as
OSC actuem de acordo com as leis do país; contudo, e para que isso aconteça, torna-
se necessária a divulgação das leis, decretos-lei e outras disposições importantes. Foi
também recomendada a legalização das associações comunitárias no âmbito estrito da
Lei 14/91, a diminuição dos custos e a descentralização do processo para todas as pro-
víncias. Outra questão importante foi a definição dos critérios de atribuição do carácter
de “utilidade pública” a organizações da sociedade civil, ao abrigo da Lei 5/01.
Em praticamente todos estes encontros, o relacionamento com as instituições do Es-
tado aqueceu o debate e provocou muita discussão. Entre as propostas e sugestões
apresentadas, vale referir o estreitamento de parcerias com estruturas provinciais do
governo, a criação de um fórum urbano nacional e de fóruns provinciais para expandir
as formas de participação e os mecanismos de inclusão no processo de discussão de
assuntos de interesse público, a melhoria da coordenação e articulação entre as OCS
e entre estas e o governo local. Mas para isso, foi ressaltada a necessidade de maior
abertura e engajamento do governo na promoção das relações sociais, rompendo a
distância entre sociedade civil e governo, melhorando a articulação entre ambos com
vista à gestão participativa do erário público e do Orçamento Geral do Estado, maior
interacção e colaboração mais efectiva na promoção do desenvolvimento, articulação
e reforço do diálogo aos vários níveis. Foi especialmente recomendado que se aprovei-
tem melhor os espaços já existentes, como os Conselhos de Auscultação e Concertação
Sociais (provinciais, municipais e comunais, no âmbito da Lei 02/2007) e os Fóruns
de Desenvolvimento (municipais e comunais; iniciativa da Associação Industrial
Angolana) para incluir as visões da sociedade civil e contribuir de maneira positiva,
lógica e organizada, para o desenvolvimento do país. Estas propostas sugerem que um
mais intenso diálogo com o governo conduz à elaboração de acordos, memorandos
de entendimento e outras formas de acção conjunta.
A Conferência Nacional da Sociedade Civil constitui, no momento, a oportunidade de
formulação de novas visões sobre a sociedade e de constituição da força social capaz
de induzir mudanças, o que implica a passagem para o domínio público de domínios
hoje privados ou “privatizados”, e a reformulação da agenda pública.
Um dos resultados esperados deste processo é o estabelecimento de canais de co-
municação e interacção com as instituições do Estado, não mais na óptica de tutela,
controlo nem dependência, mas antes de diálogo, cooperação e parceria. Isto implica
que, por parte das instituições do Estado, a interlocução seja exercida numa perspectiva
holística do interesse de todos e do longo prazo, através de estruturas que promovam
a cidadania, a negociação do novo contrato social e sua implementação, no âmbito do
Ministério do Planeamento ou do Gabinete do Primeiro Ministro.
114 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Concluindo, o caminho parece residir na construção de uma ampla plataforma de


debate e discussão em todo o país, incluindo o público “primordial”, em busca dos
entendimentos alternativos sobre as relações entre o Estado e a sociedade civil, que
forneçam as bases para a construção social de um projecto de emancipação em torno
da re-apropriação da ideia de bem-comum. A construção de uma esfera pública ver-
dadeiramente independente para a deliberação crítica, por parte de cidadãos iguais
em direitos, constitui uma prioridade desse projecto de emancipação25.
Mais do que buscar confrontações com o Estado, a sociedade civil precisa procurar
formas de articulação com ele, com vista à expansão do espaço público e à consolidação
de um ethos democrático em Angola, tendo presente que o Estado autoritário com que
as organizações civis se confrontam, é o mesmo a quem compete criar o quadro legal
e político para a sua existência e funcionamento.

25
HABERMAS, Jurgen. [1962] (1989), The Structural Transformation of the Public Sphere, Cambridge, MIT Press;
HABERMAS, Jurgen. (1992), “Further Reflections on the Public Sphere”, in Craig Calhoun (org.), Habermas and the
Public Sphere. Cambridge, MIT Press.
115

Sociedade Civil em Angola:


Ficção ou Agente de Mudança?

Introdução
Fernando Pacheco
Acção para
o Desenvolvimento
Q uando se fala de sociedade civil em Angola é habitual
encontrarmos duas perspectivas. A primeira evidencia
sobretudo as suas fraquezas ou põe em causa a sua existência,
Rural e Ambiente sem se preocupar verdadeiramente em relacionar isso com o
– ADRA, Angola contexto histórico e cultural específico e é veiculada, quase
sempre, por autores não africanos.
A saudosa Christine Messiant, ao debruçar-se sobre o proces-
so de transição para o multipartidarismo em Angola (Mes-
siant, 2007), não foge a essa lógica, pois discorre apenas sobre
os aspectos formais do processo e ignora a caminhada que
cidadãos angolanos vêm fazendo para a construção da sua
cidadania e de um “novo futuro”, que nada tem a ver com
os desígnios das elites dominantes, nem com as catastróficas
premonições de muitos analistas ocidentais.
Ulrich Schiefer, por seu lado, vai mais longe e afirma que em
condições como as de Angola, a sociedade civil é, na maioria
das vezes, “uma ficção”, pois a sociedade civil “real” consistiria
em sociedades agrárias etnicamente estruturadas, margina-
lizadas ou excluídas, incapazes de produzirem um interface
com diferentes intervenções sociais de carácter mais complexo
(Schiefer, 2006). Tal argumento indicia, desde logo, um in-
quietante desconhecimento sobre as recentes dinâmicas des-
sas sociedades, nomeadamente os importantes e substanciais
movimentos migratórios dos últimos anos em Angola rumo
às principais urbes do país, que alteraram profundamente a
distribuição populacional do tempo colonial e que deixaram
totalmente desfasadas as, já de si simplistas, análises ociden-
tais, que em África utilizavam dicotomias conceptuais como
“sociedades rurais” e “sociedades urbanas”.
Outros analistas, como Michel Cahen, entendem que em vez
de sociedade civil dever-se-ia falar de movimentos sociais nas
sociedades africanas, algo que mereceria outro tipo de debate
que iria para além dos propósitos desde artigo1.
O que ressalta destes pontos de vista e de outros similares
é que utilizam conceitos e grelhas de análise baseadas em
estruturas ocidentais, com fraca capacidade de adaptação

1
Conversa com Michel Cahen (Luanda, Agosto de 2004).
116 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

ou flexibilização em relação a realidades Africanas. Uma análise da democracia, por


exemplo, não se pode limitar ao seu aspecto formal ou institucional, relativa aos par-
tidos ou ao Estado, como faz Messiant (2007), mas tem de ser complementada com o
aspecto substantivo, conferido pela acção dos cidadãos, na sua relação com as estruturas
governamentais existentes, através do que se considerou designar por sociedade civil,
ainda que esta sociedade civil possa apresentar algumas especificidades. Penso que
nas condições de Angola, o Estado, os partidos políticos e as organizações da socie-
dade civil (OSC), constituem os três vértices do triângulo pelo qual se deve analisar
os processos de democratização, seus sucessos e insuficiências.
A segunda perspectiva, a que se poderia chamar de “endógena”, enfatiza as forças
— ainda que limitadas — e o potencial da sociedade civil angolana para a mudança
política, económica e social e para a constituição de um espaço público independente
do Estado. É o que pretendo mostrar com este texto, na linha do que defendem o ga-
nense Gyimah Boadi, o igualmente saudoso moçambicano José Negrão, os angolanos
Nelson Pestana e Cesaltina Abreu, e, mais recentemente, a brasileira Idaci Ferreira,
entre outros. Pretendo igualmente apresentar as condicionantes e limitações que se
apresentam ao desenvolvimento de tal potencial.

1 – O Estado Socialista Forte, o Processo de Democratização


e a Emergência das OSC
Aquando da independência, rapidamente se percebeu a necessidade de um Estado na-
cional forte, capaz de garantir a integração das diversidades sócio-culturais e a unidade
nacional (sem suprimir outras formas de afirmação identitária), moderar desequilíbrios
e desigualdades e liderar a reconstrução económica e social (Neto, 2003). O Estado Socia-
lista dos primeiros anos de independência visou objectivos precisos: eliminar as várias
deficiências e injustiças herdadas do colonialismo, integrar as diversidades culturais e
regionais, recuperar o “atraso” sócio-económico e acelerar o desenvolvimento. No entan-
to, a prática veio a revelar uma realidade diferente. O carácter monolítico e sectário do
regime Socialista e o desejo de controlar as forças sociais independentes desvirtuou tais
objectivos, levou à partidarização do Estado, favoreceu a incompetência e a burocracia,
ao mesmo tempo que excluiu ou limitou significativamente o espaço de participação de
vários segmentos da sociedade, como, por exemplo, os membros das Igrejas, os empresá-
rios, aqueles que haviam servido o regime colonial, os membros de outros movimentos
de libertação ou pertencentes a antigas dissidências do próprio MPLA. Tratavam-se, em
geral, de restrições ao direito de cidadania, que acabaram por causar fracturas enormes
na sociedade e alimentar, de certa forma, a guerra civil. O regime então instalado acabou
por desenvolver um Estado forte à custa de uma sociedade obliterada, onde os cidadãos
não dispunham de espaço para uma participação livre.
Ao longo dos anos oitenta, por motivos vários, o Estado angolano foi perdendo efi-
ciência e eficácia no que respeita à prestação de serviços públicos. Com o início do
processo de transição para o multipartidarismo no início da década de 90, abriu-se o
espaço às OSC e é nesta altura que surgem em força, ganhando um enorme protago-
nismo ao longo dessa década, numa altura em que as instituições do Estado estavam
extremamente fragilizadas e não cumpriam as funções mais elementares de prestação
de serviços aos cidadãos, de definição de políticas públicas e de zelo pelo cumprimento
das leis. Em muitas circunstâncias, as administrações locais do Estado apoiaram-se
em ONG para desempenharem tais funções.
Fernando Pacheco g Sociedade Civil em Angola: Ficção ou Agente de Mudança? 117

Consciente da importância que a sociedade civil começou a ganhar no país, nos fins da
década de 1990 o governo resolveu encorajar e apoiar a emergência e o fortalecimento
de organizações que gravitassem na sua órbita e que funcionassem como “correias
de transmissão” das suas políticas e estratégias, procurando minar o movimento,
influenciá-lo e cooptá-lo. Sem uma linha autónoma de orientação, essas OSC limitam-se
geralmente a distribuir bens de forma gratuita às populações — contribuindo para a
cultura de desresponsabilização, paternalismo e promoção do clientelismo —, veicu-
lam mensagens favoráveis ao partido no poder e por vezes organizam debates sobre
questões da sociedade civil, no âmbito do que interessa ao governo. Estas OSC têm
um acesso facilitado a fundos públicos, enquanto aquelas que não pertencem à esfera
cooptada se debatem com sérias dificuldades, não só no que se refere ao acesso a tais
fundos, mas também à relação com as instituições do Estado.
Esta relação entre poder político-partidário-governamental e algumas OSC tem sido
percebida e denunciada por vários analistas e meios de comunicação social. Porém, ela
representa a nível social uma estratégia que o MPLA tem sabido implementar, como
nenhuma outra força política, junto da população, por via da cultura e do desporto,
seduzindo os músicos mais populares e capitalizando em seu favor os sucessos des-
portivos nacionais, no futebol e no basquetebol.
Com o fim da década de 1990 e o início da década de 2000, entra-se numa outra fase
da relação entre algumas OSC e o Governo, em que cada um dos lados passou a ver o
outro não como parceiro (ainda que com opiniões diferentes nas complexas tarefas de
reconstrução, reconciliação, democratização e desenvolvimento), mas sim como adver-
sário e, por vezes, inimigo. Isto é verdade tanto para funcionários da administração do
Estado, que se assumem individualmente como “proprietários do Estado”, como para
certas ONG que entendem que a sociedade civil e todos aqueles que são militantemente
contra o governo e o Estado é que têm moral e estão do lado correcto, dando origem a
um extremar de posições que não tem sido nada benéfico para nenhum dos lados.

2 - O Contributo Sócio-Económico e Sócio-Político das OSC


Desde o seu aparecimento até — pelo menos — ao fim da guerra em 2002, a sociedade
civil angolana foi o segmento de maior crescimento e dinamismo social. Para isto contri-
buíram, na minha perspectiva, um conjunto de factores, como a abertura constitucional ao
pluralismo e à liberdade de associação; o forte incremento da ajuda humanitária devido
às necessidades criadas pela guerra; o sentimento cívico e o movimento dos cidadãos em
prol da paz e da necessidade de defesa dos Direitos Humanos; a retracção do Estado na sua
capacidade de prestação de serviços aos cidadãos e a sua cada vez maior incapacidade de
controlo sobre as forças sociais; a acção da chamada comunidade internacional, através das
agências das Nações Unidas e outras de carácter multilateral, das ONG internacionais e de
alguns doadores com maior intervenção em Angola, que para além de recursos ajudaram
a criar um ambiente político favorável ao crescimento da sociedade civil e a estimular a
propagação de uma cultura de respeito pelos Direitos Humanos.
Dentro da sociedade civil é justo destacar as ONG. Gostemos ou não, elas constituem,
desde o início dos anos noventa, o segmento mais dinâmico da sociedade civil angola-
na. Infelizmente, é negativa a percepção que delas têm muitos sectores da sociedade,
alimentados pela maioria dos órgãos de comunicação social e por alguns prestigiados
intelectuais que se afastam cada vez mais, e de forma preocupante, dos combates que
118 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

travaram noutros tempos, pela cidadania, contra a exclusão social, a desigualdade e


a opressão. Tais sectores vêem as ONG apenas como vazadouros de dinheiros públi-
cos oriundos de países ricos, que se evaporam muito antes de chegar às populações.
Analistas como Schiefer (2006), referem que as OSC africanas se centram sobretudo
nos projectos que são financiados pela comunidade internacional e que servem, antes
de mais, para sustentar os salários dos próprios membros dessas organizações. Esta
generalização é redutora da realidade, simplista e abusiva.
Muitas organizações comunitárias de base funcionam, um pouco por todo o país, apoia-
das essencialmente no voluntariado, com trabalho e recursos das próprias comunidades.
No seu estudo sobre o papel de associações comunitárias na promoção da cidadania e na
construção da democracia na comuna do Dombe Grande (Benguela), Idaci Ferreira des-
creve exaustivamente as experiências dos grupos comunitários, que trabalham de forma
voluntária, contribuindo com o seu esforço e os seus recursos para alcançarem os seus
objectivos. A autora conclui que apesar de não estarem ainda consolidados, os grupos estão
a promover dinâmicas participativas, a fomentar novas formas de diálogo, a influenciar
a administração local, enfim, a resolver os seus problemas concretos — e a ganhar poder.
Apesar da sua acção localizada, eles parecem possuir um potencial “vibrante” para me-
lhorar a qualidade da democracia e da cidadania em Angola (Ferreira, 2007).
Tendo por base a minha própria experiência de campo, posso referir várias outras or-
ganizações que, a nível central e provincial, baseiam a sua prática na acção voluntária
— por parte de todos ou de muitos dos seus membros — de defesa de causas como o
ambiente, a luta contra o SIDA, os Direitos Humanos, a educação cívica, procurando
influenciar políticas e práticas públicas (e.g. Juventude Ecológica, FOJASIDA – Fórum
Juvenil de Apoio à Saúde e Prevenção da Sida, SOS Habitat, Centro Cultural Mosaiko,
OPSA – Observatório Político e Social de Angola, e a própria ADRA). As organiza-
ções locais e comunitárias de vários pontos do país estão a desempenhar um papel
importante do ponto de vista económico (e.g. acesso ao crédito ou comercialização
de gado), social (acesso e fornecimento de serviços sociais básicos) ou institucional
(participação em conselhos de concertação e fóruns com a administração do Estado).
Em alguns municípios, as associações integram-se em uniões independentes, apesar
da pressão governamental para que se subordinem à Confederação de Associações e
Cooperativas Agropecuárias – UNACA (e.g. os casos do Cubal e Cáala).
O crescimento das organizações comunitárias é demonstrado quando uma comunidade
move uma acção judicial contra o governo, por se julgar prejudicada com a ocupação
de terrenos para um investimento público (como aconteceu na província do Huambo),
ou quando um consórcio de associações exige participar na avaliação técnica das ONG
que as apoiam, prática que vem sendo cada vez mais frequente.
Estas mudanças são fruto de dinâmicas locais e da ajuda prestada por algumas ONG,
que na sua acção fornecem serviços, promovem direitos (de vários tipos), reforçam
capacidades, facilitam o acesso à informação, fazem lobby e advocacia. Utilizando
metodologias participativas, estabelecem relações horizontais com as organizações
comunitárias e contribuem para a sua autonomia e auto-estima, constituindo causa
e consequência da construção de capacidades. Num país em que por tradição as re-
lações entre os “centros” e as “periferias” são de carácter vertical e impositivo, isto
representa uma mudança de grande significado. Por outro lado, a acção de influência
política por parte de algumas ONG é alimentada e legitimada pela sua relação com
as organizações comunitárias.
Fernando Pacheco g Sociedade Civil em Angola: Ficção ou Agente de Mudança? 119

As referidas posições críticas e cáusticas em relação às ONG, devem ainda ser contra-
riadas relembrando que, para além da crucial acção humanitária que desempenharam
durante as piores fases do conflito armado em Angola, ajudando a salvar milhões
de pessoas da morte pela fome e pela doença, as ONG continuaram depois da paz a
prestar importantíssimos serviços públicos, desde a saúde à educação, ao saneamento,
à segurança alimentar, entre muitos outros.
Deve-se igualmente ter em conta o contributo da sociedade civil em geral e das ONG
em particular para o processo de democratização em curso, podendo-se a este nível
destacar várias áreas de actuação. A primeira diz respeito à contribuição dada para a
conquista da paz e para uma mudança progressiva nos modos de produção do político,
provocando a ruptura da bipolarização — entre os dois grandes partidos, UNITA e
MPLA — que caracterizou a cena política angolana praticamente desde 1975 (Pesta-
na, 2003); uma segunda concerne ao desenvolvimento das reflexões teóricas sobre a
democracia (em dimensões para além do formal) e sobre a cidadania (no sentido subs-
tantivo), mais avançada do que a dos partidos políticos; em terceiro lugar, destaca-se
o papel decisivo na mudança operada em Angola na promoção e defesa dos Direitos
Humanos e da cidadania, na defesa dos direitos das mulheres e de um equilíbrio de
género, na construção de uma cultura democrática e de um espaço público com mais
qualidade, na educação cívica dos cidadãos e na influência sobre algumas políticas
públicas em domínios como a pobreza, as terras, a imprensa, a descentralização e a
educação, entre outros; por último, devemos referir o fomento da participação e do
pluralismo de ideias, a construção e reforço de capacidades de grupos e organizações
e a promoção de valores como a reconciliação, a tolerância e a construção de consensos
sobre os grandes desafios nacionais (Robinson & Friedman, 2005).
O esforço da sociedade civil e o seu contributo são tanto mais importantes quanto ocorrem
num contexto de vários constrangimentos, como a ainda existente cultura política de autori-
tarismo, a gestão patrimonial do sistema político-económico, a fragilidade do empresariado
nacional e o excessivo peso do sector informal na economia (Messiant, 2007).

3 - Cidadania e Participação vs Dificuldades de Separação entre Espaço


Cívico e Político
Não se pode, na minha perspectiva, analisar a questão da sociedade civil em Angola
sem relacionar com cidadania. Esta necessidade torna-se mais pertinente pelo facto
de as lutas pela cidadania no nosso país terem sempre ocorrido em paralelo com as
lutas pela independência (anti-colonial) e pela paz (fim da guerra civil). Como diria
José Bengoa, sem cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres não é possível a
construção de uma democracia participativa e substantiva, de uma democracia que se
refere ao processo de conquista e aprofundamento da liberdade dos cidadãos perante
o Estado, de respeito pelas diferenças culturais no seio da sociedade e de afirmação de
valores como a justiça, a solidariedade, o reconhecimento e a auto-determinação, enfim,
de uma democracia com uma ampla participação dos cidadãos (Bengoa, 1987).2
Embora a ideia de cidadania seja hoje praticamente aceite como universal, o seu sig-
nificado e o seu exercício não o são, particularmente na perspectiva dos excluídos. A

2
A democracia substantiva de Bengoa corresponde à democracia de alta intensidade de que fala Boaventura de
Sousa Santos (2002 e 2003).
120 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

teoria clássica liberal, que reconhece os direitos cívicos e políticos dos cidadãos como os
“verdadeiros” direitos — porque promovem a liberdade dos indivíduos para agirem — é
hoje desafiada pela ideia de que são os direitos económicos, sociais e culturais, que dão
substância aos primeiros, principalmente quando se trata de pobres e marginalizados
(Kabeer, 2005). A experiência vivida em Angola parece indicar que estas diferentes ca-
tegorias de direitos são interdependentes e o seu equilíbrio conforma o melhor escopo
para uma cidadania responsável. A cidadania deve ser vista, pois, como um conjunto
de direitos e deveres conferidos por Lei — tão amplos quanto possível —, mas também
como o exercício desses direitos e deveres de acordo com as condições existentes.
Hoje parece ser crescente em Angola, perante a fragilização das instituições públicas
e o descrédito dos partidos políticos, a necessidade de segmentos significativos dos
cidadãos participarem na solução dos seus problemas, na vida pública e na definição
das políticas do país. Tal necessidade é mais significativa quando se actua a nível
local, junto das comunidades, nas comunas e municípios. Com efeito, é a nível local
que encontrarmos instituições com as quais a maioria dos cidadãos mais facilmente
se identifica, social, económica e culturalmente (Pacheco e colaboradores, 1998).
Em parte como resultado do trabalho e da influência que as OSC vêm exercendo ao
nível comunitário, de base, a administração do Estado está a tentar reestruturar-se a
nível local, na base da nova legislação sobre a organização das Administrações Locais
do Estado – ALE. Esta legislação insere elementos inovadores, como a possibilidade
de gestão local de uma parte do orçamento e dos investimentos e a participação de
cidadãos nos novos conselhos de auscultação e concertação a nível das comunas e
municípios, através de OSC locais. No entanto, as ALE são ainda estruturalmente
frágeis, não têm poder para tomar decisões e têm uma capacidade muito limitada para
prestação de serviços aos cidadãos. Estes factos, aliados ao fraco desenvolvimento da
economia local, explicam, na prática e em grande medida, os actuais níveis de pobreza
e a ainda fraca participação alargada dos cidadãos nestes processos.
Nesta situação, várias ONG definem como foco principal e prioritário da sua acção a
promoção da participação dos cidadãos na discussão e solução dos seus problemas,
visando, na linha de Paulo Freire, um processo de consciencialização que permita
entender que, mais do que necessidades, as pessoas têm direitos e que é essa cons-
ciencialização que lhes conduz ao caminho da cidadania (Freire, 2001). O apoio ao
reforço de capacidades de organizações comunitárias que actuam junto dos cidadãos
torna-se, assim, uma questão central de grande alcance estratégico.
É neste contexto que, por exemplo, as OSC têm vindo a estimular e a fomentar a criação
de fóruns locais, onde as comunidades e suas organizações interagem com instituições
públicas. Estes espaços enquadram-se no que alguma literatura anglo-saxónica tem
vindo a designar por new democratic spaces (Robinson & Friedman, 2005), ou seja, espa-
ços de participação e de oportunidades para os cidadãos deliberarem sobre assuntos
de natureza e interesse comuns, que tanto podem ser a satisfação de necessidades
sociais e económicas, como o reconhecimento de direitos (sobre a terra e outros) ou
a questão das eleições, o que dá uma dimensão política ao debate. Como em Angola
a discussão política é restringida aos espaços de “democracia formal”, com pouca
ligação com a população, as OSC desempenham uma importante função política e
democrática quando proporcionam aos cidadãos uma esfera pública independente,
fora do controle do Estado, de associação e participação, onde eles podem manifestar
as suas opiniões e prioridades (Roque & Shankland, 2007).
Fernando Pacheco g Sociedade Civil em Angola: Ficção ou Agente de Mudança? 121

No cumprimento deste seu papel cívico, mas igualmente político, é natural que as
OSC se confrontem, mais cedo ou mais tarde, com dificuldades em delimitar as fron-
teiras entre a política partidária e as políticas públicas. Num país como o nosso, em
que a cidadania foi forjada em paralelo com a luta pela independência, insisto, essa
dificuldade é ainda maior. Além disso, nós não conseguimos estabelecer a fronteira
entre politics (política partidária) e policy (política pública). É natural, pois, que na sua
actuação, as instituições públicas e algumas OSC sintam dificuldades em estabelecer
tal distinção. No entanto, essas dificuldades não podem de modo algum justificar a
postura repressiva e autoritária de algumas instituições governamentais, tal como
aconteceu em Julho de 2007, quando algumas ONG nacionais e estrangeiras foram
ameaçadas com processos de “ilegalização”, com o argumento de que se estariam a
imiscuir em assuntos políticos e a extravasar o seu objecto social.
Tais atitudes, por parte do governo, não são democráticas e foram combatidas pratica-
mente por toda a sociedade. Não se pode sustentar o argumento absurdo de que as OSC
— que tanto têm contribuído para o processo de transição para a democracia e para a
estabilidade social —, devem agora abster-se de contribuir para a defesa dos direitos dos
cidadãos e para a definição de políticas públicas. Existem cidadãos que não se revêem
na política partidária, mas que ainda assim querem e têm o direito de participar na vida
pública. Nestes casos as OSC e o espaço cívico são a alternativa legítima e viável.

4 - O Potencial de Mudança das OSC e suas Limitações


Para além de todos os constrangimentos estruturais e conjunturais relacionados com o
próprio sistema político, sua lógica de funcionamento e características do regime, o po-
tencial de mudança das OSC está, ainda, condicionado por limitações que se encontram
no seio das próprias OSC e que devem, antes de mais, ser ultrapassadas pelas próprias
organizações em termos de práticas organizativas, posturas e estratégias de acção.
Em primeiro lugar, as OSC devem fazer uma auto-análise e perceber que, muitas delas, pa-
decem das mesmas insuficiências e vícios usualmente apontados às instituições do Estado,
como o défice de democracia interna, o autoritarismo, as dificuldades de questionamento
das chefias, a falta de transparência e responsabilização, a corrupção. Estas insuficiências
poderão ser ultrapassadas com a prática e a convivência com metodologias contempo-
râneas já tornadas universais e com o reforço de capacidades de que algumas delas têm
beneficiado. Estes programas têm vindo a ser incrementados de há uns anos a esta parte
e começam a dar resultados, mas é preciso que sejam intensificados e generalizados.
Em segundo lugar, as OSC devem reflectir sobre o seu papel na sociedade e construir
uma nova visão para o desenvolvimento, devem voltar-se mais para as comunidades
com quem trabalham no sentido de as auscultarem e questionarem, para melhor
definirem a sua estratégia própria e o seu rumo, de uma forma sustentada. A expe-
riência que a ADRA tem nesta matéria é relativamente vasta, tentando implementar
estes processos de reflexão alargada, mas ainda há casos pelo país fora onde tal não
acontece. O Fórum para o Desenvolvimento Comunitário da Catumbela, por exemplo,
defende que o seu objectivo é o de contribuir para o desenvolvimento da Catumbela,
mas dentro da organização nunca se reflectiu sobre o que significa “desenvolvimento”
no contexto dessa comuna, nem tal foi colocado à reflexão no seio da comunidade. A
criação do pólo industrial da Catumbela pode, por exemplo, ser bastante atractivo pela
criação de empregos, mas pode também inviabilizar a produção de milho e feijão de
122 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

muitos produtores familiares e assim alterar o equilíbrio sócio-económico da comuni-


dade. Este tipo de questões e processos de reflexão/acção necessitam de ser colocados
em prática, com profundidade e de forma alargada, para que se possa efectivamente
contribuir para o desenvolvimento das comunidades.
Em terceiro lugar, realço a necessidade de se manter a pluralidade e a multiplicidade
no seio da sociedade civil, recusando a homogeneização da representatividade. Uma
das maiores fraquezas apontadas às organizações da sociedade civil angolana é o
défice de capacidade para articularem posições comuns em plataformas negociais. O
argumento apontado é a falta de uma representação que seja capaz de dialogar, nego-
ciar, influenciar, enfim, interagir com o governo ou com as agências internacionais. No
entanto, há que perguntar de quem é, afinal, o interesse na organização de veículos de
articulação como as chamadas “plataformas”? A resposta não pode ser linear, pelas
vantagens que os mecanismos de representação oferecem, mas parece-me claro que o
governo e as referidas agências valorizam bastante a vantagem que para si significa
terem um interlocutor único. Para além do mais, uma grande plataforma central/
nacional exige um certo nível de capacidade organizacional e capacidade de obter
a confiança da esmagadora maioria das OSC, de forma a viabilizar a acção colectiva
representativa, condições estas, que no contexto Angolano, ainda não existem.
Para além das naturais diferenças de pontos de vista, existe também uma grande falta
de confiança por parte das organizações nas províncias nos mecanismos e estruturas
representativas das suas posições, receando ser dominadas pelas organizações de
Luanda. Com efeito, o modo como o FONGA — Fórum de ONG Angolanas — foi
concebido e actua, mostra uma tendência para a concentração e centralização do seu
poder em Luanda. Quando se pretende que este organismo tome posições sobre ma-
térias do foro político e social, não se tem em conta que não tem legitimidade para o
fazer em nome da sociedade civil de todo o país.
Por outro lado, há que ter em consideração que uma das maiores ameaças ao desem-
penho da sociedade civil é o que se pode chamar de “vanguardismo”, muitas vezes
apontado como mal exclusivo dos partidos marxistas-leninistas, mas que acaba por ser
uma tentação organizacional universal, principalmente em ambientes como o nosso,
em que as desigualdades são tantas, tão grandes e tão variadas. Mesmo pessoas que
sustentam processos de efectiva democratização têm, frequentemente, a tentação de
assumirem posições de liderança sobre determinados assuntos sem a legitimidade
requerida, sem terem em conta se isso é o desejo das outras OSC que pretendem
representar e sem analisarem as consequências de tais actos na vida das restantes
organizações e, menos ainda, na vida das comunidades.
Um dos maiores atractivos da sociedade civil é, exactamente, a ausência de lideranças
vanguardistas que possam, de forma capciosa, falar em nome de cidadãos que não
tenham as mesmas oportunidades de fazer ouvir as suas vozes. A história contempo-
rânea está carregada de tristes e por vezes dramáticos exemplos do que representa-
ram, e ainda representam, as vanguardas organizacionais e os líderes iluminados, os
“chefes” de quem tudo depende e a quem todos supostamente devem tudo. Ninguém,
na sociedade civil, pode pretender representar a sociedade no seu todo, mas apenas
pequenos segmentos dela. Todos devem poder exigir, de forma autónoma, que os
direitos dos cidadãos consagrados na Lei Constitucional sejam assegurados e respei-
tados e, se assim for, já estaremos a dar um enorme contributo para a democratização
da nossa sociedade.
Fernando Pacheco g Sociedade Civil em Angola: Ficção ou Agente de Mudança? 123

5 – O Novo Modelo de Desenvolvimento Económico e Político e suas


Insuficiências
Tirando partido da actual conjuntura económica internacional favorável – alta do preço
do petróleo — o governo está a implementar uma estratégia de desenvolvimento econó-
mico, cujas linhas gerais podem ser encontradas num documento proposto pelo MPLA
à sociedade angolana em 20 de Junho de 2007 — a Agenda Nacional de Consenso.
Este documento propõe um modelo de desenvolvimento assente na criação de capital
fixo (infra-estruturas), capital financeiro (bancos e seguros numa primeira fase, merca-
do de capitais numa segunda fase), capital humano (científico e tecnológico) e capital
social (uma sociedade civil forte derivada do crescimento económico, da estabilidade
política e macroeconómica).
Esta abordagem do desenvolvimento parece, à primeira vista, atraente, pois abrange
componentes económicas, sociais e humanas, numa perspectiva integradora. Porém,
várias insuficiências e críticas podem ser apontadas a este modelo, para além de sérias
dúvidas quanto às possibilidades de atingir os seus objectivos.
Primeiro, a aposta num modelo de acelerado crescimento e de modernização da eco-
nomia, com forte ênfase nas infra-estruturas, foi precisamente o modelo seguido por
vários países africanos nos primeiros anos de independência e que resultou em vários
fracassos. De um modo geral, percebeu-se naquelas experiências que a lógica rendeira,
assumida desde cedo pelo Estado pós-colonial, entrou em contradição e subordinou a
lógica de produção capitalista ou Socialista, consoante os casos, acabando por não dar
os resultados esperados em termos de desenvolvimento económico. Actualmente, num
contexto de liberalização, a interferência do Estado na gestão económica seria justifi-
cável, nesta primeira fase de transição, pela necessidade de criação de capital físico e
humano de base e de regulação do mercado num período de transição. No entanto, o
que se assiste efectivamente é à adaptação e sobrevivência da lógica rendeira à tran-
sição para o multipartidarismo, com aproveitamento pessoal do património público
por parte de um círculo muito restrito de pessoas ligadas ao poder. Como seria de
esperar, as práticas governativas de tipo clientelar e patrimonial não desapareceram
com o simples advento da economia de mercado e do multipartidarismo.
A assumpção de uma diferente abordagem ao desenvolvimento implicaria uma profunda
transformação do actual sistema e lógica rendeira (baseada na crescente renda petrolífera)
num sistema com uma lógica produtiva (Carneiro, 2004). Contudo, o peso do petróleo na
economia continua a ser esmagador e a facilitar processos clientelistas e os avanços
— pouquíssimos — na agricultura, replicam a lógica patrimonial de distribuição dos
recursos, com atribuições de vastas extensões de terras agrícolas a pessoas ligadas às
elites governativas, sem ter em conta critérios de capacidade efectiva da sua utilização
adequada. Em suma, a economia angolana continua a marginalizar a maioria dos cida-
dãos, afastados dos benefícios clientelistas e assolados pelos altos níveis de desemprego
e sub-emprego e sem grandes alternativas para além do sector informal.
Em segundo lugar, os progressos na reabilitação e construção de infra-estruturas come-
çam a levantar sérias preocupações. Para além dos custos extraordinariamente eleva-
dos das obras, levantam-se críticas, que se confirmam na prática, quanto à qualidade
e durabilidade dos empreendimentos e em relação ao excessivo peso das empresas
estrangeiras e de trabalhadores estrangeiros na execução das obras, deixando-se de
124 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

lado os trabalhadores angolanos, perdendo-se assim uma oportunidade de diminuir


a taxa de desemprego e de preparar técnicos, quadros e mão-de-obra angolana. De
igual modo se critica a degradação do sistema de ensino a todos os níveis, contribuindo
para a falta de formação de quadros angolanos em quantidade suficiente para fazer
face às necessidades de crescimento da economia e do desenvolvimento do país. O
investimento em capital fixo está, portanto, a fazer-se sem o devido investimento
paralelo na formação de capital humano.
Em terceiro, temos a questão da descentralização. Apesar de alguns progressos em
matéria de legislação, é preocupante a falta de poder de decisão a nível dos municípios
sobre a concepção, negociação, contratação, monitoria e avaliação dos empreendimen-
tos, o que também não favorece a responsabilização e o crescimento das instituições
a nível local, que se revelam muito débeis no seu funcionamento e na capacidade de
prestação de serviços aos cidadãos. Esta debilidade do poder local prejudica, de sobre-
maneira, as OSC que aí desenvolvem os seus projectos, tendo acrescidas dificuldades
em se afirmarem e estimularem a participação social alargada dos cidadãos na vida
pública. Do mesmo modo, o empresariado local enfrenta inúmeras dificuldades para
emergir e crescer longe dos centros de decisão e da administração do Estado, não
podendo funcionar como um veículo de desenvolvimento alternativo ao petróleo por
via do aumento da produção agrícola e industrial provincial.
Em resumo, o modelo económico proposto apresenta bastantes deficiências e desequi-
líbrios, uma vez que a preocupação com a modernização (na qual as infra-estruturas
ocupam o lugar cimeiro e esmagador) sobrepõe-se a todas as outras dimensões. Ao
contrário do proposto, um modelo de desenvolvimento sustentável deve combinar
modernização com direitos cívicos, políticos, económicos, sociais e culturais e equilibrar
participação alargada com mobilidade social, respeito pela diversidade de identida-
des, valores culturais e ambiente (Bengoa, 1987). O modelo governamental parece
encerrar uma tentativa de regresso a um passado normalmente materializado no ano
de referência económica de 1973 (o melhor ano da economia angolana), antes da in-
dependência. Contudo, como diria a historiadora Conceição Neto, por mais urgente
que seja a necessidade de reabilitar infra-estruturas e pôr a funcionar os serviços, a
reconstrução não pode significar voltar a pôr as coisas como estavam antes, por duas
razões fundamentais: porque na história das sociedades jamais se volta atrás e se repe-
tem as condições do passado e, porque, de facto, ao contrário do que muitos referem,
nunca tivemos um “país modelar” a nível económico, social ou político. O período
colonial sempre se caracterizou por acentuadas e graves situações de injustiça sócio-
económica e restrições de direitos; o regime pós-independência foi progressivamente
abandonando os inicialmente prometidos direitos económico-sociais e reforçando o
centralismo, o monolitismo, o autoritarismo, a abordagem top-down, a falta de transpa-
rência e de prestação de contas, as dificuldades em promover a participação popular,
a ingerência do partido no poder na administração do Estado, entre outros aspectos
negativos (Neto, 2003).
Do ponto de vista político, o modelo agora proposto (o processo de democratização de
tipo Ocidental) também não teve em conta a realidade e as especificidades do país. O
processo de transição chegou a Angola com a chamada terceira vaga de democratiza-
ção, que começou a atingir vários países africanos a partir do final dos anos oitenta.
A sua chegada traduziu-se pela introdução do multipartidarismo e da economia de
mercado no início da década de noventa, enquanto modelo de transformação “su-
Fernando Pacheco g Sociedade Civil em Angola: Ficção ou Agente de Mudança? 125

gerido” aos angolanos como solução para os problemas que os afectavam — guerra
e subdesenvolvimento. Foi uma “sugestão” que implicou a adopção de um sistema
político-económico liberal, Ocidental, numa altura em que noutros continentes este
modelo já padecia de graves problemas, nomeadamente a representatividade e a
participação (Santos, 2002). Se assim era noutros locais, onde aquele tipo de sistema
beneficiava de todo um passado de construção endógena das sociedades que o adop-
taram e desenvolveram, mais cuidadosa deveria ser a sua transposição e adaptação
às realidades africanas.
No entanto, tal adaptação cuidadosa em África não sucedeu e Angola não foi excepção,
não se levando em conta a sua especificidade sócio-cultural, nem a possibilidade de se
adoptarem ou adaptarem outras fórmulas que considerassem aspectos essenciais para o
país, como a necessidade de construção da ideia de nação (ainda frágil), a necessidade
de participação efectiva dos cidadãos na vida política nacional por outras vias que
não somente a dos partidos políticos, a necessidade de representação da diversidade
cultural ou regional, ou ainda a possibilidade de se respeitarem e aproveitarem as ex-
periências de gestão da vida comunitária nos meios rurais e peri-urbanos. Por outras
palavras, não existiu a preocupação com uma possível “angolanização” da democracia
(Lopes, 1994; Pacheco, 2005).
Formas tradicionais de participação dos indivíduos na vida das suas comunidades,
não foram aproveitadas nem tidas em conta. Caso aproveitadas, essas formas, ou pelo
menos alguns dos seus mecanismos, poderiam ter facilitado a adaptação e adesão ao
novo modelo, como algo que também encontrava raízes na tradição das comunidades,
facilitando e estimulando deste modo a participação dos cidadãos na vida pública por
via das novas instituições e procedimentos democráticos. Um exemplo destas formas
tradicionais é o Onjango, que consiste numa instituição muito comum em meios rurais
angolanos e de fundamental importância na gestão da vida comunitária, na modera-
ção dos poderes de liderança, na resolução de conflitos, na transmissão de valores aos
jovens3. Com a introdução de alguns factores de correcção — como, por exemplo, um
maior equilíbrio etário e de género — esta e outras formas tradicionais de gestão da vida
comunitária poderiam melhorar e aumentar o nível de participação democrática.
Uma outra consideração importante, ao nível da adaptação do modelo democrático às
realidades africanas e angolana em particular, teria sido a possibilidade de se começar o
processo eleitoral pelo nível local, que a meu ver teria vantagens óbvias, como uma maior
partilha do poder político-administrativo entre o nível central e local, uma maior apro-
priação das políticas públicas por parte dos cidadãos, uma maior e melhor aproximação
daquelas políticas e do poder central à realidade da vida das comunidades e um crescente
e progressivo apoio às eleições gerais, que viriam numa segunda fase, assegurando-se
assim uma mais ampla participação e articulação da realidade local e nacional.

Conclusão
É indubitável o contributo das OSC angolanas para o processo de democratização do
país e este esforço é tanto mais meritório quanto tem sido dispendido num contexto de
muitas adversidades e num relativamente curto período de tempo. No entanto, dada
a complexidade do contexto angolano, é limitada a possibilidade da sociedade civil

3
Onjango é uma palavra de língua Umbundu, mas noutras línguas angolanas encontram-se igualmente designações
para o mesmo tipo de instituição: como mbanza (Kimbundu ou Kicongo), cota (ou tchota, em Tchokwe).
126 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

vir a influenciar mudanças de fundo, ou estruturais, sendo que esse tipo de mudanças
só pode ocorrer no longo prazo.
Mudanças mais profundas na sociedade devem começar por mudanças a nível dos
comportamentos de cada indivíduo e que se traduzam em mudanças de funciona-
mento da sociedade como um todo. Num contexto tão complexo como o angolano
isto passa pela superação de traumas e complexos provocados pelo colonialismo, pelo
racismo, pelo regionalismo, pela exclusão social, pela guerra, pela dependência, para
além da percepção de que é preciso acabar com a mentalidade e os comportamentos
clientelares e neo-patrimoniais de cada um. Para que existam mudanças tem que existir
consciencialização profunda da sua necessidade e vontade por parte da grande maioria
da população. A nível central, da estrutura político-adminitrativa e partidária, a mu-
dança parece mais difícil, uma vez que a lógica rendeira procura auto-reproduzir-se
nos seus mecanismos de dimensão macro, impedindo uma transformação do sistema.
De acordo com Chabal, as mudanças formais de regime não se traduzem, em geral,
em reformas políticas sistemáticas. Com poucas excepções, o que predomina é a con-
tinuação das políticas neo-patrimoniais (ou rendeiras), que são incompatíveis com o
desenvolvimento sustentável (Chabal, 2006).
A curto e médio prazo, a estratégia para a mudança deve centrar-se no nível local, das
comunidades de menor dimensão, porque aí é mais clara a consciência dos cidadãos
para a necessidade e possibilidade de se conquistarem espaços de cidadania, autonomia
e poder, que, apesar de relativamente limitados na sua dimensão e alcance quando
considerados a nível nacional, representam enormes conquistas para as vidas daqueles
que as alcançam no nível local. A oportunidade oferecida pelo processo de descen-
tralização poderá, se bem aproveitada, favorecer este tipo de mudança local, por via
de uma maior interacção institucional entre OSC e instituições públicas, estimulando
uma participação mais alargada. A génese desse processo vai, em parte, acontecendo
através dos novos espaços democráticos — fóruns ou quadros de concertação e con-
selhos de auscultação e concertação — que começam a emergir um pouco por todas
as províncias e cujo desenvolvimento deve ser estimulado, apoiado e reforçado .
A mudança deverá resultar da efectivação de uma política de pequenos passos, que
parece estar ao alcance das organizações angolanas, que terão elas próprias de igual-
mente promover mudanças no seu seio, nas suas práticas e estruturas organizacionais,
adaptando-se à realidade, anseios e expectativas das comunidades. Não se pode
pretender aplicar a Angola as experiências de outras latitudes sem uma criteriosa
avaliação do nosso contexto e das nossas capacidades.
Em suma, um desenvolvimento democraticamente sustentável deve aliar a moderniza-
ção do país à melhoria das condições e do nível de vida da generalidade da população,
à ampla participação dos cidadãos na tomada de decisões públicas e ao respeito pela
diversidade de valores e identidades culturais. Parafraseando o poeta espanhol An-
tónio Machado, defendo que o caminho para a democracia, para o desenvolvimento
e para uma sociedade mais justa, faz-se caminhando — trabalhando — nesse sentido,
e as OSC sem dúvida nenhuma que têm dado um valiosíssimo contributo para que
se alcance esse objectivo. No entanto, deve ter-se igualmente em conta as dinâmicas
de cada contexto específico e perceber que a mudança não poderá ocorrer ao ritmo
das vontades de outros, devendo aqui ser lembrada a expressão malembe malembe da
língua Kikongo, que significa “devagar e bem”.
Fernando Pacheco g Sociedade Civil em Angola: Ficção ou Agente de Mudança? 127

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129

As condicionantes Internas
e Externas ao Desenvolvimento
da Sociedade Civil e da Democracia

Kinsukulu Landu
Kama
Grémio para o Ambiente,
O processo de democratização efectiva da sociedade an-
golana tem encontrado inúmeras vicissitudes e muito se
tem exigido de actores como os partidos políticos e, sobretudo,
Beneficência e Cultura – a sociedade civil, depois de se ter constatado a ineficácia dos
Grémio ABC partidos políticos. O presente texto procura abordar a questão
das condicionantes do desenvolvimento da sociedade civil ten-
do em consideração a dimensão interna e externa do problema.
Neste sentido, começamos por debater aquele que considero
ser um dos principais problemas internos ao desenvolvimen-
to das Organizações da Sociedade Civil (OSC) — a falta da
efectiva implementação de regras básicas para o bom funcio-
namento de um Estado de Direito (capítulo 1) e a necessidade
de uma reflexão e debate público sobre o tipo de estruturação
do Estado (capítulo 2), seguindo-se a apresentação de uma
possível alternativa ao modelo de excessiva centralização e
concentração do poder político (capítulo 3). O capítulo 4 abor-
da a dimensão externa do problema, analisando as relações
entre as OSC nacionais e a comunidade internacional (desde
as organizações inter-governamentais às não governamentais)
no que concerne a dois dos mais recentes temas desta relação
— a pressão externa em torno das plataformas da sociedade
civil e a responsabilidade social das empresas.
1 - A Falta de Separação de Poderes como
Condicionante da Sociedade Civil e da Democracia
Os problemas que se colocam à afirmação da sociedade ci-
vil em Angola são vários, conforme analisados em muitos
outros textos deste livro. Na minha perspectiva, antes de
abordarmos as especificidades e os obstáculos concretos que
no dia-a-dia se colocam às OSC, devemos começar pelo pro-
blema de base e que constitui o condicionante mor de todos
os outros — a efectiva implementação de regras básicas para
o bom funcionamento de um Estado de Direito. Estas regras
implicam, antes de mais, a velha e simples (mas ainda por
implementar) máxima da separação de poderes e efectiva
institucionalização do Estado.
Como todos sabemos, os poderes executivo, legislativo e ju-
dicial, permanecem misturados e interpenetrados, existindo
inúmeras influências do poder político sobre o sistema judicial
e uma muito débil institucionalização do Estado, impedindo
130 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

a clara separação dos cargos públicos da pessoa específica que os ocupa. A dimensão
pública e privada permanece confusa na maioria dos cargos e instituições públicas e o
aparelho de Estado é gerido com base na personalização do poder ao invés de se reger
pela aplicação geral da Lei abstracta que se sobreponha aos indivíduos específicos que
ocupam esses cargos.
Em 2002 quando lançámos a coligação pela reconciliação, transparência e cidadania, cria-
da no limiar do fim da guerra, fizemos uma análise da legislação angolana em conjunto
com vários juristas e concluímos não existir independência do sector da justiça. Entre
outros casos, aquele que se afigurava mais gritante respeitava à Procuradoria-Geral da
República e ao Tribunal Supremo. A Lei não assegura a independência daqueles dois
órgãos, existe uma dependência política (para além da usualmente referida dependência
pessoal) do Procurador-Geral e do Tribunal Supremo para com o Presidente da Repú-
blica. Existem também casos em que a Lei simplesmente não é respeitada pelo poder
político, nomeadamente na actual situação em que o Presidente do Conselho Nacional
Eleitoral é igualmente Vice-Presidente do Tribunal Supremo, ao arrepio da Lei que não
lhe permite acumular cargos públicos.
É preciso assumir que o sector da justiça permanece politizado e politicamente depen-
dente. Não existindo uma justiça independente isso vai-se reflectir em todas as áreas
da vida em sociedade. Nós levantámos a questão em 2002 e esperámos a reacção por
parte do poder político que efectivamente reagiu por via da nomeação das já habituais
comissões de análise que acabam por não ter qualquer outra consequência prática. A
Presidência da República nomeou duas comissões para estudarem o caso, mas até hoje
esperamos em vão por resultados consequentes.
Penso que devemos começar por esta constatação, da não separação de poderes e da
partidarização e personalização das instituições do Estado, se queremos efectivamente
fazer algo para mudar a realidade. Pode parecer uma discussão básica, mas está por fazer
e enquanto não assumirmos esta realidade, todas as outras discussões mais específicas
acerca das suas consequências ficam muito limitadas no seu âmbito.
Se tivermos o cuidado de encetar esta reflexão e discussão, percebemos que a inexistên-
cia daquelas regras básicas de funcionamento de um Estado moderno limitam todas as
dimensões da vida em sociedade, na medida em que afectam, de um modo geral, toda
a eficácia e eficiência do aparelho de Estado. Se o Estado está encarregue da orientação
e gestão da vida em sociedade, nas suas diferentes vertentes, e funciona mal, então,
todas essas vertentes estarão limitadas à partida, nomeadamente o desenvolvimento
económico, político e social. Não podemos esperar uma sociedade civil forte e pujante
no seio de um Estado fraco e minado por todo o tipo de ineficiências e vícios de fun-
cionamento, a começar pela básica separação de poderes e efectiva implementação do
Estado de Direito com normas que propiciem o tipo de sociedade democrática que se
quer construir.
De entre as várias consequências desta realidade está, por exemplo, a tão propalada
“corrupção institucionalizada” ligada à falta de boa governação e transparência. Atrás
destes problemas vêm sequencialmente a pobreza da maioria da população e todas as
injustiças e problemas sociais com que nos debatemos, seja em termos da falta de se-
gurança social para os trabalhadores do mercado informal (que são em cada vez maior
número), seja em termos de degradação da educação, da saúde, da habitação, entre
tantos outros. Mesmo as diversas fragilidades e ineficiências de que se acusa a sociedade
Kinsukulu Landu Kama g As condicionantes ao Desenvolvimento da Sociedade Civil e da Democracia 131

civil têm a sua raiz na falta de um Estado eficaz e eficiente, gerido com base em normas
verdadeiramente democráticas.
Neste momento, a nível nacional e internacional, todos os focos estão apontados para
as eleições e não devemos esperar uma alteração desta atitude nos próximos anos, dado
que vamos ter primeiro as legislativas, eventualmente as presidenciais passado um ano
e depois, possivelmente, as regionais e autárquicas. Quer isto dizer que ao contrário do
que seria necessário, vamos continuar centrados nas discussões da forma e das con-
sequências ao invés das causas e do conteúdo. As eleições em si não vão alterar nada
daquilo que é estrutural ao sistema político-económico angolano. Os problemas de
fundo vão continuar por resolver e não são as eleições, embora importantes, que os vão
solucionar. A comunidade internacional fica satisfeita com a realização das eleições, os
partidos políticos da oposição também, a par de alguma sociedade civil, mas o problema
de fundo passa despercebido ou relegado para um futuro longínquo.
O próprio processo eleitoral está à partida a ser gerido muito aquém daquilo que seria
desejável em termos de regras democráticas e transparentes. Até agora o que existe é
a propaganda governamental daquilo que o governo está a tentar fazer. Do lado dos
partidos políticos da oposição, o mais adequado que se nos apraz dizer é que sofrem de
uma gritante falta de competência no desempenho das suas funções, desde a análise das
grandes temáticas sociais e dos problemas que afligem o eleitorado e as pessoas comuns,
até à incapacidade de compreenderem as estratégias políticas do partido maioritário.
Muitas das vezes não conseguem sequer descortinar que o partido maioritário está subtil
e eficazmente a conduzi-los de acordo com aquilo que mais lhe interessa.
Ao nível da sociedade civil, ainda que a realidade seja um pouco melhor do que a dos
partidos políticos, a situação também não é a mais favorável ao desenvolvimento de
uma sociedade democrática. Para além dos constrangimentos mais explícitos ao traba-
lho das OSC, existe ainda um outro, provavelmente mais poderoso, e que consiste na
auto-censura induzida por várias formas e mecanismos. Uma dessas formas reside no
facto de o Estado continuar a ser o maior empregador e da maior parte dos activistas
ou do pessoal que trabalha nas OSC serem também funcionários públicos, facto que por
vezes os coloca numa posição muito difícil, sobretudo quando assumem determinadas
responsabilidades e posições.
Além do próprio medo que ainda persiste por via da memória das práticas repressivas
do tempo do partido único e das novas ameaças veladas ou explícitas que são feitas a
esses activistas, existe ainda a auto-censura de acordo com aquilo que cada um imagina
serem os limites de crítica aceitáveis para o regime. Cada um estabelece para si próprio
esses limites, mas a verdadeira linha de fronteira entre o tolerado e o punido não é
clara, sendo que também vai depender de muitos factores subjectivos como sejam, por
exemplo, a personalidade e o carácter do/s visado/s nas nossas críticas. Por certo temos
que caso alguém do poder político considere que essa linha foi ultrapassada as conse-
quências vão-se fazer sentir, provavelmente por via até do poder judicial, influenciado
por pressões políticas, facto que nos leva uma vez mais ao problema da partidarização
das instituições do Estado, para além da referida personalização.
O ambiente que existe em Angola e na região (incluindo principalmente os dois Congos e
o Zimbabwe, entre outros casos de menor relevo) é obviamente de restrição às liberdades
e garantias fundamentais, por vezes resultando em constrangimentos induzidos, provo-
cados ou auto-impostos em toda a área de actuação das OSC. Deste contexto resultam
132 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

os principais obstáculos a um maior desenvolvimento das capacidades da oposição e da


sociedade civil e, consequentemente, à capacidade de se realizar uma reforma profunda
das estruturas inibidoras da mudança democrática efectiva — a lógica rendeira do Estado1
com fraca ou nula separação de poderes e forte personalização do poder institucional2.

2 - Necessidade de Reflexão e Discussão Profunda sobre a Estrutura do


Poder Político
Na minha perspectiva, a discussão que está por fazer acerca das condicionantes estru-
turais profundas, inibidoras do desenvolvimento das liberdades fundamentais, deve ter
por base um processo de pesquisa seguida de discussão pública. Existe uma necessidade
premente de entender melhor a sociedade em que vivemos e as suas características que
são geradoras de assimetrias sociais e regionais graves, situações de pobreza extrema
com as quais não podemos pactuar. Estas assimetrias estão naturalmente na base de
sentimentos de injustiça que, ainda que latentes, podem a qualquer momento entrar em
erupção. Quando apesar de processos eleitorais regulares emergem conflitos violentos
no seio das sociedades da região, logo se fala em conflitos pós-eleitorais, mas sem se
perceber a necessidade de compreender as causas profundas dos conflitos. Existe uma
necessidade de entender melhor a nossa realidade para evitar novos conflitos, mesmo
que não sejam conflitos armados poderão ser conflitos sociais graves.
Há necessidade de várias organizações se juntarem (parcerias alargadas) para inves-
tigação e pesquisa sobre a realidade social enquanto enquadramento do processo de
democratização; uma pesquisa que estimule a reflexão e a acção, não só das OSC mas
inclusive e principalmente das estruturas governamentais; um processo que pressione
e influencie políticas públicas adequadas às necessidades da maioria da população.
Angola tem uma tradição de Estado forte em mecanismos autoritários e repressivos,
mas muito fraco em termos de concepção e implementação de políticas públicas viradas
para as necessidades da maioria da população — os pobres.
Penso que existe uma grande necessidade de estimular os fóruns de discussão baseados
em pesquisa e análise de dados da nossa realidade, não se trata do usual brain storming,
mas de dar passos mais ousados em projectos de investigação e pesquisa que devem
juntar as diversas OSC que trabalham com as comunidades no terreno e as instituições
académicas, num processo que deve ser participado pelas comunidades e apoiado por
organizações externas, seja da região, seja de fora da região Austral. Há necessidade de
um envolvimento alargado neste processo. Independentemente das agendas de cada um,
existe a necessidade de levar a cabo estudos sobre a realidade para fundamentarmos a
discussão e a acção com vista a sermos capazes de influenciar as políticas públicas. Não é
preciso que seja uma acção concertada entre todos os actores, podem e devem ser vários
projectos que juntem diferentes organizações, quantos mais melhor, talvez os resultados se
confirmem ou contradigam e isso é benéfico para provocar mais debate e investigação.
Nós fizemos uma pesquisa em 2004 sobre corrupção no país. Procurámos em cinco
províncias, incluindo Luanda, para saber o que as pessoas pensavam sobre as questões
da corrupção e da transparência. De acordo com os resultados do inquérito, os sectores

1
Carneiro, Emmanuel, Especialização Rendeira e Extroversão na África Sub-sahariana – Caracterização e Consequência,
Lisboa, Principia, 2004.
2
In Vidal, Nuno, “Multipartidarismo em Angola”, in Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade (eds.), O processo de
transição para o multipartidarismo em Angola, Firmamento: Luanda & Lisboa, 2006, pp. 11-57.
Kinsukulu Landu Kama g As condicionantes ao Desenvolvimento da Sociedade Civil e da Democracia 133

mais corruptos eram a educação, a saúde e a polícia. Quando apresentámos publicamente


os resultados dessa pesquisa, a primeira reacção das estruturas estatais nos media do
Estado foi de nos tentarem ridicularizar, acusando-nos de não ter competência para fazer
pesquisa nessas áreas. No entanto, o estudo parece ter tido algum impacto, na medida
em que o próprio governo, através do ministério da educação, lançou em seguida várias
peças televisivas condenando a corrupção no sector da educação, exortando os alunos
e os seus familiares a recusarem pagamentos (subornos) aos professores. Também o
Primeiro-Ministro reagiu ao problema levantado, afirmando que a corrupção, a fraude
e a apropriação indevida dos bens públicos deveria ser punida.
Naturalmente que temos consciência de que a primeira reacção dos órgãos do Estado
a este tipo de campanha é o de adoptarem um discurso em conformidade com aquilo
que a comunidade internacional gosta de ouvir e aquilo que seria correcto do ponto de
vista de uma minoria da opinião pública nacional que é letrada, sabendo-se, no entanto,
que entre aquele discurso e a prática vai uma imensa distância. A prática das instituições
e organismos de Estado não segue de todo o discurso dos nossos dirigentes, indepen-
dentemente da maior ou menor capacidade retórica ou peso político de cada um deles.
A utilidade dessas afirmações reside na possibilidade de poderem ser depois utilizadas
por nós, OSC, nas nossas próprias campanhas, citando altas individualidades do Estado,
no sentido de conseguir alguma pequena mudança nas práticas, embora tenhamos que
admitir que as mudanças por nós alcançadas têm sido muito poucas.
O mesmo se pode dizer das diversas campanhas que têm surgido sobre Direitos Huma-
nos, que acabaram essencialmente por provocar reacções no seio da classe governante, a
começar pelos discursos politicamente correctos do Presidente da Assembleia Nacional
no interior e no exterior do país a respeito da necessidade do combate às violações dos
Direitos Humanos, embora sem quaisquer efeitos práticos junto dos organismos do Esta-
do que são os principais violadores destes direitos, nomeadamente as forças policiais.

3 - Participação e Empowerment a Nível Local como Factor de Mudança


Tendo em conta a actual estruturação do sistema político e económico e da conjuntura
internacional, penso que não se poderão esperar grandes mudanças por via das próximas
eleições legislativas e presidenciais ou ainda menos por via de qualquer processo interno
de renovação no seio do partido no poder. O actual sistema está estruturado nas rendas
petrolíferas que alimentam uma economia dita rendeira e que tem sido estudada por
vários autores. Independentemente de se viver agora um período de multipartidarismo
que substituiu o anterior mono-partidarismo, a essência rendeira não se alterou e num
período de alta continuada do preço do petróleo até se reforça3.
O sistema político-administrativo é fortemente centralizado e concentrado em Luanda
com mecanismos e esquemas de funcionamento sedimentados desde a independência.
Dificilmente se poderão esperar mudanças a partir do centro, a partir do topo. Menos
ainda se poderão esperar mudanças induzidas a partir de fora, da chamada comunidade
internacional. Num clima de alta de preços no mercado de petróleo e o acesso às novas

3
Carneiro, Emmanuel, Especialização Rendeira e Extroversão na África Sub-sahariana – Caracterização e Consequência,
Lisboa: Principia, 2004; Vidal, Nuno, “Multipartidarismo em Angola”, in Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade,
O processo de transição para o multipartidarismo em Angola, Luanda & Lisboa: Universidade Católica de Angola &
Universidade de Coimbra, 2006, pp. 11-57; Messiant, Christine, “Transição para o multipartidarismo sem transição
para a democracia” in Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade, O processo de transição para o multipartidarismo em
Angola, Luanda & Lisboa: Universidade Católica de Angola & Universidade de Coimbra, 2006, pp. 131-161.
134 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

linhas de financiamento da China e de outros países asiáticos, o governo angolano está


neste momento a viver uma conjuntura internacional excelente, que lhe permite grande
espaço de manobra e de resistir a quaisquer pressões do Norte em favor da boa gover-
nação, transparência, Direitos Humanos, etc.
Contudo, em sistemas políticos rendeiros que se estruturam essencialmente nos ren-
dimentos de alguns recursos naturais com forte procura internacional, existe sempre o
perigo real da queda abrupta dos preços. No caso de Angola, o petróleo está em alta,
mas não é certo que se mantenha nessa alta eternamente, ou sequer que a sua procura se
vai manter nestes níveis para sempre. Alternativas energéticas, inovações tecnológicas e
alterações da geo-estratégia relacionadas com os recursos podem surgir a médio-longo
prazo, alterando totalmente o actual quadro baseado essencialmente na exportação deste
bem e provocando convulsões graves da ordem social, económica e política. Hoje esse
cenário parece muito pouco provável em relação ao petróleo, mas se tivermos alguma
preocupação em olhar para os ensinamentos da história e uma perspectiva de longo prazo
podemos lembrar-nos de muitos outros produtos cuja procura internacional já foi muito
forte em determinados períodos e que depois caiu, com consequências desastrosas para
os países que estruturavam as suas economias nas rendas desses produtos. Lembro, por
exemplo, o caso do ex-Zaire nos tempos em que o cobre estava em alta nos mercados
internacionais e que a “guerra-fria” fazia de Mobutu um importante aliado do Ocidente
na região Austral em particular e no continente em geral. Aquela conjuntura deu durante
muitos anos uma grande margem de manobra ao regime de Mobutu, permitindo-lhe
proceder a todo o tipo de desmandos e má gestão que mais tarde (até hoje) o país e a
sua população vieram a pagar muito caro com novos conflitos pelo poder e milhares
de mortos, sem que as condições de vida da maioria da população se tenham alterado
em consequência das alterações ao nível do poder político central. Em contextos deste
tipo, novos conflitos sociais podem sempre reemergir mantendo-se uma situação de
desigualdades, assimetrias, pobreza e carências várias.
Quanto a mim, a existir algum factor de mudança terá de ser a nível local e, neste sentido,
a descentralização seguida de eleições autárquicas poderá trazer algum grau (ainda que
limitado) de mudança. A descentralização deve ser abordada tendo consciência que até agora
a ideia que vigora é a da descentralização administrativa, que não inclui a perspectiva da
participação. Para o governo, participação resume-se à consulta de algumas organizações
seleccionadas da sociedade civil; consultou, está concretizada a participação e isso desobriga-
-o de tudo o resto e pode mesmo ignorar por completo os resultados da consulta ou apenas
fazer cedências insignificantes para dizer que de algum modo cedeu à consulta.
Uma descentralização que para além de desconcentração de tarefas possa efectivamen-
te transferir poder de decisão e recursos para o nível local e consiga envolver mais as
populações nas decisões públicas, poderá eventualmente conferir algum empowerment
às comunidades locais, contribuindo assim para a mudança social, económica e política
das regiões e do país.
A mudança só acontecerá com o envolvimento da maioria da população na vida pública,
com a sua integração social, económica e política e com a sua interligação ao mundo exterior.
Se continuarmos a pensar em soluções que cheguem por via de uma elite composta pelos
activistas da sociedade civil nada vai mudar; a ser assim estaremos na mesma a pensar
numas quantas organizações de gente com formação académica e com um certo estatuto
sócio-profissional que vive em Luanda e, como tal, é também e em grande medida uma
elite, não governante, mas ainda assim uma elite em relação à maioria da população.
Kinsukulu Landu Kama g As condicionantes ao Desenvolvimento da Sociedade Civil e da Democracia 135

Aquela elite da sociedade civil deverá assumir um papel estimulador na promoção


da participação das comunidades, para que tenham alguma palavra a dizer sobre as
decisões que afectam a sua vida, mas sem nunca pretender representar essas mesmas
comunidades, falando por elas. Esta parece-me ser a via, é longa, é uma solução que não é
imediata, não é de curto prazo e é mais endógena que exógena e por isso provavelmente
não é atractiva para as organizações internacionais que gostariam de ver a mudança a
ocorrer no imediato e com fórmulas simplistas.

4 – A Sociedade Civil Angolana e a “Comunidade Internacional”


O referido espaço de manobra internacional que detém o governo não significa que a
chamada comunidade internacional nada possa fazer para ajudar à mudança, antes pelo
contrário, deve estimular todos aqueles que se dizem defensores dos Direitos Humanos
para combaterem esse poder acrescido do governo, das elites governantes e dos seus aliados
internacionais. Um poder acrescido que vem da gestão danosa dos recursos públicos.
Existe uma óbvia necessidade de maior articulação entre forças internas e externas na
defesa dos Direitos Humanos, da transparência e boa governação. Sou da opinião que
é preciso criar um plano estratégico de pressão para a mudança que junte uma frente
comum no Norte, porque sentimos que apesar de nos acusarem a nós organizações
nacionais de não sermos capazes de uma maior articulação, o mesmo poderá ser dito
acerca das organizações internacionais em Angola e no exterior.
A este respeito irei aqui abordar dois temas que concernem de sobremaneira ao envolvimento
da comunidade internacional, por um lado a pressão externa em torno das plataformas da so-
ciedade civil e, por outro, a tão em voga questão da responsabilidade social das empresas.

4.1 - Plataformas da sociedade civil: a dimensão interna e externa


Presentemente ouvimos com regularidade um novo discurso da parte dos parceiros
internacionais, de que precisamos de nos articular e especializar em determinada área
de actuação. Contudo, a especialização é também ela um processo que deve ser endó-
geno, primeiro temos de ser generalistas e depois, se sentirmos necessidade, vamo-nos
especializar nas áreas que entendemos necessárias e com os parceiros que consideramos
os mais adequados para o tratamento do tema.
Não concordo com a especialização pura e simples que surge por aconselhamento externo.
Não podemos estar na óptica de que a especialização vai resolver os nossos problemas, isso
apenas serve os interesses externos que encontram financiamento para uma determinada
área de actuação e depois precisam de parceiros nacionais para a operacionalização técnica
e vão à procura de criar parceiros instantâneos se eles não existirem. Os novos parceiros
nacionais são então transformados em simples executores subalternos e subcontratados,
que servem essencialmente os interesses dos parceiros externos e da comunidade doado-
ra, mas não servem os interesses das populações com quem trabalham, nem a propalada
sustentabilidade e reforço da capacidade institucional das OSC nacionais.
Devemos ter uma visão ampla da realidade, especialmente no caso de Angola, com
tantas co-relações a nível sócio-político e económico. Quem for incapaz de ter uma visão
ampla da realidade é apenas capaz de trabalhar no curto prazo e perde-se em detalhes
e pormenores, sem compreender as causas profundas e complexas das questões sociais
com que temos de lidar todos os dias.
136 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Concordo que devemos trabalhar em plataformas regionais e internacionais, mas num


espírito de parceria e não de ingerência e paternalismo das internacionais em relação às
nacionais. Até agora têm existido essencialmente relações de paternalismo e dependên-
cia, as plataformas nacionais encontram dificuldades devido a este tipo de postura das
organizações internacionais, acontecendo que os nossos parceiros do Norte por vezes
vêm e dizem “vocês construam uma coligação” especializada na área x ou y. Havendo
financiamento, logo aparecem organizações a moldarem os seus projectos e objectivos
para os direccionarem para esta nova área, ainda que não fosse esse o seu plano original.
Mais tarde, vem outra organização com financiamentos para uma área diferente e lá vão
as nacionais moldarem-se uma vez mais.
A especialização nem sempre é benéfica, sobretudo quando se trata de uma perspectiva
estanque, sabendo nós que num país como Angola existe uma grande interligação das
diferentes áreas — económica, política e social, em muitos domínios. Essa necessidade
de especialização estanque até pode ser adequada a países ocidentais, mas não em África
e muito em particular em Angola. A título de exemplo, posso referir a coligação à qual
o Grémio ABC pertence — a coligação pela reconciliação, transparência e cidadania;
inicialmente as organizações externas pediram-nos para formarmos uma coligação es-
pecializada e exclusivamente dedicada à transparência, mas nós reunimos e chegámos à
conclusão que isso não era o mais adequado porque considerávamos que, por um lado,
o nosso objecto de actuação era mais abrangente e não se deveria limitar naquele sentido
e, por outro lado, pensámos que a questão da transparência não podia ser abordada de
forma isolada, tendo de ser articulada com a questão da pobreza, da integração social,
da participação e da democracia, ou seja, com a questão da reconciliação nacional e com
a plena cidadania de todos os angolanos.
A coligação pela transparência passou então a abarcar a cidadania e a reconciliação,
para poder ter um âmbito mais vasto e mais adequado àquilo que considerávamos ser
a realidade angolana, mas, repito, nem sempre é assim e na maioria das vezes a vonta-
de externa impõe-se taxativamente. Por outro lado, quando a iniciativa vem do nosso
lado (das organizações nacionais) e surgem projectos de plataformas de organização e
associação a nível nacional, nem sempre encontramos do outro lado (das organizações
internacionais) a abertura necessária para apoiar essa agenda. Em suma, existem toda
uma série de desvios àquilo que seria a agenda das organizações nacionais, seja por
imposição externa seja porque nós próprios não temos força suficiente para conduzir o
processo consoante a definição prévia da nossa própria agenda.
Várias questões importantes têm vindo a ser levantadas pela sociedade civil no seio de
campanhas e alianças alargadas, mas depois não têm o acompanhamento devido por falta
de meios, capacidades e tempo para as OSC acompanharem de forma continuada e susten-
tável o problema até que tenha um desfecho minimamente favorável. A título de exemplo,
a questão da necessidade de reforma da justiça foi levantada pela Associação Justiça Paz e
Democracia – AJPD e pelo Grémio ABC entre outras OSC, tendo-se produzido um docu-
mento a exortar para esta necessidade e tentando lançar uma campanha que fosse assumida
por uma aliança alargada de OSC. Contudo, devido à falta de recursos humanos e materiais
das OSC nacionais, não se conseguiu sustentar a campanha por muito tempo e acabou por
desvanecer. Uma campanha de advocacia sobre questões de fundo como a corrupção, a
necessidade de transparência ou os Direitos Humanos, envolve uma perspectiva de longo
prazo e, como tal, as campanhas de advocacia nestas áreas implicam que se dediquem im-
portantes recursos (materiais e humanos) de forma continuada e prolongada.
Kinsukulu Landu Kama g As condicionantes ao Desenvolvimento da Sociedade Civil e da Democracia 137

Do lado das OSC nacionais existe este problema que já tem sido muito referido da
falta de capacidade em termos de recursos humanos e financeiros e a sua dependência
em relação aos parceiros externos, suas agendas e financiamentos. Estes problemas
acabam por se reflectir numa certa divisão das OSC, uma falta de solidariedade entre
si, que se manifesta na falta de adesão a alianças alargadas e continuadas em torno
de campanhas de fundo e que teoricamente dizem respeito a todos nós que actuamos
nesta área. Estas campanhas no início despertam o interesse dos media, facto que é
muito importante para o seu impacto, mas quando deixamos de ter capacidade para
continuar o processo de forma sustentada o assunto morre igualmente na comunicação
social. No caso da corrupção fizemos uma campanha de media muito forte, mas não
tivemos capacidade para prosseguir com a campanha e para continuar a alimentar os
meios de comunicação social com informação e o tema acabou por morrer.
Nestes processos de médio e longo prazo as OSC internacionais poderiam prestar
uma importante colaboração, apoiando as agendas existentes e nossas, em vez de nos
imporem as suas agendas, geralmente de curto prazo.

4.2 - Responsabilidade Social das Empresas


Desde 1993 que faço parte do Grémio ABC, que tem trabalhado mais energicamente em
Cabinda nas questões ambientais e culturais, facto que nos valeu inúmeros conflitos com
a Chevron e o governo e nos tem levado a reflectir sobre a questão da responsabilidade
social das empresas.
Existe um problema grave nas áreas de exploração petrolífera que não é só Cabinda, existe
também no Soyo, e que consiste na diminuição de peixe nas zonas de pesca da popula-
ção, resultante da deterioração ambiental provocada pelas explorações petrolíferas nas
áreas adjacentes à costa angolana onde se explora petróleo. A realidade das Lundas sofre
igualmente de problemas relacionados com a exploração diamantífera, brutalidade exer-
cida sobre as populações da região por parte da polícia ou de exércitos privados e muitos
outros. O impacto das explorações petrolíferas e diamantíferas na economia das famílias é
imenso, poluindo as águas e terras de cultivo e limitando fortemente o seu acesso a meios
de subsistência. De um lado temos as empresas (petrolíferas ou diamantíferas) e as elites
governantes que fazem lucros imensos com a exploração dos recursos das regiões onde
operam e, por outro, a população da terra que vive em condições miseráveis e inclusive
vê-se cada vez mais limitada no acesso aos meios de subsistência tradicionais. Esta reali-
dade obviamente que cria sentimentos de injustiça e revolta contida.
O discurso da responsabilidade social faz todo o sentido, mas quer-me parecer que a forma
como as petrolíferas vêm o problema não é exactamente a mesma das OSC. Um exemplo
que tenho é do último grande derrame petrolífero que houve em Cabinda, em que os
pescadores receberam como contrapartida valores entre os US$500 e os US$1500, quantias
ridículas que de nada servem porque eles ficaram muito tempo sem poder pescar.
Para além do exemplo das regiões petrolíferas de Cabinda e do Soyo, temos a realida-
de nas Lundas, tão bem caracterizada pela designação de “diamantes de sangue”. As
empresas diamantíferas têm tentado mostrar-se sensíveis com as campanhas contra
os diamantes de sangue e adoptado o discurso da responsabilidade social, mas a re-
alidade descrita pelo Rafael Marques no seu relatório não se alterou4, mesmo depois

4
Marques, Rafael, Operação Kissonde: Os Diamantes da Humilhação e da Miséria, Cuango, Lunda-Norte Angola (Lisboa:
Edição do autor, 2006).
138 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

do fim da guerra não houve melhorias, seja nas cidades das Lundas, seja nas zonas
rurais e de garimpo, talvez até esteja pior5.
Para a maioria das empresas a responsabilidade social representa apenas uma forma de
cosmética para apaziguarem as críticas da opinião pública do Ocidente e não propriamente
uma preocupação efectiva com os problemas das comunidades das áreas onde operam.
Não se trata de construir escolas ou centros hospitalares quando o problema é arruinar
os meios da subsistência autónoma das populações, poluindo águas e terras agrícolas ou
reprimindo as populações, porque quando isso acontece não serve de nada ter a escola ou o
centro de saúde, as populações perdem capacidade de gerar os seus meios de subsistência
e de desenvolverem as suas vidas de forma harmoniosa e pacífica.
Dada a fragilidade e falta de força da opinião pública nacional e a falta de sensibilidade do
governo em relação a esta realidade, o verdadeiro problema das grandes multinacionais
está ao nível da opinião pública internacional e das organizações internacionais (inter-
-governamentais e não governamentais). Neste sentido, o combate pela responsabilização
social das multinacionais a operarem em Angola deve consistir numa articulação entre os
activistas e as organizações nacionais e internacionais preocupadas com estas questões.
A luta que tem de ser travada será tanto dentro de fronteiras como fora.
Não quero com isto dizer que se deve encarar as empresas multinacionais como inimi-
gos. O diálogo entre todas as partes envolvidas no problema é essencial, embora até ao
presente momento não tenhamos tido muito sucesso com a postura das empresas. Temos
de procurar resolver este problema de forma pacífica, mas sabendo sempre que do lado
das multinacionais a sua lógica de maximização dos lucros é obviamente um obstáculo
poderoso a que se envolvam efectiva e empenhadamente na resolução dos problemas cau-
sados pela sua acção e que somente são sensíveis às opiniões públicas do Ocidente. Todos
sabemos que essas empresas não actuam da mesma forma no Norte e no Sul. No Reino
Unido, na Noruega, nos EUA ou em qualquer outro país do Norte, as mesmas empresas
têm um comportamento diferente e fazem muito mais em termos de responsabilidade
social e têm muito mais preocupações ambientais e estão sujeitas a normas rígidas que
cumprem, enquanto aqui assumem uma postura completamente diferente.
Do mesmo modo, não ignoro que a responsabilidade social diz também respeito às
empresas nacionais e essa é uma outra dimensão a ter em conta nesta luta. Contudo,
penso que os problemas mais graves e de resolução urgente, neste momento, residem
ao nível da actuação das grandes multinacionais que estão muito mais expostas às
pressões para que cumpram com essas responsabilidades. As empresas nacionais
estão protegidas pela impunidade reinante no seio da classe político-empresarial e
pela falta de sensibilidade governamental para com esta matéria.
Em suma, há, pois, a necessidade de entendermos a responsabilidade social das em-
presas não do ponto de vista da cosmética social (da construção da escola, do centro de
saúde, dos polidesportivos ou indemnizações ridículas), mas de efectiva resolução dos
problemas causados pela sua actuação e igualmente da sua contribuição para o próprio
desenvolvimento das regiões e dos países onde operam. A este nível é essencial a aliança
com parceiros regionais e internacionais.

5
Médecins Sans Frontiers, Relatório: As mulheres testemunham; cem mulheres contam o seu calvário Angolano (MSF: 5
de Dezembro de 2007).
Capítulo III
As Igrejas, a Juventude, as Mulheres e os Media
como Propulsores do Desenvolvimento Humano

Textos

Michael Comerford
Pedro Cardoso
Aline Afonso Pereira
Reginaldo Silva
José Patrocínio
Paulo de Carvalho

h
141

Construção da Paz e Defesa


dos Direitos Humanos:
Contribuição das Igrejas
Angolanas1

Introdução
Michael Comerford
Trócaire, Nairobi,
Quénia
O longo e sangrento conflito militar em Angola terminou
finalmente em Abril de 2002 com a assinatura do Me-
morando de Entendimento do Luena entre as forças armadas
angolanas e a liderança militar da UNITA. O Memorando
do Luena seguiu-se à morte em combate de Jonas Savimbi,
o líder da UNITA, e foi o terceiro acordo de paz assinado
entre as partes em confronto. Nem os Acordos de Bicesse,
em Maio de 1991, nem o Protocolo de Lusaka, em Novembro
de 1994, garantiram uma paz duradoura. Este artigo avalia o
papel desempenhado pelas Igrejas em Angola na promoção
da paz e da democracia, através da análise e contextualização
de literatura e iniciativas das principais Igrejas protestantes
e da Igreja católica.
As Igrejas são instituições importantes em Angola, com uma
“influência poderosa sobre o povo” (Birmingham 1999: 63),
e entendem-se a si mesmas como porta-vozes do povo an-
golano, que pagou o mais alto preço pelos vários fracassos
em solucionar o conflito entre o MPLA e a UNITA. Durante
o conflito, as Igrejas eram vistas como “a mais legítima e
organizada rede para a paz e a mudança numa Angola frac-
turada” (Howen 2001: 29). Antes do Memorando do Luena,
outros, como Messiant (2000: 1), defendiam que, no fracas-
so em garantir a paz, se devia também ler um fracasso das
Igrejas Cristãs, baseado essencialmente na sua incapacidade
de promover uma abordagem unida até bastante tarde no
conflito.
O artigo centra-se em três instituições da Igreja: CICA (Con-
selho das Igrejas Cristãs de Angola), AEA (Aliança Evangélica
Angolana) e CEAST (Conferência Episcopal de Angola e São
Tomé). As primeiras duas são organizações ecuménicas que
representam as principais Igrejas protestantes, e todas as três
são amplamente conhecidas em Angola por estes acrónimos.
As três organizações falam publicamente de forma bastan-
te diferente e mudaram a forma como se envolvem com o
discurso político público, como veremos posteriormente. A

1
Texto traduzido do inglês original por Mónica Rafael Simões.
142 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

tradição teológica da AEA colocou uma distinção clara entre o espiritual e o político,
encarando-os como esferas separadas; esta distinção é menor para o CICA (os princi-
pais membros incluem as Igrejas Metodista, Baptista e Congregacionista) e a CEAST. O
discurso da CEAST é o produto de uma procura por consenso entre os bispos católicos,
em que as filiações e divisões políticas reflectiam as mais amplas dentro da sociedade
angolana; o discurso da AEA e do CICA emergiu de conferências da Igreja ou através
de afirmações públicas do seu secretário-geral, que interpretava acontecimentos po-
líticos e sociais de acordo com os estatutos da sua organização.2
Em vez de abordar as narrativas das Igrejas protestante e católica de modo separado,
o que é geralmente feito pela literatura angolana, este artigo trata-as colectivamente
devido a semelhanças significativas entre as suas análises. Vários trabalhos importantes
analisaram o papel das igrejas antes da assinatura dos Acordos de Bicesse de 1991. O
mais significativo é Schubert (2000), mas outros incluem Grenfell (1998), Henderson
(1979, 1990) e Péclard (1998). Estes sublinharam a relação entre os partidos nacionalistas
e as três principais Igrejas protestantes, e a relação do poder colonial com a Igreja cató-
lica. As três principais Igrejas protestantes — Metodista, Baptista e Congregacionista
— foram berços para os três principais partidos nacionalistas, MPLA, FNLA e UNITA,
respectivamente. O artigo não explora estes elos históricos, que foram discutidos em
outros momentos (por exemplo, Comerford, 2005; Guimarães, 1998; Malaquias, 1995;
Marcum, 1969; Mateus, 1999).
O facto de as Igrejas terem desempenhado um papel tão central em Angola é bastan-
te irónico. Dois anos após a independência, quando o governo do MPLA adoptou o
marxismo-leninismo como a sua ideologia política, houve sugestões de que as Igrejas
deviam ser banidas (Birmingham 1999: 63), e o primeiro presidente angolano Agostinho
Neto acreditava que as Igrejas iriam desaparecer completamente dentro de cinquenta
anos (Schubert 2000: 139). Pensava-se por todo o continente que a “Cristandade em
África se tornaria cada vez menos importante”, mas provou-se não ser este o caso (Gi-
fford 1995: 21). Em vez disso, as Igrejas cresceram em importância, exercendo papéis
fundamentais em muitos países na redução do conflito, promoção da paz e reconci-
liação, defesa de Direitos Humanos e facilitação ou apoio à transição democrática (de
Gruchy 1995). Como veremos, as Igrejas estiveram na primeira linha da luta pela paz
e democracia em Angola.
O artigo contempla seis períodos distintos, analisando o envolvimento da Igreja em
relação com o contexto político e militar da altura. Inicialmente, analisa material
anterior aos Acordos de Bicesse, de Maio de 1991, onde emergiram inicialmente te-
mas centrais evidentes em análises posteriores da Igreja. Em segundo lugar, analisa
o período que vai de Bicesse às primeiras eleições multipartidárias e presidenciais
realizadas em Setembro de 1992. Seguidamente há uma reflexão sobre a crise pós-
eleitoral até à assinatura do Protocolo de Lusaka em Novembro de 1994. Em quarto
lugar, é avaliado o período de “nem guerra nem paz” desde o Protocolo de Lusaka
até aos finais de 1998. Depois, uma breve análise da guerra de Dezembro de 1998 até
à morte de Jonas Savimbi em Fevereiro de 2002, e finalmente, algum comentário aos
anos que se seguiram à assinatura do Memorando de Entendimento do Luena de 2002.
Esta abordagem cronológica facilita a compreensão sobre o modo como as Igrejas
responderam à medida que o conflito avançava de uma crise para outra. A literatura

2
Reunião com membros do CICA, Luanda, 30 de Janeiro de 2007.
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 143

analisada inclui cartas pastorais, comunicados ou discursos públicos, documentos de


conferências, relatórios de media, e entrevistas conduzidas entre 1999 e 2007.

1 - Narrativas da Igreja Anteriores a Bicesse


Ao situar as Igrejas antes dos acordos de Bicesse de 1991, é útil usar os Acordos de
Gbadolite de 22 de Junho de 1989 como ponto de partida. Após uma cimeira de de-
zoito chefes de Estado regionais na República Democrática do Congo (antigo Zaire),
o Presidente Mobutu anunciou que tinha sido alcançado um cessar-fogo em Angola
(Pycroft 1994: 247). Os Acordos de Gbadolite ofereceram amnistia aos soldados da
UNITA e integração da UNITA na sociedade e governo angolano. Porém, o acordo foi
rapidamente quebrado e as hostilidades retomadas, com ambos os lados a ter diferentes
interpretações sobre o que estava acordado.
O MPLA defendia que os acordos de Gbadolite definiam a absorção dos membros da
UNITA nas estruturas do MPLA, com a “retirada” de Savimbi de Angola. A UNITA
argumentava que os acordos de Gbadolite representavam a primeira fase de negociações
rumo a um cessar-fogo, a uma nova constituição e a eleições multipartidárias. Na in-
terpretação da UNITA iria continuar a haver um papel poderoso para Savimbi (Pycroft
1994: 247).
Para Malaquias (1995), o “fracasso de Gbadolite girou em torno da questão de quem
disse o quê e quando. [Foi também] pobremente planeado antes da viagem de Mobutu
aos EUA”. Enquanto Gbadolite é recordado pelo primeiro apertar de mãos entre o
Presidente dos Santos e Jonas Savimbi, nessa altura cristalizaram-se dois temas im-
portantes na literatura da Igreja que serão relevantes mais tarde: análise das causas
da guerra e comentário a favor da democratização.

1.1 - Causas da Guerra


Um documento de uma conferência do CICA de 1984, Memorando das Igrejas sobre Paz,
Justiça e Desenvolvimento na República Popular de Angola, é especialmente relevante na
identificação das razões para o conflito entre o governo do MPLA e a UNITA.3 Os
membros do CICA apontam para esta conferência como um momento em que as Igrejas
começaram a reinterpretar o seu papel na sociedade e se distanciaram das filiações
históricas antes referidas, através das quais, por exemplo, havia pouca ou nenhuma
crítica ao MPLA por parte da Igreja Metodista. A proximidade entre líderes políticos
e da Igreja era uma das razões pelas quais era difícil às Igrejas protestantes influenciar
o conflito e promover a paz. O próprio documento é um dos mais importantes na lite-
ratura relacionada com a Igreja, já que evidencia duas dimensões distintas — externa/
regional e interna — na procura pela paz. Ao nível externo/regional, o CICA (1984: 4-5)
identificou três questões que sustentavam a guerra em Angola. Em primeiro, o CICA
argumentou que o sistema de Apartheid na África do Sul precisava de ser desmantelado
de modo a reduzir tensões regionais. Por exemplo, as Forças de Defesa Sul-Africanas
(SADF) fizeram muitas incursões no sul de Angola em busca dos guerrilheiros da
SWAPO, criando muita instabilidade. Depois, o CICA identificou a necessidade de

3
A CICA substituiu a anterior organização das Igrejas conhecida como CAIE (Conselho Angolano de Igrejas
Evangélicas); falando de forma estrita dever-se-ia referir como CAIE (1984). É referido como CICA-CAIE (1984),
para reflectir esse facto.
144 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

cumprimento da resolução 435 das Nações Unidas sobre a independência da Namíbia.


Anteriormente a isto, há que ter em conta que a fronteira comum entre a África do Sul e
Angola permitia acesso fácil das forças sul-africanas ao território angolano, para apoiar
militarmente a UNITA e manter linhas de abastecimento. A assinatura dos Acordos de
Nova Iorque de 1988 entre a África do Sul, Angola, os Estados Unidos, a antiga União
Soviética e Cuba, foi importante para a independência da Namíbia, reduzindo assim a
ameaça militar externa. Por fim, o CICA apelou ao fim da “política de militarização e
desestabilização” promovida pelos países vizinhos. Para além de referências à África
do Sul, podemos aqui ler críticas ao antigo Zaire, usado pelo governo dos Estados
Unidos como entreposto de fornecimento à UNITA.
Considerados de forma isolada, os factores externos não eram suficientes para explicar
as causas do conflito. O CICA (1984: 5) afirmava que o problema era interno e que, em
última análise, necessitava de uma solução interna: “é necessário encarar a falta de
unidade como o factor determinante a atrasar a busca pela paz, pela justiça e desenvol-
vimento”. O CICA analisa esta “falta de unidade” e estas divisões internas sob várias
perspectivas. Assinala as políticas “dividir e conquistar” utilizadas pela administração
colonial, sendo particularmente crítico do modo como a evangelização foi conduzida
pelos missionários estrangeiros, que reforçou as diferenças étnicas e tribais. Explica
que os missionários baptistas trabalharam entre os Bakongo, os metodistas entre os
Ambundu, os presbiterianos e congregacionistas entre os Ovimbundu, os luteranos
entre os Kwanhama, e os pentecostais e evangélicos entre outros grupos étnicos. De-
vido às metodologias dos missionários, as diferenças históricas entre grupos étnicos
tornaram-se diferenças religiosas e subsequentemente diferenças políticas, quando
os partidos nacionalistas emergiram de dentro destas identidades étnico-religiosas.
O CICA defende que o colonialismo conseguiu explorar estas identidades de forma
a manter o seu poder, sugerindo que a missão da Cristandade reconstruiu diferenças
históricas de uma forma particularmente divisória, que em última análise teve conse-
quências nacionais negativas.
As divisões internas criaram o que o CICA considerou “um monstro”, quando foi
formado o governo de transição em 1975. Este monstro trouxe “uma tragédia nunca
antes vivida, porque a nossa Nação perdeu mais pessoas durante os confrontos de
1975 do que na primeira guerra de libertação nacional” (CICA, 1984: 6). O docu-
mento defendia que “até ao início de 1976, os obstáculos à unidade nacional eram
muito mais tribais e oportunistas, que ideológicos”. Trabalhar pela paz exigia lidar
com os problemas profundos e necessitava de um “redobrar de esforços na luta pela
unidade das Igrejas e da nação angolana, recusando vigorosamente qualquer forma
de divisão que se apresente entre [as Igrejas] e dentro da sociedade angolana”. O
documento concluía:
Uma vez mais queremos sublinhar que o problema central reside numa “falta de unidade”
e não na falta de reconciliação política entre os dois poderes políticos, cujas ideologias
políticas são totalmente opostas. … Acreditamos que a solução real reside na nossa ca-
pacidade de preservar a nossa identidade enquanto angolanos (CICA, 1984: 11).
Alguns anos mais tarde, semanas antes da assinatura dos Acordos de Bicesse, a CEAST
expressou perspectivas semelhantes às do CICA sobre as causas do conflito, eviden-
ciando uma falta de unidade. De acordo com a CEAST (1991: 250-251), alguns grupos
étnicos consideravam-se superiores a outros:
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 145

O maior problema do nosso país, que afecta tudo mais, é uma falta de unidade. Uma
unidade baseada na verdade e justiça e ancorada no amor… Deste modo, é importante
examinar o que nos divide, não para abrir feridas antigas, mas para erradicar as sementes
da discórdia. Diferenças tribais… degeneraram num motivo para rejeição mútua, para
desrespeito e para a divisão das tribos em superiores e inferiores. Isto é grave. Compromete
o futuro e a própria existência da nação, abrindo portas para outros explorarem.
Ecoando o CICA, antes dos Acordos de Bicesse, a CEAST defendeu que as causas do
conflito eram internas, que as divisões internas tinham levado à criação de alianças
externas. Colectivamente as Igrejas acreditavam que os processos democráticos iriam
ajudar a resolver estas questões subjacentes.

1.2 - Democratização
É necessário situar o discurso da Igreja sobre democratização na realidade política
da altura, lembrando que Angola era então um Estado marxista de partido único. Os
membros da Igreja eram obrigados a deixar o MPLA ou forçados a rejeitar publicamente
a sua crença religiosa (CICA, 1984: 7). O governo era sensível ao que considerava ser
comentário político que emanava das Igrejas, embora aceitasse a natureza religiosa do
trabalho das Igrejas. As fronteiras entre o que é considerado “político” e o que é “reli-
gioso” são muito diferentes nas mentes de líderes do governo e da Igreja. Os últimos
não vêm uma linha divisória exacta entre as duas arenas, particularmente quando o
bem-estar humano está em risco. Por outro lado, o governo encarou frequentemente
comentários desta natureza como intervenção da Igreja na política e criticou afirma-
ções da Igreja.
As Igrejas receberam calorosamente os Acordos de Gbadolite. A AEA e o CICA felici-
taram o Presidente angolano por garantir a paz e praticar uma “política de perdão”.4 A
CEAST entendeu que tinha começado um momento de transição democrática, que essa
transição fazia parte do processo de reconciliação nacional: “o diálogo de reconciliação
que começou seguia linhas democráticas e devia continuar a construir e a consolidar a
paz” (CEAST, 1989: 212).5 Mais tarde, em 1989, com Gbadolite a revelar-se claramente
um fracasso, a CEAST reiterou que o caminho para a paz e a reconciliação nacional
envolviam a reforma democrática:
Precisamos de uma paz autêntica que transforme Angola num país verdadeiramente livre
e democrático, em que todos os seus filhos tenham um lugar e uma voz. Esta voz só será
ouvida genuinamente em eleições livres. É necessário encontrar formas de estabelecer
uma paz justa… No imediato, é necessário um cessar-fogo… Chegou o momento para um
diálogo pessoal, directo e franco, de um angolano com o outro (CEAST 1989: 214).
O mesmo documento desafiava os líderes políticos de ambos os lados a parar de sacri-
ficar os filhos de Angola aos seus interesses partidários. Afirmações pró-democracia
desta natureza ilustram o quanto a Igreja católica tinha mudado desde o seu apoio ao
regime colonial. O seu apoio tão claro à democracia reflecte as mudanças políticas que
ocorriam noutros lugares, à medida que a mudança varria a Europa de Leste. É, no
entanto, pouco usual ver uma afirmação tão veemente de apoio a favor de um sistema

4
Esta carta ao Presidente dos Santos é referenciada como AEA-CICA (1989).
5
Os documentos da CEAST de 1974 a 1998 estão publicados num único volume em 1998. Ao referenciar afirmações
da CEAST deste período, cita-se o ano da afirmação, seguido pelo número da página em CEAST (1998). Assim,
CEAST (1998: 212) torna-se CEAST (1989: 212).
146 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

político particular. Tal como Gruchy (1995: 48) deixa claro, “a Cristandade não pode
ser comparada com nenhum sistema de governo, incluindo a democracia, mas deve
permanecer crítica de todas as ordens sociais”.
O governo do MPLA ficou irritado com a intervenção da CEAST. Dois artigos publi-
cados no jornal estatal diário Jornal de Angola, a 30 de Novembro de 1989, acusavam
a CEAST de obstruir a procura pela paz pela adopção de posições idênticas às dos
Estados Unidos e da UNITA (os Estados Unidos forneciam armas à UNITA durante o
conflito).6 Apesar da resposta do governo ter criticado as posições avançadas pela CE-
AST, alguns entrevistados sugeriram que o desagrado do governo foi também expresso
de outras formas, tais como uma redução e atrasos no número de vistos concedidos
aos missionários estrangeiros que queriam trabalhar no país. Isto criou dificuldades
ao nível dos funcionários para a CEAST e serviu para lembrar que a crítica pública
do governo tinha um preço.
As perspectivas da CEAST em relação à forma que a mudança política devia assumir
eram representativas dos sentimentos das Igrejas em geral. A AEA e o CICA também
encaravam o desafio democrático como o caminho mais certo para assegurar a paz,
o que estava evidente numa submissão conjunta ao terceiro congresso nacional do
MPLA em 1990.7
A paz e tranquilidade do povo dependem de um compromisso de abertura à política
multipartidária… A política multipartidária não devia ser uma hipótese ainda a ser
testada, mas um objectivo a alcançar dentro de um determinado período. O compromisso
com uma política multipartidária podia determinar a paz, e esta por sua vez conduz à
democracia (AEA-CICA 1990).
A submissão também comentava que a democracia iria alterar positivamente o equi-
líbrio de poder a favor do povo, de uma forma não permitida em Estados de partido
único:
Os governos de Estados de partido único mantêm o seu poder com base na corrupção e
num grande aparelho militar e de segurança que defendem o regime contra o povo que
este governa… Até agora, o governo e a soberania da nação angolana têm sido confun-
didos com o do Partido [MPLA]… A nossa paz, o nosso desenvolvimento e a unidade
nacional pelas quais todos nos devíamos esforçar ao máximo, são alcançadas através da
democracia.
A posição pró-democracia da AEA e do CICA é interessante na identificação de crí-
ticas ao governo do MPLA no interior das Igrejas protestantes. Isto é especialmente
relevante no caso da AEA, que tinha encarado o envolvimento político como uma
traição da sua missão cristã, e durante o período pós-independência anterior a Bicesse
era raro que quer a AEA quer o CICA se pronunciassem publicamente sobre a paz
(Schubert 2000: 157, 207). O envolvimento das Igrejas com o MPLA veio principal-
mente da CEAST durante estes anos que, através da africanização da sua liderança,
tinha alterado significativamente a sua imagem de “colaborador” do período colonial
(Schubert 2000: 130).

6
Publicado na CEAST (1998: 216-219).
7
O MPLA tinha solicitado essas submissões sobre a futura direcção do país à sociedade (AEA-CICA 1990).
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 147

Estes comunicados não marcam o início da campanha das Igrejas a favor da democra-
cia multipartidária em Angola. Um apelo pró-democracia anterior, constante de um
documento ecuménico data de Junho de 1975, quando os bispos cristãos de Angola da
altura (seis católicos e um metodista) emitiram um comunicado conjunto, pedindo o
estabelecimento de “um diálogo sincero e processos verdadeiramente democráticos”
no novo Estado angolano.8 O documento é prova do trabalho conjunto das Igrejas
apesar da divisão protestante-católica, mas em termos significativos parece ser a única
iniciativa do género até à criação do COIEPA, quase vinte e cinco anos depois (Comité
Inter Eclesial para a Paz em Angola, uma comissão ecuménica pela paz conjunta AEA-
CEAST-CICA, a ser examinado mais adiante neste texto).
2 - Dos Acordos de Bicesse às Eleições de 1992
Os dezasseis meses que separam a assinatura dos Acordos de Bicesse, em Maio de 1991,
da realização de eleições nacionais, em Setembro de 1992, são referidos como “mini-
-paz”. O fim da guerra trouxe um alívio ao povo angolano que pôde finalmente viajar
e visitar familiares de quem estiveram apartados por muitos anos. Na exploração deste
breve período, analisam-se três temas principais com que as Igrejas lidaram: demo-
cratização; os media – instituição chave em sociedades democráticas; e a necessidade
por uma maior educação eleitoral.

2.1 - Democratização
A passagem de um Estado de partido único para uma democracia multipartidária
foi aplaudida pelas Igrejas, que acreditaram que se tinha avançado na reconciliação
nacional. Para as Igrejas, a introdução da democracia multipartidária deu a Angola
uma oportunidade de recomeçar, de colocar a discussão pacífica e o debate político no
centro da vida política, deixando o conflito militar no passado. Havia uma esperança
de que os anos de guerra tivessem ensinado a Angola uma lição sobre a futilidade da
guerra e a necessidade de adoptar meios pacíficos. Para a AEA (1991: 2), a mudança
para a democracia multipartidária exigia o envolvimento de todos para promover
“a pacificação e reconciliação de toda a família angolana”. A tarefa da “pacificação”
emergiu após cada acordo de paz, com o governo a apelar à assistência das Igrejas na
pacificação da nação.
Para todas as Igrejas, a democracia multipartidária foi entendida e apresentada como
a nova arena para a resolução pacífica do conflito, uma nova forma de diálogo que
substituísse o diálogo das armas. Um comunicado da AEA (1992), imediatamente antes
da realização das eleições, ilustra esta visão:
Numa democracia, a liberdade de expressão devia promover a paz e o bem-estar da socie-
dade: o acesso ao poder é ganho através do voto, não da força ou da violência. As armas
devem dar lugar ao diálogo; um diálogo que revele sabedoria, um diálogo baseado no
progresso socio-económico. Um diálogo que dirija as pessoas rumo ao desenvolvimento
e respeito pela dignidade dos outros.
A CEAST (1991: 289) abordou o papel fundamental pós-eleitoral que os partidos da
oposição teriam na construção de uma democracia saudável, e encorajou os derrotados
eleitoralmente a abraçar esse papel. Sublinhou a importância de uma oposição eficaz
em garantir uma melhor governação no seio do Estado. Para o CICA (1992b), a demo-

8
Mensagem Pastoral dos Bispos das Igrejas Cristãs sobre Paz e Harmonia, publicada na CEAST (1975: 390).
148 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

cracia multipartidária era uma forma de diálogo permanente, baseado na “existência


pacífica dos partidos políticos”. De forma clara, as Igrejas encaravam a democracia
multipartidária como uma arena discursiva, em que a política pacífica garantiria o
desenvolvimento e o progresso nacional.
Porém, as Igrejas preocupavam-se com o facto desta visão não ser partilhada pelos
partidos políticos. O CICA exprimiu um sentimento de mau presságio sobre as elei-
ções e o período subsequente, falando de uma “nuvem negra” que criava ansiedade,
particularmente por a desmobilização não ter sido completada. Apresentou as eleições
como um caminho rumo a uma maior democratização e pacificação, não como um fim
em si mesmo: “[As eleições] são uma porta para uma nova era que queremos que seja
de justiça, paz e liberdade, para a felicidade de todos. Estas eleições são as primeiras
e não queremos que sejam as últimas” (CICA, 1992b). As Igrejas tinham preocupações
reais sobre o período pós-eleitoral. A AEA (1992) comentou sobre a inquietação sentida
por aqueles que se interrogavam sobre o que aconteceria “se um dos signatários dos
Acordos, ou os dois, perdessem as eleições”. A CEAST (1992: 289) falou da necessidade
dos partidos políticos e dos candidatos “saberem ganhar, saberem perder, e aceitarem o
resultado”, apelando aos partidos para exercer “sabedoria democrática”. A AEA (1992)
encorajou os adversários políticos a adoptar uma postura cívica após as eleições.
Vale a pena desenvolver um comentário feito pela CEAST duas semanas após a assina-
tura dos Acordos de Bicesse que exprime uma preocupação que cruzou frequentemente
a generalidade da sociedade angolana. A CEAST questionou a exclusão do processo
político dos que não tinham estado envolvidos no conflito armado, dos que tinham
lutado por uma resolução pacífica da guerra:
[Que não sejamos levados a pensar que] apenas os que empunharam armas mere-
cem direitos políticos, marginalizando assim os que sofreram como consequência dessas
armas, bem como os que lutaram pela paz e democracia sem recorrer à violência. Uma
tentação de tal forma perigosa podia levar a novas formas de discriminação injusta
(CEAST 1991: 266).
Este tema é importante, uma vez que desde os Acordos de Alvor, em 1975, até aos
acordos de Bicesse, Lusaka e Luena, apenas os que se envolveram na luta militar
garantiram um lugar à mesa de negociações. As vozes e opiniões dos actores da socie-
dade civil, os que adoptaram meios não militares para alcançar os seus objectivos, não
foram tidas em consideração durante momentos cruciais de negociação relativamente
ao futuro de Angola.
Muitas das comunicações públicas das Igrejas durante os dezasseis meses após os
Acordos de Bicesse revelam reservas sérias sobre o grau de compromisso político para
com o processo democrático. As Igrejas esperavam que estes pressentimentos fossem
infundados, que Angola pudesse andar para a frente e construir uma paz duradoura,
mas como podemos ver nestes comunicados havia a sensação de que nem tudo estava
bem em Angola na altura.

2.2 - Papel dos Media


Uma preocupação particular das Igrejas no processo rumo às eleições de 1992 era o
conteúdo e o tom dos meios de comunicação social, em particular dos media estatais e
da rádio Vorgan da UNITA. Com a excepção da rádio LAC, que começou a emitir em
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 149

Luanda poucos dias antes das eleições, as instituições de media privados não existiam
em Angola antes deste momento. Em várias ocasiões, as Igrejas pediram a modificação
da linguagem utilizada nos media. Os dois lados continuavam a emitir propaganda
um contra o outro após a assinatura dos Acordos de Bicesse, o que levou a CEAST a
pedir aos media para também observarem esses acordos (1991: 265). As Igrejas eram
conscientes do poder dos meios de comunicação social na formação de opinião, mas
também do seu poder para promover a paz e a reconciliação.9 A AEA (1991) exprimiu
preocupação face à “linguagem de intolerância nos mass media: em vez de educar os
cidadãos sobre a harmonia, alimenta a tensão e o ódio que ainda existe”. Para a CE-
AST (1992: 272):
A linguagem provocativa que os dois maiores partidos continuam a utilizar nos media
não convence a audiência que estão a procurar a paz. Uma vez mais apelamos aos res-
ponsáveis pela informação para eliminar todo o conteúdo agressivo e provocador da sua
comunicação. Procurar a unidade do povo, não a sua divisão.
Em Junho, a CEAST (1992: 281) voltou a pedir moderação, desta vez afirmando agoi-
rentamente, “que foi linguagem exactamente semelhante a esta que se escutou antes
da eclosão da guerra em 1975”. Apesar de o governo e da UNITA estarem em cessar-
fogo, as suas instituições de media permaneciam em pé de guerra.

2.3 - Educação Eleitoral


Dado que Angola apenas realizou uma vez eleições parlamentares e presidenciais,
vale a pena explorar as comunicações das Igrejas em relação à educação eleitoral. A
questão é importante porque, apesar de 92% dos 4.86 milhões de eleitores registados
terem votado nas últimas eleições, entre 10 a 12% dos votos foram invalidados ou
brancos, o que de acordo com Maier (1996: 75), “apenas confirmou o fracasso da edu-
cação eleitoral”. Porém, embora a necessidade de educação eleitoral seja sem dúvida
essencial, é também importante recordar que muitos optaram por apresentar votos
invalidados ou brancos como forma de protesto, na medida em que não queriam votar
em nenhum dos partidos que disputavam as eleições.
A AEA (1992: 2) pronunciou-se sobre o período temporal que as transições demo-
cráticas levam, e apontou a necessidade de educação política entre a população: “A
democracia não se alcança com o simples acto de votar, por vezes manipulado ou,
pior ainda, comprado. Democratizar um país é um processo longo e exaustivo. En-
volve necessariamente a educação da população a todos os níveis da vida nacional”.
A aparente ausência da educação eleitoral na campanha eleitoral pode ser aferida três
meses antes das eleições.
Muito é dito sobre as eleições democráticas em Setembro, mas as pessoas não sabem
qual o seu objectivo. E não podem saber enquanto não tiverem sido informadas sobre
a lei eleitoral, os manifestos e os programas políticos dos vários partidos. A três meses
das eleições é tempo de tudo estar publicado e disponibilizado para o eleitorado. Este
precisa saber em breve quem irão escolher… e também precisa de saber como os partidos
pretendem governar. Não basta gostar deste ou daquele candidato, é necessário saber
quais são os seus ideais políticos sobre a governação (CEAST 1992: 283).

9
Barnett (1998: 553) sublinha um outro papel fundamental exercido pelos media em África em termos da “extensão
da participação democrática”.
150 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Seis meses antes das eleições a situação não era muito melhor: “As próximas eleições
apenas serão livres se houver uma escolha informada. E apenas haverá uma escolha
informada se o eleitorado conhecer suficientemente os partidos, os seus programas e
candidatos, de modo a comparar um com o outro, e escolher qual parece ser o melhor
entre eles” (CEAST 1992: 286). O documento continuava: “a norma geral para um
candidato ou partido ser elegível é a garantia que nos oferecem de serviço dedicado
ao bem comum e respeito pelos Direitos Humanos”. Com base nestes comentários
das Igrejas, é bastante claro que a educação eleitoral não recebeu a prioridade devida.
Com aproximadamente meio milhão de votos em branco ou nulos, o assunto necessita
de um esforço e compromisso muito maiores antes das próximas eleições. Isto é algo
já claro em Angola, na medida em que as Igrejas e as organizações da sociedade civil
começaram programas de educação eleitoral com o treino de activistas que trabalham
com as comunidades locais. Muitos destes programas estão a ser conduzidos em par-
ceria com o governo, que tem a responsabilidade pela educação eleitoral.
3 - Das Eleições de 1992 ao Protocolo de Lusaka
Após as eleições de Setembro de 1992, Angola foi atirada de novo para o caos da guer-
ra. O alarmante grau de não desmilitarização da UNITA, ao arrepio dos Acordos de
Bicesse, tornou-se chocantemente evidente à medida que esta rapidamente assumiu
o controlo de cerca de 70% do país (Rothchild 1997: 135). No contexto deste novo e
sangrento conflito, são importantes três aspectos do discurso da Igreja durante este
período: encorajamento para aceitar processos democráticos; factores inerentes no
novo conflito; e os media. Esta secção baseia-se substancialmente em documentos da
CEAST, pois são poucos os documentos da AEA ou do CICA no período pós-eleitoral
imediato. Para além desta informação, entrevistas com membros do CICA e da CEAST
evidenciaram intervenções directas feitas pelas suas respectivas organizações para o
fim do conflito. A natureza destas intervenções envolveu a reunião de delegações da
Igreja com a liderança política e militar de ambos os lados do conflito, apelando ao fim
das hostilidades. Aqueles que foram entrevistados estavam ansiosos de que somente
aparecessem referências genéricas a estas intervenções e que somente algures no fu-
turo os detalhes de tais encontros viessem a público. É óbvio que essas intervenções
não mudaram o curso da guerra, mas sublinham o facto de que as Igrejas estavam
a trabalhar nos bastidores, usando os canais e recursos à sua disposição para tentar
resolver o conflito.

