ENTREVISTA Vkhutemas

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Conheça a revolução russa que se espalhou por talheres e prédios

Escola soviética Vkhutemas dividiu com a alemã Bauhaus suas origens pedagógicas
Celso Lima*

Em 2019 celebra-se o centenário da escola alemã Bauhaus, marco no ensino


de artes, arquitetura e design, e sobre ela muito já se escreveu.
No entanto uma imensa lacuna permanece no tocante às origens e também
ao desenvolvimento da escola. Refiro-me ao apagamento historiográfico da
universidade soviética Vkhutemas e suas irradiações, que inspiraram
realizações renovadoras com suas propostas pedagógicas, gerando novas
diretrizes para arte, arquitetura e design modernos, na Bauhaus e no resto do
mundo.
As duas escolas compartilharam em suas origens métodos de ensino
derivados de experiências pedagógicas do dramaturgo e crítico literário
Anatóli Lunatchárski, do filósofo e escritor Aleksandr Bogdánov e do escritor
Maksim Górki, que em 1909 fundaram na ilha de Capri uma escola política
para operários russos refugiados. Ali desenvolveram programas que usavam
arte, literatura e música para o aprendizado de um ativismo político
revolucionário.

Nomeado Comissário do Povo para a Educação após a revolução de 1917,


Lunatchárski utilizou as pedagogias laboratoriais da escola de Capri nos
primeiros programas dos Svomas, acrônimo de Svobódnie Masterskie (Ateliês
Livres), fundados em Moscou em outubro de 1918.
Os Svomas se tornaram um grande experimento de práticas pedagógicas e
propedêuticas, introduzindo uma dinâmica interdisciplinar a programas e
metodologias de ensino para formar artistas e designers que atendessem aos
ideários para a construção material de uma nova sociedade comunal e
coletivizada.
E foi em novembro de 1918 que o Primeiro Svomas, na antiga Escola de
Artes Industriais Strogánov, em Moscou, recebeu a visita do arquiteto alemão
Walter Gropius, um dos herdeiros do desgastado Deutscher Werkbund,
movimento surgido em 1907 na Alemanha que resgatava ideais de William
Morris, com a ambição de reconciliar arte e indústria, mas ainda com forte
valorização da artesania e de seus métodos.
Gropius é atraído pelos programas de preparação básica dos alunos,
propostas de mulheres e homens oriundos da vanguarda artística russa que
precedeu a revolução. Vladímir Tátlin, Anna Golúbkina, Vassíli Kandinski,
Pável Kuznetsóv, Nadiéjda Udaltsóva e Kazimír Maliévitch são alguns dos
mestres que atuaram nos ateliês livres e criaram propedêuticas para espaço,
volume, cores, superfícies e materiais, história da arte, fotografia e teatro. O
famoso programa didático para o ensino teórico das cores de Kandinski é
fruto de seu trabalho ali.
Em 1919 é fundada na cidade alemã de Weimar a Staatliches Bauhaus,
unificação de duas antigas escolas de artes e ofícios a partir de um projeto
apresentado por Gropius e composta por ateliês de arquitetura, cerâmica,
tecelagem, metal, mobiliário, pintura mural e vitrais, escultura, tipografia e
encadernação.
A escola não tinha um curso de preparação básica, e Gropius e seu conselho
de mestres, com nomes como o pedagogo e pintor Johannes Itten, os
pintores Georg Muche e Lyonel Feininger e o escultor Gerhard Marcks,
observaram que o rendimento dos alunos era insuficiente. Um dos motivos
era a disparidade na qualidade de suas formações anteriores.
Gropius então propôs a Itten formatar um curso introdutório, o Vorkurs, e
apresentou a ele alguns dos programas dos ateliês moscovitas, com destaque
para os estudos preliminares para espaço, volume e materiais. Itten já
ministrava na Bauhaus sua disciplina de desenho, composição e cores, e a
princípio aceitou as sugestões de Gropius, apesar de sua antipatia pelos
aspectos, segundo ele, muito “laboratoriais e materialistas” dos programas
soviéticos.
Em dezembro de 1920, por decreto de Lênin, os dois Svomas de Moscou são
unificados como instituição de nível universitário, os Vkhutemas (Vyschie
Khudójestvenno-Tekhnítcheskie Masterskíe, Ateliês Superiores de Arte e
Técnica). Eram oito faculdades: arquitetura, madeira, metal, cerâmica, têxtil,
poligráfica, pintura e escultura. Os programas eram interdisciplinares, numa
colaboração para transformar o cotidiano da nova sociedade comunal através
da criação e da produção de novos objetos, fosse um edifício ou um talher, e
da retirada dos ofícios das tradições artesãs, propondo projetos para a
produção de multiplicáveis industriais, objetivos então distintos de sua
contemporânea alemã.
As novas disciplinas propedêuticas, derivadas dos Svomas, constituíam um
departamento preparatório, as Seções de Base. Seu quadro de mestres
abrigava diferentes vertentes, com tradicionalistas (Aleksei Schússev, Oskar
Griun e Leonid Vesnín) e vanguardistas (Kandinski, Nikolai Ladóvski e
Vladímir Favórski). Um grupo se destacava na elaboração de programas e
metas nas faculdades: os construtivistas, entre eles Aleksandr Ródtchenko,
Liubóv Popóva, Aleksandr Vesnín, Varvára Stepánova, Antón Lavínski e Iliá
Gólossov.
Após disputas pela escolha de programas entre conservadores e vanguardistas
nos primeiros anos, em 1923 as novas propostas construtivistas e
racionalistas predominam, e os Vkhutemas se tornam um grande centro
irradiador de novos conceitos para o ensino e a criação no design.
A partir de 1924 esses movimentos provocam conflitos também na Bauhaus,
numa demanda de mestres e alunos pela adoção das novas linguagens
construtivas e suas diretrizes na criação de projetos, sobretudo em arquitetura
e mobiliário.
São muitas as diferenças entre as escolas nessa primeira metade dos anos
1920, mas a mudança da Bauhaus para Dessau, em 1925, será o marco da
grande virada na direção de um design funcional, multiplicável industrial, o
objeto como ferramenta de transformação social.
As inovações introduzidas no Vorkurs, a partir de adaptações das disciplinas
propedêuticas soviéticas, e mestres como Kandinski, Paul Klee, László
Moholy-Nagy, Herbert Bayer, Josef Albers, Marcel Breuer e Gunta Stölzl,
sob o comando de Hannes Meyer, diretor da escola de 1928 a 1930,
provocam uma convergência de objetivos entre as duas universidades na
segunda metade da década, com colaborações e parcerias que resultaram em
novas ideias, formas e conceitos funcionais, que atravessaram o século 20
como grandes influências do design moderno.
No verão de 1927 foi realizada na Faculdade de Arquitetura dos Vkhutemas a
Primeira Exposição de Arquitetura Contemporânea, com trabalhos de
mestres e alunos de ambas as escolas. Houve amizades e parcerias
importantes como a da desenhista e colorimetrista Liudmíla Maiakóvskaia,
mestra na Faculdade Têxtil dos Vkhutemas, com o artista Josef Albers,
professor da Bauhaus, que se conheceram em 1923. Lasar Lissítzki e László
Moholy-Nagy desenvolveram intensa correspondência.
Grande diferença entre as universidades era o tratamento dado às mulheres.
Nos Vkhutemas não havia distinção. Na Bauhaus as mulheres eram
admitidas, mas vários cursos lhes eram interditos, como o de arquitetura, e as
alunas eram encaminhadas aos ateliês de encadernação, cerâmica ou
tecelagem.
O ateliê de encadernação foi encerrado em 1922, e tanto Gropius quanto
Marcks, chefe do setor de cerâmica, consideravam inadequada a presença de