3.1 - Aceitação do Processo Democrático


A inquietação inicial após as eleições centrou-se em acusações de fraude, não apoiadas
pela comunidade internacional que declarou as eleições livres e justas (cf. Anstee 1996:
235-236). As primeiras acusações de fraude foram feitas pelos partidos políticos mais
recentes, e posteriormente pela UNITA.10 Com Angola à beira da guerra em 1992, a
CEAST encorajou a procura de mecanismos legais para resolver estas alegações de
fraude. Recordou aos partidos que ainda era necessária uma segunda ronda de elei-
ções presidenciais, já que nenhum candidato tinha alcançado os 50% necessários para
garantir a eleição na primeira votação. Defendeu um regresso ao espírito e à letra dos

10
Paulino Pinto João (líder de uma coligação de catorze partidos políticos) afirmou que a primeira acusação de fraude
foi feita pela FNLA, a 2 de Outubro de 1992. A 5 de Outubro ele foi porta-voz de um grupo de partidos políticos a
reclamar fraude, que incluía a UNITA. Entrevista, Luanda, 17 de Novembro de 2001.
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 151

Acordos de Bicesse para ultrapassar a crise política e salvaguardar o “milagre da paz”


(CEAST 1992: 292). A paz era um prémio demasiado valioso para deixar escapar e os
processos democráticos deviam ser aceites. Estes apelos não surtiram efeito.
De acordo com a AEA (1994) e o CICA (1992c), a única forma de evitar o conflito era
através do diálogo, tolerância e perdão. Houve iniciativas de diálogo em algumas
ocasiões. A primeira reunião foi no Namibe, uma cidade costeira do Sul de Angola,
onde era muita a esperança de se poder garantir um cessar-fogo (CEAST 1992: 198). O
fracasso levou a que as conversações se transferissem para Adis Abeba, onde a CEAST
(1993: 303) pediu aos partidos para “negociar com os seus olhos fixos, não nos interesses
próprios do seu partido, mas no sofrimento das pessoas”. Ainda sem um cessar-fogo,
as conversações foram transferidas para Abidjan, na Costa do Marfim, mas sem êxi-
to. O fracasso de Abidjan assistiu à partida de Margaret Anstee como Representante
Especial das NU, e marcou o fim das negociações de paz até ao retomar do processo
em Lusaka, sob novo Representante Especial, Alioune Blondin Beye.
O desespero e a ira das Igrejas perante o fracasso das conversações de Abidjan era
palpável. A CEAST (1993: 311) escreveu:
Abidjan foi uma esperança que se tornou em desespero. As alegadas razões para o seu fra-
casso não fazem sentido para nós, mesmo com a melhor vontade do mundo… Esperámos
que uma vontade política séria inspirasse a imaginação dos negociadores para encontrar
uma solução para o impasse. Mas isso não aconteceu. E o povo continuou condenado à
morte com fome, exílio, e todos os tipos de tormento que a guerra lhes infligia.
Este enfoque sobre o efeito da guerra nas populações locais tem sido consistente-
mente um elemento chave no discurso das Igrejas durante os anos de conflito, crítico
da incapacidade de ambos os lados protegerem as vidas daqueles por quem diziam
estar a lutar.

3.2 - Factores subjacentes ao conflito


Na análise do que as Igrejas identificam como factores subjacentes ao novo conflito,
é notável a forma como se coibiram de atribuir culpas, isto é especialmente verdade
no caso da CEAST. Este facto é surpreendente dado que a comunidade internacional
era clara em encarar a rejeição dos resultados eleitorais por parte da UNITA como a
razão da guerra. Em nenhum momento na documentação da Igreja se refere a UNITA
como a culpada pelo retomar da guerra.
A CEAST acreditava que tomar partido na guerra não seria conducente ao objectivo
geral da reconciliação nacional, nem teria facilitado o papel da Igreja nesse processo.
A CEAST (1993: 304-305) explica a sua posição:
Para os que esperavam ver nos documentos pastorais da CEAST condenação de quem
quer que seja, de atribuição de culpas no conflito actual, cumpre-nos afirmar que para
exercer o nosso ministério de reconciliação essa não é a melhor via… Contudo, não
podemos deixar de chamar a atenção e condenar situações injustas de modo a que as
pessoas possam examinar as suas consciências, reconhecer a sua responsabilidade e tomar
medidas para terminar [estas situações].
Apesar de não atribuir culpas individuais, a CEAST denuncia injustiças dentro do
conflito.
152 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

A posição da CEAST levanta a questão de saber se de facto considerava a UNITA


responsável pelo reinício das hostilidades e se apenas se recusava a dizê-lo. Como
mencionado previamente, a CEAST era em si mesma uma instituição dividida, em que
havia bispos seniores que apoiavam a UNITA, enquanto outros apoiavam o MPLA.
A CEAST estava numa posição difícil relativamente a esta questão, pois ter assumido
lados podia ter colocado em risco o seu pessoal a trabalhar nas áreas controladas pelo
governo e pela UNITA. Os documentos da CEAST sugerem que independentemente
do factor que tenha despoletado o conflito, esse foi rapidamente substituído por outros
factores que depois se tornaram a verdadeira questão. Uma análise das referências da
CEAST à questão étnica e manipulação política clarifica este ponto. Primeiro, algumas
semanas depois do retomar do conflito, em Novembro de 1992, a CEAST falou de riva-
lidade étnica como a motivação subjacente a muita da matança. De forma mais séria,
a CEAST (1992: 297) comentou que a rivalidade tribal tinha sido “inflamada de modo
a colher dividendos políticos”. Assumiu a perspectiva de que a onda de assassinatos
tribais tinha sido orquestrada politicamente:
Se o povo angolano não tivesse sido manipulado, viveria junto fraternamente sem
transformar as diferenças étnicas num obstáculo à paz. Há alguns anos atrás, a cidade
de Luanda costumava ter centenas de milhares de cidadãos de outros grupos étnicos,
maioritariamente Mbundu [Ambundu] e Bakongo e não há relatos de dificuldades étnicas
entre eles, nem com o grupo étnico local. O mesmo pode ser dito de outras partes do
país. Por esta razão, a responsabilidade pelos recentes acontecimentos tribais vai além
do nível do povo comum (CEAST, 1992: 299).
Doze meses mais tarde, a CEAST voltou a referir-se ao tema da manipulação política
das sensibilidades tribais:
Se nos tempos recentes aconteceram coisas que podem ter conotações tribais, isto deve-se à
manipulação dos líderes que, no seu próprio interesse, exploraram as rivalidades políticas do-
minantes em certos sectores étnicos. Por esta razão então, é aos líderes políticos principalmente
que lançamos o nosso apelo de que demonstrem maturidade humana em aceitar os seus irmãos
e irmãs de qualquer etnia, num espírito generoso de reconciliação nacional, sem nenhuma
forma de exclusão, sem os olhar como possíveis rivais políticos (CEAST 1993: 320).
Estas acusações da CEAST aos líderes políticos são sérias, acusando-os de terem instru-
mentalizado tensões étnicas para ganhos políticos. A CEAST sublinha a ideia de que as
pessoas “comuns” tinham aprendido a viver juntas, mas a liderança política não. Estes
fracassos da liderança política eram uma dinâmica crucial e mortífera no conflito. O
comentário de Schubert (2000: 123) sobre a compreensão do poder político dentro dos
partidos nacionalistas angolanos é muito relevante: “O governo, exactamente como
os rebeldes, eram apenas capazes de conceber o poder político como um monopólio,
combatendo-se com uma determinação cada vez mais exagerada”.
Apesar de Schubert se referir a Angola em 1975, a CEAST estava a referir um ponto
semelhante em 1993. Para Messiant (2005), nem a UNITA nem o MPLA estavam pre-
parados para perder as eleições, e as sementes para o fracasso dos Acordos de Bicesse
e o retorno à guerra tinha assim sido semeadas.
3.3 - Media
A posição crítica adoptada pelas Igrejas face aos media angolanos manteve-se durante
este período, tornando-se mais pronunciada. A crítica mais grave surgiu em fins de
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 153

1992, quando a CEAST considerou que os media estatais tinham jogado um papel chave
no retorno de Angola à guerra.
O instrumento mais decisivo na mobilização de sentimentos pela paz ou pela guerra
são os meios de comunicação social — jornais, rádio e televisão.
Não temos dúvida absolutamente nenhuma sobre a influência devastadora que
os media exerceram relativamente aos acontecimentos recentes. Assim sendo,
repetimos o nosso apelo aos responsáveis pelos media de ambos os lados, para usarem
a informação para unir os angolanos, e não dividir… A substância e a forma, mesmo
o tom com que a comunicação é transmitida, os editoriais e as notícias diárias, podem
ser tanto um convite para a reconciliação e paz, como um estímulo ao ódio e à guerra.
Coloquem um fim a isto… à comunicação que apenas vê o bem no seu próprio partido,
e apenas o mal no outro [meu negrito](CEAST 1992: 300).
Claramente, a CEAST encarava os instrumentos de media do Estado e da UNITA como
instrumentos de guerra e apelava ao fim da demonização do lado oposto. Os media
eram um instrumento central no alcance da manipulação política. A CEAST esperava
eventualmente reagir a isto através do relançamento da sua própria estação de rádio
Ecclesia (o que apenas aconteceu em 1997), encerrada desde 1977.11

4 - Do Protocolo de Lusaka à Guerra de 1998


Após um ano de negociações em Lusaka, o segundo acordo de paz internacional de
Angola foi finalmente assinado a 20 de Novembro de 1994. O Protocolo de Lusaka
introduziu um período de quatro anos de paz relativa, um período descrito por Mes-
siant (2000: 2) como de “paz armada”, e por Munslow (1998: 187) como de “nem paz
nem guerra”. A implementação do Protocolo foi lenta, com muitos prazos falhados,
embora tenha testemunhado a inauguração, a 9 de Abril de 1997, do GURN, o Governo
da Unidade e Reconciliação Nacional. O período terminou com Angola mergulhada
de novo na guerra. Esta secção examina o envolvimento das Igrejas pela paz nas se-
guintes áreas: a necessidade de acção concreta para consolidar a paz; democratização;
e (re)definição do conflito.

4.1 - A Paz requer acção concreta


Havia, entre as Igrejas, um sentimento de alívio com a assinatura do novo acordo de
paz. Contudo, a experiência amarga do fracasso de Bicesse e a devastação subsequente
causada por dois anos de guerra, significavam que, mais que nunca, a assinatura de um
acordo de paz era apenas uma componente de uma tarefa mais ampla de construção
de paz, uma visão que se tornou de novo evidente após a assinatura do Memorando
do Luena. As Igrejas tinham aprendido a desconfiar de promessas e desafiaram os
signatários da paz a consolidar o acordo através de acções concretas. A história de 1992
tinha demonstrado que uma cerimónia de paz altamente publicitada e garantias verbais
extensas não garantiam muito, enquanto o rearmamento ocorria secretamente.

11
A Rádio Ecclesia, com o apoio de doadores internacionais, investiu em estúdios e infra-estruturas para conseguir
a recepção do seu sinal por todo o país. A aprovação de uma nova Lei de Imprensa proibiu a activação desta infra-
estrutura, classificando a Rádio Ecclesia como um emissor de Luanda com um sinal disponível apenas em Luanda
e seu interior próximo.
154 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Em Março de 1995, quatro meses após a assinatura do Protocolo de Lusaka, havia


já um desconforto público de que o acordo poderia estar em causa, à medida que os
preparativos para a guerra estavam uma vez mais em marcha. A CEAST (1995: 343)
exprimiu a sua profunda apreensão com a importação de armas e o recrutamento de
indivíduos abaixo da idade mínima para o serviço militar. Pediu à comunidade interna-
cional para agir imediatamente e enviar urgentemente os prometidos “capacetes azuis”
das Nações Unidas para a manutenção da paz. Em Agosto de 1995, a AEA e o CICA
(referido como EDICA, 1995a) emitiram um comunicado de imprensa que destacava
novas preocupações, sublinhando a colocação de minas terrestres, enfatizando que
o aquartelamento de tropas não estava em curso e que os confrontos militares conti-
nuavam. A declaração exprimiu críticas sobre a chegada lenta dos “capacetes azuis”
nove meses após Lusaka. Tudo isto mostrava que o protocolo estava em dificuldades
e que muito precisava ser feito para reavivar o acordo de paz.
4.2 - Democratização
Os documentos publicados fornecem visões importantes sobre o pensamento das
Igrejas protestantes face ao processo de democratização durante este período pós-
Lusaka. Um artigo do secretário-geral do CICA, Augusto Chipesse (1995: 19), defendia
a democracia como o único meio de alcançar uma paz duradoura em Angola, que
por sua vez iria promover “o desenvolvimento e uma distribuição justa da riqueza
do país”. Defendia ainda:
É no âmbito da democracia parlamentar que os problemas étnicos, criados geralmente
pelo colonialismo em África e Angola em particular, estão e devem ser debatidos e
resolvidos, pois de outra forma a guerra vai continuar a enriquecer os fabricantes de
armas e produtores de rações alimentares de emergência, das nações já ricas (Chipesse
1995: 9-10).
Os fabricantes de armas e produtores de comida internacionais eram vistos como
beneficiários da guerra em Angola.
Apesar do fracasso das eleições, a democracia ainda era entendida como o melhor quadro
político no qual trabalhar pela paz. Contudo, o raciocínio tinha evoluído e encarava a
democracia parlamentar como o meio de garantir o desenvolvimento e uma distribuição
equitativa da riqueza na nação, como o fórum ideal para a resolução dos problemas de
Angola, étnicos e outros. Os setenta parlamentares da UNITA eleitos em 1992 ainda
não tinham assumido os seus lugares no parlamento. Iriam fazê-lo posteriormente mas,
na altura do comentário de Chipesse, o parlamento era constituído por deputados do
MPLA e alguns deputados de partidos da oposição. Emílio de Carvalho, Bispo da Igreja
Metodista Unida de Angola (que tinha assinado o acima referido documento ecuménico
de 1975), defendeu na sua apresentação uma nova abordagem à política no interior das
Igrejas. Sobre a falta de líderes Cristãos na política, ele comentou:
Temos um dilema: à medida que a política se torna o poder mais importante na nossa
sociedade… somos menos capazes de agir nela como protestantes e cristãos. E o que está
a acontecer? Forças cruéis estão a tomar controlo das nossas instituições políticas e a
nossa visão dessas instituições como contrárias aos “princípios cristãos”… significa que
não participamos nelas. Como consequência da nossa atitude, a Cristandade em Angola
não vai exercer nenhuma influência significativa ou importante na nossa sociedade
futura (de Carvalho 1995: 2).
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 155

Estava a apelar-se a uma nova teologia de compromisso dentro das Igrejas, que considerava
a política uma arena da actividade Cristã. Aqueles que queriam entrar na política como
parte do seu compromisso Cristão eram encorajados pelo Bispo de Carvalho a fazê-lo.
A conferência EDICA também demonstrou que as Igrejas protestantes tinham começa-
do a rever as suas filiações políticas anteriores. Em 1994, a AEA lamentava ter falhado
em ser apartidariamente política (AEA 1994: 2). Esta expressão denota uma alteração
de postura e de preocupação, que deixou de ser para com a política partidária para
passar a ser pela saúde geral do sistema político angolano. As resoluções da conferência
ilustram esta mudança, quatro das quais lidam com questões políticas que a Igreja
enfrentava. Primeiro, os membros da Igreja eram encorajados a comprometer-se po-
sitivamente na política para construir uma sociedade harmoniosa, promover a justiça
e a paz verdadeira. Segundo, os líderes Cristãos eram encorajados a não estabelecer
partidos políticos, uma resolução possivelmente relacionada com a proliferação de
partidos políticos que ocorria em Angola. Terceiro, os líderes Cristãos deviam coibir-
-se de fazer declarações político-partidárias que comprometessem as suas Igrejas, mas
deviam usar a sua influência para educar o povo. Quarto, as Igrejas não se deviam
identificar com nenhum partido político particular, deviam transcender a política
partidária. Estas resoluções capturam a extensão da redefinição do papel público das
Igrejas protestantes em Angola e o seu re-alinhamento dentro da sociedade angolana.
A um nível de política de Igreja, as resoluções reflectem um desejo de ser politicamente
relevantes sem se imiscuírem na política partidária, um processo que a CEAST desen-
volveu durante o período inicial do pós-independência (Schubert 2000: 127-130).
4.3 - (Re)definição do conflito
Logo em Novembro de 1992, a CEAST revelou uma mudança fundamental na com-
preensão do conflito angolano quando afirmou:
Os combates de uma nova guerra civil serão contra quem? Da UNITA contra o MPLA,
e do MPLA contra a UNITA? Nenhum destes. Serão ambos os lados contra o povo…
Numa guerra civil, são sempre dois exércitos a lutar contra o povo e a Nação (CEAST
1992: 298).
Esta análise da guerra contra o povo definiu a base sobre a qual a CEAST, em 1996, de-
finiu a guerra como genocídio. O texto relevante surgiu após o Protocolo de Lusaka:
... o nosso passado deve ser uma lição para o futuro. Assim sendo, o que tem sido o nosso
passado em termos de guerra? Um genocídio cruel que aniquilou centenas de pessoas
inocentes. Um inferno de destruição que enviou o nosso país da vanguarda dos países
africanos mais avançados para o fundo dos povos mais necessitados do nosso continente
(CEAST 1996: 363).
A CEAST foi a única Igreja a aplicar o termo genocídio à guerra angolana. O termo é
emotivo e a sua utilização, apenas dois anos depois do genocídio do Ruanda, sugere
que certos paralelismos se estavam a desenhar. O uso do termo em tempo de paz é
de algum modo pouco usual. Em contraste, as Igrejas protestantes falavam antes de
uma guerra injusta ou fratricida.
Embora a literatura internacional sobre Angola coloque muito ênfase sobre o “controlo
dos recursos naturais” como a razão para a guerra (LeBillion 2001, 2005; Malaquias
2001), a literatura da Igreja não o faz. O papel vital das receitas do petróleo e diaman-
tes era inquestionável em permitir a ambos os lados continuar a guerra. A CEAST
156 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

referiu-se em várias ocasiões à riqueza de Angola como uma “maldição”, pois nenhum
dos lados teria lutado de tal forma pelo controlo sobre um país pobre. Quando a
CEAST faz comentários sobre recursos naturais, é num contexto mais amplo e inclui
aqueles envolvidos no comércio internacional com Angola. Por exemplo, a CEAST
alertou para a existência “de grupos, senão países, interessados em arruinar o nosso
país ainda mais, com armamento destrutivo enviado para cá em troca de diamantes
e petróleo. A estas pessoas pedimos apenas que não nos façam o que não gostariam
para si mesmos” (CEAST 1995: 344).
O comentário pede a países e empresas envolvidos no comércio com Angola que con-
siderem que a sua compra de petróleo e diamantes permitiu ao governo e à UNITA
fazerem a guerra. O argumento dos recursos é por vezes implícito na crítica à corrupção
no país, e à disparidade entre ricos e pobres:
Uma palavra de condenação contra aqueles que transformam a guerra num negócio lucra-
tivo. Acumular contas em bancos estrangeiros e enriquecer à custa da fome, sofrimento,
sangue e morte dos nossos irmãos e irmãs é repugnante, e nunca deveria acontecer no
coração de um angolano, ou qualquer outra pessoa (CEAST 1999).
Contudo, as Igrejas nunca afirmaram que a guerra era sobre o controlo dos recur-
sos naturais. As receitas de petróleo e diamantes foram usadas para perseguir uma
campanha militar que, na perspectiva das Igrejas, era causada pela incapacidade das
lideranças políticas em acomodar interesses e se reconciliar.
5 - A Guerra de 1998 a 2002
O capítulo anterior traçou os argumentos apresentados pelas Igrejas durante apro-
ximadamente dez anos, cuja mudança se verificou em resposta a acontecimentos
políticos e militares, bem como em resposta à crise humanitária. De modo colectivo
e consistente, as Igrejas defenderam que o diálogo representava a melhor forma para
alcançar uma paz duradoura, e identificaram as divisões étnicas como o factor subja-
cente ao conflito. A democratização era talvez vista de uma forma idealizada, como o
meio mais garantido para consolidar a paz em Angola e fornecer o fórum adequado
para lidar com as diferenças étnicas de uma forma não violenta. Apesar de a questão
étnica ser referida como um factor na guerra, em nenhum momento a guerra foi des-
crita como um conflito étnico. As Igrejas também denunciaram reservas em relação
ao papel desempenhado pelos media estatais, acusados de terem inflamado tensões
étnicas em tempos sensíveis.
Referiu-se que as intervenções da Igreja para terminar o conflito, tais como reuniões
privadas com líderes políticos e militares, foram conduzidas de modo diplomático,
não tornado público pelas próprias Igrejas. O acesso a este material iria fornecer uma
imagem mais completa sobre o que as Igrejas fizeram concretamente para promover
a paz, mas os entrevistados encararam esta informação como confidencial, como algo
que seria tornado público em algum momento no futuro. Contudo, com o começo da
terceira guerra, a questão da visibilidade das acções das Igrejas em relação à paz mudou
com a fundação do COIEPA, a comissão de paz ecuménica. Esta secção está dividida
em três partes, olhando primeiro para o COIEPA, depois para o Congresso de Paz de
Luanda de Julho de 2000 e, finalmente, para as iniciativas de mediação. O retorno à
guerra em 1998 revela uma nova determinação, no seio das Igrejas, em trabalhar para
a paz e uma mudança de estratégia manifesta em novas iniciativas concretas de paz.
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 157

Com o retorno do conflito militar, tornou-se evidente uma nova determinação dentro
do governo angolano, uma determinação de continuar a guerra de modo a que uma
vitória militar terminasse o conflito de uma vez por todas, e trouxesse a paz a Angola
(Hodges 2004: 16-17; Messiant 2003: 109-117). A UNITA tinha sido forçada a retirar-se
para o Leste de Angola após a sua retirada do Bailundo, na província do Huambo. Na
ofensiva do governo contra a UNITA, as populações locais foram deslocadas das suas
aldeias e forçadas a refugiarem-se em áreas urbanas como o Luena. O esvaziamento
do campo tem um efeito progressivo e debilitante sobre a UNITA, na medida em que
conseguia a maior parte dos seus abastecimentos alimentares nas comunidades locais e
também usava as pessoas locais para carregar bens, incluindo armas. Além disso, as tro-
pas da UNITA foram forçadas a fugir às forças governamentais que se espalharam pelas
províncias do Leste ou a render-se, tal como veio a acontecer em grande número.
5.1 - A formação do COIEPA
A junção da AEA, CEAST e CICA em 1999 para formar o COIEPA foi um desenvolvi-
mento significativo, uma resposta à nova eclosão da guerra que tinha acontecido em
fins de 1998.12 O COIEPA foi responsável por “coordenar a contribuição da Igreja na
contribuição para a paz” e descreveu-se como o produto de uma nova visão ecuméni-
ca para Angola (COIEPA 2001). Esperava que as Igrejas participassem de modo mais
activo na busca por soluções justas e sustentáveis para os problemas subjacentes ao
conflito nacional. Já em 1992, o CICA (1992a) reconheceu que as relações ecuménicas
eram insatisfatórias, e que a paz e reconciliação de Angola dependia em grande parte
de uma base ecuménica forte para unir a nação. A sugestão é muito clara: que a paz
entre os partidos políticos angolanos dependia da capacidade das Igrejas de trabalha-
rem em conjunto. De modo semelhante, Messiant defendeu que,
o fracasso em garantir a paz em Angola foi também um fracasso das Igrejas cristãs, argu-
mentando que as rivalidades tradicionais e a desunião entre as Igrejas teve um impacto
negativo sobre a procura pela paz e reconciliação: … com o fracasso em garantir a paz,
não podemos deixar de ver igualmente um fracasso das Igrejas Cristãs, na medida em
que, unindo cerca de 90% dos angolanos, eram a maior força civil em 1991 e a única
autoridade moral nacional possível. Fracasso, primeiramente, em não terem conseguido
evitar um regresso às armas… E também, talvez, um fracasso na sua mensagem de paz
e reconciliação (Messiant 2000: 1).
A ligação sugerida por Messiant levanta questões importantes, embora sobrestime os
membros e a autoridade das Igrejas angolanas em 1991.13
Existe um conjunto de razões sugeridas para explicar o fracasso das Igrejas em
unirem-se pela paz. Schubert (2000: 202-205) sublinha a opção da Igreja Metodista
de apoiar acriticamente o governo do MPLA após a independência, tornando-se de
facto a Igreja estatal. Heywood (2002: 182) aponta a força e domínio da CEAST como
um problema, já que como “a única organização nacional com o prestígio e o poder
de desafiar o Estado em nome do sofredor povo angolano, falhou em encontrar uma

12
Um grupo de trabalho provisório foi formado a 19 de Outubro de 1999 durante seis meses, tendo o COIEPA sido
fundado a 15 de Abril de 2000 (COIEPA, 2001).
13
São fornecidos dados diferentes relativamente ao número de cristãos em Angola. Hearn (1997: 201) apresenta
um número de 69%. Henderson (1990: 8) sugere que 50% são católicos e 20% protestantes, mas menciona que os
membros são contados de forma diferente. Os números católicos incluem crianças baptizadas, enquanto os números
protestantes traduzem apenas os membros adultos.
158 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

aliança comum com os grupos protestantes, mais fracos e marginalizados”. Schubert


(2000: 219) sugere que a CEAST estava satisfeita em caminhar sozinha ao invés de
perseguir uma abordagem ecuménica. Messiant (2000: 9) situa o fracasso das Igrejas
em relação à paz, especificamente na ausência de uma visão ecuménica comum de
paz. Sem uma abordagem conjunta, na sua opinião, as Igrejas não podiam ter um
papel eficaz na defesa da paz.
Particularmente no âmbito da comunidade internacional, o COIEPA alcançou proe-
minência e tornou-se o veículo de comunicação ao nível internacional para as Igrejas
angolanas e também para muitos dentro da sociedade civil. Ironicamente, dentro de
Angola o COIEPA permaneceu relativamente desconhecido. Ao nível nacional, as
Igrejas individuais preferiam usar os seus próprios nomes e estruturas ao comunicar
sobre a paz, já que eram melhor conhecidas que o COIEPA. A atribuição em 2001 do
prémio Zakarov de Direitos Humanos da União Europeia ao Bispo Zacarias Kamwe-
nho, presidente do COIEPA e da CEAST, contribuiu para afirmar o perfil do COIEPA
em Angola e reconhecer muito do bom trabalho feito ao nível da advocacia interna-
cional. O prémio serviu para centrar a atenção sobre o crescente movimento pela paz
dentro de Angola. O próprio Kamwenho falou do prémio como um reconhecimento
de todos os angolanos que trabalham pela paz.14
O princípio orientador dentro do COIEPA era que o diálogo representava a melhor
forma de alcançar a paz e a reconciliação. A base para o diálogo era o Protocolo de
Lusaka, que o COIEPA considerava “um fórum de aproximação, em que as questões
mais delicadas e representativas de todos os sectores interessados da nação, seriam
trazidos à mesa de negociação, de modo a evitar pretextos políticos para um regresso
à guerra”.15
O princípio do “diálogo”, parecendo sugerir a renegociação do Protocolo de Lusaka,
fez o COIEPA entrar em conflito com o governo de Angola, que descartou essa possi-
bilidade. Para o governo, o tempo do diálogo tinha acabado e era exigida a completa
implementação do Protocolo de Lusaka. Porém, para as Igrejas, muita coisa tinha
mudado em Angola desde a assinatura do Protocolo e o processo de paz deveria
reflectir essa nova realidade.
O secretário-geral do CICA, Luis Nguimbi sumarizou o argumento das Igrejas em
2001:
Lusaka continua a ser válido porque não há outro documento para o substituir. Mas
Lusaka não pode ser a bíblia para o país. É uma base sólida, mas pertence há sete anos
atrás. O país não parou, a política não ficou estática. O país desenvolveu-se e isto deve
ser incluído.16
O COIEPA representou um desenvolvimento institucional importante. Como um me-
canismo institucional, promoveu a coesão entre as Igrejas e forneceu um ponto focal
para muitas organizações da sociedade civil a trabalhar pela paz. De facto, o COIEPA
“institucionalizou” este ponto focal ainda mais em Novembro de 2001 quando criou
uma Rede da Paz, que juntou figuras de outras Igrejas, organizações cívicas, ONG e
autoridades tradicionais, todas em partilha do objectivo da “paz através do diálogo”.

14
Zacarias Kamwenho, Universidade Católica de Angola, 16 de Novembro de 2001.
15
CICA (2001), newsletter (91-93), 15 de Junho de 2001.
16
Entrevista com Rev. Luis Nguimbi, Secretário-Geral do CICA, Luanda, 21 de Novembro de 2001.
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 159

Para Messiant (2003), este movimento cívico foi encarado pelo governo angolano como
uma nova força, oposta à sua estratégia de “paz através da guerra”. Além disso, o
COIEPA conseguiu quebrar a polarização do debate político em Angola ao situar-se
como a voz do povo, uma posição desafiada pelo governo, que lembrou ao movimento
que apenas ele era o representante eleito do povo angolano. Desde o final do conflito,
o papel do COIEPA de coordenação das Igrejas e o seu perfil nacional diminuíram,
embora seja provável que volte a desempenhar um papel importante na monitorização
eleitoral nas próximas eleições.
5.2 - Congresso de paz Pro Pace 2000
A realização de um congresso de paz, em Julho de 2000, foi um acontecimento muito im-
portante sob os auspícios do movimento da paz da CEAST, o Movimento Pro Pace. Reuniu
representantes do governo angolano, dos partidos políticos e parlamentares, vinte e duas
Igrejas, ONG e organizações da sociedade civil, bem como embaixadores estrangeiros.
É possível sintetizar os pontos principais do Congresso com referência a algumas das
dez conclusões apresentadas no último dia (CEAST 2001c). Por exemplo, o Congresso
apelou a: um maior espírito democrático (n.º 1), maior tolerância (n.º 2), educação de
Direitos Humanos integrada no currículo escolar (n.º 6) e acção contra as minas terres-
tres (n.º 7). Também pediu um cessar-fogo (n.º 8) como um “primeiro passo rumo à paz”
e o estabelecimento de alguma forma de diálogo permanente para incluir os “níveis
mais representativos da sociedade civil, como as Igrejas, partidos políticos e outras
instituições” (n.º 9). O Congresso de quatro dias serviu para reforçar o movimento de
paz que estava lentamente a formar-se perante o retorno à guerra. Tal como o COIEPA,
o Congresso foi abertamente desafiado pelo governo de Angola, particularmente evi-
dente em comentários dos media estatais, sobretudo o Jornal de Angola. Por exemplo,
um editorial intitulado “Estrada para a Paz” sobre o primeiro dia do congresso, 18
de Julho de 2000, adoptou uma postura de confronto contra “aqueles que queriam a
paz a qualquer preço”. Reafirmou a posição do governo de Angola que sustentava
que a paz dependia da implementação do Protocolo de Lusaka, ou da aceitação de
um perdão oferecido a Jonas Savimbi. O editorial apresentava a campanha militar do
governo como uma defesa da democracia e da soberania:
No exercício das suas prerrogativas constitucionais, coube ao governo de Angola a difícil
decisão de reduzir e desmantelar a máquina de guerra de Jonas Savimbi. O governo não teve
outra escolha: ou entrava em guerra, ou assistia passivamente à ruína da nação. Se hoje,
sectores da sociedade civil se juntam em torno de um movimento de paz, é porque a campanha
das Forças Armadas Angolanas mudou positivamente o equilíbrio de poder de modo militar…
Nunca deixa de surpreender que a pressão pela paz não seja aplicada na direcção do braço
armado da UNITA… É estranho como aqueles que querem a paz a qualquer preço fingem
não saber que já existe um acordo de paz… [Era] para garantir liberdade e democracia — que
foi tomada a decisão de desarmar as forças ilegais que ameaçavam o país.
Um artigo de 19 de Julho criticava a CEAST por tratar ambos os lados na guerra como
“beligerantes” e por não culpar Jonas Savimbi como a única razão para a continuação
da guerra. Uma coluna no dia 21 de Julho acusava os apologistas do diálogo “de colocar
o agressor e a vítima ao mesmo nível e de ignorar as eleições de 1992”, revelando-se
contra o Congresso e manifestando a impossibilidade de diálogo com a UNITA.
Um dos oradores do Congresso foi o Bispo Matteo Zuppi da comunidade ecuménica
de Roma, Santo Egídio, responsável por facilitar as negociações que conduziram ao
160 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

acordo de paz em Moçambique. A CEAST tentava sugerir que se podia seguir uma
estratégia de paz semelhante em Angola, caso ambos os lados concordassem em
negociações lideradas pela Igreja. O Congresso “abriu o debate sobre as formas de
alcançar a paz e ajudou a sociedade a perder o medo de discutir publicamente alter-
nativas como forma de deixar para trás a intriga da guerra” (Espiritanos, 2002). O
Bispo Mourisca, presidente do Movimento Pro Pace, resumiu os principais benefícios
do Congresso como “quebrar o tabu do silêncio sobre a estrada da paz” (Espiritanos,
2002) e desafiou o princípio de que a guerra iria trazer a paz a Angola. Já em 1994, uma
mensagem de encorajamento de um grupo de Igrejas protestantes aos envolvidos nas
negociações de Lusaka afirmava que a guerra “não tinha solução militar”.17 A CEAST
(1997: 370) fez a mesma reivindicação em 1997, que “esta longa guerra de trinta e cinco
anos deixou abundantemente claro que a questão de Angola não tem uma solução
militar”. Como se tornou evidente em 2002, com a morte de Jonas Savimbi, o conflito
tinha uma solução militar.
5.3 - Iniciativas de mediação
Em diferentes fases do conflito angolano, as Igrejas ofereceram-se várias vezes para
mediar. A primeira destas ofertas na literatura é da CEAST (1986: 131) em Fevereiro de
1986, mas sem reacção. Em 2000, o COIEPA apresentou uma proposta, sugerindo um
painel de doze membros para explorar os possíveis caminhos rumo à paz entre os dois
lados. Esta foi rejeitada pelo governo.18 De novo, em 2001, a mediação da Igreja estava
na agenda, desta vez como resposta à carta de Jonas Savimbi à CEAST, de Maio de
2001, em que exprimia apoio pelas iniciativas de paz das Igrejas, embora não pedisse
a mediação da Igreja. A carta afirmava:
Eu escrevo… sobre o grande desafio para a paz (através do diálogo). Também escrevo para
vos encorajar activamente a participar nesta difícil tarefa que o presente momento nos
concede…Gostaríamos de ver o COIEPA e as iniciativas Pro Pace avançarem. Acredi-
tamos que têm um papel histórico e importante a oferecer ao povo angolano, fornecendo
incentivos para a reconciliação (Savimbi 2001).
Levou-se algum tempo a estabelecer a autenticidade da carta, mas quando a CEAST
respondeu em Agosto, apresentou uma resposta conjunta dos bispos católicos da África
Austral, que se tinham reunido em Harare. O documento afirmava:
Em nome de Cristo e do povo angolano sofredor, pedimos ao presidente angolano e ao
líder da UNITA que se encontrem num lugar neutro para dialogar sobre o fim da guerra
e o futuro da nação. A Igreja oferece entusiasticamente a sua ajuda para encontrar um
local conveniente, bem como uma facilitação competente e aceitável para esse diálogo
(CEAST 2001a).
Esta oferta não foi aceite. A CEAST foi criticada por alguns por as suas perspectivas
reflectirem um regresso a um entendimento polarizado do conflito angolano ao sugerir
que uma solução podia ser alcançada por via de uma reunião do Presidente dos Santos
e Jonas Savimbi. Esta crítica partiu do consenso crescente no seio da sociedade civil,
de que reuniões deste tipo faziam parte do problema, na medida em que excluíam

17
O texto é assinado por Octávio Fernando da AEA, e Augusto Chipesse do CICA, citado como AEA-CICA 1994.
Comentários semelhantes, sobre a guerra não ter uma solução militar, apareciam na literatura internacional da
altura, cf. Minter (1994).
18
“Government rejects church offer to mediate peace talks”, em www.reliefweb/int, 11 de Agosto de 2000.
Michael Comerford h Construção da Paz e Defesa dos Direitos Humanos: Contribuição das Igrejas Angolanas 161

outras forças civis. Em resposta a esta crítica, a CEAST (2001b) reviu a sua posição
mais tarde em 2001: “…embora acreditemos que não devem ser apenas o governo e
a UNITA a sentar-se à mesa de negociações, mas também representantes de outros
partidos políticos e da sociedade civil”.

6 - Memorando Pós-Luena
A assinatura do Acordo de Paz do Luena foi um sonho realizado para todas as Igrejas.
A gradual abertura do país permitiu às Igrejas prestar cuidado pastoral a comunidades
provinciais e rurais que tinham estado sem assistência, muitas por longos períodos. Como
veremos de seguida, a assistência também envolveu ajudar as comunidades a suportar e
a lidar com o processo de integração social e o legado do conflito, um processo em curso.
Em virtude das sensibilidades existentes, era precisamente nestas áreas que era necessário
trabalhar para construir a paz. Em seguida, esta parte do texto olha para questões de justiça
social e transparência, um tema cuja importância aumentou no período pós-Luena, devido
ao crescimento económico pós-conflito e ao aumento do preço do petróleo.

6.1 - Consolidação da Paz


É especialmente aos níveis locais, dentro das comunidades, que as Igrejas angolanas
mais têm feito para construir a paz no país. Em muitas partes, o processo de reintegra-
ção social, em que os antigos combatentes e refugiados regressaram às suas casas para
viver lado a lado com os que permaneceram durante a guerra, trouxe desafios e tensões
importantes. Muitos deslocados internos e refugiados, bem como soldados desmobili-
zados, regressaram com apoio material do governo e de agências internacionais para
apoiar a reconstrução das suas vidas, com pouco ou nenhum apoio disponível para
as comunidades para onde voltavam. Em muitas destas comunidades, em especial no
planalto central, prevaleceu um sentimento de injustiça baseado numa percepção de
que aqueles que perpetraram a guerra e os que fugiram estavam a ser recompensados,
sentimento inflamado quando os que regressavam procuravam recuperar as suas pro-
priedades e terras que nalguns casos estiveram ocupadas na sua ausência. As iniciativas
de construção da paz, tal como projectos de Direitos Humanos e de educação cívica,19
centradas em intervenções nas comunidades locais, forneceu espaços para a partilha
de informação e discussão de assuntos importantes. No conjunto, estas iniciativas fo-
ram organizadas em torno de actividades da Igreja, sendo frequentemente conduzidas
em Igrejas após as missas de domingo. Organizações de doadores disponibilizaram
fundos às Igrejas e a organizações locais para lidarem com estas questões e facilitarem
a reintegração dos que regressavam com as comunidades.

6.2 - Justiça social e transparência


Deve também ser mencionado o papel maior que a CEAST assumiu nos anos seguintes
a Luena em relação à justiça económica e transparência. A CEAST estabeleceu em 2004
uma Unidade de Justiça Económica na sua Comissão de Justiça e Paz, uma iniciativa
oportuna que assistia na monitorização de receitas das indústrias do petróleo e dia-
mantes, que cresceram dramaticamente com o aumento da produção e dos preços

19
A Development Workshop promoveu um projecto de educação cívica para antigos combatentes em 2003/04, em parceria
com as Igrejas, o IRSEM (instituto governamental responsável pela integração social de ex-combatentes), e outros
ministérios do governo. O projecto desenvolveu as actividades e parcerias do seu Programa de Construção de Paz.
162 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

internacionais e, em menor medida, na monitorização do investimento chinês, que


se tornou crescentemente importante na reconstrução nacional. A Swiss Peace definiu
a CEAST como o actor principal na pressão interna por questões de transparência,
apontando particularmente para uma das suas cartas pastorais mais influentes, “Por
Justiça Económica”, publicada em Outubro de 2006, que pedia ao governo angolano
para adoptar medidas urgentes com vista a ultrapassar o “paradoxo da abundância”.20
Os Bispos criticavam a continuação de grandes atribuições orçamentais para a defesa e
segurança, enquanto os sectores sociais permaneciam sub-financiados e os indicadores
de desenvolvimento humano de Angola continuavam entre os piores do mundo. A
CEAST foi extremamente crítica da cláusula de confidencialidade para as companhias
petrolíferas na Lei sobre as Actividades Petrolíferas de 2004, encarando-a como o
principal obstáculo à transparência, e exortou o governo angolano a “participar acti-
vamente” na Iniciativa de Transparência das Indústrias Extractivas (EITI).
Conclusão
Como ficou claro neste artigo, as Igrejas desempenharam um papel central na socieda-
de angolana, defendendo os Direitos Humanos e promovendo a paz e a democracia,
e foram um ponto de referência chave para um envolvimento civil mais amplo com
estas questões. Este envolvimento contínuo das Igrejas angolanas é importante na
consolidação presente da paz e da democracia no país.
As Igrejas foram uma voz importante da população sofredora que pagou o preço
mais alto pelos anos de derrame de sangue, embora os apelos por diálogo e reconci-
liação entre as partes em confronto tenham caído em orelhas mocas. Foi também claro
que as próprias Igrejas, através da criação do COIEPA, sentiram a necessidade de se
aproximar mais na procura da paz, uma iniciativa que serviu para curar diferenças
históricas entre as próprias Igrejas.
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165

Os Jovens Angolanos e a política

Introdução
Pedro Cardoso
Novo Jornal, Angola O sistema monopartidário que regeu o país entre 1975 e
1991 deixou marcas que ainda hoje toldam o espaço
de participação política dos jovens adultos que nele cresce-
ram e nos que, não o tendo vivido, adquiriram através da
sua educação alguns dos seus valores — a partidarização
de todos os sectores da sociedade, o Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA) enquanto partido “de todos
os angolanos”, a política enquanto meio de elevação social
e o auto-controlo da liberdade de expressão.
Numa Angola ainda em transição para um sistema democrá-
tico, as formações políticas juvenis tentam impor-se nos parti-
dos a que pertencem e no seio da própria juventude angolana.
Com um número de membros na ordem dos “milhões” 1,
as “jotas” dos três “partidos tradicionais” — MPLA, União
Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e
Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) — apostam
num discurso conciliador e unificador. Assumem-se como or-
ganizações de todos os jovens angolanos, independentemente
das suas ideologias (JMPLA e JURA), e vincam o activismo
cívico como a sua prioridade (JFNLA).
Aqueles argumentos causam algumas desconfianças entre
os jovens assumidamente apartidários, que não reconhecem
credibilidade ou qualquer poder real das “jotas” dentro dos
partidos. O olhar crítico que esta franja apartidária da ju-
ventude angolana lança sobre o sistema político angolano
denuncia uma mudança de mentalidades: rompendo com a
visão exclusivamente partidária da dimensão política indivi-
dual, alguns jovens assumem agora uma cidadania activa e
não politizada, que exercem nas suas actividades diárias ou
em organizações da sociedade civil. No entanto, e apesar das
suas diferenças, jovens militantes e não militantes concordam
genericamente que o nível de consciencialização política dos
jovens angolanos é ainda muito ténue e que um trabalho
conjunto deverá ser feito para reverter o quadro.
Este texto procura analisar a relação dos jovens com a política
em Angola, partindo sobretudo da perspectiva dos próprios

1
2 milhões e 400 mil militantes da JMPLA, 1 milhão da JFNLA e 1 milhão e 97 mil da
JURA (Juventude Unida Revolucionária de Angola, braço juvenil da UNITA).
166 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

jovens, apresentando-se estruturado em dois grandes capítulos para o efeito. O pri-


meiro, especificamente dedicado às juventudes partidárias — sua implementação e
acção na sociedade (1.1), seu poder dentro dos partidos (1.2) e inter-relação (1.3). O
segundo aborda a questão da juventude e da política no geral, para além das juven-
tudes partidárias, quanto à consciência política prevalecente e suas limitações (2.1) e
a possíveis agentes de consciencialização política alternativa (2.2).
Para além de levantamento e análise documental, a pesquisa para este trabalho incluiu
18 entrevistas realizadas entre os dias 30 de Novembro e 14 de Dezembro de 2007 a
jovens adultos angolanos dos dois sexos, das áreas da política, sociedade civil, jorna-
lismo, cultura, ensino superior e advocacia. Enquanto uns estão ligados ao sistema
político através das suas famílias e das “jotas”, outros definem-se como apartidários
e não-simpatizantes de qualquer força política.

1. Juventudes Partidárias

1.1 – Implementação e acção na sociedade


As primeiras organizações juvenis partidárias angolanas surgiram como braços políti-
cos dos movimentos que se envolveram na luta de libertação nacional. Até à abertura
democrática, em 1992, apenas a JMPLA, JURA e JFNLA estavam constituídas2. Esta
situação reverter-se-ia nos anos seguintes, à medida que o sistema multipartidário se
ia instituindo. Actualmente são 41 as juventudes partidárias inscritas no Conselho
Nacional de Juventude (CNJ)3, um número que não contempla as organizações juvenis
da maior parte dos partidos. Traçar e promover as políticas juvenis dos partidos a que
pertencem, de acordo com as ideologias que os regem, é o objectivo comum.
De acordo com os seus líderes — Paulo Pombo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA;
Liberty Chicaia, Secretário-Geral da JURA; José Fula, Secretário-Geral da JFNLA —
as suas organizações reúnem cerca de 4 milhões e 300 mil militantes4 com idades
compreendidas entre os 15 e os 35 anos5. Luanda é, para as três “jotas”, a principal
província em termos de implementação, mas apenas a JURA e a JMPLA se assumem
como organizações com presença efectiva em todas as províncias, municípios e co-
munas do país. “Dificuldades logísticas”6 fazem a JFNLA actuar sobretudo nas zonas
próximas dos centros urbanos.
Representando cerca de 31%7 da população angolana, o universo juvenil a que as
“jotas” apelam constitui uma massa de vital importância, ainda mais quando o país
caminha para as eleições legislativas e presidenciais, em que cerca de 60% dos eleitores
registados durante a primeira fase do registo eleitoral têm entre 18 e 35 anos8. Ao pre-
tender abranger todo este segmento populacional, as organizações partidárias juvenis

2
A JFNLA deriva da Juventude da União das Populações do Norte de Angola (JUPNA), fundada em 1954; a JMPLA
foi fundada a 23 de Novembro de 1962, na actual República Democrática do Congo; a JURA surgiu a 28 de Outubro
de 1974, na Úria, província do Moxico.
3
Dado avançado por Cláudio Aguiar, Secretário-Geral da Juventude Ecológica Angolana (JEA) e actual Presidente
do CNJ (14/12/2007).
4
2 milhões e 400 mil militantes da JMPLA, 1 milhão da JFNLA e 1 milhão e 97 mil da JURA.
5
Os membros da JURA têm entre 18 e 35 anos; os da JMPLA, entre 15 e 30 anos; os da JFNLA entre 15 e 35 anos.
6
José Fula, 38 anos, secretário-geral da JFNLA
7
“Boletim Demográfico n.º 09”, Instituto Nacional de Estatística. Projecção da população entre os 15 e 34 anos para
2008.
8
Dado avançado, mas não confirmado, por Paulo Soma, Director-Nacional para as eleições (12/12/2007).
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 167

assumem um quebrar retórico das barreiras partidárias, dirigindo-se directamente a


todo esse segmento. Neste sentido, nos últimos anos a JURA tem vindo a reafirmar
essa sua abertura ao insistir que se assume, “em primeiro lugar, como jovens angola-
nos e só depois como membros da juventude partidária”9. Uma máxima que encontra
algum eco na JMPLA, em que um dos objectivos, em termos das acções de formação
que promove, é “atingir não só os jovens que pertencem à estrutura partidária juvenil,
mas todos os que reúnam os requisitos académicos exigidos e que tenham vontade de
participar.”10 Esta abertura também não deixa de pautar a acção da JNFLA, cuja acção
se centra agora, prioritariamente, na “consciencialização cívica dos jovens”11. Uma
dimensão também ela globalizante, que não “pretende deixar ninguém de fora”12.
A tónica neste abraço a toda a juventude é a principal carta que lançam quando o
assunto é cativar membros e passar a mensagem partidária. Ao identificar-se com
questões como o “desemprego, a falta de habitação e de uma educação de qualidade”13,
consideradas unanimemente como os problemas que mais afectam os jovens, as organi-
zações tentam encarar os jovens de frente. Também as estratégias de actuação junto da
juventude assentam em elementos comuns: formação na ideologia político-partidária
(a nível interno) ou, por exemplo, acções de solidariedade e campanhas de sensibiliza-
ção para questões consensuais como a prevenção do HIV/SIDA (a nível externo). As
juventudes dos partidos da oposição acrescentam ainda uma outra dimensão: a das
campanhas de promoção dos direitos políticos e civis, justiça social e associativismo,
na tentativa de fazer com que “os jovens saibam viver na diferença e na diversidade
de opiniões e opções politico-partidárias”14.
A formatação de políticas e caminhos para a juventude começa na auscultação dos pro-
blemas e anseios dos jovens, um trabalho feito pelas bases das juventudes partidárias que,
no caso da JMPLA e da JURA, estão espalhadas por todo o país. Por seu lado, a JFNLA
faz este trabalho através de emissários que se deslocam periodicamente aos municípios
fora de Luanda. Quando recolhida, a informação escala as estruturas hierárquicas até
chegar às direcções, que a partir delas traçam políticas e estratégias de actuação.
Apesar da tentativa de transmitir uma mensagem apelativa, as juventudes partidárias
não estão isentas de críticas e de muitas suspeições por parte dos jovens que dizem
não ter qualquer simpatia partidária, exactamente os que todas desejam cativar. Se
por um lado acusam a JMPLA de estar “mais preocupada com acções de massas, do
que com actividades de índole intelectual”15, com especial destaque para as famosas
maratonas16, por outro apontam a ineficácia das restantes “jotas” em divulgar as suas
actividades e visões, criando a ideia de que “não se vê as juventudes da oposição em
acção”17. Estas defendem-se, colocando a culpa nos órgãos de informação, onde têm

9
Liberty Chyiaca, 32 anos, Secretário-Geral da Juventude Unida Revolucionária de Angola (JURA) (30/11/2007)
10
Paulo Pombolo, 43 anos, 1.º Secretário-Nacional da JMPLA (04/12/2007)
11
José Fula, 38 anos, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007)
12
José Fula, 38 anos, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007)
13
Liberty Chiaca, 32 anos, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007)
14
Liberty Chiaca, 32 anos, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007)
15
Manuel Vieira, 28 anos, Editor-Chefe da Rádio Ecclesia (01/12/2007)
16
Festas de teor partidário que a JMPLA tem vindo a realizar. É vista pelos críticos como uma forma de alienação dos
jovens, ao colocar a cerveja a baixo custo, promovendo assim o consumo de álcool. Para Paulo Pombolo, esta questão
tem sido uma tentativa da oposição de desviar a atenção da opinião pública do essencial – as “acções concretas” que
a JMPLA faz em prol da juventude e as soluções que apresentam para a resolução de problemas dos jovens.
17
Ricardo Barbosa (nome fictício), 30 anos, advogado de uma empresa petrolífera e filho de um diplomata angolano
(06/12/2007)
168 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

“algumas dificuldades em fazer passar a mensagem”18. Este argumento, facilmente


compreensível tendo em conta a falta de isenção dos media públicos e a fraca amplitude
dos privados, acaba, no entanto, por não convencer totalmente. Como ironiza Germano
Liberato, “se alguém se puser em cima de um banco no mercado do Roque Santeiro a
falar para a multidão, com um discurso coerente, as pessoas vão parar para o ouvir”19.
No fundo, a questão é mais ampla e é o próprio líder da JFNLA quem a explica:
Não há lideranças juvenis fortes no país e as juventudes partidárias ainda não têm
capacidade para mobilizar toda a sociedade para uma consciência crítica, uma vez que
não têm meios logísticos para o fazer.20
Contudo, esta não é a única crítica apontada às “jotas”. Muitos sentem que elas “nada
têm de jovem”21, que são “uma fábrica de pensamento estagnado”22 e que “os milhões
de militantes que as integram não correspondem ao número exacto dos que, tendo o
cartão, professam a ideologia partidária”23. São antes, dizem, um somatório que inclui
também os chamados “oportunistas”24. “Muitos jovens filiam-se em determinada ju-
ventude não tanto por vontade de participação ou por vocação partidária, mas porque
através delas querem ascender socialmente e resolver os seus problemas económicos”,
explica o músico e estudante MCK25. Ainda que estas críticas se estendam a todas as
organizações juvenis partidárias, a JMPLA, pertencendo ao partido no poder, é vista
como a “mais apelativa” havendo a ideia de que através dela se pode garantir o aces-
so a melhores empregos, a lugares nas faculdades e, quem sabe, a um lugar político
de destaque, no futuro. Para José Gama, Secretário-Geral do Clube de Angolanos
no Exterior — “Clube K”, essa ideia não passa de um “estereótipo” que revela uma
“descrença dos jovens neles próprios, ao acreditarem que só se podem desenvolver
estando nas garras do poder”26. Por seu turno Edson Lopes garante que essa noção
“não tem fundamento” e que não passa de uma consequência “das vivências do partido
único”27. “Se fizermos um levantamento social veremos que ao nível dos 2 milhões e
400 mil militantes da JMPLA há gente a viver com as mesmas dificuldades de todos
os jovens angolanos. As condições de vida boas ou más são para todos. As pessoas
podem ter essa percepção, por sermos uma organização juvenil do partido do poder,
mas não é verdade”, assegura Paulo Pombolo.
A influência que as juventudes partidárias exercem sobre os jovens depende também,
em grande escala, da visão que a própria juventude que se considera descomprometida
politicamente tem dos partidos a que as “jotas” pertencem. E neste combate, nenhum

18
José Fula, 38 anos, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007)
19
Germano Liberato, 31 anos, contabilista (01/12/2007)
20
José Fula, 38 anos, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007)
21
Sérgio Pinto Afonso, 32 anos, fotógrafo (30/11/2007). Se constatarmos a idade de alguns líderes juvenis acabamos
por entender o porquê da crítica. Paulo Pombo, da JMPLA, tem 43 anos; José Fula, da JFNLA, tem 38 anos. Segundo
Pombolo, a organização que lidera permite que militantes que tenham mais de 30 anos, e tenham passado pela
JMPLA, possam ser eleitos dirigentes. Por seu lado, José Fula afirma que “os jovens da JFNLA pensam que, para
definir a estratégia deste organismo no momento político que o país atravessa, é preciso ter alguém à frente com
muita experiência”. Com 32 anos, Liberty Chiyaca é o mais novo dos três líderes entrevistados, encaixando-se na
faixa etária dos membros da JURA (18-35 anos)
22
Nástio Mosquito, 26 anos, profissional de televisão. Questionário respondido por e.mail (29/11/2007).
23
Augusto Maquembo, 33 anos, formador para o processo eleitoral na organização norte-americana National Democratic
Institute (NDI) e estudante do 2.º ano de Direito na Universidade Católica de Angola (04/12/2007).
24
Manuel Vieira 28 anos, Editor-Chefe Rádio Ecclesia (01/12/2007).
25
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
26
José Gama, 30 anos, Secretário-Geral do Clube de Angolanos no Exterior (Clube K) (02/12/2007).
27
Edson Lopes, 31 anos, técnico informático e militante do MPLA. (06/12/2007)
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 169

sai a ganhar. Se por um lado o MPLA é frequentemente acusado de “ter um discurso


vazio, em termos de políticas juvenis” e de ser composto por “mais-velhos que go-
vernam um país de jovens, mas não pensam como jovens”28, por outro os partidos da
oposição vêem a sua credibilidade a ser bastante questionada. Os motivos são vários:
as cisões e conflitos internos que os sacodem com alguma frequência, a ideia que “vi-
vem hospedados nos bolsos do MPLA”29 e que muitos são satélites desse partido, e a
noção de que muitos foram criados com o intuito de servir os interesses pessoais dos
seus líderes30. No fundo, os partidos da oposição são vistos por muitos jovens como
“oportunistas que estão à espera da sua vez para fazer exactamente o mesmo que estes
[o MPLA]”31, o que os faz questionar-se: “afinal, que alternativas é que temos?”32
Manifestando-se expectantes em relação às próximas eleições que dizem ser uma
forma de “restabelecer a normalidade do ciclo político em Angola”33 e uma “acção
de pedagogia democrática”34, os jovens ditos apartidários dizem ter dúvidas sobre a
orientação do seu voto que, assumem, poderá ser neutro. Uma forma de protesto que
“Ricardo Barbosa”35 garante que vai usar no dia do escrutínio, por ter a noção de que,
“ao não deixar os outros partidos políticos fazerem normalmente a sua propaganda
política”, o sistema retira-lhe, enquanto cidadão, a possibilidade de votar verdadei-
ramente em consciência. Mas no fundo, como diz Augusto Maquembo, estas eleições
terão um papel clarificador:
Em termos de democracia vivemos uma situação ambígua: somos representados por
uma Assembleia Nacional eleita em 1992 para um mandato de 4 anos, que já expirou
há muito, e por um Presidente cuja legitimação não foi concluída, uma vez que nunca
houve a segunda volta das presidenciais. Isto tudo, num ambiente em que as liberdades
fundamentais ainda são restringidas, de certa forma. Mas por outro lado, notam-se sinais
de abertura democrática, como a imprensa privada ou mesmo o à vontade que agora há
em se falar destas questões em público, que antes era impensável. Daí surge a questão:
afinal, Angola é uma democracia ou não? Há quem diga que sim, há quem diga que não.
Estas eleições e o que vier daí para a frente vão-nos dar a resposta 36.

1.2 - O poder das juventudes dentro dos partidos


O descrédito de que a “jotas” angolanas gozam junto de alguns sectores da sociedade é
também justificado pela dicotomia entre o poder que elas dizem ter e o que realmente
têm quando em relação às direcções dos partidos.

28
José Gama, 30 anos, Secretário-Geral do Clube de Angolanos no Exterior (Clube K) (02/12/2007).
29
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia da Universidade Agostinho Neto (03/12/2007)
30
A este propósito Cesaltina Cutaia, 27 anos, activista cívica da Open Society (06/12/2007), relembra um episódio
recente protagonizado por Carlos Contreiras, presidente do Partido Republicano de Angola, aos microfones da
Luanda Antena Comercial: “Quando assistimos a líderes da oposição a exigir que o cofre de Estado dê 20 milhões de
dólares a cada partido da oposição para participarem nas eleições, ficamos sem saber, afinal, quais são os verdadeiros
propósitos destas formações políticas”.
31
Germano Liberato, 31 anos, contabilista (01/12/2007).
32
Yolanda Augusto, 26 anos, estudante universitária da Comunicação Social, filha do embaixador de Angola em
Cabo Verde (30/11/2007)
33
Suzana Mendes, 24 anos, Editora-Chefe do semanário privado Angolense (01/12/2007).
34
Ana Petra van Dunem, 30 anos, advogada estagiária (02/12/2007).
35
Ricardo Barbosa (nome fictício), 30 anos, advogado de uma empresa petrolífera e filho de um diplomata angolano
(06/12/2007)
36
Augusto Maquembo, 33 anos, formador para o processo eleitoral na organização norte-americana National Democratic
Institute (NDI) e estudante do 2.º ano de Direito na Universidade Católica (04/12/2007).
170 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Quando questionados sobre esta questão, os líderes juvenis-partidários garantem que


têm uma ampla capacidade de influenciar as decisões das direcções. E apresentam
números: “Entre 40 e 50% dos militantes do MPLA são jovens, e a nível do Comité
Central, entre 10 e 15% dos membros provêm da juventude do partido”, diz Paulo
Pombolo37; “24% dos membros da Comissão Política da UNITA saída do último con-
gresso são membros da JURA. Estes, em conjunto com a LIMA38, concertam posições,
juntando desta forma mais de 50% da Comissão Política”, afirma Liberty Chiyaka39;
“cerca de 50% da comissão política e do secretariado que gere as políticas administra-
tivas do partido são jovens, para além de também coordenarem quase todos os órgãos
de importância da FNLA”, remata José Fula40.
Números que não impressionam os que pensam que, apesar das conquistas de lugares,
ainda “não se pode falar de qualquer independência entre as juventudes e as direc-
ções dos partidos”41. Este factor acaba por “diminuir o espaço de crítica interna”42 e,
consequentemente, o poder das juventudes. Esta percepcionada “falta de mensagem
de inovação [...] e subordinação à disciplina partidária”43 acaba por “direccionar as
acções das juventudes partidárias unicamente para os projectos propagandísticos do
próprio partido [...], ficando sem capacidade de apresentar projectos sustentáveis e
de compromisso, antes de mais, com o país.”44
É no diálogo com as direcções que se denotam as fragilidades e as limitações na
acção das juventudes partidárias, com os próprios líderes a assumirem dificuldades
na convergência e na aceitação dos seus pressupostos pelos “mais-velhos”. A razão,
garantem, é o que dizem ser o choque entre o “imediatismo” 45 dos jovens, que querem
“transformar tudo de um momento para o outro”46 e a “a ponderação com que os “mais-
velhos”, pela experiência e trajectória da sua vida política, encaram os assuntos e as
decisões”47. O “choque contido” entre diferentes gerações políticas centra-se num ponto
focal chamado “pressão”, que as juventudes, principalmente da oposição, acreditam
ser necessário exercer sobre o governo em determinadas matérias, nomeadamente a
“instalação de um sistema verdadeiramente democrático e [...] os apoios aos antigos
militares das FAPLA48 e da FALA49, que estão na indigência”50. Esta última questão é
um cavalo de batalha comum à JURA e à JNFLA. Nos dois casos, as juventudes exi-
gem dos seus partidos uma postura mais agressiva junto do governo, inclusivamente
com o recurso a “instâncias internacionais que pressionem o desenvolvimento de um
sistema democrático”51, no caso da juventude da UNITA. Esbarram, no entanto, com
uma postura um tanto ou quanto rígida dos dirigentes dos seus partidos, que acabam
por levar adiante os seus pontos de vista. A conformação com esta situação acaba tam-

37
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007)
38
Liga da Mulher Angolana, movimento feminino da UNITA
39
Liberty Chiyaka, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
40
José Fula, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007).
41
Suzana Mendes, 24 anos, Editora-Chefe do semanário privado Angolense (01/12/2007)
42
José Gama, 30 anos, Secretário-Geral do Clube de Angolanos no Exterior (Clube K) (02/12/2007).
43
Cesaltina Cutaia, 27 anos, activista cívica da Open Society (06/12/2007)
44
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
45
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
46
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007).
47
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007).
48
Forças Armadas Populares para a Libertação de Angola, antigo braço militar do MPLA.
49
Forças Armadas de Libertação de Angola, antigo braço militar da UNITA.
50
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
51
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 171

bém por reflectir a necessidade dos líderes juvenis de se manterem o mais próximo
possível da cúpula dirigente. Geralmente, a escolha das lideranças das “jotas” recai
sobre os que mais intimamente se relacionam com os “pesos pesados”, o que origina
“lutas internas de posicionamento” entre os jovens mais ambiciosos52, que mais não
visam do que garantir o seu poder e a ascensão política interna.
Para Edson Lopes, militante do MPLA, a pouca influência que os jovens acabam por
ter dentro das estruturas partidárias, causa alguma frustração:
Dentro do partido nós não temos acesso às grande decisões. Podemos ter as nossas reu-
niões, mas quando levantamos o braço para falar, outras mil pessoas pedem também a
vez, e só a alguns é dada a palavra. As questões que levantamos não são transmitidas
directamente, passam antes por outras estruturas. Muitos dos membros que estão lá
dentro estão só a fazer número. Alguns persistem porque acreditam na ideologia, e que
talvez um dia aquilo vá mudar. Alguns “mais-velhos” têm medo da juventude, porque
sabem que estamos descontentes em relação à política interna [...] Se nos dessem opor-
tunidade de apontar as falhas, muita coisa ia mudar. Faltam vozes críticas dentro do
partido, porque há muitos que têm medo de perder o seu estatuto e o lugar. Agora, não
sei se esse medo é justificado ou não.53
Mas há quem veja hipóteses de reverter a situação. Para José Fula, o advento da po-
lítica moderna, em que questões como “os Direitos Humanos, democracia e novas
tecnologias da informação” marca a agenda, está a gerar um confronto entre a nova
e a velha guarda. Mais à-vontade com os novos valores, os jovens poderão obrigar as
direcções dos partidos a abrirem-se às suas propostas. “Vai ser interessante assistir
ao combate nos partidos, com a juventude a tentar assegurar lugares no parlamento
angolano e ultrapassar os “mais-velhos”, principalmente nas questões técnicas e de
desenvolvimento”54.

1.3 – A relação entre as juventudes partidárias


O discurso dos líderes das três juventudes partidárias assenta na tónica das relações
cordiais entre todas as forças políticas e dos valores da democracia, unidade e recon-
ciliação nacional. Palavras politicamente correctas, mas que, no caso da JMPLA e da
JURA, não reflectem o verdadeiro estado das relações. As crispações existentes entre
os partidos-mãe repercutem-se também ao nível dos braços juvenis. Desde 2003 que
as duas juventudes não se encontram formalmente. O episódio que catalisou o virar
de costas deu-se quando, durante a presidência de Paulo Pombolo do Conselho Na-
cional da Juventude (CNJ), a JURA não conseguiu imprimir algumas alterações aos
estatutos, como desejava. Como forma de protesto, a juventude da UNITA suspendeu
a sua participação no CNJ. Esta cisão gerou uma teia de argumentos que as duas or-
ganizações ainda hoje esgrimem. Se para Liberty Chiyaca esse abandono configurou
uma forma de protesto por “a JMPLA estar a colocar os interesses partidários acima
dos nacionais”55, para Paulo Pombolo essa atitude não foi mais do que um bate-pé
por “os delegados terem rejeitado uma determinada posição que a JURA, então pre-
sidente da assembleia da CNJ, queria fazer passar.” “Para eles, tudo o que não lhes
sair como querem, e que seja favorável à JMPLA, é sempre fruto de alguma manobra”,

52
José Fula, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007).
53
Edson Lopes, 31 anos, técnico informático e militante do MPLA (06/12/2007)
54
José Fula, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007).
55
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
172 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

acrescenta56. Passados quase três anos, em Junho de 2006, a JURA acabou por voltar
ao CNJ, mas as relações com a JMPLA continuam formalmente interrompidas, pelo
menos numa perspectiva bilateral.
Mas os incidentes entre as duas principais juventudes partidárias angolanas estão a pas-
sar de guerra de palavras para actos de violência, configurando um clima de intolerância
política que se faz sentir sobretudo no interior do país. Na hora de encontrar os culpados,
a JURA e a JMPLA descartam as responsabilidades, atirando-as uma à outra como arma
de arremesso. Na linha da frente das críticas, Liberty Chiyaca não hesita em apontar a
JMPLA como responsável pela morte e actos de agressão contra militantes da JURA.
Acusações que a JMPLA contrapõe com “actos que a JURA também perpetua” contra
elementos da juventude do partido no poder, mas que não nega categoricamente:
(…) não posso dizer que isso acontece, mas vamos supor que alguém da JMPLA faça
isso de forma isolada. Isso não é uma acção premeditada. O que eu posso garantir é que
nunca saiu uma directiva da minha secretária para promover a intolerância [...] isso não
pode ser uma forma de actuação de uma organização idónea como a nossa que pertence a
um partido idóneo e que nos orienta nos objectivos da reconciliação e reconstrução57.
O clima de desconfiança entre os dois movimentos, com acusações mútuas de falta de boa
vontade e de consciência democrática, faz com que os dois líderes se refugiem nas “boas
relações pessoais” para tentar encontrar algum ponto de equilíbrio. No entanto, avança
Paulo Pombolo, é preciso “transferir essas relações humanas para o patamar político”58.
De fora do jogo conflituoso entre a JMPLA e a JURA, que domina o emaranhado de relações
entre as várias organizações juvenis partidárias (o relacionamento com as demais “jotas”
é “excelente”, afirmam Paulo Pombolo e Liberty Chiyaca), o líder da JFNLA assume:
O principal obstáculo da juventude política em Angola é a própria juventude política,
que ainda não tem capacidade para aceitar as diferenças, aceitar que um jovem de uma
juventude partidária apresentou uma boa proposta, por exemplo, e por isso é preciso
apoiá-la. Olhamos os que têm boas iniciativas como inimigos; quem tem uma boa ideia
para a sociedade, deve ser obstaculizado59.
Conscientes desta necessidade as juventudes dos partidos emitem mensagens teóricas,
pelo menos, apelando a uma actuação ética de todos que “visem a unidade e a recon-
ciliação dos angolanos”60, ao “compromisso com a democracia”61 e à “despolitização
das matérias que não devem ser politizadas”62.
1.3.1 – Mecanismos de concertação
Para fomentar o diálogo e posições conjuntas não só entre os vários partidos políticos
mas também entre as associações juvenis nacionais, a sociedade civil tem vindo a criar
mecanismos de concertação, como o Fórum dos Jovens Políticos Angolanos (FJPA). Este
organismo reúne na última Sexta-feira de cada mês jovens dos partidos com assento
parlamentar em torno de debates sobre o país. Às Quintas-feiras o FJPA conduz ainda o

56
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA. (04/12/2007)
57
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007).
58
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007).
59
José Fula, Secretário-Geral da JFNLA (03/12/2007).
60
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA (04/12/2007).
61
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
62
Liberty Chiyaca, Secretário-Geral da JURA (30/11/2007).
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 173

programa radiofónico “Visão Juvenil”, que a Rádio Despertar emite entre as 17 e 18 horas.
Este espaço é aberto à discussão entre as várias juventudes partidárias e à audiência,
que nele participa por via telefónica. O FJPA foi impulsionado pela USAID e pelo IRI63,
este último, responsável também pela promoção do programa radiofónico.
No entanto, o grande espaço de encontro entre as organizações juvenis é o CNJ. Cons-
tituído formalmente em 4 de Outubro de 1991 por juventudes partidárias e associações
da sociedade civil, o organismo pretende representar os jovens angolanos perante os
poderes públicos. Actualmente é composto por 67 membros, entre os quais 41 organi-
zações juvenis partidárias. O CNJ tem uma história de 17 anos, marcada por 13 anos de
presidências consecutivas ligadas de forma directa ou indirecta ao MPLA64, situação que o
tornou aos olhos de muitos um órgão partidário, pouco credível e nada democrático.
Formalmente independente de qualquer poder partidário, e consciente das críticas, o actual
Presidente da CNJ Cláudio Aguiar, assumiu como uma das prioridades do seu mandato
“retirar a carga político-partidária” do CNJ. “As organizações juvenis de cariz político-
partidário deviam ter a sensatez suficiente para não levar as suas quezílias [ideológicas] para
dentro do CNJ”, diz, em alusão à cisão de 2003. O seu trabalho passa, assim, por “reforçar as
associações de cariz social”, e promover “vias alternativas de diálogo — diálogo que faltou
em algumas alturas – que ultrapassem o espaço das reuniões formais do CNJ.” 65

2 - Os Jovens e a Política

2.1 – Consciência política


Com a abertura política de 1992, a consciencialização política dos angolanos em geral, e
dos jovens em particular, tem vindo a crescer. No entanto, os níveis ainda são bastante
baixos. Esta percepção generalizada encontra eco na visão reduzida ou nula que os
jovens têm dos seus direitos políticos enquanto cidadãos. A associação redutora da
política à “governação de um país e processo de governação”66 ou a ideia de que “a
política não afecta em nada o meu dia-a-dia”67 e que não vale a pena reivindicar porque
“isso são opções dos políticos [e] eu não consigo mudar nada”68, acabam por ser mais
ou menos transversais a uma grande maioria dos jovens angolanos. Uma franja da
sociedade que, no entanto, é bastante assimétrica e que conta com algumas variantes
na sua segmentação: os jovens de Luanda e os do resto do país e, entre estes, os das
classes alta, média (que começa agora a surgir) e baixa.
No que respeita à divisão geográfica, o interior de Angola, onde “há um grande isolamento e
as populações não dispõem de acesso a informações que lhes permitam formar opiniões”69,

63
International Republican Institute, organização norte-americana
64
Presidentes, por ordem: Afonso Ngonda, da Associação Cristã da Mocidade (3 anos); Job Capapinha, da Trova,
organização ligada à JMPLA (7 anos); Paulo Pombolo, na altura 2.º Secretário-Nacional do JMPLA (3 anos); Reis
Cuanga, 2.º Secretário-Nacional do JMPLA (3 anos); e Cláudio Aguiar, Secretário-Geral da Juventude Ecológica
Angolana (JEA), o actual Presidente (cumpre o segundo ano de um mandato de três).
65
Cláudio Aguiar, Secretário-Geral da Juventude Ecológica Angolana (JEA) e actual Presidente do CNJ (14/12/2007).
A Juventude Ecológica Angolana (JEA), é tida em alguns círculos como próxima do MPLA, acusação que Cláudio
Aguiar recusa, remarcando o carácter independente da organização; a actual presidência assumiu também como
linhas de actuação aumentar a capacidade técnica dos associados e continuar a promover o reforço da capacidade
dos órgãos juvenis, através da criação de lideranças juvenis.
66
Sérgio Pinto Afonso, 32 anos, fotógrafo (30/11/2007)
67
Edson Lopes, 31 anos, técnico informático e militante do MPLA. (06/12/2007)
68
Edson Lopes, 31 anos, técnico informático e militante do MPLA. (06/12/2007)
69
Suzana Mendes, 24 anos, Editora-Chefe do semanário privado Angolense (01/12/2007)
174 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

está a léguas de distância de Luanda em termos de potencial crítico e de liberdade para o


desenvolver. Por outro lado, a capital proporciona aos jovens o acesso alargado aos media
privados (ao contrário do interior onde os jornais privados praticamente não chegam e as
rádios independentes não são ouvidas), a um amplo leque de instituições de ensino público
e privado, às associações cívicas e mesmo ao crescente número de cidadãos estrangeiros
que trabalham no país, que poderão tornar-se em difusores de outras perspectivas. Estes
vectores, no principal centro urbano do país, ajudam a efectivar de alguma forma o “maior
espaço de cidadania e participação que surgiu a partir de 1992”70.
Mas se por um lado as condições de que a capital dispõe impulsionaram um cresci-
mento algo significativo do nível de consciência política e cívica dos jovens, por outro
existem sérias limitações ao seu desenvolvimento. Nesta cidade de fortes contrastes em
termos de distribuição de riqueza, periferia e zona urbanizada marcam as diferenças
também ao nível de abertura das mentes. Nas palavras de Suzana Mendes,
Nas zonas periféricas os jovens estão mais preocupados em obter emprego, saber o que
vão comer, onde vão morar quando tiverem família, não há muito tempo para pensar
em política. As pessoas aprenderam a gerir a sua vida de forma particular, e quando
pensam que algo deveria mudar, referem-se ao governo enquanto entidade abstracta, não
percebem muito bem do que estão a falar71.
Por outro lado, na urbe, onde vive a classe média e abastada, ainda que haja uma maior
noção sobre o sistema político, muitas vezes ele não é posto em causa, porque muitos dos
que aqui se movem beneficiam dele, directa ou indirectamente. As conversas acabam por
se restringir a ideias pouco profundas e “sem nenhuma acção consequente”72. “A ligação
que as pessoas têm com a política e com as questões sociais é muito imediatista. Se não
têm problemas nas suas vidas, então tudo está bem do ponto de vista político; mas se
choveu muito e a cidade ficou inundada, ou se foram assaltadas, então falam nisso, mas
de uma forma muito superficial. Não procuram saber os porquês”73. A explicação desta
apatia e desinteresse generalizado tem vários motivos, de entre os quais um sistema de
educação que não ajuda a pensar. Mas as raízes profundas desta atitude de indiferença
encontramo-las lá atrás, nos anos do partido único (quiçá no período colonial), que ainda
hoje influenciam os jovens que o viveram ou que o percepcionaram através da educação
que receberam em casa. “Aqui há um ditado que os nossos pais sempre nos ensinaram
e que diz ‘xé menino, não fala política’”, diz “Ricardo Barbosa”, numa alusão ao refrão
da conhecida música do cantor angolano Waldemar Bastos (“Velha Chica”) que nela se
refere ao período da luta nacionalista74.
Dezassete anos depois da abertura do sistema à democracia e ao sistema multiparti-
dário, essa consciência permanece, alimentada por episódios pontuais:
Há um certo medo em discutir abertamente as questões políticas, porque nunca tivemos
uma cultura de manifestação activa depois da independência. Entrámos logo num sistema
70
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto. (03/12/2007)
71
Suzana Mendes, 24 anos, Editora-Chefe do semanário privado Angolense (01/12/2007)
72
Yolanda Augusto, 26 anos, estudante universitária da Comunicação Social (30/11/2007). Insere-se num grupo de
jovens a que pertence também “Ricardo Barbosa” (nome fictício), 30 anos, advogado de uma empresa petrolífera
(06/12/2007). Filhos de políticos ligados ao MPLA desde a luta pela libertação de Angola, denotam uma forte carga
ideológica e uma grande admiração pela figura de Agostinho Neto. Sentem-se defraudados pelo que dizem ser a
“deturpação” dos valores fundadores do partido e têm uma visão crítica bastante apurada. Optam, no entanto, por não
militar em nenhum partido nem em envolver-se activamente. Assumem-se como beneficiários do actual sistema.
73
Ana Petra van Dunem, 30 anos, advogada estagiária (02/12/2007).
74
Ricardo Barbosa (nome fictício), 30 anos, advogado de uma empresa petrolífera (06/12/2007)
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 175

monopartidário que fechava completamente o pluralismo de expressão e que nos incutia


uma educação doutrinária onde as repreensões eram muito fortes. Paralelamente, tivemos
várias sementes de medo, como o 27 de Maio, as prisões arbitrárias, e mais recentemente,
a morte do Cherokee75, a prisão do Graça Campos76 e a forma como o Miala foi julgado77.
Estes acontecimentos simbolizam uma ameaça clara para todos nós78.
Nestes mecanismos de desincentivo da participação política partidária e cívica dos
jovens entram duas outras variáveis, também elas herdadas dos tempos do partido
único: a noção da inviolabilidade, omnipotência e omnipresença do MPLA e o medo
de, ao criticar o sistema vigente, ser-se conotado com a oposição, especialmente a
UNITA, e sofrer represálias por isso (as acções de intolerância no interior do país não
ajudam a erradicar esta ideia).
O problema é que os próprios políticos, que deviam trazer nos seus discursos a mensagem
que essa percepção é coisa do passado, não o fazem. Quando vemos no interior do país actos
de intolerância política entre militantes da UNITA e do MPLA, a mensagem que os políticos
passam não engloba as questões da reconciliação nacional. Penso que para os dirigentes,
quanto mais divididas as pessoas estiverem, melhor, sobretudo nesta fase de eleições. Ajuda-
-os a perceber exactamente onde são fortes.79
Outra peça entra no tabuleiro da desmotivação política dos jovens. Germano Liberato,
que viveu e participou nas grandes mobilizações da OPA80 durante os anos 80, aponta
que os moldes em que se verificou a politização obrigatória acabou por,
(…) criar em muitas pessoas uma rejeição da política. Os discursos de hoje não mudaram
muito, continua o “Viva!” a que estamos habituados desde os 10, 11 anos. Os jovens
não sabem o que é participar politicamente em algo de verdade, porque no fundo acham
que é tudo uma farsa81.
Neste caldo de retracções, memórias amargas e percepções mais ou menos reais de
restrição das liberdades, os jovens que “realmente visualizam os fenómenos políticos,
que se interessam por eles e conseguem explicá-los de forma profunda, são em número
muito reduzido”82. Em geral, restringe-se a uma classe média com um grau elevado de

75
Arsénio Sebastião “Cherokee”, jovem lavador de carros de 27 anos. Foi assassinado em 26 de Novembro por guardas
da Unidade da Guarda Presidencial, no embarcadouro do Mussulo, quando cantava uma música de contestação de
MCK, “A téknica, as kausas e as konsekuências” (também conhecida por “Sei lá o quê, uáué”).
76
Em 3 de Outubro o director do semanário Angolense, Graça Campos, foi condenado pelo Tribunal Provincial de
Luanda a 8 meses de prisão efectiva e ao pagamento de 250 mil dólares, por crime de difamação e calúnia contra
o antigo ministro da Justiça, Paulo Tchipilica. A pena, segundo os analistas, terá sido arbitrária, ilegal e excessiva.
Graça Campos foi libertado cerca de um mês depois, esperando agora pela decisão do Tribunal Supremo, que está
a reapreciar o caso.
77
Fernando Garcia Miala, antigo Director-Geral do Serviço de Inteligência Externa (SIE), foi condenado em Setembro
de 2007 a 4 anos efectivos de cadeia, sob a acusação de não comparência à cerimónia de desgraduação. A sentença,
que não abordou a principal questão que a sociedade angolana esperava ver esclarecida – o alegado envolvimento
de Miala numa suposta tentativa de golpe de Estado em Março de 2006 – foi encarada como excessiva por vários
sectores da sociedade, inclusivamente de um elemento importante da ala histórica do MPLA, o deputado Mendes
de Carvalho, que afirmou aos jornalistas não gostar da pena aplicada pelo Supremo Tribunal Militar. Entretanto
aguarda-se pelo desfecho do recurso interposto pelos advogados de Miala e dos co-réus (Maria do Céu Domingas,
Ferraz António e Miguel Francisco André, colaboradores directos do ex-director-geral do SIE, e condenados a 30
meses de cadeia cada).
78
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
79
José Gama, 30 anos, Secretário-Geral do Clube de Angolanos no Exterior (Clube K) (02/12/2007).
80
Organização de Pioneiros Agostinho Neto, braço juvenil do MPLA
81
Germano Liberato, contabilista, 31 anos. (01/12/2007)
82
Augusto Maquembo, 33 anos, formador para o processo eleitoral na organização norte-americana National Democratic
Institute (NDI) e estudante do 2.º ano de Direito na Universidade Católica de Angola (04/12/2007).
176 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

escolaridade e que se preocupa de forma desinteressada com o seu país. São estudantes
universitários, músicos, artistas de várias áreas, jornalistas, activistas cívicos e também
jovens angolanos que viveram alguns anos no exterior onde foram “expostos a sociedades
diferentes e verdadeiramente democráticas”83, como Cesaltina Cutaia ou José Gama84.
Dotada de uma elevada capacidade de análise dos sinais sociais, esta pequena franja
da juventude angolana acompanha de forma crítica as acções do Estado, o que numa
sociedade como a angolana é por si só um desafio ao próprio sistema. Ao fazê-lo,
ganham poder enquanto líderes de opinião e contrariam a percepção generalizada (e
castradora) de que a participação política é apenas a militância partidária – uma noção
também ela herdada do sistema de partido único, onde toda a sociedade civil estava
directamente subordinada às estruturas do MPLA.

2.2 – Agentes de potencial consciencialização política alternativa


O espaço deixado em aberto pela ausência de políticas públicas de divulgação dos
direitos e deveres dos cidadãos tem vindo a ser paulatinamente ocupado por várias
instituições, com destaque para organizações não-governamentais e meios de comu-
nicação social. Mas o trabalho não está a ser fácil. Nos últimos tempos o Estado tem
vindo a exercer uma enorme pressão sobre estas instituições, com o claro intuito de
lhes restringir o raio de acção.
Na área dos media, para além do domínio dos nada pluralistas e imparciais órgãos pú-
blicos de informação85, a imprensa e rádios independentes têm tido sérias dificuldades
em transpor os limites da província de Luanda, quer por imposição do governo, como
é o caso da Rádio Ecclesia, quer por ausência de mecanismos eficazes de distribuição
de jornais no país. Processos judiciais deficientemente conduzidos e mais ou menos
claros86 têm vindo a ameaçar os jornalistas, levando os profissionais desta classe a,
consciente ou inconscientemente, entrar “num ciclo muito grande de auto-censura”87.
Ainda assim, na tentativa de aumentar os seus lucros, muitos jornais privados usam
e abusam da especulação e do sensacionalismo, contribuindo para a sua crescente
descredibilização e legitimando, aos olhos de grande parte da sociedade angolana,
as acções criminais que figuras do Estado movem contra estes órgãos, ainda que de
forma dúbia.

83
Cesaltina Cutaia, 27 anos, activista cívica da Open Society (06/12/2007)
84
Cesaltina Cutaia viveu na África do Sul durante algum tempo. Trabalha actualmente em Luanda, na Open Society
Angola. Por sua vez, José Gama é presidente do Clube de Angolanos no Exterior, vivendo actualmente em Pretória,
África do Sul.
85
Jornal de Angola, Angola Press, Televisão Pública de Angola e Grupo Rádio Nacional, com presença em todas
as províncias.
86
O caso “Graça Campos” foi o primeiro de uma série de acontecimentos envolvendo jornalistas que aconteceram nos
últimos meses, com um intervalo curto de tempo. Depois deste, em 15 de Novembro de 2007 o jornalista Fernando
Lelo foi detido no campo petrolífero do Malongo, em Cabinda, onde prestava serviços administrativos na empresa
Algoa. Segundo a imprensa, Lelo foi acusado de promover uma rebelião no enclave. A detenção foi feita pelas Forças
Armadas Angolanas, mandatadas por um tribunal militar. Em 28 de Novembro, Alexandre Salombe, director da Rádio
Despertar (ligada à UNITA), e o jornalista António Cascais foram agredidos e detidos pela Polícia Nacional enquanto
falavam com populares do Bairro Iraque (Calemba III, Luanda), onde têm vindo a ocorrer despejos forçados. Por seu
lado, em 22 de Dezembro de 2007 o correspondente da Rádio Ecclésia no Namibe, Armando Chicoca, foi detido por
alegada incitação à desobediência pública durante a cobertura jornalística da chamada “Operação Tango” (operação
da Polícia Nacional que visa acabar com os mercados erguidos em locais considerados impróprios). Condenado a 30
dias de cadeia num julgamento sumário ocorrido no dia 28 de Dezembro, Chicoca seria libertado a 25 de Janeiro de
2008, quatro dias depois do término da pena. Na comarca do Namibe, onde esteve detido, o jornalista terá sofrido
tortura e violações várias dos seus direitos, segundo o mesmo.
87
Suzana Mendes, 24 anos, Editora-Chefe do semanário privado Angolense (01/12/2007)
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 177

Também organizações da sociedade civil nacionais e internacionais que trabalham


na área dos direitos fundamentais têm estado sob fogo cruzado88, estando inclusi-
vamente algumas sob ameaça de expulsão e extinção, à imagem do que aconteceu
com a Mpalabanda89. Acções intimidatórias como esta asfixiam numa fase inicial da
sua actividade um sector vital através do qual os angolanos poderiam exercer de
forma independente a sua dimensão política. Os sinais que o Estado vai emitindo, ao
apelidar as organizações não-governamentais que contestam as políticas do governo
de “marionetes da oposição”, e ao “não ter a sua opinião e contribuições em conta”90,
acabam por desincentivar a participação dos que não querem (e aqui voltamos ao
mesmo), “arranjar problemas” — a velha questão da dinâmica intimidatória de um
“sistema que não permite que outros elementos para além dos partidos tenham mais
protagonismo”91.
As críticas a estas acções do governo existem, no entanto, e vão-se fazendo ouvir:
A democracia não se constrói só com partidos, ela deve ser um agregado de forças que
faça com que o sistema represente um verdadeiro elo entre o cidadão e o Estado. A única
forma de se ser cidadão é, antes de mais, estar atento ao desenrolar dos acontecimentos,
exigir, saber de democracia e cidadania, ter um projecto para uma Angola melhor92.
Paulo Pombolo reconhece também esta necessidade:
Há um défice de consciencialização política dos jovens, porque falta um trabalho profun-
do das instituições que têm essa responsabilidade, entre as quais as próprias formações
juvenis dos partidos, que têm essa missão [...] O importante é fortalecer o associativismo
juvenil, partidário e apartidário, para que as pessoas não se agarrem unicamente aos
problemas políticos que as dividem. Há questões prioritárias [para a juventude e para o
país] em torno das quais nos devíamos juntar93.
Há quem pense, no entanto, que este caminho está já a ser percorrido, ainda que com
obstáculos. O dirigente do Clube K, José Gama, acredita que, “à semelhança do que

88
No dia 10 de Julho de 2007, através da Rádio Nacional de Angola, Pedro Walipi Calenga, Director da Unidade
Técnica de Coordenação da Ajuda Humanitária do Governo de Angola, acusou as organizações angolanas Associação
Mãos Livres, SOS Habitat, Associação Justiça Paz e Democracia (AJPD) e as internacionais NDI, Open Society – Angola,
Search for Common Ground e IRI de “operarem ilegalmente, de serem patrocinadas por partidos políticos da oposição e
de usarem reivindicações de Direitos Humanos como disfarce para infringir a lei”. Calenga levantou também a ameaça
do encerramento das organizações nacionais e da expulsão das internacionais. Outros casos visando as associações
da sociedade civil têm-se multiplicado. No final de Novembro de 2007 os responsáveis da AJPD foram notificados
para comparecer a tribunal para responder pelo crime de difamação a Paulo Tchipilica. O processo acabou por ser
anulado, depois do antigo ministro da Justiça retirar a queixa. Em declarações à Voz da América, o advogado de
Tchipilica, Alexandre Pegado, justificava a retirada: “as causas, as razões objectivas, o contexto e as circunstâncias
que na altura motivaram o nosso constituinte a tomar a decisão de, na qualidade de ofendido, exercer o direito de
queixa, esbateram-se ao longo dos anos. Este processo data de 2002 e durante este lapso de tempo não houve da
parte dos arguidos qualquer comportamento que evidenciasse a reiteração posterior da mesma conduta.»
89
No final de Julho de 2006, o Tribunal Provincial de Cabinda ilegalizou a Mpalabanda – Associação Cívica de
Cabinda, acusada de desenvolver actividade política, promover a desobediência e criar instabilidade. A ilegalização
foi sentenciada cerca de uma semana antes da assinatura, no Namibe, do Memorando de Entendimento entre o
Governo e Bento Bembe, em representação (contestada pela Mpalabanda e por outros sectores da sociedade de
Cabinda) do Fórum Cabindês para o Diálogo, em que foi instituído o cessar-fogo das partes antes em conflito no
enclave, e o início do processo para a autonomia de Cabinda.
90
Augusto Maquembo, 33 anos, formador para o processo eleitoral na organização norte-americana National Democratic
Institute (NDI) e estudante do 2.º ano de Direito na Universidade Católica de Angola (04/12/2007).
91
Augusto Maquembo, 33 anos, formador para o processo eleitoral na organização norte-americana National Democratic
Institute (NDI) e estudante do 2.º ano de Direito na Universidade Católica de Angola (04/12/2007).
92
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
93
Paulo Pombolo, 1.º Secretário Nacional da JMPLA(04/12/2007).
178 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

tem acontecido um pouco por toda a África, onde as sociedades civis acabaram por
se impor em países como o Benim ou a Zâmbia”, também em Angola as organizações
cívicas acabarão por ganhar mais espaço para além do que conquistaram até aqui94.
Um outro actor importante, que não está a cumprir devidamente com o seu papel
de formação de massa crítica são as academias, havendo quem defenda que “muitos
estudantes entram no ensino superior a pensar de uma forma e saem a pensar exac-
tamente igual”95. As universidades privadas são, aos olhos de muitos, autênticas má-
quinas de fazer dinheiro e de fabricar licenciados. Excepção à Universidade Católica
de Angola, que alcançou um certo reconhecimento ao nível da qualidade do ensino e
da investigação. Do lado do ensino público, a Universidade Agostinho Neto (UAN), a
única universidade pública angolana, é vista por alunos e professores que dela fazem
parte como um espaço ainda “partidarizado”96, onde é imposta a “figura do docente,
muitas vezes pertencente ao partido A ou B”97 e onde as “associações de estudantes
são dominadas pelas células partidárias”98.
A universidade deveria ser o espaço propício para o debate, para o questionamento e
para a consciencialização política, mas por estar altamente politizada inviabiliza um
processo responsável e objectivo de reflexão e avaliação do sistema vigente. (...). Nada
acontece no espaço universitário sem a presença governamental (...). Quando situações
deste tipo são norma, o corpo docente e os alunos sentem-se intimidados, (...) reina o
silêncio e a auto-censura. (...)99.
Ainda assim, começam já a surgir na UAN de Luanda espaços de discussão abertos e
plurais, o que poderá indiciar algum tipo de mutação. Mas se alguns sinais positivos
são emitidos, outros surgem, em sinal contrário. É o caso da proposta da recém-criada
Secretaria de Estado do Ensino Superior que, se for aprovada em Conselho de Mi-
nistros, fará com que o Reitor da UAN deixe de ser eleito para passar a ser nomeado
directamente pelo Presidente da República, como acontecia antigamente. Embora re-
jeite as críticas sobre a politização da universidade pública, Paulo Pombolo afirma-se,
enquanto cidadão, contra esta proposta que diz ser um “retrocesso”: “não devíamos
perder a oportunidade de continuar a democratização da universidade”.
Esta proposta surge na altura em que foi anunciada a criação de cinco novas universi-
dades públicas nas províncias do Huambo, Benguela, Huíla, Cabinda e Lunda-Norte.
Ao nomear directamente os reitores, o Estado passaria a exercer um controlo mais
apertado sobre toda a rede universitária, minimizando os possíveis “efeitos adversos”
para o sistema, provenientes de uma expansão muito para além dos limites facilmente
controláveis de Luanda.
Conclusão
Mais do que descrença na política, a maioria dos jovens angolanos ignora-a. A con-
versa gasta das formações partidárias, aliada à espiral de descredibilização em que os
políticos nacionais dos vários quadrantes se envolveram, muito devido à corrupção

94
José Gama, 30 anos, secretário-geral do Clube de Angolanos no Exterior (Clube K) (02/12/2007).
95
Cesaltina Cutaia, 27 anos, activista cívica da Open Society (06/12/2007)
96
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
97
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
98
MCK, 26 anos, músico e estudante do 4.º ano de Filosofia na Universidade Agostinho Neto (03/12/2007).
99
Carlos Muiamba (nome fictício), docente do ensino superior público, 35 anos. Questionário respondido por e.mail.
(13/12/2007)
Pedro Cardoso h Os Jovens Angolanos e a Política 179

de que são constantemente acusados, são factores que contribuem para o desinteresse
deste sector que representa a maioria da população angolana.
O Estado, por seu lado, pouco contribui para alterar esta percepção. Ao manipular
e restringir a acção dos agentes formadores de consciência — sociedade civil, comu-
nicação social e instituições de ensino — nada mais faz do que perpetuar o medo de
participação política, partidária ou cívica, levantando os velhos fantasmas repressivos
do monopartidarismo. Confrontados com esta realidade, os jovens angolanos acabam
por mergulhar na sua individualidade, preocupando-se em garantir a sua sobrevivência
pelos seus próprios meios.
As juventudes partidárias, por seu lado, são vistas como um trampolim para se al-
cançarem determinadas benesses e reconhecimento social que, de outra forma, seriam
impossíveis de obter. É mais ou menos consensual (à excepção dos dirigentes das “jo-
tas”) que os milhões de militantes que integram as suas fileiras não correspondem, de
forma alguma, aos que verdadeiramente praticam a ideologia vigente. Por outro lado,
o poder dos líderes juvenis partidários em influenciar as decisões das direcções é muito
reduzido. A dependência dos líderes juvenis e das próprias organizações em relação
aos dirigentes máximos dos partidos acaba por minar, de alguma forma, a capacidade
das juventudes de revitalizarem a imagem dos partidos políticos e de renovarem os
diferentes discursos políticos, aos quais a sociedade já pouca atenção presta.
Criadas à imagem e semelhança dos “mais-velhos”, as juventudes partidárias
(JURA e JMPLA), através de alguns membros, envolvem-se em actos violentos e, por
vezes mortais, de intolerância política. Actos dos quais os seus líderes se demarcam,
mas que abrem precedentes perigosos. Esta guerra silenciosa entre as juventudes dos
partidos levanta, assim, uma pergunta: impregnada dos vícios dos “mais-velhos”, até
que ponto a nova geração de políticos angolanos vai marcar, realmente, um ponto de
viragem no sistema político angolano?
A resposta poderá não estar no mundo da política partidária, onde a procuramos. Na
verdade, as reservas morais e políticas deste país poderão estar exactamente no produto
do trabalho da limitada sociedade civil angolana que tem vindo a tentar formar um
pouco por todo o país verdadeiras consciências democráticas e pensamentos livres.
O caminho para a sua afirmação, no entanto, ainda é longo.
181

Género, Mercado de Trabalho


e Sociedade Civil1.

Introdução
Aline Afonso Pereira
Instituto Superior
de Ciências do Trabalho
E ste texto analisa a relação entre género e mercado de
trabalho urbano em Angola, no contexto da guerra e
do processo de liberalização económica2. Ao adoptar uma
e da Empresa –ISCTE, perspectiva de género, estamos a integrar uma parte substan-
Lisboa cial dos padrões do comportamento humano no âmbito das
mudanças nas dinâmicas das instituições e nas identidades
colectivas de actores económicos e sociais que intervêm no
mercado, provocadas ou acentuadas pelo actual contexto de
globalização capitalista e do seu modo de produção. Trata-se
de uma categoria que nega a ideia do papel de passividade
natural que é historicamente atribuído à mulher, relacionando
homens e mulheres, sem pré-definir por sexo o espaço a ser
ocupado por cada um na sociedade, além de implicitamente
relacionar a questão da igualdade e da justiça3. Tal como
diria Giddens, enquanto sexo se refere às diferenças físicas
do corpo, género diz respeito às diferenças culturais, sociais,
económicas e psicológicas entre homens e mulheres4.

1
Este trabalho beneficiou de uma pesquisa de campo realizada nos meses de
Junho e Julho de 2006 em Luanda. Para a elaboração deste trabalho, além da
recolha documental, foram consideradas entrevistas realizadas em estruturas
governamentais (nomeadamente o Ministério da Família e Promoção da Mulher
– MIINFAMU), em ONG, fundações e outras organizações da sociedade civil,
mediante o seu grau de envolvimento (directo ou indirecto) no processo de inclusão
do género no mercado de trabalho.
2
Importa ressaltar que qualquer análise sobre o mercado de trabalho angolano
fica limitada devido a falta de dados estatísticos oficiais recentes; o último censo
nacional foi realizado em 1970. Embora tenham sido realizados alguns trabalhos
sócio-demográficos complementares e parcelares em algumas províncias até 1983,
não contemplam a generalidade das mudanças na distribuição da população,
decorrentes da guerra civil e das profundas transformações ocorridas ao longo
das últimas décadas. Para preencher essa lacuna, este artigo utiliza como fontes
os relatórios das principais agências internacionais.
3
BRUSCHINI, Cristina (1992), “O Uso de Abordagens Quantitativas em Pesquisa
sobre Relações de Género”, in Uma Questão de Género, São Paulo: Rosa dos Tempos/
Fundação Carlos Chagas.
4
GIDDENS, Anthony (1997), Sociologia, Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa. p.
202. Para Marchbank e Etherby, “Género é usualmente visto como uma diferença
socialmente determinada, baseada nas diferenças biológicas entre sexos. Sexo, o
estado de ser macho ou fêmea, é determinado por características biológicas, tais
como a anatomia, atributos reprodutivos e de cromossomas. O sexo é natural,
enquanto o género é visto como a expressão social de diferenças biológicas
naturais, essencialmente baseadas na aparência dos genitais. O Género refere-se
ao económico, ao social e ao cultural”, in MARCHBANK, Jennifer; LETHERBY,
Gayle (2007), Introduction to Gender: Social Science Perspectives, Pearson Education
Limited: Edinburgh. p. 5.
182 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

O processo de integração total e aberta da economia angolana no mercado global


(inicio da transição para o multipartidarismo em Angola, nos anos 90) e a guerra civil
que assolou o país desde 1975 (independência) até 2002 (assinatura do memorando de
Luena) reforçaram a desigualdade de género no mercado de trabalho urbano.
A mulher angolana encontra barreiras para integrar-se no mercado formal de trabalho,
para ascender na carreira, para receber maiores salários, para qualificar-se. O trabalho
dos homens e das mulheres não é valorado da mesma forma, a mulher não recebe tra-
tamento justo nem igualitário no mercado de trabalho urbano em Angola. Em Angola,
em 2004, estima-se que o rendimento auferido pelas mulheres foi de 1670$US (510$US
abaixo do valor do PIB per capita de 2004, situado nos 2180$US) enquanto o masculino
foi de 2706$US (526$US acima do PIB per capita de 2004)5. Sem oportunidades de in-
serção no sector formal, o sector informal é o caminho encontrado por estas mulheres
para a sua sobrevivência e para a sobrevivência das suas famílias.
As chamadas organizações da sociedade civil, especialmente as ONG nacionais e in-
ternacionais, têm dado um importante contributo para melhorar a condição da mulher
na sociedade angolana e para sensibilizar o poder político para as questões do género.
No entanto, o seu contributo será sempre complementar aos esforços do governo, a
quem cabe o papel principal nesta matéria, desenvolvendo políticas públicas prioritá-
rias para as mulheres, no sentido de as integrar no mercado de trabalho em condições
de igualdade e justiça, capacitando-as para competirem no mercado de emprego e
apoiando-as na procura de emprego e na adequação do mercado de trabalho às suas
necessidades específicas, nomeadamente no que concerne à maternidade.
A discriminação e a desigualdade de oportunidades além de obstarem ao desenvolvi-
mento da mulher angolana, comprometem o desenvolvimento saudável da sociedade
como um todo. De igual modo há que ter em conta que não podemos falar de uma
sociedade civil activa e interventora, capaz de apoiar o processo de democratização das
instituições e da sociedade, caso se mantenham este tipo de desigualdades discrimi-
natórias da mulher. Tendo em conta o peso da mulher a todos os níveis na sociedade
angolana, não se poderá falar de sociedade civil capaz sem a sua ampla participação
em situação de igualdade.
Este texto apresenta-se estruturado em cinco capítulos, sendo o primeiro dedicado aos
efeitos da guerra e da liberalização sobre o mercado de trabalho em geral, o segundo e
o terceiro concernentes aos factores que influenciam a procura e a oferta por mão-de-
obra. O quarto capítulo diz respeito à relação das mulheres com o mercado de trabalho
informal, para o qual são normalmente relegadas, sendo que o quinto e último capítulo
aborda a questão das relações entre género e sociedade civil, tratando a questão das
organizações da sociedade civil que trabalham na área de género.

1 – Guerra, Liberalização e Mercado de Trabalho


A guerra civil teve um enorme impacto na actual desigualdade económica e social
em Angola, com uma influência clara ao nível do mercado de trabalho. Este conflito
provocou a migração do campo para as cidades de cerca de 4 milhões de pessoas6 em

5
PNUD (2006), Human Development Report, Beyond Scarcity: power, poverty and the global water crisis. p. 366.
6
Ministério das Finanças (2007), Exercício 2008: resumo da origem dos recursos por órgão, Luanda. p. 2
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 183

decorrência da violência e da falta da assistência7; interrompeu as actividades agríco-


las, levou ao encerramento da maioria do parque industrial, à destruição de pontes,
estradas, barragens, caminhos-de-ferro e à ruptura progressiva dos sistemas de saúde
e de educação. A guerra civil gerou impactos tanto no lado da oferta como no lado
da procura por mão-de-obra, estes impactos serão tratados de forma transversal em
todo o texto.
Além da destruição causada pela guerra civil, a estrutura produtiva do país foi tam-
bém afectada por duas grandes transformações no modelo de governação. A primeira
dá-se no contexto do processo de independência, em concerto com o panorama da
“guerra-fria” que imperava no cenário internacional e devido ao forte apoio que o
Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) recebia da ex-União Soviética
durante a luta pela independência do país. Quando o MPLA assume o governo de
Angola em 1975 opta pela adopção do modelo Socialista, caracterizado por um sistema
monopartidário, com uma economia centralizada e planificada, totalmente dominada
pelo esforço de guerra, onde o Estado era o principal actor no mercado de trabalho8.
O objectivo inicial era estabelecer um Estado forte, que pudesse repelir e derrotar os
inimigos externos e internos, conseguir a unidade nacional e promover o desenvolvi-
mento social e económico por via da direcção central. A alta dos preços do petróleo nos
anos setenta e a consequente tendência sustentada de aumento da produção petrolífera
a partir dos anos oitenta geraram um grande incremento das receitas do Estado9.
No entanto, o “Estado forte” foi enfraquecido pela insuficiente participação popular,
pela escassez de pessoal qualificado (este período foi marcado pela redução da mão-
de-obra especializada que, na sua maioria portuguesa, retornou em grande parte para
a Europa), pelo crescimento da rebelião da União Nacional para a Independência Total
de Angola (UNITA), apoiada pela África do Sul e pelos Estados Unidos da América,
e, a partir de 1986, pelo fardo de uma dívida externa que começava a ser demasiado
pesada10. Durante todo o período de guerra civil, apesar da retórica oficial do MPLA
e da UNITA em favor da igualdade entre homens e mulheres, ambos parecem ter
relegado as mulheres ao seu tradicional papel de suporte, com algumas excepções ao
nível da liderança11.
A segunda grande transformação refere-se ao processo de transição para o multipar-
tidarismo e para a economia de mercado. Caracterizado por fortes políticas de priva-
tização, este processo começa a ser delineado a partir de 1985/1987 com a aprovação
do Programa de Saneamento Económico e Financeiro (SEF) de 1987. O programa
tinha como principais linhas de actuação a privatização de empresas não-estratégicas,
a redução do sector estatal, a legalização do sector privado (i.e. pequeno comércio,

7
A ajuda humanitária atingia apenas cerca de 10 a 15 por cento do país, apenas em zonas limitadas dentro e nos
arredores das principais cidades de cada província, era possível garantir a segurança do pessoal envolvido nas
distribuições, nas áreas controladas pela UNITA o acesso à ajuda humanitária era praticamente inexistente. Human
Rights Watch (2002), Briefing sobre Angola Apresentado ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas ao
Abrigo da Fórmula Arria, Human Rights Watch: Nova Iorque. p. 2.
8
Oficialmente, o modelo de partido único Socialista-Marxista existe desde a reunião plenária do Comité Central
do MPLA em Outubro de 1976 até ao Terceiro Congresso do Partido em 1990; in VIDAL, Nuno (2002), Post-modern
patrimonialism in Africa: the genesis and development of the Angolan political and economic system, 1961-1987, King’s
College, University of London, PhD Thesis, pp. 14-15.
9
HODGES, Tony (2002), Angola do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Principia: Cascais. p. 73.
10
HODGES, Tony (2002), Angola do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Principia: Cascais. p. 73.
11
WIDTECH (1997), A Participação da Mulher na Reconstrução de Angola no seu Processo Político e Instituições,
Volume I, WIDTECH: Massachusetts. p. 9
184 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

transporte público e comercial, etc.), o término dos subsídios orçamentais para as em-
presas estatais remanescentes, o retorno das fazendas estatais para os camponeses, o
aumento dos preços (para reflectir os custos efectivos de produção), a autorização da
livre circulação de produtos entre as províncias, e a permissão gradual do livre curso
da oferta e da procura em alguns mercados12. Este programa expressava, ainda que
implicitamente, o distanciamento do governo de Angola em relação ao modelo Socia-
lista e uma aproximação com o Ocidente, uma vez que os objectivos deste programa
seguiam de forma próxima as recomendações do Banco Mundial (BM) e do Fundo
Monetário Internacional (FMI) para os países africanos, nomeadamente no que con-
cerne à implementação de um processo de ajuste fiscal desenvolvido em duas grandes
vias: aumento das receitas e contenção de despesas. Angola acabou por ser admitida
como membro do FMI em Julho de 1989, três anos antes de oficialmente adoptar o
modelo de economia de mercado.
A adopção do modelo neo-liberal em Angola em 1991, dá-se em consonância com as
reformas já implementadas, com o contexto internacional e ainda de acordo com os
pressupostos do programa de ajuste fiscal vigente naquela altura para os países em
desenvolvimento, nomeadamente no que diz respeito à necessidade de diminuir a
dimensão e a presença directa do Estado na economia (reduzindo a administração
pública e privatizando o sector empresarial do Estado), à necessidade de equilibrar
a balança de pagamentos, controlar a taxa de câmbio e a inflação. A transição do
modelo Socialista para a economia de mercado foi implementada de forma muito
rápida, sem que a maioria da população pudesse compreender o real significado
da mudança, pudesse expressar a sua opinião ou colaborar com a transição. Além
disto, a transição para a economia de mercado foi feita de forma parcial e afectando
principalmente os sectores sociais, já que o Estado era (e ainda é) o principal actor no
mercado angolano a todos os níveis, sendo o maior produtor e o maior empregador.
As despesas governamentais representaram na década de noventa cerca de 60% do PIB
e a dívida externa era titulada em praticamente 100% pelo Estado13. No que se refere
à descentralização do poder, condição básica do neo-liberalismo, nada ou pouco foi
feito, já que o poder permaneceu fortemente concentrado e centralizado, todo o país
continuou a ser administrado por Luanda.
Após a transição, mantiveram-se vestígios do antigo sistema de afectação administrati-
va de recursos no seio de uma lógica patrimonial moderna. A praticamente inexistência
efectiva de mecanismos de responsabilização, prestação de contas e transparência,
facilitou a arbitrariedade e criou obstáculos acrescidos a uma gestão eficaz e ao pró-
prio desenvolvimento da actividade produtiva. Ao mesmo tempo, o próprio Estado
ficou ainda mais enfraquecido com a situação de guerra que se reacendeu depois
das eleições de 1992, uma vez mais influenciando negativamente o desempenho eco-
nómico (não obstante o aumento das receitas petrolíferas que atingiram níveis sem
precedentes)14.

12
VIDAL, Nuno (2002), Post-modern patrimonialism in Africa: the genesis and development of the Angolan political and
economic system, 1961-1987, King’s College, University of London, PhD Thesis, pp. 340-342.
13
In Relatório do Centro de Estudos e Investigação Científica – CEIC (2003), Relatório Económico de Angola 2002.
Universidade Católica de Angola: Luanda. p. 4.
14
VIDAL, Nuno (2006), “Multipartidarismo em Angola”, in Nuno Vidal & Justino Pinto de Andrade (eds.) O Processo
de Transição para o Multipartidarismo em Angola, Firmamento: Luanda & Lisboa, pp. 11-57; também VIDAL, Nuno
(2007), “The Angolan regime and the move to multiparty politics”, in Chabal, Patrick & Vidal, Nuno, Angola, the
weight of history, London & New York: Hurst & Columbia University Press, pp. 124-174.
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 185

O mercado de trabalho urbano foi um dos espaços mais afectados pelas transformações
que ocorreram em Angola no período pós-independência, por um lado pela diminuição
da procura por mão-de-obra, por outro lado pelo contínuo aumento da oferta causado
pela violência da guerra civil e consequentes migrações rumo às grandes cidades,
especialmente a capital do país. A relação da liberalização com mercado de trabalho
urbano (formal e informal) será neste artigo analisada por meio de dois grandes eixos:
os factores que influenciam a procura por mão-de-obra (capítulo 2) e os factores que
influenciam a oferta de mão-de-obra (capítulo 3).
2 - Principais Factores Condicionantes da Procura por Mão-De-Obra no
Mercado de Trabalho Urbano de Angola.
Luanda foi o destino preferencial daqueles que saíram das áreas rurais, esta cidade
além de ser a capital político-administrativa do país é também o maior mercado de
trabalho (concentrando 75% da produção industrial e 65% da actividade comercial15)
e é a sede das principais empresas nacionais e internacionais que operam em Angola.
Actualmente, a taxa de desemprego em Luanda está estimada entre 27,1% e 31%16. O
desemprego afecta os trabalhadores em geral, mas afecta sobretudo a camada mais
vulnerável no seio do mercado de trabalho — as mulheres17. Em situações de pobreza
as mulheres têm um acesso mínimo à alimentação, aos serviços médicos, à educação,
à formação e às possibilidades de emprego e à satisfação de outras necessidades18.
Em 1993 a população desempregada na cidade de Luanda era de 24% da População
Economicamente Activa (PEA). Desse total, 40,6% correspondia àqueles que “tinham
trabalho antes mas ficaram desempregados”. As mulheres foram duramente penali-
zadas neste processo, constituindo 67,6% da massa de desempregados contra 32,4%
de homens19.
A procura de mão-de-obra corresponde ao conjunto de empregos disponíveis do lado
da actividade económica20 e a longo prazo é amplamente modificada, na sua estrutura,
pelo processo de desenvolvimento económico. As fortes perturbações causadas pela
transformação do modelo político-económico (liberalização dos anos noventa), aliadas
a uma segunda vaga (mais violenta) de destruição das infra-estruturas produtivas,
causada pelo retomar da guerra civil depois das primeiras eleições gerais de 1992,
provocaram danos profundos na já de si débil estrutura económica angolana, com
efeitos na procura por mão-de-obra, a curto, médio e longo prazo.
Em 2006, os dados oficiais apontam para uma taxa de desemprego na ordem dos
25,2%21. Conforme anteriormente referido, no actual mercado de trabalho em Angola

15
Relatório do Centro de Estudos e Investigação Científica (2006), Relatório Económico Anual, Universidade Católica
de Angola: Luanda. p. 6
16
Relatório do Centro de Estudos e Investigação Científica (2006), Relatório Económico Anual, Universidade Católica
de Angola: Luanda. p. 6
17
CHAGAS LOPES, Margarida (1999), “A Igualdade de Oportunidades como Estratégia Empresarial”, in Sociedade e
Trabalho, 6, Departamento de Estudos, Prospectiva e Planeamento – DEPP: Lisboa
18
Nações Unidas (1979), Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, p. 1.
19
Instituto Nacional de Estatística (1993), Inquérito Sócio-Demográfico e Emprego na Cidade de Luanda (Junho – Julho de
1993). Resultados Definitivos. População, Emprego e Desemprego. INE: Luanda. pp. 29-31
20
MOURA, João (1986), Economia do Trabalho, Fundação Oliveira Martins: Lisboa. p. 21
21
Relatório do Ministério do Planeamento (2007), Programa Geral do Governo 2005-2006, Balanço de Execução Ano
2006, Luanda. p. 4
186 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

o Estado ainda é o maior responsável pela procura de mão-de-obra22, encontrando-se


omnipresente em todos os sectores da actividade económica. A maior parte dos agentes
privados ou tem o Estado como cliente ou depende de subsídios e benefícios estatais
(ou quaisquer outro tipo de benesses); destacam-se no sector privado as empresas de
telecomunicações23, as petrolíferas24, as construtoras25 e os Bancos26.
O descontrolo inflacionário nas décadas de oitenta e noventa desgastou o poder de
compra e introduziu graves disfunções nos mecanismos de poupanças e distribuição
dos rendimentos27. Na década de noventa o PIB da indústria transformadora não foi
além de um valor médio de 3,5% do PIB total do país28, sendo os sectores petrolífero
(esmagador) e diamantífero (complementar), os grandes pilares de sustentação da eco-
nomia angolana29. A forte dependência em relação o sector mineral extractivo contribui
para aumentar a vulnerabilidade da economia angolana no mercado internacional. O
país exporta petróleo e depende do mercado internacional para suprir as necessidades
do mercado interno (em 2006, na estrutura das importações, 60,3% correspondeu a
bens de consumo, 11% a bens intermédios, 28,7% a bens de capital30).
O desequilíbrio no mercado de trabalho em Angola é de carácter estrutural31, causado
pela incapacidade de superar a dependência do sector mineral extractivo. A extracção
22
Além de toda a máquina político-administrativa o Estado emprega por meio das empresas públicas, sendo as
principais: Angola Telecom, Banco de Poupança e Crédito, Banco de Comércio e Indústria, CABOTANG/Cabinda,
CABOTANG – Cabotagem Nacional Angolana, COMBAL, Cometa, CFB – Companhia de Caminhos-de-ferro de
Benguela, EDEL, Edições Novembro, EDIMEL, EDIPESCA, Empresa Portuária de Cabinda, Empresa Portuária de
Lobito, EMATEB, Empresa Nacional de Correios e Telégrafos de Angola, ENANA, ENDIAMA, ENE, ENSA, ENACMA,
Empresa Nacional de Lotarias de Angola, Empresa de Caminho de Ferro de Luanda, ENAMA, ENP – Empresa
Nacional de Pontes, EPAL, ENCEL, ENDIPU, ESTALNAVE, FRESCANGOL, GEOTECNICA, HIDROPORTOS,
Imprensa Nacional Angola, LACTIANGOL, LOGITECNICA, MABOR, MECANANG, PESCANGOLA, Porto comercial
do Namibe, RNA – Rádio Nacional de Angola, SECIL Marítima, Siderurgia Nacional, SIMPORTEX, SONANGOL,
SUCANOR, TPA – Televisão Pública de Angola, TAAG, TCUL; in Republica de Angola, Lista de Empresas Públicas
(Luanda: Ministério das Finanças, s.d)
23
Operadores telefónicos de rede móvel: Unitel e Movicel
24
Empresas petrolíferas que operam em Angola com participação da empresa nacional de combustíveis SONANGOL:
Devon, CNR, Total, BP, Esso, Chevron-Texaco, Occidental, Roc. Associadas e Parceiros, Daewoo, Repsol, Hydro,
Svenska, Pedco, Marathon, Statoil, Braspetro, Saga, Nirangola, Prodey, Petrogal, Ajoco, Shell, Teikokou, Neste Oil,
Inaftaplin, Naftagas, Falcon Oil Holding S.A., Petroinet. SONALGOL edição online: www.sonangol.co.ao/wps/
portal, consultado em 1 de Março de 2007.
25
Principais empresas de construção civil: Odebrecht, Teixeira Duarte, Soares da Costa, Motta e Engil, Camargo e
Correia, Edifer; in CONSTROI ANGOLA 2006 (s.d) Listagem de Expositores Directos e Indirectos, edição online: www.
arenaangola.com/files/constroi2006_expositores.pdf, consultado em 1 de Março de 2007.
26
Principais bancos privados: Banco Comercial Angolano, Banco de Fomento, Banco Sol, Banco Totta & Açores,
Banco Português do Atlântico,Banco Internacional de Crédito – BIC, Banco Africano de Investimento – BAI, Citibank ,
Equator Bank, Banco Espírito Santo, Banque Paribas.
27
Relatório do Ministério da Família e Promoção da Mulher (2007), Plano de Acção sobre a Família, MINFAMU:
Luanda
28
Relatório do Centro de Estudos e Investigação Científica (2003), Relatório Económico de Angola 2002. Universidade
Católica de Angola: Luanda. p. 4.
29
De acordo com Human Rights Watch, durante o período da guerra civil, fundos públicos derivados das receitas de
petróleo eram desviados para o financiamento secreto de aquisições de armamentos, além do comprometimento de
futuras receitas de petróleo em troca de empréstimos imediatos feitos ao governo. Em certos casos observados no
mesmo período por esta organização, as receitas do petróleo não foram processadas pelo Ministério de Finanças nem
pelo Banco Nacional de Angola, passaram antes pela companhia petrolífera estatal a Sonangol ou pela Presidência
da República, tendo sido utilizadas secretamente para a aquisição de armamentos. Estas ocorrências originaram
também alegações de corrupção no sector público; ver Human Rights Watch (2002) Briefing sobre Angola Apresentado
ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas ao Abrigo da Fórmula Arria, Human Rights Watch: Nova
Iorque. p. 5.
30
Relatório do Ministério do Planeamento (2007), Programa Geral do Governo 2005-2006, Balanço de Execução Ano
2006, Luanda. P. 10.
31
O carácter estrutural é permanente e difere do desequilíbrio conjuntural, que tem carácter eventual, cujo efeito
embora prejudicial é relacionado a aspectos circunstanciais.
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 187

e a comercialização de petróleo são baseadas na importação de equipamentos, tec-


nologia e especialistas estrangeiros. Angola é actualmente o segundo maior produtor
de petróleo Africano, produzindo 1,7 milhões de barris por dia32, mas somente 1% da
força de trabalho nacional é empregada pelo sector33. Em 2006, o sector petrolífero foi
responsável por 57,1% do PIB angolano, demonstrando o crescimento da dependên-
cia da economia nacional em relação à exportação de crude, quando comparado com
2004 e 2005, onde a participação do petróleo no PIB correspondeu a 52,6% e 56,3%
respectivamente34.
Gráfico 1 - Estrutura económica de Angola em 2006

Fonte: Relatório do Ministério do Planeamento (2007), Programa Geral do Governo 2005-2006, Balanço de
Execução Ano 2006, Luanda. p. 4.
O governo angolano obteve progressos no controlo da inflação, o que trouxe um maior
grau de previsibilidade e estabilidade negocial e económica35, mas há que ter em conta
que as medidas deflacionárias são concretizadas com base em restrições orçamentais,
monetárias e redução de investimentos no sector social. Há também que referir que
este controlo da inflação se faz por via do controlo cambial, que por sua vez se processa
com a injecção estatal massiva de dólares (provenientes das receitas petrolíferas em
alta), disponibilizados pelo Estado ao sistema bancário comercial, que por sua vez os
disponibiliza de forma geral ao mercado, mantendo satisfeita a procura por dólares
(essencialmente do lado dos grandes importadores).
Angola apresentou em 2006 a mais alta taxa de crescimento do Continente Africano
18,6% (inferior aos 20,6% de 2005)36, com um aumento no valor do PIB per capita
na ordem dos US$2.565,2 em 2006 (29,2% maior do que em 2005, que havia sido
de US$1.984,8), mas esse crescimento não se tem vindo a traduzir em aumento da

32
Em África, Angola encontra-se apenas atrás da Nigéria, que produz 2,3 milhões de barris de petróleo por dia.
33
Angola National Private Investment Agency – ANIP, edição online: www.iie-angola-us.org/economy.htm, consultado
em 15 de Outubro de 2007.
34
Embora os dados oficiais indiquem um aumento do PIB não petrolífero de 25,7%, o sector petrolífero ainda é
responsável por mais de metade do PIB de Angola; in Relatório do Ministério do Planeamento (2007), Programa Geral
do Governo 2005-2006, Balanço de Execução Ano 2006, Luanda. pp. 4-6.
35
Evolução da inflação: 3782,98% em 1995, 268,31% em 2000, 116,07% em 2001, 105,59% em 2002, 76,57% em 2003,
31,02% em 2004, 24,8% em 2005, 13,3% em 2006 e com uma estimativa de 13,9% para 2007.
36
Relatório do Ministério do Planeamento (2007), Programa Geral do Governo 2005-2006, Balanço de Execução Ano
2006, Luanda. p. 4
188 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

qualidade de vida para a esmagadora maioria da população. Em 2005, dois terços


da população vivia abaixo da linha de pobreza e 26% encontrava-se em situação de
extrema pobreza37, no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 2006, dos 177
países analisados pelo PNUD, Angola foi classificada na 161ª posição38, descendo ainda
uma posição em relação a 200539.

3 - Principais Factores Condicionantes da Oferta de Mão-de-Obra no


Mercado de Trabalho Urbano de Angola.
A violenta guerra civil angolana foi a principal responsável pelo aumento da oferta
de mão-de-obra no mercado de trabalho urbano, esta oferta mais que triplicou no
período pós-independência. Actualmente, 52,7% dos estimados 15,5 milhões de an-
golanos moram nas áreas urbanas. Durante os quase 27 anos de guerra a maior parte
dos migrantes de origem rural tiveram que encontrar uma forma de se estabelecer e
sobreviver nas áreas urbanas. Estas pessoas criaram novos hábitos e a paz não teve
como consequência directa o seu retorno para o campo.
Além do movimento migratório, um factor de aumento da oferta de mão-de-obra é a
composição etária da população. Em Angola a população é maioritariamente jovem; em
2005, 60% tinha menos ou até 20 anos de idade. A população também está num claro
processo de crescimento, a taxa de crescimento em 2004 foi de 2,5% e o número médio
de filhos gerados por cada angolana foi de 6,8. A previsão do PNUD é de que em 2015 a
população de Angola seja de 20,9 milhões de habitantes40. Isso significa que nos próximos
anos a oferta de mão-de-obra no mercado de trabalho vai crescer acentuadamente.
A qualificação da mão-de-obra é outro dos factores centrais que afectam o potencial
de empregabilidade. A baixa qualificação da mão-de-obra em Angola tem as suas ra-
ízes na política colonial, que não privilegiava a educação da população local, apesar
do esforço nos últimos anos, resultante essencialmente das pressões externas sobre
o governo português. Em 1973 a taxa bruta de escolarização tinha atingido apenas
33% da população e no início da década de 70 cerca de 85% da população adulta era
analfabeta41. De acordo com WIDTECH42, durante o período colonial, os missionários,
tanto católicos como protestantes, proporcionaram oportunidades de educação aos
angolanos, mas orientando os seus programas de educação no sentido de vocaciona-
rem os homens angolanos para áreas de liderança, enquanto que as mulheres eram
direccionadas para áreas como a economia doméstica, a assistência social e ensino.
O alargamento do acesso ao ensino foi uma das principais metas sociais do governo
angolano após a independência, tendo as matrículas triplicado depois de 1975, alcan-
çando mais de 1,9 milhões de crianças em 1979. Verificou-se também um progresso
significativo nos primeiros anos de independência no que se refere à educação de

37
Governo de Angola; PNUD (2005), Objectivos de Desenvolvimento do Milénio 2005, PNUD: Luanda. p. 6.
38
PNUD (2006), Human Development Report, Beyond Scarcity: power, poverty and the global water crisis, PNUD. p. 286
39
Relatório do PNUD (2005), Cooperação Internacional numa Encruzilhada: ajuda, comércio e Segurança num Mundo
Desigual, PNUD. p. 222.
40
PNUD (2006), Human Development Report, Beyond Scarcity: power, poverty and the global water crisis, PNUD. p. 300
41
Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (2000), Relatório de Seguimento das Metas da Cimeira Mundial pela
Infância, República De Angola: Luanda. p.13; ver também Marques da Silva, Elisete O papel societal do sistema de ensino
na Angola colonial (1926-1974) (Bissau: II Colóquio Internacional em Ciências Sociais sobre a África de Língua Oficial
Portuguesa, Novembro 1991), pp.1-29.
42
WIDTECH (1997), A Participação da Mulher na Reconstrução de Angola no seu Processo Político e Instituições, Volume
I, WIDTECH: Massachusetts. p. 9
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 189

adultos43. Depois do sucesso inicial no sector da educação (essencialmente até 1979),


a taxa de analfabetismo voltou a aumentar ao longo da década de noventa, com esti-
mativas de analfabetismo masculino (acima de 15 anos de idade) na ordem dos 47%
a 50% entre 1990 e 1995. As mulheres foram especialmente prejudicadas durante o
período de guerra com estimativas de elevação da taxa analfabetismo de 68% para
70% entre 1990 e 1995, numa época em que se observava uma diminuição substancial
na taxa de analfabetismo das mulheres na África Sub-Sahariana em geral44.
A guerra civil e vários outros factores travaram os avanços no campo educacional,45
contribuindo para o abandono escolar de milhares de crianças e consequentemente
a entrada precoce destas crianças no mercado de trabalho informal. De acordo com o
Relatório Estatístico do Ministério da Educação e Cultura para o ano lectivo de 1997/98,
o quadro educacional no país era “grave”; embora “diferenciado entre as províncias”,
atingindo “pontos críticos” nas províncias mais afectadas pela guerra. Constatava,
então, uma insuficiência quantitativa e qualitativa da rede escolar e do corpo docente,
assim como dos meios de ensino, condições de trabalho degradadas e inadequadas para
o exercício da actividade docente-educativa, para além de elevadas taxas de abandono
e reprovação, o que tornava o sistema educativo pouco rentável46.
De acordo com a análise do PNUD, Angola vem obtendo progressos no campo edu-
cacional. O relatório dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) de 2005,
classifica como elevado o nível actual de realização do objectivo 2 — alcançar o ensino
primário universal — e como elevada a probabilidade de cumprimento deste objectivo.
A taxa bruta de escolarização47 no ensino primário cresceu de 57% em 2000 para 79%
em 2002 e 91,1% em 2003, enquanto a taxa líquida48 cresceu de cerca de 38,2% para
49,1% no período de 2000 a 200249 No entanto, o relatório também observa problemas
relativos à incapacidade das famílias adquirirem o material escolar, à entrada tardia
das crianças na escola (nesse ano apenas 22% das crianças que chegaram à idade de 6
anos foram efectivamente matriculadas na escola) e às elevadas taxas de reprovação e
de abandono escolar (em 2003, apenas 30,6% das crianças que começaram a 1.ª classe
conseguiram concluir o ciclo de educação primária).
Apesar dos avanços referidos, o relatório dos ODM de 2005, classificou como fraco o
nível actual de cumprimento do objectivo 3 — alcançar a igualdade de género e pro-
mover o empowerment das mulheres —, e como moderada a probabilidade de cumprir
com este objectivo.
Actualmente, enquanto a taxa de alfabetização dos homens é de 82,9%, para as mu-
lheres é de apenas 54,2%50. Os principais factores que comprometem o desempenho

43
Ver a este respeito, VIDAL, Nuno (2007), “Social Neglect and the Emergence of Civil Society”, in Chabal, Patrick &
Vidal, Nuno, Angola, the weight of history (London & New York: Hurst & Columbia University Press), pp. 200-235.
44
Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (2000), Relatório de Seguimento das Metas da Cimeira Mundial pela
Infância, República De Angola: Luanda. p. 14.
45
VIDAL, Nuno (2007), “Social Neglect and the Emergence of Civil Society”, in Chabal, Patrick & Vidal, Nuno,
Angola, the weight of history (London & New York: Hurst & Columbia University Press), pp. 200-235.
46
Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (2000), Relatório de Seguimento das Metas da Cimeira Mundial pela
Infância, República De Angola: Luanda. p. 13.
47
Relação percentual entre o número total de alunos matriculados num determinado ciclo de estudos (independentemente
da idade) e a população residente em idade normal de frequência desse ciclo.
48
Indica o percentual da população em determinada faixa etária que se encontra matriculada no nível de ensino
adequado à sua idade.
49
Governo de Angola; PNUD (2005), Objectivos de Desenvolvimento do Milénio 2005, PNUD: Luanda. pp. 7-14
50
PNUD (2006), Human Development Report, Beyond Scarcity: power, poverty and the global water crisis, PNUD. p.382.
190 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

escolar da mulher são o abandono escolar precoce, seja por opção, por imposição da
família ou aquando do nascimento dos filhos, sendo agravado quando ocorre uma
sucessão da gravidez. As responsabilidades da vida familiar/doméstica e a falta de
formação adequada impedem as mulheres de encontrar empregos regulares no sector
formal, impelindo-as para o sector informal.
A escassez de respostas de formação, de emprego, de acesso a serviços de apoio social,
entre outros serviços e recursos, tende a dificultar a inversão das condições de desi-
gualdade estrutural em que as mulheres têm subsistido até aqui. Políticas públicas
activas desenvolvidas especialmente para as mulheres devem ser prioritárias para as
integrar no mercado de trabalho em condições de igualdade e justiça, capacitando-as
para competirem no mercado de emprego por via da educação, qualificação e re-
qualificação, apoiando-as na procura de emprego, promovendo a melhoria das suas
condições de trabalho, desenvolvendo serviços de apoio à família que, por exemplo,
lhes permitam equilibrar a maternidade com o trabalho51.
No entanto, a sensibilidade política para este tipo de políticas específicas para se tentar
recuperar, em parte, a desvantagem socialmente estrutural das mulheres em relação
aos homens no mercado de trabalho, é ainda muito fraca. Por um lado, a sociedade
continua a ser dominada por uma tradição forte de postura e raciocínio que privilegia
a posição dos homens no mercado de trabalho, por outro lado, as mulheres continuam
a estar sub-representadas nos órgãos de tomada de decisão52.
O Ministério da Família e Promoção da Mulher é a estrutura governamental e adminis-
trativa angolana específica para tratar das questões do género, contudo, este ministério
está no fim das prioridades do governo, sendo de todos os ministérios aquele a quem
cabe a menor dotação orçamental, na ordem dos 0,01% para 200853.
O resultado de anos de descaso e do vazio de políticas públicas efectivas para pro-
tecção da mulher durante a guerra civil, da transição económica dos anos noventa e
das transformações daí decorrentes no mercado de trabalho, pode ser constatado na
avaliação de 2006 do PNUD, que dos 136 países analisados no Índice de Desenvolvi-
mento ajustado ao Género (IDG) classificou Angola na 122.ª posição.

51
CAPUCHA, Luís (2005), Desafios da Pobreza, Celta: Oeiras. p.168
52
Para uma análise mais completa sobre a presença das mulheres nos órgãos de tomada de decisão ver PEREIRA,
Aline Afonso (2006), “Género e Desenvolvimento em Angola”, in VIDAL, Nuno & PINTO DE ANDRADE, Justino,
O Processo de Transição para o Multipartidarismo em Angola, Firmamento: Lisboa. pp. 241-258.
53
Ministério das Finanças (2007), Orçamento Geral do Estado, Exercício 2007. Luanda.
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 191

Gráfico 2 - Posição geral dos países membros da SADC quanto ao IDG

Fonte: PNUD (2006), Human development Report, Beyond scarcity: Power, poverty and the global water crisis.
p. 366.

4 - Mulheres e Mercado de Trabalho Urbano Informal


As distorções provocadas pelo sistema de planificação centralizada do período Socia-
lista, entre as quais se destacavam a fixação dos preços e a sobrevalorização da moeda
nacional, minaram a competitividade da economia formal e provocaram o surgimento
de um enorme mercado paralelo nos anos oitenta54. O processo de liberalização econó-
mica, e posteriormente política, encetado a partir da aprovação do SEF (1987) e apro-
fundado com a desestatização e a desregulamentação do comércio interno (supressão
das lojas do povo, das lojas especiais e das empresas de comercialização, abertura da
actividade comercial grossista e retalhista à iniciativa privada, redução do controlo
dos preços), induziu algumas transformações no quadro jurídico regulamentador da
actividade comercial e teve come efeito a institucionalização de um carácter de semi-
legalidade do comércio realizado nos mercados e nas ruas55.
A incapacidade do Estado e do mercado formal em absorverem a mão-de-obra activa,
abre o caminho para o funcionamento do mercado informal, que surge como via al-
ternativa. Significa todo um variado leque de actividades orientadas para o mercado
e realizadas com uma lógica de sobrevivência pelas populações que habitam nos
centros urbanos dos países em desenvolvimento. Tratam-se de práticas económicas
legais realizadas por agentes económicos ilegais, comportamentos económicos que se
efectuam à margem, que estão excluídos ou que escapam ao sistema institucional de

54
VLETTER, Fion de (2002) A Promoção do Sector Micro-Empresarial Urbano em Angola, Princípia: Cascais. p. 9
55
LOPES, Carlos M. (2007) Roque Santeiro – Entre a Ficção e a Realidade, Lisboa: Principia.
192 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

leis, regras, direitos, regulamentos e procedimentos que estruturam o sistema formal


de produção e troca56.
De acordo com a Décima Quinta Conferência Internacional de Estatísticos do Trabalho
(Fifteenth International Conference of Labor Statisticians - ICLS), realizada em Janeiro de
1993, a economia informal tem um papel importante para a criação de emprego, para
as gerações futuras e para a redução da pobreza em muitos países, principalmente
nos países em transição e em desenvolvimento57. Contudo, o mercado informal em
Angola revela uma realidade de pobreza e miséria, longe de qualquer ideia de “de-
senvolvimento em curso”.
Sem políticas de incentivo e protecção à produção agrícola e industrial nacional, o micro
comércio informal continua a sobreviver na dependência dos grandes importadores e
na insegurança da ilegalidade, com margens de lucro extremamente reduzidas, sem
qualquer capacidade de poupança ou investimento58. De forma geral, no mercado
informal de Angola, as receitas obtidas apresentam grandes variações diárias e geral-
mente não são suficientes para fazer face às necessidades familiares, os actores têm
pouca capacidade de acumulação, baixo ou nenhum nível educacional formal (65%
possui um grau de escolaridade entre a 4.ª e a 6.ª classe, 14,3% não possui qualquer
grau de escolaridade59).
Estas pessoas não contam com nenhum tipo de protecção por parte do Estado, o
amparo que recebem em caso de acidente, doença, maternidade ou qualquer outro
motivo que leve ao afastamento temporário do trabalho é dado pela família e pela
comunidade, mas mesmo assim em nível muito diferente do existente nas áreas rurais,
uma vez que a deslocação das famílias causada pela guerra reduziu o peso das redes
de solidariedade comunitárias e familiares60
O sector informal constituiu o mercado de eleição das mulheres e em 2002 estas ocu-
pavam já 63,5% deste sector contra apenas 33% no sector formal61. Com níveis muito
baixos de escolaridade ou analfabetas, sem disporem de um capital para iniciarem
um negócio legal e, por vezes, utilizando-se da experiência adquirida no pequeno
comércio agrícola, foi neste mercado que a angolana encontrou o caminho para sobre-
viver na cidade e contribuir para o sustento da família62. Neste mercado, as pessoas
vendem o que podem e onde podem, sobretudo as mulheres63. O tipo de comércio
depende do capital disponível do agregado familiar, ou de conseguir um empréstimo.

56
LOPES, Carlos M. O Sector Informal e o Desenvolvimento: estudo de caso em Luanda, Comunicação apresentada ao
II Congreso de Estúdios Africanos en el Mundo Ibérico – África Hacia el Siglo XXI, (Madrid, Espanha, 15-17 de
Setembro de 1999)
57
HUSSMANNS, Ralf (2005), Measuring the Informal Economy: from employment in the informal sector to informal
employment. Working Paper No. 53, Genebra: International Labour Organization. p iii.
58
PEREIRA, Aline Afonso (2006), “Género e Desenvolvimento em Angola”, in VIDAL, Nuno & PINTO DE ANDRADE,
Justino, O Processo de Transição para o Multipartidarismo em Angola, Firmamento: Luanda & Lisboa. p. 248.
59
Relatório do Centro de Estudos e Investigação Científica (2003), Relatório Económico de Angola 2002. Universidade
Católica de Angola: Luanda. p. 52.
60
Para uma análise sobre o impacto da guerra nas redes de solidariedade familiar ver RODRIGUES, Cristina (2006), “Da
Solidariedade Familiar às Classes Sociais: Estratificação Social em Angola (Luanda e Ondjiva)”, in VIDAL, Nuno & PINTO
DE ANDRADE, Justino, O Processo de Transição para o Multipartidarismo em Angola, Firmamento: Lisboa. pp. 265-285.
61
Relatório da Agência Sueca de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (2000) Para uma Igualdade entre
Homens e Mulheres em Angola. Um Perfil das Relações de Género, Asdi: Stockholm. p. 21.
62
PEREIRA, Aline Afonso (2006), “Género e Desenvolvimento em Angola”, in VIDAL, Nuno & PINTO DE ANDRADE,
Justino, O Processo de Transição para o Multipartidarismo em Angola, Firmamento: Lisboa. p. 245.
63
ROBSON, Paul; ROQUE, Sandra (2001), Aqui na Cidade Nada Sobra para Ajudar, Development Workshop:
Amsterdão.
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 193

As famílias mais pobres vendem pequenas quantidades de mercadorias à porta de


casa, ou em pequenas bacias com as quais percorrem as ruas ou indo de casa em casa
(as “zungueiras” em Luanda). As menos pobres vendem numa barraca no mercado.
Outras, com mais capital, viajam para fora da cidade para trocar produtos industriais
com produtos agrícolas ou com peixe. As mulheres vendem petróleo, carvão, comida
confeccionada, bebidas, legumes, etc. Os homens, quando envolvidos no comércio,
vendem, em geral, outro tipo de produtos: materiais de construção, peças de viaturas,
roupas, etc.64.
O sector informal urbano é dominado por vendedores pobres em situação de
auto-emprego e pobreza. Não obstante, é preciso perceber que para além da face visí-
vel de pobreza dos seus pequenos comerciantes, este mercado esconde o envolvimento
de alguns dos elementos mais ricos da sociedade angolana, que também desenvolvem
negócios no sector informal, aproveitando-se dos benefícios e vantagens que têm por
via do lugar que ocupam na administração estatal e dos contactos políticos que têm,
num regime dominado pelo clientelismo e o patrimonialismo no acesso aos recursos
do Estado65. É preciso enfatizar que a grande maioria dos produtos vendidos no sector
informal é importada, embora existam algumas excepções, tais como a água, o peixe,
a farinha de mandioca, os legumes e frutas de proveniência local, bem como alguns
produtos de arte e ofícios locais66.

5 - Género e Sociedade Civil


A maior parte das chamadas Organizações da Sociedade Civil (OSC) surge a partir
de 1991 com a Lei das associações67 e é, portanto, relativamente recente, havendo ain-
da um deficit de participação pública cidadã e a prevalência de uma cultura pouco
democrática. Este contexto deve-se a um conjunto de factores, entre os quais se des-
tacam: o passado colonial, onde as decisões eram tomadas na metrópole sem estarem
sujeitas a discussões ou ratificações por parte do povo angolano68; o comportamento
e estrutura dos movimentos de libertação, cujas lideranças não tinham referências
democráticas, nem em Portugal, nem nos países vizinhos, nem nos países do Leste
europeu onde muitos dos líderes estudaram69; a extrema hierarquização e milita-
rização que foi implementada após a independência, durante o período da guerra
civil; o processo de centralização e concentração do poder político de 1975 a 1992,
caracterizado por um sistema de partido único, com uma economia centralizada e
planificada totalmente dominada pelo esforço de guerra, conforme anteriormente

64
ROBSON, Paul; ROQUE, Sandra (2001), Aqui na Cidade Nada Sobra para Ajudar, Development Workshop: Amsterdão.
65
VLETTER, Fion de (2002), A Promoção do Sector Micro-Empresarial Urbano em Angola, Princípia: Cascais. p. 22.
66
VLETTER, Fion de (2002), A Promoção do Sector Micro-Empresarial Urbano em Angola, Princípia: Cascais. p. 22.
67
Lei n.° 14/91.
68
De acordo com Hodges, a Angola colonial possuía um sistema administrativo altamente centralizado e um clima
político repressivo; não existiam partidos de oposição legalizados, a imprensa era ferreamente controlada, não havia um
poder judicial independente e as manifestações de descontentamento ou oposição eram rápida e ferozmente esmagadas;
in HODGES, Tony (2002), Angola do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Principia: Cascais. p. 74
69
PACHECO, Fernando (2006), “Sociedade Civil e a Construção da Democracia em Angola”, in VIDAL, Nuno & PINTO
DE ANDRADE, Justino, O Processo de Transição para o Multipatidarismo em Angola. Lisboa-Luanda: Firmamento. p. 213
194 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

referido; a falta de um segmento empresarial privado forte, independente, capaz


de exercer pressão sobre a estrutura governamental e expressar as suas opiniões70.
Apesar daquele contexto de base desfavorável e de se encontrar numa fase de estrutura-
ção e desenvolvimento, a sociedade civil angolana tem vindo a desempenhar um papel
de fundamental importância na consolidação do processo democrático em Angola. As
organizações que actuam nesta área funcionam, por um lado, como fóruns de debate,
de expressão pública e tentativa de resolução das necessidades e das vontades das
comunidades e, por outro lado, como mecanismo de regulação do exercício do poder
dos actores governamentais, constituindo-se num canal privilegiado de participação
no processo de governação.
Não obstante as inúmeras situações de desigualdade a que são sujeitas, conforme
analisado em capítulos anteriores, as mulheres têm dado um grande contributo pa-
ra o desenvolvimento da sociedade civil em Angola. Destacam-se os programas de
sensibilização para a necessidade de participação política e social (desenvolvidos,
por exemplo, pela organização Mulheres, Paz e Desenvolvimento – MPD), os progra-
mas de apoio ao empreendedorismo (desenvolvidos, por exemplo, pela Federação
de Mulheres Empresárias de Angola – FMEA), acções de formação (desenvolvidas
principalmente por organizações político-partidárias como a Organização da Mulher
Angolana – OMA/MPLA e a Liga da Mulher Angolana – LIMA/UNITA), além do
trabalho realizado pela Rede Mulher. Algumas organizações de mulheres, que em
muito contribuíram para o processo de paz, têm tido uma postura menos activa de-
vido principalmente a problemas de financiamento, tal como é o caso das Mulheres
Juristas e das Mulheres Jornalistas. Dado o envolvimento das mulheres no mercado
informal, assumem extrema importância os programas na área de género dedicados
ao micro-crédito (como o desenvolvido pela Development Workshop Angola – DW) por
vezes associados a grupos de Kixikila (desenvolvidos pela Care International).
Das diversas organizações a trabalharem a questão de género tem sobressaído a Rede
Mulher que se começou a estruturar com a preparação da 4.ª Conferencia das Mulhe-
res em 1994, tendo-se estabelecido oficialmente em 1998, com a missão de promover
oportunidades de igualdade entre homens e mulheres; reúne as diversas organiza-
ções da sociedade civil angolana cujo foco são as questões de género e outras que
desenvolvem projectos nesta área ainda que o género não seja a temática dominante.
A Rede conta actualmente com mais de 80 membros — entre organizações não gover-
namentais, cívicas, de partidos políticos e de Igrejas —, trabalhando as questões de
género em diversas vertentes, procurando promover o desenvolvimento não só das

70
Vale a pena ressaltar que as tensões entre a sociedade civil e o Governo de Angola são constantes no que se refere à
questão da participação. O Fórum das Organizações Não Governamentais Angolanas – FONGA, cita no seu relatório
de análise da Estratégia de Combate à Pobreza – ECP: “A ECP foi elaborada por uma comissão multi-sectorial e quase
sem participação efectiva da sociedade civil. Apenas dois por cento dos participantes dos workshops (de consulta à
sociedade civil) teve acesso ao documento preliminar à aprovação pelo Conselho de Ministros, em Janeiro de 2004.
Mais de 90 por cento teve conhecimento da aprovação do documento em Janeiro, mas não teve acesso a qualquer
cópia até à realização dos workshops”. FILIPE, Paulo (2004), Estratégia de Combate a Pobreza (ECP), Relatório de Divulgação
e Consulta às Organizações da Sociedade Civil, Fórum das Organizações Não Governamentais Angolanas. p. 4.
Aline Afonso Pereira h Género, Mercado de Trabalho e Sociedade Civil 195

organizações-membro como da totalidade da sociedade civil, por meio da promo-


ção da participação e do debate, questões essenciais nas sociedades democráticas71.
Um processo sustentável de construção da democracia deverá ter em conta a neces-
sidade de uma sociedade civil forte e interventiva, mas nenhuma sociedade civil se
pode estruturar de forma sólida mantendo no seu seio várias desigualdades discri-
minatórias da mulher. A mulher constitui uma pedra angular da estruturação da
sociedade angolana em todos os níveis e o seu contributo é absolutamente crucial
para o desenvolvimento de Angola, em democracia, crescimento económico e desen-
volvimento humano.

Conclusão
A guerra e a liberalização económica e política empreendida pelo Estado angolano
nos anos noventa acabaram por preservar o carácter centralizador e controlador do
Estado, mas desobrigou-o em grande medida de actuar nas questões sociais, referentes
à distribuição de renda, educação, saúde e trabalho. O mercado de emprego sofreu
directamente os impactos do processo de liberalização económica uma vez que este
mercado é claramente afectado pelas alterações que se observam por efeito dos factores
que condicionam a oferta e a procura de mão-de-obra72. As reestruturações que ocorre-
ram não contemplaram a utilização de instrumentos capazes de proteger os recursos
humanos envolvidos no processo, saldando-se por uma massa de pessoas levadas ao
sub-emprego, à precaridade e instabilidade do mercado informal e ao desemprego,
sem o auxílio de políticas sociais capazes de minimizar as externalidades negativas
daqueles processos.
Dentro deste grupo, dos principais prejudicados com o processo de transição, encontram-
-se as mulheres, que encontram barreiras para se integrarem no mercado formal de traba-
lho, para ascenderem na carreira, para receberem maiores salários, para se qualificarem
e para conjugarem a sua situação específica de mulheres de família e mães.
A sociedade civil angolana está a desenvolver um importante papel no que se refere
à defesa dos interesses das mulheres. No que concerne especificamente à inclusão da
mulher no mercado de trabalho em condições de igualdade e justiça, as acções das
Organizações da Sociedade Civil são importantes mas não suficientes, devendo com-
plementar as acções do Estado. As acções específicas e de carácter micro e aplicado
à realidade das necessidades imediatas e concretas foram e continuam a ser impor-
tantes para combater as desigualdades, porém, é necessário enveredar por acções de
71
Entre as áreas de actuação encontram-se: a troca de informações; difusão de informação (destacando-se aqui o
programa de rádio “os caminhos da igualdade”, que até 2004 era transmitido todas as Terças-feiras com matérias
informativas desenvolvidas pela Rede Mulher); apoio às campanhas dos membros; apoio às acções do MINFAMU;
acções de promoção da paz e reconciliação nacional; activismo em favor do reforço da participação das mulheres no
processo decisório; acções em prol da saúde da mulher (com destaque para a questão do HIV/Sida, dos testes para
a mulheres grávidas, dos problemas a nível de saúde materna); integração da perspectiva do género nos diversos
projectos governamentais; activismo no combate à violência contra a mulher (com programas de capacitação junto
das autoridades policiais e apoio aos centros provinciais de aconselhamento jurídico, procuradores de justiça e outros
integrantes do poder judiciário, para além de construir uma base de dados sobre violência doméstica e capacitação
de jornalistas com o objectivo de sensibilizá-los para a problemática da violência contra a mulher). A este respeito,
Emília Fernandes, Secretária-Geral da Rede Mulher considera que na sequência de todas estas acções “acabámos
por criar um ambiente em que apesar de a legislação ser ainda deficiente, as pessoas já sentem que bater em mulher
é crime, que se um homem violentar uma rapariga tem que ser punido de acordo com as penas que estão previstas
no código”; informações fornecidas em entrevista concedida à autora por Emília Fernandes, Secretária-Geral da
Rede Mulher, Luanda, Sede da Rede Mulher, Julho de 2005.
72
MURTEIRA, Mario (1969), Economia do Trabalho, Lisboa: Livraria Clássica. p. 43.
196 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

carácter mais geral, estrutural e de médio-longo prazo, a fim de se poder influenciar


de forma significativa a orientação das políticas públicas e dos centros de decisão73. As
alterações ocorridas no mercado de trabalho em Angola, em decorrência dos proces-
sos de liberalização da economia e da guerra, precisam ser equilibradas por meio do
desenvolvimento de políticas públicas de educação, qualificação e requalificação, com
foco especial para as mulheres e tentativa de recuperar as desvantagens estruturais,
históricas e sociais das mulheres em Angola.

73
NEVES, A. Oliveira das; GRAÇA, Suzana (2000), Inserção no Mercado de Trabalho de Populações com Dificuldades
Especiais, Colecção Cadernos de Emprego, Lisboa: Direcção Geral do Emprego e Formação Profissional. p. 58.
197

Liberdade de Imprensa - Subsídios


para a Trajectória de um Direito
Fundamental em Angola

Reginaldo Silva
Rádio Nacional
de Angola e Angolense
A liberdade de imprensa é um bem precioso, um dos
mais estruturantes e vigilantes princípios do Estado
democrático. No caso de Angola, a liberdade de imprensa foi
decisiva para o processo de abertura em curso, tendo o referi-
do postulado adquirido conteúdo e forma com o surgimento
dos jornais privados (semanários) que se editam sobretudo
na capital, e das rádios em FM com destaque para a Luanda
Antena Comercial (LAC) e depois a Emissora Católica de
Angola – Ecclesia. Neste processo, iniciado formalmente com
a revisão da Lei Constitucional e a realização das eleições em
1992, a liberdade de imprensa acabou por ser, como espaço
aberto ao debate contraditório, a força mais dinâmica a im-
pulsionar as mudanças, a criticar a herança do monopartida-
rismo e do Estado totalitário e a promover a cidadania. A tal
ponto este papel foi decisivo no quadro da democratização,
que a nova imprensa não controlada pelo governo é vista
até aos dias de hoje, por vários círculos pensantes do país,
como sendo a principal força de oposição ao actual governo
do partido maioritário.
Ao longo dos últimos 16 anos esta liberdade, não obstan-
te no plano jurídico-formal a maior parte das disposições
constantes da Lei estar já em conformidade com os padrões
internacionais, mantém-se “refém” de uma silenciosa mas
vigilante tutela do actual poder político. Esta tutela, clara-
mente estratégica, faz-se sentir, nomeadamente, em algumas
restrições monopolistas que afectam gravemente o princípio
do pluralismo mediático. A nova Lei de Imprensa aprovada
em Maio de 2006 eliminou parcialmente aquelas restrições,
mas na prática ainda não produziu qualquer efeito, dois anos
depois de a mesma ter passado pelo Parlamento.
O destaque daquele levantamento de restrições — liberalização
— vai certamente para a abertura da actividade de televisão a
entidades privadas, tendo igualmente sido dados alguns passos,
por sinal ainda muito tímidos, em relação à abrangência da ra-
diodifusão, numa altura em que a Emissora Católica de Angola,
cuja cobertura se mantém circunscrita a Luanda, é a entidade que
mais tem batalhado pela expansão do seu sinal a todo o país.
Tudo continua dependente agora da aprovação de um sem
número de diplomas, entre leis especiais e regulamentos,
198 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

previstos na Lei de Imprensa revista, sem os quais a liberalização anunciada pela


nova proposta vai continuar a ser letra morta. A nova Lei de Imprensa para já, ainda
é apenas uma montanha de boas intenções, não havendo nas nossas contas indica-
ções seguras que apontem para a sua concretização antes da realização das próximas
eleições legislativas.
Seja como for é de destacar como um acontecimento positivo e encorajador, no âmbito
da liberalização do sector, o surgimento em Luanda em 2007 de mais uma rádio co-
mercial em FM, a Rádio Despertar, afecta a UNITA, que muito tem contribuído para
a diversificação da informação que é veiculada pela comunicação social angolana.
Este texto percorre os problemas relacionados com a liberdade de imprensa em Angola,
começando por fazer o enquadramento histórico-legal da temática em África (capítulo
1) para depois entrar no caso específico de Angola, salientando as restrições e cons-
trangimentos impostos pelo poder político (capítulo 2), a necessidade de articulação
da imprensa livre com objectivos de desenvolvimento económico-social e democracia
(capítulo 3) e terminando com uma abordagem às insuficiências e debilidades internas
ao próprio sector (capítulo 4).

1 – Liberdade de Imprensa e Democracia em África1


Falar de liberdade de imprensa em África implica falar de um processo longo e len-
to, de passos nem sempre claros nesse sentido. Devemos desde logo começar por
lembrar a antiga Organização de Unidade Africana – OUA, que sempre se mostrou
pouco assertiva nesta área, provavelmente temendo que os seus Estados membros,
recém independentes, pudessem vir a encontrar aqui uma dificuldade acrescida na
construção do pós-independência. Dos instrumentos criados pela organização para
colocar em prática os princípios de liberdades fundamentais contidos na sua carta
constitutiva de 1960, destaca-se, no que à liberdade de imprensa diz respeito, a Carta
Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, concluída em 1981 e em vigor desde
Outubro de 1986.
Pelos receios referidos, a Carta optou por uma perspectiva muito redutora da liber-
dade de expressão, de imprensa e do direito dos cidadãos à informação, limitando-se
simplesmente a estabelecer, no seu Artigo IX, que “Todo o indivíduo deve ter o direito
de expressar e disseminar as suas opiniões dentro da lei”, não se referindo explicita-
mente à liberdade de expressão e disseminação de informação, que constitui a maior
preocupação dos media.
Nos anos sessenta e setenta, a grande preocupação da OUA era, ainda e essencialmente,
a libertação do continente do colonialismo e de todas as formas de opressão do homem
africano, incluindo o Apartheid, na África do Sul. Num tal contexto, acompanhado
por uma envolvente de “guerra-fria”, a liberdade de imprensa e outras liberdades
fundamentais viriam a ser sistematicamente relegadas para segundo plano, perdi-
das no confronto da retórica belicista e ideologicamente carregada que travavam os
dois blocos, entre a primazia dos direitos cívico-políticos ou dos direitos económico-

1
Para elaboração do primeiro capítulo contámos com a preciosa colaboração do Nuno Vidal que nos ajudou bastante
a desenhar a retrospectiva que a seguir vos apresentamos, tendo igualmente sido de uma utilidade extrema outras
contribuições da sua parte, visíveis na estruturação e na expurgação da linguagem deste texto, de acordo com o
que recomendam as normas e a “higiene” de uma abordagem mais académica, com as quais nem sempre as nossas
relações têm sido “pacíficas”.
Reginaldo Silva h Liberdade de Imprensa em Angola 199

-culturais. Com o fim da “guerra-fria” no final dos anos oitenta e início dos anos no-
venta, assiste-se à emergência da democracia multipartidária, de matriz Ocidental,
como modelo de tendência hegemónica de governação à escala global, operando-se
gradualmente uma viragem ao nível daquilo que vinha sendo a orientação da maioria
dos Estados africanos, agora igualmente “sujeitos” ao domínio do novo modelo e dos
seus princípios primordiais.
Ao longo dos anos noventa, vários países africanos vão passar por processos de tran-
sição para o multipartidarismo e para a economia de mercado e depressa se começa a
perceber a necessidade de encontrar uma nova fórmula de organização dos Estados
Africanos, que responda a uma nova realidade histórica. A OUA havia cumprido a sua
missão dentro do possível e acabou por dar lugar, em 2002, à União Africana – UA,
que vai iniciar um movimento de revisão (directa ou indirecta) de vários instrumentos
políticos e jurídicos adoptados pela sua antecessora, nomeadamente a Carta Africana
dos Direitos do Homem e dos Povos.
No processo de revisão da Carta pela UA vai-se produzir um documento autónomo — a
Declaração dos Princípios sobre a Liberdade de Expressão em África —, aprovado pela
32.ª sessão ordinária da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, que
decorrerá de 17 a 23 de Outubro de 2002, na capital Gambiana, Banjul, num documento
que ficará conhecido como “Declaração de Banjul”. Esta declaração vai expressamente
assumir que teve em conta a Declaração de Windhoek de 1991 sobre a Promoção de
uma Imprensa Africana Independente e Pluralista, o Relatório Final da Conferência
Africana sobre O Jornalista e os Direitos Humanos em África, realizada em Tunis em
1992 e a Declaração sobre Liberdade de Expressão e a Carta Africana, realizada em
Joanesburgo em Novembro de 2000, entre outros instrumentos de referência do con-
tinente. Em todos estes documentos começa-se a assistir à ligação entre democracia e
liberdade de expressão como partes de um mesmo ser.
A declaração de Banjul vai afirmar “a importância fundamental da liberdade de ex-
pressão e da informação como um direito humano individual, como pedra de toque da
democracia e como um meio de assegurar o respeito por todos os Direitos Humanos e
liberdades”. Vai igualmente referir que o “respeito pela liberdade de expressão, bem
como o direito de acesso à informação sob custódia das entidades públicas e empresas
vai levar a uma maior transparência e accountability, bem como à boa governação e ao
fortalecimento da democracia”, reconhecendo “o papel chave que os media e outros
meios de comunicação desempenham em assegurar o respeito pela liberdade de ex-
pressão, promoção do livre fluxo de informação e ideias, em ajudar as pessoas a tomar
decisões informadas e facilitar o fortalecimento da democracia”.
Deste modo, a Declaração de Banjul vai “recuperar” o Artigo XIX da Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos, dizendo, no seu primeiro artigo sobre as “Garantias da
Liberdade de Expressão”, que “A liberdade de expressão e informação, incluindo o
direito a procurar, receber e disseminar informação e ideias, quer seja oralmente, na
forma escrita ou impressa, na forma de arte ou através de outra forma de comunica-
ção, incluindo além-fronteiras, é um direito humano fundamental e inalienável e uma
componente indispensável da democracia”.2
2
A liberdade de expressão do pensamento através dos meios de comunicação social e o direito de acesso à informação
de interesse público constituem preocupação das Nações Unidas desde a sessão inaugural da Assembleia Geral em
1946, que na sua resolução n.º 59 assumiu que “A liberdade de informação é um Direito Humano fundamental e
alicerce de todas as liberdades às quais as Nações Unidas estão consagradas”.
200 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Em 16 artigos, a Declaração de Banjul estabelece com detalhe aquilo que constitui o


quadro de referência universal da legislação moderna da comunicação social, incluindo
sobre imprensa, rádio e televisão, à luz dos princípios da independência, pluralismo e
diversidade, associados à necessidade de disponibilização ao cidadão da informação
detida pelas entidades públicas.
A Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da União Africana, realizada em
Durban em Julho de 2002, vai elaborar a Declaração sobre Democracia, Boa Governa-
ção e Economia Corporativa, que será o documento de base da Nova Parceria para o
Desenvolvimento de África – NEPAD. Por decisão dos líderes africanos, nesta Decla-
ração a NEPAD estabelece grandes eixos de orientação política, económica e social,
comum dos Estados-membros: Democracia e Boa Governação Política; Governação
Económica e Social; Desenvolvimento Sócio-económico; Mecanismo Africano de Re-
visão de Pares – African Peer Review Mechanism – APRM.
O documento enumera algumas questões que devem merecer atenção especial dentro
daquelas metas estratégicas como: a garantia de governos justos, honestos e transpa-
rentes, comprometidos com o combate e erradicação da corrupção; a promoção do de-
senvolvimento sustentável, atento à protecção do meio e à gestão judiciosa dos recursos
naturais; o respeito pelos Direitos do Homem; e a protecção revigorada à mulher.
A questão que diz directamente respeito à problemática da liberdade de expressão, à
liberdade de imprensa e o direito à informação, há-de surgir enquadrada no ponto
relativo ao pilar da promoção e protecção dos Direitos Humanos, em que os Estados
membros afirmam concordar em “garantir a liberdade de expressão responsável,
incluindo a liberdade de imprensa”.
Há que salientar aqui o papel do mecanismo de revisão entre pares, totalmente inova-
dor num contexto africano e mediante o qual, numa base voluntária, os países membros
da UA vão proceder à sua auto-avaliação, aferindo nomeadamente o ponto em que
se encontrem, periodicamente, relativamente aos desideratos acordados na Cimeira
de Durban de Julho de 2002.
Todo este percurso de transformação de instrumentos jurídicos tem no seu início e como
pedra angular a referida Declaração de Windhoek, de 3 de Maio de 1991, estabelecendo
os princípios sobre a Promoção de uma Imprensa Independente e Pluralista em África,
e adoptada pela UNESCO na sua 26.ª Conferência Geral, em Outubro do mesmo ano.
Esta Declaração afirma que o estabelecimento, a manutenção e o desenvolvimento de
uma imprensa independente, pluralista e livre, é essencial para o desenvolvimento e
manutenção da democracia numa nação. Em Novembro de 2001, por ocasião do seu
décimo aniversário, a Declaração de Windhoek haveria de ser, por sua vez, comple-
mentada pela Carta Africana de Radiodifusão, a qual estabelece os princípios de um
sector tridemensional da radiodifusão em África — o sector público, comunitário e
comercial. Ao nível da região Austral, dever-se-á mencionar também o Protocolo da
SADC sobre Cultura, Informação e Desportos, de 2001, que no seu artigo 1.º, estabe-
lece o princípio da independência dos media em relação aos governos, reconhecendo a
independência editorial dos meios de comunicação social sem interferência externa.
Desde logo, nos princípios de Windhoek encontramos aquilo que é verdadeiramente
essencial quando falamos em liberdade de imprensa nos dias que correm, tendo a
própria Conferência-Geral da UNESCO e a Assembleia-Geral das Nações Unidas
adoptado aquela Declaração.
Reginaldo Silva h Liberdade de Imprensa em Angola 201

De todo este percurso legal e institucional no continente Africano rumo à defesa da


democracia e da liberdade de expressão/liberdade de imprensa, resulta claro que a
própria avaliação da democracia terá de passar pela avaliação de um dos seus pi-
lares fundamentais — o grau de liberdade de expressão do pensamento e de acesso
à informação, através de uma imprensa livre, independente e pluralista. O próximo
capítulo deste texto procura fazer a avaliação do caso angolano à luz dos princípios
consagrados nos diversos instrumentos jurídicos supra referidos.

2 - Liberdade de Imprensa e Democracia em Angola


Para o são desenvolvimento e funcionamento de uma democracia, a referida decla-
ração-bandeira de Windhoek considera imperativa a necessidade de uma imprensa
“independente do controlo governamental, político ou económico ou do controlo de
materiais e infra-estruturas essenciais à produção e disseminação de jornais, revistas
e periódicos”.
Ao interpretar o conceito de imprensa pluralista, a declaração de Windhoek entendeu-
-o como sendo “o fim do monopólio de qualquer tipo e a existência do maior número
possível de jornais, revistas e periódicos, que reflictam a mais vasta gama possível de
opiniões no seio de uma comunidade”.
Transportar estas e outras recomendações para o terreno da realidade angolana, sig-
nifica dar continuidade a um debate acesso sobre o estado da liberdade de imprensa
no país, que já começou há bastante tempo mas que ainda não produziu os desejados
resultados práticos. Com a quebra dos anteriores monopólios (inadmissíveis e incons-
titucionais), a nova Lei de Imprensa, como se referiu na introdução, já ultrapassou no
plano formal os últimos grandes obstáculos que se colocavam ao pluralismo informa-
tivo, e deverá ser o principal sustentáculo da própria liberdade de imprensa.
Se tomarmos estes parâmetros — pluralismo e independência — como referência para
a análise do caso angolano, podemos, por exemplo, afirmar que trinta anos depois da
sua independência é absolutamente dramático o facto de o país só possuir um único
jornal diário. O governo, para além de continuar a ser o proprietário directo e exclusivo
dos únicos órgãos de comunicação social com abrangência nacional (Rádio Nacional
de Angola, Televisão Pública de Angola e Jornal de Angola), continua a levantar
obstáculos às intenções de órgãos de comunicação privados poderem alcançar uma
dimensão nacional, tal como é o caso da Rádio Ecclesia que em vão procura obter a
autorização para emitir a nível nacional.
A comunicação social pública e os seus profissionais, apesar da lei salvaguardar o
princípio da independência editorial como sendo extensivo a todos, continuam a
sentir a influência política da tutela. O actual poder político, embora já disfarce me-
lhor a sua vocação controladora de um asfixiante passado recente, ainda tem muitas
dificuldades em aceitar o fenómeno jornalístico como sendo um espaço autónomo e
crítico de intervenção. Sendo o Estado o maior empregador do sector da comunicação
social, percebe-se o impacto que tal influência pode ter ao nível do cerceamento da
independência dos media. Os próprios media privados sentem — directa ou indirecta-
mente — a pressão do poder político governamental e, de modo geral, os profissionais
da comunicação social pública e privada sabem que podem existir “retaliações” como
resultado de alguma matéria “politicamente menos simpática” que tenham elaborado
e deste modo alimentarem receios vários em relação ao seu presente e ao seu futuro.
202 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Infelizmente, essa peçonha chamada “omissão” e “auto-censura” induzida pelo po-


der político não foi erradicada, explicando, em parte, várias das insuficiências de que
ainda padecem os media do país para poderem desempenhar em pleno o seu papel
na construção da democracia.
Na abordagem que faz dos meios de comunicação públicos, a declaração de Windhoek
recomenda que os mesmos só deverão ser apoiados quando as autoridades garanti-
rem constitucional e efectivamente a liberdade de informação e a sua independência
editorial. Em Angola, a nível da Constituição e legislação subsequente, aquelas ga-
rantias estão minimamente asseguradas, o problema está ao nível de efectivamente
praticar as determinações legais. Muito embora vários passos tenham sido dados no
sentido da abertura e da liberalização do espaço da comunicação social, verifica-se
ainda uma grande dificuldade do governo romper com todas as práticas que eram
habituais no passado não distante do regime de partido único. As pressões sobre os
media agravam-se sempre que aumenta a tensão política, tendo assim acontecido ao
longo dos anos noventa quando se agudizavam os confrontos militares e sentindo-se
novamente agora com o aproximar das próximas eleições.
Fruto de um passado de autoritarismo e controlo apertado do sector da informação
no tempo do partido único, o poder político continua hoje a tentar influenciar o de-
sempenho dos órgãos da comunicação social e dos seus profissionais, não entendendo
o papel da liberdade de imprensa como algo de salutar. Há, por outro lado, a referir
que por vezes algumas práticas manifestamente censórias resultam apenas do excesso
de zelo com que as direcções editoriais dos media estatais actuam, muitas das vezes
diante de situações comuns, como é por exemplo a violência policial contra vendedores
ambulantes ou contra a chamada construção ilegal de casas, factos que acontecem um
pouco por todo o país. Estas atitudes têm consequências desastrosas para a credibili-
dade que é preciso saber preservar no sector da informação.
Assistimos, ainda e infelizmente, na realidade da comunicação social angolana, a
vários exemplos de propaganda política, tentativas de manipulação e desinformação
travestida de jornalismo, quer nos órgãos públicos quer nos privados. Por outro lado,
deve reconhecer-se que tem havido alguns progressos no desempenho dos media es-
tatais e que são visíveis no nível de abertura e de equilíbrio que os mesmos apresen-
tam na cobertura de acontecimentos que envolvem outros protagonistas, incluindo
a oposição.
O jornalismo deve ser por definição uma ponte abrangente e inclusiva, que se cons-
trói todos os dias entre a imensa e complexa realidade de um país e a necessidade
e direito da sua população de ser informada sobre o que realmente se está a passar
nele e poder intervir na condução do seu próprio destino. Esta necessidade deve ser
satisfeita sem sofismas, nem enigmas, de forma directa e verdadeira, mostrando os
factos tal como eles são, ou pelo menos tão próximos da realidade quanto o jornalista
consegue apreender. Esta deveria ser a praxis de uma comunicação social de referência
em qualquer país que se tenha despido das suas vestes mais autoritárias, repressivas
e controladoras. Só assim poderá o jornalismo servir a democracia.
No que concerne a outro dos princípios importantes definidos na declaração de Banjul
— “o direito de acesso à informação sob custódia das entidades públicas e empresas”
— a situação angolana deixa igualmente muito a desejar. Os jornalistas encontram
sempre inúmeras dificuldades em conseguir reacções das fontes oficiais, especialmente
Reginaldo Silva h Liberdade de Imprensa em Angola 203

em casos que são politicamente mais sensíveis, atitude que desvirtua completamente
o espírito de “parceria inteligente e de respeito mútuo” que deveria presidir à relação
entre entidades governamentais — públicas — e media, cuja função de informar e escla-
recer a opinião pública necessita da posição dos responsáveis pela política pública.
A posição das entidades governamentais a respeito de matérias de interesse público
constitui uma obrigação em qualquer regime democrático. Se concebermos que o governo
é do povo, pelo povo e para o povo, os detentores de cargos públicos são servidores dos
constituintes que os elegeram, devem explicações periódicas e não somente em épocas
eleitorais. A sobranceria, desdém e desrespeito, com que muitos detentores de cargos
públicos tratam a imprensa é deveras preocupante e reveladora da falta de consciência
democrática de muitos dirigentes. A indisponibilidade comum das fontes oficiais em
reagirem oportunamente aos factos e aos acontecimentos deve ser denunciada como uma
falha grave nas obrigações de qualquer responsável político, em especial se ocupa um
cargo público, pago com o dinheiro do Estado, ou seja, com o dinheiro de todos nós.
O governo tem grandes dificuldades em perceber que o seu próprio desempenho
numa sociedade democrática só tem a beneficiar com a independência e o pluralismo
dos media. A eficácia e a eficiência governamental, num modelo democrático, melhora
grandemente com a actividade crítica e “fiscalizadora” dos media e da informação
livre da opinião pública. Por outro lado, a liberdade de imprensa acaba igualmente
por ser o melhor e mais rápido instrumento que o executivo tem à sua disposição,
sem custos adicionais em termos de Orçamento Geral do Estado, para ser informado
sobre os resultados efectivos — o impacto — da sua própria governação, de como é
que ela se está a processar no dia-a-dia.
Num contexto de reconstrução e desenvolvimento, depois de uma longa guerra civil
que tantos danos causou ao país, teria de ser reservado aos media um papel cimeiro na
construção de uma sociedade mais justa e democrática, actuando como parceiro de to-
dos aqueles que desejam erradicar problemas tão imediatos e graves como a corrupção
e a pobreza, pugnando pela boa governação e a transparência, que são essenciais ao
desenvolvimento económico e à efectiva democratização, tal como desenvolveremos
no próximo capítulo.

3 – Corrupção, Desenvolvimento Económico, Democracia e Jornalistas


“Invejosos”
Ultrapassada que está a fase mais aguda do conflito angolano que passou por nós
durante algumas décadas, envergando as pesadas vestes de uma devastadora guerra
civil, existe uma necessidade urgente de concentrarmos as nossas atenções e energias
no combate à pobreza, que em Angola ainda se confunde com a luta contra a fome. Esta
necessidade urgente resulta de uma leitura da dramática realidade herdada do conflito,
espelhada em indicadores sócio-económicos que são conhecidos por todos nós e que
podem ser consultados nas avaliações anuais que as Nações Unidas fazem dos países
membros, tendo por referência operacional o conceito de desenvolvimento humano.
De há uns anos a esta parte, o nosso país tem lugar cativo nos últimos classificados
daquele ranking, numa lista com mais de 170 países. Esta classificação permite-nos o
acesso quase automático a uma outra lista das desgraças internacionais, que é a dos
49 países menos avançados do mundo, os PMA. Estas classificações são tão mais re-
voltantes e chocantes conquanto Angola é hoje o segundo maior produtor de petróleo
do continente e prevê-se que venha a ser o principal dentro de poucos anos.
204 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

A nossa realidade é claramente caracterizada por fortes injustiças na distribuição


do rendimento nacional, de chocantes desigualdades sócio-económicas que se vêm
agravando entre ricos e pobres, de gritantes assimetrias regionais e locais. Não ha-
vendo nesta altura qualquer possibilidade de se assistir, a curto ou a médio prazo,
ao regresso de uma situação de guerra convencional, continuamos a ter presentes
vários ingredientes de conflito e instabilidade social à superfície de uma realidade
socio-económica que, se quisermos ser sérios na sua análise e no seu combate, só
pode inspirar sérios cuidados. O calar das armas foi conseguido a duras penas, mas
outras “guerras” já se perfilam no horizonte imediato do país, sendo a crescente cri-
minalidade urbana um dos sintomas mais preocupantes da explosão social latente,
que só não passa à fase seguinte devido ao enorme aparato militar e policial de que
o governo não abre mão, consciente que, para já, a repressão é a única solução que
tem à sua disposição para evitar o caos que nos espreita, resultante da situação de
extrema penúria em que vive a esmagadora maioria dos angolanos.
Neste sentido, a luta contra a pobreza deve revestir-se de um carácter absolutamente
prioritário. Lutar contra a pobreza significa lutar pelo desenvolvimento equilibrado e
socialmente justo, que por sua vez significa lutar contra esse cancro social, económico
e político que se chama corrupção.
Falar da corrupção e do desenvolvimento económico é, antes de mais, estabelecer uma
relação de causa-efeito. Por outras palavras, quanto mais institucionalizada estiver a
corrupção, mais problemático será o desenvolvimento económico-social de determi-
nado país, que verá assim parte dos seus recursos esvaírem-se misteriosamente.
Mais do que a generalização do fenómeno da corrupção, é a todos os títulos preocu-
pante a resignação da sociedade para com o fenómeno e mesmo a sua aceitação como
inerente a todas as sociedades, como fenómeno universal, com argumentos do tipo
“corrupção há em todo o lado”, chegando ao ponto de se achar que mais do que lutar
contra a corrupção se deveria lutar contra a fuga desses capitais para fora do país,
criando incentivos para o seu investimento produtivo dentro do país e assegurando
a não perseguição de quem a pratica. À semelhança do que acontece noutros sectores
da vida nacional, também neste domínio se poderia estabelecer uma grande divisão
entre os “corruptos patriotas” (que cá dentro mantêm o produto do seu saque) e os
“corruptos anti-patriotas” (que preferem guardar o produto do saque no exterior).
Vive-se cada vez mais no curto prazo, no imediatismo, sejam aqueles cuja principal
preocupação é a sobrevivência no dia-a-dia, sejam aqueles que vivem obcecados com
o enriquecimento rápido e fácil.
A classe detentora do poder político tenta retirar o máximo de vantagens materiais dos
cargos que ocupa e tão rápido quanto possível, fazendo da velha máxima Keynesiana
o seu lema de vida, “as soluções de longo prazo têm todas as vantagens, excepto que
a longo prazo estamos todos mortos”. A generalização desta mentalidade é altamente
corrosiva para a construção da democracia e do desenvolvimento, que são necessa-
riamente projectos de longo prazo. Em meu entender, estes são alguns dos aspectos
mais graves desta problemática da corrupção e constituem uma séria ameaça, directa
e clara, não só ao desenvolvimento mas ao próprio projecto de construção e consoli-
dação da democracia.
As referências que hoje são feitas à corrupção em Angola são normalmente entendidas
como ataques directos ou indirectos ao poder instituído. É curioso notar que, de uma
Reginaldo Silva h Liberdade de Imprensa em Angola 205

forma geral, os políticos deste país, com destaque para aqueles que estão ligados ao
poder do Estado, ficam profundamente incomodados e irritados (ainda que não o
assumam de forma sistemática e aberta) quando se fala de corrupção e, pior ainda,
quando são confrontados com casos concretos de corrupção. Quando são os estrangei-
ros a referir o tema, acham que se trata de uma inadmissível ingerência nos assuntos
internos do país, quando são os nacionais, consideram uma abusiva intromissão na
vida alheia e sobretudo uma manifestação de inveja e ressabiamento.
Hoje em Angola, ainda que em surdina, todos aqueles que se preocupam com a ex-
tensão do fenómeno da corrupção são normalmente apelidados de “invejosos” por
todos aqueles que foram bafejados pela “sorte” de trabalharem em instituições go-
vernamentais/Estaduais, que gerem recursos públicos significativos e passíveis de
apropriação privada/pessoal. Digo que isto se passa ainda em surdina porque, a
manter-se a actual tendência de aceitação e generalização do fenómeno da corrupção,
corremos o risco de ver chegar o dia em que os apodados “invejosos” serão aberta e
publicamente perseguidos e condenados.
Entre estes “invejosos” os jornalistas ocupam certamente um lugar de bastante relevo,
pela capacidade que ainda vão possuindo de amplificar este tipo de denúncias sobre
a gestão ruinosa do erário público. Ainda que com todas as insuficiências e debilida-
des, tem de se reconhecer o mérito da imprensa angolana privada enquanto sector da
vida nacional que mais tem denunciado e alimentado o debate à volta da corrupção,
chamando a atenção para o seu impacto negativo no desenvolvimento do país. Con-
tudo, em termos de moralização e transparência da actuação dos poderes públicos,
os resultados desta cruzada não são muito animadores, mas muito pior seria se a
imprensa resolvesse assinar o pacto de silêncio que todos os dias lhe é proposto nas
entrelinhas dos discursos musculados do poder político — a bem das “verdadeiras”
prioridades nacionais, argumentam os seus autores.

4 – Insuficiência dos Media em Angola: Défice de Agenda Autónoma


Estrutural, Formação Ética e Deontológica
Temos de reconhecer mérito à actividade jornalística em Angola, que com todas as
deficiências e insuficiências de que possa enfermar, vai permitindo que o comum dos
cidadãos tenha acesso a parte da realidade dos factos que vão acontecendo e, sobretudo
a imprensa privada, permite que se conheça para além da imagem mais ou menos
idílica e oficial que perpassa por muitos dos órgãos do Estado.
Não obstante aquele reconhecimento de mérito, tanto mais valioso quanto ocorre num
contexto de tantos constrangimentos, anteriormente referidos, do lado do desempenho
dos profissionais é bom que se reconheça, igualmente, que a qualidade do nosso jorna-
lismo não tem ajudado muito à afirmação da classe, como uma entidade responsável
e respeitável à altura dos enormes desafios que o país tem pela frente.
Passada que está já a fase da euforia, que marcou os primeiros anos da actividade,
com todas as compreensíveis falhas próprias de quem estava a dar os primeiros passos
num ambiente de grande hostilidade, a imprensa privada tem de saber agora vencer o
desafio da qualidade e da responsabilidade. Trata-se de um desafio que é, obviamente,
extensivo a todos os jornalistas, independentemente da tutela e de todas as outras
condições que, pela negativa, continuam a afectar o quotidiano da nossa actividade.
206 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

O jornalismo de qualidade está dependente da existência de bons profissionais que


dominem tão bem a arte de comunicar, escrita e falada, como a do relacionamento com
as fontes, a sensibilidade para com a realidade social que os circunda, em paralelo com
a observância e o respeito das normas éticas e deontológicas da profissão. Neste sentido,
a formação de jornalistas joga um papel essencial e o défice que se sente a este nível
tem sido responsável por várias insuficiências e debilidades que vemos no sector.
Como diria o já falecido veterano do jornalismo francês, Claude Julien, é necessário
separar a informação-espectáculo que vai atrás do sensacionalismo efémero e “tabloi-
desco” marcado pela vulgaridade, daquilo que é a informação-significante, que busca
interrogar-se acerca dos factos estruturantes da sociedade e que efectivamente têm
impacto na vida das populações e dos cidadãos.
O jornalismo em Angola não tem outra alternativa senão reflectir, com a maior objec-
tividade possível, nas suas páginas e nos seus espaços, toda a urgência e a prioridade
de que se reveste a luta contra a pobreza, contra a corrupção e pelo desenvolvimento
económico-social no contexto da própria consolidação do processo de paz. Devemos
chamar a atenção para a importância das questões sociais de base, que nem sempre
têm tido o tratamento jornalístico adequado, por suposta ou efectiva falta de coragem
para apontar claramente os responsáveis do “estado da nação”. Na “informação espec-
táculo” os grandes ausentes são precisamente os temas relacionados com a exclusão
social, a pobreza, a criminalidade, o analfabetismo, as assimetrias regionais e os con-
trastes sociais, as desigualdades e as injustiças na distribuição do rendimento nacional,
os problemas da segurança social e da assistência sanitária, a habitação económica
condigna, o problema das terras, os problemas com a educação e por aí adiante, num
desfile interminável de preocupantes questões que ameaçam a sobrevivência e a coesão
da nossa sociedade, carente de tudo e mais alguma coisa.
Estas nossas carências sociais são difíceis de entender e de aceitar tendo em conta as
potencialidades económicas do nosso país, a projectar na tela gigante de um atribulado
quotidiano os já recorrentes e mencionados problemas da falta de transparência, falta
de boa governação e corrupção. Ao jornalismo sério e responsável cabe o papel de
denunciar sistematicamente e com acutilância esta nossa realidade, tentando despertar
consciências e produzir alterações de comportamento e de políticas.
Não faz qualquer sentido ser jornalista no século XXI se, no nosso dia-a-dia, passarmos
ao largo das questões que são de facto vitais, optando pela política da avestruz que
significa ignorar a realidade que nos rodeia, substituindo-a muitas vezes por citações
de discursos ou por extractos de declarações de circunstância. Cada um de nós depara-
-se todos os dias com realidades sociais gravíssimas desde que sai de casa. Em países
como o nosso, sobreviver ainda é efectivamente, para muitos, mas mesmo muitos dos
seus habitantes, um desafio à imaginação e aos bolsos vazios do rendimento mínimo
nacional. Não é possível o exercício de uma cidadania responsável e actuante quando
não se sabe se no dia seguinte teremos ou não capacidade para alimentarmos aqueles
que dependem de nós. Esta realidade conhecemo-la muito bem, porque faz parte do
nosso quotidiano, sem termos muitas vezes necessidade de ir à procura de grandes
furos junto de gabinetes de imagem, porque nos deparamos com retratos de privação
e pobreza logo à porta de casa, na pessoa de uma mulher e do seu filho recém-nascido,
que de repente passaram a ser os nossos novos vizinhos porque no passeio público
vendem produtos horto-frutícolas para se poderem sustentar e sobreviver.
Reginaldo Silva h Liberdade de Imprensa em Angola 207

O jornalismo angolano tem como grande desafio a definição de uma agenda informativa
autónoma, dominada pelo que é fundamental e estruturante, procurando distanciar-se
das agendas de outros interesses estratégicos, também eles ligados ao poder político-
-económico (directa ou indirectamente, de forma mais ou menos visível), que procuram
manipular e instrumentalizar os media em função dos seus interesses, utilizando os
habituais artifícios do aliciamento material e da cooptação. O sector jornalístico perma-
nece muito marcado por uma excessiva proximidade, por vezes promiscuidade, com as
quezílias, as mais das vezes mesquinhas e míopes, do jogo político-partidário
Não raras vezes assistimos nos órgãos de comunicação social privados ao ataque pes-
soal continuado e quase que persecutório a determinados indivíduos das estruturas do
poder do Estado, fundamentado em informações estrategicamente lançadas, “vazadas”
ou “construídas”, também por personalidades do poder político, inimigos pessoais do
visado e que utilizam deste modo os media privados para vinganças pessoais ou como
instrumentos das lutas intestinas do partido no poder ou dos partidos da oposição.
Esta promiscuidade e este jogo de envolvimento entre poder político e alguns mem-
bros do sector da comunicação social tem dois lados, o daqueles que em função dos
seus interesses querem instrumentalizar os media e o lado daqueles que de forma mais
ou menos consciente se deixam instrumentalizar ou aliciar a troco de determinadas
benesses. Não estamos aqui numa relação entre violadores e vítimas, infelizmente
não é assim tão simples.
São amplamente conhecidas e comentadas as práticas de alguns órgãos de comunicação
privados que efectivamente chantageiam os visados em matérias comprometedoras,
vendendo a não publicação das mesmas. Ou ainda a negligência e a falta de rigor
jornalístico na investigação e construção da notícia, não se cumprindo regras básicas
como a necessidade de ouvir todas as partes envolvidas num determinado caso ou
tentar averiguar a veracidade das posições com pesquisa documental, a concessão do
direito de resposta, etc.
De um modo geral, verifica-se ainda uma grande falta de profundidade e rigor na
selecção e investigação das matérias que compõem muitas das edições. Se no início
da actividade jornalística privada estas práticas passavam mais ou menos incólumes,
numa mistura de jornalismo com actividade por vezes panfletária e desregulamentação
do sector, com a progressiva adaptação do sistema judicial ao novo enquadramento
jurídico em que os cidadãos encontram maior protecção dos seus direitos (e.g. ao bom
nome e ao direito de resposta) e com o surgimento de um número cada vez maior
de advogados na praça, tais práticas de falta de rigor, ética e deontologia jornalística,
começam a estar cada vez mais sujeitas a processos judiciais e à aplicação da lei e das
respectivas penalizações pela sua violação.
Não podemos depois recorrer hipocritamente ao argumento geral da perseguição do
poder político aos jornalistas e ao “autoritarismo repressivo do regime” quando não se
respeitam as regras éticas e deontológicas da profissão. Não se pode confundir liber-
dade de imprensa com libertinagem irresponsável que utiliza a liberdade de expressão
para proceder a ofensas, enxovalhos e ataques pessoais com acusações infundadas
que lesam o bom-nome e a dignidade dos visados. Tais práticas são próprias de um
qualquer terrorismo jornalístico que visa julgamentos e por vezes “linchamentos” em
praça pública, mais adequados à época medieval da inquisição do que ao jornalismo
sério e responsável de uma democracia no século XXI.
208 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

No jornalismo, como em qualquer outro sector de actividade profissional, existem


regras e acima das regras existem leis. Se por um lado defendemos um Estado de
Direito baseado na Lei que cumpra e faça cumprir direitos fundamentais, como a
liberdade de expressão e a independência editorial dos media, não podemos esquecer
que existem igualmente outros direitos fundamentais que devem ser respeitados. Isto
não quer dizer que não existam actos opressivos e repressivos do regime e que não
existam toda uma série de constrangimentos sistémicos à independência e pluralismo
dos media (existem conforme expostos nos capítulos anteriores), mas simplesmente
argumentamos aqui que existem igualmente muitas debilidades e deficiências ao
nível do rigor ético-deontlógico em várias franjas do sector jornalístico, violadoras
de direitos fundamentais que não se podem desculpabilizar ao abrigo da liberdade
de expressão.
Concluindo, os valores que nos alimentam enquanto profissionais do jornalismo só
podem ser os do rigor e da seriedade, que assegure um jornalismo de qualidade e
socialmente responsável, procurando apurar a verdade dos factos de interesse público
em todas as suas implicações, do topo à base, velando e exercendo o direito de infor-
mar e ser informado sem qualquer tipo de censura e sem recear retaliações políticas,
de modo a que a actividade jornalística se traduza num valor acrescentado que venha
a beneficiar toda a sociedade, o desenvolvimento e a democracia. Num clima de li-
berdade e segurança, os media só estão em condições de desempenhar eficazmente o
seu papel se virem assegurados dois pilares essenciais ao seu funcionamento - a sua
independência e o pluralismo.
Os perigos de se resvalar para a manipulação, a desinformação e a propaganda, são
muitos, e os aliciamentos do poder político-económico representam tentações de-
masiado reais e fortes para serem ignoradas. Quando estes perigos se efectivam, os
resultados são devastadores para a credibilidade do jornalismo e dos jornalistas. Parte
da protecção contra estes riscos está no rigor que a classe tem de impor a si própria,
regulando a sua actividade, não só na lei geral, mas igualmente através do aperfeiço-
amento dos mecanismos da auto-regulação em paralelo com os da chamada vigilância
democrática da própria sociedade. Refiro-me concretamente ao Conselho Nacional
da Comunicação Social em Angola, do qual eu sou membro. Em matéria de conflitos,
o que não for possível resolver ao nível desta instância, terá de ser necessariamente
encaminhado para os tribunais, caso os lesados assim o entendam. Compete aqui aos
juízes aperfeiçoarem igualmente os seus critérios na avaliação que fazem, nomeada-
mente quando entra em choque o princípio constitucional da liberdade de imprensa
com os denominados direitos de personalidade, um território no qual não tem sido
fácil estabelecer a competente jurisprudência.
209

A Juventude Angolana e a
Participação Cívica e Política

José Patrocínio
Projecto Omunga
da ONG Okutiuka,
O s jovens angolanos interessam-se pela política e pela vida
pública, o grande obstáculo à sua maior participação e
envolvimento está na inexistência de uma vontade política,
Lobito, Angola por parte do sistema de poder estabelecido, em investir nos
mecanismos necessários ao desenvolvimento da capacidade
crítica, analítica, de intervenção e participação pública por parte
dos jovens (e da população em geral). O fraco investimento na
educação, as restrições à livre difusão de informação e os cons-
trangimentos ao espaço de actuação das Organizações da Socie-
dade Civil (OSC), impedem o aprofundamento do processo de
democratização. Para além destes obstáculos, há ainda a realçar
a falta de capacidade das OSC em articularem posições a nível
nacional e internacional de um modo mais eficiente e eficaz na
defesa dos Direitos Humanos (DH) e da democracia.

1 – Os Jovens, a Educação e a Democracia


Sustentável
A situação dos jovens em Angola é profundamente marcada
por todo um passado de práticas tradicionais, pautadas – es-
pecialmente em meios rurais – pela repetição e perpetuação
de pensamentos estáticos que se reproduzem de geração
em geração. As grelhas de leitura da realidade permanecem
muito maniqueístas e simplistas, diferenciando entre o que
é “nosso” e o que é “de fora”, o que é “africano” e o que é
“importado”, entre os “bons” e os “maus” a nível interno,
entre “os culpados” da situação e “as vítimas”, etc. Continu-
am a dominar visões bipolares — muito difundidas durante
o período de guerra civil —, não se estimulando capacidades
analíticas de intervenção, de mudança e de responsabilização
pelas escolhas políticas e pela participação na vida pública.
Nos espaços em que a juventude mais tempo passa, ao nível
da família e da escola, não se promove a discussão, as pes-
soas são simplesmente condicionadas a receber informação,
assimilá-la e repeti-la, sem reflectir e analisar sobre o seu con-
teúdo ou questionar a sua validade e viabilidade prática.
Se analisarmos os currículos escolares, facilmente nos damos
conta que os métodos pedagógicos não estimulam a pesquisa,
tornando os alunos meros repetidores de matérias lecciona-
das. Acrescenta-se ainda a isto, a mentalidade enraizada de
que o professor é uma espécie de “chefe”, “dono do saber”.
210 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Tal postura generalizada, a nível de alunos e docentes, não permite um relacionamento


mais aberto e interactivo entre ambas as partes. Trata-se de uma mentalidade arcaica,
com raízes profundas no colonialismo, que chega ao extremo de aceitar como naturais
os castigos corporais, como método útil de disciplina e facilitador da aprendizagem.
Em Angola, actualmente a escola está longe de ser um espaço democrático e de apren-
dizagem do exercício da cidadania, antes pelo contrário é um espaço de exercício de
autoritarismo, repressivo, opressivo e retrógrado.
O sistema de ensino público conhece uma profunda degradação devido a múltiplos
factores, a começar pelos anos de conflito, mas também em resultado da recorrente
falta de investimento público e da corrupção que grassa no sector, especialmente nos
estabelecimentos de ensino. Esta realidade constitui outro exemplo flagrante dos
obstáculos que impedem as crianças e os jovens de apreenderem conceitos e práticas
de integridade, justiça equitativa, cidadania e transparência na gestão dos assuntos
públicos e de desenvolverem uma consciência pública critica e interventora.
Existe um fraco nível de investimento e preocupação do governo para com o sector
público da educação. Os valores afectados à educação pelos sucessivos orçamentos
do Estado continuam a ser muito baixos, terminada que está a guerra.
Gráfico 1 - Orçamento Geral do Estado - Educação

Fonte: Criação do autor com base nos dados do OGE1


Este fraco investimento do governo no sector da educação impede a escola de se
transformar num viveiro de cidadãs e cidadãos com consciência democrática, que
apoie um processo democrático sustentável a médio e longo prazo, que sirva o país
de novos líderes políticos com comportamentos e mentes democráticas.
A construção da democracia é naturalmente um processo de longo prazo. Contraria-
mente ao que os nossos parceiros das ONG internacionais gostam de fazer crer, não
existem atalhos para a democracia, overnight, nem para uma sociedade civil forte ins-

1
In Orçamentos Gerais do Estado de Angola, disponíveis no site do Ministério das Finanças de Angola:
www.minfin.gv.ao
José Patrocínio h A Juventude Angolana e a Participação Cívica e Política 211

tantânea. Este processo passa por muitos obstáculos a vencer, mas sem dúvida que o
primeiro deles será o das consciências, das vontades e dos comportamentos, que por
sua vez está relacionado com a educação e muito especialmente com a juventude. Falo
aqui de educação democrática da população, de consciencialização pública e cívica de
base, para o comportamento democrático.
A longo prazo estes serão os alicerces, as bases, de um processo democrático sólido,
sustentável. O sistema escolar é o espaço privilegiado para se estimularem estas capaci-
dades de intervenção e de consciência pública, um espaço que é bastante mais facilitado
para tal objectivo do que a família. Aqui, os futuros cidadãos e cidadãs começam a ter
espaços de participação e a possibilidade de criarem eles próprios modelos de interac-
ção democrática e de respeito por opiniões contrárias, habituando-se desde a infância
a aceitar ideias e práticas de debate e participação com base na convivência pacífica
e respeito mútuo. Deste modo, quando adultos, terão mais facilidade em resistirem a
modelos impostos, não democráticos, lutando contra papéis em que são objectos de
imposição e repressão, defendendo antes um protagonismo democrático.
É neste sentido que a minha organização se preocupa com a utilização de instituições,
nomeadamente a escola, como um espaço de excelência para se promoverem modelos de
protagonismo infanto-juvenil, para facilitar que as crianças e os adolescentes comecem a
habituar-se a participar, a reflectir e a opinar em espaços comuns e sobre questões comuns
(“públicas”). No entanto, devemos frisar que por muitos esforços que as OSC façam em
relação à educação, não podem nunca substituir-se ao Estado nas grandes reformas e
nos investimentos de fundo que são indispensáveis para modernizar o sector e para o
transformar efectivamente num sustentáculo do desenvolvimento económico e social.
Dadas as carências do país em matéria de educação, seria de esperar mais apoio às OSC
que procuram desenvolver projectos nesta área, mas tal não é o caso, pelo contrário,
defrontamo-nos com inúmeros obstáculos ao nosso trabalho por parte das estruturas
governamentais e administrativas. A este nível, um dos exemplos mais claros dos obstá-
culos que enfrentamos é o projecto “Ensino Gratuito, Já!”, coordenado pelo OMUNGA
com o apoio da organização Save the Children – DNS, designado por “Escolas Amigas da
Criança”, que pretendia criar espaços de participação alargada na gestão das escolas,
para resolver os diversos problemas que as afectam, tornando igualmente a sua gestão
mais transparente e minimizando as suas carências. Pretendiam-se introduzir novas
estratégias de gestão e fiscalização por parte de alunos, professores, encarregados de
educação, administração provincial e municipal, OSC dedicadas à educação, associa-
ções comunitárias, etc. Não obstante os apoios financeiros ao projecto e a alargada
associação de esforços conseguida em vários quadrantes da sociedade, as resistências
e obstáculos levantados pelas administrações escolares, corpo docente e autoridades
administrativas foi totalmente impeditivo da implementação do projecto, que assim
morreu à nascença, essencialmente por falta de vontade política.

1.1 – O acesso dos jovens à informação


Num processo de consciencialização pública e democrática, o acesso à informação é
crucial. Não se trata apenas de aceder à informação, mas também de analisá-la, discuti-
-la e participar na produção e divulgação de mais informação, criando, paralelamente
ao espaço escola, espaços na comunidade, onde as crianças, os jovens, os adolescentes,
possam não só ter acesso à informação por vários meios (internet, bibliotecas, canais
212 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

televisivos internacionais, estações internacionais de rádio, etc.), mas também discutir


e analisar os conteúdos informativos, assim como recolherem informações das suas
comunidades e divulgá-las para o país, para a região e para o mundo.
Conforme é do conhecimento público e analisado noutros textos deste livro, os órgãos
públicos de informação encontram-se politicamente condicionados no que se refere à
divulgação da informação. Por outro lado, os órgãos privados estão limitados na sua
abrangência; a título de exemplo, as rádios privadas apenas se localizam em algumas
capitais de província e com limitado raio de acção no que se refere à superfície geográfica
em que podem ser escutadas; a única estação de rádio politicamente independente —
rádio Ecclesia — não consegue autorização para emitir fora de Luanda; os jornais priva-
dos têm uma tiragem muito limitada e concentram-se na capital, chegando a algumas
capitais de província com algum atraso — por vezes duas semanas — e o seu elevado
custo limita o acesso dos jovens (e da esmagadora maioria da população) à informação
aí veiculada2, o mesmo se passando com o acesso à internet que, para além do número
muito limitado de locais de acesso — especialmente nas províncias — e velocidade de
ligação absurdamente lenta, tem um custo muito elevado para a esmagadora maioria
dos jovens, chegando mesmo a ser proibitivo para muitos deles3. A dificuldade do acesso
a este tipo de serviço é tanto maior quanto mais afastado se está dos centros urbanos.
Existe igualmente uma gritante falta de bibliotecas públicas e as que existem não são
minimamente actualizadas, para além de não terem serviços modernizados (catálogos
e arquivos informatizados).
Uma das grandes preocupações do nosso projecto – OMUNGA/OKUTIUKA – reside no
acesso dos jovens à informação, essencialmente através das mais variadas tecnologias de
comunicação. O projecto tem vindo a desenvolver um centro de informação no Lobito,
de forma a facilitar às crianças e jovens o acesso a espaços de debate e a várias fontes de
informação, como sejam a internet, uma pequena biblioteca, videoteca e diversos canais
internacionais de TV parabólica. Pretende-se que os jovens tenham acesso ao máximo de
informação que lhes permita desenvolver a capacidade analítica e selectiva dessa mesma
informação e de relacioná-la com a realidade que os circunda, conferindo-lhes uma maior
consciência e fundamentação das suas escolhas políticas, assumindo a responsabilidade
social pelas suas opções. No entanto, esta é uma iniciativa com uma capacidade muito
limitada de resposta, não conseguindo responder minimamente à procura e não conse-
guindo abranger a esmagadora maioria dos bairros pobres da cidade.
Para além do carácter de longo-prazo, o processo de consciencialização pública e
democrática que facilite a intervenção social e política, tem necessariamente que as-
sumir uma dinâmica de alastramento aos vários níveis da sociedade e, como tal, uma
dimensão macro para que possamos construir uma sociedade democrática.
A perspectiva da participação política tem que basear-se na construção e dinamização
de verdadeiros movimentos sociais alargados, que consigam ir além de intervenções
isoladas ou micro projectos de âmbito limitado e circunscrito.

2
Cerca de US$4,5, ao preço de venda na rua.
3
Cerca de US$2,5/hora, um custo absurdo, sendo que numa hora só se conseguem abrir duas ou três páginas dada
a lentidão do serviço e sabendo-se que a maioria da população vive abaixo da linha de pobreza. De acordo com os
últimos dados disponíveis, em 2000-1, estimava-se que cerca de 68% da população angolana vivia abaixo do limiar
da pobreza (correspondente a US$1,70 por dia), 26% dos quais em situação de extrema pobreza (com menos de
US$0,75 por dia); in Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, Relatório de Progresso 2005 (Luanda: Governo de Angola
e PNUD, 2005), p.20.
José Patrocínio h A Juventude Angolana e a Participação Cívica e Política 213

Aqui reside o problema da maioria dos projectos de dimensão micro, de carácter par-
ticipativo, das diversas OSC — a fase de transição das diversas dinâmicas micro para
a sua agregação e alastramento para uma dimensão maior, que tenha efectivamente
impacto a nível da sociedade como um todo. Nesta transição, surge com particular
dificuldade a inter-acção com as estruturas político-administrativas, na altura em que
os indivíduos que vão ganhando consciência e que é suposto beneficiarem do processo
de empowerment, se têm necessariamente de relacionar com as estruturas do poder para
a resolução de vários problemas da comunidade. Aqui dá-se um choque de forças e de
interesses, que nem sempre são coincidentes porque começam a afectar os interesses de
manutenção da hegemonia e de controlo social por parte das estruturas governativas
do poder político estabelecido. Os exemplos que abordarei no sub-capítulo seguinte
são bastante ilustrativos desta realidade.
1.2 – Os jovens e a política
Tendo em conta a minha experiência de trabalho com a juventude, coordenando o
projecto OMUNGA, direccionado para a questão do protagonismo juvenil, considero
que actualmente existe bastante interesse dos jovens pela política e pela participação
no processo de construção de uma nova moldura político-social em Angola. Em to-
dos os espaços de debate que nós promovemos, a juventude participa activamente
e nos processos que acompanhámos, de consciencialização política e de organização
comunitária de grupos de jovens, os resultados foram positivos, apesar de todas as
resistências encontradas ao nível da administração. Gostaria aqui de referir três destes
processos, que ilustram bem toda a dinâmica de consciencialização e participação,
seus reversos e obstáculos.
O primeiro caso reporta-se ao projecto da Brigada Jornalística – BJ. Em 2006 o OMUNGA
realizou um curso de técnicas de jornalismo e de vídeo-reportagem, tendo o número de
candidatos superado em muito o número de vagas disponíveis (300 candidatos para
apenas 11 vagas). A formação desenvolveu-se em torno de três vectores principais, no-
meadamente o contacto com documentários políticos e a forma de tratar o fenómeno e o
facto político, o conhecimento da legislação de enquadramento da actividade jornalística
e a capacitação para contactos directos com responsáveis governamentais e políticos.
Os primeiros trabalhos do grupo centraram-se nos jovens sem abrigo, em situação de
rua, suas estratégias de luta pela sobrevivência, seus medos, ambições e frustrações. À
medida que o curso e os trabalhos avançavam, o grupo foi progressivamente criando
e alargando a sua consciência política, muito fortalecida por via de debates e refle-
xões sobre as condições e causas da realidade vivida pelos jovens de rua. De acordo
com um levantamento prévio de informação, o grupo decidiu realizar um trabalho
de educação cívica sobre o processo eleitoral, tendo produzido um documentário
com cerca de 20 minutos, a que deu o título de “Angola Rumo ao Registo Eleitoral”,
com uma forte componente de preocupação/consciência política e de necessidade de
respeito pelos DH.
Para além do documentário, que depois de concluído poria fim ao curso, decidiram
constituir uma “Brigada Jornalística”, com o propósito de intervir em acções de educa-
ção cívica e de DH. Hoje, alguns deles desempenham funções de correspondentes para
um programa radiofónico da cidade de Benguela, com um editorial de abordagem de
temas relacionados com educação cívica e DH. Têm igualmente participado na maioria
das actividades do OMUNGA e de outras OSC, como por exemplo a facilitação da
214 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

formação de outros jovens no Dombe Grande, através de um projecto da ADRA – Acção


para o Desenvolvimento Rural e Ambiente —, de formação através do visionamento,
análise e discussão de vídeos comunitários.
O segundo caso está também relacionado com a situação dos jovens de rua no Lobito.
Em 1997/98, como resultado da pressão do OMUNGA para se pôr fim às detenções
arbitrárias das crianças e adolescentes em situação de rua no Lobito, a administração
municipal cedeu um terreno no centro da cidade, onde colocou umas tendas para
os acomodar. Estes jovens ficaram no local até hoje, numa comunidade que engloba
actualmente cerca de duzentas pessoas. A comunidade foi crescendo com novos mo-
radores, que entretanto foram chegando e ali encontraram um espaço para residir. As
tendas foram gradualmente sendo substituídas por inúmeras construções precárias,
de cartão, chapas e plástico. As estratégias de sobrevivência dos membros da comuni-
dade levou-os a desenvolver vários negócios informais e a falta de infra-estruturas de
habitação levou à habitual degradação da qualidade de vida do espaço comunitário,
com esgotos a céu aberto, puxadas de electricidade, pequenos geradores, candeeiros
a petróleo, lanternas, acarretamento de água potável de difícil acesso, etc.
O projecto OMUNGA foi desenvolvendo vários projectos com os jovens da comu-
nidade, no sentido de criar espaços de protagonismo social e de interacção com as
restantes comunidades da cidade e com as instituições da administração pública go-
vernamental, para a solução dos seus problemas mais prementes. Fruto deste trabalho,
foram-se definindo capacidades de liderança em vários elementos mais interessados
em participar nestes projectos.
Com o fim da guerra e os novos projectos de construção de obras públicas e privadas,
o terreno da comunidade dos jovens começou a ser fortemente cobiçado pelos diversos
interesses imobiliários, dado que o terreno se valorizou devido à sua localização no centro
da cidade e ao lado das futuras instalações do Banco Nacional. Neste sentido, em 2005
a administração municipal começou a ameaçar com a retirada forçada — policial — de
toda aquela comunidade, alegadamente por necessidade pública do referido terreno.
Sentindo as suas vidas fortemente afectadas pela ameaça de expulsão do local onde viviam,
decidiram reagir de forma organizada, formando aquilo que designaram por Comissão
dos Jovens das Tendas – CJT, para defenderem os seus interesses junto das estruturas ad-
ministrativas governamentais. Este foi o momento concreto em que nos demos conta de
que alguns dos jovens tinham desenvolvido o seu potencial em termos de capacidade de
liderança, intervenção e espírito de grupo, manifestado agora em torno de um problema
específico que afectava as suas vidas. Solicitaram a colaboração do OMUNGA para a
definição de uma estratégia de intervenção local, nacional e internacional.
Fizeram-se os primeiros contactos exploratórios, procurando o estabelecimento de
uma rede de solidariedade alargada com as OSC a nível nacional e internacional e
exploraram-se ao extremo os espaços mediáticos, quer a nível provincial, quer a nível
da capital do país. Todo esse processo teve a CJT como ponto focal, daí resultando um
notório reforço das suas capacidades de negociação.
A CJT enfrentou inúmeros problemas e dificuldades para chegar ao contacto com as
estruturas governamentais e administrativas e não conseguiu garantir a permanência
no terreno ocupado, mas ainda assim foi capaz de obter o compromisso do governo
provincial e municipal para um desalojamento pacífico, o apoio à auto-construção
dirigida nos novos locais de assentamento e a disponibilização de títulos de proprie-
José Patrocínio h A Juventude Angolana e a Participação Cívica e Política 215

dade nos novos locais, assim como formação profissional e colocação em postos de
trabalho sempre que possível.
Do processo negocial com as autoridades conseguiu-se a vinda ao Lobito de repre-
sentantes do governo central para discussão do assunto com os jovens e membros do
governo local. A participação dos representantes da CJT nas reuniões com o governo
constituiu uma vitória significativa, tratando-se de um reconhecimento implícito da-
quela estrutura por parte do governo e tendo, de igual modo, reforçado a auto-confiança
dos jovens. A intervenção da advocacia social tem o potencial de dar um contributo
acrescido para o processo de interpretação dos mecanismos político-institucionais de
tomada de decisão e de aprendizagem acerca de uma mais eficiente e eficaz utilização
dos serviços do sistema judicial.
Quanto ao cumprimento dos compromissos assumidos por parte do governo, aí será
uma outra questão a aferir no futuro, restando saber como reagirá a CJT em caso de
incumprimento total ou parcial, ou apoio insuficiente ao reassentamento e à auto-
construção, conforme tem acontecido com vários casos em Luanda4.
O terceiro caso — Kulango —, vai em parte congregar as dinâmicas dos casos anteriores.
Ocorre em 15-16 de Julho de 2007, consistindo na movimentação forçada de cidadãos
sem tecto da cidade do Lobito, seguida de assentamento, igualmente forçado, na zona do
Kulango, tendo a polícia nacional recorrido a diversas formas de violência para com os
cidadãos visados, que se encontram agora a viver em condições sub-humanas, incluindo
um grupo de mais de uma dezena de crianças abaixo dos 10 anos de idade.
Para além da comunidade visada, este caso despoletou a reacção da CJT, da BJ e do
Movimento de Rua (que também congrega jovens em situação de sem abrigo). A
intervenção do OMUNGA foi solicitada no sentido de facilitar a promoção de uma
campanha de defesa da comunidade deslocada para o Kulango, junto de outras OSC
nacionais e internacionais, assim como junto das instituições governamentais e judiciais
municipais, provinciais e nacionais.
Delineou-se uma estratégia conjunta, de denúncia e reacção junto das instituições do
Estado, assim como de divulgação do caso. Deste modo, a nível local os jovens da
comunidade elaboraram uma carta que apresentaram ao Procurador-Geral junto do
Tribunal Provincial do Lobito, onde denunciaram e protestaram contra a violência
recorrente de que são alvo, solicitando igualmente a intervenção da Procuradoria para
pôr fim a este quadro. Concederam várias entrevistas a diferentes órgãos de informação
sedeados na província e o OMUNGA procurou registrar todos os depoimentos (das
vítimas e das instituições do governo) e divulgá-los em DVD às mais variadas insti-
tuições nacionais e estrangeiras (governamentais e não governamentais), que foram
sendo regularmente informadas dos sucessivos desenvolvimentos por via de cartas,
correio electrónico e notas de imprensa.
Por outro lado, o OMUNGA proporcionou aos jovens deslocarem-se a Luanda e manterem
contactos directos com agências das Nações Unidas, como o Escritório de Direitos Huma-
nos e a UNICEF, com embaixadas, entre elas a dos EUA, assim como com várias OSC e
órgãos de comunicação social. A estratégia do OMUNGA e dos grupos de jovens procurou

4
Ver, por exemplo, relatório da Human Rights Watch e SOS Habitat, “Angola, ‘eles partiram as casas’. Desocupações
forçadas e insegurança da posse da terra para os pobres da cidade de Luanda”, Vol. 19, n.º 7 (A) (New York: HRW & SOS
Habitat, Maio 2007), http://hrw.org/reports/2007/angola0507
216 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

desenvolver os mais amplos laços de solidariedade e de intervenção, envolvendo também


pessoas ligadas à cultura e às artes, tendo-se contactado o jovem músico de intervenção
MCK, com quem se delineou uma campanha de solidariedade para com as vítimas da
movimentação forçada, incluindo a realização de espectáculos e a venda de discos.
No fundo, a nossa estratégia procurava interligar este caso concreto com outros casos
e tentar influenciar as políticas públicas em matéria dos sem tecto em geral, em todo
o país. Procuraríamos criar pontes entre o caso Kulango e os casos que têm surgido
em Luanda e noutros pontos do país, sendo necessário, do nosso ponto de vista, um
debate nacional sobre esta matéria. Uma ideia que entretanto surgiu nas nossas dis-
cussões foi a da possibilidade de realização de um Encontro Nacional dos Sem Tecto.
Pensámos ser este um espaço em que os interessados — os sem tecto de todo o país
— se pudessem encontrar, analisar a sua situação e apresentar as suas recomendações
e reivindicações. As OSC e as organizações internacionais deveriam ter apenas um
papel de facilitadores e consultores, ajudando a criar esse espaço de discussão e talvez
promovendo o encontro com outros movimentos de sem tecto de outros países, onde
a experiência organizativa e reivindicativa é mais forte.
Estas acções poderiam ser vistas como embriões de movimentos sociais alargados,
criados a partir de assuntos concretos e envolvendo grupos distintos de jovens. Deve-
riam ser encaradas como a base de aprendizagem da democracia para futuras gerações,
politicamente mais conscientes e activas, capazes de uma intervenção sócio-política
sustentável no longo prazo.
Contudo, a passagem destas acções de carácter micro para um movimento social
mais amplo e alargado, constitui o principal teste à sua eficácia no longo prazo. Há
que saber como cruzar e articular os interesses destes e de outros grupos juvenis, e
de todos eles com a sociedade em geral, com vista ao reforço da sociedade civil e,
por consequência, do processo de democratização, que terá de contar com cidadãs e
cidadãos conscientes e interessados em participar na vida pública e contribuir para a
resolução dos problemas da sua sociedade.
Chegados a este ponto crucial da dinâmica da nossa estratégia — a passagem da dimensão
micro/local para a dimensão macro/nacional e internacional —, começaram de imediato
os grandes problemas, na medida em que se atinge verdadeiramente o patamar de incó-
modo significativo ao poder político estabelecido. Atingido este nível, a reacção do poder
político não se faz esperar. Neste caso concreto, começou por se abater sobre o coordena-
dor do OMUNGA, arguido num processo entretanto levantado pelo Departamento de
Investigação Criminal do Lobito por queixa do Comandante Municipal da Polícia sob a
acusação, infundada, de calúnias contra o Administrador Municipal, o Procurador e o
Comandante da esquadra da polícia5. Logo em seguida, aquando da visita a Luanda em
Outubro de 2007, o coordenador do OMUNGA foi oficiosamente informado de que se
estaria a preparar uma reacção de maior envergadura contra a organização, no âmbito do
processo de “ofensiva” geral de “fiscalização” e “cerceamento” de algumas OSC nacionais
e estrangeiras a actuarem em Angola, ou o chamado “processo de tentativa de ilegalização
e supressão de algumas ONG e associações” por parte do governo6.

5
Processo 831/LB/07.
6
Ver a respeito deste processo geral, as declarações do director-geral da Unidade Técnica de Coordenação da Ajuda
Humanitária (UTCAH), Pedro Walipe Kalenga, em entrevista à Rádio Nacional de Angola a 10 de Julho de 2007
(Luanda, Angop, 10 de Julho de 2007).
José Patrocínio h A Juventude Angolana e a Participação Cívica e Política 217

Perante um tal ataque, só a acção concertada, articulada, firme e solidária de defesa


das OSC nacionais e internacionais, a par das organizações intergovernamentais, pode
fazer a diferença e equilibrar forças contra a máquina administrativa/judicial/policial/
partidária do governo. Só a união de parceiros, pelos mesmos princípios e pela causa
geral dos DH, pode sustentar uma ofensiva governamental de tamanha envergadura.
O problema está em que não existe uma grande capacidade de articulação de posições
e de solidariedade alargada a nível nacional e com os parceiros internacionais e este
facto leva-nos ao tema do sub-capítulo seguinte.
1.3 – A incapacidade das OSC em articularem posições conjuntas na defesa
do seu próprio espaço
Existe um grande deficit de relações estratégicas inter-institucionais no seio da socie-
dade civil. Têm existido várias experiências de interligação em Angola, normalmente
à volta de temas de longo-prazo, muitas discussões teóricas em debates, palestras e
workshops, mas falta a intervenção/acção concreta, utilizando as instituições (tribunais)
e mobilizando a opinião pública com acções e manifestações de rua, de terreno, de
campo, a nível nacional e com articulações com os nossos parceiros internacionais. Têm
existido muitas experiências ao nível de redes formais (Rede da Terra, Rede Eleitoral,
Rede Mulher, etc.), mas quando surgem crises reais das populações ou das organiza-
ções, a que é preciso dar uma resposta imediata, em que é necessária a intervenção
conjunta para se fazer sentir com mais força, aparecem meros actos desconexos de
solidariedade virtual — via e.mail — (e.g. solidariedade para com as vítimas dos pro-
cessos de desalojamento forçado, solidariedade para com as organizações ameaçadas
de ilegalização ou ilegalizadas como a MPalabanda de Cabinda e os outros casos mais
recentes, acima mencionados).
Este tipo de solidariedade, assim manifesta, continua a ser pouco conexa ou articu-
lada, faltando-lhe a força da acção conjunta efectiva, a resposta concertada, capaz de
influenciar a realidade sobre a qual nos manifestamos. Falta esta efectiva capacidade
de intervenção colectiva, falta-nos a capacidade de em determinados momentos envol-
vermo-nos em causas específicas desta ou daquela organização, mas que em situações
de crise passam a ser colectivas, de todas as organizações que trabalham em prol dos
DH. Nessas alturas, não nos devemos ficar pelos processos de solidariedade desgar-
rados, meramente assinando e.mails, mas assumir a causa em questão como colectiva
e agirmos em conformidade e com actos mais palpáveis e concretos no terreno.
A concorrência, disputa de protagonismo e sectarização da actuação das OSC angola-
nas, constituem obstáculos sérios a uma maior articulação entre organizações. Usual-
mente classificam-se e separam-se as áreas de actuação de cada organização, identifi-
cando os problemas concretos como estando na área de actuação de determinada/s
organização/ções específicas, não se conseguindo absorver essas causas como sendo
causas colectivas de todas as organizações que, de comum denominador, têm o facto
de serem todas defensoras dos DH, ainda que se dediquem apenas ou especialmente
a determinadas áreas.
O mesmo tipo de crítica pode ser apontado, ainda que por motivos diferentes, às or-
ganizações internacionais a actuarem em Angola (nacionais e internacionais), que são
sempre muito prestáveis à solidariedade virtual (via net), em comunicados, cartas de
apoio diplomaticamente correctas, mas sempre dentro dos limites do politicamente
correcto, temendo represálias por parte do governo angolano.
218 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

No caso concreto do Kulango fizemos apelos fortes à solidariedade alargada dos po-
tenciais parceiros nacionais e estrangeiros, mas as respostas ficaram muito aquém do
expectável. A nível internacional, a UNICEF escreveu-nos a manifestar o seu apoio ao
OMUNGA e ao trabalho de defesa dos jovens deslocados para o Kulango, mas tratou-
-se de uma carta dirigida à instituição e não uma tomada pública, forte e assumida, de
posição. Do mesmo modo, esperávamos uma onda de solidariedade pública por parte
das OSC a trabalharem na área dos DH, mas também não aconteceu. Isto deixa-nos numa
posição de alguma fragilidade perante as ofensivas maiores que venham a seguir.
Por fim, penso que a falta de articulação da sociedade civil está igualmente relacionada
com a questão da incapacidade de afirmação das nossas organizações face aos nossos
parceiros externos — financiadores. Temos de admitir que as nossas organizações não
têm tanta liberdade de intervenção como por vezes gostamos de supor, não podendo
adaptar e ainda menos alterar os planos programáticos, devido aos compromissos
que se estabelecem com os doadores ou com determinados parceiros externos. Fi-
camos assim limitados, amarrados, às vontades alheias e aos programas de acção
pré-estabelecidos com os doadores, faltando-nos capacidade de argumentação e de
rejeição de modelos externos e de afirmação de ideias e perspectivas próprias, que
reflictam os anseios e as expectativas das populações com quem trabalhamos e em
função de quem existimos.
A dependência de parceiros externos nota-se igualmente ao nível da incapacidade de
adaptabilidade das estratégias das nossas organizações à realidade. A inflexibilidade
das estratégias de actuação, por vezes determinadas mais por parceiros e doutrinas
externas cujas agendas não têm em conta o nosso conhecimento do contexto e das
causas profundas que lhes estão na base, levam em muitos casos ao desfasamento e
arcaísmo das reacções e à incapacidade de agir sobre a realidade e de mudá-la.
A intervenção que estimula a cidadania e a participação política pública consciente,
deve ser liberta de planificações rígidas, porque as mudanças de contexto são repen-
tinas, bruscas e acentuadas, exigindo grande capacidade de reacção imediata.
Em suma, diria que para além desta falta de capacidade das OSC em articularem
posições a nível nacional e internacional de um modo eficiente e eficaz, parece-me
existir igualmente falta de vontade, por parte de interesses concretos do poder e do
sistema estabelecido, em suprimir vários obstáculos que impedem o desenvolvi-
mento da capacidade analítica, crítica, de intervenção e de participação democrática
na vida pública, por parte da população em geral e dos jovens em particular. O fraco
investimento na educação, as restrições à difusão livre de informação, o cerceamento
e constrangimento do espaço de actuação das OSC mais assertivas na defesa dos DH
e incomodativas para o poder estabelecido, impedem o efectivo aprofundamento
do processo de democratização.

2 – Os Direitos Humanos e a Política


A defesa dos DH é, no meu entender, a defesa da democracia e, como tal, todas as
nossas posições e posicionamentos — enquanto OSC preocupadas com os DH — têm
essência política e isso não nos deve preocupar nem assustar e deve ser assumido
claramente.
No entanto, tal postura não deve ser entendida como “anti-governamental”, anti-poder
estabelecido e muito menos como tentativa de derrube das instituições, antes pelo con-
José Patrocínio h A Juventude Angolana e a Participação Cívica e Política 219

trário, significa reforço das instituições democráticas genuínas e do Estado de Direito.


Qualquer que seja o governo, a defesa dos DH e do respeito pela dignidade humana
deve estar sempre no topo da agenda dos defensores da democracia.
Mesmo nas ditas democracias mais maduras, a luta pelo respeito dos DH é sempre
actual, assumindo novos contornos, em novos contextos e contra diversos governos
que se vão alternando no poder, independentemente da sua orientação política de
direita ou de esquerda.
As OSC não são oposição pró-partidária, nem pretendem conquistar o poder, dedicam-
se à defesa dos DH, à sua promoção e fiscalização do seu incumprimento ou condenação
da sua violação, qualquer que seja o governo no poder.
Tendo um Estado de Direito que consagra as liberdades, direitos e garantias funda-
mentais, a posição dos defensores dos DH é a da defesa da justiça, que por sua vez
deve ser, também ela, independente do poder político.
Nós, defensores dos DH, pretendemos sempre, quando levantamos uma questão de
violação de DH, que os seus responsáveis sejam não só responsabilizados, mas tam-
bém, e sempre que possível, consciencializados do porquê da necessidade de não se
violarem esses direitos, na medida em que os violadores de hoje podem ser as vítimas
de amanhã, numa sociedade que implicitamente tolere o desrespeito generalizado
desses direitos.
Os problemas de desrespeito para com os DH em Angola não são da exclusiva e
absoluta responsabilidade dos governantes, também são da nossa responsabilidade,
nós todos, governados que não pugnamos pelo seu respeito. Muitos de nós, cidadãos,
apenas falamos de necessidade de respeito dos DH quando somos vítimas, mas nada
fazemos quando assistimos às violações de que é vítima um nosso próximo. A nossa
acção — OSC — deve ser no sentido da responsabilização colectiva, de indivíduos,
grupos e instituições.