mulheres. Restava a tecelagem. E ali ocorre uma revolução capitaneada por
Gunta Stölzl, aluna até 1925 e mestra a partir de 1927. Em Weimar o ateliê
tinha como principal objetivo o estudo de fibras e sua aplicação na produção
artesanal de tapetes e macramés, mas na Bauhaus de Dessau, sob Stölzl, se
tornou grande departamento de criação em design têxtil para a indústria
alemã, com quem realizaria importantes parcerias.
A correspondência entre os alunos era intensa e incentivada pelos mestres,
que consideravam a atividade disciplina à parte. Em novembro de 1929, uma
acalorada carta dos estudantes da Bauhaus é endereçada aos colegas dos
Vkhutein, a nova denominação da escola moscovita, transformada em
institutos técnicos, e não mais ateliês: “Regozijamo-nos convosco pela grande
festa que celebra os 12 anos de existência da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas. (...) Encontramos em nosso caminho enormes dificuldades, mas
aquilo que realizastes nos dá forças para superar os obstáculos.” O trecho
demonstra o ânimo dos 180 alunos que assinam o documento.
Mas há também equívocos. Em 1928 o historiador americano e futuro diretor
do MoMA Alfred Barr fez uma longa viagem pela Europa. Na Alemanha,
visitou a Bauhaus, onde foi recebido pelo ainda diretor Gropius, László
Moholy-Nagy, Paul Klee e Joost Schmidt. Ficou impressionado com o luxo e
a modernidade do prédio de Dessau, com a produção material e com as
soluções apresentadas por projetos de alunos.
Foi em seguida a Moscou, levando na bagagem peças da Bauhaus e uma carta
de apresentação escrita por Moholy-Nagy e endereçada a Lasar Lissítzki, que
o ciceroneou numa visita aos Vkhutein. Barr conheceu Ródtchenko, que o
convidou para um chá no apartamento onde vivia com a Varvára Stepanova.
O casal havia muito estava envolvido com a criação de design gráfico,
fotografia e fotomontagem, mas Barr insistiu em ver antigas pinturas.
É Stepanova quem conta, numa passagem de seu diário: “Aqueles americanos
vieram nos visitar, um deles sem brilho, seco e de óculos, o professor Alfred
Barr.... Ainda está preso à velha guarda que só valoriza a arte para museus e
está interessado apenas em pintura e desenho. Ele virou todo nosso
apartamento de cabeça para baixo e nos fizeram mostrar todo o tipo de lixo
velho”. Era um desentendimento motivado por expectativas que se chocavam
numa cisão de épocas.
A essa altura, porém, forças políticas retrógradas já se movimentavam no
cotidiano das nações que abrigavam as duas usinas da modernidade.
Os Vkhutein foram fechados em 1930, a mando de Stálin, e desmembrados
em institutos técnicos. A Bauhaus foi asfixiada de 1930 até seu fim, em 1933,
pelo nazismo em ascensão.
Em 1937, na Esplanada do Trocadéro em Paris, dois pavilhões se desafiavam,
espelhando grandezas de seus países na Exposição Internacional de Artes e
Técnicas Aplicadas à Vida Moderna: o da Alemanha nacional-socialista, de
Albert Speer, e o da URSS stalinista, projetado pr Boris Iofan e encimado
pela estátua de um casal representando a indústria e o campo da escultora e
ex-mestra dos Vkhutemas Vera Mukhina.
Nada havia de moderno nem de grandioso nessas mitologias de regimes
totalitários. A modernidade estava perdida, seu lume apagado, e milhões ainda
morreriam para que o ecos retornassem ao mundo com promessas de novos
tempos.

Celso Lima* é designer têxtil, pesquisador e curador da exposição Vkhutemas, o Futuro


em Construção, juntamente com Neide Jallageas

Texto publicado na Folha de São Paulo em 31.03.2019.

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