2.1 - As eleições
Tendo por base a minha experiência pessoal e a da minha organização, julgo que no
contexto actual as OSC devem aproveitar o processo eleitoral a curto e médio prazo
como propulsores potenciais da mudança.
Acredito que as eleições, em si e por si só, não são a solução dos problemas de fundo,
mas devemos aproveitar as eleições como um instrumento, um passo, uma oportu-
nidade de pressionar para uma maior democratização, especialmente ao nível dos
obstáculos que referi no capítulo anterior — restrições à liberdade de difusão de
informação, fraco investimento na educação, cerceamento do espaço das OSC mais
assertivas na defesa dos DH, fraca capacidade de articulação entre OSC nacionais e
internacionais. Neste sentido, as OSC deverão tirar o máximo proveito deste instru-
mento, a curto e a médio prazo.
A curto prazo deveremos divulgar e explicar todo o processo eleitoral, formando e
educando em torno dos princípios que estão na base de processos de democratização
e do propósito da realização de eleições. Será igualmente uma oportunidade para
realçar as motivações, as preocupações, os interesses e os problemas das comunida-
des. É a altura ideal não só para explicar aos cidadãos o que é o processo eleitoral e
a importância da votação, de participar e de se envolver, como também de realçar os
220 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

problemas que afectam as comunidades, as suas preocupações, as suas motivações, os


seus interesses e expectativas quanto ao futuro, para que sejam tidas em consideração
nas decisões políticas e nos programas político-partidários eleitorais.
A médio prazo e tendo em consideração que devemos tomar as eleições não como um
fim, mas como parte de um processo em que as pessoas devem estar preparadas para
o pós-eleições, assume particular importância a monitorização das políticas públicas,
o acompanhamento da gestão da coisa pública, qualquer que seja o partido a assumir
o poder. Este acompanhamento deverá ser feito pelas populações em questão, que
devem estar preparadas para uma tal tarefa de fiscalização.
O pós-eleições deve ser tão realçado quanto o pré-eleições e as eleições propriamente
ditas. O eleitor deve ter consciência de que também é, pelo menos em parte, responsável
por aqueles que escolheu para governar o país e os seus destinos e deve estar preparado
para monitorar, fiscalizar e controlar aquilo que vai ser feito após as eleições.
Em meu entender, aquilo que é importante em termos de democracia multipartidária
não é tão simplesmente a possibilidade de escolha entre projectos opostos, mas so-
bretudo a possibilidade de opção com consciência da subsequente responsabilização
pela que escolha que se fez.
Julgo que estas são questões em que podemos trabalhar desde já e tendo em conta
que vamos ter muitos anos de eleições pela frente, primeiro as legislativas, depois as
presidenciais e finalmente as autárquicas, que provavelmente deverão ocorrer não
muito distantes das segundas legislativas (que ocorrerão de cinco em cinco anos).
Em paralelo a esta realidade de um processo eleitoral extenso, penso que devemos
ter sempre presente em qualquer estratégia de democratização efectiva as questões
de longo prazo, de fundo, estruturais, que referi no primeiro capítulo e que é preciso
enfrentar se queremos efectivamente construir uma democracia de fundamentos
sólidos para o futuro.
221

Desenvolvimento Humano
em Angola

Introdução
Paulo de Carvalho
Faculdade de Letras
e Ciências Sociais
S egundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvol-
vimento (PNUD 1997:12), o desenvolvimento humano é
definido como um “processo de alargamento das escolhas” da
da Universidade população, considerando-se três escolhas essenciais (quer indi-
Agostinho Neto, viduais, quer colectivas): a possibilidade de se poder viver de
Luanda, Angola forma saudável durante um período de tempo relativamente
longo; aceder ao conhecimento; aceder aos recursos necessá-
rios para se ter um nível de vida considerado satisfatório.
A opção por estas três escolhas tem razão de ser, pois o acesso
a elas abre várias outras oportunidades que conduzem a uma
qualidade de vida aceitável. Pelo contrário, havendo barreiras
no acesso a qualquer dessas três escolhas, vão-se gradual-
mente fechando outras oportunidades, até que se tornam
inacessíveis. Quando se aborda o acesso a bens socialmente
desejados, há igualmente que ter em conta o modo como
esse acesso se poderá desenvolver no futuro. Normalmente,
obstáculos e bloqueios no acesso a tais bens vão cristalizando
determinadas barreiras e círculos viciosos que se vão trans-
mitindo de geração em geração.
O desenvolvimento humano e o bem-estar estão interligados,
visto ambos fazerem parte de um processo que aumenta a
probabilidade de longevidade, com boa qualidade de vida.
No entanto, quando se fala de desenvolvimento humano
fala-se de muito mais do que o acesso à instrução, à assistên-
cia sanitária e a um nível de vida considerado condigno. O
desenvolvimento humano inclui a liberdade cultural (PNUD
2004: 1-12), a “liberdade política, económica e social, bem
como a criatividade, a produtividade, o respeito por si e
a garantia dos Direitos Humanos fundamentais” (PNUD
1998: 55).
A abordagem do desenvolvimento humano remete-nos ne-
cessariamente para a problemática sociológica das desigual-
dades sociais, para a temática das dinâmicas de fechamento
social e para as dinâmicas de exclusão e inclusão social1.

1
Sobre estas matérias, vide por exemplo: (Kingsley & Moore 1945), (Weber, 1946),
(Parsons, 1966), (Parkin, 1981 & 2000), (Slomczynski, 1989). Para o caso de Angola,
ver (Monteiro, 1973), (Carvalho, 1989, 2002, 2003a & 2004), (Jorge, 1998).
222 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

O texto que aqui apresento pretende discutir essencialmente estas desigualdades em Angola
e as diversas dinâmicas de fechamento e exclusão social que impedem o desenvolvimento
do país nas suas diversas vertentes, especialmente na sua dimensão mais importante — a
humana. Neste sentido, começo por caracterizar o país à luz do índice de desenvolvimento
humano, acrescentando uma dimensão da realidade não revelada pelo IDH, que consiste
na diferenciação social em função do meio geográfico e da proveniência sócio-cultural (ca-
pítulo 1). Numa segunda parte do texto abordo questões relacionadas com a distribuição da
pobreza, as suas tendências de evolução e aquelas que considero serem as suas principais
causas — a guerra civil, a forma como se executam as políticas públicas e as dinâmicas de
estratificação e fechamento social levadas a cabo pelas elites angolanas (capítulo 2).
1 - A Realidade de Angola Revelada pelo Índice de Desenvolvimento
Humano – IDH
O índice de desenvolvimento humano é um indicador de qualidade de vida. Não sendo
propriamente um índice de exclusão (ou de inclusão) social e apesar de não incluir em
si a grande diferenciação relacionada com cada um dos seus índices parciais, a verdade
é que se trata de um dos poucos indicadores de qualidade de vida dos angolanos a
que podemos ter acesso de modo minimamente fidedigno.
Como se pode verificar no gráfico 1, o valor do índice de desenvolvimento humano em
relação a Angola situou-se no intervalo 0,143 – 0,445, no período 1990-2004. Tratam-se
de valores bastante baixos, que colocam Angola nas vinte e cinco últimas posições à
escala mundial. No ano de 2004, o índice assumiu o valor de 0,439, o que colocava
Angola no 161.º lugar dentre 177 países do mundo.
Gráfico 1 - Índice de Desenvolvimento Humano, Angola, 1990-2004

Fonte: PNUD 1998, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006.
No ano de 2004 (ano a que se refere o último Relatório de Desenvolvimento Humano,
editado em 2006), era de somente 43,9% a probabilidade de um angolano viver 85 anos
Paulo de Carvalho h Desenvolvimento Humano em Angola 223

de forma medianamente saudável, alcançando o nível superior de instrução académica


e vivendo de forma digna.
Esta baixa performance coloca os angolanos 40,8% abaixo da média mundial, 2,8% acima
da média dos países de baixo desenvolvimento humano, 21,0% abaixo da média dos
países de baixo rendimento, 35,3% abaixo da média dos países em desenvolvimento,
7,0% abaixo da média dos países da África Sub-sahariana e 5,4% abaixo da média dos
países menos desenvolvidos do mundo. A conclusão que se retira destes dados é que
Angola está longe de ocupar uma posição privilegiada, qualquer que seja o grupo de
países utilizado como referência. A única excepção diz respeito aos países de baixo
desenvolvimento humano, em relação a quem Angola passou em 2004 a situar-se li-
geiramente acima da média. Mas é preciso assinalar que essa performance não se deve à
melhoria substancial das condições de vida dos angolanos de 2003 para 2004, mas a uma
diminuição da qualidade de vida nos países de baixo desenvolvimento humano.
A situação de Angola é de facto débil, especialmente quando entramos no detalhe dos
diversos indicadores de avaliação da qualidade de vida (PNUD 2006). A esperança de
vida à nascença é de apenas 41,0 anos, sendo a média africana2 de 46,1 anos e a média
mundial, de 67,3 anos. A probabilidade, à nascença, de o cidadão angolano não atingir
o 40.º ano de vida é de 48,1%, o que significa que praticamente metade dos angolanos
não vive além dos 40 anos.
O Índice de Pobreza Humana em Angola (que mede o grau de privação de um nível de
vida digno) está estimado em 40,9%, sendo a 23.ª pior performance a nível mundial. Cerca
de 38% dos angolanos estão em situação de subnutrição, quando em África este valor é
de 30% e no mundo, de 17%. O produto interno bruto per capita é de 2.180 dólares norte-
americanos, quando a média africana é de 1.946 dólares e a média mundial é de 8.833
dólares3, verificando-se um desequilíbrio de género no que se refere aos rendimentos,
com os homens a auferirem um rendimento 62% superior ao das mulheres4.
A saúde é uma das áreas preocupantes. As despesas com o sector atingem apenas 49 dó-
lares per capita, correspondendo a somente 2,25% do produto interno bruto. Cada homem
angolano perde 8,4 anos de vida devido a enfermidades e cada mulher angolana perde
6,5 anos pela mesma razão (Organização 2002: 198). A taxa de mortalidade infantil é de
15,4%, sendo a média africana de 10,3% e a média mundial, de 5,1%. Para menores de 5
anos, a taxa de mortalidade é de 26,0%, quando a média africana é de 17,4% e a média
mundial é de 7,5%. O acesso a medicamentos essenciais é bastante baixo5 e somente
45% dos partos são assistidos por técnicos de saúde, quando a média africana é de 43%
e a média mundial é de 63%. Para cada 100.000 angolanos, há apenas 8 médicos, facto
que coloca Angola na 18.ª pior posição a nível mundial, ao lado do Mali e do Uganda. A

2
Quando aqui falamos de África, referimo-nos à África Sub-Sahariana.
3
Trata-se da melhor performance relativa de Angola (que coloca este país 32 posições acima da que ocupa no mundo
em relação ao desenvolvimento humano), o que não implica necessariamente uma boa qualidade de vida para os
angolanos. Aliás, começam ultimamente a apresentar-se reticências em relação à utilização do PIB como indicador
privilegiado de desenvolvimento, visto que ignora as relações extra-mercado da comunidade e famílias, não considera
a distribuição do rendimento e encobre tudo o que está além das trocas monetárias; ver a este respeito (Cobb et al.
1995), (Rowe & Silverstein 1999).
4
Apesar de este índice indicar uma deficiente aposta na distribuição do rendimento segundo o género, a verdade
é que ele coloca Angola ao lado dos Estados Unidos da América, Estónia e Federação Russa, havendo países como
a Bélgica, Canadá, Finlândia, França, Noruega e Suécia com piores performances.
5
Não há dados exactos acerca desta matéria, podendo apenas dizer-se que as estimativas da Organização Mundial
de Saúde colocam Angola no grupo de 25 países com mais baixo acesso a medicamentos essenciais.
224 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

malária atinge 63% das crianças menores de 5 anos, constituindo a 4.ª pior performance a
nível mundial6 e a tuberculose afecta 310 em cada 100.000 angolanos, quando a média
africana é de 540 e a média mundial é de 2297. Ainda que os números existentes referentes
à SIDA estejam abaixo da média em África (estima-se que cerca de 5,3% dos angolanos
com idade entre 15 e 49 anos tenham o vírus HIV, situando-se a média africana nos 6,9%
e a mundial nos 1,2%8), o crescimento dos últimos anos deve constituir preocupação
para se evitar uma escalada para os níveis médios africanos.
A educação é outra das áreas que merece destaque pela negativa, com uma taxa bruta
de escolarização de apenas 30%, quando a média africana é de 50% e a média mundial
de 67%9. A taxa de alfabetização de adultos (67,4%) situa-se ligeiramente acima da
média africana (63,3%), mas ainda assim é baixa se considerarmos o esforço que foi
feito a este nível nos primeiros anos de independência de Angola.
As deficiências a nível de saneamento afectam fortemente a população urbana, saben-
do-se que apenas 31% dos angolanos têm acesso a saneamento melhorado, quando
a média africana é de 37% e a média mundial de 59%. Além disso, apenas 53% dos
angolanos têm acesso a água tratada, apropriada para consumo humano, situando-se
a média africana nos 56% e a média mundial nos 83%.
Por fim, gostaria de realçar alguns dados referentes ao acesso à informação e aos meios
de comunicação individuais. Também aqui vemos a disparidade do caso angolano: há
apenas 6 telefones fixos por cada mil angolanos, quando a média africana ronda os 15
e a média mundial os 19010; e 48 telemóveis por mil pessoas, sendo a média africana de
77 e a média mundial de 27611. Em cada mil angolanos, apenas 11 têm acesso à internet,
quando em África esse número é de 19 e no mundo é de 138 por mil habitantes12.
Todos estes dados atestam a baixa qualidade de vida dos angolanos. Contudo, e
agravando de sobremaneira este cenário, há que referir um aspecto importante que
os dados globais apresentados não espelham: as fortes assimetrias que se registam no
país. Num outro trabalho, afirmei que Angola é a terra dos contrastes por excelência
(Carvalho 2003b) — é um dos países mais ricos do mundo se considerarmos a rique-
za do subsolo e dos mares, mas é um dos mais pobres do mundo, se considerarmos
as suas gentes e a sua condição de vida. Existem disparidades sócio-económicas em
função da diferenciação étnica (Kajibanga 1999 e 2000, Ngonda 1994) e da localização
geográfica, entre meio rural e urbano. Mesmo nas cidades existe contraste sociológico e

6
A malária é a doença que causa mais mortes em Angola (Van-Dúnem, 2003). Ao lado de Angola estão as Comores
e o Gana, estando em pior situação somente os Camarões, a República Centro-Africana e o Tajiquistão.
7
A este respeito, assinala-se em Angola uma diminuição da ordem dos 22%, de 2003 para 2004.
8
Até ao momento, parece que Angola não é dos países mais atingidos pelo vírus HIV e pela SIDA. Contudo, a
deficiente informação acerca da forma de contracção deste vírus e o facto de apenas 3,3% da população praticar sexo
seguro (PNUD 1998: 8) podem estar a provocar o rápido alastramento do vírus e da doença, fundamentalmente nos
subúrbios das cidades e no meio rural. A este respeito, tudo indica que a estimativa esteja a ser feita por defeito,
devido à ausência de diagnóstico em relação à sida nas mortes por malária, tuberculose e outras enfermidades
provocadas pela perda de imunidade que o HIV provoca.
9
No que respeita ao acesso à instrução, somente o Níger e o Djibuti têm pior performance que Angola.
10
Esta performance de Angola é bastante baixa, devendo inclusivamente assinalar-se um decréscimo em 14% no
número de linhas telefónicas fixas, no período 1990-2004.
11
Apesar de esta taxa ser ainda baixa em Angola, a verdade é que se registou um aumento da ordem dos 433%,
de 2002 para 2004. Está a fazer-se um grande investimento na expansão da telefonia móvel na Angola urbana,
descurando-se contudo a rede fixa.
12
Trata-se de outro sério investimento em Angola, já que o aumento do número de utilizadores de internet aumentou
em 279% em Angola, no período 2002-2004.
Paulo de Carvalho h Desenvolvimento Humano em Angola 225

antropológico entre a urbe propriamente dita e os musseques, entre a cidade de asfalto


e o areal, entre a cultura urbana propriamente dita e uma cultura urbana periférica.
Deste modo, não basta dizer-se genericamente que a qualidade de vida dos angolanos
é baixa. É preciso ir mais longe, reconhecendo que existe diferenciação social, quer em
função do meio geográfico, quer em função da proveniência social.

2 – Distribuição, Evolução e Causas Estruturais da Pobreza em Angola


Apesar de o produto interno bruto per capita em Angola ser 12% superior ao do
PIB dos países da África Sub-Sahariana, a maioria dos angolanos não beneficia do
crescimento económico que o país vem conhecendo nos últimos anos. Em Angola,
o rendimento concentra-se num grupo reduzido de pessoas, estimando-se que 61%
do total do rendimento se concentra no grupo de 20% das famílias mais ricas, contra
apenas 3,2% do total do rendimento para o grupo de 20% das famílias mais pobres
(PNUD 1999b: 20).
De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, em 2001, 68,2% dos angolanos re-
sidentes em meio urbano viviam abaixo da linha de pobreza13. Desses, 26,3% viviam
abaixo da linha de pobreza absoluta (ver gráfico 2). De 1995 para 2001, o número rela-
tivo de pobres aumentou em 1,2%, mas o número de pessoas a viver abaixo da linha
de pobreza extrema aumentou quase para o dobro — de 13,4% para 26,3%.
Isto significa que houve grande mobilidade descendente nesse espaço de tempo, ou
seja, um empobrecimento generalizado da população. Enquanto um bom número de
remediados em 1995 passou a viver abaixo da linha de pobreza em 2001, um número
considerável de pobres passou a viver abaixo da linha de pobreza extrema.
O gráfico 3 apresenta a estrutura do consumo urbano em Angola. Pode aí comprovar-
-se que mais de 60% das despesas se destina ao consumo alimentar, sendo por isso esta
estrutura característica de população pobre. Pode acrescentar-se que a importância
relativa do consumo alimentar diminui com o aumento do volume de rendimentos
do agregado familiar. Outros aspectos a destacar têm a ver com a relativamente ele-
vados valores que se destinam às despesas com transportes e habitação e despesas de
assistência sanitária (que aumentam com o crescimento do volume de rendimentos),
enquanto às despesas de higiene e recreio se destina uma fatia menor (em média, o
equivalente a 37 dólares americanos por mês nas famílias com maiores rendimentos,
mas somente 3 dólares em cada família com menor volume de rendimentos).
No que respeita ao meio rural angolano, em 1996 estimava-se um índice de pobreza
absoluta de 78% (Ministério & FAO 1997), estimando-se igualmente que não existiu
grande melhoria nesta taxa até 2001. Deste modo, os dados disponíveis apontam para
que actualmente cerca de três quartos dos angolanos vivam abaixo da linha de pobreza,
estando em pior situação todos quantos vivem em meio rural.

13
Os dados mais recentes acerca da pobreza urbana em Angola datam exactamente de 2001, altura em que foi
realizado o (até agora) último inquérito de receitas e despesas dos agregados familiares. Prepara-se actualmente
novo inquérito, cujo início se prevê para o ano de 2008.
226 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Gráfico 2 - Índice de Pobreza Urbana, Angola, 2001

Fonte: Ceita 2001.

Gráfico 3 - Estrutura do consumo urbano

Fonte: Ceita 2001.


Que causas se podem apontar para tão elevada incidência da pobreza, num país com
um produto interno bruto de 2.180 dólares per capita?
Na minha perspectiva, devemos realçar essencialmente três grandes causas estruturais
de pobreza endémica. Em primeiro lugar devemos referir a guerra civil de 27 anos (de
1975 a 2002), com níveis de destruição social e material profundos; em segundo lugar
Paulo de Carvalho h Desenvolvimento Humano em Angola 227

consideramos a forma de execução das políticas públicas, que não privilegia o combate
à pobreza e a inclusão social da maioria dos angolanos – pelo contrário, promovem a
reprodução da pobreza e da exclusão social; por fim, há que considerar as dinâmicas
de fechamento social levadas a cabo pelas elites angolanas (cf. Carvalho 2002, 2004).
A guerra civil promoveu a utilização de recursos que poderiam ser destinados ao de-
senvolvimento industrial e à promoção da inclusão social, tendo também provocado a
destruição de infra-estruturas, a minagem de campos de cultivo e a deslocação forçada
de pessoas em busca de segurança. As outras duas causas estruturais de pobreza e
exclusão social actuam de forma conjugada. As elites política e económica, que são
simultaneamente detentoras dos meios de produção, actuam (como descrevemos
acima) no sentido da concentração da maior fatia do rendimento num pequeno grupo
de pessoas, que inclui alguns anéis que lhes são satélites. Utilizam, pois, dinâmicas
de fechamento social, através da utilização do poder de que dispõem para restringir
o acesso aos bens sociais (Carvalho 2004; cf. Sango 2002).
Uma das formas de actuação das elites políticas e económicas é a privatização, em seu
benefício, de empresas e serviços públicos. Outra forma de actuação tem a ver com a
débil execução de políticas públicas tendentes à promoção da inclusão social, através
do acesso à instrução de qualidade e do fomento do emprego estável.
Terminada a guerra civil, começa-se a pensar na redução da pobreza por via de políticas
públicas que promovam a inclusão social e eliminem algumas das dinâmicas de fecha-
mento social e estratificação elitista da sociedade angolana. Mas isso tem necessariamente
de passar pelo apoio à actividade agrícola em pequena e média escala e pelo fomento
da indústria não extractiva, que promove emprego estável em grande escala.
Um aspecto a destacar em relação aos efeitos da pobreza tem a ver com a dimensão
política da inclusão social. A pobreza funciona como factor inibidor da inclusão nessa
dimensão, pois se por um lado dificulta o exercício dos direitos civis e dos direitos
sociais, por outro inibe a participação no exercício dos direitos políticos. Devido à
situação de pobreza e exclusão social e devido à ausência de expectativas em relação
à possibilidade de ultrapassar proximamente essa situação, o pobre angolano pode
simplesmente vir a optar por se abster do exercício do direito de voto ou pode “ven-
der” o seu voto a quem melhor pague por ele. A situação de pobreza endémica é, pois,
inibidora do exercício dos direitos de cidadania.
Para além dos dados acima referidos acerca da pobreza, é importante adiantar que é
bastante grande a percepção subjectiva da pobreza. Uma pesquisa feita em Novem-
bro de 2003 pelo autor14, na cidade de Luanda, revela que três quartos dos habitantes
adultos da cidade de Luanda (com idade a partir dos 15 anos) considera que a maior
parte dos angolanos vive abaixo da linha de pobreza, enquanto que somente 16% estão
convencidos que a pobreza atinge menos de metade dos angolanos (ver gráfico 4).
De entre os habitantes de Luanda inquiridos, apenas 27% se declaram acima da linha
de pobreza, enquanto a maioria (59%) é constituída por quantos se enquadram a si
próprios no grupo de pobres (gráfico 5). A um baixo volume de rendimentos, à residên-
cia em bairros suburbanos e a um menor grau de instrução académica está associado
o aumento da percepção subjectiva da pobreza.

14
Os resultados desta pesquisa estão descritos em (Carvalho, 2004).
228 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Gráfico 4 - Pobreza atinge a maioria dos angolanos?

Fonte: Pesquisa do autor.

Gráfico 5 - Pobreza subjectiva em Luanda

Fonte: Pesquisa do autor.


Paulo de Carvalho h Desenvolvimento Humano em Angola 229

Estes dados vão ao encontro daqueles que são revelados pelo Pew Research Center for
the People and the Press, segundo os quais, no ano de 2002, 86% dos angolanos declara-
ram não possuir recursos para compra dos alimentos indispensáveis à sobrevivência
condigna, enquanto 85% declararam não possuir recursos financeiros para compra de
medicamentos essenciais (Pew, 2003).
Segundo os habitantes de Luanda inquiridos em Novembro de 2003 pelo autor, os gru-
pos mais vulneráveis à pobreza são as crianças de rua, deficientes físicos, deslocados
e desempregados, para além dos agricultores tradicionais (ver gráfico 6).
Gráfico 6 - Grupos mais vulneráveis à pobreza

Fonte: Pesquisa do autor.

Conclusão
Como vimos, em 2001 estimava-se que mais de dois terços dos angolanos se encontra-
vam em situação de pobreza. Tudo indica que com o final da guerra em 2002 o índice
de pobreza tenha começado a diminuir. Se tomarmos em consideração a estrutura
de consumo urbano, encontramos claramente as características de um país pobre e
pouco desenvolvido, com elevada concentração das despesas no consumo alimentar,
praticamente sem possibilidade de recreação e sem hipótese de poupança.
A maioria dos angolanos encontra-se socialmente excluída pela sua condição de po-
breza. A qualidade de vida do angolano médio é baixa, estando a riqueza funda-
mentalmente concentrada nas elites. São estas elites minoritárias que beneficiam do
desenvolvimento, sendo somente estes os membros de pleno direito da sociedade,
que se opõem aos socialmente excluídos, ou seja, àqueles que são “declarados vivos
em regime de morte civil” (Santos 1998: 7).
O angolano médio vive para o dia-a-dia, sem condições para pensar no futuro. Vive
pensando na sua sobrevivência diária e sem hipótese de pensar em investir no seu
bem-estar e na mobilidade social. Sendo baixo o acesso à instrução, à assistência sa-
nitária e ao saneamento básico, é grande a probabilidade de reprodução da pobreza
e de exclusão social para as gerações seguintes.
230 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Sendo uma das dimensões de exclusão social, a pobreza constitui poderoso inibidor
do desenvolvimento do país. É preciso apostar no emprego para todos, no aumento
do acesso à educação, à saúde, ao saneamento e a uma mais justa distribuição do ren-
dimento, para que se pense em desenvolver o país, eliminando gradualmente as fortes
assimetrias existentes entre as várias regiões e estratos da população. Só assim estarão
criadas as condições para se começar a pensar na consolidação da nação angolana.

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Capítulo IV
O Enquadramento Internacional

Textos

Lopo Fortunato do Nascimento


David Sogge, Bob van der Winden & René Roemersma
Kristin Reed
Mónica Rafael Simões & Fernando Pacheco
Anacleta Pereira
Manuel Paulo

i
235

Cooperação Económica
Internacional, Modelos
de Desenvolvimento e Sociedade
Civil em África

Introdução
Lopo Fortunato
Ferreira do
Nascimento
M ais de meio século depois das primeiras independên-
cias, a situação económica da África Sub-Sahariana
continua a colocá-la entre as regiões mais subdesenvolvidas e
Centro pobres do planeta. Muitos países apresentam um PIB inferior
de Estudos Sociais ao dos anos sessenta do século XX, resultado evidente das prá-
e Desenvolvimento,
ticas governativas, mas igualmente do fracasso dos modelos
Luanda, Angola
de desenvolvimento e das políticas de cooperação externa.
Este texto inicia com uma análise daquilo que tem sido o
caminho percorrido em África em termos de modelos de
desenvolvimento e cooperação externa e as conclusões que
daí podemos retirar (capítulo 1); prossegue com a discus-
são sobre as novas relações económicas internacionais de
África, nomeadamente com os países asiáticos e a alteração
daqui decorrente para as tradicionais relações do continente
africano com os EUA e a Europa (capítulo 2). O capítulo 3
aborda a problemática da nova cooperação asiática dita “sem
condicionalismos” e o seu possível impacto a longo prazo,
nomeadamente ao nível do desenvolvimento da capacidade
crítica e da sociedade civil para a construção da democracia
e efectiva erradicação das várias formas de pobreza. O texto
conclui com a apresentação de novas perspectivas de desen-
volvimento para África, passando por uma nova postura
regional e de reformulação das suas relações com o resto do
mundo, havendo necessidade de uma perspectiva global
para se abordar este problema (capítulo 4).

1 - O Percurso e os Resultados dos Modelos de


Desenvolvimento e da Cooperação em África
Entre 1975 e 1995 o crescimento económico da África Sub-
Sahariana processou-se a um ritmo anual médio de 2,0% e
entre 1990 e 1998 de 2,3%. Só depois de 2004 é que os resul-
tados se têm situado em torno dos 5,5%. A recuperação no
índice de desenvolvimento humano não é significativa (salvo
raras excepções, os países subsarianos apresentam índices e
desenvolvimento humano baixo) e o índice de pobreza é dos
mais elevados do mundo. As mais recentes tendências de
236 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

crescimento (cerca de 5,5% ao ano desde 2004) não têm sido suficientes para reverterem
um estado de degradação social permanente, responsável pelos elevados índices de
indigência material e moral.
Recentes vagas de pensamento académico têm vindo a retomar o tema da responsa-
bilidade pelo não desenvolvimento africano, defendendo basicamente que a África
tem sido vítima de si própria, tanto ou mais que da sua história. Entre os factores
normalmente apontados para explicar o fosso que se alarga entre a África e o resto
do mundo encontram-se: o autoritarismo, a burocracia e a centralização herdadas do
colonialismo; o neo-patrimonialismo do Estado, o clientelismo étnico, as práticas de
lucro e de especulação das classes detentoras do poder político e económico, que re-
sultam em corrupção e endividamentos insuportáveis; os bloqueios sócio-culturais e
de uma racionalidade micro-nacional; as práticas ostentatórias de riqueza e a reduzida
propensão à poupança e ao investimento interno.
Constata-se que depois de todos estes anos de independência política, a África Sub-
-Sahariana não conseguiu definir e aplicar um modelo próprio de desenvolvimento
económico. Culpa dos governos africanos e das suas elites, sem dúvida. No entanto, na
elaboração das estratégias económicas africanas e no seu desempenho, assumem um
peso relevante tanto as escolhas e os padrões definidos durante a colonização, como
os modelos que de forma mais ou menos explícita o Norte “exportou” para África no
contexto da complexa geo-estratégia da “guerra-fria” (seja o chamado modelo Socia-
lista, seja o chamado modelo liberal capitalista), assim como as subsequentes políticas
de cooperação internacional e da chamada ajuda ao desenvolvimento.
A dominação colonial europeia teve efeitos duradouros: o padrão de especialização
produtiva ainda hoje se mantém. Trata-se de uma especialização regressiva em produ-
tos complementares aos das ex-metrópoles colonizadoras, o que tem constituído, sem
sombra de dúvida, um freio à revolução industrial dos países africanos. Tal como no
passado, ainda hoje a exploração dos recursos naturais africanos é feita de acordo com
as necessidades de inputs das economias europeias e ocidentais em geral. Por outro
lado, os modelos de desenvolvimento aplicados em África desde os finais da década
de 1950 foram-no sem qualquer atenção à especificidade sócio-cultural dos países em
questão e sem levar em conta a necessidade de alterar as estruturas produtivas daque-
les países para as adaptar às necessidades das populações e das economias internas,
em vez de as manter extrovertidas para as necessidades dos novos aliados (de um ou
outro bloco dos contendores da “guerra-fria”).
Ao nível das diversas linhas estratégicas da política de cooperação internacional, verifi-
camos que estas nunca conseguiram compreender os verdadeiros problemas africanos.
Mesmo considerando a Europa e as antigas potências coloniais com vários séculos
de colonização, podemos verificar que os seus programas de cooperação sempre se
estabeleceram à luz do que na Europa se entende serem as necessidades dos africanos.
Do lado da América do Norte os programas são mais assumidamente desenhados em
função dos seus interesses próprios, económicos e políticos. Mas regra geral, diversos
condicionalismos foram impostos tendo em vista objectivos pré-estabelecidos pelos
próprios autores desses projectos, que usualmente alimentam e são alimentados pelo
que se considera ser o mais adequado para os africanos nas diferentes épocas histó-
ricas e de acordo com o pensamento “desenvolvimentista” dominante no Norte (no
Ocidente e a Leste, quando ainda existia bloco de Leste).
Lopo Fortunato Ferreira do Nascimento i Cooperação Económica, Desenvolvimento e Sociedade Civil 237

A cooperação bilateral e multilateral tem sido um dos principais instrumentos para a


implementação da ajuda ao desenvolvimento, mas a julgar pelo desempenho económi-
co da esmagadora maioria dos países do continente os resultados não se fazem sentir.
Após mais de cinquenta anos de fluxos de ajuda ao desenvolvimento, o continente
e os países que o integram permanecem praticamente tão subdesenvolvidos quanto
antes. Aquando do início da década de noventa, com o início das transições políticas
e económicas, estava perfeitamente clara a falta de impacto significativo da ajuda ao
desenvolvimento e a necessidade de se repensarem estratégias. O problema é anali-
sado e discutido num trabalho de referência das Nações Unidas, elaborado pelo seu
Regional Bureau for Africa, com o sugestivo título de Rethinking Technical Cooperation1.
A sensação de frustração é ainda maior quando se contabilizam os montantes gastos
em África a título de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD)2: 16.759 biliões de
US$ em 1992 (representando uma capitação média total de US$36,4); 12.580 biliões de
US$ em 1998 (representando uma capitação média total de US$21,4); 13.194 biliões de
US$ em 2000 e 32.629 biliões de US$ em 2005 (correspondendo a uma capitação média
total de US$20 e US$44, respectivamente). Devemos ainda ter em conta que para o
ano de 2000, a ajuda pública ao desenvolvimento africano representou 22,8% do total
da ajuda e 30,7% em 2005.
Estes dados levantam sérias reservas quanto à efectiva capacidade da ajuda pública
ao desenvolvimento contribuir para a resolução dos problemas económicos estrutu-
rais do continente africano. É neste contexto que, chegada a hora de fazer o balanço,
se procuram atribuir responsabilidades pelo fracasso. Entre os analistas as posições
dividem-se entre os que centram a atribuição de responsabilidades mais à dimensão
interna do problema e os que se centram mais na dimensão externa, mas em geral
está-se de acordo que o problema tem uma vertente interna (doméstica) e externa
(internacional).
A nível interno, para além dos problemas anteriormente mencionados de algumas
características dos sistemas político-económicos africanos, importa referir desde logo
a atitude dos governos dos países beneficiários, que normalmente encaram a APD e
a cooperação técnica como donativos, esquecendo-se que ocorrem custos directos e
indirectos. Os custos directos derivam da circunstância de uma parte significativa da
APD ser concedida a título de empréstimos, reembolsáveis num prazo mais ou menos
alargado; os indirectos estão relacionados com o alojamento dos expatriados, seus sa-
lários e benefícios, e custos de oportunidade decorrentes de alternativas de aplicação
dos fundos da APD, provavelmente mais consentâneas com um desenvolvimento
sustentável e duradouro.
A nível externo, no que à cooperação diz respeito, para além das referidas questões geo-
-estratégicas, da estruturação do sistema político-económico mundial e do tipo de relações
bilaterais e multilaterais, verifica-se que por cada US$100 disponibilizados, US$80 são
afectos a salários dos técnicos expatriados, o que significa que pelo menos 80% dos fundos
regressam aos países doadores. Este facto deveria já ter levado os países beneficiários
a programarem, de forma rigorosa, as modalidades de assistência técnica, de modo a
que “indo o dinheiro fique capacidade técnica nacional”. Por outro lado, as priorida-
des, os sectores e as modalidades de APD, só aparentemente são definidas pelos países
beneficiários, cabendo, na realidade, aos países e instituições doadoras “sugerirem” as
1
UNDP/DAI – Rethinking Technical Cooperation, Reforms for Capacity Building in Africa, 1993.
2
PNUD – Relatório do Desenvolvimento Humano, 2000 e World Bank – World Development Indicators, 2007.
238 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

melhores formas para a sua aplicação. De igual modo, os prazos de aplicação dos pro-
gramas são essencialmente estabelecidos pelos doadores e suas agências governamentais
e não governamentais, sendo normalmente feita a opção pelo curto-médio prazo que
cria poucas possibilidades de sustentabilidade dos projectos, esvaindo-se ao ritmo das
modas internacionais do desenvolvimento. A APD deveria ser encarada predominante-
mente na óptica da constituição de fundos estruturais para o desenvolvimento, capazes
de estruturarem sectores decisivos (como o da valorização dos recursos humanos, o do
desenvolvimento tecnológico e o das infra-estruturas e redes de comunicação) para que
se pudesse atingir um desenvolvimento sustentável das economias africanas.
Por fim, mas não menos importante, temos a questão dos condicionalismos externos
que há várias décadas são impostos aos países receptores da ajuda e que, como referido,
também eles vão variando ao longo do tempo em função das diferentes conjunturas
internacionais e alterações da geo-política e da geo-estratégia dos recursos naturais.
Debruçar-me-ei aqui sobre o mais recente dos condicionalismos, em favor da boa
governação, transparência, Direitos Humanos e apoio a uma maior participação da
sociedade civil nas questões da gestão da coisa pública. Implícito a este condiciona-
lismo está a ideia de que um determinado tipo de governação democrática que inclua
aquelas características promove o desenvolvimento económico e reduz a pobreza num
contexto de paz social. Aqui começam alguns dos problemas a que assistimos ao nível
dos condicionalismos desde o início das transições políticas e económicas em África,
depois da queda do muro de Berlim e do fim do bloco de Leste, com a falência dos
sistemas políticos de carácter Socialista.
Depois da vaga neo-liberal dos anos oitenta, quando prevaleceram essencialmente os
programas de estabilização e ajustamento estrutural desprovidos de preocupações
sociais, a imposição de condições de carácter mais “sócio-político” associadas ao mo-
delo de governação de tipo democrático-ocidental foi-se afirmando com cada vez mais
força ao longo dos anos noventa por parte dos parceiros ocidentais. Quando parecia
que efectivamente a maioria dos Estados africanos se tinha de vergar à nova onda de
exigências, surgem “novos” parceiros internacionais ditos emergentes — essencial-
mente asiáticos (mas também incluindo economias como o Brasil) — que seduzidos
pelos recursos e matérias-primas africanas e pressionados pelas suas próprias neces-
sidades de crescimento, apresentam-se desprovidos de condicionalismos e dispostos
a oferecer o mesmo tipo de apoio (por vezes até em melhores condições financeiras)
que o Ocidente.

2 - As Novas Relações Económicas Internacionais de África: China,


EUA e Europa
De entre os novos parceiros dos países africanos destaca-se claramente a China, que
em pouco tempo ascendeu ao estatuto de potência económica mundial, com uma ca-
dência de crescimento sustentado de cerca de 10% ao ano há mais de 22 anos. Numa
só geração, o país triplicou a renda per capita da sua população, arrancando da miséria
mais de 300 milhões de chineses. Se esta velocidade de crescimento se mantiver (o
que equivalerá a multiplicar por 30 o seu actual PIB), em 2050 a China será a maior
economia do planeta3.

3
Os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão, com taxas de crescimento económico mais baixas, terão os
respectivos PIB multiplicados apenas por 5.
Lopo Fortunato Ferreira do Nascimento i Cooperação Económica, Desenvolvimento e Sociedade Civil 239

De 2006 em diante, o aspecto de maior destaque para muitas das economias africa-
nas tem sido o fortíssimo crescimento da procura de produtos energéticos por parte
da China e da Índia. As suas necessidades são imensas em petróleo, gás e minerais
diversos, tendo reflexo no aumento dos preços nas principais praças comerciais do
mundo, de que o petróleo tem sido o exemplo mais visível4. Este movimento de alta
dos preços das basic commodities teve efeitos contraditórios nas economias africanas.
Enquanto aquelas que produzem essas commodities viram as suas receitas aumentar
em largas dezenas de milhões de dólares, as restantes viram-se a braços com custos
mais elevados de produção por via do aumento dos custos energéticos, redução de
reservas cambiais e aumento dos preços internos — inflação.
Estima-se que o “factor asiático” possa ter influenciado a taxa de crescimento econó-
mico de África (que em 2006 foi de 5,8%) em um ponto percentual, especialmente do
lado do incremento das exportações africanas de produtos de base e energéticos para
os mercados asiáticos, o que é significativo5. Do outro lado desta balança comercial
estão os ganhos asiáticos, representados pelo incremento das suas exportações de bens
manufacturados baratos para a maior parte dos países africanos, o que tem provocado
a falência de muitas empresas africanas (que já antes lutavam com inúmeras dificul-
dades no seio de uma indústria pouco competitiva) e um fenómeno importante de
desvio do comércio da Europa e América do Norte (tradicionais fornecedores de bens
transformados) para os países do sudeste da Ásia. A China apresenta-se claramente
como líder deste “factor asiático”, dominando o comércio com África. Em 2005, sete-
centas empresas chinesas estavam em grande actividade em quarenta e nove países
do continente africano. Relativamente aos fluxos financeiros para África é verdade
que mostraram uma tendência de variação francamente favorável para pagamento
das importações de commodities, mas como é do conhecimento geral e por razões acima
referidas, nem sempre esse fluxo financeiro se traduz em investimento produtivo nos
países africanos.
É neste contexto que deve ser entendido o interesse da China em África e é igualmen-
te neste panorama que devemos compreender a nova cooperação de vários países
africanos com a República Popular da China. O bloco África-Ásia está de volta, não
como nos tempos da Conferência de Bandung de Abril de 1955 — a grande frente ideo-
lógica contra o imperialismo político, económico e militar do Ocidente e a favor das
independências africanas e asiáticas —, mas agora baseado numa parceria comercial
estratégica, tal como foi acordado na nova Conferência de Bandung em Abril de 2005,
exactamente 50 anos depois da primeira.
Esta nova Bandung, agora comercial, para alguns apresenta sinais duma frente anti-
-colonial económica contra o Ocidente desenvolvido, com tradução concreta num
novo tipo de cooperação técnica e de ajuda pública ao desenvolvimento de África.
Trata-se de uma ajuda sem condicionalismos de outra ordem que não a da própria
4
Entre 2000 e 2003, a China respondeu por um incremento de 100% na procura mundial de cobre, 99% de níquel, 95%
de aço (daí o seu interesse na siderurgia e no ferro angolano) e 76% de alumínio. Em 1993, a China era compradora
de menos de 10% da oferta total mundial daqueles metais de base e em 2003 a sua procura representou mais de
20%, ou seja, uma duplicação em 10 anos. Em 2005, as trocas comerciais África-China ascenderam a quase 38,6 mil
milhões de dólares, 39% mais do que em 2004.
5
Em Angola, as estimativas da contribuição do “factor chinês” para o crescimento económico de 20,6% registado em
2005 podem ser divididas do modo seguinte: as exportações de petróleo para a China representaram, aproximadamente,
8,4 pontos percentuais (as exportações totais de petróleo participaram com 19 pontos percentuais para o crescimento
do PIB), enquanto que no sector das Obras Públicas os financiamentos chineses incrementaram em apenas 136 milhões
de dólares o Valor Adicionado Nacional, dadas as restrições impostas ao seu uso.
240 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

lógica comercial, mas em condições de mercado mais favoráveis do que aquelas que
se encontram no Ocidente e ao nível das organizações económicas e monetárias in-
ternacionais. Para África, a China já não é a dos camaradas, mas sim a dos homens de
negócios, que se apresentam com contrapartidas bastante mais favoráveis do que os do
Ocidente e não mascaradas sob a capa da suposta caridade para com os “pobrezinhos”
africanos. Tratam-se de contrapartidas económicas e políticas directas, negociadas num
espírito comercial, imbuídas de um novo conceito de ajuda ao desenvolvimento — a
ajuda-negócio.
A penetração da China em África constitui, para todos os efeitos, uma autêntica onda
de choque não só a nível do continente, mas também da economia mundial. A forte
aproximação política e económica entre a África e a Ásia produz necessariamente uma
alteração do relacionamento de África com a Europa e os Estados Unidos. Começa a
questionar-se se o tão falado confronto entre civilizações, entre Ásia e Ocidente, não
terá África como cenário. A situação económica dos EUA tem-se vindo a agravar ao
longo da última década (com constantes recordes dos deficits gémeos — orçamental
e da balança comercial —, com a desvalorização continuada do dólar a par da perda
de competitividade internacional em favor da Europa e das economias asiáticas e
com o esforço de guerra no Afeganistão e no Iraque) impedindo-os de responder de
forma mais equilibrada e competitiva às ofertas financeiras do gigante asiático chinês,
que também tem uma estratégia de dominação, económica e muito provavelmente
política, mundial.
Receando ver reduzida a sua tradicional margem de actuação no continente, Europa
e EUA têm-se desdobrado numa série de iniciativas em África. Desde os Acordos de
Cotonou, passando pela iniciativa de Tony Blair para ajuda a África, incluindo os Ob-
jectivos de Desenvolvimento do Milénio, passando pelo African Growth and Opportunity
Act – AGOA americano, e acabando na proposta dos Ministros das Finanças do G-7
de ajudas financeiras substanciais aos governos africanos não corruptos, o Ocidente
desenvolvido está preocupado com o “factor chinês” em África, receando o que Má-
rio Murteira chama de “desocidentalização do crescimento económico”6. Todas estas
alterações introduzidas pelo “factor asiático” vão obrigar a uma revisão profunda das
estratégias e políticas de cooperação tradicionais. Certamente, uma nova geografia da
cooperação e da ajuda internacional está em construção.
3 – África e a Cooperação Asiática “sem condicionalismos” vs
Sociedade Civil
No cenário descrito no capítulo anterior, as questões importantes que se colocam
consistem em saber até quando a China, a Índia e outras economias emergentes vão
necessitar de matérias-primas e produtos energéticos de África? Será que não existirão
limites ao seu crescimento? E a médio e longo prazo que custos poderá ter este novo
tipo de parceria “incondicional” para o desenvolvimento humano e a efectiva redução
da pobreza em África?
O modelo asiático de ajuda-negócio “sem condicionalismos”, acaba por transportar
igualmente um modelo de desenvolvimento característico da Ásia e que encerra um
conceito diferente do papel do Estado na promoção do desenvolvimento económico
e dos negócios: o Estado desenvolvimentista autoritário. Este modelo acaba por ser

6
Mário Murteira (2003), A Globalização, Quimera, p. 105, 124.
Lopo Fortunato Ferreira do Nascimento i Cooperação Económica, Desenvolvimento e Sociedade Civil 241

bastante apelativo para muitos países africanos que também têm uma grande tradi-
ção de autoritarismo; deste modo pensam poder aliar o seu habitual autoritarismo às
exigências universais por crescimento económico, perpetuando o status quo político
num novo contexto económico que, pelo menos em parte, reduza a pobreza. O controlo
do poder político e económico manter-se-ia nas mãos dos habituais detentores desse
poder, mas de uma forma mais sólida e socialmente estável, criando um pouco mais de
riqueza para melhor enfrentar as usuais críticas internacionais que gostam de repisar
a imagem dos regimes africanos como embebidos na corrupção egoísta e gananciosa
das elites que vivem na opulência a par da população miserável.
Do ponto de vista de muitos líderes africanos, o “Estado desenvolvimentista autori-
tário” ajudaria a resolver muitos dos seus habituais problemas. O modelo chinês de
“um país dois sistemas”, que mistura negócios com imobilismo político faria o sonho
de muitos autocratas em África. A ausência de oposição efectiva e de sociedade civil
seria bastante reconfortante para muitos regimes africanos; a possibilidade de criar
maiores resistências e defesas contra as tentativas constantes de “ingerência” e crítica
do Ocidente também seria, desse ponto de vista, bem vinda.
Contra o condicionalismo ocidental por maior transparência, boa governação, ac-
countability e participação da sociedade civil como condições para o desenvolvimento
económico, os defensores do “modelo asiático” contrapõem com o argumento de que
não se pode afirmar que o desenvolvimento económico tenha por pressuposto aquelas
condições, uma vez que historicamente tal não aconteceu na Ásia e nem sequer no
Ocidente. Aquelas características derivaram, no Ocidente, do próprio desenvolvimento
económico e não foram pré-condições para o crescimento. A democracia multipartidária
não é pré-condição do crescimento económico, dirão.
Os argumentos em favor do “Estado desenvolvimentista autoritário” considerarão
que para as economias menos avançadas, no actual contexto da economia mundial e
das regras dominantes a nível do comércio internacional, somente uma política gizada
centralmente com várias medidas autoritárias e impositivas, acompanhadas de certo
proteccionismo, poderão equilibrar a desvantagem existente destas economias em
relação às mais avançadas. Numa tal fase, a divisão política e a excessiva liberdade
e participação alargada nas políticas públicas, características dos modelos políticos
ocidentais, criariam a divisão, a fragmentação interna, a indecisão e em última análise
a anarquia paralisante e a estagnação económica. No entanto, este tipo de modelo mais
autoritário implica (o que nem sempre é referido) uma liderança com forte consciên-
cia pública, com uma estratégia de desenvolvimento clara, com uma hierarquia de
objectivos bem definida e forte sentido de Estado, ou seja, alguma espécie governação
autoritária “iluminada” de conhecimento técnico-científico, vontade férrea de fazer
crescer a economia e espírito pátrio. Como todos sabemos, muitas destas características
não estão presentes na maioria dos regimes africanos e quando alguma “iluminação”
que existe se apaga só restam os aspectos mais negativos da fórmula — o autoritarismo
repressivo e opressor.
A questão está em compreender que tipo de sociedade se quer construir e de se ter a
noção de que o contexto histórico-social do take off das economias ocidentais e asiáticas
foi diferente do contexto actual e, especialmente, do contexto político-económico e
background histórico dos países africanos. Existe um enorme deficit em termos de edu-
cação e conhecimento técnico-científico na maioria dos países africanos, que não só têm
investido muito pouco em educação como também têm assistido a uma significativa
242 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

fuga de cérebros para o Ocidente. Para além disto temos de reconhecer a longa tradição
de fraca consciência pública, e má gestão do erário público e frágil sentimento pátrio.
Por outro lado, também não nos devemos esquecer que outras chamadas vanguardas
autoritárias iluminadas (do bloco de Leste e da União Soviética em particular) con-
seguiram, no início, resultados económicos interessantes em termos de crescimento a
curto e médio prazo, mas acabaram por conduzir à falência no longo prazo, sobrando
o autoritarismo e a repressão.
O contexto actual e histórico do continente africano apresenta pois algumas particula-
ridades, que têm de ser tidas em conta quando se reflecte sobre a questão do modelo
de desenvolvimento a seguir, tendo-se a plena consciência de que a atracção africana
pelo chamado modelo asiático encerra objectivos que estão mais relacionados com
a necessidade de manutenção do status quo e do poder político-económico, face às
constantes críticas e investidas do Ocidente, do que propriamente com a vontade de
implementar um projecto nacional de desenvolvimento.
Neste sentido, a aposta na sociedade civil poderá ser um importantíssimo investimento
na capacidade de, a longo prazo, criar uma sociedade mais justa e atenta aos problemas
do desenvolvimento, pensando na governação, numa estratégia de desenvolvimento
nacional e na necessidade de fiscalizar a gestão dos recursos públicos, mais do que
propriamente esperar por uma “renovada vanguarda iluminada” mantendo os mes-
mos, ou também eles “renovados”, mecanismos repressivos. Sabendo-se das inúmeras
ineficiências e ineficácias da oposição partidária em África, as chamadas organizações
da sociedade civil poderão desempenhar o papel de alguma reserva moral crítica,
conquanto mantenham a sua relativa independência e integridade de objectivos e
princípios na representação dos mais carenciados.
Assim, as “novas” (também elas renovadas) alianças com a Ásia, supostamente “in-
condicionais”, apesar de muito atractivas no curto e médio prazo para muitos regimes
autoritários e autocráticos africanos, poderão ter custos muito elevados a longo prazo. Na
minha perspectiva, no actual contexto regional africano, depois de tantos processos menos
conseguidos é hora de perceber que todos os indivíduos são poucos para erguer os seus
respectivos países, ninguém é dispensável numa união de esforços para tão gigantesca
tarefa de acabar com a pobreza e criar riqueza, criar com vontade de mostrar que em Áfri-
ca há homens e mulheres capazes e que se preocupam com o desenvolvimento dos seus
países e do seu continente. É centrados neste objectivo que devemos refundar a velha frase
Africa must unite do grande visionário e estadista africano Kwame N’Kruma. Uma união
não só das populações na participação e na batalha pelo seu direito ao desenvolvimento,
mas também dos Estados e dos seus governos na criação de condições estruturais para
o desenvolvimento, condições não só materiais (infra-estruturas), mas também de forte
investimento nos recursos humanos (um investimento que ficou suspenso logo após os
primeiros anos de políticas sociais do pós-independências).

4 – A União Africana como Promotora de Desenvolvimento Material


e Humano
Porque foi tão bem sucedida, a experiência da União Europeia é a fonte natural de
inspiração para uma união económica em África, à falta da qual, pensa-se, o continente
continuará a ser o continente ausente no grande jogo da política mundial. Aos olhos dum
africano, existem duas lições importantes a reter da experiência da União Europeia.
Lopo Fortunato Ferreira do Nascimento i Cooperação Económica, Desenvolvimento e Sociedade Civil 243

A primeira lição económica que o africano recolhe da construção europeia é o reconhe-


cimento de como a intensificação em volume do comércio entre economias europeias
(intra europeu) esteve associado à intensificação em volume do comércio entre a Europa
e o resto do mundo. Ou seja, a primeira lição da experiência europeia ensina-nos como
a abertura de fronteiras no interior dum continente é uma mola propulsora do aumento
do seu comércio intercontinental com o resto do mundo. O comércio exterior genera-
lizado (regional e internacional) poderá, portanto, tornar-se num reagente facilitador
da unidade continental das economias africanas e, possivelmente, da maior unidade
e concertação política. No seio do projecto da União Africana, a África já está a tomar
em conta esta lição através de uma dupla via: por um lado buscando o objectivo duma
união aduaneira que evolua para uma união económica, por outro lado, os Estados-
membros estão a aderir progressivamente à Organização Mundial do Comércio.
A segunda lição económica que o africano recolhe da construção europeia é a neces-
sidade de existência de extensas infra-estruturas que aproximem os diversos países
e permitam incrementar o comércio intra-regional, tentando alterar a tendência de
muitos séculos de extroversão dos países africanos em direcção às antigas metrópoles.
Isto é, a base da unidade económica dum continente são os investimentos para que
qualquer família da União possa aceder, em condições dignas, à educação, à saúde,
às redes de electricidade, às redes de água potável, às redes de estradas, aos tribunais,
às esquadras da polícia, às administrações públicas e, no fundo, à possibilidade de
ascensão e progressão social. Esta segunda lição é a de mais difícil aplicação, pois
que implica não só um aspecto material de transferência de recursos necessários para
o preenchimento do défice de infra-estruturas nas regiões menos desenvolvidas do
continente, como também a possibilidade de participação activa das populações nas
escolhas públicas, para que exijam o funcionamento das instituições e os seus próprios
direitos de acesso aos serviços públicos e ao desenvolvimento. Aqui é que a sociedade
civil se tem revelado uma mola propulsora no Ocidente, que fiscaliza e exige, servindo
para ajudar ao desenvolvimento humano e correcção de políticas económicas com
preocupações sociais impostas pelos diversos organismos da sociedade civil.
A aceleração do desenvolvimento económico do continente africano implica, pois, que
os países ricos e industrializados do resto do mundo sejam a fonte de transferência dos
recursos necessários para a criação, ao longo do século XXI, de uma base tecnológica
moderna. Mas estaremos a falar de uma transferência por via da ajuda? Sim, mas não
essencialmente nem exclusivamente. A fonte verdadeiramente importante e signifi-
cativa para o desenvolvimento está no comércio internacional, em moldes diferentes
daqueles que se têm processado até aqui. Os africanos têm o direito de participar em
condições de igualdade nos benefícios da nova ordem económica mundial, mas para
isso necessitam de algumas vantagens, na medida em que partem para essa competição
em profunda e larga desvantagem. Antes de mais, é óbvio que são inaceitáveis e mesmo
imorais as barreiras colocadas pelos países desenvolvidos às exportações africanas. A
política comercial das grandes potências industriais (muitas delas antigas potências
colonizadoras, com francas responsabilidades no tipo de estruturas económicas que
ainda hoje dominam) deveria ir exactamente no sentido contrário, de promover e for-
necer condições mais vantajosas às exportações africanas para esses países, não só de
bens primários como igualmente de alguns bens industriais, como forma de apoiar a
industrialização em África. Para que esta possibilidade seja uma realidade, não bastam
as iniciativas acima mencionadas por parte dos EUA e Europa em África, é preciso
uma concertação internacional a nível da Organização Mundial do Comércio, que
244 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

assuma uma postura internacional de solidariedade para com o continente africano


e a necessidade de numa primeira fase conceder condições de vantagem aos países
africanos, para minimizar um pouco a imensa desvantagem em que se encontram em
relação à maioria dos outros Estados a nível mundial.
É preciso acabar efectivamente com o paternalismo com que as nações industrializa-
das ocidentais pretendem apoiar o desenvolvimento do continente, com “ajudas aos
pobrezinhos”, passando antes por lhes abrirem as portas do comércio e do verdadeiro
e efectivo desenvolvimento sustentável e de longo prazo. Aqui, a experiência asiática
poderá ser útil, na medida em que conjuga ajuda com comércio, embora depois lhe
falte a vertente dos direitos civis e políticos que são igualmente importantes.
O investimento directo estrangeiro europeu e americano também não poderá multi-
plicar em África enquanto os governos da Europa e dos Estados Unidos não puserem
termo às políticas restritivas nas suas relações económicas com o continente. Até ao
presente, a ajuda exterior era a única fonte de transferência unilateral de recursos pro-
veniente dos países ricos para a promoção do desenvolvimento económico de Africa,
mas essa via é todavia demasiado estreita para as necessidades colocadas em África.
A União Africana tem, portanto, uma grande tarefa à sua frente, a qual consiste não
só em fomentar a integração das economias africanas, mas sobretudo de negociar com
o resto do mundo a reunião das premissas intercontinentais, sobre as quais a África
ganhe uma importância no mundo na medida adequada ao seu tremendo peso po-
pulacional (África possui mais de um bilião de habitantes e a sua população é aquela
que cresce mais rapidamente nas comparações intercontinentais). Tem igualmente a
tarefa de perceber que o desenvolvimento que se pretende não é só o desenvolvimento
material, mas sobretudo humano, de capacidades críticas e intelectuais da sua popu-
lação e neste sentido deve igualmente assumir-se como defensora intransigente dos
Direitos Humanos, liberdades e garantias fundamentais, assim como da sociedade
civil enquanto agente promotor destes direitos. Não queremos só o pão, queremos a
razão a comandar as nossas milenares civilizações.
245

Domínios e Arenas Civis


em Cenários Angolanos:
Democracia e Capacidade
de Resposta Revisitadas1

Introdução
David Sogge,
Bob van der Winden
&
O s autores empregam um modelo teórico, baseado prin-
cipalmente no conceito de esfera pública de Habermas,
que encara a sociedade civil como um espaço, logo domínio
René Roemersma2 civil, e não como um conjunto de organizações de actores.
Embora esta abordagem seja cada vez mais comum no dis-
curso teórico, na prática diária de apoio ao processo ango-
lano, a maioria dos doadores ainda está presa à abordagem
de “actores”. Os domínios civis são inseridos numa esfera
maior, a arena. Aqui, a abordagem de domínios empresta-se
a uma análise de poder. Este modelo de duas esferas é assim
usado para tentar analisar alguns dos constrangimentos e
possibilidades do desenvolvimento político e a perspectiva
de governação responsável em Angola.
Concluímos que o domínio civil na Angola de hoje está
fortemente constrangido. Os seus membros formais, ONG
frequentemente igualadas a “sociedade civil”, carecem da
eficácia que os doadores e outros organismos internacionais
dizem que elas querem. Na base destes constrangimentos
encontra-se um equilíbrio de forças — económicas, políticas
e militares —, numa “arena pública” limitada e não transpa-
rente, fortemente influenciadas pela geopolítica.
Assim, defendemos que as agências internacionais de de-
senvolvimento, actualmente fixadas em estratégias com base
em projectos (incluindo apoio a ONG como veículos para a
prestação de serviços de alívio e de “desenvolvimento” e
para a advocacia), deviam dar muito mais prioridade ao alar-
gamento e protecção dos domínios públicos e à expansão e
transparência da arena pública. O poder civil e uma mudança
no equilíbrio de forças na arena é um objectivo importante,

1
Texto traduzido do inglês original por Mónica Rafael Simões.
2
David Sogge – analista independente sobre cooperação para o desenvolvimento;
Bob van der Winden – consultor de cooperação internacional, ex-Director do
Netherlands Institute for Southern Africa; René Roemersma – coordenador da
Fundação Worldcom. Este texto é baseado num trabalho mais extenso intitulado,
Civil Domains in African Settings: Some Issues, by David Sogge (2004), Hivos, e na
tese de mestrado de Bob van der Winden intitulada Do not beat a drum with an
axe (2004).
246 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

viável a médio prazo, para aumentar a capacidade de resposta do Estado angolano


às necessidades dos cidadãos, estabelecendo assim precedentes para uma democracia
formal mais ampla a longo prazo.
Um remédio popular para a situação difícil de África é a promoção da “sociedade ci-
vil”, que é convencionalmente vista como um conjunto de vários tipos de organizações
não lucrativas, separadas do Estado e do sector privado, mas capazes de trabalhar
em parceria com ambos (dentro de um modelo consensual de política) em busca de
interesses comuns, particularmente “desenvolvimento” e “democracia”.3
Os doadores procuraram substitutos para o Estado no sector privado. Nos anos oitenta,
descobriram as virtudes do ramo não-lucrativo deste sector. Aqui, as entidades mais
antigas, como hospitais de missão e organizações não governamentais (ONG) recém-
chegadas, foram encarregues de fornecer um conjunto de serviços, do ensino e cuidados
de saúde à promoção de pequenas empresas, que eram antes considerados respon-
sabilidades do sector público. Sob um paradigma de “sociedade civil”, os doadores
tentaram levantar o estatuto político do sector não-lucrativo. Para além do fornecimento
de serviços, a sua tarefa principal é opor-se ao poder do governo. Aqui a sociedade civil
aparece como um herói, que rotineiramente chama à responsabilidade um Estado infa-
me. Contudo, este modelo de “sociedade civil” suscitou controvérsia. Surgiram ques-
tões sobre os efeitos das ONG, não apenas como fornecedores substitutos de serviços
básicos, mas também como veículos de políticas públicas, substituindo efectivamente
os partidos políticos da oposição.4 Alguns defendem que todo o conceito de “sociedade
civil” como é promovido desde fora não reflecte as realidades sociológicas e políticas
africanas, e que pode em última análise enfraquecer, em vez de reforçar, o poder dos
cidadãos comuns. Em suma, existem apelos para uma reconceptualização.

1 - Domínios Civis
Qual o grau de aproximação em que a ideia de sociedade civil corresponde às formas
como os próprios africanos organizam a sua vida associativa e política? De que modo
funcionou no passado? Poderá promover uma cidadania forte no futuro? Em alguns
momentos e casos, a resposta a estas questões tem sido afirmativa. Quando os africa-
nos se puderam organizar para transformar a ordem política — sendo um exemplo
central o fim do regime minoritário na África do Sul — os direitos e a auto-estima
colectiva avançaram. A política consensual do modelo convencional de “sociedade
civil” é difícil de detectar na história de África. É necessário mais realismo. O conceito
de espaço público, resultante do trabalho sobre as bases da democracia do filósofo
alemão Jürgen Habermas,5 permite-nos não só analisar os actores e questões em jogo,
mas também prestar atenção à história do discurso nesse espaço, que especificamente é
muito importante num contexto africano com um passado autoritário, de colonialismo
e frequentemente marxismo-leninismo nos anos anteriores.
Daí a nossa preferência por outra concepção deste espaço público, que denomina-
mos domínio civil: uma área ou espaço social separado do Estado, laços familiares e
empresas com vista ao lucro, em que as pessoas se associam voluntariamente para

3
Ver Howell, J. and J. Pearce (2001), Civil Society & Development. A Critical Exploration. London: Lynne Rienner.
4
Ver por exemplo: Langohr, V. (2004), “Too Much Civil Society, Too Little Politics”, Comparative Politics, 36(2), pp.
181-200.
5
Habermas, J. (1989), The structural transformation of the Public sphere. Cambridge, Mass.
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 247

reproduzir, promover ou contestar o carácter das regras sociais, culturais, económicas


ou políticas que lhes dizem respeito.
Uma concepção deste tipo torna possível incluir outros poderes, bem como uma grande
variedade de actores da sociedade civil (incluindo Igrejas, sindicatos, estruturas civis
locais — como os por vezes poderosos Sobas em Angola —, grupos de intelectuais de
universidades e movimentos sociais independentes).
Porém, se este espaço incluísse a totalidade do que nos interessa, um olhar à história
iria rapidamente revelar as suas limitações. Pois onde a combinação de interesses
globais e vulnerabilidades nacionais foram dominantes, o avanço da política pública
e da cidadania foi travado ou invertido.
Forçados por ou em conivência com forças externas, muitos líderes africanos esbanja-
ram os bens e a confiança públicos. Poderes soberanos e excedentes foram transferidos
para o estrangeiro, a competição política aberta foi proscrita e o espaço para a cidada-
nia activa foi reduzido a nada. Em muitos lugares de África, as instituições públicas
foram enfraquecidas. Em alguns casos — Somália, Congo, Serra Leoa — entraram
completamente em colapso. Explicar a razão pela qual os Estados falham é uma questão
complexa e controversa. Muitos vilões locais, de Mobutu a Mengistu são condenáveis,
mas à medida que os poderes sobre as escolhas políticas e económicas fundamentais
mudaram ainda mais, transferindo-se para cima e para o exterior, para entidades de
base ocidental que decidem as regras — agências de doadores, bancos, investidores e
think-tanks políticos — os factores externos parecem assumir um grande peso.
O poder nos cenários africanos é geralmente construído e aplicado em esferas bem mais
amplas que os domínios civis: o Estado, as forças armadas, as empresas e os media. Estes têm
dimensões externas e internas; num continente em que o poder é altamente extrovertido,6
as relações com os actores externos são geralmente decisivas. Por isso, quando falamos
de governação, democracia e respeito pelos Direitos Humanos, é importante pensar em
níveis distintos — global, nacional, regional e local — e na interacção entre eles.

2 - Domínios Civis na Arena Pública


Habermas concluiu que a democracia “verdadeira” se desenvolveu na Europa feudal
dos séculos XVIII e XIX, quando emergiram espaços públicos independentes (como cafés,
salões, salas de leitura, o despertar de uma imprensa independente) onde se debatiam
questões importantes, fora da influência das estruturas governamentais. Defende que
os media independentes também se encontram no “espaço público”. A relevância da
sua pesquisa perdurou nos artigos sobre liberdade de expressão, opinião, associação,
reunião, liberdade de imprensa, constituindo hoje pedras angulares da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Actualmente, em África, o espaço público não está necessariamente confinado aos
media. Comerford defende, correctamente, que na situação angolana o espaço públi-
co para o discurso da paz na altura de retorno constante à guerra civil era fornecido
pelas Igrejas.7 Porém, o espaço público transcende as fronteiras nacionais. No caso do

6
Bayart, Jean-Francois (1999), “Africa in the world: a history of extraversion”, African Affairs, 99(395).
7
Tese de Doutoramento (2003) bem como: Comerford, M. (2005), The Peaceful Face of Angola. Luanda, page xxiii. Ver
também: Monga, C. (1997), “Eight problems with African Politics”, Journal of Democracy, 9:3, pp. 156-170, citado em
Comerford (2005) e Habermas, J. (1989), The structural transformation of the Public sphere. Cambridge, Mass.
248 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Zimbabué, por exemplo, está internacionalizado, encontrando-se em grande medida


fora do país, na diáspora, na África do Sul, no Reino Unido e noutras partes. Assim
sendo, vale a pena expandir o “modelo de espaço público” para além dos domínios
civis, para abraçar o “modelo de arena”. Uma “arena pública” é um todo complexo de
“cooperação antagónica”.8 A esfera de acção do domínio “civil” permite conflito, mas
não consegue incluir as suas dimensões não territoriais e externas, de enorme impor-
tância no relato do que está realmente a acontecer no complexo contexto africano.

A arena
O modelo da arena dá-nos mais possibilidades de analisar as relações de poder intrín-
secas nas lutas diárias. As relações de poder dentro das diferentes organizações figuram
no modelo da arena. Aqui as organizações são vistas como sistemas semi-abertos que
interagem com outras organizações no contexto, mas que são ao mesmo tempo influen-
ciadas por ele, de forma diferente consoante os diferentes níveis nas organizações.
As noções convencionais de sociedade civil não chamam a atenção para isto. Vamos dar
um exemplo. Uma organização não governamental grande em Angola é dependente
de doadores internacionais. Ao mesmo tempo, opera na realidade política angolana
em que é dependente do governo angolano e enfrenta desafios adicionais colocados
pelos seus beneficiários, no campo em que as coisas estão realmente a acontecer. Mas,
em todas estas três arenas de actuação os membros da organização que actuam em seu
nome são diferentes. Embora o conjunto da organização seja afectado pelas decisões
dos seus doadores, estas decisões são tomadas principalmente ao nível dos directo-
res e dos gestores: são julgados principalmente com base nas necessidades dos seus
doadores que estão no estrangeiro e são influenciados por outras realidades políticas
que não a angolana, enquanto os funcionários de terreno da organização lidam com as
necessidades reais das pessoas. A organização é (bem como todos os outros na arena)
um sistema semi-aberto.
O seu funcionamento interno pode ser descrito como uma arena, encaixada nas arenas
da realidade política em Angola, mas ao mesmo tempo na da assistência internacional
ao desenvolvimento que, por sua vez, está de novo encaixada nas relações internacio-
nais globais (e.g. EUA-Europa-África-China). Este complexo “encaixe” de arenas9 é uma
parte importante do modelo analítico. A pressão internacional não pode ser omitida
quando se analisa Angola. Esta pressão é exercida sobre muitos níveis. Ao mesmo
tempo, a organização é um sistema semi-aberto, no sentido em que a cultura dos fun-
cionários relacionados com o programa dentro da organização está mais ajustada aos
beneficiários do que a dos gestores e directores relacionados com o governo angolano
ou o contexto internacional, enquanto a organização como um todo se relaciona mais
com os beneficiários do que com o próprio governo de Angola. Em simultâneo, todas
as partes envolvidas têm uma relação frágil, baseada na resolução de conflitos e na
negociação, e esta relação reflecte-se também dentro da organização.
Assim, na arena interna da organização, diferentes jogadores confrontam-se e podem
tornar-se interdependentes.10 Estes não estão na “arena pública”. Mas não tomá-los

8
Verweel, Paul (2002), Bewogen en gewogen: the power and weakness of vision and division, Lecture for Forum, Utrecht,
The Netherlands.
9
Antonissen, Anton & Boessenkool, Jan (1998), Betekenissen van besturen. Utrecht: ISOR, page 208.
10
Verweel, Paul (2000), Betekenisgeving in organisatiestudies, Inaugural lecture, University of Utrecht
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 249

em consideração na análise iria deixar passar muitas coisas que conduzem as relações
na “arena pública” e por isso as complexas jogadas de poder que estão em curso. Isto
é também claro no caso com os media, partidos políticos, etc. Assim, não é suficiente
analisar “a” organização: a análise deve ser mais profunda e mais envolvente.
É na arena pública que se travam as batalhas (frias ou quentes) entre os vários jogadores
e poderes, resultando no final em mais, ou menos, democracia.

3 - Democracia e Capacidade de Resposta do Estado


Consistentes com atitudes neo-liberais para com o Estado, as agências oficiais de aju-
da exprimiram o seu desafecto para com abordagens top-down e agora defendem ser
membros pagantes do clube de “métodos participativos”. Contudo, na prática, estes
novos métodos camuflaram frequentemente um poder autocrático antiquado. Os
doadores continuam a anexar condições coercivas aos seus empréstimos e ajudas. A
insistência dos doadores da ajuda sobre a “participação” é, em alguns locais, sentida
como manipulação, engano e trabalho local gratuito. Alguns falam agora da “tirania
da participação” e discutem-na apenas com adjectivos: “participação superficial” (ao
sabor da discussão do momento), “participação injusta/não equitativa” (mulheres e
minorias marginalizadas), e “participação burocrática” (planeamento com base em
números e discussões com base em checklists).11
Alguns querem que se deixe completamente de usar o termo participação. A cida-
dania real não é servida por substitutos baratos; em vez disso, requer obrigações e
direitos concretos, capazes de serem protegidos em tribunais de Direito. Os cidadãos
deviam ter poderes reais para “correr com os biltres”, mas são escassos ou frágeis os
mecanismos credíveis para uma responsabilização descendente (eleições verdadeira-
mente competitivas, investigações parlamentares independentes, auditorias públicas
independentes).
Os doadores têm demonstrado ambivalência e mudanças de humor nas suas aborda-
gens ao Estado em África. Na década de sessenta favoreceram o Estado e a “construção
da nação”. Na década de oitenta, tinham mudado de rumo, montando uma ofensiva
para apoiar o governo através da privatização, descentralização e perda de legitimi-
dade do sector público. Até medos da década de noventa, os doadores demonstraram
grande optimismo sobre os poderes dos sectores privados, lucrativos e não lucrativos.
Este optimismo harmonizava-se com as ortodoxias neo-liberais dominantes, nome-
adamente que a Cobiça é Boa (Greed is Good), e que economias de “cavalo e pardal”
seriam suficientes para resolver a pobreza — ou seja, “alimentem bem o cavalo e
garantidamente haverá alguns restos para os pardais comerem”.
Nos casos em que os governos africanos derramaram recursos públicos em luxos como
hotéis de alta gama e fábricas de automóveis, a diminuição do envolvimento estatal na
economia não foi negativa. Mas deslegitimar o sector público tornou-se rapidamente
uma profecia auto-realizante. As escolas, serviços de saúde, polícia e outros serviços
do sector público — especialmente aqueles que serviam os politicamente mais fracos
— rapidamente perderam funcionários qualificados e outros meios para responder às
necessidades dos cidadãos. Incapaz de fornecer serviços básicos de qualidade aceitável
e assolado pela corrupção, o Estado perdeu legitimidade perante os seus cidadãos. A

Richard Heeks (1999), The Tyranny of Participation in Information Systems: Learning from Development Projects. IDPM,
11

University of Manchester.
250 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

prontidão para pagar impostos e salários declinou. O sector público perdeu qualquer
capacidade de resposta que possa ter tido. O “contrato social” entre os Estados e os
cidadãos perdeu todo o significado.
Os doadores e os que concedem empréstimos agravaram a decadência dos sectores
públicos africanos, simplesmente por escolherem passar por cima deles, ignorando-os.
De modo crescente, canalizaram a ajuda através de unidades especiais de projectos,
empresas de consultoria e organizações sem fins lucrativos. As ONG tornaram-se veí-
culos de ajuda de eleição e a sua oferta, tanto no Norte como no Sul, multiplicou-se
em resposta à procura dos doadores. As ilhas organizacionais daí resultantes podiam,
durante algum tempo, fornecer projectos de extensão agrícola, de saúde e de capaci-
tação. Contudo, sem ligação a instituições públicas e a impostos e taxas locais, esses
serviços chegaram ao fim quando a corrente da ajuda secou.
O enfraquecimento institucional, combinado com uma reciprocidade baixa, e em
declínio, entre as classes políticas e os cidadãos, tornaram os Estados perigosamente
frágeis. Não tem havido falta de políticos descontentes ou de militares insatisfeitos
preparados para começar um golpe ou uma guerra. A sequência é o colapso, por vezes
com violência inqualificável. As vítimas têm sido principalmente civis. No caso do
Ruanda, o sistema de ajuda externa — incluindo a que ajudava a criar uma “sociedade
civil” — montou o palco para o genocídio.12
Após o 11 de Setembro de 2001, os estrategas no centro da potência mundial começa-
ram a prestar mais atenção à periferia. As pessoas em países ocidentais, supostamente
seguros, estavam afinal vulneráveis ao colapso da ordem pública e da segurança
em lugares remotos não ocidentais. Hoje em dia, Washington DC encara os Estados
frágeis e falhados como parte das suas prioridades centrais de segurança. As suas
principais agências de desenvolvimento estão a aparelhar-se de novo para promover
a “construção da nação” — um tema da década de sessenta. A tarefa já não é diminuir
o Estado, mas antes reforçá-lo.
Essa tarefa não é uma má ideia. Contrariamente a algum pensamento convencional
sobre a sociedade civil, Estados mais fortes podem promover agendas anti-pobreza e de
Direitos Humanos. Estados fracos e institucionalmente pobres oferecem fóruns pouco
prometedores para a vida associativa emancipadora. Mas onde existem instituições
robustas para fornecer serviços básicos e para conduzir uma política aberta, muitas
coisas se tornam possíveis. Por exemplo, a acção cidadã na África do Sul conseguiu
vitórias para os povos sem terra e para as pessoas infectadas com HIV/SIDA porque
os tribunais especiais e as comissões oficiais cresceram (parcialmente como resultado
de pressões da sociedade civil) para promover cláusulas da carta de direitos da Cons-
tituição. Em Moçambique, uma pré-condição importante para conseguir os direitos
de terra dos pequenos proprietários foi a reabilitação do cadastro público (escritório
do título de terra).
Doações de caridade e subsídios governamentais às ONG são justificados geralmente
por reivindicações sobre a sua capacidade de resposta no combate à pobreza. De facto,
em vários cenários africanos, muito parece estar a acontecer graças às ONG: grupos de
costura, centros de crianças de rua, aconselhamento sobre HIV/SIDA, micro-crédito,

12
Peter Uvin (1998), Aiding Violence. The Development Enterprise in Rwanda. West Hartford: Kumarian. Este importante
e surpreendentemente negligenciado estudo de um cientista político belga inclui uma análise devastadora no capítulo
“E onde estava a Sociedade Civil?”
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 251

instrução, e por aí adiante. África parece zumbir com pequenos projectos apoiados
pelo exterior. Mas será que isto contribuiu para algo com que as pessoas possam
contar? Para muitos cidadãos, tais colmeias de actividade podem ser uma “tirania
de ausência de estrutura” — uma situação em que os benefícios estão de facto a fluir
para alguns, mas não de acordo com nenhum tipo de prioridades ou planos ratifica-
dos por um consenso popular. As organizações sem fins lucrativos, que reivindicam
ter mais capacidade de resposta que o Estado no fornecimento de serviços, parecem
efectivamente ter um momento em que as pessoas afluem às suas clínicas e escolas.
Mas na ausência de uma estrutura pública com cobertura abrangente, os resultados
líquidos podem significar mais fragmentação, acesso desigual e nenhuma forma segura
de os cidadãos responsabilizarem os fornecedores de serviços e terem acesso ao que
efectivamente têm direito.
Neste quadro, foi conduzido nos Balcãs um estudo interessante 13, em que os autores
se questionam: “Por que razão o crescimento económico não está a gerar apoio para
o capitalismo de mercado e por que está a fragilidade estatal a ser reproduzida nos
Balcãs?” O seu estudo demonstra que o crescimento económico não é suficiente para
criar uma base social para uma sociedade de mercado e que a construção estatal nos
Balcãs não pode, e não deve, ser reduzida simplesmente a uma reforma da adminis-
tração pública conduzida pela UE (estas duas dimensões são ideias inerentes ao actual
discurso sobre “reconstrução” dos Balcãs, principalmente promovido por forças da UE).
A resposta dos investigadores sobre os Balcãs é que a construção estatal deve ser vista
principalmente como uma construção do eleitorado. A mudança de paradigma aqui
proposta (o ênfase no “Estado para o eleitorado” deve ser substituído pelo ênfase no
“Estado incluindo os diferentes domínios civis”) é uma inversão virtual da mudança
de paradigma neo-liberal de construção estatal para a sociedade civil.
Contudo, parece que nem a “construção da sociedade civil” nem a “construção do
Estado” são em si mesmas respostas às questões públicas. Respostas viáveis podem
ser melhor procuradas na “arena pública” onde a questão não incide sobre enfraquecer
ou desenvolver substitutos para o Estado, mas antes desafiá-lo e ajudá-lo a ter mais
capacidade de resposta. Como afirmam os autores do estudo sobre os Balcãs: “O que
é necessário é uma nova geração de políticas de democratização, que se centrem sobre
a qualidade da representação política. O que encaramos como prioritário é uma mu-
dança da abordagem normativa à democratização. Uma abordagem que deixe de se
centrar tanto sobre instituições democráticas (eleições, tribunais e media) e na ideia de
“governo responsável” ou “boa governação” para se passar a centrar mais na ideia de
“governo com capacidade de resposta”, que sublinhe não só a autonomia da sociedade
civil em relação ao Estado, mas a influência dos principais círculos eleitorais sociais
sobre as decisões estatais”.14
Na nossa perspectiva, esta é a síntese das três abordagens diferentes que descrevemos
nas nossas notas teóricas: a sociedade civil precisa de ser substituída por domínios
civis, mas isto não é suficiente: em última análise, tem tudo a ver com o “equilíbrio de
poderes” na esfera pública, ou antes, na arena pública. Esta constelação de entidades
públicas e privadas tem dimensões não territoriais, globais; num local como Angola,
onde tanto poder se encontra ancorado offshore, este é um conceito crucial. Uma arena
pública funcional é uma pré-condição para um Estado funcional, bem como para um
13
Center for policy studies (2003), In search of responsive government. Budapest: Central European University.
14
Ibid, p. 52.
252 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

eleitorado desse Estado funcional, tornando, em conjunto, possível a capacidade de


resposta, como um primeiro requisito para uma democracia genuína.

4 - A Arena Pública de Angola


Quais as instituições, regras e incentivos, que estão a promover ou a bloquear a mu-
dança, e a definir o domínio civil e a arena pública na Angola do pós-guerra? As
seguintes secções olham para quatro dinâmicas: económica, estatal-partidária, civil,
e local/endógena.

Poder económico
Desde o início dos anos setenta que o petróleo tem dominado a economia. No período
entre 1995 e 2002, o petróleo contabilizou 70-89% das receitas estatais e 85-92% dos ga-
nhos de exportação. Porém, com apenas 10.000 trabalhadores e quase nenhuma ligação
a montante ou a jusante com outros sectores produtivos, a indústria do petróleo é um
enclave. A sua importância económica para Angola é principalmente a de encher um
pequeno número de contas bancárias — a sua maioria no exterior do país.
Uma maior quantidade de petróleo será extraída em breve dos novos poços de águas
profundas de Angola. Uma produção crescente a par de uma subida sustentada dos
preços poderá sugerir que a salvação dos pobres está ao virar da esquina. Mas esta
hipótese é de todo irreal na medida em que, tal como até aqui, outros beneficiários mais
poderosos vão continuar a absorver as riquezas de Angola a jusante. Constrangimentos
a estes beneficiários são poucos, em parte porque os mecanismos que utilizam para
se apropriarem da riqueza são deliberadamente mantidos obscuros e fora do escrutí-
nio público. Esta falta de transparência é uma questão que diz respeito à governação
angolana e à governação global.15
Poder do Estado e do partido
Mais do que noutros cenários africanos, a ordem pós-colonial de Angola apresenta
algumas linhas de continuidade surpreendentes com a ordem colonial: existe uma certa
extroversão da soberania nacional, ou seja, grupos empresariais e bancos estrangeiros
estabelecem de modo decisivo os parâmetros da política nacional; o poder estatal é
centralizado, autoritário e gerido de acordo com os interesses da elite; a política é
conduzida tanto de acordo com aplicações particulares das normas, como de acordo
com aplicações gerais e universais de códigos legais e administrativos (i.e. a escolha
do tipo de aplicabilidade da norma depende daquilo que for mais conveniente para
os que decidem); o descontentamento político tem como resposta a repressão estatal;
os funcionários têm um pé em instituições públicas e outro em empresas privadas; o
sistema judicial é frágil e corrupto.
No período colonial, os africanos não eram considerados cidadãos, não tinham impor-
tância política, eram indígenas e subalternos. No entanto, eram necessários pelo seu
trabalho, impostos e, de algum modo, pela sua capacidade de consumir bens portugue-
ses. Hoje em dia, os angolanos podem ter alguma importância política (nomeadamente

15
As práticas vergonhosas de empresas petrolíferas – subornando ou influenciando funcionários nacionais e
internacionais, uso de paraísos fiscais, etc. – podem afectar a governação em todo o lado. Ver, por exemplo: “The
Politics of Oil. How one of the World’s Richest Industries Influences Government and Policy”, Center for Public
Integrity, Washington DC, www.publicintegrity.org/oil/default.aspx
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 253

como eleitores), mas não muita em termos económicos, já que a maior parte do que
a classe política necessita pode ser obtida sem a mão-de-obra, impostos e consumo
angolanos. A “maldição dos recursos” é fundamentalmente uma maldição política, na
medida em que destrói a reciprocidade entre os governantes e os governados.

A política de hoje
Hoje existe naturalmente um conjunto de diferenças importantes relativamente à or-
dem colonial, nomeadamente: a cidadania está alargada a todos, em princípio, embora
a inclusão/exclusão de acordo com a filiação partidária e a classe, geralmente anulem
a norma da igualdade de oportunidades, além disso, a “cidadania” enquanto conceito
baseado na prática real de direitos e deveres políticos é bastante vazia de significado;
a competição política já não é praticada pela força das armas, o multipartidarismo foi
reconhecido por lei em 1990 e está presente na Assembleia Nacional desde as eleições
de 1992, mas não é bem recebido pelo regime; a cooptação política do eleitorado nos
domínios civis é um procedimento operacional padrão para o MPLA,16 tal como demons-
trado na criação de postos para os que abandonaram a FNLA17 no final dos anos oitenta,
e no apoio generoso aos deputados da UNITA18 que escolheram manter os assentos
parlamentares que a UNITA ganhou nas eleições de 1992 depois de Savimbi lhes ter
ordenado que abandonassem as suas funções; os assuntos externos são conduzidos tanto
através de canais diplomáticos formais como de canais comerciais informais (claramente
demonstrado no caso das empresas estatais francesas, mas incluindo canais privados
ou semi-estatais baseados nos EUA, Reino Unido, Itália, Holanda, etc.); a economia do
petróleo criou novas instituições poderosas semi-autónomas, tal como um ministério do
petróleo e uma empresa para-estatal (SONANGOL) que actuam como um Estado dentro
do Estado e gozam de alianças com interesses offshore e que são apenas marginalmente
responsáveis perante o banco central e as finanças públicas; existem algumas concessões
com privilégio para as regiões (uma proporção das receitas de impostos do petróleo é
concedida directamente às províncias de Cabinda e Zaire), mas não há projectos sérios
para descentralizar o poder político ou adoptar acordos de tipo federal.
A base suprema de autoridade reside no Futungo de Belas, o complexo presidencial sobre
uma montanha à beira mar nos arredores de Luanda. O termo Futungo refere-se a um
conjunto de personagens e redes patrimoniais centradas no Presidente dos Santos. Até há
pouco tempo, existia uma pequena facção rival no MPLA, conhecida como “colossi”, que
incluía figuras ricas mas liberais do passado do partido. Com o jornalismo de oposição e
aberto que emergiu nos finais dos anos noventa (pelo menos em Luanda), os optimistas na
rede de ONG de Direitos Humanos, pequenos partidos e intelectuais da Igreja em Luanda,
pensaram que o “colossi” podia reaparecer e o espaço público doméstico para a oposição
ampliar-se, mas o reaparecimento nunca aconteceu e o espaço civil e público não cresceu.
As bases sociais da classe política são uma questão de especulação. De acordo com a
sociologia popular angolana, o topo da elite compreende “Cem Famílias”. Em início de
2003, o jornal de Luanda O Angolense fez uma reportagem sobre os 59 angolanos mais
ricos, com uma fortuna combinada de perto de quatro biliões de dólares. De acordo
com o artigo, os mais ricos do grupo são ou foram membros do governo/partido.
16
Originalmente um dos moimentos de libertação, sendo hoje o partido governante de facto.
17
Um dos movimentos de libertação nos anos setenta, hoje na oposição.
18
Um dos movimentos de libertação, lutando contra o MPLA até 2002, sendo hoje efectivamente o mais importante
partido da oposição.
254 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Houve uma abertura a novas formas de enriquecimento depois de Angola se ter juntado
ao FMI em 1989 e ter lançado uma vaga de privatização. Fora do escrutínio público, e
a preços de saldo, a elite política vendeu empresas estatais, quintas, casas, blocos de
apartamentos e concessões especiais de exportação a si mesma e a amigos políticos,
nacionais e estrangeiros. Estas dinâmicas aquisitivas, sob condições de falta de trans-
parência e desgoverno, ilustram as utilizações da desordem como um instrumento
político19. Este síndrome — autoridade opaca e não responsável, uma ordem legal
frágil e corrupta, fronteiras mínimas entre os sectores formais e informais — também
existe noutros Estados africanos. As condições em Angola tornaram a desordem um
mecanismo especialmente eficaz, ao serviço de um conjunto diverso de interesses.
Em tempo de paz, é mais difícil reproduzir desordem. Contudo, a opacidade con-
tinua e a competição política aberta e activa é limitada por diversos factores, como
sejam: a desconfiança pública e o cinismo geral face a todos os partidos políticos
(demonstrado em estudos de atitude recentes); os poderes de patrimonialismo do
Estado-partido, exercidos desde a década de 1980 para neutralizar ou cooptar for-
ças políticas rivais (conforme aconteceu no passado com a FNLA de base Bakongo
e conforme acontece hoje com a dependência da maioria dos partidos políticos
em relação aos financiamentos do Estado ou à dependência da sociedade civil em
relação ao braço da caridade do Futungo e da sua Fundação Eduardo dos Santos);
os poderes estatais de repressão, incluindo a polícia anti-motim e o Movimento
Espontâneo Nacional (uma espécie de liga jovem do partido disposta a organizar
levantamentos populares de apoio ao poder); os poderes estatais sobre a rádio na-
cional, TV e a maior parte dos jornais impressos, associados a restrições sobre meios
de comunicação social independentes, em particular fora de Luanda; os poderes
do Estado-partido para impedir medidas de democratização, como por exemplo a
lentidão da consulta sobre uma nova Constituição, o adiamento de eleições locais,
a anulação de propostas para terminar com a impunidade e promover processos
formais de reconciliação, o contínuo remarcar de eleições presidenciais e legislativas
nacionais, etc.; a proliferação de partidos políticos (diz-se que existem cerca de 150),
a maior parte dos quais orbita em torno de um aspirante a “Grande Chefe” e alguns
seguidores, sendo que a maioria destes partidos está confinada a redes em Luanda
e o seu alcance é pequeno e as suas ideias e iniciativas são poucas, carecendo de
credibilidade e capacidade.
Historicamente, a rivalidade político-partidária correspondia, por um lado, ao MPLA,
dominado por brancos e crioulos intelectuais, agregando o urbano ocidentalizado e a
camada assalariada e, por outro lado, dois pólos aglutinadores da camada rural, negra,
agrária, de pequenos produtores/comerciantes e agricultores pobres (uma hierarquia
dominada pelos Bakongo, outra dominada pelos Ovimbumdo, ambas dirigidas por
“Grandes Chefes”).
Embora hoje pareça improvável uma repetição da divisão em três vias com conota-
ção étnica, os apelos a lealdades com base étnica e regional não são de modo algum
coisas do passado. Muitos continuam a explicar acontecimentos políticos em termos
de interesses e influências étnicas. De qualquer modo, os partidos podem procurar
melhorar as suas hipóteses eleitorais pelo apelo através de divisões étnicas e a senti-
mentos populistas em torno de temas como “os nossos e os dos outros”.

19
Patrick Chabal & J-P Daloz (1999), Africa Works. Disorder as Political Instrument. Oxford: James Currey.
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 255

O aparelho de Estado
O sector público angolano é grande mas débil. Os empregos governamentais conta-
bilizam cerca de ¾ de todo o emprego do sector formal (enquanto na Tanzânia e na
Zâmbia, por exemplo, contabilizam cerca de ¹⁄³). As províncias e os distritos menos
afectados pela guerra (as províncias do sudoeste, a zona costeira de Benguela, Cabinda
e, claro, Luanda) têm números desproporcionais de funcionários públicos. Contudo,
muitos sistemas estatais são disfuncionais. Os serviços básicos fornecidos pelo sector
público são de pobre qualidade e de cobertura limitada.
Por outro lado, o fornecimento de serviços de saúde, educação e segurança, através de
canais privados, está a aumentar. Esta realidade tem o encorajamento e o controlo da
classe política e da camada mais favorecida e dos seus parceiros estrangeiros. Em 2003,
o governo aprovou legislação facilitadora de um programa nacional de protecção social,
mas isso dificilmente abriu caminho para uma redistribuição descendente. Tem sido
mais forte o encorajamento (ainda não expresso em subsídios ou contratos formais) a
ONG e Igrejas para preencherem as falhas nos serviços sociais para os pobres.
5 - Tipologia dos Domínios Civis em Angola

Formas de associação locais


A experiência de vida associativa da maior parte dos angolanos é informal, em formas
de associação que podem ser denominadas de “locais”. Juntamente com as famílias
extensas, esses laços constituem a base social que, em certa medida, tem sido drama-
ticamente necessária. Como um teólogo protestante angolano observou no pico do
conflito em 1996, “as pessoas sentem-se completamente abandonadas”. Os cidadãos
normais foram deixados à deriva pelos seus líderes; tiveram de enfrentar a guerra, a
predação e o capitalismo selvagem, totalmente sós.
A maior parte dos angolanos consegue aguentar através das ligações sociais em que nas-
ceram e por mecanismos que eles próprios desenvolveram (mercados de rua e esquemas
vários). Embora não estudadas de forma sistemática, as estratégias de sobrevivência in-
cluem trocas de favores de trabalho e de bens, assim como a gestão do acesso a recursos
naturais, crédito, e serviços como tomar conta de crianças. Nas áreas urbanas, as pessoas
apropriam-se calmamente de recursos naturais através de práticas como o corte de madeira,
e sobre recursos públicos, através do desvio de água e electricidade da rede pública.
Pelo menos um terço da população angolana reside em musseques, onde a maior
parte vive vidas desagregadas. A acção colectiva para resolver problemas comuns não
ocorre espontaneamente. A primeira tendência é a de resolver problemas de modo
individual. As organizações abertas, de base comunitária horizontal, tendem a ter um
apelo mais amplo, embora também aí a confiança possa ser bastante frágil. Os comités
de vizinhança para resolver disputas e gerir melhorias públicas locais funcionaram
com sucesso em alguns bairros de Luanda e Lubango. Muitas formas de ajuda mútua
foram transformadas ou dissolvidas sob as pressões da guerra, urbanização forçada
e esquemas competitivos de sobrevivência. Dados os estragos generalizados ao teci-
do social, a força das instituições locais não deve ser sobrestimada. Os esforços para
mobilizar os pobres urbanos em protestos têm sido suprimidos de forma rotineira; de
facto, unidades de segurança estatal formais e informais, constituídas precisamente
para este propósito, estão continuamente alerta.
256 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Organizações formais
A vida associativa formal não funcionou muito melhor. Durante a maior parte do século
XX, a vida associativa voluntária careceu tanto de base social como da liberdade política
para florescer. As Igrejas eram a única opção formal aberta à maior parte dos angolanos.
Próximo do fim do período colonial, cerca de 40% da população era nominalmente
católica e 10% protestante. Hoje, essas proporções parecem ser de 58% católicos e 17%
protestantes. As Igrejas indígenas africanas arrastaram inúmeros seguidores, mas os
portugueses mantiveram um olhar próximo sobre essas Igrejas e sobre grupos laicos,
tais como pequenos círculos culturais de assimilados nas cidades.
Ao assumir o poder em 1976, o MPLA tentou da mesma forma confinar o espaço civil.
A sua Constituição permitia alguns direitos de associação, o que possibilitou a acção
de caridades católicas, órgãos protestantes, o YMCA e a Cruz Vermelha Angolana.
O MPLA reprimiu fortemente as instituições católicas, enquanto a sua posição face
às Igrejas protestantes variava de muito cordial (em relação à Igreja Metodista em
Luanda, que se tornou conhecida como “o MPLA a rezar”) a restritiva (em relação
àquelas entendidas como pro-Savimbi ou Quintas Colunas dos Estados Unidos). O
partido colonizou a vida associativa ao estabelecer organizações de “massas” de estilo
soviético, para as crianças, jovens, mulheres, camponeses e trabalhadores.
Por volta dos anos noventa, o seu “Ano de Alargamento da Democracia”, o governo
deixou de impedir a vida associativa autónoma. Surgiram dúzias de novas organi-
zações, algumas sob instigação dos próprios membros do partido. Na antecipação
das eleições de 1992, emergiram muitos partidos políticos auto-proclamados. Várias
ONG para o desenvolvimento, de grande dimensão, ganharam forma sob a égide
de líderes de partidos liberais, e conseguiram financiamento estrangeiro. Algumas
iniciativas surgiram de cidadãos comuns, que estabeleceram, sem financiamento
externo, comités de residentes e grupos de vizinhança para limpeza e saneamento.
Por outro lado, os clubes de futebol urbanos foram apoiados por grandes empresas
ou por ramos governamentais, como a polícia e o exército. Também com o apoio do
partido-Estado, as elites económicas e políticas ajudaram a estabelecer os clubes dos
“Amigos e Nativos de [cidade X]” que ligavam os residentes de Luanda às suas ci-
dades de nascença no país. As organizações de trabalhadores supervisionadas pelo
Estado/partido começaram a diversificar-se e a demonstrar mais militância nos inícios
da década de noventa. Houve manifestações e vigílias esporádicas de trabalhadores,
mas foram rapidamente reprimidas.
Em Luanda, existem grupos de profissionais formais, tais como as ordens dos enge-
nheiros, médicos e advogados, e associações de arquitectos, economistas, sociólogos
e psicólogos. Os empresários formaram várias associações comerciais, incluindo a
Associação de Imprensa Privada de Angola, com oito membros. Alguns destes grupos
são bastante próximos da classe política. Alguns fornecem serviços directamente ao
público, tais como o trabalho de ajuda legal da Ordem dos Advogados, bem como a
advocacia por reformas estruturais. No seu todo estes grupos podem ser chamados
de associações empresariais e profissionais.
As ONG têm como principal vocação o fornecimento de serviços e surgiram sob três
auspícios principais: primeiro, a estrutura partido-Estado, tendo como exemplos a Or-
ganização das Mulheres de Angola (OMA) e a Fundação Eduardo dos Santos (FESA),
sendo que esta fundação constitui um fundo de caridade tipicamente presidencial (ou
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 257

da “Primeira Dama”) que depende de doações de empresários estrangeiros, permitindo


assim a interesses milionários pagar o disfarce de filantropia da classe política; segundo,
as Igrejas, tendo como exemplos a Caritas Angola, ramos de serviço social das Igrejas
protestantes e seus órgãos de cúpula, assim como um amplo número de ONG locais
inspiradas ou dirigidas por Igrejas; terceiro, os canais de ajuda externa, tendo como
exemplos as ONG, que surgiram de iniciativa directa (tal como a criação da AAD pela
Deutsche Welthungerhilfe em 1989), ou em resposta à procura dos doadores por “par-
ceiros” e por subcontratados para fornecer bens humanitários e serviços, tais como a
miríade de ONG a distribuir bens alimentares do Programa Alimentar Mundial.
Diz-se que existem cerca de 500 ONG angolanas. Contudo, muitas são órgãos efé-
meros, informais. Talvez não mais que umas dúzias operem a tempo inteiro hoje em
dia. Algumas morrem e renascem sob novos nomes. Em circunstâncias como as de
Angola, as ONG não são algo de solidamente estruturado, mas processos fluidos.
Nesta perspectiva,20 os angolanos não estão a criar e a gerir as organizações de forma
pluralista e numa multiplicidade de orientações, mas ao invés disso, a envolverem-se
no “negócio” das ONG como empresários.
A maior parte das ONG representam iniciativas de quadros médios e superiores –
professores, gestores médios, pastores de Igreja, etc. A sua orientação é predominan-
temente para o sistema de ajuda internacional, submetendo-se à constante mudança
de interesses e exigências dos doadores. O curriculum vitae de apenas uma organização
pode facilmente demonstrar um registo de actividades tão diversas como distribui-
ção de comida, fornecimento de água, cuidados de saúde, género, promoção de pe-
quenas empresas, resolução de conflitos, cuidados infantis, inquéritos sociais, apoio
pós-traumático, micro-crédito, advocacia e educação, e HIV/SIDA. O número destas
ONG “paus-para-toda-a-obra” e o tipo de “obras” em que se dizem especialistas,
aumentam todos os anos com as novas modas dos doadores. A maior parte das ONG
vive dependente de um conjunto instável de financiamentos de doadores, os quais
prestam muita atenção à “Próxima Coisa Importante” no discurso e na prática da
ajuda. Os seus contratados nacionais operam essencialmente como empresas num
mercado enviesado e nada transparente pelo financiamento da ajuda, ilustrando assim
a extroversão do domínio civil.

6 - Os Domínios Cívicos e as Arenas Públicas Angolanas


Pese embora o padrão geral da maioria das ONG angolanas acima descrito, algumas
organizações são conduzidas mais por ritmos angolanos que dos doadores. Algumas
destas ONG desenvolveram vocações com base em conhecimento profissional e cál-
culos do que é politicamente viável. Também gozam de um certo grau de protecção
política. A principal ONG de desenvolvimento angolana é a ADRA (Acção para o
Desenvolvimento Rural e Ambiente), um produto totalmente de liderança angolana
que, desde a sua criação em 1990, estabeleceu o “padrão de ouro” para a acção das
ONG em Angola. O seu reportório inclui desenvolvimento económico comunitário,
educação, promoção de Direitos Humanos, prática participativa, e debates políticos
sobre questões fundamentais de pobreza e democratização. A ADRA é uma das muito
poucas ONG angolanas a seguir inovações políticas e a evoluir no trabalho com órgãos
do sector público, tal como exemplificado pelo seu trabalho com as autoridades de

20
Dorothea Hilhorst, 2003, The Real World of NGOs. Discourses, Diversity and Development, London: Zed Books
258 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

educação na província de Benguela. O activismo político apresenta um terreno mais


arriscado, e poucas ONG angolanas se envolvem em advocacia sem o apoio de agências
de ajuda externa ou a colaboração de outras ONG bem posicionadas.
Algumas ONG mais jovens concentraram-se em direitos civis e políticos em cenários par-
ticulares: residentes de bairros pobres, vítimas de abuso por parte das autoridades ou dos
proprietários das terras (como desalojamento forçado), ou ainda nas condições prisionais.
Uma rede de activismo de Direitos Humanos associada com instituições católicas é talvez o
exemplo actual mais forte de trabalho em rede de ONG, embora opere de modo informal.
Constituída por advogados e gozando da protecção discreta de figuras políticas, líderes
religiosos e actores externos, como a Embaixada da Suécia, a Fundação Open Society, etc.,
estas ONG estão a desenvolver um percurso de eficácia e credibilidade pública. Na medida
em que são incómodas à “aristocracia urbana” e porque chamam a atenção internacional
para graves abusos, são alvos especiais de intimidação por parte das autoridades.
Além disso, os jornalistas e sindicalistas enfrentam limitações à liberdade de expressão;
a rádio independente para além da cidade capital é de facto proibida. Mesmo quando
armada com restrições e bloqueios de informação, a classe política governante demons-
tra grande sensibilidade sobre a sua imagem pública. O que está geralmente em jogo
é psicologia básica. O Presidente quer obviamente ser recordado como o Presidente
que conseguiu a paz e — de acordo com alguns — a prosperidade. Existem muitos
no partido governante que acreditam genuinamente que o partido é a vanguarda do
desenvolvimento; consequentemente, desconfiam da política competitiva onde esse
papel de vanguarda pode ser questionado e ridicularizado.
É difícil ler Angola do exterior. Nenhum estrangeiro sabe exactamente o que as esfin-
ges do Futungo realmente pensam e querem. Será o Futungo o factor que bloqueia a
criação de um Estado com capacidade de resposta, como sugere Steve Kibble?21 Ele
vê o Futungo a gerir um Estado sem necessidade de cidadãos para produzir ou pagar
impostos, e muito menos de exercer os seus potenciais políticos plenos. Ou será um
esquema complexo para manter outras elites à distância, limitando o seu acesso às
receitas do petróleo e de outros recursos, de modo a impedir que a corrupção entre
numa espiral descontrolada, como sugere Nicholas Shaxson?22 As leituras do interior
não tornam necessariamente as coisas melhores. Quando a rádio Ecclesia despediu o
seu director executivo, rapidamente se formaram dois campos com explicações opostas.
Um argumentava que o director tinha sido uma vítima de jogos de poder maquiavé-
licos dentro da rádio e dentro da Conferência de Bispos de Angola (CEAST), o outro
campo acusava o antigo director de ser um agente provocador, pago pelo partido no
poder para criar um estado permanente de confusão dentro da rádio e, ao fazê-lo, de-
sestabilizar as redes de confiança dentro daquela emissora. Também a rádio Ecclesia
acabou por ser um “sistema-meio-aberto”.
Em Angola, ambas as explicações podem ser verdade ao mesmo tempo. Isto foi de-
monstrado na queda do chefe dos serviços de informação estatais, General Miala. Ele
acabou por se revelar um dos financiadores de uma publicação semanal particular-
mente crítica. Os jornalistas sabiam quando eram alimentados com certa informação
(inside information) contra a elite dominante, mas ao mesmo tempo mantinham alguma

21
Steve Kibble (2007), Angola: from politics of disorder to politics of democratization?, www.worldhunger.org/articles/06/
africa/kibble.htm
22
Nicholas Shaxson (2007), Poisoned wells; the dirty politics of African oil, Palgrave Macmillan.
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 259

independência face a outras publicações.


Não existem meios de comunicação social ou jornalismo independentes em Angola. A
capacidade de um jornalista investigar e publicar está directamente relacionada com
a sua capacidade de equilíbrio entre as diferentes esferas (não-públicas) e um desejo
genuíno de informar o público. Por outras palavras: o público apenas tomará conhe-
cimento daqueles factos que alguém não tenha sido pago para manter em silêncio.
Nas palavras de um editor, “não há nenhuma história em Angola com a qual eu não
consiga lucrar”. Estas práticas são relativamente fáceis de manter onde a imprensa
está confinada a Luanda e este é o verdadeiro drama subjacente ao fracasso da rádio
Ecclesia em avançar com a expansão para as províncias. O fluxo de informação re-
sultante desta expansão seria muito mais difícil de controlar e o governo e o partido
estariam expostos a fracassos, devido à sua incapacidade de realmente fornecer algum
do dividendo da paz de que a população angolana ainda está à espera. É por esta
razão que a rádio foi alvo de atenção pelos serviços de segurança e é esta também a
razão pela qual o governo não permitiu a sua expansão para além de Luanda antes
das eleições legislativas.
Controlar informação é controlar o discurso no domínio público, facto que permite um
controlo hegemónico. Mas mesmo no meio desta desordem política, pode encontrar-
-se uma lógica. Os domínios públicos angolanos estão sob construção. Por agora, a
informação flúi entre domínios privados onde operam pequenas redes de confiança
baseadas em laços familiares e étnicos e onde a única regra previsível de comporta-
mento dos seus membros é a lealdade.
É imperativo desafiar en force um Estado falhado forte como o de Angola a responder à
existência de domínios públicos. Para que esses domínios públicos sejam desenvolvi-
dos, são necessários cidadãos informados e uma noção de cidadania. Isto não está para
além das possibilidades das ONG angolanas que trabalham no campo da educação
cívica. O uso de instrumentos de comunicação modernos, como a internet, permitiria
uma troca de informação que ajudaria a construir essa cidadania.
As ONG que se envolvem neste tipo de educação cívica compreendem os riscos deste
trabalho politizado. Afinal, toca em questões sensíveis como a legitimidade do poder
e a construção de poder de contrabalanço. Isto não é política no sentido de oposição
ou política partidária. O objectivo não é de modo algum conseguir o controlo sobre o
Estado. Não obstante, é ameaçador para o governo, as elites e o partido no poder. Exige
uma aplicação hábil de um método Socrático; nas palavras do reitor da Universidade
Católica: “Nós não fazemos política aqui, mas discutimos as coisas de tal forma que
os nossos estudantes deixem a universidade com os seus olhos bem abertos”.
Embora existam agora mais ONG disponíveis para assumir este papel, ele não pode
ser deixado às ONG. Precisa de ser feito com e por grupos emancipadores, como por
exemplo a Rede de Mulheres Líderes, para que se consiga construir este tipo de cida-
dania de que Angola necessita.
Trabalhar com os meios de comunicação social para produzir informação fidedigna no
domínio público embrionário permanece uma prioridade. A pesquisa sobre questões
fundamentais para as elites angolanas e internacionais, nomeadamente sobre receitas
petrolíferas e diamantíferas, é demasiado perigosa para as ONG angolanas assumirem
abertamente. Organizações ocidentais, como a Global Witness, Human Rights Watch e
Aministia Internacional, dependem em alguma medida dos fluxos de informação
260 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

fornecidos pelos activistas e intelectuais angolanos, mas essa colaboração coloca riscos
sérios. As organizações internacionais de media que apoiam um jornalismo comprome-
tido e cívico podiam envolver-se e publicar o que os jornalistas angolanos não podem,
assim juntando-se a esta luta.
A política da arena internacionalizada colide com os domínios civis. A protecção,
confiança e informação necessárias para organizar esforços de advocacia não estão
garantidos em nenhum lado em Angola. Os principais actores externos nessa arena
política são empresas comerciais, tanto ocidentais como chinesas, que podem continuar
a operar impunemente de forma não transparente.
A governação global privatizada é organizada principalmente em seu nome. O equi-
líbrio de forças na arena pública é hoje apontado esmagadoramente contra iniciativas
emancipadoras em domínios civis. Os interesses dos produtores e consumidores de
hidrocarbonetos (e outros sectores, especialmente serviços financeiros, que servem os
produtores e as elites angolanas) têm prioridade, limitando seriamente a investigação,
o debate e o protesto, tanto ao nível nacional como internacional.

Conclusões
Em Angola, com algumas excepções, os membros formais, visíveis do domínio civil,
têm sido marginais na vida política, quer como protagonistas a pressionar pela mu-
dança política, quer como veículos para consolidar a hegemonia da classe política. As
Igrejas estabelecidas têm discretamente apoiado equilíbrios políticos em momentos
excepcionais, tal como quando defenderam, e conseguiram, termos não punitivos
para um acordo político pós-conflito. Houve ganhos tácticos importantes, tais como
melhorias na legislação da reforma de terras, atribuível a ONG especializadas. Final-
mente, a classe política demonstrou ser sensível a críticas dirigidas a si das tribunas
públicas dos meios de comunicação social independentes; tendem a encará-las com
desrespeito a roçar a traição. Mas, em regra, os domínios civis e o que acontece neles
não são hoje em dia decisivos na política angolana em nenhum nível.
Em certas circunstâncias locais, em que os interesses políticos são modestos e onde a
liderança local do partido no poder adopta atitudes relaxadas face a actores fora de
controlo directo do Partido, os representantes de ONG e Igrejas têm sido bem recebidos
para consulta sobre questões específicas. Está ainda por ver se essas práticas repre-
sentam o início de uma abertura deliberada face ao domínio civil, ou se são apenas
mais um exemplo de cooptação — uma arte política em que o partido governante tem
demonstrado grande capacidade.
À medida que se aproximam as eleições parlamentares e presidenciais, os incentivos
para promover mais diálogo com os cidadãos e capacidade de resposta do governo
pode aumentar. As eleições de 1992 assistiram à competição entre a UNITA e o partido
governante a resultar em reivindicações por maior capacidade de resposta governa-
mental no fornecimento de cuidados de saúde e outros serviços públicos. No caminho
até às eleições em 2008, é provável que se intensifiquem reivindicações semelhantes
e, consequentemente, pressões sobre o governo.
Um diálogo aberto, de rotina entre as autoridades públicas e as organizações de cidadãos,
ocorre a uma escala modesta em apenas alguns locais de Angola; a maioria é limitada a
pequenos acordos. Deste modo, as pressões pela exigência de um Estado “com capacida-
de de resposta” estão ainda muito longe das existentes no Brasil. Nesse país, décadas de
David Sogge, Bob van der Winden and René Roemersma i Domínios e Arenas Civis em Cenários Angolanos. 261

agitação popular, competição política e desenvolvimento de serviços públicos, assistiram


ao crescimento de um eleitorado pressionante por serviços e políticas públicas mais
amplas. Essas pressões, combinadas com papéis de provisão de serviços pelas ONG,
conduziram à criação de conselhos nacionais estatutários em que tanto o governo como
os actores civis participam. Importantes esferas políticas têm os seus próprios conselhos
nacionais de Direitos Humanos e igualdade racial, segurança alimentar e nutrição. Este
tipo de plataformas abre ao eleitorado a possibilidade de exercer uma influência real
sobre programas e políticas estatutárias — algo cuja escala e realidade concreta ultrapassa
em muito as acções desiguais e descontínuas nos domínios civis.23
É possível antecipar esse tipo de “arenas” públicas em Angola? As actuais iniciativas
micro não oferecem perspectivas imediatas para um rápido progresso nesse sentido,
mas pelo menos estabeleceram precedentes. A “arena pública” em Angola está longe
de ser uma realidade, mas não é de modo algum uma impossibilidade.
Em suma, Angola ilustra as limitações da história da sociedade civil convencional. As
ONG são muito mais recentes e muito menos enraizadas e politicamente eficazes do
que muitas instituições da vida associativa nacional e algumas das mais representa-
tivas e antigas Igrejas.
Estando ancoradas em fluxos globais e acordos com actores poderosos no exterior, e
deste modo operando sem nenhuma fiscalização pública, as instituições importantes
de poder em Angola estão bem longe da vista e do alcance da maior parte dos cidadãos
e das suas organizações.
O investimento na “sociedade civil” convencionalmente definida, ONG como actores
independentes e com poder de contrabalanço, é fornecido sob termos (escala, duração,
nível, objectivo apolítico e desconexão a processos políticos actuais) que o tornam
incomensurável, diminuto em relação aos desafios que se lhe colocam.
É importante explorar e identificar mais claramente quais são os desafios para o futuro
próximo. Certamente que se deve apostar num conjunto funcional de instituições políticas
formais (Constituição, representações políticas a todos os níveis escolhidas de modo aberto
e livre, um sistema judicial independente, poderes de investigação pública independentes,
etc.). Espaço público para a vida associativa é também e indubitavelmente benéfico. Mas
um Estado com capacidade de resposta, construído em torno de serviços públicos que
funcionem bem sob pressão activa dos eleitores (consumidores e produtores), parece-nos
ser um objectivo ainda mais urgente e provavelmente mais viável a médio prazo. Deste
modo, uma prioridade chave para o apoio externo deviam ser aquelas organizações que
estão activamente a alargar o espaço público e a lutar na arena pública, bem como os meios
(por exemplo, os media) que de facto ampliam e protegem o domínio público.
À luz do conjunto de organizações articuladas num padrão globalizado, e do grau em
que o poder de Angola depende de uma âncora offshore, os investimentos no poder de
contrabalanço têm que ser desenhados de forma a corresponderem àqueles padrões de
poder. Uma melhoria na responsabilidade social das empresas no que diz respeito a
Angola irá exigir confrontar essas empresas nos seus cenários globais, onde a política
e a governação ainda são muito frágeis e pouco sujeitas a escrutínio público.

23
Um órgão civil brasileiro umbrella começou um “fórum sobre controlo social das políticas públicas”. Ver
www.mobilizadorescoep.org.br
263

Acordar de um Pesadelo: A Vida


na Zona Petrolífera do Soyo1

Introdução
Kristin Reed
Universidade
de Berkeley, Califórnia
E ste artigo analisa o impacto da exploração de petróleo
no Soyo através dos relatos dos pescadores e dos cam-
poneses. A sua subsistência oscila entre zonas pesqueiras
degradadas e lavras contaminadas. Os seus relatos centram-
se nos temas da inclusão, da identidade e do sentimento de
pertença à terra como forma de protesto contra a sua exclusão
dos benefícios do desenvolvimento provenientes do petróleo.
As suas palavras servem como forma de protesto, uma ob-
jecção à poluição que destrói os modos de vida tradicionais
e que ensombra o futuro dos seus filhos. A análise destes
relatos mantém-se, no entanto, restrita à geografia do Soyo,
em particular à área entre o rio e o mar, contemplando a
complexa história da região2.
No Soyo, um passado de ocupação violenta a par da falta de
alternativas políticas limitaram a capacidade local de protesto
aberto contra a poluição originada pela exploração do crude
e de exigir do governo a sua parte nos lucros do petróleo3.
Mas mesmo os mais fracos possuem armas originais de pro-
testo, como foi demonstrado por Scott (1985)4. As histórias
são uma dessas armas. Utilizo os relatos dos pescadores,
dos camponeses e dos vendedores de peixe do Soyo, para
mostrar experiências de degradação5. Como foi defendido
por Labov (1997) e Reissman (2001), a análise dos relatos é
uma ferramenta útil para a interpretação das percepções e
do papel da memória e da metáfora na forma de lidar com
experiências ou emoções6. As histórias são representações
válidas das realidades vividas do narrador e ilustram a sua

1
Traduzido do original em inglês por Nuno Marques.
2
A autora deseja agradecer à Fundação Nacional para a Ciência (National Science
Foundation) por financiar a sua pesquisa, reconhecer o apoio institucional da
Universidade da Califórnia, Berkeley; e agradecer a Jennifer Brass pela revisão e
pelos comentários.
3
Ver Reed, Kristin. 2006. Washing Ashore: The Politics of Offshore Oil in Northern
Angola. Dissertation filed at the University of California, Berkeley.
4
Scott, James C. 1985. Weapons of the Weak: Everyday Forms of Peasant Resistance.
New Haven, Yale University Press.
5
Para manter o aspecto etnográfico desta análise, eu reconheço a minha própria
posição como de investigadora.
6
Labov, William. 1997. “Some Further Steps in Narrative Analysis.” The Journal
of Narrative and Life History. Acedido (2006) em: www.ling.upenn.edu. Riessman,
Catherine K. 2001. “Analysis of Personal Narratives”, Handbook of Interview Research.
J.F. Gurbium and J.A. Holstein. London, Sage Publications.
264 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

relação com as fontes dessas histórias. As histórias da exploração ao longo da costa


constroem ambientes vivos onde a poluição enegrece as folhas nas árvores bem como
os pulmões das pessoas, desenhando, assim, pontos de união entre o corpo humano
e os outros elementos da natureza. Da mesma forma, os pescadores tradicionais tra-
çam um cenário arrepiante das zonas pesqueiras do Soyo à medida que a poluição no
mar afasta o único peixe que escapa aos arrastões piratas. No entanto, os mundos da
agricultura e da pesca unem-se para criar o panorama geral dos efeitos sentidos pelos
habitantes das zonas de Mongo Soyo, Pângala e Kitona, vizinhas do Soyo, que obtêm
o seu sustento das zonas de pesca e das zonas agrícolas situadas nas concessões das
empresas petrolíferas.
Estes relatos começam, normalmente, com a chegada das companhias petrolíferas e
traçam o seu percurso que se vem deteriorando do passado até ao presente, marcado
pelos sinais de degradação ambiental. “Antes tínhamos tudo, não nos preocupáva-
mos em comprar um quilo de arroz, um quilo de feijão, tínhamos tudo”, disse um
homem. “É por causa desta produção de petróleo que apareceu aqui” — continuou
ele — “sem nenhuma compensação, sem nenhuns ou quase nenhuns benefícios, que
estas pessoas vivem na miséria”. Então, confrontando a presença do petróleo com o
subdesenvolvimento do Soyo, ele disse: “As pessoas, nós, não temos nada. Mesmo
os que vivem aqui onde se produz o petróleo, vivem sem gasolina; nas casas não há
petróleo para os candeeiros, não há gasolina, não há gasóleo. É triste, é muito triste”
Por fim, ele apontou para o seu ambiente degradado e concluiu “Os problemas dos
cajueiros, das mangueiras, dos coqueiros, tudo o que ontem dava frutos a 100 por cento
hoje dá apenas a 30 ou 40 por cento. As pessoas vivem assim nesta pobreza extrema”.
O mais velho salientou o declínio das outrora abundantes riquezas naturais, como os
cajueiros7. “Os cajueiros mal dão fruto agora. As companhias de petróleo chegaram
nos anos sessenta fazendo prospecção sísmica, com a sua chegada a nossa produção
começou a diminuir. Desde 1975 que as árvores deixaram de dar cajus”, disse ele
apontando para um fruto mirrado balouçando na árvore.

Contexto
Os antigos mapas do Reino do Congo referiam-se à zona onde o Rio Congo se encon-
trava com o Oceano pelo nome de Sonho, atribuindo uma qualidade de sonolência ou
de sonho à região que o navegador português Diogo Cão visitou pela primeira vez em
1482. Talvez o nome se referisse à praga local da mosca tsé-tsé que transmite a doença
do sono, a tripanossomíase. Ou, o que ainda é mais provável, os conquistadores terão
simplesmente adaptado mais um nome tradicional. Ponderei estas hipóteses a bordo
de um avião a hélice com destino à cidade que agora aparece nos mapas angolanos
com o nome de Soyo8. Espreitando pela janela distingui as curvas fluidas na paisa-
gem em baixo. O Soyo fica na foz do Rio Congo, abraçado por um emaranhado de
mangais que separam os canais a que os locais chamam simplesmente de “os braços
do rio”. Afastando-se de um desses canais, o avião virou de repente em direcção à
cidade e avançou aos ressaltos ao longo de uma pista estreita, afastando as cabras
7
Durante o período colonial, os administradores portugueses ficaram deslumbrados com os prolíficos cajueiros
ao longo da zona litoral e reconheceram a sua importância nutricional como fonte de proteínas em Basolongo. Ver
de Morais Martins, Manuel Alfredo. 1958. Contacto de Culturas no Congo Português. Lisboa, Ministério do Ultramar,
p. 142. D’Almeida Matos, José. 1924. O Congo Português e as Suas Riquezas. Lisboa, Simões, Marques, Santões & Ca,
Lda, pp. 152-153.
8
Soyo é o nome do município e da direcção municipal. Sendo um dos seis municípios da província do Zaire, o Soyo
contém cinco comunidades; Soyo, Pedra do Feitiço, Sumba, Kelo e Mangue Grande.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 265

desconhecedoras do horário de voo. Surgiu um aeroporto, um barracão de cimento


com duas divisões, enquanto uma hospedeira de bordo anunciava a nossa chegada.
Um passageiro inclinou-se para mim, desfiou as últimas estatísticas sobre as centenas
de milhar de barris de petróleo produzidas diariamente na região e resmungou, “con-
segue imaginar que o Soyo seja tão pobre?” Dadas as riquezas subterrâneas da região,
ele admirava-se como é que alguém “podia explicar estas estradas esburacadas e as
casas de lama, palha e feno sem condições”.
Soyo é tanto o nome de uma cidade em crescimento como do município que o circun-
da, localizado na ponta noroeste da província angolana do Zaire. Estando a cerca de
300 quilómetros de Luanda, é um mundo à parte9. Um repórter de viagens do jornal
nacional angolano, Jornal de Angola, sugeriu que dada a gentileza da população do
Soyo e os campos de exploração febril de petróleo no município, “parece convidativo
e vantajoso tirar um fim-de-semana para visitar o Soyo, fazendo-o quer por estrada, ar
ou mar”10 É, no entanto, impossível fazer uma viagem de fim-de-semana por estrada
ao Soyo, tendo em conta que a “auto-estrada”, que liga a cidade a Luanda, exige dez
horas de viagem por causa do seu miserável estado11. As viagens dentro da província
podem ser ainda mais difíceis: segundo um relatório governamental, do total de 1638
quilómetros de estradas que tem a província do Zaire, 1506 quilómetros precisam de
reparações12. As únicas estradas em boas condições são aquelas que ligam as principais
instalações petrolíferas. As estradas são representativas da divisão infraestrutural do
Soyo, a população luta para sobreviver com infra-estruturas arcaicas e destruídas pela
guerra, enquanto a “ilha” de Kwanda, a base de suporte logístico para a indústria
petrolífera, oferece comodidades como água corrente, electricidade 24 horas por dia,
uma piscina e acesso à internet.
Um censo feito pelo governo em 2001 registou cerca de 110.000 pessoas a viverem
no município do Soyo, cerca de um terço da população da província.13 No entanto,
centenas de residentes que fugiram para a Republica Democrática do Congo durante
o pesadelo da ocupação do Soyo pela UNITA, entre 1993 e 1995, regressaram após o
fim do conflito em 2002. Muitos anseiam trabalhar na indústria petrolífera, mas poucos
possuem a formação adequada. O Soyo não tem nem uma universidade nem uma es-
cola profissional, apenas uma escola secundária especializada em ciências sociais e um
centro de formação de professores. O Instituto Nacional do Petróleo está localizado no
Sumbe, a cerca de 1125 quilometros do Soyo e da maior parte dos poços de petróleo em
funcionamento no país. Sem outras alternativas, a maior parte dos residentes do Soyo
ingressa na pesca artesanal e na agricultura de pequena escala, cultivando alimentos
básicos, como a mandioca, o feijão e o amendoim. Menos de metade da população
tem acesso a água potável ou instalações sanitárias; ainda menos têm electricidade

9
As pessoas em Luanda tendem a olhar para o Soyo como uma cidade do interior, distante da moderna e cosmopolita
Luanda. A ideia que têm da Província do Zaire foi manchada por um escândalo em 2002 no qual as autoridades
provinciais registaram 423 queixas de “crianças feiticeiras” que eram muitas vezes sujeitas a tratamentos cruéis
(e.g. colocando-lhes sementes picantes de gindungo nos olhos) num esforço para quebrar o feitiço. (“Fenómeno
“Criança Feiticeira” Chega ao Fim”, Jornal de Angola, de 14 de Janeiro de 2004). Apesar da investigação de Taussig
(1980) sobre a forma como as sociedades pré-capitalistas interpretavam os ciclos tumultuosos do capitalismo global
pela linguagem simbólica da feitiçaria, muitos Luandenses viram nas crianças feiticeiras da província do Zaire uma
prova do atraso da região. Ver Taussig, Michael. 1980. The Devil and Commodity Fetishism in South America. Chapel
Hill: University of North Carolina Press.
10
Chitata, Agostinho, “Vá, O Soyo Espera-Lhe!”, Jornal de Angola, de 14 de Junho de 2003.
11
“Troço Soyo/Luanda Clama por Reparação”, Jornal de Angola, de 15 de Dezembro de 2003.
12
Governo de Angola, Abril de 2003, Perfil Sócio-Económico do Zaire, Luanda.
13
População estimada em 2001, in Governo de Angola, Abril 2003, Perfil Sócio-Económico do Zaire, Luanda.
266 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

ou água corrente. O HIV/SIDA está a espalhar-se rapidamente e os cinco médicos do


sobrelotado hospital do Soyo lutam para atender as hordas de pacientes.
Nos quintais arenosos dos habitantes do Soyo ouve-se o sibilar dos poços de petró-
leo, enquanto os pescadores navegam nas águas calmas, servindo-se das plataformas
petrolíferas para se orientarem no horizonte nebuloso. Os anciãos recordam como a
produção nas concessões em terra da Total Fina-Sonangol (FS) e Fina-Sonangol-Texaco
(FST) e nos Blocos 1 e 2 de águas pouco profundas começou num clima de esperança
e receio, enquanto Angola lutava pela independência do poder colonial português.14
Eles lembram como o aparecimento da guerra consumiu todos os lucros do petróleo,
nada restando para o investimento em projectos de desenvolvimento. A guerra conti-
nuou durante décadas. Em 2002 os habitantes do Soyo celebraram o fim da guerra e
as novas descobertas de petróleo em mar alto. No seguimento de avanços tecnológicos
e de grandes descobertas de petróleo, a ExxonMobil começou a produção a partir dos
campos de águas profundas no Bloco 15. Em 2006 o Bloco 15 produzia 535.000 barris
por dia, mais do que qualquer outra concessão em Angola.15
Produção de Petróleo por Bloco de Concessão (Milhares de barris por dia)
Concessão 2002 2003 2004 2005 2006
Bloco 0 431 405 393 371 371
Bloco 1 1 0 0 0 0
Bloco 2 50 45 39 30 22
Bloco 3 139 125 119 114 106
Bloco 4 1 0 0 0 0
Bloco 14 66 61 61 57 89
Bloco 15 0 0 0 414 535
Bloco 17 193 216 229 244 273
Congo (FS/FST) 13 13 14 14 13
Kwanza 0 0 0 0 0
Total 894 875 989 1 247 1 411
Fonte: IMF Country Report 07/355 Angola: Selected Issues and Statistical Appendix, October 2007.
Desde o período colonial até ao presente, quase 1.2 milhões de barris de petróleo foram
extraídos das concessões em terra da FS/FST, dos Blocos 1 e 2 de águas pouco profundas
ao longo da costa, e dos campos de águas profundas do Bloco 15, a Ocidente, na região
do Soyo.16 As infra-estruturas petrolíferas sobrepõem-se às áreas agrícolas e às zonas de
pesca de subsistência das famílias, cuja mandioca é colhida ao lado de oleodutos e cujo
peixe pode atravessar os Blocos 15 e 2 antes de chegar às suas mesas. Vivendo entre os
poços em terra e no mar, os residentes do Soyo defendem que a contaminação associada
à extracção de petróleo lhes deteriorou a saúde, o seu ecossistema e os seus modos de
vida. Defendem ainda que o Estado nunca cumpriu a sua promessa de utilizar a riqueza
do petróleo para desenvolver o município, muito menos para fornecer os serviços básicos
ou reparar as infra-estruturas deterioradas pela guerra.

14
A Fina, agora chamada de Total, é o operador destas reservas onshore. O Bloco 1 era explorado pela Agip. O Bloco
2 era explorado pela Chevron (que adquiriu a Texaco) até a uma recente transferência de direitos de exploração
para a Sonangol em Julho de 2006.
15
O Bloco 31 da British Petroleum em águas muito profundas do Soyo ainda está em fase de desenvolvimento, mas
os geólogos continuaram a anunciar novas descobertas ao longo de 2007.
16
Números totais tirados da informação do IMF Country Report 07/355 Angola: Selected Issues and Statistical Appendix,
Outubro de 2007.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 267

No entanto, os residentes do Soyo apresentaram os seus protestos e as suas exigências


em moldes diferentes daqueles que são apresentados pelos de Cabinda, a província mais
a Norte de Angola. Naquele enclave metido entre a República do Congo e a República
Democrática do Congo, os activistas embebem as suas exigências de desenvolvimento
e de desafio à poluição no discurso da independência de Cabinda em relação a Angola.
Os habitantes do Soyo não consideram a independência como solução. E, dada a brutal
ocupação feita pela UNITA durante a guerra, mantêm-se fiéis ao partido do poder, o
MPLA, mas sentem-se enganados pois a sua lealdade não lhes trouxe benefícios.
O governo central de Angola é obrigado, por lei, a entregar dez por cento das receitas
dos impostos sobre os lucros da exploração de petróleo ao governo da província onde
ele é explorado, para a tarefa nebulosa de o aplicar no desenvolvimento da província.
No entanto, parece que estes fundos, que totalizaram US$149 milhões em 2000, não che-
garam às aldeias mais afectadas pela exploração de petróleo ou cujo acesso, utilização
e controlo dos recursos naturais, é mais restringida pelas actividades de exploração.17
Um residente do Soyo exigiu mais transparência na distribuição destes fundos dizendo:
“Sabemos que é suposto recebermos uma parte da riqueza de acordo com essa regra
dos dez por cento, mas nem sequer sabemos qual é o valor desses dez por cento. Como
podemos saber se nem sequer sabemos quantos barris são produzidos ou quanto é que
eles valem?”18 Muitos dos residentes do Soyo duvidam que as prometidas quantias
substanciais de dinheiro provenientes do petróleo tivessem vindo efectivamente para o
município. Alguns puseram mesmo em causa se Luanda realmente atribuía os fundos
ao governo da província e outros suspeitavam que esses pagamentos se evaporavam
através de desvios, algures pelo caminho.19 Apresentavam, como factos a sustentar os
seus argumentos, as infra-estruturas e os serviços sociais empobrecidos: entre 1997 e
2001, a província do Zaire gastou, em média, apenas US$5.80 por pessoa em educação
e US$4.90 nos serviços de saúde.20 A queda de produção dos campos mais antigos de
águas pouco profundas pode explicar estas míseras despesas, mas porque é que o
investimento não aumentou desde que a Exxon começou a produção no Bloco 15?
Durante as discussões sobre o montante das receitas devidas à província, os entrevista-
dos apresentaram algumas distinções entre o Estado e a sociedade civil. Caracterizaram
o Estado como uma entidade omnisciente, tendo em seu poder não só o conhecimento
mas também os prometidos fundos para o desenvolvimento. Um ancião em Kitona
pôs em causa a existência desses fundos dizendo: “Esses dez por cento, quem os viu?
Ninguém os vê. São um fantasma. Só o Estado sabe. As pessoas não dizem nada. Estas
coisas são sérias. O petróleo é para nós, é só isso que ouvimos, mas ninguém acredita
nisso, não conseguimos ver que benefícios há para nós. Para o Estado, sim, mas para
o povo, não”. Outro acrescentou, “Se falar com as comunidades, esses dez por cento
existem? Eu próprio não sei. É muito dinheiro e é suficiente para desenvolver toda
a província, mas para onde é que ele vai? Eu não sei. Talvez seja dado, mas alguém
o leva”. Ele terminou o seu testemunho desenhando dramaticamente um ponto de
interrogação no ar com o indicador e deixou-o a pairar entre nós.

17
Dados do relatório da KPMG, 2003, Avaliação do Sector Petrolífero Angolano: Sumário Executivo, Relatório Inicial,
Luanda: Ministério das Finanças.
18
Os detalhes sobre a forma como este valor é calculado são escondidos do público nos contratos de concessão
confidenciais, negociados entre o Estado angolano e os consórcios que exploram cada Bloco.
19
Os habitantes locais, frustrados, culpam frequentemente Ludy Kissassunda, o alegadamente fraudulento Governador
da Província do Zaire de 1996 a 2004.
20
Governo de Angola, Abril de 2003, Perfil Sócio-Económico do Zaire, Luanda.
268 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Degradação em Terra
Dando atenção aos relatos que enfatizavam a degradação da saúde humana e am-
biental, procurei entender as formas como os habitantes locais viam a poluição que
ensombrava ainda mais as suas comunidades já marginalizadas. Uma promotora de
saúde de uma aldeia elucidou os aspectos negativos da extracção de petróleo sobre
a produção local de comida. Ela disse, “as palmeiras, os cajueiros e os coqueiros es-
tão a sofrer e a mandioca já não cresce tão bem. As laranjas já não crescem como era
costume, são pequenas e não têm vitaminas. As mangueiras parecem estar bem, mas
têm uma camada escura e espessa sobre as folhas. Notámos o aparecimento de muitas
doenças que nunca tínhamos tido, infecções que foram aparecendo à medida que au-
mentou a extracção do petróleo, sugando-o até ao ponto em que os nossos alimentos
não puderam resistir. Já não conseguimos colher fruta suficiente para garantir a nossa
subsistência.”
À medida que ouvia mais destes relatos de degradação, comecei a discernir padrões
entre os narradores e as suas reclamações. Os mais velhos lembram a abundância da
região antes do aparecimento do petróleo e lamentam, principalmente, a perca das
colheitas de caju — antigamente os anciãos bebiam o licor destilado da colheita do
caju durante as suas reuniões. As mulheres, principais cultivadoras e prestadoras de
cuidados, falaram das plantas da mandioca doentes e das crianças fracas. Até mesmo
os caçadores locais viam os efeitos do petróleo reflectirem-se na paisagem. A profusão
de caça no Soyo impressionou os caçadores portugueses no passado, mas segundo
um ancião de Mongo Soyo: “Os animais que aqui costumavam viver já não vêm cá.
Assim que os poços foram montados, os animais selvagens começaram a desaparecer
… fugiram”; sugeriu que os animais selvagens tinham pressentido o perigo que as
pessoas não pressentiram.
A maior parte das manadas de animais domésticos morreu às mãos das patrulhas de
soldados e de habitantes desesperados durante a guerra. Depois do fim do conflito a
criação de animais está a recuperar, mas como me disse um oficial do governo duran-
te uma entrevista: “sabia que não há nem uma vaca em toda a província do Zaire?”
A tripanossomíase limita o espaço disponível para o gado. Um censo à agricultura
revelou que existiam 984 porcos, 658 ovelhas, 2794 cabras e 31.000 aves de capoeira
na província,21 mas segundo os residentes das áreas próximas dos poços de petróleo
do Soyo, a poluição não permite que o gado cresça no seu município; as galinhas e as
cabras adoeceram e morreram por terem inalado os vapores perto dos poços.
Um chefe tradicional explicou que a fuga de gás dos poços pode ser mortal porque
esse gás não era “queimado”, para ele o gás queimado era menos perigoso, embora a
exposição contínua às chamas e toxinas por elas libertadas também se tivesse provado
prejudicial aos humanos, às plantas, aos animais e à atmosfera. Segundo ele, “O gás é
invisível, nós não o vemos, mas sentimo-lo nas nossas vias respiratórias. Está aqui nos
meus pulmões, nós respirámo-lo e ele está sempre dentro de nós. Nós cheiramos estes
gases que afectam as plantas e todas as coisas vivas, como os humanos. Nós temos
doenças respiratórias…” Ele começou a andar, apanhando uma folha doente de uma
mangueira próxima. Virando-se para mim com a folha continuou: “Podemos ver que
a folha desta árvore não consegue respirar e para nós também é difícil respirar. Está
aqui nos meus pulmões, nós respiramo-lo e ele está sempre dentro de nós.”
21
Governo de Angola, Abril 2003, Perfil Sócio-Económico do Zaire, Luanda.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 269

Ao examinar a superfície da folha, vi que estava coberta por uma camada negra de
fungos. No dia anterior, quando um ancião em Kitona tinha atribuído a camada preta
das folhas da sua goiabeira às partículas que emanavam das chamas de gás natural
próximas, vi o mesmo fungo. Nos quatro meses seguintes observei constantemente a
presença desta cobertura de fungos nas folhas das mangueiras e das goiabeiras pró-
ximas dos locais de extracção de petróleo. Os habitantes locais disseram que ela só
tinha aparecido depois da exploração de petróleo ter começado na zona. Um agrónomo
confirmou que era fumagina: um fungo não patogénico associado a pragas de insec-
tos como a mosca branca, o piolho branco e o pulgão.22 Ele suspeitava que as plantas
afectadas pelas chamas do gás natural estavam mais susceptíveis às infestações e às
doenças. Da mesma forma, postulava que a exposição às chamas do gás natural podia
danificar o sistema imunitário dos habitantes e torná-los mais atreitos a problemas de
saúde. O ancião reconhecia as ligações entre as comunidades e o seu ambiente de uma
forma que a Total não fazia: a empresa recusava-se a assumir a responsabilidade pelos
danos na agricultura ou pelos problemas de saúde perto dos poços de petróleo.
Os membros da comunidade apresentaram as suas observações à Total, mas a empresa
rejeitou os seus argumentos por falta de provas científicas. Os anciães em Pângala
lamentaram a rejeição da Total. Com as mãos a tremer um deles mostrou a ironia
desta situação: “Há muitos anos … depois de vinte anos estamos a sentir todos os
efeitos. Não é preciso ser formado, mesmo um analfabeto vê o prejuízo.” Outro ancião
comentou: “Não conhecemos a origem do negrume nas árvores, mas não estava cá
antes da exploração começar. Se não é da poluição, então de onde vem esta camada
negra?” Um chefe tradicional lamentou-se: “ Somos incapazes de distinguir o grau de
poluição. Pedimos ao Ministério do Ambiente que fizesse um estudo, mas não tive-
mos resposta.” Os residentes de Pângala apresentaram as suas queixas directamente
ao concessionário nacional e accionista dos blocos em terra da Total. Disse um: “Até
apresentámos queixa à Sonangol, mas eles recusam-se a acreditar no que dizemos.
Precisamos de provas concretas. Temos uma situação em que sabemos que estamos a
ser prejudicados, mas não sabemos exactamente como provar a causa.” Uma mãe em
Kitona exprimiu a sua frustração por os responsáveis das comunidades “não terem
máquinas” para medirem o dano causado em termos mais compreensíveis pela Total.
Ela encolheu os ombros: “Mas, se afecta as plantas, afecta-nos também.”

Degradação Costeira
As multinacionais petrolíferas nomearam os poços de petróleo do Soyo de acordo com
os recursos naturais outrora abundantes na região. Os poços de petróleo no Bloco 1
chamam-se Bananeira, Cajueiro, Imbondeiro, Safueiro e Coqueiro. Da mesma forma,
o Bloco 2 tem os nomes de Atum, Bagre, Espadarte, Raia e Tubarão. Mas os locais
defendem que as chamas de gás, os derrames de petróleo e as fugas dos oleodutos,
danificaram não só as suas árvores de fruto mas também as suas zonas pesqueiras.
“O petróleo que elas despejam mata os peixes”, declarou um pescador de meia-idade
apontado para uma plataforma petrolífera. Chamando a atenção para o facto de as
companhias petrolíferas despejarem “água residual” no mar (líquido por vezes radio-
activo, oleoso, que sobeja nos reservatórios de petróleo). O pescador interrogava-se:
“O petróleo vai num petroleiro para a Europa ou para a América… para algum lado…

Os agrónomos identificam complexos fúngicos de ascomicetos e de deuteromicetos, incluindo variedades da Cladosporium,


22

Aureobasidium, Antennariella, Limacinula, Scorias, e Capnodium como a fumagina (Kessler 1992).


270 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

mas para onde vai aquela água?” Ele baixou o seu indicador em direcção às ondas
que rebentavam dizendo: “Tenho a certeza que polui a água e o efeito vê-se na pesca.
Tente imaginar quanto desta poluição está a acontecer”.
Alguns pescadores preocupavam-se com os acidentes de larga escala na concessão
de águas profundas da ExxonMobil, onde as plataformas de produção, de reserva e
de carga, podem armazenar até 1 milhão de barris de petróleo. Outros exprimiram
preocupação com os pequenos derrames no Bloco 2 de águas pouco profundas onde,
como um pescador afirmou, “quanto mais perto está, mais perigoso é.” A produção
diária baixou de 50.000 barris por dia em 2002 para 22.000 em 2006.23 No entanto, du-
rante os seus 27 anos de laboração (de 1979 a 2006), o Bloco 2 produziu 455 milhões
de barris de petróleo a partir de vinte poços.24 Os residentes dizem que décadas de
fraca manutenção dos oleodutos e de desprezo dos operadores das concessões pelo
ambiente contribuíram para a poluição local. No entanto, são incapazes de provar
cientificamente as suas afirmações porque as companhias petrolíferas e o Ministério
do Petróleo se recusam a fazer pesquisas e fornecer dados.
A poluição ameaça os modos de vida tradicionais e o sustento alimentar de uma grande
parte da população do Soyo. Um estudo das zonas de pesca artesanal no Soyo identificou
208 pescadores e 151 pessoas envolvidas no processamento do peixe.25 Não possuindo
gelo ou electricidade eles conservam o peixe para o consumo ou venda, secando-o,
fumando-o, e/ou salgando-o. Os pescadores podem contar com as suas pescarias para
alimentar as suas famílias e ganhar algum dinheiro com a venda na praça no Soyo bem
como nos mercados em Muanda, Boma e Kimuabi na República Democrática do Congo.26
Os vendedores de peixe compram o pescado aos pescadores à sua chegada às docas
do Soyo ou noutros pontos de desembarque nas comunidades pesqueiras e vendem o
peixe — fresco ou conservado — no mercado ou nas ruas da cidade do Soyo.
Os residentes de várias comunidades no Soyo reconheceram o conjunto de funestos efei-
tos que a poluição da indústria petrolífera tinha nos seus recursos terrestres e marítimos.
Dois pescadores que concordaram em dar uma entrevista em Bocolo disseram-me para
me sentar numa secção de reforço de tubagem que tinham obtido da Base de Kwanda.
O primeiro começou solenemente: “A nossa principal preocupação com a produção de
petróleo é a poluição da água. Costumávamos pescar aqui mesmo nesta área, mas agora
está poluída com petróleo e gás. Isso mata os peixes. Também já não podemos contar
com o rio para nos trazer água potável. Queixamo-nos que não conseguimos beber esta
água poluída. Faz mal à nossa saúde.” O seu companheiro, acrescentou: “O petróleo
aparece muitas vezes à superfície da água e às vezes os peixes aparecem mortos … por-
que se isso afecta a água ou o ar, vai sempre afectar os peixes.” Quando lhes perguntei
se eles se preocupavam com os derrames que vinham das concessões mais distantes,
ele respondeu: “São todas a mesma coisa, as que estão longe e as que estão perto da
costa porque as águas movem-se. Para onde vai a água vai a poluição. Por causa disso
dizemos que a poluição, quer seja de longe ou de perto, é a mesma coisa.” Enquanto eu
pensava sobre o percurso das águas residuais, dos aditivos químicos e dos resíduos de

23
IMF Country Report 07/355 Angola: Selected Issues and Statistical Appendix, Outubro de 2007.
24
Ibid., Mayer, Graciete. 12 de Agosto de 2003. “Petrobrás Vai Operar em Águas Profundas Angolanas.”, Jornal de
Angola.
25
IFAD, Novembro de 2002, “Angola: Northern Fisheries Communities Development Programme (Pesnorte).”
Mid-Term Review, United Nations.
26
Kilongo, Dr. Kumbi, 2004, Recursos Marinhos na Província do Zaire no Ámbito de Monotorização e Gestão da Pesca
Artesanal. Luanda: Instituto de Investigação Marinha & Pesnorte.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 271

hidrocarbonetos nas correntes oceânicas, uma leve brisa passou pela árvore por cima
de nós. Murmurei alguma coisa sobre o vento que levava a poluição e o pescador disse
agitado: “No mar, todos os peixes fugiram… a poluição na terra também afectou os
cajueiros, as plantas da mandioca e o resto… por isso o dano é o mesmo.”
Para aqueles no Soyo que vivem com um pé na terra e outro no mar, a distinção entre
poluição na terra e poluição no mar é esbatida. A poluição no mar, derivada das chamas
de gás e dos derrames, é trazida pelo vento ou pelas marés para terra. A contaminação
que vem dos poços em terra também é levada para o mar pelos tanques de separação
da Total em Quinfuquena. Apesar da Total deitar ao mar muitos dos seus resíduos
por uma tubagem subterrânea que avança pelo mar adentro cerca de cem metros, um
canal à superfície mostrava uma corrente saturada de petróleo, atravessando um des-
filadeiro de sedimentos deixados pela passagem do desperdício de crude, escorrendo
em direcção às ondas que rebentavam na praia. Tal como os afluentes da produção em
terra vão dar ao mar, os gases da produção de mar alto vêm para terra. Um activista
de saúde comunitária disse: “Temos sempre esse fumo que vem da praia até aqui. Na
época das chuvas sempre dissemos que ‘isso são só as nuvens de chuva’, mas acabámos
por perceber que não eram.”
Um representante do governo sugeriu que eu visitasse um local chamado Os Cavalos
para ver alguns dos outros efeitos externos associados à extracção de petróleo. Era lite-
ralmente uma lixeira, com tubagens ferrugentas, velhos tanques de armazenamento e
partes de brocas gigantes. Ao examinar algumas tubagens com vestígios de depósitos
de sedimentos vi que Os Cavalos continha desperdícios das operações em terra e no
mar. Consternou-me o facto de algumas das tubagens largadas aqui, utilizadas normal-
mente pelos habitantes locais para a construção de casas, pudessem estar contaminadas
com hidrocarbonetos cancerígenas ou por isótopos radioactivos presentes nas águas
residuais.27 Os barris corroídos repousavam numa secção vedada das instalações e eu
lembrei-me que o representante do governo tinha referido ter alguma preocupação sobre
o armazenamento e a eliminação de resíduos líquidos em poços de areia desalinhados,
passíveis de permitir infiltrações para o subsolo e para as águas subterrâneas. Perguntei
a alguns dos trabalhadores locais em fato-macaco e chinelos sobre o conteúdo dos barris
e sobre a eliminação dos resíduos tóxicos, mas eles abanaram as suas mãos sem luvas,
invocaram ignorância e voltaram a descarregar sucata de um camião.
Os pescadores assistiram a décadas de danos ambientais, mas sabem pouco sobre a
toxidade dos poluentes associados à extracção de petróleo e tinham falta de capacidade
institucional para documentarem efectivamente a extensão da destruição — ou das
suas perdas. Os derrames de petróleo no mar do Soyo acontecem desde o início da
produção dos Blocos 1 e 2. Um ancião em Moita Seca recordou o que se tinha passado
há muito tempo: “Nos anos setenta houve um acidente num poço. A água parecia
toda petróleo, daqui até Cabinda”. Um jovem pescador afirmou que os derrames
continuaram até ao presente, referindo uma fuga no Bloco 2, a 8 de Julho de 2003, que
chegou até à praia. Vieram trabalhadores para limpar a praia, mas o petróleo na água
afugentou os peixes. Ele explicou que o petróleo “é difícil de controlar” na água e que
“assim que os peixes sentem esta poluição a maior parte foge, procurando segurança
longe do acidente, os restantes acabam por morrer aqui.”

27
O rádio que surge naturalmente dissolvido nas águas de nascente combina-se com o bário dos fluidos de perfuração,
produzindo uma camada de sedimentos radioactiva no interior das tubagens que transportam grandes quantidades
de águas residuais.
272 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Outro pescador afirmou que os frequentes acidentes ambientais, que chegam a ser
“de sete derrames por ano… fazem mal tanto ao peixe como às redes.” Ele alongou-
se sobre as dificuldades provocadas pelas manchas de petróleo dizendo, “a poluição
destrói as nossas redes que por vezes… se enrodilham em qualquer poça de petróleo
e depois não as conseguimos usar. Uma rede destruída é uma coisa terrível com os
preços altos daqui. Uma rede pode custar três meses de trabalho. Às vezes os preços
inflacionam 100 por cento.” Quando lhe perguntei se os pescadores no Soyo exigiam
alguma compensação pelas redes destruídas, um representante do Instituto de Pesca
Artesanal (IPA) do Soyo abanou a cabeça e apelou aos pescadores para trazerem as suas
redes estragadas pelo petróleo ao seu escritório e registarem as suas perdas para que
se pudessem criar as condições para “um acordo entre os pescadores e as petrolíferas.”
O jovem pescador mostrou ter pouca esperança em apresentar os seus prejuízos ao
IPA dizendo: “As coisas aqui são tão desorganizadas que a poluição acontece e nós
não conseguimos definir com certeza a sua origem.”
Os representantes do governo designados para representar e prestar assistência aos
pescadores demonstram uma falta de capacidade ou de vontade institucional para
dar seguimento às queixas sobre poluição. Um representante do IPA admitiu existir
alguma ansiedade em atribuir o declínio das pescarias à indústria do petróleo, “Em
termos da ameaça, não temos quaisquer dados… as espécies estão a desaparecer e a
qualidade do peixe está a piorar,” ele foi-se embora deixando a ligação entre a poluição
e a redução das reservas de peixe pouco clara. Um pescador cheio de rugas dos anos
passados ao sol explicou: “Não temos as máquinas para nos dizerem se é ou não a
poluição que os faz desaparecer.” Sem a tecnologia, os pescadores artesanais só podem
conjecturar sobre a ligação entre a extracção de petróleo e a degradação ambiental.
Eles apontam para a quebra das reservas de espécies importantes como a Corvina e
a Choupa28 bem como um tipo de tubarão conhecido no Kisolongo como Nfuifua, e
uma variedade local de ostras chamada Mankolua. Mas saber quais são os efeitos da
poluição do petróleo não é tão simples como comparar as estatísticas das capturas do
passado até à presente data, para além de que a pesca pirata representa igualmente
um factor de desestabilização a ter em conta.
Os pescadores do Soyo concordaram que a pesca pirata representa uma grave ameaça
às suas reservas de peixe, argumentando que a polícia fiscal marítima, encarregue
de assegurar o cumprimento da lei, é demasiado desorganizada e não tem os meios
para confrontar os barcos gigantescos do Japão, da Coreia, da Rússia e da Espanha,
que roubam o seu peixe. Contando histórias de grandes navios navegando silencio-
samente de luzes apagadas a coberto da escuridão para varrer o leito do oceano, os
pescadores amaldiçoam os piratas por lhes roubarem o peixe. Eles argumentam que
o regime e as restrições nacionais às quotas de pesca de espécies ameaçadas, como o
Carapau, não iriam aliviar a pressão nas já frágeis reservas se o governo continuasse
a não conseguir capturar os navios pirata.
Afagando a sua esbranquiçada barba um pescador disse: “Ninguém cumpre a lei.
A polícia fiscal marítima não tem a informação correcta e nós também não estamos
suficientemente bem informados sobre o que realmente se passa. Durante o período
colonial, a capitania assegurava que as pessoas cumpriam a lei, mas agora não. Nin-
guém se certifica que estas leis são respeitadas.” Outro pescador, referindo que o único

28
Alguns pescadores também davam o nome de Peixe Preto à Choupa.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 273

barco da polícia fiscal marítima destinado à patrulha da costa do Soyo estava parado
no porto há meses à espera de uma peça, declarou: “Temos a polícia fiscal marítima
para manter a ordem, porque sem ordem há o caos, mas os agentes precisam de ser
mais capazes para apresar esses navios — ou talvez a Marinha devesse intervir.” Outro
pescador declarou: “A pesca pirata e a indústria do petróleo não estão relacionadas,
mas nós fomos apanhados entre as duas.” O seu comentário conhecedor, demonstrava
claramente a incapacidade do governo para regular a extracção de recursos em ambos
os sectores, assim criando as condições para uma convergência que punha em risco
os modos de subsistência locais e os seus meios de sobrevivência.
Aumento das Reivindicações sobre a Terra
O Estado, disseram as pessoas por todo o Soyo, tinha prometido que o petróleo traria
o desenvolvimento, mas até àquela data só parecia ter diminuído os proveitos das
principais ocupações como a pesca e a agricultura, sem trazer novos empregos. De
forma a enfatizarem a sua exclusão da distribuição das riquezas do petróleo, muitos
dos residentes mais velhos do Soyo contaram histórias sobre a sua pertença à terra e
apresentaram reivindicações tangíveis sobre o solo. Ouvi pela primeira vez estes relatos
numa visita com o Soyo Dia Nsi29 – o mais respeitado líder tradicional do Soyo – no
seu quintal em Pângala. Sendo uma relíquia do antigo Reino do Congo este ancião
coordena as acções de cada rei do povo da área. Quando cheguei apresentei-me a este
rei dos reis com as oferendas obrigatórias. Colocando um boné com garras de leão que
tinha pertencido ao seu avô, o Soyo dia Nsi aceitou as minhas ofertas durante uma
cerimónia tradicional no Kisolongo. Fez-me sinal para seguir um carreiro arenoso que
saía do quintal. Caminhámos algumas centenas de metros, passando por um poço
de petróleo, em direcção a um Imbondeiro, a forte árvore também conhecida como
Baobab. O Soyo dia Nsi explicou a importância do seu Imbondeiro: os seus antepassa-
dos plantaram a árvore na sua comunidade e a sua presença duradoura significava a
marca indelével dos antepassados e do seu modo de vida. Antes do advento do nylon
e dos plásticos, os pescadores do Soyo teciam as suas redes a partir da casca fibrosa
dos Imbondeiros e usavam as cascas dos seus frutos caídos para esvaziar as canoas.
Enquanto ele falava sobre a árvore debaixo da sua sombra fresca, eu contemplava o
poço de petróleo brilhando ao calor do Sol. Percebi que o imbondeiro representava
uma reivindicação ao direito à terra e aos seus recursos30. A árvore apresentava a pro-
va do enraizamento da sua população neste território, muito antes da chegada das
companhias petrolíferas ou sequer do Estado angolano.
Ao apelar à sua tradicional ligação a este território saturado de petróleo, os residentes do
Soyo exigem por direito ser remunerados pelos recursos extraídos do município — quer
em terra como no mar. Um ancião em Pângala via a sua comunidade como o componen-
te humano da paisagem. Ele explicou: “Somos da terra — como o ouro, o petróleo e a
madeira”. Mas, desde os anos sessenta, disse ele melancolicamente, “perdemos tanto”.

29
Também se pode escrever Soyo Dya Nsi ou Soyo Dia-nsi.
30
Em muitas partes do mundo, como em Angola, a lei consuetudinária apoia a defesa das árvores associando-as ao
“conjunto de direitos” para o uso da terra, das árvores e dos produtos das árvores (Fortmann 1985; Fortmann and
Bruce 1988). Dado o papel das árvores na lei consuetudinária, as pessoas podem até plantar árvores para reivindicar
direitos sobre a terra. (Peluso 1996). Ver: Fortmann, Louise P. 1985. “The Tree Tenure Factor in Agroforestry with
Particular Reference to Africa.” Agroforestry Systems 2: 229-51. Fortmann, Louise P. and John W. Bruce. 1988. Whose
Trees?: Proprietary Dimensions of Forestry. Boulder, Westview Press. Peluso, Nancy Lee. 1996. “Fruit Trees and Family
Trees in an Anthropogenic Forest: Ethics of Access, Property Zones and Environmental Change in Indonesia.”
Comparative Studies in Society and History 38(3): 510-48.
274 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Outro lamentou-se: “Temos as riquezas do petróleo, mas não são nossas. Só podemos
olhar para elas, não beneficiar delas. Eles vêm como um bando de pássaros, comendo a
colheita toda sem deixar nada, até mesmo o administrador municipal do Soyo não rece-
be a sua parte”. Explicando, referiu que “É uma questão de identidade”… “Aqui estou
eu na província do Zaire e não me sinto prejudicado porque a população nas Lundas
beneficia de algumas minas de diamantes que lá foram descobertas. Não me sinto mal
quando se diz que as pessoas do Cuando Cubango têm muita carne porque são criadores
de gado. Ou os de Benguela com o seu peixe. Há esse discurso sobre o petróleo ser um
tesouro nacional, até mesmo uma salvação, mas ele tem que vir de algum lado. Temos
um ditado que diz que quem está na cozinha não morre de fome” e acrescentou rapida-
mente: “Bem, a não ser que seja um mau cozinheiro.” Continuou, “Nós percebemos que
é um tesouro nacional e que o dinheiro devia ser distribuído pelas pessoas no território
nacional, mas nas áreas de produção essa é uma questão de identidade, a identificação
de uma região com os seus próprios meios de desenvolvimento.”
As autoridades tradicionais são assertivas no argumento de que o Soyo merece uma
parte das receitas das suas riquezas subterrâneas. No entanto, não têm poder para fazer
vingar as suas convicções. Na Constituição angolana, as autoridades tradicionais são
designadas como “as entidades que personificam e exercem o poder dentro das suas
respectivas organizações político-comunitárias, de acordo com os valores, as normas
e as leis tradicionais” — uma definição que corta os laços das autoridades tradicio-
nais ao seu território enquanto “base fundamental da (sua) autoridade”31 Sem poder
territorial, o Soyo dia Nsi e os seus reis do povo subordinados, estão relegados a um
papel figurativo meramente cerimonial. Um rei do povo enfatizou que o petróleo da
sua região tinha financiado as infra-estruturas em Luanda, mas que o Soyo permanece
sem electricidade 24 horas por dia. Ele lembrou os governantes de Luanda que “As
terras que possuem esta riqueza seguram o país — esta nação é feita a partir da riqueza
que brota daqui, do petróleo”.

O Desenvolvimento como Compensação


Outro conjunto de relatos exigia o desenvolvimento como forma de compensação
pelos danos ambientais. Numa manhã, o Soyo Dia Nsi explicou que com a extracção
de petróleo no Soyo “aqueles que são pobres enriquecem e aqueles que são ricos
empobrecem.” Este argumento deixou-me confusa até que o vi inscrito na paisagem:
as riquezas na terra já não asseguravam uma colheita proveitosa à medida que os
gananciosos exploradores de petróleo poluíam o ambiente. Os seus antepassados
Basolongo tinham governado neste território com orgulho, tendo enriquecido com
as ofertas da terra e do mar e pelo comércio com estrangeiros, mas agora eram, eles
próprios, estrangeiros na sua terra natal, excluídos das riquezas que vinham das con-
cessões impostas à terra. Pelos seus olhos, eu comecei a ver como a população do Soyo
juntava a exigência pelo desenvolvimento aos relatos da degradação.
Mulheres e homens, velhos e novos, alegaram consistentemente que as plantas perto
dos poços de petróleo estavam secas; as plantas sem seiva e os seus frutos sem sumo
ou nutrientes. Mais do que observações sobre a saúde das plantas, o relato da seca
trazia consigo o vazio produzido no processo de extracção. Este relato demonstrava
que a Total tinha perturbado o frágil equilíbrio na paisagem subterrânea, mas que

31
Oliveira, Elias. Agosto 22, 2004, “The ‘Monarchs’ of Angola and the Issue of Local Power.” (Visto em 2005), Pode
ser consultado em www.angonoticias.com.
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 275

não compensava as suas repercussões subsequentes. Do mesmo modo, as pessoas


passavam dos seus protestos sobre a degradação e a poluição para as reivindicações
do desenvolvimento da comunidade, contrastando a radiosa promessa de petróleo
com as terríveis realidades da vida perto dos locais de extracção. Na curta sombra
de uma mangueira tísica ao meio-dia, uma mulher de mãos rijas começou: “Nós não
temos uma parte dos lucros deste petróleo, eles nem sequer nos querem dar água ou
luz.” Declarando que a incapacidade da Total em fornecer água e electricidade à sua
comunidade era um insulto dadas as maleitas que esta sofria por causa da extracção,
prosseguiu dizendo que, “a nós calha-nos o prejuízo; depois [da extracção ter come-
çado] apareceram muitas doenças, nunca tínhamos tido tantas doenças más. Mas
aparecem cada vez mais infecções… como eles estão sempre a extrair o petróleo… e
as nossas colheitas não aparecem. Eles secam isto, eu não sei se a terra tem todos os
nutrientes, mas todas as plantas secaram. Já não há água, elas não podem beber. As
plantas morrem de sede. Todos nós morremos. Temos febres baixas que vêm de infec-
ções, mas não sabemos de onde essas infecções vêm…, não queremos isto, vivemos
com muito custo. Estamos a morrer lentamente.”
Do Mongo Soyo até Cabeça de Cobra, as comunidades ao longo da costa afirmaram que
as suas plantas produziam menos desde que a Total começou a extrair petróleo do Soyo.
Estariam estas fracas produções associadas à exploração do petróleo ou poderiam ser
atribuídas ao esgotamento dos pobres solos arenosos do Soyo?32 Uma professora falou
sobre as plantas de mandioca que outrora exibiam folhas saudáveis, “verdes de clorofila”,
mas que agora “cresciam pouco” à medida que a poluição contribuía para “a perda de
clorofila nas folhas”. Uma autoridade tradicional declarou que o petróleo que vertia dos
oleodutos “se embebeu na terra, entranhou-se nela” e que sufoca as raízes das plantas.
Os responsáveis da Total podem contestar a veracidade científica destas alegações, mas
as observações dos membros da comunidade espelham não só as realidades ambientais
como as sociais. No seu ponto de vista, a extracção de petróleo secou a vitalidade e a
sustentabilidade das comunidades locais, prejudicou a produção agrícola e a saúde
humana perto dos poços e ensombrou as exigências tradicionais do direito à terra.
Ao longo da costa da embocadura do Rio Congo, um grupo de pescadores falou sobre
as suas preocupações, tendo um deles argumentado que: “todas as receitas do petróleo
que deviam vir para aqui são desviadas. O governo não tem que nos dar o dinheiro,
mas sim escolas, electricidade, clínicas e estradas. Os portugueses vieram em 1482 e
não nos deram nada. Foi aqui em Bocolo que os primeiros brancos pisaram o nosso
solo, com Diogo Cão, e nem sequer temos uma escola. Tivemos a independência em
1975 e o nosso governo também não fez nada. A riqueza de Angola sai daqui, mas não
temos estradas alcatroadas para Luanda ou sequer um porto onde os navios maiores
possam atracar. O governo construiu um muro para fechar a relação entre nós. Quando
pedimos não vem nada dele”.
Outro pescador relacionou a extracção de petróleo e as capturas de pescado cada vez
mais fracas, sugerindo que o governo e as companhias petrolíferas que beneficiam
do solo deviam compensar não só as suas perdas mas também a herança perdida dos
seus filhos: “Esta é a nossa herança” disse ele, “e estas são as nossas terras, mas já não
podemos pescar nas zonas tradicionais. Temos os gases nos nossos pulmões, mas o

32
Talvez os agricultores que vinham do interior agrícola produtivo esperassem o mesmo tipo de colheitas dos campos
do Soyo sem ter em conta as diferentes características dos solos arenosos e as diferentes práticas de manutenção dos
solos necessárias para a sua fertilidade na seca zona costeira.
276 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

posto médico foi destruído durante a guerra. A escola também. Nem sequer temos o
suficiente para viver e as companhias petrolíferas não nos dão nada. Estamos a protestar
porque não temos que chegue para dar de comer aos nossos filhos. O Estado possui
esta terra e eles desempenharam o seu papel na colocação dos poços de petróleo por
aqui. Temos registos da presença da nossa comunidade aqui desde de 1482. Vemos o
que se passa no Oceano e o Estado também vê.”
Estes relatos finais enfatizam os laços históricos à terra que precedem em muito a
intervenção das petrolíferas e do Estado angolano. Eles desafiam subtilmente a legi-
timidade destas entidades ao justaporem a abundância dos períodos tradicionais e
anteriores à guerra com o actual vazio de desenvolvimento e um futuro ecologicamente
destruído. O resultado é que as partes responsáveis pelo dano ambiental — o Estado
e as petrolíferas — deviam compensar as comunidades através do desenvolvimento,
para diminuir a perda dos modos de vida tradicionais.

Conclusão
O Administrador Municipal do Soyo partilhou uma vez comigo um provérbio Ango-
lano: “se você quer crescer um bocado na vida económica, arranja amizade com um
rico”. No entanto, continuou, “faz pouco sentido que eu seja pobre acompanhando um
rico sem obter nada dele, desse modo não podemos ter uma boa relação.” Por vezes
parecia que os residentes do Soyo estavam à espera que o desenvolvimento viesse por
osmose, como se a mesma forma de vida da base do Kwanda, onde não há falta de
água, electricidade ou gasolina, se espalhasse pelas áreas circundantes até que todas
as pessoas do Soyo recebessem benefícios iguais. Mas as barreiras mantinham-se in-
transponíveis quando eu fiz a minha primeira viagem a Kwanda.
Ao aproximar-me da base passei por uma mulher idosa, agachada junto à vedação
encimada por rolos de arame farpado. No portão principal uma mulher fardada se-
micerrou os olhos, olhando repetidamente para a minha cara e para a fotografia do
passaporte antes de me fazer sinal para entrar. Vendo que eu estava preocupada com
a mulher, um oficial explicou: “não se permite o acesso a toda a gente, a não ser que
tenham alguma coisa importante a fazer na base”. Pensei no que de importante tinha
a minha deslocação ao Sodispal, o supermercado da base gerido por uma subsidiária
da Sonangol. Garrafas de vinho cobertas de pó e whisky a preços altos, sacos encar-
quilhados de rebuçados e embalagens coloridas de bolos contendo todos os recheios
que se possam imaginar enchiam as prateleiras do Sodispal. A arca frigorífica que
está sempre cheia de Coca-Cola, cerveja Cristal e Fanta, deixava às vezes ver fatias
redondas e cremosas de queijo Gouda, iogurtes e até mesmo manteiga. Mas eu vinha à
procura de uma coisa mais simples, papel higiénico. Durante duas semanas não tinha
havido um único rolo de papel higiénico à venda em todo o Soyo, desde os mercados
ao ar livre até às lojas locais. Contentei-me com toalhetes de papel, também não havia
rolos no Sodispal. Mesmo o poder de compra da indústria petrolífera, personificada
no supermercado em Kwanda, não conseguia superar todos os atrasos do Soyo.
Na altura em que o petróleo foi descoberto, as companhias e os agentes governamen-
tais desejosos de obter uma parte das receitas, criaram uma imagem do petróleo como
sendo uma mercadoria omnipotente e benéfica. Prometeram a transformação econó-
mica, omitiram deliberadamente pormenores sobre os efeitos colaterais e impuseram
um discurso cor-de-rosa sobre os benefícios do petróleo num contexto de ameaça de
Kristin Reed i Acordar de um Pesadelo: A Vida na Zona Petrolífera do Soyo 277

repressão violenta. No final — e como se esperava — sem o envolvimento estatal e da


sociedade civil nos termos em que a exploração era feita, o petróleo não tinha trazido
desenvolvimento ao Soyo. Ao invés disso, a poluição do petróleo tinha degradado o
ambiente e destruído os modos de vida locais no interior e na costa. Apanhados entre
as colheitas doentes e o peixe contaminado, os habitantes do Soyo tinham começado
a exigir esforços concertados do Estado para proteger os ecossistemas locais e para
reinvestir as receitas do petróleo no município.
Dois tipos de relatos enfatizavam as exigências locais por uma parte dos benefícios
do petróleo extraído das reservas debaixo das suas zonas agrícolas e pesqueiras. A
primeira centrava-se na identidade e no sentimento de pertença à terra, assegurando
o direito ao desenvolvimento baseado nos laços geográficos e territoriais que antece-
diam as intervenções do Estado e das petrolíferas. O segundo debruçava-se sobre os
modos de vida tradicionais, os ecossistemas e as vidas sacrificadas pela economia de
exploração desenfreada, articulando as exigências pelo desenvolvimento no discurso
sobre a compensação.
As pessoas do Soyo despertaram para a realidade, vendo que o petróleo não vai trans-
formar por artes mágicas o seu município empobrecido. Os lucros do petróleo, aplicado
ao desenvolvimento, são distribuídos de forma desigual, enquanto a poluição afecta
as camadas mais pobres da população que dependem de ecossistemas cada vez mais
degradados para subsistirem. Este artigo demonstrou que os pescadores e os agricul-
tores do Soyo utilizam os seus relatos sobre a identidade e a degradação ambiental
para exigirem a sua parte dos benefícios da produção local de petróleo.
Finalizo com uma história que ouvi mesmo antes de deixar o Soyo que indica que
alguns residentes do município rico em petróleo começaram a juntar a acção directa
às palavras. De acordo com um representante da Total, todos os anos em Dezembro a
companhia petrolífera convidava os seus empregados e alguns líderes das comunidades
nas zonas de exploração para celebrarem a festa de Santa Bárbara, que aparentemente
é a santa padroeira do petróleo. As festividades incluíam competições desportivas,
entrega de prémios, discursos e um grande bufete. No ano anterior, antes da refeição
ter terminado, um dos membros convidados da comunidade mandou um grupo de
crianças com sacos de plástico juntar a comida que tinha sobrado para partilhar com
as pessoas da sua comunidade que não tinham ido.
Terá sido este gesto um acto de protesto, uma tentativa para derrubar as barreiras
de exclusão entre a companhia petrolífera e a comunidade? Terá sido uma simbólica
tentativa de restituir o que era devido à comunidade? Ou foi uma reacção instintiva
ao contraste entre a abundância e excesso característicos do sector petrolífero e o ce-
nário de fome, privação e perda de bens do Soyo? Foi tudo isso. Ao pensar sobre esta
história, lembrei-me da atitude de escárnio e incredulidade do representante da Total
ao relatar o incidente. Eu também não sabia o que havia de pensar sobre esta história:
hesitava entre a efusiva celebração do desafio do líder da comunidade e a preocupa-
ção desesperante pela comunidade. Cheguei à conclusão que a história exemplificava
a maneira como, numa atmosfera de repressão e de desespero, as comunidades do
Soyo estão a protestar contra o facto de terem sido relegadas a ficar com os restos
do banquete das riquezas naturais da região e como estão a exigir um lugar à mesa.
Uma região sonolenta que está a acordar de um pesadelo; talvez uma sociedade civil
empenhada esteja a nascer no Soyo.
279

Sociedade Civil e Ajuda


Internacional em Angola1

Introdução/Contextualização
Mónica Rafael Simões
& Fernando Pacheco
CES/FEUC &
A s características que a sociedade civil angolana hoje
apresenta são resultado de um conjunto de dinâmicas
históricas de construção e evolução política, económica e
ADRA, Angola social, com interferências de actores internos e externos, tanto
(respectivamente)2 no período colonial como após a independência.
Reproduzido à imagem do Estado colonial e fundamentado
em leis e normas estranhas e distantes da realidade sócio-
-cultural da maioria da população, o Estado independente
continuou a ser encarado pelas elites como um mecanis-
mo de controlo das estruturas administrativas, militares e
económicas e de acesso a recursos económicos. O desejo de
controlar as forças sociais independentes e os privilégios
oferecidos pelo controlo do aparelho estatal conduziram à
partidarização do Estado, que passou a ser dominado pela
incompetência e pela burocracia, e ao estabelecimento de
práticas de clientelismo e à exclusão política de grande parte
dos angolanos. A consequência deste distanciamento foi uma
sociedade obliterada, onde os cidadãos não dispunham de
um espaço de participação autónoma.
Na realidade, a esmagadora maioria da população angolana
não ascendeu a um estatuto real de cidadania no período pós-
-independência e a esta exclusão política somou-se uma vincada
exclusão económica e social, agravada com a queda drástica da
produção e produtividade internas, à medida que aumentavam
os gastos públicos no conflito armado e que as elites no poder
ganhavam uma independência económica resultante dos ren-
dimentos do petróleo. No seio de um sistema dito Socialista,
marxista-leninista, com fortes mecanismos de repressão, a po-
pulação viu reduzido o seu potencial de participação formal,
ficando limitada a mecanismos sociais dominados pela informa-
lização e pela personalização das relações sociais e económicas,
marcada por um sentimento de desamparo colectivo que inibiu
o surgimento de uma lógica de cidadania efectiva.
1
Este artigo, escrito em co-autoria por Mónica Rafael Simões e Fernando Pacheco,
resulta de uma pesquisa realizada em parceria pelo Núcleo de Estudos para a
Paz do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal) e pela
ADRA Luanda e Huambo, no âmbito de um projecto de investigação intitulado
Peacebuilding processes and state failure strategies. Lessons learned from the former
Portuguese colonies e financiado pela Fundação Ford.
2
Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
– CES/FEUC; Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente – ADRA, Angola.
280 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

O tipo de modelo económico e social adoptado por Angola depois da independência


acabou também por criar uma ruptura com as identidades e dinâmicas locais, privi-
legiando os espaços urbanos em detrimento dos rurais. Como consequência, as co-
munidades rurais foram obrigadas a inventar estratégias endógenas de sobrevivência
devido à ausência do Estado, que nunca conseguiu exercer um verdadeiro controlo
sobre o conjunto do território. Este divórcio entre o urbano e o rural, entre o moderno e
o tradicional, teve também como consequência o facto de o Estado nunca se interessar
em incluir nas suas estratégias e políticas, as experiências e dinâmicas das populações
rurais e o facto de a maior parte da população não se rever nas políticas estatais. Isto
traduziu-se num processo de exclusão social expresso em vários domínios: no económico,
pela ruptura do sistema de trocas entre a cidade e o campo e pela ausência de empregos;
no institucional, pela baixa oferta de serviços em áreas como a educação, saúde, água
potável, pela inexistência de outros ligados à justiça e aos direitos cívicos e políticos e
pela desconsideração das autoridades tradicionais; no territorial, pelo abandono de
extensas regiões; no das referências simbólicas, pela afectação a nível das identidades,
da auto-estima, da autoconfiança, da incerteza no futuro, da dependência, primeiro em
relação ao Estado e, depois, em relação aos doadores (Pacheco, 2002).
De facto, ao mesmo tempo que se desenvolveram os processos formais e oficiais de
construção estatal, a sociedade angolana foi encontrando e reinventando formas de se
organizar em espaços económicos e sociais informais, de certa forma autónomos da auto-
ridade central. A maior parte da população esteve quase sempre afastada de qualquer tipo
de participação política activa, sendo-lhe reservado um papel essencialmente passivo.
Ao longo dos tempos as angolanas e os angolanos comuns desenvolveram uma certa
capacidade de lutarem e procurarem soluções para os seus problemas, quer através de
esforços individuais, quer de pequenos grupos ou de outras formas de acção colectiva,
procurando resgatar ou recriar formas organizativas e dinâmicas sociais, algumas com
raízes nas “instituições do poder tradicional”. Tal foi, por exemplo, o caso dos Onjangos,
instituições que não tinham qualquer reconhecimento do ponto de vista jurídico-legal,
mas representaram — e em muitos casos ainda representam — um espaço de moderação
do poder das lideranças comunitárias, de participação, de resolução de conflitos e de
educação das novas gerações nos valores culturais da comunidade.
A abertura ao Ocidente e o caminho iniciado rumo ao multipartidarismo no início
dos anos noventa — reflexo também da vaga de democratização imposta aos países
africanos naquela altura — resultaram em grande medida do desejo de encontrar uma
solução para o conflito armado e da perspectiva de que essa abertura poderia ser o
caminho para captar recursos e novas fontes de rendimento para o Estado e as suas
elites. Os factores que impulsionaram o pluralismo político em Angola residiram assim
numa leitura pragmática da fragilidade institucional e da instabilidade nacional, na cri-
se económica que assolava o país e na pressão feita pelos doadores internacionais.
O processo de liberalização política introduziu algumas mudanças significativas, como a
abertura ao surgimento de novos actores no palco nacional, desde associações profissio-
nais, sindicatos autónomos (de trabalhadores), ONG locais e uma certa imprensa livre na
capital, bem como algumas organizações comunitárias nas áreas rurais. Emergiu assim
a sociedade civil angolana, que passou a dar importantes contributos para a criação de
um espaço público independente do Estado, nomeadamente nos seus esforços pela paz
e nas pressões exercidas pela defesa e promoção dos Direitos Humanos e da cidadania,
conquistando algum papel político na tentativa de influenciar as políticas públicas.
Mónica Rafael Simões & Fernando Pacheco i Sociedade Civil e Ajuda Internacional em Angola 281

As várias organizações da sociedade civil angolana — aqui entendida como integran-


do Organizações Não Governamentais (ONG), sindicatos, associações profissionais
e de moradores, grupos comunitários, Igrejas, alguns meios de comunicação social
privados, grupos culturais e outros não formais, etc. — procuraram responder às ne-
cessidades da população, promovendo alternativas de desenvolvimento sustentável,
respeito pelos Direitos Humanos e exercício de liberdades e cidadania. A sua trajectória
e situação actuais estão estreitamente associadas às dinâmicas do Estado e da ajuda
internacional fornecida ao país.
Em todo este processo, a dimensão internacional desempenhou um papel central, não
só em termos do apoio crucial que a ajuda internacional prestou à criação, emergência
e desenvolvimento da sociedade civil nacional, mas também devido aos crescentes
interesses económicos que se foram cristalizando com a liberalização económica do
país e a ampla abertura ao sector privado. Esta dimensão externa terá impactos vários
ao nível do processo de transição em Angola, uns mais positivos que outros.
Este texto procura apresentar uma leitura das relações da sociedade civil angolana com
o Estado e com a comunidade internacional de doadores, e perceber de que forma o
factor externo das políticas da ajuda a par da importância geo-estratégica do país e dos
seus recursos (em especial o petróleo) influenciaram as dinâmicas da sociedade civil.

1 - A Ajuda Internacional a Angola: uma Leitura Crítica das suas


Dinâmicas e Impactos
Desde a sua independência, Angola tem assistido a mudanças profundas no que diz
respeito ao volume, fonte e natureza dos fluxos de ajuda internacional, reflexo tanto
das alterações nas relações internacionais do país, como da sua situação interna.
Durante o final da década de setenta e ao longo dos anos oitenta, Angola recebeu uma
ajuda substancial da União Soviética, de Cuba e de outros países do bloco de Leste. Du-
rante esse período, a ajuda bilateral por parte dos doadores ocidentais foi relativamente
escassa, com algumas excepções importantes, tais como a Suécia e algumas agências das
NU, com um número muito reduzido de organizações internacionais a trabalhar no país.
Esta realidade sofreu alterações na década de noventa, quando Angola se converteu num
dos maiores beneficiários da ajuda externa a nível mundial relativamente à dimensão
da sua população e da sua economia (Nações Unidas, 2002: 87).3 Nesse período, a prio-
ridade da crise humanitária, as dificuldades sentidas no terreno e algum desconforto
relativamente à percepção de falta de compromisso por parte do governo angolano,
justificaram uma atitude cautelosa quanto à atribuição de ajuda ao desenvolvimento de
longo prazo por parte dos doadores, cuja tendência foi a de canalizarem grande parte
da assistência através das agências das NU e de ONG internacionais e nacionais, em
vez de o fazerem através dos mecanismos institucionais do governo.
A assistência humanitária e de emergência foi, sem dúvida, o grande enfoque da
ajuda internacional a Angola ao longo dos anos noventa. Neste período, os doadores
forneceram mais fundos às NU para Angola do que para qualquer outro caso de emer-

3
Durante toda a década de noventa, Angola recebeu cerca de 3.6 biliões de dólares em ajuda pública ao desenvolvimento,
dos quais 59% foi atribuído por doadores bilaterais e 41% por doadores multilaterais. Os principais doadores bilaterais
(que forneceram cada um mais de 200 milhões de dólares durante a década de noventa) foram a Suécia, a Itália, a
Espanha, os EUA e Portugal, e os maiores doadores multilaterais foram a CE e o Banco Mundial (Nações Unidas,
2002: 86).
282 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

gência em África, descrevendo-a como uma das maiores e mais complexas operações
de emergência humanitária do continente.
Terminada a guerra civil em 2002, a ajuda começou a sofrer uma redução considerável.
A transformação das relações de ajuda e a mudança de política dos doadores em relação
a Angola que se vive no presente, com uma diminuição considerável dos montantes
de ajuda ao desenvolvimento e com a saída de vários actores do país, é justificada por
razões de redireccionamento da ajuda para outros países agora prioritários, pela falta
de cumprimento das exigências dos doadores por parte do governo angolano e pelo
seu cansaço face à incapacidade de produzir resultados num país detentor de imensas
riquezas e recursos. A percepção de que a fraqueza dos compromissos do governo
angolano com as reformas resultava mais de uma falta de vontade que de capacidade,
condicionou muitos dos programas dos doadores, com uma diminuição importante
ou o término da cooperação para o desenvolvimento com o governo de Angola em
termos bilaterais. No entanto, esta suspeita e/ou a falta de confiança relativamente ao
governo angolano foi várias vezes relegada para segundo plano por outras preocupa-
ções, nomeadamente pelo desejo de promover e manter boas relações com o governo
de um país com imensos recursos petrolíferos.
Angola apresenta algumas especificidades em relação a outros países da região e do
continente no que diz respeito à sua relação de não dependência face à comunidade
internacional, tanto no concernente à ajuda para o desenvolvimento, como em relação
aos habituais condicionalismos político-económicos geralmente promovidos pelas
Instituições Financeiras Internacionais nestes contextos.
De facto, Angola não é, hoje em dia, um exemplo de dependência face à ajuda externa,
na medida em que o peso desta no país é, em termos macro, praticamente irrelevante,
tanto para o Orçamento Geral de Estado, como para a definição da sua política ma-
croeconómica e financeira e planos nacionais de desenvolvimento. A decisão tomada
pelo governo de Angola de colocar um fim às negociações de um acordo com o Fundo
Monetário Internacional (FMI), comunicada oficialmente em Fevereiro de 2007, é apenas
um exemplo desta realidade.4 Embora ao nível do debate político e negocial exista uma
aparente aceitação teórica de alguns modelos padrão, promovidos pelo Banco Mundial
(BM), FMI ou Comissão Europeia (CE) — que veiculam uma visão externa de desenvol-
vimento, democracia, Direitos Humanos e crescimento económico universal, associada
a programas de reconstrução pós-conflito, transparência da governação e luta contra a
pobreza —, em última análise, Angola tem acabado sempre por definir as suas próprias
políticas e ritmos de implementação, à margem da pressão internacional.
No entanto, durante as várias fases de conflito armado, sobretudo entre 1992 e 2002,
Angola apresentava uma situação muito diferente, nomeadamente enquanto país re-
ceptor massivo de assistência humanitária e ajuda internacional. Este quadro deixou
marcas profundas ao nível da sociedade civil.
Ultrapassada que está a fase de guerra civil e estando em preparação as segundas eleições
legislativas do país, é importante fazermos uma reflexão sobre as dinâmicas e os impactos
da ajuda internacional em Angola para melhor se delinearem estratégias de acção futura.

4
Angola foi um dos poucos países africanos a recusar taxativamente as condições financeiras impostas pelo Fundo
– tais como a redução das despesas públicas, apoiada num menor envolvimento do Estado na economia e num
crescente processo de privatização –, embora afirme que vai continuar a respeitar as suas obrigações e a manter com
este uma relação de assistência e aconselhamento técnico.
Mónica Rafael Simões & Fernando Pacheco i Sociedade Civil e Ajuda Internacional em Angola 283

Esta necessidade é tanto mais premente porque, por um lado, são quase inexistentes
as avaliações de carácter global sobre o impacto da ajuda no país, para além de olhares
sobre projectos específicos — sendo de destacar a Noruega e a Suécia como excepções
à regra dominante —, o que pode ser um resultado da falta de memória institucional
das organizações e de tradição de processos de aprendizagem face às complexidades
e diversidades das várias realidades com que trabalham. Por outro lado, às dinâmicas
e apoios específicos da ajuda contrapõe-se em Angola uma economia de base petrolí-
fera, o que conduziu ao questionamento por parte dos países doadores e do próprio
governo (por vezes de forma simplista) da necessidade de ajuda externa ao país. Para
além disso, importa relembrar que os critérios da atribuição da ajuda ao país, durante e
depois do conflito, obedeceram tanto (ou mais) a razões de ordem ideológica e política,
como aos reais problemas e necessidades das suas populações. Finalmente, a tentativa
de análise de impactos, quando existente, tende a excluir as práticas, estratégias e
processos de adaptação das próprias sociedades receptoras da ajuda internacional, e
raramente se procura fazer uma avaliação multidimensional dos efeitos da ajuda na
vida dos cidadãos e no tecido social, económico e político nacional.
Se tentarmos fazer um exercício de análise crítica, conseguimos identificar claramente as
dimensões em que a ajuda internacional teve um impacto extraordinariamente positivo
no país, a nível social e de potencial transformador, do mesmo modo como conseguimos
também denunciar algumas das negligências e ocultações da própria ajuda.
1.1 - Impactos positivos da ajuda
A ajuda teve impactos positivos essencialmente ao nível do auxílio humanitário, da promo-
ção da liberdade de expressão e no apoio ao fortalecimento da sociedade civil angolana.
A prestação de assistência humanitária durante a última década do conflito e no perí-
odo pós-conflito foi responsável por salvar a vida de milhões de angolanos e deve ser
assinalada como uma das contribuições mais positivas da comunidade internacional
para com Angola. O fornecimento de ajuda alimentar e humanitária num contexto
de emergência procurou minimizar os efeitos da guerra sobre a vida das populações
e uma das grandes vantagens dos actores internacionais nessa altura foi o acesso que
conseguiam ter a muitas áreas em situação difícil, sendo detentores de uma experiência
logística que se revelou fundamental para responder às necessidades da população.
Por outro lado, duas dimensões positivas adicionais apontadas prendem-se tanto com
o intercâmbio e diálogo que, embora nem sempre fácil, se desenvolveu entre o Estado
angolano e as diferentes agências portadoras desta ajuda, através de diferentes órgãos
de soberania do Estado,5 como com o contacto estabelecido entre as organizações in-
ternacionais presentes no terreno e o povo angolano, que durante muitos anos esteve
mais fechado nos seus contactos com o exterior.
Não obstante, o contributo mais importante e duradouro é sem dúvida o apoio ao
fortalecimento da sociedade civil angolana. Como já referimos, o surgimento e cresci-
mento de várias organizações não governamentais, associações e sindicatos, resultantes
das mudanças políticas dos anos noventa, obtiveram nos doadores internacionais a
sua principal fonte de financiamento, claramente numa lógica de investimento destes
actores enquanto catalizadores do processo de democratização. Embora muitas delas
tenham surgido num contexto de emergência e representem iniciativas orientadas
5
Contudo, o mesmo já não pode ser dito em relação ao diálogo e abertura entre o Estado e as organizações angolanas,
que foi quase inexistente.
284 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

principalmente para o sistema da ajuda — muito dependentes das agendas, interes-


ses e exigências dos doadores —, há um número considerável que tem desenvolvido
um trabalho sustentável e muito sério nos últimos anos, conquistando um espaço
de resistência e de defesa de direitos no país. A injecção de recursos internacionais
nestas organizações permitiu, de alguma forma, “angolanizar” o processo (ainda que
“por defeito”), sendo que presentemente algumas organizações nacionais têm uma
melhor capacidade de análise crítica e de entendimento dos processos em curso do
que a própria comunidade internacional.
O apoio financeiro e a protecção política fornecidos pelos doadores (entre os quais se
destacam os EUA, os países nórdicos e a cooperação holandesa e britânica) durante
a década de noventa, permitiram a determinados grupos da sociedade angolana
conquistar algum espaço político e exercer algumas liberdades constitucionais, tais
como a liberdade de associação e de expressão. O apoio a meios de comunicação social
independentes foi um dos expoentes desta abertura, embora muito limitada inicial-
mente a círculos de classe média, principalmente em Luanda. Foi muito importante
o suporte dado ao aparecimento e consolidação de jornais privados, objectivando-se
através do apoio financeiro directo para a impressão dos jornais, para o projecto de
expansão nacional de uma rádio privada (Rádio Ecclesia) ou os cursos de formação
para jornalistas, entre várias outras iniciativas. Apesar da precariedade de recursos
humanos e financeiros, do débil profissionalismo, do défice de apreensão das novas
dinâmicas sociais e das pressões que sofrem por parte de um governo que tem grandes
dificuldades de conviver com o diferente, os órgãos privados têm dado passos rumo
ao pluralismo informativo, permitindo que propostas alternativas e debates a partir da
sociedade civil possam ser expressas e ouvidas, pelo menos em Luanda, e têm também
promovido um certo grau de abertura junto dos órgãos estatais. Contudo, apesar deste
apoio se ter traduzido realmente num maior grau de liberdade de expressão, continua
a haver uma necessidade profunda de fluxos de informação entre as várias regiões do
país e de um exercício livre da liberdade de expressão e de imprensa.
Para além do papel fundamental que assumiram os movimentos sociais e religiosos na
procura da paz em Angola, os esforços das ONG locais, apoiadas pelos doadores inter-
nacionais, têm sido determinantes na protecção dos Direitos Humanos, na promoção do
papel da mulher na sociedade angolana e na promoção da reconciliação nacional.
Algumas organizações, com apoio de um número limitado de actores externos, têm-
-se concentrado sobre a denúncia de violações de direitos civis e políticos, como por
exemplo em relação aos despejos forçados em Luanda ou no que diz respeito às
condições prisionais e a abusos de Direitos Humanos. Foi, também, através da ajuda
internacional (ainda que apenas de alguns doadores nórdicos e de certas agências das
NU e ONG internacionais) que começaram a entrar em Angola ideias e práticas liga-
das às metodologias participativas, avaliações de projectos, accountability e, também,
à ética política e de governação, dentro das próprias organizações.
Em alguns bairros urbanos e peri-urbanos, algumas ONG estrangeiras promoveram
métodos participativos, por vezes baseados em instituições locais, com efeitos positivos.
A intervenção de algumas ONG com recurso a metodologias mais participativas, à
qual se associaram alguns programas e agências do Estado influenciados e financiados
por organismos como o Banco Mundial e a Comunidade Europeia, permitiu a criação
de grupos e associações comunitárias que, não passando inicialmente de meros inter-
mediários entre os sistemas interventores e as famílias ou comunidades, evoluíram
Mónica Rafael Simões & Fernando Pacheco i Sociedade Civil e Ajuda Internacional em Angola 285

com alguma frequência para prestadores de serviços — em domínios como o acesso


ao micro-crédito e a inputs agrícolas, água e educação — ou para organismos represen-
tativos e defensores dos interesses das comunidades junto dos poderes públicos que
estão mais próximos deles, tratando de aspectos como a negociação e legalização de
terras, projectos agrícolas ou prioridades de desenvolvimento. É o caso de associações
de agricultores, núcleos de mulheres, comissões de pais, grupos de gestão e manutenção
de infra-estruturas sociais, comités de água, entre outros. Esta acção colectiva padece
de algumas fragilidades, como o nível de participação efectiva dos membros para além
das lideranças e a dificuldade de prestação de contas de forma sistemática por parte
dos órgãos sociais aos seus membros, mas parece ser claro que está a proporcionar o
desenvolvimento do capital social e a criação de espaços de participação.
1.2 - Impactos negativos da ajuda
Ao longo do período de guerra civil dos anos noventa, a falta de coordenação das
agências humanitárias foi uma das críticas mais comuns, provavelmente consequência
da natureza e extensão temporal do conflito e da crise humanitária, que se traduziu
numa variedade de actores a operar no país, com mandatos e percepções diferentes
relativamente à forma de actuar e ao seu relacionamento com as comunidades afectadas
(Robson, 2003: 41). Por outro lado, a ajuda humanitária prolongada provocou situações
extremas de dependência e passividade e danificou os mecanismos de sobrevivência
e resistência das populações e das suas instituições comunitárias.
Outras críticas, das mais comuns, apontam a actuação da comunidade internacional e
a presença da ajuda humanitária como um factor adicional de fragilização do Estado
angolano, ao ignorar a realidade da falta de vontade e de capacidade do Estado em
fornecer serviços à sua própria população. Ao assumir muitas das funções sociais bá-
sicas do Estado angolano durante a década de noventa, substituindo-o, a comunidade
internacional contribuiu também para reforçar a já existente desconexão entre o Estado
e a maior parte da população angolana, na medida em que ajudou a fortalecer e legi-
timar o estilo da governação interna, nomeadamente no que diz respeito à ausência
de prestação de contas (Robson, 2003; Duffield, 2004; Ostheimer, 2000).
A obrigatoriedade em cumprir a agenda dos doadores — que na maior parte das vezes
não tiveram em consideração nem as agendas nem os ritmos locais — mais preocupados
com resultados do que com os processos de desenvolvimento, obrigou as organizações
locais a ceder frequentemente no que diz respeito àquelas que seriam as reais prioridades
das comunidades.6 Por outro lado, uma das dimensões mais negativas apontada frequen-
temente foi a presença em Angola de funcionários internacionais em fase de progressão
de carreira, com atitudes individuais e com mandatos muito específicos, nem sempre
conciliáveis com o de outras organizações e agências, o que provocou frequentemente
uma ausência total de coordenação e se reflectiu numa profunda falta de respeito pela
população com que lidavam. Além disso, outro aspecto apontado relativamente aos im-
pactos negativos da ajuda internacional em Angola é a saída (frequentemente designada

6
A falta de sustentabilidade dos projectos, bem como o desconhecimento e a incapacidade de analisar correctamente
o contexto e as dinâmicas das comunidades onde se pretende intervir, é uma crítica recorrente. As populações
habituaram-se rapidamente a participar dos projectos externos, por entenderem os benefícios directos dele resultantes
– normalmente traduzidos em apoio em géneros alimentícios ou em meios de produção. Contudo, esta participação
raramente se traduz numa real apropriação do projecto por parte das comunidades, que costumam estar ausentes da
sua formulação e o encaram como algo estranho à sua realidade, reagindo perante este de forma passiva ou submissa
e raramente desenvolvendo mecanismos de apropriação, sustentabilidade e de desenvolvimento de capacidades.
286 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

de “roubo”) de funcionários angolanos de ONG nacionais para as ONG internacionais


ou para o sistema das Nações Unidas. Num contexto de grande precariedade económica,
este tipo de dinâmica de oferta de salários elevadíssimos aos seus melhores quadros
fragilizou profundamente as organizações nacionais.7
Uma dimensão em que a comunidade internacional está a ter uma atitude considerada
negligente e com impactos negativos muito profundos é a sua mudança de atitude face
ao apoio à sociedade civil angolana, sendo mesmo acusada de abandono, o que também
encerra em si o risco de enfraquecer o próprio Estado. As organizações internacionais
estão a sair do país e as nacionais a fechar, já que muitas delas surgiram num contexto
de emergência e não têm formação técnica e organização para trabalhar questões de
desenvolvimento. A verdade é que as ONG locais dependem muito de fundos in-
ternacionais e o volume da ajuda é cada vez menor, o que provoca uma competição
pelos fundos dos doadores e uma capacidade de trabalho reduzida à implementação
de projectos fragmentados e de curto-prazo.
O sector petrolífero — através das políticas de responsabilidade social — está a ganhar
uma relevância cada vez maior face aos doadores tradicionais no que diz respeito à
atribuição de fundos para a sociedade civil, mas sem que estes sejam aplicados em
questões sensíveis, que questionem o status quo, e em questões sociais fundamentais,
como o acesso a serviços ou a defesa de Direitos Humanos. Em termos de dinâmicas, os
fundos tradicionais de ajuda estão a diminuir e os fundos das companhias petrolíferas
a aumentar. Esta redução da ajuda leva ainda a uma maior competição pela atribuição
de fundos entre as organizações nacionais e internacionais dentro do próprio país, o
que leva a que muitas das suas preocupações se centrem na prestação de serviços, mais
do que na actuação cívica e política. Esta realidade traduz também uma ausência de
concertação e diálogo a nível interno, provoca uma incidência de trabalho maior sobre
causas do que sintomas e potencia a deficiência das capacidades locais e a inexistência
de um maior grau de transparência e competência.
Outra área negligenciada pela ajuda internacional em Angola é a dos sectores produti-
vos, nomeadamente o apoio a projectos de desenvolvimento agrícola e de prestação de
serviços como elemento fundamental de desenvolvimento económico e de superação da
dependência face ao petróleo. Na maior parte dos casos, para além de negligenciados,
os projectos agrícolas ou de desenvolvimento rural não são baseados em diagnósti-
cos sérios nem em estudos de viabilidade, não há avaliações independentes e não se
aproveitam as lições (boas e más) aprendidas com projectos passados.
Finalmente, uma das áreas mais descuradas pela ajuda internacional é a análise das
condições que concorrem para a intensificação e disseminação da violência na fase
pós-conflito. O fim da guerra não significou o fim da violência e das suas causas estru-
turais. No entanto, a questão da reconciliação e da violência não é debatida e encarada
com a devida seriedade. Com a manutenção de situações de pobreza e exclusão social
e o ignorar das causas imediatas e estruturais potencialmente geradoras de violência,
agudiza-se o individualismo e a insegurança política, económica, social e cultural. A
miséria urbana mantém os pobres numa situação de exclusão económica e de depen-
dência da economia e mercado informais e gera um potencial de conflito que pode

7
Uma tendência recente, resultante desta prática, é agora este “roubo” ser feito por parte do próprio Estado, resultado
da melhoria dos salários pagos pelas instituições públicas e, segundo algumas vozes, da tentativa de ganhar um
maior controlo sobre os processos em marcha, procurando diminuir as vozes credíveis dentro da sociedade civil.
Mónica Rafael Simões & Fernando Pacheco i Sociedade Civil e Ajuda Internacional em Angola 287

eclodir de diversas formas e por diversas vias. Este tipo de questões mais estruturais
e de longo prazo estão frequentemente ausentes das agendas da ajuda internacional.
Uma atenção cuidada aos vários mecanismos tradicionais que existem para resolver
problemas e conflitos a nível local e comunitário e a sua inclusão em iniciativas de
ajuda internacional teria sido fundamental.
Em conclusão, na nossa perspectiva, um dos principais problemas na relação dos do-
adores e das ONG internacionais com Angola está na sua postura de distanciamento
ou mesmo ignorância em relação às dinâmicas comunitárias endógenas.8 A quase
totalidade das ONG internacionais sempre canalizou as ajudas materiais sob a forma
de assistência directa às populações, ignorando as poucas iniciativas e intervenções
que procuravam valorizar as organizações endógenas, não as envolvendo na respon-
sabilização pela gestão da ajuda. Este tipo de atitude assenta no facto de doadores e
ONG internacionais desvalorizarem, tal como o governo, o conhecimento da realidade
social e, consequentemente, a capacidade das comunidades puderem assumir, elas
próprias, o seu destino.
Em todas as comunidades das diversas áreas culturais angolanas podem ser encon-
trados “conselhos” comunitários que jogam um importante papel na gestão da vida
comunitária, na moderação do poder autocrático dos chefes tradicionais e na resolução
de conflitos. A exclusão destas instituições do processo de canalização das ajudas e
da resolução de conflitos a nível local constituiu uma perda de oportunidade para
se apoiar os angolanos a encontrarem novos caminhos para a democracia e para o
desenvolvimento.

Bibliografia
Duffield, M. (1994), Complex political emergencies with reference to Angola and Bosnia: an exploratory report
for UNICEF. Birmingham: School of Public Policy.
Nações Unidas (2002), Angola: os desafios pós-guerra – Avaliação Conjunta do País 2002. Luanda: Sistema
das Nações Unidas em Angola.
Ostheimer, A. E. (2000). “Aid Agencies: Providers of Essential Resources?”, in J. Cilliers and C. Dietrich
(eds.) Angola’s War Economy: The Role of Oil and Diamonds. Pretoria: Institute for Security Studies.
Pacheco, F. (2002), “Caminhos para a cidadania: poder e desenvolvimento a nível local na perspectiva
de uma Angola nova”, Política Internacional, 25, Primavera-Verão, 2002.
Robson, P. (2003), The Case of Angola, ALNAP. London: ODI.
Tvedten, I. (2001), Angola 2000/1, Key Development Issues and the Role of NGOs. Bergen: Chr. Michelsen
Institute.

8
Há muito pouco conhecimento sobre as organizações “informais” da sociedade civil angolana – as organizações
tradicionais, associações locais, relações e redes sociais – embora estas sejam importantes para as estratégias diárias
de sobrevivência das pessoas tanto nas áreas rurais como urbanas (Tvedten, 2001: 46).
289

ONG Internacionais e Nacionais:


Que Parceria?

Anacleta Pereira
Fundação Open Society
Angola
V ários textos deste livro focam a dimensão dos cons-
trangimentos ao desenvolvimento da sociedade civil,
resultantes da própria estruturação do sistema sócio-político
nacional e suas vertentes internacionais. Optei, assim, por
dar aqui o meu contributo centrando-me na minha expe-
riência enquanto integrante da sociedade civil angolana, a
trabalhar essencialmente do lado das instituições doado-
ras, mais especificamente ao nível das Organizações Não
Governamentais (ONG) internacionais. Não obstante estar
também associada a algumas organizações angolanas, a
minha experiência profissional situa-se principalmente ao
nível das Organizações da Sociedade Civil (OSC) interna-
cionais. Como tal, considerei que a minha contribuição para
este livro seria mais enriquecedora se centrada nas relações
entre as OSC internacionais e nacionais, sem deixar de me
referir pontualmente às questões intergovernamentais inter-
nacionais, que acabam igualmente por influenciar aquelas
relações.
A análise que aqui desenvolvo, essencialmente ao nível das
relações entre ONG nacionais e internacionais, não pretende
encontrar responsáveis ou “culpados” externos pelas situa-
ções menos positivas das OSC angolanas. Pretende tão sim-
plesmente alertar para a necessidade de se alterarem vários
aspectos daquela relação, se quisermos torná-la mais eficiente
e eficaz para o reforço da capacidade das OSC nacionais.
O esforço e o contributo das organizações internacionais
em Angola tem sido meritório, mas enferma igualmente de
várias debilidades que serão aqui expostas.
O texto apresenta-se dividido na abordagem de cinco temas
que me parecem centrais ao assunto em análise. O primeiro é
de enquadramento “histórico” das relações entre as OSC na-
cionais e internacionais e de caracterização do tipo de relações
estabelecidas; o segundo centra-se em algumas estratégias
que podem servir para a aglutinação das OSC em torno de
projectos e objectivos comuns; o terceiro fala do desafio que
se coloca às OSC em termos de conquista do seu espaço de
poder e exercício desse poder; o quarto é dedicado às elei-
ções; o quinto, e último, relembra o impacto que a dimensão
internacional tem tido ao nível do funcionamento das OSC
em Angola.
290 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

1 - Génese e Características das Relações entre OSC Nacionais


e Internacionais
Em meu entender, o trabalho das OSC internacionais e nacionais enferma, desde logo, da
falta de uma discussão básica e primária acerca do que se pretende atingir em termos de
objectivos e estratégia de fundo a implementar. Esta discussão não se tem por se considerar
demasiado óbvia, mas, no entanto, não o é de todo. Existe uma necessidade grande de se
perceber que realidade é que se pretende alterar, em que sentido e como? Mesmo quando
falamos dos objectivos mais genéricos, como o desenvolvimento económico e o apoio ao
processo de democratização, os parceiros nacionais e internacionais nem sempre estão a
falar da mesma coisa e as divergências e as contradições aumentam à medida que se vai
avançando na implementação dos vários projectos e nos métodos de trabalho.
Esta discussão nunca ocorreu de forma geral e inclusiva devido ao tipo de relação
que sempre existiu entre organizações nacionais e internacionais. Trata-se de uma
relação muito desequilibrada, onde as organizações internacionais sempre exerceram
o papel dominante, desde a sua chegada massiva ao país no início dos anos noventa
até hoje. Isto deveu-se, por um lado, ao facto de deterem os fundos para implementar
os projectos e, por outro, deterem o Know-How e dominarem as novas doutrinas do
desenvolvimento. Angola estava, nessa altura, a sair de um regime de partido único
de cariz Socialista, sem organizações da sociedade civil tal como as entendemos hoje,
e foi com alguma “naturalidade” que as então recém chegadas organizações interna-
cionais assumiram um papel de liderança e domínio em relação a parceiros nacionais,
que começavam a emergir e a dar os primeiros passos.
As relações que se foram estruturando e sedimentando entre organizações nacionais e
internacionais enfermam desta génese desequilibrada e que não pode ser considerada
de parceria. O conceito de parceria implica que os parceiros da relação se considerem
iguais no respeito mútuo, interiorizando o facto de que, apesar de terem competências
e meios diferentes, podem-se completar e complementar na relação de parceria, e que
ambos são igualmente importantes no planeamento, implementação e desenvolvi-
mento dos projectos, assim como na persecução e alcance dos objectivos e estratégias
delineadas por ambos. A parceria tem de ter como um dos objectivos o reforço das
capacidades das OSC angolanas, mas penso que só serão verdadeiramente produtivas
e construtivas quando assentarem no princípio da igualdade dos parceiros. As debili-
dades e fracassos de muitas alianças deste tipo estão relacionadas com o desequilíbrio
a todos os níveis existente entre os supostos parceiros; a parceria não pode funcionar
quando a balança pende claramente para um dos lados.
A relação de dependência das organizações nacionais em relação às internacionais é
clara a vários níveis, seja ao nível mais básico dos fundos de financiamento, seja da
agenda ou das competências técnico-profissionais e domínio dos métodos, canais,
linguagem e “doutrinas” internacionais do desenvolvimento. A clara supremacia das
internacionais a todos estes níveis traduz-se num óbvio domínio sobre os seus supostos
parceiros nacionais, ainda para mais sabendo-se que a maioria das OSC internacionais
tem um duplo papel, sendo ao mesmo tempo instituições financiadoras (ou interme-
diários dos grandes doadores internacionais) e implementando projectos, dominando
o processo desde a fonte até aos “consumidores finais”. Este duplo posicionamento
tem inúmeras vantagens, mas contribui igualmente para uma solidificada ascendência
das ONG internacionais sobre as nacionais.
Anacleta Pereira i ONG Internacionais e Nacionais: Que Parceria? 291

A postura das organizações internacionais a trabalharem no terreno é, por sua vez,


dependente dos grandes doadores internacionais — organizações governamentais ou
inter-governamentais —, que também eles têm os seus próprios objectivos, traçados
em termos de políticas de ajuda ao desenvolvimento e que variam ao longo do tempo,
não só consoante as doutrinas de desenvolvimento mais em voga, mas também em
função dos interesses dos governos envolvidos, das relações de poder que se estabe-
lecem no seio das organizações intergovernamentais, da conjuntura internacional, da
geo-estratégia dos recursos minerais, etc.
Deste modo, regra geral, a postura e os projectos das organizações internacionais no ter-
reno são normalmente de curto prazo. As agendas e os objectivos mudam, e as linhas de
financiamento terminam ou alteram-se nas áreas alvo. Igualmente se alteram as regiões
e países do mundo beneficiários e os parceiros nacionais ficam à mercê de todas estas
alterações nas diversas variáveis, pouco podendo fazer para modificarem a sua condição
de figurantes, mais do que de protagonistas. Em última análise, claro está que os mais
afectados pela falta de constância e estabilidade ao nível da política de cooperação, ajuda
e desenvolvimento, serão as populações com quem se trabalha e cujos interesses deveriam
ser prioritários em relação a tudo o resto. Infelizmente sabemos que, na prática, são as
populações a parte mais passiva de todas estas complexas relações.
As organizações — nacionais e internacionais — não desenvolvem estratégias de acção
de longo prazo e quando falo em estratégias de acção de longo prazo estou a olhar
para horizontes temporais de 8 a 10 anos. Se olharmos para as circunstâncias do país,
é óbvio que com planos de acção de curto prazo (1 a 2 anos), nós não conseguimos
um desenvolvimento sustentável da capacidade das OSC nacionais. As OSC não
conseguem implementar ou desenvolver o seu trabalho, porque só implementando
projectos mais longos elas conseguem depois fazer monitorização e avaliação capaz.
Também não conseguem ter uma noção exacta e precisa relativamente aos pontos
fracos e fortes do seu trabalho e alterarem-nos em conformidade. Com planos de curto
prazo lançam-se para o mercado produtos absolutamente efémeros, que se consomem
rapidamente e sem deixar rasto.
O paternalismo é uma outra característica presente nas relações de várias organizações
internacionais com os seus “parceiros” nacionais. Relações de muita proximidade,
protecção e intimidade, levam por vezes à perpetuação de deficiências de funciona-
mento e debilidades estruturais das organizações nacionais como, por exemplo, o
incumprimento de regras contabilísticas rígidas na apresentação de contas internas,
de planeamento e apresentação de projectos. Muitas das práticas menos correctas do
ponto de vista contabilístico e metodológico na apresentação dos relatórios dos pro-
jectos, perpetuam-se em várias organizações nacionais, depois corrigidas pelos seus
“parceiros” internacionais.
Do mesmo modo, algumas acusações de desvios de verbas de projectos, de que têm sido
alvo algumas ONG nacionais, encontram uma certa desculpabilização, condescendência e
branqueamento por parte de muitos “parceiros” internacionais, que deste modo em nada
contribuem para a credibilização externa das ONG. Este tipo de postura de várias ONG
internacionais, ajuda a perpetuar a ideia preconceituosa — quase de tipo neo-colonial —
que os doadores externos têm, segundo a qual, sem a intermediação, supervisão e “fis-
calização” das internacionais, a maioria das nacionais cairá num desvario de corrupção,
predominante noutras áreas da sociedade. Esta ideia é tanto mais preconceituosa quanto
sabemos que existem igualmente práticas menos correctas — a vários níveis — em várias
292 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

organizações internacionais a actuarem em Angola. Em relação a este problema, penso


inclusive que seria útil convidar as OSC, em particular as ONG (nacionais e internacionais),
para uma mesa redonda que discutisse estes problemas de forma aberta e clara e criasse
um mecanismo de acompanhamento destas situações. Práticas incorrectas conduziriam
naturalmente à diminuição ou corte de financiamentos para os prevaricadores e isso teria
uma força enorme no saneamento dessas práticas. A transparência deve começar por nós
mesmos e um processo de acompanhamento e correcção de situações menos correctas
contribuiria para a triagem e capacitação das OSC angolanas.
Por fim, a atitude de condescendência e paternalismo presente em muitas das organi-
zações internacionais em relação às nacionais, manifesta-se ainda na preferência que
dão a algumas das nacionais para serem seus parceiros privilegiados na maioria dos
projectos, impedindo o surgimento de outras organizações e de se alargar o leque de
actores da Sociedade Civil (SC) para além dos habituées. Esta prática acaba por im-
pedir a revitalização da SC, facto que me preocupa de sobremaneira, na medida em
que começa a ser óbvia a necessidade de revitalização e de quebrar com alguns vícios
instalados no seio das OSC angolanas e do domínio deste espaço por um pequeno
número de organizações em regime de quase “oligopólio”.
Deste modo, o envolvimento de curto prazo das internacionais, na base de projecto-
-a-projecto, com alterações periódicas das agendas e das áreas de intervenção, a par
de uma atitude paternalista e condescendente, contribui para impedir um desenvol-
vimento sustentável das nacionais, que lhes permita realizar a plenitude das suas
capacidades e evoluir para uma situação de rompimento em relação à dependência a
que estão sujeitas, tornando-as mais autónomas.
A falta de uma agenda independente das OSC angolanas constitui uma debilidade
grave, mas é um problema que só se resolve se estas organizações forem efectivamen-
te profissionais, profissionalizantes, autónomas e relativamente auto-suficientes em
todos os sentidos — financeiramente e em termos da capacidade e competência dos
seus recursos humanos.
A própria realidade sócio-político-económica angolana pede uma intervenção e uma
postura de médio/longo prazo. Qualquer análise daquela realidade rapidamente
chegará a uma conclusão óbvia, segundo a qual as inúmeras deficiências e debilidades
graves de que padece não são ultrapassáveis no curto prazo, tratando-se comummente
de problemas estruturais que, entre outros factores, resultam de todo um passado de
guerra que desestruturou inúmeros sectores, a começar pelo sector produtivo, edu-
cativo, de saúde, habitação, etc.
Uma vez ultrapassada a fase de emergência, com o fim da guerra, é agora tempo de
uma postura de planeamento e de intervenção de médio/longo prazo; de programas
sustentáveis no tempo e no terreno, na vida das comunidades. A postura terá de ser
necessariamente diferente. As agendas terão cada vez mais que ser determinadas a
partir de dentro e da base, a partir das necessidades concretas, estruturais e de fundo,
das populações, numa perspectiva da sua resolução a médio e longo prazo. Não quero
com isto dizer que tenham deixado de existir necessidades prementes e que problemas
básicos de subsistência se tenham resolvido definitivamente, continuando a existir situ-
ações graves do ponto de vista nutricional e de acesso a cuidados de saúde primários.
Contudo, julgo que a postura e o envolvimento das organizações internacionais e das
nacionais terá de ter horizontes temporais mais vastos e sustentáveis, embora não dei-
Anacleta Pereira i ONG Internacionais e Nacionais: Que Parceria? 293

xando de denunciar e combater as situações de má nutrição, fome e falta de cuidados


de saúde básicos, que ainda atormentam o dia-a-dia de muitas populações.
Naturalmente que ao chegarmos à conclusão de que a grande necessidade de actuação
é agora estrutural, de médio/longo prazo, voltamos ao problema da falta de capacidade
das ONG angolanas para implementarem projectos de longo prazo. Salvo raríssimas
excepções, as ONG angolanas não possuem esta capacidade e competência, devido,
entre muitos outros factores, ao referido tipo de relação de dependência e subalterni-
dade que mantêm com as suas “congéneres” internacionais.
Aqui percebe-se o círculo vicioso em que muitas caem e o percurso cíclico de uma
existência ao sabor dos financiamentos e projectos que vão ou não surgindo. Várias
emergem com um determinado parceiro, no âmbito de um determinado projecto, mas
desaparecem quando o projecto termina ou quando se esgotam os recursos.
Estou aqui a falar essencialmente da realidade de Luanda, porque se tratarmos da
mesma questão no interior do país, o quadro passa a ser muito mais dramático a
todos estes níveis.
Relembro que não estou a sustentar que todas as fraquezas e debilidades das OSC nacio-
nais sejam da responsabilidade da relação que mantêm com as internacionais, tendo plena
consciência de que sem esta relação as OSC angolanas estariam provavelmente muito pior.
Apenas quero realçar que este tipo de relação pode e deve ser alterado nos aspectos refe-
ridos, se quisermos tirar o máximo partido da preciosa colaboração que as organizações
internacionais podem prestar ao reforço da sociedade civil e da democracia em Angola.

2 – Estratégias Aglutinadoras de Parceiros Nacionais e Internacionais


Não obstante um debate alargado entre parceiros nacionais, internacionais e sociedade
em geral, que é necessário realizar, existem, na minha perspectiva e desde logo, quatro
áreas importantes em que se pode concretizar o novo tipo de relacionamento entre
OSC nacionais e internacionais.

2.1 – Responsabilidade social das empresas


Uma primeira área de intervenção consistirá na tão em voga responsabilidade social das
empresas e na forma como se relacionam com os projectos das OSC. Como sabemos, as
mais rentáveis empresas a actuar no país têm capital estrangeiro ou são mesmo empresas
estrangeiras, tanto ao nível do sector mineral (petróleo e diamantes), como do sector
financeiro (banca). A este nível, a capacidade de pressão, lobby e advocacia das OSC in-
ternacionais é muito superior às OSC nacionais, podendo intervir nos seus respectivos
países (governos e opinião pública) no sentido de uma maior responsabilização das
grandes empresas a actuarem em Angola e dos sectores e áreas que devem apoiar.
Todos sabemos que existem algumas organizações da sociedade civil que trabalham na
esfera de influência do poder estabelecido e que normalmente beneficiam mais destes
fundos sociais do que todas as outras; esta tendência tem de ser invertida para que aqueles
fundos cheguem efectivamente às OSC angolanas politicamente autónomas e com uma
agenda politicamente independente. Há que tornar estes fundos conhecidos e criar meca-
nismos transparentes para acedê-los, mecanismos que assegurem que efectivamente estes
fundos são utilizados para reforço das capacidades da sociedade civil e para benefício das
populações, independentemente das agendas políticas internas ou externas.
294 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

A SC precisa de recursos em qualquer país do mundo e a este nível o aspecto jurídico


poderá ser importante. Na África do Sul e em muitos outros países do Norte da Eu-
ropa e do continente Norte-Americano, a relação entre as OSC e o sector empresarial
está determinada juridicamente por leis de filantropia, mecenato etc. que incentivam,
e nalguns casos até compelem de certa forma, o sector privado a apoiar as OSC em
troca de benefícios fiscais ou outros. Sem ter um mecanismo deste tipo em Angola,
a sociedade civil vai continuar a depender dos doadores internacionais ao mesmo
tempo que o próprio governo financia/apoia as organizações da sociedade civil que
lhe são mais próximas.
Neste momento, apenas as empresas petrolíferas beneficiam desta possibilidade de
reduzir o seu nível de impostos ao Estado mediante os seus investimentos sociais,
nenhum dos outros actores na economia tem esta possibilidade. Contudo, caso se crie
legislação fiscal que enquadre e generalize esta possibilidade para todas as empresas e
sectores económicos, poder-se-á assim dar um impulso importante para a autonomia
política e financeira das OSC.
As organizações nacionais e internacionais poderão juntar-se em torno de uma cam-
panha em favor de um quadro jurídico para regulamentar de forma clara e transpa-
rente este tipo de iniciativa legislativa. Os fundos devem ser disponibilizados através
de mecanismos transparentes que não coloquem a sociedade civil numa posição de
clientelismo em relação a certos poderes, sejam nacionais governamentais/partidários,
sejam internacionais governamentais/corporativos.

2.2 – Networking regional e internacional


Uma segunda área importante de actuação articulada com os parceiros externos tem a
ver com o acesso das organizações nacionais aos mecanismos regionais e internacionais,
que existem e que podem facilitar um processo de mudanças no país. Podemos a título
de exemplo referir a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, os próprios
mecanismos da SADC, organismos das Nações Unidas, da União Africana e da União
Europeia ou mesmo outras organizações da sociedade civil de países da região. Recente-
mente, organizámos um seminário sobre mecanismos regionais de protecção dos Direitos
Humanos e percebemos que não há registo de nenhuma ONG angolana que tenha recorrido
à Comissão Africana para apresentar qualquer queixa. Em meu entender, isto deve-se não
só à fraqueza das OSC angolanas, mas também e sobretudo ao seu isolamento regional e
mesmo internacional, sendo pouco capazes de se articularem com congéneres regionais
ou de conhecer e utilizar os mecanismos internacionais existentes.
Os parceiros externos podem facilitar este acesso aos mecanismos regionais e inter-
nacionais e ajudar a quebrar o isolamento das OSC angolanas. Ainda que as decisões
e posições dos mecanismos internacionais de protecção dos Direitos Humanos não
tenham força vinculativa para os governos visados, constituem uma forte fonte de
pressão que poderá de sobremaneira ajudar a galvanizar mudanças, especialmente
quando veiculada pelos media nacionais e internacionais.

2.3 – Pesquisas e análises independentes


A terceira área que aqui enfatizaria seria a das pesquisas, estudos e análises indepen-
dentes, feitas por parte das OSC como contraponto aos números apresentados pelo
governo. É preciso conhecer a realidade, Angola está afogada em literatura cinzenta,
Anacleta Pereira i ONG Internacionais e Nacionais: Que Parceria? 295

com estimativas de toda a espécie, em muitos casos sem as bases mínimas em termos
de estudos quantitativos e de levantamento de dados. É uma literatura que prolifera
com citações de citações, que de tanto se reproduzirem se tornam dados empíricos
aceites pela maioria como fidedignos, sem sabermos exactamente a metodologia e o
rigor que estiveram na base da recolha dessa informação.
Outro dos problemas que podemos constatar a este nível da produção do conhecimento
da realidade, diz respeito à necessidade de reforçar os mecanismos de participação
nestas pesquisas e de alargar o leque daqueles que podem contribuir para a sua pro-
dução. Esta é uma área em que os parceiros externos poderiam dar uma grande ajuda
devido às suas competências técnicas e às suas possibilidades de financiamento. Muitas
organizações internacionais a trabalharem em Angola, têm financiado e produzido
estudos importantes sobre variadíssimas áreas da realidade social, política e económica
de Angola, mas nem sempre os tornam públicos e raramente vemos estes estudos (por
vezes complementares) articulados uns com os outros ou continuados no tempo. São
parcelares, isolados e de restrita circulação.
Para além da articulação e da continuidade, outro aspecto crucial do conhecimento é
a sua utilidade, a sua aplicação prática. Os estudos e pesquisas não devem ser vistos
como um fim em si mesmos, mas como uma base para o desenvolvimento de campa-
nhas, de acções, que promovam mudanças sociais. Conhecer a realidade a fundo para
depois poder agir sobre ela com fundamento.
Ao nível das OSC, tem-se muitas vezes colocado em causa e apontado as insuficiências
dos dados apresentados no relatório de progresso dos Objectivos de Desenvolvimento do
Milénio (ODM), produzido pelo governo em conjunto com o PNUD, em 20051. Contudo,
estas objecções constituem apenas suspeitas, mas não existem pesquisas concretas que
possam validar essas suspeitas. Uma campanha de acompanhamento dos progressos
dos ODM em Angola poderia servir de projecto charneira para incentivar a pesquisa
por parte das OSC (nacionais e internacionais), incluindo centros de pesquisa das uni-
versidades. Seria uma visão alternativa, uma posição da sociedade civil. Obviamente
que as OSC não têm capacidade financeira e logística que possa abarcar uma pesquisa
exaustiva e completa em todo o país e em todas as áreas correspondentes aos objectivos
do milénio, mas poderemos pelo menos estudar algumas comunas e municípios que
sirvam de estudo de caso concreto e teríamos uma amostra altamente significativa para
contrapor aos dados oficiais, confirmando-os ou infirmando-os.
O mesmo tipo de raciocínio poderá ser aplicado à questão específica da transparência.
Tem-se falado muito entre OSC nacionais e internacionais na possibilidade de apoiar
um estudo sobre transparência, começando pela questão concreta do acompanhamento
da execução e implementação do Orçamento Geral do Estado, mas este estudo terá
que servir uma campanha paralela de tentativa de influenciar a política pública no
sentido do rigor orçamental. Não serve de nada o estudo e o acompanhamento sem
a intervenção pública e social em favor do rigor.
Estas pesquisas poderiam e deveriam ser realizadas em coordenação com outros
mecanismos regionais e numa base comparativa com outros países da região (como
o Peer Review Mechanism do NEPAD e outros semelhantes ao nível da SADC). Só faz
sentido a pesquisa se nós olharmos também para mecanismos regionais, uma vez que

1
Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, relatório de progresso, 2005 (Luanda: Governo de Angola e PNUD).
296 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

esta problemática dos ODM, incluindo a boa governação, tem que ser desenvolvida
também no âmbito regional.
Um tal exercício objectivaria os argumentos que têm vindo a ser expostos ao longo
deste texto, para dinamizar e fortalecer a SC e para reequacionar a relação com os
parceiros externos.

2.4 – Divulgação e difusão da informação


Por fim, mas não menos importante, gostaria de realçar a área da divulgação/difusão
da informação, tanto para suprimir as deficiências que temos a nível da consciência
crítica pública informada, que possa opinar sobre as questões levantadas pela agenda
político-económico-social, como igualmente para uma melhor articulação entre as
OSC angolanas, defesa das suas agendas próprias e para articulação com as nossas
congéneres regionais.
Ainda que existam formalmente e legalmente mecanismos de controlo do poder pú-
blico, tais como a Procuradoria-Geral da República, o Provedor de Justiça, o Tribunal
de Contas e outros, o certo é que a autonomia política do sistema judicial no seu todo
deixa muitas dúvidas — já por demais referida por inúmeros autores, analistas e juristas
da nossa praça — e não assegura a efectividade do papel de controlo que era suposto
exercerem. Estes mecanismos existem de jure, mas não de facto. Apesar de todos os
constrangimentos, debilidades, deficiências e insuficiências, as únicas instituições que
têm feito este papel são os media privados e o impacto que têm nalguma (ainda que
geográfica e demograficamente limitada) opinião pública2. É neste sentido que é im-
portante o apoio aos media alternativos, tentando capacitar os que existem actualmente
e incentivar o surgimento de mais jornais, mais rádios e quiçá canais alternativos de
televisão, não só de âmbito nacional, mas principalmente de cariz comunitário.
Para a capacitação da sociedade civil é necessário alimentá-la de informação e que ela
possa igualmente fazer-se ouvir dentro e fora do país. O esforço conjunto de reforço
das OSC e de mudança social, entre parceiros nacionais e internacionais, tem que ter
igualmente em conta a necessidade de acompanhamento dos temas suscitados para
mantê-los na agenda pública política e social, desenvolvendo acções em que se possa
confrontar as instituições do Estado. A título de exemplo, o relatório do Rafael Marques
sobre as Lundas3 e a exposição que faz das práticas das empresas de garimpo, das
empresas de segurança e de toda a grave situação que se vive naquelas províncias,
serviu para confrontar as instituições e os responsáveis com esses factos. Ainda que
os visados neguem insistentemente as acusações de que são alvo, é importante este
confronto directo com uma determinada realidade porque isto alimenta a discussão,
mantém-na viva, na ordem do dia, permitindo que outros actores possam eventual-
mente ser levados a intervir. E leva também a alterações nos comportamentos denun-
ciados, ou porque os seus perpetradores se controlam um pouco mais, ou porque as
empresas se vêm na necessidade de construir mais uma escola, equipar o centro de
saúde, etc. Algumas alterações acabam por ocorrer e aos poucos vamos tendo algumas
mudanças. O mesmo se poderá dizer acerca de outros problemas prementes como o
HIV/SIDA, a transparência e a boa governação, o processo eleitoral, etc. Não deixar
2
Temos de ter consciência das limitações geográficas e demográficas dos media alternativos em Angola: os jornais
privados circulam essencialmente em Luanda e a Rádio Ecclesia está impedida de emitir fora de Luanda.
3
Marques, Rafael, Operação Kissonde: Os Diamantes da Humilhação e da Miséria, Cuango, Lunda-Norte Angola (Lisboa:
Edição do autor, 2006).
Anacleta Pereira i ONG Internacionais e Nacionais: Que Parceria? 297

morrer os assuntos levantados pela sociedade civil, mantendo-os na agenda do dia, é


realmente importante para que se consiga alterar a realidade.
Existe uma necessidade premente das OSC comunicarem, tornando visível o seu tra-
balho no interior e no exterior do país e, também, de saber o que as nossas congéneres
estão a fazer a nível regional e internacional. Passos concretos poderão ser dados com
a ajuda das ONG internacionais. Não existe, por exemplo, uma newsletter online que
congregue e divulgue em português e inglês o que de mais relevante se passa ao nível
da sociedade civil em Angola (seus temas, acções, agendas, projectos, etc.) e o que de
mais relevante acontece nos organismos da União Africana, União Europeia, SADC,
Nações Unidas, com interesse para as OSC Angolanas. A dispersão e o parcelamento
da informação constitui um obstáculo sério ao processo de networking das OSC ango-
lanas, entre si e com o exterior (regional e internacional).

3 - Deficit de Debate, Participação e Intervenção Pública


Existe um deficit gritante de participação pública em Angola e é urgente estimular e pro-
mover esta participação. O desafio premente e urgente ao nível da sociedade angolana é
o de as pessoas se convencerem que têm efectivamente poder. As pessoas não acreditam
que têm poder e que a sua intervenção, coordenada e articulada através de mecanismos
adequados, pode ser galvanizadora de mudanças concretas, para si e para a sociedade
em geral. É esta falta de crença na eficácia da intervenção e participação pública e na
acção colectiva que explica a actualmente dominante apatia e descrença geral em relação
às questões públicas. As pessoas não acreditam; o que é isto de sermos poder? O que é
isto de participação pública? Como é que nós, gente simples que nunca teve influência
nem riqueza, pode intervir socialmente até ao ponto de provocar uma mudança e que
essa mudança possa efectivamente levar a alterações políticas concretas e significativas,
ao afastamento de um dirigente corrupto ou incompetente? Como é que as pessoas que
sempre se habituaram a ver as instituições como movidas apenas por contactos pessoais
e informais, poderão acreditar que as podem pôr a funcionar com base nas leis existentes,
de acordo com a justiça e o Direito? As pessoas não acreditam nisso.
O mesmo problema de fundo explica a generalizada falta de voluntarismo para o
serviço cívico, em favor de causas sociais, colectivas. As pessoas consideram uma
perda de tempo, consideram que para além de esse esforço nada alterar, não é da sua
responsabilidade, numa sociedade cada vez mais dominada pelo espírito de cada um
tentar “safar-se” como pode. Esta postura, esta mentalidade e este estado de espírito,
têm que ser alterados se queremos de facto construir uma sociedade democrática.
Antes de mais, há que debater de forma alargada, a nível interno, no seio da socie-
dade civil, o que se quer mudar e o que se quer construir. Os resultados deste debate
interno deverão depois ser respeitados ao nível das parcerias, agendas e projectos que
se venham a estabelecer com os parceiros externos.
O debate que se pretende é um debate profícuo, que possa conduzir a mudanças sociais.
Precisamos de criar a nível da academia um terreno fértil para fazer nascer, alimentar
e desenvolver organizações, fóruns ou outro tipo de agremiações, que efectivamente
sejam promotores da mudança. Não é um debate pelo debate, é um debate que pro-
duza mudança. Que tipo de mudança? A mudança que as pessoas entenderem como
necessária no quadro desta reflexão e discussão alargada. É necessário estimular a
participação pública, que traga novos actores sociais para o centro da discussão para
298 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

a dinamizar e retirar do domínio quase que exclusivo de alguns. O debate de inter-


venção social, nas suas diferentes componentes, cristalizou-se praticamente em torno
de determinados actores que são sempre os mesmos. Isto provoca certos vícios e certo
imobilismo. Fazer crescer a democracia, seja ela qual for, necessita de uma pluralidade
de actores e opiniões para dinamizar o debate e estimular a reflexão.
Olhando para a experiência de outros países, o debate social alargado poderá começar
pelas universidades — centros de juventude, reflexão, debate e contestação por excelên-
cia. É um debate que se quer alargado aos diversos quadrantes da sociedade civil, não
só às ditas OSC e seus activistas, mas às pessoas em geral, não só nas cidades como nas
áreas rurais. Naturalmente que num país como Angola, com uma SC ainda emergente,
com todo um passado de inexistência de liberdades cívicas e de prática da cidadania,
não podemos esperar uma adesão imediata e massiva das populações a um tal debate
e teremos de contar com pólos dinamizadores e propagadores da discussão e da parti-
cipação, daí a ideia das universidades como ponto de partida dinamizador.
Na áreas rurais, as pessoas com credibilidade nas comunidades podem servir de cata-
lizador inicial do debate, como sejam o professor, o enfermeiro, o pároco, etc., pessoas
em torno das quais gira a vida nessas pequenas comunidades. Estas pessoas têm uma
maior facilidade de iniciar o debate.
Uma dinâmica de debate, com a ajuda e o apoio dos parceiros externos, poderá criar
as sinergias necessárias para um grande movimento social de mudança para uma
sociedade mais democrática. Logicamente que se trata aqui de um processo lento, de
médio/longo prazo e que não encaixa nas estratégias de curto prazo que dominam
as agendas dos parceiros externos. Contudo, temos de ser realistas e sérios e assumir
que, tal como se poderá perceber da leitura de vários outros textos deste livro, não é
possível alterar o actual status quo no curto prazo.

4 - As Eleições e a Sociedade Civil


Neste momento as eleições são o tema quente da agenda política e da agenda nacional,
mas não as podemos encarar, a nível nacional ou internacional, como um fim em si
mesmo. São um momento importante, mas por si só não vão assegurar uma maior
democratização do país.
No seguimento do que vem sendo exposto, existem várias condicionantes conjunturais e
estruturais que impedem uma alteração imediata do status quo vigente. Eleições multipar-
tidárias serão um passo necessário num processo de implementação de uma democracia,
mas de longe suficiente em si mesmo. Não obstante, o processo eleitoral pode servir de
aglutinador e dinamizador de estratégias de intervenção das OSC nacionais e interna-
cionais. Independentemente de a comunidade internacional (Nações Unidas e União
Europeia) não terem ainda sido oficialmente convidadas a participar no acompanhamento
do processo eleitoral, é de todo importante que as OSC angolanas e internacionais desen-
volvam alianças, movimentos alargados de solidariedade social, em torno de uma causa
comum, que terá de começar por ser generalista, como o reforço da democratização. Mais
uma vez repito que a agenda terá de ser essencialmente a agenda das OSC angolanas,
sem imposições ou condicionalismos externos. O papel das organizações internacionais
(governamentais e não governamentais) deverá ser de facilitador.
Dado o constante adiamento das eleições, estas poderão eventualmente constituir-
se como denominador comum, aglutinador das OSC angolanas e da solidariedade
Anacleta Pereira i ONG Internacionais e Nacionais: Que Parceria? 299

internacional. Até 2002 existiu um tal denominador aglutinador da sociedade civil,


consistindo na busca pela paz, no fim da guerra, e isso galvanizava as pessoas de to-
dos os extractos sociais e quadrantes, independentemente de estarem vinculados ao
partido no poder, à oposição ou de serem funcionários públicos. As eleições poderão
ser o pólo dinamizador de um grande movimento social, independentemente dos
partidos envolvidos ou sequer dos resultados eleitorais. O importante será finalmente
a realização do pleito eleitoral com ampla participação popular, dentro de métodos e
processos transparentes, claros e internacionalmente reconhecidos.
Naturalmente que no âmbito de um processo eleitoral livre e aberto, muitas das ou-
tras questões que têm vindo a fazer parte da agenda da SC — como a necessidade do
combate à pobreza, o emprego formal, a saúde, a educação, o saneamento básico, a
transparência e boa governação, etc. — serão levantados e discutidos publicamente,
servindo assim o propósito da democratização.

5 - Organizações da Sociedade Civil e Relações Intergovernamentais


Para além de todas as estratégias que se possam delinear entre OSC nacionais e in-
ternacionais, existe a dimensão das relações intergovernamentais que, especialmente
no caso de Angola, influencia decisiva e directamente quaisquer relações entre OSC
nacionais e internacionais. Tal como analisado por diversos autores, os interesses eco-
nómicos internacionais envolvidos em Angola, a geo-estratégia dos recursos naturais,
especialmente no que se refere aos combustíveis fósseis (petróleo), têm condicionado
grandemente a diplomacia Ocidental em Angola. Por outro lado, e apesar de todas as
insuficiências, os principais apoios das OSC nacionais são as OSC internacionais e os
principais doadores, sejam governos Ocidentais, sejam organizações internacionais
intergovernamentais, como as Nações Unidas e a União Europeia. O desenvolvimen-
to das OSC angolanas vai em grande parte depender da capacidade de lobby junto
daqueles apoios e junto do governo angolano, seja directamente, seja por intermédio
dos governos Ocidentais (usualmente mais sensíveis a questões de Direitos Humanos
e sociedade civil), organizações e instituições internacionais (igualmente preocupadas
com questões de Direitos Humanos).
Neste sentido, existe uma necessidade concreta de pensar a relação entre OSC na-
cionais e internacionais também numa dimensão externa ao país, exercendo pres-
são e procurando influenciar a política externa dos principais doadores (governos
e organizações). As pressões para a democratização têm de se fazer sentir sobre as
estruturas governativas nacionais e internacionais, mas percebendo, mais uma vez,
que nesta estratégia das OSC tem que existir uma verdadeira parceria entre orga-
nizações nacionais e internacionais, sempre subordinada às agendas das nacionais
que não têm de ser consideradas na menoridade, nem precisam de intermediários
para o exterior. Precisam de parceiros para melhor se fazerem ouvir no exterior.
Tratar-se-iam de parcerias ou de alianças que efectivamente pudessem influenciar as
relações que se estabelecem entre os governos (o angolano e os restantes), no sentido
de obter mudanças visando a democratização. Até agora, a este nível não se sente
intervenção significativa. Esta é a solidariedade externa que é necessária.
301

Responsabilidade Social
das Empresas em Angola

Manuel Paulo
Universidade
de Middlesex - Faculdade
E ste artigo procura discutir sucintamente a aplicabili-
dade da responsabilidade social das empresas (RSE)
em Angola, encontrando-se estruturado em duas partes: a
de Gestão de Empresas, primeira faz uma resenha da RSE; a segunda discute o tema
Londres no contexto angolano.

1 - Breve Introdução à Responsabilidade Social


das Empresas (RSE)
Reconhece-se cada vez mais que as empresas têm respon-
sabilidades sociais que vão para além da maximização dos
lucros e a última década assistiu a um fenomenal acréscimo
das iniciativas de RSE por parte das multinacionais. Alguns
estudos de autores como Harrison e Freeman1, Barret2 e Do-
naldson e Preston3 demonstraram que o desempenho social
das empresas depende — em grande parte — da extensão da
sua orientação e dos seus valores sociais enquanto empresa.
Hoje em dia as empresas incorporam a noção de RES e tomam
medidas para reformar os seus sistemas de gestão, dotando-
os de maior capacidade de resposta às preocupações sociais
e ambientais de vários grupos de interesse e pressão. A RSE
não consiste apenas em doações filantrópicas à comunidade
quando os lucros são altos, é, sim, uma forma responsável
de tomada de decisões e de formas de agir empresariais em
todas as áreas de actividade da empresa4.
A RSE é uma área de estudo que tem sido objecto de um
crescente interesse entre académicos e profissionais da área,
em particular a responsabilidade em relação à sociedade. O
debate sobre a RSE na comunidade académica teve início em
1902, quando se defendeu que a RSE estava a ser usada como
instrumento para desencorajar a crítica pública e a criação
de regulamentação e que não nascia de uma preocupação

1
Harrison, J. G. & Freeman, R. E. (1999), Stakeholders, social responsibility,
and performance: Empirical evidence and theoretical perspectives. Academy of
management Journal, Vol. 42, N.º 5, pp. 479 – 485.
2
Barrett, Richard (1998). Liberating the Corporate Soul: Building Visionary Organization.
Oxford: Butterworth Heinemann.
3
Donaldson, T. and Preston, L. E. (1995), “The Stakeholder Theory of the
Corporation: Concepts, Evidence, and Implications.” Academy of Management
Review, Vol. 20, N.º 1.
4
Freeman, R. E. (1984). Strategic Management: A Stakeholder Approach. Boston Pitman
Publishing; também Greenley, G. E. and Foxall, G. R. (1997), Multiple stakeholder
orientation in the UK companies and the implication for the company performance.
Journal of Management Studies, Vol. 34, N.º 2, pp. 259-285.
302 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

real pelos problemas sociais5. Levitt argumentou que a RSE não é democrática e que,
assim, não seria eticamente correcto que os empresários assumissem qualquer auto-
ridade sobre a forma de lidar com os problemas sociais6. Para além disso, Dubbink
defendeu que a RSE não é democrática porque as empresas consideram ser da sua
discricionariedade a escolha de agir ou não de forma socialmente responsável e porque
a sociedade não tem mecanismos para as obrigar a agir nesse sentido7.
Davis sugeriu que as empresas que não ajam de acordo com valores sociais acabarão,
eventualmente, por perder a legitimidade de existirem e não irão sobreviver8; Carrol
e Mintzberg9 chamaram a atenção para o facto de que as empresas têm um impacto
significativo na sociedade em que se inserem e que têm de reconhecer as implicações
sociais da sua presença uma vez que os governos não são suficientemente fortes para
lhes imporem obrigações sociais. Barnard referiu que o objectivo das empresas era
servir a sociedade e que era da responsabilidade dos governos estimular esta noção
de desígnio moral nos empregados da empresa, havendo a necessidade de existirem
directores públicos nomeados pelo governo nas grandes companhias, para tornar mais
precisa a vaga ideia de responsabilidade social das empresas e para tornar a gestão
empresarial mais compatível com os princípios democráticos10.
O papel das empresas na sociedade tem sido uma preocupação já há algum tempo.
Heald chamou a atenção para o facto da integração das responsabilidades sociais no
mundo dos negócios ter começado a surgir durante as décadas de 1880 e 189011. Foi
nessa altura que as grandes multinacionais começaram a assumir voluntariamente
as suas responsabilidades sociais chamando a si papéis filantrópicos, doando fundos
para a caridade ou apoiando financeiramente as actividades dos seus trabalhadores
como, por exemplo, o YMCA. O envolvimento das empresas com a sociedade permitiu
melhorar significativamente o bem-estar de diversas camadas sociais, especialmente o
bem-estar dos trabalhadores. Blowfield levantou a hipótese de que a RSE e o controlo
da ambição desmedida não são exigências novas no sector empresarial, mas que po-
dem ser encontradas já no século I a.C. no Ocidente, por pensadores como Cícero, bem
como por pensadores orientais, como Kautilya, no século IV a.C., quando o Islão e a
Igreja Cristã medieval se serviram de fóruns públicos para condenar algumas práticas
comerciais que consideravam erradas12. Para outros autores:
Os precursores modernos da RSE podem ser encontrados nos boicotes aos géneros alimen-
tícios produzidos com trabalho escravo durante o séc. XIX, na perspectiva moral de alguns
empresários como Cadbury e Marks e nos julgamentos dos crimes de guerra de Nuremberga

5
Heald, M, (1957), “Management’s Responsibility to Society: The Growth of An Idea”. Business History Review,
Vol. 31, N.º 4, pp. 122-126.
6
Levitt, T. (1958). ”The Dangers of Social Responsibility”. Harvard Business Review. (September/October),
pp. 41-50.
7
Dubbink, W, (2005), “Democracy and Private Discretion in Business”. Business Ethics Quarterly. Vol. 15, N.º 1.
pp. 37-66.
8
Davis, K. (1973), “The Case For and Against Business Assumption of Social Responsibilities”. Academy of Management
Journal, Vol. 16, N.º 2, pp. 312-322.
9
Carroll, A B. (1979), “A Three-Dimensional Conceptual Model of Corporate Performance”, Academy of Management
Review, Vol. 4, pp. 497-505; também Mintzberg, H, (1996), “Managing Government – Government Management”.
Harvard Business Review, May-June, pp. 75-83.
10
Barnard, C. (1938), The Function of the Executive. Cambridge: Harvard University Press.
11
Heald, M, (1957), “Management’s Responsibility to Society: The Growth of An Idea”. Business History Review, Vol. 31,
N.º 4, pp. 122-126.
12
Blowdfield. M. et al (2005), “Critical perspectives on Corporate Social Responsibility”, International Affairs Journal,
Vol. 81, N.º 3, pp. 500-513.
Manuel Paulo i Responsabilidade Social das Empresas em Angola 303

após a Segunda Guerra Mundial, onde os directores da empresa alemã I.G. Farben foram
considerados culpados de assassínio em massa e de recurso a trabalho escravo.13
No entanto, há académicos que traçam um paralelo entre o aumento de interesse na RES,
as mudanças institucionais e o reconhecimento do poder e autonomia relativa das grandes
multinacionais apoiadas pelo processo de globalização. De acordo com estes argumentos,
o processo de globalização fracturou a divisão do trabalho entre as empresas e o Estado, a
par do crescimento das Organizações Não Governamentais (ONG) — um veículo utilizado
para canalizar e exprimir o descontentamento social e político, um papel que os mecanis-
mos institucionais dos Estados em desenvolvimento são ainda incapazes de desempenhar.
A retracção estatal em relação ao seu papel de provedor de bem-estar sob a pressão de
crises fiscais e das ameaças (reais ou imaginárias) da globalização, significou que não se
podia mais contar com o Estado como fonte de protecção do bem-estar14.
Para além disso, a RSE é um conceito que tem sido manchado pela falta de uma de-
finição comum ou particular, aceite e aplicável no geral àquilo pelo qual as empresas
devem ser responsabilizadas ou como deve ser utilizado dentro de uma organização.
Apesar disso, podemos encontrar várias definições diferentes da RSE na literatura
e nos sítios da internet de várias agências de desenvolvimento, o que sublinha a
ambiguidade da sua definição e interpretação, dando, consequentemente, origem a
alguns problemas15. Uma das definições de RSE inclui limitar a maximização do valor
do capital dos accionistas como responsabilidade social, ou uma empresa que aja de
acordo com aquilo que a sociedade considera serem as suas responsabilidades16.
A título de exemplo, o Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável
(World Business Council for Sustainable Development – WBCSD) define a RSE como:
O compromisso das empresas de contribuir para o desenvolvimento económico susten-
tável, trabalhando com os empregados, com as suas famílias, com a comunidade local e
com a sociedade no geral para melhorar a sua qualidade de vida17.
Esta definição exige um envolvimento de grande alcance por parte das empresas em
relação à sociedade. O ênfase é claro, as empresas têm que ter em linha de conta mais
do que apenas o bem estar dos consumidores para poderem contribuir de forma mais
substancial e positiva para a sociedade em geral. Como resultado disto, as empresas
estão a alterar as suas estruturas de gestão para melhorar o seu desempenho social.
As diferenças nas definições de RSE realçam a flexibilidade que as empresas têm em
relação ao seu empenho na responsabilidade social, especialmente quando se deparam
com exigências para que incluam na sua acção questões tão variadas como os direitos
dos animais, a governação empresarial, a gestão ambiental, a filantropia empresarial,
a gestão dos interesses das diversas partes envolvidas, os direitos laborais e o desen-
volvimento comunitário. Como podemos verificar:

13
Blowdfield. M. et al (2005), “Critical perspectives on Corporate Social Responsibility”, International Affairs Journal,
Vol. 81, N.º 3, pp. 500-513.
14
Beck, U, (2000), The Brave New World of Work, Cambridge: Polity Press.
15
Gerrans, P and Clark-Murphy, M, “The Corporate Social Responsibilit and the Theory of the Firm”. School of
Accounting, Finance and Economics – Edith Cowan University and FIMARC Working Paper Series, N, 0505, October
2005.
16
Sen, S and Bhattacharya, C B. (2001), “Does Doing Good Always Lead to Doing Better? Consumer Reactions to
Corporate Social Responsibility”, Journal of Marketing Research, Vol. 38, pp. 225-244.
17
WBCSD, 2000, cit. in Blowdfield. M. et al (2005), “Critical perspectives on Corporate Social Responsibility”,
International Affairs Journal, Vol. 81, N.º 3, pp. 500-513.
304 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Grande parte dos que advogam a RSE, em particular aqueles que dirigem gigantescas
empresas internacionais, estudaram economia no seu tempo. Muitos dos quadros das
Nações Unidas, do Banco Mundial e da OCDE que defendem a RSE possuem graus
académicos das melhores universidades nesta matéria. No entanto, não conseguiram,
aparentemente, compreender esta perspectiva básica e indispensável do tema18.
Este argumento apresenta o dilema encontrado pelos administradores da empresas quan-
do tentam dialogar com partes interessadas nestes assuntos, para além dos accionistas,
especialmente quando abordam as questões específicas que daí decorrem, como sejam
a de saber quem são as partes interessadas? quais dessas partes interessadas devem ser
atendidas? quais dos seus interesses enquanto empresa são mais importantes?, como
se pode encontrar o equilíbrio entre os diversos interesses por vezes em conflito? que
montantes do capital da empresa devem ser aplicados para atender às responsabilidades
sociais da empresa?19. Assim, sai reforçado o argumento anteriormente exposto de que o
conceito de RSE não é democrático e é demasiado vago para ser considerado enquanto
objectivo da gestão das empresas20. Como podemos verificar:
A RSE é, normalmente, um embuste. Cabe aos governos e não às empresas decidir sobre
as questões da política social, ambiental e industrial — e os governos devem ter em
mente que se falharem nessa obrigação, a multinacional psicótica, muito provavelmente
escondida atrás da RSE, vai continuar a violar e a pilhar21.
É, portanto, difícil decidir qual das definições acima apresentadas é aplicável ao con-
texto angolano, uma vez que uma definição apropriada de qualquer disciplina ou
convicção política deve exigir o consenso entre académicos e profissionais da área e
deve funcionar sob qualquer modelo de empresa22.
Para além disto, têm existido exigências de incorporação de novos termos tais como presta-
ção de contas empresariais (corporate accountability), investimentos socialmente responsáveis
e desenvolvimento sustentável, que pretendem substituir, redefinir ou complementar o
conceito de RSE23. Ao mesmo tempo, surgiram, e continuam a surgir, uma série de códigos
de conduta voluntários, nomeadamente: O Pacto Global das Nações Unidas; a SA8000, as
directivas da OCDE, os Princípios Global Sullivan; a Ethical Trading Initiative, o Responsible
Care, as iniciativas do Banco Mundial — WBCSD initiatives e a Global Reporting Initiative
(apenas para citar alguns). Iniciativas destas continuam a surgir e têm sido subscritas
por grande parte das empresas para darem uma boa imagem de cidadania empresarial.
Apesar disto, o debate pró e contra o papel das empresas na sociedade e a interpretação
do que é a RSE tem aumentado significativamente, embora se mantenha muito centrado
sobre como é que as empresas podem incorporar e porque devem aceitar a RSE e quais
as implicações que tal atitude pode trazer para elas e para a sociedade.

18
Economist Intelligence Unit (2006) Country Report Angola, September 2006.
19
Jones, T.M, (1995), “Instrumental Stakeholder Theory: A synthesis of ethics and”. Academy of Management Review,
Vol. 20, N.º 2, pp. 404-438.
20
Friedman, M. (1962). Capitalism and Freedom, Chicago: University of Chicago Press, USA; Friedman, M. (1970),
“The Social Responsibility of Business is to Increase its Profits”, New York Times Magazine, 13 September, p. 32, cit in
Hemphill (1997, p. 53); Levitt, T. (1958). ”The Dangers of Social Responsibility”. Harvard Business Review. (September/
October), pp. 41-50.
21
Economist Intelligence Unit (2006) Country Report Angola, September 2006, p. 21.
22
Gerrans, P and Clark-Murphy, M, “The Corporate Social Responsibility and the Theory of the Firm”. School of
Accounting, Finance and Economics – Edith Cowan University and FIMARC Working Paper Series, N, 0505, October
2005.
23
Blowdfield. M. et al (2005), Critical perspectives on Corporate Social Responsibility, International Affairs Journal,
Vol. 81, N.º 3, pp. 500-513.
Manuel Paulo i Responsabilidade Social das Empresas em Angola 305

2 - Responsabilidade Social das Empresas em Angola


Actualmente e de acordo com o Economist Intelligence Unit (EIU), Angola é o segundo
maior produtor de petróleo de África — produzindo cerca de 1.7 milhões de barris/
dia, esperando-se que ultrapasse os dois milhões em 201024. A Agência Internacional
da Energia realça que as receitas do petróleo dominam a economia angolana, uma
vez que representam cerca de 80% a 90% do orçamento governamental e 52% do PIB
angolano (dados de 2004)25.
Angola iniciou a produção de petróleo em 1955, tendo o primeiro sucesso de explora-
ção acontecido em terra (onshore), na área do Kwanza. Em 1973 — no pico do choque
petrolífero — o petróleo tornou-se a principal exportação de Angola e nesse mesmo ano
a produção chegou aos 100.000 barris por dia, tendo depois continuado a aumentar,
atingindo os 359.000 barris/dia em 1987 e 450.000/dia em 1993, mantendo-se em ritmo
crescente e sustentado até aos dias de hoje. Este rápido aumento de produção desde os
anos oitenta é devido, em parte, à entrada de grandes investimentos e de conhecimentos
tecnológicos estrangeiros pelas principais companhias petrolíferas internacionais26.
As reservas confirmadas de petróleo angolanas estão actualmente calculadas em torno
dos 8.8 biliões de barris, mas estima-se que possam chegar a valores da ordem dos
30 a 40 biliões de barris. Para além disso, a maior parte do crude angolano é de alta
qualidade, com uma densidade entre os 32º e os 40º API, com um conteúdo de enxofre
entre 0,12% e 0,14%27.
É provável que o potencial de produção angolano se mantenha prometedor na próxima
década, devido à sua geologia favorável e ao grau de rentabilidade, aos recentes sucessos na
exploração e às condições fiscais relativamente atractivas, bem como aos recentes progressos
e expectativas na tecnologia de produção em águas profundas. A par de uma competição
internacional acesa pelos escassos recursos de hidrocarbonetos, estes factores ajudaram a
expandir o interesse pelo Golfo da Guiné como grande fonte de fornecimento de petróleo e
irão provavelmente assegurar que Angola se torne um exportador cada vez mais importante
para os mercados internacionais, particularmente para os Estados Unidos e a China28.
A maior parte das explorações petrolíferas angolanas situam-se offshore (no mar), longe
da observação da sociedade, minimizando assim a pressão da comunidade em relação
às companhias petrolíferas internacionais. De igual modo, a maioria das descobertas de
novas jazidas é feita pelas multinacionais do petróleo e só posteriormente anunciadas em
documentos oficiais ou nos media, mas sem muito impacto na opinião pública na medida
em que se tratam de operações longe da vista da maioria da população. Estas companhias
têm investido valores entre os 17 e os 23 biliões de dólares no período que vai de 2003 a
2008, sendo responsáveis por quase toda a produção de petróleo no país29. Apesar do seu
grande peso económico, as iniciativas de responsabilidade social das petrolíferas necessitam
do consentimento da Sonangol (empresa nacional de combustíveis de Angola).
A indústria petrolífera angolana rege-se por Acordos de Partilha de Produção (Produc-
tion Sharing Agreements – PSAs); neste enquadramento, as multinacionais do petróleo

24
Economist Intelligence Unit (2006) Country Report Angola, September 2006
25
International Energy Angecy, (2006), Angola Towards an Energy Strategy, Paris.
26
International Energy Angecy, (2006), Angola Towards an Energy Strategy, Paris.
27
British Petroleum (2005), Statistical Review.
28
International Energy Angecy, (2006), Angola Towards an Energy Strategy, Paris, pp. 81-82
29
International Energy Angecy, (2006), Angola Towards an Energy Strategy, Paris.
306 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

encarregam-se dos custos a montante e dos investimentos implicados no processo. A


elevada taxa de descobertas de petróleo inflacionou os bónus de assinatura de licenças.
Por exemplo, em 1999, os bónus de assinatura de licenças para os blocos 31-33, em
águas ultra-profundas, atingiram os 900 milhões de dólares e em 2006 espera-se que
os bónus de assinatura para licenças nos blocos 1-06, 5/06, 6/06, 18, 15, 18/23 e 26
tragam mais de 3 biliões de dólares ao erário angolano, implicando um investimento
de 400 milhões de dólares em iniciativas sociais.
O problema normalmente apontado para a actividade petrolífera em Angola é que as
actividades das multinacionais deste ramo têm gerado receitas volumosas, mas trouxe-
ram poucos benefícios para a maioria da população. Angola constitui um exemplo da
tese do paradoxo da abundância, que sugere que os países com uma forte dependência
em relação ao petróleo e outros recursos minerais têm um desempenho económico mui-
to pior do que aqueles que possuem escassos recursos30. Apesar de alguns dos novos
países produtores de petróleo terem um melhor desempenho económico em termos
de aumento do PIB, em consonância com o rápido aumento das receitas do petróleo,
os indicadores estatísticos do desenvolvimento social e económico da população em
geral demonstram que os lucros do petróleo não deram origem a uma distribuição
nacional alargada dos benefícios31.
Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas de 2005, Angola
ocupa a posição 160 entre 177 países avaliados, estimando-se que 68% da população
vive abaixo da linha de pobreza (situada nos 1.7 dólares/dia). A incidência da po-
breza é maior nas zonas rurais, onde afecta 94% da população em comparação com
os 57% afectados nas áreas urbanas. Uma pesquisa realizada em 2001 mostrou que
40% dos chefes de família estavam desempregados, ao passo que o desemprego nas
áreas urbanas se mantinha nos 46%32. Vários estudos relacionaram a situação acima
apresentada com a referida maldição dos recursos ou o paradoxo da abundância. A
maldição dos recursos significa que uma entrada acentuada de receitas derivadas do
petróleo ou de outros minérios pode tornar-se numa maldição e não numa bênção33,
principalmente se os países ricos em recursos não possuem as instituições necessárias
para lidar com essa “maldição”34. Tal fenómeno é uma realidade especialmente nos
novos países produtores de petróleo em África35. Vários outros estudos indicaram que

30
Karl, T. L. (1997) The Paradox of Plenty. Oil Booms and Petro-States. Berkely, CA: University of California Press.
31
Ross, M. L. (2001) Extractive Sectors and the Poor. Oxfam America Report. Los Angeles, CA: Oxfam; Bergesen, H. O.,
T. Haugland and L. Lunde (2000) Petro-states – Predatory or Developmental? FNI-report 11/2000 and ECON-report
62/2000, Lysaker/Oslo: Fridtjof Nansen Institute and ECON Centre for Economic Analysis; ECON (2000) Nature,
Power and Growth. ECON-report 3, Oslo, Norway: ECON Centre; Auty, R. M. (1999) Resource Abundance and Economic
Development. Research for Action 44. UNU World Institute for Development Economics Research (UNU/WIDER);
Collier, P. (2000) Economic Causes of Civil Conflict and their Implications for Policy (Washington, DC: The World Bank);
Collier, P. (2003) Breaking the Conflict Trap: Civil War and Development Policy (Washington, DC: The World Bank).
32
International Energy Agency, (2006), Angola Towards an Energy Strategy, Paris.
33
Auty, R. (2001), Resource Abundance and Economic Development, Oxford University Press; Auty, R. (1993), Sustaining
Development in Mineral Economies: The Resource Curse Thesis. Routledge, London; Sachs, J. D., and A. Warner (1995)
“Natural Resource Abundance and Economic Growth”. in Development Discussion Paper N.º 571a (Cambridge, MA:
Harvard Institute for International Development, Harvard University); Sachs, J.D and Warner, A.M., 2001. “The
Curse of Natural Resources”. European Economic Review. Vol. 45, Issue 4-6, May 2001, pp. 827-838.
34
Mehlum, H, Moene, K and Torvik, R, (2003), Institutions and the Resource Curse. Mimeo, University of Oslo and
Norwegian University of Science and Technology; Eifert, (2003), The Political Economy of Fiscal Policy and Economic
Management in Oil Exporting Countries. in Davis, Ossowski and Fedelino, 2003. Fiscal Policy Formulation and
Implementation in Oil-Producing Countries, IMF, 82:122.
35
Frynas J.G. (2005), “The False Developmental Promise of Corporate Social Responsibility: Evidence from
Multinational Oil Companies”. International Affairs Journal. Vol. 81, N.º 3, pp. 581-598; Hodges, T, (2001), Angola from
Afron-Stalinism to Petro-Diamond Capitalism, Oxford: James Currey.
Manuel Paulo i Responsabilidade Social das Empresas em Angola 307

a indústria do petróleo tem, na verdade, um impacto negativo no desenvolvimento


dos países que dependem da exportação do petróleo36.
O sector petrolífero em Angola fornece um interessante exemplo para compreendermos
o porquê de multinacionais petrolíferas, a actuarem num mesmo país e numa mesma
área, assumirem diferentes formas de abordar a questão da RSE. A crescente importância
do petróleo permite uma prospecção agressiva desse bem, numa época em que se espera
que as companhias apliquem uma parte dos seus lucros fora da sua área de negócio
— as iniciativas sociais —, independentemente do país onde operem. Para além disso,
apesar destas companhias operarem no mesmo contexto e no mesmo ramo industrial,
cada uma delas funciona sob estruturas diferentes de gestão — algumas são altamente
centralizadas enquanto outras são descentralizadas. Para além do mais, algumas destas
companhias são estatais e espera-se que desenvolvam iniciativas de desenvolvimento
social sustentáveis enquanto operam em Angola. Paralelamente a isto, algumas das
companhias petrolíferas que operam actualmente em Angola já estiveram envolvidas
nalguma controvérsia noutra parte do mundo e, assim, crê-se que desenvolvam as suas
estratégias de gestão de forma a não repetirem os erros do passado.
Alguns estudos mostraram que as iniciativas feitas ao abrigo da RSE em Angola se centra-
ram na construção e reabilitação de escolas e centros de saúde, construção de habitações,
projectos agrícolas, reparação de pontes e outras infra-estruturas, apoio aos programas
de prevenção do HIV/SIDA e no apoio aos programas de ajuda alimentar e de saúde
para as crianças37. Como já alguns académicos realçaram, a responsabilidade ambiental
e social pode constituir tanto um recurso como um potencial para as empresas, uma vez
que proporciona uma vantagem competitiva sustentada38. De acordo com este ponto
de vista, a gestão de uma empresa incluiria uma avaliação da relação custo/benefício
de forma a poder estabelecer que recursos são necessários deslocar para as iniciativas
de RSE. Ou seja, as empresas avaliam tanto as exigências que lhes são feitas ao nível da
responsabilidade social como os custos inerentes a essas iniciativas39.
A sugestão acima mencionada é, aparentemente, irrelevante no contexto angolano,
uma vez que o principal objectivo das multinacionais petrolíferas que operam no país
é a exploração (extracção) dos recursos e não a sua comercialização em Angola; o que
significa que os seus clientes dificilmente se constituem num grupo de pressão para a
RSE dessas empresas. Geralmente, os clientes das empresas são uma das partes envol-
vidas neste processo e um dos grupos-chave para forçar as companhias petrolíferas a
adoptar uma maior responsabilidade social; factor que fica aqui muito mais diluído.
Vários académicos avançam a hipótese de que uma empresa só se pode tornar credível,
enquanto agente socialmente responsável, por via de clientes socialmente responsáveis.
Fá-lo incrementando os montantes afectos às suas iniciativas de responsabilidade social

36
Gelb, A. (1988) Oil Windfalls: Blessing or Curse? New York: Oxford University Press; Sachs, J. D., and A. Warner
(1995) “Natural Resource Abundance and Economic Growth”. in Development Discussion Paper No. 571a (Cambridge,
MA: Harvard Institute for International Development, Harvard University); Ross, M. L. (1999) “The Political Economy
of the Resource Curse”. World Politics Vol. 51, N.º 2, pp. 297–322; Frynas J.G. (2005), “The False Developmental
Promise of Corporate Social Responsibility: Evidence from Multinational Oil Companies”. International Affairs Journal.
Vol. 81, N.º 3, pp. 581-598.
37
International Energy Angecy, (2006), Angola Towards an Energy Strategy, Paris.
38
Hart, S L. (1995), “A Natural – Resource Based View of the Firm”. Academy of Management Journal. Vol. 37,
pp. 986 – 1014.
39
McWilliams A, Siegel, D and Wright, P M. (2006) “Corporate Social Responsibility: Strategic Implications”. Journal
of Management Studies. Vol. 43, N.º 1.
308 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

positiva, numa tentativa de alterar a percepção que os consumidores têm da empresa40


e procurando provar que beneficia a sociedade no geral; para além de que, os activistas
podem desempenhar um papel importante nesta matéria, ao fornecerem aos consumidores
informação em que eles possam confiar para escolherem empresas socialmente responsá-
veis41. Uma empresa em que as várias partes envolvidas dão grande valor à RSE enfrentaria
um grande revés, caso houvesse alguma falha nessa responsabilidade social.
O argumento acima exposto é, igualmente, irrelevante no contexto angolano, pelas
mesmas razões que o anterior. Estes dois argumentos, bem como muitos outros, não se
aplicam ao contexto angolano por assumirem que as companhias petrolíferas interna-
cionais conduzem as suas operações comerciais num ambiente de mercado que funciona
bem, o que simplesmente não é o caso. Desta forma, podemos afirmar que os cenários de
mercado que serviram de base analítica a estes argumentos aplicam-se essencialmente
aos países desenvolvidos e não aos países em desenvolvimento como Angola.
Não é possível aplicar estes argumentos a Angola porque não existe legislação específica
sobre a RSE, ou sequer instituições incumbidas da sua criação e supervisão, ou mesmo
grupos de interesse ou mecanismos funcionais para acompanhar, controlar e pressionar as
empresas para que assumam práticas de responsabilidade social sustentáveis. Para além
disto, as partes envolvidas e interessadas (ONG, consumidores, clientes, accionistas, etc.)
que possuem o know-how, estão essencialmente baseadas no Ocidente e defendem, grande
parte das vezes, uma agenda diferente para os locais. Para além do mais, qualquer ONG em
Angola que possua capacidade crítica acaba numa de duas vias: cooptada pelas companhias
petrolíferas com os fundos necessários para realizar as suas iniciativas em seu nome; e/ou
afastada de quaisquer processos de consulta governamentais e empresariais nesta matéria.
Também a comunidade académica, que se dedica ao estudo da responsabilidade social das
empresas, não tem conseguido definir até que ponto o apoio que vem do Ocidente através
das ONG aí sedeadas produz resultados efectivos nos países em desenvolvimento.
Por outro lado, outros investigadores que se dedicam ao estudo da RSE argumentaram
que, num contexto como o angolano, aqueles que estão encarregues de implementar
a RSE podem agir de uma forma oportunista ao começarem a perseguir objectivos e
missões diferentes do estabelecido nos estatutos da empresa.
O ponto crucial é que os administradores das empresas públicas não são proprietários
das empresas que administram. São contratados pelos proprietários das empresas para
maximizar a longo termo o valor dos seus bens. Utilizar esses bens para outros fins é
enganar os proprietários das empresas e isso não é ético. Se um administrador crê que
a empresa para a qual trabalha está a prejudicar a sociedade em geral, o correcto a fazer
é não trabalhar para essa empresa. Não há nada que obrigue alguém que acredita que a
indústria tabaqueira é má a trabalhar nessa indústria. Mas se alguém aceita receber um
salário para gerir uma tabaqueira no interesse dos proprietários dela, tem uma obrigação
para com eles. Desprezar essa obrigação é pouco ético.42
Aceitando esta preposição, aceita-se que os recursos afectos pelas empresas para as
iniciativas de responsabilidade social são um mau uso de fundos da empresa, que

40
O’Donovan, G. (2002), “Environmental Disclosures in the Annual Report: Extending the Applicability and Predictive
Power of Legitimacy Theory”. Accounting, Auditing & Accountability Journal. Vol. 15, N.º 3. pp. 344-371.
41
Paterson, C and Woodward, D G. (2006), Levels of Corporate Disclosure Following Three Major UK Transport Accidents:
An Illustration of Legitimacy Theory, Draft Working Paper, University of Southampton.
42
Economist Intelligence Unit (2006) Country Report Angola, September 2006, p. 7.
Manuel Paulo i Responsabilidade Social das Empresas em Angola 309

seriam mais correctamente aplicados em projectos internos de valor acrescentado ou


devolvidos aos accionistas em forma de dividendos. Tal argumento tem implícita a
ideia que a RSE é uma espécie de benesse ao dispor dos administradores, que muitas
vezes utilizam os recursos das empresas para as iniciativas de RSE para ascenderem
nas suas carreiras43. O mundo dos negócios em Angola permite que tal aconteça porque
nenhuma das companhias petrolíferas possui, na sua estrutura a operar no país, um
administrador não executivo local que possa levar ao conselho de administração as
preocupações da sociedade, como acontece no Ocidente.
Outros académicos defenderam que para além dos accionistas, as empresas são igual-
mente responsáveis perante as outras partes envolvidas directa ou indirectamente na
actividade da empresa. Estas outras partes ou constituintes estão necessariamente en-
volvidos nos procedimentos das empresas44. É do interesse das empresas envolverem-se
em actividades de responsabilidade social que outras partes, para além daqueles com
interesse financeiro directo, considerem importantes uma vez que o contrário levaria
ao afastamento de constituintes, nomeadamente os clientes que sejam sensíveis a este
tipo de questões45. Para Donaldson e Preston, isto implica que as empresas que estão
envolvidas em recorrentes transacções com outras partes interessadas, na base da
confiança e da cooperação, sentem-se incentivadas e compelidas a agirem honesta e
eticamente, pois que tal comportamento traz benefícios à organização46. Estes autores
notaram que as empresas que desenvolvem laços de confiança cooperativa com outras
partes envolvidas poderiam ganhar uma vantagem competitiva sobre as empresas
que não o façam. Por seu lado, Jones sugere que certos resultados — como alterações
às regras das licenças de operação das empresas — são mais facilmente obtidos se as
empresas e os seus administradores agirem de uma certa forma47.
Carroll demonstrou que a RSE exige aos responsáveis por essa área dentro das empre-
sas que assumam a responsabilidade pela identificação e acomodação dos interesses
daqueles que são afectados pelas actividades das empresas48. Esta abordagem con-
sidera que o contexto social das empresas engloba várias partes interessadas, cada
uma com o seu conjunto de expectativas em relação à empresa49. Esta corrente de
pensamento constitui actualmente o principal paradigma de análise e compreensão
na área da RSE.

Conclusão
Em suma, as empresas têm um impacto significativo na sociedade em que se inserem
e têm que necessariamente reconhecer as implicações sociais da sua presença; os
governos não são suficientemente fortes para lhes imporem obrigações sociais deste

43
McWilliams A, Siegel, D and Wright, P M. (2006) “Corporate Social Responsibility: Strategic Implications”. Journal
of Management Studies. Vol. 43, N.º 1.
44
Freeman, R. E. (1984). Strategic Management: A Stakeholder Approach. Boston Pitman Publishing.
45
McWilliams A, Siegel, D and Wright, P M. (2006) “Corporate Social Responsibility: Strategic Implications”. Journal
of Management Studies. Vol. 43, N.º 1.
46
Donaldson, T. and Preston, L. E. (1995), “The Stakeholder Theory of the Corporation: Concepts, Evidence, and
Implications.” Academy of Management Review. Vol. 20, N.º 1.
47
Jones, T.M, (1995), “Instrumental Stakeholder Theory: A synthesis of ethics and”. Academy of Management Review,
Vol. 20, N.º 2, pp. 404-438.
48
Carroll, A B. (1999), “Corporate Social Responsibility: Evolution of a Definitional Construct”, Business and Society,
Vol. 38, N.º 3, pp. 268-295;
49
Clarkson, M, Starik, M, et al (1994), “The Toronto Conference: Reflections in Stakeholder Theory”. Business and
Society, Vol. 33, N.º 3, pp. 82-90.
310 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

tipo – RSE50. Assim, actualmente é expectável que as grandes multinacionais sejam so-
cialmente responsáveis numa lógica de cidadania empresarial, e todas querem mostrar
que o são. Na verdade, a maior parte das empresas possuem agora administradores
de topo, recrutados às ONG, responsáveis pelo desenvolvimento e coordenação das
iniciativas de RSE. Para além disso, existem nas faculdades de gestão programas de
formação para executivos na área da RSE. No entanto, os críticos continuam a acu-
sar as empresas de fraca preocupação efectiva com a cidadania empresarial e a RSE.
Argumenta-se que a motivação empresarial para com iniciativas de responsabilidade
social é sempre impelida por algum tipo de interesse escondido, ou que é uma res-
posta ao ambiente competitivo e às exigências feitas aos administradores por vários
grupos de interesse, nomeadamente clientes e sociedade civil em geral51. No entanto,
muitos consideram a RSE como não democrática porque as empresas mantêm um
poder discricionário sobre se, como, onde e quando, devem agir de forma socialmente
responsável e porque a sociedade não tem maneiras de as pressionar a agir52.

50
Carroll, A B. (1979), “A Three-Dimensional Conceptual Model of Corporate Performance”, Academy of Management
Review, Vol. 4. pp. 497-505; Mintzberg, H, (1996), “Managing Government – Government Management”. Harvard
Business Review, May-June, pp. 75-83.
51
McWilliams A, Siegel, D and Wright, P M. (2006) “Corporate Social Responsibility: Strategic Implications”. Journal
of Management Studies. Vol. 43, N.º 1.
52
Dubbink, W, (2005), “Democracy and Private Discretion in Business”. Business Ethics Quarterly. Vol. 15, N.º 1. pp. 37-66.
Capítulo V
O Enquadramento Regional

Textos

Dale T. McKinley
Lloyd M. Sachikonye
Henning Melber
Fidelis Edge Kanyongolo
Badala Tachilisa Balule
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote
Rueben L. Lifuka & Lee Habasonda
Jean-Claude Katende

l
313

África do Sul: o Enfraquecimento


da Sociedade Civil?1

O Legado da Transição
Dale T. McKinley O ataque intelectual à análise de classe, sobretudo depois
Activista de vários do colapso do comunismo na União Soviética no final dos
Movimentos Sociais anos oitenta, condicionou a compreensão, numa era onde as
da África do Sul, relações de poder estão activamente em processo de reestrutu-
incluindo Indaba ração. O uso do conceito de sociedade civil a favor do projecto
e Fórum
ideológico global dominante delimitou o campo discursivo
Anti-Pivatização
em que a sociedade é entendida e discutida. Esta concepção
dominante da sociedade civil, como esfera de independência
da sociedade em relação ao Estado, estrutura a forma como
o poder é entendido e enquadra os objectivos da organização
no campo da sociedade civil. Sem uma análise de classe, o
discurso de oposição é incapaz de mapear o caminho para um
projecto contra-hegemónico ampliando as fissuras criadas
pelas contradições do enquadramento hegemónico.2
Historicamente, a ideologia dominante da luta revolucionária
na África do Sul tem sido uma de estatismo, dentro da qual
a tomada e o exercício do poder têm sido conceptualizados
como contíguos ao próprio Estado. Todavia, a organização
dos trabalhadores e as lutas de base em prol de reformas ime-
diatas, de natureza política e sócio-económica, que ganharam
destaque nos anos oitenta, desafiaram esta concepção. Para-
lelamente ao colapso de modelos estatistas na antiga União
Soviética e Europa de Leste e as expectativas de transição
negociada na África do Sul, a noção de sociedade civil como
antídoto para o estatismo Estalinista e democracia social foi
ressuscitado.3 Paralelamente, “o conceito de sociedade civil
vinha sendo moldado pelo poder da classe dirigente global,
no sentido de apoiar o anti-estatismo e para separar a política
do bem-estar e da economia”.4
Assim, na base da “transição negociada” da África do Sul no
início dos anos noventa, estavam em jogo dois conceitos dia-
metralmente opostos de sociedade civil, apesar do seu aparente

1
Traduzido do original em inglês por Mónica Rafael Simões.
2
Stephen Greenberg & Nhlanhla Ndlovu (2004), “Civil society relationships”, in
Mobilising for Change: New Social Movements in South Africa, Development Update,
Vol. 5, N.º 2, p. 23.
3
Ver Capítulo 7, in Hein Marais (1998), South Africa: Limits to Change (London:
Zed Books).
4
Greenberg & Ndlovu (2004), p. 25.
314 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

cariz comum “anti-estatista”. Por um lado, a ideia de sociedade civil como “espaço”
colectivo político e organizacional da sociedade, predominantemente enraizado na clas-
se trabalhadora, onde “o poder do povo” pode ser utilizado para contestar e moldar o
poder político e económico da sociedade no seu todo, inclusive o Estado. Por outro lado,
a ideia de sociedade civil como “sem classe” (independente ou acima das lutas de classe),
abrangendo todas as forças sociais fora do/independentes do Estado, e cujo principal
papel é agir como mecanismo institucional de vigilância do poder estatal (o designado
papel de “cão de guarda” – watchdog), e exercendo um paralelo “extra-político” — e
muitas vezes complementar — face ao poder estatal, sem ligação directa com o processo
mediante o qual o poder económico se relaciona com o poder politico (infra-estruturas e
super-estruturas).
Nos primeiros anos da “transição negociada” sul-africana, o Congresso Nacional Afri-
cano (African National Congress – ANC, mais tarde no poder), conseguiu desempenhar
o papel da sociedade civil. Numa das muitas “reviravoltas” que viriam a acontecer,
o desempenho deste papel acabou por vir mais tarde a reforçar a ideologia do esta-
tismo. Em meados dos anos noventa, o ANC tinha feito esta reviravolta em função
de dois passos distintos mas interligados: por um lado, a desmobilização sistemática
e/ou incorporação (ou no ANC ou nos vários níveis do Estado recém democrático)
da maioria das organizações/movimentos independentes da classe trabalhadora (os
únicos constituintes capazes de liderar e realizar a luta revolucionária por mudanças
fundamentais no poder político e sócio-económico); por outro lado, a aceitação política
e ideológica da ortodoxia dominante neo-liberal nas suas vertentes política e econó-
mica5 e das suas respectivas prescrições institucionais e políticas.
De facto, foi o estatismo estratégico do ANC nas duas fases, pré-luta nacional de libertação
e pós-1994, já no exercício do poder estatal, — em conjunto com a adesão à ortodoxia
neo-liberal —, que garantiu que o núcleo duro da sua própria base de apoio, constituída
pela classe trabalhadora (cujo cariz organizacional e político histórico assentava na luta
pela libertação política e sócio-económica face ao Apartheid do capitalismo), se deixasse
levar na onda das poderosas forças sócio-económicas cujos interesses eram contrários
a qualquer transformação político-económica profunda da sociedade.
A falsa separação, em termos teóricos e práticos, entre, por um lado, mudança po-
lítica e sócio-económica, e, por outro lado, entre Estado (autónomo) e “sociedade
civil” (independente), fez com que processos/conceitos como a democratização e o
desenvolvimento assumissem significados estritamente burgueses, nacionalistas e
predominantemente políticos, sem uma relação com as relações de produção. Nesta
perspectiva, qualquer luta para mudar significativamente as relações de poder no seio
de uma sociedade passa a estar subordinada ao exercício institucionalizado do poder
político e sócio-económico.
Por outras palavras, a nova África do Sul tem privilegiado, desde os seus primórdios, o
status quo social — o capitalismo — e as instituições da democracia burguesa, essenciais
para a sua manutenção. É apenas no seio desta “transição” sem mudança profunda
que a trajectória e o carácter da sociedade civil sul-africana podem ser entendidas.

5
O enquadramento politico base do programa Crescimento, Emprego e Redistribuição (GEAR) foi implementado
unilateralmente pelo governo ANC em 1996. Este foi complementado, em certa medida, por um período de intensa
actividade legislativa nos primeiros 3-4 anos do ANC no poder. Tratou-se de legislação concebida para contrariar a
discriminação da era do Apartheid e facilitar novas oportunidades sociais e políticas para os sectores da população
“historicamente em situação de desvantagem”.
Dale T. McKinley l África do Sul: o Enfraquecimento da Sociedade Civil? 315

Dividir, Co-optar e Reinar


Temos de perceber que a nova democracia não pode permitir uma vigilância hostil do
processo democrático e dos seus participantes6.
Em 1994, quando se realizaram as primeiras eleições de sempre na África do Sul, sob
o mote “uma pessoa um voto”, resultando na vitória retumbante do ANC, a maioria
dos sul-africanos compreensivelmente celebrou a chegada da nova democracia. Afinal,
o ANC e os seus aliados de outros movimentos de libertação estavam agora no poder
graças aos votos daqueles a quem, ao longo da história moderna da África do Sul,
tinha sido negado o direito de participação democrática institucionalizada.
No entanto, a par disto, mantinham-se no seio da maioria negra grandes expectativas
(que se revelaram posteriormente erradas) de que o novo Estado ANC iria imediatamente
prosseguir uma política económica mais Socialista, ou, pelo menos, radicalmente mais
redistributiva. Os motivos para tais expectativas derivavam da base militante e das lutas
políticas e sócio-económicas que vinham sendo travadas desde meados dos anos oitenta
pelos sindicatos e por organizações comunitárias (apoiadas por ONG mais radicais), a
par da retórica “Socialista” do próprio ANC.7 “À semelhança do que aconteceu frequen-
temente em alguns países recém libertados, a euforia da transição política levou muitos
a acreditar que a luta social com o Estado já não era necessária…”.8
Depois de assumir o poder, não tardou muito para que o Estado ANC mostrasse as
suas verdadeiras “cores” ideológicas. A adopção, em 1996, do programa macroeconó-
mico Crescimento, Emprego e Redistribuição (Growth, Employment and Redistribution
– GEAR), abertamente neo-liberal, codificou o compromisso do novo governo para
com a disciplina macro-fiscal, crescimento baseado nas exportações, privatização, fle-
xibilização do mercado de trabalho, diminuição dos níveis de tributação das empresas
e integração de larga escala no sistema capitalista global de produção e acumulação.9
Ainda de forma mais crucial, a GEAR serviu como catalizador de uma mudança
fundamental na relação do ANC Estado com a “sociedade civil”, passando de um
relacionamento definido historicamente pelo reconhecimento e aceitação do papel
e posição da liderança política e ideológica da classe trabalhadora, para um em que
agora se dava prioridade às relações corporativas (empresariais) institucionalizadas,
envolvendo todas as forças sociais no projecto de nation building através de um “con-
senso” político-ideológico.

6
Thabo Mbeki (1994), “From Resistance to Reconstruction: Tasks of the ANC in the New Epoch of the Democratic
Transformation – Unmandated Reflections”, não publicado. Este documento, que permaneceu na posse de um grupo
restrito de membros do ANC-Alliance até ao final dos anos noventa, foi redigido enquanto Mbeki era Secretário-Geral
do ANC e circulou entre a liderança da Alliance antes da 49.ª Conferência Nacional do ANC, em Dezembro de 1994.
7
Durante o final dos anos oitenta e os primeiros dois anos da década de noventa, o ANC manteve-se coerente
com a ideia de que, uma vez no poder, sectores chave da economia seriam nacionalizados; um processo radical de
redistribuição de terras e riqueza teria lugar, assim como a garantia de que a classe trabalhadora negra tornar-se-ia
a maior “impulsionadora” e controladora de um Estado “do povo”, comprometido com a democracia participativa/
popular. A adopção, em 1994, do programa de Reconstrução e Desenvolvimento, de cariz moderadamente radical
e social-democrata, por parte do ANC e da sua plataforma eleitoral, serviu para alimentar estas expectativas. Para
uma exposição detalhada acerca dos pilares-base deste programa ver, National Institute for Economic Policy (1996),
From RDP to GEAR, Research Paper Series (Johannesburg: NIEP).
8
Richard Ballard, Adam Habib & Imraan Valodia (2006), “Social Movements in South Africa: promoting crisis or
creating stability?”, in Vishnu Padayachee (ed), The Development Decade? Economic and social change in South Africa,
1994-2004 (Cape Town, HSRC Press), p. 397.
9
Ver Adam Habib & Vishnu Padayachee (2000), Economic Policy and Power Relations in South Africa”s Transition to
Democracy, University of Natal – Durban School of Development Studies Research Paper.
316 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Esta mudança relacional foi sustentada pela escolha dos “veículos” sócio-políticos
de materialização da “transformação” da economia política da África do Sul, defen-
didos pela GEAR. Na base desta escolha estaria a convicção de que a combinação de
acções afirmativas económicas (através da distribuição de terras pela nova classe de
agricultores comerciais negros e assistência estatal a empresários industriais negros)
com iniciativas de capacitação económica da comunidade negra (apoiadas por capitais
estatais e privados) e com “parcerias” público-privadas no fornecimento de serviços
económicos e sociais, seria a melhor forma de garantir os resultados desejados de re-
distribuição/crescimento económico, equidade social, criação de emprego e satisfação
de necessidades básicas.
As fundações para esta deriva ideológica do ANC foram erguidas pouco depois do
seu regresso do exílio, no início dos anos noventa. Em vez de apoiar e reforçar a infini-
dade de organizações comunitárias e cívicas, bem como sindicatos progressistas, que
tinham constituído a coluna vertebral da luta anti-Apartheid nos anos oitenta (que se
haviam reunido na Frente Unida Democrática/UDF e no seu sucessor, o Movimento
Democrático das Massas/MDM), o ANC lançou o repto às suas estruturas civis/co-
munitárias para se tornarem parte das fileiras do ANC ou se associarem à recém criada
Organização Sul-africana das Organizações Civis Nacionais (South African National
Civics Organisation – SANCO) que, de acordo com o anunciado, se tornaria o “quarto”
membro de uma Aliança Tripartida. Simultaneamente, o ANC formalizou a sua alian-
ça política/organizacional com a principal federação dos sindicatos — o Congresso
dos Sindicatos Sul-Africanos (Congress of South African Trade Unions – COSATU) — e
o principal partido político de “esquerda”, o Partido Comunista Sul-Africano (South
African Communist Party – SACP) — estabelecendo várias estruturas (consultivas) no
seio desta Aliança Tripartida, e incluindo várias figuras chave das lideranças destas
organizações na sua lista eleitoral para todos os níveis de governo.
Não muito depois da sua ascensão ao poder, e de forma consistente com o pendor sócio-
político da GEAR, o ANC foi rápido a estabelecer estruturas nacionais para dar forma
aos seus compromissos corporativos, tendo sido criado o Conselho Nacional Económico,
de Desenvolvimento e Laboral (National Economic, Development & Labour Council – NE-
DLAC). A “câmara de desenvolvimento” deste Conselho contava com a representação
da “sociedade civil” (constituída por ONG e Organizações Comunitárias de Base), da
classe trabalhadora (constituída por federações de sindicatos reconhecidas/organizadas)
e do sector empresarial (constituída por representantes de grandes empresas). Ao mes-
mo tempo, foi aprovada legislação (e.g. o Estatuto dos Sem Fins Lucrativos – Non-Profit
Act, de 1997), criadas instituições (e.g. a Direcção das Organizações Sem Fins Lucrati-
vos – Directorate of Non-Profit Organisations, que estipulava o registo oficial das ONG e
Organizações Comunitárias de Base), e a Agência Nacional de Desenvolvimento (com
a função de “canalizar recursos financeiros para o sector”).10
Tudo isto se conforma perfeitamente com o esforço do governo do ANC no sentido
de alcançar “uma sociedade civil mais formalizada, como parte de um modelo de
desenvolvimento em que grupos formalmente organizados participam em estruturas
oficiais para reivindicar recursos públicos” e em que “o papel desses grupos organiza-
dos é construído de acordo com as linhas orientadoras de programas governamentais
oficiais, sem espaço para contestar as linhas fundamentais desses programas”.11
10
Ballard et al (2006), p. 397.
11
Greenberg & Ndlovu (2004), pp. 32-33.
Dale T. McKinley l África do Sul: o Enfraquecimento da Sociedade Civil? 317

Este “saneamento” da sociedade civil foi ainda reforçado pela crise de financiamento
vivida no pós-1994 pela maioria das organizações comunitárias independentes e ONG
progressistas, que estavam largamente dependentes de financiamentos externos. Quer
o financiamento interno, quer o externo, sofreram uma mudança radical depois das
eleições de 1994. Afastaram-se de compromissos anteriores relativamente à mobiliza-
ção de organizações de base independentes e caminharam na direcção de programas
“desenvolvimentistas” dirigidos pelo Estado (tal como o Reconstruction and Development
Programme – RDP) e de “parcerias” patrocinadas pelo Estado (ao nível da providência
social) estabelecidas com organizações “aprovadas” da sociedade civil. O resultado duplo
destas transformações foi uma “agenda de desenvolvimento” gradualmente determinada
por financiamento estatal e privado (empresarial) e a extinção da grande maioria das
organizações da sociedade civil independentes, e em muitos casos anti-capitalistas.12
Cumulativamente, estes desenvolvimentos significaram que, em meados dos anos
noventa, a grande maioria das organizações que haviam constituído a sociedade
civil sul-africana (enraizadas nas lutas políticas da classe trabalhadora e que haviam
representado a esperança de milhões no sentido da transformação anti-capitalista da
sociedade sul-africana), tinham sido esmagadas de forma efectiva. Assim, quer tenha
sido em virtude da acção predatória do ANC (resultado da sua absorção nas outras
estruturas da Aliança Tripartida), ou pela sua asfixia (resultado das tentativas de co-
optação por parte de líderes chave do Estado e instituições empresariais associadas),
a verdade é que o espaço político e organizacional para uma resistência militante e
activa foi restringido. Esta restrição foi crescente face ao discurso e práticas cada vez
mais neo-liberais do ANC, à negociação de acordos ao nível das elites e à aceitação
geral do enquadramento institucional da democracia burguesa.
Novas Contestações, Novas Divisões
Por vezes procura-se argumentar13 que a presença do COSATU e SACP (“esquerda
tradicional” da África do Sul) na Aliança Tripartida que estabelecem com o partido
no poder (ANC), se traduz necessariamente numa “sociedade civil da classe traba-
lhadora”, vibrante, capaz e desejosa de contestar as políticas e a agenda desenvolvi-
mentista do Estado. Contudo, a realidade é que a aceitação de uma relação política/
organizacional desigual e essencialmente subserviente no seio da aliança dominada
pelo ANC14 (que é esperado que actue como o mestre politico do Estado), bem como
a participação no institucionalismo corporativista (empresarial), tem servido para
amarrar os trabalhadores organizados e um grande número de activistas de base
(com ligações históricas com e/ou simpatia em relação à Aliança) a um falso sentido
de unidade ideológica e estratégica com o ANC Estado e, ainda que em menor escala,
com o capital corporativo (empresarial).
Esta situação facilitou a crença nas noções entrelaçadas (energicamente propagadas
pelo ANC e vários líderes da Aliança) de que todos os sul-africanos podem “encontrar”

12
Estes argumentos são tirados sobretudo de Greenberg & Ndlovu (2004), pp. 30-31.
13
Tais argumentos têm sido proferidos veementemente pelos sucessivos líderes do COSATU e SACP desde o início
dos anos noventa. Dado que as referências são demasiadas para listar aqui, a maioria dos documentos/discursos
podem ser encontrados nos sites das duas organizações: www.cosatu.org.za e www.sacp.org.za.
14
Esta aceitação foi criticada no seio do COSATU e da SACP. Para uma abordagem detalhada sobre o debate e a
oposição no seio da Aliança desde 1994 ver, Dale T. McKinley (2001), “Democracy, Power and Patronage: Debate and
Opposition within the ANC and Tripartite Alliance since 1994”, in Roger Southall (ed), Opposition and Democracy in
South Africa, (London: Frank Cass Publishers), pp. 183-206.
318 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

um “consenso nacional” sobre o caminho económico e social que o país devia seguir,
e que a luta de classes (com todas as suas contradições) pode ser “gerida” de maneira
eficaz dentro deste “consenso”.15 Na prática, ao longo dos últimos anos, isto traduziu-se
numa realidade em que as componentes mais poderosas em termos organizacionais
e políticos da tal “sociedade civil da classe trabalhadora” se deixaram apaziguar pela
lealdade histórica, solidariedade e cumplicidade com o ANC.
Estas opções subjectivas por parte do COSATU e SACP, juntamente com a SANCO e
vários outros órgãos da sociedade civil com laços historicamente próximos ao ANC (por
exemplo, o Conselho de Igrejas da África do Sul – SACC) pouco fizeram para conter a
crescente pobreza, desigualdade sócio-económica16 e marginalização política, a que têm
sido sujeitos a maior parte dos trabalhadores e comunidades pobres da África do Sul
desde o final da década de noventa. O resultado cumulativo de tais escolhas políticas/
estratégicas e da realidade sócio-económica vivida, resultou no aumento de um conjunto
de novos movimentos sociais/organizações comunitárias a partir do início de 2000.
Inicialmente, surgiram movimentos sociais nos principais centros urbanos e, poste-
riormente, nas comunidades rurais, para contestar os cortes de água e electricidade,
expulsões de habitação, mudanças forçadas e falta de distribuição de terra. Como
assinalou Ashwin Desai:
A emergência destes movimentos baseados em comunidades específicas e com reivindi-
cações específicas, sobretudo defensivas, não era apenas o resultado natural da pobreza
ou marginalização, mas uma resposta directa face à política estatal. A incapacidade ou
falta de vontade por parte do Estado de garantir o fornecimento de serviços públicos e
de assegurar as condições do seu consumo colectivo, foi uma faísca para uma pletora
de movimentos comunitários (…) as políticas neo-liberais concentram e dirigem essas
reivindicações contra o Estado (…) a actividade foi motivada por actores sociais gerados
pelas novas condições de acumulação, que são externas ao âmbito do movimento sindi-
cal e ao seu estilo de organização. O que distingue estes movimentos comunitários de
partidos políticos, grupos de pressão e ONG é a mobilização de massas como a principal
fonte de sanção social.17
O rápido crescimento destas organizações e movimentos, conjugado com a sua cres-
cente oposição militante às políticas do Estado liderado pelo ANC, conduziu rapi-
damente a uma ruptura no seio da sociedade civil sul-africana: entre aqueles que se
opunham à trajectória político-económica do Estado ANC e aqueles que optaram por
uma lealdade continuada (ainda que por vezes crítica) ao Estado e à “linha partidária”
do ANC. Uma expressão desta ruptura deu-se aquando da preparação, e durante, a
Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (World Summit on Sustainable
Development – WSSD) em Agosto de 2002. Nessa ocasião assistiu-se a uma fractura

15
Para uma visão geral (a partir de 1994) acerca dos conteúdos e consequências desta realidade, ver, Dale T. McKinley
(2003), “The Congress of South African Trade Unions and the Tripartite Alliance since 1994”, in Tom Bramble and Franco
Barchiesi (eds), Rethinking the Labour Movement in the “New” South Africa, (Aldershot: Ashgate Publishers), pp. 43-61.
16
Há inúmeros estudos e relatórios realizados ao longo dos últimos anos que confirmam este estado de coisas. Ver,
por exemplo: “South Africa Survey” (2006) compilado pelo Institute for a Democratic South Africa em www.int.iol.
co.za, e em www.statssa.gov.za; o relatório do “Committee of Inquiry into a Comprehensive System of Social Security
for South Africa” (2002); o “Report of the South African Cities Network” (2004); University of South Africa (2004),
“Projection of Future Economic and Sociopolitical Trends in South Africa up to 2025”; United Nations Development
Programme (2003), “South Africa Human Development Report”.
17
Ashwin Desai (2002), “Witnessing the Transition”, artigo publicado no site do Centre for Civil Society, em www.
nu.ac.za/ccs.
Dale T. McKinley l África do Sul: o Enfraquecimento da Sociedade Civil? 319

decisiva entre os dois “campos” — os primeiros reunidos sob a rubrica dos Movimentos
Sociais Indaba (Social Movements Indaba – SMI) e os últimos agrupados colectivamente
sob o Fórum da Sociedade Civil (do Povo). Organizaram-se duas marchas/comícios
paralelos, simbolicamente importantes: a marcha dos SMI e grupos aliados, como
o Movimento dos Povos Sem Terra (Landless People’s Movement) que atraiu mais de
25.000 pessoas para as ruas; a marcha do Fórum, apoiado pelo ANC-Aliança, que
atraiu menos de 5.000 pessoas.18
Durante os últimos quatro anos, esta ruptura na sociedade civil progressista da África
do Sul aumentou gradualmente como resultado de: uma campanha estatal de crítica
consistente, e ataques físicos, contra os novos movimentos sociais/organizações co-
munitárias19 (frequentemente com o “apoio” tácito/silencioso de várias lideranças do
COSATU, SACP, SACC, etc.); o fracasso continuado desta “esquerda tradicional” em
se envolver seriamente e fornecer solidariedade material às novas lutas comunitárias
contra as deficientes políticas de prestação de serviços do Estado; e, o bloqueio organi-
zacional e ideológico feito pela suposta “sociedade civil da classe trabalhadora” debaixo
da égide da Aliança Tripartida do SACP, COSATU e partido governante – ANC.
Os novos movimentos de lutas comunitárias têm sido nados-mortos. Este facto deve-se
não tanto às óbvias fragilidades organizacionais e da natureza politicamente incipiente
destes novos movimentos e das suas lutas, mas sobretudo ao papel de bloqueio (gate-
keeping) organizacional e ideológico do SACP e COSATU. Apesar da sua retórica e as
suas resoluções de carácter radical no Congresso, o COSATU e SACP esquivaram-se
repetidamente a qualquer apoio significativo (ou solidariedade) para com os novos
movimentos/lutas, enquanto afirmavam consistentemente a sua lealdade ao ANC.
De facto, ambos se esforçaram ao máximo por afirmar que a sua oposição às políticas
estatais, e as próprias críticas ao ANC, não “punham em causa o ANC”20 e em nada se
relacionavam com as dos novos movimentos/lutas. Também procuraram activamente
prevenir que as suas estruturas e membros trabalhassem com os novos movimentos
e lutas. Como uma antiga figura dirigente do COSATU tentou racionalizar de forma
educada: “(…) onde divergimos dos nossos amigos nos movimentos sociais é no facto
de que nós preferimos envolver o Estado”.21
Então, em última análise, é esta aliança com o dominante ANC que previne a unidade
organizacional e política dentro e entre as diversas organizações, movimentos e lutas
da sociedade civil, e assim continua a garantir que o Estado seja capaz de prosseguir,
sem muita dificuldade, um quadro político que não é do interesse dos trabalhadores e
dos pobres sul-africanos. Para Ali Tleane, um antigo líder do SANCO, as relações são

18
Social Movements Indaba (2002), “Historic United Social Movements Mass March To WSSD Sends Clear Message
– The People Will Be Heard”, SMI Press Release, 1 de Setembro, em www.apf.org.za.
19
As expressões públicas mais evidentes do desdém do ANC em relação aos novos movimentos sociais e às suas
lutas foi a declaração do ANC, em 2002, na qual estes movimentos são acusados de serem “ultra esquerdistas
(…) de empreenderem uma luta contra-revolucionária contra o ANC e o nosso governo democrático”, e de serem
cúmplices da “burguesia e dos seus apoiantes”. Ver, ANC (2002) “Contribution to the NEC/NWC response to the
Cronin interviews on the issue of neo-liberalism”, paper interno do ANC, Unidade de Educação Política (Setembro).
O Presidente Mbeki anuiu pouco depois, defendendo em público que “esta ultra-esquerda trabalhava com o intuito
de se implantar nas fileiras do próprio ANC, pretendendo tomar o controlo do nosso movimento e transformá-lo
num instrumento de concretização dos seus objectivos”. Ver, Mbeki (2002), “Statement of the President of the ANC,
Thabo Mbeki, at the ANC Policy Conference”, Kempton Park, 20 de Setembro, em www.anc.org.za/docs. Desde
o WSSD em 2002, centenas de activistas de base têm sido detidos, presos, e, muitos deles, torturados – Ver Simon
Kimani (ed) (2003), The Right to Dissent (Johannesburg: The Freedom of Expression Institute).
20
COSATU (2005), “Response to Sunday Independent article”, Media Statement, 7 Agosto.
21
Citado em Habib &Valodia (2006), p. 249.
320 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

claras: “SANCO não pode falar em nome da sociedade civil porque recebe ordens do
governo do ANC”.22 No mesmo sentido, Dinga Sikwebu, ex-funcionário dirigente de
um dos maiores sindicatos da COSATU, afirma que: “As camadas dirigentes e con-
servadoras [na COSATU] têm algo a preservar no status quo existente (…) a COSATU
ganha algo do ANC — estatuto e todas as outras deferências (…) enquanto o ANC
garantir todas estas coisas, a relação entre o ANC e os movimentos sindicais manter-
se-á, já que se alimentam mutuamente (…) estes movimentos [sociais novos] ameaçam
esta relação política (…)”.23
Aquilo que o passado recente e os desenvolvimentos subsequentes desde então24
representam, é uma clara divisão ideológica e organizacional entre as principais com-
ponentes da sociedade civil sul-africana. Uma grande parte dos novos movimentos
sociais representam aqueles que desejam crescentemente pressionar para além das
fronteiras forçadas da democracia burguesa institucionalizada. Estão activamente
envolvidos em lutas contra as políticas estatais e praticam uma mobilização indepen-
dente (baseada nas massas), como a única opção significativa e realista para resistir
ao neo-liberalismo e abrir a possibilidade a uma alternativa ideológica e organizacio-
nal em relação à política partidária existente do ANC. Apesar destes movimentos se
terem tornado inextricavelmente ligados pelo conteúdo igualitário e formas comuns
de ataque devastador ao neo-liberalismo (nacional e, em menor grau, internacional),
não representam nenhum tipo de entidade homogénea. Têm ocorrido importantes
debates políticos/ideológicos e organizacionais entre os novos movimentos sociais,
expondo diferentes perspectivas.25
No outro “lado” encontram-se as forças “tradicionalmente” progressivas da sociedade
civil sul-africana, representadas principalmente pelas várias lideranças da COSATU e
SACP, em aliança ampla com as da SANCO, SACC e a Coligação Não-Governamental
Sul-africana – SANGOCO. Apesar de ocasionalmente se envolverem em actividades
extra-parlamentares destinadas a influenciar o carácter e conteúdo de políticas esta-
tais específicas, de recorrerem regularmente a uma retórica de esquerda e de procla-
marem independência organizacional, eles aceitaram (ainda que de forma crítica) o
modelo de desenvolvimento capitalista do ANC. Perderam muita da confiança que
eventualmente tinham no “papel de liderança” da classe trabalhadora (tanto interna
como internacional) e optaram por privilégios democráticos institucionalizados e
acesso esporádico ao poder estatal. Tudo isto racionalizado no seio das referências de
lealdade histórica ao movimento de libertação e solidariedade à Aliança, assim como
às necessidades de completar uma suposta “revolução democrática nacional” (mal
definida) e às “realidades” do capitalismo global.

22
Citado em William Mervin Gumede (2006), Thabo Mbeki and the Battle for the Soul of the ANC (Cape Town: Zebra
Press), p. 276.
23
In Tom Bramble & Franco Barchiesi (2003), “Pressing Challenges facing the South African Labour Movement: an
Interview with John Appolis and Dinga Sikwebu”, in Tom Bramble & Franco Barchiesi (eds), Rethinking the Labour
Movement in the “New South Africa” (Aldershot: Ashgate), p. 224.
24
Como exemplo da intensidade e abrangência dos protestos comunitários de base (a maioria dos quais devido
à falta de provisão de serviços) no ano das eleições para o governo local, em 2006, e de acordo com o Gabinete do
Ministro da Segurança (Minister of Safety and Security), pelo menos dois oficiais camarários foram mortos e as casas
de muitos outros foram incendiadas em 881 protestos deste tipo – uma média superior a dois protestos por dia. Ver
Penny Sukhraj (2006), “Belief in government promises is a key to local elections”, The Star (9 Janeiro); Ver também,
Vicki Robinson, Monako Dibetle & Marianne Merten (2006), “The ANC monolith starts to crack”, Mail & Guardian
(24 de Fevereiro – 2 de Março).
25
Para uma exposição mais detalhada acerca destas posições emergentes do WSSD ver, John Apollis (2002), “The
Political Significance of August 31st”, Khanya, N.º 2 (Dezembro), pp. 5-9.
Dale T. McKinley l África do Sul: o Enfraquecimento da Sociedade Civil? 321

Democracia, Estado e Sociedade Civil sob o Capitalismo


O sistema político da democracia parece-se cada vez mais com uma mistura de ditadura
plebiscitária e uma oligarquia empresarial.26
A construção teórica dominante na base das interrogações e abordagens à “transição
democrática” da África do Sul (i.e. liberalismo – burguês – capitalista) faz uma falsa
separação entre a forma e o conteúdo democrático. A democracia é conceptualizada
fora da sua base materialista histórica, como uma espécie de princípio neutro que flutua
algures fora das relações materiais. O resultado é um único ponto de partida analítico,
que sustenta que a democracia resulta de acordos institucionais dentro da sociedade
capitalista. Neste sentido, o conceito de classe e a prática da luta de classes são entendidas
apenas em relação às formas institucionais contemporâneas de democracia, dominantes
sob o capitalismo (i.e. democracia representativa e corporativismo empresarial).
Isto conduz necessariamente a um enfoque sobre as existentes instituições (tanto de
representatividade como empresariais) enquanto eixo sobre o qual gira qualquer
actividade social e política significativa. Então, em relação ao carácter, conteúdo e
actividade da sociedade civil sul-africana, o principal argumento, apontado vigoro-
samente pelos intelectuais do ANC/Aliança,27 é o de que a única forma aceitável e
legítima para todos os órgãos da sociedade civil terem influência sobre o Estado e a
sociedade, é através da sua participação no quadro “democrático” institucional exis-
tente (i.e. institutionalised politics).
A base conceptual deste argumento está fundamentalmente embutida nos preceitos do
liberalismo burguês clássico e é completamente consistente com a noção “em voga” (e
auto-atribuída pelo dominante ANC) de um “Estado desenvolvimentista”. Sob esta
rubrica, o pluralismo institucionalizado torna-se a essência, tanto da democracia como
do desenvolvimento, independentemente das relações sociais dominantes no qual
esse pluralismo opera. Contudo, o problema aqui é óbvio: tal institucionalização, sob
relações sociais capitalistas, conduziu sempre e em toda a parte a uma esterilidade “de-
mocrática” inevitável. Pluralismo torna-se simplesmente um slogan para um conjunto
de “vozes” organizacionais e individuais, independentemente das suas respectivas
localizações e relações com os que “possuem” o poder político e sócio-económico
dominante, estando contidos e limitados dentro dos limites institucionais e políticos
estreitos do capitalismo “liberal”.
Isto oferece muito pouco à capacidade de contestar seriamente o carácter e o conteúdo
de um Estado capitalista e as políticas que implementa. Ao invés, permite ao Estado
defender um “desenvolvimentalismo” democrático que efectivamente cerca e esvazia
as lutas de base por mudanças mais profundas e verdadeiramente significativas. Deste
modo, o Estado não só “se legitima através da sociedade civil, mas também forma [e
controla] o terreno sobre o qual a sociedade civil reivindica”.28 Como resultado, o espaço
para qualquer tipo de desafio sistémico fundamental e/ou política alternativa, que não
esteja ligada ao status quo institucional, é simultaneamente gerido e progressivamente
limitado. São evidentes os efeitos desta esterilidade institucionalizada sobre a capa-

26
James Cornford citado em Michael Levin (1989), Marx, Engels and Liberal Democracy (New York: St. Martin’s
Press), p. 145.
27
Ver, por exemplo, Michael Sachs (2003), “We don’t want the fucking vote: Social movements and demagogues in
South Africa’s young democracy”, South African Labour Bulletin, Vol. 27, N.º 6 (Dezembro), pp. 23-27.
28
Greenberg & Ndlovu (2004), pp. 24-25.
322 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

cidade de longo prazo dos órgãos da classe trabalhadora da sociedade civil, tanto na
África do Sul como noutros lugares; perdendo a capacidade de desafiar efectivamente
a agenda do capital e as instituições estatais, que agora agem principalmente como o
braço “público” do sector privado (capitalista).
Independentemente da democratização política que ocorreu na África do Sul desde
1994, o Estado sul-africano permanece capitalista (ainda que desracializado). Apesar
do Estado (em qualquer parte do mundo) ser uma entidade complexa que possui o seu
próprio conjunto de contradições internas, não é uma instituição neutra que possa de
qualquer maneira ser envolvido e transformado radicalmente através da participação
na sua “rede” institucional associada. Como Marx tão convincentemente defendeu,
os Estados são os aparelhos repressivos e ideológicos orgânicos de uma classe. No
futuro imediato da África do Sul essa classe é o capitalismo. Este facto mantém-se,
independentemente das tentativas hipócritas da nova elite negra (tanto no interior
como no exterior do Estado) em se apresentar como parte de uma classe trabalhadora
abrangente e acima das relações materiais e das realidades da luta de classes.
Certamente o Estado sul-africano jogou e irá continuar a jogar um papel que não está
necessariamente e sempre de acordo com as mais altas expectativas e exigências do
capital empresarial e financeiro — por exemplo, continuará sem dúvida a desempenhar
um papel de providência parcial que procura amenizar o conflito e a luta de classes.
Porém, enquanto as relações capitalistas permanecerem as forças motrizes da sociedade,
o Estado irá sempre absorver e reflectir essas relações dominantes nas suas formas mais
específicas. O tipo de análise da democracia, sociedade civil e Estado que ignora a luta
de classes e que parece dominar actualmente a maior parte dos esforços intelectuais
(também, mas não só, na África do Sul pós-Apartheid), conduz directamente ao tipo de
“política institucional” silenciosa e estéril que qualquer movimento/organização da clas-
se trabalhadora genuíno e auto-respeitador deve seguramente evitar, e transcender.29
Se entendermos a política contemporânea sob o capitalismo como a prática continuada
(ainda que diferenciada) da luta de classes, então entendemos igualmente por que ra-
zão o Estado existente (a sua política institucionalizada, políticas sócio-económicas e o
partido político que o dirige) se tornou no alvo central dos marginalizados e oprimidos.
O conteúdo democrático da luta subsequente não pode ser fabricado e/ou imposto. Os
que lutam por criar novas avenidas de expressão política, por se libertarem dos grilhões
da “democracia institucionalizada” do capitalismo e por estabelecer as bases para uma
mudança sócio-económica profunda, irão criar esse conteúdo democrático.

Realidades e Escolhas
Doze anos depois do dito “milagre” de 1994, a sociedade sul-africana (e, consequen-
temente, a “sociedade civil”) está numa encruzilhada. Apesar de se tratar de um país
com imensas riquezas naturais, uma infra-estrutura industrial, de comunicações e
de transportes, altamente desenvolvida, com instituições democráticas e recursos
humanos consideráveis, para a maioria dos sul-africanos (a par com os milhões de
imigrantes e refugiados provenientes de várias partes do continente africano), a vida
continua a ser sinónimo de luta feroz.
29
O argumento de Eric Hobsbawm de que os intelectuais com historial de militância num partido revolucionário
ou movimento de libertação geralmente assumem a “postura de advogados liberais” assim que se apercebem que a
política-ideologia do partido/movimento não surtirá os efeitos esperados, parece ser verdade no caso sul-africano;
Ver, Hobsbawm (1973), Revolutionaries (London: Phoenix Publishers).
Dale T. McKinley l África do Sul: o Enfraquecimento da Sociedade Civil? 323

A África do Sul contemporânea é caracterizada por desigualdades socio-económicas e


pobreza crescentes, um sistema de saúde e educação em crise. É igualmente marcada pela
consolidação e expansão de propriedade económica e padrões de acumulação por parte
de ambas as elites domésticas — negras e brancas — e capital empresarial internacional,
assim como pela crescente centralização do poder político nas mãos da elite negra burocra-
tizada, alinhada com o ANC, que controla o Estado. Paralelamente, e em resultado destes
desenvolvimentos, são notórios altos índices de violência social e crescente atomização
social (em virtude do culto do consumismo e individualismo), que contribuem para um
declínio geral dos valores humanos básicos e da solidariedade colectiva.
Os “novos” e “velhos” pobres têm vindo a ser marginalizados de todas as maneiras
possíveis. Contudo, a memória histórica e o poder simbólico da luta de libertação do
ANC é tal que o ANC e o Estado por si controlado têm sido capazes de vincular os
pobres à sua própria opressão. Neste processo de traição efectiva dos pobres, o ANC
tem sido coadjuvado pela liderança da chamada “esquerda tradicional” no seio da
Aliança — ou seja, o COSATU e o SACP.
Em virtude do presente estado das coisas assiste-se à emergência e ao crescimento
de lutas de resistência de pequena escala e maioritariamente de cariz defensivo. No
entanto, estas lutas não representam, por ora, qualquer tipo de ameaça política e/ou
socio-económica significativa, quer face à hegemonia política do ANC quer em relação
ao caminho activamente prosseguido de acumulação (“desracializada”) de capital.
Os componentes da sociedade civil que são mais radicais ao nível político e indepen-
dentes ao nível organizacional, deparam-se com a necessidade fundamental de optarem
entre: uma aceitação gradual da sua “inclusão nas estruturas do Estado e partidárias”;
o “abandono do Estado”30 como arena de contestação de poder social; ou, o traçar
de um novo caminho de luta de classes e solidariedade colectiva. Esta última opção
implica imprimir uma independência dinâmica e orgânica capaz de ultrapassar os
constrangimentos da lealdade histórica da política partidária e enraizar-se nas lutas
de base. Deverá englobar um carácter local, nacional e internacional, visando tanto o
Estado como o capital, e transcendendo o papel que é prescrito pelo Estado à sociedade
civil, procurando limitá-la às áreas de “nichos de actividade”. Deverá ainda procurar
uma mais abrangente alteração da consciência social, para que se possam lançar os
fundamentos de uma mais radical (anti-capitalista, mas democrática) transformação
do cidadão individual, do Estado e das relações de produção.
A escolha terá necessariamente que recair sobre esta última opção caso os componentes
da verdadeira classe trabalhadora da sociedade civil sul-africana queiram ter algum
papel transformador minimamente significativo. Mas para lá chegar, o desafio mais
imediato no actual contexto será forjar uma unidade ampla de propósitos/intenções,
que exigirá uma “reconfiguração de alianças (…) [capaz de se libertar] dos requisitos
opressivos de lealdade histórica e aquiescência impostos pelo partido no poder”.31
Uma democracia real e duradoura não pode ser alcançada e/ou medida à luz de crité-
rios como o processo de institucionalização do Estado, o sistema de representatividade
das instituições, a ordem administrativa, as proclamações políticas ou pelo falso con-
senso entre sociedade e classes. Deverá sim ser alcançada e medida pela participação

30
Greenberg & Ndlovu (2004), p. 47.
31
Venitia Govender (2003), “The Regional Impact of the Current Zimbabwean Crisis”, in Civil Society and Justice in
Zimbabwe: Proceedings of a Symposium held in Johannesburg, 11-13 de Agosto de 2003 (Arcadia: Themba Lesizwe), p. 108.
324 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

popular/colectiva consistente e firme em todos os níveis da sociedade, juntamente com


a mobilização em massa contra as relações de poder dominantes. Isto permitirá uma
sociedade onde os aspectos fundamentais da vida sejam propriedade dos cidadãos e
não do Estado, de um partido político ou de uma elite capitalista.
325

Sociedade Civil, Democratização


e Política no Zimbabué1

Introdução
Lloyd M. Sachikonye
Instituto de Estudos
de Desenvolvimento,
E ste texto analisa o papel das Organizações da Sociedade
Civil (OSC) no contexto da luta alargada por uma maior
democratização no Zimbabué. Luta essa que tem sido con-
Universidade duzida, desde 2000, num ambiente autoritário e repressivo,
do Zimbabué no qual o Estado olha com desconfiança e suspeição para
as OSC. Este artigo sustenta que as OSC desempenham um
papel vital como defensores das liberdades básicas, dos Di-
reitos Humanos, da transparência e da responsabilização
do Estado (accountability) assim como do espaço democráti-
co. No contexto do Zimbabué, este papel atraiu a repressão
estatal, expressa através de legislação punitiva que tornou
as acções das OSC cada vez mais difíceis e arriscadas. Em
determinados momentos chave as OSC colaboraram com o
movimento da oposição, foram mesmo a pedra de toque na
formação do partido mais forte do pós-independência — o
Movimento para a Mudança Democrática (MDC). Apesar das
OSC se terem, mais tarde, distanciado deste partido e terem
restabelecido a sua autonomia, continuaram a ser objecto
de forte crítica e isolamento por parte do partido no poder,
a Zanu-PF. A experiência das OSC do Zimbabué mostra os
riscos inerentes ao envolvimento em campanhas democráti-
cas activas com ligações a um movimento da oposição para
resistência ao autoritarismo.
Após dar uma panorâmica global do contexto socio-económi-
co e político, este texto fornece uma visão geral das OSC e do
Estado. Prossegue aferindo o papel especial desempenhado
pelas OSC que trabalham nas áreas da governação e dos
Direitos Humanos, terminando com considerações acerca
das oportunidades, problemas estratégicos e desafios com
que aquelas actualmente se deparam. A conjuntura actual
em 2008 é uma em que as OSC se viram obrigadas a rever as
suas relações com o Estado, por um lado, e com o movimento
da oposição por outro. Os desafios vêm do facto de se ter que
saber se as OSC se devem relacionar com um Estado autori-
tário e se as suas relações com o MDC devem ser revistas à

1
Texto traduzido do original em inglês por Nuno Marques. Parte deste artigo
baseia-se num estudo anterior com J. Manjengwa in Towards a Civil Society
Programme in Zimbabwe; a country programme review prepared for Trocaire,
Harare, Julho de 2006.
326 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

luz dos compromissos assumidos por aquele partido com a Zanu-PF no Processo de
Diálogo Inter-partidário iniciado em 2007.

1 - Contexto Socio-Económico e Político do Zimbabué


No contexto em que as OSC trabalham, a “normalidade” económica, social e política,
definida de forma alargada e geral, está ausente. Na verdade, é mais comum falar-se
da situação do Zimbabué como sendo de “crise”, que se tem aprofundado acentuada
e marcadamente durante os últimos oito anos2. É uma crise a diversos níveis, que tem
tido um profundo impacto tanto a nível social e económico como político. Algumas
das suas manifestações incluem: um contínuo declínio económico desde 2000 que le-
vou a uma redução de cerca de 40% do PIB; níveis de desemprego na ordem dos 75%,
com cerca de 80% da população a viver abaixo da linha de pobreza; uma emigração
estimada em 3 milhões de pessoas, cerca de 25% da população.
Com uma hiper inflação oficial de cerca de 26.000% em Janeiro de 2008 (números que
muito provavelmente pecam por defeito se tivermos em conta dados não oficiais),
a economia do Zimbabué já foi, por várias vezes, classificada como a economia do
mundo com a mais rápida contracção, fora de uma zona de guerra. Para além disso,
o país continua a sofrer de significativos níveis de prevalência de HIV, cerca de 15%
(apesar de ter baixado dos 24%).
Neste cenário algo deprimente tem havido um resvalar constante para o autoritarismo.
As suas principais formas de expressão têm sido um aumento da repressão estatal ao
movimento da oposição, às OSC e seus activistas, assim como à imprensa independente,
especialmente desde 2000. O partido Zanu-PF, actualmente no poder, tornou-se mais
agressivo na sua mobilização política, fazendo uso, para tal, dos recursos públicos e
do aparelho estatal, incluindo uma milícia constituída por jovens. Uma característica
relevante do autoritarismo é a paranóia estatal dirigida particularmente contra o Oci-
dente, mas que também existe internamente, dirigida contra as ONG, em particular
contra aquelas que trabalham na área dos Direitos Humanos e da governação. Se por
um lado o autoritarismo provocou o isolamento e a contracção da ajuda e dos subsídios
ao desenvolvimento, por outro também se alimentou do declínio social e económico
e fez com que a maior parte da população se concentrasse apenas em sobreviver, em
detrimento de um maior envolvimento na acção comunitária e no processo político.
No entanto, torna-se claro que esta situação de crise é insustentável, tanto em termos
políticos como económicos. Aos 84 anos o Presidente Mugabe é o líder autocrata com
mais tempo de permanência no cargo na África Austral. Nos próximos dois capítulos
procurarei dar uma visão geral das OSC que trabalham nas áreas da governação e dos
Direitos Humanos, bem como da dinâmica da luta pela democratização. Passarei depois
à abordagem dos problemas estratégicos com que as OSC se debatem à medida que
aumentam as pressões para uma maior abertura e por alternativas ao autoritarismo.
2 - A Sociedade Civil do Zimbabué
Existe literatura considerável sobre o desenvolvimento e o papel das OSC no Zimbabué.
Muitas das obras, tanto as académicas como aquelas com intenção de influenciar as políticas
públicas, centram-se nas várias fases de desenvolvimento das OSC, alargamento do seu
campo de acção sectorial e seu impacto, principalmente no período pós-independência (Sa-
2
Veja-se, por exemplo, Sachiknye, 2002; Raftopoulos e Phimister, 2004 e Harold-Barry, 2004.
Lloyd M. Sachikonye l Sociedade Civil, Democratização e Política no Zimbabué 327

chikonye, 1995, 2000; Moyo, 1992; Moyo, Makumbe & Raftopoulos, 2000 e Dorman, 2001).
Este interesse do estudo analítico pelas OSC demonstrou o aumento da sua importância e
visibilidade ao longo da década de 1990 e no presente. Primeiro, estes trabalhos têm cons-
ciência de que as OSC não são um grupo de actores homogéneo. As OSC foram, geralmente,
divididas em várias categorias de acordo com a sua missão e sua área de actuação: algumas
são do desenvolvimento e bem-estar, outras dedicam-se aos problemas relacionados com
o HIV e com as questões de género, ao passo que outras, ainda, dedicam-se aos problemas
relacionados com a governação e os Direitos Humanos, e muitas outras dedicadas às mais
diversas áreas. Assim, possuem diferentes objectivos e diferentes comunidades de base,
seus constituintes, o que influencia a forma como desenvolvem estratégias e tácticas de
desenvolvimento e linhas de acção e, por arrasto, a sua relação com o Estado.
As tendências ideológicas das OSC também não são homogéneas, elas apresentam
várias correntes, ainda que possam estar no geral essencialmente comprometidas
com os problemas do desenvolvimento e igualdade. Não obstante, esta diversidade é
geralmente deixada para segundo plano em favor da assumpção da uniformidade. A
sua diversidade pode ser uma fonte tanto de força como de fraqueza, especialmente
em contextos políticos voláteis.
Não tentaremos fazer uma crónica do processo de desenvolvimento das OSC desde 1980
porque tal trabalho já foi feito noutro local com considerável detalhe (ZHDR, 2000; Mc-
Candless and Pajibo, 2003), limitando-me aqui a enunciar as grandes fases gerais desse
processo: a primeira década de independência, 1980-1990; o período do programa de
ajustamento estrutural económico (Economic Structural Adjustment Programme – ESAP),
1990-1995; o fim dos anos noventa; o período desde 2000 até ao presente.
Enquanto que durante os anos oitenta o número das OSC era relativamente reduzido
e estava mais concentrado nas questões do desenvolvimento e do bem-estar social, a
época de mudança criada pelo ESAP e pelo pós-“guerra-fria” assistiu ao surgimento
de muitas mais OSC e com as mais variadas agendas. Este novo ambiente gerou um
ímpeto para a defesa pública de uma variedade de questões, incluindo os direitos
económicos, o ambiente, o HIV-SIDA, os Direitos Humanos e problemas de género,
entre outros. Tal como foi então observado:
“(…) a marginalização económica da maioria dos zimbabueanos durante o ajustamento
estrutural criou um ambiente de advocacia (defesa pública) das questões relacionadas
com a pobreza. Os movimentos estudantis e dos trabalhadores, as organizações dos Di-
reitos Humanos e dos direitos das mulheres, começaram efectivamente a organizar-se à
volta dos temas centrais da pobreza, dos Direitos Humanos e da democratização. Esta
transição ocorreu em muitas ONG que haviam começado como associações de apoio aos
pobres tendo então evoluído para organizações questionando as causas da pobreza na
sociedade (…)”(ZHDR,2000).
As OSC que se começaram a organizar em torno das questões da habitação, da saúde
e das condições de trabalho, eram muito activas nos anos noventa. Houve um surto
de associações de moradores na maior parte das cidades e vilas como resposta ao
mau desempenho das autoridades locais nas áreas da habitação, infra-estruturas e
serviços. Assistiu-se igualmente a uma proliferação de organizações comunitárias de
base organizadas em torno de problemas locais específicos.
Durante o final dos anos noventa as OSC adquiriram considerável experiência e apti-
dões na organização e defesa pública/advocacia (advocacy). Isso aconteceu num cenário
328 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

de confluência de crescentes discordâncias em relação a questões de índole política e


económica. Tal foi simbolizado pela revolta dos veteranos da guerra da independência
que fez o governo entrar em pânico em 1997, bem como a agitação dos camponeses
em relação à reforma agrária em 1998-99 e a fundação do movimento pela reforma
constitucional em 1998. A crescente maturidade e militância das OSC foram ultrapas-
sadas pela sua capacidade de mobilização em torno dos problemas económicos (no
seio do Congresso dos Sindicatos do Zimbabué – Zimbabwe Congress of Trade Unions),
levando a cabo uma série de greves gerais em 1997, 1998 e 1999 respectivamente; e pela
capacidade da Assembleia Constitucional Nacional (National Constitutional Assembly –
NCA) de forçar o governo a iniciar o processo de elaboração da Constituição. Assuntos
como o salário mínimo, a democracia e boa governação, os Direitos Humanos e dos
homossexuais, entre outros, foram colocados na agenda. A questão do Contrato Social
continuou a ser levantada durante esta fase.
O período de 1998-2000 parece ser um marco definitivo, não apenas no crescimento
das OSC, mas também nas suas relações com o Estado Zimbabueano. As OSC ocupa-
ram, durante um curto período de tempo, o espaço e o papel normalmente atribuídos
aos partidos políticos; na verdade, até 1999, não existia nenhum partido da oposição
suficientemente forte e credível. Durante dois anos de breve interstício houve um
impasse momentâneo enquanto cada um dos lados manobrava para obter uma vanta-
gem estratégica. A questão da reforma constitucional foi tanto um catalisador quanto
a conjuntura para esta situação. O resultado do referendo em Fevereiro de 2000 foi
interpretado como uma vitória pelas OSC envolvidas com os problemas da governação
e dos Direitos Humanos, em particular, e pelas forças críticas em relação ao gover-
no, em geral. Foi igualmente interpretado como o primeiro contratempo político da
Zanu-PF, cuja liderança jurou então nunca mais voltar a ser apanhada desprevenida.
O processo de reforma constitucional não só ficou parado de 2000 em diante, como
também houve uma viragem decisiva em direcção ao autoritarismo.

3 - A Sociedade Civil na Actual Conjuntura


Como têm sobrevivido as OSC sob o regime autoritário desde 2000? A este respeito
existem análises contraditórias. Um argumento forte é o de que as OSC não se têm
saído tão bem quanto podiam:
“(…) a criação do Movimento Democrático para a Mudança (MDC) originou um vazio
de liderança na sociedade civil que infelizmente, após cinco anos da formação do MDC,
ainda está por preencher. A sua liderança não é carismática, visionária, inspiradora e
altruísta. A única altura em que a sociedade civil assumiu a iniciativa foi com o projecto
de reforma constitucional (…). Desde então, Mugabe dorme com um olho aberto. Ele
próprio liderou o processo na questão agrária (…)”.3
Esta é uma avaliação que não faz concessões e é uma em relação à qual as OSC que trabalham
no campo minado da governação e dos Direitos Humanos achariam pouco justa, dados os
sacrifícios feitos por alguns dos seus activistas nos últimos oito anos. No entanto, a crítica é
implacável como podemos ver pelos sentimentos de um dos activistas do sector:
“(…) a sociedade civil, principalmente o movimento dos Direitos Humanos, está frag-
mentada por personalidades ambiciosas com as suas próprias agendas de “poder”. As
chamadas redes são, na maior parte das vezes, compostas por pequenos grupos de elite de
3
Ver IJR, Zimbabwe Uptdate, Julho de 2004.
Lloyd M. Sachikonye l Sociedade Civil, Democratização e Política no Zimbabué 329

activistas, que raramente entram em contacto com as organizações que dizem representar,
dirigindo a rede de trabalho como uma ONG autónoma com meia dúzia de funcionários e
sem uma base real de membros. Estas redes não conseguem mobilizar apoios quando são
necessários e enquanto as organizações se contentam em enviar os seus representantes
a conferências caras, são menos as pessoas que saem às ruas em resposta aos apelos de
protesto pacífico, do que aquelas que aparecem para almoçar em hotéis de cinco estrelas
(…)” (cit. in Alexander, 2005).
De acordo com esta crítica a sociedade civil é descrita como centrada em Harare e
primordialmente urbana. Acentuando que a maioria das organizações dos Direitos
Humanos “nunca sai de Harare”, argumenta-se que os escritórios provinciais/locais
das OSC “mal e raramente funcionam” e muito se perde se as experiências e opiniões
locais não forem tidas em conta. (Ibid.)
Outros analistas notam, num tom mais moderado, que as OSC enfrentam a mais
abrangente tarefa de voltar ao seu trabalho de raiz, onde e sempre que seja possível, e
canalizar os seus recursos para dar poder (empower) ao cidadão comum (Alexander e
Raftopoulos, 2005). O desafio para as OSC é, então, o de encontrar formas de “restau-
rar a confiança” de maneira a resistirem elas próprias, e os Zimbabueanos em geral,
à opressão, o que lhes exigirá que se juntem na defesa contra os ataques contínuos da
parte de um Estado que, para tal, utiliza métodos nem sempre directos, mas muitas
das vezes e cada vez mais indirectos.
As OSC têm demonstrado alguma elasticidade em relação aos ataques do Estado. Alguns
dos feitos das OSC nestas circunstâncias têm sido impressionantes, tornando-se alvos
prioritários de violentos ataques do governo; alguns activistas têm sido mortos, outros
presos e torturados, e alguns órgãos de comunicação social independentes têm sido en-
cerrados ou atacados à bomba. Foi esse o caso do ataque bombista ao jornal Daily News
e à rádio Voice of The People com o consequente fecho daquele jornal em 2003. Três outros
jornais independentes foram subsequentemente encerrados. Na tentativa de fechar o
pouco espaço democrático restante, uma série de novas leis restritivas foi introduzida
entre 2002 e 2004. Estas leis, como o Decreto-Lei de Segurança e Ordem Pública (Public
Order and Security Act – POSA) e o Decreto-Lei de Protecção da Privacidade e Acesso à
Informação (Access to Information and Protection of Privacy Act – AIPPA) tiveram como
principal objectivo restringir as actividades de protesto organizadas pela sociedade civil
e pelo movimento da oposição. Jornalistas, delegados sindicais, estudantes e activistas
dos Direitos Humanos sofreram o jugo da repressão. Organizações como a Assembleia
Nacional Constituinte (National Constitutional Assembly – NCA), o Congresso dos Sindica-
tos do Zimbabué (Zimbabwe Congress of Trade Unions – ZCTU); a Associação Nacional de
Estudantes do Zimbabué (Zimbabwe National Student Union – ZINASU) e o movimento
de Mulheres do Zimbabué (Women of Zimbabwe Arise – WOZA) viram os seus líderes
repetidamente encarcerados por razões políticas.
Ainda assim, as OSC não abrandaram no seu criticismo ao autoritarismo. Baseadas em
extensas pesquisas e no acompanhamento das comunidades rurais, os relatórios das
OSC sobre as violações dos Direitos Humanos foram a principal fonte de informação
credível, tanto para a comunidade internacional como nacional. Essa informação
veio a revelar-se vital nos casos de violência política e de irregularidades eleitorais
apresentadas nos tribunais e aos grupos de observação das eleições como a Com-
monwealth, a União Europeia, o Fórum Parlamentar da SADC e órgãos legais como a
Comissão Africana para os Direitos Humanos (African Commission for Human Rights)
330 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

e a Associação Internacional das Ordens de Advogados (International Bar Association)


(Anand et. al. 2004; Tibaijuka, 2005). Este papel assumido pelas OSC retira de certa
forma a carga crítica acima mencionada, que é exagerada e em parte radical. Mais à
frente voltaremos a discutir porque é que o papel das OSC que trabalham nas áreas
da governação e dos Direitos Humanos tem sido particularmente sensível para o Es-
tado do Zimbabué. Por enquanto, concentremo-nos no papel central do Estado neste
contexto social e político autoritário.

4 – O Estado e o Governo no Zimbabué


O Estado do Zimbabué e o governo da Zanu-PF são os principais protagonistas na
questão das OSC. Como se alterou o seu carácter desde a década de 1980, quando
parecia ser então uma instituição benevolente e atenta aos interesses das diversas
camadas da sociedade?
Desde logo há que referir que se trata de um Estado fundado numa cultura política e
em práticas geradas durante a luta pela independência. Como foi correctamente obser-
vado:
(…) ao mesmo tempo que o nacionalismo dava origem a uma unidade de discurso con-
tingente (…) esta força mobilizadora trazia também consigo tendências impróprias que
minaram a democracia (…) (Raftopoulos, 2006).
O novo Estado independente do Zimbabué não cortou com a tradição de violência
e autoritarismo nacionalista, nem com os métodos e técnicas opressivas coloniais
(Ndlovu-Gatsheni, 2004). Não conseguiu desmilitarizar os seus métodos de mobili-
zação política e de gestão das instituições e herdou rapidamente as estruturas ainda
existentes e orientadas para a segurança deixadas pelo Estado colonial, com graves
implicações para a democracia, os Direitos Humanos e a segurança comunitária (Ibid.).
Assim, o desenvolvimento estatal depois da independência consistiu, por um lado,
numa mudança na liderança do governo e, por outro lado, na manutenção das estru-
turas e práticas repressivas do Estado.
Este legado do carácter e da tendência autoritária do Estado pós-colonial explica os
excessos da sua resposta à dissenção política nas províncias de Matabeleland e Midlands
entre 1982 e 1987, bem como o recurso periódico às detenções de opositores como os
activistas do movimento laboral e estudantil. No entanto, foi só a partir de 2000 que
o arsenal autoritário do Estado foi propositada, sistemática e massivamente dirigido
contra as OSC e o movimento da oposição. Esta foi a resposta do governo da Zanu-PF
ao que sentiu ser uma ameaça à sua continuidade no poder.
O Estado recorreu não só aos organismos do partido, como a juventude da Zanu-PF,
mas também a oficiais dos centros de Serviço Nacional, veteranos de guerra, polícia e
serviços secretos, para reprimir a oposição e as OSC envolvidas na área dos Direitos
Humanos e da governação. Houve uma fusão sem precedentes entre o partido e as
estruturas do Estado como mecanismo de sobrevivência do governo de Robert Mu-
gabe. Aquelas estruturas penetraram em quase todos os níveis da sociedade com uma
lógica de patrimonialismo, clientelismo e controlo, serviços de inteligência política e
coerção (Hammar et. al. 2003). No período entre 2000 e 2008 assistiu-se à consolidação
e presença deste pouco convencional aparelho estatal e isto explica o penetrante medo
e alienação da população em relação ao aparelho do Estado.
Lloyd M. Sachikonye l Sociedade Civil, Democratização e Política no Zimbabué 331

5 – A Militarização do Estado
Um elemento chave do sistema autoritário é a contínua militarização dos órgãos cruciais
do Estado Zimbabueano. A sua face visível tem sido a nomeação de elementos do topo da
hierarquia das forças armadas e de segurança para cargos políticos. Majores, Coronéis e
Generais na reforma foram recompensados com lugares no Comité Central e no Bureau
Político da Zanu-PF, como membros do Parlamento, Governadores e Ministros. Outros
oficiais das Forças Armadas e das forças de segurança foram designados para liderar
ministérios chave (tais como os Transportes e a Energia) e companhias semi-estatais
como o Conselho de Venda de Cereais (GMB)4 e a Companhia Petrolífera Nacional do
Zimbabué (NOCZIM).5 Nas eleições de 2002 e 2005 os militares estiveram activamente
envolvidos no processo eleitoral ao dirigirem o Centro de Comando das Eleições Na-
cionais6. Não restam dúvidas de que o governo de Mugabe depende da cooperação e
apoio dos militares e das forças de segurança para o seu projecto autoritário. Para além
da suposta lealdade dos militares e do pessoal das forças de segurança (que constituem
as razões principais da sua nomeação para os lugares de Estado), não existe nenhuma
evidência que sustente que a sua capacidade e eficiência sejam superiores às dos seus
pares civis. Desta forma, o processo de militarização do Estado é outra forma de patri-
monialismo político que tem estado na base do declínio do país.
Este é, no geral, o difícil contexto em que as OSC trabalham actualmente no Zimbabué.
Elas operam dentro de um quadro hegemónico do Estado e partido governante, que
ainda se apoia na legitimidade criada pela guerra da independência (Dorman, 2001).
No entanto, este cenário não é realmente hegemónico. É do conhecimento geral que
existem facções dentro da Zanu-PF, facções essas que competem na corrida pela su-
cessão do poder à medida que a era Mugabe se aproxima do fim. A acesa agitação em
torno da questão da sucessão tem sido vividamente descrita numa série de artigos de
um dos participantes nesse processo, o ex-Ministro para a Informação e Publicidade,
Jonathan Moyo (Moyo, 2006).
Parecem também existir divergências quanto à política económica, havendo algu-
mas franjas do Estado que pressionam por prudentes reformas fiscais, monetárias e
agrárias, enquanto outras lhes resistem, favorecendo antes os mecanismos da lógica
patrimonial e benefícios políticos de curto-prazo, clientelares. Para além disso, têm
existido divergências entre o Ministro da Justiça e o braço dos serviços de inteligência
e serviços secretos sobre até onde se deve ir para perseguir a oposição do MDC.
É, portanto, importante que as OSC olhem para o Estado não como uma entidade mono-
lítica, mas como uma série de instituições e aparelhos que entram por vezes em tensão
e que funcionam com objectivos opostos, cruzados, se não mesmo em confusão!
Por fim, apesar do seu arsenal formidável, o Estado do Zimbabué está enfraquecido.
É comummente descrito como um “Estado falhado” (failed State) apesar de não se en-
contrar ao mesmo nível dos da Somália ou da Serra Leoa. Em parte, é um Estado frágil
porque a sua base de sustentação económica se contraiu consideravelmente. Não só
a sua taxa de inflação é a maior do mundo e o investimento um dos mais baixos, mas
também a sua dívida interna e externa é significativa. O Estado do Zimbabué enfrenta
a perspectiva de ver cada vez mais diminuídos os seus recursos. Existe um limite à
4
Grain Marketing Board.
5
National Oil Company of Zimbabwe.
6
National Election Command Center.
332 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

capacidade de resolver crises por via da simples impressão de mais papel-moeda.


Ao mesmo tempo que as tendências paranóicas do Estado não diminuíram, existem
pressões para a normalização das relações com o Ocidente enquanto parte do processo
para lidar com a crise económica. Assim, as pressões por reformas são tanto internas
como externas. Isto também coloca às OSC o desafio de saber como influenciar o nível
e a forma da pressão por reformas.

6 - O Movimento de Oposição e a Crise


Após um longo período de alguma marginalização no pós-independência, o movimen-
to da oposição tornou-se uma força galvanizada em 1999 e chegou quase a incomodar a
Zanu-PF nas eleições de 2000. Manteve-se uma força formidável nas eleições presiden-
ciais de 2002, marcadas pela violência e pelas irregularidades. A principal força dentro
do movimento da oposição é o MDC fundado por Morgan Tsvangirai em Setembro de
1999. O MDC é um aglomerado de vários grupos sociais: sindicatos de trabalhadores,
secções do empresariado, estudantes e jovens, classe média e proletariado. Desde a
sua fundação tem sido um movimento pouco unido, tendo como objectivo confesso
derrubar o governo de Mugabe. Mais do que um movimento bem estruturado com
uma linha ideológica bem definida, o MDC tem sido um movimento de protesto,
uma coligação instável das classes proprietárias (tais como fazendeiros) e as classes
profissionais e médias dos grupos marginalizados e explorados. Sem uma base rural
forte é predominantemente urbano e assenta, largamente, num “voto generalizado
de protesto”; tem-se revelado incapaz de consolidar as suas bases partidárias e redes,
assim como clarificar a sua linha ideológica e projecto social (Raftopoulos, 2006).
O ambiente repressivo no seio do qual nasceu e onde se tem encrostado contribuiu
para a sua fragilidade, incluindo a sua pouca capacidade de apelo aos potenciais cons-
tituintes rurais. Algumas leis como o POSA e o AIPPA foram deliberadamente feitas
para impedir o seu crescimento a nível nacional, após o seu promissor desempenho
nas eleições de 2000 e de 2002. Muitos dos seus representantes no parlamento foram
presos, perseguidos e até torturados. O MDC viu a autorização para as suas reuniões e
manifestações ser negada ou dada a contra gosto com a contrapartida de uma vigilân-
cia e acompanhamento próximos pelas autoridades estatais. Por outro lado, os media
estatais têm sido constantemente hostis ao MDC. Em suma, o ambiente autoritário tem
sido desfavorável ao crescimento organizacional do movimento da oposição.
As divisões no interior do MDC começaram a aumentar e a tornar-se visíveis a partir
de 2005. À primeira vista estavam relacionadas com divergências sobre a táctica a
utilizar em relação à reintrodução da câmara do Senado. Houve grande debate no
seio do partido sobre se deveria participar nas eleições para o Senado, marcadas para
Novembro de 2005. Este debate adquiriu dimensões de uma luta pelo poder quando
uma facção liderada pelo líder fundador do partido, Morgan Tsvangirai, apelou ao
boicote às eleições, enquanto outra liderada pelo Secretário-Geral Welshman Ncube
decidiu apresentar candidatos às mesmas. Esta divisão levaria à realização de dois
congressos partidários separados, no início de 2006, e a uma tendência constante para
o divórcio entre as duas facções. Ainda que a facção liderada por Tsvangirai tenha
aparentemente conseguido assegurar apoiantes suficientes para derrotar a facção
liderada por Ncube nas eleições para a liderança do partido em Maio de 2006, a di-
visão enfraqueceu efectivamente o partido. Não obstante a dimensão desta divisão
ter sido sobrevalorizada, resta saber se o MDC será capaz de recuperar totalmente
Lloyd M. Sachikonye l Sociedade Civil, Democratização e Política no Zimbabué 333

deste desastre. Até agora, crédito lhes seja feito, a maior parte das OSC parecem não
ter tomado partido. O apoio a qualquer um dos lados teria minado a credibilidade e
autonomia das OSC.

7 - O Papel Especial das OSC nas Áreas da Governação e dos Direitos


Humanos
As OSC que trabalham nas áreas da governação e dos Direitos Humanos têm um espe-
cial papel a desempenhar ao contribuírem para se encontrar uma alternativa ao actual
autoritarismo. Esta é uma missão por elas assumida em 1990 mas que se tornou mais
urgente desde 2000, ano em que a crise se começou a acentuar. O seu papel na defesa da
democracia, boa governação e protecção dos Direitos Humanos é vista pelas autoridades
estatais como “profundamente política”. De facto, as autoridades estatais sentem-se
bastante desconfortáveis com o papel de “vigilantes democráticos” desempenhado pelas
OSC nestas áreas e daí os seus esforços para os deslegitimar nesse papel. A crítica tem
sido liderada por ninguém menos do que o próprio presidente Mugabe:
(…) lida-se politicamente com os opositores políticos. Eles não se devem lamuriar, pois foram
eles que redefiniram as regras do seu envolvimento (…) o dinheiro continua a jorrar de
forma variada: através de indivíduos, de Cavalos de Tróia, entre eles as ONG, os sindicatos,
alguns media privados, embaixadas (…) tudo para ser usado contra nós (…).7
A desconfiança e a hostilidade do Estado em relação às OSC aprofundou-se no rescal-
do do resultado do referendo de 2000. Considerou-se que as OSC estavam alinhadas
com o movimento da oposição e apostadas em “mudar o regime”. As ONG em geral
e as OSC envolvidas na área da governação e dos Direitos Humanos em particular
foram demonizadas como uma ameaça à estabilidade e à segurança nacionais. Entre
as OSC denegridas estão não as mais comummente referidas — NCA8, ZIMRIGHTS9 e
ZLHR10 — mas também outras como a ZCTU11, a Comissão Católica para a Paz e Justiça
(CCJP)12 e a Coligação Zimbabué em Crise (CZC)13, só para mencionar algumas.
Claramente, o sector da governação e dos Direitos Humanos é extremamente sensível
para o Estado do Zimbabué. As OSC que trabalham nesta área são vistas como um
obstáculo à propaganda governamental que defende e faz passar a mensagem de que
não existem violações ou práticas antidemocráticas no país. É claramente perturbador
para o Estado passar grande parte do tempo a responder a alegações desse género
feitas tanto pelos media nacionais como internacionais. É embaraçante responder a
queixas sobre violações apresentadas na Comissão dos Direitos Humanos da ONU,
na Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e em agências similares.
As denúncias das OSC têm sido valiosas para chamar a atenção para a situação de
autoritarismo no Zimbabué. Este papel desempenhado pelas OSC requer uma cora-
gem e empenho consideráveis, correndo riscos reais enormes. A grande atenção dada
pelas autoridades estatais ao seu trabalho é um tributo à sua eficácia, incluindo a cínica
tentativa de proibir o seu financiamento.
7
Discurso do Presidente Mugabe na 51.ª Sessão ordinária do Comité Central da Zanu-PF.
8
Assembleia Constitucional do Zimbabué.
9
Associação dos Direitos Humanos do Zimbabué.
10
Advogados do Zimbabué pelos Direitos Humanos.
11
Congresso dos Sindicatos do Zimbabué.
12
Catholic Commission for Justice and Peace.
13
Crisis Zimbabwe Coalition.
334 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Passemos agora a considerar as oportunidades e os desafios que as OSC que traba-


lham nas áreas da governação e dos Direitos Humanos encontram, num contexto de
continuados obstáculos à democratização.

8 - Oportunidades, Desafios e Questões Estratégicas para as OSC


O período após as eleições de 2005 deu às OSC a oportunidade de reflectirem sobre o
seu papel nas áreas da governação e dos Direitos Humanos nos oito anos precedentes.
Deu semelhante oportunidade aos partidos da oposição, principalmente ao MDC. Uma
vez que o horizonte temporal destas organizações tem sido geralmente curto — limi-
tado aos referendos e aos ciclos eleitorais de 2 a 3 anos (em Fevereiro de 2000, Junho
de 2000, Março de 2002 e Março e Novembro de 2005) — não tem havido tempo para
reflectir e para planear estratégias de médio e longo prazo.
Apesar da atmosfera deste período ter carregado de energia e estimulado o empenho
da maior parte das OSC, o âmbito de curto-prazo dos seus objectivos e do seu pla-
neamento tornou-as essencialmente reactivas às iniciativas do governo da Zanu-PF.
Talvez não pudesse ter sido de outra forma: era necessário que existissem campanhas
contra a pletora de legislação repressiva tal como o Decreto-Lei da Ordem e Segurança
Pública (POSA)14, o Decreto-Lei de Protecção da Privacidade e Acesso à Informação
(AIPPA)15, o Decreto-Lei dos Serviços de Informação (BSA)16 e a Lei das ONG, bem
como contra operações de larga escala (e.g. a Operação Murambatsvina17). Quase não
existiu nenhum interstício ao longo do qual as OSC pudessem ter tido tempo para
avaliar as suas estratégias e tácticas. O mesmo se passou com o MDC que, logo após
as eleições gerais de 2005, se dividiu sobre a questão da candidatura às eleições para
o Senado em Novembro desse ano. No início de 2008 chegou-se à conclusão que as
OSC se encontravam consideravelmente mais fracas do que estavam oito anos antes e
que se tinham tornado menos pró-activas em relação aos seus objectivos e programas
durante esse período e mais reactivas.
Paralelamente, o governo do Zimbabué dá mostras de ter ficado sem iniciativa nas
frentes sociais e económicas enquanto a falência continua. Com a economia no oitavo
ano consecutivo de declínio, existe uma desilusão generalizada e previsões de agitação
social. A reintrodução do Senado não dá mostras de ter alterado de forma minimamen-
te significativa a paisagem política. A questão da sucessão na liderança da Zanu-PF
parece ter sido temporariamente resolvida, agora que a campanha para as eleições de
2008 arrancou. Porém, a política das facções e alinhamentos dentro daquele partido
não deixou de existir. É dentro deste contexto que a questão constitucional ganha
renovada proeminência. A legitimidade das eleições de 2008 depende, em parte, da
forma como a questão constitucional é abordada. Há tanto em jogo para os políticos
da Zanu-PF como para os do movimento da oposição.

14
Public Order and Security Act – POSA
15
Access to Information and Protection of Privacy Act – AIPPA
16
Broadcasting Services Act – BSA
17
Operação Murambatsvina [Português: “Acabar com o lixo”] levada a cabo entre Maio e Julho de 2005 por todo o
país, tendo consistido numa campanha governamental para acabar com bairros degradados (clandestinos), tendo
levado ao desalojamento forçado de largas franjas populacionais dos pobres urbanos e rurais e onde se concentrava
um forte apoio da oposição ao governo de Mugabe. De acordo com as Nações Unidas a operação terá afectado
pelo menos 2,4 milhões de pessoas. O governo de Mugabe justificou a operação com a necessidade de combate à
construção e às actividades comerciais clandestinas e como um esforço para reduzir o risco de alastramento das
doenças infecciosas naquelas áreas.
Lloyd M. Sachikonye l Sociedade Civil, Democratização e Política no Zimbabué 335

O reavivar da questão constitucional dá às OSC a oportunidade para ressuscitarem


a sua agenda em favor das reformas. No entanto, necessitarão de ter em conta a al-
teração das circunstâncias e imperativos que são agora diferentes dos de 1999 e de
2000. As OSC deverão ter em mente a existência de três propostas constitucionais – as
da Comissão Constitucional, da NCA, e várias Emendas Constitucionais acordadas
bilateralmente entre o MDC e a Zanu-PF em 2007. Para além disso, a debilidade ou
ausência de uma tradição constitucionalista na sociedade e nos partidos do Zimbabué
deve ser superada e lançadas as bases adequadas para a sua formação. Em comparação
com as perspectivas de curto prazo evidentes em 1999, existirá a necessidade de uma
perspectiva de longo prazo sobre a forma como deve decorrer o processo da reforma
constitucional e sobre o conteúdo da Constituição. Resumindo, o reavivar da questão
constitucional dá às OSC que trabalham nas áreas da governação e dos Direitos Hu-
manos a oportunidade para reafirmarem a sua influência e os seus valores através da
educação cívica e de outras formas de advocacia (defesa pública de objectivos, políticas
e princípios) e de empowerment.
Ainda assim, manter-se-ão um grande número de desafios e constrangimentos à
abertura enquanto parte do processo de democratização.
O primeiro está relacionado com o formidável aparelho estatal que o governo da
Zanu-PF construiu e consolidou ao longo dos últimos 28 anos, quer seja na adminis-
tração pública, nas empresas mistas, nas autoridades locais, no exército, na polícia
ou nos serviços de inteligência ou serviços secretos. Além disso, os seus tentáculos
patrimonialistas chegam a muitos estratos da sociedade, das bases ao topo. Qualquer
estratégia de reforma deve desenvolver um método para lidar com estes interesses
velados. De forma geral, não parece que as OSC se tenham dedicado a estas questões
e, no entanto, elas encontram-se no coração do actual atraso de que padece o país.
Em resumo, quais os pilares e interesses que presentemente sustentam o governo de
Mugabe e que deveriam fazer parte das reformas?
O segundo prende-se com o facto do Estado do Zimbabué estar interessado em me-
lhorar a sua imagem tanto na região como a nível internacional. Apesar deste processo
ser hesitante, é provável que continue; a título de exemplo, acedeu às Orientações e
Princípios sobre Eleições Democráticas da SADC18 e tenciona criar uma Comissão de
Direitos Humanos de acordo com a recomendação da Comissão dos Direitos Humanos
e dos Povos da União Africana19. Ainda que o Estado gostasse de não fazer qualquer
cedência minimamente significativa (para além daquelas necessárias à manutenção
de uma fachada democrática), percebe agora o valor do reconhecimento internacional
mais do que há oito anos atrás, reconhecimento esse que exige mudanças efectivas.
As OSC devem aproveitar esta esquizofrenia estatal e exporem todas essas tendências
contraditórias. Acima de tudo devem estar atentas à existência de opiniões divergentes
sobre as reformas, por parte de facções, também elas divergentes, dentro da Zanu-PF e
do governo. Enquanto uma ala gostaria de manter uma linha dura tanto a nível interno
como internacional, uma vez que beneficia do status quo, outra tem defendido uma linha
de acção mais suave, prudência económica e aceitação por parte da comunidade inter-
nacional. Nos seus programas e estratégias de acção as OSC devem contemplar estas
fissuras e divergências no seio do aparelho de Estado, do partido e do governo.

18
SADC Guidelines and Principles on Democratic Elections
19
AU Commission on Human and Peoples’ Rights
336 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Um conjunto de questões que sobressai desta análise prende-se com as mudanças no


panorama político e social nestes últimos anos. É comum afirmar-se que a violência
política atingiu o seu pico em 2002-03 tendo exibido a sua face mais tenebrosa desde
o início de 2000. Durante as eleições parlamentares de Março de 2005 e as do Senado
em Novembro do mesmo ano, a violência política aberta foi significativamente me-
nor, tendo existido menos violações dos Direitos Humanos nas campanhas eleitorais.
Apesar da maior parte dos observadores ter relatado várias acções subtis de intimi-
dação dos eleitores e de molesta dos candidatos e apoiantes da oposição, a escala da
violência foi reduzida. Paralelamente, assistiu-se ao incremento de outras formas mais
aprimoradas, menos explícitas, de violação dos Direitos Humanos e de intimidação,
que ainda ganharam maior dimensão durante a Operação Murambatsvina levada a cabo
entre Maio e Julho de 2005 por todo o país. Todas a organizações dos Direitos Humanos
estiveram envolvidas, quer documentando os efeitos da operação quer assistindo e
apoiando as vítimas. Os problemas mais importantes incluem a necessidade de novos
instrumentos para medir ou documentar as novas formas de violência, trauma, stress
e medo na era pós-Operação Murambatsvina.
Outra questão emergente está relacionada com a forma como se deve reagir às mudan-
ças de estratégia do Estado em relação às OSC e aos assuntos chave. A passagem da
violência exercida às claras para a violência subtil e camuflada, deixando a intimidação
aberta para passar à manipulação cínica dos mecanismos da punição-retribuição da
lógica patrimonialista, principalmente através da distribuição clientelista de géneros
alimentares, são sinais dessa mudança de estratégia do governo. Para além disso, o
governo parece ter concluído uma lei das ONG, ainda à espera de aprovação, com
os mesmos resultados — ao nível da intimidação, autodisciplina e cautela — de uma
outra anteriormente aprovada sobre as OSC. Este refinar da estratégia passa também
por medidas de cosmética externa quando o governo declara a intenção de criar a
Comissão dos Direitos Humanos em conformidade com as recomendações da Co-
missão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Esta medida teve a intenção de
mostrar sinais de melhoria e abertura, mas é pouco provável que a referida Comissão
dos Direitos Humanos venha a ser efectivamente independente e eficaz na persecução
dos seus objectivos. Um dos desafios para as OSC vai ser saber como responder a tais
iniciativas, manobras e alterações de táctica e estratégia governamental.
Examinemos agora o problema das estratégias e dos desafios das OSC neste panorama
em mudança.
9 - Outros Desafios das OSC

9.1 - Mobilização de recursos e sustentabilidade face à repressão


Um outro desafio prende-se com os escassos recursos e com a dependência da maior
parte das OSC em relação a financiamentos externos. Esta dependência torná-las-ia
vulneráveis caso a lei das ONG fosse aprovada pelo Presidente. Não está claro que as
OSC possuam alternativas para o caso de verem passar uma lei que proíba o finan-
ciamento àquelas que trabalhem na área da governação e dos Direitos Humanos. É
nossa reflectida opinião que a mudança das sedes para localizações externas, apesar
de adiar os problemas de financiamento, pode expor muitas OSC à acusação de agi-
rem de acordo com “agendas políticas externas” e de perderem legitimidade interna.
Como vimos, a maioria das OSC não possui estruturas descentralizadas funcionais
Lloyd M. Sachikonye l Sociedade Civil, Democratização e Política no Zimbabué 337

e a deslocalização das sedes para o exterior agravaria a falta de representatividade,


legitimidade e responsabilização (accountability) para com as populações a nível local.
É necessário que exista uma estratégia (ou estratégias) bem delineadas, ou mecanismos
de cooperação no caso do “impensável” acontecer — o corte do financiamento externo.
O investimento feito pelas OSC durante os últimos oito anos, e até talvez mais, na
educação cívica e nos Direitos Humanos, é valioso demais para se deitar a perder.

9.2 - Capacidade estratégica de resposta aos novos esquemas de actuação


do Estado
Nos últimos oito anos o Estado do Zimbabué tem mostrado alguma capacidade de
alterar as suas estratégias para conter ou prejudicar as OSC que trabalham nas áreas
da governação e dos Direitos Humanos. Tem utilizado propaganda e técnicas de difa-
mação para efectivamente conseguir retratar as OSC como aliadas do partido oposi-
cionista MDC e como representantes dos interesses do Ocidente no país, incluindo os
doadores. Assim que esta táctica perdeu efeito face à apresentação de documentação
credível comprovando a existência de actos de violência e de violações dos Direitos
Humanos por parte dos órgãos do Estado, o governo fez aprovar decretos-lei como
o POSA e o AIPPA que reduziram grandemente o espaço no qual as OSC e os media
independentes podiam trabalhar.
Perante a opinião mundial que acusava o governo do Zimbabué de violar o primado
do “Estado de Direito”, aquele respondeu cinicamente ao introduzir estas novas leis
repressivas no quadro jurídico Zimbabueano. A necessidade de respeito pela nova
legislação coarctou a crítica legalista de alguns Estados, principalmente em África,
para com o governo Zimbabueano, pelos actos de clara repressão que este continuou
a praticar, agora ao abrigo da lei. Quando algumas instituições africanas tais como a
Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos conseguiram passar a fase da
veneração cega da lei, percebendo os artifícios legais criados pelo governo zimbabueano
e voltando a criticar as violações dos Direitos Humanos, o governo do Zimbabué foi
atrasando a resposta por eles exigida.
Apesar deste cenário, existem duas outras iniciativas que ilustram bem como o gover-
no procura fingir a sua preocupação com os Direitos Humanos e eleitorais. Aceitou as
Orientações e Princípios sobre Eleições e Democracia da SADC (em 2004) e pretende
criar uma Comissão dos Direitos Humanos (possivelmente em 2008). Para além disto,
não estaria fora da sua linha de acção a introdução de reformas constitucionais neste
sentido. Nas eleições de 2005 o governou trabalhou em proximidade com as estruturas
partidárias (Zanu-PF) para procurar uma redução significativa nos níveis de violência.
Esta medida foi deliberada e calculada para responder às fortes críticas internacionais em
relação à violência política que acompanhou as eleições de 2000 e de 2002. No entanto,
outra estratégia do governo tem sido a de criar ONG e instituições paralelas que na re-
alidade estão alinhadas com a Zanu-PF. Entre estas contam-se uma federação nacional
do trabalho (Federação dos Sindicatos do Zimbabué), um grupo estudantil (Congresso
dos Estudantes do Zimbabué) e algumas organizações religiosas (uma facção da Igreja
Anglicana liderada pelo Bispo Kunonga), entre outras, que apoiam o governo.
O desafio reside na forma como as OSC podem antecipar e responder a estas tácticas
e esquemas governamentais que incluem a regra do “dividir para reinar” e cuja inten-
ção é a de fomentar a fragmentação entre as ONG, tal como ficou patente na tentativa
338 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

do governo em isolar as ONG que trabalham nas áreas da governação e dos Direitos
Humanos de todas as outras. Na maioria dos casos, a tendência das OSC tem sido a
de trabalhar de uma forma reactiva a estes acontecimentos (a posteriori). Até que ponto
deveriam pressionar o Estado para um envolvimento mais acelerado e efectivo na
questão da Comissão dos Direitos Humanos? De que formas podem elas fazer lobby
pela reforma constitucional? É interessante verificar que, ao passo que o movimento
dos trabalhadores conseguiu envolver o governo na questão do Diálogo Social e pôde
mesmo chegar a acordo em determinados pontos, outras OSC não parecem demonstrar
iniciativas semelhantes noutras áreas.
Da mesma forma, um outro projecto que merece ser alimentado e apoiado é o que já
foi designado como grupo de reflexão estratégica das OSC (think tank), que trabalha-
ria de perto com as várias OSC para delinear estratégias, ideias, planificar cenários e
agendas de assuntos políticos. Mesmo que tal think tank não constituísse uma estrutura
a trabalhar a tempo inteiro, poderia reunir-se numa base bimensal ou trimestral para
reflectir sobre os desenvolvimentos e desafios e gerar ideias e propostas de planos
de acção futura. As OSC sofrem de um deficit nesta área enquanto o Estado e o seu
governo possuem tais recursos. Isto explica a tendência demonstrada pelas OSC em
actuarem de modo essencialmente reactivo e não pró-activo.

10 - Envolvimento com o Estado e outros Grupos de Interesse


Como vimos atrás, as estratégias de consolidação do autoritarismo por parte do go-
verno não são estáticas. Pode depreender-se isto pela forma como o governo deixou
de recorrer ao uso da violência política em larga escala, tal como havia feito de 2000 a
2003, passando de 2005 em diante a utilizar métodos mais subtis de violência psico-
lógica e de instigação do medo, bem como ao clientelismo selectivo no que respeita
à distribuição de bens alimentares, ao acesso à habitação, a empréstimos e a bolsas
de estudo, como forma de manter o status quo de 2005 em diante. Para além disso, o
Estado procurou manter-se na dianteira ao marcar a agenda política numa variedade
de assuntos, tais como a reforma agrária, diversas operações incluindo a Operação
Murambatsvina, a lei das ONG, a criação do Senado e, mais recentemente, a criação
(sem expressão objectiva) da Comissão dos Direitos Humanos, entre outros.
O desafio reside, então, em saber se e como se deve envolver o Estado e os outros gru-
pos de interesse nas questões relacionadas com a governação e os Direitos Humanos.
As respostas das várias OSC variam desde aquelas que se opõem terminantemente a
qualquer tipo de discussão ou negociação com as autoridades estatais até àquelas que
consideram valer a pena actividades de lobby e envolvimento com os órgãos do Estado.
Os desenvolvimentos destes últimos dois anos podem ter alterado algumas destas
posturas; por exemplo, a pressão intensa em torno da lei das ONG parece ter trazido
alguns resultados num espaço de tempo relativamente curto. Valeria, portanto, a pena
as OSC planearem uma estratégia em torno da concepção da referida Comissão dos
Direitos Humanos e levarem a cabo intensas actividades de lobby em torno da versão
institucional por elas pretendida. O mesmo se aplica à questão da reforma constitucio-
nal. Existem oportunidades, desafios, constrangimentos e dilemas a serem negociados
em qualquer tipo de relacionamento com as estruturas estatais, especialmente na actual
conjuntura. Ao passo que a profunda polarização e extremar de posições acaba por
representar um complicado emaranhado de obstáculos, a história mostra que não há
mudanças sem algum tipo de cedências, negociação e envolvimento.
Lloyd M. Sachikonye l Sociedade Civil, Democratização e Política no Zimbabué 339

Conclusão e Post Scriptum


Este artigo estaria incompleto caso não reflectisse sobre o significado da divisão do
MDC em 2005, assim como sobre o seu envolvimento no Processo de Diálogo Inter-
Partidário mediado pela SADC em 2007. A divisão do MDC em 2005 foi em grande
medida provocada por tensões derivadas de uma fraca democracia intra-partidária.
As esperanças iniciais depositadas pelas OSC nas credenciais democráticas do MDC
foram desapontadas dando origem a um sério repensar das relações entre os dois
lados. O processo de afastamento de grande parte das OSC em relação ao MDC rece-
beu um enorme ímpeto no final de 2007 quando veio a lume que o MDC tinha feito
importantes concessões à Zanu-PF no âmbito do Diálogo Inter-Partidário. As OSC
argumentaram que as reformas estabelecidas pela Zanu-PF no seguimento do Diálo-
go Inter-Partidário serviam apenas para iludir, cosméticas, sem qualquer significado
substantivo. Para além disso, a emenda constitucional n.º 18 acordada por ambos os
partidos não estava de acordo com o princípio de um processo constitucional dirigido
pelo povo. A maior parte das OSC começou a considerar o MDC mais movido pela
ambição de conquistar e partilhar o poder político com a Zanu-PF do que em tentar
atingir alterações democráticas substanciais.
No final de 2007 e início de 2008, as OSC procuraram constituir um Fórum de Grupos
de Interesse alternativo (Alternative Stakeholder’s Forum) que preparasse uma Conven-
ção do Povo (People’s Convention) para formular novas exigências, uma agenda sobre
democracia e um processo constitucional amplamente participado, que incluísse todas
as partes interessadas. No entanto, e em suma, o nível de desconfiança em relação
aos partidos políticos por parte das OSC aumentou nos últimos dois anos, mas muito
especialmente nos últimos seis meses20.
Concluindo, este texto pretendeu relatar a substancial contribuição das OSC para a luta
democrática no Zimbabué. A OSC envolvidas na área da governação e dos Direitos
Humanos têm suportado grandes riscos e responsabilidades num ambiente autoritário.
Surgiram questões estratégicas numa situação de prolongado impasse político que
dura há quase 10 anos entre um regime autoritário e o movimento da oposição. Estas
questões estão relacionadas com a necessidade de saber qual a via mais adequada para
as OSC na sua luta pela democracia: o envolvimento com movimentos da oposição
ou com as estruturas governamentais e estatais, com vista ao processo reformista?
Como vimos, as OSC procuraram reafirmar a sua autonomia em relação ao MDC à
luz da aproximação deste à Zanu-PF. Tal desenvolvimento sublinha o imperativo de
autonomia das OSC no seu papel de vigilantes dos partidos, tanto o dirigente/gover-
namental como os da oposição e igualmente do Estado.

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20
Este texto foi concluído em Fevereiro de 2008.
340 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

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341

Governação, Cultura Política


e Sociedade Civil sob a Liderança
de um Movimento de Libertação
no Poder: o Caso da Namíbia1

Introdução
Henning Melber
Fundação Dag
Hammarskjöld,
E ste capítulo realça as tendências da cultura política
pós-colonial sob a liderança do antigo movimento de
libertação SWAPO, da Namíbia2. Como outros movimentos
Uppsala, Suécia anti-coloniais na África Austral que enveredaram pela resis-
tência armada como último recurso da luta pela libertação
do colonialismo, a SWAPO adquiriu a legitimidade do poder
politico e ocupa o aparelho de Estado desde o fim do domínio
da minoria branca. Reorganizados como partidos, estes movi-
mentos definiram o sistema político, moldando e projectando
em grande medida o discurso público. No processo de cons-
trução da nação, tendem a operar com conceitos restritos de
inclusão/exclusão. A legitimidade destes governos baseia-se
em serem os — mais ou menos democraticamente eleitos —
representantes da maioria da população. Ao mesmo tempo,
contudo, a noção de democracia permanece um território
muito contestado.

1 - Hegemonia Política sob a Autoridade da Swapo


O mais impressionante fenómeno em termos de desenvolvi-
mento político desde a independência da Namíbia tem sido a
permanente conquista e consolidação do poder e do controlo
político pelo antigo movimento de libertação. De eleição para
eleição, durante os primeiros 15 anos, conseguiu acrescentar
cada vez mais força ao seu papel dominante. Inicialmente, a
Swapo falhou a desejada maioria de dois terços dos votos nas
eleições para a Assembleia Constituinte, em Novembro de
1989, mas alcançou-o nas eleições seguintes de 1994. Ainda
que em 1994 o número de votos a favor da Swapo tivesse sido
mais ou menos próximo do número de 1989, a abstenção foi
muito mais alta, permitindo a tão desejada maioria de dois

1
Texto traduzido do original em inglês por Pedro Cardoso
2
Esta é uma versão mais curta, revista e actualizada de uma análise sobre o governo
e a oposição (Melber 2007a). Para trabalhos anteriores e relacionados ver Melber
(2000, 2001, 2002, 2003a, 2003b, 2004, and 2006a). A South West African People’s
Organisation (originalmente SWAPO) foi mais tarde re-denominada SWAPO da
Namíbia e, no processo de abandono do seu carácter enquanto movimento de
libertação, designada por Swapo Partido. Este texto faz referência tanto à SWAPO
como à Swapo, dependendo do contexto e/ou da fonte/documento citado.
342 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

terços no parlamento e o consequente controlo total sobre o processo legislativo. Aquela


maioria foi depois consolidada durante a década que se seguiria.
A partir de meados dos anos noventa, um sistema político emergiu deixando transpa-
recer, no horizonte, a formação de um Estado de partido único e de um regime cada
vez mais autocrático. Para du Toi (1996, p. 59), o outrora movimento de libertação
conseguira, com os resultados das eleições de 1994, segurar a posição de um “partido
eleitoralmente dominante”, que estava “bem posicionado para estabelecer um ‘ciclo
de domínio’”. Como seria de esperar, nenhum partido da oposição com expressão
numérica minimamente significativa conseguiu afirmar-se como força política com o
peso suficiente para ser considerada um desafio sério à hegemonia política do antigo
movimento de libertação.
Tendo por base a sua reputação enquanto força libertadora e na ausência de alternativas
políticas sérias, a Swapo conseguiu assegurar com firmeza o domínio político, obten-
do continuamente uma cada vez maior proporção de votos, de uma forma bastante
legítima. O mandato alargado encorajou a percepção errónea de que supostamente o
governo deve servir o partido e que o Estado é propriedade do governo.
Com a maioria de dois-terços alcançada desde a segunda legislatura, que começou
em 1995, os legisladores da Swapo asseguravam também o quase monopólio sobre
o processo de decisão parlamentar. Para além disso, a nomeação de mais de metade
dos parlamentares do partido para ministros ou vice-ministros reduziu o parlamento
a uma câmara de eco, que raramente tentou controlar o executivo (Melber 2006a).
Consequentemente, em 1998 a Constituição foi alterada pela primeira vez. Apesar
das fortes objecções por parte da maioria dos outros partidos e de várias vozes no
seio da esfera pública, os representantes políticos da Swapo, eleitos nas duas câmaras
(Assembleia Nacional e Concelho Nacional), levaram a cabo a alteração constitucional,
permitindo ao seu Presidente encabeçar um terceiro mandato como Chefe de Estado
(Melber 2006b). Nesse mesmo ano (1998), o país interveio na guerra na República De-
mocrática do Congo, por ordem pessoal e directa do Chefe de Estado. Nem o governo
nem o Parlamento foram tidos em consideração nesta matéria.
Os críticos destas e de outras questões foram e continuam a ser rotulados como ele-
mentos antipatrióticos. A lealdade à Namíbia é confundida com a lealdade à política
da Swapo e em particular à política executada pelo Presidente do partido. Enquanto
legado, tanto do colonialismo como da luta contra o domínio estrangeiro (pelo regime
do Apartheid), um estudo crítico conclui, já em meados dos anos noventa, que “uma
psicose do medo está a difundir-se em toda a sociedade namibiana” (Diescho 1996,
p. 16). Uma cultura de silêncio tornou-se, desde então, numa parte integrante da re-
alidade política da Namíbia, segundo a qual os “bons patriotas” não criticam. Visões
dissidentes são marginalizadas. Os esforços de construção da nação acontecem às
expensas das minorias. Sentimentos xenófobos e homofóbicos (contra homosexuais)
estão entre o repertório dos detentores dos mais altos cargos políticos, muitas vezes
combinados com uma inclinação “anti-branca”.
A independência do poder judicial é abertamente questionada quando surgem de-
cisões impopulares desfavoráveis à vontade política do governo. O Namibian Today,
semanário da Swapo, ataca da forma mais vulgar os que não estão alinhados com o
que é considerada (no sentido estrito do termo) a política oficial do partido e recorre ao
insulto como estratégia confortável para evitar discussões com argumentos sérios sobre
Henning Melber l Governação, Cultura Política e Sociedade Civil na Namíbia 343

assuntos importantes. Por diversas ocasiões, membros do partido (incluindo elementos


do governo) defenderam as suas visões anti-democráticas sustentando abertamente
medidas inconstitucionais, sem que o partido ou o governo os corrigissem.
O auto-enriquecimento dos políticos e detentores de elevados cargos que para tal usam
o seu acesso privilegiado ao aparelho de Estado, tem sido até agora tolerado sem ter
em conta a moral pública (Kössler/Melber 2001) e ilustra o surgimento de um novo
interesse de classe, pós-colonial, entre a elite política (Tapscott 1995 and 2001, Melber
2005 and 2007b). As práticas aplicadas na persecução dessa estratégia, guiada pelos
interesses materiais da nova elite, estão tudo menos a fortalecer a cultura de transpa-
rência e responsabilidade (accountability), minando também o processo democrático
e a sua consolidação. Aqueles que têm a coragem para agir enquanto denunciantes
são muitas vezes objecto de inquérito judicial, enfrentando punições disciplinares e
acusações de traição ao interesse nacional.
As eleições parlamentares e presidenciais de 15 e 16 de Novembro de 2004 dão conta
dos mais recentes resultados que ilustram o domínio esmagador do partido no poder.
A forma como os membros do partido detentores de cargos políticos e servidores da
coisa pública abusaram do seu acesso à logística do aparelho de Estado durante a
campanha confirmou, uma vez mais, a falta de distinção entre o partido e o governo,
e entre o governo e o Estado. Instalações do Estado e propriedade pública, como por
exemplo meios de transporte e comunicação, foram usados para propaganda do
partido durante a campanha eleitoral. A Namibian Broadcasting Corporation (NBC),
detida pelo Estado, dedicou um tempo desproporcional a favor da Swapo, nos seus
noticiários radiofónicos e televisivos. Em parte, sucedeu o mesmo no modo como a
Swapo tem mobilizado os eleitores desde que assumiu o governo, ao “não ser capaz
de distinguir a sua existência enquanto partido e enquanto governo, quando enumera
os objectivos por si alcançados” (Boer 2005, p. 53). Vai mais longe, até, ao recusar-se,
simplesmente, a ser comparada com outros partidos. Quando em 2004, representantes
do partido foram instados a explicar a sua visão sobre as políticas económicas que
executavam, “a Swapo decidiu não participar, argumentando que este projecto de
pesquisa fora elaborado para ajudar os partidos da oposição” (Sherbourne 2004, p. 2).
A perspectiva da Swapo é que, simplesmente, qualquer informação sobre qualquer
outro partido a não ser a própria Swapo é considerada uma interferência indevida
em assuntos de Estado.
Nas eleições de Novembro de 2004, a Swapo conseguiu, uma vez mais, um resultado
acima dos 75% com um número de votos recorde, bem acima dos 800,000 (cerca de
85% de quase um milhão de eleitores registados), valendo-lhe 55 dos 72 assentos na
Assembleia Nacional. Nesta quarta legislatura, os parlamentares representam sete
partidos diferentes (previamente representavam cinco), com seis deles partilhando
17 lugares3. Por esta altura, os partidos da oposição estavam, quer internamente,
quer entre si, mais divididos do que nunca. Por outro lado, os diferentes programas
de governação demonstravam poucas ou irrelevantes alternativas. Em vez disso, os
padrões étnico-regionais reemergiram, fenómeno que fora em tempos descrito por
du Pisani (1996, p. 42) como “o ressurgirmento de identidades antigas”. Em última
instância, isto beneficiou mais uma vez o status hegemónico da Swapo, que detinha

3
Informação mais detalhada sobre as estruturas políticas e o sistema político da Namibia, bem como dos decisores
políticos e de outras figuras do chamado interesse público vem incluída no tomo enciclopédico compilado por
Hopwood (2006).
344 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

então uma base sólida de apoio incondicional nas áreas mais densamente povoadas
no Norte, representando mais de metade do total do eleitorado. Ainda que os partidos
da oposição mais pequenos possam proliferar, continuam sem influência para além da
base de apoio local: “embora a fragmentação dos partidos em grupos mais pequenos,
muitas vezes com uma inclinação étnica, possa ter evitado a deterioração da votação
na oposição desde 1999, provoca igualmente uma oposição parcelada e esfarelada”
(Hopwood 2005, p. 142).
Não restou praticamente nenhuma dúvida de que a Swapo reteve claramente o domínio
que consolidara desde a independência. No entanto, numerosas irregularidades meno-
res e inconsistências nos procedimentos eleitorais, discrepâncias na lista de eleitores e
na contagem dos votos, assim como um atraso excessivo na divulgação dos resultados
das eleições provocaram uma subsequente intervenção legal, lançando dúvidas sobre
os resultados da votação para o parlamento. O Supremo Tribunal decidiu a favor dos
queixosos. Depois de ouvir as queixas, ordenou a recontagem dos votos, o que resultou
apenas em diferenças ligeiras em relação aos resultados originais, deixando inalterada
a distribuição dos assentos parlamentares. Os dois maiores queixosos questionaram os
procedimentos da recontagem e acusaram os membros da Swapo de interferência no
processo. Contudo, não apresentaram recurso. Os membros recém-eleitos da (quarta)
Assembleia Nacional foram, assim, empossados a 20 de Março de 2005.
Enquanto a disputa legal demonstrou “que existe espaço para a melhoria significativa
na forma como as eleições são reguladas, orientadas, observadas e monitoradas” (Ka-
apama 2005, p. 113), a composição dos membros da Comissão Eleitoral da Namíbia
(ECN – Electoral Commission of Namibia) foi confirmada durante 2005 pela renomeação
dos principais detentores de cargos públicos (incluindo o presidente da comissão) para
mais um mandato. Um artigo crítico numa revista local mensal4 foi alvo de uma dura
resposta por parte do Director do Processo Eleitoral e Presidente Executivo da ECN,
tendo recorrido ao típico discurso dos tempos da luta: “não estamos surpreendidos
pelo espírito antipatriótico com que alguns artigos são publicados” (Kanime 2006).
Enquanto um slogan dos tempos da luta de libertação clamava que a SWAPO era o
povo, o slogan ajustado para a actualidade é que a Swapo é o governo e o governo é o
Estado. Esta tendência para o abuso do poder estatal é incapaz de reconhecer e, como
tal, desrespeita a diferença relevante entre a legitimidade democrática formal (através
do número de votos obtidos numa eleição geral livre e justa) e as responsabilidades
e dimensões morais e éticas dessa legitimidade. Consequentemente, também na Na-
míbia, “o Estado usa frequentemente a democracia para perpetuar a hegemonia, em
vez de desenvolver e proteger os direitos e as liberdades como forma de aprofundar
a democracia” (Salih 2000, p. 24). Muitos exemplos de anos recentes oferecem pro-
vas empíricas para consubstanciar esta afirmação, confirmando a suspeita de que “a
adopção de medidas não-democráticas é muitas vezes justificada pela necessidade
de se atingirem objectivos nacionais por via de um mandato democrático” (Ibid.). Os
resultados contestados das últimas eleições parlamentares e presidenciais de Novembro
de 2004 constituem um exemplo recente.
O grau de domínio da Swapo parece ser mais importante para o partido do que man-
ter a legitimidade do seu mandato para além de qualquer suspeita entre os cidadãos
politicamente não envolvidos com o partido.

4
“Nova Comissão, os mesmos velhos problemas”, em Insight, Windhoek, Novembro 2005.
Henning Melber l Governação, Cultura Política e Sociedade Civil na Namíbia 345

2 - Governo, Oposição Política e Sociedade Civil


O carácter plural multipartidário do sistema político da Namíbia contrasta com a falta
de diferenças político-ideológicas substanciais entre os maiores partidos. Tal como
uma detalhada e sistemática comparação documentou: “A ideologia, em si mesma,
não parece desempenhar um grande papel na política namibiana” (Boer 2005, p. 54).
Uma análise ao programa económico dos vários partidos reitera que “fundamental-
mente pouco há para distinguir entre as políticas económicas do partido no poder e
aquelas que seriam levadas a cabo pelos partidos da oposição” (Boer/Sherbourne
2005, p. 122).
Confirmando este fenómeno, Hunter (2005, p. 97) afirma que “os principais partidos
namibianos são, em geral, centristas, e podem ser vistos como mais pragmáticos do
que ideológicos”. Kapaama (2004) chega à mesma conclusão: “Olhando para os ma-
nifestos partidários, […] talvez os namibianos sejam ainda mais extravagantes do que
os americanos, no sentido de que são chamados a escolher um de nove partidos, cujas
políticas não são significativamente diferentes”. Joseph Diescho tinha já observado
uma década antes que:
Uma das forças da SWAPO é a sua habilidade em parecer transformar-se, de uma
organização top-down não-democrática e autoritária numa organização democrática e
participativa, enquanto, na verdade, permanece essencialmente na mesma. É este estilo
de gincana política que torna difícil constituir uma oposição à SWAPO. Neste contex-
to, a SWAPO deve a sua elasticidade a uma falta de desafio, mais do que à sua própria
capacidade. (Diescho 1996, p. 15)
Tendo em conta estes factores, poderia ser injusto e demasiado parcial “depositar o
peso da responsabilidade pelos problemas ao nível da implementação da democracia
unicamente no Governo” (Boer 2004: 8). Acompanhando os discursos políticos dentro
da esfera pública namibiana, verificamos que são relativamente poucos os partidos
da oposição que perseguem iniciativas pro-activas e intervencionistas. Ainda que
com fundos mais reduzidos, as actividades de maior relevo para a democracia, desde
a independência, têm vindo de organizações civis e apartidárias, como a Sociedade
Nacional para os Direitos Humanos (National Society for Human Rights – NSHR), ins-
tituições de pesquisa como a Unidade de Pesquisa de Política Económica Namibiana
(Namibian Economic Policy Research Unit – NEPRU), o Instituto para a Pesquisa de
Política Pública (Institute for Public Policy Research – IPPR) e o Instituto de Pesquisa e
Recursos do Trabalho (Labour Resource and Research Institute – LaRRI), assim como outros
grupos não-governamentais de defesa de causas públicas (advocacy) como o Instituto
Namibiano para a Democracia (Namibia Institute for Democracy – NID), o Centro de
Assistência Legal (Legal Assistance Centre – LAC) e o Colectivo Irmã Namíbia (Sister
Namibia Collective) — para mencionar apenas alguns dos mais proeminentes.
Este tipo de organizações está, em diferentes formas, empenhado na promoção da
justiça social e, muitas vezes, apoiam-se numa cultura orientada pelos Direitos Huma-
nos. Ao fazê-lo, abraçam as grandes causas para atingir uma sociedade democrática,
enquanto os partidos políticos, as Igrejas, o movimento laboral e o sector privado,
muitas vezes não correspondem às expectativas neles depositadas. Um dos mais
proeminentes homens de negócios da Namíbia observou, em jeito de auto-crítica, que
nem as Igrejas nem o sector privado “são, de facto, suficientemente conscientes do seu
dever e parecem não ter vontade para o cumprir no que concerne ao pronunciamento
346 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

sobre assuntos referentes à manutenção e preservação dos valores e padrões morais,


éticos e sociais” (Pupkewitz 1996, p. 81).
Antes da independência, o Conselho das Igrejas da Namíbia (Council of Churches in
Namibia – CCN), enquanto organização ecuménica que congregava as várias denomi-
nações cristãs, foi uma poderosa voz política e moral contra as violações dos Direitos
Humanos perpetrados sob o regime do Apartheid. No entanto, após a independência,
as Igrejas namibianas demitiram-se em grande medida da esfera pública política e
passaram a evitar confrontos com o governo em questões de Direitos Humanos e
outras questões afins, morais e éticas. Mais notório e triste é o facto de as Igrejas se
recusarem a apoiar de forma visível as vítimas das violações dos Direitos Humanos
levadas a cabo pela SWAPO durante o seu período no exílio, especialmente em Angola,
rejeitando os seus pedidos por uma explicação, um pedido de desculpas e reabilitação
(Lombard 2001)5. Os líderes religiosos, muitos deles outrora intimamente ligados à luta
anti-colonial, trocaram a sua integridade ética e moral pela afiliação ao novo poder
político e reduziram o evangelho a um assunto puramente não-secular, demitindo-se
de quaisquer responsabilidades sociais e políticas.
Na mesma linha, o movimento laboral organizado trocou a sua autonomia por um lugar
próximo da Swapo, aceitando ser cooptado pela nova classe política dirigente do Estado
independente. Outrora parte integrante da luta anti-colonial, depois da independência
manteve a sua filiação à Swapo. O movimento laboral organizado passou a ser repre-
sentado numa organização de tipo federativo — a União Nacional dos Trabalhadores
Namibianos (National Union of Namibian Workers – NUNW), podendo assim aceder ao
poder político dominante. No entanto, isso custou-lhes a autonomia do seu poder de
reivindicação pelos direitos e interesses dos trabalhadores. O pacto entre o movimento
laboral e o governo aconteceu, também e com frequência, em detrimento dos interesses
dos trabalhadores, colocando em questão o papel dos sindicatos em relação à nova elite
política e económica pós-colonial. (Peltola 1995, Bauer 1998, Jauch 2007).
Um processo similar de cooptação, resultante da transformação das alianças firmadas
nos “tempos da luta” num pacto de elite após a independência, pode igualmente ser
observado em relação à organização das mulheres. As activistas que operavam numa
aliança estratégica com a Swapo antes desta alcançar o poder político, foram ou isoladas
e neutralizadas, ou integradas na nova hierarquia política (dominada por homens)
durante a transformação de movimento de libertação em novo partido político que
passou a controlar o governo e o Estado (Becker 1995).
Dado o nível relativamente alto de liberdade de imprensa e o impressionante número
de órgãos de comunicação social independentes e politicamente atentos (pelo menos
na imprensa escrita), o domínio do partido no poder não é desculpa suficiente para a
inexistência de um significativo contra-poder crítico. Mais do que a falta de cobertura
adequada por parte dos meios de comunicação social públicos, aquele deficit resulta,
antes de mais, da incapacidade dos partidos da oposição e de outros actores da sociedade
5
Nos anos oitenta, vários membros da SWAPO no exílio (estimado em vários milhares) foram acusados de serem
espiões da África do Sul. Sob tortura foram forçados a implicar outros. Muitos deles foram sumariamente executados
ou detidos sem julgamento durante vários anos no Sul de Angola. Muitos não sobreviveram aos maus-tratos e outros
simplesmente desapareceram. Com a transição para a independência, várias centenas destes chamados “ex-detidos”
foram libertos e em meados de 1989 retornaram à Namíbia. Desde então têm feito campanha pela sua reabilitação
pública, exigindo uma explicação da Swapo acerca do paradeiro dos muitos desaparecidos. Nos seus esforços pelo
reconhecimento da sua causa têm, desde o seu regresso e por diversas ocasiões, solicitado o apoio das Igrejas, mas
sem qualquer sucesso.
Henning Melber l Governação, Cultura Política e Sociedade Civil na Namíbia 347

civil em fornecerem matéria noticiosa com substância política que mereça ser noticiada
e reportada. Mesmo o jornal New Era, detido pelo Estado, disponibiliza um espaço sig-
nificativo à cobertura de visões críticas ao governo. Como tal, há suficiente espaço para
articular pontos de vista discordantes e críticos – ainda que, por vezes, acarrete grandes
riscos pessoais para os seus autores; senão mesmo físicos, pelo menos a nível de segurança
material. Tendo em conta a dependência económica dos muitos que exercem funções nas
instituições públicas, nos organismos estatais ou instituições similares controladas pela
nova elite política, a defesa de pontos de vista contrários põe o emprego e a subsistência
em risco. Isto é um grande passo atrás em qualquer processo de reforço da sociedade
civil e da luta contra a existente estrutura do poder hegemónico.
As possíveis consequências da combinação de partidos políticos da oposição com
significativo carácter étnico-regional e a relativa passividade e falta de engajamen-
to na esfera política por parte de franjas significativas da chamada sociedade civil,
produziu o “muito familiar cenário africano de identidades étnicas politizadas, um
regime monocrático e altamente personalizado com nenhuma ou reduzida oposição
da esfera privada e um afastamento em larga escala da arena politica por parte de
cidadãos desiludidos” tal como Keulder havia advertido (1996, p. 88).
O surgimento de um novo partido político poderá produzir novos impactos e alterar esta
situação nada animadora em direcção à mudança. A Manifestação para a Democracia
e Progresso (Rally for Democracy and Progress – RDP), enquanto partido, foi registado
no ECN e oficialmente fundado nos finais de 2007 (Melber 2007c). Os seus principais
arquitectos provêm do outrora núcleo duro da Swapo, incluindo dois antigos ministros
que desde a década de 1960 fizeram parte da liderança no exílio. Como resultado da
luta de poder dentro da Swapo pela sucessão do Chefe de Estado, Sam Nujoma, foram
postos de lado e marginalizados a partir de 2005, apesar de representarem uma facção
importante dentro do partido. A formação destas vozes dissidentes — vindas do seio do
aparelho — enquanto novo partido de oposição, poderá ter um impacto considerável na
paisagem política, e influenciar o período até às próximas eleições no final de 2009, em
termos de campanha política e debates. Isso poderia representar uma ameaça ao status
hegemónico da Swapo, pelo menos no que diz respeito à sua maioria de dois terços.
Ainda se terá que ver até que ponto o RDP emerge como uma verdadeira alternativa
política à Swapo, mas pelo menos causará impacto no mapa politico-partidário da
Namíbia, mais do que o fez qualquer outra força da oposição desde a independência
até agora. Pelo menos já acendeu um vivo debate político sobre práticas e virtudes
democráticas. No entanto, isto encerra também o risco de vermos reforçadas as ten-
dências autoritárias que se vêm manifestando na Swapo desde a independência, como
parte dos esforços para silenciar qualquer mudança considerável na hegemonia que
mantém no sistema político. Seria então a sociedade civil a sofrer mais. Até agora,
infelizmente, os insultos têm-se sobreposto à argumentação séria na discussão dos
assuntos políticos. Tal como no passado, os membros da Swapo não hesitam em res-
ponder às críticas públicas com mão pesada, por vezes através de ataques traiçoeiros
à integridade pessoal daqueles que se atrevem a assumir tais posições.6
6
Numa polémica recente, o académico sul-africano baseado na Namíbia, Joseph Diescho, culpou dois detentores
de elevados cargos na Swapo de oportunismo político, citação que foi publicada num jornal local. Um deles, Hage
Geingob, fora já primeiro-ministro (desde a independência até 2002), sendo depois marginalizado politicamente até
que, em Novembro de 2007, numa viragem política, foi eleito Vice-Presidente da Swapo no congresso do partido.
Ele demonstrou a sua frustração decorrente da crítica, chamando ao académico, num comício politico no início de
Janeiro de 2008, de “prostituta intelectual”.
348 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

3 - Descolonização e Democracia
Para caracterizar as realidades sócio-políticas saídas da descolonização nas antigas
colónias de colonato da África Austral, John Saul (1999) propõe a expressão “libertação
sem democracia”. O registo das práticas internas dos movimentos nacionalistas durante
as lutas de libertação, assim como o seu deficit de virtudes democráticas e respeito pela
protecção dos Direitos Humanos, depois de instalados no poder, são razões suficientes
para a desilusão de muitos dos que apoiaram a emancipação social dos colonizados. A
luta contra sistemas injustos de opressão, alicerçados numa ordem colonial totalitária
liderada por uma minoria, não impediu os quadros dos movimentos de libertação e
futuros governantes dos novos países independentes de, também eles, praticarem
violações dos Direitos Humanos e outras formas abusivas de exercício do poder, tanto
no seu próprio seio como nas formas de governação autocrática e autoritária que im-
puseram a nível nacional depois da independência.7 Aproveitando ao limite a noção de
reconciliação nacional, os “libertadores” bloquearam qualquer diálogo minimamente
significativo com os seus membros outrora detidos e torturados no sul de Angola pelo
próprio movimento SWAPO, chamados hoje de “ex-detidos” (Groth 1995). Como re-
sultado, todos aqueles que foram vítimas das ondas internas de repressão na SWAPO
permanecem estigmatizados até hoje (Saul/Leys 2003, Gertze 2006)8.
Apesar da retórica da necessidade de reconciliação, este particular e delicado assunto
ilustra de forma proeminente que a cultura política dominante na Namíbia não é tole-
rante nem se baseia no perdão. Os efeitos na mentalidade da maioria da população não
são encorajadores. Num inquérito feito pela Fundação Helen Suzman em seis Estados
da África Austral, a Namíbia foi o único país onde se concluiu que uma larga maioria
não aceitaria a derrota do seu partido. De acordo com o diagnóstico feito, “pouco mais
de um terço dos inquiridos se sentiam confiantes quanto ao futuro da democracia”
(Johnson 1998). Uma outra pesquisa feita em seis países africanos no início deste novo
século posicionou a Namíbia em último lugar em termos de consciência pública para
a democracia (Mattes et. al. 2000). Um sumário do relatório concluiu, em relação à
Namíbia e à Nigéria, que: “a consolidação da democracia é uma perspectiva distante
em ambos os países” (Bratton/Mattes 2001, p. 120). Em termos de medição do apoio
à democracia durante 2001, a Namíbia atingiu o segundo lugar a contar do fim, com
58% (Afrobarometer 2002).
Uma pesquisa feita junto de namibianos com idades compreendidas entre os 18 e os
32 anos concluiu que mais de uma década depois da independência, “a Namíbia não
tem um número suficiente de jovens democratas para se assegurar a consolidação da
democracia” (Keulder/Spilker 2002, p. 28). A mesma afirmação é completada num
estudo posterior com o diagnóstico não muito lisonjeiro de que “os namibianos são
fortes em partidarismo e débeis em capacidades cognitivas críticas” (Keulder 2003,
p. 24). Estas conclusões tocam em aspectos do que poderia ser apelidado de carácter
autoritário resultante de sistemas opressivos, tanto das estruturas coloniais como da

7
Provas das fases repressivas da história da Swapo no exílio são apresentadas por Dobell (1998) e Leys/Saul (1995).
Uma indicação interessante da coesão interna da Swapo é também a biografia do presidente-fundador Sam Nujoma
(2001) e a revisão crítica de Saunders (2003), bem como a análise de Sam Nujoma sobre a “história patriótica” da
Namíbia em curso (Saunders 2007).
8
Tal como anteriormente referido, depois da independência, os “ex-detidos” da SWAPO foram libertos dos
seus cativeiros no Sul de Angola e regressaram à Namíbia em meados de 1989, tendo-lhes sido negado qualquer
reconhecimento de culpa por parte da Swapo, que mantém que a reconciliação nacional passa por não se abrirem
velhas feridas e como tal recusa-se a lidar com o assunto.
Henning Melber l Governação, Cultura Política e Sociedade Civil na Namíbia 349

hierarquia do movimento anti-colonial durante o período de luta no exílio. Deste


modo, não nos surpreende que num compêndio de opinião pública baseado em três
inquéritos realizados na Namíbia entre 1999 e 2006, o Afrobarometer Network conclua
que dos 18 países estudados, “os namibianos parecem ser os mais deferentes com os
seus líderes eleitos” (Logan/Fujiwara/Parish 2006, p. 16).
Num outro estudo comparativo levado a cabo em 2006 em 12 países africanos, a Na-
míbia aparece com o segundo maior grau de satisfação com a democracia (69%) logo
depois do Gana (70%) e contra uma média de 45% em todos os países. Ao mesmo
tempo, o apoio aos múltiplos partidos políticos entre os namibianos baixou 5% entre
2002 e 2005 e posicionou-se como o terceiro mais baixo (com 57%, abaixo da média de
63% para todos os países) (Bratton/Cho 2006, p. 19, 21). Em termos de atitudes entre
os cidadãos, a mais recente pesquisa nacional do Afrobarometer classificou a Namíbia
como “uma democracia sem democratas” (Keulder/Wiese 2005, p. 26).
A questão que se mantém em aberto é a de saber até que ponto estes resultados são da
responsabilidade principal do partido dominante do poder político, exercendo o seu
poder hegemónico conforme acima descrito, ou são antes um sinal do falhanço dos par-
tidos políticos da oposição e de outros actores da sociedade civil, incapazes de, contra
todas as dificuldades, actuar em conjunto? Ou talvez a questão em si não esteja bem
direccionada. Poderá bem ser que estes sejam dois lados da mesma moeda, resultado de
décadas de opressão e resistência, que terminaram ainda há relativamente pouco tempo.
No fundo, temos de ter em conta que os ambientes hierárquicos, tanto internamente
quanto no exílio, foram tudo menos propiciadores do nascimento de democratas que,
como produto social, não cairiam do céu ou miraculosamente apareceriam no dia da
independência enquanto a bandeira nacional era hasteada ao som do hino.
Tal conclusão distancia-se, no entanto, da “profecia da condenação à desgraça”.9 Ela
sugere meramente que a realidade pós-colonial reflecte as contradições e os desafios
já antes descritos por vários académicos e escritores de mente aberta (open minded) do
continente. Um deles, que o fez convincentemente em forma de romance revolucio-
nário, foi Artur Carlos Maurício Pestana, Pepetela. Ele publicou as notas que recolheu
em 1971 durante a sua participação na guerrilha do MPLA nas florestas tropicais do
Mayombe, em Cabinda (Angola). Como narrativa oferece um notável grau de sensi-
bilidade e capacidade de análise da complexidade (e limites) da transformação social
subsequente a uma situação de resistência armada contra a ocupação estrangeira sob
o regime colonial. Ao longo do seu percurso, o comandante da unidade de guerrilha
(“Sem Medo”) explica ao comissário politico (“Mundo Novo”), a favor de quem, mais
do que acidentalmente, ele sacrifica a sua vida em batalha, num diálogo revelador:
Não temos as mesmas ideias. […] Tu és o tipo do aparelho, um dos que vai instalar o partido
único e omnipotente em Angola. Eu sou o tipo que nunca poderia pertencer ao aparelho.
[…] Um dia, em Angola, já não haverá necessidade de aparelhos rígidos, é esse o meu ob-
jectivo. […] o que queria que compreendesses, é que esta revolução que fazemos é metade
da revolução que desejo. Mas é o possível, conheço os meus limites e os limites do país. O
meu papel é o de contribuir a essa meia revolução. […] Eu sou, na tua terminologia, um
aventureiro. Eu quereria que na guerra a disciplina fosse estabelecida em função do homem
9
Em Outubro de 2007, o Vice-Ministro da Justiça (um dos filhos do antigo presidente Nujoma), durante um debate
parlamentar sobre reconciliação nacional acusou Joseph Diescho, eu próprio e o director da Sociedade Nacional para
os Direitos Humanos, como indivíduos que iriam minar o processo de construção da nação e ameaçar a estabilidade.
Apelidou então o autor deste texto de “infame profeta da desgraça”.
350 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

e não do objectivo político. Os meus guerrilheiros não são um grupo de homens manejados
para destruir o inimigo, mas um conjunto de seres diferentes, individuais, cada um com as
suas razões subjectivas de lutar e que, aliás, se comportam como tal. […] eu fico contente
quando um jovem decide construir-se uma personalidade, mesmo que isso politicamente
signifique um individualismo. Mas é um homem novo que está a nascer, contra tudo e
contra todos, um homem livre de baixezas e preconceitos, e eu fico satisfeito.[…] Eu não
posso manipular os homens, respeito-os demasiado como indivíduos. Por isso não posso
pertencer a um aparelho. (Pepetela 1996, p. 263-265).
Esta conversa é mais do que ficção; estabelece os parâmetros e constrangimentos
sociais para muitas sociedades pós-coloniais na África Austral com uma história de
resistência armada ao colonialismo. A Namíbia é uma de entre elas.

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353

A Sociedade Civil num Quadro


Neo-Liberal Legal:
o Caso do Malawi1

Introdução
Fidelis Edge
Kanyongolo
Universidade do Malawi
N o Malawi, a adopção da actual Constituição, em 1994,
foi o marco de uma reorganização radical da arqui-
tectura do poder político e do espaço em que este é exerci-
do e controlado. Um dos aspectos mais significativos desta
transformação foi a reconquista de espaço e actividade das
Organizações da Sociedade Civil (OSC) depois de décadas
de repressão e desmobilização decorrentes da actuação do
partido único. A sociedade civil é agora reconhecida como
um interveniente crítico no processo de democratização e
desenvolvimento do país e as leis têm facilitado as suas ac-
tividades e organizações, assegurando principalmente o seu
espaço no que respeita à garantia dos Direitos Humanos.
No entanto e apesar das oportunidades que a nova lei cons-
titucional trouxe, a sociedade civil não tem sido capaz de
realizar inteiramente o seu potencial por várias razões que
são analisadas neste artigo.
Em primeiro lugar este texto oferece-nos uma panorâmica
geral da natureza do Estado e da sociedade no Malawi, com
algum enfoque para as condições históricas nas quais as OSC
se desenvolveram. Seguidamente, discute abreviadamente
o regime legal para a protecção dos Direitos Humanos que
propicia a liberdade das OSC para se envolverem em advo-
cacia, acompanharem e participarem no processo de tomada
de decisões políticas, e outros aspectos do seu mandato geral.
Ainda nesta parte do texto, explica-se o âmbito mediante o
qual o quadro político promove a actividade da sociedade
civil. Esta avaliação positiva do ambiente político e legal é
depois colocada em perspectiva, tendo em conta a promulga-
ção de normas legais específicas, como por exemplo o acesso
restrito aos tribunais, que não promove os interesses dos
pobres e marginalizados. Posteriormente, o texto identifica o
espaço realmente permitido à sociedade civil nas condições
sócio-económicas específicas em que a maioria dos Malawia-
nos vive, mostrando que para além dos factores políticos e
organizacionais que limitam a eficácia da sociedade civil no
Malawi, podem-se encontrar outros constrangimentos enrai-

1
Tradução do inglês original por Marta Lança.
354 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

zados nas realidades da distribuição geográfica da população entre as áreas urbanas e


rurais, o analfabetismo em inglês e a prevalência da lei tradicional e costumeira.

1 - Sociedade e Estado no Malawi


A República do Malawi ocupa 9,4 milhões de hectares numa área entre Moçambique
e a Zâmbia e tem uma população de aproximadamente 12 milhões de pessoas, 56%
das quais são mulheres. Cerca de 80% da população vive nas áreas rurais, sendo a sua
principal actividade económica a agricultura de subsistência. Ao contrário de um país
como Angola, a agricultura é o elemento mais importante da economia no Malawi,
contribuindo com quase 40% do PIB, empregando 80% da mão-de-obra e contribuindo
com 90% das receitas do comércio externo em 2005 (Governo do Malawi, 2005: 151).
Apesar de se verificar algum crescimento económico, o Malawi permanece um país
extremamente pobre, caracterizado por significativas desigualdades, sendo o grande
impacto da pobreza e desigualdade vivido pelas mulheres, comunidades rurais e outros
grupos historicamente marginalizados. O Relatório de Desenvolvimento Humano de
2006 posicionou o Malawi no 166.º lugar entre 177 países, com uma esperança média
de vida de 39,8 anos e um PIB per capita de US$646.
Actualmente, o Estado do Malawi é amplamente marcado pelo modelo neo-liberal
que foi introduzido no país na sua forma mais rudimentar, por imposição da admi-
nistração colonial britânica no final da década de 1890. O país atingiu a independên-
cia da lei colonial britânica em 1964 e logo depois tornou-se um Estado monopartidá-
rio autoritário que só mudou para uma democracia multipartidária com a adopção
da Constituição actual em 1994 e que, entre outras coisas, estabelece um sistema de
governação fundado na limitação do exercício do poder político pela Lei — Estado
de Direito, a separação dos poderes legislativo, judicial e executivo do Governo, o
cumprimento das leis e dos Direitos Humanos. A Constituição também estabelece
instituições chave do Estado, incluindo o Parlamento, eleito a cada cinco anos, o Pre-
sidente, directamente eleito e também com um mandato renovável de cinco em cinco
anos, e o Poder Judicial que consiste num sistema composto por Tribunais ordinários,
pelo Alto Tribunal e pelo Tribunal Supremo de apelação.
A efectivação da separação de poderes não tem sido fácil, a principal preocupação
reside na tensão e hostilidade que caracterizam a relação entre o Presidente e o Parla-
mento. Nos últimos quatro anos, a maioria dos deputados ao Parlamento não pertence
ao partido político do Presidente. Isto quer dizer que o Executivo tem tido dificuldades
em assegurar a aprovação do Parlamento, não apenas quanto à legislação corrente, mas
também no que respeita ao Orçamento Geral do Estado e às nomeações presidenciais
de alguns cargos públicos que requerem aprovação parlamentar, nomeadamente o
Director do Gabinete Anti-Corrupção, o Auditor Geral e os Embaixadores.
Historicamente, a sociedade civil Malawiana tem-se envolvido na arena do poder polí-
tico com acções cujo grau de sucesso tem variado ao longo do tempo. As organizações
da sociedade civil são ocasionalmente criticadas, particularmente pelo governo, de se
estarem a envolver na política. Contudo, este tipo de críticas resulta de uma visão muito
limitada da política, contrária à ampla visão aristotélica que define a política como uma
“determinação peremptória dos ideais e objectivos da sociedade, mobilização de todos
os seus recursos [inclusive humanos] para atingir esses objectivos e ideais, e repartição
dos direitos, deveres, custos, benefícios, recompensas e punições, entre todos os mem-
Fidelis Edge Kanyongolo l A Sociedade Civil num Quadro Neo-Liberal Legal: o Caso do Malawi 355

bros da sociedade.”2 As decisões específicas que o Estado adopta em qualquer altura,


reflectem as escolhas políticas governamentais subjectivas e têm impactos variados na
vida das pessoas conforme a sua classe, género e identidades sociais.
No Malawi, a sociedade civil envolveu-se legitimamente neste processo de decisão e
determinação de objectivos e ideais que competem ao Estado como um todo, através
da participação na formulação das políticas públicas e acompanhamento da sua imple-
mentação; contrabalançando alguns impactos negativos das políticas públicas na vida
da população; facilitando a auto-expressão por parte dos diferentes grupos de interesse
na sociedade. As estruturas institucionais e processos em que se dá o envolvimento da
sociedade civil Malawiana com o Estado são definidas simultaneamente como orgâni-
cas — tendo sido historicamente geradas e moldadas por factores sociais, económicos e
políticos — e deliberadamente construídas, sobretudo pelo mandato legislativo.
A realidade actual da sociedade civil e as dinâmicas do seu engajamento com o Estado
estão em função da experiência histórica, particularmente a ordem colonial que esta-
beleceu instituições de Estado que geraram resistência da parte da população nativa,
resistência que deu origem a rápidos desenvolvimentos na organização e actividade da
sociedade civil. O Estado colonial que precedeu o Estado de partido único baseava-se
no ethos imperialista, segundo o qual os habitantes nativos atraíam a atenção do Estado
mais pelo seu papel enquanto trabalhadores numa economia de plantação e potencial
fonte de resistência política, do que propriamente pelo seu direito à boa governação.
Foi a exigência de melhor tratamento por parte do Estado que deu origem a algumas
das mais significativas e pioneiras organizações da sociedade civil no Malawi (Van
Velsen, 1966). As várias organizações da sociedade civil que emergiram durante esse
período — mais conhecidas como “Associações Nativas” — vieram eventualmente a
consolidar-se num amplo movimento nacionalista que levou a nação à independência.
A subsequente implantação da ditadura do partido único, na essência, levou à desmo-
bilização da sociedade civil na medida em que a tornou num “factor insignificante no
processo político do país” (Chipeta, 1992: 34-49, 34).
O reaparecimento da sociedade civil no Malawi ocorreu no início da década de 1990,
com o movimento de liberalização política. Chirwa (2000) sugere que o reaparecimento
do processo de democratização na década de 1990 pode ser dividido em quatro fases:
o período aproximadamente entre 1989 e 1992, caracterizado pela “emergência do
protesto popular contra o Estado e a sua ordem económica”; o período entre 1992 e
1993, durante o qual o protesto popular se tornou num protesto político; o período
entre 1993 e 1994, quando as instituições da sociedade civil se tornaram co-gestoras
do processo de transição politica; o período entre 1994 e 1999, que foi marcado por
“titubeantes esforços políticos destas instituições” (Ibid) na medida em que fracassaram
no objectivo de “engajarem de forma efectiva o Estado e a sociedade num diálogo que
perseguisse e/ou estabelecesse uma ordem sócio-económica distributiva, que fosse
simultaneamente humana e igualitária” (Ibid).

2 - O Espaço Formal para a Sociedade Civil no Malawi


O quadro legal e das políticas governamentais é um dos mais críticos determinantes
da natureza do envolvimento entre sociedade civil e Estado, porque não só define o

2
W. F. Murphy, Courts, Judges and Politics: An Introduction to the Judicial Process (New York: Random House, 1979).
356 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

âmbito e os limites da arena acessível ao activismo e organização da sociedade civil,


como também define e limita o poder do Estado na sua interacção com a sociedade
civil. No contexto do Malawi, a lei e as políticas articulam as normas que guiam o
exercício do poder político, especialmente através da garantia dos Direitos Humanos
e da aplicação dos imperativos das políticas públicas.

2.1 - Protecção legal e aplicação efectiva dos Direitos Humanos


Desde o início dos anos noventa, tem havido uma significativa melhoria na capacidade
da sociedade civil para contribuir para a formulação de políticas públicas, reformas legais
e prestação de serviços públicos. Um factor crítico que tem ajudado a este facto tem sido
um regime legal relativamente eficaz para a protecção e respeito pelos Direitos Huma-
nos. A Constituição do Malawi garante um vasto leque de Direitos Humanos, incluindo
os direitos de liberdade de associação, de campanha em torno de causas públicas, de
expressão, de imprensa, direitos laborais incluindo o direito de formar e/ou associar-se
a sindicatos, liberdade de circulação e inúmeros outros que habilitam a sociedade civil
para a liberdade de acção, facilitando assim as suas actividades e organização.
Parece beneficiar de um consenso geral a opinião de que o sistema judicial do Malawi
é relativamente independente e essa independência tem facilitado a implementação e
a protecção dos Direitos Humanos, incluindo o direito a julgamento justo, igualdade
perante a lei e acesso à justiça (Afrimap, 2006: 80). A defesa do espaço da sociedade civil
deve ser em grande parte atribuída à independência do sistema judicial face à tentativa
ocasional dos poderes executivo e/ou legislativo do governo em restringir as actividades
das organizações da sociedade civil. A independência do sistema judicial no Malawi
para além de garantida pela Constituição é efectivamente verificável e apreciável na
prática. As garantias constitucionais dos Direitos Humanos conducentes à existência e
organização da sociedade civil no Malawi são igualmente sustentadas por jurisprudência
progressista gerada pelos tribunais. Entre as mais notáveis decisões judiciais que têm
protegido o espaço da sociedade civil da intromissão do Estado está aquela em que o
Alto Tribunal declarou inconstitucional e inválida uma directiva do Presidente que
pretendia banir as demonstrações públicas3; uma outra diz respeito ao caso em que os
tribunais permitiram que as organizações não-governamentais se juntassem como amicus
curiae em casos de interesse público4; e várias outras nas quais os tribunais sustentaram
a liberdade de expressão, liberdade de associação e liberdade de imprensa.
A existência de um espaço legalmente protegido da sociedade civil tem encorajado a
proliferação de entidades não estatais e aumentado a sua actividade. Não é por coin-
cidência que somente depois da adopção da Constituição que garantiu os Direitos
Humanos em 1994 é que houve um aumento do número de organizações não-gover-
namentais e de base comunitária e uma expansão do leque das suas actividades. De
1994 a 2002, os requerimentos legais para registo das ONG e outros grupos da socie-
dade civil foram relativamente liberais; era apenas preciso registar a organização em
questão como uma associação ou empresa de responsabilidade limitada, um processo
de registo que foi bastante despolitizado e gerido por tecnocratas no Departamento
de Registos Centrais do Ministério da Justiça.
3
Malawi Law Society, Episcopal Conference of Malawi and Malawi Council of Churches v the President of Malawi et al. (High
Court Civil Cause, N.º 78, 2002).
4
In the Matter of the Question of the Crossing the Floor by Members of the National Assembly (Presidential Reference
Appeal, N.º 44, 2006) [2007] MWSC 1 (15 de Junho de 2007)
Fidelis Edge Kanyongolo l A Sociedade Civil num Quadro Neo-Liberal Legal: o Caso do Malawi 357

Em 2002, o governo aprovou a lei das ONG que requeria que todas as organizações
não-governamentais fossem membros do Conselho de ONG e, além do registo enquan-
to associações ou companhias de responsabilidade limitada, deveriam registar-se no
Conselho de ONG do Malawi (Council of NGOs in Malawi – CONGOMA) designado
pelo governo. O Estado justificou a legislação como um instrumento necessário para
a implementação de regras de accountability e transparência no seio das organizações
da sociedade civil, enquanto os críticos no seio da sociedade civil viam esta medida
como uma forma de restringir a liberdade de acção das ONG. A lei das ONG perma-
nece em vigor e por enquanto não parece ter sido usada pelo governo para limitar
significativamente o espaço da sociedade civil. No entanto, as seguintes características
continuam a ser matéria de preocupação para alguns activistas da sociedade civil: o
facto do poder para nomear membros do Conselho das ONG pertencer a um ministro
do governo; a exigência de que todas as ONG têm de ser obrigatoriamente membros
do CONGOMA (apesar da garantia de liberdade de associação na Constituição); os
amplos poderes do Conselho para suspender ou retirar o registo das ONG com base
em fundamentos que são muito vagos (CONGOMA, 2001: 26-27).
Apesar das leis Malawianas concederem um amplo apoio às actividades e ao desenvol-
vimento da sociedade civil, também incluem um número de decisões do Alto Tribunal
e do Supremo Tribunal que têm tido um impacto negativo. Entre as mais negativas
destas medidas está aquela que negou, a uma ONG local de Direitos Humanos, o
direito de iniciar um processo judicial em nome das alegadas vítimas de violações de
Direitos Humanos, com o argumento de que somente a pessoa cujo direito individual
tenha sido violado pode recorrer aos tribunais5. A maioria das vítimas das violações
dos Direitos Humanos são pobres, marginalizadas e sem grande capacidade de acesso
directo aos tribunais devido a várias barreiras estruturais, financeiras, geográficas e
linguísticas (Scharf et. al., 2006). Com esta restrição, o tribunal limitou a capacidade
das organizações da sociedade civil de ajudarem os pobres e os marginalizados a
defenderem os seus Direitos enquanto seres humanos perante os tribunais.

2.2 - Sociedade civil e políticas estatais


Oficialmente, a política do governo vai no sentido de encorajar o desenvolvimento e
acção da sociedade civil. Isto é evidente desde que foi lançada a Estratégia de Cresci-
mento e Desenvolvimento do Malawi (MGDS) em 2006, que é o instrumento político
global que articula a estratégia a médio prazo do Estado para alcançar os objectivos
preconizados para 2020 — a chamada “Visão 2020”. A estratégia cria espaço para a
sociedade civil sustentando a participação de “todas as principais partes interessadas”
na formulação e avaliação de políticas públicas (Governo do Malawi, 2006: 62). Um
exemplo de participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas foi o
desenvolvimento do próprio MGDS. As conclusões da análise geral do precursor dos
MGDS, o PRSP (Poverty Reduction Strategy Paper), cujas consultas procuraram o feedback
da sociedade civil na sua implementação, foram incorporadas nas MGDS. O governo
também reconhece que o apoio da sociedade civil é “crucial” para se alcançarem os
objectivos de longo prazo e os resultados esperados da estratégia, particularmente no
que se refere à justiça, Estado de Direito e segurança. O MGDS assinala ainda que a
sociedade civil é um parceiro chave que ajudará a facilitar melhorias na governação
corporativa (Ibid: 68).

5
Civil Liberties Committee v Attorney General (Supreme Court Civil Appeal, N.º 12, 1999).
358 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

A sociedade civil é também tida em conta nos processos que concernem políticas
sectoriais específicas como, por exemplo, o desenvolvimento da Política Nacional
de Terras. O governo estabeleceu uma Unidade de Planeamento de Políticas (Policy
Planning Unit – PPU) para rever políticas e leis existentes e para promover uma abor-
dagem alargada à reforma da política de terras. O PPU foi apoiado por 22 membros
do grupo multi-disciplinar e inter-ministerial, incluindo representantes do governo e
do sector “privado, organizações não-governamentais e grupos da sociedade civil.”
(Governo do Malawi, 2002)
Este aparente apoio político do governo à sociedade civil tem, no entanto, de ser con-
trabalançado com a prioridade que é dada aos interesses do sector privado, sendo o
foco central no sentido de “criar um ambiente que favoreça o desenvolvimento do
sector privado e a melhoria das infra-estruturas económicas, como redes de estradas,
energia, sistemas de água e telecomunicações.” (Ibid: xiv). Não sabemos que impacto
terá esta intenção na sociedade civil porque existe actualmente um envolvimento muito
limitado da sociedade civil nas actividades do sector privado no Malawi, ao contrário
de países como Angola, em que os interesses do sector privado têm atraído a atenção
das OSC e até gerado debates sobre a legitimidade da sociedade civil financiada por
interesses do sector privado.
Uma notável excepção no cenário do Malawi foi o recente caso em que algumas ONG
intentaram uma acção legal contra uma empresa mineira australiana com projectos de
extracção de Urânio no Norte do Malawi, com base na acusação de que a regulamenta-
ção da extracção de Urânio estava desadequada, devendo existir um acompanhamento
independente do projecto e da actividade de extracção, para além de se assegurar a pro-
tecção ambiental.6 O caso acabou por ser resolvido por acordo extra-judicial, a extracção
mineira prosseguiu e, ao contrário do que seria de esperar, poucos detalhes do acordo
vieram a conhecimento público. Ao longo da disputa, o governo tomou firmemente o
partido da empresa australiana, classificando a atitude das organizações que protestavam
como obstrutoras do desenvolvimento e da redução da pobreza.
Alguns membros da sociedade civil sustentam a perspectiva de que enquanto a Cons-
tituição permite e protege a liberdade de expressão ou associação, afirmações de polí-
ticos e detentores de cargos públicos acerca do trabalho das ONG são reveladoras de
intolerância para com a sociedade civil (CONGOMA, 2001: 10). A experiência sugere
que a hostilidade da elite governante para com as OSC tende a aumentar em períodos
de intensa contestação política, como, por exemplo, durante períodos eleitorais. Nes-
tas alturas, a elite governante acusa com frequência as OSC de se colocarem ao lado
dos partidos da oposição ou de actuarem disfarçadamente ao serviço de partidos da
oposição, especialmente aquelas que estão envolvidas na área da governação.

3 - O Espaço e as Realidades do Contexto Sócio-Económico


Apesar das organizações da sociedade civil terem um significativo espaço legal e po-
lítico formal, no qual se podem envolver com o Estado no seu exercício dos poderes
políticos, a sua eficácia é discutível. A única pesquisa de base geral para a educação
cívica conduzida em 2006, por exemplo, revelou que apenas uma média de 36% de
inquiridos considerava como eficaz o trabalho das OSC e apenas 43% dos inquiridos

6
Mineweb, “Paladin gets Malawi mine go-ahead, but NGO opposition steps up a notch”, available at www.mineweb.
net (accessed 21 January 2008).
Fidelis Edge Kanyongolo l A Sociedade Civil num Quadro Neo-Liberal Legal: o Caso do Malawi 359

considerava o trabalho daquelas organizações como relevante (United Nations Office


for Project Services – UNOPS, 2006: 53).
A chave para compreender o aparente insucesso da sociedade civil em utilizar com-
pletamente o espaço que a lei e a política lhe abrem, requer que façamos o enquadra-
mento da sociedade civil no contexto sócio-económico do Malawi. Muitas análises dos
limites da sociedade civil no Malawi identificam correctamente os factores políticos
e organizacionais que afectam a eficácia da sociedade civil no país, desde o sistema
político autoritário até às insuficiências de liderança; desde o neopatrimonialismo até à
cooptação. No entanto, a análise precisa de ser aprofundada no contexto das condições
materiais em que a maioria dos Malawianos efectivamente vive.
Há três aspectos de particular importância na sociedade Malawiana: a maioria da
população vive em zonas rurais; está organizada em comunidades baseadas em va-
lores tradicionais e governadas por leis costumeiras; e a maioria dos Malawainos são
iletrados e não falam inglês. Estes três aspectos criam uma desconexão entre OSC
rurais e urbanas.
Regra geral, as OSC urbanas têm acesso a maiores financiamentos e perseguem ideais
liberais democráticos. As OSC rurais são essencialmente organizações comunitárias
de base e estão largamente imbuídas em relações sociais costumeiras e tradicionais
que são caracterizadamente comunais e largamente patriarcais. O facto de a maioria
dos Malawianos não falarem nem perceberem inglês é outro imenso obstáculo para
a sociedade civil Malawiana atingir os seus objectivos. Do mesmo modo, o facto da
maioria dos Malawianos serem governados pela tradição e costumes na sua vida
quotidiana — tradições e valores essencialmente neo-conservadores — coloca um
enorme desafio à operação das OSC urbanas, que maioritariamente promovem ideais
da democracia liberal.
O espaço para o activismo e organização da sociedade civil pode, portanto, ser ampla-
mente ilusório para a maioria das OSC do Malawi. As ONG de base urbana, melhor
financiadas e advogando princípios liberais democráticos, estão em melhores condições
para se relacionarem com o governo e os doadores, dominando a linguagem técnica (em
inglês) e tornarem-se dominantes, embora distantes e desconectadas das organizações
comunitárias de base, com fracos recursos, poucos financiamentos, localizadas em áreas
rurais remotas e com a maioria dos membros incapazes de dominar a linguagem utili-
zada na maioria dos documentos governamentais, no parlamento, no sistema judicial
e em todos os outros fóruns oficiais. O afastamento e a desconexão existe, não apenas
ao nível institucional entre dois tipos de organizações, mas também entre organizações
de base urbana e a maioria da população que vive nas áreas rurais.
4 - Questões Críticas
Apesar dos vários constrangimentos acima referidos, a sociedade civil no Malawi tem
sido capaz de dar uma contribuição crucial para a melhoria das condições de vida
das pessoas através da advocacia, participação na formulação de políticas públicas
e monitorização do exercício do poder por parte do governo e do sector privado. Na
advocacia, por exemplo, a sociedade civil tem tido sucesso na campanha pela reforma
do sector da justiça e da implementação do Estado de Direito, exigindo o cumpri-
mento da lei: a campanha da Reforma Penal Internacional tem sido instrumental na
reforma da Lei das Prisões (Prisons Act). A representação nacional do Women and Law
360 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

in Southern Africa Research and Educational Trust (WLSA) tem feito um lobby relativa-
mente eficaz para reformar a lei relativa às heranças, de forma a proteger os direitos
de propriedade das viúvas e para a promulgação da Lei de Prevenção da Violência
Doméstica. Também o escritório do Media Institute of Southern Africa (MISA) no Malawi
tem feito uma campanha sustentada para a promulgação de legislação referente ao
acesso à informação.
Um exemplo de participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas,
anteriormente referido, diz respeito à Estratégia de Crescimento e Desenvolvimento
do Malawi. Um outro pode ser encontrado ao nível do sector da justiça, com o Con-
selho Nacional de Segurança e Justiça, que almeja ser o maior órgão para o sector da
justiça, incluindo, entre os seus membros, representantes da sociedade civil (Departa-
mento para o Desenvolvimento Internacional). A sociedade civil também participa na
formulação do Orçamento Geral do Estado através de consultas prévias organizadas
pelo Ministério das Finanças com representantes das OSC e do sector privado antes da
apresentação da proposta para aprovação do Parlamento (Rakner et. al.). No período
entre 2000 e 2005, o governo conduziu consultas pré-aprovação do Orçamento Geral
do Estado com um grande leque de parceiros sociais, incluindo OSC, especialmente
aquelas com especial interesse em matérias económicas como a Malawi Economic Justice
Network (MEJN) (Fozzard and Simwaka).
Notável tem sido também a existência de redes de OSC que têm promovido a solida-
riedade e a cooperação. Entre algumas das mais activas destas redes está a ONG Gender
Network, ou o Human Rights Consultative Committee, o Malawi Health Equity Network e a
ONG Coalition for Basic Quality Education and the Disability Coordinating Committee. As
redes têm alcançado níveis variáveis de sucesso e têm também enfrentado os desafios
habituais em contextos sociais, políticos e económicos similares (James, 2002).
No entanto, para que a sociedade civil do Malawi consolide os seus ganhos para o futu-
ro, existem alguns aspectos cruciais a ter em conta e que abordaremos em seguida.

4.1 - A solidariedade entre OSC


Tal como acima referido, as OSC do Malawi são diferenciadas por muitos factores
incluindo a localização geográfica, os recursos e a proficiência em inglês e na lingua-
gem técnica do desenvolvimento. Estes factores limitam as perspectivas em termos
de solidariedade, trabalho em rede, partilha de informação, assim como a unidade
de propósitos e acção entre as OSC do país. A melhoria de eficácia da sociedade civil
do Malawi depende, pois, de intervenções que facilitem o diálogo entre OSC urbanas
e rurais; do estabelecimento de mecanismos para uma distribuição equitativa de re-
cursos entre OSC rurais e urbanas; da promoção da utilização das línguas locais por
instituições públicas na sua interacção com a população em geral. Felizmente, o país
tem um órgão de articulação das diversas OSC — o Conselho das Organizações Não-
Governamentais no Malawi — que granjeia respeito suficiente entre as OSC, facto
que lhe dá a necessária legitimidade para liderar a resolução de quaisquer divisões e
conflitos potencialmente perigosos entre as OSC do Malawi.

4.2 - A consolidação do espaço legal e político


A lei e as políticas que salvaguardam o espaço para organização e actividade da socie-
dade civil têm limitações que restringem a capacidade das OSC para dar assistência aos
Fidelis Edge Kanyongolo l A Sociedade Civil num Quadro Neo-Liberal Legal: o Caso do Malawi 361

pobres e marginalizados e fazer respeitar os seus direitos. Não obstante, o ambiente


legal e político continua no caminho para uma maior liberdade de acção da sociedade
civil. À medida que o Estado se retira cada vez mais da esfera pública em favor do
sector privado, a sociedade civil deve consolidar o seu próprio espaço, usando o seu
acesso à formulação de políticas públicas e à monitorização do Orçamento Geral do
Estado para continuar a assegurar a protecção legal de direitos e da acomodação po-
lítica das OSC. Nesta relação, a sociedade civil deve utilizar em pleno a oportunidade
que tem de influenciar a reforma de leis através da sua participação na formulação e
implementação de políticas públicas, assim como através da sua participação regular
nas comissões legislativas especiais, estabelecidas para reformar legislação específica.
A este respeito, é também importante que as OSC acompanhem constantemente a
aplicação da Lei das ONG para assegurar que o governo não se utiliza desta lei para
enfraquecer as ONG.
4.3 - Normas para a independência e não partidarização das OSC
O verdadeiro alcance da definição segundo a qual a sociedade civil é independente do
Estado tem sido assunto de muito debate na literatura especializada. Relacionado com
este debate teórico está a questão prática de saber em que medida pode a sociedade
civil cooperar com o Estado (e com o sector privado) sem perder a sua legitimidade
e capacidade de efectivamente desempenhar o seu papel de fiscalização do sistema
democrático. No Malawi, este debate tem sido silenciado apesar das recentes nomea-
ções presidenciais de activistas da sociedade civil para as administrações de empresas
estatais. Em todo o caso, a questão da independência das OSC não se deve limitar à
relação entre estas e o governo, devendo igualmente estender-se à relação com o sector
privado e os parceiros estrangeiros (sejam governamentais ou não governamentais).
Estes últimos têm certamente um impacto significativo no estabelecimento das prio-
ridades e programas das OSC nacionais, a maioria das quais recebe quase todos os
seus fundos dos governos e agências de desenvolvimento ocidentais.

Conclusão
É expectável que a sociedade civil Malawiana desempenhe um papel crítico no pro-
cesso de democratização e desenvolvimento futuro. O espaço criado pela lei e pelas
políticas governamentais deve permanecer inalterado e o principal desafio para as OSC
é o de assegurarem que a diferenciação e divisão no seu seio não mine fatalmente as
possibilidades de solidariedade, e que as OSC tenham verdadeiramente em conta a
realidade sócio-económica do país no seu planeamento de actividades e na sua própria
organização interna. Isto ajudará as OSC no Malawi a aprofundar a sua legitimidade
e relevância interna.

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379ff.
363

Sociedade Civil e Poder Político


no Botswana1

Introdução
Badala Tachilisa
Balule
Universidade
O papel das Organizações da Sociedade Civil (OSC) nas
democracias modernas está fortemente relacionado
com o direito fundamental dos cidadãos a formarem associa-
do Botswana ções para persecução de objectivos comuns. A raiz da defini-
ção de democracia é a de um governo regulado pelo povo, o
que implica o controlo do sistema político pelo povo. Neste
sentido, o povo de um determinado sistema político deve
ter acesso ao processo de tomada de decisões com base num
critério de igualdade política. As OSC facilitam o acesso dos
cidadãos ao processo de tomada de decisão e promovem a
igualdade política por, entre outras coisas, assegurarem o
alargamento do debate político conducente a uma cidada-
nia informada, que pode votar de forma mais consciente,
participar na política e assegurar o controlo da governação,
tornando o governo mais responsável. Desta forma, as OSC
reforçam a democracia devido ao evidente facto de se cons-
tituírem num meio de resistência à tirania dentro do Estado
e de estabelecerem as fundações da igualdade politica e do
controlo popular, para além de se constituírem como meio
de construção de um contra-poder democrático de combate
às fontes de poder anti-democráticas externas ao Estado2.
As OSC são actores poderosos do ponto de vista político e
ideológico, na medida em que procuram alterar as normas e
políticas existentes com o objectivo de fortalecer a democracia3.
A eficácia das OSC como actores políticos em qualquer regime
dependerá da medida em que o governo reconhecer o seu
papel. Assim, a capacidade das OSC de influenciar as políticas
governamentais dependerá de seu grau de independência e da
disposição do executivo em permitir que estas organizações
participem na formulação das políticas públicas.
Este artigo analisa a sociedade civil e o poder político no
Botswana. Examina o ambiente no qual actuam as OSC, a sua

1
Traduzido do original em inglês por Aline Afonso Pereira.
2
Ver H. Wainwright, “Civil Society, Democracy and Power”, in Global Civil Society
Yearbook 2004/5, em www.tni.org.
3
G.M. Steinberg, “Civil Society, Intercultural Dialogue and Political Activism:
Rethinking EMP Policies”, in L. Bekemans, et. al. (eds), Intercultural Dialogue and
Citizenship, Translating Values into Actions: A Common Project for Europeans and Their
Partners, Marsilio, Venice, 2007, pp. 297 a 301.
364 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

relação com o executivo e a medida em que têm influenciado a formulação de políticas


públicas e desempenhado um papel de vigilância em relação ao governo. Além disso,
este artigo destaca igualmente os obstáculos que impedem as OSC no Botswana de
realizarem eficazmente o seu papel.

1 – O Ambiente de Actuação das OSC e as suas Relações com o Estado


O direito de liberdade de associação é garantido pela Constituição na secção 13 (1),
que determina que:
Excepto através do seu próprio consentimento, nenhuma pessoa poderá ser impedida
do exercício da sua liberdade de reunião e associação, ou seja, do seu direito a reunir-se
e associar-se livremente com outras pessoas e, em particular, de formar ou pertencer a
sindicatos ou outras associações para a protecção dos seus interesses.
O direito de liberdade de associação garantido pela Constituição é respeitado pelo
governo e isto é evidenciado pela existência de numerosas OSC activas no país. Estas
organizações são variadas e estão baseadas em necessidades comunitárias; incluem
sindicatos, media independentes, organizações de mulheres, organizações para a pro-
tecção de crianças, associações para os diminuídos físicos, organizações ambientais,
associações culturais, organizações comunitárias de base, organizações de defesa dos
Direitos Humanos e organizações profissionais.4
Até 1995, ano em que foi fundado o Conselho das ONG do Botswana (BOCONGO), as
acções desenvolvidas no país pelas ONG estavam descoordenadas e fragmentadas. A sua
missão é auxiliar e facilitar a criação de um ambiente propício ao sector das ONG, onde
estas sejam reconhecidas como parceiras no processo de desenvolvimento do Botswana
e da região. O BOCONGO actua como uma plataforma para facilitar a actuação em rede,
para a advocacia, capacitação das ONG locais e mobilização de recursos para a auto-
sustentabilidade deste sector da sociedade civil5. Os seus objectivos incluem, entre outros,
a promoção da articulação entre as ONG, as Organizações Comunitárias de Base (OCB),
o governo, o sector privado, os doadores e outros parceiros do desenvolvimento6.
O governo do Botswana reconhece oficialmente a sociedade civil como um actor
importante, cujo funcionamento deve ser expandido, devendo ultrapassar a simples
função de vigilante para atingir a função de parceiro activo no desenvolvimento7.
Consequentemente, tem ao longo dos anos envolvido as OSC no processo de formu-
lação das políticas públicas, seja de forma individual, seja de forma agregada, sob a
alçada do BOCONGO. Para promover de forma efectiva a parceria entre governo e
sociedade civil, foi criado o Conselho Consultivo de Alto Nível (High Level Consultative
Council – HLCC). Este conselho é dirigido pelo Presidente da República e é formado
por ministros, representantes do governo, da sociedade civil e do sector privado. O
HLCC constitui, de maneira formal, um poderoso fórum consultivo para o sector
privado, para o governo e para as OSC8.

4
Ver Botswana Institute for Development Policy Analysis (BIDPA), The State of Governance in Botswana 2004 – Final
Report, BIDPA and UNECA, 2006, p. 195.
5
BOCONGO Mission Statement, em www.bocongo.org.bw
6
Ibid.
7
Republic of Botswana, Seventh Africa Governance Forum (AGF VII) – Botswana Country Report, October 2007, p. 11.
8
BIDPA, The State of Governance in Botswana 2004 – Final Report, op. cit., p. 195.
Badala Tachilisa Balule l Sociedade Civil e Poder Político no Botswana 365

O HLCC está subdividido em HLCC sectoriais, de acordo com a estrutura ministerial


e com determinados sectores da esfera privada, assim como das OSC. Por exemplo,
para o sector dos media, temos o Conselho Consultivo para os Media (Media Advisory
Council – MAC) que está relacionado com o Ministério das Comunicações, Ciência e
Tecnologia. O MAC é dirigido pelo Ministro e é constituído por vinte e cinco membros,
dos quais um terço provém do sector público e os restantes dois terços do sector privado
e das OSC. Os objectivos do MAC são: promover o diálogo entre os sectores público e
privado (e no seio destes sectores), assim como entre todas as partes interessadas no
desenvolvimento de uma indústria livre, ética e pluralista; aconselhar o governo em
toda e qualquer questão nas áreas de governação e legislação dos media, de interesse
imediato ou de longo prazo para todas as partes envolvidas nos media, bem como em
qualquer outra questão pertinente que a qualquer momento possa surgir9.
O HLCC reúne-se duas vezes por ano enquanto os subsectores, os HLCCs, reúnem-se
trimestralmente.
O reconhecimento do governo do papel estratégico e da contribuição complementar
das OSC para o desenvolvimento nacional levou à adopção da Política Nacional para
as Organizações Não Governamentais em 200110. Esta política fornece um quadro geral
que orienta o desenvolvimento actual e futuro para o sector e, além disto, articula o
relacionamento e as modalidades de parceria com o governo e com outros parceiros
do desenvolvimento11.
A lógica por detrás desta postura é o reconhecimento de que o desenvolvimento nacio-
nal é da responsabilidade de todas as pessoas, incluindo o governo, as ONG e outros
sectores, e que, consequentemente, existe a necessidade de identificar os papéis e as
responsabilidades dos vários parceiros para o desenvolvimento nacional12. A Política
Nacional para as Organizações Não Governamentais reconhece que as ONG constituem
um poderoso instrumento da sociedade civil para a construção da estabilidade social
e da confiança pública, assim como para a solidificação do Estado de Direito13. Esta
política delega ao BOCONGO a responsabilidade de manter uma articulação efectiva
entre os governos central e local e com as ONG14.
No que respeita ao relacionamento entre as ONG e o governo, esta política estabelece
de forma clara que o relacionamento estará baseado no respeito mútuo, na confiança
e na liberdade de parcerias. Além disso, assegura que o relacionamento respeitará a
independência das ONG, incluindo os seus direitos fundamentais e a liberdade de
associação e de expressão15.
Antes da fundação do BOCONGO, o governo via a sociedade civil com suspeição e o
relacionamento entre ambos era descrito como “difícil e tenso na maior parte do tempo” 16.
O relacionamento parece ter melhorado e já há quem o caracterize como “cordial”17. De
qualquer forma, o governo continua a ser crítico em relação a certos sectores da sociedade
9
Ministry of Communications, Science and Technology, Terms of Reference for the Media Advisory Council.
10
Ministry of Labour and Home Affairs, National Policy for Non-Governmental Organisations, Government of Botswana,
2001.
11
Ibid. para. 1.2.
12
Ibid. para. 3.1.
13
Ibid. para. 3.4.
14
Ibid. para. 9.6.5 (i).
15
Ibid. para. 9.2.
16
Ibid. para. 3.6.
17
BIDPA, The State of Governance in Botswana 2004 – Final Report, op. cit., p. 196.
366 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

civil como os sindicatos e os media. Por exemplo, o discurso sobre “o estado da nação”
proferido pelo presidente Festus Mogae na abertura da quarta sessão do nono parlamen-
to, embora reconhecendo que os sindicatos são instituições essenciais numa democracia
participativa, lamentou que alguns líderes sindicais pareçam aspirar a carreiras político-
partidárias sob o disfarce do sindicalismo. Ele advertiu que os sindicatos deveriam evi-
tar ser manipulados por interesses políticos pessoais e partidários18. As observações do
Presidente foram fortemente criticadas pelos sindicatos que as interpretaram como um
desafio à sua independência19. Da crítica do Presidente aos sindicatos transparece alguma
incapacidade de compreender que numa democracia participativa as OSC são também
actores políticos e ideológicos, que podem legitimamente pretender alterar as normas e
as políticas públicas existentes como forma de fortalecer a democracia.
Há um entendimento geral de que os media independentes, além de contribuírem para
uma sociedade civil autónoma e activa, informando e educando o público, constituem as
vias para que os actores não-estatais possam criticar ou objectar publicamente às políticas
ou acções do governo20. Os media privados independentes surgiram no Botswana no final
dos anos oitenta e continuam a desenvolver-se. A liberdade dos media é garantida pela
Constituição como um aspecto de um direito mais vasto – a liberdade de expressão21.
Actualmente, no Botswana, existem aproximadamente uma dúzia de jornais privados
em circulação e três emissoras nacionais de rádio privadas. Observou-se que o governo
fornece um ambiente razoavelmente seguro para a liberdade dos media, embora tenham
acontecido casos em que o governo tomou medidas que foram designadas como cen-
sura. Por exemplo, em Abril de 2001, o governo proibiu publicidade governamental em
dois jornais locais, o Botswana Guardian e o Midweek Sun por serem muito críticos em
relação aos líderes do país. A decisão foi punitiva e pretendia pressionar os dois jornais
a reformular as suas reportagens de acordo com parâmetros de liberdade editorial que
o governo considerava mais aceitáveis. Essencialmente, o governo estava a usar os seus
poderes de gestão do erário público para tentar manipular o conteúdo dos media, por
meio da colocação da publicidade pública, deste modo tentando forçar os jornais a alterar
sua política editorial em conformidade com as expectativas governamentais. A proibição
foi subsequentemente declarada inconstitucional pelo Tribunal Supremo22.
A tensão entre alguns sectores da sociedade civil e o governo fez com que vários
analistas chegassem à conclusão de que os ataques do governo à sociedade civil com-
peliram esta a afastar-se da crítica às concepções do Estado e forçaram-na a entrar
em conselhos conjuntos com o executivo para operar de maneira a fortalecer e não a
enfraquecer o poder do Estado23.
2 - A Influência da Sociedade Civil nos Programas e Políticas
Governamentais
Embora o governo tivesse criado estruturas para colaborar com a sociedade civil na
formulação de políticas públicas, aquilo que se verificou foi uma diminuição da parti-
18
See paras. 58 and 59, State of the Nation Address, by His Excellency Mr. Festus G. Mogae, to the opening of the
Fourth Session of the Ninth Parliament – “Achievements, Challenges and Opportunities” delivered on 5th November
2007, at www.gov.bw.
19
Ver “Mogae Angers Trade Unions”, Mmegi/The Reporter, 7 de Novembro de 2007.
20
Economic Commission for Africa, African Governance Report 2005, Economic Commission for Africa, 2005, p. 133.
21
Media Publishing (Pty) Ltd v Attorney General of Botswana and Another [2001] 2 BLR 485 at 494.
22
Para uma discussão mais detalhada ver, B.T. Balule, “Manipulating Media Content: Public Sector Advertising in
the Press in Botswana – A Comment on Media Publishing vs Attorney General of Botswana” (2004) 20 SAJHR 653.
23
Z. Maundeni, Civil Society, Politics and the State in Botswana, Medi Publishing, 2004, p. 67.
Badala Tachilisa Balule l Sociedade Civil e Poder Político no Botswana 367

cipação dessa mesma sociedade civil, facto que é atribuído às dificuldades financeiras
e de recursos humanos neste sector24.
Não obstante estes constrangimentos, a sociedade civil no Botswana tem desempe-
nhado um papel notável ao influenciar diversas leis e políticas governamentais. As
organizações de defesa dos direitos das mulheres têm exercido uma grande influência
nas leis e políticas governamentais. Os esforços de advocacia promovidos por estes
grupos têm, ao longo dos anos, contribuído para o aumento constante da representação
feminina nos cargos de tomada de decisão, incluindo cargos políticos, administração
de topo (nos sectores público e privado) e em domínios tradicionalmente masculinos,
como os de autoridades tradicionais e de sacerdócio25.
Como consequência da pressão exercida pelos grupos que defendem os direitos das
mulheres, o governo tem revisto e alterado várias leis discriminatórias, procurando
promover a efectiva participação das mulheres na economia do país26. As alterações
tiveram como objectivo reforçar a segurança económica das mulheres em áreas como
a terra, a propriedade, o direito de herança, o emprego e o acesso ao crédito27.
As medidas políticas e legislativas tomadas pelo governo para alterar as leis que dis-
criminavam as mulheres incluem, entre outras: a emenda de 1995, que altera a Lei da
nacionalidade, a fim de permitir que as mulheres cidadãs do Botswana, que casem
com não-cidadãos, possam ver atribuída a cidadania aos seus filhos; a emenda de 1996
à Lei do Registo de Propriedade, permitindo que mulheres casadas em comunhão de
bens possam ter imóveis registados em nome próprio em vez do nome do seu marido;
a emenda de 1998 ao Código Penal, que, entre outros aspectos, reforça as leis contra a
violação; a emenda de 2000 à Lei dos Serviços Públicos, que reconhece o assédio sexual
como comportamento impróprio; e a Lei de 2004 de Abolição do Poder Marital, onde
o princípio da lei comum do poder marital foi substituído pelo princípio da igualdade
entre os cônjuges em relação à propriedade comum.
A sociedade civil do Botswana mostrou-se, algumas vezes, capaz de obstruir os es-
forços do governo para promulgar leis que de forma geral eram percebidas como
ameaças aos direitos e liberdades fundamentais protegidas pela constituição do país.
Por exemplo, em 1997, o governo criou um controverso ante-Projecto de Lei para a
área da Comunicação Social que tentou estabelecer uma agência reguladora para
a imprensa escrita, cujos membros deveriam ser nomeados pelo ministro. O ante-
Projecto de Lei foi recebido com protestos pela sociedade civil dentro e fora do país,
o que acabou por forçar o governo a abandoná-lo28. O governo comprometeu-se a
consultar as partes interessadas antes da apresentação do Projecto de Lei ao Parla-
mento. Em 2006 o governo honrou o seu compromisso ao estabelecer uma equipa
composta por membros dos HLCC do Comité Consultivo para os Media para delinear
os princípios que poderiam servir de base à Lei da Comunicação Social. Foi solicitada

24
Ver BIDPA, Measuring and Monitoring Progress Towards Good Governance in Africa: The African governance Report
II – Botswana Draft Report, Outubro 2007, p. 85.
25
Ver Transparency International Zimbabwe and Transparency International, A Comparative Study of National Integrity
Systems in 5 Southern African Countries, Transparency International Zimbabwe, 2007, p. 56.
26
Alguns dos grupos mais activos de defesa dos direitos das mulheres incluem: Emang Basadi; Women in Law in
Southern Africa Trust; and Women’s NGO Coalition.
27
Ver State of the Nation Address, by His Excellency Mr. Festus G. Mogae, to the opening of the Fourth Session of
the Ninth Parliament, op. cit. at para. 60.
28
Ver J. Minnie and B. Mwape (eds.), So This is Democracy? Report on State of the Media in Southern Africa 1997, MISA,
1997, p. 25.
368 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

à equipa a tarefa de consultar legislação semelhante existente na SADC, na Europa,


nos Estados Unidos, na Austrália e noutras partes do mundo, com o objectivo de se
adequar a legislação aos padrões internacionais. A equipa completou o seu mandato
em finais de 2006, e delineou princípios considerados pelas partes interessadas como
indo ao encontro das melhores práticas internacionais para uma sociedade democrá-
tica29. Estes princípios foram então remetidos à divisão de redacção da Procuradoria-
-Geral para servirem de base à estruturação da nova Lei para a Comunicação Social.
A monitorização dos Direitos Humanos pela sociedade civil do Botswana não tem
sido tão visível. Isto tem sido atribuído ao facto de existir uma única organização
da sociedade civil para a defesa dos Direitos Humanos, a Ditshwanelo – Centro do
Botswana para os Direitos Humanos30. Esta organização foi fundada em 1993 e a sua
missão é “exercer um papel chave na protecção e promoção dos Direitos Humanos na
sociedade do Botswana” 31. Esta organização procura educar, pesquisar, aconselhar e
mediar questões relativas aos Direitos Humanos, em especial aquelas questões que
afectam as pessoas marginalizadas ou desamparadas32.
A Ditshwanelo tem desempenhado um papel activo nas exigências dos povos indígenas
no que se refere aos seus direitos sobre a terra e a manutenção da sua maneira de vida
tradicional. No final dos anos noventa a Ditshwanelo foi nomeada para representar
várias ONG nas reuniões do comité inter-ministerial responsável pela deslocação dos
Basarwa (San), população da Reserva do Kalahari Central (Central Kalahari Game Reserve
– CKGR). Entretanto, o governo avançou com as deslocações que foram subsequente-
mente contestadas até que o caso chegou ao Tribunal Supremo. Os San venceram o caso
em 2005 e foi-lhes dada a permissão para retornar à sua terra ancestral, embora existam
alegações de abusos dos Direitos Humanos cometidos pelos oficiais do Departamento
para a Vida Selvagem contra os San que retornaram para o CKGR33.
Desde a sua criação, os media privados têm agido de acordo com o papel que deles é
esperado, actuando como um bloco de poder contra outros blocos, ao influenciar a
formulação das políticas públicas e ao agir como um espelho da sociedade do Botswa-
na, independente do governo34. É provavelmente no papel de vigilante que os media
do país se têm distinguido. O papel dos media privados neste contexto é bem definido
pelo editor de um dos mais antigos jornais, o Guardian, nos seguintes termos:
Os media no Botswana são a última linha de defesa contra os excessos cometidos pelo
governo, pelas organizações não governamentais e pelo meio empresarial. O Botswana,
embora não seja um Estado de partido único, é um Estado dominado por um único
partido. A oposição política é fragmentada e fraca. O papel de vigilante do Parlamento
foi desgastado pela esmagadora maioria parlamentar dos membros do Botswana Demo-
cratic Party. A sociedade civil é pequena e ainda em desenvolvimento e assim o papel de

29
Ministry of Communications, Science and Technology, Proposed Principles for a Mass Media Bill (2006).
30
Ver BIDPA, Measuring and Monitoring Progress Towards Good Governance in Africa: The African governance Report
II – Botswana Draft Report, op. cit., p. 116.
31
Ver www.ditshwanelo.org.bw
32
Ibid.
33
Z. Maundeni, “Civil Society and Democracy in Botswana”, in Z. Maundeni (ed), 40 Years of Democracy in Botswana
1965 – 2005, Mmegi Publishing House, 2005, pp. 177 a 183.
34
S.T. Sechele, “The Role of the Press in Independent Botswana”, in W.A. Edge and M.H. Lekorwe (eds.), Botswana:
Politics and Society, J.L. Van Schaik Publishers, 1998, pp. 412 a 415.
Badala Tachilisa Balule l Sociedade Civil e Poder Político no Botswana 369

vigilante cabe mais aos media do que seria geralmente o caso em outras sociedades com
instituições mais desenvolvidas35.
Os media privados recorrem ao jornalismo de investigação como meio de desempenhar
o seu papel de vigilante. Estes têm, ao longo dos anos, exposto casos de corrupção no
governo, de má gestão, de abusos dos Direitos Humanos e de outras insuficiências
da justiça. O exemplo clássico foi a revelação pelo jornal Gazette em 1994 que o então
presidente e quase metade do seu gabinete estavam a dever milhões de Pula referentes
a atrasos nos pagamentos de empréstimos cedidos pelo National Development Bank
(NDB), que por sua vez estava a beira da falência36. Cerca de uma semana depois das
revelações, o presidente quitou os seus pagamentos em atraso37. Algumas das repor-
tagens divulgadas pelos media resultaram na nomeação de comissões presidenciais
de inquérito, que com o tempo ajudaram a encontrar culpados e, em alguns casos,
levaram à demissão de ministros38.

3 - Desafios à Sociedade Civil


Apesar de o quadro legal permitir que a sociedade civil opere livremente e que o go-
verno também tenha demonstrado boa vontade em envolver as OSC na elaboração
das políticas públicas, a sociedade civil do Botswana tem desempenhado um papel
secundário na formulação de políticas públicas e na sua actividade de vigilância. As
razões para isto são variadas.
Tem sido observado que as OSC no Botswana não estão completamente desenvolvidas
como em outros países africanos. Isto é em parte atribuído à estabilidade política e
económica que tem prevalecido desde a independência39. Além disto, argumenta-se
que a inexistência de uma minimamente significativa luta pela independência em
concomitância com a inexistência de uma tradição de questionamento entre as pessoas,
é outro factor que explica a fraqueza da sociedade civil do Botswana40.
A sociedade civil do Botswana não é eficaz nem no seu relacionamento com o Estado,
nem nas suas actividades de advocacia, devido às suas limitações financeiras e de
recursos humanos41. As organizações da sociedade civil ainda não têm pessoal expe-
riente e capacitado para realizar o seu trabalho devido à sua incapacidade para recrutar
e manter pessoal experiente, sendo que não podem pagar remunerações elevadas e
apresentar condições de trabalho competitivas.42
A falta de uma gestão organizacional adequada é um outro desafio que enfrentam as
OSC no país. Muitas destas organizações são excessivamente centradas na pessoa do
dirigente, tendendo a reflectir as suas convicções pessoais em determinadas causas.
Falta-lhes capacidade de institucionalização e, geralmente, quando os dirigentes saem

35
Outsa Mokone, Guardian, 7 de Janeiro de 2000, pp. 4.
36
“Big Guns Owe NDB Millions”, Gazette, 9 de Fevereio de 1994, p. 1.
37
“President Owns Up to Owing the NDB”, Gazette, 16 de Fevereiro de 1994.
38
S.T. Sechele, “The Role of the Press in Independent Botswana”, op. cit. at 416 and Mmegi, Vol. 16, N.º 15, 16-22 de
Abril de 1999, “The Rise and Fall of Jacob Nkate”, p. 1.
39
Ver D. Sebudubudu and E. Alexander, “Civil Society, Human Rights and Good Governance in Botswana”, in G.
Jacques et. al. (eds.), Human Rights and Social Development in Southern Africa, Bay Publishing, 2007, pp. 148 a 152.
40
Ver BIDPA, Measuring and Monitoring Progress Towards Good Governance in Africa: The African governance Report
II – Botswana Draft Report, op. cit., p. 85.
41
Ver BIDPA, Measuring and Monitoring Progress Towards Good Governance in Africa: The African governance Report
II – Botswana Draft Report, op. cit., p. 85.
42
Ibid.
370 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

a organização desmorona. Falta-lhes igualmente uma gestão democrática, prestação de


contas (accountability) e transparência43. Apesar de os estatutos das OSC e as leis que
regulam o seu funcionamento exigirem reuniões anuais de apresentação de relatórios
e auditorias financeiras, apenas algumas cumprem com estas exigências. Ainda assim,
as poucas organizações que apresentam os seus relatórios, escolhem o que relatar, e
as questões mais controversas são convenientemente evitadas ou menosprezadas44.
Esta falta de transparência e accountability afecta negativamente a credibilidade das
OSC enquanto parceiros genuínos no desenvolvimento.
O movimento sindical, com potencial real para desafiar o poder político do Estado, tem,
em grande medida, permanecido apolítico. A Federação de Sindicatos do Botswana
(Botswana Federation of Trade Unions – BFTU), o grande aglutinador do movimento sin-
dical, adoptou a posição de acreditar que, mesmo que esteja a trabalhar num ambiente
político, pode melhor representar os interesses dos trabalhadores deixando a política
para os indivíduos45. A BFTU indicou claramente que não apoiará explicitamente
nenhum partido político, mas incentivará os partidos políticos a adoptar posições
pró laborais46.
A BFTU comprometeu-se a trabalhar em proximidade com o governo que estiver em
funções e continuar a defender a implementação de políticas públicas que promovam
os interesses dos trabalhadores. A posição adoptada pelo movimento sindicalista no
Botswana contrasta bastante com a posição dos movimentos sindicalistas da maioria
dos países da região, como o da África do Sul, da Zâmbia e do Zimbabué. Os analistas
ressaltam que a posição da BFTU é motivada por um desejo de ganhar a aceitação
do Estado, o que compromete a capacidade do movimento sindical de ser um actor
político eficaz numa democracia47.
As OSC do Botswana eram tradicionalmente financiadas por doadores internacionais.
Com a reclassificação do país para o grupo de países com rendimento médio, o financia-
mento dos doadores, que costumava vir com a ajuda internacional, tornou-se escasso, o
que deixou algumas organizações sem sustentação financeira. Isto fez com que o governo
se tornasse o principal financiador de várias OSC48. Em termos de políticas públicas para
as ONG, o governo responsabilizou-se por “fornecer o apoio financeiro às ONG e às
organizações de rede, que se enquadrassem nos critérios de accountability”. Na prática,
observou-se que o governo passou a apoiar somente as organizações cujas actividades
eram apolíticas49. Observou-se, também, que o governo ficou relutante em financiar OSC
de forma individual, preferindo fazê-lo por meio das organizações de rede. Isto criou
uma situação de dependência, fazendo com que as organizações de rede se tornassem tão
importantes em relação aos seus filiados que os abafaram e marginalizaram, ganhando
vida própria para além dos seus membros. A dependência directa das OSC em relação
aos fundos governamentais compromete a sua independência e, consequentemente,
impede que estas desenvolvam o seu papel numa democracia.
43
Ver M. Mogalakwe and D. Sebudubudu, “Trends in State-Civil Society Relations in Botswana”, (2000) 5 (2) Journal
of African Elections, pp. 207 a 211.
44
Transparency International Zimbabwe and Transparency International, A Comparative Study of National Integrity
Systems in 5 Southern African Countries, op. cit., pp. 57.
45
Botswana Federation of Trade Unions, Position Paper 2004, BFTU, 2004, p. 8.
46
Ibid.
47
Ver Z. Maundeni, Civil Society, Politics and the State in Botswana, op. cit., p. 69.
48
Transparency International Zimbabwe and Transparency International, A Comparative Study of National Integrity
Systems in 5 Southern African Countries, op. cit., p. 56.
49
Ibid.
Badala Tachilisa Balule l Sociedade Civil e Poder Político no Botswana 371

Embora não exista censura directa do Estado aos media privados, há um elevado nível
de auto-censura no sector. Isto deve-se principalmente a dois factores. Primeiramente,
existem várias leis a vigorar no país que regulam os media. Estas leis, formuladas em
termos vagos, ou dão poderes arbitrários aos órgãos do governo ou impõem duras
penalizações aos media quando estes incumprem com estas leis. Entre os exemplos
possíveis inclui-se o Acto de Segurança Nacional (National Security Act) com normas
vagas e penalizações duras. Isto induz a auto-censura nos media, que tendem a evitar
reportagens sobre assuntos que eventualmente possam infringir aquela lei. Há tam-
bém o Acto de Imigração (Immigration Act) que dá poderes ao Estado para declarar
um estrangeiro residente como indesejável e simplesmente deportá-lo. Este disposi-
tivo tem sido ocasionalmente utilizado pelo governo contra jornalistas estrangeiros
que residem no país, considerados como demasiado críticos em relação às políticas
governamentais.
O segundo factor que contribui para a auto-censura nos media é o económico. Os me-
dia privados contam muito com o rendimento da publicidade. Assim sendo, têm que
se assegurar que as suas reportagens não antagonizam os interesses dos principais
anunciantes, o que pode vir a resultar na perda de patrocínios. Os media privados de-
pendem em larga medida do rendimento de muitos anúncios do governo e do sector
público, o que deixa esta industria vulnerável caso esses anúncios sejam retirados, não
lhes sendo possível sobreviver somente com o rendimento dos anunciantes privados.
A vulnerabilidade desta indústria pode ser demonstrada por meio do caso da retirada
dos anúncios nos jornais Guardian e Midweek Sun. Embora a decisão do governo tenha
sido posteriormente declarada ilegal pelo Tribunal Supremo, os jornais insistem que
a publicidade do sector público para eles diminuiu50.
Desde o seu surgimento nos anos oitenta, os media privados no Botswana têm, de for-
ma geral, desempenhado o seu papel de vigilante de maneira satisfatória. Através do
jornalismo de investigação, no passado, os media privados já expuseram casos de cor-
rupção no governo, de má gestão, de abuso dos Direitos Humanos e outros episódios
de insuficiências na justiça. Contudo, actualmente verifica-se uma falta de jornalismo
de investigação, que pode ser atribuída a inúmeras razões. Uma das principais razões
é que os jornalistas mais experientes têm sido promovidos a postos de gestão e já não
escrevem, enquanto outros tendem a deixar a profissão para actividades mais lucrativas
na área das relações públicas51. Outra razão é a crescente competição e comercialização
neste sector, o que também desencoraja os media a cobrir histórias que possam vir a in-
comodar os seus principais anunciantes e assim colocar em risco os seus patrocínios.
Conclusão
De modo geral, acredita-se que a sociedade civil no Botswana é fraca e como tal não
tem sido capaz de influenciar de forma eficaz o poder político. A fraqueza da socie-
dade civil do Botswana deve-se principalmente a limitações financeiras e de recursos
humanos. Assim, este sector deveria desenvolver estratégias direccionadas para a
resolução das suas limitações, especialmente em termos de competências, de gestão
organizacional, de experiência e de eficiência e eficácia operacional.

50
B.T. Balule, “Manipulating Media Content: Public Sector Advertising in the Press in Botswana: A Comment on
Media Publishing vs Attorney General of Botswana”, op. cit. at 659.
51
“Africa Media Barometer: Botswana 2005 – Civil Society Perceptions on the State of Media Freedom & Freedom of
Expression”, in Z. Titus (ed), So This is Democracy? State of Media Freedom in Southern Africa 2005, MISA, 2006, pp. 190 a 204.
372 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Outro desafio a este sector está na sua crescente dependência em relação aos fundos
provenientes do governo, depois do abandono dos doadores internacionais. O governo
nunca deveria usar a sua capacidade de gestão de fundos públicos para incapacitar
instituições democráticas, mas tal acontece. Há assim a necessidade de desenvolver
políticas públicas e estratégias que assegurem que a gestão dos fundos públicos não
mine a independência das OSC.
A independência dos media é fundamental para uma sociedade civil eficaz. No Botswa-
na, a independência dos media enfrenta sérias ameaças derivadas da comercialização
do sector, causada pela super-dependência em relação às receitas provenientes dos
anúncios. É preciso encontrar maneiras de reduzir a dependência deste sector em
relação àquelas receitas para garantir o cumprimento da sua missão democrática.
373

Sociedade Civil e Desenvolvimento


em Moçambique

A penalização por não participares na política,


é acabares por ser governado pelos teus inferiores.
Platão

Introdução
Manuel de Araújo

Raúl Meneses
& O presente trabalho faz uma reflexão sobre o contributo
das Organizações da Sociedade Civil (OSC) para o
processo de desenvolvimento sócio-político em Moçam-
Chambote, bique nos últimos dezassete anos. A emergência das OSC
Centro de Estudos ganha ímpeto na década de noventa com a dinâmica do
Moçambicanos
processo de democratização, a ajuda de emergência e o
e Internacionais (CEMI)
apoio dos Parceiros de Cooperação Externa. Desde cedo se
notaram duas características essenciais no espaço de desen-
volvimento das OSC moçambicanas, por um lado, o enorme
peso do factor externo (financiamento e capacitação técni-
ca), por outro lado, a crescente preocupação (incómodo)
que causaram ao poder político. Estas duas características
marcarão de sobremaneira o desenvolvimento das OSC até
ao presente, representando os seus maiores desafios, tanto
nos muitos constrangimentos que se lhes levantam, como
nos relativos sucessos que foram atingindo nos casos em
que foram capazes de superar alguns obstáculos.
A polarização do espaço político-partidário entre a FRELI-
MO e a RENAMO, assim como o carácter patrimonialista
e clientelar do sistema político-económico, representa um
contexto de fortes limitações à autonomia e apartidarização
das OSC. Por outro lado, as suas parcerias com parceiros de
cooperação externa e o acesso directo a organizações inter-
governamentais internacionais torna-as potencialmente pe-
rigosas para o poder político-governativo, que percebe que o
seu controlo monopolista sobre o processo de decisão política
está a chegar ao fim e tem de ser mais partilhado.
É neste contexto que se têm desenvolvido as OSC moçambi-
canas, em constante luta contra um ambiente adverso num
caminho com muitos obstáculos, procurando afirmar a legi-
timidade da sua participação e contributo para o processo de
democratização e desenvolvimento sócio-político-económico
de Moçambique.
374 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Este trabalho encontra-se estruturado em duas partes. A primeira faz uma abordagem
alargada do contexto de Moçambique no plano político, económico e social, contra-
pondo a perspectiva da realidade da maioria da população à dos cenários idílicos da
success story propagados no exterior. A segunda apresenta o percurso de emergência e
desenvolvimento das OSC moçambicanas, marcadas por diversos constrangimentos
e obstáculos (internos e externos), assim como por alguns sucessos demonstrativos
do seu lento mas inegável progresso e contributo para o processo de democratização
e desenvolvimento.
1 – Enquadramento Sócio-Político-Económico de Moçambique
A República de Moçambique tem sido referida nos últimos tempos como “bom exemplo
de reconciliação e reconstrução económica”, ou como uma “história de sucesso”1.
O quadro politico-jurídico que deriva da Constituição de 1990 permitiu que as questões
cruciais do Estado não permanecessem confinadas ao debate político-partidário (na
perspectiva da interacção entre partido no poder versus partidos da oposição), abrindo
espaço de intervenção e participação pública tanto para as OSC como para o sector
privado. Várias plataformas de diálogo foram criadas, umas por iniciativa legal (e.g.
Lei sobre os Órgãos Locais do Estado, que regula o relacionamento das Autoridades
Locais com os Órgãos do Estado2), outras por iniciativa da própria sociedade civil (e.g.
Observatório da Pobreza – OP; cf. infra).
Já foram realizadas três eleições gerais multipartidárias (1994, 1999 e 2004, consecuti-
vamente ganhas pela FRELIMO3) e duas eleições municipais (1998 e 2003; em ambas
a FRELIMO ganhou na maioria dos municípios). Não obstante o aumento do nível de
abstenção4 e a contestação da RENAMO (maior partido da oposição)5, o processo elei-
toral contribuiu para a estabilização política, crescimento económico, aprofundamento
da dinâmica de processos democráticos, prosseguimento do processo de reforma das
instituições do Estado e fortalecimento da capacidade das instituições políticas.
A nível económico, Moçambique alcançou taxas anuais de crescimento económico su-
periores a 7% nos últimos quinze anos e conseguiu reduzir e controlar a taxa de inflação
através de uma política monetária rígida (ver Tabela 1). Esta evolução é derivada do
término do conflito armado, da estabilidade política, do relançamento da actividade
produtiva, assim como das reformas conduzidas pelo governo Moçambicano.

1
Ver a este respeito Hanlon, Joe (1999) “Mozambique Notes”, in Southern Africa Report (SAR), Vol. 14, N.º 4, August;
available at www.africafiles.org; também a este respeito, Hanlon, Joe (1996) Peace Without Profit: How the IMF Blocks
Rebuilding in Mozambique, London: James Currey.
2
Boletim da República (2003), Lei n.º 8/2003, sobre os Órgãos Locais do Estado (LOLE), de 19 de Maio de 2003. I Série,
n.º 20. Publicação Oficial da República de Moçambique. Maputo.
3
FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique.
4
Abstenção nas eleições gerais: 12% em 1994, 32% em 1999, 64% em 2004; abstenção nas eleições municipais (município
de Maputo): 85% em 1998 e 80% em 2004.
5
RENAMO – Resistência Nacional Moçambicana.
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote l Sociedade Civil e Desenvolvimento em Moçambique 375

Tabela 1: Dados Macro-Económicos de Moçambique

Indicador 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006


PIB 3,719 3,697 4,094 4,789 5,912 6,823 7,738
(nominal; milhões de USD)
Taxa de crescimento real (%) 1,9 13,1 8,2 7,9 7,5 6,2 8,5
Inflação, Média annual (%) 12,7 9,1 16,8 13,5 12,6 6,4 13,2
Taxa de câmbio 15.7 20.7 23.7 23.8 22.6 23.1 25.0
(Média MZM/USD)
Exportações 304 703 679 1,044 1,504 1,745 2,391
(bens) (milhões de USD)
Importações 1,046 957 1,216 1,672 1,850 2,242 2,616
(bens) (milhões de USD)
Balança comercial -682 -254 -536 -628 -346 -497 -225
(bens; milhões de USD)
Fonte: Ministério do Plano e Desenvolvimento de Moçambique, Dados Macro-Económicos, Maputo, 2007.
Não obstante aqueles aspectos gerais positivos, a realidade da vida da maioria da
população está longe de corresponder a um cenário de sucesso.
Segundo o Censo Populacional de 2007, a República de Moçambique tem uma popu-
lação aproximada de 19,5 milhões de habitantes, dos quais 62% vive nas zonas rurais.
De acordo com os dados do Inquérito aos Agregados Familiares (IAF), no período
1999-2003, 69,4% dos habitantes em Moçambique vivia abaixo da linha de pobreza,
enquanto o índice de incidência de pobreza no período de 2002-2003 estimava-se em
54,5%6. A mesma situação pode ser constatada pelos dados disponíveis no Relatório
de Desenvolvimento Humano de 2006, indicando um rendimento per capita baixo, na
ordem dos US$310 e colocando Moçambique no 168.º lugar entre 177 países7.
As estatísticas oficiais nacionais mostram que a incidência da pobreza reduziu de 69,4%
em 1996-97 para 54,1% em 2002-03 e que os níveis de pobreza mais altos se encontram nas
zonas rurais8. No entanto, o problema da pobreza afecta também e cada vez mais as áreas
urbanas, com largos segmentos populacionais fortemente afectados pela pobreza9.
Grande parte do crescimento do PIB é resultado da actividade dos mega-projectos
financiados pelo investimento directo estrangeiro (e.g., fundição de alumínio MOZAL
e empreendimento SASOL do gasoduto para a África do Sul) e do sector de serviços,
assim como dos programas da ajuda internacional. Estes mega-projectos tiveram
impacto significativo nas exportações de Moçambique a partir de 2003, contribuindo
para a redução do deficit da balança comercial. Contudo, o aumento do PIB não se

6
Em 1996-97, o Instituto Nacional de Estatística realizou o primeiro inquérito representativo a nível nacional sobre o
consumo dos agregados familiares em Moçambique. Em 2002-03 realizou-se um segundo inquérito representativo a
nível nacional sobre o consumo dos agregados familiares. Os dois Inquéritos aos Agregados Familiares (IAF) podem
ser consultados online em www.sarpn.org.za
7
Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, A água para lá da escassez: poder, pobreza e a crise mundial da água,
New York: PNUD, 2006; disponível online: http://hdr.undp.org/hdr2006/statistics/country/country_fact_sheets/
cty_fs_MOZ.html
8
Ibid. IAF de 2002-03; os dados nesta magnitude são contudo contestados por vários autores, como por exemplo
Hanlon, Joe (1997), Paz Sem Benefícios. Como o FMI Bloqueia a Reconstrução de Moçambique. Maputo, Centro de Estudos
Africanos, Imprensa Universitária da Universidade Eduardo Mondlane. Inquéritos aos Agregados Familiares (IAF)
podem ser consultados online em www.sarpn.org.za.
9
World Bank (2007) World Development Indicators, Washington, The World Bank.
376 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

faz sentir ao nível da melhoria das condições de vida das populações (em termos de
empregos e rendimentos). As manifestações de 5 de Fevereiro de 2008, contestando a
subida dos preços dos transportes públicos, são um exemplo claro das dificuldades
por que atravessam as populações. Por outro lado, o contributo das micro, pequenas
e médias empresas para o PIB, continua fraco, demonstrando que qualquer efeito
trickle-down dos mega-projectos continua por ocorrer.
O desempenho do sector agrícola, que constitui a principal fonte de rendimento e sobrevi-
vência para a maior parte da população moçambicana, permanece um motivo de grande
preocupação. Apesar de empregar 80,5% da população economicamente activa (sendo
que 60% são mulheres), este sector representa apenas 26% do PIB, devido ao baixo nível
de produção e produtividade10. Os rendimentos agrícolas das famílias e, consequentemen-
te, a sua segurança alimentar, são reduzidos. Os problemas residem não só ao nível dos
baixos índices de produção e produtividade, mas também nos fracos serviços de extensão
rural, dificuldade de acesso aos mercados agrícolas e ao crédito, extrema vulnerabilidade
aos desastres naturais e pragas, baixa qualificação da mão-de-obra e deficientes serviços
públicos de apoio ao sector. De acordo com o Banco Mundial, o investimento público na
agricultura não está suficientemente dirigido para os pobres11.
Independentemente das altas taxas de crescimento do PIB, a taxa de má nutrição está
a aumentar12, querendo isto dizer que se aprofunda o fosso das desigualdades sociais
entre ricos (uma minoria) e pobres (a maioria). Em termos de rendimentos, existem
fortes discrepâncias não só entre grupos populacionais como também entre regiões.
De igual modo, a magnitude do HIV/SIDA poderá ter um impacto económico-social
fortemente negativo. Moçambique é um dos países severamente afectados por este
flagelo. A taxa de prevalência ponderada nacional de HIV entre a população adulta
(15 a 49 anos) continua a aumentar, tendo sido estimada em 13,6% em 2002 e 17,0%
em 2006, estimando-se que até 2020 o país terá perdido 20% da sua força de traba-
lho agrícola. Evidências de vários países indicam que com taxas de prevalência de
HIV entre 15% e 17%, o crescimento do PIB per capita reduz em cerca de 0,8%. Neste
sentido, o país estará, a prazo, sujeito a um bloqueio significativo no seu processo de
desenvolvimento13.
Ao nível do endividamento externo (outrora constituindo uma das principais carac-
terísticas das contas públicas moçambicanas), não obstante a iniciativa HIPC (Heavily
Indebted Poor Countries)14 ter permitido uma redução significativa daquela dívida, o
país continua a depender fortemente da ajuda externa. Há mais de 25 anos que mais
de 50% do Orçamento do Estado (OE) tem sido financiado pela ajuda externa, sendo
que em 2007 esse valor situou-se nos 60,4%15.

10
Mesmo nas zonas urbanas, os indicadores apontam para que cerca de 40,7% da população economicamente activa
seja dependente de actividades nos sectores da agricultura, silvicultura e pesca; ver Agenda Estatística 2005 elaborada
com base no Inquérito aos Agregados Familiares 2002-03, disponível online em www.gvcmoz.org.
11
World Bank (2007), World Development Indicators, Washington, The World Bank.
12
UNICEF Mozambique: Consolidated Donor Report 2006, UNICEF, Março 2007.
13
Plano Estratégico Nacional de Combate ao Sida (2004), Maputo: Conselho de Ministros, Conselho Nacional de Combate
ao Sida, República de Moçambique, p.15.
14
Iniciativa para o Alívio da a Dívida dos Países Pobres Fortemente Endividados, concebida em 1996, pelo Banco Mundial
e Fundo Monetário Internacional, para reduzir o elevado ónus da dívida externa de alguns países mais pobres.
15
Na revisão do Orçamento de Estado, apresentada a Assembleia da República no dia 1 de Novembro de 2007, a
receita total foi cifrada em 2.018.587,49 Meticais Novos, dos quais 800.000,00 resultam do aumento das receitas do
Estado e 1.218.587,49 de financiamento por donativos, Jornal Notícias, 2 de Novembro de 2007.
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote l Sociedade Civil e Desenvolvimento em Moçambique 377

Se tomarmos em conta esta outra perspectiva da realidade Moçambicana, percebemos


que a situação não se diferencia muito do panorama geral de pobreza, aumento da
desigualdade social e dependência externa que caracteriza a maioria dos países da
África Sub-Sahariana16, não se podendo falar de uma success story.

2 - Organizações da Sociedade Civil em Moçambique: Debilidades,


Constrangimentos e Sucessos
Com a independência de Moçambique e a instauração de um sistema político de partido
único de carácter Socialista, foram criadas as chamadas Organizações Democráticas de
Massas (ODM), tais como a Organização da Mulher Moçambicana (OMM), a Organização
da Juventude Moçambicana (OJM), a Organização dos Trabalhadores Moçambicanos
(OTM) e outras do mesmo género. O quadro legal instaurado e a situação de conflito
armado no país foram, em grande medida, impeditivos do surgimento de organizações
da sociedade civil independentes do partido. Durante este período, coube às organizações
de cariz religioso tentar dar voz à sociedade para além do partido, como por exemplo o
Conselho Cristão de Moçambique e a Conferência Episcopal de Moçambique.
A aprovação da Constituição de 1990, a Lei das Associações (Lei 8/91) e o Acordo Geral de
Paz (assinado em Roma em 1992, pondo fim aos 17 anos de conflito armado entre o governo
da FRELIMO e a RENAMO), constituem os elementos-chave de abertura do processo de
democratização em Moçambique e da emergência das OSC tal como as entendemos hoje.
2.1 – Debilidades e constrangimentos das OSC
A grande maioria das OSC tem entre 10 e 17 anos de existência, surgindo num contexto
de resposta a uma situação de emergência humanitária que assolou o país e com um
grande estímulo de organizações externas que chegaram a Moçambique para ajudar a
enfrentar a grave crise. Deste modo, o estímulo externo sobrepôs-se ao estímulo interno,
dando origem a algumas das características que encontramos na maioria das OSC,
como sejam a dependência exagerada de fundos e capacidades externas, assim como
um deficit de base constituinte local, nas comunidades urbanas e, sobretudo, rurais, ou
seja, naquela que deveria ser supostamente a sua base natural de sustentação.
A maioria das OSC Moçambicanas tem uma dimensão reduzida, empregando mão-de-obra
intensiva e caracterizando-se pela escassez de recursos financeiros e humanos, deficit de
capacidade técnica, de gestão e de informação. Em termos de informação, as debilidades
das OSC residem em parte na falta de pesquisas qualitativas e quantitativas sobre a reali-
dade social do país, limitando o seu conhecimento e capacidade de acção. Estas carências
que se podem verificar nas OSC em termos gerais, acentuam-se de sobremaneira a nível
das organizações rurais, criando sérias limitações ao desenvolvimento das organizações
comunitárias de base rural e à participação dessas comunidades na vida pública
Podemos também constatar um problema de falta de transparência e democraticidade
interna em muitas OSC. Existe uma tendência para limitarem a prestação de contas aos
seus doadores, não se preocupando em prestá-las aos grupos que dizem representar e
defender, ou seja, em relação aos seus supostos constituintes de base. Por outro lado,
na maioria das OSC, na prática, os presidentes são vitalícios e raramente ocorrem
mudanças de liderança, não constituindo pois exemplos de democracia interna.

16
World Bank (2007) World Development Indicators, Washington, The World Bank.
378 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Não obstante alguns casos que abordaremos adiante, as OSC moçambicanas continuam
relativamente fracas quando se trata do seu engajamento em processos de participação
e monitoria de políticas públicas. A sua participação em questões estratégicas de de-
senvolvimento do país é essencialmente de carácter consultivo, não verdadeiramente
inclusivo e menos ainda vinculativo. Dado que este facto é claramente perceptível para
a população em geral, inibe-se um maior envolvimento dos cidadãos na vida pública
do país. Se este aspecto não for tomado em consideração, a “auto-limitação induzi-
da” no exercício de liberdades cívicas poderá colocar em risco o próprio processo de
democratização, que se quer participativo e inclusivo.
A exemplo do que acontece em muitos países da região, existe uma tendência do par-
tido governamental em controlar (manipular) em seu favor o espaço cívico. Aqueles
que resistem são acusados de estarem a fazer o jogo político da oposição contra o
poder governamental instituído. A predominância de relações patrimoniais no seio
do sistema político-económico e o carácter fortemente bipolarizado do panorama
partidário, reflectem-se nos constrangimentos que são impostos à actuação das OSC.
Num sistema político-económico onde ainda existe uma grande indiferenciação entre
esfera pública e privada, as interferências por parte de poderes públicos e privados
acabam por ser uma constante na vida das OSC, procurando desvirtuar a linha de
actuação das mais críticas e isentas. Existe muito pouco espaço para “independentes”,
“ou estão connosco ou estão com o opositor”.
As graves carências financeiras da maioria das OSC, a competição por fundos públi-
cos e privados, externos e internos, e as muitas debilidades estruturais (de recursos
humanos), leva muitas delas a ceder a pressões e a cair nas malhas do clientelismo
político-partidário, incapacitando-as de assumir uma postura crítica e isenta na defesa
dos interesses daqueles que dizem representar.
A falta de auto-sustentabilidade da maioria das OSC e alguma fadiga que se começa
a verificar por parte dos doadores em Moçambique, poderá vir a agravar bastante o
cenário de dificuldades com que estas organizações se deparam.

2.2 – Sucessos relativos das OSC


Apesar das sérias debilidades e adversidades referidas, de forma lenta mas ainda assim
notória, as OSC têm vindo a desempenhar um papel de crescente importância na vida
política e económica do país. Têm sido capazes de mobilizar um número significativo
de cidadãos para causas à escala nacional, permitindo a consciencialização pública
sobre aspectos cívicos e políticos, não só do país como da região. De igual forma, têm
contribuído para a provisão de serviços básicos de água, saúde, educação, produção
de alimentos, combate ao HIV/SIDA, e para a pressão sobre os decisores políticos
(com relativo sucesso) em favor do respeito pelos Direitos Humanos, por um sistema
de justiça que sirva aos cidadãos, pela inclusão da mulher e de outros grupos outrora
negligenciados nos processos de desenvolvimento sócio-económico-políticos.
Para José Negrão, existem três iniciativas que marcam de forma indelével a dinâmica,
lenta, mas de progresso inegável das virtudes das OSC em Moçambique: a Campanha
Terra, a Agenda 2025 e o Observatório da Pobreza17.

17
Negrão, José (2003) ONG do Norte e Sociedade Civil de Moçambique; Cruzeiro do Sul. Maputo. Mimeo. Disponível
online em www.iid.org.mz
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote l Sociedade Civil e Desenvolvimento em Moçambique 379

2.2.1 - A Campanha Terra


A problemática da terra foi e continuará a ser vital para países, como Moçambique, onde
o sector agrícola é uma fonte de rendimentos para a esmagadora maioria da população. O
fim do conflito armado com a assinatura do Acordo Geral de Paz em Roma, em 1992, abriu
a possibilidade da corrida dos privados às melhores terras para a agricultura, exploração
florestal e turismo cinegético. Na esteira do Programa de Reajustamento Estrutural, o
Land Tenure Center, cavalo de batalha da USAID e de algumas ONG do Norte, pressionou
pela titulação individual como única forma de se assegurarem os direitos à terra. O fim
do regime do Apartheid trouxe a Moçambique muitos fazendeiros brancos da África do
Sul, descontentes com o inevitável fim das subvenções no seu país e procurando novas
terras para exploração agrícola, impulsionando a especulação fundiária. Em conjunto, estes
factores fizeram da questão da terra o elemento catalizador de uma diversidade enorme
de interesses e também de discussão pública mobilizadora da sociedade civil.
A movimentação em torno da questão da terra fez-se sentir simultaneamente em três
frentes: no seio da Igreja Católica, através da Caritas e das Comissões Diocesanas para
a Justiça e Paz; dentro do Conselho Cristão de Moçambique, através da Organização de
Ajuda Mútua; no interior da União Nacional dos Camponeses, por força dos conflitos
que iam surgindo com a privatização acelerada das machambas (fazendas) estatais e a
tentativa de usurpação de terras das cooperativas. O elemento aglutinador das três
frentes foi a discussão de uma nova Lei de Terras para Moçambique e o movimento
catalizador foi a Campanha Terra.
Em torno da Campanha Terra reuniram-se cerca de 200 organizações, compreendendo
ONG nacionais e internacionais, Organizações Comunitárias de Base (OCB), Confissões
Religiosas (cristãs, muçulmanas e maziones), académicos e pessoas singulares interes-
sadas numa causa comum — assegurar que o acesso e posse da terra pelos mais pobres
não ficassem dependentes da emissão de um título; reconhecendo-se os mecanismos
costumeiros de gestão da terra e construindo-se relações de diálogo, negociação e aco-
modação entre privados e familiares, com base no princípio de vantagens mútuas18.
Dessa dinâmica e interacção, a Campanha Terra acabou por estabelecer algumas das
características básicas da nova imagem da Sociedade Civil moçambicana, como sejam: a
adesão a causas comuns, independentemente de estarem ligadas a questões ideológicas;
a possibilidade de participação directa das organizações comunitárias de base local sem
terem de ser representadas por uma ONG urbana; a participação das confissões religio-
sas (cristãs, muçulmanas ou sincréticas); a oportunidade de definição de estratégias de
parceria com o sector privado; a participação no processo de decisão das instituições do
Estado (especialmente ao nível do processo legislativo) sem ter, necessariamente, de se
tomar o poder; a participação em termos de igualdade com ONG internacionais.
A Campanha Terra termina em 2000, mas a sua dinâmica de aglutinação da sociedade
civil não se perderá. Após os assassinatos do jornalista Carlos Cardoso, do economista
Siba-Siba Maquáqua e de mais de 100 cidadãos na cadeia de Montepuez, várias forças
da sociedade civil unem-se novamente, desta vez para exigir a moralização do Estado
e o fim da corrupção. Jornalistas, associações sócio-profissionais e numerosos mem-
bros das elites urbanas, juntaram-se à dinâmica anteriormente iniciada e conseguem
influenciar a aprovação de uma lei mediante a qual a sociedade civil é responsável pela

18
Palmer, Robin. 2003. Struggling to Secure and Defend the Land Rights of the Poor in Africa, Austrian Journal of
Development Studies, XIX, 1, 2003, 6-21.
380 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

selecção de três candidatos a presidente da Comissão Nacional de Eleições, a serem


votados pela própria comissão, cujos membros são indicados pelos partidos políticos
representados no parlamento nacional.

2.2.2 - A Agenda 2025


As agendas 2020 e 2025 têm por objectivo criar consensos entre todas as forças políticas
e demais grupos de interesse nacionais, em torno de uma visão comum sobre o futuro a
médio prazo e de um conjunto de estratégias de desenvolvimento, que deverão ser assu-
midas pelos diferentes governos, independentemente da sua filiação político-partidária.
Após o fracasso da iniciativa para a elaboração da Agenda 2020, devido ao facto de o
partido político no poder ter tentado fazê-lo à porta fechada, surgiu então a Agenda
2025, com um maior equilíbrio de forças sociais entre os 14 membros do Comité de
Conselheiros e os cerca de 100 membros do Comité Nacional. Representantes de prati-
camente todas as forças políticas, de todos os grupos sócio-profissionais e um número
significativo de intelectuais, artistas e escritores, trabalharam durante um ano consecutivo
na coordenação executiva.
Para a construção de consensos foi necessário fazer a análise retrospectiva, acordar sobre
as potencialidades nacionais e as fraquezas estruturais e, o mais difícil, discutir os prin-
cípios que poderiam constituir pontos de partida comuns para a elaboração dos vários
cenários possíveis para as duas décadas seguintes. O mais criativo na Agenda 2025 foi a
identificação do conjunto das variáveis determinantes sobre as quais foi construído um
modelo analítico, onde assentaram os pressupostos que conduziram à elaboração dos
cenários e das opções estratégicas para o país19. Pela primeira vez foi retirado às cúpulas
dos partidos políticos o monopólio da discussão da res publica e quebrado o mito da
infalibilidade das vanguardas esclarecidas ou dos dirigentes iluminados20.

2.2.3 - O Observatório da Pobreza


O Observatório da Pobreza surge na sequência do movimento pelo cancelamento
da dívida externa. Em 1996 foi lançada, pelo Banco Mundial e pelo FMI, a iniciativa
HIPC (Heavily Indebted Poor Countries), que tinha por objectivo eliminar aquilo a que
chamaram de “dívida insustentável” dos países mais pobres e mais endividados. O
objectivo era de reduzir a dívida destes países até ao limite do valor actualizado lí-
quido, considerado sustentável, ou seja 150% do volume das exportações e 250% dos
rendimentos do governo. Nesse mesmo ano, a comunidade doadora internacional
aderiu à iniciativa e os termos tradicionais de reescalonamento da dívida pelo Clube
de Paris e outros credores bilaterais foram, tanto quanto possível, alterados em con-
formidade com esses limites21.
Moçambique foi um dos países mais beneficiados com a iniciativa HIPC, tendo a
sua dívida baixado de 5,6 biliões para, sensivelmente, 1,3 biliões de dólares norte-

19
As vinte variáveis determinantes resultaram da aplicação de um modelo analítico baseado em quatro eixos:
capital humano; capital social; economia e desenvolvimento; governação. Da ponderação de cada variável surgiu
um modelo normativo cujo resultado é substancialmente diferente do modelo normativo aplicado pelos Poverty
Reduction Strategy Papers (PRSP).
20
Agenda 2025. 2003. Documento Provisório, in Jornal Notícias, de 3 de Outubro de 2003.
21
Negrão, José (2003) ONG do Norte e Sociedade Civil de Moçambique; Cruzeiro do Sul. Maputo. Mimeo. Disponível
online em www.iid.org.mz
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote l Sociedade Civil e Desenvolvimento em Moçambique 381

-americanos em 1998. Para que a iniciativa fornecesse uma solução de saída para o
país, calculou-se que o rácio entre a dívida e as exportações deveria situar-se entre os
200% e os 220%. Os resultados imediatos alcançados foram satisfatórios. Entre 1996 e
2000 a taxa anual de inflação baixou de 47% para 2% e o Produto Interno Bruto cresceu
a uma média de 10% ao ano.
Em 2000 o país foi alvo das maiores cheias da sua história, tendo sido elevadíssimos
os prejuízos nas zonas Sul e Centro, as quais, literalmente, ficaram submersas por
mais de um mês. O Banco Mundial e o FMI decidiram acelerar o alívio da dívida
ao perdoar a totalidade do pagamento do serviço da dívida nesse ano. O Clube de
Paris adiou o pagamento para quando Moçambique estivesse em condições e vários
credores bilaterais anuíram no mesmo sentido22. Desta forma, Moçambique reunia as
condições para entrar na segunda fase da Iniciativa HIPC, também conhecida como
HIPC 2. É nesta segunda fase que as instituições de Bretton Woods se disponibiliza-
ram a conceder perdões parcelares da dívida desde que o país continuasse a seguir,
estritamente, o programa aprovado por aquelas instituições. Os credores do Clube
de Paris predispuseram-se a conceder o alívio da dívida em condições claramente
preferenciais e crê-se que o mesmo venha a acontecer com os credores bilaterais. Para
a aprovação final da passagem para o HIPC 2, foram quatro as condições requeridas
pelo Banco Mundial e FMI: a elaboração de um Poverty Reduction Strategy Paper (PRSP),
que em Moçambique foi designado por Plano de Acção para a Redução da Pobreza
Absoluta (PARPA), contando com a participação activa da sociedade civil, do sector
privado e do cidadão em geral; a implementação de um conjunto de medidas relativas
ao desenvolvimento social, à reforma do sector público e ao quadro legal e regulador
das actividades económicas; a manutenção de um clima macroeconómico estável sob
o controlo do FMI; a confirmação de outros credores quanto à participação no alívio
da dívida.
Em 25 de Setembro de 2001 o Banco Mundial e o FMI concluíram que Moçambique
tinha satisfeito as quatro condições apresentadas em 2000 e dado os passos necessários
para entrar na segunda fase, tornando-se assim no terceiro país do mundo a alcan-
çar esta fase, depois da Bolívia e do Uganda. A dívida externa foi reduzida para 750
milhões de dólares norte-americanos, tendo portanto sido perdoado cerca de 73% do
montante inicial. O serviço da dívida passou de 100 milhões por ano em 1988 para
uma média anual em torno dos 56 milhões entre os anos de 2002 e 2010, representando
uma redução do seu peso nas receitas do Estado, passando de 23% daquelas receitas
para 10% (entre 2000 e 2010) e estimando-se que esta percentagem se reduza ainda
mais (para cerca de 7% entre 2011 e 2020)23.
A poupança realizada com a diminuição do serviço da dívida permitiu o aumento das
despesas do Estado no PARPA. O Estado passou a poder disponibilizar mais de cerca
de 130 milhões de dólares americanos por ano nas actividades do PARPA. Porém, a
requerida participação da sociedade civil, do sector privado e do cidadão em geral,
na concepção do PARPA, foi reduzida à consulta esporádica e muitas vezes somente
com carácter informativo sobre o que se estava a fazer ou já se tinha realizado. Conse-
quentemente, a concepção do PARPA não incorporou as percepções, o conhecimento
e as experiências dos vários actores que têm um papel a desempenhar na redução da

Negrão, José (2003) ibid.


22

Negrão, José (2003) ibid.; ver igualmente Hanlon, Joe (1997), Paz Sem Benefícios. Como o FMI Bloqueia a Reconstrução de
23

Moçambique. Maputo, Centro de Estudos Africanos, Imprensa Universitária da Universidade Eduardo Mondlane.
382 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

pobreza absoluta. Por outro lado, o modelo de desenvolvimento económico adoptado


pelo PARPA segue os padrões de neo-liberalismo aplicado aos países em vias de de-
senvolvimento, tendo as suas linhas mestras sido desenhadas por um especialista da
Universidade de Harvard, que se deslocou a Maputo para o efeito. Consequentemente,
foi dada uma ênfase quase que exclusiva à orientação export-lead, na expectativa dos
trickle-down effects e foi ignorada toda a problemática dos investimentos a realizar para
a formação do capital nacional e desenvolvimento da economia interna, voltada para
as necessidades dos Moçambicanos.
Com a finalidade de colmatar estas lacunas, a sociedade civil aceitou participar no
Observatório da Pobreza, criado pelo Governo como fórum para o acompanhamento
da implementação do PARPA. O Observatório da Pobreza moçambicano passou a in-
tegrar o governo, os doadores e a sociedade civil em sentido lato. A selecção de quem
deveria constituir o conjunto da sociedade civil coube a ela mesma, tendo-se o governo
limitado a referir que o sector privado e os sindicatos deveriam estar presentes24.
Através do Observatório da Pobreza procuraram-se alcançar dois objectivos: por um
lado, colmatar a lacuna referente à participação da sociedade civil aquando da concep-
ção do PARPA e, por outro lado, estabelecer, à escala nacional, um sistema de monitoria
e avaliação da pobreza (e não só do PARPA), que tenha por produto a elaboração do
Relatório Anual da Pobreza do ponto de vista dos pobres.
Em suma, dos casos acima expostos, podemos verificar algumas conquistas significa-
tivas para as OSC moçambicanas, como sejam: a capacidade de discussão consciente
sobre o futuro da coisa pública, desde que reconhecido o seu direito à palavra; a acei-
tação de pontos de vista diferentes, desde que discutidos e acordados os princípios
comuns; o sentido de comprometimento para com o país e, em particular, para com
a justiça social; o fim do mito das vanguardas ou lideranças iluminadas de outrora; a
capitalização sobre as oportunidades que vão surgindo; a afirmação da diversidade
multicultural e da interacção para o bem-estar social e a melhoria da qualidade de
vida de todos; a substituição dos discursos de carácter hegemónico pelos discursos
inclusivos, flexíveis e mutáveis, em função das condições locais; a capacidade de co-
laborar com o governo mesmo em questões estratégicas operacionais.

Conclusão
Não obstante as conquistas referidas acima, as OSC moçambicanas têm ainda um longo
caminho pela frente para a sua afirmação. Neste sentido, não fogem grandemente ao
panorama geral da região Austral, especialmente no que toca à dependência externa
e aos constrangimentos de toda a ordem que lhe são colocados pelo poder político-
governamental.
Tendo em conta as fragilidades das OSC para o exercício da monitoria e controlo do
poder público e a contínua necessidade de satisfazer graves carências que os cidadãos
experimentam, principalmente nas zonas rurais, o grande desafio que se coloca à socie-
dade civil em Moçambique nesta fase histórica, é a sua capacitação institucional, com
24
Passada a fase da concertação interna, foram identificados como representantes da Sociedade Civil para o Observatório
da Pobreza em Moçambique os seguintes elementos: quatro representantes das confissões religiosas (dois cristãos e
dois islâmicos); dois representantes das centrais sindicais (OTM e Sindicatos Livres); três representantes de associações
do sector privado (associação comercial, associação industrial e CTA); seis representantes de organizações do 3.º nível
(Fórum Terra, Fórum Mulher, UNAC, GMD, Link e Teia); quatro representantes de organizações do 2.º nível (FDC,
Kulima, ORAM, Khindlimuka); um representante de um instituto de investigação autónomo (Cruzeiro do Sul).
Manuel de Araújo & Raúl Meneses Chambote l Sociedade Civil e Desenvolvimento em Moçambique 383

destaque para as pequenas organizações comunitárias locais nas zonas rurais. Há que
apostar na formação de recursos humanos e na sua afectação a tempo inteiro, criando
mecanismos de sustentabilidade a médio e longo prazo, apostando no conhecimento
da realidade para além do activismo, pesquisando de forma qualitativa e quantitativa
para assim adquirir uma mais valia própria, um capital próprio.
A redução da dependência externa tem de ser gradual, não esquecendo nunca que uma
das principais forças da sociedade civil em qualquer país (especialmente no continen-
te africano) é a sua capacidade de agir em rede, articulando-se, tanto a nível interno
quanto externo (regional e internacional), para melhor resistir aos constrangimentos
que lhe são impostos por todos aqueles que desesperadamente não querem perder o
monopólio da gestão da coisa pública. Por fim, mas não menos importante, é preciso
ter consciência que a democracia deve começar também e essencialmente no seio das
OSC, construindo por essa via a sua credibilidade, através da sua independência,
transparência e profissionalismo na gestão, assim como implementação de mecanismos
de alternância democrática nas suas lideranças.
385

A Sociedade Civil e o Poder Político


na Zâmbia1

Introdução
Rueben L. Lifuka
&
Lee M. Habasonda2
A s tentativas para fazer rejuvenescer e revitalizar a política
Africana e reduzir a cultura de patrimonialismo parecem
residir na criação de muitos centros de poder, que possibilitem
a regulamentação e o controlo e envolvam as comunidades na
escolha dos seus destinos. O desenvolvimento da sociedade
civil na Zâmbia tem sido um factor positivo para o encoraja-
mento do pluralismo, da responsabilização, da diversidade e
da minimização do patrimonialismo político, influenciando o
rumo da política, da governação, e dos assuntos públicos. Este
trabalho procura demonstrar que apesar de serem movimen-
tos civis, as OSC na Zâmbia detêm um poder político que é
essencial para fortalecer a democratização do Estado.
De forma a debater a relação entre a sociedade civil e o poder
político, este artigo está organizado em três partes: a primeira
fornece uma contextualização do processo de emergência da
sociedade civil na Zâmbia; a segunda debruça-se sobre as com-
plicadas relações entre OSC e poder político; a terceira examina
os principais desafios que se colocam às OSC Zambianas.

1 – A Emergência da Sociedade Civil na Zâmbia


As origens da sociedade civil na Zâmbia remontam historicamen-
te à era colonial. No início, independentemente das organizações
da sociedade civil para benefício mútuo dos brancos, existiam as
missões cristãs que, no caso da Zâmbia, para além do sucesso na
evangelização, se preocupavam com as questões do bem-estar so-
cial. Após a Segunda Guerra Mundial surgiram mais associações
seculares de bem-estar social e de formação, dirigidas por negros
e brancos. Uma vez que a actividade política fora da elite mino-
ritária no poder era restrita, principalmente para os negros, as
organizações dedicadas ao bem-estar social constituíram o núcleo
do movimento nacionalista, que procurava obter a independência
da Grã-Bretanha e conquistar o poder para a maioria.3

1
Traduzido do original em inglês por Nuno Marques.
2
Rueben Lupupa Lifuka é presidente da delegação zambiana da Transparência
Internacional (TI) e Lee Habasonda é Professor de Ciência Política no Departamento
de Estudos Administrativos e Políticos da Universidade da Zâmbia.
3
Sabine Fiedler-Conradi (2003) “Strengthening Civil Society in Zambia”, Study
Conducted to Inform a Focal Area Strategy Paper, Commissioned by the German
Development Service (DED) on behalf of the German Ministry of Economic Co-
operation and Development (BMZ), Lusaka/Munich.
386 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

A independência foi alcançada em 1964. A actividade da sociedade civil depois da


independência replicou, em larga medida, as formas e modos de organização desen-
volvidos durante a era nacionalista. No entanto, durante a luta anti-colonial, algumas
Igrejas protestantes, e a Igreja católica em particular, tinham ganho consciência para
alguns problemas de Direitos Humanos e de justiça, mantendo-se vigilantes durante
a época de governação do United National Independence Party (UNIP), num regime
monopartidário consagrado na constituição nacional de 1972. A economia passou a ser
controlada pelo Estado e qualquer associação criada para benefício mútuo ou público
teria de operar sob a égide e o controlo do partido governante, favorecendo-o. Esta
situação foi-se gradualmente alterando nos finais da década de 1980, quando a ques-
tão da legitimidade do governo de Kaunda se tornou um assunto de debate público,
tendo-se estendido às próprias fileiras do partido governante.4
O Congresso dos Sindicatos da Zâmbia (Zambia Congress of Trade Unions - ZCTU), ini-
cialmente criado pelo apelo de Kenneth Kaunda na década de sessenta, começou a
desenvolver ideias alternativas sobre a governação e a economia. Esta postura foi mal
recebida pelo governo e o ZCTU, liderado por Frederick Chiluba, foi progressivamente
assumindo o papel de oposição política durante os anos oitenta. Em 1990, um movimento
sócio-político dinamizou a Zâmbia, contando com a colaboração de sectores da Igreja, dos
empresários e das universidades, tendo conseguido o regresso à democracia multiparti-
dária que passou a ser consagrada pela Constituição por força e pressão do Movimento
para a Democracia Multipartidária (Movement for Multiparty Democracy – MMD).5
A transição política pacífica, que permitiu ao recém-formado MMD assumir o go-
verno com o Presidente Chiluba em 1991, abriu espaço à participação e activismo da
sociedade civil. O MMD, tendo sido formado a partir de um forte movimento civil
que se debateu com muitas adversidades, deu, inicialmente, uma grande importância
à liberdade de expressão e de associação e as organizações não lucrativas deixaram
de ser obrigadas a agir de acordo com as agendas políticas governamentais. Com um
espaço incomparavelmente maior para a sociedade civil e uma alteração das priori-
dades dos doadores nos anos noventa, o número de organizações não lucrativas au-
mentou drasticamente, sobretudo a partir de 1996. O clima político passou a ser muito
mais propício à actividade das OSC, à cooperação entre si e com outras instituições,
incluindo as governamentais.
No entanto, o novo governo do MMD não deu mostras de ser significativamente
diferente do seu antecessor no que respeita ao deficit de consulta e de participação
dos diversos grupos de interesse nos processos de tomada de decisão, assim como à
transparência e à prestação de contas (accountability). Na verdade, herdou parte da
mentalidade do Estado de partido único, para além das tradições autoritárias, do
patrimonialismo e, em especial, a concentração de poderes numa presidência execu-
tiva. A corrupção no sector governamental e privado tornou-se descontrolada com
a privatização de empresas estatais, assim como com a comercialização de vários
serviços públicos.6
Numa perspectiva analítica abrangente, existem muitos factores aos quais atribuir a
grande expansão da sociedade civil zambiana nos finais do séc. XX. Estes factores vão

4
Ibid.
5
Ibid.
6
Ibid.
Rueben L. Lifuka & Lee M.Habasonda l A Sociedade Civil e o Poder Político na Zâmbia 387

desde os acontecimentos mundiais, sócio-económico-políticos dos anos noventa, até


às preocupações internas do país.
A nível externo destaca-se o colapso do bloco de Leste, seguido pelos diversos pro-
cessos de transição para a democracia, não só nos países do bloco como na América
Latina e em África. Este movimento à escala mundial fez-se sentir na Zâmbia com a
introdução da democracia multipartidária em 1991 pelo MMD, substituindo a UNIP
que também tinha traços de Socialismo/comunismo.
A nível interno, entre os factores que favoreceram a emergência da sociedade civil des-
tacam-se as limitações de um desenvolvimento dirigido pelo Estado, nomeadamente no
que concerne às populações marginalizadas do ponto de vista social, político e espacial.
Na Zâmbia tornou-se claro que faltava uma dimensão ao desenvolvimento – o seu aspecto
“humano” ou social. Este facto originou uma mudança de pensamento em relação ao
“sector terciário” ou à sociedade civil para que esta criasse o elo que faltava.
Por outro lado, a grande expansão das OSC zambianas a partir de meados dos anos
noventa pode também ser atribuída à resposta da sociedade à cultura capitalista de
separação e fragmentação da sociedade. O MMD chegou ao poder tendo o capitalismo
como ideologia política. O capitalismo levou ao desmantelamento do Estado providên-
cia, ao enfraquecimento dos núcleos sociais (sistema de família alargada) e reduziu o
papel dos sindicatos. Isto fez subir os níveis de incerteza e de vulnerabilidade entre a
maior parte da população. Nesta perspectiva, a sociedade civil parece fornecer uma
identidade colectiva que assegura a solidariedade e o apoio mútuo entre pessoas.
2 – Sociedade Civil e Poder Político
A sociedade civil na Zâmbia tem sido um agente catalizador, criando o espaço para
o diálogo político entre vários grupos de interesse, através da educação cívica, do
activismo político, exercendo pressão ou utilizando quaisquer outros mecanismos
para estreitar as diferenças entre os governantes e os governados. Ao longo dos anos,
tornou-se evidente que as OSC conseguiram impor a sua presença ao poder gover-
namental, em particular aquelas que lidam com temas de natureza política como o
constitucionalismo, os Direitos Humanos e a governação.
Actualmente, a actuação das OSC é regulada pelo Decreto-Lei das Sociedades (Cap.
113). O Registo de Sociedades regista as OSC, para além de partidos políticos e outros
grupos associativos. Depois de registadas, o governo tem muito pouco poder para im-
pedir as OSC de exprimirem o seu descontentamento político (em particular as ONG).
Tentativas de anular o registo de algumas OSC deram origem a longas disputas nos
tribunais e, no passado recente, estes decidiram a favor das OSC.
Como vimos antes, o MMD chegou ao poder em 1991 como um movimento de vários
grupos de interesse unidos pelo desejo de criar uma democracia multipartidária. Teve
o apoio do movimento das mulheres, dos trabalhadores, das associações de estudantes,
das organizações dos media, dos agricultores e de vários outros grupos de interesse que
ansiavam pela democracia com a sua promessa de boa governação. No entanto, com
o passar dos anos, o MMD refinou-se enquanto partido político com interesses que
ficaram muito aquém das expectativas dos outros grupos originalmente envolvidos. O
governo do MMD começou a assumir posições diametralmente opostas à maioria das
exigências fundamentais das OSC no que respeita às exigências por boa governação,
esquecendo-se dos princípios que defendia e que o levaram ao poder em 1991.
388 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

A crescente influência política das OSC levou muitos partidos políticos a considerá-los
como usurpadores do papel da oposição no panorama governativo do país, fazendo
notar que essas organizações estavam a assumir um protagonismo em matérias que
não lhes diziam respeito, como o processo de reforma da constituição.
A controvérsia sobre o processo de reforma constitucional vinha-se arrastando desde
1996, quando a administração do ex-Presidente Frederik Chiluba rejeitou cerca de 70
por cento das recomendações feitas por uma Comissão de Reforma Constitucional
presidida pelo proeminente advogado e ex-Ministro da Presidência Zambiana, John
Mwanakatwe. Os grupos da sociedade civil ficaram indignados com esta decisão
do governo e criaram um Livro Verde sobre a Constituição como resposta ao livro
branco publicado pelo governo, definindo quais as propostas constitucionais com que
concordavam e quais as que rejeitavam. O processo de reforma da Constituição de
1996 foi concluído na Assembleia Nacional e foram feitas adendas à Constituição de
1991, sendo algumas das cláusulas destinadas a impedir que o ex-Presidente Kenneth
Kuanda se candidatasse à presidência em 1996.
Uma vez que as emendas constitucionais eram inadequadas, em 2001 a sociedade civil
iniciou um processo para pressionar os partidos políticos, que concorriam às eleições
gerais e presidenciais, a comprometerem-se com a revisão do processo constitucional
passados 90 dias da tomada de posse. O partido no poder, o MMD, voltou a ganhar as
eleições em 2001 e foi apenas em 2003 que o Presidente Levy Mwanawasa anunciou a
formação de uma Comissão de Reforma Constitucional (CRC) sob a liderança de outro
proeminente advogado e ex-Presidente do Banco Africano para o Desenvolvimento, o Sr.
Willa Mung’omba, encarregue de percorrer o país e recolher as sugestões dos cidadãos de
forma a alargar a participação no processo. No entanto, a CRC foi constituída com base
no Decreto-Lei referente às Comissões de Inquérito, tal como as anteriores comissões,
facto que originou um movimento de protesto por parte da sociedade civil, na medida
em que ao abrigo daquele Decreto cabe ao Presidente da República nomear a Comissão
de Inquérito, definir os seus termos de referência e, mais importante, receber e analisar o
seu relatório. Para além disso, o Decreto estabelece que o Presidente pode, em conjunto
com os seus ministros, publicar um livro branco como resposta ao relatório da Comissão
de Inquérito, indicando quais das recomendações feitas encontram a concordância do
governo, quais as que encontram discordância e quais as que considera prioritárias.
Foi devido a estas cláusulas do Decreto-Lei das Comissões de Inquérito que a admi-
nistração do ex-presidente Frederick Chiluba rejeitou cerca de 70 por cento das reco-
mendações da CRC no processo de 1996. Era este “logro” dos anteriores governos que
as OSC (i.e. a Igreja, as ONG, os sindicatos e as associações de estudantes) queriam
evitar no novo processo de reforma constitucional. A sociedade civil defendeu o esta-
belecimento de um órgão popular e de representação alargada, uma Assembleia Cons-
tituinte, para receber e adoptar a proposta de Constituição da Comissão Mungo’mba.
Esta reivindicação foi liderada pelo Fórum OASIS, congregando os corpos dirigentes
das três principais Igrejas — Zambia Episcopal Conference (ZEC), Churches Council of
Zambia (CCZ) e Evangelical Fellowship of Zambia (EFZ) —, o movimento das mulheres
representado pelo Conselho de Coordenação das ONG (NGO Coordinating Council
– NGOCC) e a comunidade legal, representada pela Associação dos Advogados da
Zâmbia (Law Association of Zambia – LAZ).
O activismo das OSC apelou aos cidadãos para que exigissem uma Assembleia Consti-
tuinte de forma a assegurar que desta vez se elaborava uma Constituição guiada pelas
Rueben L. Lifuka & Lee M.Habasonda l A Sociedade Civil e o Poder Político na Zâmbia 389

necessidades da população. A sociedade civil exigiu a formação de uma Assembleia


Constituinte formulando o slogan “os processos protegem os conteúdos”.
O governo, pelo seu lado, tentou resistir às exigências de uma Assembleia Constituinte,
argumentando que existiam impedimentos legais e financeiros à criação da mesma,
mas na verdade receava que um corpo legislativo eleito por votação popular fosse com-
posto por pessoas que os partidos políticos não pudessem controlar — pessoas cujos
motivos transcendessem os imediatos e limitados interesses partidários ou os interesses
relacionados com a sua sobrevivência política nas eleições seguintes, de 2011.
O governo assumiu claramente que o processo constitucional é uma prerrogativa dos
partidos políticos, questionando o envolvimento das OSC neste processo. Em vários
encontros públicos, alguns líderes do governo interrogaram-se acerca da legitimidade
das OSC para representarem o povo em assuntos da governação, argumentando que
as OSC não têm nenhum contrato social com o povo uma vez que não foram eleitas.7
A 11 de Julho de 2007, o Presidente Mwanawasa disse que preferia que fossem os
partidos políticos a discutir o processo de Reforma Constitucional em vez das ONG
porque a missão destas era a redução da pobreza, acrescentando:
ONG significa Organizações Não Governamentais, portanto porque devem elas
envolver-se em questões de governação? Elas foram criadas para servir os pobres, não
a política. É um desrespeito à lei que elas se envolvam nesses assuntos porque os seus
objectivos não incluem a política8.
Esta disputa entre o governo e a sociedade civil, que se vem desenrolado desde 2003,
deu origem à união de todos os partidos políticos em torno do Centro para o Diálo-
go Inter-partidário da Zâmbia (Zambia Centre for Interparty Dialogue – ZCID), com o
intuito de excluir do processo de reforma constitucional a maior parte das OSC. O
ZCDI foi criado pela Cimeira de Presidentes, que reuniu o Presidente da República e
os presidentes dos outros partidos, decididos a ultrapassar as suas diferenças sobre
o processo de reforma constitucional. Quatro horas depois de reunida, a Cimeira de
Presidentes decidiu em favor de uma Conferência Nacional Constitucional (NCC), a
ser criada por uma nova lei a ser aprovada pelo Parlamento. Decidiu-se igualmente
que no prazo de 12 meses a Zâmbia teria uma nova Constituição.
É interessante realçar dois aspectos: o primeiro é o facto de os partidos políticos terem opta-
do pela designação neutra de Conferência Nacional Constitucional ao invés de Assembleia
Constituinte, de forma a reafirmarem a sua autoridade sobre o processo; a segunda é o
tempo recorde em que o Decreto que promulga a NCC foi aprovado — também para tentar
derrotar a vontade expressa pela sociedade civil de que todas as controvérsias à volta do
processo de reforma constitucional fossem resolvidas antes da adopção da mesma.
Os acentuados diferendos sobre o processo de reforma constitucional ocuparam as
relações entre governo e sociedade civil durante o ano de 2007. Tornou-se claro, à
medida que o ano terminava, que o governo estava determinado a afastar algumas
OSC do processo de reforma constitucional, recorrendo a uma maioria fabricada de
participantes pró-governo na NCC. Procurou angariar o apoio de algumas OSC que
lhe são muito próximas e que geralmente assumem uma postura de apologia gover-
namental. Tais organizações pró-governo são consideradas extensões do aparelho

7
Ibid.
8
Times of Zambia, 12 de Julho de 2007.
390 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

governamental com o propósito de relativizar os problemas apresentados pelas ONG


legitimas9. Ainda pior, as OSC legítimas, incluindo o Fórum OASIS, parecem ter sido
atingidas pela táctica do dividir para reinar. Neste processo, o nível de desconfiança
e suspeição entre o governo e as OSC tem-se vindo a agravar, assim como as relações
entre ambos.
Soma-se a esta situação a apresentação do Projecto-Lei das ONG ao Parlamento em
2007, tendo sido amplamente considerado como uma tentativa de sufoco das ONG
por parte do governo. As afirmações do Ministro da Justiça, George Kaunda, foram
demonstrativas da atmosfera de suspeição e de desconfiança com que fora preparado
o Projecto-Lei das ONG:
As OSC não reguladas podem ser um perigo para a paz e para a tranquilidade. As OSC são
conhecidas pelo mundo fora por serem fachadas para o financiamento de terroristas e para a
lavagem de dinheiro. Outras recebem dinheiro para a homossexualidade10
As OSC reagiram ao projecto de lei, considerando que o governo teria demasiado
controlo sobre elas e temendo que os seus direitos e liberdades garantidos pela Cons-
tituição pudessem ser postos em causa11. Desde então, o Projecto-Lei das ONG foi
retirado pelo governo para que se fizesse uma consulta mais alargada entre os vários
grupos de interesse, incluindo as próprias OSC.
Existem vários outros exemplos que demonstram a tentativa de influência da sociedade
civil na definição ou na reformulação das decisões públicas. Apresento em seguida
alguns desses exemplos.
A Zâmbia adoptou o seu Plano Estratégico de Redução da Pobreza (Poverty Reduction
Strategy Paper – PRSP) em 2002 para um período bienal a terminar em 200412. A adopção
do PRSP foi precedida por uma série de consultas às partes interessadas, incluindo os
grupos da sociedade civil. O PRSP era da responsabilidade do governo, no entanto a
sociedade civil criou uma rede para que as suas organizações contribuíssem para o
projecto. É neste âmbito que o Centro Jesuíta de Reflexão Teológica cria a rede Socie-
dade Civil pela Redução da Pobreza (Civil Society for Poverty Reduction – CSPR), tendo
produzido um “PRSP-sombra” enquanto o governo produzia um PRSP oficial. Ambos
os documentos acabaram por ser assimilados naquele que veio a ser o PRSP final13.
Da mesma forma, a Fundação para o Processo Democrático (Foundation for Democratic
Process – FODEP) produziu um “Decreto-Lei Eleitoral – sombra” durante o processo
das reformas eleitorais em 2005-200614; enquanto outra ONG – Centro para a Resolução
Construtiva de Disputas da África Austral (Southern African Centre for the Constructive
Resolution of Disputes – SACCORD) preparou uma “proposta” de Decreto-Lei da Or-
dem Pública, dado que o que vigorava era visto como um conjunto de leis draconianas
impeditivas da efectivação do direito de associação previsto pela constituição.

9
Sabine Fiedler-Conradi (2003) “Strengthening Civil Society in Zambia”, Study Conducted to Inform a Focal Area
Strategy Paper, Commissioned by the German Development Service (DED) on behalf of the German Ministry of
Economic Co-operation and Development (BMZ), Lusaka / Munich.
10
Times of Zambia, 6 de Novembro de 2007.
11
Estes pontos de vista são partilhados por muitos directores das ONG.
12
Ver V. Seshamani (2002), The PRSP Process in Zambia – Second Meeting of the African Learning Group on the Poverty
Reduction Strategy Papers (PRSP – LG) 18-21 November, Brussels, Belgium.
13
Ver Moonga H Mumba (2004), Marriage of Convenience: State-Civil Society Partnership in the PRSP Process in Zambia.
M.A. Thesis, The Hague, Netherlands, Institute of Social Studies – ISS.
14
FODEP (2007) Report on Civic and Voter Education.
Rueben L. Lifuka & Lee M.Habasonda l A Sociedade Civil e o Poder Político na Zâmbia 391

O Fórum OASIS também criou um esboço do que apelidou de documento mínimo – que
apontava questões chave, tendo sido algumas delas reflectidas no esboço de Consti-
tuição actualmente em discussão na Conferência Nacional Constitucional (NCC). As
associações dos media também criaram documentos contendo propostas de leis sobre
as relações entre os media e o governo. Apesar de não o admitir, o governo tem vindo
lentamente a utilizar alguns destes documentos.
Em termos de transparência e prestação de contas (accountability), a Transparência In-
ternacional na Zâmbia (TIZ) tem produzido anualmente índices de suborno e rankings
de corrupção. O movimento das mulheres sob a liderança da NGOCC, tem influenciado
as leis e políticas destinadas a promover a igualdade do género. Para além disso, o
movimento das mulheres foi bem sucedido na advocacia e influência sobre os partidos
políticos para que aceitassem mais mulheres candidatas, como forma de aumentar o
número de mulheres nos processos de decisão.
Outro exemplo recente é a forma como, através do seu activismo, a sociedade civil da
Zâmbia pressionou o governo a rever ou a renegociar acordos de desenvolvimento pouco
favoráveis, assinados com companhias mineiras na época das privatizações. Argumenta-se
que com os acordos existentes as companhias mineiras não dariam o retorno esperado,
particularmente nos impostos e no pagamento dos direitos de exploração. O imposto pago
pelas companhias mineiras é muito mais baixo do que o imposto sobre o rendimento que
o governo arrecada dos trabalhadores da Zâmbia, isto apesar do facto de os minérios de
base estarem a atingir preços elevados no mercado mundial. No Orçamento de Estado
de 2008, o Ministério das Finanças e do Planeamento Nacional anunciou que o governo
iria introduzir um novo regime fiscal e regulador de forma a criar uma distribuição mais
equitativa da riqueza mineral entre o governo e as companhias mineiras.
Por fim, convém referir aqui o caso da petição inconstitucional pelo terceiro mandato
presidencial. Em 1996 a Constituição foi alterada para estabelecer um limite de dois man-
datos para a Presidência da República. Esta alteração teve o acordo da maior parte dos
Zambianos, uma vez que estava de acordo com as práticas democráticas mediante as
quais os líderes não se mantêm no poder indefinidamente e estão sujeitos à mudança por
via de eleições. Contudo, ao longo do percurso, mesmo antes das eleições de 2001, surgiu
o interesse em alterar a Constituição para permitir ao Presidente Chiluba candidatar-se
a um terceiro mandato. Um bem financiado esquema foi orquestrado com o intuito de
influenciar a opinião pública a permitir ao MMD a alteração da Constituição.
As OSC opuseram-se veementemente à campanha pelo terceiro mandato. Os media
independentes publicaram artigos de opinião e editoriais contra as movimentações
pelo terceiro mandato e a campanha sofreu um novo percalço quando alguns membros
ilustres do MMD se opuseram a ela. O comité executivo do MMD na província de
Lusaka rejeitou publicamente a proposta e a este acontecimento seguiu-se uma rejeição
pública por parte de 21 membros do Parlamento, onde se incluíam o vice-presidente
e alguns ministros. Estes altos membros do partido uniram-se à sociedade civil e par-
ticiparam em comícios nos bairros em torno das principais cidades. Apesar da polícia
ter tentado evitar e perturbar estes comícios, a assistência popular era vasta.
Lançou-se uma contra campanha activista, de faixas verdes. Todos os que se opunham
ao terceiro mandato usavam a faixa verde durante os seus afazeres, inclusivamente nos
escritórios e nas lojas. Concordou-se, também, que todas as Sextas-feiras às 17 horas
todos os condutores iriam buzinar e os que não conduzissem soprariam em apitos.
392 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

Com o aumento da pressão, Chiluba acabou por dissolver o Executivo, nomeou um


novo governo e acedeu às exigências dos cidadãos. Num discurso à nação, o presidente
justificou as campanhas como sendo normais numa sociedade democrática, afirmando
que em nenhum momento tinha ordenado a qualquer membro do partido para avançar
com a campanha pelo terceiro mandato. Foi neste mesmo discurso que afirmou que
não se iria bater por um novo mandato. Este acontecimento significou uma estrondosa
vitória da sociedade civil na sua capacidade de influenciar o poder político.
A maioria destes exemplos parece apoiar o argumento que defende a sociedade civil
como promotora do debate intelectual e político, criando perspectivas alternativas sobre
o desenvolvimento. As OSC estão no centro da ligação às populações e da implemen-
tação de projectos no terreno, dando voz ao interesse público. Transformaram-se num
ponto de partida crítico para as transformações sociais e políticas. Mesmo o Programa
de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) sublinhou que “a capacidade das
OSC de articularem e defenderem os direitos dos cidadãos tornou-se crucial para
moldar a política pública interna e externa”15.
Deste modo, as OSC têm vindo a desempenhar diversas funções de âmbito político,
como sejam a mediação, a capacidade de se assumirem como contra-poder destinado
a aumentar a responsabilização e a prestação de contas do Estado ou do mercado, o
incentivo à pluralidade, a criação de competências sociais, e constituírem-se como
um veículo de participação dos cidadãos. Não obstante as suas funções políticas, as
OSC não se devem confundir com partidos políticos ou outras formas de organização
política cujo objectivo é controlar o aparelho de Estado.

3 – Os Desafios que se Colocam à Sociedade Civil Zambiana


Apesar dos sucessos acima referidos, a sociedade civil Zambiana enfrenta ainda uma
série de desafios e problemas.
Antes de mais, enfrenta o desafio da legitimidade para se envolver em assuntos políti-
cos. Diversos actores políticos e alguns membros da população, especialmente quadros
nomeados pelo poder político, continuam a questionar a legitimidade da sociedade civil
para liderar processos políticos estratégicos para a nação. Estas posições baseiam-se
no facto de as OSC não serem eleitas pelos cidadãos enquanto os partidos políticos se
têm de apresentar ao escrutínio popular dos votos, seja para formar governo ou para
estarem representados no Parlamento. É necessário admitir que a proliferação das OSC
faz com que algumas não ajam profissionalmente e, em certas ocasiões, prejudicaram
a imagem de todas as OSC. No entanto, o debate sobre a legitimidade parece focar-se
nas OSC envolvidas em assuntos de governação, dos Direitos Humanos e advocacia
política, ou seja, aquelas OSC que “ameaçam” a base do poder, tanto dos partidos
governantes como dos da oposição.
Um outro desafio importante é o da prestação de contas (accountability). O grande
aumento do número de OSC pode, em parte, ser explicado pelo desejo de algumas
pessoas de se servirem da sociedade civil para seu próprio proveito. Em algumas
ocasiões, determinadas OSC não foram capazes de justificar os financiamentos que
receberam de agências de financiamento nacionais e internacionais. Para além dis-
so, também surgiu alguma apreensão pelo facto das OSC, ao contrário do governo,

15
UNDP, Partners in Human Development, (2003), New York.
Rueben L. Lifuka & Lee M.Habasonda l A Sociedade Civil e o Poder Político na Zâmbia 393

não terem, por princípio, de prestar contas aos cidadãos ou às partes interessadas
nos assuntos com que trabalham, mas antes aos seus financiadores. A falta de fortes
sistemas e estruturas de gestão de algumas OSC deu crédito a esta noção de falta de
responsabilização (accountability). Na realidade, algumas daquelas organizações não
conseguiram implantar mecanismos de democracia interna e não têm eleições regula-
res para os seus órgãos dirigentes. Infelizmente, apesar destas situações poderem ser
pontuais, o seu impacto afecta negativamente o resto da sociedade civil.
De igual modo, a sustentabilidade financeira emerge como outro dos desafios às OSC,
sendo que grande parte delas são muito dependentes de financiamentos externos de or-
ganizações bilaterais e multilaterais, de fundações e de outros financiadores não-estatais.
A sustentabilidade dos seus programas depende do apoio contínuo de parceiros externos,
poucas possuem meios de financiamento alternativo para as suas actividades.
O problema da capacidade de reter quadros profissionais afecta de sobremaneira as
OSC. A maior parte delas sofre de uma grande rotatividade de funcionários; desenvolve
um grande esforço de formação de profissionais, mas não é capaz de os manter assim
que eles adquirem experiência e notoriedade, sendo imediatamente assediados pelas
ONG internacionais, pelo governo e pelos programas de desenvolvimento financia-
dos por organizações bilaterais e multilaterais. Regra geral, as OSC não conseguem
competir com o mercado na oferta de condições de trabalho, principalmente por causa
das dificuldades com que se defrontam na mobilização de recursos para colmatar o
apoio institucional. A maior parte dos doadores/parceiros de cooperação está disposta
a oferecer apoio aos programas de acção, mas poucos oferecem apoio institucional.
Devemos reconhecer algumas deficiências e dificuldades ao nível da coordenação da
política da ajuda e harmonização de práticas. A recente criação do Gabinete de Estra-
tégia e Política de Ajuda à Zâmbia (Cabinet of the Aid Policy and Strategy for Zambia) é
digna de nota. É um ponto de partida para a identificação de formas de melhoria dos
resultados e da eficiência da ajuda ao aumentar a coordenação e a harmonização de
processos. Foi uma iniciativa de um grupo de agências em consonância de objectivos,
desenvolvida em estreita colaboração com o Governo da República da Zâmbia e pro-
duzido pelo gabinete do Director Geral para a Cooperação Internacional dos Quatro
Países Nórdicos (Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia), o Reino Unido e os Países
Baixos, que se reuniram em 2002 na Conferência de Helsínquia e propuseram um
estudo conjunto sobre a harmonização na Zâmbia. Mais tarde a Irlanda e a Islândia
juntaram-se a esta iniciativa. No seguimento da iniciativa da Conferência de Helsínquia,
as missões da Dinamarca, a Finlândia, a Irlanda, os Países Baixos, a Noruega, a Suécia
e Reino Unido baseadas em Lusaka, reuniram-se em Novembro de 2002 para apoiar
e fazer avançar o esforço de harmonização dos doadores. Deste encontro resultou
uma declaração comum de princípios que foi assinada pelos parceiros de cooperação
e pelo governo da Zâmbia para melhorar a eficácia da ajuda e reduzir os custos de
transacção que importam ao país.
Este programa de harmonização é visto como uma potencial ameaça ao financiamento
das OSC, na medida que cada vez mais organizações bilaterais, em particular dos paí-
ses Nórdicos que têm financiado as OSC, começam agora a fornecer apoio orçamental
ao governo. Infelizmente, dada a desconfiança que existe entre o governo e as OSC,
é difícil perceber como poderão as OSC ter acesso ao financiamento via orçamento
governamental.
395

A Sociedade Civil da República


Democrática do Congo: entre
Ambições e Constrangimentos1

Introdução
Jean-Claude Katende
Associação Africana
de Defesa dos Direitos
O actual regime na República Democrática do Congo
(RDC) não se pode considerar ainda um Estado de
Direito, muito ainda há a fazer para se atingir esse objectivo
do Homem, e a sociedade civil será com certeza um actor chave nesse
Lumumbashi, República processo. Apesar de jovem e mau grado todos os constrangi-
Democrática do Congo
mentos impostos pelo poder governamental, a sociedade civil
permanece ambiciosa e nela reside uma forte esperança de
mudança e de contributo para o desenvolvimento sustentável
e a efectiva implementação da democracia na RDC.
Para que o seu papel seja desempenhado a sociedade civil
da RDC tem muitas e difíceis batalhas a travar, a começar
pela plena efectivação de vários direitos de uma sociedade
democrática para todos os congoleses, nomeadamente no
que concerne à liberdade de expressão, ao acesso à saúde, à
educação e habitação condigna, à segurança alimentar, à pos-
sibilidade de livre escolha dos seus representantes políticos
sem constrangimentos de qualquer espécie, à liberdade de
acederem à informação, de terem conhecimento das contas
públicas, de terem acesso a um sistema judicial equitativo,
de ascenderem socialmente em função da meritocracia e não
em função das suas origens ou relações pessoais, de trabalha-
rem e receberem um salário justo, de contestarem e agirem
legalmente contra toda a forma de pilhagem dos recursos
naturais sem receio de serem detidos, ameaçados ou assas-
sinados. Enfim, alguns dos direitos, liberdades e garantias
fundamentais de base democrática.
O maior obstáculo à realização dos seus objectivos está pre-
cisamente na sua difícil relação com o poder político, que a
todo o custo procura interferir, manipular, cooptar, coagir e
dificultar o trabalho das Organizações da Sociedade Civil
(OSC) que se preocupam com as questões que efectivamente
importam para a melhoria da vida das comunidades e que
são necessariamente questões políticas. Muito embora as OSC
não pretendam conquistar o poder, preocupam-se com as
políticas públicas que condicionam a vida das comunidades
e, nesse sentido, terão necessariamente que procurar influen-

1
Traduzido do original em francês por João Alves.
396 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

ciar o processo de tomada de decisão, exercendo em pleno o seu papel de membros da


sociedade com o direito, e inclusive a obrigação, de se preocuparem com as questões
da vida pública, residindo aqui um aspecto essencial da cidadania.
O primeiro capítulo deste texto começa por abordar esta questão que me parece central
ao tema da sociedade civil e que diz respeito à sua relação com a política e os poderes
públicos, muito marcada por tentativas de interferência e constrangimentos de vária
ordem. O segundo realça as diversas debilidades e insuficiências internas às próprias
OSC e à postura de muitos dos seus líderes, que replicam nelas as características de que
acusam os governantes. O terceiro e último capítulo analisa a articulação entre OSC
nacionais e organizações internacionais, discutindo igualmente a questão da actuação
em rede e a necessidade ou não da institucionalização destas formas de organização.

1 – A Sociedade Civil e a Política na RDC


Depois de um acordar lento, devido a restrições à liberdade de expressão e de associação
implementadas pelo regime ditatorial do falecido presidente Mobutu, o movimento
associativo congolês conheceu uma expansão mais rápida devido à abertura democrá-
tica de 1990. A primeira vaga de OSC surge na década de noventa, seguida por uma
segunda vaga em 2001, em virtude da nova lei para o espaço associativo que liberalizou
a formação deste tipo de organizações dentro de um quadro jurídico mais preciso que
o anterior.2 As organizações recenseadas passaram de 450 em 1990, para 1322 em 1996 e
representam hoje 2500 a 4700, sem incluir os sindicatos que são cerca de 13003.
A sociedade civil da RDC congrega confissões religiosas, organizações de desenvolvimento,
organizações de promoção e de protecção dos Direitos do Homem, imprensa privada, sin-
dicatos, organizações especializadas em diversos assuntos, como a luta contra a corrupção
e fraude e pela transparência das indústrias extractivas, entre muitos outros.
A demissão do Estado das suas obrigações para com o fornecimento de serviços pú-
blicos e o empobrecimento generalizado do país, determinaram a necessidade das
populações contarem cada vez mais com as OSC. Desde a sua emergência, estas or-
ganizações empenharam-se na realização de inúmeras acções de interesse público em
benefício das comunidades perante o estado geral do país, marcado pela instabilidade
política derivada das duas guerras denominadas de libertação e agressão, a destruição
dos meios de produção, a pilhagem dos recursos naturais, a destruição das condições
de vida das populações, a inexistência e/ou precariedade dos serviços sociais elemen-
tares e as violações sistemáticas e massivas dos vários Direitos Humanos. As OSC têm
trabalhado para a auto-promoção das populações, prestando-lhes o apoio necessário à
realização de projectos de desenvolvimento nas mais diversas áreas, como a produção
agrícola, criação de gado, educação, saúde e habitação, assegurando ao mesmo tempo
a promoção e defesa dos Direitos do Homem e a luta pela democracia.
Graças a este trabalho, a sociedade civil obteve mais credibilidade junto das populações
do que o próprio governo. Constituiu-se num importante grupo de pressão relativa-
mente aos detentores do poder político, um actor incontornável na transformação da
vida política, social e económica do país, com uma participação crescente nos eventos e
negociações politicas que vêm tendo lugar para a instauração das actuais instituições.
2
Lei n.º 004/2001 de 20 de Julho de 2001.
3
Baudouin Hamuli Kabarhuza, Ferdinand Mushi Mugumo & Norbert Yambayamba Shuku, La Société civile congolaise:
Etat des lieux et perspectives, Colophon, 2003, p. 27
Jean-Claude Katende l A Sociedade Civil da República Democrática do Congo 397

A participação da sociedade civil na vida política conheceu um momento decisivo em


1991 com a organização da Conferência Nacional Soberana. Na ausência de instituições
legítimas, a sociedade civil surgia como o elemento através do qual o povo se exprimia
sobre as questões de fundo que afectavam o país, tendo por este motivo sido aceite a sua
participação ao lado das instituições públicas e dos partidos políticos. Sob a presidência
de Monsenhor Laurent Mosengo, um dos mais proeminentes líderes da sociedade civil,
a Conferência constituiu-se num espaço de crítica pública transparente4.
A sociedade civil esteve igualmente implicada no processo que conduziu às nego-
ciações políticas de Sun City em 2001, também denominado diálogo inter-congolês e
cujo objectivo era implantar instituições políticas de transição. Na implantação das
referidas instituições, os protagonistas foram encontrados no governo, no parlamen-
to, e em instituições de apoio à democracia. Desta forma, as instituições apoiantes da
democracia, tais como a Comissão Eleitoral Independente, a Alta Autoridade para
os Media, o Observatório Nacional dos Direitos do Homem, a Comissão Verdade e
Reconciliação e a Comissão de Ética e Luta contra a Corrupção, foram presididas por
personalidades procedentes da sociedade civil.
Nesta participação da sociedade civil na vida política, é de sublinhar o papel crucial de-
sempenhado pelos media no processo de democratização do país. Contribuíram para o fim
da ditadura de Mobutu e desempenharam um papel de vigilância ao poder musculado
do presidente Laurent Désiré Kabila, resistindo à instauração de uma nova ditadura5, edu-
cando e mobilizando os cidadãos para as eleições. Se o país se tornar um dia um Estado
de Direito, os media terão certamente contribuído bastante para esse feito.
De modo igualmente significativo, antes e durante as eleições presidenciais e legisla-
tivas de 2006, a sociedade civil desempenhou um papel relevante ao assegurar o bom
comportamento cívico das populações, actuando como observador e compilando os
resultados em todo o território, enfim, dando a sua contribuição para a transparência
e sucesso do processo eleitoral.
Contudo, este percurso das OSC na dimensão política tem sido muito duro e tem
enfrentado imensas resistências por parte do poder governamental.
Embora a sociedade civil seja composta por um conjunto de organizações e asso-
ciações cujas actividades não pretendem a tomada e o exercício do poder político, o
seu trabalho visa favorecer a participação de todas as camadas da sociedade na vida
política, económica e social do país, ajudando-as a sobreviver e a procurar participar
na construção do seu futuro mais imediato. Neste sentido, as OSC passaram a estar
cada vez mais envolvidas com os assuntos políticos, procurando estar representadas
nas diferentes negociações políticas e participar nos processos de tomada de decisão
pública sobre questões estratégicas de fundo.
Em teoria, os poderes públicos e a sociedade civil têm em comum o objectivo de tra-
balhar em prol da melhoria das condições de vida das populações, devendo portanto

4
Ibid. p.83
5
Depois da tomada do poder em 17 de Maio de 1997, o Presidente Laurent Désiré Kabila tomou várias medidas muito
criticadas pelos media, nomeadamente a supressão das actividades de todos os outros partidos. Só as actividades da
Alliance des Forces Démocratiques pour la Libération du Congo eram autorizadas. Mais tarde começam a dificultar de
sobremaneira a vida das ONG que trabalhavam com Direitos Humanos e que lhes eram muito críticas. É desta forma
que em 1998 o seu governo tomou a decisão de proibir em todo o país as actividades da Association Africaine de Défense
des Droits de l’Homme (ASADHO), medida que foi muito criticada pelos media e outros grupos da sociedade civil.
398 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

operar em articulação e parceria. Contudo, depois de 1990, ano em que se iniciou o


caminho para a democratização do país, a participação da sociedade civil no combate
pelas liberdades fundamentais e pela democracia, domínio outrora reservado aos par-
tidos políticos, trouxe um enorme prejuízo às relações de parceria com o governo.
Do regime de Mobutu ao de Joseph Kabila, de maneira geral, as relações entre poder
governamental e OSC nunca foram muito amistosas, sendo as mais das vezes tensas,
com críticas e ameaças por parte das autoridades locais ou nacionais, acusando as OSC
de estarem ao serviço de potências estrangeiras, de organizações internacionais, e de
trabalharem para consumo externo e para a desestabilização do poder.
Estas relações têm vindo a agravar-se em períodos de maior tensão política, assistindo-se,
por parte dos poderes públicos, a ameaças de detenção, de encerramento de escritórios e
à recusa de emissão de documentos administrativos para as ONG que, do seu ponto de
vista, são muito críticas do governo. No lado oposto, as OSC subservientes e favoráveis
ao governo nunca são incomodadas e têm inclusive a vida bastante facilitada. O trata-
mento de perseguição aplica-se igualmente aos meios de comunicação social privados
e aos sindicatos que sejam críticos do poder governamental.
As relações entre Estado e sociedade civil são cada vez mais feitas de acusações injus-
tificadas, ameaças, intimidações e até mesmo de assassinatos.
Os graves problemas financeiros com que se debatem as ONG congolesas faz com que
os seus orçamentos sejam dependentes em cerca de 90% dos parceiros externos. Tal
facto não abona em nada a necessidade de se criar alguma autonomia e capacidade de
sustentabilidade a médio e longo prazo. Deste modo, começou a levantar-se a discussão
acerca do financiamento das ONG pelos poderes públicos. Contudo, o problema reside
no facto de ser o governo a gerir os fundos públicos e a utilizar esse poder de forma
clientelar para com as ONG, concedendo facilidades fiscais, administrativas e subven-
ções apenas àquelas que lhe são favoráveis ou que têm uma postura apolítica.
Na prática, constata-se efectivamente que as ONG que obtêm aquele tipo de facilidades
assumem uma postura acrítica do governo, sendo geralmente constituídas por elementos
do próprio governo ou próximos deste6. Perdendo a independência, a sociedade civil
perde também a qualidade de vigilante da gestão política, económica e social e deixa
de controlar eficazmente o poder público e de defender os interesses e necessidades das
comunidades mais marginalizadas e esquecidas pelo sistema político. O mesmo se passa
com as OSC que aceitam financiamentos das multinacionais que exploram as minas,
o gás, o petróleo e as madeiras, perdendo capacidade para denunciar a opacidade e as
práticas fortemente prejudiciais para o país, perpetradas pela indústria extractiva.
Na medida em que as ONG contribuem para fazer recuar o autoritarismo e as arbi-
trariedades, pelas pressões exercidas a favor da democracia e da boa governação, é
importante que se abra um debate público entre o poder governamental e a sociedade
civil sobre a questão dos financiamentos. Tal debate poderia eventualmente conseguir
definir o quadro no qual as subvenções pudessem ser atribuídas às ONG de forma
equitativa para a realização de actividades de interesse geral, sem mecanismos gover-
namentais de punição-retribuição.

6
Na RDC, aconteceu diversas vezes aos governantes criarem ONG para os seus parentes, com a finalidade de se
infiltrarem na sociedade civil e boicotarem as suas acções. Diversas ONG desapareceram logo após o afastamento
de um governante ou queda de um governo.
Jean-Claude Katende l A Sociedade Civil da República Democrática do Congo 399

2 – Fragilidades e Insuficiências Internas das OSC


As OSC que efectivamente lutam por uma maior democratização são a minoria, a
maioria deixa-se frequentemente enredar no jogo político-partidário que pretende a
sua manipulação. Algumas redes ou organizações estão enfeudadas aos partidos ou a
figuras políticas e por vezes são utilizadas como trampolim para a vida política activa.
Vários dos líderes da sociedade civil deixam-se corromper pelos políticos, empresas
extractivas e outros actores com poder político-económico.
Na altura do referendo constitucional de Dezembro de 2005, algumas organizações da
sociedade civil, próximas do Partido do Povo para a Reconstrução e Desenvolvimento
(PPRD), partido do Presidente Joseph Kabila, apelaram aos congoleses para votarem
Sim no referendo, enquanto que outras, próximas da oposição, apelaram ao Não. O
mesmo foi constatado aquando da última volta das eleições presidenciais, em Outubro
de 2006, havendo organizações da sociedade civil que fizeram campanha por um dos
dois lados, esquecendo que o trabalho da sociedade civil é educar e mobilizar o povo
para as eleições sem influenciar o sentido de voto.
Outro dos graves problemas que afecta a maioria das OSC é a sua falta de democratici-
dade interna. Regem-se por uma gestão personalizada e centrada na pessoa do fundador
ou promotor. É nele que recai a responsabilidade pela gestão financeira e administrativa
da associação. A personalização do poder nestas organizações é um mal que as impe-
de de se desenvolverem. O fundador detém e mantém concentrados em si enormes
poderes, selecciona os membros, nomeia-os e demite-os como entende e quer, impede
que os outros membros tomem iniciativas de vulto e considera a organização como um
feudo seu. Aceder a funções de responsabilidade nestas organizações e associações por
meio de eleições é raro. Mesmo naquelas onde existem processos eleitorais, o método da
alternância e o respeito pelo mandato, nem sempre é respeitado. Este tipo de atitude e
postura é um poderoso obstáculo à gestão democrática da organização e hipoteca o seu
futuro. A personalização provoca igualmente um grande deficit de profissionalismo.
A inexperiência e a falta de competência da maioria do pessoal constituem também
um problema transversal à maioria das OSC por falta de meios financeiros para pagar
salários atractivos. Este facto agrava ainda mais as dificuldades administrativas e de
operacionalidade.
Por razões ditas de eficácia e concertação, as organizações e associações têm vindo a
ser reagrupadas em redes, plataformas ou coligações. Assim, temos reagrupamentos
tais como o Conseil National des Organisations Non Gouvernementales de Développement
(CNOGD), o Réseau Ressources Naturelles (RRN), o Réseau National des Droits de l’Homme
(RENADHOC), a Coalition Publiez Ce Que Vous Payez (CPCQVP; Publique o Que Paga),
entre outras. Este tipo de articulações tem sido bastante benéfico e muito útil à socie-
dade civil e aos seus objectivos como um todo.
Contudo, fora destes reagrupamentos de articulação e concertação que foram surgindo
em boa medida apoiados numa dimensão externa, a questão de fundo que se coloca
é a de saber se é benéfico institucionalizar estas redes (especialmente aquelas que se
multiplicaram internamente) de forma permanente, e considerá-las como uma espécie
de representantes dos seus membros, isto é, munindo as redes de órgãos permanen-
tes (presidência, secretariado, assembleia, etc.) que em certa medida representem as
organizações-membro junto de outros poderes e organizações, especialmente junto da
400 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

estrutura governamental. As OSC têm-se dividido sobre esta matéria. De um lado estão
aqueles que defendem a necessidade de haver um mínimo de órgãos para assegurar a
própria manutenção da rede no dia-a-dia, como forma de dar uma mais pronta resposta
às questões de politica geral que constantemente vão emergindo, ainda que considerem
que as redes nunca se podem substituir aos seus membros fundadores. Do outro lado,
estão os que defendem que essa “institucionalização” das redes numa espécie de orga-
nizações não deve ser incentivada porque acaba a evoluir para formas de representação,
abafando os membros, erguendo-se muito acima deles e passando por vezes a ignorá-
-los, apresentando-se como seu representante e furtando-lhes a legitimidade de ter voz
própria, estando depois mais sujeitas às seduções do poder político.
Considero que a nossa experiência sustenta muito mais a segunda perspectiva, na
medida em que uma tal institucionalização das redes tem, em muitas ocasiões, con-
tribuído para a politização e partidarização da sociedade civil. Este tipo de estruturas
acaba frequentemente como um trampolim para as ambições políticas dos chamados
activistas da sociedade civil, ao invés de servirem os interesses das populações ou das
organizações-membro, conduzindo à corrupção de muitos activistas por parte do go-
verno. Após 1990, a experiência mostra-nos que a institucionalização e a estruturação
neste sentido é muito arriscada7.

3 – A Articulação com Organizações Internacionais e a Questão das Redes


A falta de experiência e de profissionalismo de muitas OSC congolesas, a falta de meios
financeiros necessários à realização das suas missões e a natureza global de muitos proble-
mas (como seja a actuação das empresas da indústria extractiva), tornam absolutamente
crucial a colaboração com organizações não governamentais e inter-governamentais do
Norte. Esta articulação tem sido muito útil nos últimos quinze anos.
Grande parte dos fundos que a sociedade civil recebe e utiliza para a realização dos
seus projectos provém de organizações internacionais. O restante é repartido pela
quotização dos seus membros, de alguns particulares congoleses ou estrangeiros, de
embaixadas e do Banco Mundial.
Organizações internacionais tais como o Netherlands Institute for Southern Africa (NIZA),
Global Witness, Revenue Watch Institute, Droit et Démocratie, Pain Pour le Monde, Agir
Ensemble pour les Droits de l’Homme, desempenharam um papel importante no reforço
das capacidades das ONG na RDC.
No que respeita à exploração ilegal dos recursos naturais, as ONG internacionais
desenvolveram uma defesa activa junto das instituições financeiras internacionais e
dos governos dos respectivos países, incidindo a sua atenção sobre as consequências
da pilhagem dos recursos naturais na RDC, sensibilizando também a opinião pública
do Norte para a ligação entre o prosseguimento da guerra e a exploração ilegal dos
recursos feita por, ou em conluio com, empresas do Norte e por vezes com o conheci-
mento e cobertura tácita dos governos desses países.
Esta colaboração entre as organizações do Sul e do Norte parece-me absolutamente
necessária para combater de forma eficaz os abusos de toda a espécie que caracterizam

7
Após 1990, muitos congoleses a quem foi confiada a direcção da sociedade civil, aproveitaram a sua posição
estratégica para entrarem na política activa e obterem lugares no governo ou noutras instituições políticas. Uma vez
no poder cortam toda a ligação com as suas bases constituintes.
Jean-Claude Katende l A Sociedade Civil da República Democrática do Congo 401

a gestão dos recursos e da coisa pública em África. A colocação deste problema a nível
internacional parece ser a via mais eficaz para combater o problema face à passividade,
resignação e impotência com que é encarado pela maioria das populações africanas.
Cada vez mais é preciso contar com a sensibilização da opinião pública internacional,
que tem poder de influência e pressão sobre os governos, empresas e organizações
internacionais dominadas pelo Norte.
Este aspecto é de particular relevo em países ricos em recursos naturais com forte
procura internacional, como é o caso da RDC. No decorrer dos últimos dez anos, a si-
tuação do país não foi apenas marcada pela degradação do Estado e pelas duas guerras
de libertação ocorridas em 1996 e 1998, mas também pela pilhagem sistemática dos
recursos naturais e pela articulação directa que obviamente existe entre os interesses
económicos e a desestabilização política.
As duas guerras que o país conheceu não visavam somente a tomada do poder polí-
tico por parte de um grupo que queria substituir o outro, mas também o controlo dos
recursos naturais do país e, obviamente, das receitas em divisas que daí advinham,
pagas por empresas estrangeiras.
A comissão especial criada pela Assembleia Nacional, encarregue de examinar a vali-
dade dos contratos com carácter económico e financeiro concluídos durante as guerras
de 1996-1997 e de 1998, caracterizam a situação nos seguintes termos:
À medida que a AFDL ganhava terreno rumo ao poder, as companhias mineiras aban-
donaram os palácios de Kinshasa para irem ao encontro dos dirigentes rebeldes do Leste
do país. Pressionada para financiar o esforço de guerra para tomar o poder, a AFDL não
se fará rogada de caminhar nas pegadas do governo do Kengo [que também acedeu
aos apelos das companhias mineiras]. No contexto mineiro global da época, certas
multinacionais não podiam sonhar melhor. Iniciam de imediato conversações com a AFDL
em Goma (…). O Congo é então dividido em territórios com diferentes administrações
[a governamental e a rebelde quadripartida]. A nova rebelião a quatro cabeças contra o
poder de Kinshasa lança-se na caça ao tesouro para financiar a sua epopeia guerreira. A
conquista e a conservação do poder passam pelo controlo dos espaços territoriais ricos
em recursos naturais, que cada um explora segundo as suas próprias regras com os
respectivos aliados8.
É desta forma que a pilhagem dos recursos naturais se intensificou e forneceu aos
beligerantes e seus aliados os meios necessários para prosseguirem a guerra. Uma
guerra que custou a vida de milhares de pessoas.
Neste ambiente, o empenho da sociedade civil e o apoio da comunidade internacional
contra a guerra e a pilhagem sistemática dos recursos naturais era importante. Apesar
dos assassinatos, ameaças de morte, detenções e intimidações contra os activistas
da sociedade civil, estes mostraram-se determinados contra a exploração ilegal das
riquezas do país, sentindo-se apoiados pelos parceiros internacionais. Tal empenho
vai ganhar um ímpeto decisivo com a publicação de diversos relatórios do grupo de
especialistas das Nações Unidas, sobre a exploração ilegal dos recursos naturais e outras
riquezas da RDC. É denunciada não apenas a ligação de facto entre esta exploração
e o prosseguimento da guerra, mas também a sangria humana, material e financeira

8
Ler o relatório da Comissão Lutundula criada pela resolução n.ºAN/P/COM.SP/03/04 da Assembleia Nacional,
pp. 7-8
402 Sociedade Civil e Política em Angola Y Enquadramento Regional e Internacional

que causou aos congoleses, estimando-se que em consequência das guerras ocorridas
desde a independência do país (todas elas estreitamente relacionadas com interesses
na indústria extractiva), se tenham perdido entre 3 e 3.5 milhões de vidas humanas.
É neste contexto que em 2003 é criada, no seio das OSC, uma importante rede especia-
lizada na área dos recursos naturais, denominada Réseau Ressources Naturelles (RRN).
Terá por missão lutar contra a pilhagem desses recursos e monitorar as más práticas das
empresas extractivas, constituindo assim uma defesa activa para a consciencialização
da necessidade de que a exploração dos recursos se faça em benefício das populações.
A força desta rede residirá no facto de estar presente e activa em todo o país e trabalhar
directamente com as comunidades locais, primeiros beneficiários destas acções.
De forma isolada ou em articulação com outros intervenientes da sociedade civil, o
RRN desencadeou uma luta para que os contratos mineiros, assinados durante as duas
guerras de libertação e durante o período de transição, fossem revistos. Na sua maioria
estes contratos eram profundamente desvantajosos para o Estado congolês, assinados
em função da corrupção exercida pelas empresas mineiras estrangeiras e mistas sobre
os membros dos diversos governos, aproveitando-se da situação frágil das instituições
do Estado e do país (para além da corrupção que grassa na administração pública) para
daí retirarem vantagens financeiras enormes. Lutando contra interesses poderosos, o
combate das OSC valeu, a alguns dos seus promotores, tentativas de envenenamento
e assassinato, ameaças de morte, detenções e a clandestinidade.
Em 2006, Jean Pierre Muteba, Secretário-Geral da Nova Dinâmica Sindical (NDS), e o au-
tor deste texto, ambos intervenientes no Réseau Ressources Naturelles, receberam ameaças
de morte da parte do representante no Katanga do Parti du Peuple Pour la Reconstruction
et le Développement (PPRD), partido do Presidente Joseph Kabila, por terem organizado
uma conferência de imprensa na qual denunciaram a pilhagem no sector mineiro por
parte dos responsáveis deste partido, solicitando diligências judiciárias contra estes
indivíduos. As ameaças do representante partidário do PPRD foram proferidas diante
das câmaras de uma cadeia de televisão próxima do Presidente da República.
Com o novo governo saído das eleições de 2006 e a pressão de algumas OSC, o com-
bate pela revisão dos contratos mineiros conheceu um avanço significativo, tendo o
ministro das minas criado uma comissão especialmente encarregue de rever alguns
contratos assinados entre as empresas mineiras públicas de economia mista e parceiros
privados9. Ainda assim, em 30 de Abril de 2007, a coligação Publiez Ce Que Vous Payez
na RDC, tornou público um comunicado de imprensa no qual denunciava a ausência
de intervenientes da sociedade civil no seio desta comissão e o facto da deliberação
determinar, a priori, os contratos que eram submetidos à revisão, deixando de fora
muitos outros igualmente sob suspeição.
No âmbito da Initiative de Transparence des Industries Extractives (Iniciativa de Transpa-
rência das Indústrias Extractivas – ITIE)10, a sociedade civil obteve, através do Réseau
Ressources Naturelles, uma representação em todas as estruturas criadas para o efeito,
inclusive dirigindo o Comité Técnico11 e a Comissão de Comunicação e Reforço das
9
Deliberação n.° 2745/Cab.Min/Mines/01/, de 20 de Abril de 007.
10
A RDC aderiu a esta iniciativa desde 2005.
11
O Comité Técnico joga um papel crucial no desenrolar do processo ITIE: prepara o plano de acções para aplicação
dos princípios e critérios do ITIE, identifica os obstáculos à aplicação e propõe medidas rectificativas, apura e vigia os
pagamentos efectuados pelas empresas extractivas ao Governo, enfim garante a realização das auditorias às contas
das empresas extractivas pelos gabinetes nacionais e internacionais.
Jean-Claude Katende l A Sociedade Civil da República Democrática do Congo 403

Capacidades. A coligação Publiez Ce Que vous Payez, está também a acompanhar o


processo ITIE e a fazer campanhas de sensibilização das comunidades locais sobre a
problemática da transparência na gestão dos recursos naturais12.

Conclusão
No já muito sofrido caminho da RDC rumo à democratização, nada garante que os
objectivos da democracia efectiva e do Estado de Direito sejam alcançados. Muitas lutas
e desafios estão por vencer, os constrangimentos e obstáculos são vários e a vitória está
longe de ser certa. Na minha perspectiva, o mais importante a realçar não são tanto
as debilidades, fraquezas e insuficiências das OSC, mas o facto de várias delas serem
ainda capazes de resistir e prosseguir perante tantas e tão sérias adversidades que lhes
são colocadas a todos os níveis (internos e externos). Quando se fala na fraqueza geral
das OSC em África, muitos críticos esquecem o contexto e a dimensão dos problemas
que se lhes deparam, obstáculos que muitas das OSC no Norte nunca enfrentaram
para a sua afirmação nos seus países. As vitórias que esta minoria tem conseguido
são de relevo, especialmente contra máquinas tão poderosas e de poder tão arbitrário
como aquele que é exercido por muitos dos nossos governos.
Do exterior são necessários incentivos e apoios concretos às organizações que se man-
têm firmes nos princípios e na luta pelo processo de democratização, especialmente
sabendo que o resultado é totalmente incerto e a vantagem não está do nosso lado. A
opinião pública do Norte tem de ser envolvida porque os problemas que se passam
em muitos dos nossos países também lhes dizem respeito, existem responsabilidades
a repartir, os interesses económicos desses países sempre estiveram presentes e não
podem ser desresponsabilizados. A luta pela justiça, pelos Direitos Humanos, pela
liberdade e pela democracia é cada vez mais global.

a b c d e f g h i l

12
A coligação Publiez Ce Que Vous Payez foi criada em Kinshasa a 18 de Fevereiro de 2006 por mais de trinta ONG
vindas de todas as províncias do país.

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